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Musashi Volume II Eiji Yoshikawa

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    MusashiVolume II

    Eiji Yoshikawa

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    Neste segundo volume, aps o violento e histrico duelo de Ichijoji , Musashi procuraabrigo num templo do monte Hiei para recuperar-se fsica e mentalmente de seusferimentos. Depois, segue seu caminho de samurai peregrino na rota doaperfeioamento filosfico e guerreiro, e tambm se envolve em duelo particular com

    a natureza, ao tentar domin-la, o que no consegue apesar de todo o seuempenho.

    O jovem guerreiro incorporando fora e agilidade mpares torna-se tambm maishumano: desenvolve profunda amizade com um habilssimo manejador do bastoque por muito pouco no o derrota, alm de procurar formar um discpulo suaimagem na pessoa de um garoto que passa a acompanh-lo por longo trecho de suamisso. Para no falar da bela jovem que conquistou seu corao, amor que revelao lado sensvel e frgil de Musashi, e que na verdade no logra dominar e fazerfrutificar.

    As imagens de Edo, a futura Tquio, em frentico desenvolvimento, cujo palpitante

    submundo deixa antever a metrpole que mais tarde vir a ser, constituem aincurso urbana desta obra predomi-nantemente buclica e com forte presena deum feu-dalismo em sofrida modernizao.

    Toda a trama, no entanto, com suas mltiplas reviravoltas, est inscrita na lgica doesperado e inevitvel duelo da ilha de Funashima com Sasaki Kojiro, o outro grandeespadachim da poca e rival de Musashi em habilidade, tenacidade e sabedoriaguerreira. Para o eventual vencedor, no ser apenas necessria a melhor tcnica,mas tambm a maior nobreza de esprito.

    Eiji Yoshikawa dividiu sua obra em sete livros: A Terra, A gua, O Fogo, O Vento, OCu, As Duas Foras e A Harmonia Final. Destes, os cinco primeiros so uma

    referncia ao gorin, os cinco elementos bsicos de que se compe, segundo oBudismo, toda e qualquer matria, ou ainda os ciclos por que passa o espritohumano para alcanar a perfeio, comeando pela terra impura at atingir o estgiomais alto, o cu, ou segundo a concepo budista, a paz do nada, o nirvana.

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    O VENTO

    (2 parte)

    PRECE POR UM MENINO MORTO

    Estamos na face meridional do pico Shimei-ga-take do monte Eizan1 , de onde seavistam com facilidade os famosos torrees ocidentais e orientais do complexoreligioso, assim como o rio Yokogawa e os vales do Iimuro. distncia, no mundo vilmuito abaixo deste ambiente puro, corre em meio ao lixo e poeira o extenso rioOkawa, envolto em fina nvoa. Mas aqui, no templo Mudoji, junto s nuvens, osilncio reina sobre florestas e riachos, o frio retarda o desabrochar das plantas einibe o canto dos pssaros sagrados.

    - Yobutsu-u 'in... Yobutsu-u 'en... Bupposoen... Chonen Kanzeon... Bonen Kanzeon...

    Os Dez Versos deusa Kannon escapam de um aposento nas profundezas dotemplo Mudoji, nem em prece nem declamados, muito mais num sussurroinvoluntrio. Quem seria?

    O tom do murmrio eleva-se pouco a pouco para logo em seguida diminuirrepentinamente: quem fala deixa-se arrebatar gradativamente, mas logo cai em si ebaixa a voz.

    O aprendiz do templo, um menino vestindo um quimono branco, vem por um longocorredor de lustrosas tbuas largas, pretas como breu. Transporta uma bandejacontendo uma refeio frugal2, respeitosamente erguida com ambas as mos

    altura dos olhos, e entra no aposento de onde provm o murmrio.

    - Senhor! - chamou o menino, depositando a bandeja num canto da sala.

    - Senhor! - insistiu momentos depois, ajoelhando-se. O homem interpelado, porm,continuava de costas para ele, ligeiramente curvado para a frente, alheio suapresena.

    Dias atrs, alquebrado e coberto de sangue, esse homem - um samurai peregrino -havia surgido no templo apoiado espada. Dito isso, o leitor ser capaz de adivinhara identidade do samurai, pois descendo-se esse pico rumo a leste chega-se vilaAnatamura e ladeira Shiratorizaka; rumo a oeste, o caminho leva diretamente vila

    Shirakawa e senda Shugaku-in, onde se ergue o pinheiro solitrio.

    1 Pico Shimeidake (no original, Daishimei-no-mine): dois picos sobressaem na crista do monte Hieizan - tambmconhecido como Eizan - situado na fronteira do municpio de Kyoto com a provncia de Shiga: Daihiei, a leste(848 m), e Shimeidake (839 m), a oeste, este ltimo referido pelo autor. Hieizan, montanha que faz parte dacadeia Higashiyama, famosa por nela terem existido quase 3000 templos de monges guerreiros,impiedosamente exterminados numa nica noite por Oda Nobunaga, irritado com a intromisso dos referidosmonges na gesto poltica do pas. Na poca de Musashi, os monges tinham sido proibidos de imiscuir-se ematividades leigas e haviam retomado seus deveres religiosos.2 Nos templos budistas, a refeio, sempre frugal, era servida uma nica vez pela manh, de acordo com ospreceitos da religio.

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    - Senhor, trouxe-lhe a refeio. Vou deix-la neste canto - disse o aprendiz uma vezmais.

    S ento Musashi pareceu perceber:

    - Ah... a refeio! - Aprumou-se, voltou a cabea e viu o menino e a bandeja. -Agradeo a gentileza.

    Voltou-se ento inteiramente e sentou-se com formalidade.

    Sobre seus joelhos havia lascas de madeira. Minsculas aparas espalhavam-setambm pelo tatami e pela varanda. Um perfume suave, talvez de mirra, pareciaemanar das lascas.

    - Vai almoar agora, senhor?

    - Vou.

    - Deixe-me servi-lo, nesse caso.

    - Aceito. Muito obrigado.

    Musashi recebeu a tigela e iniciou sua refeio. Enquanto isso, o pequeno aprendizcontemplava fixamente o toco de aproximadamente 15 centmetros que Musashiacabava de depositar a seu lado, bem como a adaga brilhante quase oculta s suascostas.

    - O que est esculpindo, senhor?

    - Uma imagem santa.

    - De Amida-sama3?

    - No. Tento esculpir a imagem de Kannon-sama, a deusa da misericrdia, masdesconheo a tcnica e acabo esculpindo meus prprios dedos. Veja! - disseMusashi, estendendo a mo e mostrando ao aprendiz os cortes nos dedos.

    O menino, porm, franziu o cenho muito mais impressionado com a bandagembranca envolvendo o cotovelo de Musashi, que aparecia pela boca da manga.

    - Como esto os ferimentos em suas pernas e braos, senhor?

    - J melhoraram bastante, graas aos cuidados que me tm dispensado. Transmitameus agradecimentos ao abade, por favor.

    - Se o senhor quer esculpir a deusa Kannon, deveria visitar o santurio central, ondeexistem alguns bons trabalhos de escultores famosos. Quer que o conduza at ldepois da refeio?

    - Gostaria muito, mas... a que distncia fica o santurio central?

    3Amida-sama: Amitabha, santo budista.

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    II

    - Cerca de um quilmetro daqui, senhor - respondeu o menino.

    - Ah, bem perto.

    Assim, terminada a refeio e disposto a acompanhar o pequeno aprendiz at osanturio central no torreo leste, Musashi saiu do templo pela primeira vez em dezdias e pisou a rea externa.

    Imaginara estar totalmente curado, mas ao pr os ps no cho e andar de fato,sentiu que o corte no p esquerdo ainda doa. O ferimento no brao, alm disso,passou a arder em virtude do cortante vento da montanha.

    Tangidas pelo vento frio que sibilava nas copas das rvores, ptalas de cerejeirasesvoaavam lembrando flocos de neve. Embora o frio ainda fosse intenso, o vero jse anunciava nas cores do cu. Musashi sentiu brotar dentro de si, subitamente,uma irreprimvel energia que fortalecia seus msculos, numa reao semelhante das plantas cheias de rebentos ao seu redor.

    - O senhor... - disse o pequeno aprendiz naquele instante, erguendo o rosto e fitandoMusashi - estudante de artes marciais, no ?

    - Isso mesmo.

    - E para que esculpe a deusa Kannon?

    - Por que perde tempo esculpindo a deusa, em vez de praticar esgrima?

    Crianas so capazes de tocar em questes cruciais com suas ingnuas perguntas,vez ou outra.

    Musashi contraiu o cenho. Sua fisionomia mostrava que a pergunta lhe doa muitomais que os ferimentos nos braos e nas pernas. Pior que tudo, o aprendiz pareciater 13 ou 14 anos: no porte e na idade, lembrava o pequeno Genjiro, morto por elemal a refrega tivera incio em torno do pinheiro solitrio.

    Naquele dia... quantos teriam tombado sob a sua espada?

    Nem hoje Musashi conseguia lembrar-se claramente de que forma usara a espada,

    ou como lograra escapar daquele inferno. Apesar disso, uma nica imagem recorriacom dolorosa nitidez desde aquela fatdica manh, mesmo em sonhos: a dopequeno Genjiro, o representante dos Yoshioka, gritando sob o pinheiro solitrio:"Tenho medo!", e de seu frgil corpo desfigurado tombando em meio s lascas darvore.

    Naquele momento, Musashi havia matado o pequeno Genjiro sem hesitar porquetinha uma convico: a de que no podia dar-se ao luxo de sentir pena. Mas eis quese descobria vivo depois da chacina, e se perguntava arrependido: "Por que tive demat-lo?"

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    Por que chegar a esse extremo?, censurava-se agora, odiando o prprio feitoimplacvel.

    Certo dia, escrevera num dirio uma promessa: "De nada me arrependerei, jamais."Mas com relao a esse particular episdio, rememorar a promessa para tentar

    reassegurar-se no surtia o efeito desejado: seu corao contraa-se de dor eamargura.

    Era o carter absoluto da espada que o obrigava a enfrentar tanta provao. Aconstatao o fez sentir que o mundo era por demais rido, e seu caminho,desumano.

    "Desisto?", chegou a pensar.

    Mormente nesses ltimos dias - em que vivera enfurnado na montanha sagrada,purgara corpo e alma mergulhado em sons que lembravam o lmpido trinado de umKalavinka4 e despertara da embriaguez do sangue - brotava de seu ntimo,

    irreprimvel, uma prece pela alma do menino morto.E assim, enquanto se recobrava dos ferimentos, ele havia comeado a esculpir aimagem da deusa Kannon. O gesto, mais que um ritual em memria do meninomorto, era uma prece pela prpria alma acabrunhada.

    III

    - Nesse caso - disse Musashi ao pequeno aprendiz, finalmente encontrando aresposta - o que acha voc das diversas imagens de Buda esculpidas por santossbios como Genshin Sozu, ou Kobo Daishi, existentes nesta montanha sagrada?

    - verdade! Pensando bem, acho que houve monges famosos que tambm sededicaram pintura e escultura - disse o menino, inclinando ligeiramente a cabeae concordando a contragosto.

    - Portanto, quando um espadachim se dedica escultura, est-se empenhando emelevar o esprito, assim como um monge, ao empunhar uma lmina e esculpir umaimagem santa em estado de auto-anulao, est procurando aproximar seu espritoao do santo que esculpe. O mesmo esprito norteia os que pintam, ou se dedicam caligrafia. A meta de todos atingir a lua, mas muitos so os caminhos queconduzem ao cume da montanha. Alguns se perdem em meandros, ou tentam novoscaminhos: todos, porm os trilham procurando chegar o mais perto possvel daserena perfeio de Buda.

