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Angus Wright

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  • Topoi, v. 13, n. 24, jan.-jun. 2012, p. 136-161. 136

    Descendo a montanha e seguindo para o norte: como a degradao do solo e os pesticidas sintticos orientaram a trajetria da

    agricultura mexicana ao longo do sculo XX*

    Angus WrightCalifornia State University, Sacramento

    Sacramento, CA, Estados Unidos da [email protected]

    RESUMOA estratgia de desenvolvimento do Mxico no sculo XX promoveu novos investimentos agrcolas nos desertos do norte e em vales tropicais nas terras baixas. A faco poltica conhecida como Dinastia de Sonora desempenhou um papel poltico e intelectual fundamental nesta tendncia. Alm disto, uma crise durante o governo Crdenas (1934-40) conduziu a um acordo entre os EUA, a Fundao Rocke-feller e o presidente mexicano eleito em 1940 para elaborar um programa de pesquisa agrcola conhe-cido como A Revoluo Verde, que dominou as polticas agrcolas do pas, impactando os padres de desenvolvimento ao redor do mundo. A estratgia era baseada em certa viso dos solos mexicanos e na disponibilidade de pesticidas e fertilizantes sintticos. Combinando consulta a arquivos, fontes secundrias, observaes e entrevistas, o presente artigo examina as profundas razes histricas desses acontecimentos e suas consequncias, tanto as desejadas como as imprevistas.Palavras-chave: Revoluo Verde; Mxico; histria agrria; histria ambiental; sculo XX.

    ABSTRACTMexicos strategy of development in the twentieth century tended to drive new agricultural investments into Mexicos northern deserts and a few lowland tropical valleys. A conjuncture of factors created this trend. The political faction known as the Sonoran Dynasty that dominated Mexicos post-revolutio-nary governments played a critical political and intellectual role. A political crisis resulting from a chal-lenge to the Sonoran vision during the Cardenas government (1934-40) led to an agreement between the United States government, the Rockefeller Foundation, and the Mexican President elected in 1940 to create a program of agricultural research. The development strategy based on this research, which came to be called The Green Revolution, would dominate Mexican agricultural policies and would also have a major impact on development patterns around the world. Using a combination of archival, secondary, observational, and interview methods, this article examines the deep historical roots of these events and their intended and unintended consequences.Keywords: Green Revolution; Mexico; agrarian history; environmental history; 20th century.

    * Traduo do ingls de Srgio Lamaro. Uma verso abreviada deste artigo ser publicada em BOYER, Chris (Org.). A land between waters: environmental histories of Modern Mexico. Tucson: University of Arizona Press. No prelo.Artigo recebido em 9 de abril de 2012 e aceito em 6 de maio de 2012.

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    Descendo a montanha e seguindo para o norte: como a degradao do solo e os pesticidas sintticos orientaram a trajetria da agricultura mexicana ao longo do sculo XX

    Angus Wright

    A paisagem fsica do Mxico foi transformada pelo modo com o que o governo mexicano respondeu ao velho problema da degradao do solo do pas. A resposta envolveu uma opo por obras de irrigao em larga escala e pelo uso de pesticidas e fertilizantes sintticos. Essa transformao da paisagem tem mltiplas implicaes econmicas, polticas e culturais, no apenas para a sociedade mexicana, mas tambm para todo o planeta. Dirigentes mexicanos e consultores tcnicos dos Estados Unidos justi-ficaram o caminho escolhido para o desenvolvimento agrcola com base numa viso de que os solos do Mxico eram naturalmente pobres e profundamente degradados pelo uso contnuo e excessivo. A estratgia foi apoiada com determinao pela Fundao Rockefeller e pelo governo dos Estados Unidos porque ambos consideraram-na desejvel para o Mxico e porque o caso mexicano era visto como uma espcie de campo de testes experimental para a poltica norte-americana, que poderia se mostrar alta-mente favorvel s metas comerciais dos EUA e de sua poltica externa. Nesse sentido, ela foi, talvez, o exemplo mais significativo de um esforo maior para promover os objetivos do governo e dos interesses privados norte-americanos em todo o mundo, mediante o recurso competncia tecnolgica e cientfi-ca, exercida, ao menos em teoria, de acordo com os interesses mtuos de todos os envolvidos.

    Embora tivesse razes mais profundas, o projeto desta estratgia especfica guardava uma direta relao com a situao poltica no Mxico no incio da Segunda Guerra Mundial e tornou-se a frmula para aquilo que viria a ser chamado de Revoluo Verde, que transformou economias e paisagens em todo o mundo e que se tornou o modelo de desenvolvimento agrcola internacional e elemento central da poltica externa norte-americana no perodo da Guerra Fria. Ela representou um importante fator, bastante analisado, para o grande xodo da populao rural em todo o mundo. No Mxico, como em todo o mundo tropical e subtropical, um de seus resultados foi a tendncia a fazer o desenvolvimento econmico descer das montanhas para as plancies midas e os vales desrticos, o que acarretou uma gama de consequncias polticas, culturais e econmicas1.

    No sculo XX, considerando as reas tradicionais da agricultura mexicana naturalmente inadequa-das e esgotadas pelo uso, os dirigentes mexicanos e seus assessores estrangeiros olharam para o norte, na direo dos vales desrticos onde projetos de irrigao em larga escala, financiados pelo Estado, puderam tirar vantagem da terra que fora relativamente pouco usada e pouco danificada , bem como na direo das plancies tropicais midas, mais para o sul. As tecnologias agrcolas desenvolvidas para aproveitar esses vales desrticos ao norte e os solos tropicais midos dependiam integralmente do emprego de fertilizantes e pesticidas sintticos recm-inventados. Este texto conta a histria de como a abordagem dominante para lidar com a degradao do solo no Mxico tornou-se de tal maneira en-tremeada com o uso do pesticida que acabou moldando o destino do campo e da populao rural do Mxico.

    Os novos pesticidas sintticos, alm de representarem uma parte essencial do que viria a ser cha-mado de o pacote das tecnologias da Revoluo Verde, tambm pareciam oferecer uma soluo apa-rentemente simples para doenas humanas transmitidas por insetos, nascidas no Velho Mundo, parti-cularmente a malria, que ainda hoje no podem ser controladas pela vacinao. Essas doenas foram introduzidas no Mxico durante a Conquista e tendiam a impelir densas populaes humanas das plancies midas para as zonas mais elevadas, afastando-as das reas tropicais midas, infestadas de mosquitos. Agrnomos, sanitaristas e polticos acreditavam que se pudessem ser controladas as pragas que afetavam as colheitas tropicais e as doenas epidmicas que grassavam entre a fora de trabalho agrcola, uma nova era se abriria para os trpicos midos.

    Foi com base nessa viso dos problemas do Mxico com solos e doenas que, por volta de meados do sculo XX, os agroqumicos sintticos tornaram-se uma ferramenta importante na superao de uma

    1 Essa histria contada com muito mais detalhe, mas com nfase diferente, em WRIGHT, Angus. The death of Ramon Gonzalez: the modern agricultural dilemma. 2. ed. Austin: University of Texas Press, 2005.

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    variedade de barreiras que se erguiam no caminho de um uso mais completo dos recursos das terras do Mxico e de sua populao humana cada vez maior. Solos esgotados podiam ser deixados para trs e novas terras foram disponibilizadas para produzir nas fronteiras econmicas, em expanso. Percebeu-se que uma civilizao humana muito antiga tinha ampliado as fronteiras de uma terra recm-produtiva e de assentamentos humanos florescentes.

    Isso no se demonstraria um caminho to direto para a prosperidade e a felicidade, como pare-cera na metade do sculo. A estratgia de desenvolvimento econmico que abriu novas fronteiras foi consideravelmente afetada por uma combinao de problemas ecolgicos, econmicos e de sade ine-rentes s tecnologias recm-adotadas na produo agrcola. Embora permitisse um rpido crescimento econmico, ela tambm mantinha, tirava vantagem e, de alguma maneira, ampliava as j profundas desigualdades na sociedade mexicana. O incio do sculo XXI encontrou muitos mexicanos buscando novos arranjos polticos, enquanto, ao mesmo tempo, procuravam por solues mais sustentveis para o problema ancestral de manuteno da sade do solo e, com ele, da sade da sociedade humana.

    O cenrio pr-colombiano e colonial

    Os povos da antiga Mesoamrica interessavam-se profundamente pelo problema da eroso do solo. Na condio de inventores de uma ampla gama das plantas agricultveis do mundo, particularmente o milho, os agricultores mesoamericanos mantinham uma complexa relao com a terra cultivada, que data de mais de novecentos anos antes da chegada dos espanhis2. Os povos pr-colombianos, por exemplo, construram terraos projetados para maximizar a produo, ao mesmo tempo que protegiam os declives contra a eroso. Alguns deles so usados ainda hoje, e os restos de muitos ainda podem ser reconhecidos. H tambm bastante evidncia das dificuldades de se controlar a eroso do solo e de seus fracassos enormes em fazer isso3. Arquelogos identificaram que importantes momentos da perda de solo coincidiram com o incio do florescimento da agricultura baseada no milho, e talvez tenham sido causados por ele4. Tanto o sucesso quanto o fracasso deixaram uma vvida herana de conhecimento e de tcnicas entre os agricultores mexicanos tradicionais, voltada para a proteo dos solos contra a eroso e para a manuteno ou a restaurao da fertilidade perdida. Recente pesquisa sugere, por exem-plo, que os antigos maias experimentaram momentos de grave eroso no comeo do Perodo Clssico, mas aparentemente aprenderam a reduzir as taxas de eroso enquanto a populao aumentava, em vez de, conforme se pensava anteriormente, terem sofrido com taxas de eroso mais acentuadas durante o Perodo Clssico at o colapso5.

    Independentemente do que possa ter ocorrido antes da sua chegada, os espanhis ficaram profun-damente impressionados com as habilidades produtivas das culturas que encontraram.

    2 RABIELA, Teresa Rojos. Agricultura indgena: pasado y presente. Cidade do Mxico: Ediciones de la Casa Chata, 1994.3 WILKEN, Gene. Good farmers: traditional agricultural resource management in Mexico and Central America. Berkeley: University of California Press, 1987.4 BUNNEY, Sarah. Prehistoric farming caused devastating soil erosion. New Scientist, v. 125, n. 1.705, p. 20, 1990; OHARA, S. L. et al. Accelerated soil erosion around a Mexican highland lake caused by prehispanic agriculture. Nature, v. 362, n. 6.415, p. 48-51, 1993; FISHER, C.T. et al. A reexamination of human-induced environmental change within the Lake Patzcuaro Basin, Michoacan, Mexico. Proceedings of National Academy of Sciences, v. 100, n. 8, p. 4957-4962, 2003; ANSELMETTI, Flavio S. et al. Quantification of soil erosion rates related to ancient Mayan deforestation. Geology, v. 35, n. 10, p. 915-918, 2007.5 ANSELMETTI, Flavio S. et al. Quantification of soil erosion, op. cit. p. 917.

