catálogo romper silêncios: género em mia couto
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Catálogo de ilustrações a partir dos contos de Mia Couto, realizadas pelos alunos do 1ºano de Design Multimedia UBI. Com o apoio da Coolabora,CRL e CIG- Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género Design Gráfico: Linda Redondo e Edgar Fernandes ISBN: XXX-XXX-97709-X-2TRANSCRIPT
COOLABORA 1
Título
Romper silêncios: Género em Mia Couto
Edição
CooLabora, CRL - Q.ª Rosas, lote 6, r/c esq . 6200-551 Covilhã PT
www.coolabora.pt
Coordenação
Francisco Paiva / Teresa Correia
Design gráfico
Linda Redondo / Edgar Fernandes
Produção
Gracinda Pereira
Impressão
Gráfica do Tortosendo
Tiragem
250 exemplares
Depósito Legal:
ISBN: 978-989-97709-4-2
Covilhã, 2012
Edição financiada pela CIG - Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, através do
Programa Operacional do Potencial Humano - POPH. Eixo 7 - Igualdade de Género. Tipologia
7.3. - Apoio Técnico e Financeiro às Organizações Não Governamentais
I ENQUADRAMENTO 8
Rasgar Silêncios - Graça Rojão 9
APRESENTAÇÃO 11 Ilustrar o que conta - Francisco Paiva 12
Da Literatura para a Vida - Teresa Correia 15
II CONTOS,MIA COUTO 19
1.O BARALHO ERÓTICO | Mia Couto 21 ILUSTRAÇÕES 25 Alina Oliveira; Anabela Carvalho 26
Helena Coelho; João Rodrigues 27
João Artur 28
Linda Redondo 29
Luis Antunes 30
Luis Rodrigues; Nuno Coutinho 33
Pedro Freire 34
Rafael Dias; Rodrigo Antunes; Roksana Stasiak 36
Sara Vitória 37
Simão Mota 38
Vasco Silva; Victor Monteiro 39
2. AFINAL CARLOTA GENTINA, NÃO CHEGOU A VOAR? | Mia Couto 41 ILUSTRAÇÕES 46 Albertina Pinto; João Rosa 47
Marta Correia; Sara Barreira 49
3. JOÃOTÓNIO,NO ENQUANTO | Mia Couto 51
ILUSTRAÇÕES 55 Ana Fernandes; Bárbara Seara 56
Danilo Silva 57
Eduarda Silva; Inês Ramos 58
Mélodie Deschans 59
Paulina Fonseca 61
4. MARIA PEDRA NO CRUZAR DOS CAMINHOS | Mia Couto 63
ILUSTRAÇÕES 66 André Melo; Catarina Nobre 67 Cristiana Farias; Diogo Charro 68
Edgar Fernandes 69
Joel Mariano; Juliana Neves 70
Manuel Abelho; Sofia Oliveira 71
5. ROSALINDA, A NENHUMA | Mia Couto 75
ILUSTRAÇÕES 76 Florian Oliveira; Joel Gonçalves 81
Elói Silva 82
Leonor Branco 84
Pedro Alves 85
Sérgio Vieira; Sofia Biserinska 86
BIBLIOGRAFIA 87
8 ROMPER SILÊNCIOS: GÉNERO EM MIA COUTO
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A violência contra as mulheres ensombra persistentemente
a nossa vida colectiva. Nas conversas quotidianas, acidentalmente
escutadas em qualquer esquina, nos relatos soltos, fugazmente
trazidos pela comunicação social, afloram indícios que denunciam
um fenómeno submerso, mas de dimensão colossal. Estima-se que
uma em cada três mulheres sofre violência, a maior causa de morte
e invalidez nas mulheres com idades entre os 16 e 44 anos, ultra-
passando mesmo o cancro, os acidentes de viação e as mortes em
contexto de guerra.
GRAÇA ROJÃO
10 ROMPER SILÊNCIOS: GÉNERO EM MIA COUTO
Se buscarmos as raízes deste fenómeno o caminho leva-nos
à desigualdade estrutural entre homens e mulheres. O desequilí-
brio nas relações de poder entre uns e outras e as representações
sociais que remetem as mulheres para papéis de subalternidade
nutrem este plano indigno de humanidade, pautado por violência
física, psicológica e verbal; pelo assédio sexual e pela violação, entre
outras tenebrosas realidades.
A igualdade de género é premissa basilar da democracia e
de uma sociedade onde homens e mulheres se possam realizar
integralmente, sem as balizas de convenções sociais castradoras e
sem atropelos à dignidade.
A arte é por excelência um território de inquietação fecunda.
A sua linguagem universal facilita a disseminação e a mudança indi-
vidual e colectiva e pode apontar novos campos de acção que faci-
litem a desconstrução de mitos e crenças, que perpetuam relações
de poder assimétricas.
Este catálogo é fruto de um encontro de vontades e de sa-
beres: a CooLabora que assume como vertente fundamental do seu
trabalho a promoção da igualdade de género e a prevenção da vi-
olência contra as mulheres; duas pessoas que de forma generosa
têm tido um grande empenho cívico nesta causa: Teresa Correia, es-
pecialista em questões de género que selecionou os contos de Mia
Couto e Francisco Paiva, director do curso de Design Multimédia da
Universidade da Beira Interior que coordenou durante um semestre
lectivo os trabalhos de ilustração. Destacamos ainda o envolvimento
activo de todos os alunos e alunas do curso de Design Multimédia,
que criaram os trabalhos que aqui se apresentam, sobretudo Linda
Redondo e Edgar Fernandes que assumiram também o design grá-
fico.
A inclusão neste catálogo dos textos ilustrados foi possível
por gentileza da Editorial Caminho, do editor Zeferino Coelho e por
autorização do autor, a quem agradecemos.
Mia Couto rasga silêncios. Questiona-nos sobre a invisibi-
lidade, a repressão, o silenciamento, a menorização ou o controlo
e fala-nos das mulheres, essas entidades marginais, sem voz, sem
outra história senão a que os homens lhe emprestam.
Com este trabalho pretendemos contribuir para ampliar a
reflexão e a consciência crítica, fundamentais no reforço da capaci-
dade transformadora individual e colectiva para uma vida sem vi-
olência.
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12 ROMPER SILÊNCIOS: GÉNERO EM MIA COUTO
Este catálogo de trabalhos de alunos do 1º ano do curso de
Design Multimédia da Universidade da Beira Interior dá vivo teste-
munho da relação possível entre as diversas artes, em especial a
Literatura e o Desenho. Prova igualmente o possível contributo das
artes para a alteração de mentalidades e a inovação social, na me-
dida em que os autores dos vídeos aqui documentados pertencem a
uma geração que não tendo vivido muitas daquelas realidades cer-
tamente aumentará o sentido crítico perante fenómenos análogos.
Os resultados patentes são, pois, um panorama residual da
riqueza do processo de interpretação e imaginação provocado pela
leitura dos contos de Mia Couto seleccionados. Se, num primeiro
momento, estes contos provocaram uma certa estranheza – pelo
vocabulário e pela sintaxe da nossa língua ultramarina, mas também
pelo universo das narrativas, das suas personagens e concomitante
Francisco Paiva
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enquadramento das relações humanas –, rapidamente os alunos
perceberam o potencial criativo do onírico e até desconcertante uni-
verso literário do notável escritor moçambicano.
Embora tenhamos recebido com alguma reserva o desafio
lançado pela Teresa Correia e pela Coolabora, a reacção dos alu-
nos na primeira sessão de discussão dos textos dissipou as dúvidas
que houvesse sobre as possibilidades que este desafio abria para
o curso, ao colocar os alunos em contacto com outros âmbitos e
agentes sociais, em particular com esta cooperativa de intervenção
social, cujo trabalho publicamente reconhecido em prol dos direitos
humanos fundamentais vai de par com a permanente atenção à
produção e divulgação cultural na região.
Será por propiciar um campo de resistência, de emancipação
e de estímulo às necessárias mudanças sociais, inclusive no âm-
bito educativo, que a produção artística se vem distanciando da via
comemorativa institucional e assume progressivamente o primado
da intervenção cívica. Esse será, pois, um campo privilegiado para
a actuação dos nossos alunos de Design que justifica a presença
institucional da UBI em parcerias deste tipo.
É consabido que a presença de mulheres no panorama das artes visuais não é minimamente comparável ao da expressão lit-
erária, domínio em que se verifica maior equidade com os homens.
Não obstante a evidência de que a massiva entrada de mulheres na
arte contemporânea tem marcado um novo encontro com o sensível,
com as esferas da intimidade, do desejo e do corpo, perduram mui-
tos preconceitos que a arte ajuda a ultrapassar.