    A conversa, descambando para o lado filosfico, deixou de interessar ao pequenoaprendiz que, correndo na frente, acercou um marco de pedra.

    - Senhor, disseram-me que as palavras neste memorial foram escritas por um bonzode nome Jichin - observou, apontando a pedra e reassumindo o papel de guia.

    Musashi aproximou-se e leu as palavras quase ocultas pelo musgo:

    4No original, karyobinka: pssaro imaginrio de trinado suave referido em sutras budistas, e que habitaria o

    paraso e os cumes das montanhas nevadas.

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    central no precisa ser realizada neste instante. Por favor, leve-o em suacompanhia.

    - Engana-se. Vim aqui atrs do senhor, e no do menino. Se no se importa,gostaria que retornasse comigo - respondeu o monge atendente.

    - Como? Veio me buscar?

    - Sim, senhor. Sinto ter de estragar seu passeio.

    - Algum procura por mim?

    - Disse a eles que o senhor se achava ausente, mas responderam-me que o viramh pouco nestas redondezas e exigiram de mim que o viesse buscar.

    Intrigado, Musashi retornou.

    IV

    A arrogncia e a arbitrariedade dos bonzos do monte Hiei haviam provocado seucompleto banimento tanto do meio poltico como do guerreiro. As asas lhes haviamsido cortadas, era verdade, mas seu reduto nas montanhas permanecera inclume,ao que parecia. Muitos ainda se vestiam moda antiga e perambulavam com seustamances altos, espadas de madeira cintura e lanas sob o brao. "Uma vezrebelde, sempre rebelde", parecia ser o lema dessa classe.

    Um grupo composto por aproximadamente dez desses bonzos aguardava Musashino porto de entrada do templo Mudoji.

    - A vem ele!

    - esse mesmo?

    Os vultos em hbitos pretos e capuzes marrons sussurravam entre si, olhando nadireo do grupo formado pelo pequeno aprendiz, Musashi e o monge atendente.

    "Que podero querer de mim?", pensou Musashi, tentando adivinhar-lhes opensamento. A caminho para l, tinha sido informado pelo monge atendente que oshomens sua procura eram doshudo templo Sannou-in da torre oriental, ou seja,bonzos agregados biblioteca desse templo. Nenhum deles, porm lhe pareceu

    familiar.- Obrigado por ter ido busc-lo. E agora, no preciso mais de voc nem do menino:recolham-se os dois - disse um gigantesco bonzo, espantando-os com a ponta desua lana.

    Virou-se a seguir para Musashi e disse:

    - Seu nome Miyamoto Musashi?

    Uma vez que seu interlocutor ignorava as boas maneiras, Musashi tam-bm se viu

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    no direito de aprumar-se e responder com rispidez:

    - Exato.

    No mesmo instante, um velho bonzo adiantou-se e disse em tom pompo-so, como

    se proclamasse um dito:- O solo do monte Eizan sagrado, suas terras so santas. No acobertamindivduos que, perseguidos e odiados no mundo em que vivem, procuram aqui seesconder, mormente elementos proscritos lutando por causas inteis. Acabo denotificar o templo Mudoji que voc indesejado nesta montanha: ordeno-lhe queparta imediatamente. Caso desobedea, ser castigado com rigor de acordo com oregulamento desta montanha.

    Atnito, Musashi contemplou em silncio o arrogante grupo.

    Por qu? A atitude dos bonzos era suspeita. Dias atrs, quando Musashi a custoalcanara aquelas terras e solicitara abrigo junto ao templo Mudoji, a direo desseestabelecimento s concordara depois de solicitar o consentimento da administraocentral e de hav-lo obtido.

    Algum motivo devia existir, portanto, por trs da sbita resoluo de qualific-locomo criminoso e expuls-lo dali.

    - Compreendi. Solicito um prazo at as primeiras horas de amanh, pois ainda tenhode me preparar para a viagem, e hoje o dia j chega ao fim - disse Musashi,acatando de um modo geral o que lhe era ordenado, para logo a seguir questionarincisivamente:

    - No entanto, quero saber: essa ordem partiu das autoridades judiciais ou daadministrao central da montanha? Por que resolveram expulsar-me agora se hpoucos dias, quando a direo do templo Mudoji os avisou sobre a minha chegada,vocs concordaram em me abrigar?

    - J que pergunta, fao-lhe o favor de responder - replicou o mesmo bonzo idoso. - Aprincpio, a administrao central decidiu receb-lo de braos abertos por ter ouvidodizer que voc era o samurai que tinha lutado sozinho contra um bando departidrios da casa Yoshioka debaixo do pinheiro solitrio. Mais tarde, porm, muitasinformaes negativas chegaram ao nossos ouvidos e, em conseqncia,resolvemos consensualmente expuls-lo daqui.

    - Informaes negativas...

    Musashi assentiu, agora compreendendo claramente a situao. No lhe era difcilimaginar que a casa Yoshioka espalharia aos quatro ventos comentrios venenososcom relao sua pessoa.

    De nada lhe adiantaria discutir com homens que acreditavam em boatos. Musashiento disse friamente:

    - Compreendi. No fao objeo. Partirei amanh bem cedo, impreterivelmente.

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    Deu-lhes as costas e dirigiu-se ao porto, disposto a entrar, quando ouviu:

    - Miservel!

    - Demnio!

    - Cretino!

    - Que disseram? - perguntou Musashi, parando imediatamente e voltando-se comagressividade para os bonzos.

    - Voc ouviu? Melhor ainda! - retorquiu um deles.

    - Retirem o que disseram! Vejo que querem me provocar, mas prestem ateno:estou me retirando sem discutir apenas em respeito ordem religiosa.

    - Longe de ns a inteno de provoc-lo. Afinal, somos pacatos servos de Buda... Aspalavras, porm saltaram das nossas bocas, que se h de fazer!

    No mesmo instante outros bonzos acudiram:

    - a voz do cu!

    - O cu falou por nossas bocas!

    Olhares de desprezo convergiram sobre Musashi, que se sentiu insuportavelmentehumilhado. Provocavam-no, estava claro, mas conteve-se.

    Os bonzos do monte Hiei tinham sido famosos pela lngua afiada desde aAntigidade, especialmente os arrogantes doshu, alunos de seminrio de pouco

    saber e muita vontade de exibir-se.- Ora essa! A crer nos boatos da vila, voc devia ser um samurai valente. Mas quevemos aqui? Um pobre coitado incapaz de falar, quanto mais de reagir aos insultos!

    Musashi percebeu que seu silncio afiava cada vez mais a lngua dos bonzos esentiu a pacincia esgotar-se:

    - O cu ento falou por suas bocas? Expliquem-me o que querem dizer com isso!

    - Ainda no entendeu? Voc acaba de ouvir a voz da montanha sagrada!Compreendeu agora?

    - No!

    - bem provvel, em se tratando de um indivduo da sua laia. Voc digno depiedade. Mas espere e ver: as leis crmicas so implacveis!

    - Musashi: sua fama pssima. Fique atento quando descer daqui e

    voltar ao mundo dos homens, pois algo muito desagradvel poder lhe acontecer.

    - Nada do que os outros digam ou faam me interessa.

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    - Ah-ah! Fala como se a razo estivesse do seu lado!

    - E est! No agi com covardia! Perante os deuses e os homens, afirmo que nada fizde que me possa envergonhar.

    - Alto l! Voc agora est indo longe demais em suas afirmaes.- Quando foi que agi indignamente? Quais aes minhas foram covardes, digam-me? Juro por minha espada: a luta foi limpa, honesta.

    - Olhem s, fala como se tivesse realizado um grande feito!

    - Falem o que quiserem de mim, no me importo. Mas no admito que espalhemboatos desabonadores com relao ao modo como uso minha espada!

    - Nesse caso, vou-lhe fazer uma pergunta. Quero ver se consegue me dar umaresposta convincente. Tem razo, os Yoshioka eram muitos. Posso at admitir queadmiro sua vitalidade, temeridade, ou, digamos, insensatez de enfrent-los sozinhoat o fim. No entanto, e aqui vai a pergunta, para que matar uma criana de 13anos? Para que ser cruel a ponto de eliminar o menino Genjiro?

    Musashi empalideceu visivelmente, mas permaneceu em silncio.

    - Seijuro, o herdeiro dos Yoshioka, escolheu a vida monstica e retirou-se do mundodepois que voc o aleijou - continuou o mesmo bonzo. - Seu irmo mais novo,Denshichiro, caiu morto sob a sua espada; e o ltimo a carregar o sangue Yoshiokaera aquele menino, Genjiro! Liquid-lo significou extinguir a linhagem! Por mais queseu ato tenha o amparo do cdigo de honra samuraico, isso foi excessivamentedesumano. Miservel, demnio - voc tudo isso e muito mais! Neste nosso pas, overdadeiro samurai comparado a flores de cerejeiras, que se vo mais leve brisa,sem a menor relutncia, em plena florao. Do mesmo modo que elas, o verdadeirosamurai despede-se da vida bravamente quando seu momento chegado, no seagarra vida a qualquer custo, como voc!

    VI

    Musashi mantinha-se cabisbaixo e em silncio. O bonzo continuou:

    - A montanha sagrada voltou-se contra voc porque esses detalhes vieram luz. Pormais que compreendamos as demais circunstncias, no podemos perdoar-lhe amaldade de incluir aquele menino na conta dos inimigos e mat-lo. Voc est longeda imagem do verdadeiro samurai deste nosso pas. Quanto mais bravo e ilustre o

    guerreiro, mais gentil e bondoso ele , mais sensvel se mostra transitria belezadesta vida. A montanha sagrada o expulsa! Suma daqui o mais rpido possvel!

    Insultando e agredindo de todas as formas possveis, os bonzos se foram.

    No fora por falta de respostas que Musashi se deixara ofender em silncio.

    "Agi certo, estou com a razo! Naquelas circunstncias, no havia outra forma deexpressar minhas convices, as quais acredito serem totalmente corretas", pensou.No era uma justificativa, mas uma profisso de f.

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    Por que matara o menino Genjiro? A resposta a essa pergunta era clara, definitiva: omenino tinha sido nomeado representante da casa Yoshioka, era o general dastropas inimigas, sua bandeira, seu smbolo.

    Assim sendo, como poderia ele deixar de mat-lo? Havia ainda uma outra razo.

    "Meus adversrios eram mais de 70. Se conseguisse eliminar dez, teria realizado umgrande feito. Mas supondo-se que, lutando bravamente, conseguisse eliminar 20, osrestantes 50 ainda assim cantariam vitria. Para sair vencedor e evitar que issoacontecesse, eu tinha de eliminar em primeiro lugar o smbolo mximo da tropainimiga, seu general. Se lograsse derrubar a bandeira inimiga - o smbolociosamente defendido por todos os meus adversrios - isso faria de mim o vencedor,seria a prova da minha vitria, mesmo que mais tarde eu viesse a morrer lutando."

    Musashi tinha ainda muitos outros argumentos a seu favor, como, por exemplo, ocarter absoluto da espada e das leis que a regiam, mas acabara no respondendos ofensas que os bonzos lhe haviam lanado no rosto.

    E por qu? Porque apesar de acreditar firmemente em suas razes, ele prpriosentia amargura, tristeza e vergonha indizveis.

    "E se eu desistisse deste rduo caminho?"

    Olhar vago, Musashi permaneceu em p, imvel entrada do templo.

    A tarde comeava a cair e as ptalas brancas das cerejeiras continuavam a danarindecisas ao vento. To indeciso quanto elas sentia-se Musashi, os fragmentos desua frrea resoluo parecendo esvoaar ao seu redor.

    "E viver o resto da minha vida com Otsu..."

    Considerou o mundo despreocupado dos mercadores, de gente como Koetsu eShoyu.

