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1 O desmanche em Inferno Provisório por Wellington Augusto da Silva Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito para a obtenção do Título de Doutor em Ciência da Literatura (Teoria Literária) Orientador: Prof. Dr. Luis Alberto Nogueira Alves Faculdade de Letras da UFRJ Julho de 2013

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O desmanche em Inferno Provisório

por

Wellington Augusto da Silva

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Ciência da Literatura da

Universidade Federal do Rio de Janeiro como

requisito para a obtenção do Título de Doutor em

Ciência da Literatura (Teoria Literária)

Orientador: Prof. Dr. Luis Alberto Nogueira Alves

Faculdade de Letras da UFRJ

Julho de 2013

Page 2: 1 O desmanche em Inferno Provisório · 1. Literatura Brasileira. 2.Ficção contemporânea. 3. Luiz Ruffato. Silva, Wellington Augusto da II. Universidade Federal do Rio de Janeiro,

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Silva, Wellington Augusto da.

O desmanche em Inferno Provisório / Wellington Augusto da Silva. – Rio

de Janeiro: UFRJ/ FL, 2013.

ix, 147f.: 31 cm.

Orientador: Luis Alberto Nogueira Alves

Tese (doutorado) – UFRJ/ Faculdade de Letras / Programa de

Pós-graduação em Ciência da Literatura (Teoria Literária), 2013.

Referências Bibliográficas: f. 145-147.

1. Literatura Brasileira. 2.Ficção contemporânea. 3. Luiz Ruffato.

Silva, Wellington Augusto da II. Universidade Federal do Rio de

Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-graduação em

Ciência da Literatura III. O desmanche em Inferno Provisório.

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O desmanche em Inferno Provisório

Wellington Augusto da Silva

Orientador: Professor Doutor Luis Alberto Nogueira Alves

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura

da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos

necessários para a obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura (Teoria

Literária).

Examinada por:

_____________________________________________________________________

Presidente: Prof. Doutor Luis Alberto Nogueira Alves – UFRJ

_____________________________________________________________________

Prof. Doutor André Luiz de Lima Bueno – UFRJ

_____________________________________________________________________

Prof. Doutor Homero José Vizeu de Araújo – UFRGS

_____________________________________________________________________

Prof. Doutor João Roberto Maia da Cruz– FIOCRUZ

_____________________________________________________________________

Prof. Doutor Victor Manuel Ramos Lemus – UFRJ

SUPLENTES:

_____________________________________________________________________

Prof. Doutora Danielle dos Santos Corpas – UFRJ

_____________________________________________________________________

Prof. Doutor Godofredo de Oliveira Neto – UFRJ

Rio de Janeiro

Julho de 2013

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RESUMO

SILVA, Wellington Augusto da. O desmanche em Inferno Provisório. Rio de Janeiro, 2013.

Tese (Doutorado em Ciência da Literatura) - Faculdade de Letras, Universidade Federal do

Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

Este trabalho tem por objetivo analisar Inferno Provisório, do escritor brasileiro

Luiz Ruffato. O estudo procura demonstrar a unidade dos cinco volumes, sob sua

aparência fragmentada, relacionando essa organização às últimas transformações

neoliberais. Esse ciclo de modernização configura o derrotismo programático, uma

forma peculiar de realismo urbano e contemporâneo.

Palavras-chave: Literatura Brasileira. Ficção contemporânea. Luiz Ruffato.

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RESUMEN

SILVA, Wellington Augusto da. O desmanche em Inferno Provisório. Rio de Janeiro, 2013.

Tese (Doutorado em Ciência da Literatura) - Faculdade de Letras, Universidade Federal do

Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

Este trabajo tiene como objetivo analizar el Inferno Provisional del escritor Luiz

Ruffato. El estudio trata de demostrar la unidad de los cinco volúmenes bajo sus

miradas fragmentadas, relativa a la organización a sus últimas transformaciones

neoliberales. Este ciclo de modernización establece el derrotismo programática, una

forma peculiar de realismo urbano y contemporáneo

Palabras-clave: Literatura Brasileña. Ficción Contemporánea. Luiz Ruffato

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SINOPSE

Estudo sobre o ciclo de romances Inferno Provisório de Luiz Ruffato, traçando

correspondências entre a estrutura da obra e as consequências neoliberais no Brasil.

Essa relação configura o derrotismo programático: um tipo peculiar de realismo urbano

e contemporâneo.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ao meu orientador Luis Alberto, pelo trabalho, desafio e confiança.

Aos colegas do Colégio Técnico da UFRRJ. Em especial, à equipe de Língua

Portuguesa e Literatura Brasileira que, em meio a todas as tormentas, disponibilizou

tempo para a conclusão deste trabalho.

À Capes, pelo financiamento, sem o qual as dificuldades aumentariam.

Às servidoras técnico-administrativas Pós-Graduação da Faculdade de Letras, Fátima e

Vilma, pelas portas que abriram e pela gentileza no desespero.

A André Bueno, Homero Araújo e Victor Lemus, Ivone Daré, pelas observações e

amizade.

Ao Grupo Formação pela possibilidade de amadurecimento.

Aos meus amigos e meus camaradas, que entenderam minhas impossibilidades.

Aos meus pais e minha irmã que me viram caminhar por essa longa empreitada.

À minha sempre querida Danisa, sentido profundo de amor e companheirismo:

fundamental, incentivo e força quando tudo parecia faltar. Para ela, todas as minhas

palavras de agradecimento ainda são poucas.

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SUMÁRIO

1. Introdução 09

2. Estado da Crítica 16

3. O derrotismo programático 21

4. Composição e estilo 33

5. Condições objetivas 43

6. Questões gerais 52

6.1. Mamma, son tanto Felice 63

6.2 O mundo inimigo 81

6.3 Vista parcial da noite 97

6.4 O livro das impossibilidades 114

6.5 Domingos sem Deus 124

7. Conclusão 140

8. Referências 145

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Introdução

O presente estudo sobre Inferno Provisório, do escritor mineiro Luiz Ruffato,

analisa a obra e procura situá-la no panorama da ficção brasileira. Na origem desse

trabalho está o interesse pelas narrativas contemporâneas que representam as camadas

pobres nacionais.

O projeto literário do artista, inaugurado em 2005 e concluído em 2011, é

composto por cinco volumes. Não só por sua extensão, o ciclo se integra ao panorama

da ficção mais recente, de modo particular. Situado em relativa contracorrente dos

discursos sociais hegemônicos, do Brasil moderno e integrado, ele procura inovação

temática e formal em sua narrativa de trabalhadores e pobres em geral. Além disso, a

particularidade dessa obra também está na perspectiva histórica que a organiza.

Assim, Inferno Provisório participa daquele longo ramo do sistema literário

brasileiro. A representação dos pobres tem larga fortuna tanto em obras artísticas como

críticas. Ao selecionar os dramas do cotidiano popular, a literatura de Ruffato também

expõe o contexto da modernização social e parte das contradições do progresso

capitalista brasileiro na metade final do século XX.

Acreditamos que o ciclo de romances possui certa representatividade, sobretudo

pela formalização daquela matéria. Em dada medida, fazem parte dessa condição as

estratégias que constituem a obra como um projeto de intervenção no panorama

cultural. A primeira é a identificação, segundo o escritor, de uma lacuna histórica da

literatura nacional1. Ruffato afirma a ausência da narrativa de operários e trabalhadores

em geral. A partir disso, a segunda ação. O autor se impõe a tarefa de preencher esse

espaço com uma obra que se queira “a história do proletariado brasileiro”. Portanto, um

dos nossos objetivos é verificar que sentido essa obra literária confere à representação

dessas camadas, uma vez que o romance ambiciona ser “não-burguês”.

Outro ponto da intervenção cultural está no modo como Luiz Ruffato constrói

sua carreira artística. Antes da publicação do primeiro volume do ciclo, em 2005, a

carreira do escritor inclui narrativas, poemas e ensaio. As bases das narrativas reescritas

1“Fui programático também na descoberta do que escrever. E comecei a pensar o seguinte: “Bom, eu

podia escrever sobre o que eu conheço. A literatura brasileira não tem uma tradição classe média baixa ou

da operária.” Disponível em: http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/literatura-com-um-projeto-entrevista-

com-heloisa-buarque-de-holanda/

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para Inferno Provisório são: Histórias de Remorsos e Rancores, de 1998 e (os

sobreviventes) de 2000, ambos sob a rubrica de contos. Em 2001, há o lançamento do

bem aclamado Eles Eram Muitos Cavalos. No ano de 2000 são publicados os poemas

de As máscaras singulares e o ensaio Os Ases de Cataguases, contribuição para a

história dos primórdios do Modernismo. Já com Inferno Provisório iniciado, surge em

2007, o romance epistolar De mim já nem se lembra, de forte teor biográfico. E, por

fim, no ano de 2009, Estive em Lisboa e lembrei de você, livro integrante da coleção

Amores Expressos, da editora Companhia das Letras.

Paralelamente, o autor organizou diversas antologias de contos e poemas: de

escritoras recentes no cenário literário, (25 mulheres que estão fazendo a nova literatura

brasileira, de 2004 e + 30 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira, de

2005), sobre os temas do poder e política no Brasil (Fora da ordem e do progresso,

também de 2004), homossexualismo (Entre nós, de 2007), a questão do negro (Questão

de pele, 2009). Interessa aqui apenas registrar a profícua relação que o escritor tem com

o mercado editorial enquanto produz seu ciclo de romances. Notamos aqui uma sincera

preocupação em lançar luzes sobre questões vulgarmente tidas como as das minorias. O

vértice dessas últimas publicações é marca de divulgação de obras/autores

desconhecidos do grande público, sugerindo com isso um alargamento do chamado

cânone literário.

Dentro desse amplo espectro, escolhemos Inferno Provisório por acreditar que

esta seja a opus magnun de Ruffato. Esse texto nos parece mais bem acabado (ainda que

com desníveis), no que diz respeito às variações estilísticas e aos procedimentos

construtivos, assim como na proposta formal. Nessa obra, por fim, podemos observar

uma noção acumulativa no trabalho literário. Como afirmamos mais acima, estão

reunidas e ressignificadas experimentações anteriores no interior do ciclo de romances.

Desse modo, acreditamos haver aqui um valioso esforço de racionalização da

escrita e observação política. Simultaneamente, o romance se dedica a refinar seus

modos expressivos para fabular a matéria retirada do cotidiano dos pobres. E procura

fazê-lo com o fôlego histórico, produzindo assim uma verdadeira cartografia literária,

de muitas direções, para seus personagens.

O problema da figuração dos pobres, num contexto em transição entre ciclos de

modernização social, encontra alguns impasses na obra de Ruffato. A questão central a

ser verificada é, portanto, a particularidade de suas soluções literárias. Em termos

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concretos, a reconstrução daquela experiência passada de classe (que, um dia, foi a do

autor) exibe um ponto de vista radicalmente contemporâneo.

A narrativa está impregnada pelo apaziguamento de contradições, estéticas e

sociais. Vista dessa maneira, a obra que apaga polêmicas inerentes ao período que

aborda, vale dizer aquelas que giram em torno de reforma e revolução, cultura e

política, civilização e barbárie, por exemplo. Acreditamos que esse apagamento seja

um sintoma relevante da atualidade, e que isso seja a forma privilegiada pela obra ao

narrar o processo de ascensão e queda do nacional desenvolvimentismo. Assim, o

romance é problemático por representar, com ângulo homogêneo, aquele ciclo

contraditório de modernização nacional.

O conjunto de narrativas, então, se constitui como uma teleologia da mobilidade

social e de suas correspondentes ilusões, ou pelas vias da educação formal ou pelo

consumo. O caráter da intervenção, aludido acima, se completa com o vetor único

conferido à modernização. Desse modo, Inferno Provisório se credenciaria como arte

autêntica a preencher a lacuna histórica, e sua cidadania literária seria chancelada pela

biografia e pela formulação qualificada de seu autor.

Considerando que a organização da matéria popular se dá por meio de um amplo

painel fragmentário e de fôlego histórico, a obra nos oferece duas perguntas: a) o

conjunto de livros, sob a rubrica Inferno Provisório, possui unidade profunda, para além

da sua aparente fragmentação? b) De que modo eles se relacionam com o seu contexto

de produção, vale dizer o de implementação do neoliberalismo?

O propósito deste trabalho é demonstrar a peculiaridade do ciclo de romances ao

internalizar o desmanche neoliberal. Isto é, procuramos indicar que a obra projeta esse

ritmo sobre o passado nacional-desenvolvimentista. Para isso, propomos o derrotismo

programático como estilização de um comportamento social das camadas pobres

brasileiras. Articulado a ele, notamos, no plano das relações entre personagens, uma

lógica de adaptação frente às misérias narradas. Assim, sugerimos que essa estrutura

artística seja resultado de práticas sociais mais amplas, que André Singer estudou a

respeito do subproletariado2.

2Trata-se do estudo Os sentidos do lulismo (2012) feito pelo cientista político.

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Para compor esse dispositivo literário, Inferno Provisório resgata, em nível

aparente, mas esterilizando, soluções literárias próprias do debate nacional sobre

“realismo e vanguarda”, tal como lido nos anos de 1960-1970. O modo de representação

da obra constitui um arranjo inorgânico de narrativas. Propomos essa inorganicidade no

romance devido à sua recolha de traços típicos tanto da Vanguarda quanto do Realismo.

Da primeira, a ênfase nos procedimentos de montagem e fragmentação, do segundo, a

pesquisa pelo processo histórico. Além disso, o uso do termo é significativo, pois é com

essa noção que Schwarz caracteriza a sociedade brasileira em “Os sete fôlegos de um

livro”: algo que não chega a se formar plenamente e já está se desmanchando.

Portanto, pretendemos aprofundar a investigação dessa estrutura como um tipo

de realismo literário, programado historicamente pela derrota das políticas de integração

nacional-desenvolvimentista e pela ascensão do neoliberalismo.

A representatividade da obra estudada está no teor estético e político do

derrotismo programático, sendo isso tradução também de um desajuste entre o conteúdo

e a sua expressão. O romance explica o primeiro como resultado de difíceis

acomodações ao cotidiano que se moderniza. Ao passo que o segundo retoma o debate

sobre a atualização e adequação das formas artísticas. Sugerimos que a estrutura

inorgânica do romance indica descompasso profundo, devido à não integração entre a

matéria narrada e os recursos de fragmentação e encurtamento da distância estética.

Isto exposto, está aí a qualidade da resposta que a obra dá à experiência dos

pobres, na longa trajetória até a sociedade de consumo. Ao internalizar aquela conduta

de inércia pública e política, o ciclo revela uma contradição significativa: reconhece as

mazelas desse amoldamento à lógica mercantil, mas naturaliza as crueldades do

capitalismo. Por conseguinte, não aponta para a crítica totalizante.

Entre os estudos sobre essa obra, verificamos uma lacuna e nos propomos, como

já apontado: a) interpretar Inferno Provisório, em relação ao seu contexto de produção;

b) procurar a articulação das narrativas, dentro dos livros e no arranjo geral. Desse

modo, cremos que a relevância do estudo seja demonstrar como a literatura de um autor

contemporâneo reinterpreta uma etapa importante do passado nacional, ao propor

soluções determinadas pelo ciclo neoliberal para as questões nacional-

desenvolvimentistas. É nesse sentido que afirmamos ser o derrotismo programático uma

forma peculiar de realismo.

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Com base nessas duas linhas de investigação, supomos a obra como uma mescla

de rotinização e experimentação de procedimentos. Para tanto, é fundamental o recuo

aos anos de 1960 e 1970, porque nesse período se consolida uma nova hegemonia

política e ideológica. Os contornos ditados por ela caracterizam estruturalmente a obra

de Ruffato.

Apresentemos, em linhas gerais, o esquema histórico a ser detalhado. A

modernização social das décadas de 1950-1960 se alimentou da luta contra o

subdesenvolvimento. Ao lado dessa pauta, o forte nacionalismo contaminava o

ambiente ideológico e estético, do qual resultaram grandes renovações para a cultura

brasileira. O acirramento produzido por aquele eufórico ciclo de atualização encontra

um divisor no golpe civil-militar de 1964. A partir daí, o nacionalismo se assume

francamente conservador na esfera política, com um programa de reajuste social rumo à

subordinação externa. Importante sinalizar que mesmo as possibilidades abertas pelos

governos anteriores e progressistas, de Juscelino Kubitschek e de João Goulart, não

foram sem contradição. De todo modo, o conjunto de luta contra o imperialismo

(econômico e cultural) e de mobilização nacionalista foram opções sociais ceifadas em

1964 e dizimadas em 1968.

Podemos ler as consequências da derrota do nacionalismo desenvolvimentista (à

direita e à esquerda), com os ensaios dos fins da década de 1990 escritos pelo mesmo

Schwarz, em Sequências Brasileiras3. Além da formulação do crítico acerca do sistema

em desagregação e das profundas transformações daquela década, somaremos uma

sugestão de método, retirada de “Verdade Tropical: percurso de nosso tempo” 4.

Ao lado dos estudos de Roberto Schwarz, retomaremos algumas observações de

Antonio Candido em “A nova narrativa”. Acreditamos que esse conjunto nos fornece as

pautas do debate estético e político nacional, ao mesmo tempo em que nos ajuda a

verificar a ambivalência com que Ruffato o elabora, anos mais tarde.

A segunda linha de trabalho exige uma revisão bibliográfica. Nela, pudemos

constatar dois grupos de interpretação. Como pudemos atestar, a obra é elogiada,

majoritariamente, pelo que alguns críticos chamam de “inventividade formal”. Para

3Referimo-nos especificamente a “Fim de Século”, “Nunca fomos tão engajados” e “Sete fôlegos de um

livro”.

4SCHWARZ, Roberto. Martinha versus Lucrécia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

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concluir isso, esses intérpretes terminam por dissolver os nexos da literatura com a

experiência concreta. Além disso, há nessa recepção crítica uma flagrante contradição.

Esse campo de leitura procura respaldar sua interpretação nas opiniões autorais, ao

mesmo tempo em que apaga o que para o autor é muito caro. Sua posição progressista

afirma sua literatura como: “um convite para repensar a história do Brasil nos últimos

50 anos”5.

Naquele primeiro campo de leituras percebemos um privilégio dos aspectos

técnicos da obra e uma visão testemunhal da matéria narrada. Assim, é gerada uma

certa divisão entre forma e conteúdo. Se esse tipo de leitura enfatiza procedimentos e

técnicas da obra, também transforma o escritor em um porta-voz dos silenciados por um

progresso intrinsecamente desumano. De todo modo, a avaliação majoritária da

literatura de Ruffato nos sugere um impasse irresoluto, por conceber conteúdo

(atrasado) em oposição à forma (avançada).

O outro grupo lê a obra como estilização da precariedade dos pobres na

sociedade brasileira. A forma fracionada do romance teria boa produtividade por

dramatizar a situação contemporânea dessa camada. Justificando a composição, estaria a

voz narrativa engajada com a experiência dos personagens interioranos de Minas

Gerais. Contudo, a obra de Ruffato escaparia, por um lado, da estrutura clássica do

realismo burguês, mas cairia, por outro, nos ajustamentos à indústria cultural.

Feito isso, a divisão de capítulos de nosso trabalho. Como indicado, dedicaremos

o primeiro ao levantamento dos estudos críticos representativos, na forma de uma

revisão bibliográfica. A fim de construir uma plataforma com a qual dialogaremos para

nossas análises.

O segundo capítulo será dedicado ao que chamamos de derrotismo

programático, o mecanismo capaz de dar coerência aos vários aspectos do romance.

Nessa parte, serão reservados comentários que justifiquem esse dispositivo literário

como uma leitura contemporânea sobre a vida daquela camada social, no contexto de

meio século.

Ao capítulo terceiro, propomos uma análise estilística da prosa de Ruffato.

Buscamos verificar em que medida a construção íntima de sua composição responde às

5Entrevista disponível em http://rinaldofernandes.blog.uol.com.br/arch2008-04-27_2008-05-03.html.

Acesso em 19-03-12

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demandas de seu tempo. Somado a isso, tentamos expor articulações entre a frase

artística, a construção dos enredos e aquele dispositivo formal.

Julgamos que a sobreposição de temporalidades, estilizada pelo derrotismo

programático, exige a reconstrução de seu referente social. Assim, o assunto do quarto

capítulo será uma exposição das linhas mais gerais do processo de ascensão do

neoliberalismo e o correspondente declínio do desenvolvimentismo. Nesse quadro

também estão contidas as repercussões mais gerais do plano da cultura no contexto

brasileiro dessa transição.

Após isso, o sexto capítulo se dedicará ao estudo dos volumes específicos. Este

será composto de uma análise para cada um dos cinco volumes de Inferno Provisório.

Antecedendo às análises individuais, optamos organizar questões gerais que procuram

evidências comuns, por detrás das especificidades de cada livro. Deste modo,

acreditamos ser possível ler os volumes como engrenagens de um arranjo romanesco

total, ainda que inorgânico.

Por fim, retomaremos os dados principais com os quais a ficção dialoga e em

torno dos quais se organiza. Além disso, procuramos exemplificar as transformações

das pautas do debate cultural, no cenário contemporâneo. O objetivo dessa parte é

encerra nossa leitura, articulando-a com o ponto de chegada interno da obra: o quadro

atual brasileiro de integração dos pobres na esfera do consumo financeirizado e

desaparecimento de um horizonte emancipatório,

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Estados da Crítica

O presente capítulo apresenta uma seleção de estudos críticos relevantes sobre

Inferno Provisório. Dessa maneira, o objetivo não é esgotar o debate da crítica

contemporânea, muito menos revisitar todos os modos de leitura, mas tão somente

recuperar algumas orientações, divergentes e complementares, sobre os tipos de

interpretações.

A despeito do amplo arco de orientações teóricas, a revisão bibliográfica aponta

para dois grupos. De um lado, a valorização a-histórica de técnicas e recursos

estilísticos e, em melhores momentos, uma tentativa de desvendar o efeito crítico da

ficção. De outro, percebemos a ênfase na historicização da forma literária construída

pelo escritor. Nesse grupo, destacamos a articulação profunda entre conteúdos e modos

expressivos.

O capítulo será dividido em duas partes: uma para o mapeamento das posições

relevantes e outra para a tentativa de síntese. Sobre a obra de Luiz Ruffato, detectamos

duas orientações críticas diferentes. Uma composta pelas informações contidas em

Ficção brasileira contemporânea6 e O romance contemporâneo e a “vida real” - sobre

a narrativa de Luiz Ruffato7 (2011), respectivamente de Karl Erik Schollhammer e de

Juliana Santini. O segundo grupo se compõe dos ensaios de Jeferson Agostini de Mello,

Permanências do Provisório8 (2006) e De boas intenções o inferno está cheio

9, de

Danielle Corpas (2009). O objetivo deste confronto é buscar pontos de apoio nas linhas

do panorama crítico atual; verificar questões comuns, mesmo estando em atrito:

fragmentação da linguagem, inovações formais do gênero romance e representação dos

pobres.

I

O estudo de K. E. Schollhammer interessa por condensar as linhas dominantes

dos estudos sobre a obra de Ruffato. Em livro recente, há um mapeamento das múltiplas

tendências atuais, enfeixadas pelos seguintes aspectos: a urgência na escrita, o caráter

6SCHOLLHAMMER, Karl Erik. Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 2010. 7Disponível em http://www.abralic.org.br/anais/cong2011/AnaisOnline/resumos/TC0164-1.pdf. Acessado

em 19/03/2012 8Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002006000100016

Acessado em 19/03/2012 9Disponível em: http://www.revistacerrados.com.br/index.php/revistacerrados/article/view/119. Acessado

em: 19/03/2012

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desviante das melhores produções e a questão da referencialidade da prosa. Além disso,

reapresenta um antigo debate sobre o que chama de Novo Realismo, e caracteriza o

escritor mineiro como novo regionalista. O comentário desse crítico é relevante por

apresentar os seguintes aspectos da prosa de Ruffato: a formação social brasileira

marcada por contradições; o fôlego histórico e a estilização da oralidade, típica do

universo narrado.

“Romance contemporâneo e vida real – sobre a narrativa de Luiz Ruffato”

relaciona as transformações do mundo contemporâneo com a fragmentação do gênero

romanesco e da linguagem literária. Além disso, indica ligações com o

experimentalismo vanguardista - o que revelaria a tendência engajada do autor.

Contudo, a ensaísta afirma que os procedimentos de vanguarda têm por missão apenas

desnudar a linguagem como meio de representação. A última ressalva é à caracterização

do engajamento: ação autoral exclusiva ao domínio estético, sem nenhuma outra

articulação.

Em artigo elogioso sobre a ficção do autor de Cataguases, o crítico Jefferson

Agostini de Mello afirma o seu objetivo: verificar os meios pelos quais a narrativa de

Ruffato internaliza traços específicos da formação social brasileira. Segundo o ensaísta,

a obra retira sua força da experiência nacional degradada dos pobres. Esta afirmação

está baseada na relação entre técnica narrativa e conteúdo narrado, cujo efeito é,

segundo o professor, de equilíbrio entre personagem e seu espaço. Nesse movimento,

baseado na análise de uma narrativa do segundo volume, o crítico nota que a vida

desprovida de lirismo da personagem, apresentada pela técnica descritiva detalhista,

confere solenidade e relevância ao espaço e ao indivíduo focalizado. Resultaria daí o

vigor realista e o valor estético da obra.

Consideramos relevante a sugestão crítica que relaciona mobilidade social do

operário interiorano, o processo migratório bem como o valor simbólico da

personagem; tudo isso enquadrado nos marcos do capitalismo nacional dependente.

Sobre a mobilidade social e transição geográfica, parece-nos que esta relação é mais

profunda do que apenas figurativa. Cremos ser isso o próprio chão histórico que

estrutura a obra. Os trabalhadores pobres do interior, atraídos pela metrópole,

vislumbram nela local de progresso e de consumo. Entretanto, não tendo garantida sua

fixação nessas cidades. A equação social tem como resultado literário uma imagem

urbana privatizada, que não comporta todos os cidadãos.

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Para completar o quadro proposto, o ensaio de Danielle Corpas argumenta que

Inferno Provisório, em que pese seu importante projeto estético-político, apresenta

fortes ligações com as estratégias da indústria cultural. Importante destacar as

avaliações sobre os fundamentos e os sentidos da proposta artística, do seu engajamento

bem como da figuração da matéria narrada. Há ponderações sobre a então incompletude

do ciclo: àquela altura havia possibilidades de reviravoltas. Apesar disso, a coerência

interna seria capaz de articular a obra à longa linha do sistema literário: a representação

da vida cotidiana dos pobres. Esta é sintetizada assim:

Como narrar essas vidas sem traí-las com a submissão a convenções literárias

que poderiam anular, na representação, sua especificidade, a peculiaridade de

sua experiência, de seu modo de encarar o mundo? (CORPAS, 2009, p. 21)

Acerca das soluções estéticas, segundo os próprios termos do ensaio, são:

Adesão mimética do narrador em terceira pessoa à perspectiva de cada

personagem sobre a qual recai o foco narrativo, realismo minuciosamente

detalhista na ambientação e utilização sistemática de recursos tributários de

experimentos vanguardistas (fragmentação, simultaneidade, visualidade na

apresentação do texto) (CORPAS, 2009, p. 24)

Além de a ensaísta ressaltar a habilidade técnica do escritor, é verificado o modo

como o texto configura questões históricas do panorama literário nacional. Segundo

Corpas, o dispositivo artístico transforma a matéria sutil e difícil da experiência

cotidiana dos pobres em assunto pitoresco para o leitor classe média. O “outro social”

desse leitor é apresentado pela voz empática do narrador (conhecedor do universo

narrado) e preocupado em dotar de sentido a experiência social dos pobres. Esse mundo

aparentemente problemático (tendo em vista a projeção mental do leitor classe média), é

desvendado por um mecanismo que conjuga racionalidade analítica e precisão

esclarecedora. A este dispositivo não escapa a presença enfática da mercadoria (que é

um dado real, mas que, neste caso, é formalizado abruptamente). Tal aparição

desmancha eventuais particularidades sensíveis, específicas da vida dos pobres. Assim,

há um tipo de nivelamento entre leitor comovido e matéria narrada. Seu vértice está nas

desgraças objetivas e subjetivas operadas pela modernização na periferia.

Há ainda duas considerações extraliterárias de máxima pertinência: a) a

expansão do mercado editorial alavanca Ruffato à figura proeminente, e suas

intervenções a elemento ativo na recepção da obra; b) o panorama literário, da primeira

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década dos anos 2000, saturado por narrativas cujas biografias autorais lhes serviram de

chancela.

Esse conjunto é apontado como adequação às estratégias da indústria cultural10

.

A ênfase recai sobre o modelo literário, denominado pelo escritor como “romance não-

burguês”, composto por “narrativas curtas, estruturadas por fragmentação e

simultaneidade de discursos, frequentemente com emprego de recursos gráficos para

marcar distinção entre eles” (CORPAS, 2009). O crescente uso dos grafismos é visto

como adereço e não como exploração formal de um impasse literário.

Pelo que foi dito, a ficção deste autor não escaparia à representação realista

apenas de fachada, presa que está às aparências do real. Exatamente este modo narrativo

que garante o caráter consumível do “romance não-burguês” de Luiz Ruffato.

II

O passo da revisão crítica é importante para fundamentar nossas análises. A

despeito das diferentes orientações teóricas e consequências interpretativas, ficou-nos

bastante claro que há o objetivo de Inferno Provisório em propor uma nova maneira de

apreensão artística da matéria nacional. Com todas as polêmicas que cercam o termo,

acreditamos que este modo de representação pode ainda ser considerado realista. Ou

seja, nos seus melhores pontos, o ciclo de romances busca configurar uma rede de

determinações contraditórias, mais ou menos complexas. Esta organização se expande e

se retrai, conforme as narrativas avançam nos volumes.

No que diz respeito, às pautas da crítica, pode-se perceber que a intervenção

autoral influencia ora velada, ora abertamente, os juízos sobre a obra. Como dito acima,

não se pode descartá-las, mas é legítimo lhes questionar o rendimento sobre a matéria.

Não por acaso, o modo hegemônico de leitura, representado pelo primeiro grupo, não

problematiza as opiniões autorais e confina a análise, via de regra, a supostos aspectos

formais. Agindo dessa maneira, termina por dissociá-los de sua dimensão histórico-

social.

10

Não estão sumariamente descritas, mas é possível inferir estas estratégias como: conciliação com o

gosto médio, em detrimento da forma literária cifrada e exigente; abundância de artifícios, cuja repetição

serve como adestramento do leitor; e consolidação de valores estabilizantes de modelos mentais e

estéticos ordinários.

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Dos estudos acima, recolhemos os seguintes pontos para nosso trabalho: a) a

estilização da oralidade, b) o fôlego histórico com intenção de panorama de época, c)

inspiração realista, d) o tópico do engajamento do artista, e) a influência dos

experimentos de vanguarda, f) as estratégias da indústria cultural. Ainda que de modo

sumário, esses tópicos serão retomados nas análises das narrativas. Lá, tentaremos situar

historicamente essas linhas de força, já que isso é exigência da própria obra.

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21

O derrotismo programático

Feita a revisão, é importante agora buscar as linhas da forma artística da obra.

Assim, o objetivo deste capítulo é expor o princípio estrutural de Inferno Provisório.

Entendidos os vários livros como peças de um único romance, o traço unificador é a

relativa ausência de causalidade entre as narrativas. Não obstante isso, as histórias

descontínuas relacionam personagens e ambientes. Os efeitos de parentesco e

alargamento são observados a partir de familiares e vizinhos, residentes em Rodeiro e

Cataguases, se espraiando para São Paulo e Rio de Janeiro. Reafirmada em várias

entrevistas, essa é a intenção deliberada de Ruffato: fazer com que o mosaico se efetive

como conjunto, do mesmo modo que as narrativas possam ser lidas individualmente11

.

No plano temático, o romance quer se habilitar como um painel de vidas

arrasadas pela modernização conservadora. Situa seu conteúdo entre a metade final do

século XX e o ano de 2002. Embora com desníveis, a obra acerta criticamente ao narrar

o fracasso social brasileiro quanto à inclusão cidadã dos pobres. Assim, podemos

afirmar que se trata de uma ampla narrativa que ficcionaliza, pelo ângulo da

subjetividade, a implementação e derrocada da política desenvolvimentista.

A chave de interpretação que propomos para obra é o ângulo programaticamente

pessimista, produzido na contemporaneidade. A partir do conjunto total, depreendemos

uma estrutura profunda composta por narrativas descontínuas e enredos monotonamente

degradantes. Ou seja, o conteúdo de Inferno Provisório é moldado por um prisma

planejadamente derrotista, e que se quer crítico àquele processo de declínio político e

social.

Ao mobilizar uma infinidade de personagens desvalidos, remediados e

trabalhadores pobres em geral, Ruffato procura distribuí-los em décadas e volumes. Em

entrevista, o escritor afirma12

:

11

“Parti, desde o começo, de uma questão formal importantíssima que é a seguinte: escrever um romance

não-burguês. Escolhi, como ferramenta um recurso atual, da internet, que é a hipertextualidade. Parti

então para uma experiência de construção e reconstrução de histórias, como se o leitor tivesse em cada

nome de personagem a possibilidade de clicar e abrir a história daquela personagem. Esse é o meu

processo de construção do romance”. Entrevista disponível em:

http://portalliteral.terra.com.br/artigos/literatura-com-um-projeto

12 Entrevista disponível em http://rinaldofernandes.blog.uol.com.br/arch2008-04-27_2008-05-03.html.

Acesso em 19-03-12

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O Inferno provisório é um convite para repensara história do Brasil nos

últimos 50 anos. Serão cinco volumes – os três primeiros já publicados (eles

estão saindo também quase simultaneamente na França): Mamma, son tanto

Felice trata da questão do êxodo rural nas décadas de 50 e 60; O mundo

inimigo discute a fixação do primeiro proletariado numa pequena cidade

industrial (década de 60 e começo da de 70); Vista parcial da noite descreve

o embate entre os imaginários rural e urbano, nas décadas de 70 e 80. O

quarto volume, a ser publicado este ano, O livro das impossibilidades,

registra as mudanças comportamentais das décadas de 80 e 90. E, finalmente,

o quinto e último volume chega até os nossos tempos, começo do séc. XXI.

Tentaremos demonstrar que é funcional ao projeto artístico adotar a noção de

trabalho racionalizado. Entretanto, a distribuição tão rígida não corresponde ao

andamento das narrativas, visto haver trânsitos entre aqueles temas. Por exemplo, o

“embate entre os imaginários rural e urbano” pode ser visto em “Outra Fábula”, do

volume V, Domingos sem Deus (de 2011, posterior à entrevista acima). As “mudanças

comportamentais” estão presentes também no volume I, Mamma, son tanto felice.

Embora a fabulação se sobreponha ao cálculo, é difícil negar o alto grau de construção

dos livros dessa pentalogia. Referências internas às histórias remetem às cores das

fontes que titulam os volumes, uso de grafismos indicativos de planos temporais e vozes

narrativas, frases sugerem método de escrita; tudo revela ofício cuidadoso no trato com

o material. Como veremos, isso não invalida as fraturas formais e inadequações quanto

conteúdo.

O objetivo de narrar a vida premida sob a modernização dos fins de século nos

parece um dado interessante em si mesmo. Avança no debate sobre as várias crises da

contemporaneidade (de representação, de subjetividade, da experiência), especificando-

as historicamente e por um ângulo de classe.

Do ponto de vista dos procedimentos, vemos a recorrência de: a) personagens

apresentados em meio à ação, que dá o tom do enredo, e b) a rememoração de eventos

que funcionam como explicações para o tempo presente. Notamos ainda a relação entre

ambiente degradado e subjetividade dilacerada. No plano dos enredos, portanto,

assistimos a uma galeria de personagens moldados às situações miseráveis. E que não

vislumbram nenhuma mudança, senão pela via familiar ou individual. O acúmulo dessas

vivências segue a mesma fórmula: saturação de angústias e desfechos em fracasso,

definitivos ou em suspenso.

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23

Considerando a sequência das narrativas ao longo dos livros, o mosaico de

micro-histórias já se desenha com coesão desde o início. Essa uma das faces da ação

programática do escritor. Por exemplo, para Mamma, son tanto felice a cronologia

planejada reserva a temática do êxodo rural. Neste volume, há o peso das relações

patriarcais e sua violência característica, com raros momentos de força narrativa.

Expressão disso é a negação da figura paterna pelos filhos, como André de “Uma

fábula”, e Carlos de “Aquário”. Ou ainda os abusos de Orlando Spinelli contra o

agregado Badeco, como se lê nas três partes de “Expiação”. As heranças do

mandonismo e ausência das leis se tonalizam pelos ressentimentos, desencadeando mais

fugas do que vinganças contra aquela ordem. Nesses enredos, é difícil não notar a dura

aclimatação do programa modernizante ao mundo rural.

O que nos permite considerar Inferno Provisório como um romance é o caráter

móvel dessa forma narrativa. É correto afirmar que a obra não abarca a totalidade das

relações sociais, por isso o fôlego realista e crítico não é atingido. No entanto, a

restrição pode ser lida de maneira produtiva, se considerada a riqueza da fabulação.

Defenderemos que a obra é construtivamente fracionada e que o modo de constituição

dos enredos (particulares e gerais) sugere uma fabricação em larga escala. Daí, se tratar

de um romance inorgânico.

Esse tipo de composição nos mostra recorrências por trás da grande variedade de

situações narrativas. Isolando os personagens, verificamos que suas ações e

pensamentos se determinam pelas limitações materiais. Resultando sempre em fracasso

de desejos pessoais, buscas por mudança ou tentativas de solução imediata para o

conflito vivido. Por esta característica geral, as possíveis transformações coletivas estão

bloqueadas, restando apenas os círculos vizinho ou familiar. Importante, por fim, atentar

que a dimensão privada é o enfoque da obra. As intrigas pouco se constroem na esfera

pública, sendo em sua maioria desavenças de ordem familiar. Precisamente, lá onde as

regras impessoais e a divisão do trabalho são mais fluidas.

O foco das narrativas é o declínio subjetivo dos pobres a fim de lhe determinar

os dramas. Dessa maneira, o dispositivo literário procura fixar um padrão de fracasso e

desesperança naquela dimensão mais íntima. Do ponto de vista da composição geral,

essa lógica pode ser vista na relação imobilizada de indivíduos x ambientes. Queremos

afirmar que aquela imagem fixada se fundamenta em uma grande variação de situações

e personagens, circunscrita a espaços reduzidos. Assim, o que pode parecer uma

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contradição entre as duas categorias (personagens, em expansão e espaço, em

concentração) demonstra tão somente coerência.

Considerando também a progressão temporal, não são modificadas relações

interpessoais ou caracterização dos indivíduos. Segundo esse critério, há na verdade

mudança de ocupações no mercado de trabalho. Devido à urbanização, as funções da

lavoura (nos três volumes iniciais) são substituídas por empregos em fábricas e

pequenos comércios. Daí, até profissões liberais e do setor de serviços (nos volumes

quarto e quinto). Entre esses dois polos, existem os indivíduos que oscilam entre as

informalidades e outros que tangenciam a mendicância.

Articulando os eixos espaço-tempo, assistimos a um movimento de expansão

contida. O primeiro volume se centraliza na pequena cidade de Rodeiro e já se

anunciam algumas investidas externas. No segundo e no terceiro livros, Cataguases é

fortemente figurada. No livro seguinte, chega-se às metrópoles. Para, em Domingos sem

Deus, a ambientação das cidades grandes se voltar às cidades do interior. Logo, as

histórias de vidas dilaceradas se expandem em círculos estreitos, que se adensam

conforme o tempo avança. Em seguida, se fecham e retornam ao espaço inicial.

Ressaltemos que esse movimento não exclui referências anteriores, já que o dispositivo

literário as multiplica incessantemente. Isto é, as variações espaciais estão atreladas aos

personagens, suas ligações parentais ou circunvizinhas anteriores que, por sua vez,

servem de base para futuras citações.

Duas narrativas, situadas nos extremos de Inferno Provisório, ilustram nossa

afirmativa. “Aquário”, pertencente a Mamma, son tanto Felice e “Trens”, de Domingos

sem Deus. Na primeira, a história de Adalberto e Nica é narrada pelo filho Carlos. Este

abandona a casa paterna por conta da violência doméstica e, somente após o enterro do

seu pai, visita a mãe. A memória dos personagens é recurso largamente empregado.

