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VERSÃO BETA
Sob o signo da palavra
ISSN 1677‐2016 QUALIS B5
ANO XI – ESPECIAL 2013 ‐ I 74
LINGUAGENS E CIÊNCIA: PROPOSTAS TEÓRICO‐ANALÍTICAS
Nádea Regina Gaspar [org]
ufscar
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
REITOR Targino de Araújo Filho
DIRETORA DO CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS Wanda Aparecida Machado Hoffmann
PROFESSORES DO DEPARTAMENTO DE LETRAS
Antón Castro Míguez ‐ [email protected] Ariane Di Felippo ‐ [email protected] Camila Höfling ‐ [email protected]
Carla Alexandra Ferreira – [email protected] Carlos Félix Piovezani Filho ‐ [email protected]
Dirceu Cleber Conde – [email protected] Eliane Hércules Augusto‐Navarro ‐ [email protected]
Fernanda dos Santos Castelano Rodrigues ‐ [email protected] Flávia Bezerra de Menezes Hirata‐Vale ‐ [email protected] Gladis Maria de Barcellos Almeida ‐ [email protected]
Irene Zanette de Castañeda ‐ [email protected] Jorge Vicente Valentim ‐ [email protected] Joyce Rodrigues Ferraz Infante ‐ [email protected] Luciana Salgado – luciana@confraria de textos.com.br
Luzmara Curcino Ferreira ‐ [email protected] Maria Isabel de Moura ‐ [email protected]
Maria Silvia Cintra Martins ‐ [email protected] Marília Blundi Onofre ‐ [email protected]
Mônica Baltazar Diniz Signori ‐ [email protected] Nelson Viana ‐ [email protected] Oto Araújo Vale ‐ [email protected] Rejane Cristina Rocha ‐ [email protected] Renato Miguel Basso ‐ [email protected]
Rita de Cássia Barbirato Thomaz de Moraes‐ [email protected] Roberto Leiser Baronas ‐ [email protected]
Rosa Yokota ‐ [email protected] Sandra Regina Buttros Gattolin de Paula ‐ [email protected]
Soeli Maria Schreiber da Silva ‐ [email protected] Tânia Pellegrini ‐ [email protected]
Valdemir Miotello ‐ [email protected] Vanice Maria Oliveira Sargentini – [email protected]
Wilson Alves‐Bezerra ‐ [email protected] Wilton José Marques ‐ [email protected]
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Sumário
Linguagens e Ciência: propostas teórico‐analíticas
Nádea Regina Gaspar
Para uma ideologia da contingência João Flávio de Almeida e Lucilia Maria de Sousa Romão
A realidade fotográfica e a ilusão hiper‐realista sob o olhar bakhtiniano Helder Marques Batista e Valdemir Miotello
A abordagem teórica bakhtiniana e o processo de indexação: diálogos Roberta Cristina Dal’ Evedove Tartarotti e Vera Regina Casari
Boccato
Jeca Tatu e Chico Bento: o caipira sob a ótica do dialogismo bakhtiniano Milene Rosa de Almeida e Luzia Sigoli Fernandes Costa
Discurso familiar nos filmes de Almodóvar Eliana Mantovani Malvestio e Nádea Regina Gaspar
Discursos científicos e saberes: relações que refletem em novas propostas de ordenações nas linguagens da web
Flávia Vieira da Silva Santos e Nádea Regina Gaspar
Os sentidos de inovação: análise do discurso das políticas de inovação no governo Dilma Rousseff
João Ricardo Lopes e Roberto Ferrari
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* Imagem da capa: http://especializacaocidadania.wordpress.com/2011/09/30/131/
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LINGUAGENS E CIÊNCIA: PROPOSTAS TEÓRICO‐ANALÍTICAS
Linguagens: fala, escrita, línguas, imagens fixas, imagens em movimento, gestos, silêncio,.....
Vida! Linguagens concebidas, gestadas e criadas por sujeitos, corporificadas em textos, letras, cores, sons, formas, movimentos, silêncios. No dizer de Adélia Prado: “a palavra [uma das manifestações das linguagens] é disfarce de uma coisa mais grave, surda‐muda, foi inventada para ser calada. Em momentos de graça, infrequentíssimos, se poderá apanhá‐la: um peixe vivo com a mão. Puro susto e terror”.
Linguagens, que também se materializam no campo da Ciência. Ciência: pesquisa, inovação, tecnologia, saberes, conhecimento,
divulgação,.... Progresso! Intercâmbios e embates, mediante os desafios apresentados
por viventes. Desejo de sujeitos em conhecer para curar, ensinar, legislar, mediar, aproximar saberes,..., derivando disto tudo, diferenças. No dizer de Boaventura de Sousa Santos “o universalismo que queremos hoje é aquele que tenha como ponto em comum a dignidade humana. A partir daí, surgem muitas diferenças que devem ser respeitadas. Temos direito de ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza”.
Linguagens e Ciência: relações profícuas entre a vida e o progresso, assentadas nas distinções, próprias, do ser humano.
“Linguagens e Ciência”. Temática desta coletânea de artigos, que visa
agregar e divulgar pesquisas cujos conteúdos versam teoricamente sobre três grandes autores do campo das ciências das linguagens: Bakhtin, Foucault e Pêcheux. Se por um lado, esses teóricos foram os eixos condutores desta coletânea, o que a distingue são as individualidades, já que cada artigo revela como resultado a aplicação de aspectos das propostas dos teóricos em análises diversas. Deste modo: a noção de ideologia; o hiper‐realismo na fotografia; a indexação de assuntos na web; o caipira brasileiro; a análise de discursos fílmicos; as ordens discursivas entre ciência e saber na web; a noção de inovação no discurso político da atual presidente brasileira, são os temas que compõem esta coletânea.
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A responsabilidade pelos textos ficou a cargo dos autores, mestrandos e seus orientadores, do Programa de pós‐graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), que os desenvolveram no decorrer de uma disciplina deste Programa, “Seminários em Análise do Discurso Imagético na Divulgação Científica”, cursada por eles na Linha de pesquisa em Linguagens, Comunicação e Ciência, no segundo semestre de 2012.
Coube a organizadora da coletânea, que também foi responsável pela oferta da disciplina: coletar, agrupar, tematizar e ordenar teoricamente os textos.
Desejamos a todos boas leituras.
Nádea Regina Gaspar Organizadora
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PARA UMA IDEOLOGIA DA CONTINGÊNCIA
João Flávio de Almeida1 Lucilia Maria de Sousa Romão2
Que é ideologia? Consiste demasiado embaraço deliberar sobre que é
medicina, filosofia ou dialética, ainda mais sobre um termo tão abstrato e resignificado dentro de cada campo científico e até mesmo dentro do arcabouço teórico de cada pensador que se apropriou do termo. Assim sendo, porventura, um termo que caminha tão livremente por caminhos tão distintos não poderia ser tomado como signo legítimo, e afinal, cada corrente e pensador deveria instaurar um novo termo para designar isto que cada um conclui por ideologia. Slavoj Zizek assinala esta dificuldade em sua obra ʺUm mapa da ideologiaʺ:
Não será seu caráter sumamente ambíguo e elusivo, por si só, uma razão suficiente para abandoná‐la? ʺIdeologiaʺ pode designar qualquer coisa, desde numa atitude contemplativa que desconhece sua dependência em relação à realidade social, até um conjunto de crenças voltado para a ação; desde o meio essencial em que os indivíduos vivenciam suas relações com uma estrutura social até as ideias falsas que legitimam um poder político dominante. Ela parece surgir exatamente quando tentamos evitá‐la e deixa de aparecer onde claramente se esperaria que existisse (ZIZEK, 1996, p. 7).
Este problema da ideologia pode ser detectado mesmo desconsiderando
o caráter hermético adotado dentro de cada campo, pois que fica evidente que a ideologia estruturalista (sim, podemos falar de uma ideologia estruturalista) define o conceito de ʹideologiaʹ segundo sua própria ideologia, e o mesmo se dá com os demais campos que se apropriam do termo. Daqui uma evidente contradição emerge: o conceito de ideologia fora cunhado por homens livres, estudiosos, que o concluíram a partir de seus
1 Mestrando pelo programa PPGCTS (Ciência, tecnologia e sociedade) da UFSCar, São Carlos;
bolsista Capes; [email protected] 2 Livre‐docente em Ciência da Informação. Profa. Dra. do curso de Graduação em Ciência da
Informação e Documentação e do Programa de Pós‐Graduação em Psicologia da FFCLRP/USP. Profa. colaboradora do Programa de Pós‐ Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade da UFSCar. Bolsista CNPq. Laboratório Discursivo E‐l@dis‐FAPESP 2010‐510290.
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caminhos teóricos, ou a ideologia consiste numa estrutura social perene, e sua descoberta fora mero encontro com uma força a priori, que já estava ali e sempre estará? Evidentemente que um termo tão contraditório não poderia definir uma estrutura, e aqui já circunscrevo minha ideologia, pois que havendo uma estrutura dessa dimensão, sua definição deveria facilmente ser unânime. Tal como uma enorme montanha no meio da estrada: ela existe ou não? Qual é seu tamanho, características e interferências? Seria possível tantas conclusões diferentes sobre um mesmo conceito de tamanha dimensão, constituído por elementos tão imutáveis quanto o que este se propõe ser?
Este tema parece encerrar em si uma antiga discussão sobre o jogo de tensão entre o social e o individual, entre as forças coletivas e a capacidade pessoal de escolha, conflito que caminha sobre outra tensão: contingência/necessidade. Sem tratar das razões ontológicas por trás de alguns movimentos que aqui descreveremos, podemos dizer que muitas vezes o que é tomado por ideológico nada mais é que uma intenção de conformar algo limitado e datado em algo perene e demasiadamente maior do que realmente é. Zizek fala sobre uma certa necessidade humana em transfigurar algo contingente ‐ mera casualidade, como se uma eterna necessidade (ZIZEK, 1996, p. 7). Em contrapartida o próprio autor tenta olhar as relações de necessidade dentro de um evento no qual a ideologia se marca, e argumenta que em muitos casos também se toma o necessário como mera contingência, e de que talvez se faça necessário desvelar a necessidade oculta daquilo que se manifesta como mera casualidade.
Evidentemente que a maioria dos pensadores que trabalharam o assunto o fizeram a partir da segunda hipótese de Zizek, partindo dos conceitos marxistas de ideologia em que as divisões de classes são os pressupostos iniciais para a tomada do assunto, seu fundamento principal, conceito este que dá certa ordem aos movimentos sociais. Este texto tem por objetivo desvelar o caráter contingente da ideologia, que, sem negá‐la, coloca‐a no nível das forças incontroláveis e inapreensíveis, tal como é a linguagem para Michel Pêcheux:
Movimento dos sentidos, errância dos sujeitos, lugares provisórios de conjunção e dispersão, de unidade e de diversidade, de indistinção, de incerteza, de trajetos, de ancoragem de vestígios: isto é o discurso, isto é o ritual da palavra. Mesmo o das que não se dizem. (ORLANDI, 2005. p. 10).
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Pois que uma teoria da ideologia em que esta aparece como uma estrutura que constitui o sujeito, e o molda de forma tão inevitável e previsível não se adaptaria a uma teoria da linguagem em que o discurso aparece repleto de furos e falhas constituintes e com um alto nível de contingência igualmente constituinte. Para tanto descreveremos brevemente a forma com que alguns autores marxistas conceberam e trabalharam a ideologia em suas teorias, para posteriormente, sem negá‐la, proponhamos outro olhar sobre o tema, qual seja, o da casualidade em detrimento da causalidade.
A teoria das quatro causas, de Aristóteles
Preocupado com o conceito de movimento, que para os gregos abarca
toda e qualquer alteração de uma realidade, Aristóteles estabelece uma teoria em que todos os movimentos do mundo seguem uma relação de causas, em que as últimas são consequências das primeiras. São quatro causas que ordenam todos os movimentos do mundo: a primeira é a causa material, que conforma uma matéria em outra (madeira em mesa); a segunda seria a causa formal, que é a ideia primeira de mesa que serve de moldura para a madeira; a terceira aparece como a causa motriz, que é a força que transforma a cadeira em mesa, no caso, a mão de obra do marceneiro; e a quarta causa é a final, ou seja, o motivo ou a razão pela qual a madeira foi transformada em mesa. Dessa forma, é porquê uma causa final ocorreu que uma causa motriz se iniciou, que deu início a uma causa formal que ocasionou, finalmente, a primeira causa, a material (CHAUÍ, 1980, p. 68).
Marilena Chauí ressalta que a teoria da causalidade tem relação direta com a divisão social, que por sua vez tem relação direta sobre a ideologia, e que desta forma, toda a cadeia de relações humanas são complemente explicáveis e apreensíveis, logo, perfeitamente passivas de manipulação, bem como de seu avesso, ou seja, de revoluções e transformações. Esta cadeia de relações humanas é a história, contudo não a história enquanto sucessão de acontecimentos factuais, tampouco um progresso temporal das ideias e realizações nem como sucessão de fatos no tempo, mas sim o ʺ[...] modo como os homens determinados em condições determinantes criam os meios e as formas de sua existência social, reproduzem ou transformam essa existência social que é econômica, política e cultural.ʺ (CHAUÍ, 1980, p. 74).
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A proposta da autora nesta obra, seguindo a teoria das quatro causas é ʺ[...] compreender por que a ideologia é possível: qual sua origem, quais seus fins, quais seus mecanismos e quais seus efeitos históricos.ʺ (CHAUÍ, 1980, p. 75).
Em outras palavras, para a autora, baseando‐se em Aristóteles e Marx, a ideologia estaria à mercê de uma captura tal que se permitiria sua análise assim como se analisa um motor de um carro, compreendendo cada engrenagem e suas funções dentro de um todo maior, o motor da sociedade que gera a história do homem no mundo.
Vejamos agora como a autora explica a teoria da ideologia segundo Marx.
A ideologia em Marx
A ideologia em Marx é assunto de destaque para a filósofa brasileira
Marilena Chauí, em sua obra ʺO que é ideologiaʺ (CHAUÍ, Marilena. O QUE É, Coleção Primeiros passos. O que é ideologia, 1980), e é nesta obra que basearemos este fragmento do texto. Marx critica a ideologia que parte das ideias e tenta explicar o real, e convida a partirmos do real e material para chegarmos às ideias que explicariam o real mas não de forma dissoluta, em contradição, mas em paridade com o mundo histórico e real. A filósofa brasileira, tratando da ideologia em Marx, inicia apontando que este pensador não separou a produção das ideias das condições sociais e históricas nas quais são produzidas. Conceito, aliás, mantido da essência da filosofia hegeliana, que apresenta uma realidade como fruto da cultura, a saber, as relações do homem com a natureza a partir do trabalho, da linguagem, das instituições sociais, do estado, da religião, da arte, da ciência e da filosofia.
Não se trata, segundo Hegel, de dizer que o espírito produz a cultura, mas sim de que ele é cultura, pois ele existe encarnado nela. (CHAUÍ, 1980, p. 84).
A partir deste axioma, de que o sujeito é constituído pela cultura, pode‐
se concluir que o real é histórico, sem história, mas sendo história, e esta história se faz real no material, e não nas ideias. Por isso a dialética é materialista, porquê seu motor não é o trabalho do espírito, mas o trabalho material, o trabalho como relação do homem com a natureza, negando‐a
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como coisa natural para transformá‐la em cultural. O sujeito da história, este agente transformador da natureza, se revela nas classes sociais em luta, e é no instante em que a divisão social do trabalho separa trabalho material/manual do trabalho intelectual é que surge a ideologia, para Marx. Os homens produzem as próprias condições de existência, tanto material quanto espiritual, e estas condições se dão pelas vias deste materialismo histórico e dialético, cujo interesse é saber mais do que as relações dos homens com a natureza por meio do trabalho, mas captar a divisão social do trabalho: esta sim responsável por basear e fundamentar todas as relações humanas desde as divisões de trabalho dentro da família até os níveis das dicotomias proprietário/trabalhador, manual/intelectual, cidade/campo (CHAUÍ, 1980, p. 85).
Estas relações humanas, presentes nestas e noutras dicotomias, são objetivadas e usadas como matérias em relações de produção, ou seja, a matéria é o homem trabalhando, produzindo, pois é neste instante em que se reproduz e se organiza a vida do homem como homem, e assim, socialmente, cada qual se aliena em sua classe social e se constitui sujeito a partir dela. Assim, as classes sociais são as relações sociais, estas determinadas pelo modo como os indivíduos se dividem e se alienam na produção de suas necessidades e condições materiais de existência. Esta alienação do homem no trabalho se dá pelas vias do que Marx chamou de fetichismo da mercadoria. Ele apresenta a própria mercadoria como realidade social, contudo realidade dissimulada, apreendida não como resultado de relações sociais enquanto relações de produção, mas aparece como um simples bem que se compra e se consome, com valor intrínseco que silencia toda a cadeia de produção que lhe constituiu. Agora alienada, a mercadoria começa um enorme ciclo de alienação e de transformação em mercadoria de tudo o que toca (CHAUÍ, 1980, p. 96). O dinheiro mercadoria se relaciona com a calça mercadoria que se relaciona com uma ʹvida jovemʹ, mercadoria, que se relaciona com um automóvel mercadoria, que por sua vez se relaciona com um ʹjeito de viverʹ mercadoria, e assim por diante, até que a mercadoria contraí vida própria e existe em si e por si, que a todos domina e a tudo abarca: o trabalhador mercadoria, com seu salário mercadoria, em relações sociais materiais, igualmente alienadas em mercadorias.
Todo este real materialista, histórico e dialético, entretanto, se submete à lógica do amo/escravo, de Hegel, traduzida como proprietário/trabalhador,
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em Marx. Se tudo é mercadoria, todo este real é de propriedade daquele que detém o intelecto, aquele do trabalho intelectual, pois toda a consciência ʺ[...] estará indissoluvelmente ligada às condições materiais de produção da existência, das formas de intercâmbio e de cooperação, e as ideias nascem da atividade material.ʺ (CHAUÍ, 1980, p. 100). Assim se dá com o estado e seus mecanismos impessoais e anônimos de dominação. O estado deveria exercer o papel de apaziguador e regulador da sociedade contudo aparece na realidade como forma pela qual os interesses da classe dominante (os proprietários) ganham a aparência de interesses coletivos de toda sociedade. Estes interesses, agora entronizados por toda a sociedade, fazem funcionar a divisão social que separa proprietários e destituídos, exploradores e explorados, intelectuais e trabalhadores, sociedade civil e estado, interesse privado e interesse geral.
A classe se autonomiza em face dos indivíduos, de sorte que estes últimos encontram suas condições de vida preestabelecidas e tem, assim, sua posição na vida e o seu desenvolvimento pessoal determinado pela classe. (...) Indicamos várias vezes que essa subsunção dos indivíduos à classe determina e se transforma, ao mesmo tempo, em sua subsunção ao todo tipo de representações. (MARX, Apud CHUAÍ, 1980, p. 109).
Assim finalmente Marx chega ao conceito de ideologia: ʺ[...] um
fenômeno objetivo e subjetivo involuntário produzido pelas condições objetivas da existência social dos indivíduos.ʺ (CHUAÍ, 1980, p. 109), ou seja, um conceito em íntima relação com o conceito de alienação. Segundo ele, a ideologia vigente, a capitalista burguesa, faz com que os indivíduos não sejam capazes de enxergar que constituem e fazem sua própria classe. Esta ideologia faz transparente os processos de constituição das classes e as apresenta como se prontas, dadas, e seus membros mais nada podem fazer do que nelas se alienarem e se converterem numa parte dela, ʺ[...] quer queira, quer não. É uma fatalidade do destino.ʺ (CHAUÍ, 1980, p. 109). Esta estrutura é tão rígida, para Marx, que ele afirma que não bastaria a opacidade do sistema para que os sujeitos transformassem suas realidades, afirmando que os produtos da consciência não podem ser dissolvidos por mera forças críticas racionais, mas somente pela derrocada prática das relações reais de onde emanam estas fontes de alienação, ou seja, a ferramenta ideologia, que aliena, não trabalharia nas mãos de reacionários: somente as transformações práticas no mundo real das relações, que passam
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pelo trabalho e lutas de classes, poderiam ser eficazes numa transformação do real vigente. Aliás, fora exatamente assim que a burguesia procedeu até sua ascensão ao poder, realizando transformações práticas no mundo, que por sua vez proporcionaram a construção de toda uma ideologia que pudesse alienar os sujeitos nela.
Marx aponta, então, a ideologia sendo construída e reforçada por diversos campos do real, tais como as ciências sociologia, história, biologia e física, as religiões, o estado e as famílias. Todas estas instituições, alienadas na ideologia capitalista, fazem funcionar esta ferramenta a uso dos dominantes, contudo, sem ser percebida. A ideologia faz funcionar a separação das classes, mas o faz de forma transparente, e se torna uma força quase impossível de ser removida por conta dos seguintes aspectos (CHAUÍ, 1980, p. 105):
1. A suposição a priori de que o trabalho material é separado do intelectual.
2. O alto poder de alienação da ideologia, que faz as separação de classes soar natural e exterior.
3. A luta de classes, que faz uso da ideologia como ferramenta de dominação.
4. Seu alto poder de aliciamento, pois que permite e faz trabalhar certas insurgências programadas que não apresentam perigo ao sistema vigente, além de fazer uso de mecanismos de aliciamento consentido tais como as promessas de sucesso e fartura como recompensa do trabalho, e a liberdade de comprar e se de constituir único dentro dos muros do capitalismo.