    "No!" Em largas e decididas passadas, seu vulto desapareceu no interior do templo.

    J havia uma luz acesa em seu aposento. Aquela seria a sua ltima noite no templo.

    Sentou-se perto da lamparina. "Vou terminar a escultura esta noite e deix-la notemplo. O valor artstico da obra no vem ao caso. Quero apenas que minhas precesalcancem a alma do morto", decidiu.

    Retomou a escultura da deusa Kannon e ps-se a trabalhar, espalhando novaslascas.

    Nesse instante, um vulto vindo de fora subiu para a varanda do templo, esgueirou-secom a lentido de um gato preguioso e se agachou rente porta do aposento.

    VII

    Pouco a pouco a luz da lamparina perdeu o brilho. Musashi espevitou-a, tornou aapanhar a adaga e a debruar-se sobre a escultura.

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    A montanha sagrada repousava, imersa em profundo silncio desde o entardecer.Apenas o rascar contnuo da adaga esculpindo a madeira soava debilmente, comopassos na neve.

    Os movimentos da lmina absorviam por completo a ateno de Musashi, pois era

    de sua natureza abstrair-se de tudo ao dedicar-se a uma tarefa. Os versosmurmurados deusa Kannon aos poucos se intensificaram involuntariamente, masMusashi logo se dava conta disso, baixava a voz, espevitava a lamparina ededicava-se ittou-sanrai6 escultura.

    "Finalmente!"

    No momento em que distendeu o dorso, o grande sino da torre oriental anunciava asegunda hora noturna.

    "Vou procurar o abade para despedir-me dele e aproveito para deixar a esculturaaos seus cuidados", decidiu-se.

    A obra era tosca, mal-acabada, mas nela Musashi tinha posto sua alma: ali estava ofruto de compungidas lgrimas e sinceras preces pelo repouso eterno do menino.Ele iria deix-la no templo para que a alma do pequeno Genjiro, assim como aprofunda tristeza que lhe pesava no esprito nesse momento, pudessem serlembradas em preces por muitos e muitos anos.

    Momentos depois, Musashi afastou-se do quarto levando a escultura consigo.

    Passados alguns instantes, o pequeno aprendiz entrou no aposento e varreu aslascas de madeira. Preparou a seguir as cobertas para que Musashi pudesse dormir,apanhou a vassoura e retirou-se para a cozinha.

    E ento uma das portas corredias do aposento deserto deslizou suavemente,entreabriu-se, e logo se fechou uma vez mais.

    Instantes depois Musashi retornou ao quarto. Depositou cabeceira do leito umsombreiro, um par de sandlias novas e miudezas para a viagem - com certezapresentes de despedida do abade -, apagou a lamparina e deitou-se.

    As portas externas de madeira no haviam sido corridas, e o vento batia sobre oshoji. Iluminadas pelo luar, as translcidas divisrias de papel sobressaamacinzentadas, e sobre elas danavam sombras de rvores em movimentos quelembravam o constante vaivm das ondas do mar.

    Logo, um ressonar tranqilo indicou que Musashi acabara de adormecer.

    O sono aprofundou-se e a respirao tornou-se cada vez mais longa e pausada.

    Foi ento que a beira de um pequeno biombo deslocou-se ligeiramente e um vultode costas curvadas como as de um gato esgueirou-se detrs, arrastando-se dejoelhos.

    6Ittou-sanrai: um artista deve estar preparado para fazer trs reverncias a cada golpe de goiva ou de adaga

    enquanto esculpe uma imagem santa.

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    De sbito, Musashi parou de ressonar. O vulto jogou-se sobre o tatamiachatando-secontra ele e, imvel, ficou avaliando a profundidade do sono, esperando cautelosopor um momento melhor.

    Repentinamente, uma mancha negra pareceu esvoaar, como se algum tivesse

    lanado um pano preto sobre Musashi: o vulto agora debruava-se sobre ele. Nomesmo instante, uma voz rosnou:

    - agora que voc me paga!

    A ponta de uma espada curta surgiu cortando com fora o pescoo sobre otravesseiro. Um estrondo reboou no ar e, no mesmo instante, o vulto bateu contra oshoji lateral. O movimento tinha sido to rpido que a espada no teve tempo decompletar o movimento.

    Lanado como uma trouxa contra a divisria, o vulto soltou apenas um guinchoagudo e rolou para fora do aposento levando consigo a divisria, desaparecendo em

    seguida na escurido.No momento em que lanou o intruso contra o shoji, Musashi assustou-se com a sualeveza. O desconhecido pesava tanto quanto um gato! Alm disso, tinha entrevistocabelos brancos por baixo do capuz que lhe envolvia a cabea.

    Sem dar a menor importncia a esses detalhes, no entanto, Musashi apanhouinstantaneamente a espada sua cabeceira, e saltou para o jardim, gritando:

    - Alto! Veio visitar-me e vai-se embora sem me cumprimentar, estranho? Volte c!

    Correu ento em largas passadas atrs dos passos que se ouviam no escuro. Noparecia, porm muito empenhado em alcanar o fugitivo, pois logo parou,acompanhando com olhar sorridente a sombra encapuada que aos trambolhes seespalhava pelo solo, uma lmina brilhando em meio a ela no escuro.

    VIII

    A velha Osugi gemia estatelada no cho. Aparentemente, tinha cado de mal jeito aoser lanada distncia. Percebeu que Musashi se aproximava, mas no conseguiufugir, nem mesmo levantar-se.

    - Ora, se no a obaba! - disse Musashi, soerguendo-a.

    Parecia genuinamente surpreso ao se dar conta de que o intruso que planejara

    cortar-lhe o pescoo no sono no tinha sido nenhum dos discpulos da extintaacademia Yoshioka ou dos arrogantes bonzos da montanha, mas a idosa me deMatahachi, seu velho amigo e conterrneo.

    - Ah, agora comeo a compreender. Foi voc a pessoa que se apresentou hoje nosanturio central para falar do meu passado e me difamar, no foi? Os bonzosacreditariam piamente nas palavras de uma virtuosa anci e se mostrariamsolidrios, claro! Foi por causa de suas maquinaes que eles resolveram meexpulsar da montanha, e foram eles tambm que a conduziram at aqui, no verdade?

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    - Ai, como di! Musashi, reconheo que estou acabada. Os Hon'i-den no tm sortena guerra: vamos, corte-me a cabea! - disse a velha Osugi a custo, em agonia,debatendo-se sem parar, mas sem foras sequer para afastar as mos de Musashi,que continuava a ampar-la.

    A desastrada queda era em grande parte responsvel pela sua atual debilidade.Contudo, Osugi no estava bem havia algum tempo. Um resfriado mal curado,acompanhado de febre e dor nas pernas e quadris j a atormentara poca em quedeixara para trs a hospedaria na ladeira Sannenzaka. Alm disso, ela foraabandonada por Matahachi a caminho do pinheiro solitrio, fato que com certezarepresentara um grande choque para a anci e ajudara a abalar-lhe ainda mais asade.

    - Mate-me de uma vez! Corte-me o pescoo, vamos! - esbravejou ela. No era afraqueza ou o desespero que a fazia gritar desse modo, e sim o reconhecimento deque no tinha outra sada, era a exteriorizao franca da vontade de morrer o quantoantes. Musashi, porm lhe disse:

    - Di muito, obaba?... Onde? Fique tranqila: estou aqui e cuidarei de voc.

    Ergueu-a a seguir facilmente nos braos, carregou-a para dentro do aposento,depositou-a no meio de suas cobertas e velou por ela a noite inteira, sentado suacabeceira.

    Mal o dia clareou, o pequeno aprendiz lhe trouxe o lanche encomendado na noiteanterior e transmitiu-lhe as instrues da administrao do templo Mudoji:

    - Sentimos ter de apress-lo - mandavam dizer os superiores -, mas recebemosinstrues rigorosas da administrao central no sentido de faz-lo partir destas

    montanhas o mais cedo possvel.Partir bem cedo tinha sido desde o incio a inteno de Musashi, de modo que findouos preparativos com rapidez e comeou a se erguer, quando se lembrou da anciacamada. Sondou a direo do templo quanto possibilidade de deix-la aoscuidados deles, mas os monges no se mostraram receptivos idia. Contudo,prestimosamente sugeriram uma alternativa: um certo mercador tinha trazidoalgumas encomendas do templo no lombo de uma vaca, mas deixara o animal ali ese fora para Tanba para ultimar outros negcios. Que achava Musashi de transportara anci nas costas da vaca e descer at Outsu? Uma vez l, ele podia deixar oanimal no cais ou em algum posto atacadista dessa regio, propunham eles.

    UMA VACA LEITEIRA

    I

    O caminho que percorre a crista do pico Shimei-ga-take e desce pelo meio dasmontanhas na direo de Shiga termina nos fundos do templo Miidera.

    Obaba gemia baixinho no lombo da vaca: a dor parecia intensa. E na frente doanimal, conduzindo-o, andava Musashi, rdeas na mo.

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    - Obaba... - chamou, voltando-se solcito. - Se a dor a incomoda, podemosdescansar um pouco. Afinal, ns dois no estamos com pressa...

    Prostrada no dorso da vaca, a velha Osugi no se dignou a responder. A obstinadaanci estava revoltada contra as circunstncias que a obrigavam a aceitar favores do

    homem a quem jurara matar. O ressentimento era visvel em seu semblante.Quanto mais Musashi se mostrava solcito, mais Osugi sentia no ntimo o rancor e oantagonismo crescerem.

    "No adianta mostrar-se compassivo, fedelho! Eu nunca deixarei de odi-lo!",continuava ela a pensar.

    Apesar de tudo, o jovem no sentia especial rancor ou animosidade contra essamulher que parecia viver apenas para tornar malditos os dias dele.

    A razo disso talvez residisse na insignificncia fsica da idosa mulher. Mas naverdade a velha Osugi, com seus raquticos braos e seus feitos traioeiros, tinhasido, entre todos os inimigos at hoje enfrentados por Musashi, a que mais lheinfligira sofrimentos. Ainda assim, ele no conseguia v-la como uma inimiga real.

    Nem por isso a anci lhe era indiferente. Pelo contrrio: em momentos como aqueleda vila natal, quando fora maldosamente enganado, ou como o do temploKiyomizudera, quando fora insultado e humilhado perante uma multido, ou nasoutras tantas vezes em que fora atraioado ou impedido de atingir os objetivos emvirtude dos ardis dessa megera, Musashi sentira dio, ganas de cort-la empedacinhos. Mas na noite anterior, depois de quase ter sido decapitado por elaenquanto dormia, Musashi no sentira vontade, por motivos que nem elecompreendia direito, de deixar-se levar pela raiva, gritar "Megera maldita!" e torcer-

    lhe de uma vez o pescoo fino e enrugado.Talvez porque desta vez a velha Osugi lhe parecesse anormalmente desanimada.Ela no s gemia de dor sem parar por causa da desastrada queda da noite anterior,como tambm dera descanso lngua viperina, fazendo com que Musashi sentissepena e vontade de v-la curada o mais rpido possvel.

    - Sei que no cmodo viajar no lombo de uma vaca, obaba, mas chegando emOutsu teremos melhores recursos. Agente um pouco mais. No est com fome?Voc no comeu nada esta manh... Est com sede? Como? Ah... no quer nada!Entendi.

    Caminhavam agora pela crista das montanhas. Desse trecho da estrada,descortinavam-se os quatro cantos da terra: as distantes serras mais ao norte, olago Biwako, naturalmente, assim como a montanha Ibuki, e cada uma das oitomaravilhas cnicas de Karasaki7.