Carlos entrelaça o seu passado com o de D. Nica, sondando a eventual felicidade que

ambos não chegaram a viver. Há vários labirintos na narrativa, criando o efeito típico: a

cada referência a personagens e locais, uma nova possibilidade de histórias a serem

contadas. Isso se concretiza por meio das alternâncias entre os planos temporais, pela

mescla de narradores – ora observador da penúria da vida familiar, ora protagonista das

agruras na cidade grande. Os vários caminhos desenterram profundas lembranças de

Nica e Carlos: o amor dela por Angelo Chiesa, desafeto do patriarca Beppo Finetto; a

relação amorosa, abortada pelo suicídio do pretendente; o desaparecimento da bancária

Patrícia por quem Carlos se apaixona, após sua primeira separação. As lembranças são

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entrecortadas pelas paradas que mãe e filho fazem, rumo a Guarapari. Os espaços e os

eventos são atados, tal qual um roteiro cinematográfico dividido em cenas muito

precisas.

Na segunda narrativa, “Trens”, do volume Domingos sem Deus, a matriarca dos

Finetto assume o papel de protagonista cuja “vida andara em amarguras” (RUFFATO,

2011, p. 42). Aqui, há uma miniatura do cotidiano de D. Nica. Em apenas quatro

páginas, lemos um jogo entre presente e passado desencadeado por uma passagem de

vagões de trens, ao lado de Nica. A memória da idosa recobra uma viagem a Rodeiro

em visita aos parentes e antigos vizinhos. Aqui, o passado rural comparece com máxima

idealização, por conta da “saudade da barroca onde se criara [que] roía-lhe”

(RUFFATO, 2011, p. 43). Mesmo depois de lida “Aquário”, “Trens” não constitui forte

ação dramática, desenvolvendo-se como uma narrativa de ausência dos filhos. Embora a

viagem empreendida por Carlos e Nica não esteja diretamente citada, esse tema é

abordado pela idealização do passado rural e familiar.

De todo modo, é pela voz do narrador empático e em 3ª pessoa, que se ouvem os

seus lamentos:

Enterrara o Fernando, em pleno viço dos vinte e quatro anos, e o marido. A

Norma, com seus modos reprováveis, sujava o nome dos Finetto, e o

Carlinho, rebelde, perdera-o para o mundo. O Nelson, esse, coitado, batia-

cabeça, sem esquentar lugar (RUFFATO, 2011, p. 42)

Além das constantes referências espaciais e de personagens, há abundância de

repetições. Espalhadas em várias dimensões da obra, esse traço é justificado pelo autor

por meio das imbricações entre tecnologia e arte:

Escolhi, como ferramenta um recurso atual, da internet, que é a

hipertextualidade. Parti então para uma experiência de construção e

reconstrução de histórias, como se o leitor tivesse em cada nome de

personagem a possibilidade de clicar e abrir a história daquela personagem.

Esse é o meu processo de construção do romance. 13.

Seu ponto de vista quer conceituar a arquitetura de sua obra. Para o autor, as

exigências de um romance contemporâneo não se limitam a repisar, com novos temas, o

caminho já trilhado. Nesse sentido, percebemos a grande ambição de Ruffato, mas

13

RUFFATO, Luiz. A literatura como projeto. Revista Z. Disponível em:

http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/literatura-com-um-projeto-entrevista-com-heloisa-buarque-de-holanda/

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abordaremos a questão relacionando: a matéria histórica, o contexto de produção e os

modos de expressão.

As idealizações sobre o passado interiorano e as lamentações no presente urbano

se veiculam por uma dicção privada. É isso o que qualifica as consequências subjetivas

dessa mudança espacial. Na aparência, o olhar crítico e retrospectivo do escritor guarda

profundas ligações pessoais, assim, o credenciando à transfiguração literária. Sem

desconsiderar esta observação, tentaremos modulá-la mais adiante. Por agora

consideremos o desajuste formado pela associação mecânica entre matéria do passado

(já que as balizas cronológicas estão definidas) e a técnica ultramoderna da

hipertextualidade. Analisada desse modo, a forma literária desajustada incidiria em

impasse porque as temporalidades (de matéria e de técnica) estão sobrepostas, e não

integradas. Acreditamos, portanto, que a representatividade da obra não está nessa

reedição da fórmula atualização técnica independente da matéria. Esse desajuste já foi

desmentido pela marcha concreta do capitalismo14

. Portanto, repetições e múltiplas

referências articulam os demais aspectos narrativos, configurando o dispositivo literário

em profundidade. Desse modo, os recursos se revelam parte da lógica estrutural.

Para tanto, consideremos o teor didático-ilustrativo de algumas cenas,

combinado à habilidade técnica do escritor, a fim de voltarmos às duas narrativas.

Escolhemos, propositalmente, essas porque localizadas no primeiro e no quinto

volumes. Assim, acreditamos que a coerência surja das regularidades dos pontos

extremos. “Aquário” que já havia sido publicada no livro (os sobreviventes), de 2000,

ilustra sementes das partes finais: o tipo representado, a condição miserável de sua

existência, as relações familiares esgarçadas, a presença da mercadoria e manipulação

de temas derivados desse relacionamento (a viagem, a negação do pai, o retorno do

filho, os abandonos dos irmãos). Em tudo, variações literárias de uma mesma matéria

social: a transição do interior para as metrópoles. Além dessas, a construção dos enredos

se mostra por: alternâncias entre planos temporais, lógica expansiva do espaço e

suspensão dos desfechos.

Nesses dois casos específicos, a imagem do trem condensa as mudanças

qualitativas dos enredos. Em “Aquário”, é o meio usado por Carlos para fugir das

violências paternas. Em “Trens”, como já dito, é sua passagem que relembra à matriarca

14

O argumento segue as linhas de Schwarz em seu ensaio “Fim de século”, presente em Sequências

Brasileiras, de 1999.

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a saudade dos filhos. O transporte que um dia simbolizou a modernidade (frente ao

mundo rural) apaga da memória de D. Nica as contradições regressivas do mundo (do

qual se sente órfã). Ambas as narrativas se retroalimentam das repetições e referências

cruzadas. Contrastam o passado ameno ao presente de privações. A infância rural e as

ilusões de bonança familiar. Sempre pelo ângulo da idade adulta, experimentada pela

vida na metrópole.

Mais acima, afirmamos a organização das narrativas pela falta de encadeamento,

assim como o eixo temporal não ser capaz de determinar relações causais. No entanto,

há um fio tênue de progressão histórica que desautoriza a construção por meio da

hipertextualidade. Veremos quais os traços que constituem essa lógica de construção.

II

A linguagem fracionada exprime a consciência com que o autor executa sua

obra. Como podemos atestar em nossa revisão bibliográfica, a maioria dos estudos vê

apuro e inovação no trato da matéria. Do ponto de vista da composição, as análises

recorrem à oposição entre os modos simbólico e alegórico de representação artística.

Ainda para a crítica hegemônica, Inferno Provisório seria um bom exemplo de romance

fragmentário porque se constitui de várias narrativas autônomas. Não podemos deixar

de notar que essa mesma crítica descarta uma leitura que articule profundamente as

narrativas. Argumentam que a organização específica da obra reproduz a decadência da

comunidade e seus habitantes.

Sem desprezo do que foi dito, acreditamos que a coesão da obra se dá pela

acumulação processual de vários recortes cotidianos, com foco muito próximo aos

indivíduos. Desse ângulo, as micro-histórias são estilizações de uma totalidade que não

se deixa ver por completo, cindida que é divisão social do trabalho. O resultado disso é

o desconhecimento generalizado entre os indivíduos.

Defenderemos que, somente no seu conjunto, as micro-histórias são inteligíveis

como representação do cotidiano dos pobres sob a modernização do capitalismo

brasileiro. Ainda que lidas isoladamente, as narrativas não se autonomizam e seu

eventual efeito de choque15

não é semelhante ao das obras iniciais do século XX.

15

Esse é o efeito típico da alegoria de vanguarda. Cf. BÜRGER, Peter. Teoria da Vanguarda. São Paulo:

CosacNaif, 2008. Mas vertentes da crítica contemporânea descontextualizam aquele debate e filiam

diretamente o escritor àqueles procedimentos e efeitos.

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Embora frágeis, os vínculos estabelecidos pelas narrativas entre si comprovam a busca

por organicidade, como atesta uma leitura linear dos volumes. Mesmo não seguindo a

organização dos livros, a cartografia literária se completa, devido aos expedientes das

várias referências e repetições.

Abordando as narrativas em seu arranjo, elas podem ser lidas como formas

alienadas entre si, ainda que disciplinadas por princípios que lhe conferem sentido.

Compreendidas como parte de um todo narrativo, expresso sob a rubrica Inferno

Provisório, é incorreto afirmar que elas são emancipadas dessa totalidade. Na obra em

estudo, os nexos são determinados pelas múltiplas referências, ainda que

microcósmicas16

.

Há linhas que estruturam o arranjo e elas são vistas nos comportamentos

desesperançados dos protagonistas, nos tons dos desfechos e nas raras observações do

narrador sobre os flagelos das vidas. Estas qualificam o princípio de composição que

chamaremos de derrotismo programático. Esse padrão, que subordina os vários níveis e

os elementos da composição, fixa uma imagem desolada acerca da experiência cotidiana

representada. Além disso, se expressa tecnicamente em constantes explicações,

repetições, referências cruzadas, modelo frasal. Essa combinação gera o tom pessimista

aos andamentos dos enredos.

Some-se a isso, a destacada ação da voz narrativa. Mesmo nos raros momentos,

em que o narrador também é protagonista, é por essa figura que se tem acesso ao mundo

decadente e violento de Rodeiro, Cataguases e arredores. Muito próximo a esse

universo, o narrador age com simpatia e respeito pela matéria. De modo recorrente, essa

voz empática quebra o padrão de curta distância, por exemplo, por meio de escolhas

lexicais e sintáticas. Além delas, reprova eventualmente a conduta dos indivíduos.

Através desse narrador, a distância torna-se tão móvel quanto as posições de classe

inscritas nas variantes linguísticas empregadas. Essa capacidade de o narrador transitar

entre variedades cultas e populares revela um traço discursivo e social. O narrador

internaliza conhecimentos de duas ordens. Uma popular, estilizando a oralidade dos

indivíduos figurados. Outra culta, empregando léxico e sintaxe muito diversa daquele

mundo representado.

16

No que diz respeito ao leitor pressuposto, a comparação permanece. Também não está no horizonte da

obra o leitor moderno e emancipado, tal qual o pretentido pela vanguarda.

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Contudo, essa dupla intimidade de classe não é ostensiva na composição e se

apresenta em momentos decisivos dos enredos. Em tramas com algum confronto de

posições, a narrativa se encaminha para a suspensão do clímax. Nessas situações, o

aspecto conciliador também caracteriza o tecido discursivo por meio de uma integração

total: o fluxo narrativo unifica as vozes do narrador e dos personagens17

. Deste modo,

os elementos se agrupam em um único bloco discursivo até uma nova interrupção. O

outro modo se dá em cenas de enfrentamento verbal. Nessas, o tecido se segmenta,

expondo todas as convenções, inclusive gramaticais. Parte dessa dimensão é o uso

abundante dos grafismos e recursos de formatação, que consideraremos protocolos

auxiliares de leitura18

.

Contudo, nem só de conciliação discursiva vive o tecido verbal. No que diz

respeito aos melhores momentos da estilização da fala popular, ela se contrapõe a

outros, amaneirados e gramaticalmente normativos. Aqueles sem força capaz de resistir

criativamente à repetição monótona, que é o destino dado aos pobres. Assim, a boa

estilização fica isolada. Acompanhando a evolução, percebemos uma transformação da

fala coloquial por parte do narrador, cuja verossimilhança tangencia o didatismo. Nos

dois primeiros volumes, constam inúmeros exemplos de fala interiorana estilizada.

Conforme o espaço representado se urbaniza (mesmo dentro do quadro periférico

simbolizado por Cataguases), o discurso se aproxima do registro culto. Nos volumes

finais, cujos personagens estão integrados às cidades grandes, a fala coloquial tende a se

restringir ao discurso direto dos personagens. É bom frisar que se trata de uma

tendência, portanto a separação não é total19

.

Isto nos leva a crer numa fratura linguística que se expõe na justaposição de duas

ordens não integradas. Por vezes, a simpatia ao mundo narrado resulta em frases entre

maneirista e afetada; e o brilhantismo retórico, em períodos normativamente compostos.

Através desse movimento, acreditamos que seu estilo se ancora num tipo de aceitação às

17

Há mescla dos discursos diretos e indiretos, falas e pensamentos. Inclusive com quebras de convenções

ortográficas.

18Algumas das funções: alterar os planos temporais, diferenciar o discurso direto, quando apagadas as

referências no discurso indireto do narrador, distinguir pensamentos das falas, reproduzir fontes gráficas

de caligrafias ou marcas comerciais.

19Em alguns casos, são as escolhas lexicais do narrador o que o aproximam dos universos mental e

linguístico dos personagens.

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convenções sociais do bem falar e escrever, sobrepostas à vivacidade da matéria

trabalhada. A coexistência desses dois registros oscilantes faz com que ambos se

rebaixem, uma vez que, ancorado no estilo culto, o popular não tem potência. Este deixa

o primeiro sem substância. No limite, ambos se desqualificam e o resultado, uma

expressão oblíqua frente ao conteúdo.

A mobilidade da voz narrativa é importante para lhe orientar frente ao espaço

narrado. É por meio desse apaziguamento que se percebe o equilíbrio entre a psicologia

dos personagens e o espaço degradado. O sinal negativo está em todas as partes e,

somado ao andamento dos enredos, depreendemos um filtro que chamaremos de lógica

de adaptação. Para as expectativas individuais, ela funciona como uma redução de

possibilidades. A consequência geral é a do rebaixamento dos horizontes às violências

que cercam os personagens. A lógica de adaptação também bloqueia permanentemente

transformações efetivas, sempre condicionadas à penúria material. Dessa maneira, esse

princípio age, na construção interna dos enredos, com travamentos e constantes

anticlímax.

Uma conclusão a mais sobre a atitude do narrador. Podemos ver uma

desproporção entre a sua empatia e a comunidade pobre ao redor. O modo de o narrador

racionalizar experiência e memória se mostra desajustado à técnica do fracionamento20

.

Seja como for, o impasse se resolve quando buscamos a unidade, mesmo fluida, entre as

narrativas. Por esse ângulo, elas não são fragmentos autônomos, a ação do narrador não

é alienada e o painel se unifica pelo fio tênue de tempo-espaço. Esses nexos qualificam

a organização desestruturada do romance.

III

Por meio da lógica de adaptação e do derrotismo programático, é possível

também articular as duas temporalidades da obra: o contexto ficcionalizado e o de

produção. Baseado nisso, percebemos uma imagem do passado radicalmente adaptada à

contemporaneidade. Isto é, o elemento social responsável pelo ângulo narrativo dessa

“história do proletariado brasileiro” é o ciclo de atualização neoliberal.

20

Entendemos essa ação analítica como capaz de relacionar elementos, mostrando-lhes os nexos

profundos que os unifica. Em nosso caso específico, o emprego da técnica fragmentária não permitiria

uma exposição sistemática como a que estamos estudando.

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31

Assinalemos apenas algumas consequências da reestruturação capitalista no

campo do trabalho. No plano econômico, patrocínio e proteção às forças do mercado,

privatização e retirada de direitos trabalhistas. No plano político, enfraquecimento da

oposição à ordem capitalista e crescente consenso burguês. No plano social,

desmobilização da sociedade civil e ausência de enfrentamentos de classe.

Também no plano cultural as ressonâncias são de longo alcance. E acreditamos

que o derrotismo programático pode mapear algumas delas. Protagonistas com

horizontes rebaixados e comportamentos submissos, enredos sem musculatura ficcional

e forte tensão dramática são formalizações daqueles dados sociais. Ou seja, produzida

pelo movimento atual da sociedade, a forma estética recria o processo social

experimentado no passado. Essa interpretação assenta bases em: ausência de conflito,

naturalização das privações materiais e uma feição de sociedade imobilizada. Ruffato

formula sua ação no panorama literário assim21

:

Fui programático também na descoberta do que escrever. E comecei a pensar

o seguinte: “Bom, eu podia escrever sobre o que eu conheço”. E comecei a

procurar a minha realidade na literatura brasileira. E levei um susto. A

literatura brasileira não tem uma tradição classe média baixa ou da operária.

(...) E eu comecei a perceber que talvez esse fosse um filão rico que eu

poderia explorar, porque era um universo que eu conhecia muito bem. E,

como projeto político, eu poderia dar uma contribuição neste sentido.

Importante destacar que a mediação estética descarta a política e a esfera

pública. Os personagens, condicionados à própria sobrevivência material, inscrevem seu

presente desertificado nas suas memórias. Sem qualquer transformação nesse padrão

todos os personagens são isolados e dirigem seus conflitos para a esfera privada e

familiar. O derrotismo programático avança no tempo, mas sem mudança qualitativa.

Assim, está ausente desse horizonte artístico a perspectiva forte do realismo.

Nesse âmbito restritivo, o comportamento das personagens não admite a

caracterização pelo ressentimento ou ódio de classe. A concentração dos enredos no

realismo ao rés do chão também não abre espaço para uma adesão formal a uma ótica

exclusivamente burguesa. Se o conflito violento entre as classes está suspenso, se

espalham as ilusões de ascensão social e acumulação privada pelo trabalho. O seu

romance tem os contornos definidos por uma dicção meio vivaz, meio artificial.

21

Disponível em: http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/literatura-com-um-projeto-entrevista-com-heloisa-

buarque-de-holanda/.

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Por fim, o ângulo derrotista é percebido em duas direções. Primeiro, por reunir o

aspecto psicológico dos personagens ao tom dos enredos. Em seguida, por qualificar as

opções sociais reservadas ao campo popular, sob a hegemonia conservadora do golpe de

1964. Esse processo suspendeu as esperanças de transformação, abrindo a economia ao

capital internacional, ceifando a crescente democratização, usando de força e arbítrio.

Dessas maneiras, as instâncias de comando e decisão foram afastadas do âmbito

nacional, assim como a política do cotidiano popular.

São esses processos que animam a forma narrativa estudada. Identificado o

dispositivo formal, o próximo passo é verificar sua articulação com a linguagem das

narrativas.

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Composição e estilo

O romance se pauta por uma espécie de compromisso ético-narrativo com o

universo dos trabalhadores pobres, seus antecedentes, desdobramentos bem como sua

geografia. Além desse pacto, há de se registrar o forte trabalho de construção visto em

vários níveis. Do vocabulário e sintaxe, a grafismos, formatação e convenções,

passando pelas correspondências múltiplas entre os personagens; todos os dados nos

sugerem método que articula a lógica geral à sua escrita. Partindo daí, discutiremos

neste capítulo os principais aspectos da composição buscando articulá-los aos traços

estilísticos e aos procedimentos.

Nossos comentários terão por base duas narrativas do volume Vista Parcial da

Noite, publicado em 2006. “O ataque” e “O profundo silêncio das manhãs de domingo”

foram escolhidas por consolidar traços de estilo e de composição difusos nos dois livros

anteriores.

O primeiro elemento observado é um tipo de sentimento de dualidade inscrita

nos títulos dos livros. Se o projeto total Inferno Provisório nos apresenta um caráter

transitório, Vista parcial da noite enfatiza o avesso da totalidade. Em segundo lugar, a

construção dos títulos das narrativas dá origem a campos semânticos. Neste exemplar

podemos agrupá-los em três: transparentes, opacos e irônicos.

Além dessa reunião, é possível organizar as narrativas em núcleos temáticos.

Teríamos, nesse livro: agonias de guerra, relações de pais, mães e filhos, trabalho

infantil, fuga do passado e narrativas de mortes. Mesmo com possíveis intercâmbios, as

micro-histórias se unem pela transição rumo às cidades maiores e pelas consequências

subjetivas desses deslocamentos. Além disso, podem ser lidas como estágios

preparatórios do que será concretizado no volume seguinte.

Pela proposta de cronologia do autor, Vista parcial da noite é responsável pelos

anos de 1970 e 1980, descrevendo o “embate entre os imaginários rural e urbano”

dessas décadas22

. Vale dizer, desde já, que esse tem na última narrativa, ”Haveres”.

Composto por onze narrativas, este livro agrupa os motivos literários dispersos,

mas recorrentes do universo ficcional de Ruffato: indivíduos doentes físicos e mentais,

famílias ora degradadas por violência e alcoolismo, ora pela miséria material, crianças

que trabalham para prover sustento a pais e irmãos, mortes misteriosas. Enfim, uma

22

Conforme entrevista disponível em http://rinaldofernandes.blog.uol.com.br/arch2008-04-27_2008-05-

03.html.

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gama de sujeitos lançados no mundo, com maior ou menor grau de rancor. As vidas

encontram resultados que pouco variam além dos fracassos. Importante destacar que

não há referências ostensivas às linhas gerais do processo de modernização do período.

Não há grandes feitos históricos, nem uma mitologia sobre as camadas populares, muito

menos referências às lutas políticas da época.

II

O modo de narrar é repleto de detalhes, na superfície e na estrutura. Uma dessas

manifestações é o modelo empregado para estruturar os enredos. Vista parcial da noite

abriga tanto narrativas de esquema mais tradicional, como outras menos convencionais.

A fim de demonstrar esse critério, temos “O ataque”, do primeiro tipo, e “O profundo

silêncio das manhãs de domingo”, representante do segundo.

Ambientada “no verão de 1972, quando meus pais tiveram a oportunidade de

apertar a mão da felicidade” (RUFFATO, 2006, p. 55), “O ataque” é protagonizada pelo

filho do casal Sebastião e Eni, e irmão de Reginaldo e Mirtes. Seu título oscila entre

transparente e opaco. Primeiro, porque pode ser lida como a história do caçula

esquizofrênico e atormentado por um ataque aéreo alemão à cidade de Cataguases.

Assim, o título tem quase uma dimensão denotativa. Em seguida, se entendida como

adaptação traumática às consequências da modernização, o título passa a um plano mais

metafórico. Capaz de indicar desagregação dos laços familiares assim como ritmo social

produtor de isolamento e medo urbano.

Observando o enredo, “O ataque” dialoga com as narrativas de memórias.

Contudo, a semelhança é apenas superficial já que a condução da trama é feita pela voz

de um menino com onze anos incompletos. O narrador revisita seu passado e encerra

seu discurso isolado num tipo de bunker, temendo uma suposta ação da Luftwaffe.

Além do absurdo fabulado, há grande discrepância interna, o que não auxilia na

verossimilhança. Se a organização temporal linear é adequada ao universo mental do

protagonista, o seu discurso móvel não. Citemos a cena inicial:

Em Janeiro, enquanto nuvens negras, lá para os lados de Barbacena,

assustavam os ribeirinhos, tementes das águas aleivosas do Rio Pomba,

entulhávamos o caminhãozinho International KB-6, verde, do Zé Pinto, com

os nossos trens. Finalmente, nossa casinha quatro-cômodos, no Paraíso,

ficara pronta. (RUFFATO, 2006, p. 55)

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O trecho acima é significativo porque figura a mobilidade social da família nos

planos temático e discursivo. O primeiro se lê na passagem das moradias, de aluguel à

propriedade. O segundo, no trânsito entre o coloquial e o culto, como se lê nas

respectivas expressões “lá para os lados, entulhávamos” e “tementes e aleivosas”. Além

disso, último período sintetiza incongruências do modo expressivo e da matéria narrada.

De um lado, a justaposição flagrante de sintaxe canônica e pretérito mais que perfeito.

De outro, o adjetivo quatro-cômodos e o diminutivo casinha. A incongruência entre

esses dois planos é sistemática no estilo da obra. A estilização dos pobres vivendo a

modernização é feita de acúmulos e não de superações.

Contudo, não há apenas inadequação entre a figura e o discurso. “O ataque”

sugere, na verdade, outro tipo de voz narrativa. Atrás do protagonista aparente e maduro

a organizar sua história está um narrador vicário. Distanciado, é capaz de formalizar o

desespero de uma mente confusa, como se pode ver nos aspectos linguísticos acima. No

plano estilístico, notamos seu rigor sintático, o que expressa também o teor de sua voz.

Em outro plano, essa estratégia exemplifica a lógica de adaptação. Por meio das

descrições, detalhadas por esse narrador vicário, assistimos a uma galeria de

personagens moldados à aceitação do real. Pela sua caracterização, a mãe Eni é “mulher

sensível” (RUFFATO, 2006, p. 55) porque chora ao deixar a pobreza de vinte anos.

Nessa época de relativa melhoria, “O Reginaldo era de-colo ainda, uma coisiquinha

assim” (RUFFATO, 2006, p. 55), e passa a ser “de maior, para grande alegria dos meus

pais” (RUFFATO, 2006, p.58) porque termina o namoro com a umbandista Rejane. A

irmã mais nova, Mirtes “completara dezesseis anos e caçava um rapaz que pudesse

soerguê-la da condição de operária para a de grã-fina” (RUFFATO, 2006, p. 57). O

próprio narrador se apresenta seguidor da rotina: manhã, colégio. Tarde, futebol. Noite,

clube.

O único personagem que diverge desse modelo é o pai, Sebastião. Depois de

concluída a construção da casa, quando “abraçava a todos, conhecidos ou gentes nunca

dantes vistas; falava alto, o que não era do seu feitio; ria por bobiças, por lereias...”

(RUFFATO, 2006, p. 55), o homem:

andava contaminado pela ideia de mudar de ramo, passar o comercinho de

uma-porta-só na Vila Minalda e abrir um armarinho de miudezas num ponto

mais para os lados da Rua do Comércio. (RUFFATO, 2006, p. 57)

O pai encarna uma motivação que o distancia do passado estreito e de privações.

É o único a agir publicamente em busca do auxílio ao filho quando a crise mental lhe

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ataca. Assim, esse personagem se contrapõe, ainda que fragilmente, à mentalidade geral

dos demais. Sebastião se define mais por suas ações e menos por sua psicologia.

O enredo convencional apresenta como ponto de transformação os antecedentes

ao diagnóstico da esquizofrenia. É a partir da pergunta do narrador “Havíamos

vislumbrado um dia a felicidade?” (RUFFATO, 2006, p. 68) que todos aceitam a

tragédia instalada. As respostas práticas da família têm o mesmo tom: “minha mãe

aguou”, “meu pai perdeu a graça” (RUFFATO, 2006, p. 68), “O Reginaldo voltou para

a Rejane” e “A Mirtes reconsiderava, juntar os panos com um igual talvez não fosse tão

desastroso assim...”(RUFFATO, 2006, p. 69). A adaptação ao cotidiano miserável é

resumida pelo narrador assim: “Em tudo, o desânimo” (RUFFATO, 2006, p. 69).

O que foi dito também caracteriza o estilo da obra. É possível rastrear uma série

de lacunas e em seguida preenchê-las. Ainda no plano estilístico, essa tendência se

concretiza no tipo de acabamento das cenas. São frases lapidares que encerram os

conflitos momentâneos de que se nutrem as sequências da intriga. Dá-se um tipo de

súmula da cena que a sintetiza. Estrutural, esse procedimento ocorre tanto em situações

auxiliares como principais. Apenas um exemplo secundário: o momento em que o

narrador regressa à casa dos pais, depois uma fuga frustrada. Após receber a censura de

sua mãe e a indiferença dos irmãos, o encerramento com: “o sermão silencioso do meu

pai, mais ardido que coça de vara-de-marmelo” (RUFFATO, 2006, p. 64). Essa baixa

ênfase da frase lapidar dá o timbre de todas as sequências, como já formulado

anteriormente pelo narrador. É o desânimo que prepara o desfecho.

Outro mecanismo importante é o que chamaremos de preenchimento narrativo.

Trata-se de uma sequência de conteúdos variados: ações, descrições, objetos,

encadeamentos de sentenças. Sua função é dotar de precisão detalhista as cenas. Duas

situações com tal procedimento: a primeira apresenta a rotina de Eni.

Depois da mudança, toda manhã de sábado, (...) minha mãe se punha a

arrumar a casa. (...) Enfiada num vestido de chitão surrado, lenço amarrado

na cabeça, ela sobraçava os cômodos: com o resto de uma camisa-de-malha

velha tirava a poeira dos móveis e lustrava-os com óleo-de-peroba; arrastava-

os de um lado para outro para barrer os cantos; embebia de gasolina a cera

Cristal amarela e espalhava-a pelo chão. “Eu sempre quis assim... uma casa

só pra mim.” (RUFFATO, 2006, p.56, grifos nossos)

O conteúdo é a rotina doméstica que satisfaz a mulher e o modo de descrição,

rigoroso. A repetição dos afazeres e a riqueza de seus detalhes revelam um narrador

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íntimo do trabalho executado. Do corpo da mulher ao assoalho, vê-se a exposição

organizada. É o encadeamento dos verbos assinalados, por meio da coordenação

sintática, o que sustenta o discurso do narrador.

O preenchimento narrativo também pode ser encontrado em níveis mais

superficiais. No trecho a seguir, veremos uma longa sequência de objetos. Nela, o

entrecho ganha em apuro descritivo, mas a ação perde em vigor. O fragmento se

localiza nos antecedentes à primeira alucinação. Com o foco no pai, o narrador se

especializa na rotina de penúria:

Dormíamos no mesmo quarto, camas separadas por uma mesinha labirintada

de cupins, em cuja gaveta, passada à chave, ele guardava o cortador-de-unha,

um pote de brilhantina, o pincel-de-barba, o aparelho de barbear, uma caixa

de gilete, um tubo de creme para barbear; um vidro de Aqualvelva, algumas

ampolas de príncipe-da-noite, um canivete-suíço, uma chave-de-grife, um

paquímetro, uma lupa, uma carteira-de-dinheiro com folhas de plástico para

proteger os documentos. Na parede contrária, dividíamos um bufê, que

usávamos para, dobradas, alojar as nossas roupas. (RUFFATO, 2006, p. 59)

A sequência de objetos ilustra claramente o mecanismo. Seu alto teor descritivo

radicaliza a ideia do preenchimento narrativo. A longa lista de objetos imobiliza a ação

desse segmento. Através desse efeito, vemos coerência estrutural: o ritmo lento

narrativo corresponde às poucas transformações qualitativas do enredo. Assim se

articulam o apuro descritivo (do ambiente e dos comportamentos) à estrutura geral de

pouca tensão.

III

Embora a organização do enredo seja diferente da narrativa anterior, “O

profundo silêncio das manhãs de domingo” apresenta estilo comum. A busca pela

exatidão pode ser notada desde o longo sintagma do título. Na fronteira de transparência

e ironia amarga, é contada a história do afogamento do filho pelo seu pai.

Cláudio, “único filho-homem, o segundo da ninhada” que “completara oito anos

em maio” é visto pelo seu pai como “seu orgulho”, “fosse inteligente já seria muito.

Mas, uma preocupação em ajudar!” (RUFFATO, 2006, p. 80):

De manhã, pajeava as irmãs mais pequenas, inventando modas e divertindo-

as com nadas (...). Às tardes dedicava-as a quebrar a cabeça na escola. (...)

Quando chegava da aula, ninguém precisava mandar fazer o dever.

(RUFFATO, 2006, p. 80-81)

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Pai orgulhoso do filho, Baiano “negaceava de emprego decente”, “desde cedo

renegou patrão” (RUFFATO, 2006, p. 82) é também apresentado como “pau-pra-toda-

obra tendo feito de tudo um pouco” (RUFFATO, 2006, p.85). No momento em que

decide pelo assassinato de Cláudio, Baiano é “buscador de afogados em águas

insinceras”, um estranho salva-vidas de rios. Sua condição de trabalhador pingente

contraria a vontade de seu pai, seu Chicão, que via nessa conduta profissional

“vagabundice”. O avô de Cláudio desconhecia qualquer “regime que não fosse manda-

quem-pode-obedece-quem-tem-juízo.” (RUFFATO, 2006, p.82).

Esse espelhamento de concepções (de avô, pai e filho) conduz a narrativa por

meio de negações recíprocas e estabelece ciclos de vergonha sentido pelos pais. Baiano

nega a Chico ao se lançar no mundo do trabalho informal. Da mesma maneira, Cláudio

a seu pai ao se dedicar aos estudos escolares. Entre essas oposições geracionais, o

desenvolvimento da narrativa, cujo clímax é o afogamento do menino e o suicídio do

pai.

Por trás da quebra de linearidade, a narração de “O profundo silêncio das

manhãs de domingo” é bastante simples. A cena inicial apresenta ao leitor o

protagonista em ato, como um flash a partir do qual se desenrola toda a história:

Baiano entendeu que não conseguiria mais resgatar o sono e levantou, os pés

escarafunchando a noite-ainda do quarto à cata dos estropiados chinelos.

Julho, tocaiado na escuridão, arrupiou seu corpo. (RUFFATO, 2006, p.79)

O narrador observa com intimidade o espaço e a psicologia de Baiano.

Concretiza essa proximidade pelo vocabulário popular (pés que escarafuncham, o frio

que arrupia) e, assim, podemos atribuir equilíbrio entre matéria e expressão.

Seguindo essa dimensão, o trecho abaixo é representativo pelas regularidades da

frase artística de Ruffato. No fragmento, a única e precária manifestação do pensamento

de Cláudio:

Calados, imiscuíram-se no sono nunca-satisfeito das casas-baixas do Beira-

Rio, envolveram-se na alvorada de assas e pios das chacrinhas da Santa

Clara, abarcaram a solidão interminável da Reta da Saudade, romperam

fronteiras embicados rumo à Ponte do Sabiá. Tão silêncio tudo, que nítido

escutava a borracha do pneu da bicicleta espargindo os grãos do saibro, e

uma sensação ruim aferrou sua cabeça. Assustado, um gavião sobrevoou-

lhes, quase desequilibrando-os. Aonde iam indo? Desassossegado, indagava-

se, atravessando lugares nunca antes suspeitados, regiões mais que

transparentes. (RUFFATO, 2006, p.85)

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Na apresentação trágica dos destinos, personagens e paisagem estão em aparente

harmonia, devido ao tom plácido. Pai e filho viajam “calados” pela estrada, durante o

amanhecer. Entre o “sono nunca-satisfeito” e a “solidão da Reta”, eles se resumem a

“tão silêncio tudo”. O voo do pássaro instala uma ruptura e desencadeia a única

intervenção do menino. Sua incerteza altera a calmaria. Antes, “calado”, agora

“assustado” e “desassossegado”. Por aqui se observa o rigor do método na construção

do personagem. Os dois estão integrados à paisagem. Entretanto o excesso de pronomes

oblíquos desarmoniza aquela relação tensa, além de sugerir certa afetação pela correção

gramatical.

Acompanhando o enredo, podemos descobrir o sentido das alternâncias entre

passado e presente, que interrompem a narração. Durante a parte final do trajeto,

Cláudio questiona o pai sobre o abandono da mãe. A irritação do pai corresponde a uma

cena antiga de uma noite em que o menino chama pela mãe e recebe como resposta: “o

pai, lábios sangrando, vociferou, possesso: Você não tem mais mãe não, desgraçado!

Você não tem mais mãe não!” (RUFFATO, 2006, p. 87). O passado familiar funciona

como explicação para a ação vingativa de Baiano e repercute na estrutura do enredo. O

acúmulo dessas imagens reforça o terror da caminhada rumo à morte.

Os exemplos de rememoração possuem vários conteúdos, fazendo com que cada

ação no trajeto corresponda a outra no pretérito. A raiz dessa alternância é uma

tendência fortemente explicativa que entrelaça aqueles quadros da memória. O jogo

temporal nos parece produtivo por dotar a narrativa de alguma espessura histórica. No

entanto, o efeito gerado nos parece negativo pelo encadeamento por sobreposições. Dele

resulta um tempo geológico e mecânico, porque não processual. Assim construído o

enredo, sua progressão temporal expõe uma concepção cumulativa.

As motivações do pai para assassinar o filho desfazem a então opacidade da

intriga. Imediatamente anterior à morte de Claudio, elas se expõem no último recuo

temporal. Lá, o narrador afirma:

Ninguém mais falou dela. Em casa, proibido o nome. Avós, tios, primos,

vizinhos, amigos evitavam-no, como doença, interrompendo murmúrios à

aproximação das crianças. (RUFFATO, 2006, p. 87)

“Ela” é a esposa cujo marido não permite sequer a lembrança. Embora sugerido

pelo contexto, não há menor menção a traições ou violências domésticas. Seja como for,

a trama se resolve de modo previsível, uma vez que a cena seguinte é a da harmonia

familiar: um alegre aniversário de sete anos do menino. Ação e explicação se justapõem

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tal qual presente e passado. A constante quebra de expectativa e consequente anticlímax

implicam modulação no grau de tensão dramática.

Essa alternância constante no plano da intriga cumpre o papel parecido ao dos

procedimentos do plano estilístico. Por isso, é possível depreender uma regra para tal

manipulação do tempo. A uma dada cena de tensão crescente, como o início da

caminhada em que o filho é despertado rudemente (“Cláudio, põe uma blusa, ordenou o

pai, dissipando os farelos de sono que sobravam”. RUFFATO, 2006, p. 80), sucede uma

de tensão menor, como a de Baiano exultante da inteligência de Cláudio (“O menino,

seu orgulho. Não que desfizesse dos outros, mas esse, ativo, vivia especulando, o

danado”. RUFFATO, 2006, p. 80). Nessa sequência específica, a narrativa retorna ao o

presente da caminhada, no mesmo tom anterior (Escorraçou o Rex, “Passa!”, batendo o

pé no chão, num ameaço. RUFFATO, 2006, p. 81).

IV.

Qual o sentido de uma prosa regularmente construída, veiculando o universo

rebaixado de uma família arrasada pela doença mental de seu caçula? Por que um forte

teor explicativo para construir uma intriga de assassinato do filho e suicídio do pai?

Como se viu, o conjunto de angústia e tormentas, que se quer conteúdo narrável,

é fraturado pelo padrão explicativo. Assim, matéria e expressão se desajustam. O efeito

estético é produzido por ambos os narradores (vicário e empático), sempre regidos por

aquela lógica racionalista. Aliada ao número extenso de personagens, que pouco varia

de camadas sociais, se restringe ao ambiente e às relações que contraem. Dessa maneira,

focalização espacial e multiplicação dos tipos representados podem ser exigências da

matéria trabalhada. Mas também supõem visão estreita, derivada do fenômeno da

alienação. É isso o que justifica o desaparecimento da figuração forte da totalidade, na

obra.

Também os procedimentos expressam aquela contradição histórica, por

apontarem os limites da estrutura. Sem prejuízo da imaginação artística nos arremates, a

variação de situações termina por padronizar monotonamente o conjunto. Vemos aí uma

estilização da ideologia contemporânea:

A sociedade capitalista contemporânea procura dar aos sujeitos a impressão

de eles terem possibilidades infinitas, de poderem decidir sobre tudo a todo

momento. Um pouco como as decisões de consumo, cada vez mais

“customizadas” e particularizadas. (SAFATLE, 2012, p. 18)

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Acreditamos que o dado criticado acima estrutura o dispositivo literário, que alia

variedade narrativa, rigor construtivo e lógica explicativa. Por trás da desconexão

anárquica das micro-histórias, o romance pode ser sumariamente descrito assim: a)

personagens vivendo situações extremas de violência e privação; b) focalização

espacial; c) articulação cumulativa dos planos temporais presente e passado; d)

acabamento das cenas por meio de súmulas.

Interessante retomar uma das falas de Ruffato sobre seu processo de criação.

Segundo ele, trata-se do uso literário do hipertexto, que se realiza ”como se o leitor

tivesse em cada nome de personagem a possibilidade de clicar e abrir a história daquela

personagem”23

. Essa justificativa é funcional ao seu modelo literário porque o torna

virtualmente infinito24

. Como ilustração, vejamos os tipos de desfechos das narrativas

comentadas e sua contribuição para o arranjo geral.

A trama de Baiano e Cláudio apresenta a eliminação física de ambos. Porém,

esse desfecho não impede que dado personagem compareça em outra narrativa,

inclusive de outro volume25

. A fórmula narrativa de Ruffato, como se verá nas análises,

se especializa nesse jogo criativo.

Ainda focalizando os desfechos, vejamos como se comporta “O ataque”.

