violência contra a mulher em conceição do coité em busca por visibilidade
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VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER EM CONCEIÇÃO DO COITÉ: UMA BUSCA POR VISIBILIDADE.
Deraldo Júlio de Oliveira Filho1 Resumo: A violência contra as mulheres é um fenômeno de grande abrangência na sociedade, contudo difícil de ser detectado, principalmente por falta de denúncias tanto das mulheres que a sofrem, quanto das pessoas que as cercam. Essa pesquisa tem como objetivo apresentar um quadro geral da violência contra mulher no município de Conceição do Coité no ano de 1999, tendo como recorte a abordagem de gênero e da história das mulheres. A pesquisa foi realizada no arquivo da única delegacia de polícia local, onde foram encontrados dois livros referentes ao ano proposto para a pesquisa, os quais figuravam seiscentos e cinqüenta e quatro queixas, das quais noventa e sete eram exclusivamente de violência contra mulher. A partir da coleta desses dados, foi possível esboçar um perfil das vítimas, dos agressores, dos tipos de violências, período de maior incidência, formas de agressão, além de um mapeamento geográfico das agressões. Palavras-chave: Violência conta mulher. Gênero. História das mulheres. Abstract: Violence against women is a phenomenon of great coverage in the society, however, difficult to detect, mainly due to lack of complaints from both women who suffer, the people around them. This research aims to present a general picture of violence against women in the municipality of Conceição do Coité in 1999, focusing on the gender approach and women's history. The survey was conducted in single file from the local police station, where they were found in two books for the year proposed for the research, which included six hundred fifty-four complaints, of which ninety-seven were exclusively of violence against women. From the collection of these data, it was possible to sketch a profile of victims, perpetrators, types of violence, period of highest incidence, forms of aggression, and a geographic mapping of cases. Keywords: Violence to women. Gender. Women's history.
1 Graduando do curso de História da Universidade do Estado da Bahia-Campus XIV. Correio eletrônico: [email protected]
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INTRODUÇÃO Tratar da questão da violência contra a mulher é um assunto bastante delicado e
importante, vez que qualquer esclarecimento pode ser fundamental para a mudança de
mentalidade e atitude acerca desse grave problema social. Ao contrário do que muitos
pensam, “não é apenas nas classes mais humildes que acontece a violência contra a
mulher, até mesmo nas camadas mais elitizadas da sociedade os índices de agressão
física vem aumentando” (SAFFIOT, 1997, p. 52). .
Segundo dados apresentados na 10ª Conferência Nacional de Saúde (1997), no
mundo, um em cada cinco dias de falta no trabalho feminino decorre da violência
doméstica. Nos Estados Unidos, um terço das internações de mulheres em unidades de
emergência é conseqüência de agressões sofridas em casa; na América Latina, a
violência doméstica incide sobre 25% a 50% das mulheres e seus custos são da ordem
de 14,2% do PIB, cerca de 168 bilhões de dólares. No Brasil, 23% das mulheres estão
sujeitas à violência doméstica; a cada quatro minutos, uma mulher é agredida, sendo
que em 85,5% dos casos de violência física contra mulheres, os agressores são seus
parceiros. É o País que mais sofre com a violência contra as mulheres, acumulando um
aumento das despesas públicas no tratamento da saúde dessas mulheres, acarretando
numa perda de 10,5% do seu PIB2.
“Esse tema como todos os outros que se referiam a história das mulheres esteve
durante muito tempo mergulhado na completa escuridão” (PERROT, 2007, p.16). Só
efetivamente a partir de 1970 com a consagração de diferentes fatores imbricados
(científicos, sociológicos, políticos) o objeto “mulher” teve seu lugar nas ciências
humanas em geral e na história em particular.
Acompanhando o processo de mudanças, a literatura sobre violência contra as
mulheres tem suas origens no início dos anos 80, estabelecendo uma das principais
áreas de estudos feministas no Brasil.
No final da década de 1980, ocorre uma mudança teórica significativa nos
estudos feministas no Brasil. A partir dessa década, o termo "gênero" foi usado para
teorizar a questão da diferença sexual, baseado principalmente nos estudos da
historiadora Joan Scott. Buscavam dessa forma reforçar a idéia de que as diferenças que
se constatavam nos comportamentos de homens e mulheres não eram dependentes de
2 Fonte: IBGE 1998
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sexo como questão biológica, e sim, eram definidos pelo gênero, e, portanto ligados à
cultura. Na visão de Izumino (2005, p.11),
Esse novo conceito de gênero incorpora a dimensão das relações de poder, criticando argumentos baseados na idéia de assimetria e de hierarquia nas relações entre homens e mulheres. “Gênero”, como categoria de análise transformaria fundamentalmente os paradigmas da disciplina, acrescentando novos temas e impondo uma reavaliação crítica. Isto implicaria não só uma nova história das mulheres, mas uma nova história.
Além de se influenciarem pelos debates teóricos internacionais e nacionais sobre
o uso e definição da categoria gênero, nos anos 90 os estudos sobre violência contra as
mulheres também refletem mudanças no cenário jurídico-político nacional e
internacional. O processo de redemocratização no Brasil dá ensejo à promulgação de
novas leis (por exemplo, a Constituição de 1988) e novas instituições (como as
delegacias da mulher) que vêm ampliar formalmente os direitos das mulheres.
Entendendo que a violência contra mulher é um fenômeno que requer a
mobilização de toda a sociedade, exatamente pelo fato de estarem escondida no espaço
privado, é que surge a inquietação de traçar um mapeamento desse tipo de violência na
cidade de Conceição do Coité, tendo como recorte o ano de 1999. Esta baliza temporal
de nossa pesquisa foi escolhido por se constituir no momento em que o tema
violência contra mulher começa ser discutido em nível local, principalmente pelo
Coletivo de Mulheres do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, além de outros
segmentos da sociedade civil organizada comprometidos com o enfrentamento da
violência contra mulher na cidade de Conceição do Coité.