As mais celebradas obras da arte ocidental reservam um
papel central à imagem da mulher, estando esta presente maiori-
tariamente na qualidade de objecto passivo. Salvo raras excepções,
quem permanecia do lado de trás do cavalete era um homem, sendo
o ideal de beleza masculino a condicionar a escolha dos modelos
e dos temas dignos de representação. Não obstante essa predom-
inância, Mia Couto proporciona-nos uma abordagem de rara sensi-
bilidade para aspectos que pouco se encontram na arte, sejam os
problemas identitários e da violência ou as estratégias de poder e
submissão na vida quotidiana, onde o feminino e o masculino se
afastam dos estereótipos para encarnar narrativas particularmente
inquietantes para o sistema de valores tradicionais.
Os textos de Mia Couto proporcionaram um aprofundamento
da consciência sobre estes temas, e seguramente alteraram a nossa
visão do mundo, em particular dos alunos, certamente mais ávidos
14 ROMPER SILÊNCIOS: GÉNERO EM MIA COUTO
de perceber os nexos entre a vida íntima e a esfera pública, mesmo
política, mas também mais inquietos sobre os veículos gráficos e
visuais que melhor se ajustam a essa comunicação.
O processo criativo partiu dos textos seleccionados e apre-
sentados pela Teresa Correia, que foi participando nas diversas fases
do processo, desde a decupagem e divisão das orações, das cenas
à caracterização das personagens e ambientes. Entre o story-board
e a animação final houve momentos de intenso debate e partilha,
procurado-se evidenciar as particularidades de linguagem gráfica e
clarificar os conceitos e adequar os ritmos e a linguagem plástica ao
fluxo de interpretação da narrativa. Estes trabalhos resultam dessa
conjuntura e embora possam considerar-se num ou noutro aspecto
incompletos, experimentam um sem número de possibilidades que
transcendem o mero contexto do exercício escolar através do prisma
estético.
Os vídeos aqui documentados não são objectos acabados,
são antes embriões de objectos artísticos que procuram respond-
er aos problemas de que explicita ou implicitamente os contos se
ocupam, explorando linguagens e possibilidades de representação
que cada aluno intuiu, quis ou foi capaz de fixar. De certo modo à
margem do género pictórico e da efabulação paternalista, procurou-
se desenvolver abordagens singulares, que tanto serviu as histórias
e as suas personagens como foi útil aos autores. Tal diversidade está
bem patente na diferença estilística, técnica e material dos trabalhos
feitos sobre o mesmo conto, cuja riqueza semântica abriu direcções
criativas insuspeitas para cada aluno, que com a sua criatividade
aumentou o mundo.
Resta-nos agradecer ao escritor, pela talentosa obra que
connosco partilha e sem a qual esta dinâmica não teria existido.
Também ao seu editor que de pronto acolheu o nosso pedido e
generosamente cedeu autorização de publicação dos contos ora
ilustrados neste catálogo.
Bem-hajam!
Francisco Paiva
Director do Curso de 1º Ciclo em Design Multimédia da UBI
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Um livro tem de gerar inquietação. O universo literário de
Mia Couto, escritor moçambicano, segue este lema e, como tal, as
suas estórias albergam personagens e enredos aos quais raramente
ficamos indiferentes. São malhas tecidas em intrigas que recusam
um mundo estereotipado, cultivando a transgressão para assim al-
cançar uma verdade secreta que só o leitor atento e despojado de
ideias feitas alcançará.
A mundivivência feminina é absolutamente dominante nas
narrativas deste autor, construindo-se através de percursos diversos
que, no entanto, têm um traço em comum: a extraordinária força de
que estão investidas as personagens femininas e a responsabilidade
maior que lhes cabe na esfera do privado, mesmo porque estão
impedidas de ter voz no domínio público. Com efeito, impossibilita-
das de participar na construção de uma sociedade nova, procuram
nos seus tradicionais papéis de filhas, esposas e mães construir a
sua própria identidade, em atitudes de resiliência e de revolta que,
não raras vezes, se revelam de extrema violência. São os frutos da
TERESA CORREIA
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opressão e da negação da liberdade a que todo o ser humano tem
direito.
Assim, a tradicional matriarca moçambicana, espelhada nas
estórias de Mia Couto, possui uma força mística capaz de transfor-
mar as difíceis conjunturas das comunidades em que se insere. Se
nuns momentos é submissa noutros será insurreta, se é vulnerável
também é resistente, capaz de ultrapassar a solidão inerente à sua
condição feminina. Não obstante a sua posição de subalternidade,
ela ousa desobedecer e tomar para si uma voz própria, capaz de
garantir a segurança no domínio familiar. Nos contos apresentados
(“Maria Pedra no cruzar dos caminhos”1, “Afinal Carlota Gentina não
chegou de voar?”2, “O Baralho Erótico”3, “Rosalinda, a nenhuma”4 e
“Joãotónio, no enquanto”5 ), as temáticas são abordadas de modos
diversificados, no entanto em todas estas estórias compreendemos
que o mundo é muito mais heterogéneo do que nos querem fazer
entender e que o ser humano pode tomar o futuro nas sua mãos e
mudar o rumo dos acontecimentos, se assim o decidir.
Na verdade, as questões de género são particularmente rel-
evantes nestes contos e não é difícil concluirmos que se a oposição
homem/mulher se justifica a partir de um fator biológico, já a
diferença masculino/feminino assenta em questões culturais e ide-
ológicas, ou seja, construções sociais suscetíveis de mudança. No
primeiro conto, é a questão do alcoolismo associada ao desencanto
que conduzem a um desfecho enigmático, numa clara cumplicidade
entre mãe e filha; no segundo, a tremenda violência que advém das
superstições e da ignorância, capaz de conduzir à morte física e/ou
psicológica das personagens; no terceiro, o alcoolismo gera violên-
cia e desrespeito que apenas são ultrapassáveis por via da fantasia;
no quarto, a anulação da personagem feminina é aceite, mas a sua
“revivescência” enquanto pessoa e mulher são entendidas como
demência; no último, os estereótipos associados às questões de
género baralham-se e resultam em situações peculiares, suscetíveis
de quebrar tabus e de revelar outras realidades escondidas.
Por vezes, o olhar singular do autor sobre o quotidiano con-
creto das “mulheres” inquieta-nos, pois nele encontramos uma lógi-
ca de pensamento que, apesar de tão distante, nos coloca perante
realidades muito próximas da nossa. Afinal, apesar da entrada das
mulheres nos setores do mundo do trabalho e de todas as lutas
1 in MIA COUTO, O Fio de Missangas
2 in MIA COUTO, Vozes Anoitecidas
3 in MIA COUTO, Contos do Nascer da Terra
4 in MIA COUTO, Cada Homem é uma Raça
5 in MIA COUTO, Estórias Abensonhadas
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travadas, especialmente desde o início do século XX, verificamos
que o acesso a posições de liderança ainda é bastante limitado e
mantém padrões de desigualdade relativamente aos homens. Com
efeito, continuam a existir para as mulheres as chamadas “barreiras
de vidro” que dificultam o seu acesso a posições tradicionalmente
ocupadas pelos homens. Na verdade, a condição feminina resulta
de uma História que lhe não foi favorável, como facilmente con-
cluímos quando remontamos a tempos mais antigos e analisamos
os papéis impostos à mulher. Como se tal não fosse já um forte
obstáculo no caminho da igualdade, a violência doméstica assume,
nos nossos dias, proporções chocantes. A violência não é só contra
as mulheres, mas é sobretudo contra as mulheres. A superioridade
física ou psicológica, os paradigmas educacionais ou culturais e as
tradições contribuem para este estado de coisas. Na literatura como
na vida.
Foi a partir da convicção de que a mudança é possível que se
estabeleceu a ligação entre os textos do escritor moçambicano e as
ilustrações concebidas pelos alunos do primeiro ano do curso de De-
sign e Multimédia da Universidade da Beira Interior, numa parceria
fomentada pela Coolabora. A leitura crítica dos textos proporcionou
uma outra visão do mundo e o nascimento de opções artísticas ca-
pazes de chegar a um público mais diversificado. E assim se cumpriu
mais um propósito da criação literária – proporcionar o diálogo entre
diferentes linguagens. Simultaneamente, promoveu-se a descoberta
ou o conhecimento um pouco mais aprofundado de um escritor
maior da língua portuguesa.
O trabalho realizado a partir da obra de Mia Couto, cuja
diversidade é bem visível nas várias matrizes escolhidas e na story-
board criada por cada um dos alunos, desperta o leitor para uma re-
alidade ficcionada e conduz a uma leitura crítica e universalista dos
temas, conseguindo, desta forma, alcançar, por um lado, o prazer
estético e, por outro, a intervenção social que também compete a
podas as formas artísticas.
Assim se conclui que a busca de uma nova ordem social
onde as diferenças possam ser respeitadas e a aceitação do Outro
seja inquestionável impõem-se como condições para a construção
de um mundo mais justo e mais equilibrado. Essa é uma tarefa plu-
ridimensional. Nesse sentido, a literatura assume, agora tal como
aconteceu no passado, um papel único e contribui para fazer de
nós agentes de mudança e, como tal, esbater os impedimentos da
verdadeira evolução humana.
