6881197 vera lucia marinzeek de carvalho flores de maria

Upload: dpalmeira

Post on 29-May-2018

219 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    1/131

    Flores de MariaCopyright by @ Petit Editora e Distribuidora Ltda. 2003 3-01-04-10.000-38.000

    Direo editorial: Flvio MachadoCapa (criao): Flvio MachadoIlustrao da capa: John Everett MillaisAssistente editorial: Fernanda Rizzo SanchezChefe de arte: Mareio da Silva Barreto Diagramao: Ricardo BritoReviso: Maria Aiko NishijimaFotolito da capa: Digigraphic

    Impresso: Edelbra Indstria Grfica e Editora Ltda.Ficha catalogrfica elaborada por Lucilene Bernardes Longo -CRB-8/2082

    Rosngela (Esprito).Flores de Maria I romance do Esprito Rosngela ; psicografado pelamdium Vera Lcia Marinzeck de Carvalho. - So Paulo: Petit, 2003.

    ISBN 85-7253-100-9Romance do Esprito RosngelaPsicografado pela mdiumVera Lcia Marinzeck de Carvalho1. Espiritismo 2. Psicografia 3. Romance esprita I. Carvalho, VeraLcia Marinzeck de lI. Ttulo.CDD: 133.9

    editoraDireitos autorais reservados. proibida a reproduo total ou parcial,de qualquer forma ou por qualquer meio, salvo com autorizao daEditora. Ao reproduzir este ou qualquer livro pelo sistema de

    fotocopiadora ou outro meio, voc prejudicar a Editora, o autor e vocmesmo. Existem outras alternativas, caso voc no tenha recursospara adquirir a obra. Informe-se, melhor do que assumir dbitosespirituais.Rua Atua, 383/389 - Vila Esperana/Penha CEP 03646-000 - SoPaulo - SP Fone: (Oxxll) 6684.6000 Endereo para correspondncia:Caixa Postal 67545 - Ag. Almeida Lima 03102-970 - So Paulo - SP

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    2/131

    Tradues para outro idioma, somente com autorizao por escrito daEditora.Impresso no Brasil, no vero de 2004.www.petit.com.br [email protected]

    1

    Meu cozinho, um labrador amarelo, olhava-me com expressotriste, como se quisesse, se possvel, sofrer em meu lugar.

    - Bob! - balbuciei.

    Ele levantou-se e aproximou-se mais de minha cama.Com esforo, passei meus dedos em sua cabea, fazendo-lhe umcarinho.

    - Queria contar-lhe meu sonho - falei com dificuldade.Bob me olhava atentamente. Talvez sentssemos o mesmo desejo: saircorrendo dali e irmos juntos a uma pracinha que ficava a doisquarteires de casa. ramos companheiros inseparveis. E como euno conseguia mais me levantar do leito, ele ficava em meu quarto,olhando-me, quietinho. s vezes, latia baixinho, convidando-me a sair.

    Eu compreendia isso pelo seu olhar.Eu estava doente havia algum tempo. Para mim, pareciam sculos. Adoena faz muitos estragos na vida da gente, no s no corpo, masem tudo e em todos nossa volta. Sentia falta de muitas coisas deque antes desfrutava e das minhas amigas... Eram tantas... Agora,raramente vinham me visitar e, quando o faziam, ficavam com umaexpresso de "coitada da R".Minha famlia era unida e tornou-se mais ainda com as dificuldadespelas quais estvamos passando. Por causa de minha doena, osproblemas aumentaram; meus pais se endividaram, meus irmos

    trabalhavam mais e todos estavam tristes e cansados.Lembrei-me do sonho que tive. No contei ao Bob, embora sempreque falava com ele, este prestava ateno, porm sabia que meucozinho no me entendia.Sonhei com minha tia Ana Elisa. Ela era tia de minha me, irm deminha av. Desencarnou jovem. No sabiadireito o porqu ou de qu, pois sempre tem um motivo.

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    3/131

    Acho que foi de tuberculose. Era muito bonita, como dizia vov, queraras vezes comentava sobre o assunto. Nunca havia me interessadopor essa tia, at que sonhei com ela, e foi um sonho agradvel.Lembrei-me direitinho dela.Eu sentia dores. Quando ficaram mais fracas, adormeci. Vi uma moase aproximando sorrindo; ela passou carinhosamente as mos emmeus cabelos e falou:

    "Rosngela, minha sobrinha, sou sua tia Ana Elisa e vim paralev-Ia para passear."

    - No posso sair do leito, estou muito doente - respondi."Logo voc estar bem e vir morar comigo. Venha!"

    Ela pegou na minha mo e levantou-me. Olhei para minha cama

    e l estava meu corpo dormindo. No dei Importncia e sa com ela.Pena que, aps acordar, no conseguia recordar de tudo, apenassentia-me descansada e mm a sensao de ter sado para passear.Contei meu sonho a todos os meus familiares. Mame comentou:

    - Estranho voc sonhar com algum que no conheceu; nem eu aconheci. Mas se gostou do sonho, tudo bem!

    Quando falei que titia Ana Elisa me disse que logo iria morar comela, mame mudou de opinio. .Esse sonho foi um blsamo para mim. to ruim ficar doente, sentiamuitas dores, fraqueza, estava sempre enjoada e a medicao eradolorosa.

    No comeo, quando me senti doente, acreditei que ia melhorar.Papai me afirmou isso e eu acreditei nele, pois nunca mentira. Depoiscompreendi que meu pai acreditava na minha recuperao, queriatanto que isso acontecesse, que tinha por certo minha cura. Mas, como passar do tempo, as esperanas foram diminuindo.Mame entrou no meu quarto sorrindo. Tentei sorrir, mas acho queultimamente meus sorrisos eram apenas caretas. Falei:

    - Me, sonhei de novo com a tia Ana Elisa!

    - O que ela queria desta vez? O que lhe disse? perguntoumame.- Nada! S me abraou e me beijou.- No entendo porque voc sonha com ela.

    - A senhora no gosta que eu sonhe com a titia? pergunteI.

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    4/131

    - Nem gosto nem desgosto. S acho que mortos devem ficar nolugar deles. Depois, parece que ela quer lev-Ia - falou mamesuspirando.

    - Mame - expressei-me com dificuldade -, ningum tem culpa seestou doente. Sei que todos, at a tia Ana Elisa, tentam me ajudar esou grata por isso. Eu no tenho medo dela! A senhora acha que se eumorrer, devo ficar no meu lugar?

    - Quando voc morrer sim, mas no ser logo, morrer velhinha.- Muitos morrem jovens! - exclamei.

    - No voc! - afirmou minha me com convico. - Mame, nopense na morte dessa forma! Se morrer fosse to ruim, Deus que bom, no o iria permitir - conclui.

    - Vamos falar de outra coisa? No gosto de conversar sobreesse assunto.

    Cansei e fiquei quieta. No compreendia bem o porqu de meus paisno gostarem de falar na morte, j que todos ns morremos.Lembrei-me do rosto de minha tia Ana Elisa: era lindo, e seu

    sorriso suave.Pedi vov para ver de novo seu retrato, e ela o trouxe no dia

    seguinte.- com ela mesmo que sonho, vov! - afirmei.Passei a orar por ela, imaginava que, s vezes, titia estava perto

    de mim. Comentei com mame, que me disse:- Voc est sugestionada! Deve ter escutado tanto sua av falar dessairm, que sonhou com ela. Sonhos so fices, coisas da nossaimaginao!

    No me recordava bem dos meus sonhos, mas tinha certeza deque sonhara muitas vezes com titia e que ela me levava a lugaresbonitos. Lembrei-me de um sonho no qual vi muitas crianas alegres ecantando.Numa manh, acordei com muitas dores, enjos, e passei horas

    tentando no reclamar para no deixar mame mais triste. Quandoconsegui dormir, sonhei com titia novamente. Assim que a vi, pergunteia ela:

    - Tia, vou melhorar?No", respondeu ela com delicadeza. "Vai piorar e s depois

    melhorar."- Vou morrer?

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    5/131

    Titia sorriu e confirmou com a cabea.Acordei com a certeza de que haveria uma mudana em minha

    vida. Queria que meus pais compreendessem e no sofressem tanto.A situao financeira em casa era muito ruim. Estavam lendo muitosgastos comigo. Meus avs, os quatro, ajudavam como podiam, achoque at no que no podiam. Meus rios tambm auxiliavam.Mame insistia para que me alimentasse. Fazia o que eu gostava,dentro da minha dieta alimentar. Acho que eles, os cinco em casa,meus pais e meus trs irmos, no se alimentavam para que no mefaltasse nada. Entristecia-me, queria que fosse s eu a sofrer.Compreendia que eles se sacrificavam,. mas faziam com carinho eno sentiam isso como um sacrifcio.Solange chegou do trabalho e veio me ver.

    - Como est se sentindo hoje minha irmzinha linda? - Bem -

    respondi desanimada.- Parece preocupada. O que aconteceu?Solange tinha dezoito anos, era muito bonita, estudava noite etrabalhava durante o dia, estava sempre atarefada. Era a nica emcasa que no tinha medo de falar na morte. Isso porque, segundomame, ela conversava muito com uma amiga esprita. Gostava muitoda companhia de minha irm, mas no queria ret-Ia, pois tinha de ir escola. No respondi, s a olhei. Solange insistiu:

    - Querida, voc est com receio de alguma coisa? Est commedo da doena?

    - No sei... - respondi.- Rosngela, a gente tem medo do desconhecido.

    Lembra quando foi pela primeira vez escola? Voc no sabia comoera, o que acontecia l, ento no queria ir, teve receio. Mas bastou ire em poucos dias se adaptou, gostou, fez amigos e compreendeu quea escola era um lugar agradvel e de muita importncia, pois l iaaprender muitas coisas.

    - Ser que a morte assim? - perguntei.- No estou me referindo morte - disse Solange.

    - Mas deve ser assim - falei. - Temos medo porque no sabemoso que nos ir acontecer quando os rgos do corpo cessarem suasfunes. Deve ser como ir escola. Voc tem razo, no precisamoster medo. Se Deus Pai amoroso me levar para uma bonita escola,voc no acha, Solange?

    - Acredito que sim! - afirmou minha irm com convico. - Tenhocerteza! Voc to boazinha e est sofrendo tanto, que s poder ir,

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    6/131

    aps esta vida, para um lugar muito bonito. No tema o desconhecido.Lembre-se de que basta conhecer!

    - Solange, quando eu me for, console nossos pais! Promete? -pedi.

    - Prometo, irmzinha!- Agora v, quero dormir - falei carinhosamente.

    No estava com sono, porm no queria deter Solange para que elano se atrasasse. Ela saiu do quarto. Fiquei pensando e conclui queminha irm tinha razo: tememos o desconhecido. Consolei-me,compreendendo que tudo fica mais fcil quando o conhecemos.

    Tia Ana Elisa tinha razo, piorei muito, e, como no gostava dehospitais, pedi aos meus pais:

    - Papai, mame, por favor, deixem-me aqui, no quero ir para ohospital e ficar longe de vocs.

    Os dois se olharam, saram do quarto para conversar e voltaramcom a notcia:- Rosngela, voc no ir para o hospital - falou papai

    determinado. - O pior da sua doena j passou e voc convalesceraqui conosco.

    - Obrigada, prometo no lhes dar muito trabalho. Aproveito queos dois esto comigo para dizer que os amo. Onde eu estiver osamarei. Sou muito grata a vocs. So os melhores pais do mundo!No, do Universo!Meus pais me abraaram e me beijaram. Falei tudo isso devagar, svezes, dando um intervalo. Estava muito fraca. Como a fraqueza di!Sentia muitas dores, o cncer consumia meu corpinho, j to fraco.Queria falar mais coisas sobre os meus sentimentos, mas estavamuito cansada.Imaginava sempre como seria bom, ficar alguns minutos sem aquelador e sensao ruim. Desejava ficar como era antes de adoecer.

