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Clestin Freinet

PEDAGOGIA DO BOM SENSOTraduo: J BAPTISTA

Martins Fontes

So Paulo 2004

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Ttulo original.. LES DITS DE MATHIEU. Copyright Delachaux et Niestl, S.A. Neuchtel; /967; 1973. Copyright 1985, Livraria Martins Fontes Editora Ltda., So Paulo, para a presente edio. 1 edio: fevereiro de 1985 7 edio: novembro de 2004 Traduo: J. BAPTISTA Reviso e texto final: Monica Stahel Produo grfica: Geraldo Alves Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Freinet, Clestin, 1896-1966. Pedagogia do bom senso / Clestin Freinet ; traduo J. Baptista. 7. ed. So Paulo : Martins Fontes, 2004. (Psicologia e pedagogia.) Ttulo original: Les dits de Mathieu. ISBN 85-336-2014-4 1. Crianas Desenvolvimento 2. Educao Mtodos experimentais 3. Educao Filosofia I. Ttulo. II. Srie. 04-4243 CDD-370. 1

ndices para catlogo sistemtico: I. Educao : Filosofia 370.1 Todos os direitos desta edio para o Brasil reservados Livraria Martins Fontes Editora Ltda. Rua Conselheiro Ramalho, 330 01325-000 So Paulo SP Brasil Tel. (II ) 3241.3677 Fax (11) 3105 .6867 e-mail: [email protected] http://www.martin.sfontes.com.hr

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SumrioPrlogo .......................................................................................................................................... 9 1. Uma pedagogia de bom senso ................................................................................................ 11 Uma pedagogia de bom senso ................................................................................................ 11 Os caminhos da verdade ......................................................................................................... 11 O perigo dos fazedores de ns................................................................................................ 12 O bom agricultor, ou o ciclo da educao............................................................................... 13 O mestre e o aprendiz ............................................................................................................. 14 As guias no sobem pela escada ........................................................................................... 14 2. Fazer brilhar o sol .................................................................................................................... 16 Os aventureiros do Kon-Tiki .................................................................................................... 16 A histria do cavalo que no est com sede........................................................................... 17 O cavalo no est com sede: ento troquem a gua do tanque! ........................................... 18 Fazer a criana sentir sede ...................................................................................................... 19 Em primeiro lugar fazer jorrar a fonte .................................................................................... 19 Voltar ao seu ritmo.................................................................................................................. 21 Um nada que tudo................................................................................................................ 21 Esqueceram a ma................................................................................................................. 22 A vida prepara-se pela vida ..................................................................................................... 23 Nosso laboratrio a criana.................................................................................................. 23 Sejam humanos ....................................................................................................................... 24 3. O trabalho que ilumina............................................................................................................ 26 A bandeira azul, branca e vermelha........................................................................................ 26 Antes depois ....................................................................................................................... 26 Quero colh-las!...................................................................................................................... 27 O trabalho que ilumina ........................................................................................................... 28 Por que trabalhar? .................................................................................................................. 28 O trabalho em srie................................................................................................................. 29

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O trabalho em migalhas .......................................................................................................... 29 No faa trabalho intil de soldado ........................................................................................ 30 No corao do homem............................................................................................................ 32 O tempo das farndolas .......................................................................................................... 32 Engrenar na vida...................................................................................................................... 33 V ao encontro da vida ........................................................................................................... 34 O nosso trabalho nos unir ..................................................................................................... 34 4. A pedagogia de casaca ............................................................................................................ 36 A pedagogia de casaca ............................................................................................................ 36 Aqueles que no podem ser domesticados ............................................................................ 36 Jogaram pedras nos lagos ....................................................................................................... 37 O peso da servido.................................................................................................................. 38 Tratadores e educadores ........................................................................................................ 39 Criao moderna ou campo de concentrao ........................................................................ 39 A escola do pioupiou ............................................................................................................... 40 Crceres de juventude cativa .................................................................................................. 40 Cuidado com o laminador!...................................................................................................... 42 Os falsos moedeiros do esprito.............................................................................................. 43 Madeira macia ou aglomerado ............................................................................................. 43 Cuidado com o canto haxixe! .................................................................................................. 44 No desfiladeiro estril ............................................................................................................. 44 "Finja-se de morto!"................................................................................................................ 45 Liberados do rito! .................................................................................................................... 45 Todos ns somos delinqentes............................................................................................... 46 5. Nunca largue as mos ............................................................................................................. 48 Nunca largue as mos... antes de apoiar os ps!.................................................................... 48 Veja o Adriano......................................................................................................................... 48 Tomar a frente do peloto ...................................................................................................... 49 Abra pistas............................................................................................................................... 50 O olho mgico ......................................................................................................................... 50

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Se o conhecimento.................................................................................................................. 51 Fulgurantes!... ......................................................................................................................... 52 Escrito em pergaminho ........................................................................................................... 52 A interrogao......................................................................................................................... 53 Uma direo sensvel .............................................................................................................. 54 Educar ou domesticar ............................................................................................................. 54 Que droga de ancinho!............................................................................................................ 55 A caneta escolar ...................................................................................................................... 56 Os "tagarelas".......................................................................................................................... 56 Em forma!... com a vida e o trabalho...................................................................................... 57 A observao por iluminao .................................................................................................. 58 O 3 no vem necessariamente depois do 2 ............................................................................ 59 Proibido para pedagogos. ....................................................................................................... 59 2 mais 2 nem sempre so 4..................................................................................................... 60 Destrua as calhas! ................................................................................................................... 60 A noo de velocidade ............................................................................................................ 61 6. Os que andam sobre as mos ................................................................................................. 62 Os que andam sobre as mos ................................................................................................. 62 Devo permanecer apoiado nas mos ou nos ps?.................................................................. 62 Inquietos e vacilantes.............................................................................................................. 63 De p e de quatro.................................................................................................................... 63 Jogadores de pedrinhas .......................................................................................................... 64 Deixai aqui toda a esperana .................................................................................................. 65 Ser a escola templo ou canteiro de obras? ........................................................................... 65 Ser a escola canteiro de obras?............................................................................................. 66 Ser a escola caserna ou canteiro de obras? .......................................................................... 67 Estufa quente ou ar livre? ....................................................................................................... 67 Jardineiros e criadores ............................................................................................................ 68 forjando que nos tornamos ferreiros................................................................................... 69 Contar gro-de-bico ................................................................................................................ 70

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Desconfie da saliva!................................................................................................................. 71 Elimine a ctedra e arregace as mangas!................................................................................ 71 O "escolastismo" ..................................................................................................................... 72 Tire o chapu para o passado, tire o casaco para o futuro!.................................................... 73 Cachorro vira-lata e ces de raa ............................................................................................ 74 H nascimentos que so ecloses........................................................................................... 75 Calado novo e sapatos usados............................................................................................... 75 As minhas idias atropelam-se na entrada............................................................................. 76 Aqueles que ainda fazem experincias ................................................................................... 76 Uma mentalidade de construtores ......................................................................................... 77 7. Uma profisso que frmula de vida ..................................................................................... 79 Uma profisso que frmula de vida ..................................................................................... 79 Semeamos o gro das colheitas abundantes.......................................................................... 79 A embriaguez dos triunfos ...................................................................................................... 80 Po e rosas .............................................................................................................................. 81 Ir s profundezas ..................................................................................................................... 81 O trabalhador homem............................................................................................................. 82 As preocupaes do sargento ................................................................................................. 82 A volta das orelhas de burro ................................................................................................... 83 Evite a prova de fora.............................................................................................................. 84 H vrias moradas................................................................................................................... 85 Autocracia ou liberdade .......................................................................................................... 85 Somos aprendizes ................................................................................................................... 86 A profisso nos marca ............................................................................................................. 86 8. E a luz se fez ............................................................................................................................ 88 No ano de 1959 ....................................................................................................................... 88 O carreteiro atrasado .............................................................................................................. 89 Uma pedagogia que j no ousa dizer seu nome ................................................................... 89 A verdadeira cincia psicolgica ............................................................................................. 90 O frmito da paz...................................................................................................................... 91

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Se eles mandam! ..................................................................................................................... 92 E a luz se fez!... ........................................................................................................................ 92 A noite vir sempre cedo demais............................................................................................ 93 Colocamos a nossa pedra........................................................................................................ 94 A vingana dos "realistas" ....................................................................................................... 94

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Prlogo

Durante cinco anos, publiquei na revista L'ducateur, rgo pedaggico do nosso Instituto Cooperativo da Escola Moderna, uma pgina-guia que intitulei "Dits de Mathieu", em lembrana rica personalidade do campons-poeta-filsofo, heri do meu livro L'ducation du travail. A inspirao desses Dits encontra-se aqui resumida, no ttulo do captulo 1: "Uma pedagogia de bom senso". Minha longa experincia dos homens simples, das crianas e dos animais persuadiu-me de que as leis da vida so gerais, naturais e vlidas para todos os seres. Foi a escolstica que complicou perigosamente o conhecimento dessas leis, fazendo-nos crer que o comportamento dos indivduos no obedece seno a dados misteriosos, cuja paternidade reivindicada por uma cincia pretensiosa, numa espcie de reduto a que a gente do povo, inclusive os professores primrios, no tem acesso. Para confirmar a nossa experincia, temos o exultante exemplo das pessoas sensatas de todos os tempos e de todas as raas que vo sempre muito mais longe na compreenso dinmica dos homens do que os mais sbios autores de sistemas e de manuais contemporneos. Sentimos que caminham com segurana por onde a falsa cincia s nos mostra ddalos e atalhos. Dir-se-ia que so guiadas por uma luz ideal, a qual ilumina em profundidade os aspectos mveis da vida. Descobrem e mobilizam foras que o engenho dos homens deveria explorar; e por isso que a convivncia com elas, atravs dos sculos, sempre um enriquecimento apaziguador para os investigadores da verdade. Foram alguns desses caminhos e dessas foras, foram algumas dessas evidncias essenciais, que tentei detectar. Na complexidade dos temperamentos, no imbrglio de um meio em que se cruzam e se sobrepem as pistas mais caprichosas, tentei reencontrar algumas das regras simples e eternas da vida. Ao faz-lo, e sem menosprezar a contribuio possvel e desejvel de uma verdadeira cincia da educao, procurei menos explicar do que orientar e me orientar. Coloquei, tateando, os meus sinais vermelhos e verdes. Experimentei-os para ter a certeza de que funcionavam bem. Verifiquei-lhes as virtudes enveredando prudente e experimentalmente pelas pistas recm-sinalizadas. Alguns dos nossos letreiros j se tornaram familiares aos educadores: no se obriga a beber um cavalo que no est com sede na forja que nos tornamos ferreiros fazer brilhar o sol assumir a chefia do peloto estabelecer tiragem deixar de fazer trabalho de soldado no largar as mos antes de firmar os ps, e tantos outros que voc ir encontrar como ttulos, ao longo das pginas desta modesta antologia. Ao excesso de palavras de uma cincia que nos ultrapassa ou que ns ultrapassamos s frmulas que, para ns, eram apenas cabealhos obcecantes a serem memorizados , substitumos a simplicidade elementar de uma trajetria que, por ser a vida, tende sempre a ultrapassar a si prpria at um infinito, sendo a conscincia que temos desse infinito ao mesmo tempo o nosso drama e a nossa grandeza. Voltamos a dar pedagogia aquele aspecto familiar, misto de hesitaes e de audcias, de receios e relmpagos, de arco-ris, de risos e de lgrimas tambm. Voltamos a colocar a educao no prprio seio do devenir do homem. O nosso mrito, alis, no tanto ter repetido, depois de tantos outros, estas verdades de sempre, como ter impregnado e vivificado com elas a prtica das nossas aulas. Desejamos que, ao l-las, nasa em voc a dvida, que voc hesite como ns nas encruzilhadas e que, junto com milhares de pais e de

