valer cultural n2
DESCRIPTION
Revista de Cultura da Editora ValerTRANSCRIPT
cultural
Em 1890, o caixeiro-viajante português José Francisco Monteiro fundou Humaitá (AM), cuja história se destacou entre as demais cidades da Amazônia, em especial pela construção de uma biblioteca no conjunto de prédios reservados à prefeitura,
à câmara, à igreja e à delegacia de polícia. O acesso à leitura ajudou a formar gerações seguidas de profissionais liberais, políticos e intelectuais. 14-23
uma biblioteca na floresta
Entrevistas | Reportagens | Livros | Cinema | Gastronomia | Fotografia | Música | Artes plásticas
Oriente Médio alémda visão ocidental24-31
Drummond, o poeta sempre necessário62-69
Tite arma time com escritores50-53
Ano I n.º 2
agosto/2012
R$ 9,90
www.valercultural.com.br
cultural
Diretor ExecutivoIsaac Maciel
Conselho EditorialMárcio SouzaRenan Freitas PintoIvânia VieiraTenório Telles
Diretor de redaçãoWilson Nogueira MTB/AM 365
Editora executiva Suelen ReisMTB/AM 235
Assistente de Edição Maria do Rosário R. NogueiraMTB/AM 148
INVCInstituto Nacional Valer de Cultura
Av. Joaquim Nabuco, 1.605 – CentroCEP 69020-03
Manaus-AMTel. 92.3234-9830
www.valercultural.com.br
editorial
Havia alguns anos que persistíamos no propósito de concretizar
este projeto. Não seriam as dificuldades que, por sinal não ces-
saram, a adiá-lo constantemente. Pesou, sobremaneira, a neces-
sidade de amadurecimento da primeira ideia. Valeu esperar. Os
dias longos de inquietação geraram acúmulo de experiência e aprimoramento
para realização de uma REVISTA que almeja se consolidar no mercado por
meio da qualidade editorial e gráfica. Unem-se, nas suas páginas, jornalismo
de profundidade, ético e coerente, e design arrojado e arejado. Trata-se de
publicação feita em Manaus, porém ousada na proposta de ter o mundo como
conteúdo. Jornalistas, colaboradores das mais diversas áreas do conhecimento,
designers e artistas gráficos estão imbuídos de um só propósito: traduzir a
realidade que se apresenta ou que se esconde na mídia ligeira do cotidiano.
A cultura, na sua mais ampla compreensão humana, é a pauta permanente
desta VALER CULTURAL. Assim, deita-se em perspectiva o desafio da imersão
na sociodiversidade e na biodiversidade como fenômenos culturais, cuja di-
mensão extrapola o entendimento ortodoxo da separação entre o local e o
global. Sabe-se hoje, mais do que ontem, que o mundo sobrevive em ecos-
sistemas – entre os quais o da comunicação – interdependentes. Uma solução
local, por exemplo, pode ser uma solução global. Não há fronteira que trave
a convivência humana em larga escala, ainda que sujeita a controvérsias.
Esta publicação quer contribuir com o aprimoramento da convivência humana
por meio do estímulo ao conhecimento. Os que se perfilam nesse propósito
certamente se sentirão satisfeitos em ler a VALER CULTURAL.
Isaac Maciel Diretor executivo
Design e Direção de Arte Heitor Costa
Ilustração da capa Bruno Raphael
Revisão Núcleo de Editoração Valer
Assinatura e publicidadeDarliane Michele – [email protected]
Colaboradores desta edição:Ana Cláudia Leocádio, Daniela de Tofol, Marcos Frederico Krüger, Ivânia Vieira, Leandro Curi, Liège Albuquerque, Márcia Costa Rosa, Marcus Stoyanovith, Maurília Gomes, Michelle Portela,Neiza Teixeira e Tenório Telles.
Viagem aos sertões de bárbaros
Oriente a céu aberto
Tite, o conselheiro literário
6 24
50
cultural
14 Uma biblioteca no meio da selva32 Boi-bumbá espetacular38 Editais no centro do debate58 A antiepopeia dos Muras
Temaki, um prato multicultural
70
74 Quando as àguas [sobem]78 UEA afina Sinfônica82 Agenda cheia de eventos literários84 Reflexões sobre a arte de Maria Bonomi
Do romance às telas
O anjo cético e o sentimento do mundo
42
62
Legítimo dizer do caboclo
54
entrevista | Auxiliomar Ugarte
Viagem aossertões de bárbaros
Autor de Sertões de bárbaros, Auxiliomar
Ugarte revelou, em entrevista à VALER
CULTURAL, que decidiu pesquisar os cronis-
tas ibéricos dos séculos 16 e 17 para pôr
mais luz na história da Amazônia desse período. A obra,
de 601 páginas, tem origem na tese de Doutorado em
História Social da Universidade de São Paulo (USP) de-
fendida em 2004. “O livro permanece fiel à maior parte
dos dados e argumentos da tese”, explica Ugarte. O
autor disse que, desde a graduação, esteve instigado
por uma afirmação do professor e historiador José Riba-
mar Bessa Freire: a de que os cronistas ibéricos retrata-
ram uma Amazônia referenciada nos valores europeus
e, por isso, não poderiam compreendê-la. Com rigor e
cuidado, Ugarte mergulha, criticamente, no estudo das
versões dos cronistas para fazer emergir novas possi-
bilidades de se compreender as amazônias do passa-
do e do presente. Para ele, o melhor entendimento da
história, cujo desdobramento se prolonga no tempo e
espaço, poderia reduzir o desconhecimento que se tem
da Amazônia na própria região, no Brasil e no exterior.
Mas, ainda segundo Ugarte, a produção bibliográfica
não alcança a dimensão do esclarecimento. “E o pior:
o nosso próprio sistema de ensino não tem minorado
essa ignorância”. Confira trechos da entrevista a Wilson
Nogueira, Neiza Teixeira e Suelen Reis:
Foto
s: H
eito
r Co
sta
6 valercultural
7valercultural
Wilson Nogueira – Como o senhor
aplica o conceito de bárbaro no seu
livro, já que há também referência
a novos bárbaros? Se existem os
novos bárbaros, é porque existiram
bárbaros anteriores. Gostaria que o
senhor explicasse as visões a respei-
to desse conceito e das barbáries.
Auxiliomar Ugarte – Sim, antes
de tudo, o termo/conceito bárbaro
nasce no ambiente helênico, passa
pelo mundo romano e finalmente é
adotado pelo cristianismo. Do não
falante, do grego inicialmente. De-
pois do não falante do grego e do
latim. Com o cristianismo veio uma
nova conotação: a de povos que não
adotavam o próprio cristianismo. E
essa noção atravessou os séculos
medievais e ganhou uma nova for-
ça com a expansão dos europeus
sobre as outras partes do mundo. E
foi um termo bastante utilizado não
apenas por esses cronistas [estuda-
dos em Sertões de bárbaros] que
trabalhei, mas por todos aqueles
que entraram em contato com po-
vos diferentes. Na época não existia
o conceito de barbárie, que nasceu
no século 19 e que até hoje está em
vigência. Derivado de bárbaro em
latim veio de barbarismo, ou seja,
aquele que tinha um modo de vida
incivil, não policiado de acordo com
as normas da herança greco-roma-
na e judaico-cristã. Mesmo os islâ-
micos mais civilizados eram bárba-
ros, na ótica do cristianismo. Tanto é
que eles recebiam até um termo a
mais: o de infiéis. Interessante que
– só para reforçar o que eu estou
falando – num trecho da dedicató-
ria que o historiador Francisco Lopes
de Roma fez ao Imperador Carlos
V, ele disse o seguinte: “Terminada
a conquista dos mouros, começou
a conquista dos índios. Para que
sempre os espanhóis combatessem
os infiéis”. Essa expressão guarda
muita relação com o que aconteceu
também na Amazônia como em
outras regiões do continente ame-
ricano. Os nossos cronistas também
partilhavam a ideia da conquista
espiritual.
WN – Para fecharmos as visões
desse conceito, qual é o desdobra-
mento da ideia de barbárie para a
Amazônia contemporânea?
AU – Bem, como eu disse, o concei-
to de barbárie nasceu no século 19,
mas ele recebeu contribuições dife-
rentes também ao longo do próprio
século 20. Hoje nós podemos dizer
que existe uma barbárie dentro da
própria civilização, que é própria
da civilização. Quando nos repor-
tamos à devastação da floresta, à
poluição dos nossos rios e a outras
tantas formas de degradação do ser
humano e do ambiente, aplicamos
esse termo sem muito pensar nas
suas origens, porque é o que está
dentro da nossa civilização atual.
Diz respeito à barbárie promovida
pela própria civilização que mas-
sacra minorias, como os povos in-
dígenas. Hoje há toda uma política
em discurso oficial de aceitação, de
incorporação de alguns elementos
dos próprios valores dos antes vis-
tos como bárbaros. Esse discurso
enfoca os índios como os ecologica-
mente corretos. Aconteceu a idiliza-
ção. É uma nova idilização dos po-
vos indígenas. Assim como ocorreu
lá no próprio século 16, com padre
Las Casas, Montaigne etc.
Neiza Teixeira – O senhor acre-
dita então que, no caso da Ama-
zônia, estamos vivendo o retorno
a Rosseau, com a teoria do bom
selvagem?
AU – Sim, sim. Sem se falar nesses
nomes. Mas acontece, sim, uma idi-
lização dos povos indígenas – nem
vou mais falar de povos, porque
hoje estão novas formações socio-
culturais. Nesse discurso não se leva
em conta uma série de problemas
que ocorrem com esses grupos.
“ Os índios da Amazônia faziam parte desse mundo do barbarismo, das idilidades, e eles eram novos bárbaros”
WN – Daí então a ideia de novos
bárbaros?
AU – Justamente. Os índios da Ama-
zônia faziam parte desse mundo do
barbarismo, das idilidades, e eles
eram novos bárbaros diante desse
conhecimento que ia se travando
aos poucos. Agora, por que Sertões
de bárbaros? O título do livro nas-
ceu de uma expressão do cronista
Maurício de Heriarte. Sertão é um
termo lusitano para terra íngreme,
para terra afastada do litoral, ou
seja, terra não percorrida por civi-
lizados. Então ele diz o seguinte:
“Nestes sertões povoados de bár-
baros”. Daí nasceu o título da obra;
em resumo, o que seria o mundo
natural amazônico, e o que seriam
os habitantes dos antigos dessa re-
gião aos olhos destes conquistado-
res-cronistas.
8 valercultural
NT – Vimos nos cronistas, na própria
carta de Caminha, quando há uma
reminiscência de um Éden. É a mes-
ma perspectiva dos viajantes que
buscavam esse paraíso perdido que
se deslocava por lugares distintos, no
século 16. Havia, nesse caso, a teoria
que esse paraíso estaria situado na
América...
AU – Veja só: a visão paradisíaca
de alguns sábios europeus é uma
coisa. Nem sempre aqueles que
estiveram numa região tiveram
essa perspectiva. Se Carvajal pro-
jetou colher trigo em determinada
área da Amazônia, isso não signi-
fica uma perspectiva paradisíaca.
É um utilitarismo, não é? Eu digo
claramente que, de forma explícita,
quem [replica] essa imagem para-
disíaca da Amazônia e um cronis-
ta que nunca esteve aqui, o padre
Alonso de Rojas.
Suelen Reis – Mas então a visão
dos cronistas foi mais infernal?
AU – Não. Ela, digamos, é uma visão
paradisíaca e infernal. Ela se equi-
libra. Por quê? Parte da vivência.
Se num momento ele experimenta
uma coisa ruim, como uma praga
de mosquitos, num outro momento
ele tem um descanso para os olhos,
um conforto. Se ele enxerga um car-
valhal em um ambiente que nunca
existiu carvalho, é porque aquela
formação florestal deu a ele um
alento, inclusive até de esperança.
WN – Dá a ele a ideia de que não
estava num mundo não tão diferen-
te do que imaginava...
AU – Não. Estava tão diferente, mas,
na similitude, ele achou um confor-
to naquilo. Num ambiente de hos-
tilidade etc, uma simples árvore,
um conjunto de árvores trouxe-lhe
alento, trouxe-lhe conforto.
NT – Essa questão do paraíso, da
procura do paraíso perdido me
chama muito atenção. Sempre ou-
vimos falar que o objetivo do Co-
lombo tornou-se mais utilitarista.
Todavia, quando lemos seus diários,
vimos ali que, na verdade, o nave-
gador buscava de fato o paraíso.
Vimos que a busca do ouro, aquela
ansiedade por encontrar o ouro, na
verdade foi um argumento que ele
utilizou para manter a paciência, o
incentivo e o investimento dos reis
de Espanha.
AU – Também. É uma dimensão.
Mas não podemos reduzir, digamos
assim, partindo de Colombo. Não
podemos reduzir o comportamento
e a visão desses navegadores e con-
quistadores, posteriormente, a um
9valercultural
aspecto unicamente. Não. Colombo
queria ouro para financiar uma nova
cruzada. Uma ideia que os reis ca-
tólicos haviam abandonado há um
bom tempo. Ele queria reconquistar
Jerusalém. Veja só! Então o ouro
que se busca não é o ouro para ele
enriquecer pessoalmente. Ele que-
ria o ouro para enriquecer, mas não
era só isso. E o paraíso, essa ideia
do paraíso, nasce de uma expecta-
tiva que vai ocorrendo na medida
em que ele percorre aquelas ilhas.
Colombo só tocou o continente, de
fato, na última viagem, quase se
perdeu lá na boca do Orenoco. E é
claro que a conquista não se deu as-
sim, a passos rápidos como se quei-
ra imaginar num esquema. Tudo foi
muito lento, muito trabalhoso. Ago-
ra, alimentado por essa visão do
enriquecimento, da honra – isso era
um comportamento ibérico – e algo
que hoje nos parece até hipócrita,
que era buscar a glória da igreja, a
glória de Deus. Levar a palavra de
Deus a esses povos incultos.
WN – Só para pegar essa carona da
conquista num processo lento. No
livro, o senhor se refere ao tempo
da conquista dos impérios astecas
(México) e incas (Andes) como re-
lativamente curto em relação ao
despendido na Amazônia. Por quê
da Amazônia demorou tanto?
AU – O desconhecimento. Até 1513,
não se sabia do alargamento da
América do Sul. Por quê? Vasco
Núñez de Balboa atravessou o que é
hoje o Panamá em seis dias. Então,
ninguém imaginava que, no Sul do
Panamá, a América do Sul fazia isso
[o autor usa os braços para indicar
a abertura, alargamento]. Não se
sabia de fato as dimensões geográ-
ficas da América do Sul. Outra coisa:
a Confederação Asteca foi derrotada,
no que é hoje o México, porque lá
havia unidades políticas e culturais,
guardadas as proporções, muito pró-
ximas ao nível político europeu, das
centralizações, dos grandes senho-
rios; e as alianças levaram a vitória
não apenas dos espanhóis sobre a
Confederação Asteca. Mas levaram
a vitória de quem? Dos povos aste-
cas totonacas, que se tornaram tão
senhores da nova Espanha quanto
os espanhóis. Ou seja, uma nova eli-
te indígena emergiu com a conquis-
ta da Confederação Asteca.
NT – Algo que foi tentado no Brasil,
mas que não deu certo.
AU – Não deu certo em razão das diferenças fantásticas. Como acon-
teceu com muitas linhagens in-
caicas que estavam excluídas do
poder e que, com a chegada dos
espanhóis, emergiram. Então, não
devemos ver única e exclusivamen-
te uma conquista europeia. Um rol
de alianças, interesses, levou esses
povos – ou linhagens ou grupos – a
se aliarem a esses invasores, por-
que sem essa aliança seria impos-
sível um punhadinho de europeus
conquistar um império.
WN – Voltando aos cronistas da
Amazônia. O padre João Daniel su-
gere que compreendia a Amazônia
de modo mais próximo do que ela
seria realmente. Ele chega a reco-
mendar aos europeus, por exem-
plo, que suas roupas não seriam
necessárias na Amazônia em razão
do clima.
AU – Agora, por que ele se expres-
sou desse jeito? A vivência, a expe-
riência. Ele viveu aqui muito tempo.
Tanto é que ele fala de pragas. Ele
não idealiza essa Amazônia. Ele fala
das potencialidades, mas ele não
diz que é paraíso, de modo algum.
WN – Diferentemente de quem es-
teve só de passagem.
AU – E outra: é uma perspectiva de
memória. O homem do porte dele,
um intelectual, numa prisão, se
lembrando do que ele passou aqui.
Aquele gigantesco escrito hoje, pu-
blicado em dois volumes, nasceu
10 valercultural
na prisão. Falar que João Daniel
já tinha projeto para a Amazônia,
isso é bobagem. O projeto era do
governo português, que faliu. Ele
tinha ideias, sugestões a dar, caso
alguém desse os ouvidos a ele.
Então, João Daniel é este homem
que parte da experiência, sem es-
quecer o quadro conceitual, que é o
lógico filosófico e filológico, suporte
necessário para pensar a realidade
na qual viveu. Quando ele diz que,
para impor respeito aos indígenas,
havia necessidade de surrá-los, é si-
nal de que essa era a vivência dos
jesuítas nos aldeamentos. Quando
ele diz assim: “Pai, quando os índios
estiverem bebendo, não se meta,
porque você corre o risco de morte”.
Agora, tudo o que ele escreveu só
fomos conhecer no século 19, por-
que o escrito dele permaneceu letra
morta durante muito tempo.
NT – Esse comportamento europeu
não era singular. A Europa também
agia assim. A surra, o castigo fazia
parte da vivência deles, da educa-
ção europeia.
AU – Agora, aqui era mais acentua-
do porque não havia pecado.
NT – Na Europa, se tens uma boa
formação, conheces os filmes Aguir-
re, a cólera dos deuses, e Fitzcar-
raldo, com Klaus Kinski. Aliás, Klaus
Kinski ficou famoso em razão desses
filmes. O que o senhor pensa dessa
forma de difusão da Amazônia, por-
que nesses filmes mostra-se o pro-
cesso de construção ou de invenção
da Amazônia para o europeu. Todo
o europeu bem informado conhece
esses filmes.