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    Uma () bvia constatao dos invasores espanhis era que as paisagens de cultivo e assentamento humano no Mxico eram esteticamente agradveis, geridas com cuidado e manifestamente prsperas. Os habitantes indgenas do Mxico pr-conquista tinham construdo sistemas de horticultura produtiva, meticulosamente intensivos, quase sempre irrigados, talhados para cada uma das principais regies ecolgicas: as plancies litorneas, a base dos morros e as amplas bacias semiridas, cercadas por vulces do plat elevado. Esses sistemas de cultivo eram to bem-sucedidos que os habitantes produziam grandes quantidades de alimentos para consumo prprio e at mesmo excedentes6.

    Os diferentes e engenhosos mtodos usados para alcanar esse impressionante resultado refletiam uma resposta historicamente evoluda para as oportunidades e os desafios oferecidos pela paisagem do Mxico, cuja geografia fsica, imponente e variada, criara uma extraordinria diversidade de biomas, espcies e solos. A atividade vulcnica, presente em boa parte da regio, deu origem a alguns solos extra-ordinariamente frteis, ricos sobretudo em fosfato e potssio, embora muitas vezes pobres em nitrog-nio. Os vulces tambm criaram muitos solos excessivamente estreis, duros demais ou txicos demais para a agricultura, e mesmo em pleno sculo XX (como a erupo, em 1942, no estado de Michoacn, daquele que seria conhecido como Paricutn), em alguns lugares vulces simplesmente destruram ter-ras frteis sob toneladas de rocha inaproveitveis ou lixo txico. Essa elevada produtividade, que deriva da combinao de altos ndices de chuva com a intensa luz solar tropical, contribui para a presena de grandes quantidades de matria orgnica nos solos de diversas regies, mas a mesma chuva pesada que alimenta uma luxuriante vida vegetal frequentemente cai sob a forma de tempestades violentas e torren-ciais, capazes de provocar uma rpida eroso do solo. Chuvas fortes podem tambm carregar consigo os nutrientes do solo, especialmente quando ele est sendo usado para cultivo. A estrutura granular particular dos solos em muitas regies por exemplo, os planaltos mixtecas de Oaxaca torna-os peculiarmente propensos eroso. Solos desrticos potencialmente frteis so quase sempre o produto de milhes de anos de depsito aluvial, proveniente de terrenos mais elevados e que floresce, de forma exagerada, com a irrigao. Esses solos, contudo, tendem a estar sujeitos a graves problemas de salinida-de e lenis dgua suspensos (onde superfcies impermeveis sob a camada superficial do solo acarre-tam uma drenagem pobre e o acmulo de gua salgada na altura onde razes deveriam se desenvolver), quando empregados para fins de agricultura intensiva. Em boa parte do Mxico, a topografia escarpada e acidentada basta para acarretar problemas significativos de eroso, com a chuva que lava o solo das encostas cultivadas, asfixiando os ricos solos de pastagens e vales com sedimentos que so, s vezes, in-frteis, e enviando gua de chuva que escorre das encostas dos montes para os terrenos mais planos. Ao mesmo tempo, sedimentos liberados pelas chuvas, ao descerem pelas encostas das montanhas, podem, algumas vezes, fornecer novos nutrientes aos solos dos vales7.

    Um aparente paradoxo da histria da Mesoamrica anterior invaso espanhola advm da relao de culturas sofisticadas com as caractersticas dos solos mexicanos. Acredita-se que somente as reas de planalto que se encontravam sob o amplo controle asteca teriam reunido uma populao da ordem de 14 milhes de pessoas8. O paradoxo que densidades demogrficas notavelmente elevadas podiam ser sustentadas por sociedades agrcolas numa base territorial a qual, da perspectiva de muitos nos scu-los XIX e XX, parecia incapaz de faz-lo. A resoluo do paradoxo encontra-se na elevada fertilidade potencial de um terreno que, ao mesmo tempo, era muito vulnervel degradao. A paisagem que

    6 RICHARDS, John. The unending frontier: an environmental history of the early modern world. Berkeley: University of California Press, 2003. p. 300.7 BATTALLA, Angel Bassols. Recursos naturales de Mxico: teora, conocimiento y uso. Cidade do Mxico: Editorial Nuestro Tiempo, 1982.8 RICHARDS, John. The unending frontier, op. cit. p. 340.

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    observadores em tempos recentes viam no Mxico era uma paisagem transformada pelo uso huma-no. A capacidade de reavaliar tanto a fertilidade quanto a vulnerabilidade dos solos do Mxico um elemento-chave para compreender a histria da nao.

    Os trabalhos do gelogo Sherburne Cook, dos historiadores Woodrow Wilson Borah e Lesley Bird Simpson, e do gegrafo Carl Sauer, em meados do sculo XX, moldaram originalmente esta explica-o, a fim de usar a histria da eroso do solo, combinada com o registro documental, para descerrar a histria do colapso demogrfico no Mxico (e, por extenso, no Novo Mundo como um todo), abrindo nossos olhos para interpretaes inteiramente novas da histria do Mxico e de todas as Amricas9. Isso, por sua vez, ajudou a iluminar o caminho para a histria social de Franois Chevalier e para a etno--histria de Charles Gibson, William Taylor, James Lockhart e outros10. O trabalho inovador de Eli-nor Melville, aluna de Gibson, em uma das mais importantes obras da nova safra da histria ambiental, levou-nos a voltar aos temas desenvolvidos por Cook e Borah, oferecendo-nos, ao mesmo tempo, um quadro mais completo e detalhado do efeito da Conquista na paisagem mexicana e em seus povos11.

    A despeito da fora dessa corrente dos estudos histricos, nem sempre os historiadores reconheceram o papel da eroso do solo, nem suas complexidades e contradies potenciais. Isso se deve parcialmente sua incapacidade de compreender integralmente a efetividade das tcnicas de administrao intensivas empregadas pelos agricultores pr-colombianos e os danos causados pela Conquista. Com consequn-cias mais diretas e talvez mais cruciais para o Mxico e boa parte do mundo, agrnomos e cientistas agrcolas no foram capazes de atingir esse nvel de compreenso. Predisposies ideolgicas e objetivos polticos dos observadores no sculo XX referentes ao que percebiam como incapacidade do Mxico de alimentar-se de forma confivel quase sempre embaaram a viso formada acerca do passado do pas.

    Como vimos, a avaliao inicial dos colonizadores espanhis acerca da agricultura indgena era de franca admirao pela prosperidade manifesta que os povos mexicanos tinham atingido. O exemplo que se tornou mais evidente e que mais impressionou os espanhis foi a agricultura chinampa, de onde provinha a maior parte dos alimentos, das plantas medicinais e, o que no era trivial do ponto de vista asteca, das flores consumidas em Tenochtitln (a moderna Cidade do Mxico), ento uma das maiores cidades do mundo. Os campos artificialmente construdos dos chinampas, estabelecidos no leito raso do lago Texcoco, criaram uma das formas mais produtivas de agricultura j inventadas pelos seres hu-manos, que s encontrava rival nos campos de arroz intensivamente cultivados da sia, ou nos sistemas modernos, ainda mais intensivamente baseados em produtos qumicos. At imediatamente antes da Segunda Guerra Mundial, a agricultura chinampa fornecia a maior parte dos alimentos e das flores para o ento 1 milho de habitantes da Cidade do Mxico, embora a maior parte da gua de que o sistema dependia tivesse sido drenada, apropriada para outros usos, e estivesse poluda12. Esse apenas um exemplo das muitas maneiras com que os agricultores mexicanos tradicionais foram capazes de susten-tar as elevadas densidades populacionais sem recorrer a qumicos sintticos nem s espcies altamente produtivas criadas no sculo XX. Trabalho arqueolgico recente tambm tem produzido maiores evi-

    9 SAUER, Carl. Aboriginal population of Northwestern Mexico. Ibero-Americana, Berkeley, n. 10, 1930; COOK, Sherburne F.; SIMPSON, Lesley Bird. The population of Central Mexico in the sixteenth century. Ibero-Americana, Berkeley, n. 31, 1948; COOK, Sherburne F. Soil erosion and population in central Mexico. Ibero-Americana, Berkeley, n. 34, 1949; _____; BORAH, Woodrow. The Indian population of Central Mexico, 1531-1610. Ibero-Americana, Berkeley, n. 44, 1960.10 CHEVALIER,Franois. Land and society in Colonial Mexico. Berkeley: University of California Press, 1971; GIBSON, Charles. The Aztecs under Spanish rule. Stanford: Stanford University Press, 1964; TAYLOR, William B. Landlord and peasant in Colonial Oaxaca. Stanford: Stanford University Press, 1972.11 MELVILLE, Elinor G. K. A plague of sheep: environmental consequences of the conquest of Mexico. Cambridge: Cambridge University Press, 1994.12 SCHILLING, Elisabeth. Los jardines flotantes de Xochimilco (1938). In: ROJOS RABIELA, Teresa (Org.). La agricultural chinampera. Chapingo: Universidad Autnoma Chapingo, 1983.

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    dncias comprovando que em diversos perodos do tempo pr-colonial a maior parte das plancies tropi-cais no Mxico e na Guatemala dependia igualmente das chinampas, com uma agricultura desenvolvida em ambientes lacustres ou pantanosos13. Nas terras secas do Mxico, os povos indgenas construram canais de irrigao para adaptar a produo de alimentos aridez e seca14. Tomadas conjuntamente, essas tcnicas nos lembram que, ainda que discutamos neste artigo as perdas em termos de fertilidade infligidas aos solos tanto antes quanto depois da Conquista espanhola, os agricultores mexicanos, ante-riormente ao contato com os europeus, estavam envolvidos em uma gesto extremamente sofisticada e normalmente bem-sucedida dos recursos do solo15.

    H notveis excees na histria do Mxico pr-Conquista, mas as crises de subsistncia no Mxico pr-hispnico, se algumas vezes foram impressionantes, raramente ocorriam devido ignorncia dos povos indgenas a respeito dos mtodos para controlar a eroso do solo. Ao contrrio, devemos certa-mente procurar combinaes de fatores naturais que estabelecem limites quilo que os agricultores podiam realizar com sucesso com determinados aspectos da organizao social se quisermos com-preender as causas da eroso ou da degradao do solo. O argumento, que sobrevive h dcadas, sobre o possvel papel do esgotamento agrcola no colapso da cultura maia clssica, por exemplo, demonstra, repetidamente, que embora a degradao do solo possa ter constitudo um importante fator para o colapso, ela s se torna convincente ou inegvel se considerarmos os fatores sociais e polticos que ex-plicariam por que esses agricultores, obviamente muito capazes, no conseguiram responder em tempo aos primeiros sinais do problema. Precisamos saber tambm por que o colapso foi to rpido, e no um longo declnio em direo a uma crescente privao nutricional, em relao qual h poucas evidncias do que se esperaria encontrar.