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educadores que j transpuseram os sinais verdes, voc se empenhe intrepidamente na reconsiderao progressiva dos prprios fundamentos da nossa educao. C. FREINET

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1. Uma pedagogia de bom senso

Uma pedagogia de bom sensoVoc vai procurar bem longe os elementos de base da sua pedagogia. Para isso so necessrias consideraes intelectuais e vocbulos hermticos, cujo segredo s os universitrios possuem. E tradio referir-se a Rabelais, Montaigne e J. J. Rousseau, para s falar dos pensadores cuja reputao , h muito, inatacvel. Mas voc tem certeza de que a maior parte dessas idias que os intelectuais julgam ter descoberto no correm desde sempre entre o povo, e de que no foi o erro escolstico que lhes minimizou e deformou a essncia, para monopoliz-la e subjug-la? Veja ento como, entre o povo, so tratados e educados os pequenos animais: voc encontrar a a origem dos grandes princpios educativos aos quais estamos voltando lentamente, quase que de m vontade... Nada de aprendizagem prematura, dir o caador. O co novo demais se cansa e se desencoraja. As suas reaes e o seu faro correm o risco de ficar perturbados para sempre. Est certo que o co tem que caar para se formar, mas no demais ao sabor do seu capricho. A caa uma coisa sria, para a qual o co novo ser treinado em companhia de ces excelentes, tendo apenas que seguir o exemplo deles. Apetite e motivao: se voc enche o seu co de petiscos que no lhe so especficos, se fica gordo e cevado, por que voc quer que ele cace? E quando a lebre for apanhada no bastar p-la logo na bolsa de caa. H toda uma arte do caador para satisfazer o co, deixando-o mordiscar o animal morto, mas limitando sua satisfao para faz-lo compreender que no deve ser o nico a aproveitar da pechincha. Nunca se deve bater nos animais novos. Deixe-os ou faa com que sejam castigados por outra pessoa, se necessrio; mas nunca ser pelo medo que voc alcanar seus fins. E os apicultores lhe diro: nada de gestos bruscos que despertam as reaes de defesa dos animais com que voc lida confiana, bondade, ajuda e deciso. E eu lhe digo que, se fssemos procurar assim, na tradio popular, as prticas milenares do comportamento dos homens na educao dos animais, estaramos em condies de escrever o mais simples e o mais seguro de todos os tratados de pedagogia.

Os caminhos da verdadeComo eram deliciosos os fins de maro da nossa infncia, quando os amentilhos floriam nos ramos vermelhos dos vimeiros e as primaveras e violetas nasciam na terra mida que a neve mal havia abandonado! E o barulho que fazamos, ns, as nossas ovelhas e os nossos cachorros, quando levvamos, para 11

saltar pelos prados novos, nossos animais embriagados de sol e de liberdade! Um bom pastor, pensvamos ns, avalia-se pela nitidez dos seus gritos, pelos latidos dos ces e pela deciso com que impe uma ordem e uma disciplina de que ele o grande ordenador. verdade que sentamos um prazer malicioso em fazer sentir essa autoridade, era uma espcie de inveja inconsciente que nos levava a contrariar o apetite natural dos nossos cordeiros... Ah! ento voc queria comer brotos macios... toma uma chibatada, para voc aprender a se emancipar! No entanto, eu fazia uma exceo para a minha querida Negrinha, com os seus dois cabritinhos de brincos, de que eu gostava tanto e que me pagavam na mesma moeda. A eles, eu no tinha de comandar; seguiam-me ou danavam a sua alegria de viver, numa farndola deliciosa. E, se o cachorro tocasse neles, com que emoo eu os defenderia! Com que ateno baixava para eles os talos frgeis que eles mordiscavam, e colhia, nas moitas, os brotos macios que eles vinham comer da minha mo! Ficava orgulhoso quando eles se saciavam e me gabava de nunca ter levantado a voz, pois ficavam sempre atentos aos meus gestos e aos meus cuidados. Duas atitudes! Duas pedagogias! Mas a Escola ri-se da humilde experincia dos pastores! Ela tem os seus imponentes e seculares caminhos, que escritores, sbios, administradores eminentes disseram ser caminhos da verdade: Nada de fraqueza afetiva! Manter a lei! Habituar os alunos a obedecer, mesmo, e sobretudo, quando a ordem dada contrariar suas tendncias e desejos. assim que se formam se for preciso com as chibatadas e os ces as personalidades fortes e as almas bem temperadas. E se fossem caminhos de iluso e de erro? Se qualquer velho pastor nos provasse, com a sua experincia decisiva, que nos estamos esgotando em vo numa luta desigual contra a natureza e a vida; se nos persuadssemos, algum dia, da vaidade orgulhosa desta autoridade formal material, intelectual e moral , que o manejo hbil e impiedoso do chicote nos d! Se reaprendssemos a acariciar, amar e servir as crianas de caracis loiros, a segur-las pela mo nas passagens difceis, a baixar para elas os galhos que no conseguem alcanar; a nos alegrar ao v-las satisfeitas, ao fim do dia, com um alimento livremente colhido nas fontes generosas que teramos feito brotar; se soubssemos responder aos inquietos apelos dos alunos em dificuldade e nos acalmar com o espetculo dos saltos de satisfao de seres que sobem at os cumes da cultura, por caminhos que no so forosamente calvrios, mas que so sempre caminhos de vida! Se soubssemos ajudar as nossas crianas a tornar-se homens!

O perigo dos fazedores de nsO senhor est me perguntando disse o velho pastor se um trabalho difcil conduzir o rebanho, de Saint-Jean at Saint-Michel, sem perdas nem danos, e garantir gordura boa e plo bonito aos animais? No mais difcil do que manobrar a foice num campo de capim fino, ou carregar sacos de alfazema na albarda dos burros mansos. S que os velhos pastores guardam os verdadeiros segredos dos seus xitos e das suas conquistas, e nos orientam para caminhos acessrios, persuadindo-nos de que necessrio conhecer oraes e magias, quando apenas o bom senso lhes bastou. Quanto aos carregadores de burros, acrescentam maliciosamente ns suprfluos s cordas da albarda, para nos fazerem crer que h uma cincia dos ns de que so eles os grandes mestres. certo que em qualquer oficio h uma tcnica a ser dominada. E dominada no com truques ou sortilgios, mas segundo leis simples e de bom senso, pois nunca h contradio entre cincia e tcnica, por um lado, e bom senso e simplicidade, por outro. O investigador de gnio sempre aquele que caminha

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na direo da simplicidade e da vida. E essas leis, todo o mundo as compreenderia se, apesar dos traadores de pistas falsas e dos fazedores de ns, conseguisse redescobri-las e coloc-las, como sinais luminosos, nos cruzamentos dos grandes caminhos do conhecimento. O que nos atrapalha e nos atrasa nesta investigao cientfica da verdade no a dificuldade dos problemas a serem tratados, mas sim a obstinao diablica com que, desde tenra idade, somos desviados do bom senso, alimentados de Ersatz1, com que nos estragam o esprito com definies ou invocaes, nos deformam o entendimento e a inteligncia, levando-nos por falsos caminhos e ensinando-nos a fazer ou a desfazer ns!... A verdade que os nossos mestres e os seus servidores nunca tm interesse em que ns descubramos as leis claras da vida. Vivem da obscuridade e do erro... e sempre apesar deles e contra eles que realizamos a nossa cultura. No cabe a mim dizer-lhe como voc poder descobrir e ensinar essas leis naturais e universais que lhe abriro depressa, e definitivamente, as leis do Conhecimento e da Humanidade. O que eu sei que elas existem e que aqueles que as possuem tm todos o mesmo ar de sabedoria e de segurana, de calma e de simplicidade, e de generosidade tambm, que lemos no rosto dos velhos pastores, nas mos intuitivas dos curandeiros, nos olhos profundos do sbio, nas decises e na ao dos militantes devotados, nas palavras dos sensatos... e na espantosa confiana das crianas na aurora da vida.

O bom agricultor, ou o ciclo da educaoA educao no uma frmula de escola, mas sim uma obra de vida. H agricultores ditos modernos ou cientficos que se gabam de obter uma boa colheita, quaisquer que sejam as condies do solo, do clima, da luz ou do esterco. Mas que abundncia de enxofre e arseniatos, de inseticidas e caldas! Se isso no suficiente, escondem-se os cachos de uvas em saquinhos protetores e colhe-se a pra ainda verde, para guard-la sobre uma camada de algodo onde amadurecer vontade. O fruto est salvo, e tem bom valor de mercado. Mas est to impregnado de txicos, que se torna veneno para quem o consome. E a rvore que o deu, esgotada e ferida antes do tempo, seca antes mesmo de ter ousado lanar para o cu os seus braos audaciosos. j na semente, ou no broto, que o jardineiro prudente cuida e prepara o fruto que vir. Se esse fruto doente, porque a prpria rvore que o gerou estava enferma e degenerada. No do fruto que se deve tratar, mas da vida que o produziu. O fruto ser o que fizerem dele o solo, a raiz, o ar e a folha. Deles que deveremos cuidar, se quisermos enriquecer e garantir a colheita. Se um dia os homens souberem raciocinar sobre a formao dos seus filhos como o bom agricultor raciocina sobre a riqueza do seu pomar, deixaro de seguir os eruditos que, nos seus antros, produzem frutos envenenados que matam ao mesmo tempo quem os produziu e quem os come. Restabelecero valorosamente o verdadeiro ciclo da educao: escolha da semente, cuidado especial do meio em que o indivduo mergulhar para sempre as suas razes poderosas, assimilao, pelo arbusto, da riqueza desse meio. A cultura humana ser, ento, a flor esplndida, promessa segura do fruto generoso que1

Palavra alem que significa sucedneo de qualidade inferior. (N. do T.)