A MULHER NO FOCO DA HISTÓRIA
Para pesquisar o tema violência contra a mulher, é preciso antes situá-la no
campo da história social. Como se sabe, as contribuições recíprocas decorrentes da
explosão do feminismo e das transformações na historiografia, a partir da década de
1960, foram fundamentais na emergência da História das Mulheres. Nesse sentido,
ressalta-se a contribuição da História Social, que teve papel decisivo nesse processo, em
que as mulheres são alçadas à condição de objeto e sujeito da História. “Fato relevante,
se considerarmos a despreocupação da historiografia dominante, herdeira do
iluminismo, com a participação diferenciada dos dois sexos, já que polarizava para um
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sujeito humano universal” (SOIHET, 2003). Segundo a historiadora Hebe Castro (1997,
p.45),
É difícil pretender começar um texto sobre história social sem nos remetermos ao lugar-comum de tantos outros sobre o mesmo tema: a referência necessária ao movimento dos Annales. A referência a esse movimento se faz necessário, pois foi um marco na constituição de uma nova história, em oposição às abordagens ditas tradicionais.
O movimento formado por Bloch e Febvre, na França em 1929, tornou-se a
manifestação mais efetiva e duradoura, em detrimento de uma historiografia factualista,
centrada nas idéias e decisões de grandes homens (CASTRO, 1997, p. 45)
Nas décadas de 1930 e 1940, a designação história social aparecia vinculada a
uma abordagem culturalista, com ênfase nos costumes e tradições; portanto a história
social, nesta perspectiva, definia como objeto o domínio privado, se destacando com
uma relação e oposição entre "individual e coletivo" que distingue a história social das
abordagens anteriores.
Nas décadas de 1950 e 1960, a historia social tendeu a se constituir no interior
desta nova postura historiográfica. “Foram décadas marcadas pelo uso da quantificação
nas ciências sociais, pelos primeiros avanços da informática e pela explosão de tensões
sociais que dificilmente a comunidade dos historiadores poderia continuar ignorando”
(CASTRO, 1997, p. 47). Como exemplo dessas tensões sociais é que se enquadra o
movimento feminista, fenômeno que contribuiu para aparição do objeto “mulher” nessa
nova perspectiva histórica.
A historia social neste sentido surgiria como abordagem que buscava formular
problemas históricos específicos quanto ao comportamento e às relações entre os
diversos grupos sociais. Por outro lado, a história social recolocava como questão, no
auge das abordagens estruturalistas, o papel de ação humana na história.
Do ponto de vista metodológico, a histórica social, nas décadas de 1960 e 1970
esteve fortemente marcada, como de resto toda historiografia, por uma crescente
sofisticação de métodos quantitativos para a análise das fontes históricas, tendo por base
trabalhos com fontes eleitorais, fiscais, demográficas e principalmente cartoriais e
judiciais. Essas novas fontes abriram portas para aparição das mulheres nos relatos
históricos.
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A partir da década de 1970 e 1980 houve uma aproximação da história social
com a antropologia, passando assim a privilegiar as abordagens socioculturais. Essa
aproximação implicou profundas reavaliações metodológicas. Com essas
transformações surgiu o questionamento: que fontes utilizar para dar voz às pessoas
comuns? As respostas encontradas passavam por um uso antropológico das fontes, ou
seja, a incorporação de novos métodos interpretativos sobre os documentos, os quais
ganhariam o status de fonte histórica (documentos da inquisição, inquéritos policiais,
processos judiciais, entre outros). Adotando esse caminho muitas historiadoras e
historiadores seguiram a trajetória antropológica para chegar à história das mulheres.
ESCREVENDO A HISTÓRIA DAS MULHERES
Como vimos anteriormente, o caminho obscuro e mudo que a história tradicional
e positivista deu as mulheres ao longo dos tempos, rompe-se na década de 60 com o
advento da segunda geração da escola dos Annales e com a posterior incorporação da
história social, áreas bastante inovadoras contribuíram para o rompimento de uma visão
de história dominada pelo exclusivismo político. Ainda que seus pesquisadores não
cogitassem as diferenças dos sexos, que, para eles, não constituía uma categoria de
análise, essa nova perspectiva de se fazer história abriu caminho para abordagens de
outros temas.
Um desses novos temas se constituiu no surgimento da história das mulheres,
definirem esse objeto é particularmente decisiva para esta discussão. Marc Bloch deu
uma definição simples e acessível da história como “ciência dos homens no tempo”,
Esta fórmula pode ser transposta e ajustada ao sexo, definindo a história das mulheres
como “a ciência das mulheres no tempo” (TILLY, 1994).
Essa história se distingue particularmente das outras pelo fato de ter sido uma
história ligada a um movimento social: a história das mulheres no Brasil teve relação
direta com o movimento de mulheres e feministas que aqui se desenvolveu. Por um
longo período, ela foi escrita a partir de convicções feministas. Certamente toda história
é herdeira de um contexto político, mas relativamente poucas histórias têm uma ligação
tão forte com um programa de transformação e de ação como à história das mulheres.
Mesmo que historiadores e historiadoras tenham sido ou não membros de organizações
feministas ou de grupos de conscientização, que eles ou elas se definissem ou não como
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feministas, seus trabalhos não foram menos marcados pelo movimento feminista de
1970 e 1980.
É dentro deste segmento das histórias das mulheres que se enquadra a violência
contra as mulheres. No Brasil esse tema tem suas origens no início dos anos 80, fruto
das luta política do movimento feminista do final da década de 1970, constituindo-se
uma das principais áreas temáticas dos estudos feministas. Esses estudos são oriundos
das mudanças sociais e políticas no país, acompanhando o desenvolvimento do
movimento de mulheres e o processo de redemocratização. Nessa época, um dos
principais objetivos do movimento é dar visibilidade à violência contra as mulheres e
combatê-la mediante intervenções sociais, psicológicas e jurídicas.
