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El ser humano se ve a sí mismo como tal. La Luna, la serpiente, el jaguar y la madre de la viruela lo ven, sin embargo, como un tapir o un pecarí, que ellos matan (Baer 1994:224). Le point de vue est dans le corps, dit Leibniz (Deleuze 1988:16). Introdução O tema deste ensaio é aquele aspecto do pensamento ameríndio que manifesta sua “qualidade perspectiva” (Århem 1993): trata-se da con- cepção, comum a muitos povos do continente, segundo a qual o mundo é habitado por diferentes espécies de sujeitos ou pessoas, humanas e não- humanas, que o apreendem segundo pontos de vista distintos 1 . Os pres- supostos e conseqüências dessa idéia são irredutíveis (como mostrou Lima 1995:425-438) ao nosso conceito corrente de relativismo, que à primeira vista parecem evocar. Eles se dispõem, a bem dizer, de modo perfeita- mente ortogonal à oposição entre relativismo e universalismo. Tal resis- tência do perspectivismo ameríndio aos termos de nossos debates episte- mológicos põe sob suspeita a robustez e a conseqüente transportabilida- de das partições cosmológicas que os alimentam. Em particular, como muitos antropólogos já concluíram (embora por outros motivos), a distin- ção clássica entre Natureza e Cultura não pode ser utilizada para descre- ver dimensões ou domínios internos a cosmologias não-ocidentais sem passar antes por uma crítica etnológica rigorosa. Tal crítica, no caso presente, impõe a dissociação e redistribuição dos predicados subsumidos nas duas séries paradigmáticas que tradicio- nalmente se opõem sob os rótulos de “Natureza” e “Cultura”: universal e particular, objetivo e subjetivo, físico e moral, fato e valor, dado e insti- OS PRONOMES COSMOLÓGICOS E O PERSPECTIVISMO AMERÍNDIO Eduardo Viveiros de Castro MANA 2(2):115-144, 1996

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  • El ser humano se ve a s mismo como tal. La Luna, la serpiente, el jaguar y

    la madre de la viruela lo ven, sin embargo, como un tapir o un pecar, que

    ellos matan (Baer 1994:224).

    Le point de vue est dans le corps, dit Leibniz (Deleuze 1988:16).

    Introduo

    O tema deste ensaio aquele aspecto do pensamento amerndio quemanifesta sua qualidade perspectiva (rhem 1993): trata-se da con-cepo, comum a muitos povos do continente, segundo a qual o mundo habitado por diferentes espcies de sujeitos ou pessoas, humanas e no-humanas, que o apreendem segundo pontos de vista distintos1. Os pres-supostos e conseqncias dessa idia so irredutveis (como mostrou Lima1995:425-438) ao nosso conceito corrente de relativismo, que primeiravista parecem evocar. Eles se dispem, a bem dizer, de modo perfeita-mente ortogonal oposio entre relativismo e universalismo. Tal resis-tncia do perspectivismo amerndio aos termos de nossos debates episte-molgicos pe sob suspeita a robustez e a conseqente transportabilida-de das parties cosmolgicas que os alimentam. Em particular, comomuitos antroplogos j concluram (embora por outros motivos), a distin-o clssica entre Natureza e Cultura no pode ser utilizada para descre-ver dimenses ou domnios internos a cosmologias no-ocidentais sempassar antes por uma crtica etnolgica rigorosa.

    Tal crtica, no caso presente, impe a dissociao e redistribuiodos predicados subsumidos nas duas sries paradigmticas que tradicio-nalmente se opem sob os rtulos de Natureza e Cultura: universale particular, objetivo e subjetivo, fsico e moral, fato e valor, dado e insti-

    OS PRONOMES COSMOLGICOSE O PERSPECTIVISMO AMERNDIO

    Eduardo Viveiros de Castro

    MANA 2(2):115-144, 1996

  • tudo, necessidade e espontaneidade, imanncia e transcendncia, corpoe esprito, animalidade e humanidade, e outros tantos. Esse reembara-lhamento etnograficamente motivado das cartas conceituais leva-me asugerir a expresso multinaturalismo para designar um dos traos con-trastivos do pensamento amerndio em relao s cosmologias multicul-turalistas modernas: enquanto estas se apiam na implicao mtuaentre unicidade da natureza e multiplicidade das culturas a primeiragarantida pela universalidade objetiva dos corpos e da substncia, asegunda gerada pela particularidade subjetiva dos espritos e dos signifi-cados , a concepo amerndia suporia, ao contrrio, uma unidade doesprito e uma diversidade dos corpos. A cultura ou o sujeito seriamaqui a forma do universal, a natureza ou o objeto a forma do particular.

    Essa inverso, talvez demasiado simtrica para ser mais que espe-culativa, deve se desdobrar em uma interpretao fenomenolgica plau-svel das categorias cosmolgicas amerndias, que determine as condi-es de constituio dos contextos relacionais designveis como nature-za e cultura. Recombinar, portanto, mas para em seguida dessubstan-cializar, pois as categorias de Natureza e Cultura, no pensamento ame-rndio, no s no subsumem os mesmos contedos, como no possuem omesmo estatuto de seus anlogos ocidentais elas no designam pro-vncias ontolgicas, mas apontam para contextos relacionais, perspecti-vas mveis, em suma, pontos de vista.

    Como est claro, penso que a distino natureza/cultura deve sercriticada, mas no para concluir que tal coisa no existe (j h coisasdemais que no existem). O valor sobretudo metodolgico que Lvi-Strauss lhe atribuiu (1962b:327) aqui entendido como valor sobretudocomparativo. A florescente indstria da crtica ao carter ocidentalizantede todo dualismo tem advogado o abandono de nossa herana conceitualdicotmica, mas as alternativas at agora se resumem a desideratos ps-binrios um tanto vagos; prefiro, assim, perspectivizar nossos contrastescontrastando-os com as distines efetivamente operantes nas cosmolo-gias amerndias.

    Perspectivismo

    O estmulo inicial para esta reflexo so as numerosas referncias, naetnografia amaznica, a uma teoria indgena segundo a qual o modocomo os humanos vem os animais e outras subjetividades que povoam ouniverso deuses, espritos, mortos, habitantes de outros nveis csmi-

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  • cos, fenmenos meteorolgicos, vegetais, s vezes mesmo objetos e arte-fatos , profundamente diferente do modo como esses seres os vem ese vem.

    Tipicamente, os humanos, em condies normais, vem os humanoscomo humanos, os animais como animais e os espritos (se os vem) comoespritos; j os animais (predadores) e os espritos vem os humanos comoanimais (de presa), ao passo que os animais (de presa) vem os humanoscomo espritos ou como animais (predadores). Em troca, os animais e esp-ritos se vem como humanos: apreendem-se como (ou se tornam) antro-pomorfos quando esto em suas prprias casas ou aldeias, e experimen-tam seus prprios hbitos e caractersticas sob a espcie da cultura vem seu alimento como alimento humano (os jaguares vem o sanguecomo cauim, os mortos vem os grilos como peixes, os urubus vem osvermes da carne podre como peixe assado etc.), seus atributos corporais(pelagem, plumas, garras, bicos etc.) como adornos ou instrumentos cul-turais, seu sistema social como organizado do mesmo modo que as insti-tuies humanas (com chefes, xams, festas, ritos etc.). Esse ver comose refere literalmente a perceptos, e no analogicamente a conceitos, ain-da que, em alguns casos, a nfase seja mais no aspecto categorial quesensorial do fenmeno; de todo modo, os xams, mestres do esquematis-mo csmico (Taussig 1987:462-463), dedicados a comunicar e administraressas perspectivas cruzadas, esto sempre a para tornar sensveis os con-ceitos ou tornar inteligveis as intuies.

    Em suma, os animais so gente, ou se vem como pessoas. Tal con-cepo est quase sempre associada idia de que a forma manifesta decada espcie um mero envelope (uma roupa) a esconder uma formainterna humana, normalmente visvel apenas aos olhos da prpria esp-cie ou de certos seres transespecficos, como os xams. Essa forma inter-na o esprito do animal: uma intencionalidade ou subjetividade formal-mente idntica conscincia humana, materializvel, digamos assim, emum esquema corporal humano oculto sob a mscara animal. Teramosento, primeira vista, uma distino entre uma essncia antropomorfade tipo espiritual, comum aos seres animados, e uma aparncia corporalvarivel, caracterstica de cada espcie, mas que no seria um atributofixo, e sim uma roupa trocvel e descartvel. A noo de roupa2 umadas expresses privilegiadas da metamorfose espritos, mortos e xamsque assumem formas animais, bichos que viram outros bichos, humanosque so inadvertidamente mudados em animais , um processo onipre-sente no mundo altamente transformacional (Rivire 1995:201) propos-to pelas ontologias amaznicas.