    Se verdade que as principais comoes sociais ocorreram como uma consequncia da degradao do solo da Mesoamrica antes da Conquista, igualmente verdadeiro que as culturas mesoamericanas aprenderam muito sobre como gerenciar a fertilidade e a eroso do solo16. A profunda transformao, em larga medida para pior, dos solos do Mxico no perodo colonial muitas vezes erradamente inter-pretada, ao longo dos sculos, como um sinal dos fracassos indgenas deveu-se, antes, s diferentes tecnologias agrcolas, objetivos, organizao social e base de conhecimento dos espanhis do que inadequao dos conhecimentos ou das tcnicas dos indgenas.

    Essas questes, contudo, so complexas e no podem ser baseadas numa viso ednica do Mxico pr-Conquista e de seus habitantes. A admirao pela tcnica indgena no deve obscurecer seus fra-cassos nem os problemas presentes em alguns de seus sucessos. Um dos exemplos mais significativos da gesto do solo no Mxico pr-Conquista ocorreu na rea dominada pelo povo mixteca, onde se encontra hoje o estado de Oaxaca. Acredita-se que a sociedade mixteca pr-Conquista foi a sociedade mais profundamente estratificada na Mesoamrica17. Seus mtodos agrcolas refletiam acentuadas di-ferenas entre governantes e governados. Os vales eram controlados pela nobreza hereditria. A prpria nobreza pode ter se imposto ao povo mixteca. Os antigos cdices mixtecas afirmavam que o povo mixteca tinha nascido da terra, mas tambm se referiam histria de um grupo de reis nascidos das rvores, no norte, e que vieram, por volta de 1000 d.C., a governar os mixtecas. Aproximadamente

    13 BEACH, Tim et al. A review of human and natural changes in Maya lowland wetlands over the Holocene. Quaternary Science Reviews, v. 28, n. 17-18, p. 1710-1724, Mar. 2009.14 DOOLITTLE, William E. Cultivated landscapes of native North America. Oxford: Oxford University Press, 2000.15 ROJAS RABIELA, Teresa (Org.). La agricultura chinampera op. cit.16 DEMAREST, Arthur A.; RICE, Prudence; RICE, Don S. (Org.). The Terminal Classic in the Maya lowlands: collapse, transition, and transformation. Boulder: University of Colorado Press, 2004.17 FLANNERY, Kent. Precolumbian farming in the Vales of Oaxaca, Nochixtlan, Tehuacan, and Cuicatlan: a comparative study. In: _____; MARCUS, Joyce (Org.). The cloud people: divergent evolution of the Zapotec and Mixtec civilization. Nova York: Academic Press, 1983. p. 218.

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    30% da populao que no pertencia nobreza trabalhavam diretamente para as famlias nobres, com base numa relao um pouco semelhante servido europeia, estando sua fora de trabalho disposi-o da nobreza sob a forma de corveias ou de trabalho obrigatrio. Os demais camponeses ganhavam a vida trabalhando nas ngremes escarpas do rochoso terreno mixteca. Na medida em que ricos solos formados sob florestas de pinheiros e carvalhos eram deflorestados e aproveitados para a agricultura, o solo inevitavelmente se deslocava das encostas para baixo, em direo aos vales da nobreza. Os no-bres, em algum momento, perceberam que havia uma riqueza a ser aproveitada. Eles orientaram os trabalhadores a construir pequenas represas nos vales e cnions para aproveitar a gua que escorria e se apropriar do solo. Essas represas passaram a fazer as vezes de terraos irrigados de terras de vale, visto que proliferavam em sistemas cuidadosamente projetados de reteno de solo e gua. Os ricos vales da nobreza tornaram-se mais amplos e os solos mais profundos. Mesmo os cnions em forma de V, que originalmente eram completamente inadequados para a agricultura, foram transformados em ricos terrenos de vale. Os camponeses tornavam-se cada vez mais pobres e desesperados, enquanto seus cam-pos, laboriosamente desmatados, eram despojados de seus nutrientes, impelindo-os a migrar para reas mais elevadas e mais ngremes. O aumento da riqueza dos nobres guardava uma relao direta com o aprofundamento progressivo dos problemas dos pobres. Parece provvel que o nmero de trabalhadores a servio da nobreza tenha aumentado medida que aumentaram as dificuldades para os camponeses pobres produzir comida suficiente para seus filhos, nascidos nas encostas erodidas18.

    Na regio da Mixteca, o sistema que inclui o uso de terraos e pequenas barragens conhecido como lama y bordo, e uma razo pela qual podemos decifrar o enigma da narrativa arqueolgica que as paredes ainda visveis dos terraos que marcam as laterais da montanha e das barragens nas terras baixas so compatveis com muito do que ainda pode ser observado na Mixteca, nos dias de hoje. Se nossa compreenso do sistema estiver correta, o sistema pr-hispnico estava baseado na explorao e na desigualdade. A questo que surge da saber se todas essas providncias poderiam se manter est-veis no longo prazo. Contudo, a invaso espanhola impediu que essa questo fosse contemplada, uma vez que lanou, imediatamente, todo o sistema numa completa desordem. A introduo de animais de pastagem domesticados nas frgeis escarpas, o uso do arado e a mudana na combinao de culti-vares sobrecarregaram o sistema, acelerando a eroso. Em um sculo, as doenas europeias reduziram a populao no Mixteca a talvez 15% do nvel anterior Conquista. Na medida em que as taxas de eroso aumentavam com as pastagens e o uso do arado, era difcil reunir a mo de obra necessria para conservar os terraos e as pequenas barragens; mudanas nos sistemas de autoridade e organizao social complicaram ainda mais a questo. Alm disso, o governo espanhol tinha objetivos diferentes em mente para a regio; o mais importante deles era o fornecimento de mulas para as minas no norte, uma mudana que era incompatvel com o esquema mixteca, centrado na produo de alimentos para o consumo humano. A eroso e a degradao do solo avanaram rapidamente. A base de subsistncia da terra arvel foi reduzida pela ao da eroso em pelo menos 75%, se comparada com aquela disponvel na Conquista19.

    Outras regies sofreram consequncias similarmente desastrosas. Aquela que conhecemos mais o vale do Mezquital, ao norte da Cidade do Mxico (ironicamente, o suposto lar da nobreza que acabou por dominar a Mixteca). O clssico estudo de Elinor Melville, A plague of sheep, demonstrou que a regio que ns vemos hoje, e mesmo aquela que foi observada pelos espanhis no final do sculo XVI, foi fundamentalmente alterada para pior. Uma rica regio agrcola foi radicalmente transformada por uma srie de mudanas resultantes da praga da ovelha. Tanto de maneira direta quanto indireta, os animais de pastoreio criados pelos espanhis causaram uma eroso generalizada do solo e um conjunto

    18 SPORES, Ronald. The Mixtecs in ancient and modern times. Norman: University of Oklahoma Press, 1984.19 WRIGHT, Angus. The death of Ramon Gonzalez, op. cit. cap. 5.

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    de modificaes infelizes nas caractersticas hidrolgicas da regio, secando nascentes e poos e dando origem a uma escassez crnica de gua. Melville aponta que, contrariamente viso de Alfred Cros-by20, a invaso espanhola no criou uma paisagem neoeuropeia. Na Conquista, o vale do Mezquital assemelhava-se mais de perto do ideal europeu de uma regio agrcola produtiva e frtil, e foi a prpria invaso europeia que a transformou em algo quase sempre percebido como arqutipo das regies me-xicanas naturalmente pobres. Melville explica que

    No processo, os Otom foram deslocados, alienados e marginalizados, sua histria e a de sua regio, mistificadas. Os Otom so associados com a estranha paisagem da Conquista, no com paisagens frteis e produtivas de quando o contato foi feito. Suas habilidades como cultivadores foram esquecidas, e sua reputao como comedores de besouros, insetos e do fruto do cactus nopal consolidada21.

    Ao contrrio do que houve na Mixteca, o vale do Mezquital experimentou uma revitalizao agr-cola no sculo XX, embora no sem seus prprios problemas e controvrsias, devidos, em grande parte, importao do esgoto da Cidade do Mxico, usado como fonte de fertilizantes e gua.

    Talvez uma das transformaes mais profundas tenha sido a mais bvia, aquela que envolveu as chinampas do lago Texcoco que abasteceram Tenochtitlan e a Cidade do Mxico. Os espanhis admira-vam a capital asteca (lembremos o comentrio esbaforido, mas preciso, de Bernal del Castillo), mas eles no compreenderam sua base hidrolgica. No sem razes, eles viam as guas do lago Texcoco como a fonte dos miasmas que reproduziram as doenas do Velho Mundo. Tragicamente, eles culpavam as guas do lago como uma causa importante de inundaes catastrficas da cidade, em vez de identifi-carem os efeitos de sua prpria negligncia e destruio dos canais e diques astecas ou os resultados das polticas urbanas e agrcolas sobre o regime de cheias. Os funcionrios espanhis do perodo colonial implementaram uma longa campanha para drenar as guas do lago, sobretudo no grande desgue da primeira dcada do sculo XVII. A reduo da rea e da produtividade das chinampas terminou por, entre outras coisas, deixar a agricultura na dependncia de outras terras produtivas, boa parte delas submetida aos mesmos processos de degradao descritos por Melville. Ao mesmo tempo, muito do conhecimento essencial necessrio ao uso mais efetivo do sistema chinampa intensivo se perdeu junto ao solo das escarpas montanhosas22.