DISCUTINDO RELAÇÕES DE GÊNERO NO MEIO ACADÊMICO
Concordando com o novo rumo da historiografia, no final dos anos 80, ocorre
uma mudança teórica significativa nos estudos feministas no Brasil. “Sob influência dos
debates norte-americanos e franceses sobre a construção social do sexo e do gênero, as
academias feministas no Brasil começam a substituir a categoria mulher pela categoria
gênero” (IZUMINO, 2005, p. 09). Apesar das diferentes áreas temáticas e correntes
teóricas, há um consenso de que a categoria gênero abre caminho para um novo
paradigma no estudo das questões relativas às mulheres.
A principal referência para os estudos sobre gênero no Brasil advém do trabalho
da historiadora e feminista americana Joan Scott, especialmente em seu artigo intitulado
“Gender: A useful category of historical analysis” (1988), onde a autora formula sua
definição de gênero.
A presente pesquisa utiliza o conceito de gênero proposto por Scott por
entendermos que seus estudos abrem espaços para um novo paradigma teórico que
passa a considerar gênero como uma categoria analítica, preocupada em desconstruir
verdades até então inquestionável ou pouco refletidas; gênero na visão de Scott é uma
construção social e histórica das diferenças percebidas entre os sexos e, como uma
forma primária de dar significado às relações de poder. Para isso apóia-se no conceito
de poder utilizado por Foulcault (2007), para quem, o poder não é algo que se possa
possuir, o poder circula. Portanto, não existe em nenhuma sociedade divisão entre os
que têm e os que não têm poder. Pode-se dizer que poder se exerce ou se pratica. O
poder, segundo Foucault, não existe. O que há são relações, práticas de poder.
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Gênero, inicialmente, foi utilizado pelos historiadores nos estudos feministas
apenas nas abordagens descritivas, como sinônimo de mulheres, sem haver mudança
conceitual. O termo foi usado apenas como forma de buscar legitimidade acadêmica,
porém, esses estudos não problematizavam, não sugeriam desconstruções, não pretendia
abalar os pilares de sustentação das verdades cientifícas. Só recentemente estudiosos
feministas teorizaram o termo sob o ângulo analítico para pensar a violência de gênero,
não só sob a ótica da dominação masculina, mas também para além dela. “Com isso
‘gênero’ passou a ser usado como uma categoria mais ampla para compreender as
relações de poder e violência. Passou também a substituir a categoria ‘mulher’ em
muitos estudos feministas” (SCOTT, 1988).
Scott (1988) pensa uma sociedade como um palco de conflitos e o sujeito como
ser ativo. As condições estruturais e simbólicas são concebidas como constituintes e
construtoras da sociedade. A historiadora questiona a naturalização das relações
desiguais de gênero, representando-as como construções sociais.
Scott (1988) aponta para necessidade de reinterpretação das relações desiguais do
poder social construída hierarquicamente que trata a questão da dominação como
natural, algo inaceitável, vez que no interior de cada situação social e histórica pode-se
identificar resistências. Surge aí o compromisso de rever a noção de uma sociedade
engessada que imobiliza qualquer tentativa inovadora e com qualquer possibilidade
reinterpretativa.
Ao propor o uso do conceito de gênero, denúncia que o conceito como categoria
de análise esteve ausente das principais abordagens de teoria social, formuladas desde o
século XVIII até o começo do século XX. Afirma que o conceito de gênero foi
incorporado pelas feministas americanas que buscavam enfatizar o caráter
fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo, em detrimento as propostas
determinísticas biologizantes.
Como as teorias existentes não davam conta de explicar as diferenças
apresentadas entre homens e mulheres, então as feministas da época preocuparam-se em
mudar os paradigmas disciplinares como forma de abrir caminhos para se escrever uma
nova história, ou seja, a história das mulheres, impondo um novo exame crítico das
conclusões e dos critérios do trabalho científicos existentes. As pesquisadoras dessa
nova história defenderam a inclusão de outras categorias de análise (classe, raça) além
de gênero. No entanto, Scott adverte que esses três eixos ainda que sugerissem uma
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paridade eles não possuem regras semelhantes o que dificultaria seus estudos como
processos dissociados.
Engrossando o coro da crítica feminista, a autora argumenta que os estudos
teóricos desenvolveram-se a partir de uma estruturação do mundo baseada em uma
lógica binária, estruturada nas diferenças percebidas entre os sexos e nas desigualdades
de gênero. Assim, os conceitos de sujeito, mente, razão, dentre outros, que estruturam
os estudos modernos, foram identificados com o “masculino”, enquanto que os demais
termos dicotômicos (objeto, corpo, emoção, subjetividade, etc.) sobre os quais os
primeiros se impõe hierarquicamente se construiu como feminino.
A autora finaliza, propondo sua definição de gênero como categoria analítica. O
núcleo da definição tem por sustentação a conexão integral entre duas proposições: a
primeira “gênero” é um elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas
diferenças percebidas entre os sexos; a segunda “gênero” é uma forma primaria de dar
significação das relações de poder.
Para a primeira proposição, a autora destaca quatro elementos que se inter-
relacionam e fazem parte do processo de construção do gênero na sociedade: o primeiro
são as representações simbólicas (às vezes contraditórios) que são invocados sobre as
mulheres, por exemplo, na tradição cristã ocidental, a santa e a devassa, que são ao
mesmo tempo, mitos de luz e escuridão, inocência e corrupção. O segundo são os
conceitos normativos que interpretam os significados dos símbolos, sendo expressas nas
áreas religiosas, educativas, científicas ou jurídicas, e que contribuem para fixar a
oposição binária do significado do homem e da mulher.
O terceiro elemento é a permanência intemporal na representação binária e fixa
do gênero masculino e feminino nas varias esferas sociais. O quarto e último é a
identidade subjetiva que sinaliza para a busca de como as identidades se constroem,
relacionando-as com toda uma série de atividades, de organização e representações
sociais historicamente especificas.
Em relação à segunda proposição, Scott conceitua gênero como um campo
primário no interior do qual ou por meio do qual, o poder é articulado. O gênero torna-
se implicado na concepção e na construção do próprio poder.