Exasperado pelo desespero da família, em especial a condição de sua mãe, o narrador

procede assim:

Com uma talhadeira, demarquei no cimento debaixo da minha cama um

quadrado de trinta centímetros, para desgosto de minha mãe. (...) Quando

reparei os dois metros de fundura, empunhei um enxadãozinho e cavuquei

lateralmente, dia e noite, endiabrado, corpo bobo, maquinal, até esculpir um

aposento pequeno, metro e vinte de altura, hum de largura, hum de

comprimento. (...) Uma tampa de latão cerrava a boca do buraco.

Na folhinha, dezembro dobrado ao meio. (RUFFATO, 2006, p. 69)

23

Em entrevista a Heloísa Buarque de Hollanda, disponível em:

http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/literatura-com-um-projeto-entrevista-com-heloisa-buarque-de-holanda/

24Em tempos de mercantilização da cultura, esse aspecto não pode ser desprezado pelo escritor

profissional.

25 Em Vista Parcial da noite, há algumas ocorrências. Por exemplo, Fernando, protagonista de “Aquele

natal inesquecível” é lembrado pelo irmão em “Aquário”, do livro Mundo Inimigo. Paco, o atacante do

time fundado pelo seu pai, aparece ainda criança em “Agonia”, também de Mundo Inimigo, junto com

Caburé, personagem de “Estação das águas”, de Vista parcial da noite.

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O encerramento ilustra uma alternativa à narrativa anterior. A cena final deixa

em aberto a continuidade da intriga. Entretanto, não há nenhuma referência aos

personagens centrais dessa narrativa em outras posteriores, com exceção da irmã

Mirtes26

.

Por meio dessa comparação, as referências aleatórias, dispersas nas várias

narrativas, sugerem irregularidade e falta de padrão, em um nível. No entanto, se

consolidam como estratégias de suspense e continuidade do romance. A matéria retirada

da experiência dos pobres, lidas microscopicamente, parece ser um grande acúmulo.

Contudo, esse conjunto é inteligível e funcional para a existência daquele amplo painel.

Nesse sentido, são determinantes os desfechos em suspense e travamento em anticlímax.

Não raro as intrigas se encerram com personagens física ou simbolicamente

imobilizadas, assim como suas possibilidades futuras. Essa programação de fracassos e

bloqueios, na aparência aleatórios, tem correspondências históricas. Esse é o assunto do

próximo capítulo.

26

Ela surge de modo muitíssimo secundário em “Carta a uma jovem senhora”, como conhecida de Aílton,

protagonista dessa narrativa que compõe O livro das impossibilidades, de 2009.

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Condições objetivas

Nos capítulos anteriores, tentamos descrever o dispositivo literário estruturante

da ficção de Ruffato bem como suas ressonâncias na construção da prosa. Nosso

objetivo aqui é verificar a matriz social mimetizada pelo derrotismo programático. Essa

mediação estiliza um comportamento social dos pobres, determinado por

transformações político-econômicas mais recentes da formação brasileira. Seu

fundamento contemporâneo a transição entre os dois últimos modelos de atualização

social. A implementação e colapso do nacional-desenvolvimentismo e o posterior

neoliberalismo.

Estes diferentes ciclos de modernização se expressam por meio de repercussões

internas à experiência cotidiana das camadas pobres. Além disso, frisamos que a obra

capta o movimento social contemporâneo e recria um filtro pelo qual interpreta o

passado. O derrotismo programático pode ser lido, então, como uma projeção do

desmanche neoliberal sobre o cotidiano histórico dos pobres.

Partimos de uma reconstituição das linhas gerais do desenvolvimentismo e sua

crise. Em seguida, faremos a exposição dos traços do neoliberalismo e seus

rebatimentos ideológicos. Vale ressaltar que esse processo gerou traumatismos sociais

profundos, assim como reacomodou a histórica subordinação nacional ao centro

dinâmico. De antemão afirmamos que as medidas neoliberais surgem na periferia do

sistema mundial como um tipo de modernização altamente perverso.

São as balizas da obra que indicam o caminho do recuo ao passado brasileiro.

Além das razões ditadas pelo ritmo social interno ao país, as correspondências de ordem

cultural tentarão ser apresentadas por meio do próprio romance, a fim de articulá-las ao

quadro mundial. Trata-se, portanto, de um esforço em delinear um panorama que

considere marcos internos e externos ao país, tendo como eixo a reflexão proposta pela

ficção do escritor mineiro.

II

O interesse em narrativas sobre o cotidiano dos pobres não é exclusividade do

que se chama cultura contemporânea. Esta é uma preocupação de longa data no sistema

literário brasileiro. Basta recordar algumas das primeiras obras de Rubem Fonseca ou a

de João Antônio, o modernismo no começo do século XX ou ainda alguns romances dos

oitocentos. Se a permanência do tema não é determinada pelo contexto de produção das

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obras, há de se investigar o tratamento específico dessa matéria a fim de avaliar sua

eventual contribuição à cultura brasileira.

Dito de outro modo, o derrotismo programático é resultado estético de uma da

conduta de classe. Através dessa, a camada de trabalhadores pobres responde às

mudanças modernizantes em seu cotidiano. Diferentemente das aparências, o sentido

conferido pela obra a essas transformações é o de adaptação às estruturas do

desenvolvimento capitalista. Trata-se de uma jornada de mutações nos modos de vida,

formas de perceber e sentir o mundo rumo à sociabilidade neoliberal. Além disso, a

coerência do dispositivo revela as relações sociais depositadas na sua linguagem, a tal

ponto de organizarem o enredo geral da obra.

Primeiro aspecto a ressaltar é o modo de ingresso nas estruturas modernas do

capitalismo brasileiro. A transferência dos pobres interioranos para as cidades maiores

forneceu a Mao de obra para as indústrias, em franca expansão. É dentro desse quadro

de urbanização, a partir da década 1950, que se pode ler a penosa experiência nacional

em busca da modernidade.

Essa travessia desenvolvimentista, na periferia, correspondeu ao ciclo de ouro do

capitalismo, nos países do centro27

. Nesses, a máquina estatal é a principal indutora do

crescimento econômico das sociedades bem como patrocinadora das políticas sociais

que sustentariam, durante décadas, o chamado Welfare State. No Brasil, o nacional-

desenvolvimentismo progressista dos anos 1950 e 1960, conduz a industrialização e a

urbanização. E, contraditoriamente, por meio da substituição de importações de bens

(base do processo de industrialização), importa tecnologias e hábitos. Com aumento das

camadas médias, assistiu-se ao surto de nacionalismo em várias esferas da vida social e

artística. Em seu imaginário e invenções, estava a constituição da autonomia nacional.

Cada um a seu modo, os vários exemplos contribuíram para a radicalização anti-

imperialista do pré-64.

O golpe civil-militar reorienta o nacionalismo, passando a operar no campo

conservador. Organiza forças sociais que pareciam longe do novo bloco histórico

formado. Setores ligados ao latifúndio se somaram àquelas faixas modernizantes pró-

imperialistas.

27

Acompanhamos aqui as exposições de David Harvey em Neoliberalismo: História e Implicações.

Edições Loyola, 2005 e as de José Luis Fiori em Brasil no espaço, Editora Vozes, 2001.

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A relação estabelecida entre os segmentos avançados e atrasados da economia

bem como seus papéis na reprodução da pobreza, à época, foi explicada por vários

ângulos pela ciência social dos anos 1970. Consideramos como das mais produtivas a

de Oliveira (2003)28

. Em linhas muito gerais, o sociólogo afirma que a expansão do

polo dinâmico se expande por meio do polo miserável. Para realizar a acumulação

capitalista, é necessário reproduzir o setor atrasado. A economia periférica se

desenvolve baseada em exploração da força de trabalho. Assim, desenvolvimento

econômico não é sinônimo de melhorias da vida dos mais pobres e o progresso material

pode dar forma à regressão social.

Neste ponto, há que se referir a expansão e consolidação da indústria cultural no

Brasil, já que ela é capaz de articular as duas dimensões em questão. As bases desse

processo foram lançadas com o golpe civil-militar de 1964 e radicalizadas a partir de

1968. Este, além de marcar o recrudescimento do autoritarismo político, pode ser

considerado também como um divisor de águas na internacionalização do mercado

nacional, econômica e culturalmente.

A face mais aguda do regime militar estimula participação de grandes grupos

privados na economia. Embora conservadora, a política econômica é modernizante e

organiza as medidas de crescimento nacional, sob a rubrica do “milagre”. A sociedade,

porém, não tardou a assistir ao seu esgotamento nos finais da década de 1970. Mesmo

fracassando, essa política elevou o padrão de consumo das classes médias. Esse

elemento fundamental para a ação do Estado no terreno da cultura, nos marcos da

abertura à iniciativa privada. Assim, sob os discursos de fortalecimento da cultura

nacional, articularam-se, por um lado, o controle ideológico dos militares e, por outro, a

adequação dos produtos ao circuito capitalista internacional. Relevante assinalar que, no

plano da cultura, a ação do Estado autoritário vai da subvenção de recursos públicos até

à constituição de fortes estruturas mercantis. Ou seja, a combinação de controle

ideológico e patrocínio empresarial explica a formação de uma indústria cultura plena.

Esse é o ângulo que nos interessa para verificar as bases da chamada cultura

contemporânea. Não se pode deixar de citar a ponta de lança desse circuito mercantil de

escala nacional. A influência do complexo televisivo é importante injunção para se

28

OLIVEIRA, Francisco. Crítica à razão dualista/O ornitorrinco. São Paulo, Boitempo Editorial, 2003

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compreender a estrutura simbólica dos produtos culturais e a subjetividade que se forma

a partir deles.

O ordenamento empresarial da produção cultural também se sujeita àquela

ideologia do desenvolvimentismo. Nesse conjunto, os traços arcaicos da sociedade

permanecem ambiguamente aos olhos das elites modernizantes e não se apagam com a

mera importação de modelos estrangeiros.

Há transformações nas tarefas do desenvolvimentismo. A antiga coloração

progressista se impunha à superação da miséria social (vide a luta contra o

subdesenvolvimento). A conservadora se harmoniza ao sofisticado circuito de produção

e circulação da cultura. Desse modo, a busca pela modernidade não supera o atraso e se

combina à importação de soluções técnicas. O resultado, naquela hora, foi a do

incremento espetacular da televisão como verdadeiro unificador nacional29

.

Interessa agora o conjunto de sedimentos que esse quadro relegou à cultura

contemporânea. A passividade, a colonização do imaginário, a regressão do indivíduo

relacionada à crescente alienação e, sobretudo, o apagamento do conhecimento histórico

interferem na constituição subjetiva das camadas médias do período. O que, anos mais

tarde, se chamaria de cultura pós-moderna se funda nessa expansão conservadora do

capitalismo mundial. Portanto, não é exagero afirmar que formas culturais podem ser

mais bem compreendidas na sua relação com os processos sociais. Em nosso caso

específico, a internacionalização do capital internacionalizado.

III

Nos países centrais dos anos de 1970, o modelo social-democrata de Bem Estar

Social começa a ser questionado. A crise que o abate põe em xeque valores sobre os

quais se assentava: crescimento econômico, instituições democráticas e igualdade

social. Abalado em seus fundamentos pelo aumento do preço do petróleo, pela derrota

dos EUA no Vietnã e pela quebra do padrão ouro-dólar, o modelo europeu ocidental

encontra a recessão e o desemprego. Dentro dessa conjuntura, as soluções para a crise

pavimentaram a implementação do que se chamou de Consenso de Washington, na

década de 1990, mundo afora.

29

Ao contrário do que se produziu no debate de esquerda, nos anos de 1960, o nacional-popular foi

ressignificado pelas ações e interesses antipopulares das corporações televisivas, associadas ao regime

militar.

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A resposta neoliberal para as crises da época é emblemática em dois países. A

Grã Bretanha e o Chile são casos paradigmáticos pelo desmonte do Estado de Bem

Estar Social (ou de seus arremedos, como na América Latina). Pelo ângulo conservador,

ele é o responsável pela instabilidade e pela crise. Essa concepção guia as medidas de

ajuste fiscal e estabilidade monetária imposta aos países em crise. Deslocando, dessa

forma, as preocupações governamentais com o crescimento e a igualdade social.

Na América Latina, onde não se havia alcançado os patamares do Welfare State,

o inimigo a ser vencido na crise é o Estado desenvolvimentista, patrocinador de grandes

atividades econômicas. Nesses locais, desmontou-se a política de industrialização e a

consequente substituição de importações, aumentou-se a dívida externa e exclui as

economias nacionais do sistema financeiro global. Na mesma onda, fez desaparecer o

horizonte socialista ou mesmo capitalista autônomo. Nos países centrais, a ação do

Estado na economia e na sociedade foi reduzida, privatizações estimuladas, movimento

operário organizado cassado. O grande capital, desonerado; o trabalho, flexibilizado.

Nesse cenário adverso à alternativa soberana, a versão truculenta do liberalismo

conquistou hegemonia mundial. Sufocando essas possibilidades, o receituário neoliberal

ganhou tamanha força que reordenou até programas políticos de forças ditas

progressistas, como o caso de França, Espanha e Alemanha dos anos 1980.

As políticas de estabilidade interna são credenciais desejadas pelas economias

em crise para ingresso no circuito externo. Receitas austeras passam a retirar direitos

sociais e a favorecer o mercado, sempre enfraquecendo a ação social do Estado. Quais

seriam as consequências do giro conservador no campo dos pobres e dos trabalhadores?

Que rebatimentos existem no ambiente remodelado por recessão e supremacia

ideológica norte-americana? Como isso se dá naquela época da redemocratização

nacional e na década de 1990?

O romance representa o giro conservador como um circuito urbano pautado pelo

consumo mercantil. As respostas dadas são sobrepostas. Entre elas, figuram as

dificuldades do imaginário rural idealizado, a entrada de setores pauperizados no mundo

do crime artesanal. Os exemplos respectivos são retirados das narrativas de Valdomiro e

da dupla Zezé e Dinim. No entanto, a mobilidade desse esquema está nas soluções da

vida cotidiana, ainda que sob as condições do trabalho não qualificado, sempre ajustado

ao alheamento da política. Esse quadro vivaz se lê, por exemplo, na aflição da costureira

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Terezinha, na insatisfação da operária Hélia, ou na ingenuidade de Pedroso ou

Sebastião, achacados pelo delegado anticomunista Aníbal.

Pelo seu ângulo próprio, o derrotismo programático se diferencia daquela

subjetividade tipicamente pós-moderna porque seu horizonte é bem preciso. Não há

existências vacantes, nem ânsias por identidade que lhe completem o sentido. A forma

estética se define pelo ponto de vista de classe, figurado e determinado. Esse

comportamento supra-individual guarda muitas semelhanças com a descrição que André

Singer (2012) faz sobre a psicologia social do que chama de subproletariado. Essa

fração da classe trabalhadora brasileira se moveria segundo dois critérios. De um lado,

crença no “Estado Providência”30

, de outro, medo da desordem – o outro nome para as

proposições políticas radicais de enfrentamento do capitalismo31

.

É por meio da lógica de adaptação que a ficção recria a realidade. Entre essas

duas formas, os indivíduos pressionados pela sobrevivência. É bem verdade que esse

imaginário pessimista está muito próximo daquele psiquismo que adia desejos e

prazeres, do mesmo modo que se resigna frente ao atraso das recompensas pelo esforço.

Para ilustrar, há dois tipos de narrativas com funções correspondentes no arranjo

geral. Elas são medidas pelo grau de encadeamento entre si e pelos efeitos gerados no

panorama. Narrativas de longa duração exibem um fôlego da totalidade, porque

fundadas em encadeamentos menos frágeis e de várias ordens. Essas demonstram a

interpretação mais consistente sobre o presente nacional. Por oposição, as de curta

duração, não esboçam aquele sopro e seu encadeamento é sutil ou nulo. Sua função

ilustrativa pouco contribui, portanto, para a densidade geral. Essas, entretanto,

concentram em si a tensão dramática, que produzem comiseração no leitor sensível. Se

no primeiro grupo, o arranjo é construído pelas múltiplas referências a personagens, no

segundo, os indivíduos se descolam da engrenagem. A longa duração permite

30

Um conjunto de ações estatais que combate a pobreza e que, segundo o cientista político, pode reduzir

ou reproduzir da miséria.

31 Os sentidos do lulismo sintetiza esse comportamento social com base em um engenhoso argumento de

seu autor que combina análise dos mapas das eleições presidenciais, a agenda política e econômica. Para

tanto, o cientista político analisa as várias composições de classe dos votos no candidato Lula (1989,

1994, 2002) e as relaciona com os aspectos da conjuntura local e mundial que possibilitaram o programa

de combate à miséria e seu resultado nas urnas, quando da reeleição em 2006.

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continuidade e papel mais ou menos ativo dos personagens, ao passo que na curta

duração os protagonistas figuram como auxiliares da ambientação32

.

A partir desses dois grupos, podem ser lidas tendências narrativas contraditórias

(uma que prima pelo esgotamento e outra que se interessa em continuidades). Estas

derivam da condição oscilante das classes pobres, premidas ora pela escassez, ora pela

oferta do mercado de trabalho subalterno. Por meio dessa unidade de contrários,

assistimos à condução indecisa do romance que expõe o teor de suas ações: sempre a

conduta submissa aos constrangimentos. A roupagem de fragmentação pós-moderna

reveste as duas forças, funcionais à inorganicidade da obra. Nas micro-histórias de

longa duração residem os adiamentos, produtores de eventuais (e futuras) compensações

para os personagens. Nas de curta duração, por contraste, teríamos o esvaziamento

daquela dinâmica de continuidade.

Vemos aí correspondências com o plano político-econômico das vidas que

buscam melhores condições e desembocam num conjunto ilusório de ascensão social

(pelas vias do trabalho formal ou das ocupações precárias). Portanto, resultado real de

uma sociedade que abdicou da perspectiva de integração orgânica da nação em sua

totalidade.

Acreditamos que esse ponto de vista contraditório na organização dos enredos

estilização artística de um traço concreto da sociedade brasileira hegemonizada pelo

capital financeiro. Nesse sentido, a obra estudada propõe uma reflexão, a respeito do

que Roberto Schwarz chamou de sistema em desagregação33

. Naquele momento, o

crítico acompanha as transformações do sistema literário brasileiro e identifica

tendências concretas como falta de organicidade à sociedade de tecido esgarçado. São

evidentes as causas disso: a financeirização da economia e a reestruturação produtiva

neoliberal.

32

É emblemática a cena final da narrativa, exemplar desse grupo, “Vicente Cambota”, do volume III. A

referência à integração do personagem à paisagem não é gratuita, mas sim tomada de implicações tendo

em vista o destino degradado protagonizado por Cambota. Após a sucessão de fugas e derrotas, o

protagonista termina em “uma cratera [que] engole-o, metade dentro do bueiro, metade fora”

(RUFFATO, 2006, p.127).

33 Em “Sete fôlegos de um livro” (1999), como se sabe, o crítico levanta, ao final do ensaio, uma série de

hipóteses sobre as possibilidades contemporâneas do conceito de formação. Publicado originalmente em

1998, o texto, gestado na década essencialmente neoliberal, reflete as questões de que estamos tratando.

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Ricardo Antunes (2011) nos fornece as linhas gerais desse processo de

reorganização profunda das economias nacionais. Alguns de seus resultados fazem

avançar a compreensão do desmanche operado pelo capital internacionalizado. Em suas

palavras, teríamos a desertificação neoliberal. Esse processo acarreta uma série

intrincada de consequências para a classe trabalhadora e, para nós, a mais significativa

se relaciona ao que ele chama de nova morfologia do trabalho:

a redução do proletariado estável, tradicional, manual, especializado, herdeiro

da era da indústria verticalizada. O espaço aberto pela redução desse

proletariado mais estável vem sendo ocupado por formas desregulamentadas

de trabalho. (...) São os terceirizados, os subcontratados, part-time [tempo

parcial], entre tantas outras formas assemelhadas que se expandem em escala

global. (ANTUNES, 2011, p. 47)

Como se percebe são formas precarizadas superexploradas, cujos níveis

rebaixados de remuneração se transformam em atrativos para as empresas

transnacionais. Já atraídas pelos incentivos fiscais dos Estados subordinados. Na ficção,

esse é o ângulo das camadas premidas por violências de toda sorte, inscrita na

“sociedade do desemprego estrutural”. Além de marcadas pela ausência de proteções

sociais e organizada pela desregulamentação do trabalho.

IV

O que tentamos descrever mais acima pode ser encarado como as linhas

formativas da hegemonia neoliberal que moldam o ângulo estilizado em Inferno

Provisório. Este processo social nos parece ser o fundamento real que reorganizou as

visões sobre a sociedade, suas práticas e suas políticas34

. Esse movimento produz uma

comunidade supostamente colaborativa e balizada pela mercantilização. Retira de seu

interior a luta entre as classes e o potencial de resistência à hegemonia conservadora.

O romance exibe no seu conteúdo essa concepção de sociedade, mercantil e

produtora de consumidores, aliada à expansão da indústria cultural. No plano formal,

acumula narrativas de miséria geral sem transformação efetiva, sob a roupagem das

técnicas modernas (fracionamento do relato, simultaneidade discursiva, referências

34

“tenho a impressão de que tampouco a esquerda está se comprometendo a sério com a hipótese de uma

integração acelerada da sociedade brasileira” (Schwarz, 1999, p.57).

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intertextuais). Seus enredos de pouca musculatura têm como eixo relações familiares

que exprimem vasta rede de violências privadas. Encontramos neles um correlato

artístico para aquela visão anódina de sociedade, carente que é de conflitos e projetos

históricos. Além disso, é possível ler na obra a esfera pública desmanchada e as portas

abertas para o individualismo agressivo.

Ponderando esses elementos, concluímos que o ponto de vista do romance

corresponde à sociabilidade neoliberal. Sua destrutividade e autonomia do mercado

programam o dispositivo literário, que se quer crítico à modernização. Desse ângulo,

são narradas as experiências dos indivíduos sem subjetividade e submissos à ordem.

Assim, romance e sociedade se exibem como espaços: a) hostis às mudanças e b) cujos

laços se esfacelam sem adensarem o horizonte da emancipação.

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Questões gerais

Pode-se ler Inferno Provisório como um único romance que deixa à mostra

suas engrenagens. E, por trás do arranjo dos volumes, há uma determinação estrutural

comum, capaz de fundamentar o painel. Nesse sentido, o objetivo do presente capítulo é

apresentar os aspectos gerais que unificam os cinco livros.

O fracionamento das narrativas é o dado que mais chama atenção na

pentalogia. Esse painel se compõe por um duplo olhar: de um lado, com dedicação

microscópica aos elementos cotidianos dos pobres, de outro, com atenção aos

desdobramentos entre as décadas ficcionalizadas. Desse modo, cria-se uma impressão

de desenvolvimento temporal sem, no entanto, mudança qualitativa. Por esse ângulo,

sugerimos que as determinações históricas que programam a estrutura formal do

romance podem ser percebidas no andamento dos seus enredos e não na figuração da

história nacional. São marcantes para o arranjo as interrupções internas e externas das

intrigas, que se encadeiam de modo a travar as ações.

Na dimensão profunda, as interrupções dos enredos individuais se baseiam em

soluções técnicas que suspendem os conflitos narrativos. Em aparente contradição, esse

travamento se inscreve na lógica interna da prosa, marcada pela tendência didática e

ilustrativa. Do ponto de vista da composição, o constante adiamento cria um arranjo de

referências múltiplas para narrativas posteriores. Para tanto, o traço articulador do

conjunto resultante é a intensa remissão ao espaço e aos mesmos tipos sociais.

No plano dos enredos, focalização espacial e pouca variação das personagens

(vizinhos, parentes próximos ou distantes, amigos), buscam apresentar uma vasta gama

de situações da vida dos pobres, no quadro da modernização de fins do século XX. O

painel retira sua matéria das frustrações e angústias, vividas pelos pobres de Cataguases,

Rodeiro e demais periferias metropolitanas. Tendo por base o comportamento passivo

diante de desmandos públicos e privados, o tom fatalista contamina o enredo dos

volumes. No plano estilístico e dos procedimentos construtivos, a lógica é inversamente

semelhante. As várias soluções técnicas são respostas (múltiplas na aparência do tecido

literário e invariáveis na substância) àquele dispositivo formal de pessimismo

sistemático. O vetor explicativo e descritivista, que anima aqueles dois planos da prosa,

é o motor dos procedimentos heterogêneos que a imaginação artística de Ruffato se

especializa em produzir.

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Todas as considerações acima expõem a organização interna da obra. Segundo

o seu próprio autor, o projeto não-burguês pretende ser uma alternativa formal à

estrutura do romance burguês35

. Dando maior precisão a esse pressuposto, trata-se de

uma oposição ao romance realista clássico. Sendo esse entendido como o gênero

literário típico da narrativa do século XIX europeu. O referente social dessa forma é a

franca expansão mercantil à época e a ascensão do individualismo burguês. Como se

sabe, é a figura do herói problemático que centraliza esse tipo de enredo. O romance é

assim uma estilização do cálculo e da ação predefinida pelo burguês. A trama, portanto,

passa a ser a luta pela concretização do objetivo traçado. Nos melhores enredos, há o

poder dissolvente do dinheiro que degrada o comportamento elevado e sublime do

protagonista. Exatamente esse indivíduo, que encarnaria os valores grandiosos do

movimento geral da sociedade, sofre com a dura vida burguesa, encadeando

rigorosamente suas ações por causalidades interna. Desse modo, as grandes linhas do

presente vivido pelo herói mimetizariam o embate entre as esferas objetiva e subjetiva,

fazendo com que essa passagem do tempo fosse encarada como História. Interessante

observar que o leitor pressuposto desse esquema é exatamente o indivíduo que procura

na literatura a sua autorrepresentação. Esse público leitor vivencia e produz o declínio

da experiência coletiva e consequente incapacidade de narrar. Nesse quadro, os

romances realistas reconfiguram esteticamente o crescente fenômeno social do

estranhamento entre os indivíduos e a correspondente incapacidade de transmissão de

vivências profundas.

Ainda buscando pontos de contato, podemos aproximar os desfechos em

suspenso ao aspecto trágico clássico. Esse ponto de vista36

nos informa que a tragédia é

uma das formas artísticas pautadas pela dissolução de significado imanente do mundo.

Nela, os dois termos (indivíduo e comunidade) estão em franca oposição até o momento

de agonia final que tenta a unificação. Como se sabe, o embate entre esses dois polos

35

Em entrevista Ruffato afirma: “Como posso escrever sobre a classe média baixa, sobre o proletariado

usando a forma do romance, que foi criado para dar uma visão de mundo da burguesia? Essa era uma

contradição imensa e passei muito tempo tentando resolvê-la.” Disponível em:

http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/literatura-com-um-projeto-entrevista-com-heloisa-buarque-de-holanda/

36Retomamos aqui algumas distinções expostas em Teoria do Romance, Georg Lukács. São Paulo:

Editora 34, 2000.

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termina por dilacerar o sujeito porque seus valores não encontram mais respaldo no

mundo ao redor.

Em Inferno Provisório, os episódios cotidianos retomam a inspiração trágica

de modo degradado. Nessas narrativas, a localização sócio-histórica dá os contornos das

subjetividades narradas. O embate trágico dos personagens pobres em seu cotidiano se

situa no plano da sobrevivência até o dia seguinte. Esse tom menor corresponde ainda às

incompletudes dos enredos e aos desejos interrompidos dos protagonistas. Desse

ângulo, o abandono de projetos pessoais e a inconsistência do indivíduo dão notícias da

concepção de sociedade figurada. Cremos ser esse também um traço característico da

inorganicidade formal da obra. Lá, não estão figuradas instituições sociais, e sim,

indivíduos alienados; não há heróis, já que não há coletividade. O caráter dispersivo dos

enredos, portanto, estiliza a própria base social precariamente formada no Brasil.

Refletindo sobre o público leitor de literatura, na sociedade então

subdesenvolvida, da metade final do século XX, Antonio Candido localiza um tipo

permeável às novidades vanguardistas e experimentais. O mesmo, no entanto,

submetido a esquemas mentais da televisão e demais veículos de comunicação de

massa37

. No intuito de constituir uma visada de panorama, Candido propõe traços

comuns ao que chama de “literatura do contra”. Sinteticamente, teríamos uma ficção:

Contra a escrita elegante, antigo ideal castiço de País, contra a convenção

realista, baseada na verossimilhança e o seu pressuposto de uma escolha

dirigida pela convenção cultural; contra a lógica narrativa, isto é, a

concatenação graduada das partes pela técnica da dosagem dos efeitos;

finalmente, contra a ordem social, sem que isso se manifeste uma posição

política determinada (embora o autor possa tê-la). (CANDIDO, 1987, p. 212)

Esta avaliação se prende às transformações de uma parte significativa da ficção

que, à época, Candido chamou de “realismo feroz”. Nesse sentido é que se pode afirmar

a estilização de uma sociedade regressiva. As políticas sociais e econômicas de

privilégio do capital, o cerceamento das liberdades democráticas, as penúrias com que a

maioria da população tinha de lidar são energias que programam igualmente as

estruturas ideológicas e artísticas. No que nos interessa aqui, as permanências dessas

37

Depreende-se esse argumento dos ensaios “A nova narrativa” e “Literatura e subdesenvolvimento”. Ambos de

Educação pela noite (1987)

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mesmas estruturas e recursos artísticos funcionam tal qual um acervo comum aos

escritores de diferentes classes e épocas. Importante sublinhar dois comentários de

Candido: o esforço daquele escritor quanto às distâncias sociais e o resultado literário

com a matéria trabalhada.

São apontamentos bastante conhecidos de “A Nova Narrativa” a respeito das

primeiras obras de Rubem Fonseca: o escritor culto e de classe média encurta a

distância estética provocando o apagamento das distâncias sociais que o separa da

matéria popular e violenta que narra. A hipótese também conhecida é provocar um novo

tipo de exotismo, não mais rural, interiorano ou arcaico, mas urbano, metropolitano e

contemporâneo. Assim, o ímpeto das negações se coadunaria com o espírito da

vanguarda artística (“que por motivos diferentes favoreceram um movimento duplo de

negação e superação” CANDIDO, 1987, p. 212) mostrando que mesmo os avanços

artísticos podem dar forma à regressão social.

Diferentemente de Fonseca, Ruffato narra seu universo com relativo

conhecimento38

. Desse modo, a avaliação estética precisa reposicionar sua origem de

classe, à luz da composição artística. Ou seja, interessa apontar a insistente tentativa de

mimetizar a oralidade (que se supõe) típica das camadas sociais representadas. Esse

tratamento linguístico se mostra desajustado, tendo em vista estilo metódico do narrador

em expor analiticamente a matéria.

Por meio de uma breve consideração, o leitor de literatura no Brasil pouco

mudou desde o período considerado em “A Nova Narrativa”. São óbvias as diferenças

nos índices de escolarização formal, no crescimento do consumo e mercado interno, na

posição do Brasil, no cenário econômico mundial do país. Entretanto, não se pode negar

que há demandas reprimidas no que diz respeito ao letramento das camadas pobres. E o

problema aumenta quando consideramos a contraditória passagem da cultura oral para a

audiovisual a que enormes contingentes humanos foram submetidos.

38

Acreditamos que o comentário de Schwarz sobre Cidade de Deus, de Paulo Lins, tenha produtividade

também na ficção de Ruffato. A aproximação se dá pela intimidade de cada um dos escritores com a

matéria narrada. Além dessa relação "autor-material", as balizas históricas e de classe, sob transição (das

favelas à neo-favela, no primeiro, e a migração de Minas a São Paulo-Rio de Janeiro, no segundo) são

outros pontos de contato.

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56

Admitindo esses elementos, o leitor do romance se forma com os mecanismos

da cultura de massas já estabilizados. E essa situação ajuda a compreender a estrutura de

Inferno Provisório. A configuração dos enredos sugere um tipo de leitor que se define,

por um lado, dispensar linearidade e encadeamento causal das ações e, por outro,

sensível às mazelas do progresso à brasileira.

Deste modo, a estrutura fraturada do romance pode ser entendida como

inorgânica. A expressão desse fracionamento são os recortes frouxamente encadeados

do cotidiano miserável das periferias. No conjunto, geram uma representação de

relações sociais pouco diversificadas, mas intensamente exploradas sob o signo da

precariedade e do fatalismo. Esses mesmos tópicos organizam o eixo temporal da

estilização. O mundo que se urbaniza é representado por um alto grau de observação e

minúcia, narrado por uma linguagem crescentemente normativa.

O romance inorgânico revela tanto complicações subjetivas, derivadas de

constrangimentos materiais, como concentração na faixa social específica. Articulando

esses dois elementos, temos um tipo de pesquisa da subjetividade dos pobres ajustada

obliquamente à transição interior x metrópole. Essa passagem, embora formulada por

Ruffato, não é elaborada pelos seus personagens e é indecisamente conduzida na fatura.

A sociabilidade interiorana se reenquadra nas grandes cidades e não se avançam quanto

às motivações objetivas de tais deslocamentos. A ficção se detém enfaticamente na

dimensão subjetiva, sem referências, portanto, ao processo mais geral.

A estrutura do romance não expressa contradição entre a focalização espacial e

a pesquisa íntima de seus personagens39

. Acreditamos que a prospecção subjetiva

funcione como compensação imaginária para a cidadania real negada dos tipos sociais

representados. É dessa maneira que admitimos o ponto de vista contemporâneo, já que

ele parte de uma sociedade altamente desenvolvida, capaz inclusive interpretar o sentido

do seu passado.

Por esse ângulo, a literatura analisada segue uma tendência de revisitar o

passado recente brasileiro. Desde o final da década de 1990, algumas obras servem

como exemplo. Resguardas as diferenças, podemos citar os romances: Cidade de Deus

(1997), de Paulo Lins, Azul e Dura (2002), Não falei (2007) e Antônio (2009), de

39

Tal qual o traço formativo indicado no capítulo “Instrumento de descoberta e interpretação”, de Antonio

Candido, de Formação da Literatura Brasileira.

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57

Beatriz Bracher, Se eu fechar meus olhos agora (2010), de Edney Silvestre. Além

desses, destaca-se Resumo de Ana (1998), de Modesto Carone, não só pelo interesse na

figuração dos pobres, mas pelo denso fôlego histórico. Além desses, são exemplos de

produções cinematográficas que discutem aspectos da ditadura militar: O que é isso

companheiro? (1996), Ação entre amigos (1998), Cabra Cega (2005), Zuzu Angel

(2006), Batismo de Sangue (2007), Cara ou coroa (2012). Os destaques são para os

documentários Caparaó e Hércules 56, ambos de 2006, Condor (2007), Uma longa

viagem (2011) culminando no recente Marighella (2012). Há outras películas em que a

memória do período é tangenciada pelos embates políticos, como por exemplo, em O

ano em que meus pais saíram de férias (2006). Ainda nesse quesito, há filmes que

abordam os conflitos entre as classes e apresentam a violência como elemento central da

presente etapa do país: Quase dois irmãos (2004), 400 contra 1 (2010) e o caso

singular, novamente, de Cidade de Deus (2002).

Embora o ângulo trabalhado por Ruffato seja outro, acreditamos que a sua

literatura tenha diálogos produtivos com as obras que abordam aquele material

histórico. Assim, pode ser considerada positiva, a leitura sobre o passado nacional

recente, já que esse esforço amplia os conteúdos sobre tal capítulo da história brasileira.

Entretanto, Inferno Provisório passa ao largo das preocupações e dilemas quanto à

resistência ao arbítrio. Seja como for, o sentido conferido pelo ângulo do escritor

mineiro foge dos tons dominantes das obras culturais mais recentes, como as citadas,

mesmo daquelas que buscam as contradições do período.

Considerando isso, a ficção estudada se pauta por uma ação sistemática, no que

diz respeito à sondagem da memória daquela camada social. Entretanto, o derrotismo

programático paga seu tributo ao fenômeno da alienação social, acirrada nos anos de

ditadura civil-militar.

II

Parte dos estudos críticos atribui sinal positivo à obra devido aos seus recursos

técnicos. Por meio deles, o romance flagraria adequadamente os dramas existenciais do

cotidiano40

e, desse modo, renovaria os planos dos temas e da linguagem.

40

Além das posições dos comentaristas, parece ser objetivo do próprio escritor internalizar a oralidade e a

sintaxe interiorana. Embora se refira especificamente ao livro Estive em Lisboa e lembrei de você (2009),

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58

Já nos referimos a esse aspecto quando da construção dos títulos. Lá

ressaltamos a marca de fracionamento, incompletude e dualidade na prosa. Além dessa,

há outra manifestação construtiva, relevante aos significados internos aos livros. São as

citações usadas como epígrafes, que formam referências paratextuais. Existem dois os

tipos: as permanentes – que sinalizam o significado do romance total – e as variáveis –

relacionadas às particularidades dos volumes. As epígrafes permanentes são: o excerto

bíblico (E Daniel disse: “Tu te lembraste de mim, ó Deus, e não abandonaste os que te

amam”) e o trecho de Invenção de Orfeu, do modernista Jorge de Lima:

Também há as naus que não chegam

Mesmo sem ter naufragado:

Não porque nunca tivessem

Quem as guiasse no mar

Ou não tivessem velame

Ou leme ou âncora ou vento

Ou porque se embebedassem

Ou rotas se despregassem,

Mas simplesmente porque

Já estavam podres no tronco

Da árvore de que as tiraram

Com exceção dos versos da canção italiana que abrem o primeiro volume, todas

as demais são trechos de poetas consagrados da língua portuguesa: C. Drummond de

Andrade (O mundo inimigo), F. Gullar (Vista parcial da noite), F. Pessoa (O livro das

impossibilidades) e M. Bandeira (Domingos sem Deus).

Cada uma das epígrafes, então, pode direcionar a interpretação dos livros.

Tomemos, como exemplo, o quarto volume. O seu sintagma-título recria os livros

bíblicos que, em sua maioria, costumam carregar o nome do profeta responsável pela

mensagem ou pelo seu protagonista. Há vários exemplos. A epígrafe permanente,

recolhida do “Livro de Daniel”, afiança essa aproximação que ressoa nos versos de

Ricardo Reis, (os deuses são deuses / porque não se pensam).

Colocados em relação intertextual, esses fragmentos criam a imagem de um

mundo implacável para sujeitos desvalidos. Suas desilusões se acumulam num painel

a leitura feita por Ruffato pode se adequar à dicção das narrativas de Inferno Provisório. Cf:

http://www.youtube.com/watch?v=e9pNaYWFPyM. Acesso em 08 de Novembro de 2012

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terrível marcado por recusas e sofrimento. As epígrafes e o tom dos enredos atribuem ao

conjunto de personagens as ideias de fracasso e renúncia. Não é difícil aproximá-las de

um tipo de pensamento católico conservador: aquele que preconiza a obediência dos

fiéis às ordens terrenas, em troca de bonança transcendental.

Além dos aspectos acima, outro importante é o uso seletivo de materiais

linguísticos. É na prosa que podemos verificar o modo como a fala estilizada coexiste

com a escrita normativa. A relevância desse dado está na tentativa de mimetizar a

mobilidade social dos protagonistas. É válido ressaltar certa carência de acabamento na

mescla de registros para representar aquele processo.

Embora falte essa coesão, a obra contribui para a ficção brasileira interessada

no tema. Na voz do narrador, não se opõem mecanicamente os registros popular e culto.

Também não há exclusividades linguísticas para personagens pobres ou de elite. O que

há de específico é a composição da voz narrativa: por um lado, estilização de expressões

coloquiais e, por outro, a típica organização sintática da escrita culta. Por isso, é correto

afirmar que diferenças de classe mais significativas são aquelas internalizadas no

discurso narrativo. Através dessa análise também se pode desvendar a sua pretensão de

objetividade ao conduzir os enredos.

Pelo apresentado, a proximidade empática de narrador e personagens expressa

também o gosto pelos avessos do escritor. Embora a maioria das intrigas apresente a

voz em 3ª pessoa, há algumas poucas narradas em 1ª pessoa. Nestes casos, não se pode

falar em empatia, já que o drama vivido pelo protagonista é por ele mesmo organizado.

Assim, a impressão de fidelidade máxima faz coincidir narração e ato.

Contraditoriamente à organização distanciada de uma experiência, o efeito de desajuste

aparece claramente nesses casos. Ilustram isso as tramas marcadas pelo tom de agonia

devido à proximidade da morte e à loucura do personagem, como “Sulfato de morfina”,

em Mamma, son tanto Felice, e “O ataque”, de Vista parcial da noite.41

Por meio desse

desencontro da verossimilhança interna, sugerimos a existência de um narrador vicário,

capaz de racionalizar os últimos momentos de D. Paula, protagonista da primeira

narrativa, e a vivência agônica do menino esquizofrênico, personagem da segunda.

