valer cultural 3
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Revista de cultura da Editora ValerTRANSCRIPT
cultural
Entrevistas | Reportagens | Livros | Cinema | Gastronomia | Artes plásticas | Viagem
A trajetória das artes plásticas no Amazonas18-35
Diário de viagem entre a China e a Alemanha56-63
Índios do rio Negro em ação interétnica72-81
www.valercultural.com.br
Ano I n.º 3
dezembro/2012
R$ 9,90
Amazônia exige nova geografia
Bertha Becker
cultural
Diretor ExecutivoIsaac Maciel
Conselho EditorialMárcio SouzaRenan Freitas PintoIvânia VieiraTenório Telles
Diretor de redaçãoWilson Nogueira MTB/AM 365
Editora executiva Suelen ReisMTB/AM 235
Assistente de Edição Maria do Rosário R. NogueiraMTB/AM 148
INVCInstituto Nacional Valer de Cultura
Av. Joaquim Nabuco, 1.605 – CentroCEP 69020-03
Manaus-AMTel. 92.3234-9830
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editorial
Nunca a Amazônia mobilizou tantas
preocupações como atualmente.
Não poderia ser diferente. Não se
trata mais de um país ou de um gru-
po de países a querer tê-la sob seu controle para,
por meio do usufruto dos seus recursos naturais,
resolver problemas econômicos cíclicos. O mun-
do vive hoje uma crise ambiental planetária, cuja
persistência poderá até levar a terra a um colapso
total. O mais preocupante é que essa “ameaça de
morte” vem dos seres humanos. Com enorme di-
versidade biológica e social, a Amazônia energiza
os debates sobre os rumos do planeta.
Razão, paixão, imaginação, criatividade e ex-
periência de vida se chocam e se imbricam no
emaranhado de vozes que dão vazão aos dese-
jos de dominá-la, libertá-la ou tê-la em simbio-
se com as necessidades do sistema-vida. Afinal,
a Amazônia é um mundo entremeado de outros
mundos socioambientais: florestas, rios, minerais,
bichos, lugarejos, aldeias, cidades e metrópoles.
Mundos que precisam ser compreendidos em suas
particularidades e universalidades, para que o fio
da esperança se engrosse e impeça as ações que
tendem a transformá-las num deserto.
Do alto dos seus mais de quarenta anos de
pesquisa, dedicados à Amazônia, a doutora em
Geografia Bertha Becker, 82, acredita que é pos-
sível, sim, transformar recursos naturais em rique-
za sem, necessariamente, destruir suas reservas.
Mas nada se fará nessa direção, segundo ela, sem
medidas que se orientem pela associação do co-
nhecimento científico com os saberes tradicionais
da região. E muito menos sem o devido respeito
ao patrimônio cultural e material dos povos indí-
genas, como reclamam as etnias do alto rio Ne-
gro, cujos minérios, florestas, peixes, caças e terras
continuam sendo subtraídos pelo poder econômi-
co. Cidades e aldeias se entrechocam e se comple-
mentam ao mesmo tempo na busca de soluções
para os seus dilemas: seja na reivindicação de um
posto de saúde, com médico ou remédio alopático,
seja nos chás do curador ou na reza ao santo de
devoção.
É assim a Amazônia. É assim que ela permeia
estas páginas.
Boa leitura.
Isaac Maciel Diretor-executivo
Design e Direção de Arte Heitor Costa
Designer assistente Bruno Raphael
Foto da capa Wilson Nogueira
Revisão Núcleo de Editoração Valer
Assinatura e publicidadeDarliane Michele – [email protected]
Colaboradores desta edição:Alfredo Cordiviola, Ana Goreth Antony, Antonio Lima, Barbara Nascimento, Emiliana Teirxeira, Jony Clay Borges, Lane Lima, Leandro Curi, Marcus Stoyanovith, Mário Geraldo Fonseca, Neiza Teixeira, Renata Paula, Thaís Brianezi.
Uma história de arte no Amazonas
A medicina que vem da floresta
18 38
cultural
7 Amazônia segundo Bertha Becker46 Vera Cruz é aqui!84 Banquete gelado
De Xangai a Berlim, de perto nada é normal
56
Karl Marx em memória
88
94 Um filme de autor ou um autor de filmes100 Quixote ou as virtudes da ambiguidade
Índios em movimento
Frauta de barro – Uma rapsódia da memória
72
106
Esporte: o novo alvo do mercado literário
64
Na avenida Atlântica, em Copacabana, mora uma
senhora cientista que, desde a década de 1970,
enfrenta sol e chuva para acompanhar, por meio
de investigação científica, a expansão das fren-
tes econômicas sobre a Amazônia. Ela é Bertha Becker, 82,
doutora em Geografia pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ). Seus livros e estudos geram reflexões e
sugestões em favor do uso sustentável da Amazônia. Ela
defende que é possível transformar recursos naturais em
riqueza sem os destruir, basta, segundo ela, que o poder
público defina o manejo dos vários ecossistemas amazôni-
cos com base em marcos regulatórios compartilhados por
princípios sociais, ambientais e econômicos. [...] “Ninguém
pode conhecer tudo da Amazônia, mas tenho uma visão de
conjunto muito maior”, assinala a pesquisadora, para res-
ponder aos que lhe criticam pelo fato de não morar na
Amazônia. Bertha Becker atuou, como consultora
para a Amazônia, no então Ministério de
Assuntos Estratégicos do Governo
A Amazônia segundo Bertha Becker
entrevista | Bertha Becker
Wilson Nogueira e Suelen Reis | jornalistas enviados ao Rio de Janeiro
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7valercultural
Lula, dirigido pelo polêmico cientis-
ta Mangabeira Unger. Antes, ela foi
professora do Instituto Rio Branco e
formando diplomatas desenvolveu
a convicção de que geografia é,
também, ciência política. Ela reve-
lou que pretende fazer um levanta-
mento quantitativo da aplicação das
suas propostas. “Muitas das minhas
propostas foram realizadas, mas
não me foram dado crédito”, recla-
ma. Entre as propostas que ela gos-
taria de ver sair do papel estão a da
transformação de Manaus em cida-
de mundial de serviços. Uma ideia,
por sinal, que lhe custa caro, porque
não agrada aos políticos nem aos
pesquisadores dos demais Estados
amazônicos. Confira a entrevista
que ela concedeu à VC, na manhã
do dia 22 de agosto, quando Co-
pacabana vestia-se de uma névoa
cinzenta e o Atlântico se insinuava
marrento para os surfistas.
SUELEN – Qual seria o maior desafio
do país para implantar uma política
de preservação?
BERTHA – Não acho que a gente
deva sair por meio da preservação.
Com a preservação não mexeria
em nada. A gente não pode ficar
nesse luxo de não usar, mas tem
que ser um uso mais consciente. Aí
que está a [necessidade] de inova-
ção. Temos muita coisa para inovar.
Como utilizar sem destruir. Esse é o
nosso desafio. Para mim, o grande
desafio da Amazônia é esse: inovar.
SUELEN – Aí dependeria de quê? De
pesquisa, incentivo do Governo...
BERTHA – De muita pesquisa, in-
clusive do conhecimento tradicio-
nal. Para mim, pesquisa tem que
envolver todos os tipos de saberes:
conhecimento tradicional, pesquisa
avançada, pesquisa de classificação.
O pessoal muitas vezes olha com
desprezo [para a pesquisa tradicio-
nal], que era a pesquisa que domi-
nava na Amazônia. Não era a clas-
sificatória que dominava. Aí chega-
ram os grandes projetos trazendo a
pesquisa avançada. Não chega ser P
& D, mas avançada. Os projetos do
LBA, projeto Geoma, PPG7, quando
vieram, introduziram na Amazô-
nia – e muito depressa, inclusive –
uma nova forma moderna de fazer
pesquisa. Isso se chocou com a in-
vestigação tradicional que se fazia.
Museu Goeldi e Inpa faziam pes-
quisa classificatória – a pesquisa de
conhecer todos aqueles elementos
da floresta e classificar os vegetais,
os animais.
NOGUEIRA – Agora essa pesquisa
de larga escala tem um comando.
Veio de fora para dentro...
BERTHA – Veio de fora pra dentro?
Bom, o Goeldi?
NOGUEIRA – Digo, essas novas...
BERTHA – Ah, certamente! Aliás, na
Amazônia quase tudo veio de fora,
não é? A não ser os índios e os re-
cursos naturais. O resto veio tudo
de fora (risos). Então, no livro que
estou fazendo agora, sigo uma te-
oria de Jane Jacobs que diz que as
cidades comandam as expansões
econômicas. Não são as economias
nacionais, não. São as cidades. E
para que elas se dinamizem e di-
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namizem a economia têm que ter
trabalho novo. É a inovação no tra-
balho. Mas o trabalho novo se fun-
damenta nos parentes antigos, no
trabalho velho.
Aí fiquei: meu Deus do céu! Quan-
do começaram a fazer núcleos na
Amazônia, onde estava o trabalho
velho? Núcleos! Só vieram os portu-
gueses, franceses, ingleses, holan-
deses. Todo mundo querendo tomar
conta do pedaço. E qual era o tra-
balho velho sobre o qual o trabalho
novo pudesse se sedimentar? Era o
trabalho dos índios.
NOGUEIRA – Os índios sequer tive-
ram a oportunidade de apresentar
suas experiências...
BERTHA – Mas eles [os colonizado-
res] se apropriaram do trabalho ve-
lho. O que o pessoal fez? O trabalho
novo foi fundamental em que senti-
do? No conhecimento que os índios
tinham dos produtos, dos recursos
naturais; no conhecimento que os
índios tinham das trilhas, dos ca-
minhos pra chegar às espécies e ao
uso delas. Usavam o cacau como
“moeda de troca”, eles usavam a
borracha, os utensílios domésticos
de borracha. Utilizaram o trabalho
velho dos índios. Isso é interessan-
te. Foi isso que deu origem aos pri-
meiros núcleos na Amazônia: a caça
ao índio e domínio de território. Os
índios é que deram para eles...
NOGUEIRA – Falando em território, a
senhora defende uma ideia de que
a Amazônia é um território contido
de vários outros territórios.
BERTHA – Ela não é homogênea, ela
não é igualzinha.
NOGUEIRA – Como é que estão es-
ses territórios agora? Pela sua tese,
eles se constroem, se reinventam...
SUELEN – A senhora podia falar so-
bre as diferenças entre eles e sobre
o conjunto...
NOGUEIRA – Com o tempo, décadas
de 1970, 1980, 1990, e passado o
milênio – e a senhora também es-
creve sobre o novo milênio –, como
é que se encontram esses territó-
rios?
BERTHA – Nossa senhora! Vou fa-
lar o atual. O que fiz mais recente,
mais atual, porque pensando no
desenvolvimento da Amazônia Le-
gal... Estou pensando, por que ela
tem tantas ligações hoje que fica
difícil separar, né? Então, fiz três
grandes unidades diferenciadas
dentro da Amazônia. E as unidades
são baseadas em quê? Na vegeta-
ção e no modo pelo qual essa ve-
getação, esse território foi utilizado,
foi apropriado e utilizado.
Por que eu cheguei a essa visão de
três grandes unidades? Por causa
de uma coisa extremamente im-
portante. Estávamos vendo a ques-
tão do desmatamento e cheguei à
conclusão que chamo de “coração
florestal”, que ainda está bastante
conservado. A mata densa. Isso tem
“ Na Amazônia quase tudo veio de fora, não é? A não ser os índios e os recursos naturais”
Pesquisadora afirma que a caça aos índios deu origem aos primeiros núcleos da Amazônia
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que considerar uma estratégia es-
pecífica pra gente salvar a Amazô-
nia. Foi por isso que vi agora essas
unidades diferenciadas, três delas.
A primeira, de baixo pra cima, do Sul
para o Norte seria o cerrado. O cer-
rado é uma unidade muito caracte-
rística pela vegetação e pela forma
como foi apropriada. Não fico pen-
sando só no passado: o que foi. Fico
pensando o que pode se fazer ali.
O que seria bom fazer no cerrado?
Como é que se pode salvar? Então,
acho que no cerrado se deve fazer
um reflorestamento de muitas áre-
as, porque ele já foi 40% devastado.
Teria que fazer uma coisa que falo
e ninguém gosta muito, não: teria
que fazer a industrialização daquele
complexo produtor de soja, algo-
dão e milho, porque todo mundo
fala agroindústria do cerrado. Não
há agroindústria nenhuma, aquilo
não é agroindústria, é agronegó-
cio. Não tem indústria nenhuma.
Tá entendendo? Então eles teriam
que avançar e fazer a agroindústria
daquela área. Não é acabar com
aquilo não, porque afinal de contas
aquilo é uma coisa que foi constru-
ída, é uma riqueza. Mas é isso para
avançar, para trazer emprego. Tem
que beneficiar. Agregar valor. Acho
que isso é fundamental.
O Governo devia ir em cima para
aquele agronegócio se transformar
efetivamente numa agroindústria.
Reflorestamento e criação de áre-
as. Mudar a reforma agrária é uma
das coisas fundamentais – para
mim – que tem que acontecer na
Amazônia. Aquilo que se faz lá não
é uma reforma agrária. Então, tem
que criar núcleos: cinquenta colonos
mais ou menos, próximos a estra-
das e próximos a cidades, para que
eles tenham mercado. Não adianta
jogar a turma no meio da mata sem
estradas, sem cidades, porque os
colonos não têm nem como esco-
ar a produção, nem mercado para
comprá-la.
NOGUEIRA – Vai abrir para a explo-
ração de madeira, não é? Como tem
acontecido.
BERTHA – Exatamente. Então o que
eles fazem? Exploram a madeira.
Em vez de soltar a turma na mata,
“ Todo mundo fala de agroindústria do cerrado. Aquilo não é agroindústria, é agronegócio”
Moradores podem contribuir para o desenvolvimento da região
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nter
man
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no meio da vegetação do cerrado,
sem aceso à estrada e à cidade,
tem que colocar núcleos de uns cin-
quenta colonos perto de estradas e
de uma cidade que seja mercado.