Na sua discussão, o conceito de gênero auxilia na interpretação das relações
sociais baseadas na diferença sexual e fornece um meio de decodificar o significado e
de compreender as complexas conexões entre varias formas de interação humana. E
complementa a argumentação, referindo-se à conexão implícita entre gênero e poder
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como compreensão crucial da igualdade e da desigualdade das relações tidas como
naturais entre homem e mulher, que possibilite o convívio de “indivíduos sociais”, que
sejam diferentes, mas não desiguais.
CONCEITO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO
Para uma adequada conceituação de violência de gênero, devem-se considerar as
relações de dominação em que é vítima a mulher pela opressão masculina, com a
imposição de suas regras de conduta que se desenvolve das mais variadas formas, em
que a violência física e psíquica são exemplos mais freqüentes de sua manifestação.
A violência comum se funda no menosprezo à liberdade de ação, expressão e
desenvolvimento do ser humano, exprimindo alguma ascendência imposta pela força
coativa física ou moral. A filósofa Marilena Chauí (1985) dá ênfase a uma relação de
forças caracterizadas por dois pólos, de forma que um deles se refira à dominação e o
outro à rejeição do dominado. Já Cavalcanti vê a violência como sendo:
Uma série de atos praticados de modo progressivo com o intuito de forçar o outro a abandonar o seu espaço constituído e a preservação de sua identidade como sujeita das relações econômicas, políticas, éticas, religiosas, eróticas [...]. No ato de violência, há um sujeito [...] que atua para abolir, definitivamente, os suportes dessa identidade, para eliminar no outro os movimentos do desejo, da autonomia e da liberdade3.
O autor Pierre Bourdieu (1999) vai chamar atenção para uma forma de violência
diferente das tratadas anteriormente: a violência simbólica, que é gerada em parte pelo
poder simbólico. Assim, para este autor, o símbolo é o instrumento da integração social,
pois possibilita o consenso sobre o sentido no mundo. Para tanto, os símbolos são
essenciais para o exercício da dominação, pois são instrumentos de legitimação ou de
imposição da dominação, contribuindo para assegurar dominação de um grupo sobre os
outros, contribuindo para a domesticação dos dominados (BOURDIEU, 1999).
Ilustrando esta violência simbólica, a historiadora Rachel Soihet (2001), lembra as
idéias de inferioridade feminina imposta pela Igreja Católica, pelos Iluministas e pelos
pensadores da época da Revolução Francesa, que através de um discurso laico
afirmavam a inferioridade da razão feminina como um fato incontestável, devendo ser
3 CAVALCANTI, Stela Valéria Soares de Farias. A violência doméstica como violação dos Direitos Humanos. Disponível em: www.jus.com.br, acesso em: 02 nov. 2009.
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cultivada apenas para o cumprimento de seus deveres naturais: obedecer ao marido, ser-
lhe fiel e cuidar dos filhos.
Nessa esteira, qualificando o conceito de violência comum pelo acréscimo do
elemento ‘gênero’, chega-se à conclusão de que a expressão resultante, violência de
gênero, deve expressar uma relação de poder de dominação do homem e de submissão
da mulher, demonstrando que os papéis impostos às mulheres e aos homens,
consolidados ao longo da história e reforçados pelo patriarcado4 e sua ideologia, que
induzem a relações violentas entre os sexos e indica que a prática desse tipo de
violência não é fruto da natureza, mas sim do processo de socialização das pessoas.
Sendo assim, a violência de gênero tem sido mostrada pela literatura feminista
como um produto social, um vírus que se manifesta de diferentes formas, em diferentes
espaços, públicos e privados, contaminando e matando mulheres (MEDEIROS, 2005).
A violência de gênero foi reconhecida em 1993 como uma violação aos direitos
humanos pela confederação das nações unidas sobre Direitos Humanos. Desde então,
tem sido reconhecida em muitos países como um grave problema de saúde pública. A
violência contra as mulheres é definido pela Organização das Nações Unidas - ONU,
como sendo todo ato de violência que tem por base o gênero e que resulta em dano ou
sofrimento físico, sexual ou psicológico á mulher; inclusive ameaças de tais atos,
coerção e privação da liberdade seja na esfera pública ou esfera privada.
(ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2002).
Portanto, violência contra a mulher ou violência de gênero pode ser entendida
como o uso, pelo agressor, da sua força física ou psicológica, para obrigá-la a fazer algo
que não queira ou deseje. É o ato de constranger, cercear a liberdade, de impedir que a
mulher manifeste seu desejo e sua vontade, sob pena de viver ameaçada, sofrer lesão
física ou risco de morte. Segundo Teles (2003) “é o meio de coagir, submeter outrem a
seu domínio. É uma violação dos direitos essenciais do ser humano”. Na visão de
Saffioti (2006),
A violência de gênero não seria somente a expressão da existência de uma relação opressiva entre os sexos, mas também funcionaria em sua especificidade como uma espécie de violência que tem em mira a preservação de toda uma conformação social baseada no gênero e fundamentada na hierarquia e na desigualdade dos status sociais sexuais.
4 Segundo Saffiot (1987), o patriarcado se constitui num sistema de relações sociais que garante a subordinação da mulher ao homem.
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Ainda segundo Saffioti (2006), no exercício da função patriarcal, os homens
detêm o poder de determinar a conduta das categorias sociais nomeadas, recebendo
autorização ou, pelo menos, tolerância da sociedade para punir o que se lhes apresenta
como desvio. Assim, a mulher violando as regras de condutas impostas pelo homem,
certamente será agredida.
Concluindo, a violência de gênero deve ser vista como sendo a violência contra a
mulher, ou seja, qualquer conduta decorrente de uma relação de poder de dominação do
homem, praticada contra pessoa do sexo feminino e que lhe cause dano, simplesmente
pela sua condição de mulher.
Apesar dos avanços obtidos no combate dessa epidemia, a guerra contra esse mal
está longe do fim. Todavia o que importa, é que os vários seguimentos da sociedade,
principalmente os movimentos feministas, lutaram e continuam lutando pela igualdade
de direitos entre homens e mulheres, bem como pelo reconhecimento da ocorrência de
discriminação contra a mulher, fato, às vezes, sequer percebido, frente à situação
cultural e histórica que impôs esse processo de sujeição e inferioridade.