AU – Vou falar mais do primeiro,
porque o segundo não assisti. Mas
o outro já assisti muitas vezes, já fiz
análises. Numa perspectiva cinema-
tográfica mesmo, é fantástico; é um
filme surreal. Agora, se ele preten-
de traduzir uma realidade histórica,
porque é um filme lento, tem um
grau de sisudez forte, passa ideias
equivocadíssimas sobre a Amazô-
nia. Primeiro, mistura personagens
de diferentes momentos que nunca
tiveram contato. Mistura situações
que nunca ocorreram aqui na re-
gião, pelo que sabemos. Por exem-
plo, se vocês bem prestarem aten-
ção no filme, o rio Amazonas co-
meça barrento e termina num lago
de águas pretas. A última parte do
filme (Aguirre, a cólera dos deuses)
mostra Lope de Aguirre sozinho,
com aquela macacada toda, num
rio de água preta ou num lago de
água preta. Onde é que o rio Ama-
zonas tem um lago de água preta,
se é um rio corrente? Se vocês bem
prestarem atenção, as balsas em
que eles (os personagens do filme)
estão descendo está cheia de coco.
Se vocês bem prestarem atenção,
lá o personagem Fernando de Guz-
man levanta chupando um cítrico,
que não é laranja, mas parece uma
cidra qualquer. Então são aspectos
da fotografia do filme que pecam
e passam uma ideia errada para
quem não conhece essa realidade.
Coloca lá o Frei Gaspar de Carvajal
numa expedição na qual ele nunca
esteve. Coloca o Pizarro. Nessa épo-
ca, o Pizarro já estava morto.
WN – De outro lado, o que ficou co-
nhecido, no geral, são versões de
mão única porque a comunicação
“ Vejo que a realidade amazônica é ampla, hipercomplexa (...). A produção bibliográfica não alcança a dimensão de esclarecer”
11valercultural
entre o conquistador/invasor e os
autóctones era praticamente impos-
sível, no primeiro momento.
AU – Na Península de Yucatan, Frei
Diego Duran mostrou que não ha-
via essa comunicação. Os índios não
entendiam o que os espanhóis fala-
vam e eles da mesma forma. Os ín-
dios apontavam lugares, mas como
compreender? Na realidade houve
monólogos e não diálogos. Eles não
se compreendiam.
NT – Fica aquela imagem do índio
apontando para o colar de ouro de
Cabral e eles interpretando que,
para aquele lado, existia ouro.
WN – O que fica desse contato, que
dura até agora, para a reflexão con-
temporânea. Qual a compreensão
da Amazônia hoje? Compreensão
de passado, presente e futuro...
AU – Vejo que a realidade amazôni-
ca é ampla, hipercomplexa (não é só
no Brasil, é preciso acabar com essa
ideia). Vejo que continua uma igno-
rância sobre a nossa região não só
pelas pessoas de fora, mas também
interna. A produção bibliográfica não
alcança a dimensão de esclarecer. E
pior: o nosso sistema de ensino não
tem minorado essa ignorância. Vou
dar exemplos concretos: Quantos de
nossos jovens conhecem Iranduba,
Manacapuru, Rio Preto da Eva, Presi-
dente Figueiredo? Muitos conhecem
Parintins, a festa do boi-bumbá. Mas
nem sequer prestam atenção no rio
que os leva até lá (se é que eles vão
de barco). É uma ignorância gigan-
tesca, tão grande como a própria
Amazônia.
“ Na realidade houve monólogos e não diálogos. Índios e espanhóis não se compreendiam”
12 valercultural
continua dominante. O Brasil se re-
duz ao Centro-Sul. Há essa coloni-
zação interna. Foi minorado com a
regionalização, mas hoje tem uma
pressão para esse conhecimento
vindo do Centro-Sul. Outro proble-
ma seríssimo foi a retirada da dis-
ciplina Fundamentos da História do
Amazonas da grade curricular. Nós,
os historiadores – só para citar, além
de mim, a professora Etelvina Braga,
entre outros – conclamamos pela
volta da disciplina, mas esse apelo
não foi atendido em nome de um
conhecimento do Brasil, que é a his-
tória do Centro–Sul e, quando muito,
do Nordeste açucareiro. A Amazônia
é centro de preocupação, mais nun-
ca é centro de decisão. Quem ocupa
o poder de fato? Não posso dizer
que o Alfredo Nascimento [Senador
do PR-AM e ex-ministro dos Trans-
portes] foi uma representatividade.
Ele não representou nada, não fez
nada para a região. Outro problema
é que, apesar de toda a veiculação,
temos uma mídia que não trata da
ciência. Biólogos, historiadores, filó-
sofos são vistos como pessoas de
outro mundo...
WN – A História tem hoje estudos
arqueológicos que estão se aprimo-
rando. Qual a contribuição para a
História? Estão se fazendo revisões?
AU – A Arqueologia tem feito des-
cobertas, tem conhecimento amplo
do período anterior à descoberta.
Nomes como Eduardo Neves e He-
lena Lima estão se destacando. E a
História recebe de bom grado esta
contribuição das outras ciências.
Por exemplo, para fazer esse livro,
aprendi muita coisa sobre mosqui-
tos, de botânica, zoologia. Tudo isso
para compreender as representa-
ções dos cronistas. Por que eles cha-
mavam de pavão o mutum? Qual
era a semelhança? A história, com
sua problemática, filtra os conheci-
mentos e dá sua visão.
NT – Então, o senhor não reconhe-
ce trabalhos significativos sobre a
Amazônia?
AU – Com certeza, reconheço. As
produções científicas e literárias são
grandes, mas não alcançam um pú-
blico leitor.
NT – Mas isso não está ligado ao
planejamento que começa lá atrás
(relação com o Velho Mundo). Já
está na história do Brasil.
AU – O ensino não se reduz ao en-
sino universitário. O nosso ensino é
falho. Para piorar, ainda tem a im-
posição do Enem. Todas as questões
são elaboradas pelo Centro-Sul que
13valercultural
capa
Uma biblioteca no meio da selva
14 valercultural
A frenética corrida pelo látex das serin-
gueiras da floresta do Amazonas, entre
1890 e 1912, gerou suor, sangue, lágri-
mas e fortunas. Antes habitada por indí-
genas, a selva sentiu o ritmo de ocupação do seu solo
por homens brancos. A cada espaço dominado de terra
e água, consolidava-se a cultura colonizadora e explo-
ratória em detrimento da cultura ecologizada e socia-
lizada. E, como por ironia da história, já no período de
catequese dos sobreviventes, ergue-se um templo que
Uma biblioteca no meio da selva
Em 1890, um caixeiro-viajante português construiu um templo de
livros no lugarejo que deu origem a Humaitá, de onde saíram quatro
governadores, profissionais e intelectuais
Marcus Stoyanovith | jornalista enviado a Humaitá
Humaitá
15valercultural
guardaria essa e outras histórias
mil, ou mesmo qualquer uma que
suas estantes pudessem alcançar:
uma biblioteca. Esse fato aconteceu
na Vila das Freguesias de Humaitá,
onde, anos depois, a própria biblio-
teca seria uma sobrevivente.
A ideia para a construção da
biblioteca, o templo do saber e
do conhecimento, como definiam
os mais ilustres moradores da an-
tiga vila, não surgiu da mente de
nenhum intelectual ou aristocrata.
O empreendimento ergueu-se da
vontade de um ex-caixeiro-viajan-
te, semialfabetizado, que depois
de chegar ao Brasil, ainda menino,
sem eira nem beira, se transformou
num rico comerciante. Trata-se do
português José Francisco Monteiro,
que em 1873 deixou Belém-PA para
se instalar, definitivamente, no sítio
do Pasto Grande, de onde prospe-
rou mais ainda e fundou Humaitá,
construindo, entre outras obras, a
capela e a biblioteca da cidade, que
já fora considerada a quarta mais
importante do Brasil. A história é
contada pelo humaitaense Almino
Affonso, neto de Monteiro, em seu
livro Comendador Monteiro: tronco
e ramagens.
Os habitantes do Cayari
Bem antes da entrada do ho-
mem branco na exploração das ri-
quezas da selva, na região de Hu-
maitá, já moravam nela os Torá, os
Pamá, os Arara, os Mura e os Pa-
rintintin – esses últimos habitavam
as margens do Cayari, rio Grande,
para os espanhóis, ou rio Madei-
ra, como é conhecido atualmen-
te. Num trecho do seu curso de
mais de cinco mil quilômetros,
entre os afluentes Ji-Paraná e
Aripuanã, essas populações
transitavam livremente. Rela-
tos colhidos pelo então padre Vitor
Hugo, em sua obra Os Desbrava-
dores, dão conta de que, desta-
cadamente, os Parintintin eram
responsáveis por uma organizada
e extensa lavoura de batata-doce,
macaxeira e banana; plantavam ár-
vores frutíferas e ervas medicinais;
secavam o peixe para armazenar
ou trocar com outras aldeias; cons-
truíam cestos, abanos, arcos e fle-
chas, canoas e flautas para dançar,
cantar e guerrear.
Ainda nos relatos obtidos por Vi-
tor Hugo, que abandonou a batina
para casar-se com uma freira, no
conflito dos rifles contra os arcos e
as flechas, o resultado foi a quase
extinção de todas as etnias. Dos
quase mil índios em conflito conse-
guiram fugir e sobreviver ao menos
70. Os que ficaram para trás foram
catequizados na fé judaica-cristã,
como relembra o aposentado e his-
Índios Parintintin
Esta obra é um testemunho de Almino Affonso
sobre a vida de seu avô, Comendador
Monteiro, nos beiradões
amazônicos
Caracterização etnográfica de índio da etnia Mura
16 valercultural
toriador autodidata Juca Mota, 66,
filho de Humaitá.
No livro Humaitá, editado pela
Secretaria de Educação do Amazo-
nas, em 1993, há a versão de que
depois de dominarem o Peru, bem
antes do domínio dos seringalistas
brasileiros, os espanhóis se embre-
nharam Amazônia adentro atrás de
árvores de canela e outras especia-
rias. Foi nessa época, por volta dos
anos 1600, que eles navegaram o
rio Madeira. Juca Mota afirma: “Não
fosse a resistência dos Mura, na
região do município de Manicoré,
os espanhóis teriam dominado o
Madeira e, provavelmente, a Vila
da Freguesia de Humaitá não teria
existido”.
A chegada do fundador
Num ambiente onde a região
já estava dominada pelo homem
branco, embora alguns conflitos
com os índios ainda resultassem
em mortes, como no caso da Cha-
cina do Been, cujas vítimas foram
dezenas de seringueiros, doenças
como bexiga, sarampo e malária
também mataram muita gente. Foi
nesse clima que aportou o futuro
fundador de Humaitá e construtor
da biblioteca pública, José Francis-
co Monteiro, um homem de poucas
letras, mas visionário nos negócios,
como escreve o seu neto Almino
Affonso.
E de fato, seu avô prosperou a tal
ponto com o negócio da borracha e
da madeira que acabou se fixan-
do no lugar, ao contrário de outros
barões da borracha que preferiam
cidades prontas e semelhantes às
europeias. Em razão de sua per-
manência, em 1890, a antiga
freguesia de Manicoré pas-
sa a ser chamada de Vila
das Freguesias de Hu-
maitá. Com o poder de
traçar o próprio destino,
garantido pelas ranhu-
ras nas seringueiras, por
onde escorria o látex, e
pelo senso administrativo
do Comendador José Fran-
cisco Monteiro, começava a
nascer uma das mais prósperas
cidades do rico Amazonas, no já
formado ciclo da borracha.
O volume de dinheiro na cidade
era tamanho que, segundo Almino
Affonso, a prosperidade se prolon-
gou após a debacle: “Mesmo depois
do declínio do ciclo da borracha,
em 1910, Humaitá ainda nadava
em dinheiro, permanecendo assim
até 1935 [...} A produção da borra-
cha no Amazonas competia com a
produção do café como as maiores
exportações do Brasil”. Indo mais
além na cronologia, Juca Mota diz
que, até 1955, “ainda se podia ver,
na cidade, as damas e cavalheiros
vestidos e comportados como se
estivessem na França”. Mas além
do luxo, algo bem mais durável es-
tava para nascer na cidade.
Comendador Monteiro
17valercultural
O batismo e a obra
A Vila da Freguesia de Humaitá
foi o nome sugerido pelo comen-
dador José Francisco Monteiro, em
homenagem à vitória da tríplice
aliança Brasil, Argentina e Uruguai,
contra o Paraguai, na ocasião da
conquista da fortaleza de Humai-
tá. E, ainda na condição de Vila, a
cidade ganha a Capela de Nossa
Senhora da Virgem Santíssima e de
Santo Antônio de Pádua, com terre-
no doado pelo comendador. Pouco
tempo depois, ele monta uma bi-
blioteca, num espaço generoso, do
gigantesco prédio, onde funcionava
a Prefeitura da cidade.
Almino Affonso descreve em
seu livro que não se tratava de um
quarto para guardar livros. “Era um
prédio admirável, edificado com
esse fim explícito, onde se instalou
uma biblioteca com dois mil livros”.
A cidade foi crescendo devagarzi-
nho, no início do século passado, ao
redor da biblioteca que já guardava
em si o universo inteiro, em razão
do rico acervo de livros que pul-
savam em suas estantes talhadas
bem à moda da arte portuguesa.
Mesmo depois do falecimento de
José Francisco Monteiro, em 1917,
o acervo era visitado pelos jovens
da cidade e até por turistas, como
lembra Juca Mota.
A Biblioteca de Humaitá che-
gou a ser a segunda mais equipada
do Amazonas, depois da Biblioteca
pública de Manaus, de acordo com
Juca Mota. Indo mais além, o advo-
gado, político e filho da cidade Terri-
nha Palmeira de Souza, 60, diz que a
biblioteca chegou a ser a quarta do
Brasil. A biblioteca era alimentada
com doações dos governos de Santa
Catarina, Rio de Janeiro e São Paulo,
na sua primeira fase, até meados
os anos de 1950. Nesse período,
o acervo já havia contribuido para
a formação de nomes que fizeram
história no Amazonas e fora dele.
Terrinha lembra que Humaitá
gerou quatro governadores para o
Amazonas: Álvaro Botelho Maia, Plí-
nio Ramos Coelho, e, interinamente,
Anfremon Monteiro e Lino Chíxaro.
E ainda, Almino Affonso, que foi mi-
nistro no governo de João Goulart,
vice-governador de São Paulo, no
governo Orestes Quércia, conselhei-
ro atual da República. Todos foram
beneficiados pela biblioteca pública
da cidade. A grande produção inte-
lectual de Humaitá tem suas razões
na biblioteca, explica Terrinha.
Álvaro Maia
Biblioteca Ferreira de Castro em Humaitá
18 valercultural
A biblioteca e a escola
No grupo Escolar Oswaldo Cruz,
construído também pelo comenda-
dor em homenagem ao reconheci-
do sanitarista, que fez uma breve
passagem por Humaitá e lá deixou
ensinamentos para produção das
pílulas azuis para tratar a malária,
estudou o senhor Omar de Souza,
82, conhecido como seu Toti. Ele
lembra que, nos anos de 1930, a
população da cidade não chegava a
mil habitantes, mas o nível da edu-
cação era muito bom, mesmo indo
até a 5.ª série. Souza não é frequen-
tador assíduo da biblioteca, “em
razão de trabalho”, mas reconhece
que ela fez a diferença na formação
dos filhos da cidade.
A escola Oswaldo Cruz, que
mantinha forte elo com a biblioteca
pública, foi responsável pela forma-
ção de mais de 90% dos professo-
res filhos de Humaitá. Isso ainda
nos anos de 1950. Um orgulho para
Souza, ex-aluno e colega de sala de
Almino Affonso, no final da década
de 1930.
Mas a biblioteca não esteve
presente apenas na formação dos
homens que se destacaram na vida
pública. Juca Mota lembra que exis-
te um grande número de médicos,
advogados e engenheiros, filhos de
Humaitá, espalhados em Manaus e
em outras capitais do Brasil. Uma
das atrações que ajudou a formar
tantos cidadãos e cidadãs humaita-
enses foi o acervo da biblioteca que
sempre acrescentava informação
às aulas e provocava a curiosidade
pela pesquisas nos seus visitantes,
alunos, profissionais e pessoas ape-
nas interessadas na leitura dos li-
vros que os levavam a uma viagem
além-mar.
“ Existe um grande número de médicos, advogados e engenheiros, filhos de Humaitá, espalhados em Manaus e em outras capitais do Brasil”
Grupo escolar Oswaldo Cruz
Almino Affonso, neto do Comendador Monteiro, e detalhe de obras do
acervo original
Foto
: Div
ulga
ção
19valercultural
A condenação
Mesmo com toda a sua impor-
tância para vida cultural, histórica
e intelectual da cidade, em 1950,
a biblioteca foi fechada e seu acer-
vo abandonado no porão da antiga
prefeitura. Sobre esse fato não há
registros nem nas atas ou tomba-
mentos oficiais. As únicas informa-
ções são aquelas que permanecem
na memória dos moradores mais
dedicados aos estudos. Restou ape-
nas uma estante original com alguns
livros, segundo a professora Etelvina
Viana, responsável pelo tombamen-
to do antigo do acero da biblioteca,
realizado entre 1990 e 2000.
Só 45 anos depois, em 1995, é
que a biblioteca volta a funcionar
no prédio número 18, na rua Ma-
rechal Deodoro, agora batizada com
o nome de Ferreira de Castro, jus-
ta homenagem ao poeta e escritor
José Maria Ferreira de Castro, autor
do romance A Selva. A reforma
foi realizada na administração do
prefeito Írio Guerra. Apenas duas
estantes originais fazem parte da
atual biblioteca. As demais foram,
habilidosamente, copiadas para
completar o total de sete estantes. Ferreira de Castro
Prédios históricos e pontos turísticos de Humaitá
Últimos livros que sobraram do acervo da Biblioteca de Humaitá
20 valercultural
O que restou
Do acervo que deu à biblioteca
de Humaitá o reconhecimento de
quarta mais importante do Brasil
sobraram algumas obras e peças
raras, entre elas, a cópia da escri-
tura de compra e venda do escravo
Victor, datada de 24 de outubro de
1879, pelo valor de oitocentos mil-
-réis, pagos em moeda. Victor tinha
22 anos, e era registrado como mu-
lato. João Gusmão da Silva o vendeu
a Lúcio Anthunes Maciel. A escritura
original pertence ao acervo particu-
lar de Dom Miguel D’Aversa, bispo
diocesano, segundo o poeta e escri-
tor Raimundo das Neves de Almei-
da, filho de Humaitá, em seu livro
Retalhos históricos e geográficos
de Humaitá: documento público de
1869 a 1970.