41

Fato curioso é o de não haver as múltiplas referências em enredos com narradores protagonistas. Assim,

podemos afirmar que essa tendência minoritária diverge do padrão de construção. Contudo pode sugerir

falta de acabamento da obra.

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Desse modo, ambos os narradores, o empático (marcado pela 3ª pessoa distanciada) e o

vicário (expresso por uma falsa 1ª pessoa) se apresentariam como vozes autorizadas a

narrar a experiência daqueles indivíduos. Isso porque íntimos dos dramas por ele

vividos.

Notemos que esse programa muito pouco tem de novidade, caso consideremos

o debate sobre o encurtamento da distância estética, a respeito das vanguardas do século

XX. Se é verdade que o estranhamento mútuo dos indivíduos molda a narrativa

moderna, a tendência analítica e explicativa do narrador se mostra desajustada frente às

principais transformações sociais. É esse o princípio capaz de tornar legível a

experiência dos pobres em Inferno Provisório.

A reflexão se enriquece ao verificarmos que a lógica da adaptação age, no

plano dos procedimentos, por meio da mescla de temporalidades. Tal recurso

construtivo exibe a intenção explicativa a fim de recuperar o passado e gravá-lo no

tempo presente. Desta maneira, a ação vivida pelos personagens se torna uma

sedimentação de eventos sem processualidade, com forte teor determinista.

Domingos sem Deus (2011) tem posição destacada no romance total, quando

observados os deslocamentos espaciais. Nesse livro, está guardada a possibilidade de

leitura retrospectiva, capaz de reorganizar os volumes. O livro refaz o circuito entre as

pequenas e grandes cidades, assim como expõe avaliações sobre os polos daquela

dinâmica. O critério é o desejo de ingresso na ponta avançada do progresso. Essa

motivação é interpretada por alguns personagens como inequívoca marcha de integração

à outra ordem mais positiva (ou menos agressiva) do que a anterior. Isto é, Rodeiro e

Cataguases são locais opressivos para habitantes jovens e velhos, uns menos e outros

mais conformados com sua precariedade. Essas cidades são redutos de violência

masculina e propícios às fugas imediatas ou longamente planejadas. O rumo é ao que

parece ser fortuna e bonança. No entanto, metrópoles e cidades operárias não fixam os

migrantes, deixando-os em constante trânsito.

O arranjo se compõe por duas ordens antagônicas, que desconsideram espaço e

tempo figurados. O desejo de deslocamento dá origem a representações de formação e a

desagregação da comunidade onde vivem os personagens. Em diferentes volumes são

notadas estas duas linhas de força. Consideremos, por exemplo, o primeiro e o quarto.

Nos enredos de Mamma, son tanto Felice, “Uma fábula” e “Sulfato de Morfina”, o

interior é exibido como local de fuga e fixação, respectivamente. Na primeira, o eixo do

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enredo é o jovem André, filho do violento Michelleto. A narrativa ganha em vivacidade

no momento em que o rapaz abandona a fazenda em Rodeiro. Na segunda, o centro é D.

Paula Bicio, flagrada nos momentos finais de vida. A mulher reaviva o passado da

localidade, relembrando a infância e os filhos ausentes. Assim, a narrativa tem o ritmo

esmorecido.

Passando a O livro das impossibilidades, a mesma tendência contraditória em

figuração do espaço se expressa. “Era uma vez” narra a estadia de Luis Augusto,

adolescente inadaptado ao êxtase de São Paulo. No retorno à cidade natal, o espaço

interiorano é francamente positivo. O oposto ocorre em “Zezé & Dinim”, em que

Cataguases é local de evasão. Mas, é bom ressaltar que o Rio de Janeiro dessa narrativa

reserva final terrível e alucinante para a dupla.

A figuração do espaço urbano segue, portanto, o mesmo princípio de

justaposição dos materiais linguísticos já comentados. Ele se impõe sem que haja

supressão do imaginário rural. É possível ler essa permanência em mais um par de

exemplos, nas tramas de “Mirim” e “Milagres”, do quinto volume. Elas se unem pelos

seus tons de encerramento. Em ambas, há a memória saudosa de Rodeiro e Cataguases

ajustada à idealização, transformando o interior em um abrigo contra a desagregação e a

impessoalidade. A relevância dos exemplos é a impossibilidade de retorno concreto dos

personagens, diferentemente dos livros iniciais.

Além do que já foi comentado, os círculos auxiliares dos enredos são

responsáveis por contradições que comprovam a unidade estrutural os livros. Através

dessas linhas secundárias o espaço urbano é lido criticamente, como ponto de chegada

de um longo processo. Dito de outro modo, ainda considerando as duas últimas

narrativas citadas, teríamos os protagonistas desaprovando o ritmo urbano acelerado e

se saudosos da amenidade natal. Assim, seus anseios estão direcionados para o passado

interiorano. Ao passo que as ações dos coadjuvantes estão todas integradas no circuito

das metrópoles e avaliam o processo com as vistas no presente, sem saudosismo ou

ressentimentos interioranos.

Como conclusão, podemos afirmar aquelas duas forças antagônicas se anulam.

Portanto, se ajustam ao bloqueio geral da estética de Ruffato, agora com referenciais

precisos. O ponto de vista das narrativas é o da cidade contemporânea e seu correlato

universo de consumo. Suas linhas sobrepõem a via do favor à frustração do trabalho

alienado (com suas recompensas constantemente adiadas), agora reformadas pelo ciclo

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neoliberal de exploração e miséria. As metrópoles são o estágio final daquela travessia

nacional-desenvolvimentista e onde se reenquadram os saudosismos. Mesmo o regresso

imaginário não escapa à experiência urbana da nova ordem do capitalismo

financeirizado.

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63

Mamma, son tanto felice

O primeiro volume sob a rubrica Inferno Provisório é Mamma son tanto felice.

Um dado marcante, que se repetirá nos outros romances, é o reaproveitamento e a

reescrita de micro-histórias, originalmente lançadas como contos em Histórias de

Rancores e Remorsos, de 1998, e (os sobreviventes), de 2000. Nesse sentido, é possível

afirmar que em 2005 já estava ao menos delineado o romance total, quando da

publicação de seu primeiro livro. Analisaremos a peculiaridade do volume de modo a

buscar sua coerência interna. Isso afasta a leitura que imobiliza os movimentos dos

próximos, já que encara esse como parte do trabalho de racionalização da obra.

Mamma, son tanto felice se organiza com seis micro-histórias, sendo apenas

duas inéditas. As quatro reescrituras se dividem em: uma, do livro de 1998, e três, de

(os sobreviventes). As reformulações internas às narrativas, quando comparadas às

versões primeiras, deixam à mostra a tentativa em conjugar coesão do texto e concisão

vocabular, ao lado de uma espécie de enriquecimento descritivo.

A ambientação de Mamma, son tanto felice é delimitada pelas cidades de

Rodeiro e Cataguases. A circulação cerrada dos personagens apresenta pouquíssimas

referências externas. O espaço dramático restrito está em relação direta às funções

exercidas pelos pais, mães e avós. O interior é avaliado tão positivamente quanto mais

orgânica for a ligação do trabalho com a terra. Por exemplo, a conduta e avaliação de

André, primeiro imigrante de Rodeiro. Filho do velho Michelleto, se desprende do

mundo rural, em “Uma fábula”. O mesmo se pode dizer de Zé, filho de Orlando

Spinelli, confuso com o assassinato do pai pelo agregado e amigo Badeco.

Desse mundo fechado deriva uma atmosfera mítica. Além disso, o ar primevo

das pequenas cidades também está presente nas escolhas linguísticas. Mamma, son tanto

Felice já sinaliza, nas suas malhas discursivas, os deslocamentos espaciais

empreendidos por seus personagens.

O conjunto dos protagonistas de Mamma son tanto felice expressa um princípio

de construção e comportamento que delineia sua psicologia. De modo mais abstrato, o

que chamamos anteriormente de lógica de adaptação agora se expõe mais

concretamente. O elenco de personagens e suas funções nos enredos constituem dois

momentos complementares daquela lógica. Há, portanto, procedimentos diversos para

submissão mais acelerada para uns e mais lenta para os outros. Para ilustrar, essa ordem

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de funcionamento, um exemplo dos coadjuvantes: Rute, filha de Jair, antigo Badeco. A

caçula do ex-agregado se livra dos conflitos domésticos por meio do casamento: “Jair

sabia que, na verdade, o que ela tinha era fugido daquele ambiente, daquela barra-

pesada, para não terminar que nem a mãe ou os irmãos” (RUFFATO, 2005, p. 96).

Ponderado o comportamento derrotista dos personagens, importa destacar a

organização geral desse volume. Ainda que seja característico o efeito de painel, é

possível localizar continuidades frequentes e fortes que sustentam a impressão de

panorama. Há correspondências internas, como espelhamentos entre mães e filhos, e

externas, como situações semelhantes experimentadas. Ora por personagens centrais,

ora por secundários.

A dimensão psicológica é a principal arena das narrativas. São flagrantes de

tensão que demonstram o uso pragmático da memória dos personagens. O enredo que

executa bem esse trabalho da memória é “A Expiação”. Essa micro-história é composta

por três capítulos, em que se espraiam as ações dramáticas, combinadas à técnica do

suspense.

“A expiação” reconstitui parcialmente o passado dos personagens centrais do

enredo: Zé, filho do morto Orlando Spinelli; Jair, o velho Badeco, no leito de hospital, e

Badeco jovem após sofrer a humilhação derradeira de Spinelli. É nesta narrativa onde se

radicalizam os revezamentos temporais, recortando as lembranças do agregado e do

filho confuso de Spinelli. Todos os três micro-capítulos exibem a voz do narrador

empático, conhecedor tanto de Rodeiro como das mentes de Zé e de Badeco.

Pelo seu teor inaugural, e talvez um comprometimento com o público leitor

mediano, o primeiro volume apresenta apenas dois títulos formados pela opacidade. A

camada densa de significado da primeira narrativa, “Uma fábula”, e da terceira,

“Aquário”, as coloca em posições mediais na estrutura geral do livro. Ao passo que os

demais títulos demais tendem à transparência, inclusive tangenciando a

referencialidade, como é o caso de “O alemão e a puria” e “O segredo”. Esses remetem

a elementos superficiais de seus enredos, nesse caso a caracterização da dupla e o

mistério que atormenta o protagonista.

Contudo, a estrutura profunda do livro não se relaciona apenas a opacidade e

transparência. A unidade se refere ao mundo do trabalho figurado e sua cisão entre

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material e intelectual. Em “O segredo”, por exemplo, isso se manifesta na transição de

classe e de geografia.

Esses deslocamentos dão coerência à organização formal do livro. Em suas

narrativas já se pode ler pequenos surtos de migração para Cataguases, sem abandono

total de Rodeiro. Essa permanência do mundo rural e familiar é lida mais claramente

nas duas primeiras histórias.

O volume pode ser dividido em três blocos, cada um formado por duas

narrativas. O primeiro par se apresenta centralizado na figura paterna, movida ora pelo

autoritarismo, ora por heranças degradadas. Em “Uma fábula”, o vingativo velho

Micheletto, pai de André; em “Sulfato de Morfina”, o pai não nomeado de Paula Bicio.

À sombra do patriarcado, os dois protagonistas vivem a formação e o declínio de suas

famílias. O efeito de painel se exibe pela primeira vez. Michelletos e Bicios estão em

contato por meio das linhas auxiliares dos enredos. Segundo André, “o Pai rompeu com

os Bicio, assenhorando-se de que nenhum parente viria rondar coisas suas” (RUFFATO,

2005, p. 21). O legado do mundo rural tem soluções diferentes nesse par. Em “Uma

fábula”, André nega e violência do pai com as experiências urbanas mais sociáveis. Em

“Sulfato de Morfina”, Paula relembra o patriarca Bicio anestesiada no leito de morte. A

exposição lacunar das relações familiares e rurais garante a unidade do mundo narrado.

O primeiro par de narrativas apresenta modificações na ordem patriarcal de

maneira sutil, ao passo que o segundo expõe criticamente os conflitos com aquela

forma. Desse conjunto, fazem parte “Aquário” e “A expiação”, duas narrativas já

conhecidas do público e retiradas do livro (os sobreviventes). Realocadas em Mamma

son tanto felice, o par adquirem novos significados. Sua posição medial no volume

opera uma transição entre a fixação em Rodeiro e Cataguases. Essas narrativas

apresentam uma especial construção no seu tempo interno e promovem a incursão de

seus protagonistas por São Paulo: Carlos, operário em São Bernardo do Campo, e Jair, o

ex-agregado Badeco, em agonia no leito de um hospital paulistano. Por aqui, já se

podem sentir seus alargamentos de espaço-tempo. Os conflitos entre os velhos

patriarcas são redimensionados pelas ações de Carlos e Badeco. O primeiro é o filho

que volta à província, depois da vida urbana. Nesse regresso, ele conduz sua mãe Nica

ao passado de brigas entre o avô Beppo Finetto e Angelo Chiesa. O segundo

personagem é filho de criação dos Spinelli, cuja tentativa de assustar Orlando, numa

vingança branda, termina por matar o proprietário.

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O par final do livro é melhor interpretado pela leitura dos quatro antecessores.

Assim, percebe-se um fio que une duas transformações. Uma moderna, caracterizada

pela modificação relativa de hábitos e emprego dos personagens; outra, mais atrasada,

que repõe os costumes e visões do mundo rural. Esse é o sentido assumido pela

modernização no cotidiano das camadas pobres. E seus termos estão na relação entre os

protagonistas e os coadjuvantes.

“O alemão e a puria” narra o desaparecimento de Donato Spinelli, o alemão, e as

consequências trágicas na vida da esposa Dusanjos, a puria. Na caracterização das

personalidades, a trama exibe espelhamentos: o rapaz é calado e recatado, e sua esposa,

ativa e de temperamento explosiva. Após o desaparecimento misterioso, Dusanjos

experimenta situações que vão da tentativa de suicídio ao mergulho na religião. Do lado

da trama de Francisco Petri, o Professor, de “O segredo”, encontra-se o outro termo da

equação. O ex-seminarista tem a vida atormentada em todas as esferas. Os vértices de

seu transtorno estão na incapacidade em decidir sobre Bach ou Beethoven e na incerteza

do assassinato de Silvana, a filha de sua empregada doméstica Conceição. Desse modo,

a dúvida é reiterada do início ao fim da narrativa, dotando de complexidade o Professor.

Por meio dela, o protagonista se duplica abrigando em si o sentido das transformações

vividas. Regressão ao passado rural idealizado e conforto entre ignorância e vida rústica

são as energias que animam Francisco Preti:

Ia ser padre. Ia ser alguém na vida... Ilusão! Mal sabiam eles que aquilo era a

minha perdição. Porque quanto mais conhecia, mais queria conhecer. E,

quanto mais conhecia, mais infeliz me tornava. (RUFFATO, 2005, p. 162)

Estamos propondo uma leitura que considera progressão de relações sociais.

Nela, se combinam duas forças em choque, atuando para a saída da pequena Rodeiro e

para o estabelecimento em Cataguases. O eixo do volume é um espaço a meio caminho

de contradições fortes e fracas. Seus melhores momentos são: fuga da agressão, física

ou simbólica, operado pelo Pai – visto em “Aquário” ou “Expiação” –, e o retorno

àquele circuito – como se lê em “O segredo”. Nessas narrativas podemos concluir uma

visão de mundo essencialmente urbana marcada pelo isolamento. Esse trânsito

incompleto entre campo e cidade repercute até na dicção do narrador.

A partir desses deslocamentos, se depreendem as avaliações sobre o mundo

rural. Em meio a todas, não está a perspectiva crítica, uma vez que a abertura para o

mundo urbano ignora a política perversa do favor, os cinismos correspondentes assim

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como as regras impessoais que deveriam reger a nova ordem. Desse confronto resulta o

apassivamento geral das personalidades, ou pelas ilusões de ascensão ou pela regressiva

idealização da pobreza.

A avaliação indecisa sobre o mundo rural e patriarcal secciona o livro ao meio.

Nas três primeiras narrativas, o motor do enredo é a formação precária e a violência

doméstica. Nas três últimas, passa a ser desgraça pessoal que reformula o cotidiano do

protagonista42

. Frente àquela ordem, os personagens se imobilizam (como Paula Bicio)

ou tentam negá-lo (como o agregado Badeco ou o menino Zé Spinelli). Do ponto de

vista do narrador, a condução oscilante tenta produzir o efeito de máxima

verossimilhança. Para finalizar esse quesito, os desfechos em suspense e a criação dos

anticlímax têm parentesco com essa indecisão. É funcional à composição que as

narrativas não sejam conclusivas. No entanto, é curta a produtividade desses artifícios.

II

“Uma fábula” acompanha a formação e a degradação da família de André

Micheletto. Ao pai cabem violência e trabalho no campo, à mãe, loucura doméstica.

Dentro dessa rotina, o menino cresce e a família se desagrega. A voz do narrador

empático e observador é exemplar, já que traduz as condutas do velho Micheletto e de

seu filho André, sempre adaptando seu registro linguístico às situações que narra. A

fixação da família se dá através do trabalho artesanal e pesado do patriarca. Por meio de

uma cena descritiva se ilustra a modulação do narrador:

Desdobrou a família, entre machados e queimadas, arados e enxadas, no

fundo do fundo de uma barroca enquistada meio caminho de Rodeiro para a

Serra da Onça, por detrás, cruzando enviesado pelas Três Vendas, pouco

mais ou menos coleando as águas nervosas do Rio Xopotó, uma grota

adquirida com o sol amontado nas costas nos encabritados cafezais do Piau,

solto no mundo, desmamado de pai e mãe, enfezado na empreita da lima das

“ruas” até a panha dos grãos maduros, para depois, orgulhoso, nota sobre

nota, escriturar aquele mataréu vassalo de bicharia selvagem (...).

(RUFFATO, 2005, p. 16)

42

Importa assinalar a relativa mobilidade desses critérios. Estamos tentando flagrar a dimensão estrutural

do arranjo das narrativas, composto pelas diferentes abordagens na condução dos enredos e dos tipos de

personagens (sempre que inscritos num mesmo espaço-tempo).

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De uma só vez, o mundo do trabalho é definido. Nele, se situam o homem em

estado bruto, a sua ação e a sua conduta. O narrador tem destaque nesse trecho por

encadear as muitas informações pela coordenação sintática, fazendo com que o relato

escrito ganhe a fluidez típica da dicção oral. Além disso, a descrição precisa da casa se

harmoniza ao léxico e à sintaxe do mundo que apresenta.

O Pai se contrapõe ao filho André. Após a construção da casa, o homem “caçava

a eva que iria povoar aquele mundo virgem de vozes” (RUFFATO, 2005,p. 17) e

“demorou um nada para preferir uma menina-Bicio, Chiara, recém-moça, catorze anos,

que, pela largura das ancas, mostrava-se boa parideira, embora magra e intimidade”. A

antítese frágil, mas interessante do ponto de vista do personagem, fica a cargo da

percepção contraditória do filho:

Quantos afagos ainda lhe faria aquele homem?, tão alto que temia fosse bater

a cabeça nas nuvens, tão calado que assustava-se quando reboava sua voz, tão

esquisito que ao cruzá-lo no calçamento os desconhecidos, garimpando os

chãos, soltavam um muxoxo, que era um cumprimentar não

cumprimentando, tão sistemático que o evitavam na estrada, cujo capricho

reservara ele todo para seus cercados (...) (RUFFATO, 2005, p.18)

Esse ângulo infantil, cujos “olhos iluminam” tanto seu pai, à luz do dia, como

sua mãe, encarcerada no “quarto proibido”, não resiste ao andamento destrutivo. A

brutalidade ativa do pai se transforma em isolamento e animalização. Primeiro,

responsável por várias mortes (“fosse essa a única morte inscrita em sua testa, já estaria

condenado para o todo e sempre...” p. 20). Depois, pelo cárcere privado de sua esposa,

que perde a identidade e se transforma em Micheletta velha. Por último:

Depois que enterraram a Louca, o Pai, besteiro, concordando na diáspora dos

sobrantes, dispersos aos quatro-cantos Michelettos e Bicios, sitiou-se na

fazendola, homiziando-se entre os animais, comendo, bebendo e dormindo

com eles, bicho-ele-mesmo. (RUFFATO, 2005, p. 23)

Uma vez mais, o Pai e André se correspondem. Agora, no contexto em que o

mundo rural não se desagrega e o industrial não se completa. Para ilustrar esse caráter

indeciso na transição, a imagem da casa dos Michelleto: “barroca asselvajada, temida,

submersa no silêncio primevo, encapsulada no esquecimento, suspensa na memória”

(RUFFATO, 2005, p. 23). Aqui, o timbre elevado do narrador discrepa do tom anterior

e expressa aquela dimensão incompleta dos dois mundos.

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Em paralelo à desarticulação da família, o crescimento de André. O rapaz, ao

alugar em vários serviços sua mão-de-obra, representa as mudanças no mundo do

trabalho. Já aqui com a presença marcante (ainda que pontual) da mercadoria. André

inscreve-se no quadro de diferenças relativas frente à lógica anterior, marcada pelo rude

isolamento do Pai. Por um lado, mantém os vínculos com o trabalho braçal, por outro,

adquire sociabilidade e sentimentos mais complexos: “virava outro, iludido em cima de

sua [bicicleta] Göricke (...), muda de roupa limpa, dentes brilhosos, cabelos finos

assentados com Brylcreem (...)” (p. 23). O que o sintetiza é ter “pé direito na igreja,

esquerdo no botequim” (RUFFATO, 2005, p. 24).

O declínio da ordem rural e o surgimento de outra articulam as linhas centrais e

auxiliares de “Uma fábula”. Através das figuras do Pai e do filho, referidas entre si, vê-

se a transformação do mundo do trabalho. Essa boa operação está acompanhada de

outra mais frouxa. O desfecho privilegia o artifício técnico, em detrimento da

articulação mais profunda. O acabamento hesitante pode ser lido na introdução de

personagens (Pedro, o irmão, e Salvador, conhecido na quermesse) no trecho final, cuja

função não se prende a nenhuma sequência anterior.

O primeiro bloco se completa com a narrativa seguinte, “Sulfato de morfina”,

em que a já idosa Paula Bicio é acometida por alucinações, em momentos que parecem

ser seu final de vida. Do ponto de vista técnico, há mudanças que marcarão o estilo de

Ruffato: a) os grafismos aparecem pela primeira vez, já com as funções típicas de

indicar os discursos direto e indireto, em diferentes cronologias; b) a frase artística

começa a revelar a caracterização enxuta de personagens bem como a técnica descritiva

dos ambientes; c) a recorrência do passado irrompendo a narração do presente, por meio

da memória explicativa. Se no enredo anterior, fora apresentada a rotina masculina, a

esta narrativa cabe a labuta doméstica, igualmente braçal, que degrada a saúde da

mulher.

A fábula possui uma única ação objetiva: a filha Regina e seu marido velam a

alucinação da mãe Paula. Entremeada a essa movimentação externa, aos pedaços, está a

reconstituição do passado (recente e remoto) da idosa, por meio do monólogo interior.

Da consciência do câncer no pulmão ao relato do trabalho de lavadeira, chega-se à

morte do marido Jeremias. A narrativa se encerra com uma lista de detalhes

psicológicos e destino dos irmãos. Essa recomposição íntima da vida de Paula, feita em

registro oscilante entre culto e coloquial, comprova a existência do narrador vicário.

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Esta voz narrativa reorganiza a alucinação da idosa, com pormenores muito específicos

e em linguagem absolutamente distante do tipo social. Aqui, o desajuste entre expressão

e conteúdo aponta para os desníveis estéticos. Em “Sulfato de morfina”, o tom solene é

claramente visualizado nas cenas de afetividade da protagonista. Ou seja, no momento

em que Paula lembra carinhosamente de sua irmã, Chiara, a idosa a caracteriza como

“meia-lua-da-unha, tranças cavalgando a solidão do céu de outono” (RUFFATO, 2005,

p. 39). Em contraste, a formulação de uma ideia sobre o inferno:

“não o do catecismo (...), mas outro, encenado em certa casa, náufraga e

oculta trás um basto bambuzal, para onde convergiam voçorocas e caminhos-

de-formiga, minúscula se avistada do topo do pasto, arrogante se de sob o

assoalho carunchado” (RUFFATO, 2005, p. 40)

O passado familiar dos Bicio se encerra com um amargo delírio sobre o pai,

morto após uma operação hospitalar mal sucedida. A tensão dramática projeta o

sofrimento da mulher na morte do pai bondoso.

Aqui, pai e filha aparecem como portadores de uma marca que articula “sina” e

“inferno”. Revestida de inexorabilidade, essa marca dos Bicio tangencia a religiosidade

e se espalha para todas as dimensões. São duas as imagens do “inferno”: uma de Paula,

já assinalada, enunciada em registro interiorano e sintaxe retorcida; outra de Chiara,

mais objetiva e direta, em meio à privação brutal e extrema: “tem um inferno me

secando os dentros” (RUFFATO, 2005, p. 22). A “sina”, dita por Paula, se expande para

Ariana, a filha de má conduta e vários casamentos fracassados. Aqui, se vê a pauta

derrotista: “Sina? Puxasse o cordão, surgiriam, atadas, as histórias” (RUFFATO, 2005,

p. 37). A coincidência não é gratuita e dá forma à construção da decadência.

Coerentes com este princípio de painel, atadas pelos fios frágeis da memória

afetiva, “Aquário” e “Expiação” enfatizam seus eixos temporais. Assim, as duas micro-

histórias podem ser vistas como momentos de transição na estrutura geral do livro: do

patriarcado rural e violento de Rodeiro para o mundo urbano e industrial, não menos

violento autoritário.

Em “Aquário”, Rodeiro e o passado de privações projetam a sombra sobre os

remanescentes dos Finetto. O reencontro de mãe e filho se dá por conta das férias do

operário na fábrica em São Bernardo do Campo. O espelhamento dos dois se articula à

imigração, diferentemente das motivações privadas de André Michelleto ou Paula Bicio.

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A cena inicial apresenta a reflexão de Carlos sobre a velhice da mãe no instante

em que dá a partida no carro. Os eixos das duas vidas são as violências paternas e os

fracassos amorosos. Nica passa a vida pressionada, de um lado, pela proibição do

casamento com Angelo Chiesa, e de outro, pelos espancamentos de Adalberto. Carlos é

premido pela agressão doméstica, da qual foge desde cedo, e pelo casamento de

aparências com Mariana, filha do dono da fábrica em Santo André. A síntese da

trajetória de ambas as vidas é apresentada, sob o signo da morte: “Agora está morto.

Fernando está morto. Como, de certa maneira, estamos nós todos: eu, minha mãe,

Norma, Nélson. Todos.” (RUFFATO, 2005, p. 46). Interessa dizer que essa formulação

é negada pelo andamento do enredo. O tema da viagem e a reaproximação

desinteressada do filho são forças contrapostas à degradação e ao isolamento geral. O

timbre de encerramento encontra resistência na dupla de “Aquário”. Nessa micro-

história, mãe e filho se opõem à sistemática de derrota e imobilismo. Abrem-se para o

presente e futuro, movidos por diferentes visões sobre amor, felicidade e família.

Já conhecida do público, essa narrativa contém, isoladamente, bom nível de

elaboração literária. Além da simulação de um diário de viagem com o registro das

“estações” com local e hora, a trama articula: a) diferentes temporalidades da vida da

mãe e do filho – o passado remoto das desilusões amorosas e o passado recente das

amarguras; b) grãos de inconformismo face “à sombra daquela tragédia que

contaminava a todos” (RUFFATO, 2005, p. 51).

Além disso, a micro-história é exemplar por conter os alicerces do romance

geral, ao buscar complexidade para seus personagens, ao exibir narradores móveis (em

1ª pessoa, simulando ora o discurso de Carlos, ora o de Nica, e em 3ª pessoa atando os

fios remotos da juventude da mulher às respostas das perguntas do filho). Por fim, cria

uma rede de referências com outros personagens, nesse caso os vizinhos Spinelli.

O enredo reúne qualidades para o ponto de virada do conjunto. A caracterização

em ato dos protagonistas e as opiniões de Carlos sobre a vida (premida pelo ideal e o

possível) são os traços mais marcantes. A negação do pai pelo filho não é abstrata e aqui

é redimensionada pela sua insurgência contra os espancamentos. Carlos abandona a

família acuada, não sem enfrentar fisicamente o pai, bem como o ressentimento da mãe:

“Ela nunca me perdoou por ter rompido com a família, por ter escapulido da

mediocridade [...]” (RUFFATO, 2005, p. 51, grifos originais). A dimensão subjetiva de

Carlos dá relevo às formas mais modernas de conduta. No movimento de ida e volta à

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terra natal, o personagem deixa entrever sementes de uma vida em potencial, negada por

privação e violência. O inconformismo que rompe com a lógica patriarcal responde por

um dos melhores momentos do romance.

Considerando o seu desfecho, “Aquário” confirma o travamento como resolução

dos conflitos. O enigma da viagem não se encerra com a chegada ao destino:

Carlos estaciona no passeio da Areia Preta. Desce, mira o mar agitado, a

praia vazia. Sopra uma brisa gelada.

A mãe acorda, estaca ao seu lado. Raios de sol mergulham nas águas

azuis.

- É uma noite longa... que parece não acabar nunca... nunca...

(RUFFATO, 2005, p. 70)

Como se viu, há critérios duplos. Várias oposições espalhadas: o passado, ligado

a interior, e o presente, à cidade; na vida de Nica, o amor não consumado de Angelo e a

decepção de Adalberto; na de seu filho Carlos, a bancária sem identidade e Marina, filha

do patrão. Também na cena final, aquele critério se mostra. A imagem radiante da praia

ensolarada encerra a viagem externa. Ao lado dela, uma interna e sombria.

“A expiação” completa o bloco de transição no enredo total de Mamma son

tanto felice. Esta trama é composta por três capítulos, cada qual nomeado por uma única

palavra, respectivamente, “Ritual”, “Fim” e “Tocaia”. Estas três subdivisões, com

variação de ângulos, protagonistas e planos cronológicos, têm como pano de fundo o

assassinato de Orlando Spinelli pelo agregado Badeco.

Seus fundamentos estão na linearidade e no registro padrão do narrador. A

referência ao imaginário religioso se reposiciona num quadro social e histórico. A culpa

sentida no fim da vida por Jair (o velho Badeco) decorre das humilhações sofridas pelo

agregado. Essa referência ao favor, no primeiro plano do enredo, se apaga na estrutura

geral do romance. Contudo, é ela quem confere força estética, capaz de reorganizar a

arquitetura do volume.

A ação contraditória do personagem Badeco é simétrica à situação concreta do

agregado na sociedade brasileira. Assim, pode ser vista a ambiguidade do

comportamento do proprietário Orlando Spinelli (violência privada e conduta pública

prestativa). Esse é o motivo da reação intempestiva de Badeco, que será narrada com

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detalhes em “Tocaia”. A posição do agregado na família Spinelli reflete o capricho do

patriarca:

O Badeco, o irmão de criação, agora mais taludo, tentava apartar as brigas,

intrometendo-se nas contendas, mas acabava sobrando para ele também,

porque quando o pai estava daquele jeito, possuído, não via o Badeco, seu

filho de criação, mas o Badeco, seu empregado, e nele batia com o que

estivesse à mão. (RUFFATO, 2005, p.83)

No trecho acima, a situação pendular do agregado é narrada com distanciamento.

E, desse modo, é justificada apenas pelo alcoolismo de Orlando. Contudo, o ângulo

familiar não explica essa relação, já que a propriedade se sobrepõe ao afeto. É isso que

justifica a incompreensão geral sobre o assassinato de Spinelli. A contradição entre pai e

agregado determina o comportamento do menino Zé. O círculo central de “Ritual”

produz influxos nas linhas auxiliares dos dois capítulos seguintes. O menino desse

capítulo associa as surras paternas à desconfiança da autoria de Badeco no crime. Disso

resulta um questionamento profundo no rapaz:

E, pela primeira vez, em sua vida, sentiu uma apreensão esquisita, uma

sensação ruim, um desejo de que... seu pai... não, não... não podia pensar

isso... acabar com o sofrimento... a mãe... (RUFFATO, 2005, p. 76)

As dúvidas interiores do menino abalam a fidelidade cega ao mandonismo de

Orlando. Ao desestabilizar a certeza de Zé, “Ritual” introduz, em chave branda, a

pesquisa literária das relações entre agregado e proprietário. De todo modo, essas

permanências no século XX desqualificam os avanços do que seria uma sociedade

moderna, sob o nacional-desenvolvimentismo.

“Ritual” está no campo das narrativas que opõe modernização dos costumes à

lógica patriarcal. A trama tem como eixo as angústias do protagonista premido pelo

destino do amigo de infância. É o planejamento da vingança pelos primos, selada à

cachaça, que revela o Ritual. O desafio à lógica opressiva não apresenta cenas de

transformação do andamento narrativo. As cenas de maior tensão dramática ficam por

conta de Zé, abandonado ao remorso por não lamentar a morte do pai. Estas sempre

justapondo seus sentimentos à perda da companhia de Badeco:

“o menino seguia imerso na multidão, sentindo, ao invés de tristeza, certo

alívio (...). Por outro lado não consegui sentir raiva do Badeco. Sabia que ele

havia feito uma coisa horrível (...), mas .. ele... devia ter lá seus... motivos...”

(RUFFATO, 2005, p. 84)

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A ordem comunitária rural, simbolizada pelos primos vingativos, absorve apenas

fisicamente o menino, já que sua indecisão subjetiva permanece. Isto de certo modo

internaliza a transição entre as duas lógicas em confronto, cuja resolução não está no

horizonte da narrativa. O desfecho em anticlímax deste capítulo é exemplar, pois o

menino Zé, fragilizado pelo álcool, não encontra respostas para o questionamento

anterior. E ainda acrescenta se Badeco seria um vingador de suas dores e de sua mãe.

O destaque do amigo será desmentido pelas narrativas seguintes, “Fim” e

“Tocaia”. A primeira narra o desfecho do ex-agregado e a segunda, os antecedentes

imediatos às humilhações de Orlando. O segundo e o terceiro capítulo de “A expiação”

não sustentam a força narrativa do primeiro, ao colocarem no centro a figura do

agregado. O artifício do suspense é desvendado em “Tocaia”. Já em “Fim”, o futuro

desesperançado de Jair (o velho agregado) só é revelado na última frase, um conselho

de Orlando Spinelli ao jovem criado.

De todo modo, a suspeição sobre a autoria do assassinato desaparece em

“Tocaia”. A partir dela a vingança de Badeco toma rumo inesperado e contamina sua

vida com sentido negativo. Com esse desvendamento, o foco narrativo pende para o

lado do proprietário. Ainda que a morte de Orlando seja vingança contra os maus-tratos,

não há como dissociá-la de um retrato social marcado por dependência e propriedade.

Para a ponta pobre, os códigos de conduta são internalizados como penitência pelo mal

comportamento dado a seu patrão.

O ponto de vista justificador parece evidente e os recursos comprovam isso: o

narrador executa uma prosa tradicional. O avanço na cronologia deste capítulo funciona

como retardo nas resoluções dos conflitos narrativos. No enredo, não há contraposição

ao destino derrotista de Jair. Sua vida é sucessão de ajustes às misérias: a cena de sua

agonia no hospital; a decepção com os filhos, Jairzinho e Orlando, envolvidos com o

tráfico de drogas; sua esposa Rosa, doente mental, morta por atropelamento.

A cidade urbana, livre dos enquadramentos do favor, é o local onde se

desenvolve a vida adulta de Jair. Nela, são apresentados os elementos que transformam

as ações centrais do enredo. Destaque para as ocupações de Jair, para seu filho operário

Josué, bem como para os delitos de Jairzinho e Orlando. O registro linguístico, mais

normativo, funciona como o modo expressivo das situações metropolitanas, tanto do

discurso de narrador como de personagens. Em “Fim”, os blocos de presente e passado

se alternam para explicitarem a formação da família de Jair, agora estabelecido como

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pai do clã, sem sobrenome nem antecedentes (“sou sozinho no mundo. Minha família é

vocês.” RUFFATO, 2005, p. 96).

Neste capítulo, há a reedição da imagem do protagonista à beira da morte. Em

circunstância semelhante à de Paula Bicio, de “Sulfato de morfina”, um narrador

comovido organiza o presente e o passado da idade madura do ex-agregado. O enredo,

assim, se constitui pela sequência de: trabalho duro e assalariado, conversão à religião e

construção da moradia, sem serviços públicos básicos. Um conjunto de experiências

cuja função parece ser a “expiação” pelo assassinato de Orlando. Por fim, o último

bloco narrativo, onde é sugerida a morte de Jair, concentra o suspense. São

desencadeadas lembranças positivas dos filhos, num passeio em Praia Grande, e

alucinação com o “padrinho”. A fala tenra de Orlando que pousa as mãos sobre os

ombros do jovem Badeco, diminui o ritmo tenso com que foi narrada a vida de Jair.

Essa cena final aponta a resolução dos conflitos acumulados. O caminho é o da

conciliação do agregado com o mundo rural e violento.

A volta ao passado de Orlando e Badeco é o tema central de “Tocaia”. Como se

pode inferir, as relações violentas que o capítulo organiza têm relevância no conjunto.

No entanto, esta narrativa parece ser demonstração de virtuosismo técnico do escritor.

Pela sua posição na sequência dos capítulos, pela prosa sem mesclas estilísticas nem

padrão frasal, ela funciona como justificativa mecânica. O gesto é esteticamente

regressivo, porque a agressão de Spinelli já cumpre o papel de rebaixar o agregado:

Orlando mandou que ele fosse para a calçada, subiu na charrete, falou:

Agora, macaco de uma figa, você vai dar uma volta no jardim, bem

bonitinho, igual a um tiziu! Badeco resistiu, mas Orlando pegou o relho e

deu-lhe duas chibatadas nas costas. Ai, padrim! Ai, padrim! E começou a

desfilar. (RUFFATO, 2005, p. 104)

Esta é a cena que explica a vingança de Badeco. Agindo, ele discrepa da

submissão. No entanto, as consequências ficam interrompidas e o jovem se enquadra no

jogo de forças que lhe perseguirá até a morte.

O terço final são as tramas “O alemão e a puria” e “O segredo”. A vivência sob

o jugo patriarcal, o confronto e a negação dessa lógica, a adaptação ao mundo urbano e

as relações de trabalho industrial são as linhas desenvolvidas no livro. Esse último par é

o espaço contraditório para seguirem novos caminhos e retornarem a antigos.

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As duas últimas intrigas figuram a modernização das atividades produtivas e dos

costumes dos personagens. Nelas, já se delineiam personalidades mais ativas.

Formalmente, esses elementos estão mais próximos do centro de seus enredos. Ou seja,

o conteúdo anterior, posicionado nas linhas secundárias, agora começa a se tornar eixo.

Entretanto, essa centralização de aspectos mais modernos não é completa. A ela se soma

um tipo alternativo de progressão temporal, pouco trabalhada nos enredos anteriores.

Neste último bloco, a passagem do tempo interior é mais estendida. Desse modo, há

maior alcance dos encadeamentos.

“O alemão e a puria” abre caminhos para o romance, introduzindo personagens

que surgirão no volume seguinte. O dado mais significativo é a primeira aparição do

emblemático Zé Pinto. Aqui, o dono do cortiço de Cataguases surge já estabelecido em

seu comércio e a sua propriedade é algo pressuposto. Zé Pinto, mesmo periférico no

enredo, simboliza a lógica comercial, em oposição aos contratos pessoais. “O senhorio

ofertou um três-cômodos, ditou o valor do aluguel mais a pena d’água, adiantou que

exigia carteira-assinada” (RUFFATO, 2005, p. 110).

Se, nas margens do enredo, as novidades ocorrem em profusão, isto não

acontece com os dois personagens do centro. Donato, cuja aparição lateral em “A

expiação”, soma-se a Maria dos Anjos, sua esposa, e seus históricos são narrados de

modo convencional. Nessa trama, a construção pelo espelhamento sofre uma pequena

alteração. Aqui, os protagonistas formam um casal que deseja sair da pequena Rodeiro.

Criam-se, assim, diferentes possibilidades para a dupla: a indústria, para Donato, e o

casamento por vontade própria, para Dusanjos. As personalidades também chamam

atenção: o isolamento do rapaz é contrabalanceado pela altivez da mulher, que,

entretanto, não resistirá à sua ausência prolongada. O convencionalismo não resiste ao

desfecho da intriga. A cena final é resistente em desvendar as causas do conflito central.