MOVIMENTO DE MULHERES EM CONCEIÇÃO DO COITÉ: REFLEXOS DO MOVIMENTO FEMINISTA BRASILEIRO
Conceição do Coité é uma cidade localizada na Microrregião de Serrinha e
Mesorregião Nordeste Baiano, região conhecida como sisaleira da Bahia. Com uma área
de 832 km², e com uma população aproximada de 63.318 habitantes (IBGE, 2008).
Encravada no semi-árido nordestino, convive com longos períodos de seca estando
incluído totalmente no polígono da seca, convive com graves problemas sociais.
O município, distante 210 Km de Salvador, faz divisa ao sul com o município de
Serrinha, em uma distância de 35km. Ao norte com Retirolândia a 16km, a oeste faz
divisa com Riachão do Jacuípe a uma distância de 36km, a leste, divisa com Araci
distante 49km, ao sudoeste o município faz divisa com Ichu, distante 29km, e ao
nordeste com Santa Luz e Valente respectivamente a uma distância de 52 e 28km.
Figura 1 – Mapa da Região Sisaleira
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Fonte: Informe Coité.
Quanto às atividades econômicas, o município (segundo o censo 2002) dedica-se,
quase exclusivamente, ao cultivo de gêneros alimentícios de subsistência: feijão e
milho, associados; e mandioca, (para a produção de farinha, cujo principal objetivo é,
sobretudo, atender ao mercado local). Apesar de não ser desenvolvida, a pecuária
destaca-se a criação de bovinos eqüinos, caprinos, ovinos e aves. Na extração de
produtos vegetais, destacamos dentre os demais a cultura do sisal. Conceição do Coité
é, sem sombras de dúvidas, um dos centros mais destacados na exploração dessa planta
no estado e maior produtor do país. O município é considerado a “capital do sisal”, pelo
fato de funcionar como importante entreposto de comercialização do sisal para outras
regiões e, também, por receber das outras cidades circunvizinhas, para fazer o
beneficiamento do produto através das batedeiras5 que recebem em fibras,
transformando em fardos para exportação.
Apesar de o sisal ser gerador de grandes riquezas no município, este convive com
grandes problemas sociais, principalmente a pobreza resultante da má distribuição de
renda, além das precárias condições sanitárias, o baixo nível de escolarização e as
limitações dos governantes locais desconectados de uma política seria adequadas a
realidade do semi-árido.
Em meio às adversidades, a região do sisal tem chamado a atenção pela sua
capacidade de organização e mobilização dos variados movimentos sociais. Nesses
5 Unidade onde se inicia o processo de tratamento beneficiamento da fibra do sisal.
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cenários de contestações brotam mobilizações, a exemplo das organizações feministas
local, que lutam por espaços sociais e políticos para as mulheres sertanejas. Esses
movimentos refletem ecos do feminismo brasileiro da década de 1980, que lutavam pela
igualdade legal e social, além de possibilitarem a visibilidade da mulher.
Segundo Silva (2007), o movimento de mulheres de Conceição do Coité,
pioneiramente encontrou leito no Sindicato dos Trabalhares Rurais, espaço este
conquistado com muita luta, vez que as mulheres enfretaram forte oposição da ala
masculina até conseguirem a condição de sindicalizadas no final dos anos 80,
posteriormente a essa conquista, as mulheres passaram a figurar, ainda que em números
inferiores, nos cargos de direção.
A autora escreve que após conquistarem representação no sindicato, as mulheres
da região sisaleira continuaram sua caminhada em busca de mais espaços, é assim, que
em 1994, é criada a Comissão de Mulheres, local onde eram debatidos assuntos
pertinentes às mulheres. Essa comissão passa por transformações e em 1997 passa a se
chamar Movimento de Mulheres do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Conceição
Coité, que tinha como bandeira a emancipação da mulher da região sisaleira. No ano de
2000, com a necessidade de abranger não apenas as mulheres do meio rural, mas
também as mulheres do meio urbano, o movimento passou a ser denominado Coletivo
de Mulheres.
É nesse contexto de lutas feministas, tanto no cenário nacional quanto no cenário
local, existentes no final da década de 1980 e toda a década de 1990, que o movimento
feminista em Conceição do Coité se insere, oportunizando as mulheres sertanejas um
momento de reflexão sobre a condição de subalternidade imposta pela sociedade
patriarcal. Além de contribuir para dar visibilidade às histórias das mulheres,
principalmente evidenciando o fenômeno da violência, vez que essa problemática
sempre esteve presente nas discussões de toda trajetória do movimento feminista de
Conceição do Coité, através de realizações em todo território sisaleiro de oficinas
seminários e reuniões.
Não por acaso, a partir de 1998 a principal reivindicação do movimento se traduz
pela implantação de uma Delegacia de Atendimento Especial a mulher, espaço
institucional legítimo para denunciar os delitos de violência cometidos contra elas. Um
espaço em que elas pudessem ser reconhecidas como cidadãs e que garantisse sua
integridade física.
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MAPEAMENTO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER COITEENSE.
A presente pesquisa utilizou-se como fontes os livros de Queixas e Ocorrências
da Delegacia de Polícia, mais especificamente aqueles relacionados à mulher.
Salientando que a “queixa” é registrada pela própria vítima, é a sua versão sobre a
agressão. Enquanto a “ocorrência” é a narrativa do policial, é sua interpretação para os
fatos. A partir de coletas de informações, as quais foram transcritas numa ficha
elaborada para este fim, foi possível constatar que é preciso buscar as minúcias das
fontes, lerem suas entrelinhas e entender seus silêncios, para que possa emergir os dados
que interessam ao trabalho.
Um grave problema encontrado nesse tipo de pesquisa é a falta de documentos
referente à mulher. Parafraseando Perrot, ao constatar poucos registros nos arquivos
públicos referentes à mulher, esses normalmente destinados a atos de administração e
poder, quase exclusivamente dos “grandes homens”. “Assim, a dificuldade de escrever
uma história das mulheres deve-se, inicialmente, ao apagamento de seus traços, tanto
públicos quanto privados” (PERROT, 1992).