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amadurecer amanh.

O mestre e o aprendizDurante todo o vero, o rebanho de ovelhas ficara na montanha, confiado guarda do pastor, que de modo algum parecia sobrecarregado com a responsabilidade dos seus mil animais. Por Saint-Michel, voltavam para a aldeia. Cada um de ns "apartava" o seu pequeno rebanho, e trinta jovens pastores partiam, em seguida, atravs dos campos de restolho, ainda ricos em erva verdejante, para passarem pela aprendizagem de condutores de carneiros. Tinham-nos ensinado as leis e as regras que aplicvamos ao p da letra, como o guarda executa as ordens na estrada. Cuidado para as ovelhas no escaparem e estragarem os feijes! No deixem os cordeiros afastarem-se do rebanho, seno vocs podero perd-los! Cuidado com as moitas cheias de cobras e com a luzerna que incha os animais! No levem os animais para o lado das rochas, pois eles poderiam ficar entalados! Outras tantas preocupaes obsessivas que no nos deixavam em paz, e nem aos nossos animais: por aqui!... por ali!... Um pouco mais e teramos cercado ovelhas e carneiros para no os perder de vista, preferindo trazer-lhes capim e galhos... se eles aceitassem. Trabalho de aprendiz que ainda no compreendeu nada do carter e do comportamento dos seus animais. Quanto ao pastor, partia calmamente atrs do seu rebanho. Uma palavra, um grito, lanados oportunamente, e os animais seguiam na direo que o pastor sabia de antemo aonde ia dar. Vo passar l embaixo!... Daqui a pouco vamos encontr-los acima das barreiras. Esta noite descero pelas encostas!... O pastor dormia, o co dormia; os animais comiam at se fartar, livremente. Trabalho de mestre que conduz o seu rebanho com uma cincia e uma filosofia cujas linhas eficientes deveramos procurar, para darmos nossa pedagogia a quietude e a humanidade prprias das obras conscientes.

As guias no sobem pela escadaO pedagogo preparara minuciosamente os seus mtodos e, segundo dizia, estabelecera cientificamente a escada que permite o acesso aos diversos andares do conhecimento; medira experimentalmente a altura dos degraus, para adapt-la s possibilidades normais das pernas das crianas; arranjara, aqui e ali, um patamar cmodo para se retomar o flego, e um corrimo benvolo amparava os principiantes. E o pedagogo zangava-se, no com a escada, que, evidentemente, fora concebida e construda com cincia, mas com as crianas que pareciam insensveis solicitude dele. Zangava-se porque tudo acontecia normalmente quando ele estava presente, vigiando a subida metdica da escada, degrau por degrau, tomando flego nos patamares e segurando no corrimo. Mas, se ele se ausentava uns momentos, que desastre e que desordem! Apenas continuavam a subir metodicamente, degrau por degrau, segurando no corrimo e tomando flego nos patamares, os indivduos que a escola marcara suficientemente com a sua autoridade, como os ces de pastor que a vida

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treinou para seguir passivamente o dono e que se resignaram a no mais obedecer ao seu ritmo de ces transpondo matas e atalhos. O bando de crianas retomava os seus instintos e as suas necessidades: uma subia a escada de quatro, engenhosamente; outra tomava impulso e subia os degraus de dois em dois, saltando os patamares; havia mesmo as que tentavam subir de costas, adquirindo at algum desembarao. Mas sobretudo incrvel paradoxo havia aquelas, e eram maioria, para quem a escada se mostrava desprovida de atrao e aventuras, e que, contornando a casa, segurando-se nas calhas, saltando as balaustradas, chegavam em cima num tempo mnimo, muito melhor e mais depressa do que pela escada pseudometdica; uma vez l em cima, escorregavam pelo corrimo... para recomearem a ascenso apaixonante. O pedagogo persegue os indivduos obstinados em no subir pelos caminhos que considera normais. Mas ter ele perguntado a si mesmo, por acaso, se essa cincia da escada no seria uma falsa cincia e se no haveria caminhos mais rpidos e mais salutares, em que se avanasse por saltos e largas passadas? Se no haveria, segundo a imagem de Victor Hugo, uma pedagogia das guias que no sobem pela escada?

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2. Fazer brilhar o sol

Os aventureiros do Kon-TikiO tempo passa; a vida d a voc os seus ensinamentos e voc fica imvel e paralisado, como se a sua sorte estivesse fora dos destinos que voc pretende preparar. Voc parece, hoje, o campons que teima em reconstruir o muro dos seus olivais abandonados, sob pretexto de que antigamente o alinhamento das pedras era sinal de opulncia; ou o outro que continua a carregar o burro, todas as manhs, para ir fazenda distante que h muito tempo est improdutiva. como as almas penadas desamparadas, que vagueiam em redor dos domnios familiares cheias de nostalgia por um passado que no voltar mais. Voc continua com suas aulas, ensina as suas mecnicas, contemporneas do arado e do carro de mo, e so o scooter, o rdio, o telgrafo e o telefone que seu aluno ter de usar, porque ele sabe, por experincia, onde o chama a vida. Os seus alunos decoram a tabuada num mundo que ser, amanh, o da mquina de calcular. Eles se enervam com as aulas de caligrafia e amanh a mquina de escrever proporcionar, at ao mais desajeitado, um xito exemplar. Voc lhes diz sabiamente: "Aprendam as lies e faam os deveres; assim se tornaro homens." Porm, eles tm o exemplo obsessivo do pugilista que ganha 5 milhes numa noite triunfal, da vedete contratada por 15 milhes por semana, e do cantor da moda cujos ganhos sobem a 500 milhes. E no foi a escola que os formou, e nem foi ela que preparou o xito do comerciante que no aprendeu as lies e ele se gaba disso , mas que triunfou devido a outras virtudes que a escola no soube descobrir nem cultivar. Talvez seja desajeitado para escrever e redigir, mas pode pagar um secretrio; no conhece os segredos da contabilidade, mas tem ao seu servio mquinas e contadores. Ento! No se contente em desculpar a escola, argumentando que esses fatos, reais, so apenas um aspecto de um desequilbrio social que no particular nossa poca. Nem por isso deixa de ser verdade que voc no soube reconhecer nem explorar as aptides e os talentos do homem de negcios, do pugilista, do ciclista e do cantor. Voc at correu o risco de os "desencaminhar", o que grave. E isso, sem dvida, porque, ligado com fidelidade excessiva tradio, voc tambm perdeu muito tempo reerguendo muros que se tornaram inteis, pois voc se obstina em seguir por caminhos que a nada conduzem e no sabe exaltar as novas foras que, para alm das mquinas e das mecnicas, do uma medida suprema do homem. Essa ter sido, talvez, uma das conquistas reconfortantes da nossa poca, o ter sabido revalorizar os elementos sensveis e os dons que uma falsa cincia desejaria que julgssemos ultrapassados: o sentido profundo do trabalho, a espontaneidade e a arte, a tenacidade, a coragem, a audcia por vezes temerria, reflorescem e se impem. Os aventureiros do Kon-Tiki, que, na era dos pesados barcos mecnicos, com suas prprias mos de operrios, aparelharam a sua caravela e se lanaram sozinhos no Pacfico misterioso, para refazer uma experincia, verificar uma hiptese e provar ao mundo que o homem no degenerou, so como que um 16

smbolo dessa converso. A Escola tambm tem os seus aventureiros do Kon-Tiki. A vida sempre sobe! Comeava o dia; as ovelhas haviam deixado o campo onde passaram a noite, e eu saa, com o alforje ao ombro, atrs do pastor plcido e sereno. Caminhava por trilhas cujo segredo s ele conhecia. Nenhum animal nossa volta apenas um longnquo sussurro e o tilintar dos chocalhos localizando o rebanho em movimento, entre as estradas e os pinheiros. Estava inquieto por no ver os meus animais: iramos encontr-los antes de transpormos as barreiras, ou teramos de voltar atrs, para procur-los durante todo um dia? Foi o velho pastor que me explicou a razo da sua serenidade: Garoto, de manh, os animais sempre sobem. Vo para os cumes. No que o pasto l seja sempre mais abundante ou mais fcil; mas um instinto do ser lanar os braos para o azul do cu e partir ao assalto dos cumes. O capim, conquistado fora de msculos e tenacidade, tem um valor exaltante, talvez s por ter sido muito desejado... Pode ficar tranqilo: vamos encontr-los todos l em cima! E acrescentou: S me preocupa o pequeno bando de Lon, domesticado demais, habituado demais a comer nos pastos e na manjedoura, e que tem como que a nostalgia das barreiras e do estbulo. Parece que j no tm fora para subir; o ideal deles j no l em cima, mas embaixo... Preferem a rdea ao azul do cu... J no so ovelhas dignas e orgulhosas: so ces! Oua os chocalhos, l em cima, diante de ns! S noitinha, quando o sol se extinguir por trs do Rocheroux, os nossos animais tambm vo descer para a calma e a segurana do vale, para amanh voltarem a subir mais alto ainda. E as crianas diria o pastor so como as ovelhas: querem subir sempre. Voc s ter paz e certeza se souber ajud-las, s vezes preced-las na subida aos cumes, ou segui-las... Infelizes dos seres domesticados cedo demais, que perderam o sentido da subida e que, como velhos em fim de corrida, preferem, ao ar do espao e ao azul do cu, a coleira da sujeio e a rao da renncia! So bons todos os caminhos que levam para as alturas.