A narrativa pode ser lida como a absorção da mulher às estruturas sociais

regressivas em processo de modernização. O fato que movimenta o enredo é o

desaparecimento misterioso do marido e a consequente desconfiança da comunidade. A

partir disso, constitui-se uma rede solidária em torno de Dusanjos. A comoção geral

aumenta tanto quanto a passividade da esposa. A recorrência ao passado justificador dá,

por contraste, o tom do amoldamento da doméstica. Donato funciona, na estrutura da

dupla, como permanência da lógica patriarcal, contra a qual a esposa resistia, através da

sua relação afetiva.

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A composição da quinta narrativa indica, para o enredo geral do livro, novas

contradições da camada pobre sob modernização. A antiga mulher determinada na

busca pelo marido regride à solidão e deseja a morte quando de um alagamento do Beco

do Zé Pinto. Após aquela chuva torrencial, decide voltar à vida para cuidar do filho

recém-nascido. Este é o momento de transformação da narrativa: Dusanjos empreende

uma corrida pelas religiões. Na medida em que cuida do filho, a mulher rejuvenesce e

passa pelo espiritismo, candomblé e protestantismo. Em cada resposta vaga das

religiões, a mulher vê a certeza do retorno do marido. Em consequência, um crescente

apaziguamento. O avanço de cinco anos faz com que Dusanjos seja absorvida

completamente pela rotina religiosa e doméstica, ao ponto de esquecer o marido. Nessas

sequências, há distensão clara. A cena final, composta por apenas um parágrafo, acelera

o ritmo da narração com a volta de Donato, anunciada furtivamente pelo discurso direto

da vizinha Olga. O desfecho em clímax adquire duas funções: garantir o efeito de

suspense, ainda que parcialmente resolvido e servir como material para novas

retomadas.

A última narrativa desse volume é uma republicação do livro (os sobreviventes),

de 2000. “O segredo” encerra o livro combinando alguns procedimentos estilísticos e

formais já experimentados com um quadro de elementos preparatórios para os volumes

seguintes. A figura central é o professor Francisco Pretti, cuja formação e identidade são

diluídos em momentos estratégicos da narração. Sempre encadeadas às ações que se

desenvolvem no presente, as referências ao passado funcionam como dosador da tensão

vivida pelo protagonista. Entre essas dosagens, a experiência de isolamento do

Professor. No que diz respeito ao modo de organização do enredo, encontram-se

semelhanças com a técnica já executada em “A expiação”. Se lá, a ordem das ações não

segue o tempo cronológico e apoia-se na dispersão de focos narrativos, aqui a

experiência se unifica em único ângulo, tão desestruturado quanto a subjetividade

figurada.

Indecisão é o principal modo de conduta do protagonista face às alternativas que

se apresentam. Esse comportamento se mostra em vários momentos da narrativa e todos

conduzem ao fracasso. Considerando a posição social e os hábitos correspondentes,

Francisco Pretti é um indivíduo que, nos momentos iniciais da trama, parece integrado

ao circuito urbano. O gosto pela música clássica, sua condição de professor com

veleidades literárias e jornalísticas, e suas confusões mentais expressam costumes

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refinados. Por esse modo de construção do personagem, vê-se que ele encarna um tipo

que ascende socialmente por meio da educação formal, figura inédita até então. A

integração à cidade cria para Francisco condições de circulação por vários setores da

sociedade. O que, não obstante, implica um cotidiano de alheamento a esses círculos.

São duas as personagens que modificam a ação externa do Professor. Conceição

e Silvana retiram Francisco da rotina burocrática. Conceição, pela morte; Silvana, pelos

tormentos psíquicos.

Conceição é representativa porque, em sua primeira aparição, questiona

Francisco sobre a felicidade. A pergunta da empregada desencadeia o passado familiar

em Rodeiro:

O Professor levantou os olhos, “Sim?”, a moça parou, auscultou a tarde, e

arguiu-o: “O senhor, um homem lido, que sabe de tanta coisa... o senhor... o

senhor é...”

Feliz? O Professor fechou o livro, o indicador esquerdo marcando a página,

arrastou-se até à janela, o mormaço sufocava as plantas, Feliz? (RUFFATO,

2005, p. 131)

O segundo momento expõe a ausência devido à morte. O protagonista se move,

para além de suas indefinições, rumo ao Beco do Zé Pinto a fim de prestar algum

socorro à família da empregada. É lá onde toma contato com Silvana, a sombra que

paira sobre acusações e reclamação em discurso direto.

O tom elevado da prosa culta dessa narrativa é um dos primeiros aspectos

divergentes do padrão construído ao longo do volume. Para a composição, pode-se

supor que se trata de uma busca por unidade de modos expressivos e conteúdos,

conquistada pela ascensão social do filho de fazendeiro estabelecido em Cataguases. Por

esse ângulo, o registro culto pode significar uma mimese dos padrões e hábitos com os

quais Francisco entra em contato. Em outro plano, os traços estilísticos que tipificam a

frase artística de Ruffato não comparecem nessa micro-história.

O contraste fundamental do enredo é o “retorno às origens” de Francisco,

empreendido como resposta possível para sua condição desolada na cidade. Nessa volta

a Rodeiro, o narrador empático situa a paragem: “Lá longe, no meio do pasto, uma

casinha de sapé, fechada, abandonada” e o Professor formula “Ninguém quer mais ficar

na roça, a moda agora é a cidade”. (RUFFATO, 2005, p. 139, grifos originais). Essa a

única frase afirmativa do personagem, em meio à paisagem arruinada que lhe suscitará

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alucinações com a família. Após essa cena, é criado um turbilhão de acontecimentos,

cuja alternância de ritmo varia da lenta rememoração às aceleradas acusações. Por aí se

mostra a confusão mental do sujeito: o plano reiterado de assassinar Silvana, o contato

com um matador de aluguel e, por fim, o pesadelo de julgamento e crucificação na

praça pública, com ecos rasamente kafkianos.

III

Procurou-se apontar que esse primeiro volume não é só um quadro de

fragmentos isolados. Mas sim uma estrutura com movimento interno, unidade de

sentido e desenvolvimento de conteúdos. A constituição estrutural dos seis enredos

apresenta procedimentos semelhantes que se podem perceber nos espelhamentos entre

personagens, assim como nas modificações internas do arranjo. No que diz respeito à

figura do narrador, já se pode notar que a mescla de registros linguísticos é relacionada

à representação do espaço. Mas, sobretudo, revela uma atitude deliberada do autor em

adequar a expressão à matéria narrada. A progressão temporal merece destaque, pois

organiza em profundidade a estrutura do volume, como é o caso dos blocos 2 e 3.

Significativa também é a crescente complexidade dos personagens, tal como

exemplificado em “O segredo”. A posição desta narrativa no arranjo geral ajuda a

perceber a construção problemática do personagem Francisco Pretti. Positiva nesse

processo é a centralização das angústias e fracassos, em uma única subjetividade. É por

meio dessas operações formais que o dispositivo literário ganha relevância. Entretanto,

a construção da precariedade, por meio da psicologia dos personagens, não deixa de ser

ela própria precária. O sentido da transição campo x cidade é, a um tempo, regressivo e

ilusório, tal como visto nos momentos pré-morte de Paula Bicio, em “Sulfato de

morfina”, ou nas aflições de Francisco Pretti, em “O Segrego”. Lá se percebe que a

volta ao passado original não pode ser feita senão pelo desvario.

As possibilidades formais abertas por Mamma son tanto felice

contraditoriamente vêm acompanhadas de um timbre de fechamento. São histórias de

parentes mortos, pais abandonados, filhos rejeitados, rancores e ressentimentos com o

passado, cujos desfechos são compostos em anticlímax. A experiência degradada dos

descendentes de italianos serve de matéria, portanto, para as novas degradações, como

se lerá em O mundo inimigo. Fazendo, assim, com que as injunções perversas da vida

miserável tenham vida longa. No segundo volume, a dimensão do trabalho malogrado

em São Paulo ou em Cataguases ditará a pauta derrotista dos pobres sob a modernização

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desenvolvimentista: a vida rebaixada e dependente, por um lado, e com a sombra do

enquadramento interiorano, por outro.

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O mundo inimigo

O segundo volume guarda semelhanças com o livro inaugural da pentalogia.

Também publicado em 2005 e composto pela reescritura de, pelo menos, cinco de suas

doze narrativas, O mundo inimigo apresenta ao leitor uma quantidade ainda maior de

personagens e situações ambientadas em Cataguases. Conhecidas de Histórias de

Rancores e Remorsos, de 1998, e (os sobreviventes), de 2000, “Amigos”, “A solução”,

“Jorge Pelado”, “A danação” e “Um outro mundo” repõem o tema da migração, da

insatisfação, dos retornos e ressentimentos.

Assim, O mundo inimigo pode ser lido como o livro de maior vivacidade em

soluções técnicas. Essa grande variedade se expressa, por exemplo, nos diversos tipos

de organização dos enredos: há os que tendem ao convencional, os que abusam da

mistura de planos temporais e outros que investem na construção de quadros estáticos e

foco restritivo nos personagens. Além do aspecto técnico, o timbre das narrativas é

condensado na epígrafe variável, retirada da obra de Drummond, “Toda história é

remorso”43

. Por esse ângulo, o livro exibe variações do derrotismo programático.

Seu arranjo geral está fundado em pequenas sequências, apoiadas em

continuidades internas aos enredos. Por meio dessas, notamos falta de adensamentos e

ausência de mudanças qualitativas de uma seção a outra. Há uma possibilidade de

agrupar o conjunto das doze narrativas aos pares, estabelecendo como critério o fio

condutor interno dos enredos. Inseridas todas as tramas no ambiente cerrado de

Cataguases, as suas continuidades se dão pelo parentesco e vizinhança dos personagens.

Além disso, há um movimento temporal, relativamente complexo, que se inicia no

presente da comunidade, recua ao seu passado e retorna ao início.

De modo mais concreto, o esquema proposto para O mundo inimigo baseia-se

numa combinação de temas e desenvolvimento temporal não linear. Do ponto de vista

temático, formam pares ao longo de quase todo o livro. Considerado esse ângulo,

existem seis grupamentos de enredos. Do ponto de vista temporal, os arranjos ganham

matizes. Luzimar e Zé Pinto são balizas fundamentais para esse quesito.

O par inaugural “Amigos” e “A demolição” apresenta Luzimar, Gildo e Gilmar,

ex-amigos de infância, já adultos e trabalhadores estabelecidos em seus empregos. O par

43

Trata-se do último verso de “Museu da Inconfidência”, integrante de Claro Enigma (1951).

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final “Um outro mundo” e “Vertigem” apresenta, respectivamente, a degradação física

de Zé Pinto e a busca de Margarida, amor da adolescência de Amaro.

Entremeando estes polos, há ainda dois grupos com temporalidades diversas. O

primeiro, formado por cinco tramas: “O barco”, “A solução”, “A mancha”, “Jorge

Pelado”, “Ciranda, Paisagem sem história”. Nelas, figuram, por diversos ângulos, a

infância do menino Luzimar. O segundo, formado por “A danação” e “A decisão” que

não fazem referências ao rapaz.44

Portanto, a lógica deste esquema seria a mesma da

chave de interpretação geral da romance: o ângulo contemporâneo reanalisando os

eventos passados.

Há pouquíssimas especificações históricas explícitas nos enredos de O mundo

inimigo. No entanto, interesses e desejos dos personagens deixam entrever traços que

ligam o eixo narrativo ao desenrolar da história brasileira: a crescente presença da

cultura de massa no cotidiano dos pobres, (“A decisão” e “Ciranda”), a atração dos

migrantes para as metrópoles (“A danação” e “A decisão”), o saudosismo do arbítrio e

desconforto com as leis (“Um outro mundo”). Em síntese, faces do processo de

urbanização da sociedade brasileira.

Interessa apontar recorrências no modelo narrativo. Temas como o amor

adolescente, em “Vertigem”, ou a hipoteca dos pertences domésticos, em “A decisão”,

serão desenvolvidos, posteriormente, em “Carta a uma jovem senhora”, do volume IV, e

em “Sorte teve a Sandra”, do volume V. Há ainda aspectos estilísticos como o

“parágrafo infinito” de “Um outro mundo”, em que a experiência do protagonista, se

espraia no tempo e no espaço, como se lerá também em “Haveres”, do volume III. Com

isso, afirmamos que as soluções técnicas têm produtividade relativa, do ponto de vista

da imaginação formal.

As duas primeiras e as duas últimas narrativas são fundamentais para o ponto de

vista implícito do livro. Além disso, exibem a vertiginosa oscilação do narrador e a

multiplicidade de enredos. A importância destes dois pares está em apresentar e tirar

consequências do trânsito entre o interior e a metrópole, a partir dos conflitos narrados.

44

Entretanto, este par expõe uma temporalidade subterrânea quando verificados os conflitos vividos pelos

seus protagonistas, Zito Pereira e Vanim, respectivamente, e sua relação com a migração para as

metrópoles.

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Por meio das relações de operários e comerciantes, dos que migraram e dos que ficaram,

podemos ler alternativas para os trabalhadores no quadro de mobilidade social.

II

“Amigos” e “A demolição” se unificam pela presença do personagem Gildo,

operário em São Paulo, que despreza Cataguases (limitando-se a viagens de visita à sua

mãe, D. Marta). As duas micro-histórias recolocam, no presente da narração, as

memórias de sua juventude. Em “Amigos”, de modo mais sintético, as reminiscências

são acionadas no encontro com Luzimar, em uma véspera de natal. Em “A demolição”,

de modo mais detalhado, na conversa com o irmão Gilmar. Os conflitos gerados em seu

entorno limitam-se à esfera privada, ao consumo de mercadorias e aos hábitos urbanos.

No primeiro enredo, há desfile de carros, televisores, roupas, permeando a áspera

discussão com Luzimar. No segundo, o drama se desenvolve no debate surpreendente

com o irmão Gilmar.

Do ponto de vista técnico, as duas intrigas se destacam pelo recurso do diálogo,

como raramente se lê em outros volumes. A centralidade do embate verbal Gildo-

Luzimar faz diferenças de classes se mostrarem no próprio discurso. A demonstração de

arrogância e de relativa superioridade metropolitana se comprova em:

- E as novidades? [pergunta Gildo]

- Novidades? Aqui não acontece nada...

- Ah, lá isso é verdade. Tem uns sete anos que fui embora e... o quê que

aconteceu por aqui? Nada, nada, nada...

- É...

(...)

- E... E São Paulo?

- Quê que tem?

- É... é bonita?

- Bonita? Sabe que nem sei... É grande... e boa pra ganhar dinheiro. Pelo

menos, eu não posso reclamar, não... fui pra lá, arrumei emprego, ganho bem,

comprei até carro, você viu?, um fusquinha verde aí fora, mando dinheiro pra

mãe... Dá até pra ajudar a Ana Elisa e a Ana Lúcia de vez em quando, lembra

delas?

(...)

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- Você se deu bem, né, Gildo?

- É. Mas não foi fácil não, cara... Pastei muito, no começo...

- Mas é melhor do que ficar aqui, né?

- Ô, se é! Também, essa cidade é uma bosta, não tem nada (RUFFATO,

2005, p. 19-21)

Além da supremacia discursiva de Gildo, o trecho ilustra as oposições que

marcam a prosa. A representação do diálogo é variável quanto às posições de classe em

choque. Através dessa diferença, se mostram as possibilidades da modernização. Nessa

narrativa, são repetidos os clichês sobre a cidade grande: modernidade se associa a

consumo e este, a bem estar. Em “Amigos”, Gildo é a figura dos valores do consumo e

conduta metropolitanos, depreciativos de Cataguases. Para tanto, o sujeito lança mão de

uma série de atitudes negativas que se avolumam até o desfecho.

Em momentos representativos, a mescla de registros do narrador deixa de ser

lida como hibridismo retórico e pode ser lida como estilização da mobilidade social

encarnada pelos personagens. Ao apresentar a angústia do operário mineiro, a voz

narrativa se aproxima linguisticamente do universo desse trabalhador, entretanto com

rigor de paralelismos sintáticos: “Luzimar panha a bicicleta, e devagar, corta a Vila

Domingos Lopes (...), ansioso cruza a Ponte Nova (...) duvidoso transpõe a Pracinha,

(...) entra na Vila Teresa (...), apeia, fulo, soca o selim, (...) (RUFFATO, 2005, p. 15)”.

O trânsito do narrador pelo léxico coloquial e pela sintaxe culta projeta a estrutura do

romance inteiro. O conjunto de dissonâncias é mais claramente percebido quando se lê o

estranhamento de Luzimar frente ao novo velho amigo:

Sorrateiro, o silêncio rasteja pela sala, a língua bífida auscultando o ar,

visguento, pegajoso, tão longe daquele outro, da infância, quando sentados,

no chão da chácara, nem percebiam as horas esgarçando nas páginas das

revistinhas que o Gildo e o Gilmar compravam na banca do Italiano na Praça

Rui Barbosa (...). Eram estranhos, agora. (RUFFATO, 2005, p.16-17)

O discurso indireto do narrador dá forma à constatação do operário interiorano.

Aqui, o registro e o tom são bem diferentes do anterior: o léxico é outro e a sintaxe,

embora culta, também o é. Nesse sentido, o estranhamento entre os personagens

também é produzido pela voz desse narrador, em meio ao conflito rés-do-chão de

companheiros de infância. De todo modo, essa mobilidade entre registros não

potencializa o conflito dramático e soa como desenvoltura canhestra. Considerando o

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desfecho de “Amigos” em que Gildo ofende seriamente Luzimar, (e, por extensão, a si

próprio) a narrativa parece tomar o partido da periferia. O final em suspenso critica o

acúmulo de ações negativas do já alcoolizado Gildo: “D. Marta agacha-se junto ao sofá,

sussurra, “Gildo, meia-noite... Não vai abrir a sidra que você trouxe não?” Ele vira de

lado, grunhe qualquer coisa, volta a roncar.” (RUFFATO, 2005, p. 26) .

Em “A demolição”, o personagem arrogante continua no centro do enredo.

Entretanto, transforma-se a apreciação sobre Gildo. Nesta intriga, ele protagoniza as

ações com seu irmão, atual dono de um bar, no bairro da Saúde, e fracassado jogador de

futebol. Tecnicamente, “Amigos” e “A demolição” se completam pelas estruturas

diversas de enredos. Se a primeira é mais convencional, a segunda alterna planos

dramáticos e temporais. Elas se unem, inclusive, na demonstração das vidas arruinadas

(tanto dos que partiram, como daqueles que ficaram). Gilmar é emblemático, nesse

sentido, pelo par que forma com Luzimar. O dono do comércio, pela frustração

subjetiva, o operário, pela precariedade material.

Os quatro quadros que compõem “A demolição” se ligam frouxamente, tornando

o enredo uma sucessão de núcleos dramáticos. O desfecho é o arrependimento de

Gilmar. No início, as etapas da migração, auxiliada pelo tio, rumo às categorias de base

dos clubes. O ponto de virada é o seu estabelecimento no comércio. A psicologia

problemática de Gilmar se expressa em dois blocos narrativos. Os fatos que a revelam é

a venda da casa de infância e o uso do dinheiro para a viagem da filha. Neste enredo, a

recorrência à memória do sujeito é explicativa do trauma: ao mostrar o personagem

perplexo com a demolição, a narrativa empreende uma viagem ao seu passado. O

encaminhamento é, simultaneamente, óbvio e obscuro: o acúmulo de situações

inconclusas no passado sugere a razão do desespero de Gilmar, no presente.

“Vinte e cinco anos depois, urgia Gilmar voltar a Cataguases” (RUFFATO,

2005, p. 38). Esse é o trecho que finaliza “A demolição”. Mais uma vez, o narrador, que

oscilava entre culto e coloquial, demonstra concisão e precisão estilística. Retirados os

excessos vocabulares, detalhismos explicativos, “A demolição” caracteriza de modo

mais interessante o protagonista. Ao opor a bonança financeira à interioridade

dilacerada, a trama aponta as contradições do comerciante “bem de vida em São Paulo”.

Ele que, sem sucesso na carreira futebolística, ostenta amargamente “uma página da

revista Placar, em que aparece, em segundo plano, observando desfocado, uma jogada

importante (...).” (RUFFATO, 2005, p. 33). Esse mesmo Gilmar, ressentido da terra

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natal “se esquivava dos conterrâneos em São Paulo, para não lembrar, hora alguma, de

sua origem (...).” (RUFFATO, 2005, p. 30).

A transição urbana se completa com “Um outro mundo” e “Vertigem”. A

penúltima narrativa de O mundo inimigo talvez seja uma das que melhor traduz o título

do volume. Nela se lê um balanço da vida de Zé Pinto, marcada profundamente pela

austeridade. Em “Vertigem”, a degradação física e subjetiva é narrada em ato, através

da busca obstinada de Amaro por Margarida, amor adolescente. Ao contrário de “Um

outro mundo”, está subtraído o mundo do trabalho.

Embora haja profundas diferenças estruturais entre essas tramas, ambas se

adéquam, com imagens e timbres, ao encerramento do livro. Tanto Zé Pinto,

protagonista de “Um outro mundo”, que se deixa no sofá madrugada adentro

“até que a manhã, com seus barulhos, o surpreenda e a vida volte a girar,

sem amigos, compadres, parceiros, nem ninguém para lhe fechar os olhos na

hora em que a indesejada encostar no batente da porta para anunciar o

fim” (RUFFATO, 2005, p. 186, formatação original)

como a aparição pálida, de “baba no canto da boca, o corpo penso, inerte”

(RUFFATO, 2005, p. 192), descrita em “Vertigem”, não se comparam ao ativo

comerciante de outras histórias.

As imagens de degradação recebem destaque quando se atenta à ação da voz

narrativa. O narrador empático de “Um outro mundo” demonstra grande capacidade na

organização das memórias do indivíduo. E o faz associando, à derrota pessoal, a

decadência do Beco. O tempo histórico modernizante, que degrada Zé Pinto, é o mesmo

que lhe traz a insatisfação com as regras impessoais da polícia.

“O nível dos inquilinos caiu muito. Agora, no beco, só gente desgarrada. Sem

eira nem beira. Desqualificada. (...) Antes, a lei comandava. Não pagou o

mês?, descia, revolvão na cintura, bem à mostra, tirava o Zé-mané no muque.

Agora, a coisa se resolve com a polícia. Trata os soldados a pão-de-ló,

precisa deles.” (RUFFATO, 2005, p. 178).

Isso deixa ver o grau das transformações inscritas no cotidiano das camadas

pobres. A crescente presença da polícia não é acompanhada de outras instituições

sociais capazes de criar mediações entre as esferas da vida cotidiana.

“Vertigem” dá outro rumo à modernização. Se, na primeira, a atuação da polícia

interrompe a eficácia dos métodos de Zé Pinto, na segunda, é o hospital psiquiátrico que

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se interpõe na busca de Amaro. Neste enredo, não há o efeito de acumulação de

situações derrotistas, mas sim uma alternância de tensão e suspense, cujo ápice é a

imagem final. Margarida é apenas “cabeça enfiada sob o lençol de algodão cru (...),

panos imobilizando os pulsos e os calcanhares à cama-de-ferro.” (RUFFATO, 2005,

p.202). Este estado precário da mulher, despersonalizada por sucessivas metonímias,

qualifica o resultado da procura empreendida por Amaro. Margarida doente já não mais

o reconhece.

Projetos de vida incompletos, latência de traumas passados fazem coincidir os

pontos de chegada e partida: a mesma Cataguases (ora da infância, ora da maturidade

dos protagonistas). Esse espaço é a ligação entre os pares que abrem e fecham o livro.

Essas narrativas indicam a mesma hora histórica capaz de propiciar arrogância e planos

de viagens para uns, e de invalidar/encerrar o trânsito de outros.

A partir desse conjunto, vemos o sentido da transição. As imagens dos desfechos

são determinantes para isso. Nelas, os protagonistas estão bloqueados. Portanto, em

oposição à mobilidade (linguística e social) do narrador.

Essas vidas bloqueadas não resultam transformações significativas. Vista desse

ângulo, a recorrente repetição de condutas, desfechos e timbres apresenta um mundo

muito mais infernal do que provisório.

III

Nas demais narrativas, há uma tentativa de figurar a modernização no cotidiano

dos protagonistas. Através das inúmeras referências cruzadas entre os enredos, a

constante operação: situações secundárias em uma narrativa se tornando principais em

outras. Em “O barco” e “A solução”, a referência à infância do menino Luzimar serve

para organizar o eixo temporal, ainda que ele não seja protagonista. Esse artifício

caleidoscópico funciona de uma dupla maneira: a) como apreensão instantânea dos

eventos ocorridos no entorno do Beco, que se avolumam, b) como pequenos

adensamentos, que se desdobram no tempo. Ou seja, o andamento interno afirma

progressão temporal, dotada de lógica.

Além desse mecanismo interno, a regra de funcionamento da obra desdobra-se

em mais uma dimensão. Personagens centrais e auxiliares tentam o apagamento de sua

história. As diferentes posições nos enredos sugerem a modernização ainda mais

problemática. Os pobres, nas linhas secundárias, ou são acometidos pela loucura , ou

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são mais castigados pela penúria. Exemplos respectivos são a ex-prostituta Bibica e seu

filho Jorge Pelado.

“O barco”, a terceira narrativa do livro, desloca o eixo temporal para o passado

de Luzimar. Aqui, o futuro operário da Manufatora é apresentado com dez anos de

idade ajudando seu pai a cuidar de Osvaldo, filho da elite local decadente. Na linha

central, a busca por integrar os núcleos de proprietários e de pobres. Ao passo que as

linhas secundárias – a vida da agregada Adelaide, as dificuldades de Marlindo e sua

esposa Zulmira, o abandono da filha Bernardete e a iniciação sexual de Osvaldo –

funcionam como interrupções da ação presente e acumulação de suspenses. O resultado

é uma sucessão de quadros explicativos, que sobrepostos, culminam com o

desaparecimento de Osvaldo, após uma aposta com o menino Luzimar.

As situações articulam o presente de pai e filho às estações anteriores e

coetâneas à decadência dos Nascente. O ponto de encontro desses vetores é a figura

ardilosa de Osvaldo, que finge distúrbio mental. A condição dos Nascente é

complementar à pobreza das personagens auxiliares: o filho, cuja “alma estava

irremediavelmente condenada” (RUFFATO, 2005, p.49), a filha “Bernardete conheceu

um “paulista” num baile de debutantes no Clube Social. Um ano mais e estava casada e

mudada.” (RUFFATO, 2005, p.46). Entretanto a implicação social mais forte é a da

agregada Adelaide que “pegou-se com trinta e tantos anos, sozinha, sem lar, sem

dinheiro, sem família, sem nada.” (RUFFATO, 2005, p. 48). O círculo da família de

Marlindo e Zulmira também não foge do padrão derrotista: o homem sai do interior de

Leopoldina e de Dona Eusébia “deu pra trás. Não nascera para empregado. Comprou

um carrinho de pipoca.” (RUFFATO, 2005, p. 44), Hélia “menina-moça que habitava o

mundo da lua. À espera de um príncipe encantado. Que nunca apareceria. Porque não

existem.” (RUFFATO, 2005, p. 45).

A tendência de maior destaque nesta narrativa é a precisão das coordenadas

espaciais, psicológicas e sociais dos personagens: a forte ambientação (a casa dos

Nascente, o quintal e as margens do rio), o reforço da posição dependente de Marlindo e

Luzimar (reféns do gênio difícil de Osvaldo), a caracterização da agregada Adelaide

(tomada pelo ciúme de Geralda e Romualdo), assim como a decadência da viúva

Geralda (de adolescente que “lia bem em francês … e tirava algumas músicas no piano”

à viúva que sem a herança não “sabe como estaria vivendo”). A ênfase do enredo não

está nos cuidados a Osvaldo, que violenta o menino Luzimar com um “safanão,

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arremessando-o longe”. Mas sim nos personagens auxiliares. “O barco” é a trama em

que os pobres mais têm contato com a elite, ainda que decadente. Nessa narrativa, o

programa estético de conciliação entre as classes está mais claramente delineado,

embora seja por meio da violência e rebaixamento dos pobres e dos agregados, como

Marlindo, Luzimar e Adelaide.

A cena final, com desfecho em suspenso, é motivada pelo desaparecimento de

Osvaldo. Nela, há a repetição do caminho trilhado por pai e filho até a casa de Geralda.

No entanto, os ressentimentos são redesenhados: Marlindo, sistematicamente ignorado

pela dona da casa e pela empregada, é chamado à busca do rapaz; a agregada, que

maldizia Osvaldo “inconho, branquelo, luxento, moleirão” (RUFFATO, 2005, p.50),

despeja o desespero no pai de Luzimar. O menino “desatou a correr”, não para

encontrar Osvaldo, mas sim em haver o time de futebol de botão prometido pelo rapaz

ardiloso.

“A solução” expõe uma combinação de horizontes limitados e desejos amplos. A

ligação entre esta e a narrativa anterior é a operária Hélia. No centro do enredo, a jovem

desajustada ao entorno miserável do Beco do Zé Pinto, que anseia por um “moço louro

bem forte olhos azuis montado numa vespa prateada” (RUFFATO, 2005, p. 63).

A envergadura dessa narrativa é bem menor do que a anterior, devido às

implicações sociais menos potentes. Em “A solução”, o mesmo narrador simpático ao

universo dos pobres apresenta, discretamente, o cotidiano adolescente. Dando mais

espaço à voz dos personagens, os discursos diretos enunciam namoros desatados,

revistas de fotonovelas, cigarros escondidos no quarto, desavenças entre amigas.

Entretanto, o dado mais significativo são as afirmações inconformadas de Hélia: “se

pudesse enterrar o passado!”, já que “Sim, era vergonha o que sentia, vergonha...”

(RUFFATO, 2005, p. 67). É isso o que, de fato, une Hélia aos demais moradores da

comunidade.

Há que se ressaltar a simulação das coincidências. O desenvolvimento de “A

solução” leva a protagonista a tal ponto de insatisfação que decide pelo suicídio. No

entanto, para evitar o desfecho trágico da operária, está presente o namorado

dispensado por ser pobre. Mais uma vez, a cena final organiza com rigor a dosagem da

tensão. Paisagem detalhada, alternância do discurso lamurioso, natureza hostil que

propicia a morte, aparição do rejeitado que “amparou-a e foram andando devagar, bem

devagar, em direção ao beco” (RUFFATO, 2005, p. 72).

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Como se vê no desfecho, o suicídio frustrado de Hélia é construído por meio da

imagem do retorno. Precedido por um transe preparatório para a morte “conseguir sair

desse inferno (…) quem sabe morrer acaba tudo acaba” (RUFFATO, 2005, p. 72,

grifos originais), a operária e o ex-namorado regressam ao lar. Seja ao pouco conforto

ou à rotina infernal, Hélia é conduzida à adaptação ao existente. Nesse sentido, a

repetição segue como procedimento construtivo no bloco seguinte, “A mancha” e

“Jorge Pelado”. No entanto, agora munido pela tendência explicativa e pela criação do

efeito de comiseração máxima.

Essas duas se complementam pelos modos de narrarem os antecedentes das

mortes de dois filhos de Bibica, Marquinhos e Jorge Pelado. Na primeira, emprega-se

uma prosa mais convencional, com os recuos e avanços temporais. Na segunda, uma

prosa mais frenética, que internaliza a desorientação mental do protagonista Jorge. O

recurso da circularidade associa “A mancha” e “Jorge Pelado” à leitura determinista.

Como em outras micro-histórias, há um fundamento mítico na narrativa de Marquinhos,

por exemplo. Na insólita trama do menino, se acopla um tipo de chaga adâmica de

fracasso e sofrimento. Um destino implacável recai sobre a criança: nascida bastarda, é

atropelada, em frente ao comércio do pai que a rejeitou.

As mortes dos filhos de Bibica são resolvidas de modos diferentes. Em “A

mancha”:

Marquinhos morreu em-antes de completar dez anos, atropelado por um cata-

níquel numa segunda-feira de agosto, todo serelepe, orgulhoso da rabiola e

do cortante de seu papagaio. (RUFFATO, 2005, p. 75)

Aqui se lê de modo direto o evento, logo na cena inicial. Em “Jorge Pelado”, a

perseguição policial ao protagonista é resolvida apenas na cena final:

até que fagulhas espargidas pela boca do fuzil sapecaram a escuridão,

alastrando na madrugada. Depois, bem devagar, um silêncio imenso assentou

sobre todas as coisas. (RUFFATO, 2005, p. 97)

Essas soluções se combinam à ordem patriarcal e clientelista a fim de

produzirem o efeito de comiseração. Isso se lê tanto na conduta ingênua de Bibica ao

levar adiante o assédio sexual do velho comerciante Antônio, quanto na política do

favor, operada pelo meio irmão de Jorge, Zunga, e a autoridade local:

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91

O doutor Normando não quer desentendimento com a polícia, precisa

desse povo... Se eles enfezam, adeus!, começam a pressionar, acabam

com o negócio dele. (RUFFATO, 2005, p. 95, grifos originais)

A transição às metrópoles se acomoda à lógica do favor, em “Jorge Pelado”.

Esse processo, portanto, assume sentido novo, já que a migração funcionaria para

apaziguar os conflitos causados pelo protagonista.

“Jorge Pelado” é composta por dois micro-capítulos, cujos títulos são

autoexplicativos: “Agonia”, onde retrata a morte do protagonista, e “Lamentação”,

onde se acumulam lamúrias de Bibica até sua loucura. Esta segunda parte parece ser um

exercício metalinguístico do escritor, organizando seis quadros de motivos para a morte

do filho. Tal qual em uma prece religiosa, Bibica ensaia a variação em torno do tema,

do início ao fim: “Jorginho menino bom, atencioso, bem mandado, um brinco”

(RUFFATO, 2005).

A prosa frenética de “Agonia”, encerrada com a clara imagem da tocaia contra

Jorge, é substituída pela monótona repetição da mãe louca, “em voz alta, anos e anos,

depois, quase cega, arrastando as varizes pelo assoalho dos corredores úmidos do Asilo

São Vicente de Paula, sem forças para nada” (RUFFATO, 2005, p. 106). Por meio da

repetição e da circularidade, (nesse caso, o protagonista passa a coadjuvante de sua

própria história) O mundo inimigo faz a transição entre as narrativas deslizando seus

personagens e os modos expressivos.

Assim, combinando timbres convencionais e herméticos a protagonistas em

situações-limite, o dispositivo literário produz, nesse último par, forte tendência à

exemplaridade. Isto pode ser verificado em seus títulos, “Ciranda” e “Paisagem sem

história”. A primeira reaproveita a composição por “quadros”. São sete pequenas seções

que organizam o cotidiano do vadio Zunga, flagrado em bares, jogatinas, visitas ao

prostíbulo e confusões mentais. Cenas, que se querem típicas, traduzem um movimento

circular: a ciranda dos sete quadros.

O recorte da vida exposto em “Ciranda” remonta momentos anteriores à

internação de Bibica. Do mesmo modo, funciona como complemento à narrativa

seguinte, “Paisagem sem história”. A ênfase é dedicada à movimentação do

protagonista e a seus diálogos sem densidade. O sentido geral da intriga está na cena do

transtornado Zunga no quarto de Cidinha, prostituta por quem se apaixona. “Ciranda”

sugere ainda um tipo de determinismo, por aproximar o desocupado a vícios e loucuras.

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A figura de Zunga não é capaz de organizar a narrativa num eixo que confirme sua

validade artística. Assim, apenas na cena final de “Ciranda” se exibe uma carga de

interesse, irradiada para a narrativa seguinte.

As repercussões do distúrbio mental de Zunga no corpo, no lugar e na memória

de Cidinha encontram formalização mais consistente na narrativa seguinte, que

completa o sentido da anterior. Em “Paisagem sem história”, lê-se um episódio na vida

da prostituta. Articulando ambiente degradado e subjetividade dilacerada, esta narrativa

se desenvolve no instante seguinte a um surto de Zunga. Através dos recortes de

revistas destruídos, aquilo que indicava trabalho e desejos de Cidinha, o narrador

revolve o passado da moça recobrando minuciosamente os objetos do quarto. Atenção

às miudezas daquele cotidiano empobrecido é facilmente contraposta às poucas

sequências de rara pungência. São nessas passagens em que o tom da prosa se eleva

sugerindo um descolamento daquela violência e miséria ancestral.

O destino imobilizado de Cidinha se anuncia já na infância: “para todo o sempre

permaneceria ali, sob a cama, estirada na frescura do cimento, fugitiva do abafor, (…)

não a atormentasse o batuque no telhado, propagandeando a chuva tardã” (RUFFATO,

2005, p. 129-130). A morte da mãe, a violência do pai, a prostituição iniciam uma

pesquisa pela identidade perdida daquela “que ainda não era Cidinha” (RUFFATO,

2005, p.130).

A infância violentada se soma ao espaço precário (semelhante às ruínas do

cemitério onde enterrara a mãe) e as dúvidas sobre a existência. O passado e o presente

bloqueados se encontram e se resumem, na imagem da chuva torrencial que cobre todas

as coordenadas de tempo-espaço: “Além, sobre, sob: o dilúvio” (RUFFATO, 2005, p.

131).

O último período de “Paisagem sem história” encerra uma sequência de intrigas

em que um grande elenco desliza entre as narrativas. Estes enredos, de estruturas

variadas, organizam subjetividades de trabalhadores e desocupados em conflito com a

loucura, a violência e a proximidade da morte. Esse universo de experiências-limite em

quadros, ora simultâneos, ora sequenciais, se encerra na imagem do dilúvio.

Essa “Paisagem sem história” apaga as fronteiras temporais e participa

difusamente daquela temporalidade pré-industrial da infância de Luzimar. As duas

narrativas seguintes, “A danação” e “A decisão”, recolocam em primeiro plano as

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consequências subjetivas do deslocamento rumo às metrópoles. Tracionado por dramas

daqueles que viveram o avesso da modernização, o desenvolvimento final reapresenta

figuras da urbanização, agora sob a ótica do espelhamento invertido: Zito Pereira, que

regressa a Cataguases, de onde o violeiro Vanim deseja sair.

Essa duplicidade de contrários organiza a estrutura do enredo, o sentido da

migração, os comportamentos dos personagens e as suas relações. “A danação”

apresenta Zito Pereira, operário em Diadema, casado e pai de família, desolado com a

impessoalidade da metrópole. São Paulo lhe faz “relembrar seus tempos de moleque em

Minas [causando] uma tristeza danada, vontade de estar longe dali” (RUFFATO, 2005,

p. 136). Ao localizar o protagonista no centro industrial, a narrativa já sinaliza a outra

via do deslocamento. Diadema passa de local atrativo a espaço repulsivo para o

migrante. Essa troca de vetores subverterá parte do apassivamento geral. A relação

extra-conjugal, a demissão da fábrica, a despersonalização de Zito; tudo isso é

questionado pelo narrador empático: “Como poderia ter descido a tanto?” (RUFFATO,

2005, p. 136).

Estruturada de modo não-linear, “A danação” coloca, em primeiro plano, o

drama do casal, abalado por demissão e por traição. Nas linhas auxiliares, uma

amálgama de vinganças do protagonista Zito: a recusa da amante Gracinha em se casar

e a tentativa de assassinar Ezequias, o gerente da dispensa. Essas são cenas maltratadas

linguisticamente, que recorrem ora à memória do protagonista na metrópole, ora ao

presente insatisfeito com a injusta demissão.

Chamam atenção os hábitos desse personagem que indicam, num primeiro nível,

divergência com o padrão de comportamento típico. E isso contribui para a

singularidade de sua trajetória, bem como para a sinalização dos desajustes internos de

Inferno Provisório.

Zito Pereira era um homem diferente. Amigos, os tinha, quatro ou cinco

notórios cachaceiros – Zunga, Zé Bundinha, Zé Preguiça, Presidente... - que

consumiam as tardes de domingo em torno de uma caçarola de engalobada,

bebendo pinga e caçoando um do outro. Internava-se no meio do mato sábado

à noite para ter carne no almoço do dia seguinte. (…) E as músicas que ele

gostava? Só as orquestradas: Paul Mariat, Ray Coniff, Henry Mancini, Enio

Morricone, Strauss. E a mania de cinema? E aquele negócio de cinema? E

aquele negócio de ler tudo que aparecesse pela frente (…)? Sim, era um

homem diferente. (RUFFATO, 2005, p. 140)

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À primeira vista, a divergência se refere apenas aos seus hábitos e aos produtos

culturais consumidos. Mas, na verdade, a singularidade do operário está em sua

experiência irônica e débil no mercado de trabalho. O reingresso na indústria, após

“quinze anos de fábrica!” em São Paulo, é assim descrito:

Fez ficha em todas as fábricas, passou um mês, nada de chamada. Em nova

investida, na Manufatora perguntavam se jogava futebol. (...) Que posição?