    A eroso e a degradao do solo foram um tema importante na histria mexicana por 2 mil ou 3 mil anos. Onde a eroso estava, de alguma maneira, sob controle, como na Mixteca, o sistema de controle algumas vezes representou um preo pesado em vidas humanas e, provavelmente, no era sustentvel a longo prazo. Entretanto, recentes afirmaes de que registros de eroso nos planaltos de Michoacn e outros acontecimentos relacionados eroso ocorridos antes da Conquista excedem em importncia os problemas criados pela Conquista no so convincentes23. Embora possamos identificar um macio deslocamento de materiais que desciam morro abaixo por conta do cultivo de milpa muito antes da Conquista, ainda no sabemos o bastante, se que um dia saberemos, sobre suas causas. Por exemplo, difcil dizer o quanto dessa eroso foi provocado pela agricultura propriamente dita, e o quanto foi pro-vocado pelas tempestades extraordinariamente fortes, numa regio conhecida por suas chuvas torren-

    20 CROSBY, Alfred. Imperialismo ecolgico: a expanso biolgica da Europa: 900-1900. So Paulo: Companhia das Letras, 1993.21 MELVILLE, Elinor G. K. A plague of sheep, op. cit. p. 115.22 SIMON, Joel. Endangered Mexico: an environment on the edge. San Francisco: Sierra Club Books, 1997. p. 64-72; MUSSET, Alaine. El agua en el valle de Mxico: siglos XVI-XVII. Cidade do Mxico: Centro de Estudios Mexicanos y Centroamericanos, 1992.23 BUNNEY, Sarah. Prehistoric farming caused devastating soil erosion, op. cit.; OHARA, S. L. et al. Accelerated soil erosion, op. cit.; ANSELMETTI, Flavio S. et al. Quantification of soil erosion, op. cit.

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    ciais. Alm do mais, o que sabemos a respeito dos danos causados aos solos mexicanos aps a Conquista que eles foram generalizados, abrangentes e persistentes atravs dos sculos. Se esse tivesse sido o caso na era pr-Conquista, difcil imaginar que os espanhis tivessem mesmo encontrado as civilizaes densamente assentadas e manifestamente prsperas que tanto os impressionaram. O fato de que o Mxico, no sculo XX, tenha sido caracterizado com frequncia como um pas pobre em termos de seu potencial agrcola resultou, numa medida considervel, de sculos de dominao europeia, que tanto destruiu a terra quanto configurou atitudes que interpretaram a terra devastada como uma herana na-tural e no como uma criao humana. Pode-se dizer que os espanhis no apenas descobriram como tambm criaram um Novo Mundo, e do ponto de vista da agricultura, um mundo mais pobre.

    Uma crise cada vez mais profunda

    O impacto sobre as pessoas e a terra durante o primeiro sculo aps a Conquista abriu caminho para uma prolongada depresso econmica que atravessou praticamente todo o sculo XVII. O deflo-restamento e a consequente eroso resultaram tanto do tipo de mudanas agrcolas que caracterizaram a Mixteca e o vale do Mezquital quanto da necessidade de madeira e carvo para as atividades de mi-nerao24. Com o decrscimo das populaes indgenas, seus direitos terra formalmente reconhecidos foram minados pelo sistema de trabalho forado, o repartimiento, que privou as comunidades da auto-nomia e do trabalho essenciais para seu prprio sustento. Enquanto comunidades sofriam de um gene-ralizado colapso demogrfico devido s doenas, os espanhis lanaram mo tanto de estratgias legais quanto da fora para reduzir a extenso de terras disponveis para as populaes indgenas. A situao legal e social era fluida e difcil, e a longa depresso que se instalou durante o sculo XVII provocou um grande desejo por estabilidade, um dos principais fatores para o crescimento da hacienda25.

    As haciendas e as misses religiosas coexistiam com as comunidades indgenas as quais, sem-pre que possvel, continuaram a proteger suas terras zelosamente mas tambm absorviam algumas dessas comunidades e eliminavam outras.26 As comunidades tambm coexistiam com atividades mais diretamente comerciais, como as plantaes de cana-de-acar. No sculo XIX, o persistente processo de desapropriao das comunidades indgenas que teve lugar ao longo dos trs sculos do perodo co-lonial ainda no tinha se completado, e essas comunidades continuavam a controlar cerca da metade da terra arvel em Oaxaca, por exemplo, por ocasio da Independncia27. A legislao sobre terras do sculo XIX, de cunho liberal que no foi aplicada de forma consistente, conforme previsto, contra as propriedades da Igreja, mas que se mostrou muito eficiente em se apoderar de terras das comuni-dades camponesas , levou a um processo mais rpido de apropriao por parte dos hacendados, das autoridades eclesisticas e dos empreendimentos empresariais. As estimativas variam, mas exceto as inacessveis regies montanhosas, apenas de 4 a 10% das terras agrcolas estavam nas mos de pequenos proprietrios e das comunidades indgenas quando teve incio a Revoluo de 191028.

    No sabemos em detalhe o que aconteceu com o solo ao longo do perodo que se estendeu entre 1600 e 1910. Conhecemos haciendas exemplares, que implementavam excelentes prticas conservacio-

    24 BAKEWELL, Peter J. Silver mining and society in Colonial Mexico: Zacatecas, 1546-1700. Cambridge: Cambridge University Press, 1971.25 CHEVALIER, Franois. Land and society in Colonial Mexico, op. cit.; RICHARDS, John. The unending Frontier, op. cit. cap. 10.26 GIBSON, Charles. The Aztecs under Spanish rule, op. cit.27 TAYLOR, William B. Lord and peasant in Colonial Oaxaca, op. cit.28 HART, John. Revolutionary Mexico: the coming and process of the Mexican Revolution. Berkeley: University of California Press, 1987.

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    nistas que protegiam solos e florestas, garantindo, assim, a segurana que era o ideal dessas propriedades. Parece provvel que onde essas prticas de conservao foram um sucesso, elas dependessem tanto do conhecimento tradicional da populao indgena mexicana como das tradies que eram transmi tidas por geraes entre os espanhis. As tradies espanholas ajudaram a desenvolver os arranjos pasto ris coloniais que, em alguns momentos e em alguns lugares, promoveram um uso inteligente das mu-danas sazonais atravs de vastas paisagens para fazer com que o gado chegasse s minas e aos n cleos populacionais sem provocar danos bvios s pastagens29. Gene Wilken mostrou que, no sculo XX, os mexicanos praticavam uma engenhosa combinao de tcnicas tradicionais para controlar a eroso do solo e lidar com a perda de fertilidade. A originalidade e a cuidadosa adaptao s condies locais e as intricadas maneiras pelas quais essas tcnicas so integradas cultura e organizao social local sugerem fortemente que a maior parte delas foi desenvolvida ao longo de sculos, se no de milnios30.

    Contudo, tambm sabemos que a paisagem do Mxico e seu solo continuaram a ser submetidos a um grave e persistente processo de eroso e degradao. A perda de uma vasta poro de seu territrio na guerra com os Estados Unidos privou o Mxico de uma grande extenso de terra com a qual o ministro da Economia, Lucas Alemn, esperava contrabalanar as insistentes presses sobre terras cada vez mais disputadas no planato central. Os conselheiros de Porfirio Daz consideravam essencial, pelas mesmas razes, o desenvolvimento agrcola naquilo que restara do norte. No sculo XX, o Mxico tornou-se um exemplo muito citado de um pas esgotado pelos danos sofridos por seus solos e que necessitava de uma estratgia agrcola de recuperao ou transformao.

    O historiador ambiental Lane Simonian assinalou o paradoxo, aparentemente curioso, de que, com todos os problemas que o Mxico experimentou, ao longo de tanto tempo, com a eroso, tanto o governo colonial quanto o governo nacional tenham concentrado seus esforos conservacionistas nas florestas e dedicado pouca ateno aos solos31. Esse paradoxo pode no ser to indecifrvel como parece. Por um lado, as florestas desempenham um papel importante na limitao da eroso do solo e na construo de sua fertilidade, e Simonian destaca corretamente que os observadores mexicanos foram mais perspicazes e rpidos em reconhecer esse fato do que seus correspondentes nos Estados Unidos32. Isso especialmente verdadeiro no terreno acidentado de boa parte do Mxico, onde o deflorestamento de encostas ngremes frequentemente implica desastres para os terrenos arveis si-tuados abaixo, e onde as tcnicas camponesas para manter a fertilidade dependem, quase sempre, do cuidadoso manejo do material orgnico da floresta e de sua incorporao aos campos de cultivo. Por outro lado, as florestas em grande medida se localizavam em terras comunais do Estado ou de comunidades indgenas, onde eram legalmente sujeitas ao monitoramento dos governos e/ou das co-munidades, enquanto era muito mais difcil controlar as prticas agrcolas empreendidas por milhes de proprietrios rurais individuais. As instituies do Estado e as tradies voltadas aos cuidados com a floresta remontam ao perodo que antecede a colonizao europeia, assim como as tradies comunais no Mxico. O princpio subjacente poltica governamental de controle das florestas se apoia frequentemente em parte sobre o argumento de que o tempo necessrio para o crescimento das rvores requer um comprometimento de longo prazo por parte do governo ao manejo no comercial,

    29 BUTZER, Karl W.; BUTZER, Elizabeth K. Transfer of the Mediterranean livestock economy to New Spain: adaptation and ecological consequences. In: TURNER, B. L. Global land use change: a perspective from the Columbian encounter. Madri: Consejo Superior de Investigaciones Cientificas, 1995.30 WILKEN, Gene. Good farmers, op. cit. A comparao de tcnicas descritas por Wilken com aquelas discutidas em Doolittle (Cultivated landscapes of native North America) tambm sugere fortemente a longa procedncia de tcnicas ainda em uso.31 SIMONIAN, Lane. Defending the land of the jaguar: a history of conservation no Mxico. Austin: University of Texas Press, 1995. p. 2.32 Ibidem, p. 49-50.

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    enquanto no processo de tomada de deciso das atividades agrcolas, por ser mais imediato, respostas individuais aos mercados so mais adequadas. Essas consideraes ajudam a entender por que, no Mxico, os comentaristas expressaram por tanto tempo suas preocupaes com as florestas e tambm com os solos, embora as florestas tenham sido manejadas, parcialmente, por polticas governamentais tanto no perodo colonial como nacional, e os solos no.