18 ROMPER SILÊNCIOS: GÉNERO EM MIA COUTO
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20 ROMPER SILÊNCIOS: GÉNERO EM MIA COUTO
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22 ROMPER SILÊNCIOS: GÉNERO EM MIA COUTO
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m sua maior parte, o matrimónio é um
maltrimónio. Os dois pensando somar,
afinal, se traem e subtraem. Era o caso de
Fula Fulano mais sua respectiva Dona Nadinha.
O homem era um vidabundo, formado nas ma-
landragens. A mulher era muda durante o dia.
Mesmo que pretendesse não lhe saía palavra.
Só de noite ela falava. No resto, se arredava,
imóvel de fazer inveja às plantas. Se sentava a
desfolhar fotos e postais. Nadinha vivia por fo-
tografia, sonhava por interposição de imagens
recortadas em revistas. Coleccionava retratos,
cromos, postais. Ficava horas contemplando as
figurinhas. Assim, ela se desconhecia, desa-
parecendo de si mesma, invisibilizando a vida.
De noite é que ela pegava o trabalho, desfiava
horas de canseira. Em cada intervalo, mínimo
que fosse, ela sacava da colecção das fotogra-
fias e se sentava. Se enamorava das mulheres
das capas, que lindas, nem transpiram, nem
enrugam com os tempos.
- “Não existe uma foto em que saia o mundo?
“Existe, existe”, anuía o marido em sono.
“Coitada, a mulher. Devia ser que apanhou
de mais, tenho que abrandar a socar a. Eu lhe
bato não é desamor, é só porque você é uma
criança, entende Nadinha?
Está ouvir, Nadinha?”
Ela não entendia, parvinha que era, olho pre-
gado nas fotos. Ou será que esperava a noite
para emitir resposta? Mas ele, de noite, não
estava. Saía, remeloso, pelas barracas, se ate-
stando de tontonto até se apoisar em mesa de
jogo e bater cartas. Certa madrugada regressou
afadigado das jogatanas, acumulado de azares
e divida. Raio das cartas, raio da vida! Ficou
remexendo as cartas, como se repreendesse
os dedos de não terem sabido extrair vitórias
e ganhos. Desgostosa, Nadinha espreitou o
baralho: as cartas exibiam fotografias de mul-
heres nuas. A mulher acenou em reprovação:
- “Que vergonha, parece nem tem esposa,
você!
- “Que vergonha o quê! Tomara-se você ultra-
passar os calcanhares de qualquer destas.
- “Sabe o quê? Sinto pena mas não de mim.
- “Acabou-se, mulher. Esta noite não quero
barulheiras!”
Mas ela, entre panelas e panos, se estriden-
tou, numa quinquilhação de rasgar orelha. Fula
Fulano nem avisou: assentou logo uns tantos
e quantos sopapos na mulher. Como que ela
caiu,ficou. Toda em silêncio, lhe escapavam
lágrimas e sangues. Os líquidos eram rios que
caminhavam junto. Logo o marido percebeu: ela
só deixaria de sangrar se parasse de chorar. Em
acesso de pena, ele lhe pediu:
- “Se deixar de chorar eu prometo... prometo
que nem nunca mais vou sair para jogar!”
Ela lhe olhou, sem crédito. Seu olhar era irreal,
faz conta seus olhos figurassem no mortiço
papel de revista.
- “Eu juro, Nadinha. Pare de chorar que vou
ficar aqui todas as noites, a lhe fazer um boca-
dito de acompanhia”.
Na seguinte noite, ele ficou. Mandou recado
aos companheiros das jogatanas a dizer que
não ia, estava indisposto. Mesmo sendo noite,
Nadinha rodopiou sem falar. Posto perante
o silêncio dela, o homem ficou num canto a
desfolhar as revistas que ela tanto estimava.
De quando em enquanto, soltava risadas, se
esmilhofrava da mulher. Era aquilo que tanto
MIA COUTO
24 ROMPER SILÊNCIOS: GÉNERO EM MIA COUTO
i
derretia o coração dela? Ainda fosse mulhero-
nas dessas de arrebentar botões. Falou só, até
que se fartou.
- “Não quer falar-me, mulher?”
Ela respondeu, em vago tom, estranhas pala-
vras. Que sim, mas ela queria era conversar
com a mulher que estava dentro dele. Assim
que falou, apanhou logo uma chapada.
- “E nem pense em chorar! Pois que, da última
vez, com essa porcaria de sangue e ranhos
você quase me estragava o baralho das gajas
descascadas!”
E foi um relampejamento. Rápido, o homem
deitou a promessa para as traseiras. O prometi-
do não é de vidro? E, logo-logo, se fez à rua
para recuperar o quanto da noite já perdera.
Ainda por cima, ele tanto reclamara vingança
sobre o que perdera. Essa noite, os cabrões
haviam de ver. Azar no amor, sorte aonde?
Chega à barraca, se senta em firme silêncio.
Os jogadeiros estranham seus modos bruscos.
Fula Fulano baralha as cartas disposto, como
ele proclama, a enrabar valetes e descue-
car damas. Com os nervos, lhe tomba uma
carta. Um que apanha a carta e se espanta.
Nem querendo acreditar, passa a carta aos
restantes. Cochicham. Os amigos passam a
fotografia de mão para mão, gozando e rindo.
Até que um deles guarda a carta e todos se
arrumam sérios e graves. Fula Fulano, estra-
nhando os modos, pergunta.
- “Não é nada, Fula. É só uma dessas gajas que aparece nas costas das cartas.
- “Mostra!
- “Deixa lá esta merda. Continua a baralhar,
Fula.
- “Eu quero ver essa carta”.
O outro, com voz de funeral, diz:
- “É melhor não, você”.
Saltando sobre o tampo, Fulano arranca a
carta. Seu juízo deu o salto mortal, todo
despenhado naquela visão. Quem era a gaja?
Nadinha! Sim, Nadinha, sua esposa, toda cas-
cadinha, como o mundo lhe recebeu. Fula Fu-
lano desejou o buraco final. Saiu, de espuma e
raiva. Foi direito a casa, mãos nos bolsos com
tais fúrias que estrilhaçava o baralho. Chegou
a casa, demorou-se um momento na porta. Sa-
cou da carta onde a Nadinha se descamava em
carnes. Lhe subiu uma fervura, sangue adentro,
irrompeu pela casa e se dirigiu, certeiro, para o
leito onde a mulher dormia. E desatou a beijá-
la com paixão que nunca tanto dele emergira.
In Contos do Nascer da Terra
COOLABORA 25
26 ROMPER SILÊNCIOS: GÉNERO EM MIA COUTO
Autor: Alina OliveiraTécnica: ColagensDuração: 00:01:53
Autor: Anabela CarvalhoTécnica: AguarelaDuração: 00:02:07
COOLABORA 27
Autor: João RodriguesTécnica: LápisDuração: 00:01:32
Autor: Helena CoelhoTécnica: AguarelaDuração: 00:00:35
28 ROMPER SILÊNCIOS: GÉNERO EM MIA COUTO
Autor: João ArturTécnica: Técnica MistaDuração: 00:01:04
COOLABORA 29
Autor: Linda RedondoTécnica: AcrílicoDuração: 00:02:49
30 ROMPER SILÊNCIOS: GÉNERO EM MIA COUTO
Autor: Luis AntunesTécnica: Técnica MistaDuração: 00:02:04
COOLABORA 31
32 ROMPER SILÊNCIOS: GÉNERO EM MIA COUTO
Autor: Nuno CoutinhoTécnica: LápisDuração: 00:00:33
COOLABORA 33
Autor: Luís RodriguesTécnica: ColagensDuração: 00:01:52
34 ROMPER SILÊNCIOS: GÉNERO EM MIA COUTO
COOLABORA 35
Autor: Pedro FreireTécnica: AguarelaDuração: 00:04:00
36 ROMPER SILÊNCIOS: GÉNERO EM MIA COUTO
Autor: Rafael DiasTécnica: CanetaDuração: 00:01:15
Autor: Rodrigo AntunesTécnica: LápisDuração: 00:01:04
Autor: Roksana StasiakTécnica: GuacheDuração: 00:01:33
COOLABORA 37
Autor: Sara VitóriaTécnica: AguarelaDuração: 00:03:11
38 ROMPER SILÊNCIOS: GÉNERO EM MIA COUTO
Autor: Vasco SilvaTécnica: Técnica MistaDuração: 00:00:56
Autor: Victor MonteiroTécnica: LápisDuração: 00:01:02
COOLABORA 39
Autor: Simão MotaTécnica: Técnica MistaDuração: 00:01:21
40 ROMPER SILÊNCIOS: GÉNERO EM MIA COUTO
COOLABORA 41
42 ROMPER SILÊNCIOS: GÉNERO EM MIA COUTO
SENHOR DOUTOR, LHE COMEÇO
Eu somos tristes. Não me engano, digo
bem. Ou talvez: nós sou triste? Porque
dentro de mim, não sou sozinho. Sou muitos. E
esses todos disputam minha única vida. Vamos
tendo nossas mortes. Mas parto foi só um. Aí,
o problema. Por isso, quando conto a minha
história me misturo, mulato não das raças, mas
de existências. A minha mulher matei, dizem.
