viagens no tempo. tempo canónico e tempo profano · strução do império romano e às invasões...
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Viagens no tempo.Tempo canónico e tempo profano
Por Fernando Correia de Oliveira
letargo da Idade Média, em que as comuni-
cações entre pessoas e mercadorias
ficaram praticamente interrompidas, em
que a circulação de saber como que con-
gelou, foi pouco a pouco tendo o seu des-
pertar primaveril. Às ilhas de saber que
constituiam os conventos, mosteiros e outras
comunidades religiosas, depositárias de preciosos
e escassos conjuntos de textos que tinham sobrevivido à descon-
strução do Império Romano e às invasões bárbaras, juntavam-se a
pouco e pouco cortes mais ou menos cultas, onde o rei podia ainda
não saber ler nem escrever mas se rodeava de um saber cada vez
mais laico. Muitas vezes, esse saber era protagonizado por classes
marginais, para-nómadas, constituídas por comerciantes judeus,
personalidades islamizadas ou recém-convertidas ao cristianismo
que corriam de cidade em cidade, jograis e trovadores, magos e adi-
vinhos. A Europa do Saber recomeçava a mover-se.
Um dos factores que contribuiu para esse Renascimento ‘avant la
lettre’ foi, obviamente, a consolidação de laços sociais entre sen-
hores e vassalos. A Alta Idade Média, com um feudalismo a partir
para soluções que dariam os Estados modernos, a Reconquista dos
territórios europeus ainda em mãos do Islão, o recomeço dos cir-
cuitos comerciais, com cada vez mais segurança, foram dando as
condições de ‘recomeço’.
Mas, para a mudança de mentalidades — do pan-religioso do quo-
tidiano, devido à precaridade da vida e aos temores adjacentes, para
uma esfera do privado laico cada vez mais alargada — terá decisi-
vamente contribuído a ideia do carácter indestrutível da escrita. Ca-
da vez há mais textos a circular, primeiro copiados à mão, depois
impressos, cada vez há mais gente para os ler. E cada vez mais, os
textos deixam a esfera monopolista do religioso para ganharem
temas e abordagens totalmente laicas. Os textos aparecem aos o-
lhos dos homens como fixadores de realidades passadas, no seio
das quais não se admite a mudança. Encarados como veículos do
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Relógio gótico do séc. XV,
ainda movido a pesos
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A importância dada, a partir do século XII, ao carácter indestrutível da escrita, a laicização da temáticaregistada, fazem os homens preocuparem-se cada vez mais com os registos do passado, com os compor-tamentos do seu presente, com a maneira como as gerações futuras ajuizarão dos seus comportamentos.A vida terrena ganha peso em relação à vida depois da morte. E o tempo das horas canónicas, lento, er-rático, local, muda-se para a noção laica de dias com 24 horas, iguais em todo o lado, necessárias para oentendimento de novos comércios. Em Portugal, Sebastião José de Carvalho e Melo, impõe definitiva-mente o tempo profano.
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«Até à época capitalista, o tempo foi sempre local. Não existia, com efeito, a medida do tempo único para os territórios extensos e menos ainda
para os Estados e regiões mais vastas. O particularismo da vida social aparecia também nos sistemas de cálculo de tempo. […] a medida mecâni-
ca de determinação do tempo torna possível a sua unificação e os governos, tomando o controlo do tempo, impuseram, como única exacta, a sua
própria hora a todos os súbditos. O tempo local separava, enquanto que o tempo do Estado, depois o dos fusos horários, se tornou um meio de
união, de reforço dos laços. É assim que nasce uma temporalidade única»
Aaron J. Gourevitch, Les catégories de la Culture Médiévale
O futuro profano passa a ser possível de pen-
sar, quando antes apenas o futuro sagrado (a
vida além da morte e toda a sua imagética de
pavor e paraíso) era concebível.