A histria do cavalo que no est com sedeO jovem da cidade queria prestar um servio fazenda onde o hospedavam, e ento pensou: Antes de levar o cavalo para o campo, vou dar-lhe de beber. Ganho tempo e ficaremos sossegados o dia todo. Mas o que isso? Agora o cavalo quem manda? Recusa-se a ir para o bebedouro e s tem olhos e desejos para o campo de luzerna! Desde quando so os animais que mandam? Venha beber, estou dizendo!... E o campons novato puxa a rdea e depois vai por trs e bate no cavalo com fora. Finalmente!... O animal avana... Est beira do bebedouro... 17

Talvez esteja com medo... E se eu o acariciasse?... Olhe, a gua limpa! Olha! Molhe as ventas... Como! No?... Veja s!... E o homem mergulha bruscamente as ventas do cavalo na gua do bebedouro. Agora voc vai beber! O animal funga e sopra, mas no bebe. O campons aparece, irnico: Ah! Voc acha que assim que se lida com um cavalo? Ele menos estpido que os homens, sabe? Ele no est com sede... Pode mat-lo, mas ele no beber. Talvez ele finja que est bebendo, mas vai cuspir em voc a gua que est sorvendo... Trabalho perdido, meu velho!... Ento, como se faz? Bem se v que voc no campons! Voc no compreende que a esta hora da manh o cavalo no tem sede; ele precisa de uma luzerna fresca. Deixe-o comer at ele se fartar. Depois ele vai ter sede e voc vai v-lo galopar para o bebedouro. Nem vai esperar voc dar licena. Aconselho mesmo que voc no se intrometa... E quando ele beber voc poder puxar a rdea! assim que sempre nos enganamos, quando pretendemos mudar a ordem das coisas e obrigar a beber quem no tem sede... Educadores, vocs esto numa encruzilhada. No teimem numa "pedagogia do cavalo que no tem sede". Caminhem com empenho e sabedoria para a "pedagogia do cavalo que galopa para a luzerna e para o bebedouro".

O cavalo no est com sede: ento troquem a gua do tanque!Ns nos esquecemos de um captulo na histria do cavalo que no est com sede. No momento preciso em que o rapaz mergulhava na gua do tanque o focinho do cavalo-que-noest-com-sede, e que, puf!, o sopro obstinado do animal espirrava a gua em cascata em volta da fonte, surgiu um homem que declarou sentenciosamente: Mas... ento, troquem a gua do tanque! Isso feito imediatamente, pois ordem das autoridades era preciso obrigar aquele cavalo-queno-est-com-sede a beber. Trabalho perdido. O cavalo no estava com sede nem de gua turva, nem de gua limpa. Ele.. no estava... com... sede! E deixou isso bem claro quando arrancou a rdea das mos do jovem tratador e partiu trotando para o campo de luzerna. E, assim, o problema essencial da nossa educao no de modo algum como pretendem hoje nos fazer crer o "contedo" do ensino, mas a preocupao essencial que devemos ter de fazer a criana sentir sede. Ento a qualidade do contedo seria indiferente? S indiferente para os alunos que, na escola antiga, foram treinados a beber, sem sede, qualquer bebida. Habituamos os nossos a considerar primeiro toda bebida como suspeita, a experiment-la e a verific-la, a elaborar eles mesmos o seu prprio juzo e a 18

exigir, em todo lugar, uma verdade que no est nas palavras, mas na conscincia de relaes justas entre os fatos, os indivduos e os elementos. No preparamos homens que aceitaro passivamente um contedo ortodoxo ou no , mas cidados que, amanh, sabero enfrentar a vida com eficincia e herosmo e podero exigir que corra para dentro do tanque a gua clara e pura da verdade.

Fazer a criana sentir sedeVocs j viram mes-galinhas obrigarem o filho a comer? Elas esperam, de colher na mo, que o paciente entreabra a boca ainda cheia, para lhe enfiarem a rao de sopa... Mais uma para o papai!... E outra para o gatinho!... Por fim, aquilo transborda. A criana cospe a papa, ou acaba tendo uma indigesto. Coloquem essa criana num meio vivo, se possvel comunitrio, com possibilidade de se entregar s atividades que fazem parte da sua natureza. Ento, s refeies ou antes delas, estar esfomeada. O problema da alimentao mudar de sentido e de esprito. J no ser preciso voc empurrar fora uma sopa recusada de antemo, mas sim fornecer somente os materiais suficientes e vlidos. Os processos de deglutio e de digesto j no so problema seu. No se obriga o cavalo que no est com sede a beber! Mas, quando ele tiver comido at se fartar, ou puxado penosamente o arado, voltar por si mesmo ao bebedouro conhecido e, ento, no adiantar puxar a rdea, gritar ou bater... O cavalo vai beber at acabar a sede e depois partir mais calmo. Pode acontecer que a obrigao que voc lhe imps de beber naquela fonte e as suas pancadas tenham criado uma espcie de averso fisiolgica pela fonte, e o cavalo se recuse a beber a sua gua e prefira procurar em outro lugar, livremente, o charco que lhe matar a sede. Se o aluno no tem sede de conhecimentos, nem qualquer apetite pelo trabalho que voc lhe apresenta, tambm ser trabalho perdido "enfiar-lhe" nos ouvidos as demonstraes mais eloqentes. Seria como falar com um surdo. Voc pode elogiar, acariciar, prometer ou bater... o cavalo no est com sede! E cuidado: com essa insistncia ou essa autoridade bruta, voc corre o risco de suscitar nos alunos uma espcie de averso fisiolgica pelo alimento intelectual, e de bloquear, talvez para sempre, os caminhos reais que levam s profundidades fecundas do ser. Provocar a sede, mesmo que por meios indiretos. Restabelecer os circuitos. Suscitar um apelo interior para o alimento desejado. Ento, os olhos se animam, as bocas se abrem, os msculos se agitam. H aspirao e no atonia ou repulso. As aquisies fazem-se agora sem interveno anormal da sua parte, num ritmo incomparvel s normas clssicas da Escola. lamentvel qualquer mtodo que pretenda fazer beber o cavalo que no est com sede. bom qualquer mtodo que abra o apetite de saber e estimule a poderosa necessidade de trabalho.

Em primeiro lugar fazer jorrar a fonteOs pedagogos so como aquelas crianas que se divertem construindo um poo no lugar que lhes parece mais fcil, por no haver rochas nem razes emaranhadas e tenazes, podendo assim, mesmo com utenslios primitivos, cavar e remover a terra cmplice.

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S depois, quando o poo j est construdo, que pensam em ench-lo. Talvez encontrem to pouca gua, que ela chegar com muita dificuldade, com uma queda to fraca e filetes to lentos, que o menor capinzinho os desviar do caminho incerto. Entretanto, o poo, lento para encher, seca, fende, perde a gua que to parcamente lhe trouxeram. Por mais que se tape e calafete, nunca encher, a no ser com uma gua estagnada e suja impossvel de utilizar. Voc ter ento de abri-lo e decantar os depsitos, a no ser que, com gua trazida da fonte prxima, encha-o artificialmente... o que ser apenas iluso momentnea, pois a gua se manter pura e clara somente enquanto voc a estiver trazendo nos baldes. Os camponeses das nossas montanhas sabem comear pelo princpio. Localizam a nascente. No somente o veio de gua que ressuma no fundo do desfiladeiro, mas a prpria origem onde, em profundidade, a gua sai aos borbotes, fresca e clara entre as pedras. Depois de encontrada a nascente, quando a gua brota intrpida e poderosa, fcil acompanh-la at a concha rstica que transbordar, lanando as impurezas agitadas e rejeitadas pela corrente. Deixemos, portanto, de nos hipnotizar por esses poos caprichosos da observao, da memria, das teorias formais, estabelecidos no pntano desolado da velha escolstica. Tambm no nos cansemos vedando-lhes os buracos suspeitos, carregando baldes de gua, agitando essa massa informe, morta, estagnada. Localizemos as nossas correntes, procuremos profundamente a corrente que brota entre as pedras, acompanhando-a e deixando que corra generosamente sobre as conchas rsticas. Construiremos ento os nossos poos metdicos, para tornar sensatas e domesticar as riquezas com que a vida nos tiver generosamente fertilizado. preciso dar tiragem Mathieu esperava-me na estao. L estava o lampio, apagado. s um instante para comear a funcionar! Pegou um pedao de jornal, acendeu-o com o isqueiro e aproximou-o de um orifcio minsculo. Essa coisa deve ser muito difcil de acender! tudo uma questo de tiragem. Se ela for forte, uma chama bem pequena j ser suficiente. E com qualquer material. como numa chamin. O melhor papel, at a melhor madeira, apagam-se quando a tiragem no lana sobre eles a corrente vivificante. Pergunte a uma velha dona de casa. Ela dir: Se seu fogo no tem uma boa tiragem, intil insistir. Voc se encher de fumaa, ficar sem flego e no conseguir que a panela ferva... Limpe a chamin, desentupa a grelha, abra os tirantes e voc ver... O mesmo acontece com as crianas. Pouco importa a excelncia dos materiais colocados no limiar do seu entendimento, sua sbia habilidade para dispor gravetos e carves, a obstinao em sacudir a apatia de uma alma inerte, os esforos para fazer progredir uma chama que teima em se extinguir. D tiragem! Descubra e utilize o apelo soberano das necessidades vitais, individuais e sociais...

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Ento bastar apresentar uma chama muito pequena, que a vida alimentar e ampliar, at inflamar o indivduo inteiro. E essa chama devorar todos os materiais que se apresentarem, seja qual for a sua textura ou a ordem da sua apario. preciso dar tiragem!