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  • Esse perspectivismo e transformismo cosmolgico pode ser divisadoem vrias etnografias sul-americanas, mas em geral objeto de comen-trios concisos3, e parece ser muito desigualmente elaborado. Ele se achatambm, e ali com um valor talvez ainda mais pregnante, nas culturasdas regies boreais da Amrica do Norte e da sia, e entre caadores-coletores tropicais de outros continentes4. Na Amrica do Sul, as cosmo-logias do noroeste amaznico mostram os desenvolvimentos mais com-pletos (ver rhem 1993; e no prelo, em quem a descrio que precede foilargamente inspirada; Reichel-Dolmatoff 1985; Hugh-Jones 1996). Masso as etnografias de Vilaa (1992) sobre o canibalismo wari e de Lima(1995) sobre a epistemologia juruna que trazem as contribuies direta-mente afins ao presente trabalho, por ligarem a questo dos pontos devista no-humanos e da natureza posicional das categorias cosmolgicasao conjunto mais amplo de manifestaes de uma economia simblica daalteridade (Viveiros de Castro 1993)5.

    Algumas observaes gerais so necessrias. O perspectivismo noengloba, via de regra, todos os animais (alm de englobar outros seres);a nfase parece ser naquelas espcies que desempenham um papel sim-blico e prtico de destaque, como os grandes predadores, rivais doshumanos, e as presas principais dos humanos uma das dimenses cen-trais, talvez mesmo a dimenso fundamental, das inverses perspectivasdiz respeito aos estatutos relativos e relacionais de predador e presa (Vila-a 1992:49-51; rhem 1993:11-12). De outro lado, nem sempre claroque se atribuam almas ou subjetividades a cada indivduo animal, e hexemplos de cosmologias que negam aos animais ps-mticos a capaci-dade de conscincia (Overing 1985:249 e ss.; 1986:245-246), ou algumaoutra distino espiritual (Viveiros de Castro 1992a:73-74; Baer 1994:89).Entretanto, a noo de espritos senhores dos animais (mes da caa,mestres dos queixadas etc.) , como se sabe, de enorme difuso no con-tinente. Esses espritos-mestres, claramente dotados de uma intencionali-dade anloga humana, funcionam como hipstases das espcies ani-mais a que esto associados, criando um campo intersubjetivo humano-animal mesmo ali onde os animais empricos no so espiritualizados.

    Recordemos sobretudo que, se h uma noo virtualmente universalno pensamento amerndio, aquela de um estado original de indiferen-ciao entre os humanos e os animais, descrito pela mitologia6. Os mitosso povoados de seres cuja forma, nome e comportamento misturam inex-tricavelmente atributos humanos e animais, em um contexto comum deintercomunicabilidade idntico ao que define o mundo intra-humanoatual. A diferenciao entre cultura e natureza, que Lvi-Strauss

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  • mostrou ser o tema maior da mitologia amerndia, no um processo dediferenciao do humano a partir do animal, como em nossa cosmologiaevolucionista. A condio original comum aos humanos e animais no a animalidade, mas a humanidade. A grande diviso mtica mostra menosa cultura se distinguindo da natureza que a natureza se afastando da cul-tura: os mitos contam como os animais perderam os atributos herdadosou mantidos pelos humanos. Os humanos so aqueles que continuaramiguais a si mesmos: os animais so ex-humanos, e no os humanos ex-animais7. Em suma, o referencial comum a todos os seres da naturezano o homem enquanto espcie, mas a humanidade enquanto condi-o (Descola 1986:120).

    Esta uma distino entre a espcie humana e a condio huma-na que se deve guardar. Ela tem uma conexo evidente com a idiadas roupas animais a esconder uma essncia espiritual comum, e como problema do sentido geral do perspectivismo. Por ora, registremos ape-nas uma de suas incidncias etnogrficas mais importantes: a humanida-de passada dos animais se soma sua atual espiritualidade oculta pelaforma visvel para produzir um difundido complexo de restries ou pre-caues alimentares, que ora declara incomestveis certos animais miti-camente consubstanciais aos humanos, ora exige a dessubjetivao xa-manstica do animal antes que se o consuma (neutralizando seu esprito,transubstanciando sua carne em vegetal, reduzindo-o semanticamente aoutros animais menos prximos do humano)8, sob pena de retaliao emforma de doena, concebida como contrapredao canibal levada a efei-to pelo esprito da presa tornada predador, em uma inverso mortal deperspectivas que transforma o humano em animal.

    Convm destacar que o perspectivismo amerndio tem uma relaoessencial com o xamanismo, de que ao mesmo tempo o fundamento te-rico e o campo de operao, e com a valorizao simblica da caa. Aassociao entre o xamanismo e o que poderamos chamar de ideologiavenatria uma questo clssica (ver Chaumeil 1983:231-232; Crocker1985:17-25). Sublinho que se trata de importncia simblica, no de de-pendncia ecolgica: horticultores aplicados como os Tukano ou os Juru-na (que alm disso praticam mais a pesca que a caa) no diferem muitodos caadores do Canad e Alasca, no que diz respeito ao peso cosmol-gico conferido predao cinegtica, subjetivao espiritual dos ani-mais e teoria de que o universo povoado de intencionalidades extra-humanas dotadas de perspectivas prprias9. Nesse sentido, a espirituali-zao das plantas, meteoros ou artefatos me parece secundria ou deri-vada diante da espiritualizao dos animais: o animal o prottipo extra-

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  • humano do Outro, mantendo uma relao privilegiada com outras figu-ras prototpicas da alteridade, como os afins (Erikson 1984:110-112; Des-cola 1986:317-330; rhem no prelo)10. Ideologia de caadores, esta tam-bm e sobretudo uma ideologia de xams, na medida em que so os xamsque administram as relaes dos humanos com o componente espiritualdos extra-humanos, capazes como so de assumir o ponto de vista dessesseres e, principalmente, de voltar para contar a histria. Se o multicultu-ralismo ocidental o relativismo como poltica pblica, o xamanismoperspectivista amerndio o multinaturalismo como poltica csmica.

    Animismo

    O leitor ter advertido que meu perspectivismo evoca a noo de ani-mismo, recentemente recuperada por Descola (1992; no prelo), paradesignar um modo de articulao das sries natural e social que seria osimtrico e inverso do totemismo. Afirmando que toda conceitualizaodos no-humanos sempre referida ao domnio social, o autor distinguetrs modos de objetivao da natureza: o totemismo, onde as diferenasentre as espcies naturais so utilizadas para organizar logicamente aordem interna sociedade, isto , onde a relao entre natureza e cultu-ra de tipo metafrico e marcada pela descontinuidade (intra e inters-ries); o animismo, onde as categorias elementares da vida social orga-nizam as relaes entre os humanos e as espcies naturais, definindoassim uma continuidade de tipo sociomrfico entre natureza e cultura,fundada na atribuio de disposies humanas e caractersticas sociaisaos seres naturais (Descola no prelo:99); e o naturalismo, tpico das cos-mologias ocidentais, que supe uma dualidade ontolgica entre nature-za, domnio da necessidade, e cultura, domnio da espontaneidade,regies separadas por uma descontinuidade metonmica. O modo an-mico seria caracterstico das sociedades onde o animal foco estrat-gico de objetivao da natureza e de sua socializao (Descola1992:115), como na Amrica indgena, reinando soberano naquelas mor-fologias sociais desprovidas de segmentao interna elaborada. Mas elepode se apresentar em coexistncia ou combinao com o totemismo, alionde tais segmentaes existem, como no caso dos Bororo e seu dualis-mo aroe/bope (Descola no prelo:99)11.

    Essas idias se inserem em um modelo de ecologia simblica ain-da em elaborao, que no posso aqui discutir como ele mereceria12.Comentarei apenas, mas tomando-o em um sentido algo diferente do ori-

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  • ginal, o contraste entre animismo e naturalismo. (O totemismo me pareceum fenmeno heterogneo, antes classificatrio que cosmolgico: ele no um sistema de relaes entre natureza e cultura, como os outros doismodos, mas de correlaes puramente lgicas e diferenciais.)

    O animismo pode ser definido como uma ontologia que postula ocarter social das relaes entre as sries humana e no-humana: o inter-valo entre natureza e sociedade ele prprio social. O naturalismo estfundado no axioma inverso: as relaes entre sociedade e natureza soelas prprias naturais. Com efeito, se no modo anmico a distino natu-reza/cultura interna ao mundo social, humanos e animais estandoimersos no mesmo meio sociocsmico (e neste sentido a natureza par-te de uma socialidade englobante), na ontologia naturalista a distinonatureza/cultura interna natureza (e neste sentido a sociedadehumana um fenmeno natural entre outros). O animismo tem a socie-dade como plo no-marcado, o naturalismo, a natureza: esses plosfuncionam, respectiva e contrastivamente, como a dimenso do universalde cada modo. Animismo e naturalismo so, portanto, estruturas hierr-quicas e metonmicas (o que os distingue do totemismo, estrutura meta-frica e eqipolente).