Assim, finalmente, Marx define a ideologia como a transformação das ideias da classe dominante em ideias que são assimiladas pela classe dominada, fazendo os interesses dos proprietários soarem como se interesses coletivos a todas as classes.
A contribuição de Louis Althusser
Althusser, marxista, conceitua a ideologia como sendo o ideário
mediador das relações dos sujeitos com suas condições de existência. Sobre as lutas de classes, ele afirma que os sujeitos percebem‐se livres e em condições de alcançar posições mais altas na hierarquia social sem que, todavia, se deem conta de que o sistema capitalista os conduz a ocupar uma determinada função nas relações de produção (ou de exploração).
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Para ele as principais evidências da existência da ideologia são o sentido e o sujeito:
Como todas as evidências, inclusive as que fazem com que uma palavra “designe uma coisa” ou “possua um significado” (portanto inclusive as evidências da “transparência” da linguagem), a evidência de que você e eu somos sujeitos – e até aí não há problema – é um efeito ideológico, o efeito ideológico elementar. (ALTHUSSER, 1985, p. 94)
Althusser então resgata o conceito de Aparelho de Estado (AE),
constituído por governo, exército, polícia, tribunais, prisões e outros. A este aparelho renomeia como ʺAparelho Repressivo do Estadoʺ, pois que o AE vale‐se de violências, físicas ou não (p. 67‐68). Ele identifica, então, outros aparelhos que se manifestam junto ao Aparelho de Estado, contudo estes não fazem uso de violência em suas tentativas de coação mas trabalham certa sedução e alienação: são os Aparelhos Ideológicos do Estado (AIE), cuja definição é assim expressa pelo teórico: “[...] um certo número de realidades que se apresentam ao observador imediato sob a forma de instituições distintas e especializadas.” (ALTHUSSER, 1985, p. 68). Por exemplo: AIE religioso (o sistema das múltiplas igrejas), AIE escolar (o sistema das diferentes escolas públicas e privadas), AIE político (o sistema de diferentes partidos), etc. (ALTHUSSER, 1985, p. 68). Todos estes Aparelhos do Estado funcionam ora através da repressão, ora através da ideologia.
Cada AIE é a realização de uma ideologia ʺregionalʺ – religiosa, moral, jurídica, política, etc. – e a unidade dessas é “assegurada por sua subordinação à ideologia dominante”. Assim, Althusser afirma: “uma ideologia existe sempre em um aparelho e em sua prática ou práticas” e salienta: “esta existência é material”, ou seja, “[...] as ideias ou representações etc., que em conjunto compõem a ideologia, não têm uma existência ideal, espiritual, mas material.” (ALTHUSSER, 1985, p. 88‐89).
Michel Pêcheux, leitor de Althusser
Pêcheux tentou formular as bases do que se constituiria uma teoria
materialista do discurso. A partir desse objetivo, Pêcheux e Fuchs, no texto A propósito da Análise Automática do Discurso: atualização e perspectivas (1997), sistematizaram a Análise do Discurso (AD) de linha francesa, fundamentando seu quadro epistemológico: ideologia, discurso e língua,
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atravessados pela noção de sujeito. A ʹideologiaʹ fundamentou no materialismo histórico, o ʹdiscursoʹ na teoria do discurso, a ʹlínguaʹ na linguística, e o ʹsujeitoʹ buscou na psicanálise.
Althusser (1985) definiu as materialidades da ideologia e suas diferentes modalidades, das quais uma delas seria ʺum discurso verbal interno ‐ a consciênciaʺ, e ʺum discurso verbal externoʺ. Assim o autor pressagiou o discurso como uma das formas de realização do ideológico (ALTHUSSER, 1985, p. 92). Tese esta que fora resgatada pela AD quando esta instaura as noções de formação ideológica e formação discursiva. As formações ideológicas (FIs) são constituídas pelas formações discursivas (FDs). Estas, por sua vez, definem‐se como “[...] aquilo que, numa formação ideológica dada, [...] determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma fala, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc.).” (PÊCHEUX, 1995, p. 160). Assim, o discurso, sob a ótica da AD, sempre insere‐se em alguma FD, que, por sua vez, pertence a alguma FI. Torna‐se, por conseguinte, inconcebível a existência de discursos não ideológicos. Convém destacar, no entanto, que para os autores “[...] é impossível identificar ideologia e discurso (o que seria uma concepção idealista da ideologia como esfera das ideias e dos discursos).” (PÊCHEUX, 1995, p. 166). Ou seja, deve‐se considerar a ideologia e o discurso como instâncias diferentes que se interligam a todo tempo, mas não se misturam.
Pêcheux recorre, então, às duas evidências althusserianas da ideologia: o sentido e o sujeito. Para ele a transparência da linguagem não é uma característica do sistema, mas sim uma evidência da intervenção da ideologia dominante, que precisa parecer natural e não manipulada. A estabilização de sentidos necessita ser transparente para que a ideologia dominante alcance seu objeto de vender seus interesses como se coletivos. A constituição do sujeito é também, para ele, uma evidência da ideologia, pois que quando estes sujeitos supõem serem livres e onipotentes estão, verdadeiramente, se alienando na ideologia capitalista.
A ideologia marxista de Bakhtin
Bakhtin, no início do século XX, intentou levar o marxismo para dentro
do domínio das linguagens, bem como inserir a linguagem no domínio do marxismo, ou seja, um estudo mais cuidadoso dos problemas ideológicos situando a ideologia não na consciência mas na língua (SILVA, 2009, p. 165).
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Para ele a ideologia determina a linguagem, uma vez que as transformações na infraestrutura expressam‐se nas ideologias (manifestações superestruturais), logo, igualmente na língua, “ideologicamente saturada” (BAKHTIN, 1998, p. 81). Assim, a ideologia não é exterior ao semiótico, mas intrínseco: “O domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra‐se também o ideológico. Tudo que é ideológico possui um valor semiótico.” (BAKHTIN, 1999, p. 32). A consciência também se submete à ideologia, que lhe é inerente, pois que, constituída pelo semiótico, a ausência do signo implicaria inexistência de atividade mental. Com este argumento, Bakhtin contesta a ideia de que a ideologia é oriunda do psiquismo e argumenta que essa instância está nele porque é inerente aos signos que o constituem, signos estes que foram criados nas relações interindividuais, logo, são impregnados de valores atribuídos por distintas interlocutores. Assim, finalmente, a consciência é ideológica e social.
A ideologia aporta várias esferas ideológicas, várias áreas da produção intelectual humana: a arte, a ciência, a moral, a ética, a filosofia, a religião, e outros mais (BAKHTIN, 1999, p. 46). Cada campo ideológico possui signos peculiares para referir‐se à exterioridade e, portanto, um modo típico de representá‐la e refratá‐la (BAKHTIN, 1999, p. 40). Assim, é comum nas esferas ideológicas que os signos não só se refiram a algo como também admitam diferentes interpretações, recriações, enfim, refrações, daquilo a que se referem. Logo, a refração é própria do signo ideológico, pois que uma comunidade linguística é organizada de uma variabilidade de relações que resignificarão os signos a partir das suas próprias experiências.
Para Faraco (FARACO, 2003) sobre a ideologia pode ser afirmado que ʺ[...] a significação dos enunciados tem sempre uma dimensão avaliativa, expressa sempre num posicionamento social valorativo. Desse modo, qualquer enunciado é, na concepção do Círculo, sempre ideológico – para eles, não existe enunciado não ideológico.ʺ Bakhtin afirma, ainda, que diferentes classes sociais fazem uso do mesmo sistema linguístico e que, consequentemente, os signos são saturados de valores axiológicos conflitantes. Portanto, segundo o filósofo russo, “[...] o signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes.” (FARACO, 2003, p.46). E é neste instante que a classe dominante tenta retirar do signo seu caráter plurivalente, ocultar seus traços ideológicos e transformá‐lo em monovalente (FARACO, 2003, p. 47).
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O problema da ideologia marxista interpelando a linguagem A análise do discurso, apesar de abarcar diferentes teóricos, e estes com
diferentes olhares para a linguagem, são unanimes em afirmar o caráter fluido do signo, e que importa mais a forma com a língua faz sentido, enquanto trabalho simbólico que parte das relações sociais; ou ainda, que o discurso é efeito de sentidos entre interlocutores. Para a análise do discurso as falhas na linguagem não são defeitos, mas elementos constituintes, tais como as derivas de sentidos, as ambiguidades, os silenciamentos e outros mais. (ORLANDI, 2005).
A língua, enquanto trabalho social, passa por uma paráfrase e por uma polissemia, uma que dá certa estabilização à língua, permitindo‐lhe certa inteligibilidade, e outra que dá poder de criação e de ruptura com este estável da língua, dando‐lhe movimento e fluidez. É por isso que se afirma que a língua não é pura fluidez, no entanto, não é pura determinação.
O problema é que vários teóricos usaram o ponto de vista marxista para fundamentarem o conceito de ideologia, tão caro a cada um deles, como se viu anteriormente. Todavia, a ideologia marxista se apresenta extremamente fatídica, e as derivas possíveis às sujeições às classes só se dá nos níveis das grandes revoluções sociais. No nível da vida cotidiana a ideologia é perfeitamente explicável para Marx, e seus efeitos são radicalmente abarcantes, transparentes, e herméticos. Esta ideologia também é da ordem da totalidade dos sentidos ideológicos, e sua teoria dá conta de tudo o que se pode falar sobre ideologia ‐ assim se supõe e se prega, embora muito se negue.
Assim, embora assegurem a não rigidez dos signos, os referidos teóricos da linguagem se basearam num sistema de elucidação da sociedade que é totalmente determinante e estanque; nas palavras de CHAUÍ, já referenciadas, fatalidades. O que fica evidentemente opaco, portanto, é que tal como a burguesia instaura uma ideologia que aliena o proletariado, o marxismo instaura uma ideologia que aliena profundamente os estudiosos da sociedade e da cultura, pois que, tal como a insolubilidade à alienação na classe dominada, o sociólogo e o estudioso da ideologia do ponto de vista marxista não pode ver outra forma de pensar o mundo, uma vez que uma teoria tão abarcante e totalizadora responde a todas as perguntas, estabiliza todos os sentidos, aponta todos os atores e suas devidas partes nas relações, faz parecer natural e a priori que somente pela divisão e luta das classes podemos explicar o real, de que tudo e todos são frutos do conflito de
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classes, então, pronto! Não há como sair da ideologia marxista! Transparente, ela dá respostas a tudo, e sua abrangência e poder de aliciamento se comparam ao que ela mesma define para a ideologia capitalista, obviamente, igualmente vilãs, pois que ambas sacrificam o homem concreto em virtude de verdades pré‐estabelecidas e fatalmente estabilizadas.
Um intricado conflito se prefigura, aqui. A teoria da causalidade de Aristóteles parece dar respaldo para uma explicação perfeitamente abarcante de uma sociedade com altos traços de contingência, ou seja, de casualidade. O próprio signo assim se apresenta, pois que seu caráter fluido assim o é justamente por não ser possível prever nem explicar algumas de suas materializações, ou ainda, de abarcar a totalidade do sentido de um discurso. O signo não é pura liberdade, sim, contudo, claramente passa longe de ser pura determinação. Certamente que é variável, e novamente contingente, a posição exata do signo e da sociedade neste enorme degrade cinza em que liberdade e determinação são as pontas de uma mesma corda: hora mais livre, hora mais determinada. Quem dirá?
Pequena tragetória da contingência
A contingência enquanto conceito filosófico parte também de
Aristóteles, contudo, agora falando da impossibilidade de se traçar respostas para o futuro, já que sua teoria das quatro causas aclarava muito bem o passado e o presente. Tomás de Aquino também estuda o assunto mas colocando Deus no final da equação, o que afinal dá certa causalidade a todas as casualidades do mundo. Hegel aborda o assunto de forma controversa, pois que afinal suprime o caráter contingente da vida em virtude da causalidade e da necessidade ‐ necessidade, leia necessidade de causas, numa rede de eventos em que um necessita de outro. Thadeu Weber (WEBER, 1993, p. 38) afirma, sobre a dialética de Hegel, que o que necessariamente é poderia ser diferente, mas retrocede afirmando que existem limites para a liberdade, pois que a pura contingência geraria uma absurda anarquia.
Max Weber, no entanto, parte na contramão, criando uma gaiola de ferro feita de um sistema de necessidades do qual não se tem saída, um sistema fechado. Todavia, a contingência aparece neste autor encarcerada na subjetividade do ator social. Aqui estão sendo tomadas as decisões seguindo –
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o que Weber chama – valores últimos, decisões que seguem critérios inacessíveis para a mão fria da racionalidade (WEBER, 1991). Husserl e Heidegger também estudaram profundamente o assunto, sendo que o último trouxe importantes considerações para um equilíbrio desta dicotomia.
Contudo foram Sartre e Camus que lançaram mão do conceito mais radical da contingência, e ergueram esta bandeira sem receio e sem recuos. A liberdade de realizar este ou aquele projeto tem para Sartre um caráter ontológico. O homem não pode fugir da sua liberdade, e está condenado a ser livre. (SARTRE, 1997, p. 252). Sua única determinação é a não determinação, ou seja, até a aceitação de uma dada situação é resultado da livre vontade do homem. Assim o indivíduo pode ser interpretado como resultado da realização do seu próprio projeto. Contudo, estudando as relações humanas, Sartre se depara com um real em que coexistem bilhões de indivíduos livres e em situação de angústia decorrente da liberdade, e a contingência toma força quando minha liberdade interfere incontrolavelmente sobre a liberdade do outro numa reação em cadeia que leva a contingência ao infinito, à impossibilidade radical de se explicar o mundo, gerando um sistema de relações que condicionam o indivíduo. E aqui a diferença entre condição e determinação é importante, pois, assevera Sartre, o homem é o que ele faz com o que fizeram dele. (SARTRE, 1997, p. 455). A liberdade que se descobre na contingência da individuação nem é em si positivo ou negativo; ela é tanto capaz de construir um novo nexo social na base da escolha de um sentido para todos, como é capaz de demitir o indivíduo no caos e na desordem de um mundo sem sentido, tema central da obra de Albert Camus que trata diretamente do absurdo e do caos que regem o real, e da radical contingência que rege o mundo.
Uma sociologia contingente
A proposta de um olhar menos determinista sobre o real e toda a
sociedade não é nova, contudo foi Lyotard, com o texto ʺA condição pós‐modernaʺ, de 1970, quem primeiro inseriu a proposta da produtividade da anarquia, do caos e até do erro na história da ciência ‐ conceitos expandidos para explicar também o real social. Sua tese principal, um ataque contra todas as grandes teorias (estruturalismo, funcionalismo ou marxismo), faz emergir o seguinte conceito: “[...] simplificando ao extremo, considera‐se a incredulidade em relação aos metarrelatos.” (LYOTARD, 2000, p. 16). Para o
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lugar das metanarrativas, destas grandes teorias que nomeiam um único caminho e explicação, podemos assumir uma teoria, senão várias, além de pequenos relatos descontínuos, conflituosos e circunstanciais para explicar o real e o social. Nem mesmo a ciência seria mais o lócus privilegiado do saber acumulado, pois que pode ser reduzida a um mero subconjunto do conhecimento (LYOTARD, 2000, p. 35). Lyotard coloca o saber acima da ciência moderna, este saber enquanto conjunto de enunciados denotativos, contudo, misturado com as ideias de saber‐fazer, de saber‐viver, saber‐escutar etc. (LYOTARD, 2000, p. 36). Assim, o modelo do conhecimento científico atrelado à prognosticabilidade está enfraquecido, e novas ideias são permitidas.
A partir destas ideias chegou‐se ao axioma: ʺAlgo é como é, mas também poderia ser diferente.ʺ. Por que motivo o mundo é assim? Por quê sim, por acaso, por somas contingentes de eventos, e facilmente tudo poderia ser de outra forma. As coisas estão necessariamente no seu lugar mas também poderiam estar em outro. O peso destas conclusões levou o sociólogo Zigmund Bauman à aniquilação do conceito de classes, logo, de suas lutas e alienações. Para ele o sujeito, nesta fase histórica da modernidade, é incuravelmente subdeterminado (BAUMAN, 2001, p. 14), e não existem mais grupos de referência que forneçam parâmetros de escolhas. Ao contrário, cada indivíduo vive em constante situação de comparação universal, em que seus costumes e preferências são contrastados e baseados com os de todos os outros indivíduos.
Chegou a vez da liquefação dos padrões de dependência e interação. Eles são agora maleáveis a um ponto que as gerações passadas não experimentaram e nem poderiam imaginar; mas, como todos os fluidos, eles não mantém a forma por muito tempo. Dar‐lhes forma é mais fácil que mantê‐los nela. Os sólidos são moldados para sempre. Manter os fluidos em uma forma requer muita atenção, vigilância constante e esforço perpétuo – e mesmo assim o sucesso do esforço é tudo, menos inevitável. (BAUMAN, 2001, p. 14)
Sobre estas tentativas de totalitarismo da racionalidade, visto nas
metanarrativas, tais como a de Marx, Maffesoli, leitor de Heidegger, afirma que faz parte da natureza humana ter um destino; é preciso dar ordem ao mundo, explicá‐lo em sua mais radical abrangência, pois que a dúvida é a principal origem de dor e sofrimento.
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Curiosamente Gilberto Freire, em 1933 já fazia uma sociologia contingente, inserindo casualidades nas descrições dos eventos de Casa Grande e Senzala e Sobrados e Mocambos, três anos depois. (BRÜSEKE, 2002, p. 303). Aquilo que a racionalidade tentou evitar nas explicações do mundo, Freyre insere de forma natural e constituinte: as paixões humanas, os sentimentos, a sexualidade, as dores, a angústia, a ambição, a raiva, a vingança, a liberdade de um confrontada com a liberdade alheia, bem como todas as demais emoções humanas, usadas numa metodologia aberta e humanista para explicar o mundo. As causas? Infinitas, somadas caoticamente, da ordem do absurdo e da contingência de que falaram Sartre e Camus. Em Freyre esta contingência não aparece somente como casualidade na história, mas sim como sua força motriz.
Cabe uma palavra mais sobre o propalado método de Gilberto Freyre, de que ele próprio tanto fala: método não, mas sim pluralidade de métodos, tão referida e tão louvada. Em Casa‐Grande e Senzala simplesmente não há método nenhum. Quero dizer, nenhuma abordagem a que o autor tenha sido fiel. Nenhum método que o leitor possa extrair da obra, como enfoque aplicável em qualquer parte.( RIBEIRO, 2001, p. 27)
O principal modo de explicação causal de Gilberto Freyre é girar qual um peru entre referências a causas diversas para, de repente, investir sobre uma delas. Quando se espera que ele nela se fixe, o vemos abandoná‐la para começar outra vez a circular. (RIBEIRO, 2001, p. 26)
Discussão: breve ensaio para uma ideologia da contingência
Se pensarmos que existe um conjunto de saberes já prontos quando o
indivíduo nasce, e que este descobre o mundo a partir destes ideários, um conjunto de ideias, pensamentos, doutrinas e visões de mundo à partir de um indivíduo ou ainda à partir de um grupo, orientado para suas ações sociais (ZIZEK, 1996, p. 9), então pode‐se dizer que sim, existe uma ideologia. Se pensarmos, como define Pêcheux (ORLANDI, 2005, p. 35‐36), que a língua já estava pronta, e que nada do que dissermos é exatamente nosso, mas sim fruto de uma paráfrase ou de uma polissemia do que já estava ai antes de nós, então não podemos negar a existência de uma cultura que acolhe a consciência ainda em seu nascedouro.
Contudo, é possível explicá‐la? É possível dar ordem a esta ideologia? É possível estabelecer uma rede de necessidades e causas que sustentem uma
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metanarrativa que dê conta da totalidade do real, que abarque e explique todas as decisões de todos os indivíduos? É possível um método que possa acolher e ordenar todas as paixões humanas, de bilhões de indivíduos livres em constante processo de escolhas que se conflitam, de ambições e de desejos caóticos, que a nível do um, deste único constituinte do todo, já é demasiado intricado de se elucidar? É possível, finalmente, captar, ordenar e compreender todas as vozes e todos os dizeres do mundo? Suas posições discursivas e seus próprios momentos históricos? Não seria necessário, ao contrário, assumir a heterogeneidade dos jogos de linguagem, esta que renuncia ao terror e à isomorfia da “metanarrativa” (Lyotard, 1979/2000, p. 116).