Voltar ao seu ritmoOs pedagogos manejam a noo e a palavra "esforo" como os burriqueiros manejam o chicote para conduzir os animais para onde eles no querem ir, e para barrar a entrada dos caminhos que levam luzerna reconfortante. Em toda vida normal e ativa h, certamente, o jogo gil dos msculos, que como o batimento regular do motor de volta ao seu ritmo; a concentrao de esprito, que como o jato sutil de combustvel passando pelos injetores; e sobretudo esse impulso de vida, essa necessidade de crescer e de subir, que so como a centelha sem a qual o combustvel mais rico e o pisto mais macio deixariam de ter vida. Se voc matar a centelha, se cortar a corrente, o nico recurso que lhe restar ser encostar o carro na descida, por onde ele deslizar pelo prprio peso mas ser que voc poder det-lo? , ou ento empurr-lo penosamente num lugar plano, e logo voc ficar extenuado por esse esforo contra a natureza e, alis, sem esperana. Fazer esforo! Com toda a sua cincia separada da vida, voc parece o aprendiz que entra no automvel, olha o fim a ser atingido o alto da subida , pisa no acelerador agarrando-se ao volante, como que para ajudar a mquina a subir melhor a ladeira. Mas ele no escuta o motor que perde o ritmo e se estafa como o corredor esbaforido que tem de deter-se por alguns instantes para tomar ar... O motor aquece... O pisto emperra... Uma biela vai entortar... Mais um esforo, mquina minha! Desgraado!, grita o mecnico. Assim voc no vai longe. Mude de velocidade, deixe o motor retomar o ritmo, aproveite esse pequeno plano para que ele recupere leveza e potncia, e depois ataque as ltimas dificuldades. Com um bom motor, que trabalhe bem e seja conduzido sensatamente, voc poderia ir, sem esforo, at o fim do mundo... Quantas pobres crianas, quantos adolescentes tm sido maltratados por uma falsa pedagogia do esforo que lhes fez perder o regime, que aqueceu e desconcertou os mecanismos, engripou os pistes e torceu as bielas, e andam a reboque, incapazes de subir a ladeira por si mesmos, porque j no brota a centelha salvadora! As avarias na corrente, diz o mecnico, so sempre as mais delicadas de reparar.

Um nada que tudoDescascar batatas , no regimento, o prottipo e o smbolo do trabalho do soldado. Eles so uma dzia, agrupados em torno do saco entreaberto no cho da cozinha, como combatentes desiludidos vigiando o inimigo derrotado. Comeam ao sinal, quando todo o mundo est pronto. E, segundo a tcnica do trabalho de soldado, batata nas mos, vigiam o sargento. Quando ele olha, surge uma fatia de cascas. Depois descansam, at o olhar seguinte.

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Fala-se de rendimento no trabalho. Aqui como um contra-rendimento. Quem produz demais, e depressa demais, compromete a sorte do grupo condenado a uma nova corvia. a lei do meio, de um meio que no feito para o trabalho. Mas o jovem militar que, durante toda uma manh, descascou assim uma poro de batatas, ao ritmo dos soldados, tarde, em casa, ouve a mulher dizer gentilmente: "Tenho que fazer a sopa..." Deixe... batatas comigo. Nem espera o sinal. E as batatas danam e giram nas mos diligentes, e a ponta da faca extrai delicadamente os olhos negros. E em que ritmo! J no trabalho de soldado. simplesmente trabalho, uma atividade a que nos dedicamos com entusiasmo, por ser a condio da nossa vida, e qual, como a toda obra de vida, damo-nos completamente. Foi preciso muito pouco para transformar em trabalho eficiente a estril corvia do soldado: um sorriso amvel, uma palavra insinuante, um pouco de calor no corao, uma perspectiva humana, e a liberdade, ou antes o direito, que o indivduo tem de escolher ele mesmo o caminho por onde seguir, sem trela, nem corrente, nem barreira. Foi preciso to pouco, mas esse pouco tudo. Se voc conseguir transformar assim o clima da sua aula, se voc deixar desabrochar a atividade livre, se souber dar um pouco de calor no corao, como um raio de sol que desperta a confiana e a esperana, voc ultrapassar a corvia de soldado e o seu trabalho render cem por cento. Esse raio de sol todo o segredo da Escola moderna.

Esqueceram a maEram cinco crianas que subiam para o "Albergue", com uma bela ma na mo para terminar o lanche. E voc bem sabe como as crianas gostam da merenda e de mas. Mas eis que, na beira do caminho, um lindo musgo, brilhando como verniz prateado, atapetava a pedra mida. As crianas ajoelham-se como diante do prespio de Natal e, delicadamente, cada uma arranca um pedao daquele tesouro, que carregam nas mos frgeis. Vamos guard-lo no leno... Vou coloc-lo na janela, perto da minha boneca, com borboletas em cima... Eu vou coloc-lo na minha mesa de cabeceira e depois vo nascer flores... E elas esqueceram a ma. Sobem pelo caminho pedregoso, extasiadas, arrebatadas, transportadas pela beleza, acima das vs preocupaes do dia, felizes como deuses, porque levam um tesouro: o reflexo delicado e frgil do musgo prateado, como um pssaro azul que tivessem agarrado por um instante... Voc j notou o lugar importante que ocupam as cores, os sons e os sonhos na linguagem e nos escritos das crianas? Tudo luminoso, areo, livre e fresco como a gua que corre. E quanto a ns apressamo-nos a erguer uma barreira, a apagar a luz, a ofuscar o esplendor das paisagens, a baixar obstinadamente para as pedras e a lama os olhos que teimavam em contemplar o espao e o azul. E para a matria, para o objeto a ser examinado ou manejado, para o papel a ser preenchido, o lpis a ser empunhado, a construo a ser montada, para o prosaico prtico talvez que orientamos as nossas

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crianas, ocultando-lhes para sempre o ideal e a beleza. provvel que nos digam que no temos de formar sonhadores, mas homens prticos, capazes desde cedo de cavar a terra ou fixar uma cavilha; mas sabemos tambm que temos mais necessidade ainda de homens que saibam esquecer, beira do caminho da vida, a ma que tinham na mo, para partirem como pesquisadores desinteressados em busca do ideal. Tenha cuidado para no desperdiar, na criana, os bens inestimveis cujo esplendor nunca mais conhecer.

A vida prepara-se pela vidaO velho pastor fazia um sermo: Voc no deve manter tanto tempo no estbulo os seus dois cabritos, habituados somente a dormir no calor do cercado, comer na manjedoura e a seguir a me, balindo quando se sentem perdidos no meio de uma moita... Quando voc os juntar ao rebanho, ver que nem sequer sero capazes de acompanhar os outros: sero mordidos pelos ces, quebraro a pata num monte de pedras ou se perdero nas barreiras... A vida prepara-se pela vida. Se voc tem medo que seu filho quebre a cabea, rasgue a roupa, suje as mos, corra o risco de cair ou de se afogar, tranque-o na sua confortvel sala de jantar ou leve-o pela coleira quando voc sair, para que ele no se junte aos bandos de crianas que na rua, nos jardins, nos pomares e no mato buscam intrepidamente as suas experincias elementares. Cerque sua atividade particular com uma srie de barreiras que, como o cercado do estbulo, impediro o seu homenzinho de desenvolver os msculos e os sentidos. Escolha atentamente os discursos que lhe fizer e os livros que lhe daro a imagem sempre falsa, pois s imagem, da vida que o chama imperiosamente. E permanea insensvel aos olhares de desejo que ele lana para as atividades proibidas, como os cabritos que, com a cabea entre as barras do cercado, lanam o olhar e os sentidos para a natureza que os atrai. Escolha para ele uma escola bem conformista, onde no manejar martelos nem provetas, onde no compor caracteres tipogrficos, onde no se sujar com o rolo de tinta, onde no se machucar com a goiva que escorrega desastradamente do linleo, onde no sujar os sapatos na lama dos caminhos ou na terra do jardim. Lies e deveres... Deveres e lies... o esprito que se encher de crostas de lodo... E depois voc se espantar se o seu filho for manualmente desajeitado, hesitante nas brincadeiras ou nos trabalhos, inquieto e tmido diante das exigncias do esforo, desequilibrado num mundo onde j no basta saber ler e escrever, mas em que preciso apreender com deciso e herosmo. A vida prepara-se pela vida.

Nosso laboratrio a crianaSer que Mathieu ainda ousar falar do velho pastor filosofando ao longo dos dias, nas montanhas tranqilas, ou do lavrador que se detm no fim do sulco para deixar o animal respirar? Dizem-me que escolho muito mal os meus modelos, que o lavrador j no tem disposio para assobiar porque o motor do arado mecnico ronca, e que o bom senso e a filosofia deixaram de animar o campons vido de ganhos e reticente diante das exigncias do progresso. Segundo me escrevem, a insistncia dos meus exemplos da vida simples da fazenda ou da aldeia parece uma fuga diante da realidade dos grandes acontecimentos contemporneos. 23

Essa amplido assustadora das nossas sociedades mecanizadas, s quais se encontra sempre misturada a nossa vida de lutas e de reivindicaes, ns no a depreciamos mais do que o faz o homem de cincia no laboratrio onde sonda os elementos em sua origem, aparentemente afastado de todas as preocupaes sociais. E o nosso laboratrio a criana. Sou campons e pastor. Quando me perscruto profundamente e raspo a crosta com que a civilizao se esforou por me cobrir, sempre a gua que corre na selha do velho moinho, o riacho que se estira lentamente entre os vimes, o cheiro dos bois levados ao trabalho e o balir nostlgico e sonoro das ovelhas na montanha, que encontro e me comovem, pois so a trama inicial de uma vida que no mais encontrou a pura simplicidade da aldeia da minha infncia. E o meu nico talento de pedagogo talvez ter conservado uma impresso to total da juventude, que sinto e compreendo, como criana, as crianas que educo. Os problemas que estas colocam e que so enigma to grave para os adultos, coloco-os ainda a mim mesmo com as ntidas recordaes dos meus oito anos, e como adulto-criana que descubro, atravs dos sistemas e mtodos que tanto me fizeram sofrer, os erros de uma cincia que esqueceu e desconhece as suas origens. Porque os verdadeiros problemas da infncia so e permanecem os mesmos: o capim que se agita, o inseto que zumbe, a cobra cujo silvo gela o sangue, o trovo assustador, a sineta que toca as horas mortas da escola, os mapas mudos e os quadros fantsticos. E a vida, atravs das exigncias do meio, que se agita sempre, intrpida e inextinguvel, essa vida que basta encontrar e ajudar para que desabroche, apesar dos nossos destinos acorrentados, a comovedora histria da infncia audaz.