    Um pouco de perspectiva comparativa tambm til. Muito daquilo que Simonian descreve como atitudes do governo mexicano em relao aos solos e s florestas tambm pode ser aplicado poltica governamental implementada na Europa e nos Estados Unidos. Na Europa, as preocupaes governamentais medievais e do sculo XIX com as florestas antecederam em muito qualquer esforo oficial significativo em relao aos solos. As autoridades norte-americanas atuaram no sentido de pro-teger as florestas antes de considerar seriamente a eroso do solo. Tanto nos Estados Unidos quanto na Europa, o declnio patente e continuado da fertilidade do solo foi enfrentado pelos governos, em grande medida, atravs da busca de novas fontes de nutrientes mesmo que alm das fronteiras na-cionais, mais notadamente na corrida para a explorao das ilhas de guano no litoral do Peru um esforo que se tornou muito menos importante aps o processo Haber-Bosch de produo de am-nia, inventado em 1909 e que comeou a ser aplicado em escala industrial em 191333. Nos Estados Unidos, a intensificao da produo em novas fronteiras abertas continuou a ser um foco central da poltica agrcola, exemplificada, em parte, pela aprovao do Reclamation Act de 1902, destinado a assegurar irrigao s fronteiras agrcolas dos vales ridos e semiridos do Oeste e do Sudoeste. Embora tenha sido instaurado no Departamento de Agricultura no mesmo ano em que o Servio de Florestas (1901), a Diviso de Solos estava primordialmente preocupada com a classificao de solos, no intuito de promover e posicionar novos assentamentos. Em 1909, a Diviso anunciou que o solo o nico ativo indestrutvel e imutvel que a nao possui. o nico recurso que no pode ser esgota-do e que no pode ser usado at o fim34. Todavia, seria necessrio esperar at 1935 para que surgisse uma iniciativa do governo dos Estados Unidos em relao conservao do solo, embora bastante imperfeita, que foi a criao do Servio de Conservao do Solo, e apenas como uma resposta ao desastroso Dust Bowl35. Simonian destaca que o primeiro programa efetivo de governo mexicano voltado diretamente para o combate eroso do solo s foi lanado nos anos 1940, embora os funcio-nrios federais tenham comeado a ocupar-se da questo na dcada de 1930, contemporaneamente s apreenses mais srias do governo de Washington. Aldo Leopold escreveu, a respeito das iniciativas dos Estados Unidos nas dcadas de 1930 e 1940, que a poltica governamental era deploravelmente inadequada misso. Ela no define o que certo ou o que errado, no atribui nenhuma obri-gao, no implica nenhum sacrifcio, nenhuma mudana na filosofia atual de valores. No que diz respeito ao uso da terra, recomenda apenas um egosmo esclarecido36. No de se surpreender que, no Mxico, o caminho escolhido com a assessoria dos especialistas agrcolas norte-americanos tenha sido definido de uma maneira deliberadamente voltada para promover deslocamentos regionais que favorecessem a expanso da agricultura comercial, muito mais do que a conservao ou a recuperao de solos nas regies agrcolas tradicionais do pas.

    33 CUSHMAN, Gregory T. The lords of guano: science and the management of Perus Marine environment, 1800-1973 Tese (Doutorado) University of Texas, Austin, 2003.34 Citado em WORSTER, Donald. The Dust Bowl: the southern plains in the 1930s. Oxford: Oxford University Press, 1979. p. 213.35 Foi um perodo de devastadoras tempestades de areia que causaram srios prejuzos ecolgicos e agricultura nas plancies dos Estados Unidos e do Canad, na dcada de 1930, particularmente em 1934 e 1936. (N.T.)36 LEOPOLD, Aldo. The Sand County Almanac. San Francisco: Sierra Club Books, 1970 [1949]. p. 244.

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    Escolhas revolucionrias ou escolhas contrarrevolucionrias feitas por revolucionrios?

    Os lderes que subiram ao poder nacional em consequncia da vitria da Revoluo Mexicana no estavam preocupados com a redistribuio de terras a um campesinato sem poder poltico, por mais que isso estivesse entre os principais temas da luta revolucionria. Em muitos estados, os governadores promoveram programas de reforma agrria agressivos e algumas vezes radicais tanto quanto permitiam seus poderes, e s vezes com retrocessos posteriores. Em mbito nacional, contudo, as partes da Cons-tituio de 1917 que presidiram a legislao agrria mexicana at 1992, com emendas substanciais, no garantiam minimamente a realizao de uma reforma agrria sria. Emiliano Zapata, que levantou a bandeira da causa camponesa e insistiu na reforma agrria como parte integrante da Constituio, foi assassinado em 1919. Francisco Villa, visto por alguns como um lder do campesinato rural socialmente excludo, embora seus compromissos e vises no fossem consistentes como os de Zapata, no assumiu nenhum posto oficial at o fim da guerra revolucionria e foi assassinado em 1924. O governador de Sonora, general lvaro Obregn, tornou-se o presidente Obregn em 1920, e seu sucessor, Plutarco Elas Calles, tambm provinha do mesmo estado da fronteira norte do Mxico. Eles lideravam um gru-po de dirigentes polticos, conhecido como a Dinastia de Sonora, que controlou o governo mexicano at 1934. A Dinastia de Sonora tinha realmente uma nova viso para a agricultura mexicana, mas que contrastava fortemente com a viso de Zapata de um campesinato comunal37.

    Obregn e Calles foram demonizados nos Estados Unidos por seu pretenso radicalismo, ainda que de um tipo peculiar, e, de fato, mostraram-se dispostos a enfrentar o governo norte-americano em dis-putas originadas na Constituio revolucionria e nas apreenses dos empresrios norte-americanos acerca da segurana dos seus investimentos. Isso tendeu a obscurecer o fato, muito mais significativo no longo prazo, de que esses dois lderes da Dinastia de Sonora eram scios de investidores norte-americanos no de-senvolvimento da agricultura irrigada e de empresas industriais associadas. Estradas de ferro e facilidades porturias instaladas no golfo da Califrnia durante o Porfiriato38 ligavam Sonora ao Sudoeste americano e, consequentemente, a todo o mercado norte-americano. Os sonoranos percebiam que estavam bem po-sicionados para se aproveitar das diferentes vantagens comerciais oferecidas pelo acesso aos mercados nos Estados Unidos. Os Estados Unidos estavam abrindo seu Oeste e seu Sudoeste agricultura comercial atravs do Reclamation Act de 1902, que proporcionava uma nova e abundante fonte de financiamento federal para represas e sistemas de irrigao, e havia fortes razes para se pensar que medidas similares poderiam ser empreendidas para os vales desrticos do Mxico. Em todo o mundo, esses eram dias de um entusiasmo contagiante em relao maneira extraordinria que o deserto florescia com a adio de gua na medida em que a potencial irrigao em larga escala possibilitada pela maquinaria do sculo XX e os avanos da engenharia se tornavam aparentes. O caminho para a riqueza, geogrfica e conceitualmente, apontava para o norte, e no para os planaltos da regio central do Mxico no sul39.

    Embora tivesse crescido rfo e na pobreza, Obregn tornara-se um rico produtor rural e empres-rio antes de 1910. Ele obteve um lucro substancial com a inveno de uma mquina de semear gro-de--bico, comprada por uma firma comercial dos Estados Unidos, e ficou conhecido como o rei do gro--de-bico, monopolizando seu comrcio40. Na condio de maior produtor mundial de gro-de-bico,

    37 WRIGHT, Angus. The death of Ramon Gonzalez, op. cit. p. 166-167; HAMILTON, Nora. The limits of State autonomy: post-revolutionary Mexico. Princeton: Princeton University Press, 1982.38 Denominao com a qual ficou conhecido o perodo de 31 anos (1876-1911) em que o Mxico foi governado pelo general Porfrio Daz. (N.T.)39 HART, John Mason. Empire and revolution: the Americans in Mexico since the Civil War. Berkeley: University of California Press, 2002. Especialmente caps. 3, 6, 7, 11 e 12; DWYER, John J. The agrarian divide: the expropriation of American owned rural land in post-revolutionary Mexico. Durham: Duke University Press, 2008.40 HALL, Linda. Alvaro Obregn: power and revolution in Mexico: 1911-1920. College Station: Texas A and M Press, 1981.

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    Obregn firmou um acordo com Herbert Hoover para abastecer a Associao Americana de Assistncia com gros-de-bico para aliviar a crise de fome na Europa. Calles, que antes de assumir a presidncia do Mxico fora um respeitado professor, mas um desastre frente dos negcios do pai no abastecimento de produtores rurais comerciais, conseguiu usar sua posio na Dinastia de Sonora e, como presidente, de se enriquecer por meio de empresas do agronegcio41.

    A Dinastia de Sonora tinha pouca simpatia para com o radicalismo agrrio de Zapata. Algumas vezes, Obregn e Calles manipularam as demandas dos camponeses como um instrumento para atingir adversrios ricos, atravs da expropriao de suas terras para redistribuio a camponeses sem terra. Es-sas redistribuies constituram, no total, cerca de 3% das terras agricultveis do Mxico. Os sonoranos opunham-se existncia de propriedades excessivamente grandes, numa dimenso que conduzisse ineficincia e falta de zelo empresarial, mas no por princpios de justia ou de igualdade. Sob a apa-rncia de um governo radical, anticlerical e anti-imperialista, parte substancial do programa da Dinas-tia de Sonora consistia na promoo do agronegcio norte-americano com a participao de generais revolucionrios e de outros scios.

    O baixo nvel dos recursos econmicos e financeiros do pas levou o governo a conferir prioridade elevao dos nveis de produo, incluindo a produo agrcola, e tornou-o relutante para fracionar as propriedades agrcolas, especialmente aquelas relativamente eficientes, orientadas para a produo comercial42.

    Em 1930, Calles anunciou que o programa de reforma agrria era um erro, que os pees no sabiam como usar suas terras, e que a produo de alimentos estava declinando progressivamente. Calles e o embaixador americano Dwight Morrow concordavam que a reforma agrria j tinha ido longe demais, isto num momento em que ela de fato pouco tinha avanado. Os sonoranos estavam interessados na colonizao das terras recm-abertas, sobretudo no norte, o que representava um retorno s polticas do sculo XIX que tinham encorajado os investimentos mexicanos e estrangeiros nos estados desrticos.43 Em 1926, Calles definiu novos mecanismos legais e institucionais para apoiar a colonizao de terras tornadas disponveis para o assentamento, que estavam, em sua maior parte, localizadas em partes do norte e do noroeste que eram irrigadas ou que que logo seriam irrigadas44.

    Os pressupostos subjacentes da Dinastia de Sonora eram amplamente compartilhados pelas elites mexicanas. O jovem Daniel Coso Villegas, que viria a se tornar um dos mais proeminentes intelectuais da nao, escreveu em 1924:

    A indstria da agricultura em nosso pas deficiente no somente porque os nossos mtodos de cultivo so atrasados () mas porque o prprio solo pobre. A fim de que a nossa agricultura venha a ser capaz de satisfazer nossas necessidades () sero necessrios dispendiosos trabalhos de engenharia, especialmente de irrigao, por toda a nao. No podemos esperar nada como um presente da Natureza; tudo no Mxico depende da atividade e da engenhosidade do homem. por essa razo que eu digo que ns somos economicamente pobres; porm, mais do que isso, a origem da nossa pobreza econmica a nossa pobreza natural45.

    41 BUCHENAU, Jrgen. Plutarco Elas Calles and the Mexican Revolution. Denver: Rowman and Littlefield, 2006.42 HAMILTON, Nora. The limits of State autonomy, op. cit. p. 96-97.43 HART, John Mason. Empire and revolution, op. cit. Parte II; HAMILTON, Nora. The limits of State autonomy, op. cit. p. 96-97.44 BARKIN, David; KING, Timothy. Regional economic develpment: the river basin approach in Mexico. Cambridge: Cambridge University Press, 1970. p. 53.45 STAKMAN, E. C. et al. Campaigns against hunger. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1967. p. 2.