    Em nossa ontologia naturalista, a interface sociedade/natureza natural: os humanos so aqui organismos como os outros, corpos-objetosem interao ecolgica com outros corpos e foras, todos reguladospelas leis necessrias da biologia e da fsica; as foras produtivas apli-cam as foras naturais. Relaes sociais, isto , relaes contratuais ouinstitudas entre sujeitos, s podem existir no interior da sociedade huma-na. Mas quo no-naturais este seria o problema do naturalismo so essas relaes? Dada a universalidade da natureza, o estatuto domundo humano e social instvel, e, como mostra a histria do pensa-mento ocidental, perpetuamente oscilante entre o monismo naturalista(de que a sociobiologia um dos avatares atuais) e o dualismo ontol-gico natureza/cultura (de que o culturalismo a expresso contempo-rnea). A afirmao deste ltimo dualismo e seus correlatos (corpo/men-te, razo pura/razo prtica etc.), porm, s faz reforar o carter de refe-rencial ltimo da noo de natureza, ao se revelar descendente em linhadireta da oposio entre natureza e sobrenatureza. A Cultura o nomemoderno do Esprito recorde-se a distino entre as Naturwissenschaf-ten e as Geistwissenschaften , ou pelo menos o nome do compromisso,ele prprio instvel, entre a Natureza e a Graa. Do lado do animismo,seramos tentados a dizer que a instabilidade est no plo oposto: o pro-blema ali administrar a mistura de humanidade e animalidade dos ani-

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  • mais, e no, como entre ns, a combinao de cultura e natureza quecaracteriza os humanos; a questo diferenciar uma natureza a partirdo sociomorfismo universal.

    Mas de fato possvel definir o animismo como uma projeo dediferenas e qualidades internas ao mundo humano sobre o mundo no-humano, como um modelo sociocntrico onde categorias e relaessociais so usadas para mapear o universo (Descola no prelo:97)? Estainterpretao analgica explcita em algumas glosas da teoria: iftotemic systems model society after nature, then animic systems modelnature after society (rhem no prelo:211). O problema aqui, obviamen-te, o de evitar uma indesejvel proximidade com a acepo tradicionalde animismo, ou com a reduo das classificaes primitivas a ema-naes da morfologia social (Descola no prelo:97); mas tambm o de iralm de outras caracterizaes clssicas da relao sociedade/natureza,como a de Radcliffe-Brown13.

    Ingold (1991; 1992; no prelo) mostrou como os esquemas de proje-o analgica ou de modelizao social da natureza escapam do reducio-nismo naturalista apenas para carem em um dualismo natureza/culturaque, ao distinguir entre uma natureza realmente natural e uma natu-reza culturalmente construda, revela-se como uma tpica antinomiacosmolgica viciada pela regresso ao infinito. A noo de modelo oumetfora supe a distino prvia entre um domnio onde as relaessociais so constitutivas e literais e outro onde elas so representativas emetafricas. Em outras palavras, a idia de que humanos e animais estoligados por uma socialidade comum depende contraditoriamente de umadescontinuidade ontolgica primeira. O animismo, interpretado comoprojeo da socialidade humana sobre o mundo no-humano, no passa-ria da metfora de uma metonmia, permanecendo cativo de uma leituratotmica ou classificatria.

    Entre as questes que restam a resolver, portanto, est a de saber seo animismo pode ser descrito como um uso figurado de categorias dodomnio humano-social para conceitualizar o domnio dos no-humanose suas relaes com o primeiro. Isto redunda em indagar at que ponto operspectivismo, que um como corolrio etno-epistemolgico do ani-mismo, exprime realmente um antropomorfismo analgico, isto , umantropocentrismo. O que significa dizer que os animais so pessoas?

    Outra questo: se o animismo depende da atribuio aos animaisdas mesmas faculdades sensveis dos homens, e de uma mesma forma desubjetividade, isto , se os animais so essencialmente humanos, qualafinal a diferena entre os humanos e os animais? Se os animais so gen-

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  • te, por que no nos vem como gente? Por que, justamente, o perspecti-vismo? Cabe tambm perguntar se a noo de formas corporais contin-gentes (as roupas) pode ser de fato descrita em termos de uma oposi-o entre aparncia e essncia (Descola 1986:120; rhem 1993:122; Rivi-re 1995; Hugh-Jones 1996).

    Por fim, se o animismo um modo de objetivao da natureza ondeo dualismo natureza/cultura no vigora, o que fazer com as abundantesindicaes a respeito da centralidade dessa oposio nas cosmologias sul-americanas? Tratar-se-ia apenas de mais uma iluso totmica, se node uma projeo ingnua de nosso dualismo ocidental? possvel fazerum uso mais que sinptico dos conceitos de natureza e cultura, ou elesseriam apenas rtulos genricos (Descola no prelo:95) a que Lvi-Strauss recorreu para organizar os mltiplos contrastes semnticos dasmitologias americanas, contrastes estes irredutveis a uma dicotomia ni-ca e massiva?

    Etnocentrismo

    Em um texto muito conhecido, Lvi-Strauss observava que, para os sel-vagens, a humanidade cessa nas fronteiras do grupo, concepo que seexprimiria exemplarmente na grande difuso de auto-etnnimos cujo sig-nificado os humanos verdadeiros, e que implicam assim uma defini-o dos estrangeiros como pertencentes ao domnio do extra-humano. Oetnocentrismo no seria privilgio dos ocidentais, portanto, mas uma ati-tude ideolgica natural, inerente aos coletivos humanos. O autor ilustra areciprocidade universal de tal atitude com uma anedota:

    Nas Grandes Antilhas, alguns anos aps a descoberta da Amrica, enquan-

    to os espanhis enviavam comisses de inqurito para investigar se os ind-

    genas tinham ou no uma alma, estes se dedicavam a afogar os brancos que

    aprisionavam, a fim de verificar, por uma demorada observao, se seus

    cadveres eram ou no sujeitos putrefao (Lvi-Strauss 1973a:384, tra-

    duo minha).

    Lvi-Strauss extrai dessa parbola a clebre moral: O brbaro , an-tes de mais nada, o homem que cr na existncia da barbrie. Algunsanos depois, ele iria recontar o caso das Antilhas, mas dessa vez subli-nhando a assimetria das perspectivas: em suas investigaes sobre ahumanidade do Outro, os brancos apelavam para as cincias sociais, os

    OS PRONOMES COSMOLGICOS E O PERSPECTIVISMO AMERNDIO 123

  • ndios, para as cincias naturais; e se os primeiros concluam que os ndioseram animais, os segundos se contentavam em desconfiar que os bran-cos fossem divindades (Lvi-Strauss 1955:82-83). ignorance gale,diz o autor, a ltima atitude era mais digna de seres humanos.

    A anedota revela algo mais, como veremos. Por ora, observe-se quenada permite concluir que os ndios estivessem imputando uma poten-cial divindade aos brancos: podiam apenas estar querendo saber se eramespritos malignos, no deuses. De qualquer modo, o ponto geral sim-ples: os ndios, como os invasores europeus, consideram que apenas ogrupo a que pertencem encarna a humanidade; os estrangeiros esto dooutro lado da fronteira que separa os humanos dos animais e espritos, acultura da natureza e da sobrenatureza. Matriz e condio de possibili-dade do etnocentrismo, a oposio natureza/cultura aparece como umuniversal da apercepo social.

    No tempo em que Lvi-Strauss escrevia essas linhas, a estratgiapara se vindicar a plena humanidade dos selvagens era a de mostrar queeles faziam as mesmas distines que ns: a prova de que eles eram ver-dadeiros humanos que consideravam que somente eles eram humanosverdadeiros. Como ns, eles distinguiam a cultura da natureza, e tam-bm achavam que Naturvlker so os outros. A universalidade da distin-o cultural entre Natureza e Cultura atestava a universalidade da cultu-ra como natureza do humano. Em suma, a resposta questo dos investi-gadores quinhentistas era positiva: os selvagens tm alma.