Na vida real, matei uma que não existia.
Era um pássaro. Soltei-lhe quando vi que ela
não tinha voz, morria sem queixar. Que bicho
saiu dela, mudo, através do intervalo do corpo?
O senhor, doutor das leis, me pediu de escrever
a minha história. Aos poucos, um pedaço cada
dia. Isto que eu vou contar o senhor vai usar no
tribunal para me defender. Enquanto nem me
conhece. O meu sofrimento lhe interessa, dou-
tor? Não me importa a mim, nem tão pouco.
Estou aqui a falar, isto-isto, mas já não quero
nada, não quero sair nem ficar. Seis anos que
estou aqui preso chegaram para desaprender a
minha vida. Agora, doutor, quero só ser mori-
bundo. Morrer é muito de mais, viver é pouco.
MIA COUTO
COOLABORA 43
Fico nas metades. Moribundo. Está-me a rir de
mim?
Explico: os moribundos tudo são permitidos.
Ninguém goza-lhes. O respeito dos mortos eles
antecipam, pré-falecidos. O moribundo insulta-
nos? Perdoamos, com certeza. Cagam nos
lençóis, cospem no prato? Limpamos, sem mais
nada. Arranja lá uma maneira, senhor doutor.
Desarasca lá uma maneira de eu ficar mori-
bundo, submorto. Afinal, estou aqui na prisão
porque me destinei prisioneiro. Nada, não
foi ninguém que queixou. Farto de mim, me
denunciei. Entreguei-me eu mesmo. Devido,
talvez, o cansaço do tempo que não vinha.
Posso esperar, nunca consigo nada. O futuro
quando chega não me encontra. Onde estou,
afinal eu? O lugar da minha vida não é esse
tempo? Deixo os pensamentos, vou directo na
história. Começo no meu cunhado Bartolomeu.
Aquela noite que ele me veio procurar, foi onde
iniciaram desgraças.
ASAS NO CHÃO, BRASAS NO CÉUA luz emagrecia. Restava só um copo
de cu. Em casa do meu cunhado Barto-
lomeu preparava-se o fim do dia. Ele espreitou
a palhota: a mulher, mexedora, agitava as
últimas sombras do xipefo. A mulher deitava
mas Bartolomeu estava inquieto. O adormeci-
mento demorou de vir. Lá fora um mocho piava
desgraças. A mulher não ouviu o pássaro que
avisa a morte, já dormia entregue ao corpo.
Bartolomeu falou-se:
- Vou fazer o chá: talvez bom para eu garrar
maneira de dormir.
O lume estava ainda a arder. Tirou um pau
de lenha e soprou nele. Sacudiu dos olhos
as migalhas do fogo. Na atrapalhação deixou
a lenha acesa cair nas costas da mulher. O
grito que ela deu, nunca ninguém ouviu. Não
era som de gente, era grito de animal. Voz
de hiena, com certeza. Bartolomeu saltou no
susto: estou casado com quem, afinal? Uma
nóii1? Essas mulheres que noite transformam
em animais e circulam no serviço da feitiçaria?
A mulher, na frente da aflição dele, rastejava
a sua dor queimada. Como um animal. Raio
da minha vida, pensou Bartolomeu. E fugiu
1Feiticeira
de casa. Atravessou a aldeia, rápido, para me
contar. Chegou a minha casa, os cães agitaram.
Entrou sem bater, sem licenças. Contou-me o
sucedido assim como agora estou a escrever.
Desconfiei, no início. Bêbado, talvez o Barto-
lomeu trocou as lembranças. Cheirei o hálito
da sua queixa. Não arejava bebida. Era verdade,
então. Bartolomeu repetia a história duas,
três, quatro vezes. Eu ouvia aquilo e pensava:
e se a minha mulher também é uma igual? Se
é uma nóii, também? Depois de Bartolomeu
sair, a ideia me prendia os pensamentos. E se
eu, sem saber, vivia com uma mulher-animal?
Se lhe amei, então troquei a minha boca com
um focinho. Como aceitar desculpas da troca?
Lugar de animal é na esteira, algum dia?
Bichos vivem e revivem nos currais, para lá dos
arames. Se essa mulher, fidaputa, me enganou,
fui eu que animalei. Só havia uma maneira de
provar se Carlota Gentina, minha mulher, era
ou não uma nóii. Era surpreender-lhe com um
sofrimento, uma dor funda. Olhei em volta e vi
a panela com água a ferver. Levantei e reguei
o corpo dela com fervuras. Esperei o grito mas
não veio. Não veio, mesmo. Ficou assim, muda,
chorando sem soltar barulho. Era um silêncio
enroscado, ali na esteira. Todo o dia seguinte,
não mexeu. Carlota, a coitada, era só um nome
deitado. Nome sem pessoa: só um sono demo-
rado no corpo. Sacudi-lhe nos ombros:
- Carlota, porquê não mexes? Se sofres, porquê
não gritas?
Mas a morte uma guerra de enganos. As
vitórias são só derrotas adiadas.
A vida enquanto tem vontade vai construindo a
pessoa. Era isso que Carlota precisava: a
mentira de uma vontade.
Brinquei de criança para fazer-lhe rir. Saltei
como gafanhoto em volta da esteira. Choquei
com as latas, entornei o barulho sobre mim.
Nada. Os olhos dela estavam amarrados na
distância, olhando o lado cego do escuro.
Só eu me ria, embrulhado nas panelas. Me
levantei, sufocado no riso e saí para estou-
rar gargalhadas loucas lá fora. Gargalhei até
cansar. Depois, aos poucos, fiquei vencido por
tristezas, remorsos antigos. Voltei para dentro
e pensei que ela havia de gostar ver o dia,
elasticar as pernas. Trouxe-lhe para fora. Era
44 ROMPER SILÊNCIOS: GÉNERO EM MIA COUTO
tão leve que o sangue dela devia ser só poeira
vermelha. Sentei Carlota virada para o poente.
Deixei o fresco tapar o seu corpo. Ali, sentada
no quintal, morreu Carlota Gentina, minha
mulher. Não notei logo aquela sua morte. Só vi
pela lágrima dela que parara nos olhos. Essa
lágrima era já água da morte. Fiquei a olhar a
mulher estendida no corpo dela. Olhei os pés,
rasgados como o chão da terra. Tanto andaram
nos carreiros que ficaram irmãos da areia. Os
pés dos mortos são grandes, crescem depois
do falecimento. Enquanto media a morte de
Carlota eu me duvidava: que doença era aquela
sem inchaço nem gemidos Água quente pode parar assim a idade de uma pessoa?
Conclusão que tirei dos pensamentos: Carlota
Gentina era um pássaro, desses que perdem
voz nos contravento.
SONHOS DA ALMA ACORDARAM-ME DO
CORPO
Sonhei-lhe. Ela estava no quintal, trabal-
hando no pilão. Pilava sabe o quê? Água. Pilava água. Não, não era milho, nem mapira, nem o
quê. Água, grãos do céu.Aproximei. Ela cantava uma canção triste, pare-
cia que estava a adormecer a si própria.
Perguntei a razão daquele trabalho.
- Estou a pilar.
- Esses são grãos?
- São tuas lágrimas, marido.
Foi então: vi que ali, naquele pilão, estava a
origem do meu sofrimento. Pedi que parasse
mas a minha voz deixou de se ouvir. Ficou cega
a minha garganta. Só aquele tunc-tunc-tunc do
pilão sempre batendo, batendo, batendo. Aos
poucos, fui vendo que o barulho me vinha do
peito, era o coração me castigando. Invento?
Inventar, qualquer pode. Mas eu daqui da cela
só vejo as paredes da vida. Posso sentir um
sonho, perfume passante. Agarrar não posso.
Agora, já troquei minha vida por sonhos. Não
foi só esta noite que sonhei com ela. A noite
antepassada, doutor, até chorei. Foi porque
assisti minha morte. Olhei no corredor e vi
sangue, um rio dele. Era sangue órfão. Sem
o pai que era o meu braço cortado. Sangue
detido como o dono. Condenado. Não lembro
como cortei. Tenho memória escura, por causa
dessas tantas noites que bebi.