Sejam humanosVocs, educadores, agem todos um pouco como alguns pais que, quanto mais terrveis foram quando crianas, mais ferozmente severos so com os filhos; ou como o adulto que caminha apressado, sem reparar na criana a seu lado que tem de dar trs passos enquanto ele d um. Vocs reagem com a sua natureza de homens, as suas possibilidades e conhecimentos de adultos, como se as crianas que lhes foram confiadas tambm fossem adultas com iguais possibilidades. Ponha-se no lugar dessa criana que voc acaba de humilhar com uma nota baixa ou uma m classificao. Lembre-se do seu prprio orgulho quando voc era dos primeiros, e de todos os maus sentimentos que o agitavam quando outros passavam na frente... Ento voc compreender e a classificao ser suprimida. Uma criana roubou cerejas ao vir para a escola, ou quebrou um tinteiro na aula, ou mentiu para tentar salvar uma situao delicada. Voc nunca roubou cerejas quando era novo? Voc no era o primeiro a sentir pena, quando quebrava um tinteiro? Voc no se lembra do drama que era para voc mentir por necessidade, quando, entre os caminhos que se ofereciam para sair da situao delicada, a mentira, tmida, desajeitada, no incio lhe parecia a nica tbua de salvao? "Se voc no voltar a ser como uma criana..." no entrar no reino encantado da pedagogia... Em vez de procurar esquecer a infncia, acostume-se a reviv-la; reviva-a com os alunos, procurando compreender as possveis diferenas originadas pela diversidade de meios e pelo trgico dos acontecimentos que influenciam to cruelmente a infncia contempornea. Compreenda que essas crianas so mais ou menos o que voc era h uma gerao. Voc no era melhor do que elas, e elas no so piores do que voc; portanto, se o meio escolar e social lhes fosse mais favorvel, poderiam fazer melhor do que voc, o que seria um xito pedaggico e uma garantia de progresso.

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Para isso, nenhuma tcnica conseguir prepar-lo melhor do que aquela que incita as crianas a se exprimirem pela palavra, pela escrita, pelo desenho e pela gravura. O jornal escolar contribuir para a harmonizao do meio, que permanece um fator decisivo da educao. O trabalho desejado, a que nos entregamos totalmente e que proporciona as alegrias mais exaltantes, far o resto. E o sol brilhar...

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3. O trabalho que ilumina

A bandeira azul, branca e vermelhaA vida caminha e ns nos estafamos para segui-la, em vez de brandirmos corajosamente as bandeiras que a orientam e sublimam. Somos uma gerao de copistas-copiadores, de repetidores condenados a registrar e a explicar o que dizem ou fazem homens que nos afirmam ser superiores e que, muitas vezes, s tm sobre ns o privilgio da antiguidade nessa arte de copiadores e de repetidores. Somos uma gerao para a qual a obra criadora, esse primeiro escalo da obra de arte, foi reduzida clandestinidade. Estude! Copie! Repita!...Voc nunca tirar nada de esplndido das suas mos desajeitadas e do seu crebro ftil. Quando guardvamos as cabras, s vezes desenhvamos, na lama dos caminhos, sinais cabalsticos que a chuva apagava, travamos nas pedras lisas inscries rudimentares que em nada mudavam o destino da pedra rochosa, gravvamos na casca das rvores, com as nossas facas, figurinhas de que nos orgulhvamos, mas que no sobreviviam nossa fantasia de um dia. Os adultos combatiam essas tentativas, para as quais no tnhamos, como hoje, o exemplo exaltante das imagens que cobrem as paredes da classe, animam as pginas dos livros e dos jornais, danam magicamente nas telas dos cinemas. No tnhamos lpis nem papel. A arte, para ns, era o Cristo na cruz da igreja ou os figurinos de moda nos catlogos da Samaritaine2. Senti minha primeira emoo de arte no dia em que, depois de comprar por dois tostes, de um vendedor ambulante, um maravilhoso lpis vermelho e azul, desenhei na capa do meu caderno, nas venezianas e nas paredes, a bandeira azul, branca e vermelha da Frana. A vida caminha... Num sculo em que a imagem rainha, em que papel, guaches e aquarelas guarnecem as prateleiras dos bazares, ajude seus alunos a ultrapassarem o estgio da bandeira azul, branca e vermelha; abra-lhes as portas encantadas de um mundo que nos foi proibido e que eles vem com os seus olhos inocentes de poetas, de artistas, de construtores, a caminho do seu destino de homens.

Antes depoisNo dia 25 de novembro, Joozinho desenhou o vaso de flores que se v ao lado. Este vaso , com o moinho de caf e a caixa de fsforos, o smbolo de uma forma de ensino que j no deveramos ter de condenar: vaso barrigudo, hipertrofiado para receber a falsa cincia, inchado e disforme, cujo nico resultado so esses seis raminhos esquelticos, como flores2

Grande loja de Paris. (N. do T.)

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abortadas que no puderam desabrochar e que murcham por falta de seiva e tambm por falta de sol e de azul... Foi o que explicamos ao Joozinho, que tem apenas dez anos e que, comparando o seu vaso de flores esclerosado com os desenhos audaciosos e livres dos companheiros, sentiu a pobreza da prpria obra. No dia 12 de dezembro, num arranque, Joozinho fez o desenho apresentado abaixo, que o smbolo da partida para o trabalho, para a aventura e para a vida. A publicidade contempornea ressuscitou e desenvolveu os anncios que os artfices penduravam porta das lojas e que falavam uma linguagem compreensvel para todos. Seguindo-lhes o exemplo, poderamos colocar, na fachada das nossas escolas modernizadas, estes dois smbolos e, como nas feiras, escrever somente: Antes Depois

Quero colh-las!Maria est debaixo da cerejeira. Tem, diante dela, o cesto transbordante de cerejas brilhantes e vermelhas. Bastaria mergulhar nele a mozinha para comer at se fartar; mas no est satisfeita! Quero colh-las! Teima em chegar aos poucos ramos simpticos que parecem ter crescido de propsito ao alcance da cobia da criana. E esta no exigente! O menor fruto verde para ela uma delcia. Foi ela quem o colheu! Eu lhe digo, com pena: Olha, Maria, aqui tem uma bonita! Ela protesta mais uma vez, com paradoxal herosmo, estendendo os braos para a folhagem: Quero colh-las! Duplo erro dos pedagogos: Instalamos nossos alunos mais ou menos confortavelmente, sombra da rvore, e pomos ao seu alcance os frutos que escolhemos e colhemos, bem classificados em livros que so obras-primas de cincia e de tcnica. E admiramo-nos quando nossas Marias se afastam desses cestos apetitosos para estender as mos e levantar os olhos para a rvore onde querem colher, vivos mesmo, os frutos preciosos de um conhecimento que s ser alimento sutil enquanto no for prvia e arbitrariamente separado da rvore. E, como no compreendemos aquela insistncia da criana em complicar as coisas que ns mesmos havamos preparado e facilitado, escondemos a rvore, para que a criana veja apenas os frutos do cesto e se satisfaa com eles. Efetivamente, falta de melhor, a criana come ento os frutos do cesto, mas to vorazmente, que no consegue digeri-los; fica to enjoada, que j no se sabe quem acusar, se a criana j sem fome nem sede, ou o mtodo que, por si s, no pde renovar o milagre da rvore cobiada. Infelizes as crianas que sempre s comeram cerejas dos cestos e no conheceram a alegria 27

vivificante de quem se agarra aos ramos e colhe conforme sua necessidade! Infeliz a criana, infeliz o homem farto de conhecimentos, longe da rvore da vida, e que j nem tem energia para protestar: Quero colh-las!

O trabalho que iluminaClaro! Certamente existem enxadas, arados e instrumentos mecnicos to aperfeioados, que cavam o solo e semeiam o gro sem que voc tenha que enfrentar a aridez da terra. Mas, quanto a mim, ao preparar uma sementeira, gosto de peneirar a terra com as mos e apertar as pedras amorosamente, como se alisa o bero macio de um beb. isso; um mesmo trabalho pode ser obrigao ou liberao. No uma questo de novidade, mas de iluminao e de fecundidade. Voc conhece a histria de "descascar batatas", no regimento? H uma arte de que a Escola fez uma tradio para funcionar o mais lentamente possvel, sem no entanto se deixar de trabalhar. stakanovismo ao contrrio. E, quando se trata de pegar a vassoura para varrer as cascas das batatas, pior ainda: todos os homens so manetas. s vezes o prprio cabo que tem de se encarregar da tarefa. O soldado sai de licena e vai ver a mulher. Fazer a sopa, descascar as batatas, at varrer, tudo isso se transforma em prazer de que ele reclama o privilgio. A tarefa da manh transformou-se numa recompensa! Acontece o mesmo na escola, onde certos trabalhos gastos pela tradio sero, amanh, procurados como atividades novas que voc julgar exclusivas. No procure a novidade; a prpria mecnica mais aperfeioada chega a cansar, se no atender s necessidades profundas do indivduo. No nmero cada vez maior de atividades que lhe so oferecidas, escolha primeiro as que iluminam sua vida, as que do sede de desenvolvimento e de conhecimentos, as que fazem brilhar o sol. Edite um jornal para praticar a correspondncia, recolha e classifique documentos, organize a experincia tateante que ser a primeira fase da cultura cientfica. Deixe desabrochar os botes de flores, mesmo que s vezes o orvalho os molhe. Tudo o mais lhe ser dado por acrscimo.

Por que trabalhar?Por que trabalhar? poderia dizer candidamente a criana de hoje... Abro um jornal ou o meu Mickey: por toda parte, aventuras, esporte, competies, discusses ditas filosficas; mas, ento, quem trabalha neste mundo, a no ser os desgraados condenados a isso? Vou cidade: por toda parte, as vitrines falam de luxo, de frivolidades e de brinquedos. Os instrumentos de trabalho escondem-se pudicamente nas ruas excntricas, como se quisessem ser perdoados pela sua presena de pobres, numa sociedade de novos-ricos que se envergonham da sua origem. E a escola s conhece deveres e lies que, para ns, so o que a mquina para os nossos pais: uma sujeio de que nos libertamos assim que temos possibilidade. Apenas os jogos nos entusiasmam e nos fazem esquecer as exigncias desumanas do trabalho. O essencial do que o mundo nos oferece ou nos impe so a bola, os soldados de chumbo, as

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colees de figurinhas e nossas revistinhas... sem contar o cinema, sempre que podemos entrar. Trabalhar! Se algum dia pego clandestinamente a p do pedreiro, a enxada ou o carrinho do jardineiro, o martelo ou o alicate do meu pai, sou perseguido como se tivesse cometido um crime. Escavar grutas, construir castelos, preparar uma sementeira, levantar barragens, esquadrinhar os riachos, montar e desmontar mquinas seriam para mim as mais apaixonantes ocupaes, a tal ponto que esqueceria o Mickey ou o cinema; mas, infelizmente, so fruto proibido: parece que sujamos a roupa, esfolamos dedos e pernas; perdemos a ferramenta... E ento mandam-nos para aquilo que depois chamam de futilidades. O trabalho, para ns, concluiria esta criana, a maldio, a ferramenta que suja as mos, a fbrica que estraga nossa vida, a escravido que nos desonra. S o divertimento nos faz desabrochar e nos libera. Veja as suas vedetes. E, com efeito, poderamos fazer o nosso mea culpa reconhecendo que h erros nos princpios da nossa educao e que , em primeiro lugar, pelo trabalho que se prepara para o trabalho, numa escola e numa sociedade do trabalho.