    Agora, tudo mudou. Os selvagens no so mais etnocntricos, mascosmocntricos; em lugar de precisarmos provar que eles so humanosporque se distinguem do animal, trata-se agora de mostrar quo poucohumanos somos ns, que opomos humanos e animais de um modo queeles nunca fizeram: para eles, natureza e cultura so parte de um mesmocampo sociocsmico. Os amerndios no somente passariam ao largo doGrande Divisor cartesiano que separou a humanidade da animalidade,como sua concepo social do cosmos (e csmica da sociedade) antecipaas lies fundamentais da ecologia, que apenas agora estamos em condi-es de assimilar (Reichel-Dolmatoff 1976). Antes se observava a recusa,por parte dos ndios, de conceder os predicados da humanidade a outroshomens; agora se sublinha que eles estendem tais predicados muito almdas fronteiras da espcie, em uma demonstrao de sabedoria ecosfi-ca (rhem 1993) que devemos emular, tanto quanto permitam os limitesde nosso objetivismo14. Antes, era preciso contestar a assimilao do pen-samento selvagem ao animismo narcsico, estgio infantil do naturalis-mo, mostrando que o totemismo afirmava a distino cognitiva entre o

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  • homem e a natureza; agora, o neo-animismo se revela como reconheci-mento da mestiagem universal entre sujeitos e objetos, humanos e no-humanos. Contra a hybris moderna, os hbridos primitivos e amoder-nos (Latour 1991).

    Duas antinomias, portanto, que so de fato uma s: ou os amerndiosso etnocentricamente avaros na extenso do conceito de humanidade, eopem totemicamente natureza e cultura; ou eles so cosmocntricos eanmicos, e no professam tal distino, sendo modelos de tolerncia rela-tivista, ao postular a multiplicao de pontos de vista sobre o mundo. Emsuma: ou fechamento sobre si, ou abertura ao outro (Lvi-Strauss 1991:16).

    Penso que a soluo para essas antinomias no est em escolher umlado, sustentando, por exemplo, que a verso mais recente a correta erelegando a outra s trevas pr-ps-modernas. Trata-se mais bem de mos-trar que tanto a tese como a anttese so verdadeiras (ambas corres-pondem a intuies etnogrficas slidas), mas que elas apreendem osmesmos fenmenos sob aspectos distintos; e tambm de mostrar queambas so falsas, por se referirem a uma concepo substantivista dascategorias de Natureza e Cultura (seja para afirm-las ou para neg-las)inaplicvel s cosmologias amerndias.

    A primeira coisa a considerar que as palavras amerndias que secostumam traduzir por ser humano, e que entram na composio dastais autodesignaes etnocntricas, no denotam a humanidade comoespcie natural, mas a condio social de pessoa, e, sobretudo quandomodificadas por intensificadores do tipo de verdade, realmente, fun-cionam (pragmtica quando no sintaticamente) menos como substanti-vos que como pronomes. Elas indicam a posio de sujeito; so um mar-cador enunciativo, no um nome. Longe de manifestarem um afunila-mento semntico do nome comum ao prprio (tomando gente paranome da tribo), essas palavras mostram o oposto, indo do substantivo aoperspectivo (usando gente como o pronome coletivo a gente). Porisso mesmo, as categorias indgenas de identidade coletiva tm aquelaenorme variabilidade contextual de escopo caracterstica dos pronomes,marcando contrastivamente desde a parentela imediata de um Ego attodos os humanos, ou mesmo todos os seres dotados de conscincia; suacoagulao como etnnimo parece ser, em larga medida, um artefatoproduzido no contexto da interao com o etngrafo. No tampouco poracaso que a maioria dos etnnimos amerndios que passaram literaturano so autodesignaes, mas nomes (freqentemente pejorativos) con-feridos por outros povos: a objetivao etnonmica incide primordialmen-te sobre os outros, no sobre quem est em posio de sujeito. Os etnni-

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    mos so nomes de terceiros, pertencem categoria do eles, no cate-goria do ns15. Isso consistente, alis, com uma difundida evitao daauto-referncia no plano da onomstica pessoal: os nomes no so pro-nunciados por seus portadores, ou em sua presena; nomear externali-zar, separar (d)o sujeito.

    Assim, as auto-referncias de tipo gente significam pessoa, nomembro da espcie humana; e elas so pronomes pessoais, registran-do o ponto de vista do sujeito que est falando, e no nomes prprios.Dizer ento que os animais e espritos so gente dizer que so pessoas; atribuir aos no-humanos as capacidades de intencionalidade conscien-te e de agncia que definem a posio de sujeito. Tais capacidades soreificadas na alma ou esprito de que esses no-humanos so dota-dos. sujeito quem tem alma, e tem alma quem capaz de um ponto devista. As almas amerndias, humanas ou animais, so assim categoriasperspectivas, deticos cosmolgicos cuja anlise pede menos uma psico-logia animista ou uma ontologia substancialista que uma teoria do signoou uma pragmtica epistemolgica (Viveiros de Castro 1992b; Taylor1993a; 1993b)16.

    Todo ser a que se atribui um ponto de vista ser assim sujeito, esp-rito; ou melhor, ali onde estiver o ponto de vista, tambm estar a posi-o de sujeito. Enquanto nossa cosmologia construcionista pode ser resu-mida na frmula saussureana: o ponto de vista cria o objeto o sujeitosendo a condio originria fixa de onde emana o ponto de vista , operspectivismo amerndio procede segundo o princpio de que o pontode vista cria o sujeito; ser sujeito quem se encontrar ativado ou agen-ciado pelo ponto de vista17. por isso que termos como wari (Vilaa1992), dene (McDonnell 1984) ou masa (rhem 1993) significam gen-te, mas podem ser ditos por e portanto ditos de classes muito dife-rentes de seres; ditos pelos humanos, denotam os seres humanos, masditos pelos queixadas, guaribas ou castores, eles se auto-referem aosqueixadas, guaribas ou castores.

    Sucede que esses no-humanos colocados em perspectiva de sujeitono se dizem apenas gente; eles se vem morfolgica e culturalmentecomo humanos, conforme explicam os xams. A espiritualizao simbli-ca dos animais implicaria sua hominizao e culturalizao imaginrias;o carter antropocntrico do pensamento indgena, assim, pareceriainquestionvel. Mas creio que se trata de algo completamente diferente.Todo ser que ocupa vicariamente o ponto de vista de referncia, estandoem posio de sujeito, apreende-se sob a espcie da humanidade. A for-ma corporal humana e a cultura os esquemas de percepo e ao

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    encorporados18 em disposies especficas so atributos pronomi-nais do mesmo tipo que as autodesignaes acima discutidas. Esquema-tismos reflexivos ou aperceptivos, tais atributos so o modo mediante oqual todo sujeito se apreende, e no predicados literais e constitutivos daespcie humana projetados metaforicamente sobre os no-humanos.Esses atributos so imanentes ao ponto de vista, e se deslocam com ele.O ser humano naturalmente goza da mesma prerrogativa, e portan-to, como diz a enganadora tautologia em epgrafe, v-se a si mesmocomo tal. Isto significa dizer que a Cultura a natureza do Sujeito; ela a forma pela qual todo sujeito experimenta sua prpria natureza. O ani-mismo no uma projeo figurada do humano sobre o animal, mas equi-valncia real entre as relaes que humanos e animais mantm consigomesmos. Se, como observamos, a condio comum aos humanos e ani-mais a humanidade, no a animalidade, porque humanidade onome da forma geral do Sujeito.

    Multinaturalismo

    Com isso podemos ter descartado o antropomorfismo analgico, masparece que apenas para assumir o relativismo. Pois, essa cosmologia dosmltiplos pontos de vista no implicaria que cada perspectiva igual-mente vlida e verdadeira, e que no existe uma representao domundo correta e verdadeira? (rhem 1993:124).

    Mas esta justamente a questo: a teoria perspectivista amerndiaest de fato afirmando uma multiplicidade de representaes sobre o mes-mo mundo? Basta considerar o que dizem as etnografias, para perceberque o inverso que se passa: todos os seres vem (representam) o mun-do da mesma maneira o que muda o mundo que eles vem. Os ani-mais impem as mesmas categorias e valores que os humanos sobre o real:seus mundos, como o nosso, giram em torno da caa e da pesca, da cozi-nha e das bebidas fermentadas, das primas cruzadas e da guerra, dos ritosde iniciao, dos xams, chefes, espritos Se a Lua, as cobras e as onasvem os humanos como tapires ou pecaris, porque, como ns, elas co-mem tapires e pecaris, comida prpria de gente. S poderia ser assim,pois, sendo gente em seu prprio departamento, os no-humanos vem ascoisas como a gente v. Mas as coisas que eles vem so outras: o quepara ns sangue, para o jaguar cauim; o que para as almas dos mortos um cadver podre, para ns mandioca pubando; o que vemos comoum barreiro lamacento, para as antas uma grande casa cerimonial

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    O relativismo (multi)cultural supe uma diversidade de representa-es subjetivas e parciais, incidentes sobre uma natureza externa, una etotal, indiferente representao; os amerndios propem o oposto: umaunidade representativa ou fenomenolgica puramente pronominal, apli-cada indiferentemente sobre uma radical diversidade objetiva. Uma scultura, mltiplas naturezas o perspectivismo um multinatura-lismo, pois uma perspectiva no uma representao.