    - Vamos parar um pouco. Desa da montaria e estenda-se por momentos sobre a

    7No original, Karasaki-no-hakkei(ou Oumi hakkei):oito paisagens conhecidas por sua beleza, ligadas a pontos

    cnicos existentes no extremo sul do lago Biwako, a saber: nevascas ao entardecer de Hira, barcos a velaretornando a Yabase, luar de outono sobre o monte Ishiyama, pr-do-sol em Seta, sinos ao entardecer de Mii,revoada de gansos selvagens descendo sobre Katada, vista ene-voada de Awazu em dias de sol, Karasaki emnoite de chuva.

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    relva, obaba - disse Musashi. Atou o boi a uma rvore e, tomando Osugi ao colo,ajudou-a a apear-se.

    II

    - Ai, ai, ai! - gemeu Osugi, rosto crispado, desvencilhando-se das mos de Musashie jogando-se de bruos sobre a relva.

    "Pele terrosa e cabelos desgrenhados - esta velha capaz de morrer se forabandonada prpria sorte", pensou Musashi.

    - Beba um pouco de gua, obaba. E tente comer alguma coisa - insistiu elecompassivo, acariciando-lhe as costas. A teimosa mulher, porm, sacudiu a cabeanegativamente e recusou tudo que lhe era oferecido.

    - E esta, agora... - murmurou Musashi, com ar perdido. - Voc no tomou nem umagota de gua desde ontem, estamos longe de tudo e no trago remdios comigo.Desse jeito voc adoecer mais ainda. Faa-me um favor, obaba: coma ao menos ametade do meu lanche.

    - Que coisa repugnante!

    - Repugnante?

    - Idiota! Posso cair morta num canto qualquer no extremo da terra e transformar-meem alimento de pssaros e feras, mas jamais comeria coisa alguma que me fossedada por voc, o homem a quem mais odeio neste mundo! E cale a boca! Voc meenerva!

    Com um brusco repelo, Osugi livrou-se da mo que lhe acariciava as costas e

    agarrou-se com firmeza relva.

    Musashi no sentiu raiva: ele at a compreendia. Lamentava apenas no conseguirdesfazer a viso distorcida da velha senhora, faz-la perceber que no lhe queriamal.

    Suportou-lhe as mal criaes com estoicismo, e com infinita pacincia, como secuidasse da prpria me enferma, procurou persuadi-la:

    - Se continuar teimando desse jeito capaz de morrer, o que seria uma pena,obaba, visto que voc ainda no viu seu filho alcanar o sucesso. Concorda?

    - Que conversa boba essa? - rosnou a velha, arreganhando os lbios e mostrandoos dentes, feroz. - Desde quando Matahachi precisa de algum como vocpreocupando-se com ele? Meu filho achar o caminho do sucesso sozinho, sem aajuda de ningum!

    - Eu tambm acredito nisso. E voc tem de se restabelecer para que ns dois,juntos, possamos dar-lhe a fora de que precisa!

    - Musashi, o falso caridoso, o lobo na pele de cordeiro! No sou ingnua a ponto deesquecer meus propsitos levada por suas palavras doces! E cale-se, porque intil

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    e voc j est me cansando os ouvidos! - gritou Osugi, irredutvel.

    Insistir seria pior, percebeu Musashi. Levantou-se bruscamente e, deixando para trsa anci e a montaria, sentou-se longe de suas vistas e desembrulhou o lanche.

    Os bolinhos de arroz - recheados de escuro misoperfumado e embalados em folhasde carvalho - eram saborosos. Como ele queria que Osugi partilhasse consigo esseprazer! Tornou a embrulhar alguns bolinhos nas folhas de carvalho e guardou-os,pensando em voltar a oferec-los mais tarde.

    Foi ento que ouviu vozes partindo do lugar onde deixara a velha senhora.

    Voltou-se, espiou por trs de uma rocha e viu uma mulher, aparentemente umadona-de-casa local e que devia estar de passagem por ali. Vestia um hakamapresonos tornozelos, semelhante s pantalonas usadas pelas vendedoras ambulantes daregio de Ohara, e tinha os cabelos secos displicentemente enfeixados e cadossobre os ombros.

    - Escute, vov - dizia a mulher para Osugi. - Tenho uma hspede doente em minhacasa desde alguns dias atrs, sabe? J melhorou um pouco, mas acho que se eulhe der de beber o leite dessa vaca, ela vai sarar de uma vez. Voc me deixaordenh-la? Por sorte, tenho comigo um cntaro bem jeitoso...

    A voz da mulher chegava aguda aos ouvidos de Musashi. Osugi ergueu a cabea.

    - Ora... Eu tambm j ouvi dizer que leite de vaca tem o poder de curarenfermidades! Voc acha que capaz de ordenhar esta aqui? - perguntou a velha.Seus olhos brilhavam vivos, diferentes dos de quando falara com Musashi.

    Ainda falando com Osugi, a mulher agachou-se sob a vaca e dedicou-se a espremeras tetas do animal, enchendo o cntaro de saque com o lquido branco extrado.

    III

    - Obrigada, vov! - agradeceu a mulher, rastejando e saindo de sob a vaca. Ajeitoucuidadosamente o cntaro com o leite ordenhado e preparou-se para partir.

    - Espere um pouco, mulher! - deteve-a Osugi, erguendo a mo apressadamente.Examinou em seguida com ateno os arredores, mas no viu Musashi. Satisfeitaenfim, voltou-se uma vez mais para a camponesa. - Voc no me permitiria beberum pouco desse leite?

    A voz, trmula e rascante, parecia provir de uma garganta bastante ressecada.

    - Com prazer - respondeu a mulher, entregando-lhe o cntaro. Osugi levou o gargalo boca, fechou os olhos e bebeu. Um pouco do lquido branco escorreu pelo cantoda boca e pelo peito, e caiu sobre a relva.

    Quando sentiu o leite no estmago, Osugi parou para respirar, estremeceu e logocontraiu o rosto, quase vomitando:

    - Ugh! Que gosto horrvel! Mas acho que agora eu vou me recuperar.

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    - Voc tambm est doente, vov?

    - O que eu tenho no nada srio. Eu andava meio febril por causa de um resfriado,ca de mau jeito e me machuquei um pouco. S isso.

    Ainda explicando, Osugi ergueu-se sozinha. Sua aparncia, nesse instante, nem deleve lembrava a msera velhinha sofredora que gemia baixinho, sacudida sobre olombo da vaca.

    - Mulher! - sussurrou ela, aproximando-se enquanto examinava em torno com olharpenetrante. - Se eu seguir reto por esta estrada, onde chegarei?

    - No morro bem atrs do templo Miidera.

    - Miidera, em Outsu?... E no existe outro caminho secundrio alm deste?

    - At existe, mas... aonde quer ir, vov?

    - No importa aonde! Eu apenas quero fugir das mos de um certo bandido que metem prisioneira.

    - A quase meio quilmetro daqui existe uma vereda que leva para o norte. Se vocdescer sempre em frente por ela, vai sair entre Outsu e Sakamoto.

    - Ah, ? - replicou a anci, inquieta. - Preste ateno: se algum lhe perguntar pormim, diga que no sabe para onde fui.

    Mal acabou de dizer, passou pela camponesa boquiaberta e afastou-se correndo,manquilotando como um louva-a-deus aleijado.

    Musashi, que tinha acompanhado todos os acontecimentos escondido atrs darocha, saiu em seguida do esconderijo com um sorriso nos lbios e tambm se ps acaminho.

    Logo alcanou a camponesa que carregava o cntaro de leite. Ao ser chamada porMusashi, a mulher imobilizou-se rigidamente e, antes ainda de ouvir qualquerpergunta, pareceu pronta a dizer que no sabia de nada.

    Mas Musashi no perguntou por Osugi. Ele apenas disse:

    - s por acaso a mulher de um lenhador, ou talvez de um lavrador destas cercanias?

    - Quem, eu? Sou a dona de uma casa de ch pertinho daqui.- Ah, tu tens uma dessas casas de descanso para viajantes, comuns em picos demontanha!

    - Isso mesmo.

    - Melhor ainda. Que achas de me levar um recado cidade de Kyoto? Pagar-te-eipelo trabalho.

    - Posso ir, mas tenho uma hspede doente l em casa e...

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    - Vamos fazer o seguinte: eu levo esse leite tua casa e espero l mesmo pelaresposta ao recado que vais levar. Se fores neste instante, estars de volta antes deescurecer.

    - Muito fcil, mas...

    - No te preocupes: no sou o bandido que a anci descreveu h pouco. Easseguro-te que se ela j est to boa a ponto de correr, como bem a vi fazendo,no vou mais preocupar-me: ela que siga o seu caminho... Vou escrever uma cartaneste instante. Leva-a manso Karasumaru, em Kyoto. Espero a resposta na tuacasa.

    IV

    Musashi retirou o pincel de seu estojo porttil e redigiu a carta. Era para Otsu.

    - Faz-me o favor! - disse, entregando-a mulher. Essa era uma carta que elesempre tivera a inteno de remeter assim que lhe fosse possvel, desde os dias emque convalescia no templo Mudoji.

    Escarranchou-se ento ele prprio no lombo da vaca e deixou-se levar pelo animalos quase quinhentos metros que o separavam da casa de ch.

    Repensou no bilhete simples que acabara de escrever e ficou imaginando a reaode Otsu ao receb-lo.

    - Estava certo de que nunca mais a veria! - murmurou. Sorridente, ergueu o rostopara o cu, onde nuvens brancas e brilhantes se destacavam.

    Musashi parecia feliz, e seu rosto erguido era pura expresso de alegria, mais

    vibrante ainda que a dos demais seres cheios de vida a coIorir a face da terra espera do vero.

    - Otsu talvez esteja ainda acamada, doente como me pareceu da ltima vez em quea vi. Mas quando receber o meu bilhete, ela h de vir correndo ao meu encontro emcompanhia de Joutaro...

    A vaca farejava o mato e parava vez ou outra. Para Musashi, as pequenas flores-do-campo brancas que pontilhavam a relva pareciam estrelas cadas.

    Por ora, a mente queria apenas girar em torno de pensamentos felizes, maslembrou-se de chofre: "Por onde andar obaba?"

    Seu olhar varreu o vale. "Espero que no esteja cada em algum canto, sofrendosozinha...", pensou, algo preocupado. A atitude complacente, os pensamentosfelizes, tudo derivava desse seu momento de tranqilidade espiritual.

    Musashi ficaria constrangido se o bilhete casse em mos estranhas, mas tinhaescrito para Otsu:

    Sobre a ponte Hanadabashi, voc me esperou.Agora, ser a minha vez de esperar.

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    Sigo na frente para Outsu e a aguardo na ponte Karahashi8, de Seta,com a vaca que me serve de montaria presa ao corrimo.E ento, conversaremos.

    Repetiu diversas vezes as palavras do bilhete mentalmente, como se recitasse um

    poema, e j imaginava at o que conversariam quando se encontrassem.Avistou nesse momento uma estalagem sobre a crista do pico.

    " ali!", pensou.

    Saltou do lombo da montaria quando chegou mais perto, levando na mo o cntarode leite a ele confiado pela dona do estabelecimento.

    - Boa tarde! - disse alto, ocupando um banco sob o alpendre. Uma velha quealimentava o fogo enquanto vigiava alguma coisa numa panela, veio atend-lo eserviu-lhe um ch morno.

    Musashi voltou-se para ela e explicou-lhe que cruzara com a dona da estalagem nocaminho e que ele a incumbira de levar um recado. A idosa mulher talvez fossesurda, pois apesar de ter estado todo o tempo acenando em sinal de compreenso,perguntou quando Musashi lhe entregou o cntaro de leite:

    - Que isso?

    Musashi tornou a explicar que se tratava do leite de uma vaca, ordenhado pela donada estalagem para que fosse dado a um hspede doente, e que seria melhor faz-lobeber imediatamente.