E sabe, nesse tal sonho, quem salvou o meu
sangue espalhado? Foi ela. Apanhou o sangue
com as suas mãos antigas. Limpou aquele
sangue, tirou a poeira, carinhosa. Juntou os
pedaços e ensinou-lhes o caminho para regres-
sar ao meu corpo. Depois ela me chamou com
esse nome que eu tenho e que já esqueci,
porque ninguém me chama. Sou um número,
em mim uso algarismos não letras. O senhor
me pediu para confessar verdades. Está certo,
matei-lhe. Foi crime? Talvez, se dizem. Mas
eu adoeço nessa suspeita. Sou um vivo, não
desses que enterra as lembranças. Esses têm
socorro do esquecimento. A morte não afasta-
me essa Carlota. Agora, já sei: os mortos
nascem todos no mesmo dia. Só os vivos têm
datas separadas. Carlota voou? Daquela vez
que lhe entornei água foi na mulher ou no pás-
saro? Quem pode saber? O senhor pode?
Uma coisa eu tenho máxima certeza: ela ficou,
restante, por fora do caixão. Os que choravam
no enterro estavam cegos. Eu ria. É verdade, ria. Porque dentro do caixão que choravam não
havia nada. Ela fugira, salva nas asas. Me viram
rir assim, não zangaram. Perdoaram-me.
Pensaram que eram essas gargalhadas que não
são contrárias da tristeza. Talvez eram soluços
enganados, suor do sofrimento. E rezavam.
Eu não, não podia. Afinal, não era uma morta
falecida que estava ali. Muito-muito era um
silêncio na forma de bicho.
VOU APRENDER A SER ÁRVORE
De escrever me cansei das letras. Vou
ultimar aqui. Já não preciso defesa, dou-
tor. Não quero. Afinal das contas, sou culpado.
Quero ser punido, não tenho outra vontade.
Não por crimemas por meu engano. Explicarei
no final qual esse engano. Há seis anos me
entreguei, prendi-me sozinho. Agora, próprio eu
me condeno. De tudo estou agradecido, senhor
doutor. Levei seu tempo, só de graça. O senhor
me há-de chamar de burro. Já sei, aceito. Mas,
peço desculpa, se faz favor: o senhor, sabe o
quê da minha pessoa? Não sou como outros:
penso o que aguento, não o que preciso. O
que desconsigo não é de mim. Falha de Deus,
não minha. Porquê Deus não nos criou já
COOLABORA 45
feitos? Completos, como foi nascido um bicho
a quem só falta o crescimento. Se Deus nos
fez vivos porque não deixou sermos donos da
nossa vida? Assim, mesmo brancos somos
pretos. Digo-lhe, com respeito. Preto o senhor
também. Defeito da raça dos homens, esta
nossa de todos. Nossa voz, cega e rota, já não
manda. Ordens só damos nos fracos: mulheres
e crianças. Mesmo esses começam a demorar
nas obediências. O poder de um pequeno fazer
os outros mais pequenos, pisar os outros como
ele próprio é pisado pelos maiores. Rastejar é o
serviço das almas. Costumadas ao chão como
que podem acreditar no céu? Descompletos
somos, enterrados terminamos. Vale a pena ser
planta, senhor doutor.
Mesmo vou aprender a ser árvore. Ou talvez
pequena erva porque árvore aqui dentro não
dá. Porquos baloii2 não tentam de ser plantas,
verde-sossegadas? Assim, eu não precisava
matar Carlota. Só lhe desplantava, sem crime,
sem culpa.
Só tenho medo de uma coisa: de frio. Toda a
vida sofri do frio. Tenho paludismo não é no
corpo, é na alma. O calor pode apertar: sempre
tenho tremuras. O Bartolomeu, meu cunhado,
costumava dizer: “fora de casa sempre faz
frio.” Está certo. Mas eu, doutor, que casa eu
tive?
Nenhuma. Terra nua, sem aqui nem onde.
Num lugar assim, sem chegada nem viagem,
preciso aprender espertezas. Não dessas que
avançam na escola. Esperteza redonda, es-
perteza sem trabalho certo nem contrato com
ninguém. Nesta carta última o senhor me vê
assim, desistido. Porquê estou assim? Porque o
Bartolomeu me visitou hoje e me contou tudo
como se passou. No enfim, compreendi o meu
engano. Bartolomeu me concluiu: afinal a sua
mulher, minha cunhada, não era uma nóii. Isso
ele confirmou umas tantas noites. Espreitava
de vigia para saber se a mulher dele tinha ou
não outra ocupação nocturna. Nada, não tinha.
Nem gatinhava, nem passarinhava. Assim,
Bartolomeu provou o estado de pessoa da sua
esposa.
Então, pensei. Se a irmã da minha mulher não
era nóii, a minha mulher também não era. O
2 Feiticeiros, deitadores de sorte.
feitiço mal de irmãs, doença das nascenças.
Mas eu como podia adivinhar sozinho? Não
podia, doutor. Sou filho do meu mundo. Quero
ser julgado por outras leis, devidas da minha
tradição. O meu erro não foi matar Carlota. Foi
entregar a minha vida a este seu mundo que
não encosta com o meu. Lá, no meu lugar,
me conhecem. Lá podem decidir das minhas
bondades. Aqui, ninguém.
Como posso ser defendido se não arranjo en-
tendimento dos outros? Desculpa, senhor dou-
tor: justiça só pode ser feita onde eu pertenço.
Só eles sabem que, afinal, eu não conhecia
que Carlota Gentina não tinha asas para voar.
Agora já é tarde. Só reparo o tempo quando
já passou. Sou um cego que vê muitas portas.
Abro aquela que está mais perto. Não escolho,
tropeço a mão no fecho. Minha vida não é um
caminho. É uma pedra fechada à espera de ser areia. Vou entrando nos grãos do chão, deva-
garinho. Quando me quiserem enterrar já eu
serei terra. Já que não tive vantagem na vida,
esse ser o privilégio da minha morte.
in Vozes Anoitecidas
46 ROMPER SILÊNCIOS: GÉNERO EM MIA COUTO
COOLABORA 47
Autor: Albertina PintoTécnica: AguarelaDuração: 00:00:25
48 ROMPER SILÊNCIOS: GÉNERO EM MIA COUTO
Autor: João RosaTécnica: AguarelaDuração: 00:01:40
COOLABORA 49
Autor: Marta CorreiaTécnica: PastelDuração: 00:01:07
Autor: Sara BarreiraTécnica: Técnica MistaDuração: 00:01:29
50 ROMPER SILÊNCIOS: GÉNERO EM MIA COUTO
COOLABORA 51
52 ROMPER SILÊNCIOS: GÉNERO EM MIA COUTO
or enquanto, sou Joãotónio. Lhe digo e
desdigo, mano: com mulheres me ponho
em modos de ser tropa. Pois todo o en-
contro com elas se me aparenta uma batalha.
Assim, quando olho uma eu já adianto adivin-
hação: como será sua voz? Não me intriga a
voz visível mas a outra,silenciosa, subcorpórea,
capaz de tantas linguagens como a água. Outro
dizendo: eu quero adivinhar é os gemidos de-
las, esse resvalar de asas na frente do abismo,
o arrepio da alma perdendo morada. Você
sabe, mano: a voz da pessoa esconde o doce
sabor do sussurro. A voz encobre o suspiro. E
agora já ouço a sua pergunta: porquê esta ma-
nia de adivinhar suspiros? É a mesma vontade do general, mano. É o gosto de antecipar a rendição do adversário. É o desejo de antes-cutar como elas se podem requebrar, vencidas
e abandonadas. Às vezes penso, no fundo, eu tenho medo de mulher. E você não tem? Tem,
bem que eu sei. As ideias delas nascem num
lugar que está fora do pensamento. Daí vem
nosso medo, nós não deciframos o entendi-
mento das mulheres. Suas superioridades nos
MIA COUTO
COOLABORA 53
medonham, mano. Por isso, as concebemos
em tratos de batalha, versadas adversárias.
Mas volto aos começos, veja você, já eu rangia
como uma curva,derraspado em filosofices.
Agora recomece também sua audição. Ainda e
por enquanto: sou Joãotónio. Lhe conto,agora,
a ficção da minha tristeza. Não é para espal-
har por aí. Confio-lhe mano. Porque não é um
qualquer que publica assim as suas dores.
O que vou escrever é motivo das vergonhas.
Começo com Maria Zeitona, causadora de
todos motivos. Escrevo o nome dessa mulher e
ainda me sucede ouvir sua voz, suavezinha que
nem asa. Já disse: voz de mulher vale tanto
como a carne dela. Pelo menos, a mim me abre
os apetites mais que as visões e as tentações.
Como não ia dizendo: Maria Zeitona me apare-
ceu intacta e intacteável. Dela se soltava a
suspeita da brasa sob a cinza. Seu corpo falava
pelos olhos. E que olhos cristalindos! Casámos,
instantâneos. Eu queria sofrer a promessa
daquele fogo. Esposava para consumar aque-
las ardências que tanto enxamearam meus
sonhos. Contudo, meu mano: Maria Zeitona
era fria, calafrígida! Eu fazia amores era como
se fosse com uma defunta. O que eu com ela
praticava eram relações assexuais. E assim
ela se foi mantendo mais virgem que Maria.