Aí eles podem fazer uma produ-
ção em escala. Cada um teria seu
lote, mas seria uma produção, todo
mundo fazendo a mesma produção,
digamos assim... E aí você tem uma
produção em escala maior.
NOGUEIRA – Mais competitiva...
BERTHA – Mais competitiva e inclu-
sive com frutos, com legumes para
abastecer as cidades. É o que está
precisando na Amazônia.
Depois do cerrado, indo pro Norte,
você tem o que se chama a mata
aberta, floresta ombrófila, aberta.
Essa floresta já foi derrubada em
50%. O cerrado em 40%, a ombrófi-
la em 50%. E realmente você vai de
avião em direção ao Acre, passa por
Rondônia já quase sem mata. Coisa
horrível. Então o que fazer na mata
aberta derrubada? Reflorestamento,
também.
Acho que a mata aberta é a área
privilegiada para madeira. Madeira
manejada e controlada. Refloresta-
da, manejada, porque sou contra as
concessões na mata densa, aque-
la que vem lá de cima. Acho que
isso tudo das concessões devia se
concentrar na mata aberta, que já
está derrubada em 50%, que tem
madeiras ótimas, tem gente pra
manejar, tem estradas. Tem estra-
das porque a mata aberta tem as
grandes capitais: Rio Branco, Porto
Velho, agora aquilo está virando um
polo logístico para a América do Sul,
depois tem o Norte do Mato Gros-
so, um pedaço; tem um pedaço do
Pará. Essa mata que já foi derrubada
e que tem madeiras boas e tem es-
tradas e cidades e gente. Já tá meio
caminho andado. Então tinha que
fazer uma exploração da madeira
decente, que é ridículo a Amazônia,
aquela floresta toda não ter uma
economia madeireira. Então, eco-
nomia madeireira decente, digna.
Inclusive, podendo até levar a fazer
derivados. Tem-se usado a madeira
(conglomerados já é café pequeno),
tecnologias novas, inclusive etanol
de segunda geração. Já estão fazen-
do de terceira em outros lugares e
“ É ridículo na Amazônia aquela floresta toda não ter uma economia madeireira”
Bertha afirma que a mata aberta é área privilegiada para o manejo controlado de madeira
e critica a agroindústria do cerrado
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aqui nem se aproveita madeira ain-
da, nem faz os aglomerados.
E, finalmente, ao Norte desta mata
aberta tem a mata densa. Flores-
ta andrófila densa. Aí com árvores
milenares, grossas, antigas. E onde
as cidades são cidades paradas no
tempo, onde não tem estradas. As
estradas, num modo geral, pararam
no contato entre a mata aberta e
a mata densa. Agora é que estão
avançando pra cima da mata densa
com aquela rodovia, a BR-319, que
querem fazer de Porto Velho pra
Manaus. Aquela vai ser em cima da
mata densa, mas até agora, mesmo
a Transamazônica, está no contato
da mata aberta com a densa. E por
que esse contato? Aí nesse contato
é a linha de cachoeiras, das corre-
deiras. Onde acaba a rocha dura e
começa a planície amazônica, a
planície sedimentar da Amazônia.
Há cachoeira com energia até para
aproveitamento. A partir daí, há
navegação fluvial disponível. Isso
tudo é a mata densa. Muita madei-
ra, muita navegação fluvial, e ainda
uma economia ribeirinha e extrati-
vista, na beira do rio, cidades fan-
tasmas, e Manaus como o grande
centro da mata densa.
Acho que aí tem que inovar muito
nessa mata densa. Vejo aí o apro-
veitamento do desenvolvimento
tecnológico para o aproveitamento
da biodiversidade. Por exemplo:
fármacos. Produzir fármacos, pro-
duzir aproveitando essa biodiversi-
dade fantástica da Amazônia. Daí
o pessoal diz: “Ah!, a gente não
pode competir com os laboratórios
internacionais”. Mas nós podemos
sim, porque podemos fazer isso
para consumo interno. Temos uma
população enorme que carece de
remédios, com problemas de saúde
terríveis. E a gente pode fazer isso
voltado para o mercado domésti-
co. Não tem que fazer para a ex-
portação e ficar competindo com
os estrangeiros. Existem algumas
empresas, como o laboratório Aché,
que faz produtos com plantas daqui,
para o mercado interno.
Você já imaginou se usasse isso para
fazer fármacos... Ia atender à saúde
da população brasileira utilizando a
biodiversidade da mata fechada!
NOGUEIRA – A sua voz tem sido ou-
vida no Governo? Como a senhora
se sente?
BERTHA – Boa pergunta a sua. Sabe
que acabei de pedir um projeto do
CNPq para fazer esse levantamen-
to. Engraçado! Se a minha voz tem
sido ouvida? Acho que até tem, em
algumas coisas. Às vezes, escuto
no discurso de alguns umas ideias,
algumas coisas que são minhas,
que já falei antes e que eles usam.
Mas isso só não resolve. O negócio
é ver o que é que se faz. Eu vejo,
por exemplo, uma coisa que sei
que aconteceu. Eu havia sugerido
“ Vejo o desenvolvimento tecnológico para o aproveitamento da biodiversidade. Produzir fármacos aproveitando a biodiversidade fantástica da Amazônia”
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cadeias da biodiversidade. Criaram
uma lei. A lei de formar cadeias da
sociobiodiversidade.
SUELEN – E a senhora foi ouvida
nesse momento?
BERTHA – Não. Ninguém veio me
perguntar, mas eu tinha feito um
trabalho para o Ministério da Ciên-
cia e Tecnologia sugerindo isso. E
foi criado. Alguém ouviu e criou. Sei
que o MCT ouviu.
SUELEN – Sem dar o crédito, mas...
BERTHA – Pois é, não deram o cré-
dito. Se dessem o crédito era fácil
de fazer esse levantamento. Mas
ninguém dá crédito não, minha
filha.
A lei foi feita, mas se você disser
que ela funciona muito, a ação não
é consolidada de acordo. Então, às
vezes é ouvido, mas fica mais no
discurso que na prática. Diria isso:
sim, a minha voz, às vezes, é ouvi-
da, mas é muito mais absorvida no
discurso do que na prática.
SUELEN – E sobre as cidades mun-
diais? A senhora fala que Manaus
seria a única no mundo com poten-
cial para ser uma cidade mundial..
BERTHA – Mas falo isso para com-
pletar a mata densa. O que poderia
ser feito? Fármacos seria uma coisa
ótima. Pode organizar o mercado
não só de carbono, porque acho
isso perigosíssimo, sou contra o tal
do RED [Diretivas de Energias Reno-
váveis], mas sou a favor do merca-
do de serviços ambientais. Se for
bem organizado, sem corrupção, a
coisa digna, aí seria o caso de fazer
isso na mata densa. Para conservar.
O que quero na mata densa é que
ela seja defendida não por meio de
ficar isolada e parada sem nada. A
defesa seja por meio de uma pro-
dução adequada. É isso que se deve
fazer. Não é ficar sem nada, é fazer
sem destruir.
Dentro da mata densa, outra pos-
sibilidade é exatamente essa.
Transformar Manaus numa cidade
mundial. Existem algumas cidades
mundiais hoje. Acho que Londres é
maior que Nova York, depois vem
Nova York, depois vem Hong Kong.
Não pensem que é Berlim ou Paris
porque não é, é Hong Kong. Tal-
vez agora Xangai já seja a quarta,
porque a coisa na Ásia não está de
brincadeira. Mas não se trata do ta-
manho da cidade. A cidade mundial
é aquela que tem na concentração
de serviços de alto valor e únicos.
Concentração de serviços altamente
valorizados.
Esses serviços passam a ter escritó-
rios em outras cidades do mundo.
“ A minha voz, às vezes, é ouvida, mas é muito mais absorvida no discurso do que na prática”
Bertha afirma que Manaus é a única capital brasileira com possibilidade de ser uma
cidade mundial
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Elas têm as matrizes dos serviços
mais avançados e aí elas contro-
lam a economia mundial. Serviços
financeiros, serviços de pesquisa,
serviços de marketing, propaganda,
uma bolada de serviços. Financeiro
é fundamental, marketing é fun-
damental, security (seguridade).
Pesquisa nem se fala. Todos esses
serviços importantes é que domi-
nam hoje a economia. E quando se
concentram em algumas cidades,
essas cidades passam a controlar a
economia mundial.
Manaus poderia se transformar
numa cidade mundial a partir da
prestação de serviços ambientais,
que nenhuma outra cidade do mun-
do possui. Estou considerando ser-
viços ambientais como serviços de
valores altíssimos, que não estão
à disposição em outras cidades do
mundo. Elas têm serviços financei-
ros, mas ambientais não têm.
E por que Manaus? Porque o pes-
soal de Belém (insinua um ciúme
da capital paraense, em relação a
Manaus). Porque Manaus tem uma
posição estratégica em relação a
toda a Amazônia. Tudo isso que es-
tou falando está na mata aberta e
na mata densa. É a borda da grande
floresta amazônica sul-americana.
É a borda daqui que termina lá no
Amapá, no Norte de Goiás. Aquela
faixa de floresta. Ela está em uma
posição de frente para esta flores-
ta amazônica sul-americana. Onde
não tem uma cidade no nível de
Manaus. Aí no meio da floresta não
tem. É ela. E ela tem uma posição
estratégica também em relação
à drenagem da Amazônia porque
passa toda a drenagem lá do Acre,
dos afluentes da margem sul e da
margem norte por Manaus. E tem
ainda essa presença da grande flo-
resta não destruída. Então, Manaus
está nessa posição que lhe dá con-
dição de poder prestar serviços am-
bientais. Para que isso aconteça, ela
tem que se planejar. Ela teria que
ter muito mais pesquisa adequada
para isso, teria que ter um merca-
do. Sugeri, inclusive, uma bolsa de
valores.
Teria que desenvolver como valo-
rizar o carbono, a biodiversidade,
a água, porque tudo isso são, na
verdade, serviços que a natureza
presta, serviços ambientais. Esse é
o grande desafio.
NOGUEIRA – A senhora já falava
também, em um dos seus textos,
que Manaus não tem mais aquela
característica de economia de en-
clave. Que ela também já expande
as suas especialidades.
BERTHA – É. Não, ela já tem cone-
xão com outras cidades. Ela pode
“ Manaus poderia se transformar numa cidade mundial a partir da prestação de serviços ambientais que nenhuma outra cidade do mundo possui”
Apesar de vários projetos de pesquisa, para ser cidade mundial, Belém teria que fazer
um planejamento mais específico
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ção
14 valercultural
montar uma rede envolta dela, mas
logo depois não existe nada. Mui-
to pouco, Itacoatiara. Mas é que a
cidade só se desenvolve quando
ela consegue formar a sua região.
Através da rede. Se conectar com
outras cidades e há, inclusive, com-
plementaridade. E o grande proble-
ma na Amazônia é que os núcleos
cresceram. Às vezes, tiveram surtos
e declinaram, não fizeram regiões à
sua volta. Não organizaram regiões
ao seu entorno. Então, Manaus e
Belém, de acordo com a teoria, se-
riam, talvez, as únicas cidades, com
esse nome de cidade na Amazônia.
São lugares centrais.
SUELEN – Aí entra aquela eterna bri-
ga entre as duas capitais...
BERTHA – Exato. Há briga. Quando
falei que Manaus era a única (com
potencial para ser cidade mundial),
eles perguntaram: “Por que não Be-
lém?”. Por causa disso, porque ela
tem essa posição privilegiada. Então
acho que é ela. E ela já tem uma
base de pesquisa inicial, projetos,
se bem que da parte de pesquisa
Belém tem mais. Mas teria que fa-
zer um planejamento se quisesse
se transformar.
Acho que isso é muito importante.
Por quê? Porque hoje em dia é pos-
sível promover desenvolvimento
através de indústria criativa. Coisas
excepcionais que ficam num lugar,
aproveitando determinadas con-
dições, e que são completamen-
te diferentes. Essas até não têm
redes, não têm tantas redes, não
criam tantas regiões. Elas são as-
sim. Emergem alí como uma coisa
especial, que é feita naquela região.
NOGUEIRA – A senhora estaria fa-
lando, por exemplo, de Nova Déli
como especialista em programas de
computador...
BERTHA – Estou falando de
Hollywood. Indústria de cinema na
Ásia. Houve um filme aí, no Globo
Repórter, mostrou a Eslovênia e, no
meio da floresta, uma fabricação
de queijos tão especiais caríssimos
que, para lá, vai gente do mundo
inteiro comprar os queijos. Uma
coisa nucleada no meio da floresta,
mas de alto valor. Então, no caso, o
que estou falando de Manaus é um
pouco isso. Ela ser uma cidade que
presta serviços ambientais no meio
da mata.
NOGUEIRA – Em relação ao novo có-
digo florestal, qual é a sua opinião.
BERTHA – Não tenho grandes opini-
ões. Acho, pelo que os meus cole-
gas dizem, foi muito ruim. Fizeram
um negócio que eu já até cheguei a
falar numa entrevista e num artigo
que é mais um código da agricultu-
ra que florestal. Regulando, dando
muito mais margem pra agricultura
e limitando a floresta. A preocupa-
ção não foi mais com a floresta, a
preocupação foi limitar a floresta.
No momento o que acho é isso: não
posso ir mais fundo porque estou
entusiasmada com minhas cidades.
NOGUEIRA – A senhora sempre fala
em seus livros em relação às fontes
de energia, no caso, as energias re-
nováveis na Amazônia. As hidrelé-
tricas. Esse é um problema também
que mexe com as cidades, com as
populações.
BERTHA – Acho que nós vamos ter
que fazer uma ou outra hidrelétrica.