Aqui parece que caminhamos por um campo desconhecido. Uma sociologia contingente já tem sido trabalhada há algumas décadas, contudo, uma ideologia contingente é nitidamente um assunto novo. Seguindo justamente isto que acabo de criticar, ou seja, uma submissão a métodos que pretendem a totalidade do real pelas vias da razão, e uma pretensa isenção de valores e pontos de vista próprios, não poderia eu ousar falar de uma ideologia da contingência. Necessitaria citar pensadores que dissessem exatamente isto que vou dizer, mas não poderia ser eu: somente algum pensador já legitimado poderia fazer tal ensaio e dizer exatamente as palavras que agora vou dizer. Contudo, peço licença para quebrar alguns protocolos.
Uma ideologia da contingência, tomando emprestados os conceitos de Bauman e perpassando pela teoria da linguagem de Michel Pêcheux, seria da ordem das múltiplas vozes, de suas somas caóticas, de seus saberes produzidos com falhas e igualmente transmitidos. Não se sabe nem importa quem disse, de onde veio este ou aquele saber, pois que sua transmissão, no um a um, se dará de forma igualmente contingente, repleta de falhas, ambiguidades, derivas e furos. Sobre tudo aquilo que a ideologia marxista explica, pelas vias da contingência, de Bauman, veríamos que o capitalismo se dá por fatores múltiplos e inexplicáveis, uma infinita soma de interesses e de vozes em conflito. As classes faliriam. Todos são sujeitos múltiplos e fluidos, e suas vozes se dão de diferentes lugares e posições de forma caótica, com certas regularidades, contudo, inapreensíveis em suas totalidades. As ciências assumiriam na prática suas insuficiências, e o amor e o ódio voltariam aos palcos de discussão sobre a humanidade. Sobre os saberes humanos, veríamos, pelo olhar da contingência de Gilberto Freyre, que estes são visivelmente produzidos a partir do caos e das paixões humanas, e sua propagação se dá de igual forma contingente, transmitidas a
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partir desta linguagem igualmente não estável e que permite leituras plurais mesmo de uma tabela de dados científicos. Pelas vias da contingência veríamos que a política não tem controle exato do que faz, lida com uma massa volúvel de pessoas, e que a corrupção e as alianças se dão muitas vezes por conflitos pessoais. Assumiremos que as falências de grandes empresas são os furos de um sistema caótico, que muitas vezes não responde como se espera a um conceito ideológico lançado, e que mesmo uma alta soma de capital e um alto poder de aliciamento não é capaz de evitar equívocos, e que não basta anunciar, é preciso sorte para que um produto emplaque no mercado.
Cada área do real, social e individual, necessitaria de um olhar mais apurado sobre as assunções de suas contingências. Entender e assumir que infinitos eixos sociais incidem de forma caótica sobre cada evento do mundo é demasiado intricado, contudo necessário para que tal pensamento não soe mero abandono de busca de respostas.
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A REALIDADE FOTOGRÁFICA E A ILUSÃO HIPER‐REALISTA SOB O OLHAR BAKHTINIANO
Helder Marques Batista1 Valdemir Miotello2
Introdução
Segundo a famosa lenda renascentista, Michelangelo, extasiado ao concluir “Moisés”, bateu com o martelo no joelho da estátua de mármore e perguntou perché non parli? (porque não falas?), intrigado com tamanha perfeição dessa escultura. Porém, não diferente àquela época, o fato de que determinadas materialidades são consideradas a pura duplicação da realidade, do poder de aprofundamento e abstração perante um determinado objeto, de estar ou sentir‐se presente no próprio ambiente retratado, ou, a contra ponto, de nos enganarmos com uma “ilusão bem sucedida” (GOODMAN, 1985 p. 34), ainda permite a construção de várias hipóteses científicas.
Algumas imagens são tão reflexivas que podem ser utilizadas como um instrumento da lei, que as toma como referência para comprovar o próprio ato. Assim acontece com as multas geradas pelos radares de trânsito ou vídeos registrados pelas de câmeras de segurança. A respeito disso, Aumont (2009, p. 197) comenta que:
[...] até as imagens mais automáticas, as das câmaras de vigilância, por exemplo, são produzidas de maneira deliberada, calculada, para certos efeitos sociais. Pode‐se pois perguntar a priori se, em tudo isso, a imagem tem alguma parte que lhe seja própria: será tudo, na imagem, produzido,
1 Aluno Especial do Programa de Pós‐Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade
(PPGCTS), [email protected] 2 Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos, lotado no Departamento de
Letras. Atua também como professor do Programa de Pós‐Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade (PPGCTS) – Linha de Pesquisa 3: Linguagens, Comunicação e Ciência, [email protected]
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pensado e recebido como momento de um ato – social, comunicacional, expressivo etc?3
Consideremos que determinados meios de refiguração são bastante
complexos. Dão uma impressão “exata” do que é real, como a fotografia, por exemplo. Para Roland Barthes (1990, p. 36), ela representa o ter estado aqui:
Ao que parece, só a oposição do código cultural e do não‐código natural pode traduzir o caráter específico da fotografia e permitir avaliar a revolução antropológica que ela representa na história do homem, pois o tipo de consciência nela implícita é sem precedentes; a fotografia instaura, na verdade, não uma consciência do estar aqui do objeto (o que qualquer cópia poderia fazer), mas a consciência do ter estado aqui.
Contudo, conceitos filosóficos pensados por Mikail Bakhtin nos fazem
crer que qualquer forma de enunciado por intermédio da imagem (pinturas, desenhos, esculturas, vídeos, fotografias, entre outros), ou mesmo diálogos que se relacionam melhor com outro sentido humano que não o da visão, são tão analógicos, ou melhor, dialógicos, quanto qualquer outro tipo de materialidade. Pois podem carregar valor(es) ideológico(s) que nos possibilitam contatar “outras vozes”.
Dessa forma, este trabalho pretende valer‐se da filosofia Bakhtiniana para que seja possível compreender alguns pontos interessantes sobre a constituição do que é real ou ilusório inerente a imagem fixa. Para tanto, também será necessário buscar as falas de outros teóricos, e de teorias distintas, para dar suporte ou mesmo confrontar este pensamento base.
Para que não haja possibilidade de abstração no diversificado universo imagético, que possui inúmeras possibilidades de materialização, será necessário delimitar o campo desta análise. E o foco será dado à duas modalidades de expressão artística que, aparentemente, ou melhor, visualmente, parecem ter sido geradas pelas mesmas vias, mas que se valem de técnicas amplamente distintas para serem concretizadas.
Uma delas, já mencionada, é a fotografia. É considerada uma revolução antropológica, um registro e não uma transformação. A máquina fotográfica é
3 Em A Imagem, Aumont (2009), encontramos muitas ferramentas, pontos de vista e teorias
para que esta questão ilusória da imagem seja bem desenvolvida. Como o interesse deste estudo não é de reaplicar a análise de Jacques Aumont, novas perspectivas deverão ser colocadas em prática. Elas serão mencionadas no decorrer desta introdução.
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um aparato mecânico que garante objetividade, ausente de carga ilusória em determinadas instâncias, segundo Barthes (1990). É notável que a impressão condicionada pela luz (photo) trouxe muito benefício à sociedade e evoluiu bastante desde o século XIX, quando o seu primeiro registro foi feito. Porém, também deixou uma dúvida que perdura: se propriamente pertence ou não ao instante de sua captura. Seria a absorção e aprisionamento da variabilidade luminosa um fragmento do tempo/espaço?
A fotografia é carregada de signos e estes são tão bem refigurados perante a nossa compreensão de realidade que a faz pertencer a uma categoria singular, hegemônica, onde há mais de um século dá espaço apenas para seus próprios avanços.
No entanto, antes do primeiro registro fotográfico, o homem utilizava a gravura, a ilustração, o desenho, a pintura, para melhor descrever as características de suas descobertas científicas (Darwin, Leonardo Da Vinci, entre outros), ou simplesmente retratar a realidade do cotidiano. A menção faz referência ao nosso segundo objeto de análise: o hiper‐realismo. Trata‐se de um gênero artístico contemporâneo que ainda possui base teórica bastante estrita. Nasceu nos Estados Unidos por intermédio de pintores como Ralph Goings, Don Eddy, Robert Bechtle, entre outros. Foi influenciado pelo foto‐realismo, outra vertente artística desenvolvida nos anos 1960, naquele mesmo país.
O gênero Hiper‐realismo foi escolhido com a intenção de estabelecer uma relação comparativa com o primeiro objeto desse estudo: a fotografia. Isto se torna possível pelo fato de serem formas de refiguração tão semelhantes à percepção visual, porém, totalmente distintas tecnicamente. E as expressões artísticas hiper‐realistas nos fazem repensar num aspecto que antes parecia pertencer exclusivamente à fotografia: a fidelidade para com a realidade.
As pinturas, desenhos ou esculturas hiper‐realistas são tão reais, tão refigurativas, que levam o observador a desacreditar na própria realidade, pois, ao contemplar este tipo de arte, não fica explícita a sua procedência, se foi criada através de habilidades manuais (humana) ou se foi capturada por um aparato fotográfico (mecânico). Apesar dos artistas hiper‐realistas também se expressarem por intermédio de esculturas, nesta explanação daremos prioridade apenas as refigurações relacionadas com a imagem fixa, como pinturas e desenhos.
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Sobre a realidade na fotografia e a ilusão hiper‐realista A ideia para este estudo surgiu a partir da leitura de Roland Barthes, O
óbvio e o Obtuso (1990), mais especificamente no capítulo denominado pelo autor de A Retórica da Imagem. Lá encontra‐se um depoimento detalhado que singulariza a fotografia. Afirma Barthes que essa se destaca, em determinadas instâncias, de outros tipos de representação pelo fato de que há, em toda fotografia, a evidência sempre estarrecedora do isso aconteceu assim: temos então, precioso milagre, uma realidade da qual estamos protegidos. Nota‐se que a fotografia é enaltecida. Não por falta de merecimento, pois não temos hoje tecnologia que possa superar o seu nível de representatividade, tão pouco com tamanha rapidez.
Outra literatura importante para constituir os pensamentos acerca desse estudo foi o livro A Imagem (2009), de Jacques Aumont. Nele, há uma reunião de importantes e diversificados relatos sobre analogia, mimetismo e outros temas relacionados às tentativas de refigurar a realidade. Aumont, citando Barthes, afirma:
Durante muito tempo considerou‐se a analogia como um processo do “tudo ou nada”: uma imagem era ou não era analógica e, se o fosse, seu sentido correspondia à sua semelhança com a realidade. Foi contra essa concepção de um “purismo icônico” (Ch. Metz) que reagiu, com meios variados, a maioria das abordagens recentes da imagem. Em particular, o trabalho semiológico desenvolvido nos anos 60 na Europa, em redor de Roland Barthes, de Umberto Eco, de Christian Metz, muito contribuiu para desligar teoricamente a noção de imagem da de analogia (p. 204).
Na mesma publicação, também há um pequeno resumo sobre o
pensamento de Nelson Goodman em relação a analogia. E este também foi um ponto estimulante. Em Languages Of Art (1984), ele afirma que a analogia é um acidente na história das produções humanas e que a mesma:
jamais perfeita – é uma das modalidades, não mais importante do que outras, de um processo mais amplo que chamamos de referência (2009, p. 201) .
As problemáticas surgiram a partir dessas leituras que acabamos de
mencionar. Já a pretensão de desenvolve‐las terá como base a teoria Bakhtiniana. Não apenas em publicações da própria “autoria” de Bakhtin,
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como Marxismo e Filosofia da Linguagem (2009), onde encontramos pensamentos importantes referentes aos signos, por exemplo. Passemos a encarar os objetos desse estudo – fotografia e a pintura hiper‐realista – como signos:
Cada signo ideológico é não apenas um reflexo, uma sombra da realidade, mas também um fragmento material dessa realidade. Todo fenômeno que funciona como signo ideológico tem uma encarnação material, seja como som, como massa física, como cor, como movimento do corpo ou como outra coisa qualquer (2009 p. 33).
Buscando soluções
De acordo com os resultados obtidos pelo empenho do homem ao longo
da sua evolução em capturar ou manufaturar imagens (hiper)realistas, refigurativas ao extremo, alguns aspectos são ainda pouco esclarecidos e necessitam de uma nova interpretação. Por exemplo, a característica conferida à imagem de ser dotada de valor realista ou ilusório – já que esta também pode transmitir incontáveis relações valorativas – é passível de análise seguindo‐se uma metodo de pesquisa teórico com base na filosofia Bakhtiniana. Mas de que forma?
Como vimos a cima, pode‐se pensar nos signos que sobrepujam esses suportes. Na fotografia: o seu formato dimensional, as texturas, se impressa, se observada num monitor (televisão, computador, celular, etc.), seus métodos de produção, se digital, em preto e branco, sépia ou colorida. Todos esses signos constituem‐na como tal. Assim como os da pintura hiper‐realista: se produzida com pincel, caneta esferográfica, lápis, em tinta óleo, em papel, em tela de algodão, digital, a partir da observação de uma fotografia, etc. Além disso, não relacionados especificamente ao formato de cada um, mas igualmente entre os dois objetos citados, existe a intenção de representar algo. Obviamente, esses propósitos também estão impregnados por signos.
De acordo com Bakhtin (2009, p. 31), “[...] tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um signo.” Então, já se torna possível emparelhar as vias do signo e da ideologia para tentar encontrar respostas. Por exemplo: quais são os signos ou ideologias, que constituem primorosamente a realidade na refiguração?; porém, para enriquecimento desta abordagem,
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além da definição de signo ideológico, existem outros conceitos que interagem mutuamente e que podem auxiliar. Não faz sentido, ou talvez não seja necessário, deixá‐los de lado, pois contribuirão juntamente para uma melhor compreensão do tema.
Prosseguindo, Bakhtin nos diz que a ideologia surge através da comunicação entre dois ou mais sujeitos (de sujeito para sujeito). Nesse caso, deve‐se observar qual influência um representou, representa ou pode representar para o(s) outro(s) mediante aquela inter‐relação. Então, a alteridade já pode ser distinguida.
Além do mais, a fidelidade visual entre os objetos desse estudo, aponta para um outro caminho conceitual, que também está paralelamente ligado aos que já foram mencionados: o dialogismo. Se grande parte das pinturas hiper‐realistas são produzidas a partir da observação de uma fotografia, isso significa que a obra hiper‐realista se torna dialógica, pois a arte faz menção a um outro objeto (fotografia). Como vimos, muitas pinturas hiper‐realistas são produzidas a partir da observação de fotografias. Nesse caso, tornaria‐se a representação da representação, ou a refiguração da refiguração, pois a fotografia também refigura algo essencialmente.
Os conceitos de signo ideológico, de dialogismo e alteridade podem ser ferramentas básicas para se estudar esse aspecto valorativo aplicado às imagens. Porém, essa é apenas uma pretensão especulativa.
No entanto, concretamente, pode‐se buscar auxílio teórico em Imagem Máquina (2001), organizado por André Parente, mais especificamente no capítulo escrito por Arlindo Machado denominado Anamorfoses cronotópicas ou a quarta dimensão da imagem, onde o autor faz uso do conceito de cronotopia para melhor descrever o processo de captura de imagens “realistas”.
O termo cronotopo deriva da teoria de Mikail Bakhtin (1981:84ss), no contexto da análise literária, e foi, por sua vez, inspirado na idéia expressa pelo físico Albert Einstein de uma indissolubilidade das categorias do tempo e do espaço. Como se sabe, a teoria da relatividade encara o tempo como a quarta dimensão do espaço, o que implica uma concepção de tempo como algo que pode ser materializado (2001 p. 100).
Afirma o autor que a materialização anamófica do tempo, pela via
imagética, pode ser encontrada na cronofotografia, no trabalho desenvolvido pelo célebre fisiologista francês Étienne‐Jules Marey em 1882. Ele conseguiu observar que as distintas fases do movimento aparecem fundidas no mesmo
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suporte, dando como resultado uma espécie de gráfico do deslocamento do corpo no tempo‐espaço. O diálogo entre diferentes teorias utilizadas pelo autor, para a concepção desse trabalho é devidamente argumentado.
Conclusão
É importante ressaltar mais uma vez que ao longo desse apanhado
foram citados alguns fatos para deixar explícito que diferentes formas de refiguração da realidade foram desenvolvidas durante o passar do tempo. Hoje temos a fotografia, por excelência. Ao que parece, de acordo com diversas teorias, ela acaba por ser dotada de um imenso grau de fidelidade com a realidade, por conta de sua habilidade de capturar diretamente a luz e por não desperdiçar ou deixar intervalos entre o fim e o início de sua captura, o que a diferencia de outras categorias de refiguração como o cinema, por exemplo, de acordo com Barthes (1990) e Machado (2001).
Porém, no caso do último, em sua ideia de anamorfose cronotópica ele identifica que o tempo é dissolvido até o ponto de alterar a própria matéria em algumas fotografias. Ao que parece, basicamente, quanto maior o intervalo de captura, maior a possibilidade de conseguir criar esse tipo de experiência. E, nesse caso: essa seria uma boa maneira de refigurar a realidade? Marey desenvolveu o fuzil fotográfico e conseguiu estender a captura da realidade numa única imagem, fundido os instantes. Essa técnica, ensinou toda uma geração de artístas a reinventar a visão, como Duchamp. Esse, por sua vez, propôs movimento ao cubismo a partir daí.
Hoje, através do hiper‐realismo, também temos uma resposta artística, artesanal, à refiguração da realidade, do tempo‐espaço. Porém, apesar de todo o empenho dos artistas plásticos em tentarem ser fiéis à realidade, essas materializações, ao menos teoricamente, não conseguem atingir em nenhuma instância o nível refigurativo da fotografia, por mais desenvolvida e trabalhosa que seja. Dessa forma, há, desde o surgimento fotografia, uma constante tentativa desses artistas em tentar validar as suas refigurações ao mesmo nível, seja representando o movimento ou buscando mínimos detalhes, que ora nos iludem com tamanho sucesso.
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A ABORDAGEM TEÓRICA BAKHTINIANA E O PROCESSO DE INDEXAÇÃO: DIÁLOGOS
Roberta Cristina Dal’ Evedove Tartarotti1 Vera Regina Casari Boccato2
O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui,
é claro, senão uma das formas, é verdade que das mais importantes, da interação verbal. Mas pode‐se
compreender a palavra “diálogo” num sentido amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz alta,
de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja.
Bakhtin/Volochinov3
Introdução
O filósofo russo Mikhail Mikhailovitch Bakhtin (1895‐1975) é considerado um dos maiores pensadores do século XX. Embora seu objeto de estudo tenha sido principalmente a linguagem, a originalidade de sua obra reflete seu espírito inovador, considerada de certo modo inacabada e a influência de seu legado tem sido sentida nas Ciências Humanas, especialmente nos campos da Linguística, Literatura, Psicologia, Educação e História. Em seus ensaios, Bakhtin constituiu a base da perspectiva dialógica da linguagem, cuja concepção teórica também é denominada de dialogismo:
Bakhtin defende a tradição do pensamento filosófico cuja visão de mundo vê a realidade aliada a características como diversidade, heterogeneidade, vir a ser, inacabamento e dialogismo, opondo‐se ao ponto de vista da realidade como unidade, homogeneidade, estabilidade, acabamento e monologismo (FIORIN, 2006, p. 11).
1Mestranda do Programa de Pós‐Graduação em “Ciência, Tecnologia e Sociedade”,
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), campus de São Carlos, SP. Bibliotecária da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP. Email: [email protected]
2 Profa. Dra. do Departamento de Ciência da Informação, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), campus de São Carlos, São Carlos, SP. Email: [email protected]
3 BAKHTIN, M. M. (VOLOSHINOV, V.N.). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. do francês por Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 9.ed. São Paulo: Hucitec, 1999.
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Na introdução do Dicionário de Biblioteconomia e Arquivologia, Cunha e
Cavalcanti (2008) esclarecem que o critério básico para inclusão de um termo foi seu uso potencial ao longo do exercício profissional da multifacetada área de Ciência da Informação, contribuindo para o fortalecimento da área. Nessa obra, encontramos o significado4 do verbete diálogo: “1.conversação, real ou fictícia, entre duas ou mais pessoas, havendo troca de ideias e opiniões em busca de um acordo; 2.documento em forma de conversação com objetivos de explanação ou didático; 3.troca de dados ou informações entre dois sistemas.” (CUNHA e CAVALCANTI, 2008, p. 122). Mais recentemente, fundamentadas em seu pensamento dialógico, pesquisas tem apontado a interdisciplinaridade de seus conceitos com o campo da Ciência da Informação.
Em estudo recente apresentado à comunidade científica, Bufrem, Arboit e Sorribas (2011) realizaram um levantamento, em artigos de periódicos da área, de citações de documentos da teoria do Círculo de Bakhtin ou Círculo Bakhtiniano (CB)5, em busca da influência teórica desse pensamento no campo da Ciência da Informação no Brasil. O estudo revela que a interlocução com a teoria bakhtiniana é observada em quatro principais grupos temáticos: grupo 1: comunicação, jornalismo, publicidade, televisão e análise do discurso; grupo 2: leitura e biblioterapia; grupo 3: educação, ensino, aprendizagem, educação à distância e educação especial; e grupo 4: aspectos epistemológicos do campo, mediação da informação e organização e representação do conhecimento (grifo nosso).