Outras obras que ainda fazem
parte das raridades são a enciclopé-
dia Nouveau Larouse Illustré, assi-
nada por Claude Auge, o Dicionário
Universal, assinado por Maximiano
Lemos, e a enciclopédia The New
Brazil, obras do início e meados do
século passado, mais edições do
jornal Alto Madeira, de Porto Velho
(RO), que circulava na cidade desde
os primeiros anos do século passa-
do. Obras dos anos de 1950 a 1960,
não raras, mas de grande valor cul-
tural ainda se mantêm nas estantes.
São de escritores do nível de: Ma-
chado de Assis, Clarice Lispector, Gil-
berto Freyre, Érico Veríssimo, Darcy
Ribeiro e Márcio Souza.
Fotos: Marcus Stoyanovith
21valercultural
O destino do acervo
Para onde foi o acervo cultural
da Biblioteca de Humaitá? Não é se-
gredo o destino da maioria desses
livros. De acordo com a professora
Etelvina, ”eles foram levados, por
coordenadores do Projeto Rondon,
e nunca mais foram devolvidos”. A
versão é confirmada pelo historia-
dor autodidata Juca Mota: “Os livros
do acervo estão em Araraquara, Bo-
tucatu, Avaré e Marília”. Indignado,
ele diz que não compreende por
que as autoridades do município
não reclamam a devolução dos li-
vros. Terrinha afirma que outra par-
te dos livros foi levada para Porto
Velho-RO, pelo diretor do jornal Alto
Madeira, Euro Tourinho.
Além do seu acervo extraviado,
e depois de tanto tempo de livros
jogados num porão, os últimos tom-
bamentos do acervo da Biblioteca
Pública Ferreira de Castro, feitos
em 1995, 1997 e 2009, registram
6.019 títulos. Uma soma que não
bate com o volume em exposição,
perto de dois mil livros, segundo a
professora Etelvina. Mesmo assim,
a biblioteca sobrevive e mantém
uma frequência regular de alunos
que agora contam, também, com
equipamentos modernos. É que no
porão da biblioteca, onde escravos
eram acorrentados, no século 19,
agora é ocupado por computadores
que ajudam as crianças em suas
pesquisas. A professora Ivana Fer-
reira Reis explica que as pesquisas
na internet são complementares
àquelas feitas nos livros.
22 valercultural
A sobrevivência
Para a professora Etelvina Viana, a bi-
blioteca “tem a sua importância além da
vida escolar do aluno, porque ajuda na sua
formação como pessoa”. Ela afirma: “É aqui,
na biblioteca Ferreira de Castro, que ainda é
possível conhecer todos os poetas e escrito-
res filhos de Humaitá”. E lembra: “Os alunos
devem ser estimulados no início, depois eles
mesmos sentem a necessidade de frequentar
a biblioteca”.
E é com muita teimosia que a Biblioteca
Pública de Humaitá mantém-se viva há mais
de cem anos. Hoje recebe, em média, 300
alunos por semana. A maioria pesquisando
para trabalhos de aula. Assim como faziam,
no início do século, os habitantes fundadores
da cidade; em meados do mesmo século, os
membros da famosa Confraria São Vicente de
Paula, na qual o pai do ex-governador Plínio
Ramos Coelho era um deles, entre os anos
1952 e 1956, e como fazem hoje os alunos
como Gustavo Pereira, 12, estudante da esco-
la Tancredo Neves, que frequenta a biblioteca
porque é um lugar onde ele encontra respos-
tas para suas perguntas.
“ A biblioteca tem a sua importância além da vida escolar do aluno, porque ajuda na sua formação como pessoa”
Fotos: Marcus Stoyanovith
Etelvina Viana: dez anos dedicados à proteção do acervo da Biblioteca de Humaitá
23valercultural
diário de viagemFo
to: V
italy
Tito
v &
Mar
ia S
idel
niko
va
24 valercultural
Visitas a museus e lugares históricos
do Oriente Médio garantem revisão
de aulas de história geral
Ana Cláudia Leocádio | jornalista
Quando meu marido chegou em casa,
em Brasília, em agosto de 2010, per-
guntando o que eu preferia: morar em
Ancara ou Damasco, confesso que tomei
um susto. Estava mais hesitante pela minha ignorância,
pois, até então, não fazia ideia de que Ancara era a
capital da Turquia. Sempre achei que fosse Istambul.
No receio, descartei Damasco, capital da Síria, país que
está passando por sérios problemas políticos.
25valercultural
Passado um ano, cá estamos nós
morando em Ancara, localizada na
Anatólia Central, a 400 quilômetros
de Istambul, a antiga capital nasci-
da no lado europeu, cidade que por
séculos foi Constantinopla, a capital
dos impérios Romano e Bizantino,
uma segunda Roma, como dizem
os historiadores.
Por mais de mil anos, Istambul
foi uma grande fortaleza dos impé-
rios cristãos no Oriente, construída
entre o Estreito de Bósforo e o Chifre
de Ouro, e protegida pelas imensas
muralhas, que só foram abaixo em
1453, quando os otomanos, vindos
do leste, a conquistaram, colocando
fim ao domínio bizantino e cristão
na região.
Após séculos sob o regime do
sultanato, em 1923, o país tornou-
-se uma república e passou por um
processo de europeização que mu-
dou significativamente o modo de
viver turco sem, contudo, alterar o
espírito nacionalista e a fortaleza
cultural dessa nação. Talvez por es-
sas diferenças o sonho turco de in-
gressar na União Europeia até hoje
não se concretizou.
A Turquia tem quase 80 milhões
de habitantes, onde 99% da popu-
lação são mulçumanos. Istambul
segue como a maior cidade, com
cerca de 14 milhões de pessoas vi-
vendo em um verdadeiro museu a
céu aberto. A pacata Ancara, a se-
gunda maior cidade, tem aproxima-
damente 5 milhões de pessoas.
Lições
As lições de se viver nessa parte
do mundo, num país mulçumano,
principalmente para uma brasileira
e cristã, são muitas. A primeira é o
respeito à identidade de cada um.
Turco é turco, não é árabe, libanês
ou sírio, assim como iraniano é per-
sa e egípcio é egípcio. Isso precisa
ser dito, pois, não são poucas as
vezes em que nos vemos dizendo
que “tudo é a mesma coisa”. Não
“ Turco é turco, não é árabe, libanês ou sírio, assim como iraniano é persa e egípcio é egípcio”
Foto
s: A
na C
láud
ia L
eocá
dio
26 valercultural
jogador de futebol que atua nos
times locais. O ex-jogador da Se-
leção Brasileira Alex de Souza é
uma verdadeira autoridade na
Turquia, a ponto de ser home-
nageado pelo governo, que o
concedeu a cidadania turca.
Líder de um dos maiores ti-
mes de futebol do país, o Fe-
nerbahçe, Alex é respeitado
inclusive pelos jogadores e
torcedores dos times rivais.
Para quem torce o nariz
ao fato de carnaval e fute-
bol serem sempre as pri-
meiras palavras que um
estrangeiro lembra ao
encontrar um brasileiro, é
preciso agradecer a esses
“trabalhadores da bola”
cada sorriso que eles aju-
dam a abrir para a gente, no
exterior. Como eu adoro fute-
bol, não perco a oportunidade
de fazer novos amigos pegan-
do carona nos nossos jogadores.
Mas as novelas também são
outro chamariz. As mulheres são
curiosas e questionam de tudo
sobre as novelas, principalmente
sobre a sensualidade da brasilei-
ra. Bonitas, as
é, e isso faz toda a diferença. A
ninguém é dado o direito de tirar a
identidade de um povo.
A segunda lição é sobre a reli-
gião mulçumana, algo que ainda
estou aprendendo, buscando enten-
der esse modo de viver que segue
as revelações de Maomé, que para
eles foi o último e mais importante
profeta, quase sete séculos depois
de Jesus Cristo. Mais importante,
ainda, é esquecer os estereótipos
que ligam uma religião tão pacífica
ao terrorismo. Violência urbana é
algo raro por aqui, tal qual conhece-
mos no Brasil. Pode-se andar tran-
quilamente altas horas pela cidade,
que um bandido não vai te importu-
nar. Senti isso também no Egito, Irã
e Líbano.
Outra lição importante é sobre
a língua. Os turcos vieram da Ásia
Central. Sua língua, segundo um
professor português que conheço,
só se aproxima do coreano, o que
aumenta ainda mais a dificuldade
de aprendizado. O problema é que
os turcos são tão solícitos, que fica
muito fácil se comunicar com eles
por gestos, usando bem o dedo in-
dicador. Eles farão de tudo para te
entender e te ajudar. Mas para não
contar sempre com essa generosi-
dade, preferi dar uns passinhos à
frente e aprender um
pouco do idioma, até
em respeito a eles. E
está dando certo. É gra-
tificante ver a satisfação
deles, quando você che-
ga pedindo algo em turco
e não mais por gestos.
Brasileiros
O fato de ser brasileiro
também ajuda muito. Eles ado-
ram os brasileiros, têm sempre na
ponta da língua o nome de algum
27valercultural
turcas são bem mais recatadas que
nós obviamente. O gosto pela no-
vela é tanto que os canais locais de
televisão têm novela em todos os
horários. A última e mais assistida
é uma novela sobre um dos maio-
res sultões da Turquia, responsável
pela ampliação da ocupação oto-
mana, Suleiman, e que só passa às
quartas-feiras. A Globo está de olho
nisso, tanto que, ano passado, a au-
tora Glória Perez esteve mais de um
mês na Turquia fazendo pesquisas.
A próxima novela da emissora, Sal-
ve Jorge, será gravada no país.
De mente aberta
Aos desatentos, um aviso: me-
lhor esquecer os estereótipos e
preconceitos quando quiser visitar a
Turquia ou outros países dessa par-
te do globo. Chegue com a mente
aberta. Essa parte do planeta já foi
casa de muitos impérios (hititas,
persas, gregos, romanos, bizantinos
e otomanos), é um caldeirão cultu-
ral. Foi também onde muitos após-
tolos de Jesus Cristo abriram cami-
nho para o Cristianismo, onde Maria
passou seus últimos dias (há contro-
vérsias sobre isso), e onde muitos
deles morreram devido a essa nova
religião, segundo os historiadores.
Esse itinerário religioso, com visita
aos locais históricos, é também um
dos grandes atrativos turísticos do
país, que em 2011 atraiu em torno
de 30 milhões de visitantes.
Mulçumano desde o século 15,
a atual Constituição turca diz que o
Estado é laico, ou seja, separado de
religião. Isso faz com que, em mui-
tos aspectos, a vida na Turquia seja
bem diferente de países mulçuma-
nos vizinhos. Na costa do Egeu e no
Mediterrâneo, as diferenças são ain-
da maiores, em relação aos Estados
do leste.
Nas grandes cidades, é comum
no dia a dia ver mulheres usando
véus coloridos na cabeça, com rou-
pas bem-comportadas, longas e
largas, algumas usando até o man-
lenço só é obrigatório para quem
deseja entrar numa mesquita. É um
sinal de respeito e reverência.
Até hoje ainda não entendi o
motivo de ter que cobrir a cabeça
em razão da religião. À primeira vis-
ta, sempre me pareceu falta de res-
peito à individualidade da mulher,
pois aos homens nenhuma obri-
gação desse tipo é imposta, mas
agora prefiro pensar que é uma
opção de cada um e isso precisa
ser respeitado também. Se reparar-
mos, freiras e mulheres de outras
religiões também usam véus sobre
a cabeça.
Turcos e brasileiros
Na tentativa de buscar algo que
aproxime o turco do brasileiro, para
mim, a aparência é um ponto em
comum. Mas isso não significa que
o turco parece com o brasileiro; pelo
contrário, como ambos não têm
uma aparência homogênea, isso faz
com que eles possam ter qualquer
nacionalidade. Senti isso ao chegar
ao aeroporto de Istambul, ano pas-
sado. Quando olhei ao redor, com
exceção das mulheres com véus,
cheguei a imaginar que estivesse
“ O crescimento turco é similar ao brasileiro, mas quando se olha o preparo do país em infraestrutura, as semelhanças acabam aí”
to negro, que só deixa os olhos à
mostra. Mas esse modo de se vestir
não é predominante, pois a maior
parte da população segue a moda
europeia, com roupas vendidas pe-
las grandes marcas da Inglaterra,
Espanha, Itália e da própria Turquia,
sem, contudo, mostrar-se muito. Os
mantos otomanos são, atualmen-
te, peças de museu e decoração. O
Foto: Ana Cláudia Leocádio
Lugar onde Maria, a mãe de Jesus, teria vivido seus últimos dias
28 valercultural
em algum aeroporto brasileiro, ta-
manha a multiplicidade de rostos.
No plano econômico, o cresci-
mento turco é similar ao brasileiro,
mas quando se olha o preparo do
país em infraestrutura, as semelhan-
ças acabam aí. Sétimo país mais visi-
tado do mundo, a Turquia se prepara
para receber bem os turistas, com
excelentes estradas, portos e aero-
portos e rede hoteleira, isso sem fa-
lar do jeito amistoso de receber.
Aos poucos, do susto passei ao
estranhamento e o espanto inicial
de ter de mudar de cidade para um
país que só vi pelos livros, agora dá
lugar a mais curiosidade, à vontade
de aprender mais e mais sobre esse
mundo diferente, mas que tem raí-
zes sólidas na história. De um país
que liga o continente asiático à Eu-
ropa, mas que não consegue entrar
nesse grupo seleto do euro. Chego a
bendizer a minha inquietação, que
agora me abre portas a um conhe-
cimento negligenciado nas aulas de
história da escola.
Foto
: Vita
ly T
itov
& M
aria
Sid
elni
kova
29valercultural
A cidade vista do Bósforo
O Estreito de Bósforo tem 30
quilômetros de extensão e separa
a Ásia Menor da Europa, ligando
o Mar Negro ao Mar de Márma-
ra, pelo qual se chega aos mares
Egeu e Mediterrâneo. Pelo estreito,
acordos internacionais permitem
que milhares de navios cargueiros
acessem diariamente esses mares
tão estratégicos para o comércio.
Por ele, diariamente, milhares de
turistas têm o prazer de contemplar
os prédios deixados pelos impérios
romano, bizantino e otomano. Uma
aula de história ao ar livre, com mo-
numentos que testemunham como
o poder é passageiro.
Testemunha de muitas batalhas
pela tomada do poder na região,
o Bósforo protegeu por séculos as
fortificações de Constantinopla e,
assim, manteve as ameaças lon-
ge da Europa, até a chegada dos
otomanos, em 1453. A partir dali,
Constantinopla passou a se chamar
Istambul, cidade que hoje preserva
as ruínas de um áureo período.
O legado histórico está em cada
canto da cidade. Impossível não
tentar imaginar como foram as ce-
lebrações na Basílica de Santa So-
fia (Sagrada Sabedoria), construída
pelo imperador Justiniano, no século
VI d.C, com mosaicos de ouro, com
a maior doma do mundo, com toda
aquela imponência. Mais parece um
pedido de perdão do imperador por
ter massacrado 30 mil pessoas no
Hipódromo, local de entretenimento
durante o Império. Com a conquista
otomana, a igreja foi transformada
em mesquita e teve suas obras de
arte encobertas por pinturas e tex-
tos do Alcorão. Atualmente, parte
dos mosaicos da era bizantina está
descoberta e pode ser admirada,
em Istambul.
As mesquitas são outra atração
à parte. Do Bósforo, é possível avis-
tá-las com seus imensos minaretes
rumo ao céu, seja do lado europeu
ou asiático. A mais famosa delas,
a Mesquita Azul, é um deleite aos
olhos. Única a ostentar seis mina-
retes, foi construída de frente para
a Basílica Santa Sofia, no século
17, e atrai diariamente milhares de
pessoas para contemplar, de dentro,
suas extraordinárias domas e imen-
so lustre.
Não menos importante e próxi-
mo a esses monumentos, está o Pa-
lácio de Topkapı, com seus imensos
jardins e salas, a casa do sultão.
“ O legado histórico está em cada canto da cidade”
Foto
: Mik
ael D
amki
er
30 valercultural
Culinária de encher os olhos
A culinária turca é uma história
à parte. Eles são a excelência nos
mesês, ou entradinhas, como os
designamos no Brasil. São tantos
os tipos, que se não tomar cuidado,
come-se apenas as entradas e não
sobra espaço para o prato principal,
que pode ser um kebab, um sken-
der ou um cordeiro assado. Há res-
taurantes que não cobram pelas en-
tradas, o que torna o exagero ainda
mais tentador.
Azeitonas, berinjelas, grão-de-
-bico, lentilhas, cebola assada e,
principalmente, os pimentões, en-
chem primeiro os olhos.
Um ingrediente que jamais pode
faltar na refeição turca é o iogurte; é
como a farinha para o amazonense.
Eles gostam tanto de iogurte, que
há uma bebida chamada airam à
base desse derivado do leite, que
vende mais que refrigerante,
de tão popular.
Mas país mulçumano tem
seus inconvenientes também
na comida. Nada sério. Eles
não comem carne de porco
e, por isso, é preciso ter um
canal próprio de pedidos
em Istambul para poder
comer carne de porco ou
algum produto derivado;
por exemplo, presunto e
salsicha. Outro produto
difícil de encontrar por
aqui é o bacalhau, mas em com-
pensação os peixes são uma delícia.
Trazidos principalmente do Mar Ne-
gro, o levrek e çipura (se pronuncia
tchipura) são os meus preferidos.
Outra coisa: encontrar leite con-
densado é um desafio. Uma amiga
me explicou que a base da sobre-
mesa turca é o açúcar e por isso
eles usam pouco leite nas sobre-
mesas, que, por sinal, são delicio-
sas. A baklava com pistache e os
famosos docinhos à base de açúcar,
conhecidos em inglês como turkish
delights, são sucesso absoluto. Isso
sem falar nos folhados, entre eles
o börek (que parece uma lasanha
sem molho) e o gözleme (um pão
aberto com recheio).