O trabalho em srieO trabalho em srie, eu o conheo bem. No foram, como se poderia acreditar, os fabricantes de automveis que o inventaram, mas vocs, pedagogos, e ns, pastores. Eu sou tambm um grande empreendedor de sries. Os pequenos cordeiros que nasceram no Natal e que so to originais e to caprichosos, cada um com o seu carter e a sua personalidade, eu os agarro na Pscoa e os enfio no molde da srie que o rebanho. Observe-os quando esto pastando: j no tm fantasias, j no tm necessidades, a no ser as do rebanho. Engordam normalmente e, quanto a mim, tenho menos trabalho. Acho que melhor assim, pois esto destinados ao matadouro onde os querem grandes e gordos. Se quisssemos torn-los animais inteligentes como os que nos espantam nos circos, teramos naturalmente de proceder de outra forma. Voc tambm recebe as crianas curiosas e saltitantes, cndidas e audaciosas diante do mundo; voc as enfia nos moldes das suas sries, encerra-as em cercados, racionaliza seus gestos e atitudes e, s vezes, parece surpreendido por elas sarem desses moldes como peas intercambiveis, mecanismos bem regulados para entrarem, amanh, na corrente, cabea baixa atrs do nmero que as precede, prontas a obedecerem ao pastor que se imps pelo chicote e pelos ces. Se voc quiser crianas inteligentes, capazes de erguer a cabea e escolher os trilhos, tambm voc ter que proceder de outra forma, saber conservar nos seus cabritos aquele soberano apetite de brotos tenros, aquele delicado instinto que os faz mordiscar prudentemente as ervas suspeitas e aquela exuberncia de vida que parece alimentar-se de primavera e de beleza. S que voc no mais ter esse tranqilo pisar do rebanho que desfila sempre pelos mesmos caminhos. Ter personalidades que se formam e se defrontam, cabeas que se detm a olhar para o cu, vozes que se chamam atravs da montanha. Mas voc sentir tambm o invencvel frmito da vida.

O trabalho em migalhas"O trabalho em migalhas", diz um autor... S h migalhas na nossa vida de educadores. Nem sequer conseguimos reuni-las, o que alis seria 29

intil, pois migalhas de po espremidas e enroladas nunca do mais do que bolinhas, boas apenas para servir de projteis nos refeitrios. Migalhas de leitura, cadas de uma obra que ignoramos e que tm gosto de po que ficou ressecando nas gavetas e nos sacos. Migalhas de histria, umas bolorentas, outras mal cozidas, e cuja amlgama um problema insolvel. Migalhas de matemtica e migalhas de cincias, como peas de mquinas, sinais e nmeros que uma exploso tivesse dispersado e que nos esforamos por montar, como um quebra-cabea. Migalhas de moral, como gavetas que mudamos de lugar, no complexo de uma vida de infinitas combinaes. Migalhas de arte... Migalhas de aula, migalhas de horas de trabalho, migalhas de ptio de recreio... Migalhas de homens! Perigos de uma Escola que alinha, compara, agrupa e reagrupa, ausculta e avalia essas migalhas. Urgncia de uma educao que evita a exploso irreparvel e faz circular um sangue novo na funo viva e construtiva da pedagogia do trabalho.

No faa trabalho intil de soldadoVoc conhece a histria, que no piada, da tarefa de cinco homens e um cabo, que tinham por misso transportar, para a outra extremidade do ptio, um monte de cascalho incmodo. Certamente, preciso entrar em ao, e nunca depressa demais, pois a tarefa no urgente. Um quarto de hora depois, a equipe estava pronta para a obra, se que no caso se pode falar de equipe e de obra: um soldado empunha os varais do carrinho de mo onde se sentar quando estiver cansado; outro cuida da roda e se sentar em cima dela para manter o equilbrio. E os homens munidos de p? Vigiam o sargento e, quando ele olha, opa! uma pazada de cascalho... "Saiam da", atreve-se a dizer um recruta espertinho. "Eu sozinho fao mais que cinco equipes juntas..." "Nada disso" respondem os homens experientes. "No estamos na vida civil e voc no pago por pea. Vai incomodar todo o mundo: os colegas que no esto com vontade de trabalhar, o cabo que tem de nos vigiar aqui at a sopa, e o sargento que dir, muito srio, quando voc acabar: 'Faa de novo... Ponha de volta o monte de cascalho onde ele estava!' Quando voc estiver em casa, poder trabalhar o dobro; aqui trabalho de soldado. No tem finalidade nem razo de ser. feito para aborrecer os militares e fazer acreditar aos contribuintes que na caserna necessria uma mo-de-obra abundante e especializada." Por que preciso, que lstima!, que a tcnica escolar se parea tantas vezes com esse trabalho de soldado? Teremos deslocado inutilmente aqueles montes de cascalho de que os manuais esto cheios? Teremos feito aqueles exerccios que no tm outra funo alm de escurecer cadernos e preencher, com disciplina, as horas desesperantes que nada anima nem alimenta? Ouvimos a frmula fatdica: Faa de novo! Os soldados e os cancioneiros riem para valer do transporte do cascalho, do descascar batatas, do n

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da gravata ou da posio do bon. verdade que os chefes pensam, talvez seriamente, que se trata de elementos determinantes da preparao do soldado para a sua funo de combatente. Ainda no se teve a idia de fazer canes satricas a respeito dos exerccios desesperantes da escola, dos traos vermelhos nos cadernos e daquele ritmo uniforme e lento que faz a classe marchar a passo fsica e intelectualmente com ordem e disciplina. Para manter essa ordem e essa disciplina, a escola deve lutar contra as crianas rpidas demais ou conscienciosas demais, contra aquelas que acabam to depressa os deveres que, decentemente, no se pode obrig-las a repeti-los. H uma lei do meio escolar. Quem tenta viol-la, faz desmoronar todo o edifcio. Voc deve correr esse risco. Examine lealmente cada uma das atividades que voc prev para a sua classe. Impea os trabalhos de soldado e, se for obrigado a eles provisoriamente, tenha presente que so apenas trabalhos de soldado, sem finalidade nem resultado. Galope, galope! Entusiasme seus alunos para irem cada vez mais depressa e cada vez mais longe. Basta voc prever atividades suficientes felizmente, h muitas , para alimentar a necessidade de criar e de realizar. Trabalho de soldado, eis o inimigo! Valorizar Trabalhar "seriamente"... "Fazer coisas bonitas"... "Para servir"... So estas as grandes preocupaes da criana em contato com a vida. Termina o seu castelo de areia coroando-o com um ramo de flores. Nos seus dedos de mgico, agita ao sol um prisma que d ao mundo as cores maravilhosas do arco-ris. A prpria folha de papel que a criana acaba de animar com seus desenhos, aguarda a paleta caprichosa do pintor para adquirir vida e esplendor, como se a criana precisasse sempre revestir a sua obra com o toque decisivo que faz as coisas mais belas do que so. Mas voc se contenta em bater o compasso para nada, mandar copiar textos que voc marca sem escrpulos e que voc risca autoritariamente de vermelho cor de raiva. E voc acha absolutamente natural a hecatombe final, para recuperar a argila plstica das obras-primas modeladas com tanta seriedade e tanto amor. Ser que o pedreiro trabalharia com ardor e com gosto se lhe destrussemos sistematicamente a casa que acabou de fazer e sobre a qual colocou, com legtimo orgulho de construtor, a bandeira simblica? Ser que o campons retomaria o arado, se lhe ceifassem o trigo ainda verde, no acidental mas metodicamente, e se abatessem as rvores que plantou? Neste comeo de ano, tente esquecer os ensinamentos desumanos da escolstica, escute as exigncias normais da vida, valorize a obra mais humilde do mais humilde dos seus alunos! Que cada trabalhador e a criana tem as preocupaes e a dignidade do trabalhador tenha conscincia, a cada momento, de ter posto uma pedra no seu edifcio e ter acrescentado ao seu patrimnio um pouco de eficincia e um pouco de beleza. Valorize o texto informe, dando-lhe a perenidade do majestoso impresso; valorize, pelas cores e pela apresentao, os desenhos que forem dignos de uma coleo ou de uma exposio; esmalte e coza as louas que, na sua forma definitiva, podero desafiar os sculos. Ento voc sentir o orgulho da obra bem-feita animar e apaixonar os seus jovens operrios, e far nascer e se impor essa grande dignidade do TRABALHO, que ns tambm desejaramos escrever, em letras definitivas, na fachada das nossas modernas escolas do povo.

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No corao do homemO trabalho como o corao social do homem. No dia em que se cansar, produzindo uma dor fsica ou moral que se vai aprofundando pouco a pouco, porque um erro ou um acidente atrapalharam a funo normal do mecanismo. Acontece, claro, que para compensar os desgastes do esforo fsico ou reagir a um perigo sbito o corao bate mais forte, como um motor acelerado em comeo de subida; mas logo retoma o seu ritmo numa espcie de bem-estar na calma readquirida. O trabalho tambm precisa, muitas vezes, de uma poderosa tenso para superar o obstculo a ser vencido e atingir o objetivo. Depois vm o repouso e o sono, como fase benfica da ao. Se aps o esforo o corao no retoma o seu ritmo, se o sangue como gua lamacenta se demora nos vasos, o mdico dir: sobrecarga... Temos de reduzir o esforo que lhe pedimos, repousar, ou at tentar uma sangria solues provisrias que no poderiam corrigir a evidente perturbao do mecanismo. Se lhe afirmam hoje: "A criana est sobrecarregada... preciso reduzir os programas", no porque voc exigiu trabalho demais, mas porque voc perturbou uma funo natural, porque voc apresentou como trabalho exigncias que se incorporaram mal s nossas necessidades vitais, porque voc fez o motor girar em vo, com risco de entupi-lo, ou porque voc o alimentou com um combustvel impuro e oxidante. Ento, deixa de haver repouso porque j no h cansao mas ferida, pois surgem rachaduras que voc j no pode vedar e que podem tornar penosos e obsessivos qualquer ao e qualquer esforo. preciso um verdadeiro acmulo de falsas manobras para cansar um corao que trabalha to suavemente que quase nem o sentimos bater. necessrio tambm um perigoso acmulo de erros, para suscitar na criana o receio e depois a averso por uma funo to natural e nobre como o trabalho. Reponha esse trabalho no circuito da vida. D-lhe uma finalidade e um sentido. Que ele alimente e impulsione o comportamento natural, que se situe no ncleo do seu destino individual e social. Ser preciso, talvez, ordenar os programas na nova empresa, equipada de espao, de instrumentos, de arte e de luz, sem contar a alma e o ideal que so o sol de tudo isso. Mas precisamos mais do que discursos para devolver ao trabalho a sua permanncia e a sua dignidade.