    Uma perspectiva no uma representao porque as representa-es so propriedades do esprito, mas o ponto de vista est no corpo. Sercapaz de ocupar o ponto de vista sem dvida uma potncia da alma, eos no-humanos so sujeitos na medida em que tm (ou so) um esprito;mas a diferena entre os pontos de vista (e um ponto de vista no senodiferena) no est na alma, pois esta, formalmente idntica atravs dasespcies, s enxerga a mesma coisa em toda parte a diferena dadapela especificidade dos corpos. Isso permite responder s perguntas: seos no-humanos so pessoas e tm almas, em que se distinguem doshumanos? E por que, sendo gente, no nos vem como gente?

    Os animais vem da mesma maneira que ns coisas diversas do quevemos porque seus corpos so diferentes dos nossos. No estou me refe-rindo a diferenas de fisiologia quanto a isso, os amerndios reconhe-cem uma uniformidade bsica dos corpos , mas aos afetos, afeces oucapacidades que singularizam cada espcie de corpo: o que ele come,como se move, como se comunica, onde vive, se gregrio ou solitrio Amorfologia, a forma visvel dos corpos, um signo poderoso dessas diferen-as de afeco, embora possa ser enganadora, pois uma aparncia dehumano, por exemplo, pode estar ocultando uma afeco-jaguar. O que es-tou chamando de corpo, portanto, no sinnimo de fisiologia distintivaou de morfologia fixa; um conjunto de afeces ou modos de ser que cons-tituem um habitus. Entre a subjetividade formal das almas e a materiali-dade substancial dos organismos, h um plano intermedirio que o corpocomo feixe de afeces e capacidades, e que a origem das perspectivas.

    A diferena dos corpos, entretanto, s apreensvel de um ponto devista exterior, para outrem, uma vez que, para si mesmo, cada tipo de sertem a mesma forma (a forma genrica do humano): os corpos so o modopelo qual a alteridade apreendida como tal. No vemos, em condiesnormais, os animais como gente, e reciprocamente, porque nossos corposrespectivos (e perspectivos) so diferentes. Assim, se a cultura a pers-pectiva reflexiva do sujeito objetivada no conceito de alma, pode-se dizerque a natureza o ponto de vista do sujeito sobre os outros corpos-afeces; se a Cultura a natureza do Sujeito, a Natureza a forma do

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    Outro enquanto corpo, isto , como objeto para um sujeito. A cultura tema forma auto-referencial do pronome-sujeito eu; a natureza a formapor excelncia da no-pessoa ou do objeto, indicada pelo pronomeimpessoal ele (Benveniste 1966a:256).

    Se o corpo o que faz a diferena aos olhos amerndios, ento secompreende por que os mtodos espanhis e antilhanos de averiguaoda humanidade do outro, na anedota narrada por Lvi-Strauss, mostra-vam aquela assimetria. Para os europeus, tratava-se de decidir se osoutros tinham uma alma; para os ndios, de saber que tipo de corpotinham os outros. O grande diacrtico, o marcador da diferena de pers-pectiva para os europeus a alma (os ndios so homens ou animais?);para os ndios, o corpo (os europeus so homens ou espritos?). Os euro-peus no duvidavam que os ndios fossem corpos; os ndios, que os euro-peus tivessem almas (animais e espritos tambm as tm). O que os ndiosqueriam saber era se o corpo daquelas almas era capaz das mesmasafeces que os seus se era um corpo humano ou um corpo de espri-to, imputrescvel e proteiforme. Em suma: o etnocentrismo europeu con-siste em negar que outros corpos tenham a mesma alma; o amerndio, emduvidar que outras almas tenham o mesmo corpo.

    O estatuto do humano no pensamento ocidental , como sublinhouIngold (1994a; 1994b:3-5), essencialmente ambguo: de um lado, a huma-nidade (humankind) uma espcie animal entre outras, e a animalidade um domnio que inclui os humanos; de outro, a humanidade (humanity) uma condio moral que exclui os animais. Esses dois estatutos coabi-tam no conceito problemtico e disjuntivo de natureza humana. Ditode outro modo, nossa cosmologia postula uma continuidade fsica e umadescontinuidade metafsica (ou seja, sobrenatural, passando do grego aolatim) entre os humanos e os animais, a primeira fazendo do homem obje-to das cincias da natureza, a segunda, das cincias da cultura. O espri-to o grande diferenciador ocidental: o que nos sobrepe aos animaise matria em geral, o que nos singulariza diante de nossos semelhan-tes, o que distingue as culturas. O corpo, ao contrrio, o grande inte-grador: ele nos conecta ao resto dos viventes, unidos todos por um subs-trato universal (o ADN, a qumica do carbono etc.) que, por sua vez, reme-te natureza ltima de todos os corpos materiais19. Em contrapartida, osamerndios postulam uma continuidade metafsica e uma descontinuida-de fsica entre os seres do cosmos, a primeira resultando no animismo, asegunda, no perspectivismo: o esprito (que no aqui substncia imate-rial, mas forma reflexiva) o que integra; o corpo (que no substnciamaterial, mas afeco ativa) o que diferencia.

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    Os muitos corpos do esprito

    A idia de que o corpo aparece como o grande diferenciador nas cosmo-logias amaznicas isto , como aquilo que s une seres do mesmo tipona medida em que os distingue de outros permite retomar sob novaluz algumas questes clssicas da etnologia regional.

    Assim, o tema j antigo da importncia da corporalidade nas socie-dades amaznicas (Seeger et alii 1979) ganha um fundamento cosmol-gico. possvel, por exemplo, entender melhor por que as categorias deidentidade individuais, coletivas, tnicas ou cosmolgicas expri-mem-se to freqentemente por meio de idiomas corporais, em parti-cular pela alimentao e pela decorao corporal. A pregnncia simbli-ca universal dos regimes alimentares e culinrios do cru e o cozidomitolgico e lvi-straussiano idia dos Piro de que sua comida legti-ma o que os faz, literalmente, diferentes dos Brancos (Gow 1991); dasabstinncias alimentares definidoras dos grupos de substncia do Bra-sil Central (Seeger 1980) classificao bsica dos seres em termos deseu regime alimentar (Baer 1994:88); da produtividade ontolgica dacomensalidade, semelhana de dieta e condio relativa de presa-objetoe predador-sujeito (Vilaa 1992) onipresena do canibalismo como hori-zonte predicativo de toda relao com o outro, seja ela matrimonial,manducatria ou guerreira (Viveiros de Castro 1993) , essa universali-dade manifesta justamente a idia de que o conjunto de hbitos e pro-cessos que constituem os corpos o lugar de emergncia da identidade eda diferena.

    O mesmo se diga do intenso uso semitico do corpo na definio daidentidade pessoal e na circulao dos valores sociais (Turner 1995). Aconexo entre tal sobre-explorao do corpo (particularmente de suasuperfcie visvel) e o recurso restrito, no socius amaznico, a objetoscapazes de servir como suporte de relaes isto , uma situao ondea troca social no mediada por objetivaes materiais como as quecaracterizam as economias do dom ou da mercadoria foi sagazmentedestacada por Turner, que mostrou como o corpo humano deve ento apa-recer como o prottipo do objeto social. Mas a nfase amerndia na cons-truo social do corpo no pode ser tomada como culturalizao de umsubstrato natural, e sim como produo de um corpo distintivamentehumano, entenda-se, naturalmente humano. Tal processo parece expri-mir menos a vontade de desanimalizar o corpo por sua marcao cul-tural que a de particularizar um corpo ainda demasiado genrico, dife-renciando-o dos corpos de outros coletivos humanos tanto quanto de

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    outras espcies. O corpo, sendo o lugar da perspectiva diferenciante,deve ser maximamente diferenciado para exprimi-la completamente.

