sobre nietzsche e o pensamento ameríndio - rafael saldanha

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3. Um experimento comparatista: Guerra, Saúde e Criação em Nietzsche e nos Ameríndios O princípio de contradição forneceu o esquema: o mundo verdadeiro, ao qual se busca o caminho, não pode estar em contradição consigo mesmo, não pode mudar, não pode vir a ser, não tem origem nem fim. Esse é o destino singular do erro na Terra: acreditava-se ter um critério da realidade nas formas da razão – enquanto se as tinha para se tornar senhor da realidade, para mal compreender a realidade de um modo esperto [....] e vede: agora o mundo se tornou falso, e exatamente por causa daquilo que constitui sua realidade: mudança vir-a-ser, multiplicidade, antagonismo, contradição, guerra. Friedrich Nietzsche, KSA13.336, 14[153] primavera de 1888 Assim, o acontecimento que existe para os porcos deve ser (em uma formulação a nosso ver grosseira, mas, na verdade, bem adequada ao espírito dos Juruna) reduzido a uma mentira pelos humanos. Na mesma medida em que os caçadores querem impor o seu ponto de vista aos porcos, estes não perderiam a chance de fazer o mesmo. Não se entregariam ao inimigo sem luta. Os caçadores, de sua parte, tampouco podem ignorar as disposições da caça. Uma luta entre caçadores e guerreiros está em curso. (...) Uma luta então está em curso — luta entre a caça de um e a guerra do outro. O infortúnio do caçador é o resvalamento da caçada na guerra. Cientes da dimensão sobrenatural que o ponto

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Texto que realiza uma comparação entre Nietzsche e os ameríndios

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Page 1: Sobre Nietzsche e o Pensamento ameríndio - Rafael Saldanha

3. Um experimento comparatista: Guerra, Saúde e Criação em Nietzsche e nos Ameríndios

O princípio de contradição forneceu o esquema: o mundo verdadeiro, ao

qual se busca o caminho, não pode estar em contradição consigo mesmo,

não pode mudar, não pode vir a ser, não tem origem nem fim. Esse é o

destino singular do erro na Terra: acreditava-se ter um critério da

realidade nas formas da razão – enquanto se as tinha para se tornar

senhor da realidade, para mal compreender a realidade de um modo

esperto [....] e vede: agora o mundo se tornou falso, e exatamente por

causa daquilo que constitui sua realidade: mudança vir-a-ser,

multiplicidade, antagonismo, contradição, guerra.

Friedrich Nietzsche, KSA13.336, 14[153] primavera de 1888

Assim, o acontecimento que existe para os porcos deve ser (em uma

formulação a nosso ver grosseira, mas, na verdade, bem adequada ao

espírito dos Juruna) reduzido a uma mentira pelos humanos. Na mesma

medida em que os caçadores querem impor o seu ponto de vista aos

porcos, estes não perderiam a chance de fazer o mesmo. Não se

entregariam ao inimigo sem luta. Os caçadores, de sua parte, tampouco

podem ignorar as disposições da caça. Uma luta entre caçadores e

guerreiros está em curso. (...)

Uma luta então está em curso — luta entre a caça de um e a guerra do

outro. O infortúnio do caçador é o resvalamento da caçada na guerra.

Cientes da dimensão sobrenatural que o ponto de vista dos porcos

representa para eles, os humanos utilizam-se de meios através dos quais

pretendem impedir toda possibilidade de os porcos virem a impor seu

ponto de vista.

Tania Stolze Lima, O dois e seu múltiplo

Temos assim, postos, dois conceitos de perspectivismo relativamente bem delineados. De um o

perspectivismo nietzschiano, que como quis espero ter exposto, não se trata de uma simples

teoria epistemológica, pelo contrário, é a aposta numa realidade composta puramente por forças

Page 2: Sobre Nietzsche e o Pensamento ameríndio - Rafael Saldanha

em constante embate, com dissemos, descortina-se uma cosmologia. Do outro lado tem-se o

perspectivismo ameríndio, que é um conceito que tenta dar conta de toda a economia da

alteridade presente no mundo ameríndio, ou, talvez travestindo demais esse termo, trata-se de um

conceito que faz ver a cosmopolítica1 ameríndia. Cabe pois tentar comparar esses dois conceitos

para ver de que modo se assemelham, de que modo se distinguem e verificar se algo pode ser

produzido da fricção entre esses dois conceitos.

Para efetuar, pois, essa comparação, creio que isso pode ser feito a partir de alguns pontos

específicos que me parecem ser os que mais se destacaram nas análises dos conceitos. Mas ao

invés de simplesmente comparar os conceitos a partir de pontos abstratos, me parece que o

interessante é justamente realizar um experimento. Pegar aquilo que foi possível extrair do

perspectivismo nietzschiano e experimentar ver o que se pode ler de tal ou tal aspecto a partir do

perspectivismo ameríndio e vice-versa. Ou seja, tomando a título de exemplo, perguntar, a partir

da inconstância, tão latente no perspectivismo ameríndio, de que modo é possível enxergar isso

ou pensar isso a partir do perspectivismo nietzschiano? Creio que dessa maneira os conceitos

nietzschiano e ameríndio consigam se comunicar e contaminar de forma mais interessante que se

simplesmente os comparasse a partir de um ponto superior aos dois. De modo que apesar de

algumas leituras poderem soar forçadas, ao menos estarão envolvidas pelo esforço (e

possivelmente o efeito) de tentar pôr em contato esses dois conceitos, através da leitura de um

pelo outro Trata-se, portanto, de uma bateria de provas: primeiramente tentando efetuar leituras

nietzschianas do perspectivismo ameríndio, por meio das noções de imanência e jogo de forças e,

posteriormente, leituras ameríndias do perspectivismo nietzschiano ao lê-lo através das noções de

inconstância e de inimigo 2.