Tentei, retentei, usei as técnicas da minha total
experiência. Contudo, mano: não valeu a pena.
Zeitona era lenha molhada: o fogo lhe desvalia.
Girei as tácticas,lhe ofereci valiosas surpresas.
Experimentei os namoros muito prévios. Até lhe
beijei desde a terminal dos pés. Não arrebitou
resultado. Beijo não se dá nem se recebe. A
vida é que beija, recíproca. Repito, mano: a
vida é que nos beija, dois seres se resumindo
num único infinito. Conversa afilhada? Está
certo, mano, regresso ao cujo assunto de Maria
Zeitona. No final das campanhas, lhe dei um
penúltimato: ou ela se açucarava ou eu tomaria
as medidas inconvenientes. E foi o que não se
sucedeu. Então, mano, me decidi: entregaria
Zeitona a uma prostituta. Sim, Zeitoninha faria
um estágio com uma dessas profissionais de
roça e destroca. Assim ela aprenderia a en-
rodilhar lençóis. Enfim, ela cometeria o pecado
imortal. Não demorei a escolher a adequada
mestra: seria Maria Mercante, a mais famosa
bacanaleira, mulher bastante inata nas artes de
se deitar. Escura, retintadinha, dona de delici-
osos recheios. Neste mundo há dois seres que
se apoiam no rabo para subir na vida: o javali e
Maria Mercante. Falei bem com a rabuda:
- Por favor, lhe ensine as viragens de núpcias!
- Se descanse, senhor. Corpo de mulher não
le basta ter qualidades: é preciso ter qualifi-
cações. E a qualificada prostituta pros- segiu.
Falou conversas deslocadas, quem sabe se
para aumentar o preço das lições. Zeitona
deixaria as virgindades mais arrependida que
aquela, única que concebeu sem pecado. Pois
ela conhecia era a versão do exacto: Virgem
Maria tinha, afinal, recusado a visita do Espirito
Santo. Respondera naqueles termos: ter filho
sem fazer amor? Qual o gozo? Deitar fora o
prato e ficar com o arroto? É essa a lição que vou dar a Zeitona: nada de platonismos: sexo
à primeira vista. Lhe interrompi, desviando
a conversa dos anjos para minhas materiais
aflições. Consoante pagamentos antecipados,
Maria Mercante aceitou o serviço. Eu que
ficasse repousado minha esposa sairia do
curso mais acesa que o pino do meio-dia. Que
eu me haveria tanto de despentear com ela
que até o colchão reclamaria urgentes remen-
dos. E Zeitona lá foi para um lugar desses, de
baixa seriedade. Vamos lá: um pronto-a-despir.
Passaram semanas, o curso terminado, minha
esposa regressou a casa. Vinha, de facto, mu-
dada. Seus modos eram demasiado estranhos
mas não da maneira que eu esperava. Caram-
ba, mano, até ponho vergonha nesta confissão:
Zeitoninha vinha com jeitos de homem! Ela que
era tão metida nos ombros dela agora parecia
uma manda-bátegas. Isto é, isto foi: minha Zei-
tona se inchara de masculina. E não era só no
momento dos namoros. Era sempre e em tudo.
Na voz, inclusive...
Tudo nela se emendara, mano, a pontos de
eu ter que coçar as minhas machas partes
para me confirmar. Digo mesmo: ela é que me
empurrava a deitar, acredite, ela é que me
desapertava,me ia roubando os ares. Eu ficava
para ali sem nenhuma iniciativa, executado e
mandado como se fosse rapariga iniciada. E a
coisa continua até ao presente actual. O prob-
lema, mano, é o seguinte:
54 ROMPER SILÊNCIOS: GÉNERO EM MIA COUTO
eu até gosto! Me custa admitir, tanto que
hesito em escrever. Mas a verdade é que me
agrada esta nova condição, sendo-me dada
a passiva idade, o lugar de baixo, a vergonha
e o receio. E é isto, mano. Me explique, caso
lhe chegue o entendimento. Eu não sei qual
pensamento hei-de escolher. Primeiro, ainda
me justifiquei: afinal, a verdade tem versões
que até são verdadeiras. Como, por um exem-
plo: nos amores sexuais não há macho nem
fêmea. Os dois amantes se fundem num único
e bipartido ser. Não haveria, portanto, razões
para meu rebaixamento. Está-me a seguir,
meu irmão? Mas agora, no momento que lhe
escrevo, nem mais me apetece explicação.
Quero desraciocinar. Em cada dia não espero
senão a noite, as brandas tempestades em que
eu sou Joãotónio e Joanatónia, masculina e
feminino, nos braços viris de minha esposa. Por
enquanto, mano, ainda sou Joãotónio. Me vou
despedindo, vagarinhoso, do meu verdadeiro
nome.
in Estórias Abensonhadas
COOLABORA 55
56 ROMPER SILÊNCIOS: GÉNERO EM MIA COUTO
Autor: Ana FernandesTécnica: Técnica MistaDuração: 00:01:40
Autor: Bárbara SearaTécnica: AguarelaDuração: 00:01:34
COOLABORA 57
Autor: Danilo SilvaTécnica: Técnica MistaDuração: 00:00:44
58 ROMPER SILÊNCIOS: GÉNERO EM MIA COUTO
Autor: Eduarda SilvaTécnica: Tinta da ChinaDuração: 00:00:46
Autor: Inês RamosTécnica: Técnica MistaDuração: 00:01:53
COOLABORA 59
60 ROMPER SILÊNCIOS: GÉNERO EM MIA COUTO
Autor: Mélodie DeschansTécnica: AcrílicoDuração: 00:01:11
COOLABORA 61
Autor: Paulina FonsecaTécnica: AguarelaDuração: 00:02:00
62 ROMPER SILÊNCIOS: GÉNERO EM MIA COUTO
COOLABORA 63
64 ROMPER SILÊNCIOS: GÉNERO EM MIA COUTO
uando deu conta do tempo, Maria Pedra
foi a correr para o cruzar dos caminhos,
na encosta da Chão Oco, e ali se deitou,
saia levantada à espera que algum macho a
encontrasse. Era de Dezembro, ela tinha anos
e era virgem. E assim ficou cinco dias e cinco
noites, destapada e oferecida até que um
vizinho a trouxe inanimada. Depositou o corpo
à porta de casa, ali onde a praça se enche
de luz, avistosa de todos, redonda como a
vozearia da aldeia. O que acontecera? Tinham
passado tantos, e tantos dela fizeram uso
que ela ficara ofendida, mal-procedida para a
vida inteira. Isso dizem uns. Outros juram que
ninguém ousou tocar-lhe. Que ela assim, esten-
dida e de olhos cerrados, parecia já possuída
por forças do outro mundo. E lhe escapava até,
viscosa e amarelenta, uma baba dos queixos.
Nem o mais carente e maiúsculo dos máscu-
los desejaria mulher naqueles escagalhos. Ou
ainda, segundo outros escondidos rumores, o
vizinho se tinha despenteado com ela, anoi-
trevido? Esse vizinho sempre saíra um mosca-
viva, homem com desculpas no cartório. Mas a
MIA COUTO
COOLABORA 65
mãe assegurou: ela tinha chegado virgem. Ela
mesma confirmara, espreitando-lhe as partes,
abaixo dos pêlos públicos. As marcas de dentes
que trouxe no peito eram mordidelas de bicho,
desses tão nocturnos que nunca ninguém
esteve desperto para os testemunhar. Naquelas
cinco noites ninguém em casa se mexeu, com
medo que fosse cumprimento de promessa, um
preventivo de feitiço. Pelo sim pelo enquanto, a
família ficou de olho no ventre de Maria Pedra,
alertada para o mais leve arredondar. Passar-
am-se meses e a moça mantinha-se magra,
rectilinda. Um suspiro percorreu todos. Se hou-
vesse gravidez, a desconfiança rondaria entre
todos. O culpado poderia ser qualquer um e
até irmãos e tios caberiam entre os suspeitos.
Nove meses escoaram e, todo esse tempo,
a moça não falou uma palavra que fosse. No
resto, cumpria os afazeres: casa para parente
para aguar, bosque para lenhar. E, de novo,
em cada noite, o sonhado fogo regressava à
cinza: o infinito ciclo do seu inexistir. Cumpria-
se o último dia de Setembro quando a moça
arrumou uns panos, avolumou com eles uma
trouxa e atou esse volume à cintura. Quem a
visse caminhar, no lusco-fulgir da madrugada,
diria que Maria Pedra despertara subitamente
grávida. Para onde se descaminhou? Pois se di-
rigiu, de novo, ao cruzar dos caminhos e ali se
deitou, enroscada, pteridófíta. Foram avisar a
a mãe. Que a moça sofrera de novo acesso.