    O corpo humano pode ser visto como lugar de confrontao entrehumanidade e animalidade, mas no porque carregue uma natureza ani-mal que deve ser velada e controlada pela cultura (Rivire 1995). Ele oinstrumento fundamental de expresso do sujeito e ao mesmo tempo oobjeto por excelncia, aquilo que se d a ver a outrem. No por acaso,ento, a objetivao social mxima dos corpos, sua mxima particulariza-o expressa na decorao e exibio ritual, ao mesmo tempo sua mxi-ma animalizao (Goldman 1975:178; Turner 1991; 1995), quando elesso recobertos por plumas, cores, grafismos, mscaras e outras prtesesanimais. O homem ritualmente vestido de animal a contrapartida doanimal sobrenaturalmente nu: o primeiro, transformado em animal, reve-la para si mesmo a distintividade natural do seu corpo; o segundo, des-pido de sua forma exterior e se revelando como humano, mostra a seme-lhana sobrenatural dos espritos. O modelo do esprito o espritohumano, mas o modelo do corpo o corpo animal; e se do ponto de vistado sujeito a cultura a forma genrica do eu e a natureza a do ele, aobjetivao do sujeito para si mesmo exige a singularizao dos corpos o que naturaliza a cultura, isto , a encorpora , enquanto a subjeti-vao do objeto implica a comunicao dos espritos o que culturalizaa natureza, isto , a sobrenaturaliza. A problemtica amerndia da distin-o Natureza/Cultura, nesses termos, antes de ser dissolvida em nomede uma comum socialidade anmica humano-animal, deve ser relida luz do perspectivismo somtico.

    importante observar que esses corpos amerndios no so pensa-dos sob o modo do fato, mas do feito. Por isso a nfase nos mtodos defabricao contnua do corpo (Viveiros de Castro 1979), a concepo doparentesco como processo de assemelhamento ativo dos indivduos (Gow1989; 1991) pela partilha de fluidos corporais, sexuais e alimentares eno como herana passiva de uma essncia substancial , a teoria damemria que inscreve esta na carne (Viveiros de Castro 1992a:201-207), e mais geralmente uma teoria do conhecimento que o situa no cor-po (McCallum 1996). A Bildung amerndia incide sobre o corpo antes quesobre o esprito: no h mudana espiritual que no passe por umatransformao do corpo, por uma redefinio de suas afeces e capaci-dades. Por isso ainda, se a distino entre corpo e alma tem uma eviden-te pertinncia nessas cosmologias, ela no pode ser interpretada comouma descontinuidade ontolgica. Enquanto feixes de afeces e stios deperspectivas mais que organismos materiais, os corpos tm alma, como

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    as almas e espritos, alis, tm corpo. A concepo dual (ou plural) daalma humana, muito difundida na Amaznia indgena, distingue entreuma alma (ou almas) do corpo, registro reificado da histria do indivduo,precipitado da memria e do afeto, e uma alma verdadeira, pura sin-gularidade subjetiva formal, marca abstrata da pessoa (por exemplo,Viveiros de Castro 1992a:201-214; McCallum 1996). De outro lado, asalmas dos mortos e os espritos que habitam o universo no so entida-des imateriais, mas outros tantos tipos de corpo dotados de propriedades afeces sui generis. A distino amerndia entre alma e corpo no uma distino substantiva, mas algo que parece remeter a uma epis-temologia ontologizada (Taylor 1993a:444-445). Com efeito, corpo ealma, assim como natureza e cultura, no correspondem a substantivos,entidades auto-subsistentes ou provncias ontolgicas, mas a pronomesou perspectivas fenomenolgicas.

    O carter performado mais que dado do corpo, concepo que exigeque se o diferencie culturalmente para que ele possa diferenciar natu-ralmente, tem uma evidente conexo com a metamorfose interespecfi-ca, possibilidade afirmada pelas cosmologias amerndias. No devemosnos surpreender com um pensamento que pe os corpos como grandesdiferenciadores e afirma ao mesmo tempo sua transformabilidade. Nossacosmologia supe a distintividade singular dos espritos, mas nem porisso declara impossvel a comunicao (embora o solipsismo seja um pro-blema constante) ou desacredita da transformao espiritual induzidapor processos como a educao e a converso religiosa; na verdade, precisamente porque os espritos so diferentes que a converso se faznecessria (os europeus queriam saber se os ndios tinham alma parapoder modific-la). A metamorfose corporal a contrapartida amerndiado tema europeu da converso espiritual20. Do mesmo modo, se o solip-sismo o fantasma que ameaa perenemente nossa cosmologia tradu-zindo o medo de no nos reconhecermos em nossos semelhantes, poreles no o serem, dada a singularidade potencialmente absoluta dos esp-ritos , a possibilidade da metamorfose exprime o temor oposto, o de nose poder mais diferenciar o humano do animal, e, sobretudo, o temor dese ver o humano que insiste sob o corpo animal que se come. Donde aimportncia do complexo de proibies ou precaues alimentares asso-ciadas potncia espiritual dos animais, a que fiz meno pginas atrs.O fantasma do canibalismo o equivalente amerndio do problema dosolipsismo: se este deriva da incerteza de que a semelhana natural doscorpos garanta a comunidade real dos espritos, aquele suspeita que asemelhana dos espritos possa prevalecer sobre a diferena real dos cor-

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    pos, e que todo animal que se come permanea, apesar dos esforosxamansticos para sua dessubjetivao, humano. O que no impede,naturalmente, que tenhamos entre ns solipsistas mais ou menos radi-cais, como os relativistas, nem que vrias sociedades amerndias sejamdeliberada e mais ou menos literalmente canibais.

    A noo de metamorfose est diretamente ligada doutrina dasroupas animais, a que j me referi. Como conciliar essa idia de que ocorpo o stio da perspectiva diferenciante com o tema da aparncia eda essncia, sempre evocado para interpretar o animismo e o perspecti-vismo? Aqui me parece haver um equvoco importante, que o de tomara aparncia corporal como inerte e falsa, a essncia espiritual comoativa e verdadeira (ver as observaes decisivas de Goldman 1975:63).Nada mais distante, penso, do que os ndios tm em mente ao falaremdos corpos como roupas. Trata-se menos de o corpo ser uma roupa quede uma roupa ser um corpo. Estamos diante de sociedades que inscre-vem na pele significados eficazes, e que utilizam mscaras animais (oupelo menos conhecem seu princpio) dotadas do poder de transformarmetafisicamente a identidade de seus portadores, quando usadas no con-texto ritual apropriado. Vestir uma roupa-mscara menos ocultar umaessncia humana sob uma aparncia animal que ativar os poderes de umcorpo outro21. As roupas animais que os xams utilizam para se deslocarpelo cosmos no so fantasias, mas instrumentos: elas se aparentam aosequipamentos de mergulho ou aos trajes espaciais, no s mscaras decarnaval. O que se pretende ao vestir um escafandro poder funcionarcomo um peixe, respirando sob a gua, e no se esconder sob uma formaestranha. Do mesmo modo, as roupas que, nos animais, recobrem umaessncia interna de tipo humano no so meros disfarces, mas seu equi-pamento distintivo, dotado das afeces e capacidades que definem cadaanimal. verdade que aparncias enganam (Rivire 1995) mas, nocaso, raramente. Minha impresso que as narrativas amerndias quetematizam as roupas animais mostram mais interesse no que essas rou-pas fazem do que no que escondem22. Alm disso, entre um ser e sua apa-rncia est o seu corpo, que mais que esta e as mesmas narrativasmostram como as aparncias so sempre desmascaradas por um com-portamento corporal inconsistente com elas. Em suma: no h dvida queos corpos so descartveis e trocveis, e que atrs deles esto subjeti-vidades formalmente idnticas humana. Mas essa idia no seme-lhante nossa oposio entre aparncia e essncia; ela manifesta apenasque a permutabilidade objetiva dos corpos est fundada na equivalnciasubjetiva dos espritos.

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    Um outro tema clssico da etnologia sul-americana que poderia serinterpretado nesse quadro o da descontinuidade sociolgica entre osvivos e os mortos (Carneiro da Cunha 1978). A distino fundamentalentre os vivos e os mortos passa pelo corpo e no, precisamente, peloesprito; a morte uma catstrofe corporal que prevalece como diferen-ciador sobre a comum animao dos vivos e dos mortos. As cosmolo-gias amerndias dedicam igual ou maior interesse caracterizao domodo como os mortos vem o mundo que viso dos animais, e, comono caso destes, comprazem-se em sublinhar as diferenas radicais emrelao ao mundo dos vivos. Os mortos, a rigor, no so humanos, estan-do definitivamente separados de seus corpos. Esprito definido por suadisjuno com um corpo humano, um morto ento atrado logicamentepelos corpos animais; por isso, morrer se transformar em animal (Pol-lock 1985:95; Vilaa 1992:247-255; Turner 1995:152), como se transfor-mar em outras figuras da alteridade corporal, os afins e os inimigos. Des-sa forma, se o animismo afirma uma continuidade subjetiva e social entrehumanos e animais, seu complemento somtico, o perspectivismo, esta-belece uma descontinuidade objetiva, igualmente social, entre humanosvivos e humanos mortos. (As religies fundadas no culto de ancestraisparecem fazer a postulao inversa: a identidade espiritual atravessa abarreira corporal da morte, os vivos e os mortos so semelhantes na medi-da em que manifestam o mesmo esprito ancestralidade sobre-huma-na e possesso espiritual, de um lado, animalizao dos mortos e meta-morfose corporal, do outro...)