Não pode jogar fora esse potencial
enorme de energia, essa linha de
cachoeiras, que falei para vocês,
“ (O novo código florestal) é mais da agricultura que florestal. Regulando, dando muito mais margem para a agricultura e limitando a floresta”
15valercultural
a passagem do cristalino para se-
dimentado, um volume de água
enorme que a gente não pode dis-
pensar. Uma fonte de energia que
é limpa. A não ser quando se faz
sem planejamento, que tem uma
migração horrível, com refloresta-
mento. Aí ela deixa de ser limpa.
Mas a fonte em si é limpa. A água.
A Europa está querendo mudar al-
ternativas e uma das coisas que ela
está fazendo é hidrelétrica. Porque
antes era tudo na base do carvão
nuclear. Então, para ela, a energia
hidrelétrica é limpa e para nós não
é? Qual é, cara-pálida? Acho que a
energia hidrelétrica para nós é ex-
tremamente importante. Contando
que ela seja planejada para não
deixar vir aquele monte de popula-
ção, gente se apropriando da terra,
desmatando. Isso é que não pode.
Um descontrole total.
NOGUEIRA – A senhora está traba-
lhando com cidades. Já ouvi pes-
quisadores da área da geografia
preocupados com a expansão das
cidades da Amazônia, porque elas
seriam responsáveis pelo desmata-
mento. Como a senhora observa a
expansão das cidades na Amazônia?
BERTHA – Acho que quando elas
crescem sem emprego, sem servi-
ço adequado elas ficam inchadas,
como em qualquer lugar, não só na
Amazônia. Em qualquer lugar, se
a cidade cresce, há o êxodo rural,
mas se não tem o serviço, não tem
a habitação, não tem nada, não fica
inchada? Isso ocorre em qualquer
lugar... Não é só na Amazônia. Mas
acho que a cidade, ela é que pode
dinamizar a Amazônia, a economia
da Amazônia, sem derrubar a mata,
inclusive, como falei, até hoje, são
cidades sem região. Não quero
que elas continuem assim. Que-
ro que elas organizem o território,
mas de uma maneira que não seja
destrutiva. Isso é uma coisa que
ainda vou ter que pensar. Como?
Não sei. Até agora o que a história
“ Até agora o que a história mostrou é que essas cidades pontuais da Amazônia não destruíram a floresta”
16 valercultural
mostrou é que essas cidades pon-
tuais da Amazônia não destruíram
a floresta historicamente. Não fize-
ram regiões, não desbravaram. Elas
são pontuais. Mas por quê? Porque
permaneceram como cidades cen-
trais. Inclusive, algumas sedes de
municípios, sustentadas pelo Esta-
do. Não têm economia nenhuma.
Quem mantém esses municípios? É
a transferência de renda do Estado.
NOGUEIRA – Rondônia por muito
tempo, Roraima, Amapá...
BERTHA – Muitos municípios por
aí na Amazônia. O próprio Pará. E,
provavelmente, no Amazonas. Quer
dizer, por um lado foi ruim porque
não houve economia, mas por ou-
tro lado foi bom porque são cidades
que se instalaram na floresta, mas
não derrubaram a floresta. Então o
grande desafio é saber como é que
podemos manter isso, essas cidades
pontuais se relacionando entre si,
porque muitas não se relacionam,
criando uma economia que não
destrua a floresta. Esse é o grande
desafio. Por isso que acho que se-
riam os serviços ambientais. Essas
cidades estariam ligadas a Manaus
como grande cidade mundial, atra-
vés de comunicação, telecomunica-
ção, que se tem tecnologia da co-
municação, organizando uma base
econômica com base nos serviços
ambientais, que não necessitaria...
SUELEN – Faria um polo?
BERTHA – Pequenos polos articula-
dos pelos TICs (Tecnologias de In-
formação e Comunicação), não por
estradas. Que a estrada arrebenta a
mata. Articulação, porque tem que
ter a rede para as cidades se desen-
volverem. A rede seria articulada
por telecomunicação. Computador,
por satélite. E que base econômi-
ca? Penso nos serviços ambientais
e nos fármacos porque eles são coi-
sas que se podem fazer sem derru-
bar a floresta.
NOGUEIRA – E replantando às ve-
zes...
BERTHA – Isso, replantando. Isso é
mais ou menos minha cabeça. Mi-
nhas ideias a respeito.
SUELEN – Além da valorização do
local, das pessoas que têm o co-
nhecimento...
BERTHA – Sem dúvida. Quando falo
em pesquisa, inclui tudo. Classifica-
ção, conhecimento tradicional.
SUELEN – A gente sabe que já exis-
tem as de cosméticos. Por exemplo,
a Natura...
BERTHA – Muito pouca coisa. Mas
tem que ser muito maior. Eles
usam muito pequena quantidade.
De qualquer maneira, já acho que
é uma iniciativa legal da Natura.
Se ela puder fortalecer, isso é le-
gal. Vai fazer uma fábrica, um polo
industrial.
NOGUEIRA – Seria um ponto para o
CBA, não é?
BERTHA – É isso que perguntei.
Como vai ser? O que vocês vão fa-
zer com esse CBA? Ninguém sabe.
Mas tinha que resolver. Se for fazer
esse plano de levar a questão da
biodiversidade avante, tudo isso,
tem que resolver a questão do CBA.
Um elefante branco.
Amazônia
Autora: Bertha Becker
Editora: Ática
Ano: 1998
Geografia e meio ambiente
no Brasil
Autores: Bertha Becker, F Davidovich
e Antonio Christofoletti
Editora: Hucitec Editora
Ano: 2002
Território, territórios
Organizadores: Bertha Becker e
Milton Santos
Editora: DP&A Editora
Ano: 2006
Dimensões humanas da biodi-
versidade – O desafio de novas
relações sociais
Autores: Bertha Becker e Irene Garay
Editora: Vozes
Ano: 2006
Dimensões humanas da
biosfera-atmosfera
Organizadores: Bertha Becker,
Diógenes Salas Alves e Wanderley
Messias da Costa
Editora: EDUSP
Ano: 2007
Dilemas e desafios do
desenvolvimento sustentável
Autores: Bertha Becker, Cristovam
Buarque e Ignacy Sachs
Editora: Garamond
Ano: 2007
Amazônia – Geopolítica na
virada do III Milênio
Autora: Bertha Becker
Editora: Garamond
Ano: 2007
Um futuro para a Amazônia
Autores: Bertha Becker e
Claudio Stenner
Editora: Oficina de textos
Ano: 2008
Brasil – Uma nova potência
regional na economia – Mundo
Autores: Bertha Becker e A.G.
Cláudio Egler
Editora: Bertrand Brasil
Ano: 2010
Livros de Bertha Becker
17valercultural
e março a maio deste ano, o público de Ma-
naus teve acesso a um interessante panora-
ma das artes plásticas no Estado por meio
da exposição “Dos lápis de Di ao festim das
barrancas”, eixo central da Pré-Bienal de Artes do Ama-
zonas. A mostra foi, de certa forma, uma oportunidade
de conhecer um pouco da história recente das artes lo-
cais, reunindo obras de mais de 20 artistas do cenário
amazonense, desde telas famosas do homenageado
Hahnemann Bacelar (1948-1971) até criações inéditas
– pinturas, ambientes, instalações e processos – assina-
das por nomes em atividade nos dias atuais, novatos e
artistas de extenso currículo lado a lado.
Mas a trajetória das artes plásticas – como as conhe-
cemos hoje – no Amazonas remonta a um período bem
anterior àquele em que Hahnemann criou suas obras,
e revela um percurso com altos e baixos. As primeiras
expressões artísticas visuais produzidas no Estado surgi-
ram entre meados e final do século 19, coincidindo com
as enormes transformações culturais e sociais advindas
da riqueza da borracha, e segue desde lá alternando
períodos de pouca agitação ou novidade com outros de
grande efervescência.
Primórdios
A próspera classe social que se transferiu para Ma-
naus por conta da exploração da borracha, formada por
seringalistas, banqueiros e outros, trouxe também para
cá seu modo de vida, sua cultura e também um pouco
Jony Clay Borges | jornalista
18 valercultural
Imagens: Reproduções dos livros A
rtes plásticas no Am
azonas de Luciane Páscoa e Teatro Am
azonas de Mário Ypiranga M
onteiro / Editora Valer
Na década seguinte, foi a vez do Te-
atro Amazonas, onde os artistas dei-
xaram seu maior legado, incluindo
a “Glorificação das Bellas-Artes no
Amazonas”, assinada por De Angelis
no teto do Salão Nobre, e vários pai-
néis monumentais de cunho natura-
lista – um deles inspirado na ópera
“O Guarany”, de Carlos Gomes.
Outros nomes que deixaram sua
marca por aqui ainda no século 19
foram o pernambucano Crispim do
Amaral, que retratou o encontro das
águas dos rios Negro e Solimões
no pano de boca do Teatro Amazo-
nas; e Enrico Quatrini, a quem são
atribuídas esculturas em gesso pre-
sentes na casa de espetáculos. E há
ainda Arturo Luciani, que na mesma
época trabalhou na pintura e deco-
ração de outras casas e prédios de
Manaus.
Na transição para o século 20,
a capital amazonense já conta com
um cenário cultural razoavelmente
movimentado. Artistas de passagem
para produzir obras sob encomenda
também aproveitam para realizar
exposições de sua arte. Um exem-
plo é Aurélio de Figueiredo, irmão do
célebre pintor Pedro Américo: autor
da “Redenção do Amazonas”, pintu-
ra de quase 8 metros que adorna a
Biblioteca Pública. Ele expôs em Ma-
naus em 1888, 1907 e 1909.
Também estiveram por aqui o
niteroiense Antônio Parreiras e o
carioca Fernandes Machado, que
deixaram obras como “Quarta-feira
de Cinzas” (1904) e “O primeiro voo
de Santos Dumont” (1906), respec-
tivamente. Um inventário do perío-
do registraria, na cidade, obras de
estilos que passavam pelo barroco,
Primeira acima “Encontro das águas” de Crispim Amaral; segunda “Quarta-feira de cinzas” de Antônio Parreiras; Abaixo “O 1.º voo de Santos Dumont“ de Fernandes Machado; “Imortalidade“ de Branco e Silva.
de suas paisagens. A partir do final
do século 19, a capital ganhou ruas
de traçado geométrico, ladeadas por
edifícios imponentes e palacetes,
com bondes e luzes elétricas dese-
nhando o cenário de uma metró-
pole. Novos espaços como o Teatro
Amazonas ou a Biblioteca Pública
exigiam ornamentos à altura e, para
dar conta dessa necessidade, foram
recrutados vários artistas, brasileiros
e estrangeiros.
A lista inclui nomes como os ita-
lianos Domenico De Angelis e seu
assistente Giovanni Capranesi que,
depois de remodelar a Catedral de
Belém, foram chamados para dar
conta de projetos similares em Ma-
naus. No final da década de 1880, o
ateliê dos artistas na cidade estava
encarregado de trabalhar na Igreja
de São Sebastião, ao lado do arqui-
teto e conterrâneo Silvio Centofanti.
20 valercultural
mitologias”, aponta o artista plástico
e curador Cristóvão Coutinho.
Formação
Os artistas que passaram por
Manaus também deram sua contri-
buição às artes plásticas locais cum-
prindo um papel de formação, prin-
cipalmente na Academia Amazo-
nense de Belas-Artes, que já existia
desde o final do século 19. Luciani,
Centofanti e, possivelmente, Aurélio
de Figueiredo foram alguns dos que
lecionaram no local. “Eles ficavam
meses fazendo obras, e acabavam
se envolvendo na vida cultural da
cidade”, comenta Luciane Páscoa,
pesquisadora e professora de Histó-
ria da Arte da Universidade do Esta-
do do Amazonas. A academia, ela
acresce, foi importante. “Ela reunia
também música, literatura. Havia
aulas de Filosofia da Arte. Era um
modelo de academia diferente do
que entendemos hoje”.
“O Curupira“ de Manoel Santiago.
“ Eles ficavam meses fazendo obras, e acabavam se envolvendo na vida cultural da cidade”
neoclassicismo, romantismo e natu-
ralismo.
Por essa época, o primeiro pin-
tor amazonense a ser reconhecido
no cenário nacional iniciava seus
estudos de desenho e pintura. Ma-
noel Santiago nasceu em Manaus
em 1897, e viveu por alguns anos
na cidade antes de se mudar para
Belém do Pará e, depois, Rio de Ja-
neiro. Décadas após, ele voltaria à
terra natal e legaria ao Estado di-
versas obras com temática regional,
entre elas representações de lendas
amazônicas e de cenas da natureza.
Os temas regionais, aliás, pre-
dominavam na pintura da nascente
metrópole da borracha, dos painéis
do Salão Nobre do Teatro Amazonas
às obras de Santiago e àquelas de
outros artistas que viriam mais tarde.
“Os primeiros artistas a produzir aqui
são os italianos, e é interessante
observar que eles têm uma técnica
específica, mas já tratam dos ele-
mentos de nossa região, de nossas
21valercultural
Contratempos
Entre os anos 1910 e 1920, Ma-
naus e outras prósperas cidades
construídas com a riqueza da bor-
racha sofreram um duro revés com
o fim do monopólio amazônico do
produto, situação agravada pelo de-
sinteresse do Governo Imperial em
resolver o impasse e pelo início da
Primeira Guerra Mundial. Isso se re-
flete no fato de que quase não há
notícias da movimentação cultural
na cidade até por volta dos anos
1930 e 1940 – o que Luciane cre-
dita não à ausência de agitação,
mas à pura falta de registros. “Uma
cidade que viveu o furor da época
da borracha, mesmo ficando pobre,
não perderia de todo sua movimen-
tação cultural”, opina.
O primeiro nome a emergir des-
se lamentável vazio é Branco e Sil-
va. Nascido em Manaus em 1896,
ele estudou no Liceu de Artes e
Ofícios de Lisboa e herdou dali uma
pintura de caráter acadêmico, ao
qual ele acrescentou, na visão de
Luciane, notas de “realismo mági-
co”. “É um academicismo que fler-
ta com o surrealismo. Ele tem um
Membros do Clube da Madrugada na praça da Polícia, acervo fotográfico de Van Pereira.