Foto: Ana Cláudia Leocádio
31valercultural
literatura e folclore
Em Parintins, uma
brincadeira de terreiro
se transformou em
espetáculo midiático
Wilson Nogueira | jornalista
Foto
: Hei
tor
Cost
a
32 valercultural
O primeiro registro da presença do boi-
-bumbá no Brasil é um violento e pre-
conceituoso ataque ao folguedo. “Eu não
conheço um tão tolo, tão estúpido e des-
tituído de graça como o, aliás, bem conhecido bumba-
-meu-boi. Em tal brinco não se encontra um enredo
nem verossimilhança: é um agregado de disparates”,
escreveu o padre Miguel do Sacramento Lopes Gama,
no jornal O Carapuceiro, editado em Recife (PE), em
1840. No Amazonas, a notícia mais antiga da brinca-
deira, em Manaus, foi registrada no ano de 1859. O
33valercultural
viajante alemão Robert Avé-Lalla-
mant, no seu livro Viagem pelo rio
Amazonas, compara o cortejo a um
arcabouço de boi (o simulacro do
boi animal) a entrechos do carnaval
parisiense, cujo desfile é visto das
janelas pelas famílias da alta socie-
dade. O interesse do religioso e do
viajante sugere que o boi-bumbá
inquieta os intelectuais há muito
tempo.
Os primeiros estudiosos do fol-
clore nacional o têm como uma
das festas enraizadas na folgança
do povo brasileiro. O folclore, nes-
se caso, caracteriza-se pela persis-
tência dos valores tradicionais de
uma comunidade e distanciamento
da erudição. Logo, as mudanças no
modo de se apresentar e se rela-
cionar com o mercado, a partir da
década de 1980, viriam a incomo-
dar intelectuais ortodoxos do por-
te do historiador Mário Ypiranga
Monteiro: “Uma alegoria industrial
é o funesto tipo, que está toman-
do vulto na Amazônia, apelidado
erroneamente de festival folclórico,
oficializado pelo governo estadual
e municipal, e pela imprensa, em
franco desrespeito ao condiciona-
mento científico”.
Em Parintins, desenvolveu-se,
a partir de 1965, com a realização
da primeira competição entre gru-
pos folclóricos, um boi-bumbá que,
com o decorrer dos anos, passou
a combinar manifestações artísti-
cas tradicionais e contemporâneas.
Mantém-se, na brincadeira, o fun-
damento da morte e ressurreição
do boi mais querido da fazenda,
morto pelo peão Pai Francisco, co-
movido pelos apelos da sua mulher,
a Mãe Catirina, gestante e desejosa
da carne do animal. Assim, a tragi- Foto
: And
reas
Val
entin
34 valercultural
comédia veio a se transformar, por
meio do ânimo criativo dos parinti-
nenses, principalmente a partir dos
anos de 1980, em um espetáculo
lítero-cênico-musical de exaltação
das culturas amazônicas.
Espetáculo
Os protagonistas da versão es-
petacular do bumba-meu-boi nor-
destino são Garantido e Caprichoso,
que se apresentam, no bumbódro-
mo, no último fim de semana de
junho. Estima-se que, em média,
Parintins, com 104 mil habitantes,
receba nos três dias de festival ao
menos 50 mil pessoas. A cidade,
localizada numa das ilhas do arqui-
pélago Tupinambarana, na margem
direita do rio Amazonas, na região
do Baixo Amazonas, só tem liga-
ção com outras cidades por meio
de barcos ou aviões. Os percalços
da logística da festa não impedem
que uma multidão se acotovele nos
barcos, nos aviões, nos bares e res-
taurantes, nos hotéis e no bumbó-
dromo para assistir às três noites de
espetáculo. Garantido e Caprichoso
competem, com seus espetácu-
los, ao título de campeão do ano,
conferido por um corpo de jurados
formado por especialistas em cul-
turas e artes de Estados escolhidos
em acordo entre os dirigentes das
duas agremiações. Os bois-bumbás
desenvolvem temas por meio de
“ O boi-bumbá desperta pesquisa em diversas áreas”
performance teatral, com toada
(letra e música), danças coletiva e
individual, cenários e efeitos de ilu-
minação e sonorização. Não faltam
ideias para conceituar a conjunção
de tantos gêneros artísticos num
só espetáculo: carnaval amazônico,
ópera popular, ópera cabocla, teatro
de arena, teatro de revista amazôni-
co etc. O certo é que as experiências
heterodoxas do folclore parintinen-
se, em desacordo ao folclorismo,
gerou o boi-bumbá de Parintins, fe-
nômeno sociocultural originário da
ilha Tupinambarana.
O boi-bumbá em sua versão
parintinense-amazônica tem des-
pertado o interesse de intelectuais
e pesquisadores dos mais variados
campos artísticos e acadêmicos, tais
como da literatura, artes plásticas
e visuais, antropologia, sociologia,
história, economia etc. Seminários,
monografias, dissertações, teses e
Foto
: Wils
on N
Ogu
eira
Foto
: Wils
on N
Ogu
eira
35valercultural
ensaios, muitos dos quais disponí-
veis na forma de livros (confira re-
lação na página ao lado), têm como
tema de análise o boi-bumbá de
Parintins. Guardadas as devidas pro-
porções, o Festival de Parintins des-
perta tanto interesse dos pesquisa-
dores quanto o carnaval carioca na
sua modalidade escola de samba.
o boi-bumbá de Parintins foi absor-
vido por um processo criativo que o
deslocou do folclore para fenômeno
da cultura popular contemporânea.
“Como espetáculo é algo mostrado
para ser visto. Motiva, portanto, um
olhar participante”. Um olhar cativa-
do por aquilo que assinala o autor.
O doutor em antropologia do
Departamento de Antropologia da
Ufam, Sérgio Ivan Gil Braga, no seu
livro-tese O boi-bumbá de Parintins,
acentua que os bumbás parintinen-
ses reencenam o temas das três ra-
ças formadoras, da guerra justa e da
morte e ressurreição, nos quais per-
meiam os signos de identidade. “A
versão desse mito de origem (das
três raças) se utiliza da imagem do
índio e da Amazônia, para promover
a imagem do caboclo como signo de
identidade regional amazônica. De
Parintins ela se projeta para outras
localidades, sobretudo Manaus, que
se identifica regionalmente com a
festa, mas também para outros Es-
tados e quem sabe para o mundo...”,
escreve o antropólogo.
Para a pesquisadora da Univer-
sidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), Maria Laura de Castro Vivei-
ros Cavalcanti, autora de Festa na
floresta – o boi-bumbá de Parintins,
o folguedo parintinense apresenta
um novo indianismo, caracterizado
pela valorização dos indígenas por
Em 2000, a Universidade Fede-
ral do Amazonas – Ufam, sob a coor-
denação da antropóloga Selda Vale,
realizou, em Manaus, o seminário
O boi-bumbá na Universidade. Na-
quela época, foram catalogados
três teses de doutorado, três dis-
sertações, 14 monografias, quatro
projetos de pesquisa e cinco livros
publicados. Certamente a lista hoje
é bem maior e está acrescida de es-
tudos realizados em universidades
de outros Estados.
Os intelectuais e pesquisadores
apresentam o boi-bumbá de Parin-
tins por vozes múltiplas e polêmi-
cas. Compreendê-lo na sua forma
multifacetada tornou-se um desa-
fio para os estudiosos das culturas
contemporâneas. Há, em Parintins,
uma festa de boi articulada com
o mercado, porém com um pé no
folguedo do passado. O professor
doutor de Estética e História da Uni-
versidade Federal do Pará (UFPA)
João de Jesus Paes Loureiro, no seu
livro Culturas Amazônicas – uma
poética do imaginário, entende que
“ Há, em Parintins, uma festa de boi articulada com o mercado”
36 valercultural
1. Boi-bumbá: festas, andanças, luz e
pajelanças/ Funarte, 1995
Autor: Simão Assayag
2. Cultura Amazônica: uma poética
do imaginário/ Cejup, 1995
Autor: João de Jesus Paes Loureiro
3. Um pessoal garantido / Ponto de
Vista, 1998
Autores: Andreas Valentin e Paulo
José Cunha
4. Caprichoso: a terra é azul / Ponto
de Vista, 1999
Autores: Andreas Valentin e Paulo
José Cunha
5. Festival na floresta: o boi-bumbá
de Parintins / Funarte, 2000
Autora: Maria Laura de Castro
Viveiros Cavalcanti
6. O boi-bumbá de Parintins/ Edua,
2001
Autor: Sérgio Ivan Gil Braga
7. A revelação histórica do folclore
parintinense / Ed. do Autor, 2005
Autor: Raimundinho Dutra
8. Contrários: a celebração da
rivalidade nos bois-bumbás de
Parintins / Ponto de Vista, 2005
Autor: Andreas Valentin
9. Boi-bumbá: evolução/ Valer,
2007
Autor: Allan Rodrigues
10. Festas Amazônicas: boi-bumbá,
ciranda e sairé/ Valer, 2008
Autor: Wilson Nogueira
11. Na ilha do boi de pano: uma
reportagem para além do dogma
da objetividade do jornalismo
/2009, www.teses.usp.br/
Autora: Patrícia Sales Patrício
12. História da Amazônia / Valer,
2009
Autor: Márcio Souza
intermédio da contextualização das
suas culturas no mundo contempo-
râneo. Os saberes e o imaginário
das etnias amazônicas antes des-
prezados e ridicularizados ganham
importância no cenário de desafios
das urgências ecológicas e multicul-
turais. Destacam-se no espetáculo,
por exemplo, as danças ritualísticas
e personagens do imaginário indíge-
na protetoras das florestas e dos rios.
Por entender que a Amazônia
foi inventada para estar ligada ao
mercado internacional, o escritor e
ensaísta Márcio Souza acentua que
os parintinenses desenvolveram
um espetáculo mais relacionado
com a indústria cultural do que com
a cultura tradicional ou rústica. Mas
salienta o escritor, em um dos capí-
tulos do livro História da Amazônia:
“O Festival de Parintins, mesmo com
sua vocação para o gigantismo ope-
rístico, tem seu caráter tradicional
e folclórico ressaltado pelo fato de
que cada uma das versões anuais
é concebida nos parâmetros do boi-
-bumbá típico, mas com uma relei-
tura distinta, fiel apenas ao desejo
de cada um dos bumbás envolvidos
de surpreender o outro e arrancar-
-lhe a primazia da surpresa”.
Como bem sintetizou Sérgio
Ivan, em título de artigo publicado
na revista Somanlu, o boi-bumbá de
Parintins “é bom para pensar”.
Foto
s: W
ilson
Nog
ueira
Doze livros sobre o tema
37valercultural
política pública
Método que distribui recursos públicos a ações culturais
fortalece a diversidade artística no país
Maurília Gomes | jornalista
38 valercultural
Desde que o Brasil in-
cluiu a cultura em seu
macroplanejamento,
com a criação do Mi-
nistério da Educação e Cultura, em
1953, as políticas culturais transitam
entre entendimento de que Estado
é agente financiador ou mediador
para o mercado. Nos últimos dez
anos, no entanto, prevaleceu o in-
vestimento estatal em projetos por
meio de seleção pública. Essa práti-
ca suscita preocupações acerca de
certo paternalismo.
Os editais representam uma for-
ma democrática de distribuição de
recursos públicos a ações culturais
no país, porque, por meio de regras
claras e critérios objetivos, permitem
maior transparência ao uso do dinhei-
ro público. A medida contribui para o
reconhecimento e fortalecimento da
diversidade cultural do país.
O jornalista e artista visual Sávio
Stoco afirma que as políticas cul-
cultural. Além disso, a ausência de
um calendário fixo para a publica-
ção dos editais e os atrasos nos pa-
gamentos aos selecionados dificul-
tam a atuação no setor.
De acordo com Stoco, é compli-
cado esperar apenas por verbas de
editais, pois há muita instabilidade.
Assim, a busca por investimento fora
da esfera pública continua sendo
uma alternativa bastante utilizada
pelos artistas e produtores. Resulta-
dos que não saem como o espera-
“ Saímos um pouco da política do pires na mão mas ainda temos muito para avançar”
turais implementadas pelo Gover-
no Federal atendem às diferenças
regionais. “Além de regionalizar,
elas têm criado iniciativas de pro-
jetos com recursos mais modestos
e mais adequados à realidade de
produtores culturais em início de
carreira ou, até mesmo, àqueles
que não necessitam de grandes
aportes”, destaca.
Outro fator importante é a am-
pliação do acesso à cultura em di-
ferentes campos sociais e o auxílio
aos produtores e grupos culturais.
“Os editais proporcionaram ganhos
quanto à distribuição por setores, o
profissionalismo de quem apresenta
seus projetos, pois saímos um pou-
co da política do ‘pires na mão’. Po-
rém, ainda temos muito para avan-
çar”, avalia João Fernandes, diretor
do grupo de teatro e dança Cia. de
Idéias, que atua em Manaus desde
2007. Contudo, os editais têm ge-
rado uma dependência no mercado
Foto: Aline Fidelix
Espetáculo Aniquilar a la Niña de Rodrigo Gomes e Florencia Gleize na Segunda Mostra Internacional de Videodança da Amazônia contemplada no prêmio Petrobras Cultural
39valercultural
do, verbas que atrasam, orçamentos
que não saem como o planejado,
entre outros problemas. “Acho ne-
cessário que os artistas pensem em
outras formas para se manterem;
pelo menos é isso que estou bus-
cando via acadêmica (mas, claro
que há outras)”, ressalta.
Essa também é a opinião de
Fernandes, que considera impossí-
vel sobreviver no mercado cultural
apenas com verbas destinadas em
editais públicos e destaca a im-
portância da busca de outras for-
mas de financiamento. “Na Cia. de
Idéias, por não termos essa certeza
das publicações nem dos prazos
de pagamentos, que muitas vezes
atrasam, buscamos outras fontes
de capital de giro para realizarmos
as atividades sem prejuízo para o
público e o andamento da compa-
nhia”, explica o diretor.
Alternativas
Assim, os agentes culturais têm
procurado agregar valor aos seus
produtos, a fim de facilitar a ob-
tenção de outras fontes de finan-
ciamento, participando e criando
espaços alternativos de produção
cultural. Esses agentes precisam
ainda buscar visibilidade e reconhe-
cimento do público e, também, do
empresariado, que tem sido outra
importante fonte de recursos para
o setor.
Para Michelle Andrews, gestora
da Casa Fora do Eixo Amazônia, os
agentes culturais precisam buscar
outros mecanismos para a sustenta-
bilidade a curto prazo, a fim de cus-
tear o financiamento das atividades
e evitar cair na política paternalista
dos editais governamentais. Essa
também tem sido uma das alterna-
tivas adotadas pela Cia. de Idéias.
“Precisamos ser vistos pela popu-
lação, empresários e governantes.
Por isso, a cada dia procuramos criar
novos produtos, como a criação da
revista Casarão de Idéias, o Mova-
-se festival, e dialogar com outros
Estados do Brasil, para potencializar
nossas ações”, enfatizou.
Se os editais não são suficientes
para atender à demanda do setor,
qual seria, então, o caminho a ser
adotado pela política cultural no
Brasil para os próximos anos? A in-
tensificação do uso de editais ou a
diversificação dos incentivos, como
a renúncia fiscal, investimento dire-
to, entre outros modelos discutidos
pelo Sistema Nacional de Cultura?
A opinião geral entre os agen-
tes culturais é a de que não se
trata de uma ou de outra, mas da
diversificação das opções, porque
eles partem da perspectiva de que
aumentando o investimento tam-
bém se ampliam as condições de
produzir e potencializar a economia
da cultura. “Acho importante o em-
penho em fazer com que a parti-
cipação em editais seja ampliada.
Suspeito que essa prática ainda não
faça parte da rotina de muitos pro-
dutores”, opina Stoco.
João Fernandes e Sávio Stoco
Foto
: San
dro
Mar
andu
eira
Foto
: Alin
e Fi
delix
Espetáculo Cor-poregr@fico de Odacy de Oliveira no Miva
40 valercultural
de projetos do Governo
Federal] e buscar informa-
ções on-line etc. Um bom
portifólio, a prática e os estu-
dos são a principal garantia de uma
projeto. É muito importante entender que ter
os editais como fonte de financiamento faz
parte de estratégias de longo prazo por conta
dos percalços e contratempos que surgem ao
longo do processo. Com o tempo, a instituição
vai dominar tão bem o processo que poderá
elaborar os próprios editais, como estamos fa-
zendo dentro do Fora do Eixo”, conclui.
Michelle Andrews, gestora da Casa Fora do
Eixo Amazônia e fundadora do Coletivo Difu-
são, explica que não existe uma fórmula que
possa garantir uma seleção nos editais, mas
táticas que podem facilitá-la. “É muito impor-
tante ficar sempre atento às instituições que
trabalham com frequência seus editais, tanto
as governamentais, como Funarte, MinC, Bi-
blioteca Nacional, quanto as privadas, como
Petrobras, Vivo, Natura, Vale etc. Além disso,
é importante o investimento em qualificação:
domínio das principais ferramentas do setor,
como Salic e Sincov [programas de cadastro
Caminho das pedras
Foto: Luana Záu
41valercultural
cinema
Marcus Stoyanovith | jornalista
Do romance às telasA Selva de Ferreira de Castro
nas versões cinematográficas de
Márcio Souza e Leonel Vieira
42 valercultural
Não é de hoje que
obras literárias são
adaptadas para o ci-
nema e acabam pro-
vocando outra maneira de contar
a mesma história. Esse fascínio da
transformação de uma história con-
tada em livro para o cinema, ou
teatro, sempre contagiou autores,
Do romance às telasdiretores e leitores/expectadores.
Esse é o caso de A Selva, de José
Maria Ferreira de Castro, romance
publicado em 1930, que inspirou a
produções homônimas. Dois filmes
de um livro que rendeu uma leitura
bem própria de cada diretor, cujas
épocas, técnicas e orçamentos são
bem distintos.