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conhecimento, são o legado de uma geração para a seguinte. Isto
rompe a ideia de ‘ciclo’ medieval, grilheta do inexorável e do breve
(a vida de cada ser humano), explode para o conceito eminente-
mente moderno de ‘progresso’. Começa assim a aparecer no seio da
História profana uma linearidade de passado, presente e futuro que
a tradição agostiniana considerava absolutamente submetida não só
à vontade de Deus como aos seus trágicos ciclos. O futuro profano
passa a ser possível de pensar, quando antes apenas o futuro sagra-
do (a vida além da morte e toda a sua imagética de pavor e paraíso)
era concebível.
Como há escrita, os feitos do homem ficam registados. Os feitos
dos homens (das gerações) passam a poder ser julgados na posteri-
dade. Vale a pena praticar actos gloriosos, não apenas aos olhos de
Deus, mas também aos olhos dos mortais seus pares. Na epigrafia
funerária, ao lado da data da morte, aparece a partir do século XIV
a idade do defunto. Isto porque, tanto do ponto de vista teológico
como profano, a vida e o tempo são agora percebidos como algo de
precioso.
Desde o século XIII, e a partir das cidades-estado italianas, que a
economia europeia se tinha monetarizado, havendo cunhagem
maciça de moedas em ouro e prata. Os seus grandes utilizadores
são a classe emergente de comerciantes, cambistas, banqueiros, a
burocracia notarial, contabilista, copista, etc. Todas estas person-
agens praticam ofícios que obrigam a quantificar o tempo, antes
mesmo de ser possível medi-lo com o relógio. A ideia de que ‘tem-
po é dinheiro’ é pela primeira vez equacionada.
A contrapor a séculos de trevas e vida curta, isolada e incerta nos
campos, ao tempo litúrgico, surge o tempo dos relógios, cada vez
mais urbano. Primeiro, esses relógios ainda são pertença das co-
munidades religiosas. Os sinos tocam, a partir de torres de conven-
tos e mosteiros, as horas canónicas, a que os burgueses vão obede-
cendo. De dia, o monge relojoeiro ia orientando o seu primitivo
relógio mecânico a partir de um mais fiável de sol. De noite, ou em
dias encobertos, ele contava o tempo segundo o número de salmos
que tinha recitado, ou segundo o número de páginas que tinha li-
do, ou segundo a quantidade de cera ou de azeite que tinham sido
queimados numa vela ou numa lamparina. E fazia soar os sinos a
esse ritmo incerto.
As horas canónicas tinham, assim, tempos muito pouco exactos. E
sintomaticamente lentos: seguindo o sistema sazonal, havia as
‘matinas’ antes da aurora, a ‘prima’ ao nascer do Sol, a ‘terça’ às três
horas, a ‘sexta’ às seis, a ‘nona’ às nove, as ‘vésperas’ às onze (sendo
as quatro últimas contadas a partir do nascer do Sol) e as ‘comple-
tas’ depois do pôr-do-sol. Com o tempo, as ‘nonas’ foram anteci-
padas em três horas, para o meio-dia, e essa é a origem da palavra
inglesa ‘noon’. Os leigos devotos que desejavam participar nesse
programa diário precisavam de ter os seus próprios guias, os
chamados ‘livros de horas’. Numa primeira fase, o termo ‘horas’ in-
dica, não um intervalo de 60 minutos, mas partes menos precisas
do dia reservadas às tarefas religiosas.
Mas o poder real e municipal quer impor-se. E um dos sinais do seu
novo vigor será a construção de torres relojoeiras, a contratação de
especialistas para cuidarem dos mecanismos, a imposição gradual
dos ritmos e dos tempos laicos do burgo às pulsões oratórias diárias
do clero.
A multiplicação dos relógios mecânicos nas cidades, a partir do
século XIV, é um movimento explosivo. A generalização da divisão
do dia em vinte e quatro horas iguais, cada uma de sessenta minu-
tos, dividindo-se por sua vez o minuto em sessenta segundos eram
então princípios puramente teóricos, dada a incipiência dos mecan-
ismos. Mas a reforma das mentalidades era inexorável. O ano já não
começava em datas diferentes conforme as cidades ou as regiões,
uniformiza-se a data de 1 de Janeiro.