    - Isto leite? Ah!... - exclamou a velha, ainda indecisa, segurando com ambas as

    mos o cntaro. Logo pareceu decidir que no sabia lidar com a situao, e voltou-se para o interior do casebre para gritar:

    - moo! moo do quarto dos fundos! Venha c um instante, faa-me o favor! Euaqui no sei o que fazer com isto!

    Mas o moo convocado pela velha - e que pelo jeito se hospedava no quarto dosfundos da estalagem - estava nesse momento do lado de fora, atrs da casa, pois foidessa rea que lhes veio a resposta:

    - J vou!

    Segundos depois, um homem surgiu por um dos lados da casa de ch, meteu acabea pela porta e espiou:

    - Que quer, vov? - disse.

    A anci logo passou-lhe o cntaro, mas o homem no parecia estar ouvindo nada do

    8Ponte Karahashi sobre o rio Seta: famosa ponte - provida de corrimo e de formato que lembra as da China -

    na provncia de Shiga. Porta de entrada da cidade de Kyoto para os viajantes que provm do leste, era antigo eimportante ponto de defesa dessa cidade.

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    que a mulher lhe dizia, nem fazia meno de olhar o que havia dentro do pote.Estupefato, olhos presos no rosto de Musashi, parecia petrificado.

    Musashi, por sua vez atnito, tambm conseguia apenas fitar de volta o homem sua frente:

    - E... eei! - exclamaram os dois quase ao mesmo tempo, adiantando-se,aproximando os rostos mutuamente.

    - Mas... voc, Matahachi? - gritou Musashi.

    Pois o homem em questo era Hon'i-den Matahachi, que ao ouvir a voz do velhoamigo, tambm berrou, fora de si:

    - Ora essa! o Take-yan!

    Ao notar que o amigo lhe estendia a mo, Matahachi o abraou, esquecido docntaro que segurava junto ao corpo.

    O vasilhame foi ao cho, partiu-se, e o lquido branco atingiu a barra dos seusquimonos.

    - H quanto tempo no nos vemos?

    - Desde... desde a batalha de Sekigahara! Nunca mais nos vimos, desde ento!

    - Isto quer dizer...

    - ...cinco anos! Este ano fao 22 anos!

    - E eu tambm!- verdade! Somos da mesma idade!

    Um aroma adocicado subiu do leite derramado e envolveu os dois jovens, quecontinuavam abraados. O cheiro talvez estivesse revivendo em suas memrias osvelhos dias da infncia.

    - Voc tornou-se famoso, Take-yan! Alis, j no faz sentido cham-lo assim hojeem dia, de modo que tambm vou passar a cham-lo de Musashi. Ouvi falar muitodo recente episdio do pinheiro solitrio, assim como dos outros em que voc seenvolveu.

    - Ora, desse jeito voc me constrange! No passo de um novato inexperiente. Meusadversrios que so despreparados. Mas... diga-me, Matahachi: voc o hspedede que me falou a dona deste estabelecimento?

    - Hum! Na verdade, parti de Kyoto e me dirigia cidade de Edo, mas certascircunstncias me detiveram neste lugar. Aqui estou h cerca de dez dias.

    - E quem que est doente?

    - Doente? - repetiu Matahachi levemente aturdido. - Ah, a pessoa em minha

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    companhia.

    - Agora entendi. De qualquer modo, fico muito feliz em v-lo gozando boa sade. Porfalar nisso, recebi h muito tempo uma carta sua por intermdio de Joutaro: euestava na estrada Yamato, a caminho de Nara.

    Matahachi silenciou repentinamente e desviou o olhar. Tinha perdido a coragem deencarar o amigo ao lembrar-se de que no cumprira nenhuma das grandiosaspromessas feitas naquela carta.

    Musashi pousou a mo sobre o ombro do companheiro de infncia. Sentia apenasuma onda de afeto por ele avolumando-se no peito.

    Nem lhe passava pela cabea pensar na grande diferena, do ponto de vistahumano, que se estabelecera entre os dois no decorrer desses anos. Desejavaapenas poder conversar com Matahachi francamente, com toda a calma, e para issoa oportunidade era boa.

    - Quem essa pessoa que est em sua companhia, Matahachi?

    - Ora... ningum especial. Apenas...

    - Nesse caso, venha comigo por alguns instantes aqui fora. No convmcontinuarmos ocupando os bancos da casa de ch por muito tempo. Estamosatrapalhando.

    - Vamos. Eu o acompanho.

    Ao que parecia Matahachi esperava pelo convite, pois foi rapidamente para fora.

    A BORBOLETA E O VENTO

    I

    - Do que vive voc ultimamente, Matahachi?

    - Como assim? Fala da minha profisso?

    - Isso mesmo.

    - No consegui avassalar-me, nem tenho profisso definida...- Passou ento estes anos todos sem fazer nada?

    - Sua pergunta me faz lembrar a maldita Okoo! Ela truncou minha vida na poca emque ela mal comeava...

    E a um campo que lembrava o da base da montanha Ibuki chegavam os dois nessemomento.

    - Vamo-nos sentar por aqui - convidou Musashi, acomodando-se sobre a relva de

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    pernas cruzadas. Sentiu-se impaciente com o amigo, que parecia constrangido,inferiorizado.

    - Voc pe a culpa em Okoo, mas isso covardia, Matahachi. O nico responsvelpela construo da sua vida voc prprio e mais ningum.

    - Claro, claro! Eu tambm tive culpa, no nego. Mas que... o destino me preparacertas situaes que no consigo mudar, acabo sempre arrastado por elas, no seipor qu.

    - E como pensa em sobreviver nos dias de hoje desse jeito? Mesmo que chegue emEdo, aquilo uma terra em expanso, para l converge uma multido faminta evoraz, proveniente de todos os cantos do pas. Para abrir caminho nessa cidade,voc precisa ser muito mais decidido que uma pessoa normal!

    - Est certo, est certo. Eu devia ter-me dedicado esgrima h mais tempo...

    - Do que est falando? Voc tem apenas 22 anos, Matahachi, o futuro inteiro se abre sua frente! Mas para ser franco, acho que voc no foi talhado para a carreira deespadachim. Estude mais, escolha um novo ramo de trabalho e procure um bomamo. Esse o melhor caminho para voc, meu amigo.

    - verdade... Vou-me dedicar, prometo - murmurou Matahachi. Apanhou um talo narelva e o mastigou. Sentia vergonha de si mesmo, sinceramente.

    Tinham a mesma idade e procediam da mesma vila: as mesmas montanhas, amesma terra os haviam embalado, mas cinco anos de descompasso em seus modosde vida haviam cavado um abismo enorme entre os dois.

    Ao perceber a dolorosa verdade, Matahachi lamentou do fundo do corao seupassado de cio.

    Enquanto apenas ouvira falar do amigo mas no o vira pessoalmente, Matahachitinha podido manter uma atitude displicente, fazer pouco da sua fama. Mas agora,ao encontrar-se com Musashi e notar a diferena que nele se operara nos ltimoscinco anos, Matahachi no pde deixar de se sentir pequeno e at intimidado pelafora que dele emanava, apesar da amizade que um dia os unira. Esquecido do brio,do amor prprio e at do rancor que chegara a nutrir pelo companheiro bem-sucedido, Matahachi apenas recriminava a prpria falta de nimo.

    - Ei! Que tristeza essa? nimo, homem! - disse Musashi, batendo-lhe no ombro. Afraqueza do amigo lhe chegou nesse contato, quase palpvel - Nada disso temimportncia! Se voc desperdiou os ltimos cinco anos, imagine que nasceu cincoanos mais tarde. Dependendo do ponto de vista, esses cinco anos talvez notenham sido perdidos, pode at ser que representem um bom aprendizado!

    - Que vergonha, meu amigo...

    - Ora essa! Deixei-me empolgar pela conversa e me esqueci de contar-lhe:Matahachi, acabo de me separar ainda agora de sua velha me, a pouca distnciadaqui!

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    - Como disse? Voc esteve com minha me?

    - s vezes me pergunto: por que que voc no nasceu com uma gota daperseverana dela, hein, Matahachi?

    IIObservando esse filho indigno, Musashi chegava a sentir pena da velha Osugi.

    "Que lstima!", pensava, incapaz de manter-se indiferente. Tinha vontade de lhedizer: "Olhe para mim! Veja a minha solido, a falta que sinto de uma me, e dmaior valor sua!"

    Tinha sido unicamente o amor pelo filho que fizera a velha Osugi ignorar a idadeavanada, arrostar agruras em terras estranhas e jurar morte a Musashi, elegendo-oseu inimigo por todas as sete reencarnaes futuras. Esse cego amor maternaltinha-se transformado em idia fixa e gerara inmeros mal-entendidos.

    Musashi, para quem a me era apenas um nebuloso sonho dos tempos de criana,tinha aguda conscincia disso e invejava Matahachi. Osugi o tinha amaldioado,perseguido e atraioado, era verdade. Mas, quando ele se recuperava da indignaoque tais atos sempre lhe causavam, sentia maior solido ainda e uma aguda invejado amigo.

    "E ento, que fazer para abrandar o dio daquela anci por mim?", perguntou-seMusashi enquanto contemplava o filho dela. A resposta lhe veio num timo. "O filhotem de se transformar em um homem bem-sucedido. Se ele conseguir me superarem algum aspecto e se o sucesso for reconhecido e louvado por nossosconterrneos, a velha me sentir uma satisfao muito maior que a de me cortar acabea."

    Sentiu a amizade intensificar-se, absorvendo-o numa chama to poderosa quanto ados momentos em que se dedicava esgrima ou escultura da deusa Kannon.

    - Pense bem, Matahachi - disse em tom grave, ainda que impregnada de afeto. - Suame uma pessoa excelente, que o ama muito e s pensa em seu bem. Como que no lhe ocorre dar-lhe voc tambm um pouco de alegria em troca? Do meuponto de vista, o de um rfo, sua atitude no apenas desrespeitosa, quasesacrlega. Voc foi contemplado com o amor materno, a maior felicidade que um serhumano pode almejar na vida, mas a est menosprezando! Se porventura eu tivesseuma me como a sua, minha vida hoje seria muito mais plena, mais calorosa!Imagino com que prazer no estaria me esforando para alcanar o sucesso oupraticar uma ao meritria! Sabe por qu? Porque s uma me capaz de sealegrar to sinceramente com o sucesso da gente. Que maior estmulo pode haverno mundo que o de possuirmos algum partilhando conosco o nosso sucesso? Paravoc, que j possui esse privilgio, minhas palavras talvez soem antiquadas emoralistas, mas muito triste no ter ningum, nem a seu lado nem em lugar algumdo mundo, com quem dividir, por exemplo, a beleza deste cenrio que se estendediante dos nossos olhos neste momento.

    Musashi falou com veemncia at esse ponto, num s flego, tirando proveito daateno interessada de Matahachi que, imvel, o escutava. Agarrou-o a seguir pelo

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    punho e continuou:

    - Matahachi! Tenho certeza de que voc tem conscincia de tudo que estou lhedizendo. E agora, peo em nome de nossa velha amizade, dos dias que passamosjuntos em nossa terra: faa reviver em seu peito aquele esprito ardente que nos fez

    partir da vila para a batalha de Sekigahara armados apenas de uma lana, e retomeseus estudos. Voc se engana se pensa que as guerras acabaram definitivamente, eque a batalha de Sekigahara coisa do passado: por trs deste nosso cotidianopacfico, a luta pela vida continua num palco cada vez mais sangrento e cheio deintrigas, nem de longe comparvel quela batalha. E para um indivduo vencer nessecenrio, s existe um recurso: aprimorar-se. Vamos, Matahachi: empunhe uma vezmais a lana daqueles dias e enfrente o mundo com seriedade. Estude, construauma carreira para voc mesmo e suba na vida, meu amigo! Se voc se dispuser afazer isso, prometo no poupar esforos para ajud-lo. Serei seu servo, se vocapenas jurar que se empenhar!