No entanto, com base neste levantamento, as investigações que dialogam com a teoria do Círculo de Bakhtin (CB) destinadas à área de Organização e Representação do Conhecimento, representada pelo grupo 4, e as possíveis contribuições desse diálogo interdisciplinar não abordam pontualmente o processo de indexação. Pressupondo‐se a carência de estudos verticalizados em torno da teoria discursiva bakhtiniana e o processo de indexação, a proposta deste artigo é construir reflexões teóricas
4 Para Bakhtin, a noção de significado refere‐se ao significado abstrato, dicionarizado, que é
reconhecido pelos linguistas, enquanto que o sentido ou tema refere‐se ao enunciado, ao significado concreto inserido em um determinado contexto (BAKHTIN, 1999)
5O Círculo de Bakhtin (CB) refere‐se a um grupo de amigos‐intelectuais de Bakhtin, tais como V. N. Volochinov e P. N. Medvedev, com interesses filosóficos comuns, que se reuniam para debater suas ideias, principalmente entre 1920 e 1930, na Rússia. CLARK, K.; HOLQUIST, M. Mikhail Bakhtin (1984). Trad. de J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1998.
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iniciais entre o dialogismo e a abordagem teórica inglesa da indexação presente na área de Organização e Representação do Conhecimento, contribuindo para as possibilidades de aplicação desta abordagem discursiva no domínio da Ciência da Informação.
Em busca do paradigma social na Ciência da Informação
A Ciência da Informação é considerada uma área que historicamente
surge dos problemas informacionais da Sociedade da Informação, principalmente advindos da explosão informacional cujo interesse recai basicamente no acesso à informação. A concepção pragmática caracterizou a gênese da Ciência da Informação, voltada, em um primeiro momento, para a elaboração de produtos e sistemas de representação da informação, quando surge a necessidade da criação de “[...] meios, instrumentos e instituições que pudessem facilitar esse acesso.” (DIAS; NAVES, 2007, p. 14). No entanto, em busca de metodologias e do fortalecimento de sua institucionalização, campo passou a adquirir um caráter mais teórico e interdisciplinar.
Neste momento, é relevante considerar que, por ser a Ciência da Informação um campo inerentemente social, incide uma preocupação em torno de um paradigma teórico‐prático que agregue “[...] enfoques históricos, culturais e sociais do conhecimento às questões tradicionais de investigação nessa área.” (ANDERSEN, 20026, citado por SOUZA, 2007, p. 117).
Ao percorrer o caminho histórico da construção epistemológica da Ciência da Informação, Capurro (2003) considera três paradigmas: um primeiro momento, caracterizado pelo paradigma físico (que considera a informação como coisa, e, portanto, passível de mensuração); um segundo momento, caracterizado pelo paradigma cognitivo (que lança um olhar sobre o usuário e sua cognição), e um terceiro momento: o paradigma social (que considera a informação como parte dos processos e práticas sociais e culturais).
A partir desta perspectiva social, ocorre uma alteração no paradigma positivista de seu próprio objeto – a informação ‐ onde, de algo observável, passa ser considerada sob a ótica de um processo construído, historicamente e
6 ANDERSEN, J. Communication technologies and the concept of knowledge organization – a
medium‐theory perspective. Knowledge Organization, v. 29, n. 1, p. 29‐39, 2002.
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culturalmente pelos sujeitos que a produzem, a disseminam e a utilizam (ARAÚJO, 2009, p. 203).
Deste modo, a informação registrada em si deixa de ser o principal objeto de estudo da Ciência da Informação, para dar espaço à informação “[...] registrada em um contexto específico, envolvendo suas relações com um indivíduo e seu meio social.”, voltando‐se “[...] para uma dimensão teórica focada em abordagens sóciocognitivas centradas no contexto social da informação, do profissional e do usuário.” (BUFREM; ARBOIT; SORRIBAS, 2011, p. 147; DAL’EVEDOVE, 2010, p. 141).
O processo de leitura documentária está intimamente relacionado com o seu contexto, fator esse determinante para a realização da indexação e, nessa vertente, os postulados teóricos advindos do paradigma social alicerçam as bases epistêmicas do contexto sociocognitivo que enfatizam a interação verbal e do ambiente social/organizacional nos processos de indexação e recuperação da informação (BOCCATO, 2011, p. 18).
O contexto sociocognitivo visa à representação e a recuperação da
informação ao considerar o sujeito inserido no seu contexto social, cultural e histórico. Nessa linha de pensamento, Hjørland (2002) propôs a abordagem da análise de domínio, que possibilita uma análise de domínios de conhecimento de acordo com suas comunidades discursivas7. Tanto o contexto sociocognitivo quanto a análise de domínio possibilitam que a informação seja tratada tematicamente em um contexto permeado por fatores sociais e culturais (BOCCATO, 2011, p. 19).
Corroborando com o pensamento de Hjørland (2003), Capurro (2003) defende que, na prática, a institucionalização desse novo paradigma social em substituição aos paradigmas físico e cognitivo permite a busca de uma linguagem ideal para representar o conhecimento, considerando que
[...] uma base de dados bibliográfica ou de textos completos tem caráter eminentemente polissêmico ou, como o poderíamos chamar também, polifônico8. Os
7As comunidades discursivas representam distintos grupos sociais sincronizados em
pensamento, linguagem e conhecimento inseridos na sociedade moderna (Capurro 2003). 8A perspectiva bakhtiniana também comporta a noção de “polifonia” e a considera elemento
essencial de toda enunciação, pois em um mesmo texto ocorrem diferentes vozes que se expressam e todo discurso é formado por diversos discursos. De acordo com Bezerra (2005, p.194), a polifonia se define pela convivência e pela interação, em um mesmo espaço (...) de uma multiplicidade de vozes e consciências, que, em um texto, não são objeto do discurso do autor, mas sujeitos de seus próprios discursos.
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termos de um léxico não são algo definitivamente fixo. O objeto da ciência da informação é o estudo das relações entre os discursos, áreas de conhecimento e documentos em relação às possíveis perspectivas ou pontos de acesso de distintas comunidades de usuários (CAPURRO, 2003).
Certamente, a comunicação representa uma inter‐relação enunciativo‐
discursiva não apenas no contexto de usuários para com o sistema de recuperação da informação, mas de todos os sujeitos que participam do processo, desde o autor de um determinado documento, o indexador, e o usuário, posto que, em uma visão mais ampla, todos os sujeitos estão imersos no contexto social e influenciados por ele, pois, como observa Fiorin (2012, p. 61), o modo de funcionamento real do discurso é dialógico, ao contrário do que ocorre com a língua.
A linguagem é essencial para permitir a circulação da informação na sociedade. Do ponto de vista do Círculo de Bakhtin (CB), a linguagem “[...] é um produto da vida social não petrificado como sistema de categorias gramaticais abstratas.” e “[...] uma realidade axiologicamente saturada, em perpétuo vir a ser.”, seguindo a evolução da vida social (BUFREM, ARBOIT, SORRIBAS, 2011, p. 146). Neste cenário, o profissional da informação tem um papel de interpretador de textos:
Pode‐se dizer que o interpretador é parte do enunciado a ser interpretado, do texto (ou melhor, dos enunciados, do diálogo entre estes), entra nele como um novo participante. (...) O texto não é um objeto, sendo por esta razão impossível eliminar ou neutralizar nele a segunda consciência, a consciência de quem toma conhecimento dele (BAKHTIN, 2003, p. 233; 329 (3.ed.)
Nesta vertente, o texto não é um objeto criado pelo autor, mas um objeto
reconstruído a partir do contato com outros textos. A informação depende das interpretações dadas pelos sujeitos que se relacionam com ela e nessa interação, a informação passa a se caracterizar como enunciados.
De acordo com Freitas (1994, p. 137), a experiência discursiva individual de cada sujeito desenrola‐se em uma constante interação com os enunciados individuais de outros sujeitos, ou seja, um enunciado está repleto de nuances ideológicas “[...] e nosso próprio pensamento é constituído nessa interação dialógica com pensamentos alheios.”
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Na realidade, o ato de fala, ou, mais exatamente, seu produto, a enunciação, não pode de forma alguma ser considerado como individual no sentido estrito do termo; não pode ser explicado a partir das condições psicofisiológicas do sujeito falante. A enunciação é de natureza social (BAKHTIN, 1999, p. 109). (grifo do autor)
A este respeito, Gaspar e Reis (2010) consideram que a atividade de se
formular um enunciado é individual, “[...] mas, ao mesmo tempo, é uma atividade que obedece a convenções sociais conforme a situação em que o enunciado terá sua circulação.”
Ao resgatar a ideia de intersubjetividade, tais estudos apontam para o caráter construído da informação e para o papel ativo dos sujeitos que atuam no âmbito dos sistemas de informação e para além destes. Juntos, tais estudos recuperam as dimensões material e cultural em que se dão os fluxos informacionais (ARAÚJO, 2009, p. 202) (grifo nosso).
Nesta abordagem fenomenológica, o sujeito passa a ser um elemento
ativo na construção da informação, tornando um desafio ainda maior para os sistemas de recuperação da informação integrarem seus interesses e conhecimento, manifestados nas relações discursivas.
Os sentidos, a partir da abordagem dialógica, projetam‐se como efeitos, sendo assim, irredutíveis a uma só possibilidade, apesar de em determinados contextos enunciativos haver sentidos predominantes. Com isso, os efeitos de sentidos existem a partir de construções discursivas, das quais o sujeito “não é a fonte de seu dizer”, uma vez que se constitui, de modo dinâmico, com a instituição histórico‐social. Em outras palavras, o sujeito e os sentidos constroem‐se discursivamente nas interações verbais na relação com o outro, em uma determinada esfera de atividade humana (DI FANTI, 2003, p. 98).
Desse modo, é neste novo paradigma que se instaura no campo da
Ciência da Informação, que podemos denominar de sociodialógico, que a busca de metodologias adequadas no tratamento temático da informação, mais especificamente no processo de indexação em sistemas de recuperação da informação torna‐se um desafio ainda maior para o profissional da informação, conforme veremos a seguir.
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Perspectivas bakhtinianas no processo de indexação: alguns apontamentos No intuito de se investigar os fenômenos que resultam no
desenvolvimento de práticas aplicáveis aos problemas de organização e acesso às informações documentais, a área de Organização e Representação do Conhecimento da Ciência da Informação dispõe do arcabouço teórico‐prático necessário no que tange à produção, tratamento e recuperação da informação/conhecimento na sociedade, tendo o tratamento da informação como elo complementar entre a produção e o uso de informações.
O tratamento da informação, como uma subárea da área de Organização e Representação do Conhecimento, refere‐se a um conjunto de procedimentos que incidem sobre um conhecimento socializado, tendo seu produto social que tem uma utilidade social e individual. Por estarem inseridos em uma abordagem social, estes mesmos procedimentos variam de acordo “[...] com os contextos em que são produzidos ou os fins a que se destinam, pois é a partir destes que se desenvolvem os parâmetros de organização.” (GUIMARÃES, 2009, p. 106).
Segundo Café e Sales (2010, p. 120), na atualidade a relação dialógica entre os contextos de produção e de uso da informação é perceptível na dimensão temática “[...] especialmente na era da internet, em que o estímulo por buscas de informações reside preponderantemente no conteúdo informacional.”
Em busca de seu fortalecimento epistemológico, a organização da informação tem seus fundamentos teórico‐práticos nas abordagens de tratamento temático da informação: a análise documental9 (de origem francesa) da catalogação de assunto (de concepção norte‐americana) e da indexação (de concepção inglesa) (GUIMARÃES, 2009). Neste contexto, destaca‐se a Linguística como representante das primeiras relações interdisciplinares com a área de Organização e Representação do Conhecimento da Ciência da Informação.
A indexação pode ser definida como “[...] um processo executado nos objetos suscetíveis de ser representados mediante conceitos e as solicitações
9 O uso da expressão Análise Documental substitui a clássica Análise Documentária de origem
francesa, considerando‐se que, na língua portuguesa, a derivação dos adjetivos precedentes dos substantivos terminados em –nto (comportamento, monumento, departamento, etc.), faz‐se mediante o sufixo –al (comportamental, monumental, departamental, etc.) (GUIMARÃES; NASCIMENTO; MORAES, 2005, p. 135).
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dos usuários para, em última instância, satisfazer necessidades de informação.” A eficiente recuperação em um sistema de recuperação da informação como os catálogos coletivos online ou bases de dados depende da qualidade deste processo. Além disso, teoricamente, qualquer objeto é passível de ser indexado ou representado por meio de conceitos em busca da satisfação de necessidades específicas de informação (GIL LEIVA, 2008, p. 64).
Diante do exposto, considera‐se que a indexação consiste em um processo formado por subprocessos ou etapas que tem como objetivo identificar o conteúdo de um documento, por meio de uma metalinguagem construída – a linguagem documental ‐ no intuito de promover a efetiva recuperação da informação. Embora não consensuais na literatura, tem‐se como principais etapas do processo de indexação: leitura documental; análise de assunto ou identificação de conceitos; seleção de conceitos e tradução de conceitos. Em síntese, a qualidade da indexação está relacionada à capacidade de reconstruir o assunto tratado em um documento em conceitos para recuperação posterior pelo usuário do sistema de informação.
Do ponto de vista da análise de assunto ou identificação de conceitos, a complexidade do processo de indexação está relacionada à interação entre o texto e o leitor durante um momento específico: a leitura. Sob a ótica de Alliende e Condemarín (1987, p. 26), “[...] a leitura está longe de ser um processo passivo: todo texto, para ser interpretado, exige uma ativa participação do leitor.” Além disso, a complexidade da análise de assunto ou identificação de conceitos, conforme Guimarães (2009, p. 108), está relacionada a três parâmetros de análise: à tematicidade inerente do documento (aboutness); ao contexto no qual o documento está inserido; e à política de indexação do sistema de recuperação da informação.
Na indexação, elementos constituintes da operação são o indexador e o documento: sem o indexador nem o documento não há indexação, assim como não haverá interação do indexador com o documento sem leitura, entendendo‐se por leitura o processo de compreensão do conteúdo do documento. Para Bakhtin (2003, p. 319), “[...] a compreensão de um texto sempre é um correto reflexo do reflexo. Um reflexo através do outro no sentido do objeto refletido.”
O indexador, portanto, é um leitor que interage com o texto para cumprir o objetivo da indexação, pois “[...] o acontecimento da vida do texto, isto é, a sua verdadeira essência, sempre se desenvolve na fronteira de duas consciências, de dois sujeitos.” (BAKHTIN, 2003, p. 311). Assim, o
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estabelecimento dos conceitos tratados num documento envolve três aspectos principais: a compreensão do conteúdo do documento, a identificação dos conceitos que representem este conteúdo e a seleção dos conceitos válidos para recuperação, superpostos durante a leitura do documento.
Na linguagem documentária utilizada em sistemas de recuperação da informação, os descritores são uma linguagem controlada utilizada para representar o conteúdo temático de um documento. Enquanto os descritores primários são aqueles escolhidos pelo indexador como mais significativos para a representação do conteúdo temático de um documento, os descritores secundários são aqueles escolhidos como menos significativos para a representação do conteúdo temático (BIREME, 2008, p. 35).
A perspectiva teórica bakhtiniana nos leva a refletir que, na indexação, primeiramente é preciso olhar para dentro do texto e compreender dentro do mesmo sua proposta temática, inerente ao texto, considerando as pistas que levam ao ponto de vista do sujeito‐autor. O papel do sujeito‐analista, indexador, é o de mediador entre o texto e seu sujeito‐leitor, considerando que “[...] o interpretador é parte do enunciado a ser interpretado, do texto (ou melhor, dos enunciados, do diálogo entre estes), entra nele como um novo participante.” (BAKHTIN, 2003, p. 329).
Em um segundo momento, realizar o que se denomina de cotejamento10 com outros textos, saindo do texto em si e o confrontando com outros textos, com outros assuntos que tenham o mesmo discurso, colocando uma relação dialógica e interdiscursiva, por meio da mediação da linguagem, sem que se altere a materialidade.
O sentido da palavra é totalmente determinado por seu contexto. De fato, há tantas significações possíveis quantos contextos possíveis. No entanto, nem, por isso a apalavra deixa de ser una. Ela não se desagrega em tantas palavras quantos forem os contextos nos quais ela pode se inserir. Evidentemente, essa unicidade da palavra não é somente assegurada pela unicidade de sua composição fonética; há também uma unicidade inerente a todas as suas significações. (BAKHTIN, 1999, p. 106)
Considerando que “[...] o essencial na tarefa de decodificação não
consiste em reconhecer a forma utilizada, mas compreendê‐la num contexto
10 Por cotejamento, entende‐se um estabelecimento de comparação em busca de semelhanças/diferenças entre os textos.
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concreto preciso, compreender sua significação numa enunciação particular.” (BAKHTIN, 1999, p. 92), na prática profissional, outros assuntos do contexto poderiam ser adicionados/associados aos termos gerais de indexação, agregando valor à leitura documental e a seus produtos oriundos do processo de indexação, compondo um corpus temático caracterizado pelos assuntos/descritores primários (principais), assuntos/descritores secundários e assuntos/descritores contextuais. O sistema de informação permitiria uma reorganização dos assuntos conforme as buscas realizadas pelos sujeitos, recuperando documentos11 relacionados entre si em uma perspectiva discursiva, pautando‐se por distintas relações que se instauram no outro, de acordo com cada perspectiva dos sujeitos.
De um ponto de vista realmente objetivo, percebendo a língua de um modo completamente diferente daquele como ela apareceria para um certo individuo, num dado momento do tempo, a língua apresenta‐se como uma corrente evolutiva ininterrupta (BAKHTIN, 1999, p. 91).
A relação dialógica que estabelece para Bakhtin é a relação entre eu e o
outro, mediada pela linguagem, sem a qual não haveria esta inter‐relação, ou seja, todas essas relações são pautadas pelo uso da linguagem. Para mudar o sentido, não é necessário mudar o objeto, o documento, a materialidade sócio histórica, mas o ponto de vista sobre aquele determinado objeto de análise.
Bakhtin é o filósofo da diferença, não é uma perspectiva do igual, mas desse jogo entre o objeto e seus pontos de vista pelos sujeitos, entre o objetivismo e o subjetivismo no contexto discursivo. Ou seja, não se pode mudar a materialidade, mas o sentido, percebendo “[...] seu caráter de novidade e não somente sua conformidade à norma.” (BAKHTIN, 1999, p. 92). O novo é exatamente as vozes que estão entrando na interação.
Ora, se o princípio constitutivo de um sujeito se dá pelas trocas interativas constantes com outros sujeitos, ao escritor (ou sujeito‐autor) não é possível escapar dessa realidade. O autor‐criador só poderá se constituir como tal por meio da intervenção avaliativa e valorativa de um outro‐leitor no processo de composição de seu texto. (...) São as vozes sociais já
11 Por documento, entende‐se qualquer tipo de textos ou objetos passíveis de interação entre os
sujeitos. Na perspectiva bakhtiniana, existe uma relação com o outro e não com o objeto, que se humaniza.
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determinando o produto final da sua obra, ou o próprio texto. São outras consciências. Na realidade, o outro que constitui este sujeito enquanto autor é o leitor, sua audiência. É ele que avalia e atribui o valor necessário, os sentidos possíveis do texto a partir de sua posição verbo‐axiológica. (LEITÃO, 2011, p. 77)
Desta maneira, Lucas (1997, p. 52) concorda que em uma abordagem
discursiva, a representação não significa a simples substituição de uma palavra por outra, mas realizada “[...] a partir da interpretação e configura a dispersão do sujeito e suas diferentes posições.” É possível observar os diferentes sentidos atribuídos à indexação – gesto de leitura do bibliotecário ‐ avaliando o que Lancaster (1993), um clássico pesquisador da área de indexação, escreve sobre as diferentes indexações atribuídas a um mesmo texto, sinalizando os interesses dos usuários como motivadores destas inconsistências:
[...] não existe um conjunto ʺcorretoʺ de termos de indexação para documento algum. A mesma publicação pode ser indexada de forma bastante diferente em diferentes centros de informação, e deve ser indexada de modo diferente, se os grupos de usuários estiverem interessados nesses documentos por diferentes razões.
Na perspectiva discursiva do processo de indexação, todos os sentidos
são possíveis e, dependendo das condições de produção, há a dominação de um dentre eles. O que existe, afinal, “[...] é um sentido dominante que se institucionaliza como produto da história: o literal.” (ORLANDI, 1990).
Considerações finais (iniciais)
A corrente teórica da indexação da área de Organização e Representação
do Conhecimento, ao adaptar ou propor uma metodologia que garanta uma eficiente análise de assunto dos documentos, em qualquer que seja sua materialização ‐ deve admitir que esta ocorre na leitura documental, envolvendo, para isso, um processo de compreensão a ser mais investigado sob a ótica de outros campos científicos como a Linguística, que têm o texto escrito como objeto de estudo, com a qual é preciso estabelecer interfaces teóricas e metodológicas.