    Eu achava que era impossvel piorar, mas piorei. Quando, numa

    manh, mame me trocou e vi que fizera, sem perceber, minhasnecessidades fisiolgicas na cama, sujando os lenis, choreibaixinho.

    - No chore, Rosngela, eu a limpo num instante! - mame faloucom carinho, consolando-me.

    Minha mezinha me limpou devagar e enxugou minhas lgrimascom beijos.

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    7/131

    Ao ficar sozinha, orei e pedi a Deus pela primeira vez:"Deus, meu Pai do Cu! No sei por que sofro e sou motivo de

    tantos sofrimentos a todos aqui em casa. S posso ter feito algo deerrado que o Senhor no gostou. Desculpe-me! Perdoe-me! Ser queno d para o Senhor levar-me? Sei que no devo querer a morte nempedir para morrer. O Senhor sabe que nunca iria querer isso seestivesse sadia. Se me levar, ficarei agradecida."A veio em minha mente a passagem do Evangelho em que Jesusorou no Horto das Oliveiras e pediu: Pai afasta de mim estesofrimento, porm faa Sua vontade e no a minha. Completei minhaprece: "Deus, faa Sua vontade, mas, se for possvel, atenda meupedido! Ou seja, que a Sua vontade seja igualzinha minha. Lembroao Senhor que estou sofrendo muito, assim como todos aqui em casa.Acho que no vou melhorar, ento me leve para me curar no Cu. Por

    favor!"Senti paz e dormi. No vou mais falar do meu sofrimento. Foram diasdifceis, at que adormeci com um sono tranqilo.

    2

    Em meu sono no tive dores, e, s vezes, parecia escutar:- Rosngela era to bonita! Antes de adoecer era gordinha e

    corada!- Ia completar quatorze anos, mas parecia ter dez. Que pena!

    No viveu a vida!- Os pais de Rosngela esto to endividados com os gastos

    que tiveram com a filha, que tero de vender a casa, o nico bem queeles tm e que, para o adquirirem, trabalharam tanto!

    - Sofreu tanto a pobrezinha, que s pode estar no paraso!

    - Eu a amo filhinha! Sempre a amarei! No quero ser egostaquerendo voc conosco doente como estava. Mas est sendo doloridov-Ia afastar-se de ns dizia meu pai.

    - V com Deus, meu anjinho! Com voc ir um pedao do meucorao! - mame falava, parecendo cochichar ao meu ouvido.

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    8/131

    - Ro! - ordenou Solange, minha irm. - No tema o desconhecido!Aceite com gratido o que receber e lembre-se de que queremos queesteja bem, assim como voc quer que fiquemos."Ora, deixem-me dormir, porque h tempos que no tenho um sonoto gostoso!", exclamei recusando-me a ouvir mais comentrios.Determinei a mim mesma que no ouviria mais nada. Virei-me nacama sozinha, passei a mo pelo meu corpo e percebi que no estavade fralda, mas sim sequinha e cheirosa."Que sono mais agradvel! Ningum me acordou para me dar umainjeo! Vou aproveitar para dormir mais! Estou com muita sede efome. Fome? H tanto tempo no sinto vontade de comer!", faleibaixinho.

    Levantei o lenol, sentei-me na cama com facilidade, virei acabea, ri e continuei a falar:

    "Estou sonhando! Fantstico! Tem um copo de suco e uma tigela desopa na mesinha de cabeceira. Vou comer! Nem que seja no sonho,vou alimentar-me com prazer."Tomei o suco, que estava delicioso, e a sopa de legumes,saborosssima. Limpei a boca com o guardanapo e espreguiIcei-me.

    "Vou dormir!", pensei."Engraado, nunca antes sonhei que dormia. Est to gostoso

    aqui! Queria tanto ficar por instantes sem aquela sensao da doena.Agora que estou bem, mesmo que em sonho, irei aproveitar." Virei-mevrias vezes na cama, deliciando-me por fazer isso, acomodei-me edormi.

    Acordei achando que dormira por horas. Abri os olhosdevagarzinho temendo sentir dores e aqueles horrveis maI-estares.Continuei sentindo-me bem. Sorri, ou melhor, ri mesmo. Tive vontadede gargalhar, coisa que h tempos no fazia, pois se fizesse sentiriamuitas dores. Ri alto por minutos, sem me importar com as outrasduas meninas que estavam nos leitos ao lado do meu. Quando parei,uma delas, que sorria ao me ver rir, exclamou:

    - Que alegria! Voc est feliz! Por que ri?

    - bom rir e no sentir dores! Vou aproveitar este sonho. Voulevantar e pular! - respondi.Levantei-me com facilidade, subi na cama, pulei cantando uma

    marchinha, uma msica de sucesso da poca. Minha voz era fortecomo antes de adoecer. Alegre em me ouvir, cantei mais alto. Amenina que me dirigiu a palavra cantou comigo, e a outra ficou s meolhando, e acabou sorrindo. Uma moa muito bonita entrou no quarto,

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    9/131

    olhou-nos, aprovando. Quando cansei, sentei-me na cama com aspernas cruzadas. Estava com um pijama azul-clarinho, limpinho echeiroso.

    - Bom dia, queridas meninas! - cumprimentou a moa.- Bom dia! - respondemos as trs.- Por que voc est to alegre? Por que pula, ri e canta? -

    indagou a menina que ficou s olhando.- Ora, maravilhoso para quem no faz isso h tempos -

    respondi. - Pedi a Deus para que pudesse me sentir sadia por algunsminutos. Estou doente, nem vinha dormindo ultimamente, mas agorasinto-me bem. Ento, estou aproveitando este sonho agradvel!

    - E se voc no estiver sonhando? - perguntou a me nina que meobservava.

    - No estou sonhando? - indaguei espantada, olhando para a

    menina que cantou comIgo.Ela negou com a cabea. Fiquei quieta por alguns instantes ecomecei a observar o lugar onde estava. Era um quarto grande,arejado e com uma janela enorme. As camas eram cor-de-rosa, comdesenhos de corao na cabeceira. Havia mais trs leitos vazios.Tudo arrumado, limpo e cheiroso.

    Sempre gostei de tudo limpinho e com cheiro agradvel.Ultimamente, por mais que mame e minhas avs me limpassem, noficava limpa por muito tempo e o odor do meu quarto no eraagradvel. Acho que foi por isso que este local agradou-me tanto. Astrs me olhavam. Repeti a pergunta:

    - No estou sonhando?- No, no est - respondeu a moa.

    - Curei-me, ento? De repente? Por que estou to bem assim?Milagre? S se for por Deus! - disse rindo.

    - Voc no pensa em morrer? - perguntou a meninaque me observava.

    No respondi indagao e falei apresentando-me:- Meu nome Rosngela, e vocs quem so?

    - Sou Lourdes, muito prazer! Espero que continue aqui conosco -respondeu a menina que cantou comigo.- Sou Valda! Alegro-me por v-Ia bem! Se precisar de mim, por

    favor, chame-me - apresentou-se a moa.Olhei para a outra menina. E ela falou:- Sou Ftima! Prazer!Ri de novo e desculpei-me:

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    10/131

    - por favor, desculpem-me! Est sendo to prazeroso no sentirdores que no consigo parar.

    As trs riram comigo. Parei e indaguei:- Se no estou sonhando e se me curei, o que me aconteceu?Voc no respondeu o que Ftima lhe perguntou.

    - Voc no pensa na sua morte? - indagou Lourdes.- Penso sim, at pedi a Deus perdo por quer-Ia respondi.- Ento, Deus a perdoou e atendeu. Voc morreu! exclamou

    Ftima.- Querida, no fale assim! - pediu Valda com olhar reprovador.

    Parei de rir, olhei como de costume para minhas mos e comecei aestalar um dedo de cada vez. Tinha o costume de fazer isso todas asvezes em que me encontrava em situaes difceis. Observei meusdedos, estavam gordinhos, as unhas rosadas.

    Ftima comeou a chorar se lamentando:- Mas verdade. Voc, Lourdes e eu estamos mortas! Ai de mim!- ruim morrer? - perguntei.- Querida, s o nosso corpo fsico que finda seu tempo. Nosso

    esprito continua a viver! Voc est viva num lugar lindo, entre amigose, melhor, sadia!

    Beijou-me nas bochechas. Senti meu rosto e passei as mos nele,estava gordinha. Senti vontade de rir de novo.

    - Ora, estou bem e quero rir! Estou no Cu? Vou ver Deus?- Deus, Rosngela, est em todos os lugares explicou Valda.- At dentro de ns - interrompeu Lourdes. S que no O vimos

    e no temos entrevista com Ele. Aqui um ajudando o oUtro, comodeveria ser l na Terra.

    - J que morri, o que vou fazer agora? - quis saber.- Pode rir, Rosngela - respondeu Valda. - A alegria alimenta

    nossos bons sentimentos e irradia contentamento nossa volta.Ftima que estava triste at sorriu ao v-Ia contente. Aqui no hociosidade, ter muitas coisas interessantes para fazer e outros tantosmotivos para sorrir.

    - Voc disse que estava doente. Sofreu muito? - perguntouLourdes.- No tenho vontade de recordar ou de falar disso. Estou to

    aliviada por me sentir bem! - respondi.Achando que deveria dar uma resposta melhor para minha nova

    amiga, disse:- Fiquei anos doente e sofri muito.

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    11/131

    - Eu no! - falou Lourdes. - Desencarnei por um acidente. Umsegundo de vacilao e pronto, vim para o lado de c.

    - Como sabe que aqui o lado de c e no o de l? indagouFtima.

    - Vim para o plano espiritual - respondeu Lourdes.- Como foi? - curiosa quis saber.Lourdes pensou um pouquinho e falou:

    - Fui passear de moto com um primo, escondido dos meus pais, quesempre acharam esse veculo perigoso. Imprudentemente, pedi-lhepara correr e ele me atendeu. Um buraco na pista me fez cair. Eudesencarnei na hora. Ele ainda est no hospital l na Terra, muitoferido e sentindo muita culpa.

    -Voc acha que ele culpado? - perguntou Ftima.-1IIII'que se fosse comigo, eu o culparia. Ele era mais velho,

    poderia ter sido mais prudente.- No quero culp-Io, ele foi imprudente, mas no quis queacontecesse o acidente. Coitado! to ruim sentir culpa, remorso...Tenho orado por ele.

    - Voc est agindo corretamente, Lourdes. Ore por ele quereceber e sentir em seu ntimo o seu carinho falou Valda fazendouma pausa e convidando-nos:

    - Vou lev-Ias para passear no jardim! Vamos, levantem-se!Pulei da cama contente por poder passear. Sempre me ajeitava

    para sair. Indecisa perguntei:- Vou de pijama?- Pode ir se quiser, s vamos passear um pouquinho. O jardim

    logo ali e l s encontraremos outros convalescentes como vocs -respondeu Valda.

    - Gostaria de colocar outra roupa - pedi.Valda apontou para um cabide que estava ao lado da cama que

    eu ocupava, mostrando-me roupas penduradas. Alegre, peguei umacala comprida igual a uma que tinha, s que esta aparentava sernova, e uma blusa bege parecida com u ma que minha av me dera

    de presente de aniversrio.- Tive uma roupa assim! - exclamei.- Temos aqui algumas roupas parecidas com as que tivemos

    quando encarnadas. Valda nos falou que fazem isso para nossentirmos bem - explicou Lourdes.

    Fui atrs do biombo e troquei de roupa. Senti-me muito bem;havia tempos que no vestia roupas comuns, s usava pijama. ''A

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    12/131

    felicidade est nas pequenas coisas, e s quando somos privadosdelas que damos valor", pensei.

    Calcei os chinelos que estavam no cho, perto do leito. Quisajeitar os cabelos. Por instantes receei no t-Ios. Devagar levantei asmos e passei-as na cabea. Ao senti-Ios, exclamei contente:

    - Viva! Tenho cabelos! Meus lindos cabelos!- Voc est bem, muito bonita! Venha aqui e se olhe no espelho -

    convidou Valda.Fiquei novamente indecisa e receosa, fui andando devagarzinho.