    Lgrimas saltaram dos olhos de Matahachi e caram, quentes, sobre a mo de

    Musashi, que ele retinha entre as suas.III

    Se os conselhos viessem da boca da velha Osugi, Matahachi teria como sempre semostrado enfadado e rido ironicamente em resposta, mas as palavras do amigo querevia pela primeira vez em cinco anos tiveram o poder de despertar seus melhoressentimentos, e at de faz-lo chorar.

    - Sei... Entendi. E agradeo seu interesse por mim - disse, levando o dorso da moaos olhos. - Este ser o dia do nascimento de um novo Matahachi, voc ver. Querme parecer que no tenho mesmo aptido para abrir caminho na vida como

    espadachim, de modo que vou seguir para a cidade de Edo, ou ento empreenderuma jornada de aprimoramento, peregrinando por diversas provncias. E quando umdia deparar com um bom mestre, vou acompanh-lo e estudar sob sua orientao,prometo.

    - De minha parte, eu me esforarei por encontrar um bom mestre e um bom amopara voc. No ser preciso dedicar-se em tempo integral aos estudos, Matahachi,voc poder estudar e trabalhar ao mesmo tempo.

    - De repente, parece que o caminho se abriu minha frente. Mas... ainda tenho umpequeno problema.

    - Que problema? Fale sem reservas! Farei qualquer coisa que esteja ao meualcance e seja para o seu bem, tanto hoje como em qualquer tempo. Esse ser ojeito de me redimir junto sua me.

    - No est nada fcil falar sobre isso...

    - Fale de uma vez! Pequenos segredos podem muitas vezes projetar sombras sobreuma amizade, no se esquea. No precisa envergonhar-se, est falando com umamigo. Alm de tudo, o constrangimento ser momentneo.

    - Nesse caso...

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    - Fale de uma vez.

    - A companhia a que me referi h pouco , na verdade, uma mulher. - Voc estviajando com uma mulher?

    - Estou... Irra, continuo achando difcil falar sobre isso.- Que sujeito indeciso! Fale!

    - No me leve a mal, Musashi, por favor! Voc a conhece tambm. - Eu a conheo?Ora essa, quem...

    - Akemi!

    Musashi teve um sobressalto.

    A Akemi que ele reencontrara sobre a ponte Oubashi no era mais a jovem pura queum dia tinha conhecido nos pntanos de Ibuki. Embora no fosse ainda to ordinria

    quanto Okoo - a erva daninha venenosa -, Akemi era agora um pssaro solto, a levaro perigo no bico. Quando a vira da ltima vez, lembrou-se Musashi, Akemi choraraagarrada a ele e lhe confessara suas agruras, mas durante todo o tempo, havia umoutro samurai de aparncia vistosa contemplando-os da base da ponte com olharferino. E aquele jovem samurai tinha tambm algum tipo de relao com Akemi,percebera Musashi.

    Musashi se sobressaltara por haver compreendido de imediato a inconveninciadessa companhia para o amigo: Akemi, com seu passado conturbado e gnio difcil,jamais seria a companheira de jornada ideal na estrada da vida para um jovem detemperamento fraco como Matahachi. Juntos estavam destinados a aprofundar-secada vez mais no escuro vale da perdio, era bvio.

    "E por que este homem consegue atrair apenas mulheres perigosas como Okoo eAkemi?", perguntou-se Musashi.

    Matahachi interpretou sua moda o silncio do amigo.

    - Voc se aborreceu, no foi, Musashi? Eu lhe contei tudo francamente porque noachei correto esconder isso de voc. Mas reconheo que, em seu lugar, eu tambmno me sentiria nada bem recebendo uma notcia dessas... - murmurou ele.

    - Est enganado! - disse Musashi. A expresso de choque no seu rosto tinha sidosubstituda agora por um olhar de pena. - Voc apenas me surpreendeu! Voc

    nasceu sob um signo infeliz, Matahachi, ou procura a infelicidade por si mesmo?Depois de sofrer tanto nas mos de Okoo, por qu...?

    Sem vontade de sequer completar a frase, Musashi procurou inteirar-se dascircunstncias que o haviam levado a envolver-se com Akemi. Matahachi ento lhecontou como a encontrara na hospedaria da ladeira Sannenzaka, como tornara a v-la na noite seguinte na montanha Uryu, como num impulso haviam decidido fugirjuntos para a cidade de Edo e como abandonara a me na montanha.

    - Mas deve ter sido praga da minha me: Akemi comeou a queixar-se de dores em

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    conseqncia de um tombo que levou na montanha Uryu, e terminou acamadaquando chegamos a esta casa de ch. Eu me arrependi do que tinha feito, mas jera tarde.

    Matahachi tinha toda a razo do mundo em suspirar como suspirou: ele tinha

    trocado a pura prola do amor materno por um passarinho levando perigo no bico.IV

    - Ah, o senhor estava a!... - interrompeu-os algum nesse momento com vozpachorrenta. Era a velha da casa de ch que se aproximava devagar, como setivesse vindo apreciar o tempo, mos para trs contemplando o cu com expressovaga, tpica dos caducos. - E sua companheira no est aqui com o senhor...

    O tom era ambguo, misto de afirmativa e interrogao.

    Matahachi respondeu no mesmo instante, algo apreensivo:

    - Fala de Akemi? Aconteceu alguma coisa com ela?

    - Ela no est na cama.

    - No?

    - Mas estava at pouco tempo atrs...

    Musashi sentiu instintivamente que algo errado estava acontecendo e disse:

    - V verificar, Matahachi!

    Ele prprio correu atrs do amigo. Espiou o quarto escuro e malcheiroso onde,segundo lhe informaram, Akemi havia estado deitada. A velha da esta-lagem nomentira: a cama estava vazia.

    - E esta agora! - exclamou Matahachi atnito, procurando em torno. - No vejo seuobinem as sandlias em lugar algum. E o dinheiro mido para as nossas despesasde viagem tambm desapareceu! Irra!

    - E os objetos pessoais?

    - O pente e os grampos tambm sumiram! Aonde ser que ela foi e por que meabandonou desse jeito?

    O rosto, onde havia pouco se estampava a firme resoluo de comear vida nova,tinha agora uma expresso insegura.

    Da porta, a idosa mulher murmurou como se falasse sozinha:

    - Que coisa feia... No se ofenda, mas aquela rapariga no estava doente, nosenhor. A bandida se fingia de doente para poder ficar dormindo. Posso estar velha,mas no sou cega...

    Matahachi, que tinha sado da casa, nem a ouvia mais: contemplava vagamente a

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    estrada branca que serpenteava pelo desfiladeiro.

    Deitada sob o pessegueiro e rodeada de flores cadas, quase pretas, a vaca leiteiralembrou-se nesse momento de mugir longa e preguiosamente.

    - Matahachi - chamou Musashi.- Ei! Est me ouvindo?

    - Hum?

    - Que desnimo esse? No sei em que direo Akemi seguiu, mas vamos rezarpara que ela encontre um bom destino e um pouco de paz.

    - Claro...

    Diante do seu olhar aptico, um remoinho acabava de se formar. Uma borboletaamarela apanhada no turbilho girava loucamente dentro da espiral invisvel e foi

    aos poucos sendo arrastada para baixo do barranco.

    - Lembra-se do que me prometeu h pouco? Voc realmente est disposto a cumprira promessa, no est, Matahachi? - insistiu Musashi.

    - Estou, claro que estou! - sussurrou Matahachi por entre os lbios cerrados,contendo o tremor da voz.

    Musashi puxou a mo do amigo, tentando recapturar o olhar fixo num ponto distante.

    - Veja: seu caminho se abriu naturalmente, est-se separando do de Akemi. Calceimediatamente as sandlias e v atrs da sua me. Ela est indo pela estrada que

    desemboca num ponto entre as cidades de Sakamoto e, Outsu. E quando aencontrar, nunca mais a perca de vista, ouviu bem? V logo! - ordenou Musashi.Juntou-lhe as sandlias, as perneiras e os apetrechos de viagem, e levou-os paraum banco a um canto da casa.

    - Tem dinheiro para as despesas de viagem? No? Nesse caso, leve isto: no muito, mas servir para alguma coisa. E se pretende de verdade comear vida novaem Edo, viajaremos juntos at l. Quanto sua me, quero conversar com ela depeito aberto para esclarecer um equvoco. Sigo daqui para Seta levando essamontaria e o espero na ponte Karahashi. Venha ter comigo sem falta, e traga suame com voc. Eu os quero l juntos, ouviu bem, Matahachi?

    NA ESTRADA

    I

    Musashi permaneceu ainda um tempo na casa de ch espera do anoitecer, oumelhor, do retorno da mensageira.

    No tinha o que fazer e a tarde custava a passar. Os dias, com a proximidade dovero, eram longos e ele sentiu braos e pernas amolecidos. Seguindo o exemplo davaca leiteira que se tinha deitado sombra do pessegueiro, Musashi tambm

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    estirou-se num banco sob o beirai.

    Seu dia havia comeado muito cedo e quase no dormira na noite anterior. Sem quedisso se desse conta, adormeceu e sonhou com duas borboletas. Uma era Otsu, elesabia, esvoaando em torno de um ramo de ervilhas-de-cheiro.

    Despertou de chofre e percebeu que os raios solares entravam oblquos pela porta echegavam at o fundo da casa. Vozes speras ecoavam no interior doestabelecimento, fazendo-o imaginar, num instante de atordoamento, que tinha sidotransportado para um lugar diferente enquanto dormia.

    Havia uma pedreira no vale abaixo e, como sempre acontecia s duas da tarde,homens que nela trabalhavam tinham subido at ali para um ch com doces e paraprosear.

    - Que pouca vergonha!

    - Fala dos Yoshioka?

    - E de quem mais?

    - Caram muito no conceito pblico! Com tantos discpulos, no tinham nenhum quesoubesse realmente manejar uma espada.

    - A fama do velho mestre Kenpo fez com que todos os superestimassem. Mas essesgrandes homens, os fundadores de casas famosas, nunca tm filhos altura deles.A decadncia j comea na segunda gerao, e na terceira essas casas geralmentedesaparecem. Ou se sobrevivem, na quarta difcil encontrar algum que mereaser enterrado no mesmo mausolu do fundador da casa.

    - Nem sempre! Eu, por exemplo, continuo altura da minha famlia.

    - Porque vocs sempre foram pedreiros, ora essa. Estou falando de gente famosa,como os Yoshioka. Se duvida, veja o caso do sucessor do nosso antigo kanpaku,Toyotomi Hideyoshi.

    Nesse ponto, um homem, que dizia morar nas proximidades da encosta do pinheiro,afirmou ter presenciado o duelo daquela fatdica manh e a conversa voltou ao temainicial.

    Pelo visto, o pedreiro j tivera a oportunidade de contar o episdio em pblicocentenas de vezes, pois narrava os acontecimentos com extraordinria

    desenvoltura. "Esse homem, o tal Miyamoto Musashi, lutando contra cento e tantosadversrios, fez assim e assim, golpeou deste modo", estava ele contando emtermos exagerados, como se ele prprio fosse o protagonista.

    Por sorte, Musashi dormia ainda a sono solto no ponto alto da narrativa, pois docontrrio teria explodido em gargalhadas e se afastado dali, completamenteconstrangido.

    Acontecia, porm, que num banco sob o alpendre, um outro grupo ouvia a histriadesde o comeo com ostensivo desagrado.