A pesquisa de campo foi realizada na única Delegacia de Polícia existente na
cidade de Conceição do Coité, através de um levantamento nos dois livros de queixas e
ocorrências, relativos ao ano de 1999, os quais apresentaram um total de seiscentos e
cinquenta e quatro queixas, das quais noventa e sete eram especificamente de violência
contra a mulher. A partir da coleta destes dados, fruto das denúncias feitas pelas
mulheres, foi possível delinear um mapeamento da violência contra a mulher no
município, salientando que esses dados correspondem a uma subnotificação da
violência sofrida pelas mulheres na cidade, haja vista, o grande número de mulheres que
ainda hesitam denunciar as agressões sofridas. Fica evidente que só o fato de encontrar
mulheres retratadas nos livros, ainda em situação de violência, revela uma relação direta
com o movimento de mulheres e feministas na cidade Conceição do Coité, que com
suas atuações através de reuniões, oficinas e seminários o tema era discutido,
possibilitando mudanças sociais que por sua vez permitiram que essas mulheres se
empoderassem6 e denunciassem seus agressores.
6De acordo com Irene Rodriguez Monzano (2006), no artigo Sobre El Término Gênero. In: RIVA, M. C. de la (coord.) é uma nova estratégia de ação implementada por organizações de mulheres, a partir dos anos 1970, no bojo do processo de desenvolvimento do Terceiro Mundo. A melhoria da condição das
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GRÁFICO 1 - QUEIXAS REFERENTE À MULHER EM 1999
Fonte: Depol7 / Conceição do Coité-Ba De modo geral, em Conceição do Coité, os indicadores de violência sexual e/ou
física contra as mulheres retratam apenas a violência denunciada. O gráfico um mostra
que das 654 queixas encontradas nos livros analisados, 97 era especificamente de
violência contra a mulher. As queixas e ocorrências existentes na Delegacia evidenciam
apenas parte da que realmente é praticada. Os indicadores tendem a referir apenas uma
pequena parcela dos casos, ou seja, tendem a retratar as diferentes práticas de violência
ocorridas com pessoas de classe de baixa renda e, sobretudo, restringem-se à violência
física. “As denúncias das mulheres pobres são mais freqüentes que as das mulheres
abastadas, pois estas dispõem de outros recursos de proteção, sendo assim, conservam o
sigilo do acontecimento” (Suárez, 1999). Além disso, com base nos argumentos de
Saffioti (1994), “há de se considerar também que existem muitas mulheres que vão à
delegacia em busca de uma palavra amiga e, nesses casos, também tendem a não fazer o
registro da ocorrência de violência”.
É importante compreender as relações entre as questões de desrespeito contra a
mulher e a ideologia machista ainda reinante no pensamento do sertanejo, que legitima
as atitudes dos homens, devido aos mesmos ser considerados os reais "sujeitos" da
sociedade. As agressões contra as mulheres em Conceição do Coité, em razão de sua
gravidade, merecem um acompanhamento sistemático e profundo como forma de dar
visibilidade além retomar as condições de cidadania e justiça pretendidas.
mulheres estaria condicionada à transformação das relações de poder tanto dentro como fora do lar, no plano nacional e internacional. 7 Delegacia de Polícia.
TOTAL DASQUEIXAS
VIOLENCIACONTRAMULHER
16
GRÁFICO 2 - REGISTRO DE QUEIXAS / OCORRÊNCIAS POR FAIXA ETÁRIA EM 1999.
02468
101214161820
MENOR D
E 18
ANOS
ATÉ 20
21 A
25
26 A
30
31 A
35
36 A
40
41 A
45
46 A
50
ACIMA D
E 50
Série2
Fonte: Depol / Conceição do Coité-Ba A violência contra a mulher em Conceição do Coité define o quadro típico de
violência doméstica em que a vítima em sua maioria é uma mulher entre 15 a 35 anos.
Nota-se um elevado número de violência contra mulheres menores de dezoito anos
(Gráfico dois), cruzando as informações com o gráfico quatro, observa-se que há uma
predominância de crimes sexuais nessa faixa etária, oito casos de estupro ou sedução e
sete casos de agressões físicas. No caso do estupro, nota-se que a responsável pelo
registro é quase sempre a genitora da vítima, enquanto o autor é geralmente o
namorado, (cinco casos). Esses números demonstram que ainda na década de 1990, em
Conceição do Coité, a virgindade feminina era essencial para o status da mulher. É
como afirma Silva de Aquino: (1998) “Expressões do tipo: ‘ficar perdida’, ‘deixar de
ser moça’, ‘ser passada para trás’, ‘ser desonrada’, ‘ser tirada de casa’, revelam a
importância da virgindade e a desvalorização a que estavam submetidas às mulheres que
a perdiam antes do casamento”.
Na década de oitenta, os movimentos feministas ocorridos no Brasil trouxeram
mudanças significativas relacionadas à questão sexual, questionando valores
tradicionais como o casamento e a virgindade. Porém, as influências dessas idéias em
Conceição do Coité foram muito pequenas, devido principalmente às restrições do
próprio contexto social de uma cidade do interior baiano.
Os números também revelam que a violência não respeita faixa etária, ela se
inicia antes dos dezoito anos, vai seguindo seu ciclo, e traduzindo um contínuo processo
de agressão, que culmina durante 30 e os 40 anos de idade.
17
GRÁFICO 3 - FREQUÊNCIA DOS REGISTROS DE VIOLÊNCIA POR DIAS DA SEMANA
02
46
81012
1416
1820
SEGUN
DA
TERÇA
QUAR
TA
QUIN
TA
SEXT
A
SABA
DO
DOMIN
GO
Série1
Fonte: Depol / Conceição do Coité-Ba
Diante dos números do gráfico três, não é possível estabelecer uma relação direta
entre os dias da semana e a ocorrência da violência contra a mulher. Fica evidente que a
violência não marca hora para acontecer, podendo ocorrer a qualquer momento. Os
números não mostram uma ligação entre a violência e o final de semana, momento em
que o homem, apontado como principal agressor, se encontra mais próximo da família e
da mulher. Os dados mostram uma distribuição eqüitativa dos dias da semana e a
incidência de violência contra a mulher no município de Conceição do Coité.