    Entrei num banheiro. Era todo branco, muito limpo, tinha peas que osencarnados conhecem, e, acima de uma pia grande, havia umespelho. Quando me olhei nele, vi um rosto sadio. Lgrimas degratido escorreram pelo meu rosto. Ri de novo, enxugando aslgrimas com as mos.

    - Deus, meu Pai, muito obrigada por ter-me atendido! Eumelhorei! - exclamei alto.Valda pegou na minha mo e na de Ftima, samos do quarto

    com Lourdes. Atravessamos um corredor e defrontamo-nos com umpequeno jardim.

    - Que beleza! - disse maravilhada.

    3

    O jardim era muito gracioso! Tinha algumas rvores, v\rioscanteiros com flores e alguns bancos. Estavam l, meninos e meninasandando ou sentados, todos conversando.

    - Esto todos mortos? - perguntei baixinho para Valda.- So desencarnados. Esse o termo que usamos, porque vivos,

    Rosngela, estamos sempre.- Hei, voc no a Rosngela?

    Senti me cutucarem no ombro. Virei-me e vi Leonardo, o Leo, um

    conhecido que desencarnara havia alguns meses, atropelado por umcarro, quando passeava de bicicleta. Ao v-Io sorrindo para mim, notive mais dvidas. Eu no estava sonhando e morrera mesmo, oumelhor, de desencarnada, como explicara Valda.

    - Leo! Voc por aqui! - exclamei.- Pois ! Como voc sabe, desencarnei por acidente.- E voc, quando voltou?

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    13/131

    - Voltou?! - indaguei sem entender o que ele queria saber.- Veio para c, para a nossa ptria.

    - Acho que foi ontem - respondi confusa.- No precisa se encabular, logo voc estar a par de tudo. Sinta-

    se vontade, Rosngela. Aqui muito bom, basta acostumar-se -aconselhou Leonardo.

    - Vou tentar seguir seu conselho. Leo, estou um pouco confusacom tantas novidades. Estive doente, dormi e acordei aqui, sadia!

    - Sei que voc estava com cncer. Ficamos, meus amigos e eu,com pena de voc. E eu, que estava sadio, desencarnei primeiro. Foium prazer rev-Ia. Desejo-lhe boa recuperao - falou Leo.

    - Voc gosta mesmo daqui? - quis saber.- Sim, gosto muito! Agora, Rosngela, tenho de ir; voltaremos a

    nos ver. Tchau.

    Leonardo foi embora e curiosa fui observar o jardim, olhando comateno cada detalhe. As flores eram lindas, perfumadas... euconhecia a maioria delas. Muitos passarinhos voavam baixinho,pulando nos galhos das rvores.

    Bati as mos de contentamento. Sentei-me num banco ao lado deValda e Ftima. Lourdes foi brincar com as outras meninas. Sentisono. Valda me levou de volta ao quarto, ajudou a acomodar-me noleito. Adormeci. Quando acordei, vi s Ftima no quarto.

    - Oi! - cumprimentei-a.- Oi! - respondeu. - Como voc est se sentindo?

    - Muito bem, obrigada. Onde est Valda e Lourdes?- Valda uma das encarregadas de cuidar de ns. Acho que ela

    uma enfermeira ou algo parecido. Trabalha aqui. No estranhotrabalhar depois que se morre? Aqui se trabalha muito! Lourdes foiouvir o coral cantar, voltar logo.

    - Lourdes foi ouvir msica? Quero ir tambm! exclamei.- Calma! Voc ter oportunidade de ver e ouvir o coral, eles

    ensaiam quase todos os dias e esto sempre se apresentando. Comovoc estava dormindo, Valda no quis acord-Ia.

    - Por que voc no foi? - quis saber.- Estou triste, com saudade da minha casa e dos meus pais. Ftima respondeu, enxugando algumas lgrimas.

    - Deve ser ruim no saber deles, o que acontece l, com osencarnados - comentei sria.

    - Eu pensava que era assim, porm ns sabemos deles.Trouxeram mame para me ver enquanto ela dormia. Abraamo-nos

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    14/131

    apertado. Foi to gostoso! Pena que minha me no recordou muitobem do que aconteceu quando acordou. Ela chora tanto por mim! Eu aamo tanto, queria ficar para sempre ao seu lado.

    - Do que voc morreu? - quis saber curiosa.- Desencarnei de meningite - respondeu Ftima me corrigindo e,

    suspirando, continuou a falar: - Adoeci, parecia gripe, mas como afebre no cedia, mame levou-me ao mdico, que pediu para meinternar no hospital. Tomei muitos remdios, injees e fui piorando.No me recordo direito, acho que tive muita febre. Dois dias depois,desencarnei.

    - Voc no parece gostar daqui - conclui e indaguei em seguida: -No se sente bem?

    - No sinto nada de ruim e at gosto daqui, s que preferia estarem minha casa. Se pudesse escolher, estaria encarnada - respondeu

    Ftima.Ficamos quietas por instantes. Senti pena dela e pensei:"Devo ou no ter d de ns? Afinal estamos desencarnadas".Valda entrou no quarto sorrindo carinhosamente; beijou-nos,

    indagando atenciosa:- Voc est bem?- Sinto-me muito bem, obrigada - respondi. - Valda, tenho uma

    tia, irm de minha av, que est desencarnada. Ser que posso v-Ia?Sonhei com ela algumas vezes quando estava doente. Queria, sepossvel, saber dela.

    Ana Elisa ficar contente por lembrar-se dela. Logo poder v-Ia.- Voc a conhece? - perguntei.- Sim, sua tia j veio v-Ia e tem perguntado muito por voc. Ana

    Elisa trabalha na colnia - respondeu Valda.- Trabalhar? Alimentar-se? Aqui eu falo e dou risadas! Estou

    achando isso tudo muito engraado, ou melhor, estranho.- Por favor, Rosngela, fique sempre alegre pediu Valda.- Ser que estou me comportando bem? Afinal pulei em cima da

    cama, cantei alto. que pensei estar sonhando. Como os

    desencarnados devem agir? - perguntei preocupada.- Aqui temos ordem, disciplina e muita alegria. Voc aprenderaos poucos a viver entre ns. Tem uma voz bonita. Gostaria de fazerparte do coral? - indagou Valda carinhosamente.

    - Sim, quero - respondi contente.Amanh vou lev-Ia para ver um ensaio e, logo que possvel,

    far parte dele - falou Valda, incentivando-me.

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    15/131

    Quando Valda saiu, Ftima foi ler, e eu fiquei quieta. Senti umadas minhas avs chorando e reclamando:

    - Rosngela era to jovem! Por que no fui eu a morrer em vezdela?

    Ia concordar com ela, quando escutei minha irm Solangerespondendo vov:

    - Vovozinha, Deus quer os jovens tambm. Cada um tem seutempo de ficar aqui. No chore assim! A senhora acha que Deus mau? No! Nem eu! Acredito que Deus bondade infinita. Se Deus misericordioso, no agiu errado nem com maldade com a nossaRosngela. Ela no est infeliz nem sofrendo! E onde estiver no irquerer nos ver nos lastimando.

    Lourdes chegou eufrica.- Rosngela, voc precisa ver e ouvir o coral. o mximo! O que

    voc tem? Parece preocupada!- Por que ser que s vezes escuto vozes dos meus familiares?Parece que conversam l e os ouo aqui.

    Olhei para Lourdes, esperando uma resposta. Ela pensou porinstantes e falou:

    - No sei o que ocorre, Rosngela. Eu tambm os escuto e, seos sinto chorar, fico triste.

    Valda entrou no quarto e escutando a resposta de Lourdes,sorriu para ns, explicando:

    - O amor um sentimento que une. Sentimos sempre o que sepassa com nossos afetos. Aqui somos mais sensveis, e se eles falamde ns ou sofrem com nossa ausncia, acabamos sentindo e ouvindo-os em nosso ntimo. Aconselho-as a no dar ateno. Quando issoocorrer, tentem se distrair ou orem, desejando que sejam consolados.

    - Espero que eles atendam minha irm Solange, ela muitocoerente. Queria que no chorassem por mim, que ficassem alegres eme transmitissem segurana - falei.

    - Voc quer que eles no chorem por voc? Que no sintam seudesencarne? - perguntou Ftima indignada.

    - Amo-os muito para querer que sofram. Quero sim, que elessejam felizes! Todos morrem! Ou seja: desencarnam. Estamoscondicionados a sofrer quando algum que amamos muda-se para c.Isso no bom! Morri, porm no acabei! Seria bom se todoscompreendessem que a vida continua! - falei respondendo paraFtima.

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    16/131

    Estranhei minha resposta, parecia que explicava a mim. Bateramna porra do nosso quarto, Valda abriu e convidou:

    - Entre, Ana Elisa! Rosngela j perguntou por voc e deseja v-Ia!

    Uma moa muito bonita entrou no quarto. Valda despediu-se comum aceno de mo e saiu. Reconheci minha tia: era encantadora, maislinda do que no retrato que vov mostrara-me e do que eu recordavados meus sonhos. Tinha o cabelo longo, castanho-escuro assim comoos olhos, seus lbios eram delicados e tinha um sorriso cativante. Titiadeixou que eu a observasse, depois abriu os braos e corri at ela.Abraamo-nos demoradamente.

    - Como voc est se sentindo, Rosngela? - perguntou tia AnaElisa.

    - Eu? Bem! mais bonita pessoalmente do que em meus

    sonhos - falei encabulada.- Fico contente por voc ter gostado de sonhar comigo. - falousorrindo.

    - A senhora me ajudou, preparando-me para os acontecimentos,no foi?

    - Sim.- Agradeo-lhe! - exclamei, beijando-a.

    - De nada! Rosngela, voc quer passear comigo? - Quero!Aonde vamos?

    - Vou lev-Ia a um local lindo. Venha trocar de roupa.Ela abriu o armrio, pegou uma roupa e me deu. Fui ao

    banheiro, troquei-me e me admirei no espelho.- Fabuloso! Como estou bem!

    - Voc linda, minha sobrinha! - exclamou titia. - Fiquei tomagrinha e feia com a doena! falei suspirando.

    - Esquea aqueles dias difceis - aconselhou. - O que Importaagora que est bem. No quer passear conosco Lourdes? E voc,Ftima, vamos sair um pouquinho?

    Ftima negou com a cabea e Lourdes agradeceu

    educadamente:- Prefiro no ir, obrigada pelo convite. Acho que vocs duas tmmuito o que conversar e no quero atrapalhar. Faam um bompasseio!

    Gostei de vestir um conjunto de saia e blusa verde-clarinho.Penteei o cabelo, usava-o e ainda o uso, curto e repartido de lado.Olhei-me novamente no espelho e alegreI-me com meu aspecto.

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    17/131

    Samos, titia e eu, de mos dadas. Atravessamos corredores, e minhacicerone foi explicando:

    - Minha sobrinha, voc ir gostar daqui! Achar muitas coisasparecidas com as quais estava acostumada na Terra, quandoencarnada, outras nem tanto.

    - Aqui uma grande comunidade? Todos tm o mesmo objetivo, obem comum? - perguntei lembrando dos meus estudos na escola.

    Titia sorriu e respondeu:- S que aqui nos agrupamos de acordo com os sentimentos que

    temos. Aqui um local que abriga crianas e jovens, e do outro ladoesto os que desencarnam j adultos. Podemos dizer que aqui, nestacolnia, esto espritos afins, para se melhorar e progredir.

    - E os que no esto aqui? Os maus? O que acontece com eles?- Agrupam-se em outras partes.