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    O grupo em questo era composto de trs samurais do templo9 Chudo e de um beloe jovem bushi, que tinha sido escoltado at a casa de ch pelos primeiros e sepreparava nesse instante para despedir-se deles. O bem-apessoado bushichamavaa ateno tanto pela aparncia quanto pelo porte e pelo olhar aguado. Vestia umquimono de padronagem vistosa garbosamente arrumado para viagem, usava os

    cabelos longos presos em rabo com um cordo coIorido e levava uma espada longaenviesada s costas.

    Intimidados, os pedreiros abandonaram o banco prximo a esse grupo, e levandoconsigo as chvenas, agruparam-se numa esteira no interior do estabelecimento.Mas o relato do episdio ocorrido sob o pinheiro da encosta tomou novo alentodepois que os trabalhadores se reacomodaram: exploses de riso e louvores aMusashi eram ouvidos de tempos em tempos no meio do grupo.

    Momentos depois, e aparentemente incapaz de conter o mau humor por mais tempo,Sasaki Kojiro voltou-se para os pedreiros e disse:

    - Homens!II

    Surpresos, os trabalhadores da pedreira voltaram-se tambm na direo de Kojiro,todos eles corrigindo suas posturas. Vinham sentindo havia algum tempo aimperiosa presena do jovem samurai vistoso sobrepujando os demais, de modoque responderam em unssono, abaixando as cabeas humildemente:

    - Senhor?

    - Quero que o sujeito que h pouco falava como se fosse um grande entendido emartes marciais d um passo frente - ordenou Kojiro.

    Abanou o leque de metal na direo do grupo e tornou a ordenar:

    - Quanto aos outros, aproximem-se tambm. Nada temam!

    - S... sim, senhor!

    - Ouvi o que diziam e notei que todos louvam Musashi desmedidamente. Fiquem,porm sabendo que vo se haver comigo se continuarem a alardear tais bobagens!

    - S... sim! C... como ...?

    - Musashi no nada extraordinrio! Um de vocs parece ter presenciado oincidente dias atrs, mas saibam que eu, Sasaki Kojiro, fui a testemunha oficial doduelo. Nessa qualidade, pude observar em detalhes o que realmente aconteceu,tanto de um lado como do outro. Na verdade, dias depois do incidente subi ao monteEizan e, no auditrio do templo central Konpon Chudo, fiz uma palestra a um grupode alunos sobre as observaes e as impresses que me ficaram do episdio. Almdisso, fui convidado por diversos sbios vindos de diferentes templos a expor com

    9No originai, lerazamurai:samurais encarregados dos servios administrativos de uma categoria especial de

    templo budista conhecida como monzeki jiin, ou seja, templos cujos abades eram nobres ou prncipes imperiais.Embora se vestissem como monges, estes samurais tinham permisso para contrair npcias.

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    franqueza a minha opinio sobre este assunto.

    - ...

    - Assim sendo, se rudes plebeus como vocs que nada entendem de artes marciais,

    influenciados pelos aspectos superficiais da contenda, pem-se a proclamar queesse indivduo, Musashi, uma personalidade extraordinria e um guerreiro mpar,acabaro transformando em mentira tudo o que expus em minha palestra no grandeauditrio do templo Eizan. E bvio que no dou importncia a comentrios da plebe.Contudo, acho interessante que estes senhores do templo Chudo ouam o que voudizer; sobretudo, creio que pontos de vista distorcidos como o de vocs ofendem omundo. Limpem bem as orelhas e escutem com ateno, que eu agora vou-lhesfazer o favor de relatar os fatos como realmente aconteceram e revelar a verdadeirapersonalidade de Musashi.

    - Est certo... Sim, senhor...

    - Para comear, que tipo de homem Musashi? Do jeito como arquitetou o duelo,depreendo que tinha por objetivo vender o prprio nome. Para se tornar conhecidono mundo das artes marciais julgo que Musashi resolveu provocar a casa Yoshioka,a mais famosa de Kyoto. Envolvidos nesse ardiloso esquema, os Yoshiokasserviram apenas de trampolim para Musashi alcanar seus objetivos.

    - ...?

    - Por que os Yoshioka? Porque era sabido que o estilo Yoshioka estava decadentenos ltimos tempos, nada mais restando do vigor dos dias do seu ilustre fundador,Yoshioka Kenpo. A casa era uma rvore apodrecida, um doente em estado terminal.Se abandonada prpria sorte, estava fadada destruir-se. Musashi apenas deu-

    lhe um empurro e apressou a runa. Qualquer um teria capacidade de derrubar umacasa nessas condies, mas nenhum guerreiro a isso tinha-se disposto at agora,primeiro, porque a academia Yoshioka j no merecia a ateno de ningum donosso meio; segundo, porque por uma espcie de acordo tcito, a classe guerreiratinha decidido poupar ao menos essa academia da destruio em nome dacamaradagem que deve existir entre samurais e em respeito memria do mestreKenpo. Aproveitando-se dessas circunstncias, Musashi representou seu papel:explorou os fatos a seu favor, aumentou a importncia deles, mandou erguer umaviso pblico em rua de grande movimento e fez com que seu nome alcanassegrande divulgao.

    - ...?

    - So tantos os exemplos de vilania e de manobras covardes que nem vale a penaenumer-los. Basta dizer que, por ocasio dos duelos tanto contra mestre Seijuro,como tambm contra mestre Denshichiro, Musashi nunca se apresentou noshorrios prometidos. Alm disso, no duelo em torno do pinheiro solitrio, ele tomouum atalho e recorreu a estratagemas escusos em vez de atacar de frente,corajosamente.

    - ...

    - Do ponto de vista numrico, sem dvida alguma os Yoshioka eram muitos,

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    enquanto Musashi estava sozinho. Mas aqui tambm se notam vestgios da malciae da capacidade de auto promoo deste indivduo: enfrentando sozinho os seusadversrios, Musashi conseguiu que a opinio pblica ficasse inteira do seu lado. Sequerem porm saber a minha, digo que este ltimo duelo nada mais foi que umabrincadeira de crianas. Musashi agiu o tempo todo com astcia e impertinncia e,

    no momento azado, fugiu. Reconheo que hbil, mas de um jeito brbaro. Eleporm est longe, muito longe, de merecer a reputao de espadachim magistral. Sequerem qualific-lo fora na categoria dos magistrais, posso dizer que um fujomagistral, um mestre na arte da fuga: a velocidade com que foge , sem dvida,incomparvel.

    III

    Kojiro discorria com admirvel fluncia e tudo levava a crer que falara desse mesmojeito no grande auditrio do monte Eizan.

    - Leigos em geral podem pensar que o duelo de um contra dezenas seja algo

    extraordinrio. Nada disso: algumas dezenas de pessoas juntando foras no omesmo que a capacidade dessas pessoas multiplicada algumas dezenas de vezes.

    Partindo deste raciocnio, Kojiro desenvolveu sua argumentao na qualidade deespecialista em artes marciais. E era realmente fcil para ele, um simplesespectador, criticar de todas as formas possveis a formidvel luta travada porMusashi naquele dia.

    O extermnio do pequeno Genjiro, o representante da casa Yoshioka, mereceu emseguida sua veemente condenao. Ultrapassando o campo da crtica, Kojiropassou a afirmar categoricamente que os atos de Musashi eram imperdoveis, tantodo ponto de vista humano, como da moral guerreira e do prprio esprito da esgrima.

    Por fim, ps-se a falar do passado de Musashi, chegando at a mencionar o nomeda matriarca dos Hon'i-den e a afirmar que a referida anci jurara mat-lo.

    - Se pensam que minto, perguntem a essa velha senhora Hon'i-den, de cuja boca,alis, eu soube de todos esses fatos: eu convivi com ela alguns dias no temploChudo quando por l me hospedei. Como pode ser digno de admirao um indivduoque mereceu o dio e o desprezo de uma simples e honesta velhinha de quase 60anos de idade? Se digo tudo isto porque uma dvida me trespassou: moralmentefalando, no seria nocivo permitir a gIorificao de um indivduo de passado tosombrio? Quero, porm, deixar bem claro um ponto: no tenho nenhum tipo derelacionamento com os Yoshioka, nem especial motivo para odiar Musashi. Apenas

    pretendi criticar corretamente a situao na qualidade de guerreiro que tem profundoapreo pela esgrima e que procura com empenho aperfeioar-se nesse caminho.Entenderam, bando de pedreiros ignorantes? - concluiu Kojiro.

    O longo discurso aparentemente ressecou-lhe a garganta, pois tomou um grandegole de ch e voltou-se para os prprios companheiros:

    - Senhores, o sol vai descambando no cu.

    A isso, os samurais do templo Chudo, que tinham comeado a se impacientar,ergueram-se do banco dizendo:

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    com certeza originado na percepo de que Musashi ouvira integralmente o discursoque havia pouco fizera aos pedreiros.

    Logo, Kojiro retomou sua habitual atitude arrogante, mas no havia como negar: eleficara consternado por um breve momento.

    - Ora essa... mestre Musashi! No sabia que voc estava aqui - disse.

    - Reencontramo-nos, no mesmo? - observou Musashi.

    - E verdade! Alis, seu desempenho por ocasio do nosso ltimo encontro foiesplndido, deixe-me dizer-lhe, pareceu sobre-humano. E, ao que me parece, nemao menos se feriu com gravidade. Congratulaes! - acrescentou Kojiro numimpulso, desesperado por agir com naturalidade, mas amargando a bviadiscrepncia entre esta afirmativa e as anteriores, irritado sobretudo com as palavrasque acabavam de lhe saltar da boca.

    Musashi era a ironia em pessoa. A aparncia e a atitude de Kojiro sempre odeixavam irnico, no sabia explicar por qu. Com forada cortesia, disse:

    - Quero agradecer seus bons prstimos como mediador no episdio de h dias. Etambm as severas crticas minha pessoa que, deitado ali, ouvi causalmente. Devehaver diferenas entre o que eu acredito que seja a minha imagem pblica e a realopinio que o pblico faz de mim. No entanto, so raras as oportunidades de ver-sea si prprio pelos olhos dos outros: s posso lhe ser grato, quando penso que vocme deu essa oportunidade enquanto eu dormitava. Nunca me esquecerei disso.

    - ...

    "Nunca me esquecerei disso." Um arrepio percorreu a espinha de Kojiro.Aparentemente era um calmo agradecimento, mas para Kojiro, soou como umaprovocao, um desafio que teria de enfrentar um dia qualquer no futuro.

    A frase ocultava ainda um outro sentido. Musashi parecia estar-lhe dizendo: "Novou discutir com voc agora, mas..."

    Eram ambos samurais que no admitiam falsidades, estudantes de artes marciaisincapazes de esquecer disputas no resolvidas. No entanto, no fazia sentidodiscutir naquele lugar quem estava certo e quem errado. O assunto, alm disso, eraimportante demais para ser resolvido dessa maneira. Pelo menos para Musashi, oepisdio do pinheiro da encosta era o grande feito de sua vida, um ato revestido depureza, um grande passo frente no caminho da espada. Nele Musashi no viaresqucios de imoralidade, nem um nico aspecto de que pudesse envergonhar-se.

    Mas visto pelo prisma de Kojiro, o episdio provocava as observaes que j se viu.E nesse caso, no havia outra soluo no momento que a escolhida por Musashi:ocultar nas palavras uma promessa, faz-lo compreender que estava feito umacordo. "No vou discutir com voc agora, mas nunca me esquecerei disso."

    Embora bastante perturbado, Sasaki Kojiro por seu lado sabia que no havia ditodisparates: tinha dado a opinio justa de um observador imparcial, achava ele. Almdisso, Kojiro estava longe de se considerar inferior a Musashi, muito embora tivesse

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    testemunhado sua esplndida atuao no episdio do pinheiro solitrio.