- Vou lá - disse a mãe, passando um gesto
rápido frente ao espelho. Alisava o ventre que
engordara, fruto das preocupações que a filha
lhe trouxera. O que ela sofrera, naqueles nove
meses de angústia! E como se ganhasse mais
decisão, repetiu:
- Vou lá, antes que seja tarde.
- Para ela há muito que já é tarde.
Era o pai, em murmúrio, num canto da sala.
Inválido, o homem vivia entre o vazar de gar-
rafa e o desarolhar de outra garrafa. O vizinho,
solícito, sossegou-a:
- Vá, à vontade. Eu tomo conta aqui do nosso
homem.
E empurrou o assento e o assentado. O marido
bateu com ambas mãos nos braços da cadeira
de rodas. Agredia o seu próprio destino:
- Você devia era arranjar-me uma garrafa de
rodas! E voltou a apagar-se, escuro no recanto
escuro. O vizinho fez um sinal para que a dona
de casa se afastasse, rumo aos seus afazeres.
A mãe cruzou a aldeia. Primeiro, apressada.
Queria adiantar-se aos rumores, enxotar as
vergonhas. Mas à medida que ia descendo a
encosta, o seu passo foi esmorecendo. Vaga-
rosa como
sombra se chegou à filha que se conservava
enroscada sobre a rocha do entroncamento.
- Venha, minha filha. Volte a casa.
- Agora não posso - respondeu Maria Pedra.
Uma tremura na voz? A miúda chorava. Seria
dessas inventadas mágoas, dessas que ela cri-
ava apenas para se sentir existente?
- Venha, traga essas roupas, antes que a aldeia
acorde.
A mãe puxou pelos panos que nela se enrodil-
havam. A moça resistiu, as duas mulheres se
disputaram com violência, até que se envolver-
am corpo contra corpo. Houve rasgo e unha: já
sangue escorria pelas pernas da mãe. Foi quan-
do se descortinou, por entre o emaranhado das
roupas, o corpo de um menino, recém-nado. E
o choro inaugural de um novo habitante. A mãe
ficou anichando o recém-recente no ofegante
ventre. As duas deitadas, lado a lado, alonga-
ram um silêncio.
- Esse filho é seu, Maria Pedra!
- Sossegue, mãe. Eu digo que é meu.
in O Fio das Missangas
66 ROMPER SILÊNCIOS: GÉNERO EM MIA COUTO
COOLABORA 67
Autor: André MeloTécnica: PastelDuração: 00:00:48
Autor: Catarina NobreTécnica: Lapis de CorDuração: 00:00:33
68 ROMPER SILÊNCIOS: GÉNERO EM MIA COUTO
Autor: Cristisna FariasTécnica: LapisDuração: 00:01:05
Autor: Diogo CharroTécnica: Técnica MistaDuração: 00:01:01
COOLABORA 69
Autor: Edgar FernandesTécnica: Lápis de corDuração: 00:01:14
70 ROMPER SILÊNCIOS: GÉNERO EM MIA COUTO
Autor: Joel MarianoTécnica: AguarelaDuração: 00:01:20
Autor: Juliana NevesTécnica: AguarelaDuração: 00:01:04
COOLABORA 71
Autor: Manuel AbelhoTécnica: Técnica MistaDuração: 00:01:15
72 ROMPER SILÊNCIOS: GÉNERO EM MIA COUTO
Autor: So' a OliveiraTécnica: AguarelaDuração: 00:02:10
COOLABORA 73
74 ROMPER SILÊNCIOS: GÉNERO EM MIA COUTO
COOLABORA 75
76 ROMPER SILÊNCIOS: GÉNERO EM MIA COUTO
preciso que compreendam: nós não temos
competência para arrumarmos os mortos
no lugar do eterno. Os nossos defuntos
desconhecem a sua condição definitiva: deso-
bedientes, invadem-nos o quotidiano, imis-
cuem-se no território onde a vida deveria ditar
sua exclusiva lei. A mais séria consequência
desta promiscuidade é que a própria morte, as-
sim desrespeitada pelos seus inquilinos, perde
o fascínio da ausência total. A morte deixa de
ser a mais incurável e absoluta diferença entre
MIA COUTO
COOLABORA 77
os seres. Rosalinda era mulher retaguarda,
fornecida de assento. Senhora de muita polpa,
carnes aquém e além roupa. Sofria de tanto
volume que se sentava no próprio peso, super-
lativa. Já fora esbelta, dessas mulheres que
explicam o amor. Magreza sucedida em seus
tempos. Pois que, desde que enviuvou, ela
se desentreteu, esquecida de ser. Rosalinda,
agora, se cansava de tanta hora: mascava
mulala1, enrolando a saliva-laranja. As mulheres
gordas não zangam com a vida: fazem lem-
brar os bois que nunca esperam tragédias. No
desfolhar das tardes, ela se aprovava em triste
rotina. Visitava o cemitério. E isso fazia muito
diariamente. A campa do falecido marido, o
Jacinto, ficava bem no fundo do cemitério. Con-
dizia com o lugar que ele sempre tivera, nas
traseiras da vida. De passo miúdo, Rosalinda
rumava entre as moradias subtérreas, vacilando
como se magoasse em sua própria sombra. Já
no lugar, ela em si se joelhava, vencendo as
pernas. E ali se deixava, na companhia sozinha
do defunto. Assim se foram prostrando as
datas, anos suados, anos somados. Rosalinda
se antepassava, tantos eram os parentes já
enroscados no grande sono. Só ela restava, em
seus retroactivos pensamentos. Junto à campa,
ela se memoriava:
- Jacinto, grande sacana.
Com gesto terno, ela alisava a areia, afagando
lembranças. Deus lhe punisse, Deus adoecesse.
Mas quem explicava aquela saudade do sofri-
mento, o doce sabor de amargas lembranças?
- Tu me amarraste a vida, me forneceste de
porrada. Ela estava de razão: o Jacinto só
jurara fidelidade às garrafas. Se é que par-
tira, sua alma devia ter viajado em forma de
garrafa. Para mais, ele nos amores se mul-
tiplicara, retribuindo-se às tantas mulheres.
Quando chegava a casa, noite imprópria, já
seus lábios estavam cegos. A esta hora, dizia
ele, só sei ler nos copos. Falava assim só para
lhe magoar. Porque ele se matriculara na escola
nocturna, cumprindo promessa de mudar de
vida. Frequentou as aulas mas só por poucas
noites. Rosalindinha: estou-te a explicar-me. A
vida não vale as penas. Não sou um homem de
1 Mulala - raiz de planta usada para limpeza dos dentes e que tinge de laranja os lábios e gengivas dos que dela se servem habitualmente.
escola, as letras me cansam de mais. Eu sou
um fruto, Rosalinda. Um fruto, mesma coisa o
caju. Alguém ensina um fruto a ficar maduro?
Responde, Rosalinda. Alguém explica alguma
coisa ao caju? Ninguém. Ele só recebe lições da
terra. Então, um homem só tem que ficar bem
em cima do chão, beneficiar das completas
raízes. Não é como esses que deixam a terra,
vão para o estrangeiro, acabam por nem sentir
o chão que pisam. Esses são lenha seca: um
pedacito de fogo e ardem logo. Rosalinda já
sabia. Aquela era conversa prévia dos murros,
prefácio de porrada. Mal que surgisse o fundo
da garrafa, as palavras davam lugar à pontape-
saria. Depois, ele saía, farto de ser marido,
cansado de ser gente. Jacinto, enfim, só dava
despesa no coração da doce Rosalinda. Mesmo
no leito da morte, os olhos dele, recém-
falecidos, teimavam em espreitar o mundo. Já
nada viam. O silêncio governava a sala, nem
palavra ousava mover-se. Mas quando alguém
se aprontou a descer as pálpebras do defunto
uma voz se ordenou:
- Não lhe fechem os olhos!
Um espanto arrepiou-os todos. Rosalinda de-
sceu o rosto, evitando o sujo da vergonha.
- Esse homem ainda está à espera de alguém.
E foi assim que Jacinto se abismou, de vista
aberta, atento aos encontros do porvir. Mesmo
sabendo da eterna infidelidade, Rosalinda lhe
destinou a mais perfumosa roupa. De igual
como fizera em vida, ajeitando-lhe as aparên-
cias, antes dele sair:
- Você vai ter com as mulheres, assim escan-
galhado?
Deixa que eu lhe arrumo bonito.