43valercultural
O romance pode até ser ficção,
mas a vida que motivou a sua exis-
tência, não. O português se inspirou
no que vivenciou na selva amazô-
nica, na área do rio Madeira, desde
a ascensão até o início do declínio
do ciclo da borracha. Um período de
conflitos entre índios e seringalistas,
coronéis da borracha, que escravi-
zavam caboclos e nordestinos na
extração do látex e os mantinham
como prisioneiros de uma dívida
impagável.
Desse ambiente nasceu a inspi-
ração para o romance, ou como quis
descrevê-lo o seu autor, um diário
de um inferno verde. Um portu-
guês monarca, expulso pelo poder
republicano, é socorrido por um tio
pobre em Belém-PA, que paga a
um capataz para levá-lo ao Serin-
gal Paraíso, onde deveria arrumar
a própria sobrevivência. O contraste
de monarca para seringueiro é tão
feroz quanto o ambiente da selva.
Mas ele não perde a sensibilidade
e guarda toda a nova experiência
para vencer na selva. Lá, se apai-
xona pela dona YaYá, esposa do
guarda-livros do Coronel, assassina-
do por um escravo que ateou fogo
em sua casa.
O livro foi traduzido para vários
idiomas e transformou José Maria
Ferreira de Castro num dos escrito-
res portugueses mais lidos em todo
o mundo. A Amazônia, cenário da
trama, também passou a ser co-
mentada em todos os continentes.
E A Selva ainda motivaria outros
artistas que, de alguma forma, têm
em seu DNA registrado na história:
Márcio Souza é amazonense e dire-
tor do primeiro filme inspirado no
romance, em 1970, quarenta anos
depois do seu lançamento; e Leo-
nel Vieira é português e diretor do
segundo filme, finalizado em 2002,
setenta e dois anos depois do livro
rodar o mundo.
“ O romance pode até ser ficção, mas a vida que motivou a sua existência, não”
Cenas da produção de Márcio Souza. Primeiro filme inspirado no romance
44 valercultural
As adaptações
Na Selva, filme roteirizado e
dirigido por Márcio Souza, deve-se
considerar as dificuldades orçamen-
tárias, técnicas e de produção para
a realização desse ou de qualquer
filme no Amazonas, naquela épo-
ca. Evidencia-se, em razão desse
quadro, a ousadia de se traduzir um
romance que foi tratado de forma
paralela no próprio livro que tem
como foco principal a aventura de
um monarca destituído de todos os
seus valores sociais e financeiros,
restando-lhe apenas a dignidade,
enfrentando e vivenciando uma
selva hostil e bárbara na visão civi-
lizada; um lugar onde a lei era a do
Coronel do seringal e a satisfação
dos prazeres, muitas vezes, ficava a
cargo de uma égua.
Esse aspecto o filme deixa claro.
Ao encerrá-lo, Márcio Souza justifica
o assassinato do Coronel pelo escra-
vo Estica, sempre humilhado, com
a interpretação do próprio escravo,
cujas falas surgem apenas no final:
“A gente mata quem não gosta de
liberdade” – um final mensageiro,
provavelmente, em razão do clima
dos anos de 1970.
Na Selva, filme dirigido por Leo-
nel Vieira, com uma produção bem
mais sofisticada, e uma linguagem
fotográfica mais apurada, o rotei-
ro mostra, de cara, um ataque de
índios a um seringueiro, buscando
Ferreira de Castro, Márcio Souza e Leonel Vieira e suas versões de A Selva
Foto
s: D
ivul
gaçã
o
Imagens da versão de Leonel Vieira, finalizada em 2002
45valercultural
no ambiente selvagem o foco para
a história. Um ambiente com fatos
bem mais detalhados do que no
primeiro filme, principalmente, nas
passagens que justificam o mundo
selvagem, como: o assassinato co-
metido pelo personagem de José
Dumunt e, na sequência, o próprio
assassinato pelos capatazes do Co-
ronel, atribuída aos índios pelo se-
ringueiro mais experiente na lida,
encarnado por Chico Diaz.
Outras passagens, mais deta-
lhadas no segundo filme, foram: a
extração do látex na seringueira,
deixando claro que deveria haver
alguma habilidade para tal, e na for-
mação da própria pela (a borracha
embalada em forma oval) quando
a fumaça intoxicava o seringueiro; o
piano na casa do Coronel, um con-
traste com os rifles sempre às mãos
e o chicote à disposição; a fuga e o
resgate dos seringueiros pelos capa-
tazes; a tortura e, por fim, o detalha-
mento do próprio subnúcleo da tra-
ma romanceada, o amor entre o já
então contador, não mais seringuei-
ro, Alberto e a dona Yayá, esposa do
guarda-livros (contador) Guerreiro,
vivido por Paulo Gracindo Jr.
Mesmo sendo fiel ao livro que
ressalta mais o amor platônico en-
tre Alberto e YaYá, é provável que a
censura dos anos de 1970 tenha ini-
bido o diretor Márcio Souza a esta-
belecer, como o fez Leonel Vieira, a
diferença entre uma paixão platôni-
ca e um amor consumado, rodando
uma cena de sexo entre os aman-
tes. Numa outra sequência fica
marcada a diferença de leitura en-
tre os diretores. Na comemoração
de São João, o romance descreve
a brincadeira do boi-bumbá, muito
bem detalhado por Márcio Souza.
Mas o diretor português prefere o
forró como representação.
No final do seu filme, logo após
o incêndio criminoso que matou o
coronel Juca Tristão, o diretor Leonel
trabalha como ponto de finalização
não a fala do escravo Estica, que
apesar de querer não chegou a ser
apenado por seu crime, mas, sim
com a fala da narrativa em off (ape-
nas uma voz por trás da imagem)
que está presente em todo o rotei-
ro, numa alusão a um diário, como
classificou o livro o próprio Ferreira
de Castro. Na narrativa é dito que:
“A selva nunca mais saiu do meu
coração”, pensamento do Alberto, o
personagem central do romance.
“ A selva nunca mais saiu do meu coração”
Detalhes do set de filmagem do longa-metragem de Leonel Vieira, transformado em museu
46 valercultural
Detalhes
Mas, afora o jeito de contar a
história de cada diretor, a partir da
condição financeira, profissional e
tecnológica para as produções de
cada filme, sem falar da distân-
cia entre as épocas em que foram
rodados, os roteiros seguiram a
mesma estrutura, fiel às principais
passagens da história, mas sem
aprofundamento nos detalhes ex-
postos no próprio desenvolvimento
narrativo do livro.
Ambos deixaram de lado al-
guns detalhes importantes, como o
aprendizado do ex-monarca com o
comportamento da vida da própria
selva. Ele observa que as orquídeas
são parasitárias que vivem da sei-
va de outras árvores que alcançam
o sol para alimentá-las; espanta-
-se, também, com a exuberância
da fauna e da flora, com o clima
quente úmido, com presença das
onças, jacarés e com os ataques
dos mosquitos.
Essa riqueza de detalhes se
deve, segundo analistas, porque A
selva é uma autobiografia do Fer-
reira de Castro, daí a admiração e a
luta pela sobrevivência da persona-
gem Alberto, no romance. Uma vez
que o livro continua despertando
curiosidades, é bem provável que
um dia algum pesquisador descubra
que o coronel Juca Tristão existiu de
fato e tenha morado bem naque-
las bandas onde Ferreira de Castro
escolheu para escrever seu famoso
livro, à luz de candeeiro. Mas isso é
para outro filme.
Fotos: Heitor Costa
Foto
s: S
teph
ane
Bido
uze
47valercultural
“O filme de Márcio Souza vai mais a fundo nas
questões postas pelo romance. Ainda que careça
de alguns elementos de ordem estética, o filme
dirigido por Márcio Souza propõe uma leitura mais
autêntica e menos leviana sobre o ciclo da borra-
cha. O de Leonel se prende a um exotismo que se
estende do texto para os planos sequência, uma
tentativa de sobrepor as lentes sobre a trama, a
fotografia desfocada da realidade narrativa”.
Márcio Braz, ator, diretor e membro do Núcleo
de Antropologia Visual (Navi) da Ufam.
48 valercultural
O historiador Abrahim Baze lançou, em 2012,
pela Valer Editora, a terceira edição de Ferreira de
Castro – Um imigrante português na Amazônia. O
livro, sobre a vida e a obra do autor de A Selva,
além de revista e ampliada, conta com um DVD
do longa-metragem dirigido por Márcio Souza em
1972. A cópia foi restaurada a partir de originais
em película 35mm.
As obras literárias sempre atraíram ci-
neastas do mundo inteiro e de várias cor-
rentes do neorrealismo italiano à novelle
vougue francesa, até Hollywood se ren-
deu aos livros, produzindo, entre outros,
clássicos como Ben Hur (Lewis Wallace).
No Brasil, O Primo Basílio (Eça de Quei-
rós), Macunaíma (Mário de Andrade), a
A Dama do Lotação (Nelson Rodrigues);
Elite da Tropa (Rodrigo Pimentel, Luiz
Eduardo Soares e André Baptista) que
nos cinemas ficou Tropa de Elite; O que
é Isso, companheiro (Fernando Gabeira),
Memórias póstumas de Brás Cuba (Ma-
chado de Assis), Cidade de Deus (Paulo
Lins) todos foram transformados em fil-
me de bom gosto, tecnicamente corretos
e de algum sucesso de bilheteria.
49valercultural
literatura e esporte
Tite, o conselheiro
literárioCampeão da Libertadores 2012,
técnico do Corinthians costuma
indicar livros aos jogadores
Leandro Curi | jornalista
Os suspenses da inglesa Agatha
Cristie nortearam sua adoles-
cência e despertaram a paixão
pela leitura. Mas foram as au-
tobiografias e os livros sobre (ou de) grandes
esportistas que conquistaram os olhos de Tite.
Campeão da Copa Libertadores da América
de 2012 com o Corinthians, o técnico foge do
senso comum entre os colegas de profissão. E
com a mesma intensidade que comanda um
treinamento, ele se dedica a esse hábito.Em
uma era cada vez mais ligada à tecnologia e
à facilidade das redes sociais, Tite foge dos
140 caracteres do Twitter e mergulha em pá-
ginas e mais páginas de livros. Costuma ler
um atrás do outro. Sem pausa. Na contramão
da super-
f ic ia l ida-
de, muitas
vezes inerente ao futebol, o técnico gosta de
se aprofundar mais nos pensamentos. Afinal,
desde os tempos de escola ele é provocado
a isso.
“Desde adolescente tenho o hábito de
leitura. Fui incentivado na escola, fascinado
pela leitura dos livros de Agatha Cristie e im-
pressionado também pela capacidade que
um professor meu tinha de argumentação e
convencimento. Um dos livros que mais gos-
tei nessa época foi ‘Como Fazer Amigos e In-
fluenciar Pessoas’, do Dale Carnegie”, explica
o comandante corintiano.
50 valercultural
Fotos: Marcos Ribolli
51valercultural
Fazer amigos e influenciar pessoas, realmente, tem
muito a ver com a profissão de Tite, que foi jogador de
futebol de 1978 a 1989. Logo que encerrou a carreira,
precocemente por conta de um problema no joelho,
ele enveredou na carreira de treinador. Fez, sim, mui-
tos amigos. E, claro, influenciou jogadores. Do contrário,
não teria chegado tão longe nesses mais de 20 anos.
Prática comum no estilo Tite de treinar, as indicações
de leitura aos jogadores ficaram ainda mais evidentes
quando ele aceitou dirigir novamente o Corinthians, se-
gundo clube mais popular do Brasil. Seja em momentos
decisivos ou mais delicados, o treinador sempre tem
uma sugestão motivadora retirada de um livro.
“Presenteá-los com um livro ou fazer alguma citação
de experiências semelhantes são, por mim, bastante
utilizados. Esta prática vem desde o início da carreira”.
“Nunca Deixe de Tentar”, de Michael Jordan, ex-jo-
gador de basquete norte-americano, é um dos livros de
cabeceira de Tite. Principalmente quando ele quer tirar
algum ensinamento ou conselho para os seus jogado-
res. Embora acredite que esse hábito é muito importan-
te dentro dos grupos que comanda, o treinador não tem
a pretensão de fazer com que os atletas leiam mais.
Perfil
Gaúcho de Caxias do Sul, Tite nasceu no dia
25 de maio de 1961. Aos 51 anos, o atual técni-
co do Corinthians acumula em seu currículo mui-
tas vitórias. São nove títulos como técnico. Os
principais deles foram a Libertadores de 2012,
com o Corinthians, o Brasileirão do ano passado,
também pelo Timão, a Copa Sul-Americana de
2008, pelo Internacional, e a Copa do Brasil de
2001, no comando do Grêmio.
Como jogador, Tite foi volante. Jogou de
1978 a 1989. Sua carreira foi curta em razão
de um problema no joelho. Em sua carreira de
atleta, ele passou por clubes como Caxias, Es-
portivo-RS, Portuguesa e Guarani, onde foi vice-
-campeão brasileiro de 1986, perdendo a final
para o São Paulo.
Há mais de 20 anos atuando como técnico,
Tite passou pelos seguintes clubes: Guarany de
Garibaldi, Caxias, Veranópolis, Ypiranga de Ere-
chim, Juventude, Grêmio, São Caetano, Atlético-
-MG, Palmeiras, Internacional, Corinthians e Al-Ain
e Al-Wahda, ambos dos Emirados Árabes Unidos.
Foto
s: M
arco
s Ri
bolli
52 valercultural
TÍTULOS COMO TÉCNICO
Copa Libertadores da América 2012, Campeonato Brasileiro de 2011, Copa Sul-
Americana de 2008,Copa Suruga Bank de 2009, Campeonato
Gaúcho da Segunda Divisão em 1993,Campeonato Gaúcho de 2000, 2001 e
2009 e Copa do Brasil de 2001.
Seleção de Tite
• Cestas Sagradas, de Phil Jackson
Mourinho, a Descoberta Guiada, de Luís Lourenço
Valdano, Sueños de Futbol, de Carmelo Martin
A Linguagem das Emoções, de Paul Ekman
O Enigma da Preparação Física de Futebol, de Elio
Carraveta
Hablemos de Futbol, de Roberto Perfumo
Nunca Deixe de Tentar, de Michael Jordan
“O hábito da leitura é muito individual. Mas os livros
falando de esporte, em uma linguagem clara, direta,
são mais aceitos”, acrescenta o técnico do Corinthians.
Dono de um estilo bem diversificado de leitura
(aceita sugestões até mesmo da filha Gabriele, ainda
adolescente), Tite não acredita que a era da internet
tenha afastado o hábito de leitura dos brasileiros. Por
outro lado, o técnico do Corinthians aposta na evolução
da educação como melhor caminho para convencer as
crianças e os jovens a tomarem o gosto por ler.
“A melhoria da educação do país, de forma geral,
vai naturalmente aumentar o nível cultural, já com a
leitura inserida nesse contexto”, afirma Tite.
Nada mais natural do que um fã de livros como
o técnico querer escrever um livro. A ideia ainda pas-
sa por um processo de amadurecimento na cabeça de
Tite. O tema, no entanto, é certo: futebol. Quer mais
detalhes? Ele não dá!
“Vou escrever, sim, mas terei dificuldades com a mi-
nha verdade”, finaliza o técnico, mostrando que gosta
mesmo dos suspenses de Agatha Cristie.
53valercultural
regionalismo
Liége Albuquerque | jornalista
O segredo do sucesso de Amazonês – expressões e
termos usados no Amazonas –, o livro mais vendido na
1.ª Bienal do Livro do Amazonas
Legítimo dizer do caboclo
54 valercultural
Há definições tão hilá-
rias no Amazonês –
expressões e termos
usados no Amazonas,
do professor Sérgio Freire (Editora
Valer), que você esquece que está
consultando uma palavra e desanda
a ler tudo como se estivesse com
um bom livro de comédia. A obra é
feito para consulta, ou seja, um di-
cionário para entender o que signi-
ficam algumas expressões curiosas
e enraizadas no dizer do legítimo
caboclo amazonense.
A consulta era “embiocar”, daí
encontra-se o “e olhe olhe” e o in-
defectível “égua” e não dá para dei-
xar o livro de lado. O verbete “égua”
vem com uma explicação bastante
esclarecedora, já que quem convi-
ve com típicos amazônidas ouve
a expressão para tudo quanto é
coisa. “Égua pode ser usado em
várias situações. Tomou um susto:
‘égua!’. Alguém faz algo que você
não entendeu: ‘égua...’. Uma situa-
ção estapafúrdia? ‘Éééééguaa, ma-
Legítimo dizer do caboclo
ninho...’. A entonação faz parte do
sentido”.
Não à toa foi o mais vendido na
1.ª Bienal do Livro do Amazonas,
que ocorreu em Manaus, em abril
deste ano. “Comprei para levar para
meus amigos em São Paulo, onde
estudo, que adoram minhas regio-
nalidades no falar”, disse a estudan-
te de Design Larissa da Mata Souza.
“Nossas diferenças no falar, pelo
menos entre meus amigos, não é
motivo de gozação, embora a gente
“ Comprei para levar para meus amigos em São Paulo, onde estudo, que adoram minhas regionalidades no falar”
55valercultural
dê muita risada, mas o sentimento
é de curiosidade mesmo”.
O livro surgiu de um trabalho
que Sérgio Freire fez no doutorado,
na disciplina Sociolinguística, e o ar-
tigo que deu origem a ele está na
primeira parte do livro. Em sua intro-
dução, o professor destaca que, por
tantas diferenças, alguns linguistas
já ousam chamar o português de
língua brasileira. “São línguas com
materialidades tão distintas que, ao
instalar um programa no computa-
dor, por exemplo, há a opção para
ambos os idiomas como se fossem
dois, porque de fato o são”, diz.
E essas fronteiras linguísticas são
muito tênuas e móveis: o amazo-
nês se mistura ao falar paraense, ao
gauchês, ao baianês. Mesmo assim,
não impediu que o autor recebes-
se reclamações de gente de outros
Estados requisitando a paternidade
dos verbetes.
“É bobagem reclamar a natura-
lidade dos termos. Recebi até um
e-mail meio agressivo, como se eu
houvesse roubado uma coisa sua,
de um paraense. Ele não deixa de
ter razão. Também era linguagem
dele, além de minha”, destaca. “O
dicionário não é para dizer que isso
é nosso, mas que é significativo
aqui”.