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    Como Melville observou, a pobreza do solo mexicano foi considerada sua condio original, mais do que uma consequncia de sculos de uso inadequado e do impacto especfico de animais, tecnolo-gias e objetivos europeus. A internalizao dessa atitude entre os intelectuais mexicanos foi um fator relevante para a escolha que o Mxico viria a fazer sobre suas terras, numa oposio a-histrica homem versus Natureza, que serve como um exemplo soberbo do alto modernismo do sculo XX em ao.

    Com o prevalecimento dessas perspectivas, em meio a fatores polticos mais mundanos, no de se surpreender que Calles que continuara a controlar indiretamente os presidentes que exerceram o poder depois dele, entre 1928 e 1934 acreditasse que seria capaz de dar prosseguimento s polticas da Dinastia de Sonora aps a eleio presidencial de 1934. No entanto, o candidato designado, Lzaro Crdenas, que tinha governado o estado centro-ocidental de Michoacn, demonstrou no s ser ca-paz de pensar por si mesmo, como tambm de definir um itinerrio independente e provocar a ida de Calles para o exlio. Um dos elementos mais importantes do que Crdenas pensava para o Mxico era o retorno ideia de uma redistribuio significativa da terra, como estava prevista na Constituio de 1917. Crdenas expropriou cerca de 49 milhes de acres de terras, criou milhares de ejidos (concesses de terras s comunidades) e restaurou um modesto nmero de terras comunais indgenas, como fora delineado pela faco camponesa ao escrever a Constituio de 1917. Entre um quarto e a metade da populao mexicana tornou-se membro de ejidos. Embora com a evoluo do ejido houvesse uma ten-dncia a um trabalho mais individualizado em pequenos lotes distribudos pelos diretores dos ejidos, o governo Crdenas encorajou a formao de cooperativas de crdito, comercializao e compra de mquinas e ofereceu crdito governamental para os ejidatarios (nome dado aos beneficirios da reforma agrria). Crdenas tambm promoveu experimentalmente a coletivizao de algumas grandes proprie-dades rurais, sobretudo as fazendas de algodo de La Laguna, situadas em reas desrticas no estado nortista de Coahuila, e nos estados vizinhos.

    A administrao Crdenas considerava a educao agrcola crucial para o sucesso do programa de reforma agrria. A conservao do solo encontrava-se entre os temas que os agentes governamentais deveriam ensinar aos agricultores. As autoridades procuraram diversas maneiras criativas para promo-ver tanto a cultura quanto a prtica da moderna conservao.46 Ao mesmo tempo, o governo nacional e os escritores, artistas e intelectuais populares tentaram aprofundar o interesse dos mexicanos por seu passado indgena e pela populao indgena remanescente. Embora essas iniciativas tenham sido ridi-cularizadas por vezes como superficiais e passageiras, uma de suas realizaes foi a ressurgncia de um modesto grau de interesse por cultivos indgenas e seus mtodos agrcolas.47

    O srio compromisso de Crdenas em relao conservao pode ser comparado ao de Franklin Roosevelt. A nfase na conservao tinha por objetivo melhorar o desempenho da economia e reduzir a pobreza. A conservao do solo ainda era vista como um aspecto da proteo das florestas, como acon-tecera no passado; novas leis e instituies deram ao governo mais poder para tornar efetiva a conser-vao florestal. A despeito do foco nas florestas, no entanto, a associao dos programas de conservao de Crdenas redistribuio de terras passou a evidenciar mais claramente os elos entre a eroso do solo e questes de equidade.

    Crdenas estava determinado a erigir o poder do partido dirigente com base no entusiasmo popu-lar. A reforma agrria fazia parte desse seu programa, assim como outras iniciativas que ampliaram a autoridade governamenal e, por conseguinte, a distribuio de favores em muitas novas reas. Seu uso de longas viagens s reas rurais no interior do pas e do poder do rdio e da publicidade na imprensa divulgando as polticas nacionais, bem como sua prpria personalidade lhe conferiram uma projeo que estava se tornando a marca dos polticos modernos por toda a parte. A viso de Crdenas

    46 SIMONIAN, Lane. Defending the land of the jaguar, op. cit. cap. 5.47 WRIGHT, Angus. The death of Ramon Gonzalez, op. cit. p. 168-171.

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    era claramente nacionalista; o legado mais duradouro e concreto dessa perspectiva foi a nacionalizao que promoveu da importante indstria petrolfera mexicana. Essa orientao provocou confrontos com os Estados Unidos e a Inglaterra, os pases de origem dos principais proprietrios das instalaes petro-lferas expropriadas. Alguns assessores do governo dos Estados Unidos chegaram a defender a invaso armada do Mxico, ainda que, na atmosfera da Poltica da Boa Vizinhana, que buscava aliados entre os pases latino-americanos na guerra que se aproximava com a Alemanha e a Itlia, as cabeas mais sensatas tenham prevalecido.

    Embora uma guerra entre Mxico e Estados Unidos tenha sido descartada, faces polticas nos dois pases comearam a planejar o enfraquecimento do nacionalismo populista de Crdenas nas elei-es presidenciais marcadas para 1940. Os lderes empresariais e os grandes proprietrios rurais temiam um srio enfraquecimento dos interesses e da influncia do capital privado e consideravam o pleito de 1940 um teste crucial sua capacidade de sobrevivncia. Crdenas tornara o partido dirigente muito mais popular e poderoso, e se opor sua dominao no era visto como uma opo. A batalha seria pelo controle interno do partido. As faces conservadoras conseguiram se impor e escolheram Manuel vila Camacho como o candidato presidencial e ele, como era de se esperar, foi eleito para o cargo48.

    Em seu discurso de posse, vila Camacho elogiou a energia vital da iniciativa privada e prometeu aumentar a proteo dada s propriedades agrcolas, no somente defendendo aquelas que existem, mas tambm formando novas propriedades nas vastas regies ainda no cultivadas. A agricultura no seria vista como um meio de se atingir uma maior igualdade, mas sim como a base da grandeza industrial49. Comeando com a administrao vila Camacho e avanando pelo restante do sculo XX, a reforma agrria, nas ocasies em que amplas superfcies cultivveis foram distribudas, era quase sempre direcionada sobretudo como uma forma de reduzir a instabilidade rural em certas regies e reduzir o movimento migratrio para as cidades. A maior parte da terra era apenas marginalmente pro-dutiva, mas parcelas significativas foram importantes para a restaurao das terras de florestas para as comunidades indgenas. A despeito de redistribuies ocasionais de terra terem continuado, a reforma agrria no seria mais vista, como era considerada por Crdenas, como um instrumento primordial para atingir o desenvolvimento agrcola e econmico da nao.

    Distribuies de terras agricultveis numa escala significativa ocorreram principalmente nas reas recentemente irrigadas, abertas nos desertos do norte do pas, que contaram com o financiamento para a construo de barragens e canais por parte do governo mexicano e, mais tarde, do Banco Mun-dial. As distribuies de terras irrigadas, de boa qualidade, destinaram-se principalmente queles que a Constituio de 1917 definira como pequeos proprietarios (pequenos proprietrios privados e no ejidos e ejiditarios), ou terminaram sob o controle destes. Os pequenos proprietrios, muitos dos quais viriam a possuir vastas extenses de terras, constituam a pedra angular para a expanso da agricultu - ra empresarial comercial, com base precisamente no modelo delineado pela Dinastia de Sonora. O ca-pital estrangeiro participaria pesadamente no financiamento de muitas dessas operaes.

    Nos vales do Culiacn e Fuerte, em Sinaloa e Sonora, os ejidos ganharam direitos terra durante o governo Crdenas ou mais tarde, em uns poucos casos. Esses ejidos, contudo, seriam submetidos sistemtica corrupo das intenes da reforma agrria, algumas vezes mediante o arrendamento ou a aquisio ilegal de terra ejidal, envolvendo o uso do Estado e da violncia privada contra os agricultores recalcitrantes (o que, por exemplo, continuou a ocorrer no Fuerte Vale at os anos 1970). Ejidos genu-nos foram s vezes deslocados por empresrios da agricultura comercial que operavam sob a aparncia

    48 HAMILTON, Nora. The limits of State autonomy, op. cit. p. 216-240.49 Citado em ALCNTARA, Cynthia Hewitt de. Modernizing Mexican agriculture: socio-economic implications of technological change, 1940-1970. Genebra: United Nations Research in Social Development, 1976. p. 21-22.

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    legal de uma concesso de ejido50. A corrupo dos ejidos nesses vales do norte se revelaria crucial para a histria do desenvolvimento agrcola do Mxico na era ps-Segunda Guerra Mundial.

    O pacote da Revoluo Verde mexicana

    Sentado ao lado de vila Camacho na cerimnia de sua posse estava o recm-eleito vice-presidente dos Estados Unidos, Henry Wallace, anteriormente secretrio de Agricultura de Roosevelt. Wallace herdara o legado de seu pai como plantador de milho e dono de uma das maiores empresas de sementes do mundo. Embora fosse conhecido nos Estados Unidos como um poltico de esquerda, seu papel na restaurao das foras conservadoras no Mxico mostrou outro lado de Wallace. Posteriormente, ele co-mentou que no tinha feito nada mais do que ajudar a evitar a revoluo no Mxico. A importncia que conferiu a esse papel explicava por que Wallace passava tantas semanas no Mxico, quando acabara de ser reeleito vice-presidente dos Estados Unidos. Seja o que for que Wallace tenha feito nessas semanas, no longo prazo, sua obra mais importante no Mxico foi ajudar a negociar um programa de pesquisa que apoiaria a nova nfase do pas produtividade agrcola, em oposio reforma agrria51.

    A eleio de vila Camacho colocou o governo do Mxico no caminho de uma poltica agrcola que reafirmava a viso inicialmente proposta pela Dinastia de Sonora, mas que se tornou mundialmente co-nhecida como a Revoluo Verde. A Fundao Rockefeller, que comeara a ampliar suas preocupaes para alm dos programas voltados para o bem-estar das crianas mexicanas dos anos 1920, forneceu financiamento e liderana decisivos para um programa de pesquisa que visava incrementar a produti-vidade agrcola no pas, com um olho na possibilidade de se reproduzirem os sucessos registrados no Mxico no resto do mundo tropical e subtropical52. Com a aprovao do programa pelo Departamento de Agricultura norte-americano, pela Fundao Rockefeller e pelo governo mexicano, os trabalhos co-mearam em 1941 e pode-se dizer que continuam at os dias de hoje no Mxico, bem como no resto do mundo, com vrias formas de financiamento e direo.