O tempo das farndolasQuando ser, ento, que os adultos deixaro as crianas caminharem a passo de criana? Quando ser que vero com olhos de crianas as crianas viverem? Ns somos os rios domados na plancie; as crianas so as torrentes ainda impetuosas que no correm nem segundo os mesmos ritmos, nem com o mesmo impulso. Ns somos os animais cansados para quem o prximo instante j est inscrito no presente e que, no seu passo uniforme e ordenado, encaminham-se para o curral ou para o bebedouro; as crianas so os cabritos cabriolando pelos caminhos, e os potros impacientes por avaliar a agilidade das pernas delicadas, e para os quais a sabedoria saltitar, cabriolar e pular. Ns ficamos, por um tempo longo demais, em conversas interminveis, remoendo os problemas do

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passado, que nem sempre so os do dia seguinte; as crianas vo com a vida que caminha, e ns somos tentados a ret-las, incessantemente, pois a corrida delas nos exaure e o seu dinamismo nos atordoa e cansa. Aquelas que nos escapam para empunhar a vida avidamente e domin-la so as mesmas que, ultrapassando as nossas esperanas e os nossos ensinamentos, se obstinam em farandolar, em vez de seguir comportadamente os patamares metdicos que pretensiosamente arranjamos na grande aventura da vida. So os jovens ases do pedal, do ringue ou do estdio que, num momento, atingem uma celebridade que nos irrita por ser fruto daquela ultrapassagem; so os artistas e os poetas, aqueles potros escapados da cocheira que, apesar dos nossos apelos, partem, cabelos ao vento, conquista de horizontes desconhecidos. So eles que a juventude admira, deifica e segue, e no esses cabritos e esses potros desafortunados que, em nossas escolas, transformamos em animais domsticos, prematuramente dceis e sensatos e que fazem jus ao pastor. Voc dir que preciso dom-los. A vida encarrega-se disso. Pelo contrrio, aproveite o tempo das farndolas para fazer com eles algumas caminhadas e, nesse contato, armazenar entusiasmo e animao.

Engrenar na vida claro que a sua mquina escolar gira bem, melhor mesmo do que a nossa, pois voc previu tudo, j no digo alguns dias antes, mas vrios meses ou vrios anos. A distribuio mensal das disciplinas de acordo com os programas afixada, segundo o regulamento, direita do quadro; esquerda, a utilizao do tempo, qual voc obedecer rigorosamente. A nica coisa que voc tem a fazer instalar a mecnica e virar as pginas. De passagem, o inspetor poder pedir-lhe o dirio de classe, minuta exterior dessa mecnica; ento, ele ficar tranqilo, pois tudo estar acontecendo, de fato, segundo as normas. Essa mecnica, porm, tem um inconveniente: o professor, o inspetor e o Estado digamos antes: o Estado, o inspetor e o professor , com efeito, previram tudo, exceto que essa mecnica no engrena na complexa mecnica humana. O motor gira bem. D o seu rendimento mximo de tantas voltas por minuto no caso, de tantas lies por manh , mas s muito por acaso se consegue engrenar. Ento a mquina gira em vo. Ronca ou ronrona segundo o ritmo, ou se acelera e aquece. Mas a mecnica humana no treinada s raramente se atm minuciosa organizao escolar. A maioria das vezes mantm-se imvel e aguarda... a sada. s vezes e mesmo freqentemente gira em sentido contrrio, sob o impulso da vida; o mesmo efeito se produz quando, depois que o carro adquire uma certa velocidade, desastradamente engatamos marcha r, em vez de engatarmos a terceira, que serviria para suavizar e harmonizar o rolamento: rangidos, grimpamentos, gritos, dentes quebrados e avarias. Voc ter de levar em conta, certamente, imperativos que por tradio, por exigncias de organizao e, s vezes, tambm por burocratismo animam uma mecnica que, de fora, nos impe normas e um ritmo; mas voc nada far de vlido, nunca ultrapassar os emperramentos e os erros da escolstica, se no conseguir a engrenagem indispensvel com o elemento humano que voc tem de formar, se no atingir uma harmonia de combinaes, uma tcnica de trabalho e de vida que lhe permita preparar no monstros, mas homens.

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V ao encontro da vidaNunca procure instalar-se no passado. V ao encontro da vida. No h maior alegria do que construir a prpria casa, arranj-la, enriquec-la, embelez-la, para fazla sua. Todos ns guardamos a nostalgia das cabanas de pedra ou de galhos que construamos quando vigivamos os nossos animais na orla dos bosques, dos castelos de areia na margem do rio, ou dos mundos criados outrora com a argila dos barrancos. E no tenhamos iluses: por sentirem essa mesma nostalgia que os adultos se orgulham de armar barracas em seus passeios, mesmo e sobretudo se o colcho for duro, se ameaar chover, se o saco for pesado. O que voc precisa, neste incio de outubro, no de classes burguesamente instaladas, como esses apartamentos annimos que nos impem a banalidade dos seus arranjos padronizados, mas de amplos horizontes tcnicos, sociais e pedaggicos, acessveis ao trabalho, ao sonho e vida. Uma prefeitura generosa talvez tenha julgado que estava procedendo bem preparando para voc uma classe onde tudo foi previsto: as carteiras enceradas e alinhadas, no podendo ser mudadas de lugar, quadros nas paredes ou talvez, o cmulo da riqueza, frisos pintados por algum grande artista. Os tinteiros estaro cheios de tinta e os livros novos, cheirando ainda impresso, estaro empilhados na sua mesa. Tudo est no lugar, pronto para a partida; mas falta o convite para a viagem. Pea, antes, que deixem com voc a responsabilidade pelas bagagens, que lhe forneam o material e os recursos para voc arranjar a classe, no decorrer do ano, para que ela seja bem sua, como a casa que voc construiu pedra por pedra, e onde cada recanto tem a sua histria. Esvazie impiedosamente gavetas e estantes de tudo o que no for instrumento de trabalho; reserve as paredes para ornament-las, durante o ano, segundo a prpria inspirao: pastas, desenhos, cadernos so apenas uma promessa, o cesto espera de uma colheita, essa colheita que lhe ser possibilitada pelos impressos, pelas trocas interescolares, pela prpria vida, essa respiga que as mozinhas lhe traro todos os dias ao estenderem os seus feixes para voc. O que nos encanta e nos entusiasma nunca o passado, por mais rico que seja, mas o futuro que encerra em si mesmo a criao, a aventura e a vida. A escola nunca uma parada. a estrada aberta para os horizontes que se devem conquistar. V ao encontro da manh.

O nosso trabalho nos unirO que eu acho dessa diviso que mais uma vez vai esgotar nossas foras, aguando os malentendidos e desencorajando as veleidades de ao dos fracos e dos indecisos? Quando os rios avanam, serpenteando penosamente atravs da plancie, demoram para se juntar porque, para eles, o menor brao de terra obstculo intransponvel; quando, porm, correm impetuosos da montanha, arrastando, nos seus remoinhos espumosos, troncos de rvores ou pedras que se chocam violentamente, ento nada os detm na corrida para outros rios. Ao se juntarem, aumentam a prpria fora. Se tentamos desviar-lhes o curso, refluem por um instante e depois voltam carga, arrastando a ridcula barragem. So necessrios apenas o declive e o impulso, sem os quais a corrente ser um intil charco estagnado.

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A nossa corrente comum o TRABALHO. Os educadores tm a vantagem insigne de poderem dedicar-se a uma tarefa que a tcnica humana ainda no despojou dos seus atributos naturais. A torrente est l, diante deles, ribombando e se agitando. E por lhe opormos diques cedo demais que se imobiliza na plancie. Depende apenas de ns v-la novamente descer os declives e descer com ela, marretando obstculos a serem derrubados, agarrandonos por vezes s razes da escarpa a fim de moderarmos impetuosidades, habituando-nos ao ribombar e ao ritmo das guas que correm, invencveis, para a fertilidade e a vida. Se nos soubermos recolocar nessa corrente, nem sequer teremos tempo de ver, nas margens, os eternos pessimistas de braos erguidos ao cu, prodigalizando advertncias desesperadas diante do espetculo do nosso esforo comum e harmnico. No se retire para a ribanceira, onde o musgo e o limo lentamente o cobriro. Siga audaciosamente a torrente da vida.

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4. A pedagogia de casaca

A pedagogia de casaca preciso escolher. Se voc insiste realmente na pedagogia autoritria; se voc quer que a criana escute de boca aberta, sem crtica nem objeo, o que voc lhe explica durante o dia todo, que lhe obedea sem recriminar, no esquea de vestir-se adequadamente. E a forma o colarinho engomado que o obriga a uma atividade altiva, mesmo que o impea de respirar; o chapu coco ou a cartola que do ao funcionrio um ar mais importante, e a casaca que os homens do povo, no comeo do sculo, chamavam to irrespeitosamente de asas de barata. No d risada: um deputado ou um ministro com traje de cerimnia, punhos engomados, sapatos de verniz e cartola mais imponente que os atuais parlamentares de camisa Lacoste ou mesmo de bermuda. Diante dos primeiros, tiramos o chapu naturalmente, tal como diante dos militares fazemos continncia; com os segundos temos vontade de dizer: camaradas! A disciplina do exrcito se modificar profundamente no dia em que abolirem os uniformes, atenuarem a etiqueta, os dourados e prateados forem substitudos por gales incolores. E uma classe tradicional, dir