    Aps ter examinado o componente diferenciante do perspectivismoamerndio, resta-me atribuir uma funo cosmolgica unidade trans-especfica do esprito. aqui, penso, que se pode propor uma definiorelacional de uma categoria, a de sobrenatureza, hoje em descrdito,mas cuja pertinncia me parece inquestionvel23. parte seu uso muitocmodo para rotular domnios cosmogrficos de tipo hyper-ouranios,ou para definir uma terceira categoria de entidades intencionais poisdecididamente h vrios seres nas cosmologias indgenas que no sonem humanos nem animais (refiro-me aos espritos) , essa noopode servir para designar um contexto relacional especfico e uma quali-dade fenomenolgica prpria, distinta tanto da intersubjetividade carac-terstica do mundo social como das relaes interobjetivas com os cor-pos animais.

    Seguindo a analogia com a srie pronominal (Benveniste 1966a;1966b), v-se que, entre o eu reflexivo da cultura (gerador do conceitode alma ou esprito) e o ele impessoal da natureza (marcador da rela-

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    o com a alteridade somtica), h uma posio faltante, a do tu, asegunda pessoa, ou o outro tomado como outro sujeito, cujo ponto de vis-ta serve de eco latente ao do eu. Penso que esse conceito pode auxiliarna determinao do contexto sobrenatural. Contexto anormal no qual osujeito capturado por um outro ponto de vista cosmolgico dominante,onde ele o tu de uma perspectiva no-humana, a Sobrenatureza aforma do Outro como Sujeito, implicando a objetivao do eu humanocomo um tu para este Outro. O contexto sobrenatural tpico no mun-do amerndio o encontro, na floresta, entre um homem sempre sozi-nho e um ser que, visto primeiramente como um mero animal ou umapessoa, revela-se como um esprito ou um morto, e fala com o homem (adinmica dessa comunicao muito bem analisada por Taylor 1993a).Esses encontros podem ser letais para o interlocutor, que, subjugado pelasubjetividade no-humana, passa para o lado dela, transformando-se emum ser da mesma espcie que o locutor: morto, esprito ou animal.Quem responde a um tu dito por um no-humano aceita a condio deser sua segunda pessoa, e ao assumir por sua vez a posio de eu jo far como um no-humano. A forma cannica desses encontros sobre-naturais consiste, assim, em intuir subitamente que o outro humano,entenda-se, que ele o humano, o que desumaniza e aliena automatica-mente o interlocutor, transformando-o em presa, isto , em animal. Ape-nas os xams, pessoas multinaturais por definio e ofcio, so capazesde transitar entre as perspectivas, tuteando e sendo tuteados pelas subje-tividades extra-humanas sem perder a prpria condio de sujeito24.

    guisa de concluso, observo que o perspectivismo amerndioconhece um lugar, geomtrico por assim dizer, onde a diferena entre ospontos de vista ao mesmo tempo anulada e exacerbada: o mito, que sereveste ento do carter de discurso absoluto. No mito, cada espcie deser aparece aos outros seres como aparece para si mesma (como huma-na), e entretanto age como se j manifestando sua natureza distintiva edefinitiva (de animal, planta ou esprito). De certa forma, todos os perso-nagens que povoam a mitologia so xams, o que, alis, explicitamenteafirmado por algumas culturas amaznicas. Ponto de fuga universal doperspectivismo cosmolgico, o mito fala de um estado do ser onde os cor-pos e os nomes, as almas e as afeces, o eu e o outro se interpenetram,mergulhados em um mesmo meio pr-subjetivo e pr-objetivo meiocujo fim, justamente, a mitologia se prope a contar.

    Recebido em 10 de junho de 1996

    Aprovado em 24 de junho de 1996

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    Notas

    1 O presente trabalho resulta de um dilogo com Tnia Stolze Lima, queescreveu paralela e sincronicamente um artigo sobre o perspectivismo na cosmo-logia juruna (Lima 1996). Por esse motivo, no inclu no que se segue exemplosou consideraes tomados de sua rica etnografia (Lima 1995). Esperamos poderem breve combinar nossos respectivos estudos sobre o perspectivismo em umapublicao de maior flego. Agradeo a Peter Gow, Aparecida Vilaa, PhilippeDescola, Michael Houseman e Marcio Goldman pelas sugestes que deram emfases diferentes de elaborao do material que ora apresento.

    2 Atestada entre os Makuna (rhem 1993), os Yagua (Chaumeil 1983:125-127), os Piro (Gow inf.pess.), os Trio (Rivire 1995) ou os Alto-Xinguanos (Gregor1977:322; Viveiros de Castro 1977:182). Essa noo provavelmente pan-ameri-cana, tendo um grande rendimento simblico, por exemplo, na cosmologia kwa-kiutl (Goldman 1975:62-63, 124-125, 182-186, 227-228).

    3 Ver, para alguns exemplos entre muitos: Weiss (1969:158) Campa; Baer(1994:102, 119 224) Matsiguenga; Grenand (1980:42) Waypi; Viveiros deCastro (1992a:68) Arawet; Osborn (1990:151) Uwa.

    4 Ver, por exemplo, Saladin dAnglure (1990) Inuit; McDonnell (1984) eNelson (1983) Koyukon, Kaska; Tanner (1979) e Scott (1989) Cree; Goldman(1975) Kwakiutl; Howell (1984) e Karim (1981) para os Chewong e MaBetiskda Malsia; para a Sibria, Hamayon (1990).

    5 As noes de perspectiva e ponto de vista tm um papel central emtextos que escrevi anteriormente, mas seu foco de aplicao era ali, principalmen-te, a dinmica intra-humana, e seu significado quase sempre analtico e abstrato(Viveiros de Castro 1992a:248-251, 256-260; 1996a). Os estudos de Vilaa e, sobre-tudo, o de Lima mostraram-me que era possvel generalizar em extenso e com-preenso essas noes.

    6 [ O que um mito?] Se voc perguntasse a um ndio americano, muito provvel que ele respondesse: uma histria do tempo em que os homense os animais ainda no se distinguiam. Esta definio me parece muito profunda(Lvi-Strauss e Eribon 1988:193, traduo minha).

    7 A noo de que o eu (os homens, os ndios, minha tribo) que distingue o termo historicamente estvel da distino entre o eu e o outro (os animais,

    Eduardo Viveiros de Castro etnlogo e professor do Programa de Ps-Gra-duao em Antropologia Social (PPGAS) do Museu Nacional/UFRJ. Autor,entre outros trabalhos, de From the Enemys Point of View: Humanity andDivinity in an Amazonian Society. E-mail: [email protected]

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    os brancos, os outros ndios) aparece tanto no caso da diferenciao interespecfi-ca como no da separao intra-especfica, como se pode ver nos diferentes mitosamerndios de origem dos Brancos. Os outros foram o que somos, e no, comoentre ns, so o que fomos. E assim se percebe quo pertinente pode ser a noode sociedades frias: a histria existe sim, mas algo que s acontece aos outros.

    8 Ver Viveiros de Castro (1978); Crocker (1985); Overing (1985; 1986); Vila-a (1992); rhem (1993); Hugh-Jones (1996), entre muitos outros.

    9 A importncia da relao venatrio-xamanstica com o mundo animal, emsociedades cuja economia baseada na horticultura (e na pesca mais que na caa),suscita problemas interessantes para a histria cultural da Amaznia (Viveiros deCastro 1996b).

    10 Registre-se, entretanto, que nas culturas da Amaznia Ocidental, e par-ticularmente naquelas que fazem largo uso de alucingenos, a personificaodas plantas parece ser pelo menos to importante quanto a dos animais.

    11 Ou, acrescentaramos, dos Ojibwa, onde a coexistncia dos sistemas toteme manido (Lvi-Strauss 1962a:25-33), que serviu de matriz para a oposio geralentre totemismo e sacrifcio (Lvi-Strauss 1962b:295-302), se deixa interpretardiretamente no quadro da distino totemismo/animismo. Para uma discussoconjunta dos pares totemismo/sacrifcio e aroe/bope, ver Viveiros de Castro(1991:88, 91, nota 11).

    12 A proposta de Descola vem-se somar a vrias manifestaes de insatisfa-o com a nfase unilateral na metfora e na lgica totmico-classificatria quemarca a concepo lvi-straussiana do pensamento selvagem. Para ficarmos nombito americanista, evoquem-se, por exemplo: a recusa do privilgio da metfo-ra por Overing (1985), em favor de um literalismo relativista que parece se apoiarna noo de crena; a teoria da sindoque dialtica como anterior e superior analogia metafrica, proposta por Turner (1991), autor que, como outros especia-listas (Seeger 1981; Crocker 1985), tem procurado contestar as interpretaes dodualismo natureza/cultura j-bororo em termos de uma oposio esttica, privati-va e discreta; ou a retomada, por Viveiros de Castro (1992a), do contraste entretotemismo e sacrifcio luz do conceito deleuziano de devir, que procura dar con-ta da centralidade dos processos de predao ontolgica nas cosmologias tupi,bem como do carter diretamente social (e no especularmente classificatrio) dainterao das ordens humana e extra-humana.