Detalhe da III Feira de Artes Plásticas, acervo de Aluísio Sampaio, 1966.
desejo de estabelecer uma relação
vanguardista, mas é algo bem tê-
nue”, destaca a pesquisadora.
O autodidata Moacir Andrade
teria mais sorte em fazer a transi-
ção. Despontando na cena local em
1941, com uma exposição no Liceu
Industrial, ele irá transitar do natu-
ralismo a experimentações mais
abstratas ao longo das décadas
seguintes, mas sem deixar de lado
o caráter figurativo e sempre liga-
do a temáticas regionais. O talento
do pintor autodidata logo o levaria
a alçar longos voos: considerado
o grande nome do Amazonas nas
artes plásticas, ele irá representar o
Estado em exibições no Brasil (co-
meçando com individuais em Brasí-
lia e São Paulo em 1958) e interna-
cional (série de individuais em cida-
des dos Estados Unidos em 1968).
Também nos anos 1940 surge
Anísio Mello, que desenvolveu sua
arte com incentivo da mãe, Esther.
(Bem depois, em 1985, ele a ho-
menageou fundando um Liceu de
Artes com seu nome). Tanto Moa-
cir quanto Anísio viriam a se tornar
“O Nu“, Moacir Andrade.
Sem título, Anísio Melo.
22 valercultural
Anísio Melo
figuras de destaque no movimento
que balançou o cenário cultural de
Manaus a partir dos anos 1950: o
Clube da Madrugada.
Literatura e muito mais
Resultado de uma agitação ar-
tística que vinha se consolidando
algum tempo antes em reuniões de
intelectuais, o Clube da Madrugada
foi fundado oficialmente em 1954
com a proposta de levar as artes do
Amazonas um passo à frente, bus-
cando uma renovação principalmen-
te na Literatura, mas que também se
estendia a outros segmentos.
“Todos os movimentos moder-
nos têm um viés literário no século
20. Dá para perceber isso no Clube:
além da linguagem da Literatura,
eles também buscavam uma reno-
vação nas Artes Visuais, em relação
à edição de periódicos a cinema”,
afirma Luciane, que é autora do
livro “As Artes Plásticas no Ama-
zonas – O Clube da Madrugada”,
lançado há um ano. “Primeiro eles
se reuniam para ler obras e mostrar
uns aos outros poemas e contos. E
começaram a chegar aqueles que
vinham mostrar seus quadros. E
quando eles fundaram, em 1961, o
suplemento ‘Madrugada’ no jornal,
começou a se ter uma colaboração
frequente em gravura e ilustração”.
Além de Moacir e Anísio, o
Madrugada também tinha como
integrante Afrânio de Castro, que
Cristóvão Coutinho aponta como o
artista mais ousado em sua época.
“Ele não vai ter preocupação especí-
fica com a paisagem regional; pelo
contrário, ele é experimental. Já nos
anos 1950/60, ele agrega esponja
a uma pintura, numa fuga da bi-
dimensionalidade, o que era uma
noção incomum mesmo naquele
tempo”, avalia o curador.
“ A arte amazonense é uma arte bastante engajada com as questões sociais, especialmente nos anos 1960. Uma coisa que une esses artistas é uma preocupação social: pensar a cidade em questões urbanas, a vida na Amazônia”
Luciane Páscoa
23valercultural
“ Eles não estavam preocupados em atender a expectativas do que se discutia no Rio, São Paulo. Estavam preocupados em se expressar”
1. “Cabocla“, Manuel Borges; 2. “Cafuné”, Hahnemann Bacelar; 3. “Paisagem com palafita“, Álvaro Páscoa; 4. “Macumba”, Moacir Andrade; 5. Foto da série “Amazônia erótica“, Normandy Litaiff; 6. “O reflexo“, Anísio Mello
1
2
3 4
5 6
24 valercultural
Abrindo portas e plantando sementes
Entre os anos 1950 e 1960, o
Clube do Madrugada revela uma
verdadeira geração de novos artis-
tas. Nesse período, o movimento
promove exposições individuais e
coletivas de Afrânio, Álvaro Páscoa,
Horácio Elena, Getúlio Alho, Moacir,
Marcos Vila, Gualter Batista, Óscar
Ramos, Paulo D’Astuto, Jair Jacq-
mont, José Maciel, Marianne Over-
beck e Paolo Ricci, segundo informa
um estudo de Luciane.
Na pintura desse período, é pos-
sível reconhecer tendências que
incluem não só uma tradição mais
acadêmica (caso do retratista Ma-
noel Borges ou de Anísio Mello),
como também o expressionismo
(Getúlio Alho, Álvaro Páscoa e algo
de Moacir), o fauvismo (Gualter Ba-
tista) e o abstrato (algo de Afrânio).
Ampliando o campo para as artes
visuais, encontram-se novas expe-
riências com o cinema, de nomes
como o fotógrafo Normandy Litaiff,
diretor de “Carniça” (1966), dentre
outros que seguem os passos do
pioneiro Silvino Santos.
Enquanto abriam as portas para
os artistas emergentes, integrantes
do Clube da Madrugada começaram
a investir na formação de futuros
talentos. Em 1965, por sugestão de
Moacir Andrade, o governador Ar-
thur Cézar Ferreira Reis criou a Pina-
coteca do Estado, numa ala do pré-
dio da Biblioteca Pública do Estado.
Ali, o artista plástico começou a dar
aulas de pintura, acompanhado ain-
da de Álvaro Páscoa (xilogravura) e
Manoel Borges (desenho).
Dentre aqueles que participa-
ram dos cursos oferecidos na Pina-
coteca sairiam alguns talentos que
até hoje sobressaem no cenário das
artes visuais no Amazonas. Aí se in-
cluem, entre outros, Jair Jacqmont,
Zéca Nazaré, Otoni Mesquita, Van
Pereira e Thyrso Muñoz, além do
saudoso Hahnemann Bacelar.
Nós e os outros
As aulas na Biblioteca Pública
incentivaram um iniciante Otoni,
por exemplo, a diversificar sua pa-
leta temática no desenho, a partir
de 1975. “O Borges nos fazia re-
produzir desenhos, pinturas, e foi
o grande estímulo para eu sair de
algo que chamo de ‘síndrome de
caras e bocas’: eu fazia muito rosto
feminino, muito cabelo, cara pinta-
da, com cabelo arrepiado ou sem...
Enfim, todas as maneiras de ver
uma modelo”, comenta o artista,
que dizia ter uma tendência margi-
nal para o psicodélico, manifestada
“nas beiradas dos cadernos”. “Com
a valorização do Borges, pude co-
locar no centro do papel o que era
beirada”, diz.
Jair Jacqmont lembra que as pai-
sagens e questões regionais eram
enfatizadas nas aulas promovidas
por Moacir e os demais professores
da Pinacoteca. “Eles tinham o con-
ceito do amazônida, do amazonen-
se. Na literatura era a mesma coisa.
Isso é bom, porque é um conceito
moderno, o de retratar a nossa al-
deia”, avalia. “O Moacir nos levava
para o São Raimundo e nos dizia,
‘Vamos desenhar aqui’”, recorda
ele.
Talvez por valorizar a identida-
de amazônica, os artistas do Clube
da Madrugada viraram um tanto as
costas para as mudanças no cenário
das artes no resto do país, em es-
pecial nos anos 1950. “Não vamos
ter uma preocupação, por parte dos
artistas, com o movimento contem-
porâneo. ‘Ah, o que está se fazendo
no Rio de Janeiro, em São Paulo?’.
Não. Temos uma obra predominan-
temente figurativa”, afirma Luciane.
A pesquisadora menciona o mo-
vimento concretista, que iniciou no
Sudeste pouco antes da fundação
do Clube, mas não teve influência
alguma no cenário local. Movimen-
tos e propostas à parte, o fato é que
os artistas daqui estavam mais in-
teressados em demarcar uma posi-
ção própria do que em procurar um
lugar na cena nacional. “Eles não
estavam preocupados em atender
a expectativas do que se discutia
no Rio, São Paulo. Estavam preocu-
pados em se expressar. É algo que
deixa o Amazonas numa posição
particular”, opina Luciane.
Busca pelo contemporâneo
É a partir dos anos 1970 que se
verifica uma mudança de sensibi-
lidade nas artes plásticas do Ama-
zonas, numa transição do moderno
para o contemporâneo. Se antes a
preocupação principal estava nos
aspectos temático e acadêmico,
Obra de Otoni Mesquita
25valercultural
também no Rio, utilizou técnicas
de xilogravura, litogravura e outras
como expressão. Otoni, que pas-
sou por Belas-Artes, MAM e Parque
Lage, viria mais tarde a investir na
instalação, entre outras expressões.
Rita levou as temáticas indígena e
amazônica ao se mudar para o Rio,
onde começou a trabalhar em pin-
turas de viés naïf. Sergio Cardoso,
autodidata, inspira-se no espaço e
na geografia em telas que propõem
jogos visuais. Garcez, a partir do fi-
nal dos anos 1970, vai explorar téc-
nicas e materiais antes de se dedi-
car ao expressionismo.
Evangelista, que começou no
Teatro antes de enveredar pelas
Artes Visuais, começa a explorar
as possibilidades da arte conceitual
ainda no final dos anos 1960. Com
o vídeo experimental “Mater Dolo-
rosa In Memoriam II – Da criação e
sobrevivência das formas” (1972),
conquistou projeção nacional para
seu trabalho. Tal como ele, entre os
anos 1970 e 1980 muitos artistas
cruzariam as fronteiras do Amazo-
nas com sua arte e ganharam des-
taque na cena brasileira.
Acontecendo lá fora
Além de viajar para estudar nos
grandes centros da produção visual
brasileira à época, o Rio de Janeiro
principalmente, os artistas locais co-
meçam a se fazer notar em mostras
e exposições de arte nesses locais.
“Começamos a acontecer em ex-
posições nacionais”, comenta Oto-
ni Mesquita, evocando um cenário
que remonta aos primeiros anos da
década de 1980. “O Evangelista já
frequentava o Salão Nacional, em
1984 já estavam lá o Sergio, o Jair
buscando consolidar uma identida-
de amazônica, o foco dos artistas
nesse período começa a se voltar
ao aspecto formal da arte, no sen-
tido de se explorar novas possibi-
lidades e desenvolver linguagens
particulares.
Entre alguns representantes
dessa nova sensibilidade estavam
egressos da Pinacoteca, como Jair
Jacqmont e Otoni Mesquita, e tam-
bém outros nomes como Auxilia-
dora Zuazo, Arnaldo Garcez, Sergio
Cardoso, Bernadete Andrade, Rita
Loureiro e Roberto Evangelista, cada
qual trazendo diferentes bagagens
e diferentes propostas artísticas.
Jacqmont, que fez cursos no Mu-
seu de Arte Moderna (MAM) e no
Parque Lage, no Rio de Janeiro, deu
novo enfoque a sua representação
da natureza. Zuazo, que estudou
na Escola Nacional de Belas-Artes,
Otoni Mesquita
Foto
s: A
nton
io L
ima
26 valercultural
e eu, em 1985 também. Participei
do Arte Pará em 1985 e 1986, e nos
dois anos ganhei prêmios aquisi-
ção”, enumera Otoni.
Os primeiros a se destacarem
foram Óscar Ramos e Roberto Evan-
gelista. O primeiro, que desde mea-
dos dos anos 1960 estava radicado
no Rio de Janeiro, estudando com
nomes como Ivan Serpa, participou
da Bienal Internacional de São Paulo
em 1969 e 1971. Mais tarde, graças
ao reconhecimento obtido em pre-
miações, continuaria sua formação
na Espanha. Evangelista também
participou de uma Bienal nacional,
em 1976, e duas internacionais, a
primeira em 1977. De lá, veio a par-
ticipar de exposições na Inglaterra,
Estados Unidos, Áustria, Espanha e
Japão ao longo dos anos 1990, sen-
do o artista amazonense com maior
penetração no circuito internacional
de arte contemporânea.
Ainda nos anos 1980, Cardoso,
Jacqmont e Otoni também partici-
param de outros eventos de desta-
que no país, como o Salão Nacional
de Arte Contemporânea de Belo
Horizonte – caso de Cardoso, em
1982, e de Jacqmont, em 1984 – ou
a Panorama da Arte Atual Brasileira
de São Paulo – Jacqmont e Otoni, no
mesmo ano. Ainda em 1984, Jacq-
mont integrou a histórica “Como vai
você, Geração 80?”, no Parque Lage.
“Foi a mais importante do período,
o grande start da transição do final
do Modernismo e o início do Con-
temporâneo”, destaca ele.
Enquanto isso, havia mostras
de artistas amazonenses e partici-
pações em exposições em diver-
sos outros cenários, como Brasília,
Recife e Fortaleza, além de Belém
– com a qual se chegou a forjar
certa conexão, com artistas ama-
zonenses expondo lá e paraenses
expondo aqui – e nomes de peso
dos segmentos crítico e curatorial
passavam por Manaus. “Os curado-
res iam atrás da gente. O (Paulo)
Herkenhoff e outros nomes impor-
tantes no cenário da arte iam bater
na porta do meu quarto para ver
trabalhos”, lembra Otoni.
Nova efervescência
Esse cenário de intensa circula-
ção e intercâmbio da arte no Brasil,
incluindo aí o Amazonas, era re-
sultado de um momento de efer-
vescência das artes no país, e que
possivelmente tinha a ver com o
otimismo de uma nação que saía
de uma ditadura militar e iniciava
um processo de democratização.
“É preciso se atualizar, mas não pode acontecer um processo de substituição, e sim de acúmulo, acréscimo. Isso acontece na História da Arte (...) Sonhos, história, memória, são parte de nossa produção. Ideal seria mesclar o nostálgico e o contemporâneo. Mas isso vem naturalmente, não há como forçar”
27valercultural
Tal efervescência também coloriu a
paisagem das artes visuais em Ma-
naus, com o surgimento de novos
artistas e o estímulo à exploração
de novos conceitos e linguagens em
exposições de cunho temático.