Apesar do inconveniente de contar grande número de batidas, os
primeiros relógios tinham mostradores de 24 horas. E apenas um
ponteiro, o das horas. Passou-se depois ao mostrador de 12 horas,
que servia para marcar, no mesmo espaço, o dia e a noite. Mas a
precisão dos mecanismos tornava ainda desnecessário o apareci-
mento do ponteiro dos minutos. Assinalavam-se apenas as horas e
os quartos. O ponteiro dos segundos só surge maciçamente no tem-
po público a partir do século XIX. De qualquer modo, a padroniza-
ção do tempo, baseada na razão dos homens e não da dos deuses,
tinha começado.
A relojoaria de torre ou férrea era, como o nome indica, pesada. O
passo seguinte à laicização do tempo foi a sua privatização. Ao de-
sejo urbano e burguês de mecanismos menores e mais facilmente
transportáveis respondeu o engenho humano. No início do século
XV começaram a ser usadas molas em lugar de pesos como fonte
da força motora, o que permitiu avançar para o relógio doméstico e
deste para o de bolso.
O relógio público, quer estivesse instalado numa igreja ou numa
praça, lembrava a passagem do tempo apenas de modo intermi-
tente, mas um relógio doméstico ou de algibeira era um indicador
constantemente visível. Impunha-se na vida privada de todos, em
todas as situações.
Como afirma o académico norte-americano David S. Landes, em-
bora pudesse ser usado para abrir e fechar mercados, assinalar o i-
nício e o fim dos períodos de trabalho e dirigir o movimento das
pessoas, o relógio público assinalava apenas momentos, e não a
passagem contínua do tempo. Mas um relógio de mesa ou de al-
gibeira passava a ser um evocador sempre visível do ‘tempo usado,
tempo gasto, tempo desperdiçado, tempo perdido’. Como tal,
tornou-se estímulo e chave da realização e da produtividade indi-
viduais.
No próximo número: As ficções do tempo
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Viagens no tempo
01. Burgês segurando um relógio
de bolso, séc. XVII
02. Gravura sobre o mecanismo
do relógio de Palácio de Queluz
01.
02.
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Os feitos dos homens (das gera-
ções) passam a poder ser julgados
na posteridade. E já vale a pena
praticar actos gloriosos, não ape-
nas aos olhos de Deus, mas também
aos olhos dos mortais seus pares.
Viagens no tempo
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o evidente testemunho da mudança que se processa no reino sob o
ângulo de um outro modo de encarar o tempo, ou seja, a substitu-
ição do tempo canónico pelo tempo do relógio», diz o historiador.
A hora do desencadear do sismo apresenta-se, na maioria dos casos,
pelas nove horas e trinta da manhã, embora haja respostas que vão
das nove às dez horas. O espaço de tempo da duração do fenómeno
varia entre os 3-4 minutos e o quarto de hora. «Para lá da existência
em algumas respostas, de manifestações do tempo canónico, anote-
se, praticamente em todo o reino, como facto que não deixa de ser
significativo do processo de mudança de paradigma, a homogenei-
dade do ‘tempo do relógio’ e a sua necessidade como referente», faz
notar Santos Alves. Talvez fosse mais a grelha racional do inquéri-
to do marquês a obrigar à ‘laicidade’ das respostas e não tanto a mu-
dança de mentalidades dos párocos do reino, arriscaríamos nós…
De qualquer modo, Santos Alves sublinha: «Se, por um lado, se
assinala a coincidência horária no desencadear do sismo e a exis-
tência de relógio na torre de grande número de povoações, por ou-
tro, verifica-se a mágoa acerca do relógio que ‘anda poucas vezes
certo’ ou o lamento daqueles em cuja terra ‘não há relógio’ que
ajude à resposta correcta. A existência, ainda, de informação estri-
bada nas ‘pessoas que estavam em terra de relógio’ potencia, em
tempo de mutação, as anteriores observações e a necessidade de
uma medida de tempo análoga».