A boca é o esconderijo do coração? No caso,
até nem. Ela encarecia o marido com sincera
vontade. As outras não pensassem que ela
não cumpria cuidados de esposa. Que no gozo
de Jacinto elas respeitassem a mão de sua
vaidosa obra. Agora, na interruptura da vida
dele, Rosalinda tudo lembrava com benevalen-
tia. Com a trespassagem, ela tudo lhe perdoou:
mulheres, copos, compridas ausências. A
bondade lhe surgira logo na primeira reza, na
berma do túmulo. Enquanto orava, sua alma
amolecia. Depois dos amens, ela se descobriu
apaixonada, por estreia na esteira da vida.
78 ROMPER SILÊNCIOS: GÉNERO EM MIA COUTO
Afinal, o Jacinto, meu Jacinto.
- Amor certo é mais que único.
Morto sem cura, amor sem remédio. Afinal,
quanto a viuvez tem de orfandade? Quanto se
despe a existência, deixando a pessoa de umbi-
go na mão? Os outros admiravam-se da gorda
Rosalinda. Então só depois do homem falecer é
que ela lhe coroara em trono do seu coração?
Sim. Também só agora ela dispunha totalmente
de Jacinto, só agora ele lhe pertencia inteiro,
exclusivo. Afinal, aqueles olhos que ele levara
escancarados estavam destinados só para ela.
Só para mim, se indemnizava Rosalinda. Ele
nunca mais se repartiria por colo alheio. Jacinto
estava garantido em imaginoso juramento. Só
um retrato podia ser assim tão fiel. O triste
consolo nela se confirmava: a morte de Jacinto
não era mais que o matrimónio que sempre
cismara. As outras, rivais, se esvoaram, gajas e
momentâneas. De repente, elas não eram mais
que um sopro de lábios esquecidos. Mulher
perversa não se preserva Rosalinda, agora,
concebia: a vida que juntos despenderam foi
um simples noivado, coisa de inacabado juízo.
E aceitava, sem mágoa, a lembrança de suas
velhas injúrias:
- Teu nome, Rosalinda, são duas mentiras.
Afinal, nem rosa, nem linda. Ela, em sorriso,
comemorava. Suspirava em maré de alma,
vaziando-se. No tardio presente, ela toda se
dedicava a Jacinto, em subterrâneo namoro. A
gorda se derramava como sumo de fruto tom-
bado. Já não joelhava. Isso é gesto viúvo. Que
ela agora se bonitava, lustrando seu recente
matrimónio. Mas foi um dia. Rosalinda comp-
rava flores quando viu chegar uma moça bela e
ligeirenta. A estranha se abeirou da campa de
Jacinto e ali se prostrou, em mostrada tristeza.
Rosalinda estranhou-se. Seus olhos se moeram,
a menos ver que adivinhar. Aquela era uma
jovem muito concreta, suprametida. Via-se que
nunca usara capulana2, sempre dispensara
mulalas.3
- Essa deve ser Dorinha, a outra última dele.
A viúva chegou-se mais perto mas sem se fazer
ver. Não pisava fora das pegadas. Parou em
2 É o nome que se dá, em Moçambique, a um pano que, tradicionalmente, é usado pelas mulheres para cingir o corpo,fazendo as vezes de saia, podendo ainda cobrir o tronco e a cabeça. 3 Arbusto cuja raiz é usada para limpar os dentes e avermelhar os lábios.
campa vizinha, ficou espreitando, emboscada
em seus próprios olhos. A outra exibia um
punhado de lágrimas, pouco peso de saudade.
Rosalinda amaldiçoou a lacrimaruja.
- E você, Jacinto, aí em baixo do chão, aposto
que está a rir. Bem gozaste em vida, fidamãe:
agora, acabou-se as brincadeiras.
Rosalinda se decidiu, pronta e toda. Dirigiu-se
ao serviço funerário e solicitou que mudassem
o lugar do caixão, trocassem o "aqui jaz".
- A senhora pretende transladar os restos
mortais?
E, logo, o funcionário lhe mostrou os longos
papéis que a superavam. A viúva insistiu: era só
uma mudançazita, uns metritos. O empregado
explicou, havia as competências, os deferimen-
tos.
A viúva desistiu. Mas apenas se fingiu vencida.
Pois ela se enchera de um novo pensamento.
Voltou à noitinha, trazendo Salomão, o sobrin-
ho. Às vistas da intenção, o miúdo se assustou:- Mas, tia, é para fazer o quê? Desenterrar o
titio Jacinto?
Não, sossegou ela. Era só para trocarem as
inscrições dos vizinhos túmulos. Mesmo assim,
Salomão tremia mais que a luzinha do xipefo4.
A viúva tomou dianteira, covando ela própria:
- Eu sempre disse: lume pedido nunca acende.
Jacinto, translapidado, devia de se admirar
daquelas andanças. Agora, só eu sei qual é
sua verdadeira tabuleta, malandro. Rosalinda
sacudiu as mortais poeiras, se administrou o
devido perdão. Que esse gesto de aldrabar a
intrusa lhe fosse minimizado por Deus. A outra
paraviúva, que dedicasse seus ranhos ao vizin-
ho, o de morte anexa. Porque aqueles olhos de
Jacinto, aqueles olhos que a terra se abstinha
de comer, só a ela, Rosa e Linda, estavam
destinados. Aconteceu como ela previra. No dia
seguinte, a intrusa compareceu e entregou seu
sentimento à campa errada. Rosalinda nutria-se
de risos, enquanto espiava o equívoco. Ela se
benzia, mais para si que para Deus:
- Em vida me enganaram. Agora, é o meu troco.
Rosalinda, a esposa póstuma, se vingava. E
foi por tempos, o ajuste. Então, um dia, ela
pensou: antes, eu sempre desconsegui. Sempre
fui nada. Mas agora eu sinto meus poderes.
4 Lamparina.
COOLABORA 79
Rosalinda se enchia de crença, ela mexia para
além da morte, lá onde já não havia destino
nenhum. E, assim, ela acreditava entender um
juízo sem dimensão. Pelas ruinhas do cemitério,
Rosalinda saltava sonoras risadas.
- Vamos Jacinto, vamos beber xicadjú5.
Entornava aguardente num invisível copo,
servia-se de ocultas carícias. Às tantas, brigava:- Deixa os livros, marido. Agora é que quer
estudar?
E empurrava ninguém. Seus risos, inacredita-
dos, ainda uns tempos estremeceram os mu-
dos cantos do cemitério. Mas depois, os out-
ros, cumpridores de seriedades, temeram suas
desordens. A viúva desconhecia os métodos
da tristeza, suas gargalhadas incomodavam o
sagrado repouso das almas. E levaram a gorda
mulher, aquela que foi viúva antes de ter sido
esposa. Levaram-lhe para um lugar sombrio
onde ela se converteu em ausência. Rosalinda,
por fim, se promoveu a nenhuma.
In Cada Homem é uma Raça
5 Aguardente de caju.
80 ROMPER SILÊNCIOS: GÉNERO EM MIA COUTO
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Autor: Florian OliveiraTécnica: Tinta da ChinaDuração: 00:01:11
Autor: Joel GonçalvesTécnica: Lápis de CorDuração: 00:02:15
82 ROMPER SILÊNCIOS: GÉNERO EM MIA COUTO
COOLABORA 83
Autor: Elói SilvaTécnica: AguarelaDuração: 00:02:00
84 ROMPER SILÊNCIOS: GÉNERO EM MIA COUTO
Autor: Sérgio VieiraTécnica: Lápis Tempo: 00:00:44
Autor: So' a Biserinska Técnica: Lápis de corTempo: 00:02:00
COOLABORA 85
Autor: Pedro AlvesTécnica: Lápis de corDuração: 00:11:10
86 ROMPER SILÊNCIOS: GÉNERO EM MIA COUTO
Autor: Leonor BrancoTécnica: Técnica MistaTempo: 00:01:43
COOLABORA 87
88 ROMPER SILÊNCIOS: GÉNERO EM MIA COUTO
COOLABORA 89
MIA COUTO, "Joãotónio, no enquanto", in Estórias Abensonhadas, Caminho
(Outras Margens), Lisboa, 2011, pp. 135-141, conto de 1994
MIA COUTO, "Afinal, Carlota Gentina não chegou de voar?", in Vozes
Anoitecidas, Caminho (Uma terra sem amos). Lisboa, 2002, pp. 83-95, conto de
1987
MIA COUTO, "O baralho erótico", in Contos do Nascer da Terra, Caminho (Outras
margens), Lisboa, 2006, pp. 125-130, conto de 1997
MIA COUTO, "Rosalinda, a nenhuma", in Cada Homem é uma Raça, Caminho
(Outras margens, Lisboa, 2002, pp. 47-57, conto de 1990
MIA COUTO, "Maria Pedra no cruzar dos caminhos", in O Fio das Missangas,
Caminho (Outras margens),Lisboa, 2004, pp. 87-90, conto de 2004
90 ROMPER SILÊNCIOS: GÉNERO EM MIA COUTO
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92 ROMPER SILÊNCIOS: GÉNERO EM MIA COUTO