Coleta
Para compor o dicionário, o au-
tor coletou dados nas seis zonas
geográficas de Manaus. O interior
foi parcialmente coberto com ajuda
2.000O dicionário tem em
torno de dois mil
verbetes, distribuídos
em 109 páginas.
de amigos ou parentes que moram
nos municípios, em e-mails. O autor
já estuda uma segunda edição, cer-
tamente mais rica, com expressões
do interior, já que a caixa de e-mail
do autor está sempre cheia de cola-
boradores anônimos.
Há exemplos de como se chama
o “sacolé” dos paulistas no Amazo-
nas: em Parintins é “flau”, mas em
Manaus é “din-dim”. Há ainda a
possibilidade de a segunda edição
ser trabalhado um dicionário etimo-
O autor usa o nome de
amigos e familiares em
vários verbetes. Como na
palavra “a própria”, onde
brinca com o nome da
irmã, Ana Paula Freire.
“A Ana Paula comprou
um perfume francês e
chegou aqui se sentindo
a própria”. Em tempo:
a própria significa, em
amazonês, a tal, a boa, a
melhor.
CURIOSIDADE EM NÚMEROS
“ É bobagem reclamar a naturalidade dos termos”
Foto
s: H
eito
r Co
sta
56 valercultural
Título: Amazonês – expressões e termos usados no Amazonas – 2.ª ed.
Autor: Sérgio Freire
Editora: Valer
Gênero: Dicionário
lógico. “Mas é algo que demanda
uma equipe, provavelmente nosso
grupo de pesquisa na Universidade
Federal do Amazonas (Ufam) assu-
mirá essa tarefa”.
Na pesquisa, o professor detec-
tou que a predominância da lin-
guagem do amazonês na capital é
mais percebida nas áreas de menor
poder aquisitivo e de menor acesso
aos bens sociais. Curiosamente, a
identificação positiva aparece muito
mais nos falantes de uma faixa eco-
nômica mais privilegiada e, a nega-
tiva, mais comuns entre os falantes
nas zonas mais pobres.
“Apesar de fazer uso da lingua-
gem local com mais frequência,
ser identificado como ‘caboco’ traz
imediatamente uma sensação de
negação identitária, como se essa
identidade ‘ruim’ devesse se apa-
gada ou dissociada de si”. O reca-
do na linguagem padrão é: “Não é
bom falar como eu falo porque isso
lembra que eu sou o que eu sou,
morador da periferia sem acesso
aos aparelhos sociais”.
Sérgio levanta ainda a necessida-
de de a história das raízes do falar
caboclo precisar ser preservada e
ensinada em sala de aula para não
morrer. “Ao aluno deve ser propor-
Sinopse: O livro traz expressões populares
no linguajar tradicional do caboclo, trazido
para a capital e difundido pelo país.
Tem termos enriquecidos com frases
de exemplos bastante elucidativos e
FICHA TÉCNICA
engraçados, como no verbete
“Ficar de bubuia: ficar sem fazer
nada, ficar flutuando na água. ‘E aí,
Zé, nadando um pouco?. Não. Tô só
aqui de bubuia um pouquinho”.
cionado o acesso à língua padrão
e cabe à escola essa experiência.
É pela língua padrão que ele aces-
sa bens culturais que ampliam seu
espaço de cidadania. A escola não
deve se furtar a tal tarefa sob pena
de ser uma escola excludente”.
Sérgio Freire, um sociolinguista interessado no amazonês
57valercultural
A antiepopeia dos
Escrito na cidade de Ega (atual Tefé), pelo mi-
litar português Henrique João Wilkens, em
1785, o poema épico Muraida não apenas
inaugura a literatura que, a partir de então,
se produziu no Amazonas, como também apresenta e
defende a atuação do colonialismo contra as populações
indígenas.
Trata-se, na verdade, de um poema épico, não de
uma epopeia, posto o texto de Wilkens não trabalhar
motivos enraizados na memória popular nem tratar de
um herói excepcional, que se destaque por suas quali-
Marcos Frederico Krüger | professor e escritor
literatura
58 valercultural
dades nos combates ou pela nobre-
za de caráter.
De que trata, afinal, o poema
do militar luso? Trata, segundo o
que ali se expressa, da pacificação
e cristianização dos índios muras,
que povoavam, originalmente, o rio
Madeira, mas que, perseguidos pe-
los colonizadores, buscaram refúgio
no Solimões. Podemos, no entanto,
traduzir essa “verdade” em outras
palavras: a Muraida trata da acul-
turação e escravização dessa etnia.
Durante a colonização, os por-
tugueses enfrentaram sérias resis-
tências da população autóctone. O
exemplo mais significativo foi a re-
volta de Ajuricaba, herói dos ma-
naus, ocupantes do rio Negro, na
primeira metade dos anos 1700.
Já os muras não davam trégua aos
brancos em outras partes do ter-
ritório.
Como característica marcante da
obra de Wilkens, salientamos o fato
de ela ser um poema camoniano,
como o foram outros poemas épi-
cos pertencentes ao cânone da li-
teratura brasileira: Prosopopeia, de
Bento Teixeira, datado de 1601, e
Caramuru, do frei José de Santa Rita
Durão, de 1781.
Ser camoniano significa, inicial-
mente, obedecer à estrutura do
poema Os Lusíadas, de Luís de Ca-
mões. As estrofes possuem oito ver-
sos e as rimas se dispõem segundo
o esquema abababcc (a chamada
oitava rima). A medida dos versos
também é padronizada: são decas-
sílabos, quase sempre heroicos.
Quanto ao desenvolvimento do
enredo, a Muraida é quase fiel ao
texto “original”. Assim, começa com
uma Proposição, contida na primei-
ra estrofe (Camões faz a sua nas
três estrofes iniciais). Depois, vem
a Invocação (estrofes 2 e 3). Se o
poeta do Renascimento invoca as
A antiepopeia dos Tágides, musas do rio Tejo, Wilkens
é bem menos criativo, pedindo o
favor da inspiração a Deus (ou ao
Espírito Santo):
Mandai raio da Luz, que comunica
A entendimento, acerto verdadeiro,
Espírito da Paz!
Em seguida, começa a Narração
propriamente dita. Falta ao poema
amazônico o oferecimento, que
no texto de Camões, vindo antes
da parte narrativa, se situa entre
as estrofes 6 e 18, do Canto I. Na
Muraida, o Oferecimento está fora
Vista da cidade de Tefé retratada por Edouard Riou para a edição
Le Tour du Monde, Paris, 1867
59valercultural
do texto, constando do que podemos definir
como uma extensão do título.
Portanto, logo após a Invocação, o poema
de Wilkens começa a narração, que prosse-
gue até o Epílogo, o qual pode ser situado
apenas na última estrofe (em Camões, consta
das estrofes 145 a 156 do Canto X).
Outra quebra – além da falta do Ofereci-
mento – em relação às diretrizes “impostas”
por Os Lusíadas se verifica numa estrofe que
precede cada um dos seis cantos, à qual o
autor chama de argumento. Trata-se de uma
espécie de resumo do que será desenvolvido
naquele canto.
A falta da matéria épica fez o texto sobre
os muras ser bastante reduzido: Os Lusíadas
compõem-se de 1.102 estrofes e 8.816 versos;
a Muraida, de 134 estrofes e 1.072 versos.
Wilkens foi também buscar na fonte ca-
moniana a inspiração para alguns episódios
de sua narrativa. Assim, o Anjo que desce à
Terra, a fim de pregar o cristianismo entre os
índios, assume a forma de um mura. Para
melhor convencer o índio a quem aparece,
ele se transmuda em um rapaz que fora víti-
ma fatal do ataque de um jacaré:
Despojo reputado, que do injusto
Fado, alimento estava destinado,
Dum Crocodilo enorme, e devorado.
Em Os Lusíadas acontece episódio seme-
lhante: quando os portugueses estão na costa
africana, o deus Baco assume a forma “dum
Mouro, em Moçambique conhecido” (Canto I,
est. 77). Com tal disfarce, influenciou o régu-
lo, com o objetivo de que ele destruísse os
navegantes.
Na epopeia do Gama, quando os nautas
estão prestes a se fazer ao mar, aparece o Ve-
lho do Restelo, que impreca contra os desco-
bridores. Camões representa, nesse episódio,
as forças conservadoras, aquelas que se man-
tinham presas a um passado que a descober-
ta do caminho marítimo para as Índias iria de-
finitivamente sepultar (Canto IV, est. 94-104).
Algo similar acontece na Muraida, quando o
evangelho está sendo pregado aos índios: um
ancião, preso aos costumes ancestrais da tri-
bo, se levanta e protesta contra as palavras
do orador (Canto Terceiro, estrofes 16 a 21):
Mas entre os Anciões, um Velho encosta
A ressecada mão, com gesto raro,
Na negra face adusta, e enrugada,
Estremado responde, em Voz irada.
Embora calcado em Camões, a leitura des-
se episódio permite estabelecer uma diferen-
ça significativa entre Os Lusíadas e a Muraida.
Na epopeia lusitana, os Mouros são sempre
vistos como os infiéis, os impuros, aqueles a
quem é necessário exterminar por não segui-
rem a verdadeira religião, o cristianismo. No
poema épico de Wilkens, no episódio do an-
cião da tribo, os vencidos (os muras) têm voz,
pois o velho índio relata todas as atrocidades
cometidas contra os de sua raça:
Grilhões, Ferros, Algemas, Gargalheira,
Açoutes, Fomes, Desamparo e Morte,
Da ingratidão foi sempre a derradeira
Retribuição, que teve a nossa sorte.
Essa passagem do texto constitui-se em
exceção, pois a ideologia que permeia a Mu-
raida é, como já afirmamos, a de proclamar
a excelência do colonialismo, estorvada pelos
ataques dos bárbaros destituídos da verdade
divina.
Capa da edição de 1993
60 valercultural
O conflito principal, aquele que gera a
narrativa, não é, como se pode pensar, en-
tre os índios e os brancos, mas entre Deus e
o Demônio. Por desígnios insondáveis, Deus
resolve que os muras se tornariam cristãos e,
em consequência, estariam aptos a ganhar o
reino dos céus. Contra isso se revolta Satanás,
que não admite que esses índios, que esta-
vam sob seu poder, tivessem a possibilidade
da redenção. As razões do Demônio são as de
que os índios não eram gente e, como tal, não
poderiam ocupar o lugar que já fora dele nas
moradas celestiais, de onde fora expulso. Diz
ele aos seus asseclas (Canto Sexto, estrofe 6):
Os olhos levantai, vede essas Feras,
(Pois serem racionais, só a forma indica)
Já quase a substituir-nos nas Esferas
Celestes destinadas.
O final da luta é previsível: vence o Bem:
os índios aceitaram o cristianismo. Significa-
tivamente, o poema termina com o batizado
de “vinte infantes” muras, simbologia do que
os colonizadores consideraram uma vitória
daquele povo.
Manuscrito
Composto em 1785, o texto foi enviado
a Portugal, posto não haver imprensa na re-
gião. Foi publicado em 1819, 34 anos após a
escritura. No frontispício, havia indicações que
tornaram ambígua a autoria. Ali se lia que a
transcrição portuguesa havia sido feita pelo
padre Cypriano Pereira Alho. Tal fato gerou
interpretações equívocas, como as de que o
poema teria sido escrito, originalmente, em
língua mura ou nheengatu, a língua geral.
Além disso, a má impressão, que misturou
estrofes de cantos diversos, comprometeu o
entendimento do poema.
Somente a descoberta dos manuscritos,
no início dos anos 90 do século passado, tor-
nou possível estabelecer a verdade sobre a
primeira obra literária do Amazonas. Não só
se pôde ordenar os cantos e as estrofes tal
como os compusera Wilkens, como saber que
ela fora escrita em português. Deduz-se, en-
À edição inicial de 1819, seguiu-se a de 1993, levada a cabo
pela Biblioteca Nacional, Universidade Federal do Amazonas e
Governo do Estado, por iniciativa do escritor Márcio Souza. Nela,
foi reproduzido o manuscrito de Wilkens, além da edição feita sob
a responsabilidade de Cypriano Alho. A terceira é esta, da Editora
Valer, em seu admirável propósito de documentar e divulgar as
obras significativas de nossa cultura, já que a Muraida possui um
valor histórico inestimável.
tão, que o padre Alho usara de subterfúgio
para se apropriar da autoria da Muraida, pois
traduzir é recriar, ainda mais quando se trata
de poesia.
Alguns bons momentos de lirismo, consi-
derando-se a época em que foi escrito, se ob-
servam no texto de Wilkens, principalmente
nas comparações, como a que se lê no excer-
to abaixo (Canto Primeiro, estrofe 7):
Entre os frondosos Ramos, que bordando
As altas margens vão, de esmalte raro,
Servindo estão mil rios, tributando
Correntes argentinas, que no avaro
Seio recolhe o Amazonas.
A Ilíada, de Homero, é a epopeia cujo tí-
tulo se refere (ironicamente?) aos derrotados:
Ilíada vem de Ílion (ou Troia), a cidade inva-
dida e destroçada pelos gregos. Tal como a
epopeia homérica, a Muraida “homenageia”
no título os derrotados, aqueles que foram
destituídos de sua cultura. Mas esse é o nos-
so ponto de vista, não o do autor da obra,
que certamente julgou vencedores aqueles
que passaram a enxergar a luz da “verdadeira
religião”. Daí o subtítulo (ou complemento do
título) do poema: “O Triunfo da Fé”.
61valercultural
e o sentimento do
documento
Drummond de Andrade, um
dos poetas mais conhecidos do
Brasil, morto em 1987, recebe
homenagens em todo o país
pela passagem dos seus 110
anos de nascimento. Nada mais
justo, porque sua poesia ecoa
ensinamentos, às vezes de forma
dura como a realidade, sobre os
enigmas da condição humana.
62 valercultural
Mineiro de Itabira, Carlos Drummond de
Andrade nasceu em 1902. Fez prati-
camente a travessia do século que se
encerra, morrendo, em 1987, no Rio de
Janeiro. Passou a infância na cidade natal, partindo mais
tarde para Belo Horizonte, onde se iniciou no jornalis-
mo, ao mesmo tempo em que participava da vida in-
telectual, ligando-se ao grupo modernista e publicando
seus primeiros poemas.
Formado em Farmácia, o escritor dedicou-se à lite-
ratura. Durante anos colaborou em diversos jornais de
Minas e do Rio de Janeiro. Sem poder sobreviver de sua
arte, ingressou no funcionalismo público, atividade em
que se aposentou. Sua estreia aconteceu em 1930, com
o livro Alguma poesia.
Foi um dos fundadores, em 1925, do principal órgão
modernista de Belo Horizonte, A Revista. Em 1928, ao
publicar, na Revista de Antropofagia, seu célebre poe-
mundoma No meio do caminho provocou escândalo e acirrada
discussão. O texto é expressivo do caráter irreverente
que caracterizou a fase heroica do modernismo. Mais
do que uma provocação, o poema é ilustrativo de uma
das temáticas recorrentes na obra de Drummond – os
obstáculos da vida. No seu caminhar, o ser humano en-
contra muitas pedras:
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
e o sentimento do
Tenório Telles | escritor
63valercultural
2
Ao refletirmos sobre os descaminhos das civilizações contem-
porâneas, não há como ignorar essa obsessão pelo imediato, pelo
fugaz em que tudo parece e nada é. Essa percepção da incons-
tância da vida, do desencontro, do agônico e do próprio absurdo
da existência não escaparam à sensibilidade poética de Carlos
Drummond de Andrade, como se depreende da leitura do Soneto
da perdida esperança:
Perdi o bonde e a esperança.
Volto pálido para casa.
A rua é inútil e nenhum auto
passaria sobre meu corpo.
Vou subir a ladeira lenta
em que os caminhos se fundem.
Todos eles conduzem ao
princípio do drama e da flora.
Não sei se estou sofrendo
ou se é alguém que se diverte
por que não? na noite escassa
com um insolúvel flautim.
Entretanto há muito tempo
nós gritamos: sim! ao eterno.
3
Sintonizado com os dramas, angústias e esperanças vividas
pelo homem contemporâneo, Drummond constrói uma poesia
articulada com seu tempo. Apesar de suas dúvidas e ceticismo,
do tom melancólico e contido de seus versos, é evidente em sua
obra o compromisso com a vida, com a condição do ser humano
no mundo. O poema “Mãos dadas” é expressivo da obstinação
do poeta diante da realidade, seu enfrentamento solitário do ab-
surdo, desesperança e solidão que corroem a alma do homem.
O texto é uma afirmação de seu inconformismo e generosidade:
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mão dadas.
(...)
64 valercultural
Foto: Divulgação
65valercultural
ções que marcaram a década de 20,
em particular a crise que se seguiu à
quebra da bolsa de valores de Nova
Iorque, em 1929, e que culminou
no fim da República Velha. Sua obra
teve como pano de fundo as movi-
mentações políticas que resultaram
na implantação do Estado Novo, a
Segunda Guerra Mundial, a Guerra
Fria. Nos anos de 1960, assistiu ao
triunfo da intolerância política com
o golpe militar de 1964.
Como não se passa impune-
mente pela vida, o poeta não ficou
indiferente a esses acontecimentos.
A indignação e a consciência da ne-
cessidade de resistir à banalização
da maldade e ao triunfo da barbárie
impulsionaram Drummond a um po-
sicionamento crítico diante da reali-
dade. O escritor aderiu à causa socia-
lista, colocando sua arte a serviço da
vida, da luta contra tudo que ultraje o
ser humano. O poema “Nosso tem-
po”, do livro A rosa do povo, publica-
do em 1945, é uma evidência do seu
comprometimento social:
O tempo é a minha matéria, o
[tempo presente, os homens
presentes, a vida presente.
A produção poética de Drum-
mond tem como fundamento o
humano, perpassada por intensa
densidade existencial e profundo
conteúdo filosófico. Soube traduzir
poeticamente as inquietações de
seu tempo, os dilemas de uma épo-
ca marcada pela intolerância, pelo
vazio, ameaçadora para a vida.