O centro desse cenário fervi-
lhante era inicialmente a Galeria
Afrânio de Castro, no prédio da atual
Academia Amazonense de Letras,
e mais tarde a Pinacoteca do Esta-
do. Sob a direção de Jacqmont, que
voltara há pouco do Rio de Janeiro,
a Galeria passou a promover exibi-
ções com temas que incitavam a
especulação de novos territórios e
questões artísticas. “Fazíamos uma
movimentação com exposições co-
letivas e temáticas. Fizemos, entre
outros, exposições com temas como
‘Madeira’, depois ‘Terra’, ‘Fogo’,
‘Ar’, ‘Paisagem’”, recorda o diretor,
lembrando que os artistas de teatro
também tinham seu papel na agita-
ção cultural. ‘Eles entravam nas ga-
lerias fazendo performances”.
“Foi lá (na Galeria) que aconte-
ceram as primeiras exposições de
instalações. Fizemos várias só de
instalações, com temáticas específi-
cas. Havia desenhos, pinturas, várias
pequenas coisas. Era algo pequeno
considerando o contexto brasileiro,
mas no local era significativo”, afir-
ma Otoni, que resume o espírito ge-
ral da época: “Nunca tivemos outro
período tão animado de circulação,
muita produção alternativa, muita
experimentação”.
Dessas águas agitadas emergiu
um grupo de artistas decididos a ex-
plorar novos terrenos nas artes visu-
ais, representado por nomes como
Turenko Beça, Helen Rossy, Buy
Chaves, Jáder Resende, Mário de
Paula, Sebastião Alves e Cristóvão
Coutinho. “É uma geração capitane-
ada pelo Jair”, sintetiza este último.
“Ele percebeu que havia novas pes-
“Sempre houve uma preocupação de falar do lugar, da paisagem e dos elementos de nossa cultura. Vai talvez de sermos uma sociedade nova, como civilização, como cidade. Por sermos um lugar distante, a ser visto, nossa preocupação em nos firmarmos como povo se manifestou muito na expressão dos artistas amazonenses”
Cristóvão Coutinho
28 valercultural
período houve ali mais de 50 expo-
sições, praticamente uma por mês”,
lembra Sergio Cardoso, curador da
iniciativa, mantida pela antiga Secre-
taria de Estado de Educação e Cultura
e pela Superintendência de Teatros
do Amazonas. Entre outros, houve ali
exposições de Otoni Mesquita (“Fru-
to proibido” e outras) e Rita (“Ma-
cunaíma”), além de coletivas como
“Iché cunhã (Eu mulher)”, com obras
de artistas femininas do Estado.
Ainda em meio ao furor do pe-
ríodo acontece a fundação da As-
sociação Amazonense de Artistas
Plásticos (Amap), em 1981. A par-
tir daí – e até os dias de hoje – a
entidade de classe passaria a agre-
gar outros artistas, autodidatas ou
egressos de liceus e outros cursos,
não tanto interessados na investiga-
ção das questões contemporâneas,
mas em produzir arte – em grande
parte, adeptos da pintura, marcada
pela figuração com elementos ama-
zônicos e/ou pela filiação a estilos e
técnicas modernas, como o impres-
sionismo e o abstrato.
Em torno da Amap, que também
cumpria um papel de difusão com
a realização de eventos, como o
Salão Curupira, viriam a gravitar no-
mes de associados como Francimar
Barbosa, Homero Amazonas, Nona-
to Cruz, Ivana de Lima, José Stenio,
Paulo Cesar, Raimundo Noleto, Lígia
Barros e Elizabeth Grubinger, para
mencionar alguns.
Longe da Galeria, da Pinacoteca
ou da Amap, outros nomes segui-
rão um caminho autônomo, sem
compromisso com movimentos ou
filiação a grupos. O principal exem-
plo é Rui Machado, que realizou sua
primeira mostra individual em 1982,
também no Projeto Hahnemann.
Depois da tempestade
Como se os ventos que agita-
ram a cena artística nos anos 1980
começassem a perder a força, a
soas trabalhando não só com a tela,
saindo da parede, fazendo objetos,
instalação, ambientes, e com outro
discurso da própria obra”.
Coutinho lembra ainda que não
havia espaços formais de educação
nas artes, mas um grande desejo de
criação por parte dos artistas de en-
tão. “Não havia formação universi-
tária em Artes. O que vai determinar
a produção é o imaginário de cada
um, as informações de seu ambien-
te, seu inconsciente. Começa-se a
fazer instalação, mais objetos, e a
pintura fica encarregada do aspec-
to desconstrutivo. E a maneira de
apresentar questões regionais não
é mais tão formal. A questão estéti-
ca não é mais a do belo, terá outros
elementos constitutivos”, analisa.
Falando de espaços, vale citar
ainda o Projeto Hahnemann, que de
1979 a 1982 abriu o hall do Teatro
Amazonas para artistas consagrados
e iniciantes. “Foi um espaço agluti-
nador de plateias e público. Nesse
Quadros de Jair Jacmont
29valercultural
efervescência anterior dará lugar
a um cenário de perigosa calma-
ria nos anos 1990. Com o passar
da década, a participação dos ar-
tistas amazonenses no cenário da
arte brasileira vai diminuindo. Laços
estabelecidos antes com críticos e
curadores dos centros nacionais vão
se enfraquecendo. “Vivemos retira-
dos”, reconhece Jacqmont.
Sintomaticamente, poucos ta-
lentos novos viriam a se manifes-
tar nesse período. Entre os poucos
que se pode destacar estão Manaus
(hoje conhecido como Manaus-
macaco), cujas criações dialogam
com a comunicação de massa da
publicidade e dos quadrinhos; Sér-
gio Andrade, que chega a expor
objetos de arte no Palácio Rio Ne-
gro, então tornado centro cultural,
antes de enveredar pelo caminho
do audiovisual; e Adroaldo Pereira,
que explora relações visuais a partir
de colagem, fotografia, videoarte e,
mais tarde, moda.
Aos poucos, as conquistas da
década anterior pa-
recem se perder num movimento
geral de retração, talvez reflexo de
um momento econômico e social
de mudanças. O que aconteceu?
Otoni aponta algumas pistas: “Nos
anos 1990 não diminuiu a produção
artística, mas os espaços de expo-
sição, o interesse do público. Foi
algo nacional, houve uma retração.
Artistas da gravura deixaram de
viver. E a questão da massificação
se intensificou, a animação artística
caiu. Outros segmentos até resis-
tiram. Aqui, a Secretaria de Cultu-
ra investiu muito na música, com
a criação de orquestras. Mas não
houve um investimento bom nas
Artes Plásticas”.
Ventania e vácuo
Apesar do escasso investimento
mencionado por Otoni, destacam-se
na segunda metade da década duas
iniciativas promovidas pelo poder
público. Uma delas foi a criação do
Centro Cultural Claudio Santoro, em
Jair Jacqmont foi diretor da Galeria Afrânio de Castro
que funcionou no prédio da atual Academia Amazonense de Letras
30 valercultural
Apesar da relevância, o even-
to não teve continuidade nos anos
seguintes, sem motivos aparentes,
deixando um lamentável vácuo no
lugar do que poderia ter sido um
enorme avanço no segmento das
artes plásticas no Estado. É o que
aponta Cristóvão Coutinho: “Foi um
erro o Salão Plástica ter sido des-
continuado. Isso que vimos agora
na Pré-Bienal, poderíamos estar
vendo em outro patamar”.
Procurada pela reportagem,
a Secretaria de Estado de Cultura
(SEC) não respondeu que motivo
levou à descontinuidade do evento.
Pedra na lagoa
A combinação da falta de um
programa sério de estímulo com a
tendência de retração da cena ar-
tística nos anos 1990 – em termos
de mercado, público, interesse e
outros – estendeu o quadro de cri-
se também aos primeiros anos do
século 21. Se o cenário não ficou de
todo estagnado, isso se deve em
boa medida à iniciativa de Cristóvão
Coutinho: como curador da Galeria
do Centro de Artes Hahnemann Ba-
celar da Universidade Federal do
Amazonas (Caua/Ufam), de 2003
a 2011, ele cumpriu um necessá-
rio papel de estimular a cultura e a
criação de artes visuais dentro das
questões contemporâneas.
Nesse período, a Galeria do
Caua promoveu algumas dezenas
de exposições – individuais, cole-
tivas e internacionais –, com apoio
financeiro (limitado) do banco pri-
vado Unibanco e um insistente
trabalho de curadoria calcado em
Pinacoteca do Estado do Amazonas
Obras de nomes importantes
das Artes Plásticas no Amazonas
do século 20 compõem o grosso do
acervo do espaço, que desde 2009
tem como lar o Palacete Provincial,
na praça Heliodoro Balbi (praça da
Polícia), no centro de Manaus.
Galeria do Largo – Centro de Artes Visuais
Situada no largo de São Sebas-
tião, é o principal espaço de referên-
cia da arte contemporânea mantido
pela Secretaria de Cultura. Cumpre
papel de valorização e resgate das
artes visuais, promovendo exposi-
ções de artistas que representam a
memória das artes no Amazonas.
Centro Cultural Palácio da Justiça
Tornado espaço cultural em
2006, abriga exposições permanen-
tes e temporárias nos salões que já
foram sede principal do Judiciário no
Amazonas. Fica na avenida Eduardo
Ribeiro, 833, Centro.
Museu da Imagem e do Som do Amazonas
Reúne um acervo de imagens,
áudio e vídeo relativos à Amazônia,
com cerca de 245 mil peças. Criado
em 2000, hoje está instalado no Pa-
lacete Provincial.
Galeria do Caua
Localizado no Centro de Artes
Hahnemann Bacelar da Universi-
dade Federal do Amazonas (Caua/
Ufam), na esquina das ruas Monse-
nhor Coutinho e Tapajós, no Centro,
promove exposições temáticas e
mostras de acervo de caráter tem-
porário.
Casa das Artes
Também no largo de São Sebas-
tião, oferece em algumas de suas
salas exposições temáticas e tem-
porárias.
1997, que funciona hoje como Liceu
de Artes e Ofícios. Outra foi o Salão
Plástica Amazônia, que teve duas
edições, em 1997 e 1998, respec-
tivamente na Usina Chaminé e no
Palácio Rio Negro. Reunindo criações
de artistas do Amazonas, do Pará e
de outros Estados, sob curadoria de
uma equipe formada por Jacqmont e
convidados nacionais, as duas mos-
tras foram um sopro de vida num
cenário sem muitas perspectivas.
“A última exposição foi muito
bonita. O Evangelista fez a ‘Sala dos
clamores’, enchendo uma sala só
com garrafas vazias. O Buy fez um
altar de isopor”, recorda Jacqmont.
“Foram dois salões importantíssi-
mos, a meu ver, embora sem a re-
percussão necessária na memória.
Eles mobilizaram muitos artistas
jovens”, comenta Cardoso.
31valercultural
“diálogos com os artistas, discussão
da obra e ocupação do espaço de
uma maneira consciente para apro-
ximações com o sistema de arte
contemporânea no mundo vigente”
– como Coutinho explica no texto
de seu “Memorial de Artes Visuais
2003/2011”, balanço de seu traba-
lho à frente do espaço.
Entre as exibições promovidas
pela galeria estavam desde tra-
balhos inéditos de nomes como
Roberto Evangelista (“Leituras es-
catológicas”, 2005) e Óscar Ramos
(“comoemitacoatiara”, 2010) até
exercícios de
alunos de Artes
Plásticas (“Pin-
tura/Exercícios”, 2004) e coletivas
com talentos promissores (“Trans-
posições”, 2007, e outras). Alguns
eventos do espaço foram pioneiros
em explorar novos temas e terrenos,
como a arte urbana – caso de “Pixo”
(2006), que pela primeira vez na ci-
dade levou o grafite das ruas para
as paredes de uma galeria de arte
(apenas em 2011 a Galeria do Largo
realizaria uma operação similar, com
sua “Volts”).
Retrospectivas e panoramas
também passaram pela Galeria do
Caua, sendo digna de nota a “Re-
serva de Artes” de 2005. Talvez a
mais abrangente mostra da produ-
ção contemporânea e moderna do
Amazonas fora da Pinacoteca e an-
tes da Pré-Bienal, a exibição compi-
lou 40 anos de artes no Estado em
30 obras. A lista trazia, entre outros,
Moacir, Bernadete, Zuazo, Óscar,
Hahnemann, Jandr, Cardoso, Otoni,
Evangelista, Rui, Jacqmont, Manaus,
Adroaldo e Helen Rossy, além de
incluir a fotografia de nomes como
Andreia Mayumi.
Nas exposições da Galeria do
Caua foram revelados e destacados
nomes como Paulo Trindade, Priscila
Pinto, Naia Arruda, Pollyana D’Avila,
Marcos Romano, Denise Rodrigues,
Monik Ventilari, Sandro Marandueira
e Olivença, para citar apenas alguns.
Em conjunto, eles desenvolveram
uma obra que abrange diferentes
técnicas e suportes – da tradicional
pintura à instalação e ao audiovisu-
al –, investindo na linguagem con-
ceitual e buscando estabelecer um
discurso artístico permeado pelos
questionamentos contemporâneos.
Ainda a crise
Exceto por alguns que deixaram
o cenário local, os nomes citados
“Mulheres”, Hahnneman Bacelar
32 valercultural
anteriormente podem ser arregi-
mentados como representantes de
uma atual geração das Artes Visuais
no Amazonas. E, todavia, é uma ge-
ração que ainda enfrenta dificulda-
des em se firmar à frente do cená-
rio. Além de contar, até pouco tem-
po atrás e ainda um tanto hoje, com
pouco ou nenhum incentivo das es-
feras municipal, estadual ou federal,
sua produção pode ser considerada
irregular e de volume reduzido.