    Passamos por outro corredor. Curiosa, fui olhando tudo. Minhatia esclareceu:- Nesta parte esto os dormitrios, os quartos dos recm-

    desencarnados; deste lado a ala infantil e deste, a dos adolescentes.Passamos por um corredor mais largo e logo defrontamos com a portaprincipal do prdio. Esse corredor era muito bonito, enfeitado complantas e quadros. Ao ultrapassarmos a porta, parei para admirar abeleza da praa. De forma oitavada, os prdios cercavam-na. Asconstrues no eram iguais, embora suas frentes fossem do mesmotamanho. Algumas tinham um andar; outras, dois e uma delas, cincoandares. As construes eram modernas, arrojadas, com muito vidro,ou pelo menos algo parecido com o vidro que usamos na Terra. Deialguns passos, olhei para o cho: estava numa calada larga, depedrinhas coloridas claras, que rodeava os prdios.Titia me puxou pela mo.

    - Que beleza! - exclamei admirada.A Praa da Fonte era maravilhosa, possua muitos canteiros com

    flores variadas, que perfumavam o ambiente, algumas rvorespequenas, muitos bancos e diversas fontes.

    Conforme andava, via chafarizes em formato de flores,ouvia por toda a. praa uma msica suave, em tom baixo.No centro, havia um chafariz maior, formado por lmuitas

    esculturas, e um arco-ris. Eram rosas, orqudeas, lrios, violetas,amores-perfeitos e outras. Acho que todas as flores estavam alirepresentadas. Passei a mo em uma escultura. Era lisinha, a gua

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    18/131

    que escorria era fria, e tudo, muito limpo. O colorido era suave, tudo seharmonizava.

    Fiquei extasiada, no conseguia nem falar. Fui andando porque titia me puxava. A praa era grande, demos uma volta por ela.

    - Sentemos aqui um pouco, Rosngela.- Que lugar mais lindo! A senhora tem certeza de que aqui no

    o Cu?- Aqui, Rosngela, o Educandrio Flores de Maria.

    Comparamos crianas e jovens com flores que devem ser tratadascom delicadeza, ateno e muito amor. E, Maria, referimo-nos mede Jesus, que nos adotou e nossa protetora espiritual. Este lar decrianas e jovens faz parte de uma colnia espiritual, isto , umacidade de desencarnados. Aqui temos escolas, locais de diverso,trabalho e hospital.

    - Parece que a vida continua mesmo!- Sim, Rosngela, continua sem grandes diferenas. Isso timo,e mais uma das demonstraes da bondade de Deus.

    Muitas pessoas passeavam pela praa, a maioria crianas ejovens que como eu esrava maravilhada com tanta beleza. Por mim,ficaria horas ali. Titia me chamou para irmos embora; levantei-me e asegui, demonstrando que gostaria de ficar mais. Tia Ana Elisa meconsolou:

    - Voc poder vir aqui outras vezes. Agora devemos voltar paraseu quarto, voc tem de descansar.

    - Vou gostar muito do Educandrio Flores de Maria! J gosto!Beijei titia e recebi outros beijos.Tive a certeza de que ia gostar muito do Educandrio

    Flores de Maria. noite estvamos conversando no quarto, Lourdes, Ftima e eu.

    Lourdes aproximou-se da janela e comentou:- Como so lindas as estrelas!- noite de lua cheia! Venha ver Rosngela - convidou Ftima.Fui janela e vi a Lua no cu, cheia e linda. Lembranas

    vieram...J estava doente quando mame me fez caminhar umpouquinho pelo quarto.

    "Venha, Rosngela, aqui na janela, est uma noite linda de luacheia."

    "De fato, est maravilhosa, a Lua parece um prato!"

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    19/131

    "Todas as vezes que vejo a Lua assim, cheia, recordo me devoc pequena!" - falou mame.

    "Por qu? Eu era gordinha? Tinha o rosto cheio?" - indaguei. - Claro que no!" - respondeu minha me. "Voc no tinha e no

    tem o rosto redondo. porque, quando era criana, acho que tinhadois anos, voc chorou querendo o queijo do cu. Seu pai comprouum queijo redondo. Voc at comeu um pedao, depois foi correndopara o quintal, olhou para o firmamento e choramingou dizendo:Este no daquele!'. Rimos, e seu irmo disse: 'Aquilo no queijo, lua cheia'."

    Abracei mame e ela completou:"Rosngela, onde quer que estiver, ao olhar a lua cheia, lembre-se deque eu vou v-Ia tambm e estarei pensando em voc, mandando-lheum beijo."

    Duas lgrimas escorreram dos meus olhos e senti uma brisa suavecomo se recebesse um beijo de mame. Tive a certeza de que minhamezinha olhava o cu e me dava um beijinho.

    Enxuguei rapidamente o rosto e exclamei, sorrindo para minhascompanheiras de quarto:

    - Desencarnei numa noite de lua cheia!Elas sorriram correspondendo e fomos dormir.

    4

    No outro dia acordei me sentindo estranha. Pensando muito emmissas. Parecia que todos os meus familiares estavam orando pormim na igreja. Fiquei quieta na cama. Depois senti-os no cemitrio.

    - Flores para voc, querida! - Que Jesus a faa feliz! - Estou comsaudade!

    Senti mame e papai chorando. Lgrimas escorreram pela minhaface. Queria papai comigo. Lembrei-me de quando ele chegava emcasa aps o trabalho, falando alto:

    "Rosngela, venha ver o que eu trouxe para voc!"Corria para abra-Io; meu pai sempre nos trazia algo, balas,

    pipocas, sorvetes etc.Quis ter mame a me fazer um carinho, quis seu colo, ir para

    casa, ficar com todos os que amava.

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    20/131

    Estava envolvida em meus pensamentos quando fuisurpreendida por uma voz amiga:

    - Rosngela, feliz aniversrio!Titia entrou no quarto com um ramalhete de flores coloridas. Fez deconta que no me viu chorando, abraou-me, beijou-me e cantou"parabns pra voc!"

    - Vamos, coloque as flores neste vaso! - sugeriu titia.- Hoje meu aniversrio? - perguntei estranhando.- Sim, .- mesmo! Ia fazer quatorze anos! Ser que foi por que senti

    meus familiares falando de mim?- Minha sobrinha - explicou tia Ana Elisa - no nos desligamos

    facilmente dos afetos, por isso sentimos aqui o que se passa comeles. Hoje, sua famlia foi missa e depois ao cemitrio, oraram e

    infelizmente lamentaram sua falta, sentem saudade.- Titia, se hoje meu aniversrio, faz ento trs meses que estouaqui e parece dias.

    - que voc dormiu bastante - esclareceu. - Quando asfunes vitais do seu corpo fsico findaram, voc o deixou como umaroupa velha, gasta pela doena, e esses restos mortais foramenterrados. Voc, Rosngela, um esprito que antes vestia um corpocarnal e agora est revestida de um outro mais sutil, que operisprito1, para manifestar-se aqui conosco.

    - Titia, j percebi que aqui tem dia e noite e horrios a seremseguidos. O tempo passa como na Terra?

    1. Perisprito: substncia vaporosa semi-material, que serve deenvoltrio ao esprito e liga a alma ao corpo. Nos encarnados ointermedirio entre o esprito e a matria. Nos espritos libertos docorpo fsico, constitui o seu corpo fludico (Nota do Editor).

    - Meu bem - respondeu titia me elucidando com carinho -,

    estamos perto da crosta terrestre e ainda muito ligados ao tempo dela.A colnia segue o mesmo movimento da Terra, ou seja, giramos comela. Assim, temos o dia e a noite. Seguimos o mesmo horrio. Voc jpensou no t-Ia? Como saber a hora em que o coral vai ensaiar,quando assistir s palestras? A que horas ir aos encontros?

    Nosso dia aqui de vinte e quatro horas, seguimos os mesese anos, como os encarnados. Hoje dia vinte e seis aqui e l.

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    21/131

    - Aqui faz frio ou calor? Para mim a temperatura agradvel!- Nas colnias, nos educandrios, nos locais em que os espritos

    que querem ser bons vivem, a temperatura sempre amena,independente se na Terra inverno ou vero.

    - Titia, a senhora sabe do Bob, o meu cachorro? Gosto dele, sintofalta de sua companhia. Ele era para mim um cozinho especial.

    - Sempre que gostamos de algum, animal ou planta, esse afetopara ns algo especial, porque alvo do nosso carinho. Bob sentiusua falta, ficou triste, seus irmos e pais lhe deram mais ateno. Foibom porque distraiu sua me, que faz caminhada todos os dias comele. Seu cozinho est bem.

    - Bob me esqueceu?- Os animais tambm nos querem bem; uma vez amigo, sempre

    amigo - respondeu titia.

    - Para mim, o que importa que Bob esteja bem. Tia Ana Elisaaprovou com um sorriso e voltei a indagar:- Meus sonhos com a senhora eram encontros?

    - Sim. Voc se afastava do seu corpo adormecido com operisprito e conversava comigo. Quando isso acontece com osencarnados, o perisprito fica unido ao corpo fsico a um cordo, equando esse cordo rompido, h o desligamento, a morte do corpocarnal. Quando isso aconteceu com voc, uma equipe de socorristas eeu a trouxemos para c, onde ficou dormindo para se recuperar etambm para que no sentisse seus familiares e amigos chorando porvoc. Quando estava para acordar, ns a transferimos de quarto.

    - O que a senhora faz aqui, titia? verdade que h trabalho naespiritualidade?

    - Muitos entendem de modo errneo o conceito de trabalho, vendoe sentindo-o como uma obrigao. Aqui o trabalho prazeroso, umabno. como fazer algo para si mesmo. Seria to ruim tudo issosem trabalho! Voc foi socorrida, trazida para c, cuidada com carinho,est agora num quarto limpo, tem roupas e alimentos. De onde saiutudo isso?

    - Do trabalho dedicado de algum.- Sbia concluso. Servir faz parte de minha vida e chegar o

    dia em que todos ns serviremos com amor.- Mas o que a senhora faz exatamente?- Quando encarnada, fui enfermeira. Trabalhei num hospital;

    porm, no estudei para exercer essa funo. Aqui estudei bastante eainda tenho a bno de continuar tendo instrues. Sou enfermeira,

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    22/131

    trabalho num grande hospital, cuido de adultos desencarnadosimprudentes que viveram encarnados de tal forma que sedesequilibraram e, agora, precisam se harmonizar com as LeisDivinas.

    - A senhora trabalha muitas horas por dia?- Aprendi a viver sem os reflexos do corpo fsico 2, no durmo e

    tenho disposio as vinte e quatro horas do dia, as quais dedico aotrabalho e ao estudo. Uso-as pouco para o lazer; s vezes leio livros,vou ao teatro e a alguns passeios. Agora disponho de algumas horaspara passar com voc, que logo estar participando das atividadesdeste local de bnos. Ir para outro alojamento, ou seja, para outroquarto, e freqentar a escola.

    - Posso mesmo fazer parte do coral? Gosto tanto de cantar!- Claro que pode. Hoje tarde vou lev-Ia para assistir a um

    ensaio. Quer dar um passeio?- Vamos de novo at a Praa da Fonte! - pedi entusiasmada.Novamente, encantei-me com o passeio. Desta vez prestei mais

    ateno nas pessoas que estavam l. A maioria admirava encantada abeleza da praa; outras, talvez por ter estado mais vezes ali, andavamtranqilamente, desfrutando da calma presente naquele local. Vi umrapaz que caminhava apoiado num senhor. Escutei-os quandopassaram por mIm:

    - Vov, este lugar lindo mesmo! Ento vou morar aqui?- Vai sim, Eduardo! Logo estar aqui comigo. Tenha pacincia,

    em breve se sentir sadio!

    2. Sobre esta questo, leia: Allan Kardec, O Livro dos Espritos,captulo 3, "Retorno da vida corporal vida espiritual". So Paulo: PetitEditora. E Andr Luiz, Evoluo em dois mundos, captulo 16,"Mecanismos da mente". Rio de Janeiro: Federao Esprita Brasileira(N.E.).

    Vi tambm uma menina que se apoiava numa moa.Tanto o rapaz quanto a menina me pareceram diferentes. Olhei paratitia, ela sorriu e, no esperando que eu indagasse, explicou:

    - Esses dois ainda revestem um corpo carnal. Eles ainda estosendo preparados para a mudana que iro fazer. O rapaz foi trazido

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    23/131

    pelo av, e a menina por uma socorrista, ou seja, uma trabalhadoradaqui.