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Nesta busca interdisciplinar que contribua para o aperfeiçoamento da indexação, verifica‐se que a concepção discursiva bakhtiniana possibilita novos olhares colaborativos, no sentido de não apenas realizar a identificação de conceitos inerentes aos documentos, mas permitindo a incorporação de aspectos referentes ao contexto: sociais, ideológicos, culturais, políticos, cognitivos, econômicos, éticos e estéticos que circundam a própria materialização dos textos. Dessa forma, considera‐se que o sujeito que produz, interpreta ou lê os textos é constituído de outros sujeitos para compor seu próprio repertório discursivo. Diante de uma indexação centrada apenas no texto, desvinculada de elementos discursivos, o desafio é encontrar uma resposta que incorpore estes aspectos.
A partir destas prerrogativas, acredita‐se que, em uma visão mais ampla, contextual, social, e discursiva, a abordagem bakhtiniana da Análise do Discurso (AD) – cujo interesse recai no teor ideológico ‐, aliada aos aportes teóricos da Análise Documental (AD) – cujo interesse recai em identificar e selecionar conceitos que possibilitem a recuperação ‐, embora correntes teóricas distintas, mais do que apenas compartilhar do mesmo acrônimo, constituem uma potencial ferramenta na análise de um determinado texto pelo profissional da informação.
Por fim, este novo olhar possibilita uma interlocução, um diálogo entre o texto e os sujeitos que atuam nas comunidades discursivas – sejam eles produtores (autores), analistas (bibliotecários) e leitores (usuários) – em um contexto, um espaço de vozes que se inter‐relacionam e que transforma o conhecimento e a linguagem em um constante “vir a ser”, elevando efetivamente o processo de indexação a um patamar mais que moderno: contemporâneo. Referências ALLIENDE, F.; CONDEMARÍN, M. Leitura: teoria, avaliação e desenvolvimento. Trad. de José Cláudio de Almeida Abreu. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987.
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JECA TATU E CHICO BENTO: O CAIPIRA SOB A ÓTICA DO DIALOGISMO BAKHTINIANO
Milene Rosa de Almeida1 Luzia Sigoli Fernandes Costa2
Lá no interior é que eu fui criado E desde pequeno eu fui esforçado Fazendo lavoura neste rico Estado
Com a minha enxada, a foice e o machado Todas madrugada os galo cantava Muito satisfeito eu me alevantava
E a minha enxada eu logo amolava E rumo ao serviço eu já caminhava
No findar o dia o sor descabava Deixava o trabaio pra casa eu voltava
(Viver na roça – Tião Carreiro e Pardinho)
O ambiente rural, tão ressaltado nas canções sertanejas como sendo de muito trabalho na roça, simplicidade e cercado pela rica natureza, é o pano de fundo do presente trabalho.
A economia rural da região sul e sudeste do Brasil teve seu desenvolvimento iniciado em meados do século XVIII. No estado de Minas Gerais, a Corte Portuguesa voltou seus interesses econômicos à mineração e posteriormente à agricultura das terras situadas na região Sudeste e Sul do Brasil. O Estado de São Paulo, especificadamente, teve como principais atividades a cana‐de‐açúcar e posteriormente o café.
Além das transformações econômicas, damos destaque ao estereótipo do habitante desse ambiente, o caipira. Estereótipo, de acordo com o Dicionário
1 Mestranda do Programa de Pós‐Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade, UFSCar, São
Carlos, SP; Bibliotecária Documentalista do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, campus Catanduva, [email protected]
2 Doutora em Ciência da Informação – UNESP e mestre em Engenharia de Produção – UFSCar. Docente do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Federal de São Carlos e do Programa de Pós‐Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade – UFSCar – São Carlos, SP, [email protected]
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UNESP de Português Contemporâneo (BORBA, 2004, p. 556, grifo nosso) designa:
1 fórmula que se repete; lugar‐comum; chavão: A novela quer fugir dos estereótipos. 2 imagem preconceituosa que se tem a respeito de tipos de pessoas ou coisas: A associação de termos negativos com certos grupos só faz reforçar os estereótipos.
Já para a análise do discurso, Charadeau e Maingueneau (2004) afirmam
que estereótipo se configura como sendo a representação coletiva cristalizada, e que acabam por fixar, estratificar, uma imagem negativa ou positiva de determinado grupo social.
Em ambas as definições, fica claro que o estereótipo é um pré‐conceito nocivo, formado no imaginário das pessoas a respeito de um grupo social. Ora, vemos a todo o momento, principalmente nos meios televisivos, negros serem representados como bandidos, escravos ou empregados de famílias brancas; japoneses vendendo pastéis; e o caipira, tema do presente artigo, ser apresentado como o ignorante, que se veste mal, se comporta mal nos lugares “da cidade”, e tem um linguajar que foge das normas cultas.
Assim, o presente artigo tem como objetivo realizar uma reflexão utilizando a teoria dialógica de Bakhtin aplicada a dois personagens que representam a figura do caipira: Jeca Tatu e Chico Bento.
O ambiente rural como patrimônio
Os registros deixados por nossos antepassados acerca de seu passado
cultural e intelectual, sejam eles por meio de objetos, pinturas, escrita, oralidade, dentre outros, constituem‐se em um desafio da atual sociedade, uma vez que requer cuidados em sua preservação e tratamento.
O Brasil tem como grande fonte de estudo e pesquisas o ambiente rural, devido à sua variedade de bens, tanto materiais como imateriais.
Junto às transformações econômicas, citadas anteriormente, outro aspecto a destacar são as construções nas fazendas e principalmente os costumes e tradições ali existentes.
Segundo Nakagawa, Costa e Scarpeline (2011, p. 5), nas últimas décadas, tem ocorrido no Brasil uma maior consciência da importância de bens expressivos da riqueza da diversidade cultural do país, pelo poder público, iniciativa privada e sociedade civil.
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A palavra patrimônio, de acordo com Galves (2008), em sua concepção inicial relacionava‐se às estruturas familiares, econômicas e jurídicas, ou seja, há apenas o sentido material e econômico.
Já patrimônio cultural é definido por Isidro Fernández‐Aballí (2009, p. 1, tradução nossa) como sendo:
[…] o conjunto de objetos tangíveis que contam a nossa memória e definem a nossa identidade, como museus e suas coleções, arquivos, obras de arte, elementos ou estruturas de carácter arqueológico, parques, edifícios, materiais iconográficos, literária, teatro, cinema e música, tendo valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, antropológico, etnológico, artístico e científico para a Humanidade.
Discordamos do autor ao se referir apenas aos objetos tangíveis como
constituintes do patrimônio cultural, uma vez que objetos intangíveis, como as tradições, folclores, costumes locais, festas e celebrações também formam a identidade de um povo.
O Brasil trouxe para si a herança europeia de preservação do patrimônio histórico, através de um conjunto de leis. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 afirma que o bens materiais e imateriais que se referem à identidade da sociedade brasileira constituem o patrimônio cultural brasileiro, devendo estes serem protegidos e preservados.
Tognon (2007) define o patrimônio cultural rural como sendo o conjunto de registros materiais e imateriais decorrentes das práticas, dos costumes e das iniciativas produtivas que se estabelecem, historicamente e territorialmente, na área rural.
O pesquisador ainda ressalta que tal patrimônio cultural rural possui um perfil múltiplo, em escalas e tipologias, que contemplam não só as fazendas históricas e os complexos produtivos antigos, mas também usinas e barragens para a implementação das pioneiras redes de produção e distribuição de energia elétrica do campo e da cidade, pontes, diques, ferrovias, enfim, registros edificados no território agrário que se somam aos acervos artísticos, bibliotecas, arquivos, equipamentos e máquinas, festas e arte popular, hábitos, costumes, crenças e modos de fazer.
Segundo Costa (2011), nas últimas décadas, tem ocorrido no Brasil uma maior consciência da importância de bens expressivos da riqueza da diversidade cultural do país, pelo poder público, iniciativa privada e sociedade civil.
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A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, segundo Oriá (2010, p. 9), elevou “[...] à categoria de direitos fundamentais da pessoa humana os direitos culturais.”, ao consagrar dois princípios: o princípio da cidadania cultural, que garante a todos o pleno exercício dos direitos culturais e o acesso às fontes da cultura nacional; quem garantirá esses direitos é o Estado, que por sua vez, também apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais; e o princípio da diversidade cultural, no qual o Estado tem a obrigação constitucional de proteger as manifestações culturais populares, indígenas, afro‐brasileiras e de outros grupos que fazem parte do processo civilizatório nacional. Vemos assim que preservar a memória é garantir às gerações futuras conhecer o processo de civilização e formação cultural de um determinado espaço.
O habitante do ambiente rural: o caipira
O caipira surgiu na região Sudeste brasileira e, através das bandeiras
expandiram‐se para o Centro‐Oeste. De acordo com Linhares (2004, p. 1) este é o resultado “[...] da miscigenação entre os colonos portugueses, índios e alguns negros que a eles se juntaram”,
Com o final do ciclo da mineração, no final do século XVIII, os habitantes das regiões de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso espalham‐se, retomando o modo de vida rústico da antiga população paulista, compondo a cultura caipira (RIBEIRO, 1995).
Esse deslocamento faz com que o trabalho de construção da memória seja algo não individual, mas sim coletivo, como vemos em diversas letras de modas de viola, que ressaltam as riquezas da natureza, o modo de vida do campo, dentre outros temas. Para Bosi (1994, p. 64), “[...] a matéria‐prima da recordação não aflora em estado puro da linguagem do falante que lembra; ela é tratada, às vezes estilizada, pelo ponto de vista cultural e ideológico do grupo em que o sujeito está situado.”
Destaca‐se, dentro da cultura caipira, o linguajar, demasiado peculiar que, de acordo com Linhares (2004, p. 1):
Entre os vários elementos que fazem parte da cultura caipira, a linguagem é, seguramente, um dos mais marcantes na identificação do caipira como tal. Fluente e objetiva, muitas palavras são abreviadas ou reduzidas pela metade, em alguns casos suprime‐se a concordância de número e em outros casos pronuncia‐se os fonemas de maneira um tanto diferente do “padrão
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formal”. Essas são algumas das características que singularizam o falar caipira.
Bakhtin apresenta como sendo um de seus fundamentos a natureza
social e dialógica da linguagem, uma vez que a linguagem é o instrumento que faz ocorrer a comunicação, seja ela visual ou falada.
O autor ainda afirma que:
[...] e não existissem os gêneros do discurso e se não os dominássemos, se tivéssemos que criá‐los pela primeira vez no processo de fala, se tivéssemos de construir cada um de nossos enunciados, comunicação verbal seria quase impossível. (BAKHTIN, 2003, p. 283).
Para ele, todos fazem parte de um jogo, e apresentamos ideologias
diversas, ideologias essas que nascem na infraestrutura, não na superestrutura do cotidiano, modificando o modo de pensar a todo momento.
Com relação ao estereótipo e seus fenômenos, Bakhtin os retoma nas noções de intertexto e interdiscurso, afirmando que todo enunciado retoma e responde necessariamente à palavra do outro, o que se apresenta inscrito nele; ele é construído sobre algo já dito e já pensado, sendo modulado e eventualmente transformado. O locutor se apoia em estereótipos, representações coletivas e crenças partilhadas para se comunicar e agir sobre seus alocutários. (TORRECILLAS, 2008, p. 1).
Os estereótipos se fazem presente a todo momento, seja representando racismo (preto que mora na favela e é associado ao crime), pobreza (vivem na mendicância, pedindo em semáforos e revirando lixo para comer restos de comida), ignorância (a pessoa que não fala respeitando as concordâncias da língua, ou então não sabe se comportar em ambientes diferentes do seu), religião (evangélica que usa saia comprida, camisa fechada, cabelos compridos e tem a Bíblia à mão), machismo (homem forte, que agride fisicamente ou verbalmente aqueles que discordam de sua opinião), homossexualidade (homem com trejeitos femininos ou mulher com trejeitos masculinos), dentre outros. Estes estereótipos muitas vezes não condizem com a atual realidade, trazendo um sentido pejorativo e distorcido da realidade.
Para ilustrar o artigo, mostraremos dois personagens caipiras bastante conhecidos: o Jeca Tatu, que faz parte do conto Urupês, encontrado na obra
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homônima (1918), do autor Monteiro Lobato, e Chico Bento, personagem de estória em quadrinhos, de autoria de Maurício de Souza.
Em Urupês, o caipira/caboclo é bastante criticado por Monteiro Lobato e, conforme Torrecillas (2008, p. 2),
[...] o texto contrapõe‐se a uma tradição, inaugurada por José de Alencar, que apontava a mestiçagem do índio com o branco como geradora de uma nação forte. Monteiro Lobato mostra o contrário. Sua teoria institui a tese do caboclismo, ou seja, a mistura de raças gera um tipo fraco, preguiçoso, passivo.
Monteiro Lobato descreve o caipira como sendo um tipo inerte a todas
as situações, um tipo que não gosta do trabalho, e dedica‐se à colher apenas o que a natureza lhe oferece, e é alheio ao progresso tecnológico e econômico do país.
A nossa montanha é vítima de um parasita, um piolho da terra, peculiar ao solo brasileiro como o “Argas” o é aos galinheiros ou o “Sarcoptes mutans” á perna das aves domesticas. Poderiamos, analogicamente, classifica‐lo entre as variedades do “Porrigo decalvans”, o parasita do couro cabeludo produtor da ʺpeladaʺ, pois que onde ele assiste se vai despojando a terra de sua coma vegetal até cair em morna decrepitude, nua e descalvada. [...] Este funesto parasita da terra é o CABOCLO, especie de homem baldio, semi‐nomade, inadaptavel á civilização, mas que vive á beira dela na penumbra das zonas fronteiriças. Á medida que o progresso vem chegando com a via ferrea, o italiano, o arado, a valorização da propriedade, vai ele refugindo em silêncio, com o seu cachorro, o seu pilão, a picapau e o isqueiro, de modo a sempre conservar‐se fronteiriço, mudo e sorna. Encoscorado numa rotina de pedra, recua para não adaptar‐se. (LOBATO, p. 271‐272, 1956).3
Embora essa ideologia pejorativa de Monteiro Lobato não possa ser
tomada como verdade indiscutível, a figura do Jeca Tatu como um símbolo do caipira brasileiro resulta em uma concepção ideológica de uma identidade de um povo, que pouco sabe sobre política, avanços científicos e demais assuntos considerados modernos demais para um povo que reside em um ambiente tão arcaico como o rural.
3 ‐ A citação foi transcrita respeitando fielmente as normas gramaticais da edição de Urupês de 1956.
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Perguntem ao Jéca quem é o presidente da Republica. ‐ “O homem que manda em nós tudo? ‐ “Sim. ‐ “Pois de certo que ha de ser o imperador. Em materia de civismo não sobe de ponto. ‐ “Guerra? T’esconjuro! Meu pai viveu afundado no mato p’ra mais de cinco anos por causa de guerra grande. Eu, para escapar do “reculutamento”, sou inté capaz de cortar um dedo, como o meu tio Lourenço... (LOBATO, p. 287, 1956) 4
Já o personagem de estórias em quadrinhos Chico Bento, criado por
Maurício de Souza em 1961, tem entre cinco e sete anos de idade, mora na roça, onde gosta de brincar e pescar. Ele tem uma família bastante simples e harmoniosa, namora a Rosinha, e tem como melhor amigo o Zé Lelé. Ele é representado como sendo o caipira que anda descalço, usa chapéu de palha, e calça xadrez.
Nota‐se, no quadrinho abaixo, que há diferenças não apenas no dialeto urbano e caipira, como também há diferenças culturais entre esses tipos.
Figura 1. Chico Bento, de Maurício de Souza. Fonte: http://www.monica.com.br/ comics/halloween/pag1.htm
Através do signo linguístico, composto por significante e significado, o
sistema da língua se mostra de forma material. Já como forma normativa, ele se mostra como norma social. Bakhtin (2002) defende a contínua mutação da
4 ‐ A citação foi transcrita respeitando fielmente as normas gramaticais da edição de Urupês de
1956.
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língua, pois uma vez que a tratamos como algo acabado, demonstramos indiferença em relação às inovações linguísticas; lembrando que a reflexão linguística de caráter formal‐sistemático é incompatível com a abordagem histórica e viva da língua.
A forma linguística vista apenas como sinal não tem nenhum valor linguístico. Para Fiorin (2006), na concepção de Bakhtin, a língua em sua totalidade, concreta, viva e em seu uso real, tem propriedade dialógica. O diálogo é um acontecimento entre sujeitos, uma das formas interação verbal. De acordo com Bakhtin/ Volochínov (2002, p. 123),
O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senão uma das formas, é verdade que das mais importantes, da interação verbal. Mas pode‐se compreender a palavra “diálogo” num sentido amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda a comunicação verbal, de qualquer tipo que seja.
Os enunciados constituem‐se como sendo unidades reais de
comunicação, de modo que a palavra em si e o seu significado são neutros. Já o diálogo estabelece‐se entre as relações de sentido entre os enunciados.
O plano da responsividade é uma importante forma de relação dialógica, que acontece entre dois enunciados pertencentes a diferentes vozes, o qual temos Bakhtin afirmando que o homem é um ser de resposta, entendido não apenas em relação de concordância, mas também como rejeição, confronto, confirmação ou complementação. Para Bakhtin (2003, p. 300), “[...] o enunciado é um elo na cadeia da comunicação discursiva e não pode ser separado dos elos precedentes que o determinam tanto de fora quanto de dentro, gerando nele atitudes responsivas diretas e ressonâncias dialógicas”.
Desse modo, o diálogo se firma no âmbito da linguagem. Cada réplica expressa a posição do locutor, sendo possível tomar, com relação a essa réplica, uma posição responsiva. Assim, em cada réplica há reconhecimento da reciprocidade entre o eu e o outro dentro do enunciado, caracterizando, assim, o diálogo. Reconhecer o caráter dialógico implica entender que qualquer desempenho formal dentro do enunciado é constituído numa relação, ou seja, numa alternância de vozes.
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Considerações finais Antes de qualquer tipo de análise com relação ao discurso e à língua,
devemos considerar a instabilidade desta última, pois há variações conforme a época e os costumes. Vemos em Monteiro Lobato e Chico Bento a representação do habitante da área rural, o caipira.
Ressaltamos ainda a questão da modernização que em ambos os casos é um “privilégio” apenas da população citadina, que vive cercada por inúmeras produções culturais, como o teatro, o cinema, as inovações tecnológicas, ou seja, vivem próximos da modernidade e da democracia, enquanto o morador do ambiente rural é visto como um ignorante, alheio à cultura que vem da cidade, assim como das tecnologias que por lá se fazem presentes. Além disso, há a questão da língua do habitante rural, ou “dialeto caipira”, com uma pronúncia diferenciada, que foge ao uso da norma culta da língua.
Embora a norma culta represente um padrão de maior aceitação social, não se deve interpretar as variações encontradas em uma determinada comunidade como um fator de discriminação, mas sim como uma variação que traz riqueza à cultura de um determinado país. Ainda, devemos considerar que as variedades linguísticas existem por servirem como interação verbal entre certos grupos sociais.
Com relação à representação da figura do caipira e sua parodização, finalizamos o presente artigo com o seguinte trecho de Bakhtin (2002, p. 208):
Assim, a parodização, justamente onde ela não é um fim em si, mas está unida à função de representação, pode, sob certas condições, ser perdida muito rápida e facilmente pela percepção ou então ser significativamente debilitada. Já dizíamos que, numa autêntica representação em prosa, o discurso parodiado opõe uma resistência dialógica interna às intenções paródicas: pois o discurso não é um material inerte, objetal nas mãos do artista que o manipula, mas o discurso vivo e lógico, em tudo fiel a si mesmo, que pode tornar‐se extemporâneo e cômico, revelar a sua estreiteza e unilateralidade, cujo sentido, porém, uma vez obtido, não pode jamais se extinguir totalmente. E em condições diferentes este sentido pode fazer jorrar centelhas novas e claras, queimando a crosta objetal que o envolve e, por conseguinte, privando a acentuação paródica de fundo real, eclipsando‐a e apagando‐a.
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Com isso, vemos que não somente a língua, como também a personificação de um tipo, como é o caso do caipira, são representados e reinterpretados de diversas formas conforme o decorrer dos tempos.
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DISCURSO FAMILIAR NOS FILMES DE ALMODÓVAR
Eliana Mantovani Malvestio5 Nádea Regina Gaspar6
Introdução
A pesquisa que segue descreve parte de um projeto de pesquisa, e busca apresentar a figura da mulher, ou antes, a função do sujeito “feminino”, nos filmes de Pedro Almodóvar. Recorremos para tanto, à teoria da análise do discurso de Michel Foucault (1995) em sua compressão sobre “enunciado”. Através dos conceitos da análise do discurso podemos relacionar textos de diferentes: épocas, suportes, gêneros, materialidades e sujeitos distintos. Foucault (1995, p. 134) diz que a análise do discurso revela como os diferentes textos se “[...] remetem uns aos outros, organizam‐se em uma figura única, entram em convergência com instituições e práticas, e carregam significações que podem ser comuns a toda uma época.” Tomando‐se isso como pressuposto, os sentidos produzidos nas análises e advindos da circulação de enunciados discursivos estão contidos na memória da humanidade, e estão ligados, inicialmente, por uma interdiscursividade. Ou seja, um livro, um artigo de revista, uma música, um filme, não têm uma fronteira definida e um fim em si mesmos, no que diz respeito ao discurso; eles estão imersos em um sistema que os remetem a outros textos. Isto é possível de ser apreendido, por esta teoria, quando se encontra, por meio do trabalho de leitura e análise, “o enunciado discursivo” (FOUCAULT, 2005, 87‐152).