3.1. Perspectivismo ameríndio como imanência e jogo de forças

Ao longo da exposição do perspectivismo nietzschiano um dos aspectos que mais se destacou foi

a aposta numa radical imanência que esse pensamento faz. Isso significa, de maneira um tanto

bruta, uma visão do real como absolutamente sem fundamento, sem que haja elementos que

possam se dar numa estabilidade etérea, sem que possa se apelar para estruturas fixas (isto é,

eternas) que são sem relação. Em resumo, nada existiria em si. Qualquer acontecimento, força,

1 Cosmopolítica pois, se todos são humanos, o que há para se fazer é justamente política.2 Evidentemente talvez pareçam arbitrários demais os aspectos da comparação mas trata-se de uma experimentação e creio que o porquê dos elementos terem sido postos em destaque serão justificados ao longo do capítulo.

Page 3: Sobre Nietzsche e o Pensamento ameríndio - Rafael Saldanha

coisa se dá sempre num contexto, isto é, num conjunto de condições, situações em que todos

esses elementos irão compor com ele – inclusive, é impossível tomar qualquer coisa que seja, se

formos seguir na radicalidade dessa imanência, como algo mais do que uma configuração

provisória de forças –, o que não as torna problemáticas, apenas contingentes. Pode-se dizer,

então, que se tem, no pensamento nietzschiano uma espécie de campo de imanência, que não é,

obviamente, um espaço em si (impossível), mas simplesmente o fato de que as coisas jamais se

dão sozinha, mas sempre em relação às outras – campo de imanência, pode também ser chamado

de mundo, o que nos lembra a famosa abertura do Tratactus Logico-Philosophicus3: “o mundo é

tudo aquilo que é o caso”.

O grande alvo desse pensamento seria, pois, a divisão kantiana entre coisa-em-si e fenômeno que

acaba por cindir a realidade em duas (isso fica claro no capítulo “Como o mundo se tornou

fábula” em O crepúsculo dos ídolos). Esse tipo de aposta é que pode ser visto como motor das

diversas operações de desnaturalização que Nietzsche empreende ao longo da sua obra, como em

A genealogia da moral, onde o alvo são valores morais.

A consequência mais imediata disso para seria que no perspectivismo nietzschiano não haveria,

pois, possibilidade de qualquer perspectiva orientadora. Isto é, uma que se (im)pusesse como

mais adequada, já que, de fato, não haveria nada que poderia garantir essa posição à essa

perspectiva privilegiada – esse seria aquilo que foi denominado de pequeno perspectivismo. Se

tomarmos um passo adiante, ou seja, se assumimos uma imanência absoluta do real, é impossível

manter essa visão que toma a perspectiva como uma visada, um olhar, sobre algo que pode existir

para fora de relações. Resta-nos tomar a perspectiva como uma configuração de forças

provisórias, assim descartando qualquer resquícios de objetos que transcendam o plano da

perspectiva4.

Visto que o em si (o sem-relação) está banido do universo nietzschiano (ao menos na

interpretação que se faz aqui), o que resta é um jogo de forças que compõem esse universo. Dessa

forma, quando falamos das forças que geram as perspectivas, e nos subsequentes embates entre

as perspectivas, estas sempre se dão num campo completamente horizontal, onde não há

nenhuma posição de precedência e onde, por essa razão não seria possível encontrar uma

perspectiva a priori que fundaria uma orientação das demais perspectivas. Como falou-se há

3 Obrigado ao Pedro Gomlevsky, pela lembrança.4 Estes pontos foram trabalhados no capítulo 1.

Page 4: Sobre Nietzsche e o Pensamento ameríndio - Rafael Saldanha

pouco, as perspectivas são configurações provisórias das forças, dos modos como elas interagem,

se confrontam, se relacionam. Falar, então, que o perspectivismo nietzschiano é um jogo de

forças quer dizer que as perspectivas não existem nunca em si mas que elas se fazem e desfazem

à medida que o jogo das forças acontece, forças essas que nunca se dão, por sua vez sozinhas.

Como apontamos no primeiro capítulo, “todo acontecimento, todo movimento, todo devir como

uma fixação de relações de grau e de força, como uma luta” (NIETZSCHE, 2013: 318).

Após esse desenho do que podemos entender quando falamos imanência e jogo de forças,

podemos ver que talvez não estejamos tão distantes do mundo ameríndio5. Para começar, ainda

que isso não seja desenvolvido muito longamente, o conceito de perspectivismo, tal como lido a

partir de Viveiros de Castro, aponta para um mundo onde não há espaço para elementos

transcendentes (no sentido que Nietzsche combate), a própria ausência de um Deus único ou de

uma figura forte de Estado é sintoma disso: “o mundo indígena é um mundo politeísta,

perspectivista e contra o Estado. Essas três coisas vão juntas. A inexistência de um deus único,

transcendente, absoluto, vai junto com a dificuldade que têm as tradições intelectuais indígenas

de pensar em ‘modo-Estado’” (VIVEIROS DE CASTRO, 2008b: 241).

Se é possível falar que o mundo ameríndio pende para uma dinâmica da imanência pode-se dizer

que isso está pautado pelo fato de que todos são humanos, embora, como já dissemos, não todos

ao mesmo tempo.

a humanidade de fundo é menos um predicado de todos os seres que uma incerteza constitutiva sobre os predicados de qualquer ser. Tal incerteza não incide apenas sobre os “objetos” da percepção, e não é um problema de julgamento atributivo; menos ainda é um problema de “classificação”. A incerteza inclui o sujeito, entenda-se, inclui a condição de sujeito do actante humano que se expõe ao contato com a alteridade radical dessas gentes outras, que – como toda gente – reivindicam para si um ponto de vista soberano. Aproximamo-nos aqui de uma das origens do medo metafísico indígena. É impossível não ser canibal; mas é igualmente impossível estabelecer consistentemente uma relação canibal ativa de mão única com qualquer outra espécie – ela vai contra-atacar. Tudo o que se come, no mundo ameríndio, é soul-food, e portanto envolve um risco de vida: quem come almas será por almas comido. (VIVEIROS DE CASTRO, 2011b: 894)

O fato, pois, de todos poderem ser humanos é aquilo que talvez estabeleça o campo da

imanência. O que nos reenvia aos discursos míticos, espaço que demarca a multiplicação da

humanidade: “laminage instantané des flux précosmologiques d’indiscernabilité lorsqu’ils entrent

5 Não preciso repetir, embora isso deve estar óbvio, que falamos aqui a partir do que foi trabalhado ao longo da pesquisa, isto é, em torno dos trabalhos do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro.