    O primeiro passo era uma viagem de estudos a ser empreendida por proeminentes cientistas agr-colas dos Estados Unidos, a fim de determinar a natureza dos problemas e recomendar estratgias de pesquisa destinadas a solucion-los. A Fundao recrutou uma equipe liderada por Richard Branfield, da Universidade de Cornell, Paul C. Manglesdorf, da Universidade de Harvard, e Elvin Stakman, da Universidade de Minnesota. Essa Comisso de Reconhecimento comeou sua viagem de cinco meses em julho de 1941. A histria da jornada da Comisso e sua perspectiva so contadas no livro Campaigns against hunger, escrito duas dcadas mais tarde, quando a Fundao Rockefeller e o governo norte--americano estavam promovendo com entusiasmo na ndia, no Paquisto e em boa parte do resto do mundo o suposto sucesso que tinham alcanado no Mxico. Os cientistas da comisso mostraram interesse pelos mexicanos e certo apreo por sua cultura e inteligncia, mas o que prevaleceu foi um paternalismo presunoso e autocongratulatrio, baseado na suposio de que seriam cientistas como os prprios autores que teriam todas as chaves para acabar com a fome e trazer prosperidade ao Mxico e a todas as naes mais pobres. O fato de os trs cientistas da comisso terem sido treinados em cincias naturais, sem praticamente nenhuma contribuio de cientistas sociais ou historiadores, refletia a supo-

    50 Relatos detalhados de como isso era feito podem ser encontrados em Cepal. Economa campesina y agricultura empresarial. Cidade do Mxico: Siglo XXI, 1982; e MARES, David. Penetrating the international market: theoretical considerations and a Mexican case study. Nova York: Columbia University Press, 1987.51 WRIGHT, Angus. The death of Ramon Gonzalez, op. cit. p. 172-177.52 FARLEY, John E. To cast out disease: a history of the International Health Division of the Rockefeller Foundation (1913-1951). Oxford: Oxford University Press, 2003; PERKINS, John H. Geopolitics and the Green Revolution: wheat, genes, and the Cold War. Oxford: Oxford University Press, 1997; WRIGHT, Angus. The death of Ramon Gonzalez, op. cit.

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    sio inquestionvel de que todas as solues para a fome deveriam ser encontradas na tecnologia. No houve nenhuma tentativa sria para se analisar o programa da reforma agrria53.

    As recomendaes da Comisso de Reconhecimento comeavam destacando a importncia da me-lhoria da gesto do solo e das prticas de cultivo. Era de se esperar que o que se seguiria da seria um esforo para melhorar a gesto do solo e as prticas de preparo do solo nas terras agricultveis ento sob cultivo, mas no foi essa a lgica. A melhor gesto do solo seria assegurada enquanto resultado de variedades melhoradas a serem desenvolvidas por criadores de plantas e animais, pela ampliao dos trabalhos de irrigao em larga escala, e pelo controle mais racional e efetivo das doenas das plantas e das pragas de insetos54. Embora os cientistas norte-americanos tenham reconhecido a grande inventi-vidade das chinampas, concluram que os mexicanos jamais poderiam esperar ter de novo essa agricul-tura produtiva. No foi conferida, praticamente, nenhuma ateno efetiva a outras prticas tradicionais mexicanas para a gesto do solo, e relativamente pouco estudo foi desenvolvido para o que deveria ser feito especificamente nas superfcies cultivveis existentes. Considerava-se que os solos mexicanos eram ricos em muitos nutrientes, mas cronicamente pobres em nitrognio. No houve nenhuma discusso de como os mexicanos haviam lidado com esse problema no passado, mas apenas desesperana sobre o que poderia ser realizado nas terras ento cultivadas e degradadas. Em certa medida, o processo Haber-Bos-ch e a disponibilidade de fertilizantes base de amnia, produzidos comercialmente, eram a soluo. Variedades melhoradas de sementes e cultivos seriam planejadas para maximizar a absoro de nitro-gnio. Isso requereria a liberao de gua, abundante e confivel, o que s poderia ser obtido por uma considervel expanso da superfcie de cultivo irrigada atravs de represas que forneceriam gua quelas reas ento consideradas fronteiras virtualmente vazias de terras planas e desrticas. Era a superfcie de cultivo recm-irrigada que importava, e no a melhor prtica na terra existente55. Os cientistas estavam orgulhosamente recomendando uma abordagem ousada e transformadora. Foi apresentada como a desejada alternativa a outra escolha possvel, tambm ousada e transformadora: concentrar esforos polticos e cientficos mais intensamente na proteo, no melhoramento e na restaurao de terras que estavam sendo trabalhadas pelos beneficirios da reforma agrria e por outros. A comisso preferiu, em vez disso, apostar seu prestgio na expanso para novas terras irrigadas e nas tecnologias.

    Suas recomendaes representaram uma notvel concordncia de vises e isso certamente no foi uma coincidncia. Em 1941, vila Camacho, em discurso nao, afirmou que

    O futuro da agricultura reside nas terras frteis da costa. Uma marcha para o mar aliviar a congesto em nosso planalto central, onde as terras cansadas devem ser dedicadas a cultivos que a poltica colonial recusou, resultando da que a tradicional cultura do milho das populaes indgenas continuou a ser dominante. A fertilidade das plancies costeiras tornar antieconmico o plantio de muitos produtos no planalto central. Porm, a marcha para o mar requer () medidas sanitrias e de sade, a abertura de comunicaes e a recuperao e drenagem de pntanos, e, para tornar tais projetos possveis, o dispndio de grandes somas de dinheiro. Ser necessrio organizar um novo tipo de agricultura tropical, que, devido prpria natureza da sua produo, no poder ser implementado em pequena escala56.

    Dada como receita e pressgio, no se poderia ter uma viso mais proftica do futuro da Revoluo Verde no Mxico e em outros lugares. Vale notar tambm que, ao contrrio das continuadas negativas dos proponentes da Revoluo Verde dos anos 1940 at o presente, a lgica por detrs de sua criao era

    53 STAKMAN, E. C. et al. Campaigns against hunger. Cambridge, Massachusetts: Belknap Press, 1967.54 Ibidem, p. 33.55 Ibidem, caps. 1, 8 e 9.56 Citado em BARKIN, David; KING, Timothy. Regional economic development, op. cit. p. 54.

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    vista como uma clara rejeio da agricultura em pequena escala57. Era evidente a direo que o processo estava seguindo.

    Na segunda metade dos anos 1940, todo esse planejamento comeou a dar frutos de maneiras muito diferentes. O governo mexicano baseou boa parte da sua estratgia de desenvolvimento nas Comisses de Bacias Fluviais tendo como modelo, em grande medida, a Tennessee Valley Authority , proje-tadas para fornecer irrigao para a agricultura, terra para os assentamentos e eletricidade para a inds-tria. O sucesso dessas Comisses variou muito. As mais bem-sucedidas (tendo como medida de sucesso diversos indicadores econmicos e de bem-estar) foram aquelas localizadas no norte do pas, especial-mente no Pacfico Norte os estados de Sonora, Sinaloa, Baixa Califrnia (norte e sul) e Nayart. Por volta de 1960, o Pacfico Norte representava 43% das iniciativas de irrigao em larga escala do governo mexicano em termos de superfcie de cultivo. Os estados do norte em seu conjunto representaram mais de trs quartos do total. O nico outro lugar comparvel localizava-se na regio central do pas, reu-nindo 14,5% dos esforos do governo, o que se explica somente por essa ser uma das mais importantes e permanentes regies agrcolas do Mxico: o Bajo de Guanajuato, Quertaro e estados adjacentes. Os novos estados irrigados tiveram rpido crescimento em termos de investimentos, produo agrcola e crescimento industrial durante esse perodo, proporcionando uma notvel melhora na renda per capita e no desempenho em todos os indicadores de bem-estar58. Sem contar os custos muito bvios e ocultos, a Revoluo Verde representou claramente, pelo menos no curto prazo, um sucesso de produo, embora j tenha sido convincentemente demonstrado que cerca de dois teros ou mais dos ganhos poderiam ter sido alcanados na mesma superfcie de cultivo irrigada, lanando-se mo de tipos de lavouras tradicio-nais menos dependentes de agroqumicos sintticos do que aqueles novos que se encontravam na base da Revoluo Verde. No foi estimado que resultados poderiam ter sido alcanados caso o foco tivesse sido direcionado para a inovao e o desenvolvimento das terras j disponveis59.

    O governo mexicano e o programa de pesquisa da Rockefeller buscavam resolver, primordialmente, os problemas colocados pelo solo do pas e sua contnua degradao no atravs da restaurao ou da conservao dos solos nas regies tradicionais do Mxico, mas essencialmente atravs da expanso da fronteira agrcola, baseada na irrigao em larga escala. A fronteira nem de longe estava vazia; a agricul-tura vinha sendo praticada h milnios na maior parte daquilo que era denominado novas terras60. O que era novo eram a tecnologia e o controle. Uma evidncia dessa orientao foi o fato de que quando vila Camacho criou o primeiro Departamento de Conservao do Solo, em 1942, o rgo foi colo-cado sob a autoridade da Comisso Nacional de Irrigao, em vez de ficar subordinado Secretaria de Agricultura, como era de se esperar61. O rgo foi transferido para a Agricultura em 1946, e a Secretaria de Agricultura foi logo rebatizada com o nome de Secretaria de Agricultura e Recursos Hdricos (Secre-tara de Agricultura y Recursos Hidrulicos SARH). Nos anos 1980, os empregados subalternos se queixavam frequentemente de que eram os recursos hdricos e no a agricultura que predominavam

    57 A aplicabilidade da Revoluo Verde agricultura de pequenos proprietrios era e continua sendo um tema de intensa controvrsia e objeto de uma vasta literatura. No Mxico, a controvrsia se centra no Projeto Puebla, financiado pela Fundao Rockefeller e planejado para demonstrar que a Revoluo Verde era apropriada aos pequenos agricultores. Ver JENNINGS, Bruce H. Foundations of international agricultural research: science and politics in Mexican agriculture. Boulder, Colorado: Westview, 1988. Ver tambm, WRIGHT, Angus. The death of Ramon Gonzalez, op. cit. e PERKINS, John H. Geopolitics and the Green Revolution, op. cit.58 BARKIN, David; KING, Timothy. Regional economic develpment, op. cit. p. 54-65.59 YATES, Paul Lamartine. Mexicos agriculture dilemma. Tucson: University of Arizona, 1981.60 Para um excelente panorama das prticas territoriais no deserto do nordeste do Mxco, em meados do sculo XIX, ver RADDING, Cynthia. Wandering peoples: colonialism, ethnic spaces, and ecological frontiers in Northwestern Mxico, 1700-1850. Durham; Londres: Duke University Press, 1997; e DOOLITTLE, William E. Cultivated landscapes of native North America, op. cit.61 SIMONIAN, Lane. Defending the land of the jaguar, op. cit. p. 113.