    - Muito bem. Em resposta sua declarao de que nunca se esquecer disso, eutambm lhe declaro que sempre me lembrarei de suas palavras. No se esquea deverdade, Musashi!

    Musashi sorriu em silncio e balanou a cabea, concordando.

    ALMAS GMEAS

    I

    Entreabrindo o portozinho, Joutaro berrou para dentro da casa:

    - J cheguei, Otsu-san!

    Sentou-se depois na beira do crrego cristalino que corria ao lado da casa,mergulhou os ps nele e limpou as canelas sujas de terra.

    "Luar Serrano" - dizia uma placa de madeira pregada no alto da casa, no ponto emque se juntavam as duas guas do telhado coberto de colmo. Filhotes de andorinhaali chilreavam ruidosamente, saltitando e sujando de fezes brancas tudo em tornoenquanto espiavam Joutaro lavando os ps.

    - Brrr! Que gua gelada! - reclamou o menino franzindo o cenho. Mesmo assimcontinuou a chapinhar por um bom tempo na correnteza.

    O riacho nascia perto dali nos jardins do templo Ginkaku-ji, e suas guas, diziam,eram mais cristalinas que as do grande lago Dongting Hu, mais geladas que o luarsobre o Penhasco Vermelho da China.

    Mas a terra j estava morna e debaixo das ndegas do menino havia pequenasvioletas amassadas. Olhos semicerrados, Joutaro parecia contente consigo prprio ecom a sorte que lhe coubera de existir numa paisagem to bonita.

    Momentos depois, o menino enxugou os ps na relva e rodeou a casa, dirigindo-se

    para o lado da varanda. A cabana pertencia a um administrador do templo Ginkakuji,mas achava-se momentaneamente desocupada, de modo que Otsu, com aintervenincia da casa Karasumaru, fora autorizada a ocup-la desde o dia seguinteao do seu ltimo encontro com Musashi, no monte Uryu.

    Ela havia sido minuciosamente informada sobre o andamento do confronto em tornodo pinheiro da encosta por Joutaro, que, para tanto, no poupara esforos epercorrera dezenas de vezes a distncia entre o palco do duelo e a cabeceira dadoente,

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    A razo para tamanho esforo era uma s: o menino acreditava firmemente quemanter Otsu informada sobre o bom desempenho de Musashi era o melhortratamento para a sua doena, muito mais eficaz que qualquer outro remdio.

    Prova disso eram as cores que voltavam cada vez mais vivas ao rosto de Otsu.

    Joutaro chegara a temer o pior por algum tempo: se Musashi tivesse sido morto sobo pinheiro solitrio, Otsu o teria seguido, tinha certeza o menino. Hoje, porm, ela jestava recuperada o suficiente para passar algumas horas por dia sentada a umaescrivaninha...

    - Estou com fome! O que voc esteve fazendo, Otsu-san?

    Otsu recebeu com olhar sorridente o menino sempre to vivaz e respondeu:

    - Passei a manh inteira sentada aqui mesmo. - Voc no se cansa de no fazernada, Otsu-san?

    - No. Eu posso estar aqui parada, mas meu esprito vagueia e se diverte cominmeros pensamentos. Falando nisso, Jouta-san, por onde andou voc desdecedo? Dentro dessa caixa restam ainda alguns bolinhos de arroz dos que nos forammandados ontem. Corna-os.

    - Vou deixar os bolinhos para mais tarde porque primeiro quero lhe contar uma coisaque vai deix-la feliz, Otsu-san.

    - Que coisa?

    - a respeito de Musashi-sama...

    - Que tem ele?

    - Disseram-me que ele est no monte Eizan.

    - Em Eizan? No diga!...

    - Nestes ltimos dias eu andei perguntando por ele em todos os lugares possveis eimaginveis. E hoje, acabei descobrindo: ele est hospedado no templo Mudoji, notorreo oriental.

    - Sei... Isto quer dizer que ele se salvou realmente.

    - E j que o descobrimos, vamos at l o mais rpido possvel, antes que ele resolva

    desaparecer de novo. Vou comer os bolinhos agora e me arrumar em seguida.Arrume-se tambm, Otsu-san, e vamos ao encontro dele no templo Mudoji.

    II

    Otsu tinha desviado o olhar e contemplava distrada o cu alm do beirai da cabana.

    Joutaro acabou de comer seus bolinhos, apanhou todos os seus pertences e tornoua convidar:

    - Vamos embora, Otsu-san!

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    Otsu, porm, no fez meno de erguer-se.

    - Que foi, agora? - perguntou o menino, impaciente.

    - Acho melhor no irmos ao templo Mudoji, Jouta-san.

    - Ser que ouvi bem? - perguntou o menino, em tom de quase zomba-ria. - E porqu, posso saber?

    - Porque no devemos.

    - Est vendo? por isso que eu detesto as mulheres! Voc est com tanta vontadede v-lo que, se pudesse, sairia voando ao encontro dele, mas faz essa cara sria ecomea a dizer que no quer ir, mal descobre o seu paradeiro.

    - verdade. Como voc mesmo disse, estou morrendo de vontade de voar ao seuencontro, mas...

    - Ento vamos, ora essa!

    - Preste ateno, Jouta-san: h dias, quando encontrei Musashi-sama no monteUryu, pensei que estivesse me despedindo dele para sempre e lhe revelei todos ossentimentos guardados em meu corao. Ele tambm achava que ia morrer, pois medisse que nunca mais me veria depois daquela noite.

    - Mas j que ele est vivo, por que no ir ao seu encontro?

    - Nada disso,

    - No podemos?

    - O duelo em torno do pinheiro da encosta terminou, mas ns no sabemos seMusashi-sama considera-se vencedor. Pode ser que ele esteja se ocultando nomonte Eizan. E quando penso no que ele me disse em nosso ltimo encontro... Almdisso, eu realmente me despedi dele naquela noite quando soltei a manga do seuquimono e o deixei ir-se. por isso que tenho de esperar por uma definio da partedele antes de ir ao seu encontro.

    - E que que voc vai fazer se ele no vier procur-la nos prximos 10 ou 20 anos?

    - Continuo do mesmo jeito que estou agora.

    - Sentada, contemplando o cu?- Isso mesmo.

    - Que mulher mais estranha!

    - Voc no deve estar compreendendo nada, mas eu estou.

    - Compreendendo o qu?

    - O que vai no corao dele. Sabe, depois de me despedir de Musashi-sama no

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    monte Uryu, passei a compreend-lo muito melhor. Sabe por qu? Porque hojeconfio nele. Eu sempre o amei, desesperadamente. Mas se voc me perguntar se eurealmente confiava nele, no posso afirmar com certeza que sim. Mas agora diferente. Na vida ou na morte, perto ou longe um do outro, nossas almas estarounidas, inseparveis como os pssaros gmeos do poema chins, ou como as duas

    rvores de ramos entrelaados que crescem lado a lado. E porque acredito nissofirmemente, no sinto falta dele: rezo apenas para que ele tenha sucesso nocaminho que escolheu.

    Joutaro, que a vinha ouvindo em silncio, interrompeu-a nesse momento aos berros:

    - Voc est mentindo! As mulheres mentem o tempo todo! Est bem: jure ento quenunca mais vai chorar de saudade! Alis, pode chorar quanto quiser: eu no voumais me incomodar!

    Irritado e sentindo desprezada toda a sua colaborao dos ltimos dias, o meninocalou-se.

    Mal a noite caiu, a luz avermelhada de um archote brilhou do lado de fora da casa ealgum bateu na portinhola.

    III

    O samurai vindo da manso Karasumaru entregou uma carta a Joutaro e explicou:

    - Isto nos foi entregue por mensageiro na manso. de Musashi-sama e estendereado a Otsu-san: ele por certo imaginou que ela ainda permanecia conosco.Levamos o fato ao conhecimento do nosso amo, e ele nos ordenou queentregssemos a correspondncia imediatamente jovem Otsu. O senhorconselheiro tambm recomenda a ela que se cuide.

    Em seguida, o samurai mensageiro foi-se embora. Com a carta na mo, Joutaromurmurou:

    - a letra do meu mestre! E pensar que se ele tivesse morrido no duelo, eu nuncamais veria recados iguais a este... Aqui diz: "A jovem Otsu", e no "Ao meninoJoutaro".

    Otsu aproximou-se:

    - Jouta-san, a carta que o mensageiro da manso trouxe no da parte de Musashi-sama?

    - Acertou - respondeu Joutaro escondendo-a nas costas, ainda ressentido. - Masacho que voc no se interessa mais por essas coisas.

    - Mostre-me!

    - No!

    - No seja maldoso, Jouta-san! - insistiu Otsu, prestes a chorar de aflio.

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    Aprontou-se rapidamente, redigiu notas de agradecimento ao proprietrio da cabana,ao abade do templo Ginkakuji e a todos a quem devia favores e, calando assandlias, foi para fora.

    Voltou-se ento para Joutaro, que continuava sentado no mesmo lugar com

    expresso amuada, e disse:- Vamos logo, Jouta-san. Voc j est pronto, no est? Venha de uma vez que eupreciso fechar a casa.

    - Ah... vamos a algum lugar? Eu no sabia... - ironizou o amuado menino, ao queparecia pregado ao lugar.

    IV

    - Voc se aborreceu, Jouta-san?

    - Claro! E tenho razo de sobra para isso!

    - Ora!... E por qu?

    - Porque voc faz tudo do seu modo, no tem considerao pelos outros! No sei selembra, mas voc acabou de recusar-se a me acompanhar quando a convidei a ircomigo ao encontro do meu mestre!

    - Mas eu expliquei meus motivos, no expliquei? Agora, porm, diferente: Musashi-sama me convida a ir ao encontro dele neste bilhete...

    - ... que voc leu sozinha e nem teve a considerao de me mostrar!

    - Ah, verdade! Desculpe-me, Jouta-san!

    - E tambm nem precisa mais: perdi a vontade de ler!

    - No se zangue tanto e leia, Jouta-san, por favor! Veja, a primeira vez queMusashi-sama me escreve! E diz ainda gentilmente que espera por mim. Nunca emtoda a minha vida tive uma alegria to grande! Em nome desse maravilhosoacontecimento, desfaa seu mau humor e leve-me a Seta, por tudo que lhe sagrado!

    - ...

    - Ou ser que voc no quer mais rever seu mestre?Joutaro apanhou em silncio a espada de madeira, prendeu-a de vis na cintura,amarrou s costas a pequena trouxa arrumada h pouco, saltou da varanda e dissecom agressividade atordoada Otsu:

    - Se quer ir, vamos de uma vez! E se continuar a parada feito uma tonta, tranco aporta e a deixo para trs!

    - Como voc bravo, Jouta-san!

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    E assim os dois iniciaram a jornada ao anoitecer daquele dia pelo caminho quetranspunha o monte Shiga. No havia ningum na estrada, mas em vista daexploso temperamental de h pouco, Joutaro continuou andando em obstinadosilncio, sempre na frente. Arrancou folhas de rvores prximas, levou-as aos lbiose assobiou, cantou baladas, chutou pedregulhos, pareceu enfim to irrequieto que

    Otsu finalmente lhe disse:- Jouta-san... Acabo de me lembrar que tenho uma coisa gostosa comigo. Quer?

    - Que coisa?

    - Balas.

    - Hum...

    - Lembra-se dos doces que Karasumaru-sama nos mandou anteontem? Poissobraram estes...

    Como o menino continuava a andar em silncio, sem aceitar ou recusar a oferta depaz, Otsu apressou o passo para alcan-lo, suportando o melhor que pde a faltade ar provocada pelo pequeno esforo:

    - Voc no quer, Jouta-san? Eu comeria alguns com voc.

    S ento o menino fin