Page 5: Sobre Nietzsche e o Pensamento ameríndio - Rafael Saldanha

dans le processus cosmologique”, onde “les dimensions félines et humains des jaguars (et celles

des humains) fonctionneront en alternance comme figure et fond potentiels, l’une pour l’autre.”

(VIVEIROS DE CASTRO, 2009: 32). Poderia-se entender esses tempos míticos apenas como um

momento que antecede historicamente, como uma origem que se passou. Isso parece não ser uma

leitura razoável pois

le discours mythique consiste en un registre du mouvement d’actualisation du présent

état de choses à partir d’une condition précosmologique virtuelle pourvue d’une parfaite

transparence – un « chaosmos » où les dimensions corporelles et spirituelles des êtres ne

s’occultaient pas encore l’une l’autre. (VIVEIROS DE CASTRO, 2009: 32)

O discurso mítico parece ser então antes um espaço de temporalização e individuação do caos

(que nunca cessa de ocorrer, “le fond de virtualité est indestructible ou inépuisable” [VIVEIROS

DE CASTRO, 2009 :33]). Ele é antes a dinâmica motora da realidade que simplesmente uma

origem. Quanto à possibilidade de tomar os mitos como fundações auto-fundadas, cabe lembrar a

mutabilidade dos mitos. Estas mudanças não cessam nunca de ocorrer (mitos morrem e nascem, e

o contato com o homem branco mesmo será causa de uma série novidades), o que exclui deles

qualquer intocabilidade ou pureza que os alocariam como transcendentais6.

Voltando à questão da humanidade, como dissemos, porém, nem todos os humanos são humanos

ao mesmo tempo. Essa provisoriedade e incerteza é que garante uma certa relação entre as

diferentes perspectivas. Se todos podem ser humanos, aquilo que é humano não é nem um pouco

claro e está em disputa constantemente, uma disputa que não se resolve pela falta de uma

perspectiva superior sobre o que é o humano – não há pois como recorrer à algo que está fora

dessas dinâmicas de relações.

Em suma, estes são mundos onde a humanidade é imanente, para falarmos como R. Wagner, isto é, mundos onde o primordial se reveste da forma humana, o que não o torna, longe disso, necessariamente aconchegante: ali onde toda coisa é humana, o humano é toda uma outra coisa. E ali onde toda coisa é humana, ninguém pode estar seguro de ser humano incondicionalmente, porque ninguém o é – nem nós mesmos. Na verdade, os humanos devem ser capazes de “descondicionar” sua humanidade em certas condições, já que o influxo do não humano e o devir-outro-que-humano são “momentos” obrigatórios de uma condição plenamente humana. O mundo da humanidade imanente é também, e pelas mesmas razões, um mundo da imanência do inimigo. (VIVEIROS DE CASTRO, 2011b: 895)

6 Outra característica que seria interessante atentar mas que não temos como tratar ainda nesse espaço é para o modo como os mitos de origem geralmente não tem um começo ex nihilo, ou seja, os mitos estão já sempre preenchidos de gente.

Page 6: Sobre Nietzsche e o Pensamento ameríndio - Rafael Saldanha

Creio não ser muito difícil ver, dessa maneira, que é possível afirmar que o perspectivismo

ameríndio, a partir do gesto de uma multiplicação do humano (ainda que, como dissemos, não se

tratam de todos serem humanos ao mesmo tempo), ou seja, a partir da ausência de uma

orientação sobre o que é o humano (pelo contrário, o humano pode ser sempre outra coisa),

implica num campo da imanência. Onde as perspectivas (ou seja, as relações) estarão a todo

momento se disputando, tal como num jogo de forças, disputas essa que acabarão por gerar o

modo como o real se dá (ou se atualiza, ou se configura – visto que o real pode ser entendido

como a configuração das forças, essas sempre em movimento):

O que varia é o correlativo objetivo do ponto de vista: o que passa pelo nervo ótico (ou o tubo digestivo) de cada espécie. Em suma, o perspectivismo não supõe uma Coisa-em-Si parcialmente apreendida pelas categorias de entendimento próprias a cada espécie. Não creio que os índios imaginem que exista uma coisa-em-si que os humanos veem como sangue e onças como cauim; não se trata de substâncias autoidênticas diferentemente categorizadas, mas de multiplicidades imediatamente relacionais do tipo sanguecauim, barreiromaloca, grilopeixe. Não existe um “X” que seja sangue para uma espécie e cauim para a outra: o que existe é imediatamente um sanguecauim, uma das singularidades características da multiplicidade humanonça ou jaguaromem. (VIVEIROS DE CASTRO, 2011b: 898)

As perspectivas não tem pois nunca uma posição estável, elas sempre estão uma lutando contra a

outra, a fim de dominar a outra. Assim sendo, “O que parece ser um humano pode ser

um animal ou um espírito; o que parece ser um animal ou um humano pode

ser um espírito, e assim por diante. As coisas mudam – especialmente

quando elas são pessoas.” (VIVEIROS DE CASTRO, 2011b: 896) Esse conflito

não é meramente abstrato, ele é encenado a toda caça de pecari, a todo

confronto com uma onça ou um espírito no meio da mata, a todo encontro

com uma alteridade (e poderíamos dizer que esse confronto acontece

inclusive com o homem branco, que não cessa de querer impor sua

perspectiva aos indígenas). Duas perspectivas disputam quem vai poder se

dizer humano e fazer valer a sua perspectiva.