Só tem vaga no gol. Virou goleiro no time da manufatora e ajustador-

mecânico na oficina da fábrica. (RUFFATO, 2005, p. 140)

Como se viu anteriormente, o livro procura rastrear as aparentes superioridades

da vida urbana, assim como as tragédias derivadas da penúria no interior. Em “A

danação”, o sinal da urbanização se inverte e a narrativa adianta novas soluções com

materiais já usados. A confusão mental do protagonista (tenso pela prisão, pelo

arrependimento da traição, pelo abandono da amante); tudo se transfere para a

linguagem, que combina ação e tempo diversos. Resulta esquecimento, enunciado em

discurso direto:

“a gente comete umas besteiras na vida, depois fica pensando, não entende

por que fez aquilo,

você vai me esquecer” (RUFFATO, 2005, p. 144, grifos e formatação

originais).

Depois de “A danação”, o enredo de “A decisão” fica prejudicado no arranjo

geral de O mundo inimigo. Composto por recursos técnicos convencionais, por um

narrador discretamente empático e pelo conflito central sem musculatura, a micro-

história regride frente aos relativos avanços já alcançados. A ela cabe apenas a

introdução de um aspecto pouco explorado no plano temático até então. O

deslocamento para São Paulo não é motivado pelo complexo industrial-fabril. Mas sim,

pela sedução da cultura de massas e pelas oportunidades por ela abertas.

Vanim, personagem lateral já conhecido de “O segredo”, de Mamma, son tanto

felice, assume protagonismo devido às veleidades artísticas que nutre. Forma um casal

“em tudo diferente” com Zazá, ajuizada tecelã da Industrial. Ele “andejo, violão sob o

braço, engraçando-se para os lados do mulherio” (RUFFATO, 2005, p. 147). Para ela,

“rodar a praça era bestagem, gostava mesmo era de se entocar para ler fotonovela, o

rádio Semp no último volume” (RUFFATO, 2005, p. 147). A marca do aparelho de

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rádio não é gratuita e se ajusta aos interesses do casal: violão e seresta, por um lado, e a

fábrica por outro. Estas as oposições simétricas de “A decisão”.

O horário rígido e a disciplina do trabalho são as causas da “tristeza danada

[que] varreu Vanim” (RUFFATO, 2005, p. 148). Essa condição é o ponto de virada da

narrativa para a qual bastou apenas “alguém, na vizinhança, ligar o rádio”. Assim, o

operário casado e submisso à esposa se transforma em aspirante a artista: “outro

homem, o Vanim, quer dizer, o antigo, aquele que o violão era seu braço. (...)”

(RUFFATO, 2005, p. 148).

O enredo, que alterna conflitos domésticos do casal e golpes de esperteza do

protagonista, reposiciona a conduta da malandragem dos pobres. Na trama, as

sequências sórdidas em que Vanim mente para a esposa, para a vizinhança e para o

assistente do radialista vão se acumulando até tomarem todo o espaço de sua vida. O

ápice é a decisão: “Cataguases é pequena demais para o seu talento. (…) Ninguém

compreende artista. (…) se bobear, adeus carreira. Não pode. Tem que lutar, lutar

muito.” (RUFFATO, 2005, p. 167). A voz do narrador parece se ajustar ao programa

tentado por Vanim. A empatia discursiva em 3a pessoa concilia com a conduta do

personagem, associando luta pela carreira à malandragem. A partir desse ponto,

Vanim propõe a Zazá uma visita a parentes distantes. Com o caminho livre para

hipotecar todos os bens do casal a Zé Pinto, o rapaz:

“ansioso, comprou a passagem, cedo ainda, tentou se distrair olhando a

televisão da rodoviária (…) Na bolsa, duas mudas de roupa, o violão a

tiracolo. Três vezes perguntou se demorava muito ainda. Queria entrar,

dormir, acabar logo com aquela agonia” (RUFFATO, 2005, p. 169)

A decisão na conduta é relativizada pela mescla de discursos diretos e indiretos.

Cada fala objetiva do narrador corresponde a uma incerteza de Vanim, levando-o a

reconsiderar sua agonia. No andamento, assiste-se à mudança dos pequenos golpes para

as dúvidas e aflições.

Esse desfecho encerra, no plano do conteúdo, o tema da cultura de massas,

crescente no cotidiano dos pobres. Esse processo, que se desenha com os contornos da

malandragem amena, abre caminhos perversos a serem explorados nos livros seguintes.

A cena final em suspenso de “A decisão” indica uma transformação na conduta ordeira

desse tipo de personagem. No entanto, como se verá no quinto volume, o aspirante a

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artista, seduzido pelas benesses do mercado, terá desfecho tão terrível que não sobrarão

rastros dessa amenidade.

IV

Junto com “A decisão” se encerra uma das faixas temporais do enredo geral de

O mundo inimigo. Os relatos contundentes de pobres e desvalidos, submetidos a

constrangimentos e insatisfações correspondentes, delineiam os horizontes estreitos da

modernização. Nesse sentido preciso, poderia ser dito que há um traço crítico sobre

processo, ainda que limitado.

Dentro do quadro contraditório do volume, vemos o arranjo geral padecer de

certa unidade formal. Como tentamos demonstrar, há o claro objetivo de pesquisar as

várias direções da experiência de classe. No entanto, a inconsistência – enredos pouco

densos, narradores inconstantes – sinaliza uma dimensão objetiva que é a do desmanche

da própria sociedade figurada. O ponto de vista que organiza a matéria em retrospecto

nos parece ser o maior desajuste da configuração artística.

Mesmo sob a pena dos primeiros trabalhos artísticos45

, o volume II pode ser lido

como um campo de experimentações: seja no fracionamento de sua linguagem, seja na

busca por imagens reutilizáveis, ou ainda na organização de seu “romance não-

burguês”. Como tentamos demonstrar, O mundo inimigo se compõe como um repertório

de temas e recursos que atingirão certa maturidade no próximo volume, Vista parcial da

noite.

45

No ano de 2005, são publicados os volumes I e II da pentalogia, e estes dois livros contém narrativas

reescritas, de 1998 e 2000. Embora já comercializadas, elas são refuncionalizadas, quando inseridas no

projeto mais amplo.

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Vista parcial da noite

O terceiro volume da pentalogia vem a lume no ano seguinte à publicação dos

dois primeiros livros, Mamma, son tanto felice e O mundo inimigo. Neste livro de 2006,

o projeto literário mostra pleno vigor narrativo, ajustado às linhas de força desenhadas

nos volumes do ano anterior. Vista parcial da noite dá prosseguimento a traços

característicos do escritor em sua ascendente carreira. Neste livro, além de dez micro-

histórias inéditas, há apenas uma republicação. Interessa notar por agora que este

terceiro volume avança na figuração expansiva dos ambientes por onde circulam os

personagens.

Já apontamos, capítulos atrás, a possibilidade de agrupamentos temáticos das

narrativas dentro dos seus volumes. Por meio desse protocolo, elas formariam um mapa

em cujas coordenadas se leem as categorias narrativas personagens e tempo. Nessa

reunião se veem hábitos e costumes, assim como especificidades do interior e da cidade

grande. O registro da linguagem segue ajustando dois padrões – um típico da escrita

formal e outro da oralidade distensa.

Além dessas dimensões, a figuração mais diversificada dos tipos sociais

representa um ganho relativo de complexidade no conteúdo. Há narrativas que encerram

algumas linhas de força já trabalhadas e outras que anunciam o surgimento de outras

novas.

A atenção a essa unidade de esgotamento e desenvolvimento transborda da

dimensão discursiva para a das intrigas. Assim, pode ser verificada a ação do

dispositivo formal em sua mobilidade. Importante registrar também que o arranjo geral

do volume se dá por meio de uma ordenação dramática relativamente regular. Ou seja,

dentro do padrão formal de desencanto e pessimismo, há enredos cujos efeitos variam

entre fechamento de um ciclo, supostamente arcaico e uma abertura de outro,

relativamente moderno. Esses polos organizam o movimento do enredo total de Vista

parcial da noite. Essa estrutura reproduz no plano do livro o que as intrigas operam nas

narrativas.

Como ilustração dessa perspectiva, veja-se o diagrama histórico, formado por

três narrativas, estrategicamente ordenadas como a segunda, a sexta e décima primeira

do volume: “A homenagem”, “O profundo silêncio das manhãs de domingo” e

“Haveres”. Exemplares na ambientação e na fisionomia dos personagens, as três micro-

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histórias circunscrevem o âmbito familiar, pautados pelas relações conflituosas entre

pais e filhos. O código derrotista operado pelos protagonistas se expressa de modo

complementar em cada uma das narrativas. Em “A homenagem”, vemos Fátima,

costureira que sustenta o marido alcoólatra e os filhos problemáticos. Ela revive

instantâneos de felicidade, devido à homenagem da rádio local, destinada às ganhadoras

dos concursos carnavalescos passados. A trama se encerra com o desespero da mãe

desgarrada no salão do baile. Este fechamento concretiza o efeito convencional de

suspense, após o enredo apresentar didaticamente as mazelas vividas pela costureira. A

linha central é uma sequência desesperançada e linear de eventos: há o jugo patriarcal,

que continua após seu casamento com José Feliciano, a criação dos filhos submetida aos

ditames do marido, a perda do emprego pelo operário na fábrica, o sustento da família

com as atividades informais de costureira.

A linguagem procura conciliar aqueles dois padrões. Como exemplo, a cena de

abertura, em que a calmaria, protagonizada pela gata angorá da família, é interrompida

pela entrada da filha Terezinha na sala:

Estacada na encruzilhada, assustou-se: a Terezinha, por quem engordava

cerrada antipatia, invadiu a sala afobada, Mãe, Mãe!, impelindo-a,

impensada, a escapulir pela janela. (RUFFATO, 2006, pag. 21, grifos

originais)

O enfoque dado ao repouso do felino se contrapõe à agitação da menina. O tom

solene na abertura se confirma quando verificada a tentativa de Fátima em conferir um

mínimo conforto frente às dificuldades por que passa a família. O distanciamento do

narrador nos exemplos adiante causa estranhamento devido ao desajuste resultante. As

inversões sintáticas, internas ao discurso do narrador em 3ª pessoa, apresentam o

trabalho duro da costureira, no tempo (“E madrugadas a mãe varou aflita”) ou no seu

corpo (“zonzos tremiam os dedos”).

A segunda narrativa constitui um clímax na relação familiar, tal como proposto

em nosso esquema. Nessa articulação, temos o esgarçamento da célula social com o

assassinato do menino Cláudio.

Na primeira narrativa, a relação mãe e filha se contrapõe ao sinal negativo

anterior da costureira (ainda que sob as práticas do favor e da adulação interesseira da

filha). Em “O silêncio profundo das manhãs de domingo”, a positividade não tem

espaço na ação presente. Tal qual o rio que afoga o menino, o pessimismo transborda

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para todos os aspectos da trama. São terríveis as imagens: a morte, o desespero do filho,

a passividade rancorosa do pai. Além disso, o uso dos grafismos a sinalizar a

desestruturação do discurso, no intuito de mimetizar a tensão da cena. A ênfase óbvia na

palavra “submergiu” grafada em direção vertical, centralizada na página escrita vem

antecedida do trecho:

Tiritando, acercou-se do pai, procurando agarrar-se ao seu pescoço, mas

pareceu ele distanciava-se,

Impulsionou-se novamente pareceu ele distanciava-se Pai! Pensou regressar

perdera o fôlego Pai! Lançou-se na sua direção pés em falso mãos debatendo

desordenadas (RUFFATO, 2006, pag. 89, grifos originais)

A posição intermediária dessa narrativa não é gratuita. Ela encarna o tom de

encerramento, mas abre uma linha tímida para o enredo seguinte. Na linha auxiliar, a

esposa sequer nomeada dá início ao ressentimento e à vingança de Baiano. A mulher

coadjuvante assume função diferente na última narrativa, “Haveres”.

Lá, temos a peça que melhor internaliza e figura as transformações que o livro se

dispõe a narrar. Lida como o outro polo do esquema, essa última narrativa prepara uma

fisionomia de personagens secundários e um conjunto de situações, a serem explorados

no quarto e quinto livros. Aqui, o círculo auxiliar do enredo é o responsável por

desestabilizar o andamento central. Cassiana, a filha mais nova de D. Juventina, é a

representante de condutas emergentes e abafadas, no quadro geral do ciclo literário.

Nesse sentido, a progressão do derrotismo é modulada em “Haveres”. Merece

destaque o fato de ela unificar tendências contraditórias daquele movimento. Dentro de

seu enredo, é possível ler a miniatura do processo histórico: o desencanto de uma viúva,

matriarca de uma família decadente, o êxodo dos filhos com desfechos diversos (de

ascensão e queda). Nessa síntese, as relações dos irmãos Cléber, Verônica e Cassiana

com a mãe Juventina em Cataguases se configuram pela distância dos dois primeiros e

uma proximidade desabusada da última. O ciclo industrial dá vida próspera e estável ao

operário Cléber e, para Verônica, produz rotina precária e pingente no mercado.

A visita da mãe doente à casa da família operária e venturosa transforma o

andamento da narrativa. As desolações acumuladas em Cataguases (doenças da velhice,

o traição do marido Milton com uma mulher mais nova) levam D. Juventina a aceitar o

convite do filho. No entanto, a idosa, deslocada do circuito urbano, é vista como

transtorno para nora e netos.

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Do ponto de vista técnico, “Haveres” se compõe por um tipo raro, na ficção de

Ruffato, de “parágrafo infinito”. Essa narrativa de dez páginas consegue unificar as

viagens físicas de ida a São Paulo e volta a Cataguases de D. Juventina, acrescentando-

lhe o malogro da estadia na casa de Cléber. A trama se encerra com a personagem que

sequer figurara ativamente em cenas anteriores. Pela sua aparição no desfecho, Cassiana

reorganiza o conteúdo e a expressão da narrativa. Ali também, é vista a troca de

registros, fundamental para as narrativas seguintes: sintaxe mais ágil e entrecortada,

para indivíduos urbanos, diminuição das expressões e dicção interioranas.

II

O objetivo do diagrama de tipos sociais e suas relações é procurar coerência na

organização interna do volume inteiro. Contudo, deixa entrever desenvolvimentos

temporais capazes de organizar o trânsito espacial. O esquema proposto, resguardada a

fragilidade dos seus encadeamentos, revela a progressão estrutural subordinada ao

próprio processo histórico figurado. Nesse sentido, as migrações podem ser avaliadas de

um ângulo mais ou menos complexo, tal como adiantamos mais acima.

Também por meio do esquema, é possível depreender a avaliação de Vista

parcial da noite sobre o movimento migratório. Separando as tramas em dois blocos,

temos o primeiro formado por narrativas que investigam as relações alcoolismo,

exploração e violência infantil. No segundo grupo, narrativas em que os

relacionamentos começam a se modernizar, seja pela formalização do trabalho, seja pela

presença da mercadoria no cotidiano. Naquele primeiro grupo cabem: “Inimigos no

quintal”, “A homenagem”, “Estação das águas”, “O ataque”, “Aquele natal

inesquecível”. No segundo, “Roupas no varal”, ”Cicatrizes (uma história de futebol)”,

“Vicente Cambota” e “O morto”.

Importante ainda registrar a função dos títulos desse volume. Acreditamos que

também eles consolidam os procedimentos dispersos nos volumes anteriores. A

aparente simplicidade é retirada das ações centrais dos enredos e também de referências

individuais dos protagonistas. Vistos desta maneira, os títulos reproduzem no seu

âmbito o que as micro-histórias fazem no romance. São partes aparentemente isoladas

ou fragilmente ligadas com o todo, ao qual lhes serve de contexto e fundamento.

Segundo a nova divisão proposta, o interior é marcado por violências e

distúrbios de várias ordens. A confusão mental experimentada pelos protagonistas une

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“Inimigos no quintal” à “A Homenagem”. A primeira narrativa causa total

estranhamento pela situação que apresenta: o expedicionário já idoso, dilacerado

subjetivamente pelas consequências da guerra, confunde meninos em seu pomar com

nazistas no front. “Inimigos no quintal” antecipa tematicamente “O ataque”. Mas é

também uma tentativa canhestra de inserir a pacata vida interiorana nos acontecimentos

mais gerais do capitalismo mundial. A desproporção é grande como é excêntrica a

posição da narrativa no conjunto.

Não se pode deixar de notar as pistas da bagagem cultural do escritor, dispostas

estrategicamente na cena do jovem soldado em guerra:

Estendido na poeira, metralhadora aninhada no peito a observar o lavor das

nuvens, a circunavegação dos urubus, espreita. Uma ruína. Isso!: uma ruína.

Escombros, apenas escombros. Simão? Nervos em estilhaços, músculos

avergastados, dentes trincados, filó nos olhos, ouvidos escangalhados, dores,

dores nas pernas, nos braços, nos ombros, nas costas, na sola-dos-pés, dores.

O coração mofino, amarroado. E, empesteando tudo, o sono, envenenada

maçã engastalhada na garganta, dormir, dormir, dormir, para todo o sempre,

embeber-se inteiro nas águas da grande noite: é isso um homem? “Por mais

terra que eu corra, não permita Deus que eu...” (RUFFATO, 2006, pag.

16, grifos originais)

O narrador articula distanciamentos: a memória de Simão na trincheira e o

presente dilacerado. A veicular uma reflexão de longa data nas narrativas modernas, o

registro entre culto e coloquial de narrador e de personagem. As referências ao cânone46

artístico nacional e internacional alinham-se ao desajuste geral de expressão e conteúdo.

Não se trata aqui de condenação a priori do uso de citações, mas de buscar sua posição

frente à estrutura geral da obra. Esse recurso nos parece articular diretamente o

universal e o particular. O modo abrupto dessa ligação nos leva a considerá-lo um dos

desencontros que marcam a obra em estudo.

Dosando tensão e estranhamento, o insólito inicial é arrefecido pela volta aos

motivos tradicionais. Em “A Homenagem”, há relativa continuidade da confusão

46

Teríamos abruptamente unidos o global (ecos da ruína benjaminiana e da reflexão sobre o homem de

Primo Levi) e o local (através do estranho eco de Gonçalves Dias em uma canção interpretada por Gal

Gosta, “Ave Nossa”, do disco Profana, de 1984).

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mental, como se lê em seu desfecho. A protagonista em desespero contextualiza a

narrativa seguinte, “Estação das águas” em que se focaliza a violência doméstica.

Nessa sequência, é possível notar facilmente a técnica caleidoscópica de Ruffato

que mobiliza, dentro do mesmo quadro de personagens (a família de José Feliciano e

Fátima), flagrantes diversos para a criação das situações literárias. O suposto

mecanismo da hipertextualidade funciona de modo exemplar em “Estação das águas”,

uma vez que esse enredo articula, por meio de um critério conservador, ambientação,

personagens e progressão temporal. A narrativa toda se compõe por dois parágrafos: o

primeiro por seis páginas e o segundo por nove linhas (estas exatamente iguais às do

início). O efeito sugerido é claro: a recorrência da situação violenta a que o menino está

submetido. A crescente degradação das relações entre pai e filho se expressa na fuga de

casa.

Estropiados, os pés afundam na areia poder do braço-do-rio. O silêncio de

fim-de-tarde de dezembro só o corrói o revolteio da passarinhama em seus

curtos vôos pelas grimpas das árvores e o chuá-chuá das águas embrutecidas

que carreiam tumultuosas galhos e troncos. Ao longe, ê-ê-ê da molecada

jogando pelada, cicio das mulheres recolhendo roupa do quarador, ííin-nho!

de uma mãe conclamando o filho, vrum de um carro, risos abafados... De

coque, Caburé cafunga, doloridos lanhos nas costas, pernas, rosto.

(RUFFATO, 2006, pag. 51)

Não se pode negar a possível intenção de denúncia, fundamentada na cena

explícita de violência infantil. Este é paralelo ao padrão da frase artística e ao recurso da

repetição. A construção sintática inicia e finaliza o parágrafo focalizando o menino. O

trecho acima apresenta uma profusão de grupos semânticos em oposição (silêncio da

tarde interrompido pelos sons da natureza e dos indivíduos ao longe). Essa operação

reproduz o princípio que organiza a narrativa: a leitura da cena inicial e final é

enriquecida pela trajetória de fugas e retorno aos maus tratos paternos.

Um dado estrutural importante é que a passagem do tempo não vem

acompanhada por transformações qualitativas de nenhum dos outros elementos

temáticos ou formais. Ou seja, há um tipo de progressão que os acomoda num quadro

semelhante ao da partida. A circularidade do enredo, a que a repetição do trecho faz

referência, possui aquele propósito de denúncia. Dessa maneira, supõe-se um contexto

de ações, contraditoriamente estático, cujas mudanças estão suspensas. Ao lado disso,

justificativas vulgarmente psicológicas: “O remorso devorava-lhe o fígado, não

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pretendia magoá-la jeito-maneira, queria-se bom, comportado, obediente, para que se

orgulhasse dele, como da irmã...,”; “Derrotado, admitia-se mau, indigno, desprezível”,

(RUFFATO, 2006, p. 46); “não mais suportava afligir a mãe com a sempre

incapacidade de se desviar do mal e ouvir suas queixas...” (RUFFATO, 2006, p. 48).

Uma pequena mudança, que não influencia o quadro geral: a iluminação do protagonista

Isidoro, por medo da morte em tocaia.

Em passos decididos retomou o caminho, mas na primeira curva divisou,

direção contrária, com um-alguém, de branco cabeça-aos-pés, chapéu-de-

palha, lembrou, assombrado, justo ali armara-se uma tocaia, e, esbuagalhados

os olhos, eriçados os pêlos, adentrou de chofre a casa, assustando a mãe (...)

(RUFFATO, 2006, p. 49)

Essa adequação do menino aos preceitos entendidos como positivos por sua mãe

recebe a contrapartida agressiva do pai. Assim, a débil mudança é bloqueada.

A terceira história do volume, “O ataque”, representa certos experimentos no

arranjo geral. É a figura do narrador vicário o mais significativo deles, ainda que a

ênfase recaia, novamente, no absurdo do motivo literário. Se as narrativas 2 e 3 se

agrupam, “Inimigos no quintal” e “O ataque” formam um par no qual se leem relatos de

doentes mentais e também inserção traumática da periferia na dinâmica da

modernização.

A alternância dos temas volta ao polo convencional na quinta micro-história,

“Aquele natal inesquecível”. Aqui, a véspera de natal do menino Fernando, ajudante no

Armazém do Boi. O quinto enredo deste livro se ambienta na periférica Chácara

Paraíso, local já conhecido pelos leitores de “O ataque”, por exemplo. Trata-se também

de uma volta à técnica tradicional, do enredo linear e dos procedimentos típicos. O

início in media res e o desfecho em suspense são estratégias que ressignificam o título,

dando-lhe conotação amargamente irônica.

Dentro desse jogo de modulações, o efeito de comiseração é modificado por

Lucinha, mulher do comerciante. O entrecho alterna atenção do comerciante pelo

dinheiro que calcula “lambendo o indicador direito” com a piedade da esposa que, “com

uma vassoura-de-pelo na mão (...) conduziu a poeira para o passeio, descerrando a

última frincha da entrada. O menino pode ir, né, Nilton?”. (RUFFATO, 2006, p.75,

grifo original). No confronto das ações do casal, pode-se notar a dimensão que será o

divisor de águas no enredo total de Vista parcial da noite: a relevância do trabalho

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manual e do dinheiro, que aqui dosam a tensão dramática da fábula. Esse movimento se

comprova com a cena do pagamento de Nilton a Fernando, muito postergada pelas

intervenções didáticas do narrador sobre as atividades do menino no Armazém. Todas

elas, é bom destacar, sempre regidas pelo interesse de máximo lucro do comerciante.

A feição da narrativa se assemelha bastante a “Estação das águas”, por conta da

situação de penúria do protagonista. Se a terceira e a quinta narrativas apresentam os

jovens em condições precárias, a diferença qualitativa de Isidoro e Fernando reside nos

mecanismos produtores do efeito estético. Lá, o narrador distanciado na cena de maior

tensão, protagonizada pelo menino espancado e protegido pela mãe de resistente

personalidade. Aqui, um narrador normativo que cede a palavra para o diálogo de mãe,

acossada pela violência doméstica. Os sofrimentos de Isidoro se acumulam sem

vislumbres de mudança, determinados que estão à eterna repetição. Na trama de

Fernando, o quadro fica em aberto, como o descampado à noite por onde anda

“embrenhando-se no negrume azulado” e desembrulha o canivete que seu patrão lhe

dera.

O desfecho em suspense confere a ironia amarga ao título, a que já nos

referimos. São dois os possíveis referentes para o natal inesquecível: espancamento da

mãe e o presente. O objeto se transforma num signo de mudanças em potencial, inscrito

precisamente na cena final. Após a enumeração das ferramentas nele contidas, o

sutilíssimo destaque à última delas: “abridores-de-garrafa e de-lata, saca-rolhas, chaves

de fenda e Phillips, punção, pinça, lixa-de-unha, tesourinha... a lâmina...” (RUFFATO,

2006, p.76). Do ponto de vista objetivo, o presente tem duas funções. Uma presa à

dimensão psicológica: da gratidão do menino pobre, acolhido pela boa vontade do casal

dono do armazém. A outra se liga à dimensão material: do trabalho infantil e de uma

tímida expressão da política do favor que avança em cooptação de empregados e

suspensão dos conflitos de classe.

Como apontamos acima, o enredo total de Vista parcial da noite encontra um

ponto de virada com a narrativa “O profundo silêncio das manhãs de domingo”. Nos

interstícios do assassinato, assiste-se a uma transformação das relações de trabalho,

centralizadas na figura de Baiano. Além dela, a negação paterna pelo filho reveste o

movimento profundo de mudanças históricas: a) aumento da escolarização das camadas

pobres; b) o crescimento de ocupações informais; c) um traço tênue de emancipação

feminina.

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III

A presença do mundo do trabalho e suas mitologias no imaginário das camadas

pobres pode ser chave de leitura das narrativas que compõem o segundo grupo que

estamos propondo. Assim ponderadas, uma pequena amostra de relações sociais

degradadas pela mercantilização se abre a partir de “Roupas no varal” até chegar em “O

morto”.

A ligação com o universo anterior se expressa na superfície e na estrutura da

narrativa. “Roupas no varal” interessa menos por afirmar as opressões a que

personagens estão submetidos, e mais pela representação da lógica mercantil se

expandindo em seu cotidiano. A cena inicial já contém os traços que apresentam

sujeitos transformados em objetos. As relações estabelecidas nessa pequena narrativa

passam em revista pelo acúmulo de indivíduos que perdem sua humanidade para se

tornarem protagonistas de uma história degradante em que tudo é mercadoria.

Esse segundo bloco parece conter menor grau de invenção do que o primeiro,

tornando o conjunto uma reedição da estrutura anterior. Inscritos no quadro de

mercantilização dos indivíduos, o elenco “Roupa no varal” deixa de ser Lalado, Lino e

Diolinda. Mas sim, a força de trabalho do motorista, os produtos entregues do armazém,

o veículo ao qual o dono dedica muita atenção, e o corpo da prostituta.

Essa fábula leva adiante os procedimentos construtivos, porém lhes retirando o

caráter de novidade dos volumes anteriores. As frases-síntese das cenas estão ligadas: a)

à ansiedade pelas ilusões de ascensão social pretendida por Lalado, b) à pergunta

arrogante de Lino que não espera respostas e sim obediência, c) à solidão sofrida pelos

sonhos rebaixados e, mesmo assim, irrealizáveis da menina Diolinda. Os

preenchimentos cumprem a função de apresentar as minúcias das cenas, isolando-as do

fluxo narrativo, listando as mercadorias, compradas pelas prostitutas da Ilha. A

necessidade interna da forma estética mantém, através de vários recursos, aquele padrão

de novidade, ainda que na superfície discursiva (como é o caso da simulação da lista

manuscrita dos produtos do armazém). Além disso, parece haver ligação entre o

processo social e as metonímias: “Os olhos e os dedos do seu Lino conferem os

garranchos no papel-de-pão” (RUFFATO, 2006, p.98). E para apresentar as clientes do

Armazém:

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Lalado escancara as portas da Kombi, escancara um engradado de cerveja

(...) intercepta-o o rabo-de-cavalo, frente-única amarela, cílios postiços,

batom vermelho, calça santropê cinza, tamancos (...) (RUFFATO, 2006,

p.99)

A submissão de Lalado à rispidez de Lino se insere nos marcos da política do

favor. Complementar a essa dependência, a intenção de ascender socialmente, não

apenas ligada ao plano material do motorista (com o consumo de novas mercadorias),

mas também ao seu desejo de superioridade, frente a vizinhos e conhecidos:

Desfilaria para baixo e para cima entregando as compras, ordenado certo fim

do mês, logo-logo trocaria a Monark por uma vespa ou quem sabe até mesmo

por um Fusquinha, por que não? (RUFFATO, 2006, p. 95)

Em “Roupas no varal”, a subjetividade rebaixada do aspirante a funcionário do

Armazém, eufórico pela proposta de trabalho, forma um quadro deprimente com o

destino da menina Diolinda, estudante do mesmo grupo escolar infantil. Programada

cruelmente, desde a infância para o fracasso, por conta da moléstia de pele:

Não tem jeito não essa menina! Então a professora aproximou-se e espatifou

a régua-de-madeira em sua cabeça Dona Cristina, eu não... vestido-

salopete azul, camisa tergal branca, sapato-boneca Diolinda, não

chora não boba! Diolinda... A Diolinda Fe-de! A Diolinda Fe-de! Não

aprende nada essa menina! Grupo escolar Flávia Dutra segunda série,

terceira série Repetente, a Diolinda impingem (RUFFATO, 2006, p. 100,

grifos originais)

Estas memórias de falas violentas introduzem a explicação final, desencadeada

pela contagem das notas em pagamento pelos produtos. O desfecho reúne o sonho

frustrado do motorista em ser bancário à vivência da prostituta Diolinda. A passagem

abaixo ilustra a função dos grafismos, largamente empregados no livro: os diferentes

formatos das fontes indicam protocolos auxiliares de leitura. No caso, o discurso direto

de Lalado, que rememora os tempos de escola, atualiza o passado naquele rápido

reencontro com Diolinda. Interessa assinalar, por fim, que este desfecho relativiza, com

amargura, o entusiasmo inicial do rapaz:

Tomou o maço de notas sebentas, esforçou-se para contá-las, “Certo?”

Diolinda... Mãe, quando eu crescer quero ser bancário... Bancário? É, que

nem o marido da dona Cristina. (RUFFATO, 2006, p.100)

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Subsequente a esta narrativa, está “Cicatrizes (uma história de futebol)”, que

volta a empregar, de modo muito econômico, a alternância temporal a fim ilustrar a

criação de um time de futebol, pelo enfermo ex-carroceiro, seu Miguel. Idoso e

desempregado, devido às mudanças no transporte dos trens locais (de passageiros a

minérios), o protagonista encarna o pai pressionado pelas condições precárias de sua

grande família. Diferentemente da maioria dos tipos, Miguel caracteriza-se pela conduta

protetora do círculo familiar. Nesse sentido, é correto afirmar que “Cicatrizes” é um

momento particular no enredo geral do livro. Esta micro-história funciona como

distensão dramática se relacionada às demais.

Por conta disso, “Cicatrizes” apresenta alguns elementos estruturais deslocados

da lógica geral. Sua presença reforça, portanto, aquele padrão construtivo. O primeiro

deles é o uso de uma epígrafe, com forte tonalidade oral e referência histórica, que

sintetiza abertamente a intenção daquela narrativa:

Sim, 21 de junho de 1970 tornou-se uma das mais

importantes datas da História do Brasil. Afinal, naquele

dia a Taça Julies Rimet conquistou-a em definitivo a

seleção brasileira, na inesquecível peleja contra a

Itália, diante dos mais de cem mil fanáticos mexicanos

espremidos no Estádio Asteca, quatro a um, lembra? Mas,

1970 também marca a fundação e glória do efêmero Botafogo

Futebol Clube, de Cataguases, o “Botafoguinho” do

Paraíso, que raro caso nos anais do desporto bretão,

desmantelou, invicto, após vinte partidas disputadas

entre agosto e dezembro daquele ano. E, para avivar a

memória, que se vai esvanecendo, construímos esse breve

relato. (RUFFATO, 2006, pag. 103, fonte original)

O trecho acima pode ser lido como comprovação daquele narrador vicário

devido ao emprego de marcas dialógicas e ao distanciamento racional da voz, que busca

organizar a História nos planos macro e micro. Não é exagero afirmar também que há o

intuito de opor o realismo do pequeno cotidiano às linhas dos grandes eventos

históricos.

Como se lê no decorrer da trama, a criação do time de futebol se sobrepõe, (e

não se integra), àquele acontecimento mais geral. Além disso, a epígrafe soa como uma

invocação épica, que associa obliquamente doença e cura ao time de futebol. O

desajuste pode ser encontrado também na organização linear do enredo de “Cicatrizes”.

Esta afirmação se fundamenta na divisão do enredo em duas partes, cada uma com

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registros opostos: um, carregado de imagens funestas, quando da doença e preocupações

da esposa Creusa, o outro, mais vivaz quando da ocupação de Miguel na formação e

vitórias do seu Botafogo.

Outro dado significativo é a importância dos eventos auxiliares na confecção da

trama. Notemos a relevância das sequências secundárias (o passado da família de

Miguel e Creusa) e do personagem Paco (coadjuvante nas campanhas da equipe do pai).

Eles são deslocamentos que revelam a posição dessa narrativa dentro do enredo geral de

Vista parcial da noite.

O recuo à vida pregressa do casal mostra as condições vexatórias dos agregados.

A permanência dessa situação social é trabalhada em “Cicatrizes” pelo lado da

conciliação de classes. A rotina precária é narrada pelo ângulo das mudanças

recorrentes, tentativas de suicídio e redenção pela religião:

Esculhambação de senhorios, humilhando-o na frente da mulher, dos filhos,

vizinhos, estranhos. (...) Engolia os desaforos, catava os pertences e

desarranchavam de manhãzinha, tangendo furtivo, banco e meninos-de-colo

(...) planos anormais bicavam suas ideias, formicida, largar-se no mundo, até,

demonstrando que Ele não desampara os seus. (RUFFATO, 2006, p. 104)

A condição pingente de agregado é resolvida pela compra de um terreno,

situado no bairro do Paraíso, pelo cunhado de Miguel. Importante destacar que esse

primeiro recuo ao passado é feito sem ênfase na fatura geral e, ainda assim, implementa

a tendência didático-explicativa. Isso fica mais evidente quando a cena seguinte passa

em revista pela geografia do bairro do Paraíso. Suas divisões naturais, ditadas pelas

divisões econômicas, acentua o didatismo: o Paraíso dos pobres, à esquerda, o Paraíso

dos Remediados, ao centro, e o Paraíso dos ricos, à direita.

Os antecedentes que formam o caráter miserável da vida de Miguel estão

determinados fortemente, como em nenhum outro enredo do volume, pela instabilidade

material. Daí se fundamenta um tom de exemplaridade nas sequências descritivas.

Centralizadas apenas no trabalho pesado do protagonista, essas cenas mostram o seu

histórico como um quadro estático. O movimento é introduzido pela exaustão de

Miguel, seu medo da morte, sua consulta ao médico e uma aparição religiosa num

sonho. O seu aparente esgotamento físico esconde a dimensão econômica precária.

A mudança na intriga se dá em termos exclusivamente individuais. O

apagamento do passado dependente dá lugar às iniciativas pessoais de Miguel, já que

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ele, após a consulta médica, busca “arrumar um troço qualquer pra distrair a cabeça...”

(RUFFATO, 2006, p.109). Após a aparição religiosa no sonho, afirma à sua mulher:

“Preciso de tomar um jeito, Creusa”. Não há mercadorias, opções sociais ou revolta para

idoso adoentado. As contradições do trabalho exaustivo e da vida miserável dão espaço

para a formação da equipe de futebol, pautada na solidariedade entre os vizinhos e nos

laços afetivos: uma mobilização local que envolve comércio, políticos locais e a própria

Creusa, cujo resultado é a campanha de sucesso do Botafogo Futebol Clube de

Cataguases. A dicção do narrador passa a ser mais vivaz e menos mórbida, com direito

a exclamações e exultação de Paco como um “amuleto”. Nesses dados se expressa a

ótica amena do agregado.

Dissemos que os eventos auxiliares são de grande importância como chave de

leitura dessa trama e, primeiro, ilustramos a condição de agregado de Miguel. O outro

dado é o papel desempenhado por Paco. Nesta fábula, o menino é quem dá ideia ao pai

na constituição do time, mas do qual não se torna membro efetivo. A presença lateral de

Paco na equipe e na narrativa é quebrada de uma só vez. A única cena de protagonismo

do rapaz é aquela imediatamente anterior ao desfecho.

Após mais uma vitória, o ônibus do Botafogo sofre uma avaria e todos

desembarcam. O menino resiste, embora com necessidade de urinar. Acanhado com os

demais jogadores mais velhos, Paco “invade a escuridão (...). Às cegas, busca um lugar

para se aliviar” (RUFFATO, 2006, p. 114) e inicia uma investigação no matagal. Aqui,

a relativa relevância do personagem se deve ao seu não-pertencimento ao grupo. O

resultado, que articula o espaço às sensações do menino, é plasticamente

fantasmagórico. O desfecho exibe o terror de Paco pela estranha figura: “uma débil voz

[que] indaga, ignoto sotaque; paralítico o corpo que estaca, mãos esqueléticas, rostos

encaveirados”(RUFFATO, 2006, p. 115).

A narrativa de Miguel, Paco e o time do Botafogo Futebol Clube apresenta um

ângulo ameno e sem consequências negativas. “Vicente Cambota” forma com ela uma

unidade de contrários. A micro-história anterior possuía um título entre transparente e

opaco. Nesta, o referente é explícito. “Vicente Cambota” apresenta a vida de mãe e filho

reduzida ao favor e à mendicância. Assim, essa narrativa é mais afinada ao caráter

infernal da experiência dos pobres do que a seu lado provisório.

Narrada por uma voz distanciada, o enredo apresenta uma biografia da

destruição. Filho de Maria de Souza, desempregada com perturbações mentais, Vicente

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é batizado Asclepíades de Souza e em sua certidão não consta o registro paterno. Seu

outro nome é dado por padres que o abrigavam por caridade.

A mendicância de mãe e filho caracteriza a vida “de-favor, abrigados aqui-ali”

(RUFFATO, 2006, p. 119).

zanzaram, deus-dará, até que, arcados pela dona Arminda e seu Antero, do

Centro Espírita Bezerra de Menezes, acamparam no buraco da penumbra

escavado no porão da casa do Zé Pinto (RUFFATO, 2006, p. 120)

A eventual compaixão do leitor se complementa com a progressão linear e o

foco em Vicente. Assim, aumentam a comunicabilidade dessa trama, fazendo com que a

indecisão linguística do narrador, as referências canônicas e a personagens passados

participem da estrutura como compensações ao leitor sensibilizado.

Ainda nesse sentido, o modo como a voz narrativa organiza a vivência do

personagem configura um movimento, já explorado antes, conciliador com a percepção

média. O processo contínuo de degradação do personagem tem como eixos motivações

deterministas. “À medida que espichava, Vicente convertia-se noutro” (RUFFATO,

2006, p. 124) e a imagem da chuva torrencial do mês de Janeiro imprime o ritmo da

mudança. A ela se seguem: a doença mental da mãe, o ambiente de extrema penúria, o

vício do álcool e o “braço-de-ferro com o senhorio” Zé Pinto. Com base nessa

caracterização do conhecido comerciante, é possível ler uma defesa da passividade

como solução para a miséria do agregado. Ou seja, no andamento do enredo, antes da

indigência de Cambota, estão espalhadas cenas de piedade e comiseração dos vizinhos.

Até que finalmente, do emblemático Zé Pinto, veio a proposta de abrigo, com a

contrapartida de trabalho na chácara.