4
A poesia de Carlos Drummond
de Andrade está identificada com
o espírito modernista. O autor é o
mais destacado representante da
geração que surgiu nos anos 30, da
qual fazem parte Murilo Mendes,
Jorge de Lima, Vinicius de Moraes e
Cecília Meireles.
Drummond testemunhou os
grandes acontecimentos que mar-
caram o século XX. Viveu as agita-
Este é tempo de partido,
tempo de homens partidos.
Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida
[esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo.
[Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não
[nascem
da lei. Meu nome é túmulo, e
[escreve-se
na pedra.
(...)
O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições,
[símbolos e outras armas
promete ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma
[floresta,
um verme.
Diferente dos autores do primei-
ro momento modernista, mais liga-
dos a uma postura irreverente e ex-
perimental, os poetas da segunda
geração, que se firmam na década
de 30, farão uma poesia de compo-
nente reflexivo. Suas obras refletem
uma profunda preocupação com o
sentido da existência humana, o
confronto do homem com a reali-
dade, expressivo de seu estar-no-
-mundo. Esse modo de perceber a
vida explica o conteúdo existencial
que perpassa a poesia dessa gera-
ção: Não, meu coração não é maior
que o mundo. / É muito menor. /
Nele não cabem nem as minhas
dores. / Por isso gosto tanto de me
contar.
66 valercultural
5
A poesia de Carlos Drummond
é um testemunho vívido e humano
sobre a vida e sua época. A leitura
de suas obras deixa evidente sua
inquietude e irresignação diante da
realidade. Suas posições em face
dos problemas que marcaram seu
tempo.
Há escritores que não se lê
impunemente. Drummond é um
desses autores. Seus poemas são
prenhes de questões, nos fazem
pensar sobre o sentido de nossas
vidas. Dentro de uma perspectiva
didática, é possível determinar cer-
tas margens de sua produção poé-
tica. Os temas mais constantes em
sua obra.
O desajustamento do indivíduo é uma marca fundamental de
sua poesia. O poeta se sente um ser à margem, deslocado de seu
tempo, um gauche, alguém que está à esquerda, isolado, como
se depreende dos versos do “Poema de sete faces”:
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser ‘gauche’ na vida.
(...)
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
(...)
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
O menino Carlos Drummond, em Itabira, e com a família em 1915
Foto
s: D
ivul
gaçã
o
67valercultural
Esse sentimento de fragilidade e impotência diante
de seu próprio existir-no-mundo, perpassado por um
tom melancólico, é característico de seu discurso po-
ético. Em alguns poemas, como “Confidência do itabi-
rano”, é expresso de forma nostálgica, em que recom-
põe por meio da memória a infância, a família, o pai,
a cidade. O passado projeta-se, de forma dolorosa, no
presente:
Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida
[é porosidade e comunicação.
A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas,
[sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.
(...)
Tive ouro, tive gado, tive fazenda.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!
6
A poesia de Drummond afirma-se pela riqueza te-
mática. Sua obra é como um caleidoscópio em que o
rosto estilhaçado do tempo se reflete, a vida em seu
escoar contínuo. Captura no cotidiano a matéria com
que compõe as malhas de seu canto.
Nada escapou ao seu olhar gauche, nem mesmo
o fazer poético. É recorrente em seus textos a reflexão
sobre a poesia, a linguagem, a magia de transformar
o silêncio em canto, desnudando a face das palavras.
A metalinguagem é um traço marcante de sua arte. O
poema “Procura da poesia” é ilustrativo de sua alqui-
mia poética:
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
Há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
(...)
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
Tem mil faces secretas sob a face neutra
E te pergunta, sem interesse pela resposta,
Pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Percebe-se assim que o fazer poético não é o exercí-
cio da inocência, do transbordamento de desordenadas
emoções. A poesia é o espelho estilhaçado em que se
reflete o mundo, a vida. Ao contemplá-lo, o poeta captu-
ra os fios evanescentes com que tece as malhas de seu
canto. É um diálogo com o ser, com a alma fraturada dos
homens. Como dizia o filósofo Martin Heidegger, em seu
belo estudo sobre a poesia de Hölderlin: A linguagem
68 valercultural
originária, porém, é a poesia na
sua qualidade de instituição do ser.
7
Drummond decifrou o enigma:
a vida é uma miragem, um fio par-
tido entre o silêncio e o abismo. Rio
que caminha para o vasto mar da
memória. É inevitável em seu fluir
corrosivo e nada escapa à voraci-
dade do tempo. Tudo sucumbe ao
destilar contínuo de suas águas. Re-
sistir é o que nos resta – dizer não à
vulgaridade, à morte da esperança,
ao poder e à mentira. Defender a
vida do lobo que a espreita avida-
mente. Ou como diz o poeta:
Alguns, achando bárbaro o
[espetáculo,
Prefeririam (os delicados)
[morrer.
Chegou um tempo em que não
[adianta morrer.
Chegou um tempo em que a
[vida é uma ordem.
A vida apenas sem
[mistificação.
Foto: Divulgação
69valercultural
gastronomia
70 valercultural
um prato multicultural
É como a Yosakoi Soran, a dança
japonesa para todas as idades, e está
disponível em vários sabores, diferentes
lugares, na forma tradicional do Oriente e
reinventado no Ocidente. O temaki pede
passsagem para unir culturas.
Típico da culinária japonesa, o temaki invadiu o mundo.
Entrou mansamente para tornar-se, na atualidade, um
dos alimentos mais festejados nas diferentes regiões da
Terra – dos Estados Unidos a Manaus (AM). A grande
viagem faz percursos parecidos a de outras iguarias de tantos
povos que, por diferentes motivações, deixaram sua terra natal
para viver em outros lugares. São receitas escritas ou decoradas,
recriadas. Ora viajam nas mãos de seus donos, em pedacinhos de
papéis colocados nos bolsos, entre as páginas dos livros ou entre
os documentos mais pessoais; ora são reveladas no reavivamen-
to do acervo escondido nas memórias dos viajantes.
Essas receitas são identidades ou fragmentos delas refirman-
do culturas, resistências, aproximando-as, revelando-as, rein-
ventando-as como resultado da simbiose da existência humana.
Ivânia Vieira | jornalista
Foto
: Shu
tter
stoc
k
71valercultural
É assim com
o temaki, um
alimento feito lite-
ralmente à mão, como
manda a tradição japone-
sa. Aliás, é isso que a expressão,
na tradução mais geral, significa: Te =
mão; maki = enrolado. É um sushi em forma
de cone, parecido, apenas na forma, com os cas-
calinhos de sorvete, também amado por milhares de
consumidores.
Em Manaus, as temakerias são um termômetro do
interesse, principalmente, por parte dos jovens, por
essa iguaria. São espaços elevados à categoria de point
(o ponto) e, como um bom negócio, os donos dessas
casas diversificam o serviço para ganhar mais clien-
tes. É possível, na cidade, saborear um temaki em am-
bientes agradáveis, frutos de composições das culturas
oriental e ocidental e, se não há tempo de ir até eles,
o consumidor pode pedir. O delivery (entrega) cresce
junto com o sucesso do alimento.
A arte da recriação
Do temaki tradicional do Japão ao temaki mundia-
lizado há diferenças importantes. Para uma parcela de
japoneses, o que se comercializa em vários países oci-
dentais como temaki não é temaki. O tradicional é feito
apenas com alga, arroz, verdura e sashimi (filé muito
fino de peixes crus), explica o vice-cônsul-geral do Ja-
pão em Manaus, Hiroaki Aizawa.
A americanização da iguaria está envolta no pro-
cesso de migração. Aizawa afirma que tanto os japo-
neses que se deslocaram para outros lugares, como os
EUA, quanto os estrangeiros que foram para o Japão
reconstruíram o temaki a partir daquilo que era dis-
ponível para eles, do hábito alimentar e do desejo de
reinventar que move a humanidade.
Hoje, o temaki mundializado tem hambúrguer com
molho adocicado, queijo, filé de frango. E é esse mo-
delo multicultural que a geração mais jovem do lado
ocidental aprecia. Com ele crescem as rodadas de con-
versas em torno da cultura japonesa e muitos jovens se
descobrem motivados a saber sobre Mangá (quadrinho
japonês de grande sucesso), Sumiê (pintura japonesa
com tinta monocromática à base de carvão e água),
língua japonesa...
É recorrente encontrar o sushi (no modo tradicional
feito de arroz com vinagre levemente doce) com frutas,
entre elas, manga, afirma Sandra Nagase, assistente ad-
ministrativa do Setor Cultural do Consulado do Japão em
Manaus. O sushi está de volta para o Japão, levado pelos
japoneses que moram ou moravam nos Estados Unidos,
mas com um jeito americano e, no Japão, muitas pesso-
as gostam desse novo arranjo, exemplifica Nagase.
Dados do Consulado mostram que há um interes-
se crescente, em Manaus, pela culinária japonesa, com
participação expressiva de homens. Também despon-
tam entre os cursos mais procurados os de artesana-
to, esse bastante demandado pelas mulheres. Sandra
Nagase lembra que a oferta de cursos sobre a culinária
japonesa é uma orientação do Governo japonês desde
os anos de 1980. Neste século, os cursos oferecidos
pelo Consulado reúnem turmas de 25 pessoas, e o per-
fil tem sido o de homens, donos de restaurantes de
comida a quilo.
Ler e comer
Carlos Eduardo Oshiro é um jovem em-
presário e consultor de empresas em Manaus
(AM), onde mora desde 1995. Formado em
Administração com especialização em Marke-
ting, viveu, durante três meses, no Japão, como
Foto
: Div
ulga
ção
72 valercultural
dekassegui. A VALER CULTURAL conversou com Oshiro so-
bre literatura e culinária. A seguir a entrevista:
A literatura japonesa incentiva a expansão e a di-versificação da culinária japonesa?
Oshiro: Acredito que seja ao contrário. Ao provar a culi-
nária japonesa, os jovens passam a se interessar
pela cultura e buscam aprofundamento no tema por
meio de livros e de outras informações.
Qual é o bom negócio nessa mistura (literatura e culinária)? Tem exemplos?
Oshiro: A culinária no Japão é aliada à leitura. Muitos
restaurantes e bares disponibilizam revistas e livros
em seus locais para que as pessoas possam se en-
treter.
O senhor tem um indicador de que os jovens estão buscando mais esses espaços como ambiente de encontro?
Oshiro: Em Manaus, as temakerias têm atraído os jo-
vens, mas não tenho conhecimento de locais que
possuam literatura unido a isso. Desconheço essa
mobilização.
Mangá e culinária têm uma estrada longa e boa nesse mundo globalizado?
Oshiro: O Mangá tem um público específico que curte
esse tipo de leitura. Mas ainda é muito restrito no
Brasil.
Como situa o papel das temakerias na atualidade?Oshiro: As temakerias sofreram um boom em nossa
região e se tornaram mais uma opção de alimenta-
ção para o brasileiro. Em consequência elas ajudam
a divulgar a culinária japonesa, apesar de o temaki
ser uma adaptação para a culinária brasileira.
A temakeria Yoi Roll’s & Temaki
(bom, em português) é a pioneira
nesse nicho de mercado gastronô-
mico japonês, e, de acordo com o
dono do negócio, Bruno Joffeti Tino-
co, 29, é a única a ser franqueada
para vender o tradicional temaki. A
Yoi está em Manaus há três anos e
meio, funciona diariamente, a partir
das 12h, e, aos domingos, das 18h.
As temakarias ou temakerias
(as duas formas são aceitas) no Su-
deste do país são hoje um lugar-
-referência de encontro de jovens,
afirma Bruno. Em Manaus, o em-
presário percebe um público ecléti-
co (jovens e adultos) frequentando
o espaço que ele comanda. Trata-
-se de um público de classe mé-
dia e alta, aponta. O preço médio
do temaki é de R$ 12,50. A média
de gasto por cliente – um temaki e
uma bebida – é de R$ 30.
Na loja de Tinoco, os produtos
são importados do Japão, inclusi-
ve o arroz. Nesse lugar, o temaki
é o carro chefe, mas os clientes
também podem encontrar ou-
tras iguarias da culinária japonesa
como sushi, sashimi, e também
saladas e hot house. A maioria dos
frequentadores desse espaço é de
brasileiros. A ligação cultural é feita
pelo temaki.
Foto
: Div
ulga
ção
73valercultural
ensaio | Raphael Alves
74 valercultural
Daniela de Tofol | jornalista
O interesse pelo ser humano parece ter
despertado em Raphael Alves bem antes
que a própria paixão pela fotografia. Ain-
da criança gostava de observar as pesso-
as e ver como interagiam com seu meio, como se com-
portavam no trabalho, na rua. Sabendo disso, não fica
difícil entender o que há nas entrelinhas das imagens
do ensaio “Quando as águas...”, de autoria do fotógra-
fo, nascido em Manaus-AM. Com fortes traços de an-
tropologia visual, o ensaio traz as impressões pessoais
de Raphael Alves sobre o ser humano que precisa se
adaptar ao ciclo das águas dos rios da bacia amazônica.
Trata também da necessidade daqueles que precisam
driblar problemas como a falta de saneamento básico
e de estrutura em moradia. Mais que isso, abre ainda
debate sobre uma capital e uma pretensa região me-
tropolitana que agoniza em termos de organização. O
projeto, que traz até agora fotos da cheia que já atingiu
a marca recorde de todos os tempos no Amazonas, vai
se estender também pelo período de vazante dos rios.
75valercultural
Outra característica do ensaio é a constante procura do fo-
tógrafo – característica marcante em toda sua obra – por criar
laços com o assunto, deixando de ser mero observador para
ocupar a posição de parte no processo de reportagem-foto-
gráfica. A imagem da criança com os pés dentro d’água na
rua Frei José dos Inocentes que observa curiosamente e quase
de ponta-cabeça o trabalho de Raphael, ou olhar natural da
senhora que segura uma imagem de Jesus Cristo em frente
à sua casa alagada na vila do Cacau Pirêra, são indícios de
como o fotógrafo cativa o observador a participar das suas fo-
76 valercultural
Com a maior parte dessas caracterís-
ticas – que ultrapassam o campo das es-
colhas, justamente por sua naturalidade
– é quase inevitável questionar Raphael
sobre a mensagem que almeja levar. Para
o fotógrafo, muito mais que a apresen-
tação de uma opinião pessoal, fotografar
é levantar debates. “Ficaria satisfeito se
soubesse que meu trabalho está ao me-
nos gerando debate. Não quero empur-
rar uma opinião pronta. Procuro, em vez
disso, uma mensagem inacabada, que
não seja uma receita pronta para o es-
pectador do meu trabalho. Se eu tivesse
a pretensão de produzir uma mensagem
fechada, sem frestas ou arestas a aparar,
automaticamente excluiria o observador
do debate. E eu quero sempre ter o es-
pectador como parte fundamental deste
diálogo”, encerra.
tografias, refletindo sobre a vida de cada
personagem após disparar o obturador de
sua Leica analógica.
Para obter imagens como essas, Ra-
phael optou por lentes curtas (35mm e
50mm), conforme o próprio Raphael Al-
ves explica. “O tipo de trabalho que al-
mejo fazer – não somente neste ensaio
– requer que eu interaja com as pessoas.
Gosto de trabalhar com distâncias focais
curtas porque me aproximam do meu as-
sunto. Se pudesse gravar tudo no olho, o
faria. Mas como a câmera e lentes são
ferramentas necessárias, gosto que am-
bas sejam compactas. Sobre a escolha
pelo analógico, gosto do filme por me
fazer pensar mais antes de fazer uma
imagem. No digital, se eu ficar insatisfei-
to com uma imagem, basta apagá-la. No
filme, preciso pensar mais, do contrário
perco um quadro a cada imagem mal
executada”, diz.
77valercultural
acordes
Profissionais da música formados pela Universidade do
Amazonas têm mercado no Brasil e no exterior
Para músicos profissionais e estudantes da
Universidade do Estado do Amazonas, a UEA
Sinfônica é a realização de um sonho antigo
de professores e alunos da Escola Superior
de Artes e Turismo (Esat/UEA), que já formou 75 mú-
sicos “preparados para o mercado de trabalho no Brasil
e no exterior”, explica o reitor José Aldemir de Oliveira,
para quem “a sinfônica cria oportunidades para os jo-
vens conhecerem, de fato, a rotina de um músico pro-
fissional, muito diferente da imagem glamourosa que
se divulga”, enfatiza o professor.
O maestro Zacarias Fernandes afirma que a rotina
de exercícios diários, a exigência de disciplina e o con-
tato permanente com regras de postura profissional se-
rão decisivos na formação pedagógica dos estudantes.
Márcia Costa Rosa | jornalista
UEA afina
78 valercultural
Foto
: Vio
rel S
ima/
Shut
ters
tock
79valercultural
“A sinfônica significa, para nos-
sos alunos, a integração de técnica,
postura e exercício, e isso fará a di-
ferença na formação desses meni-
nos”, explica o maestro, decidido a
manter a harmonia entre o clássico
e o popular na preparação do reper-
tório das apresentações que, desde
a estreia, arrancam aplausos demo-
rados de plateias lotadas.
Durante a sua existência, fo-
ram apenas três concertos, em dois
meses de atividades, em 2011. Po-
rém, tempo suficiente para que a
UEA Sinfônica mostrasse a força de
seus acordes para diferentes públi-
cos, que, em termos de aprovação,
igualaram-se na aprovação da Sin-
fônica formada por professores e
estudantes, e criada com a função
de ser um instrumento a mais na
formação acadêmica dos alunos do
Curso de Música que comemorou os
dez anos de criação da UEA, no ano
passado.
Arte por natureza
Para Margarita Chtereva, maes-
trina e professora de Violino da UEA,
a criação da Sinfônica representa
muito mais do que a realização de
um sonho. “É impressionante como
aqui a arte está em todo lugar. O
povo amazonense é artista por na-
tureza e vocação. Nunca vi isso em
lugar algum do mundo. E a criação
da sinfônica vai proporcionar um fu-
turo brilhante para a vida profissio-
nal dos nossos alunos, porque é um
momento no qual eles estão apren-
dendo muito em termos de técnica,
repertório e até de comportamento
artístico”, comentou. Chtereva, na-
tural da Bulgária, está há 14 anos
em Manaus, dez dos quais “vividos
dentro da UEA”. Ela também atuou
em outros países da Europa, nos Es-
tados Unidos e na China.