Essa é a “guerra dos mundos” que constitui o pano de fundo agonístico da cosmopraxis indígena. O confronto típico ocorre no encontro, fora da aldeia, entre uma pessoa sozinha (um caçador, uma mulher pegando lenha etc.) e um ser que, à primeira vista, parece ser um animal ou uma pessoa, às vezes um parente (vivo ou morto) da pessoa. A entidade então interpela o humano: o animal, por exemplo, fala com o caçador, reclamando por ser tratado como presa; ou olha para o caçador de um modo “estranho”, enquanto as flechas do caçador miraculosamente não o atingem; o pseudoparente convida a pessoa a segui-lo, ou a comer algo que traz consigo. A reação à iniciativa da entidade é decisiva. Se o humano aceitar o diálogo ou o convite, se responder à

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interpelação, estará perdido: será inevitavelmente subjugado pela subjetividade não humana e passará para o lado dela, transformando-se num ser da mesma espécie que o locutor. Quem quer que responda a um “tu” dito por um não humano aceita a condição de “segunda pessoa” do outro, e quando por sua vez assumir a posição de “eu”, já o fará como não humano. A forma canônica de tais encontros consiste, portanto, em descobrir repentinamente que o outro é “humano”, isto é, que é o outro o humano, o que automaticamente desumaniza e aliena o interlocutor. Sendo um contexto no qual um sujeito humano é capturado por outro ponto de vista, cosmologicamente dominante, no qual se torna o “tu” de uma perspectiva não humana, a Sobrenatureza é a forma do Outro como Sujeito, implicando a objetificação do “eu” humano como um “tu” desse Outro. (VIVEIROS DE CASTRO, 2011b: 903)

Ou seja, trata-se de um jogo, que como jogo é confronto, é briga e é guerra. Guerra que já vimos

que é um elemento bastante presente na realidade ameríndia e que, como mencionamos, não se

restringe à um conflito intraespecífico. Como disse Tania Stolze Lima na nossa epígrafe, “na

mesma medida em que os caçadores querem impor o seu ponto de vista aos porcos, estes não

perderiam a chance de fazer o mesmo. Não se entregariam ao inimigo sem luta.” (LIMA 1996)

3.2. Perspectivismo nietzschiano como inconstância e inimigo [economia da alteridade]

Tomando a via inversa, cabe agora nos perguntar se é possível pensar o perspectivismo

nietzschiano à maneira ameríndia. Muitos são os aspectos que poderiam ser postos em destaque,

mas me parece que se há algo que é fundamental no perspectivismo ameríndio é a economia da

alteridade. Essa economia que acaba, ao meu ver, aparecendo em dois momentos principais,

momentos amplamente sublinhados durante a pesquisa. Falo da inconstância [da alma selvagem]

e da relação com o inimigo, dois aspectos do perspectivismo (isto é, que estão envolvidos nele)

que demonstram a enorme importância do influxo de alteridade em cosmossociologias

ameríndias.

No que diz respeito à inconstância esse tema tem a ver com a ausência de uma estabilidade. Mas

essas instabilidade não é vista, naturalmente, como algo negativo. Se relembrarmos o passeio que

demos pelo mundo de Clastres, fica prontamente evidente que o ser dois, isto é, não ser um, é

uma marca de saúde antes de doença, pois a inconstância é a possibilidade de não se enrijecer sob

o signo da identidade. Isso fica visível tanto na aversão ao um dos índios clastrianos mas (mais

visível) também nos Tupinambá e nos ameríndios amazônicos trabalhados por Viveiros de

Castro. Como vimos, a respeito dos Tupinambá, o grande problema que os missionários

encontravam era a inconstância selvagem. A facilidade com que os índios alteravam seus hábitos,

como reformulavam suas práticas e seus mitos é sinal de que não há esforço em preservar um

núcleo identitário eterno, antes, pelo contrário, trata-se de estimular um permanente influxo de

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outras perspectivas, através de canibalismos (simbólicos ou reais). Não é lícito dizer, portanto,

que os ameríndios, nessa instabilidade, estão apenas se adaptando. Dizer isso seria supor que há

um núcleo, uma espécie de identidade tautológica, um sujeito último, que permaneceria e que

orientaria essas mudanças. A coisa é um tanto mais radical que isso. A inconstância e alteração

que se aponta aqui, e conforme espero ter justificado ao longo da pesquisa, é justamente uma

marca de que se há um eu, este é orientado por um outro – levando os ameríndios inclusive, para

terrenos muito perigosos, onde o influxo pode ser tamanho que se perde por completo a

perspectiva7. Assim sendo,

o cogito indígena, em vez da fórmula solipsista “penso, logo existo”, deve ser articulado em termos animistas como “isso existe, portanto pensa”. Mas onde, ainda por cima, o Eu é um caso particular do Outro, esse “animismo” deve necessariamente adotar a forma de um – com o perdão do trocadilho – “inimismo”: um animismo alterado pela alteridade, uma alteridade que se torna animada na medida em que é pensada como interioridade inimiga: um Eu que é radicalmente Outro. Daí o perigo, e o brilho, desses mundos. (VIVEIROS DE CASTRO, 2011b: 911)

O que nos leva à questão do inimigo. Diferente da filosofia ocidental, que tem no amigo o seu

começo, amigo, bem entendido, como um outro eu (na definição aristotélica clássica), vemos no

pensamento ameríndio o inimigo ocupando o que seria a posição do amigo. O inimigo é aquele a

partir de quem eu me faço, é a partir do inimigo que o cogito canibal se estabelece. Mas o

inimigo não é nunca pura e simplesmente um rival ou um que permanece sempre distante. Se

formos pegar os Tupinambá (outra vez), o inimigo (tovaje) é também sempre um afim potencial,

ou seja, aquele que pode ser o meu cunhado. Ao mesmo tempo que ele é meu cunhado ele é