O gráfico acima nos permite desfazer o mito de que um dos motivos atribuídos à
violência contra a mulher é o alcoolismo. Ou seja, nas ocorrências registradas o agressor
foi motivado a agir violentamente devido à ingestão de bebidas alcoólicas. Se essa tese
fosse realmente verdade encontraríamos maiores números de agressões justamente nos
finais de semana, período em que o consumo de bebidas alcoólicas é superior em
relação aos demais dias da semana. Entretanto, Saffioti (1994) nos permite questionar
tal argumento, ela afirma que a embriaguez não pode justificar a violência cometida
pelos homens porque o álcool, os entorpecentes e as dificuldades financeiras são apenas
facilitadores do processo de violência. Na verdade, a violência masculina advém das
relações de poder construídas histórica e socialmente entre homens e mulheres.
GRÁFICO 4 – DISTRIBUIÇÃO DAS QUEIXAS / OCORRÊNCIAS POR TIPO DE
CRIME EM 1999.
18
05
10152025303540
ATO L
IBID
INOSO
TENT.
DE
HOMIC
IDIO
CALUNIA
/DIF
AMAÇ
ÃO
LESÕ
ES C
ORPO
RAIS
AMEA
ÇA
AGRESSÃ
O F
ISIC
A
ESTUPR
O
SEDUÇ
ÃO
Série1
Fonte: Depol / Conceição do Coité-Ba O perfil da violência em si mostra que a agressão, em sua maioria, é do tipo
física, seguida de ameaça ou calúnias e difamação diversas, conforme mostra o gráfico
quatro. Na realidade, o que se verifica é um ciclo em que a agressão física vem
acompanhada ou precedida de uma ameaça ou de xingamentos.
Esse ciclo é identificado de forma progressivo, aonde primeiro, vem à fase da
tensão, que vai se acumulando e se manifestando por meio de atritos, cheios de insultos
e ameaças, muitas vezes recíprocos. Em seguida, vem a fase da agressão, com a
descarga descontrolada de toda aquela tensão acumulada. O agressor atinge a vítima
com empurrões, socos e pontapés, ou às vezes usa objetos, como garrafa, pau, ferro e
outros. Depois, é a vez da fase da reconciliação, em que o agressor pede perdão e
promete mudar de comportamento, ou finge que não houve nada, fica mais carinhoso,
bonzinho, traz presentes, fazendo a mulher acreditar que aquilo não vai mais voltar a
acontecer. É muito comum que esse ciclo se repita, com cada vez maior violência e
intervalo menor entre as fases. A experiência mostra que, ou esse ciclo se reproduz
indefinidamente, ou, pior, muitas vezes termina em tragédia, com uma lesão grave ou
até o assassinato da mulher.
Um dos fatores que dificultam a interrupção da violência, como menciona
relatório do Instituto Innocenti8, ligado a UNICEF (BRAGA, 2003), é a dependência da
mulher em relação ao homem, dependência emocional e/ ou econômica. A princípio a
8Centro de Pesquisa Innocenti funciona como centro da organização de pesquisa dedicada, a manutenção da liberdade acadêmica e contribuindo para a agenda estratégica da UNICEF. Disponível em www.unicef-irc.org/.
19
violência contra a mulher inicia-se com pressões psicológicas, que tem a finalidade de
criar um desequilíbrio de forças entre o casal, posteriormente, parte-se para agressões
físicas, e espancamentos
GRÁFICO 5 - DISTRIBUIÇÃO POR PERFIL OCUPACIONALDAS MULHERES
00,5
11,5
2
2,53
3,54
4,5
DO LAR
LAVRADO
RA
COMERC
IANTE
ZELA
DORA
PROFESSO
RA
SECRETÁR
IA
ESTUDANTE
Série1
Fonte: Depol / Conceição do Coité-Ba Os preenchimentos dos boletins de ocorrências ficam vagos no quesito que
abordam a profissão das mulheres vítimas de violência. Apenas quatorze ocorrências
traziam a descrição da ocupação dessas mulheres, porém mesmo esse número reduzido
de dados permite diagnosticar que esse tipo de violência está impregnado em todos os
níveis sociais, desde mulheres sem ocupação fora de seus lares e completamente
dependente economicamente dos seus companheiros, até mulheres que exercem
atividade no mercado de trabalho e por isso possuem renda e consequentemente
dependem menos ou independem economicamente dos seus companheiros.
Apesar, de não dispor de dados sobre a renda media das vitimas, compartilhamos
com SAFFIOTI (1994) a idéia de que o exercício de uma profissão renumerada, fora do
lar, não seja suficiente para assegurar a igualdade social entre os cônjuges, todavia
contribui para a existência de menos desigualdade, e mais respeito do marido para com
sua companheira.
O gráfico também mostra que a maioria das mulheres coiteenses assinala como
ocupação "doméstica" e "dona de casa", o que se pode supor que as mulheres de classe
média e alta ainda continuam resistentes a denunciarem os casos de violência. O fato de
as patroas recomendarem à empregada que recorra à polícia não significa que elas
procedam da mesma maneira, pois têm o status a preservar.
20
GRÁFICO 6 – DISTRIBUIÇÃO DAS QUEIXAS / OCORRÊNCIAS POR ESTADO CIVIL DAS VÍTIMAS EM 1999.
0
5
10
15
20
25
CASADA SOLTEIRA DIVORCIADA
Série1
Fonte: Depol / Conceição do Coité-Ba Das mulheres que declararam seu estado civil no momento da confecção do
boletim de ocorrência, a maioria se disse solteiras, porém fica difícil analisar esses
dados, vez que muitas mulheres convivem com seus companheiros sem estabelecer uma
união legal.
Segundo dados mundiais, o risco de uma mulher ser agredida em seu próprio lar
pelo marido, ex-marido ou atual companheiro é nove vezes maior do que o de sofrer
algum tipo de violência na rua. Pode-se afirmar que o lugar menos seguro para a mulher
é sua própria casa e isto se toma evidente e se revela pelo alto índice de casos de
agressão da mulher pelo companheiro.