Novamente, a tendência à exemplaridade se combina a recursos técnicos, cuja

função é organizar de modo legível a vida aviltante. Assim como conteúdos destrutivos

corroboram o ângulo derrotista. Ao se afastar do comerciante, Vicente se integra à

paisagem degradada. Desde o início, sem uma identidade e situado debilmente no

mundo, Cambota: “a sombra magra, precocemente encurvada, que perambulava morro

acima-abaixo, absorveu-a paisagem” (RUFFATO, 2006, p. 126).

O conflito do protagonista é pontuado por imagens negativas, de ruínas que lhe

rebaixam a condição humana. Ainda que o fim trágico de Vicente seja anunciado, o

desfecho da narrativa é aberto, haja vista a internação, a fuga do hospital e o posterior

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desaparecimento. A lógica de funcionamento da ficção é ilustrada na cena final: a

camada pobre que não se adapta à miséria sucumbe inapelavelmente. A formatação da

sequência (o uso dos sinais gráficos de “{}”, que abrem e fecham a cena) acentua o grau

de didatismo, transformando este bloco em um quadro estático frente à súmula anterior

da “absorção” de Cambota pela paisagem.

A funcionalidade de “Vicente Cambota” em nosso esquema é a de retrair o vigor

experimental da estrutura do livro. Coerente com este percurso, o enredo geral precisa,

novamente, ativar a tensão. E isso se dá com a próxima narrativa, talvez a mais obscura

do volume.

“O morto” alterna vertiginosamente os planos temporais, mescla-os a diferentes

vozes de personagens, para apresentar uma versão da morte de Permínio Alves Pedroso,

dono de circo em franca falência. Nesta micro-história, a progressão temporal subdivide

o passado em várias partes: um imediatamente anterior à morte de Permínio; outro

distante que demonstra o descenso da vida no circo e o trabalho para mantê-lo; a volta

ao primeiro passado em que o delegado Aníbal é comunicado da ocorrência; um novo

avanço rumo ao presente, com uma intimação de Permínio à delegacia. Por fim, uma

simulação de colagem que reproduz uma notícia de jornal policial, que dissipa o

mistério do enredo. A desestruturação do tempo interno ao enredo é a técnica por

excelência do arranjo de Inferno Provisório. Mais uma vez, a pequena escala das

intrigas reproduz aspectos do romance geral.

Nesse aspecto preciso, “O morto” é representativa do conjunto maior. O que não

acontece do ponto de vista estilístico, já que a narrativa recua a soluções testadas nos

volumes I e II. Não se percebe o mesmo rigor na construção sintática, nem nos

acabamentos das cenas. Há, na relação do dono do circo com o violento delegado local,

o procedimento já conhecido de embate verbal. Isto é, a convenção ortográfica é

seguida metodicamente para distinguir as posições sociais de Permínio e Aníbal. Além

disso, o registro linguístico do narrador é estritamente normativo. Ao investir em uma

tendência experimental, é coerente, com a lógica explicativa da obra, o recurso de

desvendamento do mistério no desfecho. A simulação da nota jornalística encerra a

narrativa, ressignificando tudo até lá desenvolvido.

Importante destacar o círculo de personagens e sua relação com o

desenvolvimento do enredo. De um lado, soldado, sargento e delegado convivem

pautados por um autoritarismo paternalista. De outro, a marca negativa também assinala

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a vida de Permínio Alves. Em síntese, a ponta pobre do aparato de Estado e o

profissional liberal se unem através de suas relações com a sociedade. Sinais regressivos

dessas condutas são as declarações dos policiais, ora feitas através do narrador

(“poderiam permanecer afundados no bem-bom da delegacia não fosse a ocorrência,

duro renegar aqueles olhos estatelados...” RUFFATO, 2006, p. 131), ora pela fala do

sargento Narciso dirigida ao subordinado Carneiro (“Ponha isso na cachola: quer subir

na vida ou chafurdar na miséria?” RUFFATO, 2006, p. 131). Some-se a esse conjunto,

o ressentimento de classe do soldado negro e pobre, que admira as altas patentes, mas

que “acovardava-se, intimidado [pois] carecia do soldo fim do mês, e descontava em

ladrões-de-galinha, maconheiros pé-rapados, bichas-loucas, mulheres-da-vida”

(RUFFATO, 2006, p. 133). As dificuldades do proprietário do circo mambembe se

inserem num conjunto, já conhecido de razões: a crescente pobreza da família Alves (“E

a assistência, que releava... Tempos difíceis, careciam de teres...”), cujas raízes estão na

escassez de público porque “circo, antes preferiam o dos gringos que alardeavam

estrepitosas atrações...” e na sua preferência pela televisão.

O contexto de violência e regressão social fica ao cargo das declarações feitas

pelo delegado Aníbal. Autoridade local que goza do apreço das elites, ele encarna o

discurso do país oficial, cumpridor das leis e da religião. Logo, ferrenho combatente do

que considera desordem. Tanto discurso direto dos policiais como o indireto do narrador

apresentam essas práticas. A primeira mais consistente, por se ajustar ao embate verbal

entre o dono do circo e o delegado. A segunda mais fraca, pela função ilustrativa. Com

ela, inclusive, surge um quadro documental das repressões47

.

No plano das ações, é o interrogatório final de Pemínio o que resolve as

contradições entre o discurso e a prática policial. Nessa cena, há um razoável

rendimento crítico. O representante da lei é alertado por um desesperado soldado a

respeito de um recente homicídio, logo à saída do Lions Club. Após isso, interroga

Permínio por conta de uma atração circense não autorizada. Ali, Aníbal revela seu gosto

pela leitura e pela escrita teatral, esquecendo a tal licença. Dessa cena, é possível extrair,

ainda que de modo precário, a acomodação do representante da violência

47

Prisão do sindicalista na fábrica local e estudantes que protestam em oposição ao delegado são

passagens são fracas esteticamente. Sua presença sugere apenas uma referência ao contexto histórico

planejado pelo escritor.

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institucionalizada às suscetibilidades da arte popular. Em âmbito reduzido, a adequação

de práticas regressivas às formas artísticas.

“O morto” abre as possibilidades, com um timbre negativo, que serão exploradas

na narrativa seguinte “Haveres”. A parte final do arranjo do livro prepara, com

conteúdo, o que será trabalhado formalmente. Por vezes, figurando de modo ambíguo a

modernização, assim como as consequências subjetivas dos pobres, o quadro de

situações tem relevância. As permanências de práticas do universo patriarcal, em meio

às relações que se modernizam, são trabalhadas pela ótica crescente da mercantilização.

É essa combinação que nos parece o dado significativo para a compreensão do olhar

contemporâneo plasmado pelo derrotismo.

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O livro das impossibilidades

Publicado em 2008, dois anos após Vista parcial da noite, o quarto volume dá

sinais de transformação no ciclo de Inferno Provisório, a começar pela quantidade de

narrativas que compõe. Os três volumes anteriores continham, pela ordem de

publicação, seis, treze e onze micro-histórias, ao passo que O livro das impossibilidades

apresenta apenas três. No plano da ambientação, predominam as metrópoles como um

ponto de fuga e fixação dos personagens, em oposição a Cataguases, viva apenas na

lembrança dos protagonistas. Segundo as palavras de Ruffato, o plano temático guarda

as mudanças de comportamento que se querem típicas das décadas de 1980 e 1990.

O panorama enxuto gira em torno de quatro protagonistas, Luis Augusto, Ailton

e a dupla José Teixeira e Antonio Dionísio. A ligação de todos esses personagens com a

interiorana Cataguases é tensa e precária. São indivíduos que buscam ou felicidade ou

estabilidade no Rio de Janeiro e em São Paulo. O conteúdo das micro-histórias são

flagrantes de experiências desoladoras de protagonistas nas metrópoles.

O livro das impossibilidades mantém a unidade do processo criativo nos títulos,

identificado anteriormente. Coabitam duas estratégias construtivas já conhecidas. De

um lado, a perspectiva irônica-amarga, localizada em “Era uma vez” e “Carta a uma

jovem senhora”. De outro, o ângulo da religiosidade cristã, com a correspondente

sugestão do destino implacável, fundamentado em intertextualidades e referências

literárias. O volume indica a atmosfera de fábula na primeira narrativa, a dimensão

amena e respeitosa na segunda. A terceira, mais referencial, vem acompanhada da

epígrafe bíblica que corrobora a inspiração do título do volume.

A composição de “Era uma vez” e “Carta a uma jovem senhora” é bastante

parecida. Suas cenas iniciais mostram Luis Augusto e Ailton em meio a um evento que

lhes desperta a atenção. A partir disso, é desencadeada uma série de reminiscências. O

primeiro, já adulto, reconhece o primo num segurança em uma loja de departamentos. O

segundo simula a escrita da carta a Laura, a tal mulher. Ambos os narradores se mantêm

a uma distância relativa e respeitosa, tal qual o tempo que separa os personagens de seu

passado. Nessas duas, a alternância cronológica explica a substância da narração.

Através do passado acumulado se desvenda o motivo da memória e a redação da carta.

A despeito da aparente quebra de linearidade, o motivo central dos enredos é

simples. “Era uma vez” expõe alguns dias do adolescente interiorano, na casa da

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madrinha em São Paulo. A lógica de apresentação das cenas e as tramas vividas por

Luis Augusto seguem um esquema cronológico. Tal qual um diário de viagem, com as

rubricas dos dias e meses, as aventuras de Guto demonstram o jovem inadaptado ao

cotidiano na cidade grande. O estranhamento é constante com as atitudes da prima

Natalia, as transgressões da turma do primo Nilton, a postura da empregada doméstica

Indiara. Apenas o diálogo com Nelly, a filha de sua madrinha, permite a Guto alguma

identificação.

As semelhanças das trajetórias da enfermeira e a do adolescente só serão

percebidas no volume quinto, em que a história completa de Luis Augusto será

revelada. De todo modo, o contato com a família da madrinha em São Paulo não é

suficiente para acolher o rapaz, o tempo de visita expira e o rapaz volta com seu pai para

o interior. O seu sentimento de solidão em aos acontecimentos paulistanos é

determinante no juízo negativo sobre a cidade.

No entanto, as correspondências mais significativas estão entre os protagonistas,

anterior e o seguinte, Ailton, de “Carta a uma jovem senhora”. Além disso, nessa

segunda trama, notemos o destaque dado à figura do narrador, que repassa as tentativas

juvenis de Ailton em conquistar a menina Laura. A estratégia para tanto é a dificuldade

em calibrar a linguagem do protagonista na escrita da carta.

Desgostoso com o namoro da jovem com outro rapaz, Ailton viaja para o Rio de

Janeiro. A tentativa de o sujeito se fixar em novo território não é vitoriosa. Entre idas e

vindas, alugueis atrasados e privações materiais, Ailton procura acertar suas contas

consigo próprio e vai ao encontro de Jacinto, antigo namorado de Laura e dono de um

bar no porto de Santos. Lida à luz da primeira narrativa, esta sugere um espelhamento,

entre Ailton e Jacinto. Entretanto, a qualidade é diversa, já que este par se opõe e Nelly-

Luis Augusto se complementam.

A linha central do enredo de ambas as narrativas apresenta protagonistas

desencantados e solitários em meio às metrópoles. Os coadjuvantes qualificam as

opções dos trabalhadores pobres do interior. Ou seja, tanto uma como outra atitude (dos

protagonistas e dos secundários) estão inscritas no mesmo arco de possibilidades de

classe, mas a de Nelly (mulher emancipada que se transfere para São Paulo, após a

viuvez) e a de Jacinto (falso marinheiro que queria se exibir para os amigos), são as

menos conformistas. Nem a enfermeira, nem o dono do bar estão submetidos ao código

derrotista de Luis Augusto e Ailton.

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Comparando as perspectivas dessas duas intrigas, é possível afirmar que haja

dois pontos de vista embutidos no volume. “Era uma vez” e “Carta a uma jovem

senhora” constroem protagonistas de personalidades já formadas. Luis Augusto e Ailton

(embora seja significativa a diferença etária) são indivíduos igualmente inseridos no

mundo urbano desagregado. À própria sorte, naquele quadro violento e veloz, os

protagonistas expõem dois tipos de formação de personalidades. A apresentação dos

dramas de ambos é semelhante. Suas narrativas se iniciam em meio a situações-limite.

Luis Augusto, já quinze anos mais velho, no início dos anos 1980, depara-se com o

primo, agora vigilante de loja. A narrativa de Ailton, por sua vez, inicia-se com a

tentativa de escrita de uma carta a Laura, antigo amor de infância, no interior.

As duas primeiras também podem ser enquadradas no esquema de enredos não-

lineares. Nestas estruturas, a tendência didática se mostra logo após à apresentação da

cena inicial. O desenvolvimento do enredo avança em retrospectiva a fim de compor os

primórdios que levarão ao presente. Para cada personagem secundário são reservados

blocos, que introduzem situações determinantes para o andamento geral (Dimas, o ex-

marido de Nelly; Natália e, em seguida, o irmão Nilson; os preparativos de Olegário

para a viagem a São Paulo). Além desse recurso, há também a cronologia do menino na

metrópole até o retorno a Cataguases. O mesmo modo de construção se dá em “Carta a

uma jovem senhora”. Nela, Ailton repassa todo o seu passado, antigo e recente, para

conseguir escrever a missiva do título. Por meio dessa reconstituição, são apresentadas

as amarguras que degradam o protagonista.

Interessa apontar que o adolescente Guto não demonstra clareza sobre o caminho

para se estabelecer em São Paulo, já que sua viagem é desejo exclusivo de seu pai,

Olegário. É por meio da já constituída rede de relacionamento que os “compadres”

selam o destino do rapaz. No vértice dela, a enfermeira Nelly, mulher emancipada e, por

isso, mal vista em Cataguases. Seus filhos, já nascidos no circuito da metrópole, não

tornam a acolhida de Guto mais sutil. Levado pelas circunstâncias criadas pelos primos,

o rapaz estranha a realidade que o coloca sempre em posição de teste: de seu silêncio,

de sua fidelidade, de sua coragem.

Ailton, por outro lado, é apresentado em meio a um momento de racionalização.

A incompletude é um princípio estrutural: são falas que não se completam, modos de

escrita que são abandonados, bilhetes, por fim, que são rasgados. Formalmente, a

narrativa alterna projetos abandonados. Ailton, embora imerso no ritmo degradante da

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vida urbana (busca por emprego, demissões, inserção precária na cidade em que vive) se

prepara com afinco na escrita da carta. A redação (meticulosamente planejada e

frustrada no passo seguinte à sua realização) degrada a subjetividade do personagem até

esgarçar suas alternativas.

Se o primeiro ângulo de narração das subjetividades é exposto pelo par anterior

de histórias, o segundo se vê na história dos dois amigos de infância José e Antonio.

Nesse enredo linear, há o artifício da simultaneidade sugerido pela narração formatada

em colunas paralelas.

Essa terceira narrativa abusa de recursos gráficos. Os usos de fontes diferentes

para simular as falas e pensamentos comparecem com vigor. Complementares a isso, as

colunas paralelas e o tipo gráfico “&” dão o tom de associação das vivências de José

Teixeira e Antônio Dionísio. O par de colunas aponta claramente para um corpo textual

cuja função é amalgamar as duas vidas numa simulação de ocorrência simultânea. As

dissociações, quando ocorrem, fazem com que o foco narrativo recaia ora em um

personagem, ora no outro. Tal recurso gráfico corrobora o caráter duplo exposto na

epígrafe religiosa. “A manhã e a tarde do primeiro dia” (RUFFATO, 2009, p. 89)

correspondem, por analogia, ao nascimento dos personagens e suas vidas adultas.

É possível alocar “Zezé & Dinim” num entroncamento enviesado da tradição

dos romances de formação. As experiências dos dois protagonistas revelam a face

degradada do confronto do indivíduo com a sociedade. Assim, narrando as primeiras

aventuras até a proximidade da morte, “Zezé & Dinim” expõe mais claramente uma

interpretação acerca dos descaminhos dos pobres sob o terreno da modernização

nacional.

A consciência dos protagonistas é forjada durante o desenvolvimento do próprio

enredo. Assim construída, essa subjetividade é determinada pelas reviravoltas da

experiência em ato. Ou seja, por meio de suas ações e não pela memória, como nas duas

anteriores, é que se definem os personagens.

A procura pelos avessos, típico da poética de Inferno Provisório, é revelada

aqui, quando acompanhamos a intriga. As transformações psicológicas e espaciais são

importantes para o tom da narrativa. Nascidos José Teixeira e Antônio Dionísio, Zezé e

Dinim são filhos de pais com comportamentos antagônicos dentro da narrativa, mas

complementares no conjunto dos livros. O pai do primeiro é alcoólatra desempregado,

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que violenta filho e esposa. A família do segundo é mais estruturada: Afonso, operário

presente na criação do filho, e a mãe Iracema zelosa e louca, que morrerá cedo (esse

fato transformará de vez o comportamento do menino). A coincidência das datas de

nascimento são pretextos para o encontro dos dois protagonistas, primeiro no hospital

em que nasceram, em seguida, na escola pública falida da região. Lá é o local em que

Zezé expõe a rudeza e a violência de sua criação, ao passo que Dinim demonstra apreço

pela ordem e pelo acolhimento. Interessa a cena de contato inicial em que o

ressentimento de Zezé exibe a falta de perspectivas dos pobres. Essa disputa rebaixada

por projeção está na base dos comportamentos futuros dos personagens. Sem motivo

explícito, os meninos rivais se transformam: Zezé passa a prestativo e Dinim, a

desajustado. Selam assim a amizade da vida inteira.

O enfoque dos eventos históricos das décadas de 1960 a 1980 (por exemplo, o

pouso dos norte-americanos na Lua, a Copa do Mundo de futebol ou a construção da

Ponte Rio-Niterói) interessa pela coerência do realismo ao rés do chão, característico da

obra. Retirada a ênfase dos grandes feitos, sobressaem as desavenças e os reencontros.

Na experiência mundana, o sentido da vida dos pobres.

Ao dividir as narrativas em dois grupos (segundo os conteúdos e os modos de

expressão) preparamos a especificidade desse livro e sua unidade. A seguir, a análise

das narrativas em relação ao princípio formal.

II

Chama a atenção o modo como Livro das Impossibilidades reconstrói a época

ficcionalizada: a) nomes de lojas de departamentos, jogos infantis e mercadorias; b)

apagamento de eventos históricos pulsantes na realidade dos 1980 ( greves operárias no

ABC paulista, altas taxas de inflação). De fato, o elemento que singulariza as narrativas

de O livro das impossibilidades são as manifestações explícitas da violência urbana.

Marcantes, são: a operação policial que impediu Ailton de chegar em casa, e a

transformação de Dinim em chefe de sequestradores.

A novidade introduzida por esse volume está na figuração da nova etapa de

atualização nacional. Como analisaremos em “Zezé & Dinim”, a passagem do nacional-

desenvolvimentismo para o neoliberalismo está representada no conteúdo explícito da

obra: trabalhadores potenciais sem espaço no mercado; pauperização; subemprego e

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adesão à violência e à criminalidade. O chão histórico é o da desagregação social, que

se traduz no esgarçamento das relações sociais.

Se o terreno sobre o qual os indivíduos se movem é instável (já que estão todos

em trânsito e essa é a tônica dos dramas), o mesmo não se pode afirmar sobre seus

sentimentos e subjetividade. Nesse quesito, a pauta derrotista tem ampla adesão. Essa

matéria segue, por exemplo, qualificando a intimidade do narrador com as personagens

em trânsito. No entanto, a mobilidade da voz narrativa já vista é reenquadrada na

fórmula estável de andamento e desfechos previsíveis.

“Era uma vez”, a rigor, não contém uma ação dramática no tempo presente.

Desse modo, trata-se da exposição reflexiva das memórias do adulto consigo próprio. O

presente se apaga no decorrer da narração para que o passado ganhe estatuto narrativo.

Esse tipo de composição se complementa quando se lê “Cartas a uma jovem senhora”.

Embora tímida, ali há a ação no presente. Nesta narrativa, a alternância temporal exibe

relação de causa e consequência entre os planos. Por meio das duas micro-histórias, é

possível depreender dois modos de exibição das subjetividades formadas pela

experiência na cidade. Uma é reconstituição da memória, a outra justificativa para o

presente amargo.

A terceira narrativa diverge das anteriores. A linearidade profunda de “Zezé &

Dinim” contrasta, não só com o modo expressivo, mas também pela aparência de

complexidade. Há colagem de linguagens, indistinção momentânea das vozes do

narrador e dos personagens, monólogo interior. Além disso, o drama é pautado pela

pobreza e violência de situações-limite. O espelhamento dos personagens também salta

ao primeiro plano. Exemplo disso é a cena de inversão do comportamento de Zezé por

sua mãe:

Quer me matar de desgosto? É isso? Desgramado! berra, brame o chinelo,

quede a força meu deus?, lábios descoloridos, que será deste?, cachorro

indomado, cínico, deboche pregado nos olhos vadios, desdenha-a, e arfando

lamenta o dia em que nasceu, Que mal eu fiz, meu deus?, que mal eu fiz?,

na escuridão o corpinho ajeita os retalhos da colcha, exausto cerra a jornada,

amanhã, irritado cabeça latejando, o pai, após o boldo, despertará, corrião em

punho, estapeando couros, puxando orelhas, chutando bundas. Feliz do

Dinim. (RUFFATO, 2009, p. 100-101, grifos originais)

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O narrador, próximo da cena, mantém-se em 3ª pessoa e caracteriza,

ambiguamente, o menino. Ao mesmo tempo em que Zezé é cachorro indomado, cínico

e debochado com olhos vadios, é o mesmo cujo corpinho ajeita retalhos da colcha na

escuridão. Justapostas dessa forma, a condução entre tensa e condolente da voz

narrativa simboliza a dimensão irônica com que arremata a cena. O desejo do menino

em ser outro, de tomar o lugar do amigo, está contido no último período da cena acima.

Contudo, o parágrafo seguinte desautoriza o sentimento. O registro tenso, expresso em

linguagem culta, não deixa dúvidas quanto à criação de efeitos de simpatia e comoção

do leitor com o personagem.

O último período cria uma súmula piedosa para a cena de violência doméstica. O

desejo de Dinim em se transformar no amigo é duramente frustrado: “Feliz do Dinim,

mãe hospiciada, queimadeira de dinheiro, pai negligente, sem empregos, biscateando

bobiças cá e lá para o de-comer” (RUFFATO, 2009, p.101). Há amargura e ironia

nessas transferências. A sugestão determinista para o comportamento problemático do

menino Antônio Dionísio se baseia nos atos de seu pai: desempregado, interna a esposa

e casa com uma prostituta. Estes são antecedentes necessários para qualificar as

mudanças operadas pela lógica da adaptação.

A transferência da família de Zezé para o Rio de Janeiro é símbolo máximo

desse padrão formal: a rotina de álcool e violência é substituída pelo trabalho na

construção civil e pela labuta doméstica. O filho problemático passa a exemplo para os

irmãos mais novos. Não por acaso, o capítulo 10, cujo título é Queria que você

estivesse aqui, contém a cena de transformação radical da família de Matias e Nazaré.

Nesse ponto medial, o foco do capítulo é o personagem Zezé. Pais e irmãos são “tropa

[que] rumou para a Avenida Presidente Vargas, feliz” (RUFFATO, 2009, p.122). A

antiga família desestruturada assiste ao desfile de Sete de Setembro, no ano de 1975, e

inicia assim a sua entrada no circuito urbano. Primeiro, livre do mando patriarcal

anterior e pronta para os benefícios da sociedade do trabalho industrial. Em seguida, a

derrocada da família: mudança para o Morro do Dendê, dispersão dos filhos e morte por

alcoolismo do pai. O efeito de tensão e distensão mais uma vez age nessa sequência.

Encerrado o ciclo de bonança da construção civil, resta a Nazaré e seus filhos as teias da

cidade desagregadora.

Por fim, cumpre registrar que, apenas na superfície, são binárias as oposições

dessa narrativa. Seja no discurso do narrador, seja na caracterização dos protagonistas,

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as inversões e os avessos necessitam de um terceiro termo: a avaliação que os tipos

sociais fazem das cidades.

III

O comentário mais extenso dedicado à terceira narrativa se explica pela maior

complexidade de seu enredo. Isso é critério para seguirmos com o esquema já proposto.

Reproduzido mais uma vez quando avaliamos a interpretação dos protagonistas sobre as

metrópoles.

Tanto a São Paulo de Luis Augusto, com a cultura do rock, expressa pelos

amigos de Nilton, como o Rio de Janeiro de Ailton e suas invasões policiais são vistas

em retrospectiva e reprovadas. De outro modo, é o Rio de Janeiro na passagem das

décadas de 1970 e 1980. Trata-se aqui de um ângulo mais complexo do que a simples

oposição. A perspectiva da desagregação afeta o entendimento sobre a geografia urbana

e sobre a morfologia do trabalho.

A periferia da capital paulista e a Zona Sul carioca estão em franca oposição a

Cataguases. São Paulo abriga a “casa modesta” da madrinha, que não aloja o pai de Luis

Augusto porque é “uma caixinha de fósforo”. O Rio de Janeiro é lugar do desemprego

do protagonista e da violência policial com “camburões, sirena histéricas, revólveres,

fuzis, a multidão espremida junto ao cordão de isolamento” (RUFFATO, 2009, p. 72).

O bairro da Cacuia, na Ilha do Governador, reserva a moradia tranquila e redentora dos

trabalhadores pobres da construção civil, enquanto as obras os mobilizarem.

Ainda que avaliadas contraditoriamente, as cidades são definidas pela ótica

privada e derrotista. A travessia que move Luis Augusto para São Paulo, assim como a

de Ailton para o Rio de Janeiro, é tentativa de fuga do interior, marcada pela sombra

opressiva de Cataguases. No entanto, o processo que move a dupla Zezé e Dinim é de

qualidade diversa. Ela se prende, em certa medida, à violência aberta que lhes molda a

visão sobre as metrópoles.

Embora todos os desfechos tenham em comum os protagonistas em cenas

desoladoras, o seu conjunto forma um tipo de gradação. Luis Augusto regressa com seu

pai. Ailton rasga o bilhete com as informações de Laura e junto o seu passado. E, por

fim, Dinim repassa sua vida às vésperas de morrer, dilacerado física e subjetivamente.

Todos os desfechos compõem uma interpretação sobre a experiência dos pobres

nas periferias das grandes cidades. Dessa maneira, o conjunto é um longo ciclo que se

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fecha, deixando os indivíduos pobres ajustados a um novo circuito de explorações e

violências.

Nesse ponto, o realismo de Inferno Provisório atinge a rara dimensão crítica na

medida em que organiza, no espaço da metrópole, a desestruturação dos indivíduos e a

desagregação de suas relações. O valor dessa operação é ser antídoto para as

idealizações de “Era uma vez”, por exemplo. Novamente, recorremos à terceira

narrativa a fim de acompanhar essa transformação, verificando aspectos da trajetória de

dois personagens: Dinim, na linha central do enredo, e Matias, pai de Zezé, na linha

auxiliar. Nela, o momento de verdade do círculo secundário de personagens é também o

do círculo de protagonistas. Esta unidade do enredo também se verifica na linguagem,

menos afetada na recriação da oralidade e menos normativa.

Encerradas as obras de construção da ponte, Matias recusa serviços informais e

regressa à vida nos bares. O resultado, narrado em 3ª pessoa, mas à sombra dos juízos

de Nazaré, é assim apresentado:

Matias, coitado, traste sem serventia, labirintava enojado pelos estreitos

becos da favela, túrgido graveto de pele turva, de Bandeira apelidado,

crueldade do povo, porque trêmulo, todo o tempo ao vento submisso,

caquético, bruxuleando desesperado, vazando por todos os poros o homem

que um dia havia sido, até concluir-se murundu pobrinho arruinado no

cemitério da Cacuia, vencido pela cachaça que dissipou o nada em que os

náufragos se agarravam. (RUFFATO, 2009, p. 136)

A dimensão da miséria é maior se contrastada às cenas de diversão familiar,

fruto do ciclo virtuoso de assalariamento e trabalhos de encomenda feitos pelo chefe de

Matias. As descrições vivazes dos domingos no circo e no estádio do Maracanã

aprofundam o tom soturno que a narrativa assume, ao preparar a queda da família. O

ângulo privado do narrador alimenta-se das perspectivas sociais limitadas de Nazaré (de

quem internaliza o discurso). Muito próximo a ela, termina com a sentença final da

derrota do sujeito, em luta contra o vício pessoal.

Quando focalizado o terço final da vida de Dinim, assistimos à degradação

paralela ao novo ciclo de modernização. A regra é o acúmulo de situações que

dessolidariza as relações sociais. Notemos a coerência entre ação e contexto: o ingresso

no crime e os fins da década de 1980. No feriado da Independência, em 1987, Zezé

lembra a penúria da infância de sapatos remendados, ao mesmo tempo em que Dinim é

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preso por receptação. A ironia do título (“um lapso momentâneo da razão”) reveste o

capítulo, em que a dupla é aliciada por diferentes criminosos.

Acompanhando essas degradações, vemos ênfase nas dimensões privadas, no

fracassado dos protagonistas, nas relações pouco solidárias. Esse é o cenário propício

para a ideologia salvacionista de mobilidade social. O exemplo dos amigos de Nilson,

na primeira narrativa, que buscam a independência no emprego fixo de bancário, e a

redenção da construção civil para Matias, na terceira, encontram sua verdade no

desemprego de Ailton e caminho do crime ostensivo de Dinim. É este o capítulo novo

do “romance não-burguês”.

A construção do fracasso na intimidade dos indivíduos transforma os dois

primeiros enredos em histórias de desidentificação com a metrópole. Luis Augusto e

Ailton, inadaptados a São Paulo e ao Rio de Janeiro, formam também um par no que diz

respeito à constituição das subjetividades nas cidades.

Lendo-os em conjunto, Ailton, mais velho e experimentado no contato com as

relações urbanas, aponta para um isolamento mais ou menos racional, indicado no início

da trama. Nela, é possível se observar o sujeito buscando os laços afetivos de outrora.

Luis Augusto, mais novo e sem aquele repertório, deseja o acolhimento da cidade

interiorana, atestado pela visão da janela do ônibus rumo a Cataguases. A busca pela

segurança da família e do ambiente conhecido soa como compensação regressiva ao

passado, supostamente isento de contradições.

O processo implacável encontra expressão contraditória no enredo convencional.

É “Zezé & Dinim” a narrativa que mimetiza a dinâmica que esgarça os protagonistas,

sua subjetividade e os espaços. Ali, o aspecto comunicativo é desestabilizado pela

linguagem, que busca o dilaceramento da consciência pré-morte. O livro das

impossibilidades estiliza, com suas limitações, uma sociedade que bloqueia duplamente

o movimento de suas camadas pobres. Em primeiro lugar, o ingresso dos pobres na

esfera pública urbana, relegando-os ao anonimato ou ao crime. Em segundo promove a

sedução brutal do consumo. O quarto volume sinaliza os novos tempos de desagregação

do tecido social. Cabe à leitura do último volume, Domingos sem Deus, para

verificarmos as forças complementares de continuidade e descontinuidade,

implementadas por este programa literário.

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Domingos em Deus

Publicado dois anos após o quarto volume, O livro das impossibilidades,

Domingos sem Deus vem a lume em 2011 e encerra a pentalogia. Aguardado por parte

dos seus leitores e da crítica como uma possível reviravolta do “projeto não-burguês”, o

quinto volume consolida procedimentos, retoma conteúdos e faz referências a várias

matérias trabalhadas. O retorno à originária Rodeiro e à agora diminuta Cataguases

sugere coincidências, mas aparece como mensagens subterrâneas. As mais significativas

estão em “Outra fábula” e sua cronologia geral. Assim, Domingos sem Deus finaliza o

projeto de ficcionalização dos cinquenta anos de história nacional com uma imagem

literária de fechamento do ciclo48

. Como tentaremos demonstrar, a abertura para um

novo é a chave de interpretação geral e sua substância, um jogo de forças estrutural.

Nesse livro, a relação é mais clara entre a regra de composição e a matéria que moldou

o dispositivo literário.

O quinto volume é lançado em meio à estabilidade da carreira autoral de

Ruffato. Fato comprovado pela lista de títulos, mais robusta, composta por dezoito

publicações vinculadas à sua editora, em língua nacional ou estrangeira. Assim, o

escritor se firma como voz representativa, ao menos do ponto de vista comercial, no

panorama contemporâneo. Some-se a esse fato, os sucessivos prêmios recebidos pelo

escritor. O mais recente de Domingos sem Deus é o Casa de las Américas, neste ano de

201349

. Seja como for, essa informação sugere mais destaque quando inscrita no quadro

histórico-social do país. Ou seja, trata-se de um volume de narrativas ficcionais,

inserido no conjunto mais amplo, cuja elaboração é contemporânea ao momento de sua

publicação.

Domingos sem Deus não diverge do padrão construído ao longo da pentalogia,

mas sim ressignifica o conjunto anterior. Tomemos como exemplo inicial os títulos nele

enfeixados: o geral (do livro) e os individuais (das narrativas). O volume, nesse quesito,

reapresenta a conhecida intertextualidade religiosa. Além do título geral, é possível

localizar essa tendência na penúltima narrativa do volume, “Milagres”, em que se

48

Como o próprio autor declara em entrevista: http://mais.uol.com.br/view/xiddtuwnvlqs/metropolis--

entrevista-com-o-escritor-luiz-ruffato-04024C9B3160E0892326?types=A Acesso em 30 de janeiro de

2013 49

Ruffato ganha na categoria “Literatura Brasileña” e talvez seja relevante mencionar, que, nesta mesma

edição do Prêmio, Chico Buarque, com Leite Derramado, é agraciado na categoria “premio narrativa José

María Arguedas”. Conforme http://www.casadelasamericas.org/premios/literario/2013/premios.html.

Acessado em 01 de Fevereiro de 2013.

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expressa a ambiguidade, facilmente descoberta pelo leitor dos cinco livros. Dentro desse

mesmo campo semântico, situam-se camadas de sentido indicativas de outras

dimensões. Na já referida “Milagres”, vê-se um desdobramento entre irônico e

referencial a manipular o artifício construtivo, por se tratar do encontro inesperado de

dois conterrâneos, bem como do nome da cidade vizinha ao espaço de onde ocorre a

ação principal.

A estrutura dos enredos tem a forma de um sistema articulado de forças

complementares. Nessas narrativas, as tradicionais referências ao universo rural de

Cataguases coabitam o espaço degradado da metrópole; essa persistente memória dos

personagens bloqueia possíveis ações que os poderiam mobilizar. Pelo arranjo geral

desse volume, verifica-se que a travessia problemática entre os espaços sociais se

completou e o resultado dessa transição se faz sentir pelo ângulo derrotista. De “Mirim”

a “Outra fábula”, da primeira à última trama, tem-se o esboço de todo o projeto do

escritor, comprovando que o seu empenho artístico seguiu programaticamente um

roteiro consciente.

O esforço em abarcar a cronologia idealizada é significativo, por dinamizar

internamente a empreitada. Essa energia se deixa à mostra pelo arranjo em

espelhamento: enredos de protagonistas solitários contrastam com os de famílias

inteiras; a inicial concisão de detalhes, como se lê em “Mirim”, até a rica de detalhes

“Outra fábula”; as estruturas lineares ladeadas às de alternâncias temporais, entre outras.

No entanto, o produto desse trabalho sofre com o que poderíamos chamar de “escrita

industrial”: depois de tantos experimentos feitos anteriormente, a frase artística é

monotonamente regular face aos volumes anteriores, os procedimentos construtivos

para o início e desfecho das narrativas soam como fórmula já conhecida. Depois de

tantas leituras, o padrão de composição parece sofrer uma naturalização, estranha aos

princípios estéticos de inovação e suspense.

É bom afirmar que a imaginação estética, no caso de Domingos sem Deus, não

está na figuração de novos elementos, diferente dos já explorados, mas sim, nas

consequências programadas pelo material. Adiantando um argumento, as melhores

narrativas, “Sorte teve a Sandra” e “Outra fábula”, exibem dois momentos fundamentais

da experiência histórica dos pobres, lidas pelo ângulo contemporâneo. Os vértices dessa

vivência estão nos desdobramentos (esteticamente medianos) das relações de favor,

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inscritos num quadro de: a) relativa mobilidade social, b) estímulos a políticas de

consumo e c) expansão da sociabilidade neoliberal.

Interessante notar que, mais do que em outros volumes, Domingos sem Deus

associa, radicalizando, dois elementos anteriores: as várias viagens dos indivíduos em

direção ao eixo Rio - São Paulo e as referências à mercadoria. A movimentação entre o

roteiro impressiona pelo mapa de pequenas cidades mineiras. De modo semelhante, o

conjunto de marcas de lojas comerciais, artigos de uso pessoal, jornais e automóveis.

Poderia ser dito que a contemporaneidade da transição entre as duas pontas do processo

é marcada por intensa mobilidade degradada.

Do ponto de vista da prosa, o registro aumenta em normatividade gramatical, na

mesma medida em que abandona as expressões coloquiais. Embora o procedimento seja

explicado pelo autor como integração de seus personagens ao circuito urbano50

, a

justificativa é desautorizada pelo andamento das intrigas.

Também em Domingos sem Deus, é possível depreender o arranjo geral, a partir

dos enredos particulares. A relação entre as narrativas confirma a exposição dosada dos

efeitos. Vista deste ângulo, a possibilidade de ler articuladamente o conjunto exibe a

integração dos pobres nas rotas do consumo. Se válida essa hipótese, as narrativas de

Domingos sem Deus podem ser divididas em dois blocos complementares, com jogo de

forças dinâmicas. “Mirim”, “Sem remédio” e “Trens” compõem o primeiro momento

desse arranjo geral, marcado por um conjunto de semelhanças: extrema concisão,

protagonistas idosos e isolados; narrador distanciado simulando um acerto de contas de

Valdomiro, Ana Elisa e Dona Nica com suas próprias vidas. As principais imagens que

sintetizam os enredos giram em torno de doenças, degradação e morte. As poucas ações,

no plano do presente da narração, deslocam a centralidade da intriga para as

reminiscências (da infância ou da idade adulta).

O segundo bloco é composto pelas três narrativas finais: “Sorte teve a Sandra”,

“Milagres”, “Outra fábula”. A posição medial da quarta micro-história introduz um

50

Em vários momentos, o autor afirma, contraditoriamente, que sua linguagem literária tem por objetivo,

de um lado, se adequar à matéria miserável que narra e, de outro, ser sofisticada o suficiente para escapar

de simplismos linguísticos que caracterizariam a matéria. Essa ambiguidade não é resolvida nas

composições e pode ser lida como um impasse formal, cujas correspondências, não poderiam deixar de

ser, em última instância, sociais.

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conjunto de mudanças qualitativas neste arranjo: o narrador vicário passa a primeiro

plano por meio de uma ácida ironia, não vista anteriormente. Este bloco apresenta o

arbítrio da relação agregados x elite no centro da trama, além de naturalizarem a

presença da mercadoria. Nele a perspectiva passa a ser a do presente da narração,

enriquecida por conflitos objetivos experimentados pelos protagonistas.

Organizado por estas duas forças, Domingos sem Deus encerra o ciclo

romanesco expondo uma leitura muito clara da experiência de classe dos pobres: sua

inserção na modernidade financeirizada se assume como adaptação ao circuito da

mercadoria, com os contornos de ascensão social, entre traumática e ilusória,

impulsionada, ora por uma visão linear, ora contraditória do progresso.

II

O imaginário idealizado abre com força o volume. O recurso da repetição,

variada e ostensiva, indica rotinização da técnica. Some-se a esse padrão dois outros: o

uso dos grafismos, como um decalque da realidade no texto ficcional; a mobilidade das

convenções ortográficas, tanto para simular a tensão dramática como a luta verbal entre

classes diferentes. Ainda que seja baixa a ousadia estética, como se percebe na

simplicidade dos enredos e dos procedimentos, as narrativas adquirem relevância

quando articuladas ao universo dinâmico do segundo bloco. Outro elemento da pouca

potência semântica se localiza nos títulos: todos transparentes, simulando uma

referencialidade facilmente depreendida dos círculos centrais dos enredos bem como de

seus protagonistas.