«Pode afirmar-se que, no pombalismo, existe uma evidente per-
cepção de como governar a sociedade, que se articula com uma no-
va noção de tempo, que já não se rege pelo sino do campanário mas
pelo relógio da torre, i.e., um tempo que se adequa ao espaço físico,
mas sobretudo ao espaço das relações e, obviamente, da comuni-
cação e da informação", defende o historiador. Trata-se de uma re-
organização da sociedade no seu todo político, social, administrati-
vo e onde a medição do tempo canónico é trocada pela medição
mecânica do tempo.
Neste sentido, o inquérito pombalino acerca do sismo de 1755 «dá
ao tempo uma outra significação que não a intimamente escatoló-
gica, mas antes a de uma nova comcepção da intemporalidade, em
harmonia com um outro mundo de vida que se avizinha».
Já se sabia que uma das raras tentativas de implantar em Portugal
uma indústria relojoeira foi feita pelo Marquês de Pombal. A par
da Real Fábrica das Sedas, instalada na zona lisboeta do Rato, o
primeiro-ministro de D. José contratou mestres relojoeiros france-
ses para administrarem, em regime de concessão, uma Real Fábri-
ca de Relógios. O curto e atribulado período de laboração da fábri-
ca não deixou rasto nem tradição. Sintomaticamente, a sociedade
portuguesa não se dava bem com as regras da mecânica, da micro-
mecânica, da precisão.
Mas Sebastião José de Carvalho e Melo era um português muito es-
pecial. A sua mentalidade estava verdadeiramente ‘fora’ do todo na-
cional. Se mais uma prova disso fosse necessária, ela aí está:
Na sequência do terramoto de 1 de Novembro de 1755, o Marquês
faz emitir para todos os bispados do reino um inquérito a que os
párocos respectivos deveriam responder com a brevidade possível.
Esse inquérito, emitido a 20 de Janeiro de 1756, é de um rigor cien-
tífico e metodológico inédito para a época, revelando muito da
mentalidade de Sebastião José, um ‘iluminado’. Vale a pena trans-
crevê-lo:
«A que horas principiou o terramoto do primeiro de Novembro e
que tempo durou?
Se se percebeu que fosse maior o impulso de uma parte que de ou-
tra parte v.g. do norte para o sul ou pelo contrário. Se parece que
cairam mais ruinas para uma que para outra parte.
Que número de casas arruinaria em cada freguesia, se havia edifí-
cios notáveis e o estado em que ficaram.
Que pessoas morreram, se algumas eram distintas.
Se o mar vazou primeiro ou encheu, quantos palmos cresceu mais
do que o ordinário. Quantas vezes se percebeu o fluxo e refluxo ex-
traordinário.
Se se reparou que tempo gastaria em baixar a água e quanto em
tornar a encher.
Se abriu a terra algumas bocas, o que nelas se notou e se rebentou
alguma fonte de novo. Que providências se deram imediatamente
em cada lugar pelo eclesiástico, pelos militares e pelos ministros.
Que terramotos têm repetido depois do primeiro de Novembro, em
que tempo e que danos têm feito.
Se há memória de que em outro tempo houvesse outro terramoto,
e que dano fez em cada lugar.
Que número de pessoas tem cada uma das freguesias, declarando
se puder ser quantas há de diferente sexo.
Se se experimentou alguma falta de mantimentos.
Se houve incêndio e que tempo durou e que danos fez.
O historiador José Augusto dos Santos Alves deparou com o in-
quérito e incluiu-o, bem como as respostas, na sua tese de mestra-
do, ‘A Opinião Pública em Portugal (1780-1820)’. Foi o primeiro,
aliás, a trabalhar os documentos.
O conjunto das inúmeras respostas, vindas de todo o território, «é
«Pode afirmar-se que, no pombalismo, existe uma evidente
percepção de como governar a sociedade, que se articula com
uma nova noção de tempo que já não se rege pelo sino do cam-
panário mas pelo relógio da torre; isto é: um tempo que se ade-
qua ao espaço físico, mas sobretudo ao espaço das relações e,
obviamente, da comunicação e da informação»
Pombal e a laicização do tempo português
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Imagem cedida pelo Museu da Cidade