Vale ressaltar que o casamento possui no imaginário do nordestino, e em
particular da mulher coiteense, uma importância social muito grande. Porém ele
esconde símbolos que perpetua uma suposta superioridade masculina. Segundo Aquino
(1998, p.252), o próprio ritual sacramentalizado pela igreja católica reflete a dominação
masculina. “É o pai que leva a filha para o altar da igreja para entregá-la ao seu futuro
esposo. Sendo assim ela sai do domínio de um homem (pai) e passa a pertencer a outro
homem (o marido)”.
Entendemos esta mentalidade como algo construído e não natural. Fruto de uma
ideologia machista e patriarcal presente na maioria das culturas, e que relega à mulher o
papel de cidadão de segunda categoria.
21
GRÁFICO 7 - PERFIL DOS AGRESSORES POR SEXO
0
10
20
30
40
50
60
70
80
HOMENS MULHERES NÃO CONSTA
Série1
Fonte: Depol / Conceição do Coité-Ba Traçar a perfil do homem violento é complicado. O senso comum costuma
definir o espancador de esposas ou companheiras como um indivíduo portador de baixa
escolaridade, baixa renda, alcoólatra, sujo, desempregado e negro. No entanto, tal perfil
não passa de estereótipos. O homem espancador pode manter relações consideradas
adequadas nos demais setores da vida, ter uma reputação inquestionável, ser um ótimo
profissional, um excelente colega, um bom companheiro, e ser extremamente violento
com a esposa ou companheira. Nesse sentido, de acordo com Saffioti (1994), pode-se
dizer que “o homem violento não tem rosto, pode assumir qualquer feição”.
Mesmo assim, algumas características são bastante comuns na maioria dos
agressores. Em Conceição do Coité, dos dados analisados, 74% dos agressores são
homens, sendo que, fica difícil a obtenção de demais caracterização, vez que nas
queixas e ocorrências não trazem demais dados. Apenas 23% das ocorrências têm
mulheres como agressoras. Segundo relato de profissional da Delegacia de Polícia de
Conceição do Coité, esses casos são brigas envolvendo mulheres, ou mulheres que
abandonam suas residências e deixam para trás crianças incapazes de cuidarem de si
mesmas.
GRÁFICO 8 - FORMAS DE AGRESSÃO
22
05
101520253035404550
FACA/F
ACÃO/P
UNHA
L
CHUTES/S
OCO
S/PO
NTAPÉS
PAULADA
REVÓVER
GARRA
FADA
VERBA
L
Série1
Fonte: Depol / Conceição do Coité-Ba
Há uma diversidade de materiais que os agressores e agressoras utiliza para
atacar a mulher, porém, o instrumento mais utilizado para agredir tem sido as mãos. O
gráfico oito traz esta informação, em que aparecem os instrumentos que se apresentaram
com uma maior freqüência nas agressões ocorridas em conceição do Coité.
O fato das mãos aparecerem como o instrumento de maior freqüência pode ser
considerado como um indicador de atitudes agressivas banalizadas e instintivas, ou seja,
como uma reação em cadeia, por desagravo circunstancial e não premeditado. Este tipo
de atitude caracteriza o nível de naturalização do gesto, movido por ações reflexas e
naturalizadas e, por isso mesmo, delineando-se como atitudes frutos de construções
socialmente condicionadas, demarcando relações de poder e submissão.
Segundo Amaral (2001, p.133), as mulheres parecem assumir uma inferioridade
culturalmente inscrita nos corpos em que a relação violentador/violentada lhes impõe
um silêncio indicador desta subordinação. Agredidas, elas estão submetidas a uma
ordem de dominação masculina, são levadas a crer que o estado de ordem da violência é
natural e aceitável. Em um sistema de relações sociais com estruturas androcêntricas,
estas se objetificam em estruturas cognitivas e simbólicas que inscrevem nos corpos e
nas mentes dos indivíduos a subordinação feminina.
CONCLUSÃO
23
Na visão da historiadora Joana Pedro (2005) “a escrita da história das mulheres
no Brasil, assim como em outros paises, teve relação direta com o movimento de
mulheres e feministas que aqui se desenvolveu, além das transformações na
historiografia ocorridas a partir da década de 1960”. Nesse sentido, ressaltam-se as
contribuições da História Social, e a introdução e a propagação nas obras históricas do
conceito de gênero proposto por Scott, enquanto categoria socialmente construída e
incorporando a dimensão das relações de poder, o qual propôs um questionamento
eficaz do determinismo biológico, a partir de então o termo “gênero” passa a ser
desenvolvido como uma categoria de análise passando a ter presença constante no meio
acadêmico.
Esses fatores imbricados permitiram aos historiadores que garimpassem em um
novo e abundante acervo de fontes, trazendo a tona questões até então não alcançadas
pela lente do historiador. Dentre essas questões que se encontravam escondidas,
figurava o fenômeno da violência contra a mulher.
Dessa forma, se hoje é possível traçar um mapeamento da violência contra a
mulher numa cidade do interior do estado da Bahia, é porque os paradigmas da
disciplina história foram completamente transformados, assim como, se hoje existem as
denúncias nos livros pesquisados é porque os movimentos feministas, tanto na esfera
nacional quanto local, contribuíram para as mulheres ganhassem força e voz dentro da
sociedade e não aceitassem mais sofrerem caladas.
Em linhas gerais, os dados apresentados sobre a violência contra a mulher, no
município de conceição do Coité, em suas diversas manifestações, revelam que este não
é um fenômeno exclusivo dos grandes centros urbanos, resguardadas as devidas
proporções, as mulheres coiteenses convivem permanentemente com a violência. Por
fim, consideramos que os estudos sobre violência contra as mulheres, merecem a
atenção das ciências sociais, como forma de contribuir empírica e teoricamente para a
visibilidade e compreensão desse fenômeno, além de fomentar debates feministas e o
surgimento de novas pesquisas.
24
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