“Mirim”, discretamente, introduz uma novidade logo em sua cena inicial. Ela,

entretanto, será retomada em seu desfecho:

Perguntassem – e perguntavam – ao seu Valdomiro, no forró do Centro de

Recreação do Idoso, nas caminhanças no jardim Inamar, no palavrório bem-

te-vi no centro de Diadema, o momento mais arco-de-triunfo da sua vida, ele

estalando de felicidade, responderia, despachado, o dia que tirei retrato para a

formatura da quarta série (...) (RUFFATO, 2009, p. 15)

Apresentada, de saída, pelo modo subjuntivo, a narrativa adquire um tom

hipotético. A ação, recorrente ou imaginária, diverge do padrão até aqui construído.

Entretanto, a força de aderência ao concreto, experimentada pelo protagonista, se

sobrepõe àquela sugestão hipotética. Isso se pode comprovar quando da repetição verbal

no modo indicativo. É essa lógica mimética rigorosa que impede o eventual

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escapamento da imaginação para outras formas mais plurissignificativas. A memória de

Valdomiro, em um asilo de Diadema, é desencadeada pela fotografia da infância

escolar. Nesta narrativa, o valor positivo dos anos de Grupo Escolar Padre Lourenço

aponta um dado na trajetória de classe: a escolarização formal. O ingresso nos bancos

escolares e ascensão social por essa via transformam o sinal da vida dos pobres.

A concisão dessa narrativa deixa à mostra dois ângulos da lógica pessimista. No

primeiro caso, o protagonista analisa a sua comunidade como:

não era Roça ainda, pois esta começava para além da fazenda do seu Maneco

Linhares, mas cidade também não, ermo cujo vizinho mais perto não o

alcançaram os gritos desatinados da mãe, em uma tarde submersa no antes.

(RUFFATO, 2009, p. 16)

A substância do trecho é de alto valor analítico, pois revela o caráter inespecífico

da comunidade. Aliada a isso, a semelhança da passagem com a sintaxe dos volumes

anteriores.

No segundo caso, o isolamento de Valdomiro é apresentado pelo narrador

sintaticamente culto. Após a estadia na cidade de São Paulo:

Se adquiria um cartão-postal do Vale do Anhangabaú ou do Viaduto do Chá,

o Correio escondia-se no itinerário. Se tencionava rabiscar uma carta,

ausentava-se o papel (...) Se inventava uma viagem, enroscava-se em

requerências. Um mês, dinheiro, outro, coragem; (...) E os anos, fu!,

evaporaram. (RUFFATO, 2009, p. 19)

O trecho é representativo também pela mescla de registro no discurso do

narrador, como se vê no seu último período. A composição por subordinação, mais

complexa e retrospectiva, é mostra de uma voz que organiza e hierarquiza a experiência

no tempo e no espaço. Além disso, o procedimento da súmula, que finaliza o excerto,

tangencia a oralidade informal. A mescla dos discursos reproduz a condição social

oscilante do protagonista e seu entendimento sobre o mundo. Este é um universo sem

transformação que funciona como mera peça auxiliar no arranjo geral do volume.

“Sem remédio” contribui com o primeiro bloco reaproximando do leitor a ponta

fraca do processo de migração. A permanência do imaginário rural na metrópole é

protagonizada por Ana Elisa, irmã de Gildo, Gilmar e a desaparecida Ana Lúcia. “Sem

remédio”, assim como “Mirim”, projeta uma viagem do presente ao passado, a fim de

explicar a existência melancólica de Ana Elisa. Retira, portanto, desse passado as

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camadas acumuladas de sua vida arruinada. O mal súbito vivido pela mulher

desencadeia a retrospectiva tensa da mãe traída e resignada, com marido e filhos. As

ações do presente da narração compõem a simplicidade do enredo, em detrimento dos

conflitos vividos pela protagonista. Vinda de Cataguases, casada com o mecânico Nenê,

inicialmente, autônomo, e em seguida mal empregado em São Miguel Paulista, Ana

Elisa encarna em sua trajetória altos e baixos dos ciclos de modernização brasileira: os

momentos de bonança na família, com o nascimento dos três filhos, corresponde à boa

fase dos negócios do marido. A resignação frente à traição e o comportamento

problemático dos caçulas é análogo à década de 1990.

Propriedade material e crescimento da prole explicam o movimento de ruína de

Ana Elisa, do mesmo modo que as imagens da mercadoria se associam aos

constrangimentos da traição. Joelma, a filha mais velha, Alan, o do meio, e Juliana, a

caçula, assistem ao pai, Nenê, depois de “discussões por nadas, explosivo, intolerante,

malcriado, enfezado, macambúzio” (RUFFATO, 2009, p. 26). Para se redimir, ele viaja

com a família inteira:

Todos no Escort XR-3 (...) para comer frango-com-polenta no Demarchi, em

São Bernardo, (...) no Verona LX (...) para comer macarrão com frango em

São Roque, (...) no Monza (...) para comer pizza no Tatuapé (RUFFATO,

2009, p. 27)

O trecho importa por sua expressão e seu conteúdo. A frase artística expõe a

regra da ascensão e queda de Ana Elisa, ao associar filhos, marcas de carros e comidas.

Deste modo, a narrativa encerra um quadro de personagens, inaugurado no

volume de 2005, sugerindo assim uma atualização daquele conjunto na velhice da

protagonista. Se no núcleo do enredo, vemos imobilidade e resignação, na linha

auxiliar, encontramos elemento renovador com a referência a Joelma, dedicada à mãe e

que cursa faculdade de Educação Física. A presença lateral da estudante universitária na

estrutura dessa trama sinaliza um traço a ser retomado no centro da última narrativa. Em

“Outra fábula”, o profissional liberal, oriundo da família pobre, torna-se centro da

intriga.

O registro da linguagem aqui empregado sofre alteração, se comparado ao de

“Mirim”. A transformação percebida na voz do narrador, em dois momentos

estratégicos, requalifica o ângulo retrospectivo do enredo. A composição não é com

aquela linguagem retorcida, recheada de neologismos, mas sim com frase ora enxuta,

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ora com os preenchimentos, composta em ordem direta e sintaticamente normativa.

Exemplo disso, a cena do embate verbal de Ana Elisa com seu marido. Nela, a

convenção ortográfica separando, no corpo do texto, os dois personagens em luta.

Apontadas as divergências entre o casal e sua reconciliação “sem remédio”, entra em

cena, o narrador vicário, responsável por introduzir o passado geológico de Ana Elisa e

por organizá-lo retrospectivamente: “Bom, como tudo que começa, o casamento”

(RUFFATO, 2009, p. 24). Por meio dessa oralidade vicária, desvenda-se o passado de

acomodação da protagonista, “numa casinha em Osasco (...) ajeitada no sofá-cama da

sala”, na casa de um tio, junto aos seus dois irmãos. O narrador passa a desfilar, ainda

que distante e simpático aos personagens, sua sintaxe culta com paralelismos e períodos

com intrincadas subordinações.

O primeiro bloco se encerra com a narrativa “Trens”. A protagonista, não

nomeada, é D. Nica, já conhecida de “Aquário”, e retomada muito superficialmente em

“Outra fábula”, como uma amiga e ajudante da mãe do protagonista, Luis Augusto.

Naquele enredo, Nica era personagem auxiliar para a história de seu filho Carlos,

quando de uma viagem a Guarapari. Em “Trens”, ela assume o centro da intriga,

seguindo exatamente a mesma perspectiva das duas narrativas anteriores deste bloco.

Nica, já idosa, é flagrada em um balcão de loja, desequilibrada pelo mal que há tempos

a acomete e também pela trepidação dos vagões de trem próximos. O foco narrativo da

velhice unifica a viagem ao passado, enquanto Nica se desloca até sua casa. Tal trânsito,

com certa densidade, põe o acento na dúvida sobre se “apropriada a mudança para

Cataguases” e abandono da “barroca onde se criara, ganhara corpo e feição”

(RUFFATO, 2009, p. 41). Ou seja, a vinda para a cidade maior que Rodeiro não se dá

de modo unívoco. Foi em Cataguases, conclui Nica, que sua “vida desandara em

amarguras”. No fim da viagem física, a protagonista repassa o desconcerto de seu

mundo:

Enterrara Fernando, em pleno viço dos vinte e quatro anos, e o marido. A

Norma, (...), sujava o nome dos Finetto, e o Carlinho, rebelde, perdera-o para

o mundo. O Nelson, esse, coitado, batia-cabeça, sem esquentar lugar – agora

biscateava relógios e despertadores numa banca de camelô perto da

Rodoviária.

Isso, o que restara. (RUFFATO, 2009, p. 42)

O desfecho do primeiro bloco é melancólico. Com ele, é exposta uma parte do

jogo de forças do livro: as oscilações da voz narrativa, a dicção pessimista e solene, os

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artifícios técnicos que imprimem à estrutura pouca mobilidade do tempo presente (em

comparação ao passado dinâmico dos protagonistas).

Tudo aponta para o encerramento do passado. Ao regredirem no tempo (recente

ou distante), Valdomiro, Nica e Ana Elisa encontram imagens de ruínas. Emblemáticos

os resultados das buscas dos dois primeirios. O homem regressa a Cataguases e

reencontra outra cidade em que “nos oitis despejados de seus irrequietos hóspedes

empoleirava o silêncio” (RUFFATO, 2009, p. 19).

Sugestivamente, a caminhada do antigo menino Mirim termina, sem a

descoberta das referências maternas, em um cemitério: “caótico, sem arruamento, covas

esparramadas pela rampa, túmulos em mármore e cruzes enfeitadas cravadas no chão

duro, (...), menos a campa da mãe” (RUFFATO, 2009, p. 20).

Essa cena introduz no parágrafo inicial uma pequena modificação, inscrita na

circularidade geral. A fotografia que desencadeia toda a narrativa amargurada do

operário aposentado por invalidez é “a única garantia de que existira um dia”

(RUFFATO, 2009, p. 20).

À D. Nica, o narrador empresta os instrumentos para refletir sobre a derrocada

da família Finetto. De modo lapidar e composto por uma beleza melancólica: ”A morte

rondava-a esfacelando os seus, mas, caprichosamente, preservando-a, como uma

provação” (RUFFATO, 2009, p.42). O movimento interno à frase surpreende pela

raridade com que integra duas ordens de contradição: a roupagem caprichosa de uma

ação deletéria e a resistência da personagem. Este trecho é a súmula de brilho amargo

no último bloco.

A função desse arranjo é preparar as mudanças estruturais do segundo conjunto.

A atualidade (dos leitores e dos personagens) será mais determinada, assim como as

posições de classe dos protagonistas. A preponderância da mercadoria radicaliza a

exposição de uma sociedade de consumo. Essa a responsável pela degradação física e

subjetivamente, Sandra, Nilo e Luis Augusto.

III

O bloco final de Domingos sem Deus apresenta protagonistas marcadas pela

experiência da transição. Em cada uma delas, são expostos momentos de formação ou

termo das suas vidas. Há, portanto, o não pertencimento à terra natal nem àquela para

onde migraram. A novidade reside na mobilidade social, em que se inscreve o

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desenraizamento dos personagens. Vale dizer que a ponta de chegada desse bloco é a

sociedade de consumo, violenta e urbana. O timbre do narrador, embora não altere o

costumeiro objetivismo pessimista, introduz uma alteração no quadro geral, com

resultados estéticos mais ou menos inesperados, na narrativa “Sorte teve a Sandra”.

Uma das melhores de Inferno Provisório, “Sorte teve a Sandra” se constrói por

meio da ironia crítica. A sua posição no volume representa também uma transição, bem

precisa, para o segundo bloco. A travessia problemática se dá em uma hábil

retrospectiva que combina sarcasmo e objetividade. O dispositivo artístico do escritor

que se especializou na suspensão dos conflitos, em reviravoltas nos enredos, agora

exibe ao leitor a história de Sandra, agregada da abastada família de D. Diana, filha de

Nazaré e irmã de Zezé (um dos protagonistas do volume IV).

Dividida desde o nascimento entre Cataguases e Rio de Janeiro, Sandra

representa uma experiência postiça: “arremedava-se carioca, caprichante no sotaque

melodioso e sibiliante e nos gestos despachados de ‘gente de cidade grande’(...)”

(RUFFATO, 2009, p.45).

Bem pequena, Sandra sai do Rio de Janeiro para ser criada em Minas Gerais.

Gravitando ao redor da elite mineira a protagonista é assediada pelo chefe local e aceita

a proposta de trabalho na metrópole. Lá, trabalha como empregada doméstica da esposa

Diana e de seus três filhos.

O narrador empático utiliza a estratégia de desmistificação para expor as

condutas reprováveis de Samuel, Marcela e Rafael. Assim, parece se colocar ao lado de

Sandra, por conta de sua frágil posição de agregada à família rica. Entretanto, surge o

efeito irônico, em que não se salvam nem os personagens burgueses nem a protagonista.

Escondidos dos pais, um fuma maconha, a outra dorme no quarto da república

estudantil com o namorado e o outro a assedia sexualmente. A empregada, ao descobrir

estes feitos dos filhos-família, passa a chantageá-los e sua vida se torna “épocas de

deslumbres. Escapava sexta-feira á noite rumo à Zona Norte (...) e tornava domingo à

noite, madrugada, segunda-feira de manhã, afortunadamente acabada” (RUFFATO,

2009, p.47).

Contudo, a narrativa, que poderia ganhar em potência crítica, revelando os

ângulos insuspeitos e desabusados de ambas as classes, repisa o caminho das desgraças

vividas pela protagonista. O primeiro dos resultados, uma noite em que Sandra se

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excede: “Barriga saliente, mão na frente, mão atrás, retirou-se para a casa da mãe, as

águas do rio Pomba ninando sua cisma” (RUFFATO, 2009, p.48). Após isso, deixa o

recém-nascido Kauê, sob os cuidados da mãe e da irmã Maura, e vê “a esperança de

dinheiro fácil e muito” no emprego de dançarina de boate em Ipanema. Na sequência,

“depara-se com os olhos furta-cor do Fred (...), num quiosque de água-de-coco no Posto

Seis” (RUFFATO, 2009, p.49). O músico, com quem tem uma relação degenerada,

termina por lhe subtrair todos os pertences, inclusive o dinheiro que projetava para

“tempos bicudos”.

Vale registrar a conclusão sem ênfase de Sandra, ainda que seu histórico seja

bem dinâmico: “conjecturou dar parte na polícia, mas, resignada, volveu à casa da

Maura, em Cataguases, tão despojada como sempre.” (RUFFATO, 2009, p.50).

Dispensa comentários o registro linguístico usado pelo narrador. O ângulo retrospectivo

e organizador sobre a vida de Sandra é obra de uma voz distanciada esteticamente da

protagonista. Esse traço recorrente do derrotismo programático vem acompanhado da

forte ironia que, embora dê o tom do início e do fim, não tem potência estrutural.

Se a vida inteira de Sandra foi de aparência e tentativa de inserção no circuito do

consumo, o desfecho é lamentavelmente igual: “quando soube-se com aids – ela e o

Kaíke51

, ainda mamão - , apelou para o doutor Samuel, que, demandando contra a

Previdência, acertou encostá-la na Caixa, um salário mínimo (...)” (RUFFATO, 2009,

p.51). Mais uma vez, o narrador imprime à sentença um timbre de sabedoria popular.

Isto sintetiza o retorno ao universo juvenil e rejeitado da protagonista:

Alardeavam, o Ana Carrara inteiro, que ela sim, tivera sorte, porque, ao invés

de encafuar-se em Cataguases (...), correra o mundo, tornara-se esperta,

astuta, ladina e agora podia desfilar pavã pelas ruas da cidade....

(RUFFATO, 2009, p.51)

O bairro pobre personificado é o palco onde Sandra desfila sua compensação

rebaixada. Aquela figura de linguagem é mais uma máscara do narrador culto. Contudo,

a narrativa pode ser bem mais que um cortejo de misérias: trata-se de um modo de

integração dos pobres, apartados do mundo do trabalho formal, no circuito urbano dos

cálculos de aparências e chantagens. Dessa maneira, “Sorte teve a Sandra” avança um

51

Acreditamos que se trata de um equívoco de redação no nome do filho de Sandra, uma vez que não há

qualquer outro indício de um segundo descendente. O mesmo acontece na próxima narrativa quando da

esposa de Nilo.

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passo (ainda tímido) na figuração do favor. Essa micro-história do segundo bloco é

significativa, pois, no centro de seu enredo, os pobres nas franjas do trabalho informal e

a condução do narrador sarcástico.

A narrativa seguinte reutiliza a reminiscência, conferindo poder explicativo ao

passado. A sutil ironia do enredo anterior desliza para “Milagres”, como se percebe no

jogo de sentido condensado no título. Com a ironia diminuída, “Milagres” se prende ao

bloco final do livro acionando os efeitos de comoção-comiseração. Desde a

apresentação in media res, até a cena final em suspensão, o escritor parece sinalizar aos

leitores a conclusão de seu ciclo. Para isso, há uma profusão de Ipods, vidros elétricos

de Siena preto, montadora Fiat, cigarro Hollywood, calendário Pirelli.

A intriga é vivida por Nilo, representante comercial em férias familiares, e por

Gilson, o mecânico de estrada, ex-agregado da família Bicio. No seu conteúdo,

“Milagres” retorna aos imigrantes do entorno de Rodeiro. O humilíssimo mecânico de

automóveis Gilson, vulgo Cabeludo, revive, a partir da rápida conversa com o

conterrâneo Nilo, a relação perigosa que teve com a abusada Arlete Bicio. Nilo, por sua

vez, tem em Gilson uma suspensão do tormento que se tornou “aquela, talvez, a sua

última viagem em família” (RUFFATO, 2009, p.56). Nesse sentido, a dupla de

personagens é complementar não pelas profissões ou pelo desempenho nas cenas, mas

sim pelos papéis no enredo. Isto é, no que diz respeito à experiência do isolamento e à

vivência angustiada pelo esquecimento.

Gilson e Nilo são instantes diferentes do mesmo processo de constituição da

subjetividade. A continuidade estabelecida entre os conterrâneos mineiros ultrapassa,

portanto, as caracterizações externas dos personagens. Assim, a lógica de adaptação

aproxima os indivíduos supostamente diversos. O primeiro, estagnado no tempo-espaço

de sua modesta borracharia, reativa as relações de mando a que estava exposto, quando

agregado. O segundo, representante do moderno comércio sem fronteiras, em meio

viagem-tentativa de manter seu casamento.

O diálogo, recurso de pouco destaque na obra, adquire aqui importância, já que é

por meio dele que Nilo e Gilson expõem a frustração e a verdade do “milagre”. Iniciada

devido ao pneu estourado, a conversa entre o pai de família e o solitário borracheiro

funciona como estratégia para “Milagres” alcançar a notação verista, do presente e do

passado. Primeiro, a fala-denúncia de Gilson sobre a precariedade das estradas.

Segundo, o envolvimento amoroso com Arlete e a fuga temerosa para o Rio de Janeiro.

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Pelo discurso direto, os personagens reconstituem didaticamente suas vidas pregressas.

O narrador é convencional em ação e linguagem: apresenta à distância o universo

melancólico em registro normativo.

Não há dúvida de que o protagonista é o mecânico Gilson, por sua história unir o

mundo estático e o dinâmico. Entretanto, na fala sem pretensão de Nilo, ao recobrar o

casamento com Vera, se lançam as bases do contexto histórico da narrativa.

Só pra você ter uma ideia, a minha esposa, a Adelice, é baiana, a família dela

é daqui de Conceição do Coité, e sabe onde conheci ela?, em Alfenas, sul de

Minas. Eu fazia aquele setor e um dia esbarrei com ela, que estudava

Psicologia na universidade de lá. Os pais dela não são ricos, são remediados,

mas na época estavam muito bem de vida, mexiam com beneficiamento de

sisal, aí a gente começou a namorar, ela acabou engravidando, largou o

curso... (RUFFATO, 2009, p.63)52

Destaquemos as referências sobre a família da esposa de Nilo. Esse movimento

ascensional de classe, as opções sobre a carreira liberal frustrada da mulher serão um

flanco importantíssimo que estruturará o foco de “Outra fábula”.

A última micro-história repassa a vida do protagonista Luis Augusto, já

conhecido do volume IV. Tal qual o desfecho do livro anterior, este livro também

aposta numa miniatura do romance de formação. Em “Outra fábula” estão postas, pelo

ângulo do jornalista de meia-idade, as etapas de sua ascensão social. Essa construção é

feita pelas cenas da adolescência e maturidade, com doses de tensão dramática. Do

ponto de vista técnico, “Outra fábula” repisa as soluções estilísticas e técnicas: o

preenchimento narrativo a saturar as descrições, a voz narrativa que descortina as

lacunas do passado familiar de Luis Augusto, as súmulas lapidares que sintetizam as

cenas desoladoras.

O início da trama situa o jornalista maduro em um novo relacionamento com a

atleta Milene. Trata-se daquela estrutura de enredo que tende à revisão pretérita do

protagonista, encarando-a como legitimação de seu presente. Este movimento se

expressa em inúmeras repetições e aqui reforça o efeito de acumulação geológica das

situações que circundam o jornalista. Deste modo, as cenas repetidas, tanto na abertura

como no fechamento, contrastam com a dinâmica da vida de Luis Augusto.

52

Como apontado anteriormente, parece-nos haver uma confusão nos nomes das personagens. Em

momento algum de “Milagres”, Nilo se refere à sua esposa pelo nome citado, apenas por Vera.

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Por fim, é inegável o vínculo desta última com “Uma fábula”, a primeira de

Mamma, son tanto Felice. Pela comparação entre elas, podemos assistir à saída e à volta

do mundo rural ao mundo urbano, assim como a constituição de uma subjetividade

resignada. Digamos, portanto, que a transição entre modelos de sociabilidade congelou

a indignação dos trabalhadores rurais/interioranos, ajustando-as no quadro de

constrangimentos urbanos e subsistência precária.

Em “Outra fábula”, o quadro de forças se deixa ler pelas estações da vida de

Luis Augusto. Elas são ritos de passagem que experimentam a persistência e

perseverança individual. O filho do “autonomista”53

Raul e da dona de casa Jânua refaz

o êxodo dos migrantes sem a ajuda de parentes e conhecidos na metrópole, contrariando

a prudência. Luis Augusto carrega em si a imagem da travessia, com certo espírito

desbravador, mas de tensão diminuída. O sinal da incompletude de vários conflitos não

chega senão ao coroamento de sua precária estabilidade na metrópole paulista. O

elemento novo no enfrentamento das adversidades é a visão do protagonista sobre sua

própria trajetória. Sua esposa Lívia, nos estertores do casamento, desejava “histórias de

aventuras e novidades” que terminam em “um cotidiano previsível, claustrofóbico”, ao

passo que Luis Augusto

“imaginara um futuro diverso, não aquele martírio, aquela tormenta, mas a

altiva serenidade de quem assenta, um a um, os sólidos degraus de uma

escada lançada ao desconhecido.”(RUFFATO, 2009, p. 73).

Aqui estão as duras engrenagens sociais a serem vencidas. Ao contrário, a

mulher idealiza “viagem à Europa, umas férias no Nordeste, uma mudança para

apartamento maior ou troca dos móveis do quarto das crianças (...)” (RUFFATO, 2009,

p. 73).

O percurso de ascensão social do ex-imigrante é também uma inovação no

elenco de personagens do romance. Luis Augusto dá forma a um tipo alternativo de

subjetividade, típica de Inferno Provisório. Embora já estável em São Paulo, ele se

divide entre constantes urgências em Cataguases. Por isso, vive em permanente trânsito.

O traço qualitativamente novo é o fato de o jovem Guto, pela insistência paterna, saber

“demorasse muito talvez permanecesse para sempre atolado naquela cidade, naquele

pedaço estagnado do tempo” (RUFFATO, 2009, p. 76).

53

Um eufemismo compensatório para o desemprego

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137

Ainda que frágil, há, no relacionamento amoroso de Luis Augusto e Lívia, um

rascunho de contato entre as classes, proporcionado pela agitação política, em abril de

1984. O envolvimento da pequena burguesa radicalizada pelo fim da ditadura e o

proletário apaixonado simboliza, ainda que próximas à caricatura, uma sombra do que

poderia ter sido a aliança de classes, interrompida pelo golpe civil-militar. O desfecho

da relação, reiterado pelo agora jornalista e pai de família recém-divorciado, é ditado

pela irônica lógica de adaptação: a revolução não veio, a via conservadora assumiu a

presidência da república, e duas gravidezes levaram a ex-militante partidária à yoga

hinduísta. Ironia e humor negro são efeitos provocados pela trajetória, quando vista com

os olhos contemporâneos.

Tanto pelo ângulo da mulher como do protagonista, o comportamento de Luis

Augusto é marcado, ora pela resignação que lhe imprime uma “vida medíocre”, de

“rendimentos ordinários”, ora

“aceitando o papel que a cada um cabe neste mundo, uns nascem para arrolar

orgulhosos seus êxitos (...), outros desacorçoados, afundam obscuros em

imundos botequins da periferia da cidade” (RUFFATO, 2009, p. 79)

A busca pela integração ao circuito urbano, a pressão de Lívia em conhecer os

pais do marido bem como fazê-lo jornalista estável de uma grande empresa; tudo

reforça em Luis Augusto o desejo de apagar suas origens. O jovem Guto, ao conhecer a

futura esposa, sente-se

“absorvido pelo anseio de banhar-se em águas que eliminassem aquela tênue

camada que recobria-lhe a pele, denunciando suas origens, o sotaque, a

timidez, a roupa mal-ajambrada, a ignorância, enfim, um mundo antigo do

qual buscava avidamente escapar (RUFFATO, 2009, p. 103)

Já o jornalista maduro “todos os dias dos últimos vinte anos dedicara a apagar os

vestígios de sua passagem por Cataguases (...)” (RUFFATO, 2009, p. 83). O mundo

antigo, do qual tenta escapar, insistentemente relembrado a cada passo do jovem. Essa

fixação pelo esquecimento da terra natal sofre choques determinados por “raras incertas

à cidade (quase sempre condicionadas a tragédias)” (RUFFATO, 2009, p. 84).

Após esta frase lapidar, abre-se uma extensa lista das viagens anuais de Luis

Augusto a fim de acudir pai e mãe. O conhecido grafismo se soma à tendência do

narrador em conferir veracidade à experiência de Luis Augusto. Essa lucidez diverge do

padrão desalentado dos personagens, bem como do registro elevadíssimo em termos

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normativos: “atinou o quão distante daquele mundo tencionava se conservar, mas

também o quanto de visgo ainda o enlaçava àquela miséria” (RUFFATO, 2009, p. 92).

Revivida a cada momento, Cataguases assume formas ruinosas na memória do

protagonista: desavenças com a irmã Julia, a dó pelo irmão inválido Lalado. Mas os

pontos altos se referem aos pais. No semblante do cadáver paterno, Luis Augusto vê

resignação, como se “ele, farto de tudo, houvesse capitulado, sem resistência”

(RUFFATO, 2009, p. 89). Sobre a mãe, uma análise solene:

Uma tosca exibição de derrotas, de fracassos, de ruínas, sonhos adiados,

anseios malogrados, ilusões perdidas, julgando que amanhã, e amanhã, e

amanhã... E o amanhã desmoronou à sua frente, sufocando-a (RUFFATO,

2009, p. 95)

E, no leito da mãe enferma, Luis Augusto relembra sua “derradeira visita a

Cataguases para zelar, por menos de quinze minutos, o sono entubado da mãe, só-ossos,

no CTI” (RUFFATO, 2009, p. 93).

A passagem do adolescente, que sai do “pedaço estagnado no tempo”, para a

“São Paulo que é um mundo”, forja as bases para uma experiência subjetiva, moldada

pelo mundo hostil da sociabilidade neoliberal. A ascensão social pelo individualismo

recompensa “quem tem vontade” (RUFFATO, 2009, p. 78). O desfecho reitera a cena

inicial em que a precondição para instaurar um mundo novo é o esquecimento de “tudo,

tudo isso [que] Luis Augusto buscava esquecer” (RUFFATO, 2009, p. 106).

Em vários planos, as repetições não introduzem mudanças de qualidade, nessa

narrativa de retrospecção. O passado metodicamente atualizado é justificativa para o

presente amargo, cujo resultado é o não pertencimento nem a Cataguases nem a São

Paulo. É isso o que dita as linhas dessa experiência de classe.

IV

Nas análises anteriores, tentamos demonstrar a coerência do derrotismo

programático. Com Domingos sem Deus, se torna mais clara a peculiaridade desse

princípio. Ao projetar imagens do fracasso na dimensão mais íntima dos personagens, o

derrotismo é também uma reinterpretação da “história do proletariado nacional”. Esse

sinal negativo é moldado pela desagregação, contemporânea à redação do projeto

ficcional de Ruffato.

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Há outras correspondências entre esse tempo histórico e a obra. Além de recriar

uma experiência social, que não deixa de ser sua, o escritor encerra seu romance no ano

de 2002. A transição das esperanças do desenvolvimentismo para a desertificação

neoliberal se encerra com a data de uma nova abertura. O ciclo de atualização, operado

por Luiz Inácio, ainda em pleno funcionamento, é lido, portanto, como ponto final de

um longo processo de mobilidade social do pobres.

Na trajetória de Luis Augusto se espelham também as de Luiz Ruffato e de Luiz

Inácio. Portanto, o curso da ascensão à brasileira, seja de Cataguases ou de Garanhuns a

São Paulo, supõem menos coincidências pessoais e mais objetividade.

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Conclusão

Durante as análises, tentamos demonstrar dois movimentos de Inferno

Provisório. Primeiro, seu princípio organizador, relacionado à sua matéria. Segundo,

uma estrutura articulada, para além da aparência fragmentária dos livros. Dessa

maneira, os melhores momentos da obra sinalizam uma reacomodação contemporânea

das formas narrativas à matéria brasileira.

Romance disforme, estilhaçado, aos pedaços, em ruínas. Todas maneiras de

conceitualizar o desmanche e a desagregação. Fundamentando nossa análise nos

enredos particulares e enredo geral, conseguimos verificar o sentido da desestruturação

relativa de Inferno Provisório. Assim, a forma pode ser considerada como inorgânica,

porque abriga duas tendências de narrativas: as de curta duração, que se isolam no

continuum frágil da progressão temporal, gerando assim as rupturas. E as de longa

duração, que permitem visualizar o desenvolvimento temporal, ainda que sob a

superfície fracionada.

Há necessidade de precisar o que entendemos por inorganicidade. Para isso, são

fundamentais as considerações de Bürger (2008) a respeito dos distintos modos

composição de obras realista e de vanguarda. A descontextualização dos materiais (seja

por meio da montagem ou pela alegoria), operada pelo escritor vanguardista, é a

operação essencial54

. Além disso, o espírito da totalidade é outro traço formal distintivo

entre esses dois tipos. Segundo o próprio crítico:

o clássico trata seu material como totalidade, enquanto o vanguardista

arranca o seu à totalidade da vida, isola-o, fragmenta-o. (...) O clássico

produz sua obra com a intenção de oferecer uma imagem viva da totalidade.

Mesmo ao restringir o recorte exibido da realidade à reprodução de uma

fugaz disposição de ânimo, ele persegue tal intenção. O vanguardista, ao

contrário, junta fragmentos com a intenção de atribuição de sentido (...). A

obra de arte não é mais criada como um todo orgânico, mas montada a partir

de fragmentos.” (BÜRGER, 2008, p.143-144)

54

“o artista que produz uma obra orgânica (...) manipula seu material como algo vivo, cuja significação,

ele respeita. Para o vanguardista, ao contrário, o material é apenas material. Sua atividade, afinal, não

consiste senão em matar ‘a vida’ do material, isto é arrancá-lo ao seu contexto funcional, que é o que lhe

empresta significado.” (BÜRGER, 2008, p. 143)

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Como se percebe, essas considerações são altamente válidas para a literatura de

Ruffato. A obra pode ser lida, ainda, como inorgânica, pois da obra clássica (orgânica)

recolhe a intenção de totalidade, o sentido histórico que procura organizar a experiência

de classe - ainda que não seja a burguesia55

. Da obra vanguardista (não-orgânica),

conserva a ênfase explícita no procedimento construtivo (ou destrutivo, neste caso) de

partes que compõe a estrutura, com a qual fragilmente se relaciona.

Além de estar presente na fala do escritor, o impulso de atualização é interno à

obra. Contudo, isso não se dá apenas com a referência à moderna tradição europeia. Há

necessidade de contextualizar esse traço atualizador. Portanto, é fundamental considerar

o diálogo da forma literária estudada o debate nacional-popular e vanguarda, do Brasil

nos anos 1960 e 1970.

Naquela conjuntura, o horizonte dos artistas era balizado pelas pautas da cultura

e da política. Desse tempo, a ficção que estudamos recolhe: a) atenção ao conteúdo

político, b) experimentação e apuro no trabalho técnico-formal, com claro objetivo de

intervenção política da arte. Nesse sentido, o projeto artístico de Ruffato, munido de

reflexão intelectual, tem pretensões em demarcar seu campo no sistema literário. Em

nível manifesto, a formulação do escritor se desdobra ética e esteticamente. Quer revelar

o caráter conservador da modernização, por meio de um ângulo alternativo ao burguês

ufanista oficial.

Entretanto, se relembrarmos o debate brasileiro clássico, veremos que as obras

artísticas dos anos 1960 e 1970 estavam atravessadas, de um lado, pelas margens

abertas para a cultura nacional-popular dentro da crescente indústria cultural, e, de

outro, pelas inovações técnico-formais, produzidas pela vanguarda. A nota

contemporânea é a refuncionalização dessas pautas, sob a atual hegemonia mercantil e a

correspondente derrota de uma cultura crítica.

É relativo consenso entender a forma fragmentada das obras vanguardistas da

primeira hora (nos anos 1920-1930) como formalização estética do fenômeno social da

55

Este traço foi apontado por Mello (2006): “Apesar da forma bastante móvel, da sintaxe variada, e de

outros arrojos formais, percebemos, mais uma vez, estreitos vínculos com a tradição do romance: o entra-

e-sai das personagens, que lembra a Comédia humana, de Balzac; a tentativa de traçar panoramas,

detendo-se em tempos e espaços mais amplos, e principalmente a ambição de contar, e entender,

cinqüenta anos da história brasileira.”.

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alienação. Com as enormes transformações nos modos de produzir a vida e a arte56

, na

obra estudada, a fragmentação é um recurso técnico que impulsiona o trabalho formal.

Nesse sentido preciso, o uso da técnica não pode ser elevado a critério normativo nem

de juízo estético a priori.

Relacionando tais elementos ao contexto de produção de Inferno Provisório,

podemos afirmar que as pautas de atualização dos meios expressivos e do engajamento

se tornaram estratégias ambíguas na configuração literária. Por um lado, elas

ingressaram no longo movimento de adequação às estratégias da indústria cultural (que

chegam a determinar a sensibilidade de um tipo contemporâneo de leitor). Por outro,

dão conta da tarefa do escritor, indicativa de uma mudança na estrutura social brasileira.

O problema aumenta pela ausência de esfera pública minimamente organizada onde o

artista possa intervir. Se, nos anos de combate à ditadura civil-militar, a ação engajada

se mobilizava pela discussão conceitual e artística dos grandes temas da sociedade e do

mundo, os anos de desertificação neoliberal acentuam a chave individualista e

transforma o cidadão em consumidor. Nosso tempo privatiza as dimensões objetivas e

subjetivas da vida humana, ao mesmo tempo em que encolhe a esfera pública. O tópico

forte do engajamento do artista passa à constante exposição no mercado e manutenção

da sobrevivência pela via mercantil.

O derrotismo programático pode ser lido como crítica à modernização

conservadora. Isso é derivado de seu interesse na vida cotidiana dos trabalhadores e

pobres em geral. Entretanto, esse potencial diminui se contraposto à experiência

concreta das lutas sociais no período representado. Visto desse ângulo, seu realismo não

é profundo, visto que segmenta e imobiliza a representação do cotidiano. O desprezo às

lutas políticas, em certa medida, descarta a dimensão pública e o debate político das

décadas de 1960 e 1970. Não é exagero afirmar que essas formas de resistência

encontraram expressões artísticas e políticas no Cinema Novo, na Canção Popular, nos

Centros Populares de Cultura da UNE, no método de Paulo Freire ou nas Ligas

Camponesas. Mesmo sob outros ângulos, a radicalização estética e política de parte dos

intelectuais e trabalhadores não pode ser apagada das obras de arte nem das

56

As ênfases recaem sobre as maneiras de organização econômica e política das últimas décadas do século

passado assim como sobre crescimento da indústria da cultura e correspondente mercantilização das

esferas humanas.

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reconstituições históricas. Assim, o trabalho com essa matéria social não poderia ser

apagada, como no caso de Inferno Provisório57

.

Como visto nas análises, nosso estudo se apoiou centralmente em duas opiniões

críticas58

: legibilidade da experiência dos pobres e a representação de sua mobilidade

social. Ao lado delas, é preciso considerar que o artista, oriundo da classe que

ficcionaliza, carrega no corpo de sua linguagem também a singularidade histórica da

ascensão social. Esse processo se inscreve formalmente no quadro de rupturas e

continuidades com a estrutura romanesca. Com monótono rigor, são construídos desde

os personagens, os ambientes até os enquadramentos das cenas e a própria frase

artística. Tudo resulta numa visão sobre a modernidade nacional com atuação

sistemática no panorama literário59

. Se a atitude é certeira, o efeito é oscilante. Entre

adesão e crítica ao processo modernizador, a forma estética se credencia como

representante supostamente legítima, frente ao leitor médio da ficção brasileira: classe

média, solidário com a miséria e sensível à linguagem experimental.

Num conjunto complementar de questões, a obra: a) deseja preencher uma

lacuna histórica no sistema literário, b) se quer representante de uma visão de mundo

alternativa (tanto à elite conservadora como à classe média radicalizada). No entanto,

sua estrutura formaliza os tempos de reestruturação neoliberal dos empregos e não os de

ascensão do operariado nacional-desenvolvimentista.

De imigrantes sitiados no interior, passando por operários fabris, trabalhadores

formais e informais, circulando entre desocupados e desempregados, terminando por

profissionais liberais, autônomos, é descrita uma trajetória de mutações na camada

trabalhadora e pobre brasileira. O ângulo dessa narrativa é o da subjetividade degradada

e do apagamento das dimensões supra-individuais. São comportamentos, interesses e

motivações psíquicas dos personagens, inalterados no tempo-espaço, que dão o tom da

interpretação (de passado e presente nacionais) feita por Inferno Provisório.

57

A despeito das declarações autorais, não é tarefa da obra contribuir com a luta política. Mas o

apagamento daquelas críticas à modernização, no seu trabalho formal, pode penalizar as futuras lutas por

novos sentidos da vida e da arte.

58 São os trabalhos já citados de Corpas (2009) e o de Melo (2006).

59Isso se comprova pela constância com que Luiz Ruffato frequenta o circuito editorial. A própria

distribuição de seu ciclo de romances (2005 a 2011) é parte dessa estratégia.

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Como se lê, o horizonte contemporâneo é o de dificuldades para uma crítica

literária e cultural, pautada por grandes questões, como a que um dia animou o tema da

formação ou da tradição empenhada. No cenário prático, que Coutinho (2010) chamou

de “hegemonia da pequena política”, teríamos uma correspondente “hegemonia da

pequena teoria literária”60

. A ficção de Ruffato é contemporânea a esse quadro, embora

dialogue com as pautas da crítica literária materialista. Por esvaziar esse conjunto de

problemas, a forma literária é ambígua, visto que desajusta o acerto estético e o crítico.

Assim, as imagens de personagens bloqueados qualificam o derrotismo

programático. Essa mediação estiliza relações sociais da camada pobre vincadas por

individualismo e consumo mercantil. Assim, o derrotismo recria os constrangimentos

que naturalizam uma sociedade destituída de ações coletivas. Forma-se nesse contexto

um amálgama de passividade e comercialismo, que desagrega a atividade pública e

política.

Essa concepção se expressa, por exemplo, nos frágeis nexos entre os arranjos

narrativos. O romance desestruturado internaliza uma experiência de classe, urbana e

contemporânea, do Brasil. Seu ponto de vista é o do desmanche, tanto de elos políticos

e culturais, solidários e totalizantes.

60

Agradeço essa sugestão dada pelo prof. Victor Lemus para caracterizar o atual panorama da disciplina.

Desse ângulo, a dispersão de agendas e práticas caracteriza a dimensão política contemporânea e tem

correspondência com a dissipação dos modos de leitura. Ambas as esferas, portanto, teriam diminuídas a

profundidade e a radicalidade.

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