aquele com quem luto, a quem as memórias estão atadas e é vingando os inimigos, guerreando 7 Cabe lembrar, sobre os perigos da inconstância, os exemplos já mencionados aqui. Seja a disputa com os Porcos (na epígrafe), no ensaio de Lima: “Os porcos vêem a si mesmos como parte da humanidade e consideram a caça como um confronto em que tentam capturar estrangeiros. As brincadeiras feitas por um caçador em intenção dos porcos possibilitam a concretização de seu ponto de vista e desejo. Na ordem da realidade dos homens, os porcos atacam e matam o caçador, acontecimento que, aos porcos, parece uma simples captura, e, com efeito, o infeliz se torna um parceiro seu. Alimentando-se de cocos e minhocas, participando das danças e bebendo o cauim barrento, o caçador infeliz, com o passar do tempo, vai assumindo o aspecto do animal. Jamais, porém, se adapta completamente ao meio; na esperança de se curar dos ferimentos que adquire na mata e que infeccionam com a sujeira, vive se fazendo benzer pelo porco-xamã. Por fim é transformado em chefe da vara.” (LIMA, 1996); seja o exemplo invocado por Viveiros de Castro: “Na verdade, portanto, a comparação crucial feita pelo jovem nambikwara era entre a polícia e os espíritos. Como os espíritos, a polícia está sempre à espreita da chance de transformar alguém em ninguém, para depois fazê-lo desaparecer. Isto nos aproxima do que me parece ser o contexto por excelência da experiência do medo na Amazônia indígena: o ingresso em um regime “sobrenatural”. Emprego a expressão para designar a situação em que o sujeito de uma perspectiva, um “eu”, é subitamente transformado em objeto na perspectiva de outrem. Esse outrem, independentemente de sua aparente identidade de espécie, revela ser um espírito justamente ao assumir a perspectiva dominante, submetendo o humano à sua definição da realidade; uma realidade em que o humano, por definição, não é mais humano: é um animal presa do espírito, que devora o ex-sujeito, em geral para redefini-lo como seu coespecífico (parceiro sexual, filho adotivo etc.)” (VIVEIROS DE CASTRO, 2011b: 902-903).

Page 9: Sobre Nietzsche e o Pensamento ameríndio - Rafael Saldanha

contra eles, capturando-os que se estrutura a sociedade Tupinambá – a relação com o inimigo

(que é na verdade outrem) é pois fundamental. A inconstância a que nos referíamos tem, pois, seu

complemento na figura do inimigo, esse que é responsável pelo influxo de alteridade, de maneira

que o inimigo no persepctivismo ameríndio acaba sendo “une structure de droit de la pensée, qui

définit une autre relation avec le savoir et un autre régime de vérité: cannibalisme,

perspectivisme, multinaturalisme.” (VIVEIROS DE CASTRO, 2009: 166) [traduzir].

Perspectivismo ameríndio, então, como uma economia da alteridade, um conceito que decreve as

dinâmicas de circulação da alteridade nas cosmopráxis ameríndia.

Após toda essa caminhada me parece mais que evidente, num primeiro momento, encontrar essa

economia da alteridade no perspectivimo nietzschiano. Mas com um pouco mais de atenção

começa-se a perceber que a presença do outro é um tanto quanto escondida. Talvez seja o

trabalho que está amerindianizado demais, a ponto de não conseguir não ver no pensamento de

Nietzsche uma abertura similar à que se vê no perspectivismo ameríndio.

A começar pela questão da inconstância podemos associa-la rapidamente à importância que o

devir, e a sua aceitação, tem para o pensamento nietzschiano. Isso aparece, primeiramente, nos

movimentos que Nietzsche empreende ao desconstruir uma série de valores ou de conceitos

supostamente eternos, impossibilitando que eles existam em si mesmos. Já elaborei isso mais

acima, mas uma das lições da genealogia nietzschiana é justamente à respeito da inconstância do

que quer que seja (inclusive daquilo que se diz homem) e que uma das tarefas do filósofo é

justamente dar conta dessa inconstância, visto que aprisiona-la sob o tapume da imutabilidade é

algo que seria extremamente nocivo por estagnar as possibilidades de ação dos homens. Assim

como para o índio clastriano, ser-um, parece, em Nietzsche, ser ruim.

De maneira mais evidente, porém, podemos enxergar a inconstância na recusa em limitar a

dinâmica da realidade (ou seja, o perspectivismo) a uma mera auto-conservação. Como diz

Nietzsche em fragmentos póstumos, “é possível mostrar em todo vivente da maneira mais clara

possível que ele faz tudo para não se conservar, mas para vir a ser mais.” (NIETZSCHE, 2012:

272), de maneira que para Nietzsche talvez possa-se chamar de realidade essa dinâmica sem fim,

“não meramente constância de energia: mas economia maximal do gasto: de tal modo que o

querer-vir-a-ser-mais-forte a partir de cada centro de força é a única realidade – não

autopreservação, mas apropriação, tornar-se senhor, vir-a-ser-mais, querer-vir-a-ser-mais-forte”

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(NIETZSCHE, 2012: 236). Fala-se aí da vontade de poder. Se não podemos falar certamente de

um ser-dois, à maneira ameríndia, podemos ver a constante inconstância que a vontade de poder

traz – essa que é, de acordo com Pierre Montebello, a essência do ser [o devir] (MONTEBELLO,

2001: 22) –, transformando a realidade, as perspectivas, num série de provisoriedades se

formando, deformando e destruindo à todo momento. De modo que ir contra essa inconstância é,

para Nietzsche, ir contra o movimento do mundo – daí as decadências, do cristianismo, da

ciência, daí a doença envolvida na vontade de verdade8. “O mundo subsiste; ele não é nada que

vem a ser, nada que perece. Ou, ao contrário: ele vem a ser, ele perece, mas nunca começou a vir

a ser e nunca cessou de perecer – ele se mantém nos dois casos... ele vive por si mesmo: seus

excrementos são seu alimento...” (NIETZSCHE, 2012: 337)

Agora, por outro lado, se formos falar de inimigo a coisa complica um pouco mais. A coisa não

parece tão clara, querer imputar ao perspectivismo uma estrutura que dependa de outrem parece

algo mais difícil de encontrar claramente. Por outro lado, como Nietzsche mesmo nos lembra,

“todo acontecimento, todo movimento, todo devir [é] como uma fixação de relações de grau e de

força, como uma luta” (NIETZSCHE, 2013: 318). O perspectivismo sendo sempre esse embate

entre forças acaba por abrir o espaço sempre para um outro, que pode muito bem assumir as

feições de um inimigo. As forças se relacionam e por isso, pela impossibilidade de existir força

no singular é como se sempre existisse outrem. Há sempre a dependência de outro para uma força

poder existir/agir, ou seja, para mandar ou obedecer, como vimos no discurso “Da superação de

si mesmo” no Zaratustra:

Onde encontrei seres vivos, encontrei vontade de poder; e ainda na vontade de servente encontrei a vontade de ser senhor

Que o mais fraco sirva ao mais forte, a isto o persuade sua vontade, que quer ser senhora do que é ainda mais fraco: deste prazer ele não prescinde.