    13 Ver Radcliffe-Brown (1952:130-131) que, entre outros argumentos interes-santes, distingue os processos de personificao das espcies e fenmenos naturais(o que permite conceber a natureza como se fosse uma sociedade de pessoas,fazendo dela uma ordem social ou moral), como os que se acham entre os Esqui-ms ou Andamaneses, dos sistemas de classificao das espcies naturais, como osque se acham na Austrlia, e que configuram um sistema de solidariedades sociaisentre homem e natureza isto evoca obviamente a distino animismo/totemismo

  • OS PRONOMES COSMOLGICOS E O PERSPECTIVISMO AMERNDIO138

    de Descola, bem como o contraste manido/totem explorado por Lvi-Strauss.

    14 O prprio Lvi-Strauss ilustra essa ltima atitude, em um esplndido par-grafo de sua homenagem a Rousseau: Comeou-se por separar o homem da natu-reza, e por constitu-lo em reino soberano; acreditou-se assim apagar sua caracte-rstica mais inquestionvel, a saber, que ele antes de mais nada um ser vivo. Acegueira diante dessa propriedade comum abriu caminho para todos os abusos.Nunca como agora, ao cabo dos quatro ltimos sculos de sua histria, pde ohomem ocidental se dar conta de como, ao se arrogar o direito de separar radical-mente a humanidade da animalidade, concedendo primeira tudo aquilo quenegava segunda, ele abria um ciclo maldito, e que a mesma fronteira, constan-temente recuada, servia-lhe para afastar homens de outros homens e para reivin-dicar, em benefcio de minorias cada vez mais restritas, o privilgio de um huma-nismo que j nasceu corrompido, por ter ido buscar no amor-prprio seu princpioe seu conceito (Lvi-Strauss 1973b:53, traduo minha).

    15 Uma transformao da recusa de auto-objetivao onomstica acha-senaqueles casos ou momentos em que, quando o coletivo-sujeito se toma como par-te de uma pluralidade de coletivos anlogos a si, o termo auto-referencial signifi-ca os outros, sendo usado primordialmente para identificar os coletivos de queo sujeito se exclui. A alternativa subjetivao pronominal uma auto-objetiva-o igualmente relacional, onde eu s pode significar o outro do outro: ver oachuar dos Achuar, ou o nawa dos Pano (Taylor 1985:168; Erikson 1990:80-84). Algica da auto-etnonmia amerndia exigiria um estudo especfico. Para outroscasos ilustrativos, ver: Vilaa (1992:49-51); Price (1987); Viveiros de Castro(1992a:64-65). Para uma anlise iluminadora de um caso norte-americano seme-lhante aos amaznicos, ver McDonnell (1984:41-43).

    16 Ver o que diz Taylor (1993b:660) sobre o conceito jvaro de wakan, alma:Essencialmente, wakan autoconscincia [] uma representao da reflexivi-dade [] Wakan , portanto, comum a muitas entidades, e de forma nenhuma umatributo exclusivamente humano: h tantos wakan quanto coisas a que se pos-sam, contextualmente, atribuir reflexividade.

    17 Tal o fundamento do perspectivismo. Ele no exprime uma dependn-cia perante um sujeito definido previamente; ao contrrio, ser sujeito aquele queaceder ao ponto de vista [] (Deleuze 1988:27, traduo minha).

    18 Traduzo a forma inglesa to embody e seus derivados, que hoje gozam deuma fenomenal popularidade no jargo antropolgico (ver Turner 1994), pelo neo-logismo encorporar, visto que nem encarnar nem incorporar so realmenteadequados.

    19 A prova a contrario da singularidade do esprito em nossa cosmologia estem que, quando se quer universaliz-lo, no h outro recurso a sobrenaturezaestando hoje fora do jogo seno o de identific-lo estrutura e funcionamentodo crebro. O esprito s pode ser universal (natural) se for corpo.

  • OS PRONOMES COSMOLGICOS E O PERSPECTIVISMO AMERNDIO 139

    20 A raridade de exemplos inequvocos do tema da possesso espiritual nocomplexo xamanstico amerndio parece derivar da prevalncia do tema comple-mentar, a metamorfose corporal. Os clssicos problemas da catequese e conver-so dos amerndios tambm poderiam receber alguma luz a partir da; as concep-es indgenas de aculturao parecem focalizar mais a incorporao e encor-porao das prticas corporais ocidentais (alimentao e vestimenta, acima detudo) que a assimilao espiritual (lingstica, religiosa etc.). Virar Branco assu-mir um corpo de Branco; a mente no interessa muito, pois no difere seno nomanifestar afeces corporais distintivas. Mais uma vez, recordemos a anedota deLvi-Strauss.

    21 Peter Gow (inf.pess.) afirma que os Piro concebem o ato de vestir uma rou-pa como um animar a roupa. A nfase seria menos, como entre ns, no fato decobrir o corpo que no gesto de encher a roupa, ativ-la. Em outras palavras, vestiruma roupa modifica a roupa mais que o corpo de quem a veste.

    22 Rivire (1995:194) apresenta um mito interessante, no qual fica claro quea roupa menos forma que funo. Um sogro-jaguar oferece a seu genro humanoroupas de ona. Diz o mito: O jaguar dispunha de tamanhos diferentes de roupa.Roupa para pegar anta, roupa para pegar queixada [] roupa para pegar cutia.Todas essas roupas eram mais ou menos diferentes e todas tinham garras. Ora,os jaguares no mudam de tamanho para caar presas de tamanhos diferentes,eles apenas modulam seu comportamento. Essas roupas do mito esto adaptadass suas funes especficas, e da forma-jaguar s permanecem, pois s importam,as garras, instrumento de sua funo.

    23 Ver Taylor (1993a:445) e Descola (no prelo). As crticas destes autores noo de sobrenatureza so legtimas, mas sob a condio de se aplicaremigualmente s noes de natureza e cultura, to ocidentalistas e reificadorasquanto aquela; se possvel dar a estas ltimas um significado puramente sinp-tico, como quer e faz Descola, no vejo por que no se pode fazer o mesmo com aprimeira. Alm disso, a releitura pragmtico-comunicativa do mundo dos espri-tos proposta por Taylor para os Achuar (1993a) equivale a uma definio desobrenatureza do mesmo tipo que as que proponho aqui para cultura,natu-reza, e agora para sobrenatureza.

    24 Boa parte do trabalho xamanstico, como dissemos, consiste em dessubje-tivar os animais, isto , em transform-los em puros corpos naturais capazes deserem consumidos sem dano; em contrapartida, o que define os espritos preci-samente o serem incomestveis; isto os transforma em comedores por excelncia,isto , em antropfagos. Dessa forma, comum que os grandes predadores sejama forma predileta de manifestao dos espritos, e compreensvel que, para osanimais de presa, os humanos sejam vistos como espritos, que os espritos e osanimais predadores nos vejam como animais de presa, e que os animais tidos porincomestveis sejam assimilados a espritos (Viveiros de Castro 1978). As escalasde comestibilidade da Amaznia indgena (Hugh-Jones 1996) deveriam, assim,incluir no seu plo negativo os espritos.

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    Resumo

    Este trabalho discute o significado doperspectivismo amerndio: as idias,presentes nas cosmologias amaznicas,a respeito do modo como humanos, ani-mais e espritos vem-se a si mesmos eaos outros seres do mundo. Essas idiassugerem uma possibilidade de rede-finio relacional das categorias clssi-cas de natureza, cultura e sobre-natureza a partir do conceito de pers-pectiva ou ponto de vista. Em particu-lar, argumenta-se que a antinomia en-tre duas caracterizaes do pensamen-to indgena: de um lado, o etnocen-trismo, que negaria os predicados dahumanidade aos humanos de outrosgrupos; de outro, o animismo, que osestenderia a seres de outras espcies,pode ser resolvida se se considerar adiferena entre os aspectos espirituaise corporais dos seres.

    Abstract

    This study discusses the meaning ofAmerindian perspectivism: the ideasin Amazonian cosmologies concerningthe way in which humans, animals, andspirits see both themselves and otherworld beings. Such ideas suggest thepossibility of a redefinition of the clas-sical categories of nature, culture,and supernature based on the con-cept of perspective or point of view. Thestudy argues in particular that theantinomy between two characteriza-tions of indigenous thought on the onehand ethnocentrism, which woulddeny the attributes of humanity tohumans from other groups, and on theother hand animism, which wouldextend such qualities to beings fromother species can be resolved if oneconsiders the difference between thespiritual and corporal aspects of beings.