“Nos anos 2000, poucos artistas
apareceram. E frutos da Universida-
de, quem são? Paulo Trindade, Naia
Arruda, Pollyana D’Avila... São pou-
cos. Da Universidade deveria ha-
ver muito mais frutos. E produz-se
pouco – houve exposições no Clau-
dio Santoro, no Icbeu. Mas o pouco
estímulo, a pouca informação, isso
tudo contribui para estarmos ainda
patinando nas Artes Visuais”, afirma
Coutinho.
Ele aponta ainda um ‘silêncio’
das gerações anteriores que teria
privado os nomes da geração atual
de um contato com o que se fizera
até então. Aqui, ele cita uma análise
feita pelo curador Paulo Herkenhoff
no catálogo da exposição “Amazô-
nia, a arte” (2010): “O Paulo afirma
que, após uma aproximação com o
resto do país nos anos 1980, alguns
artistas foram trabalhar no Estado,
e de uma forma ou outra impedi-
ram outras gerações de tomar co-
nhecimento (de até onde se havia
chegado)”.
Evangelista observa que os artis-
tas de sua geração até hoje ocupam
o centro da paisagem das Artes Vi-
suais no Amazonas. “Minha geração
continua tendo papel predominan-
te, o que é lamentável”, afirma
ele, apontando a ausência de “uma
política cultural mais ousada, com
promoção de intercâmbio de artis-
tas, encontros, oficinas” pela estag-
nação da cena e pela decorrente
pequena expressão dos artistas da
geração atual.
“Em alguns momentos tivemos
vislumbres do que poderia acon-
tecer se se levasse mais adiante a
coisa, mas empacou na ausência de
uma vontade política. As artes no
Amazonas estão mais em torno de
festivais, mas menos em torno de
Artes Plásticas. É algo mais voltado
para o que considero ‘festivo’. Não
temos até hoje, não sei se existe
uma faculdade que promova tão
somente as artes. Continuamos de-
fasados”, lamenta.
Coutinho observa também que o
atual cenário decorre de um sistema
de arte “capenga” no Estado. “Ain-
da não foi estabilizado o processo
de construção de um circuito – com
escolas, galerias de arte, o Estado
participando de maneira conscien-
te, a iniciativa privada cooperando.
O Estado trabalha politicamente, a
iniciativa privada não acredita em
quem não aparece. E há uma escola
de arte com grade atrasada, aquém,
acadêmica, formal”, critica ele.
Para Otoni, a falta de espaços
de formação não justifica o relati-
vo vazio geracional (“Isso não foi
problema nos anos 1970/80”),
mas acredita que ele pode refletir o
contexto de uma sociedade que se
volta mais e mais ao mundo virtual
enquanto dá menos valor à educa-
ção. “Não é preciso mais ir à gale-
ria: o contato das mídias preenche
“Meninos com pipa”, Afrânio de Castro
“Paisagem”, Van Pereira
33valercultural
temporariamente o indivíduo (...)
As pessoas produzem e leem cada
vez menos, estão cada vez mais es-
vaziadas. É como se fosse uma bar-
bárie”, conclui.
Novas perspectivas
É em meio a esse estado de
coisas que acontece a Pré-Bienal
de Artes do Amazonas. O evento,
que pareceu responder às queixas
dos artistas locais quanto ao relati-
vo “abandono” do segmento pelo
poder público, chamou a atenção
da sociedade para o cenário das Ar-
tes Visuais no Estado e abriu uma
perspectiva de mudança, com a ex-
pectativa de maiores investimentos
para a área, de valorização da arte e
dos artistas e de abertura de um ca-
nal de diálogo com a cena artística
nacional e internacional com a futu-
ra 1.ª Bienal de Artes do Amazonas.
Realizada no Centro Cultural Po-
vos da Amazônia, a exposição “Dos
lápis de Di ao festim das barrancas”
reuniu mais de 200 criações de ar-
tistas locais, além de prestar home-
nagem a Di Cavalcanti (1897-1976),
um dos idealizadores da Semana de
Arte Moderna de 1922, ao pintor e
paisagista Burle Marx (1909-1994)
e a Hahnemann Bacelar.
Faziam parte da lista de artistas
locais na mostra Arnaldo Garcez,
Turenko Beça, Buy Chaves, Ma-
nausmacaco, Cristóvão Coutinho,
Eli Bacelar, Evanil Maciel, Francimar
Barbosa, Helen Rossy, Jair Jacqmont,
Jandr Reis, Mário de Paula, Moacir
Andrade, Nelson Falcão, Noleto,
Otoni Mesquita, Rui Machado, Se-
bastião Alves, Sergio Cardoso, Zeca
Nazaré, Lígia Barros, Paulo Cesar,
Olivença e Erre Nascimento, além
dos grafiteiros Arab, Box, Caos, Isy,
Raiz e Áudio.
“Temos aqui artistas de Parin-
tins, Coari e São Paulo de Olivença, é
um marco para as artes plásticas no
Amazonas. Por meio da Pré-Bienal e,
posteriormente, da Bienal de Artes
Visuais ‘Amazônica 01’, em 2013,
promovemos o incentivo à produ-
ção e à valorização do segmento”,
declarou à imprensa a curadora Cleia
Viana, à época da exposição.
Otoni, que participou da Pré-Bie-
nal com um “ambiente em proces-
so” – a pintura foi feita ao longo do
período da exposição –, considera
que o evento “valeu a pena”. “So-
bretudo para mim que fiquei pro-
34 valercultural
duzindo um trabalho em constante
movimento, transformação, e tive a
possibilidade de conversar com as
pessoas. Foi enriquecedor em vários
pontos”, afirma o artista plástico.
“Sempre elogio qualquer iniciativa
que exiba o trabalho da gente”.
Por outro lado, os artistas locais
ainda mantêm certa reserva com
relação à futura Bienal, pelo fato de,
como ocorreu na Pré-Bienal, não es-
tarem tendo participação na elabo-
ração ou produção do evento. Otoni
manifesta preocupação de se ter
uma equipe capaz de dar conta de
um evento de tal porte: “Um evento
como esse requer um aprofundamen-
to de questões, leituras e um conheci-
mento específico da produção artísti-
ca (...) Não se trata simplesmente de
fazer uma exposição, ter um curador
e montar um cenário”.
Evangelista soma a essa a pre-
ocupação com a continuidade do
evento. “Acho interessante que pos-
sa perdurar, tendo uma linha volta-
da para a Amazônia. Mas é preciso
ter uma curadoria muito séria e ca-
paz, que separasse a arte clássica,
hispânica, contemporânea – enfim,
que pudesse estar revelando a van-
guarda das artes na América Latina,
ou Amazônia, melhor dizendo. Mas
temo que essas coisas aconteçam
de forma esporádica, dentro de uma
conjuntura de ideias e pensamen-
tos, e terminem ali”, declara ele.
Jacqmont, por sua vez, espera
que a futura mostra abra espaço
para a arte local e para o diálogo.
“Pode vir a ser muito bom, mas po-
demos também vir a ficar de fora.
Seria preciso ter uma ala para nos-
sos questionamentos, nossa visibi-
lidade. Somos daqui, temos nossa
cultura. Somos do Amazonas e que-
remos ver nossa voz, nosso visual
sendo discutido, colocado, analisa-
do. O conceito da Bienal tem de ter
isso”, propõe.
Coutinho manifesta otimismo,
enxergando a possibilidade de Ma-
naus se inserir num circuito de arte
nacional, com o restabelecimento
do diálogo com outros centros, per-
dido nos anos 1990. “A Pré-Bienal e
a Bienal ajudam no sentido de dar
visibilidade aos artistas locais, e da
possibilidade de abrirmos relações
e termos contatos mais próximos
com outros artistas, outras curado-
rias. Arte contemporânea é isso:
uma transitoriedade grande, um
trânsito permanente de pessoas e
de produção”, assevera ele.
Reservas à parte, o secretário
de Cultura do Estado, Robério Bra-
ga, não hesita em elevar as expec-
tativas no que se refere ao futuro
evento de Artes Visuais no Estado:
“Será uma grande surpresa, um
processo de criação coletiva e um
divisor de águas na linguagem de
artes visuais que vamos ter antes e
depois da Bienal”.
Quanto a nós, leitores e especta-
dores, resta esperar para conferir os
novos capítulos dessa história.
35valercultural
A medicina que vem da floresta
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38 valercultural
Emiliana Teixeira | jornalista
O dom de curar é, também, um conhecimento que se
desenvolve desde as primeiras sociedades humanas.
Os curadores – ou curandeiros – salvam vidas nos lu-
gares onde as crenças e as experiências tradicionais
prevalecem ou se combinam com a medicina científica oficial. Na
Amazônia, que abriga a maior floresta tropical do mundo, os pra-
ticantes da medicina tradicional gozam de prestígio e admiração
em comunidades rurais e urbanas.
Quem, nessa região, nunca ouviu falar da fama de um curan-
deiro? Generalizam-se, nesse personagem, várias especialida-
des da medicina dos povos da floresta. O curandeiro exerce, nas
comunidades tradicionais, papéis análogos aos dos profissionais
das ciências da saúde e dos religiosos, porque, além dos ma-
les patológicos, também cuida da alma do paciente. “Eles [os
curandeiros] são respeitados porque possuem grande sabedoria
que ajuda o povo a manter uma relação saudável com a natu-
reza, onde encontram os recursos para solucionar os problemas
dos pacientes”, afirma a pesquisadora Fátima Guedes, que atua
na revitalização dessas práticas no município de Parintins, no
Amazonas.
Nas comunidades distantes do acesso às políticas de saúde
do governo, a assistência à saúde coletiva depende do trabalho
das parteiras, dos pegadores de ossos, dos puxadores de des-
mentiduras, dos costuradores de rasgaduras, dos curadores, dos
A medicina que vem da floresta
tradição
Na Amazônia os praticantes da medicina
tradicional têm prestígio e admiração
em comunidades rurais e urbanas
39valercultural
sacacas (pessoa que manifesta o
dom de curar ainda no ventre) e
das benzedeiras. No geral, são to-
dos excelentes manipulares das
ervas medicinais. Há, todavia, uma
postura intolerante da Medicina ofi-
cial com as curas não reconhecidas
pelos laboratórios científicos. Profis-
sionais das ciências da saúde, como
médicos, enfermeiros e odontólo-
gos, desqualificam a medicina tra-
dicional e prejudicam a formação
de novos curandeiros.
A aprendizagem consiste, ge-
ralmente, na observação direta da
atividade da pessoa experimentada
no ofício de curar ou no desenvol-
vimento de uma dádiva espiritual.
No caso da Amazônia, ressalta-se
a harmonia das práticas dessa cul-
tura com a natureza e suas forças
mágicas. Usa-se a natureza como
inspiração ou como recurso para
curar doenças e nunca para explorá-
-la sem quaisquer sentidos que não
sejam os da preservação da vida.
Algumas terapias utilizam medi-
cação à base de ervas, partes de ani-
mais ou minerais, e com frequência
a água, a terra, o metal. As plantas
medicinais servem para corrigir o
mau funcionamento de algum ór-
gão do corpo. A bênção juntamente
com o remédio visa salvar o doente
como um todo. É o caso da oração
sobre uma rasgadura (hérnia) com
o auxílio de uma erva medicinal, da
semente do mamão dada à criança
para prevenir verminoses, do chá de
boldo para curar uma dor de estô-
mago, da copaíba como creme para
pegador de ossos.
Na medicina dos povos da flo-
resta encontram-se chás de raízes,
folhas, flores, cascas, sementes;
banhos preparados com plantas
aromáticas; banhas de jiboia, car-
neiro, galinha; uso tópico da folha
de fumo na barriga contra a dor ou
da metade de uma laranja-da-ter-
ra, esquentada na chapa do fogão,
para curar caxumba. Trata-se do
conhecimento empírico-intuitivo,
no qual se aguçam os sentidos em
socorro ao bem-estar do corpo e da
alma do paciente.
Parteira por acaso
Leonilza Gadelha de Souza, 66,
a tia Leó, perdeu as contas de quan-
tos partos já realizou em toda sua
vida. Em 1970, aos 24 anos, grávida
do quinto filho, teve que se cuidar
sozinha ao sentir as dores do parto,
no meio da madrugada. Seu mari-
do estava doente e os filhos ainda
eram muito pequenos. Ela, então,
fez o próprio parto. Meses depois,
uma jovem senhora lhe pedia ajuda
na hora de dar à luz. Com o conhe-
cimento adquirido nos partos dos
cinco filhos, ela atendeu ao pedido
e, desde então, assumiu o ofício de
parteira.
Além fazer os partos, ela acom-
panhava algumas mães no proces-
so de gravidez. Apenas com alguns
toques e massagens na barriga da
mãe, ela sabia exatamente qual era
o sexo e a posição do bebê. Ela se
orgulha de sempre ter tido suces-
so nos partos que realizou. Nunca
me enganei no sexo, nem nunca
aconteceu nada de ruim a alguma
mãe ou criança que eu colocasse no
mundo, sempre ajudei porque me
pediam e descobri que era um dom
e que eu precisava ajudar as pes-
soas, não podia me negar”, conta.
E continua: “Hoje há muito conflito
com os médicos, os profissionais
que passam pela universidade para
fazer isso, e eu prefiro não ter con-
flito com eles, sempre que posso,
aconselho às mulheres para busca-
rem um médico”.
“ Eu prefiro não ter conflito com eles (os médicos), sempre que posso, aconselho às mulheres para buscarem um médico”
Tia Leó já perdeu as contas de quantos partos já realizou
Foto
: Em
ilian
a Te
ixei
ra
40 valercultural
Tia Leó se tornou referência
fazendo partos de mulheres em
Parintins que ganhou uma home-
nagem, uma Unidade Básica de
Saúde que leva o seu nome, a Po-
liclínica Tia Leó, localizada no bairro
Dejard Vieira, onde a parteira mora.