O estudante do oitavo período
de Licenciatura em Clarinete, Ema-
nuel Vasconcelos, concorda com a
professora Margarita. Aos 22 anos, o
jovem aluno de Música da UEA já é
um experiente profissional no mer-
cado. “Há seis anos a música é um
instrumento de trabalho para mim;
é um estilo de vida e de superação.
Estudar em uma universidade com
a credibilidade da UEA nos prepara
Margarita Chtereva, maestrina e professora de Violino da UEA
Foto
s: D
ivul
gaçã
o U
EA
80 valercultural
São 54 músicos sob a regência da batuta de Zacarias Fer-
nandes, para quem “a agenda rigorosa de ensaios deve ser
a mesma para professores e alunos. Na UEA Sinfônica, todos
são músicos e, como tal, devem manter a mesma postura
profissional, com o respeito que os integrantes da orquestra
merecem, sejam eles profissionais ou estudantes”, enfatiza o
maestro, que coordenou, pessoalmente, a seleção, em audi-
ção, dos 38 alunos entre cem candidatos, para a formação da
Sinfônica, na Escola Superior de Artes e Turismo, em setem-
bro do ano passado.
tecnicamente para enfrentar qualquer desafio
na nossa área, em condições de igualdade.
Além disso, contribui para a formação cultural
dessa nova geração que precisa saber ouvir
música, não apenas música clássica, mas tam-
bém as belíssimas canções da nossa região. É
uma forma de resgatar e manter viva a nossa
própria cultura”, afirma. O curso superior de
Música abriu, para ele, as portas do mercado
de trabalho “porque garante um valor extra
para o nosso desempenho profissional”.
Segundo o reitor, a Sinfônica chega à uni-
versidade como mais um instrumento de va-
lorização do curso de Música, criado há dez
anos. “Com a Sinfônica, temos uma preocu-
pação pedagógica. A gente não pensa que
o aluno de música vem aqui para aprender
música. Ele já traz um conhecimento musical
e precisa de aprimoramento e condições para
desenvolver a técnica, e aí, sim, sair qualifica-
do para o mercado de trabalho, que é muito
exigente”, explica o professor. Ele atesta que
o aluno “graduado no curso de Música da UEA
está apto a fazer, por exemplo, um concurso
ou exercer sua profissão em qualquer lugar
do mundo”.
81valercultural
22.ª Bienal Internacional do Livro de
São Paulo | De 9 a 19 de agosto, no
Pavilhão de Exposições do Anhembi
Com o tema “Livros transformam
o mundo, livros transformam
pessoas”, terá três homenageados:
Jorge Amado e Nelson Rodrigues
que completariam cem anos em
2012 e a Semana de Arte Moderna
de 1922, que completa 90 anos. A
programação mescla literatura com
diversão, negócios, gastronomia e
cultura.
Feira do Livro de Frankfurt -
Alemanha – De 10 a 14 de outubro
Nesta edição, a Feira do Livro de
Frankfurt homenageará a Nova
Zelândia. O país convidado de
honra, sob o tema “Enquanto você
dormia”, vai levar à Alemanha
mais de 60 autores e 100 artistas.
E mais: promete traduzir, até
o final deste ano, 76 títulos
neozelandeses para o alemão. Em
2012, o Brasil participa da feira e
começa a se preparar já que será
o homenageado em 2013 deste
que é o maior evento do mercado
editorial do mundo.
agenda cultural
Agenda cheia de eventos literários
Foto
: Div
ulga
ção
Foto
: fra
nkfu
rter
Buc
hmes
se
82 valercultural
58.ª Feira de Livros de Porto Alegre |
De 26 de outubro a 11 de novembro
na Praça da Alfândega, no Centro
Histórico de Porto Alegre
Entre as atividades já confirmadas
está o Seminário “A arte de contar
histórias”, que chega à sua 5.ª
edição e com novidade: terá a
Mostra Nacional de Contadores de
Histórias. O tema será “Escrever e
contar a literatura infantil e juvenil”.
Bienal Internacional do Livro do
Ceará | De 8 a 18 de novembro, no
Centro de Eventos do Ceará
Na sua décima edição, com o
tema “Padaria Espiritual – o pão do
espírito para o mundo”, resgatará
a história deste movimento
artístico cearense e homenageará a
Semana de Arte Moderna de 1922,
os centenários de Luiz Gonzaga,
Jorge Amado e Nelson Rodrigues
e do cantador e violeiro Joaquim
Batista de Sena.
8.ª Festa Literária Internacional de
Pernambuco (Fliporto) | De 15 a 18
de novembro, no Pátio do Carmo,
em Olinda (PE)
Com o tema “A vida é um
espetáculo”, homenageará Nelson
Rodrigues. A partir das obras do
dramaturgo, lançará um debate
sobre literatura e teatro. Entre
os convidados estão Ruy Castro,
que escreveu a biografia O Anjo
Pornográfico – A vida de Nelson
Rodrigues, o biógrafo britânico,
Barry Miles e Ariano Suassuna.
8.ª Feira do Livro de Mossoró
Quando: De 8 a 12 de agosto
Onde: Mossoró (RN)
8.º Festival Literário de Londrina
(Londrix)
Quando: De 22 a 25 de agosto
Onde: Biblioteca Pública
Municipal, no Teatro Zaqueu de
Mello, na Vila Cultural Cemitério
de Automóveis em Londrina (PR)
Feira do Livro de Brasília.
Quando: De 5 a 9 de setembro
Onde: Brasília (DF)
16.ª Feira Pan-Amazônica
do Livro
Quando: De 21 a 30 de setembro
Onde: Hangar Centro de
Convenções e Feiras da Amazônia,
em Belém (PA).
No exterior
Festival Literário de Maputo -
Moçambique
Quando: de 21 a 25 de agosto
Onde: Centro Cultural Brasil-
Moçambique
Feira Internacional do Livro de
Guadalajara – México
De 24 de novembro a 2 de
dezembro.
Informações: www.fil.com.mx
e +
83valercultural
arteFo
to: J
ulia
Mor
aes/
Folh
apre
ss
84 valercultural
Maria Bonomi é, hoje, reconhecidamen-
te, uma das maiores artistas brasileiras
e que tem a receptividade da crítica,
das galerias e dos museus nacionais
e internacionais. Sua obra é concebida, sobretudo, em
esculturas de madeira. Estas chamam a atenção pela
sua dimensão e pela apropriação das cores de uma
forma que não é vulgar. Mas, como todo artista con-
temporâneo, a obra não se prende apenas a um supor-
te: ela tanto se expõe na madeira como no metal, nas
instalações, na xilografia etc.
O percurso de Maria Bonomi não se inicia no Bra-
sil. Ela é italiana. Nasceu em Meina, aldeia localizada
nas margens do lago Maggiore, nas proximidades de
Milão, em julho de 1935, de mãe brasileira, Georgina
Martinelli Bonomi, e pai italiano, Ambrógio Bonomi.
Maria veio para o Brasil empurrada pela Segunda Gran-
de Guerra Mundial. Seu pai era engenheiro militar e
esteve nos campos de batalha. Em 1942, sua casa foi
invadia pelo exército alemão e foi, então, transforma-
da em centro de operações. A condição de sua mãe
permitiu que ela partisse com sua família para o Brasil.
Assim, com seis anos de idade, chega ao nosso país
aquela que seria a artista plástica Maria Bonomi, cujo
talento vem, há mais de cinquenta anos, merecendo
reconhecimento.
Apenas como reflexão sobre a condição do ser ar-
tista, chamo a atenção para alguns elementos que se
vão instalar na estrutura mental e intelectual de Maria
Bonomi. Em primeiro lugar, ela foi assaltada, durante a
infância, pelos temores da guerra. Em segundo lugar, a
condição material de sua família, ainda que como ex-
Neiza Teixeira | filósofa e escritora
85valercultural
patriada, e também com uma par-
te dela que já gozava de prestígio
e de fortuna no Brasil, favoreceu
uma formação que lhe permitiria
desenvolver todas as suas possibili-
dades intelectuais, cognitivas e sen-
sitivas. Em terceiro lugar, também
como oferecimento da sua família,
ela teve a convivência, desde a in-
fância, com artistas, intelectuais e
fez uma formação artística que se
iniciou no Brasil e se prolongou na
Itália, França, Estados Unidos. Com
isso, não quero dizer que é neces-
sário ser “bem-nascido” para ser
artista, mas quero dizer que o po-
tencial de uma criança pode atin-
gir a plenitude quando o ambiente
lhe é favorável, como também a
mente de um artista se forja nos
acontecimentos que lhe abrem
perspectivas, como se se tratasse
de um choque ou da imersão do
extraordinário na sua consciência,
para ter uma percepção mais agu-
da da realidade. Não poderia, aqui,
esquecer de mencionar o nome de
Romero Britto, artista brasileiro de
origem humilde, que hoje tem seu
nome referendado e reconhecido
por qualificadas revistas de arte e é
presença nos grandes museus mun-
diais. Seria num outro contexto uma
análise digna de ser feita.
Outra discussão que hoje é co-
mum nos meios da crítica de arte
“ O potencial de uma criança pode atingir a plenitude quando o ambiente lhe é favorável”
é a contemporaneidade ou não de
uma peça. Quanto a isso, é interes-
sante referir Lyotard quando afirma
que os artistas na conjuntura atual
– a da Pós-Modernidade – traba-
lham como os filósofos, pois eles
estão em processo de reflexão para
reconhecer os critérios da arte. Por
essa via, o que se verifica é que
os critérios da Modernidade, que
orientavam, em todos os sentidos,
o nosso ver e o nosso pensar não
são suficientes ou não dão conta da
realidade que se estende a nossa
frente. Em suma, os processos de
reconhecimento da grandeza ou
não de uma obra de arte não são
facilmente reconhecíveis, restando,
todavia, os julgamentos que as-
sistimos por meio dos veículos de
comunicação de massa, a presença
das peças nas galerias e museus
mais reconhecidos do mundo, o
interesse dos colecionadores, a re-
Acima, as peças Terceiro Milênio e Metempsicose de Maria Bonomi. Ao lado, Romero Britto com uma de suas criações
Foto: Divulgação rom
erobritto.com
Foto
s: D
ivul
gaçã
o
86 valercultural
ferência nos livros de arte são algumas das
motivações que nos levam a olhar para uma
obra. Mas ainda gostaria de referir que alguns
critérios estabelecidos pela Modernidade, e
aqui se entende que a Pós-Modernidade não
pretende negar tudo o que foi construído,
mas principalmente reconhecer e dialogar
com o que de grande foi feito, permanecem.
Por exemplo, não se pode negar o que não
se conhece, e assim é um chamativo trilhar o
caminho do filósofo Derrida, o da desconstru-
ção. No que diz respeito ao meu julgamento,
espero sempre que uma obra se pronuncie e
que anuncie o que ela tem para dizer. Então,
espero ansiosamente que ela seja um cami-
nho de compreensão do homem e do tempo,
que ela seja, além de uma leitura, um docu-
mento, no sentido em que possa exprimir fa-
cetas ou uma faceta da nossa passagem pelo
mundo e da nossa compreensão deste. Esse
registro faz-se em todos os sentidos: no so-
cial, no econômico, no tecnológico, no lúdico,
no científico, no filosófico etc.
Além do uso da técnica, da capa-
cidade de fazer com que a obra reve-
le o que a ela cabe revelar, pode se
entender a receptividade concedida
ao trabalho de Maria Bonomi. Esta
artista, quando menina, em plena
fuga para o Brasil, fez os seus pri-
meiros desenhos conhecidos para o
livro Cobra Norato, de Raul Bopp. Aí
já mostrava as suas potencialidades
para as artes plásticas. As gravuras
ocupam um grande espaço na sua
criação, principalmente, como já foi
referido, em madeira. É nesse âmbito
que a obra de Bonomi chama muito
a atenção, pois ela utiliza-se de uma
técnica antiquíssima, provavelmente
de origem chinesa, para expressar o
seu posicionamento, o seu olhar so-
bre o mundo, o seu engajamento na
sociedade e no seu tempo. Trata-se
da xilogravura, por meio da qual tem
recebido inúmeros prêmios.
Xilogravura Trasfiguração da pomba na Broadway
Foto: Fernando Moraes/Folhapress
87valercultural
A obra ao lado, datada de 1970,
é uma xilogravura, cujo realce vai
para a dimensão e para as cores.
Aqui, a composição preto/verme-
lho que se poderia dizer vulgar,
todavia, é justamente esta que dá
vida e originalidade à peça. A con-
traposição preto/vermelho, a jul-
gar pelo título, é, nela, necessária:
Balada do terror. O preto, como é
sabido, é o representante, na nossa
cultura, do luto, da perda, da ausên-
cia, da dificuldade. Alguém poderia
refutar que é, também, a cor da
elegância, mas não se trata, quan-
do ele se apresenta como o vemos,
dessa compreensão. Por seu lado, o
vermelho é o significante do san-
gue, da guerra, da emoção intensa,
da explosão, do fogo. E, quando nos
remetemos ao título, vê-se que a
Balada, que significa música, dan-
ça, movimento, agitação, ou algo
que tem uma sequência ritmada,
portanto, uma duração. No presente
caso, considerando as cores, o ver-
melho, uma cor quente, e o preto,
que é a ausência de luz, portanto,
que não tem cor alguma, caindo no
abismo do nada, mostra a excitação
e o que finaliza a Balada do terror.
É ainda de se considerar que o
vermelho é a base de sustentação
da peça, o que significa que a emo-
ção é um sentimento, produzido do
exterior, que somente é compatível
em um ser-no-mundo. Quanto ao
preto, que, em forma de espiral en-
rosca-se na peça, contudo deixando
que o vermelho seja mantido como
base, pois ele não impede o percur-
so deste, se faz presente enquanto
estado passageiro, mas que gira em
volta de cada ser humano, como a
própria morte.
A última consideração que se
poderia fazer em relação a esta
peça é quanto à sua dimensão. Bo-
nomi, até mesmo acompanhando
os seguimentos da arte contempo-
Abaixo, Etnias do primeiro e sempre Brasil, no Memorial da América Latina e Estação de Metrô Jardim São Paulo.
Foto
s: A
ndré
Dea
k pa
ra o
Art
e fo
ra d
o m
useu
Foto
s: F
elip
e La
vign
atti
para
o A
rte
fora
do
mus
eu
88 valercultural
rânea, busca nas grandes dimensões mais um
elemento de exposição. Do mesmo modo,
poderíamos citar Serra e suas monumentais
esculturas de metais, bem como o hiper-re-
alismo, que abusam da dimensão para criar
efeitos que são “igarapés” para as nossas
análises.
Também não poderia deixar de pontuar
que a obra desta consagrada artista é uma
obra nascida no/do cenário urbano. Em qual-
quer metrópole há sempre lugar para o traba-
lho de Bonomi. Para qualquer homem que se
entenda como contemporâneo, há um reflexo
dele na obra da artista. É neste cenário que se
identifica e se faz presente a sua obra.
E para encerrar, ela é também muralista,
autora de monumentos artísticos como Etnias
do primeiro e sempre Brasil, no Memorial da
América Latina, em argila, bronze e alumínio,
onde traça a construção do homem brasileiro
e do Brasil desde a chegada do europeu. E
não se poderia esquecer a Estação de metrô
Jardim São Paulo.
E assim conhecemos nossos artistas.
Foto
: Mar
isa
Caud
uro/
Foto
site
/Val
or
89valercultural
A Faculdade de Verdade
3212-8920
* V
alor
es s
ão re
fere
ntes
ao
turn
o m
atut
ino
e ve
sper
tino
com
pag
amen
to a
té o
dia
5 d
e ca
da m
ês.
•Da Formação ao Mercado de Trabalho•Foco na Aprendizagem•Habilidades Comportamentais para a Vida•Compromisso Socioambiental•Excelência no Atendimento
Siga-nos Grupo Literatus CEL @_unicel_
pelo site www.literatus.edu.br/vestibularna UniCEL - Av. Constantino Nery, nº 3693 - Chapada
ou pelos telefones: 8101-1444 | 3212-8920
• Completa Infraestrutura • Modernos Laboratórios• Núcleo EmpregueHabilidades • Professores Renomados
• Localização Privilegiada • Faculdade nº 1 entre as particulares do Amazonas pela avaliação do MEC
PROVAS AGENDADAS
Vestibular UniCEL 2012/2
Nossos Cursos*
Administração R$ 369,00Biomedicina R$ 534,24Ciências Biológicas R$ 360,00
Enfermagem R$ 525,60
Nutrição R$ 509,04 Pedagogia R$ 310,50Farmácia R$ 567,00 Radiologia R$ 460,08Seg. no Trabalho R$ 396,00Serviço Social R$ 324,00
(Bacharelado e Licenciatura)
A Faculdade de Verdade
3212-8920
* V
alor
es s
ão re
fere
ntes
ao
turn
o m
atut
ino
e ve
sper
tino
com
pag
amen
to a
té o
dia
5 d
e ca
da m
ês.
•Da Formação ao Mercado de Trabalho•Foco na Aprendizagem•Habilidades Comportamentais para a Vida•Compromisso Socioambiental•Excelência no Atendimento
Siga-nos Grupo Literatus CEL @_unicel_
pelo site www.literatus.edu.br/vestibularna UniCEL - Av. Constantino Nery, nº 3693 - Chapada
ou pelos telefones: 8101-1444 | 3212-8920
• Completa Infraestrutura • Modernos Laboratórios• Núcleo EmpregueHabilidades • Professores Renomados
• Localização Privilegiada • Faculdade nº 1 entre as particulares do Amazonas pela avaliação do MEC
PROVAS AGENDADAS
Vestibular UniCEL 2012/2
Nossos Cursos*
Administração R$ 369,00Biomedicina R$ 534,24Ciências Biológicas R$ 360,00
Enfermagem R$ 525,60
Nutrição R$ 509,04 Pedagogia R$ 310,50Farmácia R$ 567,00 Radiologia R$ 460,08Seg. no Trabalho R$ 396,00Serviço Social R$ 324,00
(Bacharelado e Licenciatura)