No sentido exposto, debruçamo‐nos inicialmente, frente a dezessete (17) dos dezenove filmes de Almodóvar, e buscamos encontrar o enunciado discursivo, tal como o compreende Foucault (1995), por meio do nosso olhar atento aos: “sujeitos”, fixando‐nos nos femininos, “série”, “materialidade”, “campos que se associam”. Considerando, porém, que precisávamos fazer
5 Mestranda do Programa de Pós‐graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade.Integrante do
Laboratório de Análise do Discurso da Imagem (LANADISI/CNPq). UFSCar; [email protected]
6 Professora Doutora do Programa de Pós‐graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade. Coordenadora do Laboratório de Análise do Discurso da Imagem (LANADISI/CNPq). UFSCar; [email protected]
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recortes, próprio a todo trabalho de pesquisa, delimitamos três (3) filmes de Almodóvar para a análise: “Tudo sobre minha mãe” (1999), “Fale com ela” (2002) e “Volver” (2006).
Nos pronunciamentos dos sujeitos femininos, a cada vez que eles se apresentavam nos filmes, a análise foi‐nos revelando que começava a surgir uma configuração em que era possível associar a figura dos sujeitos femininos com a dos “cuidados” que esses despendiam para com outros sujeitos, no caso, personagens fílmicos. Foi deste modo que conseguimos observar a presença constante de um enunciado que permeará todo nosso trabalho: “a prática dos cuidados realizados por sujeitos femininos aos seus familiares”. Esse enunciado, advindo desses filmes, desse diretor, tornou‐se o “pano de fundo” ou a “linha temática” deste trabalho. Neste sentido, a esfera familiar nos convida a ser visitada.
Uma visita à esfera familiar
Houve, naturalmente, a coexistência, em determinadas épocas e regiões,
de diferentes modelos familiares de coabitação, relacionamento, matrimônio, filiação e convivência (ENGELS, 2006). Os laços afetivos, aos quais estavam envoltos seus membros, não era condição necessária para a existência da família; a princípio, seu objetivo imediato era garantir a sobrevivência dos que dela participavam: “[...] a conservação dos bens, a prática comum de um ofício, a ajuda mútua quotidiana num mundo em que um homem, e mais ainda uma mulher isolados não podiam sobreviver, e ainda, nos casos de crise, a proteção da honra e das vidas.” (ARIÈS, 1981, p. 10‐11).
A fragilidade do lar proporcionado pela união por pares, mantinha a necessidade do contato com o seio familiar materno, com a gens. A forte presença feminina nas gens dava o tom de um lar comunista, um lar em comunidade, que “[...] significa predomínio da mulher na casa; tal como o reconhecimento exclusivo de uma mãe própria, na impossibilidade de conhecer com certeza o verdadeiro pai; significa alto apreço pelas mulheres, isto é, pelas mães.” (ENGELS, 2006, p. 51). Este predomínio feminino nos clãs, que se constitui em grande força feminina – verdadeiras comunidades de mulheres, é revelado nos filmes selecionados para esta análise.
Pierre Bourdieu (2005, p. 124, grifo do autor), outro filósofo francês que consultamos, posterior a Michel Foucault, traz a família não como uma realidade social descrita, apreendida, mas como uma realidade construída:
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“A definição dominante, legítima, da família normal [...] apóia‐se em uma constelação de palavras – casa, unidade doméstica, house, home, household”. Assim, a família é tomada como “[...] um conjunto de indivíduos aparentados, ligados entre si por aliança, casamento, filiação, ou, excepcionalmente, por adoção (parentesco), vivendo sob um mesmo teto (coabitação).” (Ibid, p. 124). Uma invenção recente que tendemos a aceitar por natural, pois a família fora, aparentemente, sempre assim apresentada, sempre com estas configurações que, conforme Bourdieu (2005, p. 125), pode ter uma existência breve, “[...] votada à desaparição mais ou menos rápida (como levam a crer o aumento da taxa de coabitação fora do casamento e as novas formas de laços familiares inventados a cada dia)”.
Nas narrativas de Almodóvar em que nos detivemos, há uma reformulação do tradicional; o vínculo afetivo entre as personagens possibilita novas construções familiares: “[...] a família tradicional se despedaça sistematicamente nos seus filmes, mas sempre para permitir a criação de uma nova família, mais bizarra e sem dúvida satisfatória.” (STRAUSS, 2008, p. 123). São “[...] famílias multiformes que se fundamentam na afeição.” (Ibid, p. 216). Phillippe Ariès (1981) nos esclarece que essa afeição, antes com certo grau de irrelevância, passa a ser necessária entre os membros da família, sobretudo pela importância que as crianças passam a adquirir e pela dor da perda de um filho – que deixa de ser “substituível”.
Almodóvar, em seus filmes, questiona o modelo padrão atual de família. Em “Tudo sobre minha mãe” (1999), por exemplo, o primeiro dos três filmes da seleção para este estudo, há uma família atípica “que só dá valor ao essencial e para a qual as circunstâncias não têm importância” (STRAUSS, 2008, p. 216). Esta construção com uma travesti na figura de pai, como uma entre muitas possibilidades de arranjo familiar, marca, para ele, o final do século XX com a ruptura da família tradicional. Afirma, assim, a possibilidade de famílias “[...] com outros membros, com outras relações, com outras relações biológicas. E as famílias devem ser respeitadas, sejam elas como forem, porque o essencial é que os membros da família se amem.” (Ibid, p. 216). Como a família normal não lhe satisfaz, os amigos mais próximos passam a compor a nova família do homem, pois “[...] como o animal precisa de outros animais, o ser humano precisa de outros seres humanos.” (STRAUSS, 2008, p. 123).
Encontrar, por meio de associações enunciativas discursivas fílmicas que demonstram as mulheres “cuidando dos familiares” nos fez perceber que a
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“família” que Almodóvar nos apresenta é bastante diferenciada da que conhecemos e aprendemos “desde sempre” no nosso meio social (escola, instituições religiosas, etc). Isso porque ele apresenta e antecede em seus filmes, ou no arquivo discursivo fílmico que nos propomos a analisar, uma configuração bastante atual sobre o modelo de “família”. Ou seja, uma “formação” de um “discurso” sobre as constituições familiares atuais, pautada em princípios diferenciados, decorrentes do cuidado e do afeto.
A seguir, então, apresentaremos parte deste percurso teórico, tal como propostos por Foucault (1995), em análises dos filmes de Pedro Almodóvar, buscando demonstrar o nosso encontro com esse enunciado e essa formação discursiva. Momento de explanar aspectos dos conceitos e como eles se embatem; momento em que nossas descobertas superaram as expectativas iniciais e nos trouxeram revelações inesperadas – “o descaminho daquele que conheceʺ, conforme fala Foucault (1984) na introdução de “O uso dos prazeres”. O que gera e gesta o real sentido ao conhecimento.
Comecemos por Foucault.
Apontamentos sobre a análise do discurso em Foucault A arqueologia, ou melhor, a arqueogenealogia, como nos explica Inês
Lacerda Araújo (2008), constitui‐se pela filosofia crítica do sujeito de Michel Foucault – por sua potencialidade de “[...] localizar ordens ou configurações de saber e delas fazer uma experiência crítica, uma análise.” (ARAÚJO, 2008, p. 96), dirigindo‐se “[...] ao espaço geral do saber [...] e ao modo de ser das coisas que aí aparecem.” (FOUCAULT, 2000, p. xx).
Segundo Fischer (2001), o discurso não é apenas um conjunto de signos como comumente aprendemos, pois os significantes (observados por meio de palavras, imagens, sons, etc.) carregam significados, em sua maioria não visível, e carecem de análises neste sentido. Os signos, assim, não são desprezados nas análises discursivas foucaultianas, pois devem ser operados no movimento da relação analítica, se se considerar, porém, a relação entre eles e o enunciado discursivo. Além de que, o enunciado discursivo encontra‐se em um grupo de textos, formando um dado discurso, gerando um “percurso temático” (GUILHAUMOU, J.; MALDIDIER, D., 1994, p. 163‐183).
Para Foucault (1995), deste modo, o discurso põe em funcionamento os enunciados, bem como a relação entre eles, presentes nas formações
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discursivas. É por meio da análise dos discursos que se revelam os engendramentos das práticas ocorridas nos meios sociais. Sendo assim, os pronunciamentos ‐ feitos por sujeitos do discurso ‐ em dada época, lugar, meio social, são constitutivos dos enunciados e carregam características históricas.
As análises enunciativas discursivas revelam para o analista, deste modo, de que modo os discursos se estabilizam em determinadas formações discursivas (discursos religiosos, científicos, familiares, etc.), ou de que modo os discursos “migram” de uma dada formação para outra. Isso porque, em um momento histórico, há discursos que podem ser enunciados e outros que são apagados, silenciados. Isso justifica o aparecimento e também a proibição de determinados enunciados como sendo verdadeiros, em detrimento de outros que passam a ser legitimados, revelando a posição e mecanismos de poderes e saberes que os indivíduos ocupam nos enunciados, enquanto sujeitos de discursos.
Analisar discursos, assim, significa buscar compreender a maneira como as verdades são pronunciadas, ou porque algumas verdades são omitidas, interditadas, já que “[...] a produção do discurso é controlada, selecionada, organizada e redistribuída por procedimentos que visam a determinar aquilo que pode e deve ser dito em um certo momento histórico.” (GREGOLIN, on line).
“O que pode e deve ser dito” em dado “momento histórico” advém de pronunciamentos (verbais e não verbais) que são enunciados por sujeitos, e esses desempenham funções e posições na “ordem dos discursos” (FOUCAULT, 1999). Na eleição dos sujeitos nas análises priorizam‐se aqueles que se encontram aptos para tal função, e devido a isso é que Foucault (1995) distingue sujeito e autoria, pois para ele o sujeito não é idêntico ao autor. O autor, segundo Foucault (1999, p. 26), é o “princípio de agrupamento do discurso, unidade e origem de suas significações, foco de sua coerência”. Já, o sujeito do enunciado é concebido por esse autor (1995, p. 109) como: “[...] um lugar determinado e vazio que pode ser efetivamente ocupado por indivíduos diferentes [...]. Descrever uma formulação enquanto enunciado [...] [consiste] em determinar qual é a posição que pode e deve ocupar todo indivíduo para ser sujeito.”
Deste modo, conforme diz Gaspar (2004), o sujeito enunciador se destaca pelo lugar e posição que ocupa no funcionamento discursivo; um lugar, pois seu pronunciamento advém de diversas práticas estabelecidas
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institucionalmente; e a posição, uma vez que, seu saber é oriundo de um domínio próprio (de vivências) do sujeito que enuncia. Gaspar (2004, p. 276), que traz os procedimentos foucaultianos da análise do discurso para o ambiente cinematográfico, esclarece que, “[...] considerando o filme, é possível observar a existência de vários sujeitos enunciadores [...]: personagens, roteiristas, fotógrafos, tradutores, músicos, figurinistas, pessoas que trabalham com a mixagem do som, editores de imagem.” De fato, existem filmes em que a fotografia é tão presente que o sujeito enunciador, nesse caso, seria o fotógrafo ou o profissional que manuseia a câmera; em outros, a música é tão marcante, que talvez o sujeito enunciador pudesse ser o músico ou a música. Isso indica que, se os sujeitos assumem posições diferenciadas no funcionamento discursivo, o autor – no caso do filme, o diretor – assume a posição de “princípio de agrupamento dos discursos”, pronunciados pelos vários sujeitos enunciadores.
Diante do breve exposto teórico, adentremos, agora, nas práticas discursivas sobre os sujeitos femininos, nos filmes de Almodóvar.
Práticas discursivas femininas sobre o “cuidar” da família em Almodóvar
Em cada um dos filmes analisados de Almodóvar, há uma família
biológica central – composta pelas figuras do pai, da mãe, do filho ou filha, ainda que, muitas vezes, alguns desses sujeitos são apresentados apenas pelo nome. Também em cada filme há um sujeito curador de outro, e que é central: Manuela, em “Tudo sobre minha mãe” (1999); Benigno, em “Fale com ela” (2002); e Irene, em “Volver” (2006). Traçando relações discursivas entre eles nota‐se, evidentemente, o zelo empreendido a outras personagens, o cuidado especial que apresentam para com algumas delas, e as suas ‘atuações’ como mães.
Ainda que, a primeira vista, pareça inapropriado colocar um homem como mãe, caso de Benigno, sua conduta ao longo da narrativa demonstra que ele se mostra como um ser humano que cuida como se fora uma mãe protetora, ou seja, ele conversa com todos, se preocupa, se doa, e demonstra: “atitudes de mãe”. Julgamos, por isso, que ele também se insere na análise juntamente àqueles que têm a “aura da feminilidade”, tendo em vista o seu comportamento na função que ocupa (a de enfermeiro) e o modo delicado e atencioso como cuida de pessoas, como veremos adiante. Sendo assim, e
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tendo esse caráter materno, o colocamos em paridade com as mães Manuela e Irene.
Vejamos como ocorre esse movimento enunciativo em cada um desses filmes de Almodóvar. Em “Tudo sobre minha mãe” (1999), a família biológica “original” é constituída pelos sujeitos: Esteban, que era um pai ausente e machista e se transforma em uma travesti (Lola); Manuela, uma mãe que cuida de seu filho; e Esteban, um rapaz que morre ao completar dezoito anos. No decorrer da narrativa percebe‐se que o pai, mesmo ao assumir a posição de travesti, mantém sua postura machista, afastando Manuela, que foge com o menino Esteban em seu ventre.
Com a morte do filho homônimo ao nome do pai, Manuela o procura para avisá‐lo do ocorrido, trajetória em que ela se adequa a novos membros que passam a ser sua família, agora não consanguínea. Ocorre que, na relação entre esses sujeitos, o que se observa no movimento discursivo, é que, por um incidente, Lola engravida (e abandona) Irmã Rosa, que não passa bem durante a sua gravidez, necessitando de cuidados. Quem a ajuda, como se fosse a sua mãe, é Manuela, como pode ser visto na figura 5.
Figura 1. Prática dos cuidados em “Tudo sobre minha mãe” (ALMODÓVAR, 1999).
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Nesta trama, Manuela parece cuidar de todos os que a encontram. Além de ter cuidado de seu filho amado Esteban, cuida também agora de outros membros de sua família não biológica (Huma Rojo e Nina Cruz), e abdica de seu trabalho para prestar cuidados a quem seria seu “novo filho” não consanguíneio, advindo da relação de Lola (Esteban) e Irmã Rosa.
Neste breve relato desse filme, sobre as (des)construções e (re)construções familiares, em que os membros vão assumindo identidades, observamos que de modo algum as famílias interagem unicamente entre si, mas se afinam principalmente com pessoas que se encontram entorno delas, como pessoas de outras famílias, os vizinhos e amigos. Este modelo familiar atual, que começa a ser discursivisado nos textos, no caso, em filme, parece ter suas origens em um passado.
Ariès (1981, p. 11) explica que, no passado, embora o ambiente familiar fosse criado para proteger os seus membros,
[...] o sentimento entre os cônjuges, entre os pais e os filhos, não era necessário à existência nem ao equilíbrio da família: se existisse, tanto melhor. As trocas afetivas e as comunicações sociais eram realizadas, portanto, fora das famílias, num ‘meio’ muito denso e quente, composto de vizinhos, amigos, amos e criados, crianças e velhos, mulheres e homens, em que a inclinação se podia manifestar mais livremente. As famílias conjugais se diluíam nesse meio. Os historiadores franceses chamariam hoje de ‘sociabilidade’ essa propensão das comunidades tradicionais aos encontros, às visitas, às festas.
Parece‐nos que Almodóvar recria, sob parâmetros atuais de conduta,
este ambiente familiar de outrora. Isso se confirma, no movimento da série enunciativa discursiva, em mais um dos filmes desse autor.
Em “Fale com ela” (2002), há duas famílias biológicas: a de Benigno, um enfermeiro, e a de Alicia, uma dançarina. Na família de Benigno, sua mãe foi cuidada por ele até sua morte, mas isso aparece em breves relatos orais ou em cenas de “flash back”, como quando ele diz: “Quando comecei a tomar conta dela era quase um menino [...] Nunca saí do lado dela” (ALMODÓVAR, 2002). Seu pai, ausente, tem rápida menção no filme, dando‐nos a compreender sobre seu afastamento da família, e demonstrando, com isso, a pouca representatividade que teve na educação do filho. O doutor Roncero, função ocupada pelo sujeito que é pai de Alicia, se faz presente na narrativa, mas a identidade da mãe da moça passa despercebida já que não se sabe seu nome, ainda que ela seja rapidamente
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mencionada em uma conversa entre Benigno e Alicia que relata sua morte ocorrida há muito tempo. Nesse filme, Benigno, o enfermeiro, oferece constantes cuidados à Alicia, que se encontra em coma no hospital em que ele trabalha, como é demonstrado abaixo na figura 6, além de que, ele a ama há muitos anos.
Figura 2. Prática dos cuidados em “Fale com ela” (ALMODÓVAR, 2002).
Na trama da narrativa fílmica, e focando o que nos interessa no texto, percebe‐se, novamente, que novos laços de família vão surgindo: Benigno, que engravida Alícia ainda em coma, é preso, e se mata na cadeia, acreditando, que com esse ato, conseguiria produzir um “estado de coma em si mesmo” para “estar junto com ela”. Contudo, ele tinha um amigo Marco Zuloaga, e esse conheceu Alícia, que após o aborto, “renasce” para uma nova vida, apaixonando‐se por Marco. Por sua vez, Katerina, professora de balé de Alicia, assume a função de mãe da dançarina. Ou seja, aqui vemos que “os cuidados” de sujeitos com características femininas para com os sujeitos que precisam ser cuidados, instigam o nascimento de novos modelos familiares. Benigno, também estende seus cuidados a outros sujeitos (na acolhida a Marco, quando se conhecem no hospital e numa visita breve ao quarto de Lydia, a toureira, também em estado de coma). Mantém‐
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se preocupado, mesmo estando na prisão, quando ao receber a visita de Marco molhado pelo dia chuvoso, indica‐lhe um copo de leite quente com mel, para ele não se resfriar, como se fosse mesmo uma “mãe” aconselhando seu filho.
Novamente neste filme, assim como em “Tudo sobre minha mãe” (1999), o que se observa são sujeitos que desconstroem suas famílias, previamente estruturadas por modelos tradicionais, para reconstruí‐las em novas formas de vivência familiares. Sujeitos que se unem agora, por laços não somente consanguíneos, mas firmando‐se sob o amparo de cuidados: doados e recebidos.
Vejamos em mais um dos filmes de Almodóvar, na cadência do movimento “serial”, observando os “campos de coexistências” que gestam o enunciado discursivo, e que retratam “sujeitos”, em que se pode vê‐los, ouvi‐los e lê‐los nas “materialidades” verbais e não verbais, situações que demonstram os “cuidados familiares”.
Em “Volver” (2006), temos na família central três gerações matrilineares – a avó Irene, as filhas Raimunda e Sole, e a neta Paula, filha de Raimunda. A figura do pai aparece marginalizada, tanto quanto nos outros dois filmes analisados. Nessa família, a mesma história se repete nas duas gerações: pais que abusam de suas filhas. O marido de Irene, cujo nome sequer fora mencionado, abusa de sua filha Raimunda e a engravida, Paula é fruto deste incesto. Paula, por sua vez, é também vítima de abuso de seu pai não‐biológico, Paco, marido de Raimunda. Desta vez, o corruptor é morto e não concretiza o ato do abuso contra a jovem. Parece‐nos que Irene, exerce amplamente a posição de mãe. Preocupa‐se e cuida de suas filhas Sole e Raimunda, cuida durante alguns anos de tia Paula, dá conselhos à sua neta Paula da importância e de como se aproximar de sua mãe. Além de que, ela devota‐se, também, à Agustina, a filha não consanguínea, numa certa compensação por ter causado a morte de sua mãe, como se vê na figura 3, que segue.
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Figura3. Prática dos cuidados em “Volver” (ALMODÓVAR, 2006).