    - Eles esto dormindo?- O corpo fsico deles est adormecido. Embora agora estejamos

    em horrio diurno, eles descansam. Ambos tm doenas graves esabemos que est por findar o perodo que eles tm para ficarencarnados, embora nenhum de ns saiba determinar o dia e a horaem que isso ir acontecer.

    - A senhora fez isso comigo, no me lembrava de tudo quandoacordava, mas esses passeios e encontros eram como um blsamo.Essa preparao acontece com todas as crianas ou jovens que estopara desencarnar?

    - No com todas. A maioria das que vem aqui tem doenasincurveis, e esses encontros acontecem tambm para que recebam

    nimo, consolo e, como voc disse, blsamo. Repare, Rosngela, queeles tm um cordo prateado que os liga ao corpo fsico. Isso osdiferencia de ns.

    Observei-os bem e vi o cordo. Orei por eles, desejando umamudana de plano tranqila. tarde, titia nos levou - Ftima, Lourdes e eu - para assistir a umensaio do coral. Chegamos minutos antes do incio a um local enormee sentamos bem na frente. Maestro Carlos nos recebeu sorrindo,cumprimentou-nos e esclareceu:

    - Nosso coral famoso em toda a nossa cidade. Quase todas ascrianas e jovens do nosso cantinho fazem parte dele e convido-as aunirem-se a ns. Todos os participantes recebem aulas de canto antesde se tornarem um dos nossos membros. Ensaiamos duas vezes porsemana. Agora estamos mais empenhados, porque domingo nosapresentaremos na praa de eventos da colnia em comemorao aoaniversrio de sua fundao. Na semana que vem, iremos a outrolocal.

    Maestro Carlos pediu licena e foi cumprimentar outras pessoas,e Lourdes, curiosa, indagou tia Ana Elisa:

    - O coral sai muito do Flores de Maria? Existem muitas colnias?Que eventos so esses?Prestamos ateno na explicao de titia:- Vocs j pensaram em quantas pessoas desencarnam por dia?

    Muitas, milhares. A Terra imensa! Muitos reencarnam tambm. umvaivm constante. Como existem na Terra muitos lugares para viver,aqui no plano espiritual tambm assim. E por toda a espiritualidade

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    24/131

    h locais destinados aos jovens e s crianas. Normalmente, noseducandrios, h corais, porque quase todos os seres gostam demsica. Cantar uma grande terapia e um modo de agradecer ao Paitantas ddivas. O coral infanto-juvenil apresenta-se em quase todos osacontecimentos importantes de nossa colnia, que a nossa casa, onosso lar. Aqui temos o hbito, como na Terra, de visitar uns aosoutros. Ns, desta localidade, vamos at outras e vice-versa. Oseventos so comemoraes de datas especiais, e temos muitas. Oscorais da espiritualidade visitam tambm a Terra, vo a locais onde hencarnados que fazem o bem. O Maestro Carlos, quando encarnado,participava de um coral e, aqui, estudou msica e tornou-se maestro.Ensina canto para nossas crianas e jovens, com muita dedicao.

    Com todos a postos, Maestro Carlos comeou o ensaio. Foiento que prestei ateno em tudo. Estvamos no Ptio das

    Convenes, local, no educandrio, ao ar livre, onde se realizavam aspalestras e o teatro e o coral se apresentavam. Havia muitas pessoasassistindo: alguns adultos e jovens que, como ns, olhavam tudo comcuriosidade. AIgumas crianas alegres observavam atentas e, svezes, cantavam baixinho e danavam.

    Voltei a prestar ateno no coral. Seus componentes tocavam dep: os jovens nas fileiras de trs; frente, as crianas e, nas primeirasfilas, os pequeninos de dois a trs anos. Todos obedeciamatentamente e felizes s ordens do maestro.

    Gostei demais de ouv-Ios. Cantei baixinho alguns trechos decertas msicas que conhecia e cheguei a balanar o corpoacompanhando o ritmo delas. Quando terminou o ensaio, o grupo sedispersou. Saram em ordem, porm, falando com alegria. Parecia quea msica continuava.

    - Gostaram, meninas? - perguntou tia Ana Elisa. - Gostei muito.Vou ficar muito feliz quando puder fazer parte desse coral. Achei-osensacional! - respondi.

    - Vamos matricul-Ia nas aulas de canto. Sentirei muita alegria emv-Ia participando do coral - falou minha tia sorrindo.

    Titia nos convidou para voltar ao nosso alojamento.Regressamos pela praa, e ela nos explicou:- O ensaio foi no setor oito, e vocs esto alojadas no prdio

    nmero quatro.

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    25/131

    O canto deixou-nos alegres, e Ftima, embora quieta, ficou maiscalma. Lourdes e eu caminhvamos cantando e, s vezes, titia nosajudava em certos trechos.

    Senti-me muito bem! De volta ao nosso quarto, Lourdes e euestvamos to eufricas que Valda nos incumbiu de aguar as plantasdo corredor - o que fizemos com alegria.

    - Oi, plantinha linda! Que tal um pouquinho de gua fresca? -falava enquanto as aguava.

    Lourdes riu achando graa.- Vov falava com as plantas do seu jardim. Ela me dizia que

    todo ser vivo gosta de ateno e carinho - expliquei.Fizemos a tarefa e, cansadas, fomos dormir. Estava muito feliz.

    5

    No dia seguinte, acordei triste. Lourdes e Ftima j estavamacordadas. Sentia-me bem e ser novamente sadia na uma bno queeu no cansava de agradecer. Poder pular, andar, ter disposio, nosentir dores era uma ddiva que tinha para mim um valor incalculvel.Achei o educandrio lindo, as pessoas ali, desencarnadas como eu,

    agradveis e prestativas. Tudo perfeito, maravilhoso, mas eu estavatristonha. Queria o afago dos meus pais, beijos das minhas avs e dosmeus avs, o carinho das tias e das amigas. Ansiava por escutar osrisos de meus irmos. Amava-os e sentia falta deles. A saudade doano meu peito.

    Como sempre acordava falando e rindo, e continuei quieta,Lourdes indagou preocupada:

    - O que est acontecendo hoje com voc, Rosngela?Olhei-as. As duas estavam na mesma situao que eu,

    adaptando-se e esforando-se para aprender a viver longe de seusafetos. Ftima, porm, estava com mais dificuldades, dando aimpresso de no querer se adaptar. Pensei: "Se me queixar,certamente levarei Ftima a chorar e no tenho esse direito".Lembrei-me do que ti tia Ana Elisa me falara: "Rosngela, minhasobrinha, voc sentir falta dos que ama, poder ficar triste, mas sealimentar a tristeza, ela s crescer. Combatemos esse sentimento

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    26/131

    com outro: alegria. Alegre tornamo-nos otimistas e a resolvemosnossas dificuldades facilmente.

    Esforcei-me e sorri. As duas, que me olhavam, sorriram tambm.- Estava tentando adivinhar o que tem dentro dessas gavetas do

    armrio, da mesinha de cabeceira e da pia do lavatrio. Estou curiosa,mas no sei se posso mexer - respondi.

    - J vi Valda guardar roupas de cama e as que usamos noarmrio. Acho que no tem nada de mais voc abrir e ver - opinouLourdes.

    - No se faz isso na casa dos outros, acho que melhor pedirpermisso. Devemos ser educadas - alertou Ftima.

    - Acho que vou comear a melhorar educando-me para no serto curiosa. Quando Valda vier, pedirei a ela para abrir as gavetas -falei.

    - Arrumei minha cama, tive vontade de chorar, gritar: "Mame,papaizinho, venham me buscar!"Valda entrou no quarto, Lourdes respondeu o cumprimento e foi

    falando:- Valda, Rosngela quer ver o que h guardado nas gavetas,

    est curiosa. Mas no mexemos, queremos que voc nos dpermisso.

    - Claro, meninas, podem ver o que quiserem - expressou-seValda.

    Lourdes correu e abriu a gaveta do armrio, Ftima foi paraperto dela. Eu ia tambm, mas Valda abraou-me e faloucarinhosamente:

    - Querida, a saudade pode incomodar; se permitirmos que elanos domine, poder nos privar de desfrutar outros momentos, o deamizade, por exemplo. Estou contente por voc no ter incomodadosuas companheiras, chorando e se lamentando. Entendeu que Ftimaest muito frgil. J sente .amizade por elas. Teme se distrair quandosentir tristeza. Nesse perodo de adaptao podem ocorrer momentosalegres, que se intercalam com outros tristes. O importante dar valor

    a tudo o que se recebe, querer ser alegre e se esforar para estarsempre bem. V ver o que tem nas gavetas!- Roupas! Nunca pensei que no plano espiritual houvesse

    roupas! - exclamou Lourdes rindo.- Pior se ficssemos nuas aqui - comentei.

    Rimos e Valda nos explicou:

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    27/131

    - Queridas, vocs so recm-chegadas do plano fsico.Gostavam de l e isso timo. Temos mesmo de amar o lugar em quevivemos. L, encarnadas, estavam condicionadas a muitas coisas:tomar banho, escovar os dentes, vestir-se, alimentar-se etc. Esseshbitos vo mudando com o tempo. Eu no tenho mais o reflexo docorpo carnal, no durmo nem me alimento, no troco de roupa,embora use uma.Rimos.

    - Vocs aos poucos vo aprender a viver assim, mas enquantoisso no acontece, podem trocar de roupa, alimentar-se e tomarbanho. E, falando em alimento, trouxe o desjejum de vocs. Paravoc, Ftima, a bolacha que me pediu.

    - Pelo jeito aqui tudo mais fcil - observei.- Nem tanto, estou longe das pessoas que amo! - exclamou

    Ftima fazendo beicinho para chorar.- Meninas, vim aqui lhes dar uma notcia agradvel. Umasurpresa!

    Ns trs a olhamos curiosas e Ftima se recomps para prestarateno. Compreendi que Valda queria nos alegrar. Continuou a falar:

    - Vocs vo ser transferidas! Amanh logo cedo, as levarei parao outro lado da nossa casa. Vocs vo amar! Iro para a escola,participaro de atividades esportivas, aulas de msica e canto e...

    - Oba! - interrompeu Lourdes. Vou gostar de sair daqui e ir para ooutro lado.

    - Eu no quero ir! - exclamou Ftima com lgrimas nos olhos. -No quero sair daqui. Tenho medo de ir para o outro lado. E se no meacostumar? L no terei voc, Valda, para me ajudar.

    Valda a abraou. Fez ccegas na barriga dela, provocando seuriso.

    - Ftima, voc no precisar ficar l se no quiser. Mas venhaamanh conosco para conhecer os alojamentos. Poder fazer muitasamizades e no sentir minha falta - aconselhou.

    Valda despediu-se de ns e foi embora. Tomamos nosso

    desjejum, que estava delicioso.Lourdes e eu fomos ver o que tinha nas outras gavetas.Achamos livros, folheamo-Ios.

    - Valda j me deu alguns para ler - disse Ftima. Que so muitointeressantes. Este aqui descreve as colnias. Como j tivemospermisso, podemos l-Ios.

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    28/131

    Estvamos ansiosas com a transferncia. No conseguia meconcentrar para ler, no parava quieta e, quando Valda nos convidoupara ir ao jardim, Lourdes e eu a acompanhamos ligeiras.

    - Vocs duas podem ajudar o senhor Antnio a cuidar dasplantas - disse Valda.

    O senhor Antnio deu-nos a incumbncia de aguar um canteiro.Como era bom cuidar das plantas, a ansiedade passou, ficamos maistranqilas.

    - Senhor Antnio, podemos agora ajud-Io em outro canteiro? -perguntou Lourdes.

    - Aquele j foi aguado e este outro est reservado para outrascrianas - respondeu ele com calma.