Ela acredita que, apesar de todo
recurso disponibilizado hoje pela
medicina moderna, a figura da par-
teira é fundamental em determi-
nadas comunidades. “Antes existia
apenas a parteira, e todos nasciam
desse jeito, não havia complicação,
era natural, por que então que isso
não pode continuar? Tem gente que
não tem onde recorrer, ou tem, mas
prefere a parteira, então acho que é
preciso sim dar valor a esse traba-
lho, que é colocar uma pessoa no
mundo, é uma coisa mágica, que
requer muito amor e muito cuida-
do”, diz.
A atividade de parteira ainda
é muito comum nas comunidades
rurais da Amazônia, mas, de igual
modo, há a compreensão de que a
Foto: Renars Jurkovskis
41valercultural
preferência do diagnóstico, assistência e acompanhamento dos
pacientes é do médico. Cada vez mais, mães da zona rural se
deslocam de suas comunidades para dar à luz seus filhos nas
cidades, na maternidade. Viagens que, às vezes, duram horas e
põem a mãe e o bebê em risco.
De pai para filho
O mecânico Roberto Paulo Malcher chegou à casa do curador
Valdemar Nascimento, 58, quase sem poder movimentar os bra-
ços e o tronco, andava arqueado, resultado de um acidente. Pas-
sou pelo hospital e, apesar de sair de lá com a certeza do médico
de que estava tudo bem, ainda sentia dores no lado direito no
braço, acima do ombro. Uma massagem no ombro, com um gel à
base de ervas, e uma oração silenciosa afastaram-lhe a dor. “Fico
muito emocionado. O coração não aguenta de emoção porque
isso é um dom de Deus”, disse em meio a lágrimas.
O problema de Roberto, segundo Valdemar, era um osso que
estava deslocado, o que provocava a dor. Questionado sobre
como ele resolveu o problema em menos de um minuto, ele
respondeu: “A gente sabe. Parte vem de Deus que deu esse dom,
parte é da prática de muitos anos, e parte é dos conhecimentos
técnicos que adquiri por aí”.
O curador se refere a um curso de noções sobre o funciona-
mento do corpo humano, feito em Brasília, e de Botânica, feito
no Rio de Janeiro. Valdemar disse que, nas suas viagens pelo
Brasil, também conheceu e trabalhou com curadores famosos e
com o espírita Chico Xavier, com quem teve grandes ensinamen-
Valdemar Nascimento fez curso de noções sobre o funcionamento do corpo humano. Abaixo, em ação, uma massagem com gel à base de ervas e uma oração
Foto
s: E
mili
ana
Teix
eira
42 valercultural
tos espirituais. Plantas medicinais,
ornamentais, frutíferas e madeira
de lei estão espalhadas no quintal
do curador.
Pelo trabalho ele não cobra
nada nem aceita dinheiro. Asse-
gura que o seu objetivo é apenas
promover o bem-estar de quem o
procura. Filho de curador, Valdemar,
também erveiro, descobriu o dom
aos 14 anos, quando deslocou o jo-
elho de um amigo, numa partida de
futebol. Com o material que tinha
em casa, álcool e algumas ervas,
colocou a perna do amigo entre as
suas, fez uma massagem, rezou e o
joelho voltou para o lugar.
Apesar da resistência, aos 17
anos resolveu que iria dar continui-
dade ao legado do pai, tios e avós,
seria curador. Tendo uma vida sim-
ples, sem filhos ou esposa, Valde-
mar diz que sua prática é espiritual
e que Deus utiliza-se dele e da na-
tureza para curar as pessoas. A ele
chegam situações como quebranto,
Para não deixar essa cultura se perder ao
longo do tempo, projetos e mobilizações ain-
da pequenas, mas significativas, em todo o
país tentam resgatar e valorizar esses sabe-
res. A maioria das iniciativas busca um reco-
nhecimento dessas práticas pelo Sistema de
Saúde dos Estados e, assim, diminuir a dis-
criminação existente contra esses curadores.
O Ministério da Saúde, no âmbito do Sis-
tema Único de Saúde (SUS), inclui a Política
Nacional de Saúde Integral das Populações do
Campo e da Floresta. A Portaria n.º 2.866, de
2 de dezembro de 2011, no seu artigo 3.º,
inciso V, diz que é preciso “reconhecer e va-
lorizar os saberes e as práticas tradicionais de
saúde das populações do campo e da flores-
ta, respeitando suas especificida-
des”, porém os praticantes da
medicina tradicional – ou po-
pular – ainda são discrimi-
nados e desvalorizados. A
partir disso, iniciativas mu-
nicipais e estaduais vêm
ocorrendo, visando a incor-
poração no SUS de práticas
das Medicinas Tradicionais,
Homeopatia e Práticas de saúde
Integrativas ou Complementares.
No Estado do Amazonas merece destaque
o Movimento pela revitalização dos saberes
e práticas tradicionais em saúde, que bus-
ca valorizar essas práticas na região do baixo
rasgadura, desmentidura, desloca-
mento de osso, frio no corpo, dores
e inflamações. “A cura é um dom
de Deus, e eu aliei isso aos conheci-
mentos do corpo humano, das plan-
tas pra poder ajudar ainda mais as
pessoas. À noite eu só tenho que
agradecer a Deus, Ele que faz tudo,
Ele que cura”, diz.
O curador divide seu tempo en-
tre o trabalho como jardineiro no
Centro de Estudos Superiores de Pa-
rintins, da Universidade do Estado
do Amazonas (UEA), e o auxílio às
pessoas que o procuram para curar
um mal, mas teme que essa prática
desapareça com o passar do tempo.
“Hoje somos poucos e temos que
continuar, tem muita gente que
tem esse dom e prefere usá-lo para
o mal ou para obter dinheiro.
Mas isso é um dom, não é
um trabalho. Não pode-
mos deixar acabar essa
prática de curar e ajudar
quem nos procura”, acrescenta.
Revitalização das práticas tradicionais de saúde
43valercultural
“Temos consciência que, a partir do
momento que esses conhecimen-
tos forem incluídos numa política
pública de saúde, a qualidade de
vida da população vai melhorar,
porque significa o retorno do diálo-
go entre ser humano e os recursos
naturais”, disse a pesquisadora.
Os avanços, segundo ela, são
mínimos porque o movimento está
na contramão dos projetos do Esta-
do que mercantiliza tudo, incluindo
a própria vida. “A exclusão desses
grupos só não ocorrerá se eles ad-
quirirem consciência da sua impor-
tância para a vida humana”, explica
Fátima Guedes.
Muitas das práticas de saúde tra-
dicionais impulsionaram a ciência a
se debruçar sobre os benefícios que
elas trazem à saúde, porém alguns
desses cuidados não são aceitos
pela medicina moderna e por seus
profissionais, desconhecedores do
trabalho dessas pessoas. Che-
gam a rechaçar muitas práti-
cas e seus praticantes. Ou-
tros, dotados de ignorância,
discriminam e subjugam
esses saberes, os referen-
ciando como “macumba”,
“feitiçaria”, “mandinga”.
Por conta disso e pela pre-
sença crescente de técnicas de
saúde oficiais nas comunidades pe-
quenas, é que muitas dessas práti-
cas estão desparecendo. “Há muita
discriminação desses profissionais
de saúde e a gente considera isso
um retrocesso nesse momento que
o mundo clama por vida, por inclu-
são, por novos olhares em relação
à saúde. Dentro das comunidades
há um respeito pelos curadores,
mas isso tem diminuído por conta
dos bombardeios ideológicos que
esses povos já sofreram por conta
do mercado da saúde que diz que
é preciso comprar um remédio X
enquanto que na prática essas po-
pulações sempre tiveram modos de
prevenção às doenças e promoção
da saúde”, diz a professora Fátima
Guedes. Amazonas, onde realiza palestras,
rodas de curadores, demonstração
de experiências, seminários, troca
de informações e exposições de
ervas medicinais. Curadores de di-
versas comunidades rurais do baixo
Amazonas estão articulados com
outros movimentos sociais.
O objetivo é gerar um diálogo
maior entre o SUS e esses saberes
e práticas, de forma a melhorar a
qualidade de vida da população por
meio da valorização dos conheci-
mentos dos mais antigos. Esse tra-
balho se realiza desde 2008, em Pa-
rintins (AM), com apoio da profes-
sora e pesquisadora Fátima Guedes.
“ Há muita discriminação desses profissionais da saúde e a gente considera um retrocesso”
A Organização Mundial de Saúde (OMS) de-
fine a medicina tradicional como conhecimento
técnico e procedimentos baseados nas teorias,
crenças e nas experiências de diferentes cultu-
ras, sejam ou não explicáveis pela ciência ofi-
cial. Suas práticas são reconhecidas, em alguns
países, como medicina complementar, alterna-
tiva (é o caso da acupuntura, por exemplo). No
Brasil, porém, só há ainda ensaios de reconhe-
cimento dessas práticas.
Saiba mais
44 valercultural
Alfabeto das Plantas
O interesse em resgatar os saberes e práticas populares tradicionais de
saúde levou uma professora do interior da Gleba Vila Amazônia a motivar
seus alunos para a pesquisa em torno das ervas comuns na floresta da
região. O resultado foi a criação do Alfabeto das Plantas Medicinais (com
uma espécie para cada letra) por alunos das escolas São José do Laguinho
e Santa Luzia do Murituba, assentamento Planalto Mamuru, oeste do Pará.
A iniciativa da professora Sílvia Valeriano, que assumiu a luta pela inclu-
são das práticas populares tradicionais de saúde ao sistema oficial, mostra
que o compromisso com a realidade dos povos amazônicos provoca trans-
formações e valoriza os saberes e as práticas ancestrais. Motivados pela
professora Sílvia, alunos do Ensino Fundamental e da Educação de Jovens
e Adultos passaram a estudar as ervas medicinais, a conhecer o trabalho
realizado pelos antepassados e, a partir disso, criaram o alfabeto das plan-
tas medicinais.
“No primeiro momento, eles vieram observar o canteiro, o local, e ago-
ra eles já estão produzindo, colocando em prática, procurando saber para
que serve cada tipo de planta. Estamos avançando muito, principalmente
dentro da sala de aula. Com isso, as plantas medicinais nos dão um grande
leque, contextualizando de várias formas em sala de aula”, conta Valeriano,
afirmando ainda: “agora, que estamos colocando em público com a pro-
posta do plano de ação da escola, vamos levar para outras escolas vizinhas,
porque a proposta é implantar um canteiro de plantas medicinais em cada
escola”. O resultado desse trabalho já foi apresentado em eventos oficiais
nas comunidades.
Iniciativas pequenas, que aos poucos ganham adeptos em toda a re-
gião, entre líderes de movimentos sociais, professores, médicos, pesqui-
sadores. O trabalho é difícil, conflita com a discriminação, à falta de apoio
político e de reconhecimento nas comunidades. Mas a esperança é que
essa realidade mude. “Temos muita vontade e parceiros que nos possibili-
tam estar em constante avanço. É uma caminhada longa, mas acreditamos
que logo teremos muitas vitórias, porque é justo, é merecedor, é digno que
essas pessoas e práticas, que fizeram e ainda fazem o bem pra sociedade,
sejam reconhecidas e respeitadas”, conclui a professora Fátima Guedes.
Professora Silvia Valeriano lutou pela inclusão das práticas populares tradicionais de saúde ao sistema oficial
Aluno apresenta
trabalho sobre ervas medicinais, que resultou no alfabeto das
plantas medicinais
Livros sobre o tema
Crenças que promovem
a saúde...
Autor: Elvira Eliza França
Editora Valer
Medicina & religião...
Autor: João Bosco Botelho
Editora Valer
Flora médica brasiliense
Autor: Alfredo da Matta
Editora Valer
45valercultural
turismo cultural
Todo o encantamento da
comunidade ribeirinha localizada no
município de Maués
Mario Geraldo Fonseca | jornalista
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46 valercultural
qui vamos falar de uma ilha
encantada. Mais uma, en-
tre tantas que, a despeito
de todo o desencanto que
toma conta do mundo (vide Max Weber),
resiste como um lugar onde é possível o ho-
mem se relacionar de maneira encantadora
com a natureza. Mas é bom que se diga logo,
que aqui também se fará um esforço que,
a princípio, poderá aparecer em movimento
contrário do que se falou anteriormente em
relação ao adjetivo “encantado”.
47valercultural
“A indústria do turismo apenas lança mão de um imaginário sobre a região”
O esforço com duas molduras de
fundo. A primeira é de escapar da
maneira como a palavra (“encan-
to”) e suas variantes (“encantador”,
“encantado” etc) são usadas, por
exemplo, por certa indústria do tu-
rismo, que vende uma imagem pa-
radisíaca da Amazônia como uma
espécie de remédio para os males
da sociedade urbana contemporâ-
nea. Mas, sabemos, que a indústria
do turismo apenas lança mão de
um imaginário sobre a região, que
veio se formando no momento em
que os europeus aqui chegaram,
perfeitamente consolidado e cômo-
do para a construção de imagens
sobre a maior floresta do mundo.
Por ser assim, podemos formular
uma expressão para orientar o que
temos chamado de “imaginário
amazônico” na sua forma estereoti-
pada, baseado na percepção de que
a Amazônia é “só natureza”, como
se o uso da palavra “natureza” não
acarretasse no fato de que tal ex-
pressão é, na verdade, um conceito
no qual o seu outro lado suposto –
a cultura – não tivesse totalmente
implicado. Logo, o encanto do qual
aqui se vai tratar nada mais é do
que uma maneira particular que
possuem alguns homens da Ama-
zônia, na sua faina diária com a na-
tureza, de “fazer cultura”.