Irene, nesse filme, tal como Manuela em “Tudo sobre minha mãe” (1999) e Benigno em “Fale com ela” (2002), desempenham amplos cuidados com sujeitos que, às vezes sim, mas muitas, não descendem deles. Ou seja, observando atentamente os pronunciamentos dos sujeitos femininos nos filmes analisados e o modo como eles se relacionavam com os demais, deparamo‐nos com a posição do sujeito, ou seja: a posição de quem é mãe. Como se pode observar, eles não ocupam, necessariamente, a posição de mães biológicas àqueles que cuidam. Ao contrário, esses sujeitos são homens (Benigno) na função de enfermeiro; outros são mulheres (Manuela) que se propõem a cuidar de um bebê de seu ex‐marido, que agora é travesti; outros, ainda, se escondem para se posicionar como cuidadora (Irene) da filha da mulher que assassinou. Contudo, todos esses sujeitos, apesar de conservarem suas características peculiares, cumprem no movimento do discurso a mesma função materna: os que praticam o cuidado aos seus assistidos. São sujeitos que demonstram amor e têm afeto àqueles de quem cuidam, sentimentos esses, que estão se fortalecendo nos novos modelos familiares.
Esses sujeitos, parece‐nos, personificam o ideal de mãe para Almodóvar e é por isso que ele as traz para o centro de suas narrativas.
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A seguir, traçaremos breves considerações sobre esta pesquisa. Considerações finais
Procuramos apreender das famílias presentes nas narrativas
selecionadas em três filmes de Almodóvar, Tudo sobre minha mãe (1999), Fale com ela (2002) e Volver (2006), modos distintos pelos quais os pronunciamentos de “sujeitos femininos” apontaram para um “eixo discursivo” que perpassou a essas três narrativas; e para tanto, recorremos à teoria da análise do discurso de Michel Foucault (1995), em sua compressão sobre o “enunciado”.
No momento em que aplicamos os princípios de Foucault (1995) nas análises, foi possível observar um dos enunciados discursivos que se fizeram presentes nos três filmes de Almodóvar, selecionados para este estudo: “prática dos cuidados realizados por sujeitos femininos aos seus familiares”.
Neste universo do “feminino materno”, foi possível recortar “famílias de Almodóvar”, que nos sugeriam:
a) as famílias biológicas são compostas por três sujeitos: pai, mãe e descendente(s);
b) as famílias biológicas, em dado momento e por razões diversas, desestruturam‐se, e buscam compor novas famílias, muitas vezes, sem laços de consanguinidade, mas assumindo suas identidades pessoais, relacionam‐se devido à prática do cuidado.
Há predominância, nestes três filmes, de certa composição familiar matriarcal que prevalece no desfecho das histórias, Em “Tudo sobre minha mãe” (1999) observa‐se que as mulheres (Manuela, Huma, Agrado, Irmã Rosa) constroem suas famílias, tanto na intimidade do lar, como também no camarim de um teatro. Em “Fale com ela” (2002), os locais em que as mulheres (Katerina e Alicia) estabelecem os laços familiares são construídos tanto nas aulas de dança como nos palcos de espetáculos. Em “Volver” (2006), a familiaridade advém da comunidade, que se fortalece nas refeições partilhadas entre as mulheres e seus momentos na cozinha.
Uma primeira conclusão que segue é que Almodóvar retrata em seus filmes que as famílias, nos dias atuais, ainda se constituem legalmente pelos laços de consanguinidade: pai, mãe e descendentes (consanguíneos ou adotados), mas elas também se constituem de modos ainda não legitimados, ou fora de padrões sociais previamente estabilizados.
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Esses ambientes familiares, que centralizam as tramas de Pedro Almodóvar e a partir do qual os filmes são desenvolvidos, demonstram enunciativamente, a formação de um discurso, no caso: a de um discurso familiar da modernidade.
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GASPAR, Nádea Regina. Foucault na linguagem cinematográfica. Araraquara: UNESP, 2004, 354f. Tese (Doutorado em Linguística e Língua Portuguesa) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2004.
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TUDO sobre minha mãe. Direção: Pedro Almodóvar. Produção: Agustín Almodóvar. [Espanha]: Renn Productions; El Deseo S. A.; France 2 Cinema, 1999.
VOLVER. Direção: Pedro Almodóvar. Produção: Agustín Almodóvar. [Espanha]: El Deseo S. A.; TVE; Canal+ España, 2006.
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DISCURSOS CIENTÍFICOS E SABERES: RELAÇÕES QUE REFLETEM EM NOVAS PROPOSTAS DE
ORDENAÇÕES NAS LINGUAGENS DA WEB
Flávia Vieira da Silva Santos1 Nádea Regina Gaspar2
A web contemporânea e suas características: divagações e novas possibilidades de apresentação da informação na web
Atualmente, produção, disseminação e o acesso a informações na web tornaram‐se mecanismos de comunicação humana muito importantes, uma vez que hoje em dia é possível produzir e acessar informações na web de maneira simples através de ferramentas que possibilitam publicação de textos, vídeos, fotos, música e etc.; além disso é possível disponibilizar conteúdos com maior alcance entre as pessoas.
Entretanto, alguns desafios devem ser destacados quando se trata do volume de informações e na sistematização das mesma, uma vez que fazer uma busca na web e conseguir resultados satisfatórios, torna‐se uma tarefa cada vez mais difícil.
Neste artigo, discutiremos as possíveis teorias para melhor disponibilização de informação na web, recorrendo a teorias como a da Análise do Discurso de linha francesa, particularmente a de Michel Foucault, tendo em vista a possibilidade de aplicar determinados conceitos desse teórico, no universo da análise de textos da web.
O grande problema ao se realizar busca na web é o excesso de informação disponibilizada e o chamado “lixo virtual”, como pontua Bonilla (2005, p. 33): “[...] o principal problema é a excessiva abundância de informação que nos dá a rede [...] nós seres humanos necessitamos de filtros.”. É comum, a qualquer usuário da internet, ter dificuldades para encontrar uma informação, sem antes ter navegado por outras informações que não condiziam com o tem pesquisado.
1 Mestranda do Programa de Pós‐graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade; UFSCar;
[email protected] 2 Professora Doutora do Programa de Pós‐graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade;
UFSCar; [email protected]
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Problemas com o tratamento e disseminação da informação, refletem em diversos seguimentos da sociedade que necessitam da pesquisa informacional para produzirem resultados, como no caso de pesquisadores da área acadêmica. E, além disso, para efeito na sociedade, a Ciência precisa do retorno da sociedade para o decorrer da pesquisa e disponibilização de seus resultados. Bonilla (2005, p. 36) atenta para o fato de novos horizontes para a chamada Sociedade da Informação, no que diz respeito às oportunidades oferecidas pela comunicação e divulgação científica via web: “[...] podemos esperar que, em geral, a voz dos cidadãos serão melhor representados em tais litígios através das oportunidades oferecidas pela internet.”. Podemos perceber que na sociedade atual em que vivemos, o uso ideal da internet e seus novos horizontes apontam para pesquisas interdisciplinares na Ciência, se orientando em torno de problemas sociais e não de disciplinas tradicionais.
Neste sentido, a web abriu portas para uma comunicação interativa, além de auxiliar na disseminação de conteúdos das mais diversas áreas e contribuir nas relações sociais e democratização da leitura, permitindo acesso a músicas, jogos, vídeos, livros etc. em meios eletrônicos e digitais, a partir de novas ferramentas que auxiliam esta disseminação, de forma otimizada.
Um fator importante e que gerou mudança de comportamento do usuário da web foi a criação das chamadas “redes sociais”, pois também permitiram expansão na disseminação de diversos tipos de conteúdo. Segundo Marteleto (2001, p. 72), o termo rede social deriva do termo rede, que segundo a autora pode significar um “[...] sistema de nodos e elos; uma estrutura sem fronteiras; uma comunidade não geográfica; um sistema de apoio ou um sistema físico que se pareça com uma árvore ou uma rede”. Ainda, segundo a autora, a rede social permite um “[...] conjunto de participantes autônomos, unindo ideias e recursos em torno de valores e interesses compartilhados.” (MARTELETO, 2001, p. 72).
As redes sociais da internet atualmente são utilizadas como fontes de informações de âmbito social, mas, também, cultural, político e econômico.
Redes sociais tornaram‐se a nova mídia, em cima da qual a informação circula, é filtrada e repassada; conectada à conversação, onde é debatida, discutida e, assim, gera a possibilidade de novas formas de organização social baseadas em interesses das coletividades. (RACUERO, 2011, p. 15).
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Desse modo, a identidade cultural na rede social é destacada.
[...] cada indivíduo tem sua função e identidade cultural. Sua relação com outros indivíduos vai formando um todo coeso que representa a rede. De acordo com a temática da organização da rede, é possível a formação de configurações diferenciadas e mutantes. (TOMAEL; ALCARA; DI CHIARA, 2005, p. 93).
Percebe‐se, nessa nova concepção de rede social, a estrutura não‐
hierárquica que as redes permitem moldar através de seu modelo de colaboração e de compartilhamentos de informação, uma característica importante advinda da Web 2.0 , conforme destaca Martetelo (2001, p. 73),
[...] estudar a informação através das redes sociais significa considerar as relações de poder que advêm de uma organização não‐hierárquica e espontânea e procurar entender até que ponto a dinâmica do conhecimento e da informação interfere nesse processo.
Primeiramente, devemos nos pautar no conceito de informação de para
que possamos verificar como ela se apresenta na web. Segundo Silva, Correia e Lima (2010),
A informação concorre para o exercício da cidadania, à medida que possibilita ao indivíduo a compreensão das mudanças tecnológicas e sociais e oferece os meios de (re)ação individual e coletiva. É veículo de bens de produção e consumo no mercado globalizado e geradora de relações interpessoais e de conhecimento.
Lévy (1996) aborda a relação entre informação, conhecimento como ato
de criação:
Quando utilizo a informação, ou seja, quando a interpreto, ligo‐a a outras informações para fazer sentido, ou, quando me sirvo dela para tomar uma decisão, atualizo‐a. Efetuo, portanto um ato criativo, produtivo. O conhecimento, por sua vez, é o fruto de uma aprendizagem, ou seja, o resultado de uma virtualização da experiência imediata. Em sentido in‐verso, esse conhecimento pode ser aplicado, ou melhor, ser atualizado em situações diferentes daquelas da aprendizagem inicial. Toda aplicação efe‐tiva de um saber é uma resolução inventiva de um problema, uma pequena criação.
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Esta visão de criação e atualização da informação pode ser verificada em sites da web, onde a criação, representação e a recuperação de informações no âmbito digital também se tornaram coletivas. Algumas das ferramentas identificadas na internet destacam‐se por serem direcionadas à publicação e à disponibilização de conteúdos na web: Twitter, Facebook, Pinterest, Bookess, Tumblr, Google+ entre outras. Nelas, os usuários podem fazer downloads de conteúdo, contribuir com o envio de documentos, artigos, publicações projetos, notícias, eventos, fotografias, vídeos e etc. que queiram compartilhar.
Mas e quanto à recuperação destas informações em sites de busca? Como as informações espalhadas pela web se apresentam esteticamente no resultados de buscas para seus usuários?
Por isso, neste artigo, vamos nos ater as formas de apresentação de resultado de buscas de informação em sites da web, com a intenção de verificar as novas possibilidades de configuração destas informações, uma vez que a forma de apresentação de resultados de busca se faz importante para uma maior eficiência na qualidade da informação. A seguir, daremos exemplos.
Novas formas de apresentações da informação na web: algumas experiências
Podemos ter experiências bastante ricas em termos de interatividade em
sites disponíveis na web. Um exemplo é o Visual Thesaurus (um dicionário com interface similar a hiperbólica, um tipo de mapa conceitual, segundo Moreira (2010)). Neste site é possível criar mapas que representam os significados das palavras (em língua inglesa) e identificam palavras relacionadas. Na Figura 1 é possível observar que ao se realizar uma busca com a palavra “search”, a ferramenta apresenta outras palavras que possuem relação com a pesquisada, aumentando a possibilidade de compreensão do significado do usuário, através das relações que estabelece.
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Figura 1. Visual Thesaurus (http://www.visualthesaurus.com/). Segundo Lévy, as interfaces hipertextuais atuam como “[...] uma
superfície de contato, de tradução, de articulação entre dois espaços, duas espécies, duas ordens de realidade diferentes: de um código para outro, do analógico para o digital, do mecânico para o humano.” (LÉVY, 1993, p. 181).
Alguns sites permitem uma visualização de resultados de maneira diferente da de lista. O site acaba de lançar uma nova maneira de apresentar seus resultados Google. Os usuários podem ver seus resultados no chamado Painel do Conhecimento. O novo recurso já estava disponível na página americana do Google. Ela traz um resumo das informações sobre o termo pesquisado no buscador. Na Figura 2 é possível notar que ao realizar a busca “São Paulo”, além da tradicional lista de links, na parte direita da tela aparecem os resultados relacionados, com dados sobre “São Paulo Futebol Clube” e a localização da cidade de São Paulo.
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Figura 2. Google (http://www.google.com/). Podemos ver esse tipo de apresentação de resultados em outros sites
como o Freebase, onde é possível pesquisar sobre diversos assuntos. Neste site, também há o aproveitamento da inteligência coletiva, uma característica importante da web 2.0 que permite que usuários comuns, que até então não possuíam conhecimentos necessários para publicar conteúdos na Internet, pela ausência de ferramentas de uso simplificado, publiquem informações de forma colaborativa com outros usuários sobre um assunto. Na Figura 3, podemos verificar a forma de apresentação do resultado da busca pelo assunto “Brazil”.
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Figura 3. Freebase (http://www.freebase.com/). Outro exemplo de apresentação de resultados em sites de conteúdo
específico, como no caso do Music Maze que permite a pesquisa sobre diversos artistas da música mundial, é possível observar através de sua forma de apresentação do resultado, a relação e influência entre artistas. Na Figura 4, a pesquisa por “Beatles” mostra as bandas relacionadas com os Beatles e ao selecionar uma delas, “The Kinks”, o site permite ouvir músicas e visualizar a imagem da capa do disco da banda.
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Figura 4. Music Maze (http://www.musicmaze.fm/). É possível observar, portanto, que num sistema de apresentação da
informação na web com os formatos apresentados, os temas buscados não existem isoladamente, ou seja, cada tema existe em função de outro que o condiciona, formando relações entre temas, como afirma Moreira (2010, p. 22) ao apontar para as linguagens documentárias, exemplificando os modelos de representação da informação em forma de tesauros:
Uma linguagem documentária, como o tesauro, permite representar, para fins documentários, a informação registrada. Para isso é necessário estruturar um sistema conceitual de relações que permita delimitar o universo de interpretação dos signos documentários. Neste sistema os conceitos não existem isoladamente, mas coexistem e condicionam sua compreensão ao tipo de relacionamento que estabelecem com outros conceitos.
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Podemos considerar então, que a representação da informação na web não pode ocorrer de modo isolado, mas sim, de forma a se formar redes de informação e de colaboração entre usuários. Indo em direção a este pensamento, Pereira e Cruz (2010), afirmam que “[...] a Web hoje permite o uso de linguagens mais flexíveis e de padrões cada vez mais aceitos de representação da informação. Isso a transforma em uma rede de conhecimento, e não apenas em um espaço onde co‐habitam dados sem conexão.”
Confluência de saberes entre a web atual e a Arqueologia do Saber de Michel Foucault
Neste sentido, acreditamos que a web de hoje possibilita uma visão mais
panorâmica sobre os saberes que a humanidade produz e permite que estes sejam disseminados sem juízo de valor, aproximando seus usuários e ajudando a formar conceitos cada vez mais importantes na forma de apresentação da informação da web, como a arquitetura de participação, descentralização do controle sobre o conteúdo e coexistência entre temas.
Ao fazermos uma análise sobre o modo como a informação se produz e se organiza na web, é fácil perceber a semelhança com os estudos de Michel Foucault em seu livro Arqueologia do saber, pois ao definir as características de um enunciado ele afirma que afirma que “[...] os enunciados têm suas margens povoadas por outros enunciados.” (FOUCAULT, 2008, p. 112).
Em seu método arqueológico, Foucault sugere que os documentos devem ser interpretados a partir de uma série diversa de documentos – não apenas os “oficiais”; e atualmente, o local em que temos infinita produção de informação por todos seus usuários, é na web. Ou seja, podemos, a partir de análise dos conteúdos da web, ver a História “de baixo”; ao invés da linearidade lógica, em que um acontecimento é explicado pelo acontecimento anterior e explicará o posterior, deve‐se privilegiar as mudanças (atualizações em publicações na web) e explicá‐las a partir da confluência de diversos fatores (formas de apresentação da informação na web que representem as relações entre os temas).
Neste sentido as produções de informação sobre um acontecimento, deve ser estudado tendo‐se em vista o momento de sua irrupção no discurso e suas regras de formação e circulação (existência ou suspensão); sendo
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singular e repetível e tendo regras de formação e circulação a que obedece até sua significação.
Em seu método, Foucault sugere princípios para analisar e descrever discursos, e, portanto, estes procedimentos teóricos metodológicos poderiam ser aplicados também nos discursos da web, pois na web, suas páginas e links, possuem interação de assuntos e usuário:
Descrever um conjunto de enunciados, não como a totalidade fechada e pletórica de uma significação, mas como figura lacunar e retalhada; descrever um conjunto de enunciados, não em referência à interioridade de uma intenção, de um pensamento ou de um sujeito, mas segundo a dispersão de uma exterioridade; descrever um conjunto de enunciados para aí reencontrar não o momento ou a marca de origem, mas sim as formas específicas de um acúmulo, não é certamente revelar uma interpretação, descobrir um fundamento, liberar atos constituintes [...] é definir o tipo de positividade de um discurso. (FOUCAULT, 2008, p. 141).
Tendo em vista essas relações entre documentos, podemos constatar que
eles nos deixam “rastros”, repartindo‐se em unidades, conjuntos, séries, relações de acordo com a maneira que é analisado ou pesquisado. Portanto, os documentos na web, quando publicados (sejam escritas, vídeos, fotografias, ou misto de todos), não são estanques. A web, mais o que qualquer outro ambiente, permite interações e relações entre eles.
Considerações finais
Entende‐se que a principal contribuição de novas maneiras de
apresentação da informação na em ferramentas de disseminação de conteúdos na web, sob a perspectiva de desenhos em forma diversos, que não o de lista, são primordiais para uma disseminação da informação eficiente na web. Isso coloca em pauta, questões sobre a arquitetura da informação e a essência da web contemporânea, de seu uso atual e de seu futuro, visando sempre, seu aprimoramento.
Cabe aos desenvolvedores de sites da web, em conjunto com os analistas da informação expandir o olhar e considerar pontos de vistas importantes, como o do discurso, pois é por esses documentos – disponíveis atualmente na web, que a história contemporânea está se escrevendo e se atualizando.
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Referências BONILLA, J. Z. Ciencia pública‐ciencia privada. Reflexiones sobre la producción del saber científico. s.l.: Fondo de Cultura Económica, 2005. 240 p.
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. 244p.
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OS SENTIDOS DE INOVAÇÃO: ANÁLISE DO DISCURSO DAS POLÍTICAS DE INOVAÇÃO NO GOVERNO DILMA ROUSSEFF
João Ricardo Lopes1
Roberto Ferrari2
Introdução
A materialização da informação no ciberespaço apresenta contornos mais nítidos a partir de conteúdos fragmentados, em que há cada vez mais um encurtamento da distância entre a velha e a nova informação, deixando de ser atual em uma velocidade proporcional ao surgimento de novas notícias.
A presença da informação na rede atinge parte considerável da população, direta ou indiretamente. As pessoas possuem certa ligação com esse novo modo de disseminar informações e de organizá‐las, sendo submetidas aos efeitos que delas provêm em suas atividades cotidianas.
Essa ideia é confirmada por Lévy (1999), que analisa o aparato tecnológico como um produto da sociedade e de suas relações culturais, em que a técnica torna‐se indissociável dos homens em sua respectiva época.
A distinção traçada entre cultura (dinâmica das representações), sociedade (as pessoas, seus laços, suas trocas, suas relações de força) e técnica (artefatos eficazes) só pode ser conceitual. Não há nenhum autor, nenhuma causa realmente independente que corresponda a ela. Encaramos as tendências intelectuais como atores porque há grupos bastante reais que se organizam ao redor destes recortes verbais (ministérios, disciplinas cientificas, departamentos de universidade, laboratórios de pesquisa) ou então porque certas forças estão interessadas em nos fazer crer que determinado problema é puramente técnico ou puramente intelectual ou ainda puramente econômico. As verdadeiras relações, portanto, não são
1 Mestrando do Programa de Pós‐Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade, UFSCar;
Bibliotecário da Etec Professor Francisco dos Santos, São Simão‐SP, [email protected]
2 Professor do Departamento de Computação e Orientador no Programa de Pós‐Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar – São Carlos, SP, [email protected]
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criadas entre “a” tecnologia (que seria da ordem da causa) e “a” cultura (que sofreria os efeitos), mas sim entre um grande número de atores humanos que inventam, produzem, utilizam e interpretam de diferentes formas as técnicas (LÉVY, 1999, p. 22).
Tais preceitos remetem a maneiras diferentes de materialização da
informação, em suportes cada vez mais diversificados. A grande quantidade de materiais disponíveis na internet serviu como locus para extração dos discursos do poder executivo a respeito da temática de inovação no Brasil.