    Fomos, ento nos enturmar com outros jovens e encontramosLenice, que fazia todos rirem. Contava uma aventura sua, em que se

    perdeu dos pais num passeio praia. a grupo se dispersou e ficamosns trs, Lourdes, Lenice e eu, conversando. Lenice nos indagou:- Ser que aqui poderei vestir uma roupa de festa? Queria meu

    vestido azul. Mame o comprou para irmos a uma festividade, masnem cheguei a vesti-Io. Ser que aqui h festas como na Terra?

    No soubemos responder. Indagamos ao senhor Antnio, quepacientemente esclareceu:

    - Aqui temos tudo o que necessitamos; entretanto, somoseducados para no exagerarmos. Temos festas lindas, em que oprincipal objetivo nos confraternizarmos. Nunca vi ningum vestido arigor ou com muito luxo. A beleza est na simplicidade.Gostei da resposta, e Lenice exclamou rindo:

    - Adeus meu vestido azul! Espero que mame no o guarde, queo d para outra menina, que se sentir contente em us-Io!

    - Como desencarnou, Lenice? - Lourdes quis saber.- Sentindo-me muito feliz! - exclamou ela. - Sim, estava numa

    festa, engasguei-me e no vi mais nada, desencarnei e acordei aqui.No quero ser triste, no estou viva para sofrer, quero ser semprealegre. Tenho um sonho, ser atriz, trabalhar no teatro e alegrar as

    pessoas. Valda me disse que aqui temos teatro e quem quer e gosta,pode aprender a representar. Ela vai me levar para outro setor.Vou para a escola e para o teatro. Estou muito contente!

    Quando Valda veio nos buscar, indaguei-a curiosa:- VaIda, Lenice nos disse que deseja ser atriz, que far teatro

    aqui. verdade?

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    29/131

    - Sim. Temos muitos grupos teatrais e grandes talentos. Ela logoir ser transferida, freqentar a escola e, atendendo ao seu desejo,far parte de uma equipe de atores.

    - Vocs tentam fazer os gostos de todos, no ? - indaguei.- Sim. Tentamos fazer de tudo para que todos estejam bem e

    felizes - respondeu Valda.No outro dia, Lourdes e eu arrumamos nossos pertences. Eu

    havia recebido trs trocas de roupas, dois tnis e um pijama. Tambmme deram pente e escova de dente.

    Ftima decidiu que s iria conosco para visitar, depois voltaria.

    Quando Valda chegou para nos levar, estvamos ansiosas, meucorao batia forte.

    - Sinto meu corao bater! - exclamei.- E por que estranha? No sente fome e sede? J nosexplicaram que este corpo, o perisprito, parecido com o queusvamos quando encarnadas - falou Lourdes.

    Fizemos uma prece de agradecimento por termos sido to bem-recebidas. Eu roguei coragem e proteo para a nova etapa.

    - Vamos pela parte interna dos prdios. Indo pelo corredorprincipal, chegaremos l num instante. Ele passa por todos os setores- explicou Valda.

    Ns trs estvamos muito curiosas, olhvamos tudo comateno.

    - O Educandrio Flores de Maria grande - continuouesclarecendo Valda. - A Praa da Fonte o centro de todos os setores.So oito prdios que do frente para da e que se comunicaminternamente entre si por um corredor.

    - Da praa, vi os prdios, em formato octogonal, ou seja,oitavados e todos com a mesma medida de frente deduziu Lourdes.

    - isto mesmo! - concordou Valda. - Entre os setores um e oito,est o porto principal que d acesso colnia. Atrs dos prdios,

    esto a rea de lazer, quadras de esportes, parques com brinquedos,os bosques e os jardins.Chegamos ao corredor principal ou crculo, como chamado.Paramos impressionadas. Ele era largo, com muitas gravuras eplantas nas paredes. Ouvia-se uma msica suave.

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    30/131

    - Parece uma escada rolante horizontal! exclamou Ftima.- uma passarela rolante! - corrigiu Lourdes.

    De onde estvamos, defrontamos com um espao fixo. Dalipodamos ir, pela passarela, de um lado a outro.

    - Aqui deve ser como numa estao de trem, indo para a direitachegamos s escolas; para a esquerda, aos primeiros setores -concluiu Lourdes.

    - isso a, garotas! - esclareceu Valda. - Se algum vem deoutro setor para este, pra aqui e s caminhar pelo corredor queviemos, que entra na ala de recuperao. O corredor tem quatropassarelas; uma que vai para a direita e outra que volta para os quequerem caminhar. No meio encontram-se as duas mveis.

    Valda nos puxou e fomos para a passarela mvel. Ficamosparadas e ela se moveu compassadamente. Muitas pessoascaminhavam nas fixas.

    - Muito bom!- timo!- Sensacional! - exclamvamos, deliciando-nos.Em muitos trechos havia plataformas fixas. Samos da passarela

    mvel e atravessamos; dando alguns passos, paramos na outra pontemvel e continuamos pelo corredor. As plataformas fixas davam paracorredores que tinham acesso ao interior dos prdios.

    - Vejam que pinturas bonitas! - exclamou Ftima.- So painis pintados pelos nossos jovens e crianas -

    esclareceu Valda.As pessoas nos cumprimentavam sorrindo. Estvamos to

    eufricas, Lourdes e eu, que dvamos at gritinhos de satisfao,encantadas com tudo.

    - Queria que mame estivesse aqui comigo! - queixou-se Ftima.- Nada perfeito! Esquea um pouco deles, Ftima, e aproveite

    o que nos est sendo oferecido! - pediu Lourdes. - Chegamos

    meninas!- Oh! - exclamei.- J? Que pena! - expressou-se Lourdes.

    - Vocs iro usar este corredor muitas vezes por dia. Aqui osetor sete, dos alojamentos - explicou Valda.

    Ouvimos conversas alegres e risos. Passamos por um corredorpequeno e paramos em frente aos elevadores, que eram quatro, e

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    31/131

    subimos por um deles. Deparamos com outro corredor e Valda abriuuma porta. Defrontamos com um quarto enorme, com camas,armrios, escrivaninhas, mesas de cabeceira, poltronas, todas emnmero de dez. Havia at alguns biombos, caso algum quisesseseparar o ambiente.

    - Aqui o seu cantinho, Lourdes, ao lado de Rosngela - falouValda apontando.

    Nunca havia visto um quarto assim, era como se fossem dezquartos num nico espao. No local para onde Valda apontou o meu,tinha um armrio com a cama no meio, do lado direito ficava aescrivaninha dando fundo para o outro cantinho que pertencia garotavizinha e do lado esquerdo, a poltrona e a mesinha.

    Suspirei encantada, sentia-me entusiasmada. Gostei do meualojamento!

    6

    Uma moa to bonita quanto Valda nos recebeu, sorrindo.- Sejam bem-vindas, garotas! Sou Isabel, a orientadora de

    vocs. Qualquer dvida podem me consultar.

    Abraou-nos. Gostei dela. Isabel nos esclareceu:- Aqui ficaro pelo tempo que estiverem no educandrio; porisso, meninas, sintam-se vontade. Suas escrivaninhas esto vazias,mas logo recebero seus objetos de estudo, que guardaro. Nestaparte do armrio podero colocar os pertences que trouxeram.

    Isabel e Valda ficaram conversando, Ftima nos observavacalada. Lourdes e eu arrumamos nossos pertences na parte indicada,cada uma no seu armrio.

    No fazia quinze minutos que estvamos l, quando chegaramoutras garotas que dividiriam conosco aquele alojamento.

    - Viva! Novas companheiras! Sou Hortncia! Tenho muito prazerem receb-Ias! - exclamou uma menina, sorrindo alegremente.

    Todas se apresentaram oferecendo seus prstimos. - Estamoschegando de uma aula e j vamos sair novamente, iremos ao ensaiodo coral. O Maestro Carlos e a Maestrina Georgina querem que aapresentao seja um sucesso.

    - Vocs vm conosco? - perguntou Carina.

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    32/131

    Ficamos indecisas. Isabel, nossa orientadora, respondeu porns:

    - Elas iro!Sorrimos contentes.- Temos de nos apressar, colocar nossos objetos no lugar e

    trocar de roupa. Mas ainda h um tempinho para conversar e nosconhecermos - disse Leninha.

    Ficamos, Lourdes, Ftima, Valda e eu no meu quarto.Tentamos convencer Ftima a ficar conosco. Ela, porm, no

    quis e pediu Valda para lev-Ia de volta.- Ftima - eu disse abraando-a -, que seja somente uma breve

    despedida. Venha logo ficar conosco.- Voc no tem medo de permanecer aqui? Mudar de novo?

    Neste alojamento no teremos Valda para cuidar de ns - falou Ftima

    torcendo as mos com nervosismo.Pensei naquele instante em que nos abravamos, no queFtima dissera. "Sim, tive medo e ainda poderia voltar a sentir. Mudar,defrontar com o desconhecido, dava-me um 'frio na barriga, comocostumava dizer quando encarnada. Mas podemos desvendar odesconhecido como me aconselhou Solange, minha irm. Deixar defazer algo por receio no inteligente. Eu j estava morta, ou seja,desencarnada, no tinha volta. Chorar por isso seria uma perda detempo. Queria aprender a viver no plano espiritual. Resolvi tentaranimar Ftima.

    - Fatinha, minha amiga, aqui no teremos Valda, pormpoderemos v-Ia sempre. E depois teremos outras orientadoras,mestres e muitos amigos. Voc ter Lourdes e eu, que j conhece. Seficar, sua cama ser junto da minha.

    Se sentirmos medo, poderemos conversar. Espantaremos oreceio com algumas risadas.

    - Voc no est sentindo mesmo falta de sua casa? Parece queno se importa por t-Ia deixado replicou Ftima.

    - Sinto falta de todos l de casa. Amo-os, fui e sou muito amada.

    Mas morri, no foi culpa minha, fiquei doente, sofri e eles sofrerammuito tambm. Mame, papai, todos querem que eu esteja bem.Acreditam que estou no Cu e, de certa forma, no pensam errado. Seviver no Cu estar sem dores, sadia, junto a pessoas boas e amigas,estou no paraso. Eles me imaginam feliz e no posso decepcion-Ios.Quero aprender, conhecer e no posso recusar o que me est sendo

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    33/131

    oferecido. Quero estar bem por eles que me amam e por mim. Desejoser feliz!

    Falei e alegrei-a pelo que disse. Era o que eu queria, porm,no tinha ainda pensado nisso. Percebi que Valda me olhavaatentamente. Fora ela quem me ajudara nessa concluso.

    Mas no adiantou, Ftima quis ir embora. Valda despediu-se dens com carinho. As duas saram. Lourdes e eu nos olhamos,indagando com o olhar: E agora? Hortncia aproximou-se de nsesclarecendo:

    - J estou aqui h trs anos. Sou a pessoa que est h maistempo no alojamento. Podem me perguntar o que quiserem,responderei o que souber - sorriu alegre e continuou a falar: - nosarmrios encontraro outras roupas, foram colocadas a para vocs.Hortncia abriu a outra parte do meu armrio e mostrou-me as roupas.

    Carina puxou Lourdes pela mo e levou-a at seu roupeiro. Olheiaprovando minhas roupas novas. Na frente de todas as blusas, dolado esquerdo, havia 11m pequeno e delicado bordado de flores com ainscrio: Flores de Maria.

    - Gostei das roupas! Voc gostou Rosngela? - perguntouLourdes.

    - Muito! - respondi.- Hortncia, h muitos alojamentos no setor sete? So todos

    iguais? - Lourdes quis saber.- So muitos! - esclareceu Hortncia. - No so iguais. Os dos

    jovens tm outra decorao. Os das crianas tm muitos brinquedos emais orientadoras. Neste andar e no de baixo esto os alojamentosdas meninas; nos dois andares acima, os dos garotos. No primeiropavimento e no trreo, esto acomodados os pequerruchos.Assistimos s aulas juntos e participamos de muitas atividades. Eu,aps o ensaio, vou para a aula de natao.