8 Sobre a vontade de verdade, é bom lembrar o primeiro aforisma de Além do bem e do mal: “A vontade de verdade, que ainda nos fará correr não poucos riscos, a célebre veracidade que até agora todos os filósofos reverenciaram: que questões essa vontade de verdade já não nos colocou! Estranhos, graves, discutíveis questões! Trata-se de uma longa história – mas não é como se apenas começasse? Que surpresa, se por fim nos tornamos desconfiados, perdemos a paciência e impacientes nos afastamos? Se, com essa esfinge, também nós aprendemos a questionar? Quem, realmente, nos coloca questões? O que, em nós, aspira realmente “à verdade”? – De fato, por longo tempo nos detivemos ante a questão da origem dessa vontade – até finalmente parar completamente ante uma questão ainda mais fundamental. Nós questionamos o valor dessa vontade. Certo, queremos a verdade: mas por que não, de preferência, a inverdade? Ou a incerteza? Ou mesmo a insciência? – O problema do valor da verdade apresentou-se à nossa frente – ou fomo nós a nos apresentar diante dele? Quem é Édipo, no caso? Quem é a Esfinge? Ao que parece, perguntas e dúvidas marcaram aqui um encontro. – E seria de acreditar que, como afinal nos quer parecer, o problema não tenha sido jamais colocado – que tenha sido por nós pela primeira vez vislumbrado, percebido, arriscado? Pois nisso há um risco, como talvez não exista maior.” (NIETZSCHE, 2005b: 9)

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E, tal como o menor se entrega ao maior, para que tenha prazer e poder com o pequeníssimo, assim também o maior de todos se entrega e põe em jogo, pelo poder – a vida mesma. (NIETZSCHE, 2011: 109)

Isso soa estranhamente parecido com as disputas de perspectiva que acontecem nas caças (entre

ameríndios), mas com a diferença que parece que fraco e forte, em Nietzsche, a partir desse

trecho, tenham posições mais rígidas, como se, nos termos ameríndios, fosse sempre a mesma

perspectiva que vencesse a guerra9, ou, como se o jogo fosse sempre armado.

Me parece, porém, que apesar disso, talvez seja possível encontrar uma economia de perspectivas

mais dinâmicas. Se certamente certas forças/perspectivas tem que dominar sobre outras (uma

disputa, como dissemos, que acontece também no perspectivismo ameríndio), talvez seja possível

enfraquecer essa relação de mando e obediência. Em Além do bem e do mal, Nietzsche diz, à

respeito da lei da física que

isso [a lei da física] é interpretação, não texto, e bem poderia vir alguém que, com intenção e arte de interpretação opostas, soubesse ler na mesma natureza, tendo em vista os mesmos fenômenos, precisamente a imposição tiranicamente impiedosa e inexorável de reinvidicações de poder – um intérprete que lhes colocasse diante dos olhos o caráter não excepcional e peremptório de toda ‘vontade de poder’, em tal medida que quase toda palavra, inclusive a palavra ‘tirania’, por fim parecesse imprópria, ou uma metáfora debilitante e moderadora – demasiado humana; e que, no entanto, terminasse por afirmar sobre esse mundo o mesmo que vocês afirmam, isto é, que ele tem um curso ‘necessário’ e ‘calculável’, mas não porque nele vigoram leis, e sim porque faltam absolutamente as leis, e cada poder tira, a cada instante, suas últimas consequências. Acontecendo de istos ser apenas interpretação – e vocês se apressarão em objetar isso, não? – bem, tanto melhor!” (NIETZSCHE, 2005b: 27)

A partir do momento em que falta absolutamente um fundamento para qualquer perspectiva, as

relações de mando e obediência necessariamente tem que ser disputadas. Ou seja, manda aquele

que tem mais força, obedece o mais fraco. Isso não se dá por nenhuma razão extrínseca ou por

qualquer interioridade da força que determinaria um grau x de força antes de qualquer embate. Se

é para se tomar o pensamento nietzschiano de forma radical, não há possibilidade, pois, da

relação de mando e obediência se estabelecer fora da relação, ou seja, que essas forças, aquela

que vai mandar, aquela que vai obedecer, possam ser determinadas antes das forças se

confrontarem. Ou seja, não se pode saber se onça mata o homem antes dos dois se encontrarem

no meio do mato.

9 Diferente, como falamos, do modo como isso acontece no perspectivismo ameríndio, onde a perspectiva dominante está em jogo, ainda que os humanos, como se vê em LIMA, 1996, tenham uma série de recursos para os ajudarem a não perderem essa batalha.

Page 12: Sobre Nietzsche e o Pensamento ameríndio - Rafael Saldanha

À medida porém que as forças vão entrando contato com umas as mesmas, à medida que as

perspectivas vão se esbarrando, novas configurações, sempre provisórias, são formadas:

“supondo que o mundo disponha de um quantum de força, é natural que toda transposição de

poder condicione todo o sistema – ou seja, ao lado da causalidade de uma coisa por detrás da

outra haveria uma dependência de uma coisa ao lado da outra e de uma com a outra”

(NIETZSCHE, 2013: 114). Nietzsche jamais fala propriamente de um fluxo de alteridade, mas

me parece lícito afirmar, a partir do trabalho aqui elaborado que há sim uma espécie de economia

que permite que as perspectivas se multipliquem e se alterem ao se deparem com outras forças e

perspectivas. Devido ao relacionalismo tão forte em sua metafísica, é impossível que as

composições de perspectiva, as suas configurações, se dêem sem um confronto com um outro,

com um inimigo que, como nos ameríndios, guerreia mas também (ou melhor, por isso mesmo)

contamina. Não há perspectivismo sem (alguma forma de) canibalismo.

3.3. Na guerra e na saúde: Por um novo sentido de criação

O verdadeiro sentido de nossa simulação tosca devia estar previsto,

desde sempre, em algum argumento que nos abarcasse, porque, de outro

modo os aplausos e as honras que se acumulavam ao longo de nossa

turnê, as festas e o ouro com os quais deparávamos eram uma prenda

injustificada.