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    na burocracia da secretaria. Lane Simonian registra a maneira pela qual os sucessivos presidentes cla-mavam que a conservao do solo era uma causa urgente, citando estatsticas alarmantes, sem jamais assegurar recursos suficientes para esse fim. Funcionrios dedicados do servio para conservao do solo trabalhavam em todo o Mxico, mas eles estavam remando contra uma mar tanto de foras naturais quanto de polticas governamentais, que tinham outras prioridades62.

    A revoluo dos pesticidas

    medida que crescia a rea irrigada, tambm se multiplicavam as novas variedades de sementes desenvolvidas pelas equipes de pesquisa da Revoluo Verde, sendo os sucessos mais celebrados aqueles provenientes de um novo centro de pesquisa, situado nas proximidades da muito apropriadamente chamada Ciudad Obregn, em Sonora. Essas novas variedades s podiam ser bem-sucedidas, insistiam os pesquisadores, quando fosse usado o pacote completo. Eram concebidas para absorver e converter mais nitrognio em gros; porm, uma maior quantidade de nitrognio seria txico para as plantas, se no fosse liberada com gua adequada, aplicada nos momentos certos. Na sequncia, havia a expecta-tiva de que a massa maior de material de plantas produzido mais densamente num solo mais mido e num ambiente de campo atrairia mais doenas de plantas e pragas de insetos. Isso requereria um uso mais intenso dos pesticidas sintticos que acabavam de ser desenvolvidos63. A agricultura comercial tornou-se profundamente dependente do emprego regular de fertilizantes e pesticidas, enquanto na agricultura de subsistncia e no mercado local a dependncia dos agricultores ignorantes em relao aos agroqumicos era pontual, limitada, numa considervel medida, pelos custos elevados dos qumicos. As escolas de agricultura e as agncias de extenso financiadas pelo governo gastaram uma parcela signi-ficativa de seus esforos trabalhando com agricultores e consultores privados para manter listas de fr-mulas recomendadas para a aplicao de fertilizantes e pesticidas em determinadas regies e culturas.

    As sementes e o pacote qumico requeriam, como a nova estratgia de desenvolvimento agrcola de vila Camacho havia previsto, muito dinheiro. Esse dinheiro inclua muito mais do que os trabalhos de irrigao financiados pelos bancos de desenvolvimento multilaterais e pelo governo mexicano. As novas sementes e os agroqumicos, fertilizantes e pesticidas, eram caros. Os cultivos de gros da Revo-luo Verde raramente podiam ser produzidos competitivamente, exceo dos cultivados e colhidos por mquinas custosas, que s poderiam compensar se usadas em faixas relativamente extensas de terra. Tudo isso significava que o acesso ao crdito tornou-se mais fundamental e, sobretudo nos ambientes relativamente arriscados dos pases mais pobres, o crdito era e caro. O governo mexicano ofereceu crdito rural abundante por cerca de trs dcadas (aproximadamente da dcada de 1950 at os primeiros anos da dcada de 1980), mas ele era oferecido de forma seletiva, sem consistncia, e frequentemente usado como um meio de exercer influncia, tanto quanto para objetivos de produo. Nos anos 1980, agricultores comercialmente bem-sucedidos dependiam cada vez mais pesadamente do crdito comer-cial, a maior parte do qual estrangeiro; nesse momento, a dependncia deles para com o crdito privado tornou-se completa com a virtual eliminao dos programas de crdito rural patrocinados pelo governo.

    Quando os consultores agrcolas e os agricultores colocavam o valor dos fertilizantes e pesticidas em dvida, os bancos privados e os bancos pblicos normalmente evocavam clusulas garantindo a permanncia de regimes de produo projetados para assegurar tanto emprstimos vultosos quanto seus pagamentos mediante o uso obrigatrio de agroqumicos. Os agricultores tambm trabalhavam sob o regime de produo contratada, segundo a qual os custos de produo eram antecipados por uma

    62 SIMONIAN, Lane. Defending the land of the jaguar, op. cit. cap. 5.63 STAKMAN, E. C. et al. Campaigns against hunger, op. cit. Especialmente caps. 5 e 9.

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    empresa de promoo, em troca da entrega das colheitas essas aes normalmente envolviam reco-mendaes ou determinaes para o emprego de qumicos.

    No Mxico, o nacionalismo de Crdenas foi rapidamente posto a servio do modelo produtivista de vila Camacho, da Fundao Rockefeller e do governo dos Estados Unidos. A maior parte dos defen-sivos agrcolas era fabricada usando petrleo e/ou gs natural como matria-prima. A Pemex, a empresa petrolfera nacionalizada, tornou-se uma importante fabricante de defensivos agrcolas atravs de sua subsidiria, a Fertempox. Nos anos 1980, a Fertempox tornou-se a maior produtora e maior exporta-dora mundial de DDT, em uma conjuntura em que a maioria dos pases industriais havia virtualmente proibido seu uso. A Fertempox produziu tambm um conjunto de outros pesticidas. Na dcada de 1980, s vezes a Fertempox fornecia gratuitamente fertilizantes e pesticidas aos produtores rurais em nome do desenvolvimento agrcola. O asfaltamento com materiais baratos provenientes da Pemex per-mitiu a abertura de estradas unindo as reas produtoras ao mercado e que logo atravessaram as regies agrcolas mais prsperas. O combustvel barato manteve os caminhes e os tratores em movimento64. A maior parte do investimento pblico na agricultura era justificada pelo argumento de que a indepen-dncia poltica e econmica do Mxico estava ligada autossuficincia na produo dos gros bsicos. Esse argumento s foi abandonado com a liberalizao do comrcio que foi estabelecida durante os anos 1990, quando o mercado mexicano foi atirado competio internacional65.

    Com o pesado investimento pblico em sistemas de irrigao, estradas, comunicaes e outras in-fraestruturas, e com o investimento privado na agricultura comercial, empresas e produtores agrcolas procuraram maneiras de maximizar seus investimentos. A venda de grandes quantidades de gros que eram, muitas vezes, produzidos mais barato no exterior e tinham margens de lucro muito estreitas no melhor dos cenrios comeou a parecer menos atraente a muitos produtores rurais e a seus cre-dores. Nos anos 1960, eles comearam a perceber a existncia de um mercado potencial cada vez maior para frutas e vegetais tropicais e fora de estao nos Estados Unidos e na Europa. A partir do programa do governo mexicano para assegurar um estoque adequado de gros bsicos para a populao mexicana, tudo o que era necessrio gua, terra, produtos qumicos, estradas, comunicaes, crdito baratos, fora de trabalho estreitamente controlada e barata estava disponvel para deslocar uma considervel poro de terras que produziam gros para cultivos mais valiosos. Esses poderiam ser vendidos para consumidores com um apetite virtualmente insacivel por alimentos exticos, fora da estao, e com mais dinheiro do que o que se podia encontrar no mercado domstico. O vale do Culiacn, no estado de Sinaloa, no litoral Pacfico norte, foi o mais bem-sucedido no aproveitamento dessa oportunidade. Boas estradas e ferrovias estendiam-se por 965 km na direo norte, at Nogales, no Arizona. Dali, os vegetais podiam ser enviados para os mercados dos Estados Unidos e do Canad. Nos primeiros anos da dcada de 1980, o vale do Culiacn j estava fornecendo, de forma consistente, um tero de todos os vegetais de vero (tomates, pepinos, pimentas, beringelas, pimentes etc.) vendidos entre dezembro e maio nos Estados Unidos. Quando as colheitas na Flrida ficavam abaixo das expectativas, a participa-o do Culiacn podia chegar, s vezes, a dois teros. De acordo com as disposies da Constituio de 1917, aplicveis at a emenda constitucional de 1992, essas propriedades rurais pertenciam, pelo menos nominalmente, a mexicanos, mas 90% do financiamento foram provenientes dos Estados Unidos e, com isso, boa parte do controle sobre a produo e a comercializao passou para suas mos. Outros va-les irrigados dos estados do norte do Mxico aumentaram o fluxo de frutos, vegetais e, eventualmente, mesmo de vinhos, de alto valor, para os mercados dos Estados Unidos, do Canad e dos centros urbanos mexicanos. Mais para o sul, reas agrcolas como Apatzingn e Michoacn experimentaram o mesmo

    64 FERTEMPOX. Plan de desarrollo de Fertempox en la produccin, formulacin y comercializacin de pesticidas. Cidade do Mxico: Gerencia General de Planeacin, 1981.65 WRIGHT, Angus. The death of Ramon Gonzalez, op. cit. caps. 6 a 9.

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    tipo de boom nas atividades ligadas horticultura e voltadas principalmente para a exportao. No Ba-jo, a produo de gros e a pecuria continuaram a predominar como acontecera por sculos, mas era crescente a exportao de produtos hortigranjeiros, incluindo, por exemplo, a produo de morangos do ex-presidente mexicano Vicente Fox66.

    Recentemente, culturas tradicionais como a cana-de-acar na parte sul do estado de Puebla, tabaco em Nayart e algodo em Coahuila tornaram-se dependentes de pesticidas e fertilizantes sintticos. Embora raramente com a mesma intensidade das atividades hortigranjeiras em larga escala de Sinaloa ou dos campos de algodo de La Laguna, alguns pequenos agricultores tambm se tornaram altamente dependentes de pesticidas. Seu uso menos frequente deve-se, normalmente, mais ao custo do que s precaues.

    Nos anos 1980 ficou claro que muitos mexicanos e a maior parte das melhores terras do Mxico estavam comeando a pagar um preo elevado por essa enorme expanso da agricultura comercial, de-pendente de pesticidas sintticos. Estudos realizados no vale do Culiacn, desde os anos 1970 at pelo menos os primeiros anos do sculo XXI, mostraram que o uso descontrolado de pesticidas provocou uma sria contaminao de cursos dgua e um ataque sistemtico sade dos trabalhadores agrcolas e aos moradores das reas rurais.

    Meu prprio estudo de campo conduzido no inverno de 1983-1984 e que compreendeu visitas continuadas at 1989 constatou que combinaes altamente txicas de pesticidas estavam sendo usadas cerca de cinquenta vezes num perodo de dez meses. Desde janeiro at maio, os plantadores apli-caram com grande frequncia uma combinao de inseticida com fungicida duas vezes por semana. Os agricultores e os agrnomos que os supervisionavam ignoraram rotineiramente todas as precaues com segurana sugeridas pela indstria destinadas a proteger os trabalhadores agrcolas, os moradores das reas rurais e o meio ambiente, bem como a legislao nacional e os padres internacionais. Os