    - Natao?! - indaguei estranhando. - Aqui h gua? Piscinas?- Voc no tomou gua? - indagou Hortncia. Afirmei com a

    cabea e ela continuou a explicar: - Temos gua, voc tomou e tomar

    at aprender a viver com esse corpo, que se chama perisprito.Enquanto sentir o reflexo do corpo fsico ir beber e se alimentar. Euquase no me alimento e bebo pouca gua. Voc no viu as fontes?Ali uma nascente e aquela gua abastece nosso lar. Atrs do setoroito, temos as piscinas para os internos aprenderem ou praticaremnatao. Eu desencarnei por afogamento e fiquei com medo terrvel degua. Isso me prejudicava, sonhava com meu desencarne e acordava

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    34/131

    aflita. Conversei com os psiclogos do educandrio e eles meaconselharam a aprender a nadar. Enfrentando o medo, venci-o, e notive mais esses sonhos. J aprendi a nadar, agora treino salto.Ri. Hortncia me olhou tambm rindo.

    - Desculpe-me, achei engraado. Morta aprendendo a nadar! -comentei.

    - Rosngela, melhor voc falar o termo certo. Voc se sentemorta? No? timo! porque no est! Seu corpo fsico doentemorreu; voc, esprito, continua vivendo! E viver aprender! Aqui voc

    j aprendeu muitas coisas, no ? E o que tem de mais aprender anadar? - explicou Hortncia.

    - que pensei que fantasmas atravessassem a gua, nonadassem! - argumentei.

    - Fantasma? Essa boa! Acha mesmo que somos fantasmas? -

    indagou Lourdes depois de dar risada.- Acho que no! Devo ser mesmo uma desencarnada, quesobreviveu morte do corpo de carne e osso - respondi rindo.

    Olhamos para Hortncia, que ria tambm; no esperando pornossas perguntas, explicou:

    - No somos fantasmas nem uma viso de terror; somos simplesaprendizes deste plano. Estou estudando e tenho muito o queaprender. Vou explicar o que sei, e se quiserem mais esclarecimentos s perguntar aos orientadores. A gua no plano fsico, assim comoas casas, as rvores, o corpo que usamos, material. Aqui diferente,mais rarefeita, sutil. Observe o corpo de vocs, podem se apalpar e amim tambm. Temos tudo que necessitamos neste local maravilhoso.Encarnados dificilmente nos vem ou a este lugar, por no serem damesma matria. Se vocs forem Terra, podero v-Ios, e elesInfelizmente, no conseguiro v-Ias. So poucas as pessoasencarnadas que nos vem ou nos sentem. Vocs s passaro pelasparedes e andaro em cima das guas quando aprenderem. Aqui, secarem na gua iro apenas se afundar, se no souberem boiar.

    Mas por que se aprende a nadar se quando estiver encarnada a

    pessoa ir esquecer? - indaguei curiosa e ainda achando engraado.Hortncia sorriu, ficava muito bonita quando sorria, e falouesclarecendo-nos:

    - Pode rir, Rosngela, eu tambm estranhei muitas coisas poraqui. Primeiramente devemos querer e gostar de aprender. Temos deter objetivos e planos para viver bem e no bem e nos esforar paraating-Ios. E normalmente para conseguir o que planejamos, temos de

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    35/131

    estudar, trabalhar e no desperdiar as oportunidades. Conhecer umtesouro que nos pertence. s vezes, nos perodos em que passamosencarnados, os conhecimentos podem ficar escondidinhos, mas elesso nossos. Existem pessoas que aprendem rapidamente, quandoencarnadas, ourtas demoram mais para assimilar determinadosassuntos. Isso porque algumas j os sabiam e recordam-se; joutras esto aprendendo mesmo. Aprendi a nadar, porque dessaforma pude superar o medo da gua e no o levarei para minhareencarnao futura. E se, encarnada, for aprender a nadar,certamente o farei com facilidade.

    Hortncia aquietou-se e eu pensei: "Queria tanto aprender anadar quando estava encarnada, mas no tive oportunidade. Nadar um esporte, um lazer sadio".

    - Ser que posso ir com voc na natao? Gostaria de v-Ia

    tendo aula - pedi.- Acho que pode ir, mas temos de pedir permisso para Isabel -respondeu Hortncia.

    - Carina, voc faz natao tambm? perguntou Lourdes.- No - respondeu Carina. - Aprendi a nadar quando encarnada

    e no me interesso muito por esse esporte. Gosto mesmo de danar.Fao aula de dana trs vezes por semana.

    - Dana?! - Lourdes e eu exclamamos juntas.- Danar um esporte porque mexemos com o corpo, uma

    terapia que faz bem mente. Fao aula de bal clssico e tambm dedana moderna. Dou aulas para as meninas pequenas. Gosto muito,estou feliz por fazer o que amo!

    - Quero v-Ia danar! - pediu Lourdes.- Artes e esportes so valorizados aqui - expressou-se Carina.

    Nisso, Isabel entrou no alojamento e Hortncia lhe pediu:- Isabel, Rosngela quer me ver nadar. Posso lev-Ia?- Vocs iro agora para o ensaio do coral. Depois, vou matricul-

    Ias nas aulas de canto; porm, ela pode ir com voc. Se gostar,Rosngela, e quiser aprender a nadar, ter que organizar seus

    horrios, pois se organizando, ter tempo para muitas atividades.Conversvamos animadas. Trocamos de roupa. Achei-me lindacom o uniforme do coral. Sorri contente ao me ver no espelho.

    - Temos dois uniformes para nos apresentarmos no coral. Esteserve para simples apresentaes e para o ensaio. E este paracomemoraes importantes explicou ela.

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    36/131

    Olhei para a outra roupa que estava no armrio. Era uma becacomprida, azul-clarinho, com o bordado do emblema do educandriomaior.

    Fomos para o setor oito, encantei-me novamente com ocorredor. Chegamos ao teatro e Isabel pediu ao grupo de novatos queficassem junto a ela. A garotada conversava entusiasmada. Fiquei semsaber se olhava para o local ou para a meninada. Antes de ir para oseu lugar no coral, Hortncia falou-me baixinho:

    - A alegria contagiante! O canto uma forma de expressaresse contentamento!

    Observei as crianas. Todas vestiam o uniforme do coral eentraram de mozinhas dadas. Felizes, riam e conversavam. Achei-aslindas!

    Um menino que estava conosco, entre os novatos, observava-

    me, atento. Olhei para ele, que bateu a mo na testa, como a indicarque se recordara de algo. Aproximou-se de mim e perguntou:- Voc no a menina que fazia tratamento com o doutor

    Marcelo?Afirmei com a cabea. Lembrei-me dele. Por muitas vezes nos

    encontramos no consultrio.- Morri! - exclamou ele sorrindo. - E, como voc, vim me curar

    aqui. Voc est bonita, saudvel! Quase no a reconheci. Estougostando daqui e voc?

    - Acho que estvamos diferentes quando doentes. Voc tambmest com boa aparncia. Estou gostando daqui. Voc se chamaSamuel, no ?

    - Samuca, de Samuel - respondeu ele. - Prazer em v-Ia aqui.Vou querer conversar com voc para trocarmos opinies.

    - Claro, acho que vamos nos encontrar por a. Voc farparte do coral?

    - Sim, gosto de cantar - respondeu ele.O Maestro Carlos bateu palmas e todos silenciaram. Comeou o

    ensaio. A garotada cantava mesmo, sempre obedecendo ao maestro

    que, para mim, parecia fazer mmicas. Quando acabou o ensaio,Isabel disse-me:- V com Hortncia para v-Ia nadar. Amanh voc ir para a

    aula de canto.

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    37/131

    7

    Conversas e risos. Os primeiros a sarem foram os pequeninos.

    Hortncia aproximou-se de mim, pegou minha mo e foi mearrastando.- E a, Rosngela, gostou do coral?- Muito. Quero aprender tudo, as letras das msicas e entender

    os gestos do maestro. Os pequeninos entendem?- Claro que entendem. Eles gostam de cantar. lindo quando

    eles se apresentam sozinhos. Emociono-me todas as vezes que osvejo. Ns os chamamos de pequenos cantores. o coral da garotadade at seis anos. Mas eles gostam de cantar conosco, os maiores. Aspiscinas esto aqui neste setor, no oitavo.

    Caminhamos ao ar livre, passamos pelas quadras. Quis pararpara ver os ptios, mas Hortncia puxou-me:

    - Voc ter tempo para ver tudo; agora vamos, a aula tem horamarcada. No posso me atrasar.

    O dia estava maravilhoso, acho que nunca antes tinha visto umatarde to linda. Ou ser que no havia prestado ateno no tempo?Creio que basta olhar com amor para ver beleza na natureza. Sentivontade de pular, e pulei, cantando uma das msicas que escutara.Hortncia me olhou, compreendendo-me e, juntando-se a mim, pulou

    e cantou tambm.Logo chegamos s piscinas. Eram em nmero de quatro, dediversos tamanhos e gua Impida. Muitas crianas e jovens sepreparavam para a aula. Parei e, admirada, fiquei observando aspiscinas. Hortncia puxou-me novamente.

    - Venha, Rosngela, vou apresent-Ia minha professora.Aproximamo-nos de uma moa muito simptica, que sorriu ao

    nos ver. Hortncia apresentou-me:- Narcisa, aqui est Rosngela, que recm-chegada da crosta.

    Ficou curiosa quando lhe falei que estava tendo aulas de natao e

    veio me ver nadar.- Seja bem-vinda! - falou Narcisa beijando-me. - Fique vontade

    e, se quiser, sente-se ali.Sentei-me no lugar em que ela indicou, uma fileira de cadeiras

    ao lado da piscina nmero trs. Hortncia correu para o vestirio elogo voltou com um mai azul.

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    38/131

    Vendo que eu a observava, deu um salto espetacular e nadou emvrias modalidades. Fiquei encantada, aplaudia suas proezas nagua. Desejei nadar com ela. Quando terminou a aula, Narcisaaproximou-se de mim, e pedi a ela:

    - Queria saber nadar. Ser que posso aprender?- Claro que sim! Quando fizer seu horrio de estudo, poder se

    organizar. Sabendo de seu tempo livre, volte aqui e matricule-se.Aprender rpido!

    Samos pelos fundos, e Hortncia explicou-me:Atrs dos prdios, ao ar livre, h lugares de lazer e estes esto

    mais concentrados no setor oito. aqui o lugar mais gostoso doeducandrio.

    Os campos de futebol, as quadras de vlei e de basqueteestavam todas ocupadas. Hortncia nem esperou que eu indagasse e

    esclareceu-me:- Rosngela, a desencarnao no nos transforma de imediato.Continuamos por algum tempo a gostar do que cohecamos e a quererprosseguir com as atividades esportivas. O lazer faz parte da nossarecuperao e adaptao. Aprendemos muito com os esportes, asartes e as msicas. Voc freqentar a escola, aprenderconhecimentos gerais e ter aulas de evangelizao. Aqui no umlugar triste, que s tem obrigaes; temos diverso e amor; um lar.Nada porm, de exageros. Eu era muito desorganizada com horrios.Aqui aprendi a divid-Ios e a ocupar todas as horas do meu dia. E mesinto tima!

    Passamos por um imenso parque, vi muitas crianas brincandoalegremente.

    - Podemos vir no parque. Temos, porm, dia e hora para a visit-Io. muito gostoso! - exclamou Hortncia.

    Chegamos ao setor sete.- Rosngela, vim com voc pelo caminho mais longo para que

    conhea o nosso lar, ou seja, o Educandrio Flores de Maria. Ali temoso bosque, o mais bonito da nossa colnia. Podemos pegar livros na

    biblioteca e l-Ios sentadas em confortveis bancos espalhados poraqui. H tambm um auditrio, que ao ar livre; e onde, muitas vezes,o coral ensaia e temos tambm apresentaes de recitais e concertosmusicais.

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    39/131

    Lindas rvores faziam sombra nos bancos, e flores enfeitavam olocal, dando um colorido maravilhoso.