Juan José Saer, O enteado

Talvez possamos tirar algo de fato de todo esse esforço que foi feito aqui. Se certamente

nenhuma idéia grandiosa possa ser extraída, ao menos podemos talvez, com as ferramentas que

os pensamentos nietzschiano e ameríndio nos legaram, começar a dar algumas torções a um

conceito que vem se anunciando aqui e ali ao longo do trabalho mas que não chegou a ser

tematizado propriamente em momento algum pois, justamente, em nenhum momento ele foi

objeto dessa pesquisa, salvo quando falamos de verdade e criação no pensamento nietzschiano

(embora mesmo ali o foco fosse outro). Sem que me desse conta, porém, me vejo obrigado a

admitir que se há algo que vai se costurando, (até contra minhas vontades) é a possibilidade de se

começar a repensar o conceito de criação, dado as inúmeras vezes que ele apareceu, se não

textualmente, ao menos no processo de composição, como uma espécie de labor subterrâneo. Não

pretendo, como disse, impor grandes inovações, isso está muito aquém do trabalho aqui feito.

Page 13: Sobre Nietzsche e o Pensamento ameríndio - Rafael Saldanha

A partir dos perspectivismos nietzschiano e ameríndio me parece ser possível enxergar o real a

partir de uma tríplice estrutura: guerra, saúde e criação, isto é, aposta-se aqui que uma filosofia do

perspectivismo consegue dar conta do real através dessas três estruturas. Das duas primeiras

estruturas já falamos aqui e ali, a terceira é que talvez apenas se anunciou implicitamente.

Já dizia Heráclito que a guerra é mãe de todas as coisas, isto é, é a partir do atrito que qualquer

coisa é possível: “E preciso saber que o combate é o-que-é-com, e justiça (é) discórdia, e que

todas (as coisas) vêm a ser segundo discórdia e necessidade.” (HERÁCLITO, 1996: fragmento

80). Isso pressupõe, evidentemente, uma espécie de caos ou, para ficar, mais uma vez, nos pré-

socráticos, o ápeiron: “Princípio dos seres... ele disse (que era) o ilimitado [ápeiron]...”

(ANAXIMANDRO, 1996: fragmento 1) Não há como negar que o pensamento perspectivista é

de uma espécie de ontologia da abundância10. No perspectivismo nietzschiano têm-se a

infinidade de forças que estão desde sempre já em movimento, num caos que vai se articulando e

organizando. No que diz respeito aos ameríndios a coisa é um pouco mais insólita mas não menos

presente. É só lembrar que nos mitos de origem a humanidade (que talvez possa ser visto como

um devir-humano antes de qualquer coisa) já superpopulava o mundo – e também de que os

próprios ameríndios não viviam em regimes de escassez material (ao menos não antes das

invasões brancas), contrário aos seus pareces ocidentais. Ou seja, para o perspectivismo, o outro

sempre está presente. Assim sendo, a guerra de que se fala, a guerra como mãe, está aí no sentido

de que desse caos, a partir dos conflitos e confrontos entre uns e outros, novas configurações,

novas formas, forças e perspectivas começam a surgir para depois continuarem a se defrontar

com outras forças, antigas ou novas, gerando mais combinações, que por sua vez voltam a entrar

em contato com outras combinações, levando a um movimento de transformação sem fim. Não se

trata de algo muito complexo, qualquer contato já é alguma espécie de confronto pois põe em

choque duas configurações de coisas diferentes, seja um grupo de nações à átomos se esbarrarem,

elementos químicos se misturarem. Vê-se claramente que isso implica necessariamente outrem e

uma relação de contaminação com/a partir do outro. Não se trata de um moralismo, não quero

aqui dizer que esse fenômeno é de um ódio ou uma inimizade simplesmente (embora isso

evidentemente possa estar envolvido), quando falo de guerra é, pois, o confronto/contato

10 Expressão feliz que devo à Bernardo Curvelano, mas que provém de leituras de Pierre Clastres (CLASTRES, 2012), Marshall Sahlins (SAHLINS, 1997a e SAHLINS, 1997b) e Hans Blumenberg (BLUMENBERG, 2013).

Page 14: Sobre Nietzsche e o Pensamento ameríndio - Rafael Saldanha

inevitável entre o que quer que seja, e o fato de que é dessa fricção, desse atrito o outro

contaminará um, e que dessa contaminação o novo será gerado.

A saúde, por outro lado, é justamente o assentimento desse caminho. Se podemos entender

doença como ser-um (algo que, como espero ter mostrado, é válido tanto para o perspectivismo

nietzschiano como para o ameríndio) a saúde é justamente a possibilidade de multiplicação das

perspectivas, das formas e configurações de vida. O que não quer dizer uma multiplicação

gratuita, pelo contrário, quando se fala de multiplicação de perspectivas, de não enrijecimento e

de saúde, ao mesmo tempo, o que se está querendo dizer é que saudável é aquilo que não me

impede de encontrar formas de vida mais adequadas para tal ou tal situação (que jamais será

absoluta), ou seja, é forma de aumentar a potência de ser, é poder, ao invés de ser-um, ser-dois.

Apesar de ser uma questão que merece uma abordagem mais profunda, coisa que pretendo fazer

em trabalhos futuros, suficiente deixar como adiantamento que o valor da saúde está vinculado à

práxis, ou seja, falo aqui não de abstrações mas de situações efetivas. Penso aqui, mais uma vez,

no ensaio de Nietzsche sobre a linguagem, onde a linguagem teve um valor em tal configuração

em tal momento mas que após esse momento, dado que as condições mudaram (como não cessam

de mudar nunca) elas começam a se mostrar insuficientes, a ponto de começar a levar os homens

ao definhamento, à morte, à impossibilidade de conseguirem se movimentar e se friccionar. Daí a

importância para a saúde da guerra, através desse contato contaminador com outro é que novas

formas de vida poderão vir à luz, para dar conta de novas situações.