Proferidos pela presidenta Dilma Rousseff, em determinados eventos: “Discurso da presidenta da república, Dilma Rousseff, na cerimônia de entrega do prêmio Finep de inovação 2011” e “Discurso da presidenta da república, Dilma Rousseff, durante cerimônia de anúncio de novas medidas do plano Brasil Maior e instalação dos conselhos setoriais de competitividade”, apresentados em 15/12/2011 e 03/04/2012, respectivamente, e extraídos do site3 oficial do Palácio do Planalto do Governo Federal, formaram o corpus a ser analisado neste trabalho.
Analisar os sentidos que circulam nesses recortes encontrados no referido portal será uma forma de entender o movimento de significados de inovação tecnológica, de sua importância para o desenvolvimento econômico de países e regiões.
Para Velho (2008), a maneira com que os países usam e produzem o conhecimento é fundamental para a evolução social, econômica e política das nações em relação ao mundo:
[...] existe um grau de concordância razoável entre os mais diferentes países no sentido de que o sistema científico tem uma importância crescente na sociedade baseada no conhecimento. Espera‐se deste sistema científico, a produção de conhecimento (desenvolvimento e oferta de novos conhecimentos); a transmissão de conhecimento (treinamento de recursos humanos qualificados); e a transferência de conhecimentos (disseminação de conhecimento e informação relevante para solução de problemas) (VELHO, 2008, p. 10).
Nesse sentido, faz‐se necessário entender o conceito de inovação como
uma espécie de implementação de um produto ou processo, novo ou
3Disponível em: < http://www2.planalto.gov.br/presidenta/discursos‐da‐presidenta>.
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significativamente aperfeiçoado, seja ele um bem ou serviço. Essa definição compreende um conjunto de possíveis inovações que abrangem desde a criação de um produto, seu melhoramento até a implementação de uma nova metodologia ou prática organizacional (OCDE, 1997).
Para subsidiar os efeitos de interpretação no pronunciamento da presidenta Dilma Rousseff acerca da inovação serão definidos, inicialmente, importantes conceitos que trarão a base para o referencial teórico‐analítico do funcionamento da linguagem nesse contexto (discursos Dilma Rousseff/Inovação/Análise do Discurso) e, em seguida, será realizada uma análise dos discursos mencionados.
Análise do discurso: um olhar teórico
A Linguística, a partir dos anos trinta, formou diversos teóricos e eixos
para o estudo da linguagem, mas foi apenas na década de sessenta que se começou a estudar o discurso voltado para as áreas sociais do conhecimento. A corrente francesa, para a qual o discurso tornou‐se um produto cultural ao possuir formas empíricas do uso da linguagem, tanto a verbal como a oral e a escrita, tem Michel Pêcheux como o precursor da Análise do Discurso.
O discurso é responsável pela exposição e fluência do ato de comunicação. Segundo Orlandi (2003), o discurso é a palavra, a forma pela qual o homem fala, discute, debate e se comunica. A Análise do Discurso estuda o que o homem diz no meio em que está inserido, ressaltando seus valores sociais e históricos, mediando a linguagem entre o homem e a realidade vivenciada. O analista deve relacionar a produção da linguagem e observar a produção dos discursos, os movimentos dos sujeitos e sentidos e sistematizar o ponto de vista do indivíduo.
Para Orlandi (2003), a Análise do Discurso sofre com três relações teóricas: Marxismo, Psicanálise e Linguística, que influenciam e levam a reflexão as variadas formas de discurso. Com essa articulação em mente, há uma necessidade intrínseca de se conhecer os métodos linguísticos, filosóficos e sociológicos capazes de relacioná‐las com o estudo do discurso. A autora assevera que “os estudos discursivos visam pensar o sentido, dimensionando no tempo e no espaço das práticas do homem, descentrando a noção de sujeito e relativizando a autonomia do objeto da Linguística” (ORLANDI, 2003, p. 30).
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Assim um discurso pode ter várias realidades de acordo com as ideologias que constitui os sujeitos falantes na relação com seus ouvintes. A memória, vista por Pêcheux, sustenta a significação e permite que as palavras façam sentido. O autor pensa num ‘já‐lá’, pois as palavras carregam inscrições sociais anteriormente estabelecidas, guardadas na carga imaginária dos sujeitos do discurso.
Dessa forma, Romão (2011, p. 125) traz para discussão a noção de interdiscurso em Pêcheux que representa o entrecruzamento de significações “advindas, já faladas, de outros contextos sociais que se marcam discursivamente em posições‐sujeito, e isso implica a posição do próprio analista”.
Orlandi (2003) ressalta que o interdiscurso representa a memória, o que se chama de memória discursiva, necessitando de um contexto histórico em que o sujeito tenha um significado perante o discurso por meio de sua experiência.
Verifica‐se que alguns sentidos dos discursos, estão sujeitos a transformações proporcionadas por fatores históricos e ideológicos que de certa forma, regula a relação de poder entre os sujeitos. Para Pêcheux (1997), a ideologia constitui o sujeito, de tal forma que não há sujeito sem ideologia.
Para Grigoleto (2005, p. 1), o sujeito do qual se fala não “é o indivíduo, sujeito empírico, mas o sujeito do discurso que carrega consigo marcas do social, do ideológico, do histórico e tem a ilusão de ser a fonte do sentido”.
Para a compreensão dos sentidos, deve haver um compartilhamento de saberes comum aos interlocutores. “Isso implica que o sentido de um enunciado depende de um saber que deve ser compartilhado pelos interlocutores, pois além do posto que concretize o enunciado, devemos considerar os elementos pressupostos que estão envolvidos no processo da significação” (PACIFICO, 1996, p. 78). A esse saber, tem‐se na Análise do Discurso o arquivo que possui um papel fundamental para a compreensão do que é dito.
Authier‐Revuz (1982, p. 8), mostra que a linguagem é heterogênea, o discurso é apoiado sobre outros discursos, o “já dito” sobre o qual qualquer discurso constrói “o sentido de um texto jamais é interrompido, já que ele se produz em situações dialógicas ilimitadas, que constituem suas leituras possíveis”.
Feita essa pequena ressalva teórica, em relação aos conceitos contidos na Análise do Discurso de origem francesa, o próximo passo se constituirá na
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análise propriamente dita dos recortes dos discursos da presidenta Dilma Rousseff, que possuem em comum a relação com o tema inovação. Tal tema encabeça uma rede de sentidos quando se faz a abordagem de assuntos, tais como economia brasileira, geração de emprego, crescimento econômico, desenvolvimento social e de outros que margeiam a discussão.
Faz‐se necessário um olhar discursivo, atento às pistas deixadas na materialidade da fala, das palavras e de imagens que remontam a outros momentos e que promovem a significação de vários sentidos em diferentes sujeitos.
Análise do discurso da inovação no Brasil
O Plano Brasil Maior é a conjunção de políticas industriais e tecnológicas
para incentivar o comércio exterior com o objetivo de fomentar o crescimento econômico a partir da inovação, estimulando o fortalecimento do parque industrial brasileiro, almejando um aumento substancial da produtividade.
As medidas para concretização do Plano Brasil Maior estão voltadas para a “desoneração dos investimentos e das exportações para iniciar o enfrentamento da apreciação cambial, de avanço do crédito e aperfeiçoamento do marco regulatório da inovação, de incentivos fiscais e facilitação de financiamentos para agregação de valor nacional e competitividade das cadeias produtivas” (BRASIL MAIOR, 2012).
Inovar, competir e crescer são os pontos cruciais para o desenvolvimento econômico e social brasileiro:
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Figura 1. Cerimônia do Plano Brasil Maior. Fonte:http://br.bing.com/images/ search?q=logo+do+plano+plano+brasil+maior&view=detail&id=7DA2C8AAB27A896190CFF1041C240A87A14734FD&FORM=IDFRIR. Acesso em: 29 nov. 2012.
A imagem da cerimônia de anúncio do Plano Brasil Maior, com os
enunciados ao fundo, traz mais que a junção de palavras e imagens. Vai além. Ao se colocar, de maneira cronológica e condicional (realçada pela palavra “para”), uma sequência que vai desde o estabelecimento de um novo produto ou processo, que seja de certa forma um diferencial no mercado e que pode competir com produtos desenvolvidos em outros países sob a lógica da concorrência capitalista, logrará êxito na disputa daquele que agregar o melhor custo/benefício ao atender as necessidades mercadológicas.
A palavra “competir” carrega ainda a alcunha capitalista das tensões entre empresas, países e regiões na busca do progresso a partir da acumulação de capital.
Dessa relação surge a ideia de vencedores e perdedores, ricos e pobres. Aqueles que investem em ciência e tecnologia são os que inovam e por consequência aumentam sua competitividade no mercado mundial, triunfam com o almejado crescimento econômico que eleva os países à detenção de poder em relação às outras nações.
Esse aumento do poder aquisitivo faz com que haja a reafirmação das distâncias entre estados desenvolvidos e subdesenvolvidos, já que o crescimento financeiro obtido pode ser investido em atividades que gerem ainda mais riquezas, ficando à margem os países de economias mais
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fragilizadas em que a inovação não é encarada como ponto fundamental para o crescimento socioeconômico.
As faixas cruzadas nas cores verde e amarela carregam um sentido proveniente da matemática. O sinal de maior, ao se juntar às cores, significa um Brasil “maior” em pleno crescimento e desenvolvimento econômico.
Os registros a seguir são trechos da fala de Dilma Rousseff, recortes que serão questionados quanto à uniformidade de sua maneira de interpretação em um sentido único, através do viés da Análise do Discurso.
Nós, sem sombra de dúvida, queremos concorrer no comércio internacional, mas queremos concorrer em condições justas e equilibradas. Para isso, devemos focar nossos esforços – do governo, dos empresários, dos trabalhadores, da população brasileira – no aumento da competitividade e na redução de custos, na garantia do emprego, na inclusão dos milhões de brasileiros que ainda estão à margem do mercado consumidor e trabalhador desse país. Isso se faz com investimento, desenvolvimento tecnológico, inovação e boas práticas de gestão. Ao governo, cabe estimular essas ações com seu arcabouço de recursos financeiros, tributários e legais. Mas cada um tem de fazer a sua parte (DILMA ROUSSEFF, 03/04/2012).
Ao se entender o discurso como objeto de estudo da Análise do
Discurso, fortemente permeado por fatores históricos e ideológicos e ao relacioná‐lo ao objeto de análise escolhido para a discussão, verifica‐se que a inovação é colocada pela presidenta como a “solução” de todos os males da sociedade, capaz de erguer economias, outrora fragilizadas e desarticuladas em um futuro repleto de prosperidade social.
O discurso político da inovação é atravessado pela revolução tecnológica que trouxe uma nova configuração para a sociedade, nas últimas décadas. Conhecida como a “sociedade do conhecimento”, esta é marcada pelas relações econômicas, políticas e sociais, sendo a inovação o fator preponderante do ponto de vista estratégico para o crescimento das nações e consolidação da sobrevivência na competitividade mundial.
Relações de poder se fazem presentes na fala da presidenta, ao mencionar a necessidade da participação brasileira no comércio internacional em condições justas e equilibradas. Retrata, dessa forma, a existência de uma organização superior que regula as relações comerciais entre os países, função atribuída a Organização Mundial do Comércio – OMC.
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A busca incessante pelo aumento da competitividade do produto brasileiro é ancorada pelos consequentes aumentos na taxa de crescimento econômico chinês, o que trouxe um fortalecimento deste país emergente enquanto uma potência mundial. Investimentos maciços em educação, ao longo das últimas décadas, associados à produção de tecnologia, fizeram da China um modelo a ser seguido por algumas nações, evidentemente, guardadas as devidas proporções e especificidades de cada uma delas.
Em outro momento, Dilma enuncia que: [...] “ao lema do meu governo: país rico é país sem miséria.” (DILMA ROUSSEFF, 03/04/2012).
A priori, a fala carregada de preocupação com a população mais carente, baseada na melhoria das condições de vida dos brasileiros, encontra no “não dito” um embasamento mais sedimentado. Dialogando‐se com Patti e Romão (2010, p. 174), aponta‐se que o sujeito, por vezes, não encontra as palavras mais coerentes para se expressar, “colar seu pensamento a elas, imprimir literalidade de sentidos aos enunciados. É justamente pela impossibilidade de um dizer pleno, ou de um sujeito pleno”, a importância das abordagens do discurso.
Dessa forma, fica implícito que, mais que a preocupação com a pobreza, o sujeito (Dilma) fala de um contexto capitalista em que a melhoria do poder aquisitivo da população representa o fortalecimento do sistema econômico ao criar uma maior quantidade de consumidores (relação produção/mercado/consumo) que irá beneficiar o funcionamento do ciclo capitalista.
No próximo recorte é mostrada a importância inconteste da criação de uma indústria forte, inovadora e competitiva para o crescimento do Brasil, que justifica as políticas do Plano Brasil Maior do governo federal.
O governo não vai abandonar a indústria brasileira. Reitero o que disse em 2 de agosto passado no lançamento do Plano Brasil Maior. Não concebemos o nosso desenvolvimento sem uma indústria forte, inovadora e competitiva. Não concebemos. [...] nós vamos mobilizar aqui em instrumentos creditícios, vamos fazer desonerações, vamos estimular as exportações, para que as empresas brasileiras invistam e ganhem competitividade (DILMA ROUSSEFF, 03/04/2012).
A repetição de “não concebemos” caracteriza o discurso político como
autoritário, segundo Orlandi (2001, p. 15), porque “o referente está ‘ausente’,
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oculto pelo dizer. Não há realmente interlocutores, mas um agente exclusivo, o que resulta na polissemia contida”, sem questionamentos.
A onerosa carga tributária brasileira está presente na discussão, a redução dos impostos cobrados é ponto central para que as empresas direcionem recursos para as áreas de pesquisa, desenvolvimento e inovação. O crescimento das organizações, em especial as do setor produtivo, com a geração de empregos qualificados e aquecimento do mercado consumidor, são os passos de um caminho a ser percorrido pela política nacional.
No caso do Brasil, nós temos de ampliar a taxa de investimento. Daí a importância desse momento, porque marca um claro entendimento dos empresários, dos trabalhadores e do governo a respeito da importância de se acelerar a taxa de investimento no país (DILMA ROUSSEFF, 03/04/2012). Nós estamos também, como vocês viram, apoiando e aprimorando vários regimes especiais de tributação, que, embora foquem diferentes segmentos produtivos e criem diferentes incentivos, estão todos voltados para o mesmo propósito: desonerar a produção industrial e reduzir o custo para quem investe e gera empregos (DILMA ROUSSEFF, 03/04/2012). Defesa comercial através da qual nós pretendemos focar no conteúdo nacional, na criação de inovações e na qualificação dos nossos trabalhadores, e também dos nossos técnicos e cientistas, no sentido de participar de um esforço que transforme o Brasil, além de no quarto mercado, em um grande produtor de conhecimento do setor automobilístico (DILMA ROUSSEFF, 03/04/2012).
Ao mencionar o setor automobilístico, verifica‐se a existência de áreas
estratégicas e prioritárias, em que as políticas do Plano Brasil Maior vão atuar especificamente.
O segundo discurso a ser analisado pelo viés da Análise do Discurso é o Prêmio Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP) de Inovação Tecnológica, que tem por propósito estimular os esforços inovadores das empresas e instituições científicas no campo tecnológico, notadamente dos projetos que gerem resultados de impacto para a sociedade brasileira. (IMPACTO PROTENSÃO, 2012).
Este Prêmio mostra a importância que nós atribuímos à inovação, tanto nos setores empresariais como também no setor de pesquisa e desenvolvimento
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de ciência e tecnologia dos centros de pesquisa espalhados por este Brasil. Ele se insere num esforço que estamos fazendo no sentido de ter um país mais rico e mais forte, com maior capacidade de competir, com maior capacidade de agregar valor, de inovar e de dar um salto fundamental em direção a um país de grande potência. Com este Prêmio, o governo brasileiro estimula e reconhece pessoas, empresas e instituições que criaram e adotaram inovações que resultam e resultaram em processos novos, em produtos novos e em novos serviços (DILMA ROUSSEFF, 15/12/2011).
A criação de uma premiação para os esforços em ciência, tecnologia e
inovação representa a tentativa de incentivar pontos ainda frágeis para o desenvolvimento socioeconômico brasileiro.
Quando se analisa a inovação em um contexto mais amplo, de forma a avaliar em que medida ela estaria conduzindo a ganhos de competitividade global da indústria brasileira, o cenário é pouco acalentador. No Brasil, a inovação é voltada para a atualização de produtos e processos e, como tal, não enseja uma liderança competitiva a médio e longo prazo, o que permitiria uma diferenciação das empresas no processo de concorrência e aproximação das características dos países mais desenvolvidos. (ARRUDA; VERMULM; HOLLANDA, 2006, p. 8).
Existem muitas divergências entre o cenário internacional de inovação e a realidade brasileira no tocante ao desenvolvimento tecnológico. Para comprovar essa tendência, verifica‐se uma preocupação internacional das nações desenvolvidas em realizar pesquisa e desenvolvimento para o sucesso das organizações frente às demandas do mercado, colocando a tecnologia com fator crucial.
Dessa forma, países como Estados Unidos, Europa, Japão, China e Coréia do Sul possuem uma cultura (já há algumas décadas) arraigada a respeito da inovação tecnológica como estratégia de alavancar a economia, tornar esses países mais competitivos e fortalecer seu setor empresarial.
Nesses países há uma forte junção. Legislação, políticas governamentais, crença no setor empresarial e parcerias com universidades e institutos de pesquisas apontam para a inovação que é a pedra fundamental para a sobrevivência dessas nações na competitividade global.
[...] com este prêmio, o governo brasileiro estimula e reconhece pessoas, empresas e instituições que criaram e adotaram inovações que resultam e
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resultaram em processos novos, em produtos novos e em novos serviços (DILMA ROUSSEFF, 15/12/2011).
[...] não tenhamos dúvida: o Brasil só vai conseguir usufruir verdadeiramente dos frutos da era de prosperidade que podemos, devemos e estamos construindo se investir, metódica e sistematicamente, em educação, em pesquisa, em tecnologia, e se for capaz de traduzir tal investimento em conhecimento e em inovação – novos processos, novos produtos, novos serviços (DILMA ROUSSEFF, 15/12/2011).
Esses dois fragmentos sustentam uma memória do passado científico e
tecnológico do Brasil. A participação de empresas e instituições cientificas para alavancar a inovação realça o papel pouco relevante da ciência no processo de industrialização nacional.
Na perspectiva desse trabalho, as dificuldades de estruturação do campo científico, sua tênue vinculação com o setor produtivo e a baixa relação estabelecida entre ciência e qualidade de vida da população, resultando em demandas tímidas e restritas por parte da sociedade, acentuaram a tendência de isolamento da coletividade científica e acadêmica, tendência, essa, que acabou por se traduzir em dificuldade de perceber a prática científica como prática social, e na eventual exaltação de uma concepção “narcísica” da autonomia da ciência (BAUMGARTEN, 2008, p. 149).
A importação de tecnologia estrangeira aliada ao consumo da classe
média foram os fatores do crescimento da economia brasileira, diferentemente de outros países. As políticas de ciência e tecnologia e a atividade das universidades pouco influenciaram o crescimento do Brasil.
Nesse sentido o discurso tenta, de certa forma, silenciar o passado e, no contexto atual de sucesso dos países que inovam, estabelecer práticas com o crescimento econômico mundial.
Considerações finais
Para compreender a constituição dos sentidos nos dizeres de Dilma
Rousseff a respeito da inovação tecnológica, foram utilizados alguns dos pressupostos teóricos da Análise do Discurso de linha francesa, que apontam para inexistência de uma única interpretação expressa pelo conhecido a jargão “o que o texto quis dizer”. A interpretação, portanto, não
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é simplesmente o ato de decodificação dos sentidos. A interpretação deve estar ligada intrinsecamente ao contexto em que foram constituídos. Assim, de acordo com determinadas condições de produção, alguns sentidos podem ser enunciados, em detrimento de outros. O conceito de memória discursiva ou interdiscurso traz que todo discurso carrega marcas de outros já enunciados. Trata‐se, segundo Orlandi (2003, p. 31) “do saber discursivo que torna possível todo dizer”. Assim, para que as palavras pronunciadas neste artigo tenham sentido é preciso que elas já façam sentido (ORLANDI, 2003).
Ao estabelecer tentativas de ampliar as questões da inovação no cenário nacional, a presidenta, por meio de seu discurso, tenta impedir que o Brasil permaneça defasado internacionalmente em termos de estrutura produtiva e de competitividade, o que deverá limitar o processo de crescimento econômico e de geração de renda do país.
A legitimação da importância de um sistema desenvolvido de inovação nas empresas para o fortalecimento do Brasil está presente nas vozes das lideranças nacionais, enquanto país que busca o desenvolvimento. Referências ARRUDA, Mauro; VERMULM, Roberto; HOLLANDA, Sandra. Inovação tecnológica no Brasil: a indústria em busca da competitividade global. Anpei: São Paulo, 2006.
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