    Entramos em nosso alojamento. Eu estava cansada, maseufrica com tantas novidades. Lourdes, assim que: me viu, dissesorrindo:

    - Rosngela, matriculei-me na aula de canto, e Isabel fez suamatrcula. Teremos aulas duas vezes por semana, at aprendermos osuficiente para participar do coral.

    Isabel estava no nosso alojamento e fez um sinal com a monos chamando, para nos transmitir algumas recomendaes:

    - Meninas, quero que se sintam vontade aqui conosco, comose fosse o lar de vocs. Amanh cedo, iro para a escola. E, comoser o primeiro dia, irei acompanh-Ias.

    - que eu... - falei e no completei, no tive coragem.

    - O que foi Rosngela? Por favor, fale - pediu Isabel, abraando-me.Aconcheguei-me nos braos dela e acabei confessando:- que estou atrasada nos estudos. Por causa de minha doena

    no fui mais escola e no tive nimo para estudar sozinha. Iacompletar quatorze anos e s estudei at a quarta srie.

    Lourdes, que ouvia, comentou:- Eu tenho onze anos, pensei que voc tambm tivesse.

    - Aqui, Rosngela, esto as meninas de faixa etria de onze adoze anos. So como se sentem. Entendeu? E h uma garota de dozeanos no quarto das que tm dezesseis - explicou Isabel.

    - Entendi! Acho, sinto que sou criana! - exclamei.- Voc no teve tempo, quando encarnada, de passar pela

    adolescncia. E no ficar atrasada nos estudos. J sabemos queteve de parar de estudar e, por favor, no se envergonhe. Nodevemos nos envergonhar de no ter feito algo que no estava aonosso alcance. At o final do ano, voc freqentar a quarta srie.Tenho certeza de que acompanhar a turma, porque temos aulas dereforo. Agora, sadia, ter bastante nimo para estudar.

    _ Que bom! - exclamei aliviada.- Nos setores, do dois ao sete e no trreo, h refeitrios. Sesentirem fome, podem ir l e fazer uma refeio explicou Isabel.

    - Todos que vivem aqui vo ao refeitrio? As meninas destequarto se alimentam? - indagou Lourdes.

    - Nem todas - respondeu Isabel. - Com o tempo, aprende-se aviver com este corpo perispiritual, libertando-se dos reflexos do corpo

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    40/131

    fsico. No precisam ter pressa para adquirir esses conhecimentos e,enquanto no aprendem, podem alimentar-se vontade.

    Passei a mo no estmago e pensei em comida, sentindo fome.Deu-me vontade de tomar um grande prato de sopa e comer pipocas.S em pensar nelas, quentinhas e saborosas, minha boca encheu-sede gua. Gostava muito de pipocas, porm por causa de minhadoena no podia com-Ias.

    Isabel adivinhou, ou melhor, leu meus pensamentos, comosoube depois, e falou:

    - Vou pedir para Margarida, a senhora que trabalha no refeitrio,fazer uma deliciosa travessa de pipocas.

    - Pipocas! Eu tambm quero! - exclamou Leninha, umacompanheira de quarto. - H tempos que no me alimento, mas medeu vontade de comer pipocas. Esperem por mim, vou acabar de fazer

    esta lio. No posso deixar para faz-Ia noite, porque vou encontrarmeu av.- Encontrar seu av? Como? Por qu? indagou Lourdes.- Meu av Lauro desencarnou h dez anos, mora na colnia e

    nos encontramos sempre para conversar. Gosto muito dele -respondeu Leninha entusiasmada.

    - Eu tenho uma tia aqui, tia de minha me. Ela se chama AnaElisa, trabalha na colnia. Est desencarnada h muito tempo eajudou-me muito - expliquei.

    - Quase todos ns temos algum querido desencarnado. E essasvisitas e encontros so constantes. Quando desencarnei, um senhorauxiliou-me muito. No o conhecia, s depois de algum tempo soubeque ele fora meu pai na encarnao anterior - disse Isabel.

    - Eu no tenho ningum da famlia por aqui. Meus avs estoencarnados, pais, meu irmo, tios, no recebo visitas de nenhumfamiliar - lamentou Marina.

    - Aqui somos todos uma grande famlia. Agora, meninas, tenho deir e no se esqueam de mim, me chamem sempre que precisarem -falou Isabel, retirando-se.

    Sentamos, Lourdes, Marina e eu nas poltronas, esperandoLeninha terminar a lio. Olhei para Marina e senti pena. Eu tinhaminha tia, era algum da famlia; s de pensar nela, sentia-meprotegida. Percebi minha amiga triste, quis distrai-Ia e indaguei:

    - Marina, como voc desencarnou?Ela suspirou, demorou alguns segundos para responder, como

    se tivesse pensado no que falar, depois respondeu devagar:

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    41/131

    - ramos pobres, vivamos em dificuldades financeiras. Meusonho era ter uma bicicleta. Para ter uma, estudei muito e tirei timasnotas. Meus pais fizeram um sacrifcio e me deram uma no Natal. Foiuma felicidade. Eu andava de bicicleta por todo o bairro, tinha muitocuidado. Depois de seis meses, sofri um acidente. Estava voltandopara casa depois de ter passeado com algumas amigas, quando ummenino atravessou meu caminho. Ele estava brincando, saiu correndoe no me viu, nem eu a ele. S notei sua presena quando estava minha frente. Brequei e tentei desviar; ca e bati a cabea na guia dacalada. Desencarnei na hora. Ainda ouvi gritos, depois o silncio, eacordei aqui, no educandrio. Todos sentiram minha desencarnao.Mas minha me, que uma pessoa excelente, confortou a todos e

    ajudou-me muito. O menino ficou desesperado e foi ela quem oconsolou, dizendo que ele no tivera culpa. E, realmente no houveculpados. Aconteceu! S de pensar na minha me, sinto-me motivada,com vontade de viver e ser feliz.

    Sorri para ela e falei:- Quem tem uma me como a sua no tem por que sentir falta de

    parentes aqui. Vamos esquecer a nossa desencarnao.- Vamos falar de vida! Todos me agradam tanto, estou muito feliz

    aqui - exclamou Lourdes.Marina despediu-se de ns indo para o seu cantinho. Olhei para

    Lourdes e perguntei:- Lourdes, voc quer ser minha amiga? Mas amiga mesmo?

    Aquela em quem se pode confiar?- Quero! Ento, amigas para sempre!Abraamo-nos. Leninha terminou a lio e l fomos ns para o

    refeitrio.

    8

    Descemos pela escada cantarolando baixinho. Leninha noslevou at o refeitrio. O local era muito agradvel e arejado. Era umasala com doze mesinhas, tudo muito limpo, na cor bege; nos azulejosexistiam faixas florais. Leninha cumprimentou Margarida, apresentou-nos e pediu:

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    42/131

    - Duas sopas grandes para elas e depois, pipocas!- Aqui tem pipocas? Vou querer! - exclamou um garoto, que

    estava com outros dois meninos, sentados ao nosso lado, comendosanduche e tomando refrigerante.

    - Adolfo, hoje voc j se alimentou, teve o seu sanduche erefrigerante. Deixemos a pipoca para outro dia, est bem? - falouMargarida, afastando-se e entrando em outra sala.

    Leninha explicou-nos:- Aqui somos educados para ter uma boa alimentao. Enquanto

    estamos no perodo da adaptao permitido que tenhamos algumasregalias, mas nada de excessos. Pode-se tomar sorvetes, comerdoces, tudo o que gostvamos quando encarnados, at que...

    - J sabemos - interrompeu Lourdes -, que aprendamos a viversem nos alimentar. Vou gostar de ficar sem comer, vou mesmo!

    Margarida trouxe duas tigelas com sopa. Leninha ficou quieta,esperando. Tomei-a e achei deliciosa. Como era bom poder mealimentar, sentir o gosto dos alimentos, sem ter dores para engolir eno ter enjos. Parei um pouquinho para exclamar:

    - Obrigada, meu Deus, por este alimento!Comi tudo. Margarida retirou os pratos e nos trouxe uma tigela

    grande com pipocas. Que gostoso!Lourdes deu uma gostosa gargalhada. Olhamos para ela, que

    explicou:- L na Terra, todos imaginam que virei um anjo com asas, e que

    estou sentada em uma nuvem! E aqui estou com meus amigos, numrefeitrio, comendo pipocas e me preparando para estudar!

    - Isso no maravilhoso? - disse Leninha. - No queria ficar naociosidade! Deus bondoso demais! Sou grata por estudar. Souestudiosssima! Desencarnei com nove anos, agora tenho doze eestou cursando o ensino mdio. Logo irei para uma colnia de estudo.

    - Leninha voc um gnio! - exclamou Lourdes. - No. Souapenas estudiosa! Quero aprender muito e pr em prtica o queaprendo - respondeu ela.

    Aps terminar de comer as pipocas, subimos para nosso quarto.Sentia-me com sono e cansada com tantas atividades. Assim que nosviu, Hortncia deu-me um papel e falou:

    - Rosngela, sua tia Ana Elisa lhe deixou este bilhete.Abri o envelope. Em uma folha de papel estava escrito com letra

    delicada:

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    43/131

    "Querida sobrinha.Soube que passou o dia bem e que fez amizades. No quis

    atrapalh-Ia enquanto saboreava as pipocas. Amanh virei v-ia.Lembre-se de que estou com voc em pensamento.Tenha um bom incio de aula.

    Beijos,Ana Elisa. "

    Guardei o bilhete na minha escrivaninha, olhei para as meninase perguntei curiosa:

    - O que iremos fazer agora? Estou com sono! Ser que possodormir? O que vocs fazem noite? Como fica o alojamento?

    As meninas riram baixinho. Hortncia apontou para uma pequenaluz em cima da porta da entrada e me respondeu:

    - Rosngela, quando esta luz estiver verde no podemos maisfazer barulho, nem falar ou rir alto. J estamos em horrio de silncioe s podemos conversar baixinho. Muitas de ns dormem e as queno adormecem, aproveitam para estudar, ler e descansar umpouquinho. Claro que voc pode dormir! Eu s vezes durmo, e quandoo fao por cerca de trs horas. Voc e Lourdes devem trocar deroupas, deitar-se e dormir para descansar, porque amanh acordarocedo para irem escola.

    Vi as meninas se acomodarem, algumas nas escrivaninhas parafazer lio, outras nas poltronas para ler ou estudar, mas todasacenderam as luzes dos abajures. A maioria estava quieta; outrasfalavam entre si, baixinho.

    - Esta lmpada funciona assim - continuou Hortncia explicando- quando ela est vermelha podemos cantar, conversar, dentro decerta ordem para no virar criana. Alegria sim, excesso e arruaano.

    Mrcia estava perto de ns, suspirou, olhou para Hortncia efalou:

    - Amiga, estou aqui h oito meses. Gosto muito deste lugar, s

    que, s vezes, sinto remorso por estar to bem, sabendo que meuspais, minha famlia, sofrem por mim.- O que voc deseja a eles Mrcia? perguntou Hortncia.- Que sejam felizes, que estejam consolados, com sade, que se

    amem, apenas coisas boas... - respondeu Mrcia.- E eles, o que ser que querem para voc? - perguntou nossa

    amIga.

  • 8/9/2019 6881197 Vera Lucia Marinzeek de Carvalho Flores de Maria

    44/131

    - Eles querem que eu esteja no Cu, sadia, sem problemas efeliz - respondeu Mrcia sem vacilar.

    - E voc, como uma boa menina, deve obedec-Ios aconselhouHortncia. - Eu tambm passei por isso, como muitas outrascompanheiras. Muitas vezes, tive vontade de estar ao lado deles,sofrendo e chorando junto. Compreendi pelos ensinamentos querecebi aqui, que, dessa forma, s iria piorar a situao e que o tempose encarregaria de suavizar nossas dores. Se vivssemos s uma vezencarnados e se a morte do corpo fsico nos separasse para sempredos nossos afetos, teramos ento mo