Dito isso, entre guerra e saúde, surge um terceiro elemento/fenômeno/estrutura que é justamente

o caráter de criação do real. Não se deve preocupar com uma gênese fundamental, com aquilo

que explica a origem de “tudo o que tá aí”. Apelar para esse tipo de questão é já nos pôr numa

questão necessariamente cristão. Mesmo entre os gregos, como Hans Blumenberg (cf.

BLUMENBERG, 2010) mostra, o conceito de criação nada tinha a ver com criação ex-nihilo,

dado o caráter fechado do cosmos grego. Se é para apelarmos para questões de origem que seja à

maneira ameríndia, onde os mitos jamais põem em questão um início absoluto, pelo contrário, os

mitos cosmogônicos já tomam como dado uma série de elementos da realidade. A origem não

mais como origem-absoluta, mas como origem-corte, ou seja, um corte determinado no devir que

pode explicar aquilo que vem depois mas que de maneira alguma sobredetermina toda a

realidade, como nos mitos cristãos.

Page 15: Sobre Nietzsche e o Pensamento ameríndio - Rafael Saldanha

Se não há qualquer fundamento, como apostamos aqui, é impossível apelar para uma noção de

criação que implique elementos transcendentes. No campo de imanência qualquer nova forma só

é possível a partir da configuração entre as formas já existentes. O que não quer dizer que a

criação tenha um limite, visto que novas formas são criadas a partir das recombinações,

permitindo que novas configurações sejam realizadas a partir desse ponto11. As perspectivas

jamais se esgotam pois elas nunca param verdadeiramente de se transformar no contato com

outras perspectivas.

*

Mas talvez tudo o que estamos operando aqui não seja mais que uma forma de reviver o tão

esquecido filósofo Gabriel Tarde:

Existir é diferir; na verdade, a diferença é, em um certo sentido, o lado substancial das coisas, o que elas têm ao mesmo tempo de mais próprio e de mais comum. É preciso partir daí e evitar explicar esse fato, ao qual tudo retorna, inclusive a identidade da qual falsamente se parte. Pois a identidade é apenas um mínimo, e portanto apenas uma espécie, e uma espécie infinitamente rara, de diferença, assim como o repouso é apenas um caso do movimento, e o círculo uma variedade singular da elipse. Partir da identidade primordial é supor na origem uma singularidade prodigiosamente improvável, uma coincidência impossível de seres múltiplos, ao mesmo tempo distintos e semelhantes, ou então o inexplicável mistério de um único ser simples posteriormente divido não se sabe por quê. Em um certo sentido, é imitar os antigos astrônomos que, em suas explicações quiméricas do sistema solar, partiam do círculo e não da elipse, sob o pretexto de que a primeira figura era mais perfeita. A diferença é o alfa e o ômega do universo; por ela tudo começa, nos elementos cuja diversidade inata, que se mostra provável por considerações de diversas ordens, é a única a se justificar, em minha opinião, sua multiplicidade; por ela tudo termina, nos fenômenos superiores do pensamento e da história, nos quais, rompendo enfim os círculos estreitos em que lea própria se encerrara, o turbilhão atômico e o turbilhão vital, e apoiando-se sobre seu próprio obstáculo, ela se ultrapassa e transfigura. (TARDE, 2007: 98).

Ou, melhor, João Cabral de Melo Neto,

Tecendo a manhã

Um galo sozinho não tece uma manhã:

Ele precisará sempre de outros galos.

De um que apanhe esse grito que ele

E o lance a outro; de um outro galo

11 Impossível não lembrar do pensamento de Gabriel Tarde em determinado momento de seu Monadologia e sociologia, quando diz que “toda relação harmoniosa, profunda e íntima entre elementos naturais torna-se criadora de um elemento novo e superior, que por sua vez colabora com a criação de um outro e mais elevado elemento”. (TARDE, 2007: 92)

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Que apanhe o grito que um galo antes

E o lance a outro; e de outros galos

Que com muitos outros galos se cruzem

Os fios de sol de seus gritos de galo,

Para que a manhã, desde uma teia tênue,

Se vá tecendo, entre os galos.

2

E se encorpando em tela, entre todos,

Se erguendo tenda, onde entrem todos,

Se entretendo para todos, no toldo

(a manhã) que plana livre de armação.

A manhã, toldo de um tecido tão aéreo

Que, tecido, se eleva por si: luz balão.

(MELO NETO, 2008 :219)

ANAXIMANDRO. “Fragmentos” in: DE SOUZA, José Cavalcante (org.). Os pré-socráticos:

Fragmentos, doxografia e comentários. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996.

BLUMENBERG, Hans. Teoria da não conceitualidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.

HERÁCLITO. “Fragmentos” in: DE SOUZA, José Cavalcante (org.). Os pré-socráticos:

Fragmentos, doxografia e comentários. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996.

LIMA, Tania Stolze. “O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma

cosmologia tupi”. Mana, Rio de Janeiro. Vol. 2, no. 2, oct. 1996. Disponível em: <

http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-93131996000200002&script=sci_arttext>. Acesso

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MELO NETO, João Cabral. A educação pela pedra. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.

TARDE, Gabriel. Monadologia e sociologia. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

SAHLINS, Marshall. “O ‘pessimismo sentimental’ e a experiência etnográfica: por que a cultura

não é um ‘objeto’ em via de extinção (Parte I). Mana, Rio de Janeiro. Vol. 3., no. 1, apr. 1997.

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93131997000100002&script=sci_arttext>. Acesso em 18 dez. 2013.

SAHLINS, Marshall. “O ‘pessimismo sentimental’ e a experiência etnográfica: por que a cultura

não é um ‘objeto’ em via de extinção (Parte II). Mana, Rio de Janeiro. Vol. 3, no. 2, oct. 1997.

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VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “O medo dos outros”. Revista de Antropologia, São Paulo.

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Acesso em 14 dez. 2013.

Post scriptum, uma questão de geração – Imanência, Relação, Violência e Alteridade

Trabalhar cada um desses conceitos, como questões. Tentar pensar cada um individualmente

como as questões e a relevância com o que foi trabalhado aqui, além das questões fuutras, como

transformar a filosofia em prática. E a costura dessas quatro questões. E porque isso seria um

trabalho de geração.