Foto
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“Barco de rabeta” é a embarcação mais usada pelos ribeirinhos de Maués
48 valercultural
“ Cultura é uma atividade particular que nasce da relação deles com o lugar no qual vivem, do qual tiram sustento e sentido para as suas vidas”
Uma ilha vera
Por isso, vamos logo ao lugar
que motiva este relato. Chama-se
Ilha de Vera Cruz, fica na frente da
sede do município de Maués, no
interior do Amazonas. Só uma olha-
dela no nome, já indica a primeira
pista que pode nos fazer entender
a fama que atribui a este lugar algo
que chama a um comportamento
como aquele que tomou conta dos
primeiros europeus que aqui che-
garam, nesta nossa Terra de Santa
Cruz, como foram batizadas as ter-
ras brasilis pelos homens da frota
de Pedro Álvares Cabral.
Sim, quem chega à Ilha de Vera
Cruz vai também logo se defrontar
com uma grande cruz de madeira,
diante de uma graciosa igrejinha,
por onde a comunidade começou,
por isso, teve-se a ideia de batizar
o lugar em referência ao símbolo
cristão – uma cruz “vera”, autênti-
ca. Mas, ao visitante descuidado, é
preciso lembrar que o nome, assim
como foi a primeira imagem para os
portugueses que chegaram no Bra-
sil, tem que ser encarado apenas
como um nome, ou seja, uma cons-
trução cultural que, por sinal, não
fazia menor esforço para esconder
a expectativa que os colonizadores
tinham para as terras recém “desco-
bertas”, de que eram uma espécie
de página em branco, na qual eles
poderiam escrever o que quises-
sem, e assim foram logo batizando
um lugar com nomes europeus e
cristãos sem ao menos se darem
conta de que o autêntico encanto
ainda estava por vir.
É desse equívoco que estamos
tomando o cuidado de dispensar
aquele que se aventure em ir à Ilha
de Vera Cruz. Como se disse, o lugar
tem tudo para ser encarado como
algo da ordem do encantamento. É
uma comunidade ribeirinha, onde
vivem cerca de 100 famílias, muitas
das quais com práticas extrativistas,
que sabem que precisam cuidar da
terra, pois dela é que tiram seu sus-
tento. Na frente das suas casas, na
vazante amazônica, descortina-se
uma praia de dimensões colossais,
banhadas por um rio cristalino, o
Maués-Açu, que amanhece azul e
anoitece amarelo, devido ao efeito
muito marcante que o nascer e o
pôr do sol deixa no seu leito.
Isso, porém, que poderia ser en-
carado somente como uma “dádiva
da natureza”, alguma coisa que o
espírito cristão poderia apenas atri-
buir à generosidade do Criador, é
também, na verdade, uma constru-
ção que nasce da labuta incansável
dos moradores de fazerem do lugar
algo que é mais do que “só-nature-
za”: é também cultura. Ou melhor,
é um conceito de cultura que só
existe em relação com o seu outro
lado, como se disse anteriormen-
te. Para esses moradores, cultura é
uma atividade particular que nasce
da relação deles com o lugar no
qual vivem, do qual tiram sustento
e sentido para as suas vidas.
49valercultural
mente ligado) a um conceito bio-
logizante de natureza, como foi o
caso de muitos viajantes que pela
região passaram no século 19, não
é de todo dispensado. Isso porque
existe, sim, um movimento que
pode ser visto como passos que
marcam a direção de um novo en-
cantamento com a região mais ver-
de do Planeta, mas agora incluindo
também a natureza no seu sentido
antropológico.
Logo, não é descabido falar que
o acontecimento do qual se está
tratando, a inauguração de uma
Eco-Trilha na Ilha de Vera Cruz, se
inclui perfeitamente no que alguns
estudiosos da Amazônia, chamam
de “flo- restas culturais”. Ou seja,
uma floresta que não é
só floresta, ou melhor, não
é “só-natureza”, uma flores-
ta que só é floresta porque o
homem tornou-se um colabo-
rador fundamental para fazer
dela uma floresta, uma floresta
que, para existir, precisou, sim, da
ação humana, como defende o
sociólogo Renan Freitas Pinto, da
Universidade Federal do Amazonas.
Ora, tais homens, sabendo que a
floresta era mais do que um “meio”
para (sobre)viverem, mas a própria
vida deles, e que não podiam pen-
sá-la como se ela fosse natureza e
eles como fizessem parte do outro
lado, a que se pode chamar cultura,
começaram a ter mais consciência
e a moldar as suas ações pelo que
sempre souberam: que a floresta é
cultura, ou seja, é eles próprios.
Nesse sentido, abundam indí-
cios de que, aquela que o visitan-
te vai ver, ao se interessar em co-
nhecer a Eco-Trilha da Ilha de Vera
Cruz, em Maués, são as pegadas do
“ Uma floresta que não é só floresta, ou melhor, não é “só-natureza”, uma floresta que só é floresta porque o homem tornou-se um colaborador fundamental para fazer dela uma floresta”
Floresta é cultura
Assim, tecido o preâmbulo que
faz da natureza/cultura um par
de relações afetivas, mais do que
apenas conceitos para pensar a
existência humana em terras ainda
desconhecidas (e, portanto, encara-
das como misteriosas) como as da
Amazônia, podemos ir mais veloz-
mente ao objeto propriamente dito
que motivou esta matéria. Falou-se
da ilha encantada de Vera Cruz devi-
do a um interessante acontecimen-
to que fez parte das comemorações
de 179 anos da cidade de Maués,
ocorrida em maio deste ano.
Um acontecimento que, por um
lado, serve muito bem para mostrar
que, ao se falar de encantamento,
agora se está em outro marco que
não aquele de quem viu a Amazô-
nia como “só-natureza”. Mas, por
outro lado, só pelo fato de que,
nesta nossa perspectiva, os ele-
mentos que formaram a men-
talidade encantada daqueles
que contribuíram para fazer
do imaginário amazôni-
co algo estritamente
ligado (ou só estrita-
50 valercultural
homem amazônico na sua relação
íntima com aquele elemento que
é a sua vida, a floresta. Ali estão,
por exemplo, uma barraquinha com
uma mesa cheia de objetos que,
para quem olha de longe, parece
um amontoado de terra amarela,
daquelas que se formam nos bei-
radões da região. Na verdade, são
“obras”, como bem lembrou o an-
tropólogo Ademir Ramos, da Uni-
versidade Federal do Amazonas, na
visita inaugural da trilha, em maio
passado. Ele, ao se aproximar ain-
da mais da mesa com os objetos,
viu logo que não só se tratava de
uma “obra”, mas também de uma
“obra de arte” que, no entanto, exi-
gia um olhar treinado pelos estudos
e para sair dos preconceitos contra
o que ficou conhecido como “arte
primitiva”. Sim, porque o visitante
que quisesse aplicar os parâme-
tros ocidentalizantes, como o do
belo ideal grego, formas perfeitas
e simétricas, iria ficar decepcionado
com as “deusas” provavelmente in-
ventadas pelos índios sateré-mawe
que habitaram a ilha em tempos
remotos.
Digo “deusa” porque foi o nome
que o antropólogo usou para definir
uma figura de mulher, com vastos
seios e traseiro ainda mais vasto,
não muito diferente do tipo que o
mesmo visitante poderia encon-
trar na própria ilha ou percorrendo
qualquer lugar deste imenso Brasil,
de modo particular a sua porção
amazônica. Mas, dispensando qual-
quer aproximação apressada entre
a deusa indígena e a mulher ama-
zônica/brasileira, o antropólogo foi
logo indicando que a abundância no
formato, além de uma forma bem
precisa do fazer artístico ameríndio,
tinha também uma função precisa
nesta forma: a de indicar um tipo
Fragmentos de cerâmica revelam presença de civilizações ancestrais
51valercultural
de sociedade que a arqueologia aos
poucos vem comprovando ter exis-
tido poderosamente na Amazônia,
aquela nas quais eram as mulheres
que estavam no seu centro orga-
nizativo e político. Eis, então, nas
mãos do antropólogo e na vista de
quem o acompanhava, um exemplo
claro da existência do Matriarcado
de Pindorama, para lembrar as pa-
lavras proféticas de Oswald de An-
drade.
Obra viva
Depois da rápida aula de antro-
pologia/arqueologia amazônica, a
comitiva de inauguração da trilha
entrou no que ela tinha de mais
vivo, por estar ali se movimentan-
do diante dos olhos dos passantes,
mirando-o, como que dizendo que
ao seu olhar, às vezes um tanto per-
plexo pela exuberância da mata, a
criatura que ele olhava tinha tam-
bém a capacidade de devolver-lhe
um olhar. E esse olhar das criaturas
era de todos os modos. Alguns se
manifestavam por meio de pala-
vras, por exemplo. À medida que
o visitante entrava na floresta, en-
contrava indícios claros da cultura
letrada, que via aos pés das árvo-
res, indicando que elas, assim como
os humanos, também possuíam um
nome. A lista, como a própria flores-
ta, era imensa, variada e complexa.
Aqui vão alguns nomes: envira, cipó
gogó-de-guariba, piquiarana, cupi-
úba, caju-aço, taxi, abacaba, trento,
língua-de-onça, seringa, guaraná,
apuí, tarauacá, piquiá-marfim, ingá,
muruci, tucumã e outros.
Observe-se que, só por uma
leitura rápida dos nomes, o cruza-
mento de olhar que via acontecer
diante dos olhos do visitante, já se
constituía um dos tantos indicativos
52 valercultural
de que ali não se estava diante de
uma floresta “só-natureza”, mas
também diante de um encontro en-
tre as coisas da natureza que tinha a
cultura (o homem) como mediador.
As criaturas da floresta encontra-
vam-se nos nomes que os homens
deram para elas próprias, as criatu-
ras. Veja, por exemplo, este: cipó
gogó-de-guariba; os reinos vegetal
(cipó), humano (gogó) e animal
(guariba) estão presentes em um
simples nome que podia ser lido
muito bem como uma indicação
metodológica para treinar um olhar
mais vasto sobre a Amazônia: a de
que não basta olhar os elementos
como se fossem peças isoladas
em um imenso tabuleiro, mas vê-
-los como agentes que vivem uma
vida afetiva, que se encontram,
que se chocam, que vivem desses
encontros e choques, que morrem
por isso e que renascem para que o
encontro volte de novo a acontecer.
Uma obra viva, portanto.
Troca de olhares
Disse que na trilha haviam olhos
tão vivos, espertos e afetivos como
aqueles com os quais os humanos
se esforçavam para aprender a
olhar o que estava se movimentan-
do diante dos seus olhos. Então, eis
que, de repente, alguém se espanta
com um toque sorrateiro: era o tatu
que devolvia o olhar que ele sabia
dar, rápido, desconfiado e um tanto
quanto temeroso. Mais adiante, ou-
tro olhar, também um tanto quanto
perplexo, por que apenas se deixa-
va ver por aquilo que não se con-
seguia ver, porque já havia levan-Cultura e natureza se entrelaçam nas
trilhas que ensinam sobre a vida
53valercultural
tado voo. “Olha só um ninho”, disse
alguém. Era a presença da rolinha
que foi reconhecida pelo que dela
havia ficado ao olhar: dois ovinhos
que, de tão brancos, ficavam quase
só luz ao contato com o sol.
Bem, o sol, como não podia dei-
xar de ser, foi notado como perso-
nagem dos mais criativos que mar-
cou o primeiro percurso oficial da
trilha de Vera Cruz. Bastava ver seus
fios que, heroicamente, furavam os
furos que encontrava na mata. A
quem, seguindo o risco, se dirigia
o olhar para tentar ver o próprio
astro-rei, este só se podia deixar
ver, por outras entidades majesto-
sas na trilha, algumas castanheiras
e samaumeiras. Assim, até chegar à
copa, depois de percorrer o fio solar,
o visitante via apenas folhas, mas
de um tipo bem particular, comple-
tamente salpicadas por listas luzen-
tes que podiam muito bem compor
uma obra de arte que só o olhar
humano, na sua relação afetiva com
natureza, é capaz de ver.
Depois de cerca de dois qui-
lômetros mata adentro, agora era
a vez de entrar no elemento por
onde, na verdade, se entrou para
começar a percorrer a trilha. Ali
estava ele, tão majestoso quanto
o sol e a árvores da floresta, o rio
que, como o seu nome sustenta, é
realmente “açu”. Sabe-se que essa
palavra (“açu”), de origem tupi, é
algo que não pode ser traduzido
como apenas “grande”, como mui-
tos fazem. Ao terminar a trilha com
um banho no rio, aqueles que fo-
ram para dar oportunidade ao pró-
prio olhar a uma ampliação condi-
zente com o objeto que ele havia
sido chamado a ver, mergulhavam
em outra oportunidade para lavar o
olhar nas águas açu do rio Maués.
Ora, oportunidade de ver que açu,
mais do que o tamanho do próprio
rio no qual o corpo se banhava, ou
das árvores que o visitante havia
encontrado na trilha, era perceber
e banhar–se em um encontro, pali-
damente descrito, por exemplo, ao
contato da castanheira com o sol, o
nome das árvores que havia desco-
berto no percurso: que ali o açu é o
próprio encontro – grandioso – das
criaturas com elas mesmas e com
essa criatura um tanto quanto es-
pecial que se chama “homem”,
ao qual o visitante era chamado a
se identificar vendo-se através do
olhar dos outros seres que ele viu e
encontrou na trilha.
54 valercultural
E eis que estou no aeroporto de Guarulhos, no dia 14
de abril de 2012, rumo a Xangai e a Berlim. Dois con-
tinentes, em apenas dez dias de viagem. Como fui
parar na China e na Alemanha, de uma só vez? Eu
brinco que, por pura sorte, desempenhei com satisfação a missão
de substituta de luxo.
A fundação alemã Friedrich Ebert Stiftung (FES) convidou o
professor Marcos Sorrentino, meu orientador no doutorado em Ci-
diário de viagem
Jornalista relata a inesperada
visita a dois continentes, em
apenas dez dias
De Xangai a Berlimde perto, nada é normal
Thaís Brianezi | jornalista
Foto
: Zhu
Dife
ng
56 valercultural
De Xangai a Berlim
ência Ambiental na Universidade de
São Paulo, a apresentar a perspecti-
va brasileira sobre a economia ver-
de, em um seminário internacional
sobre perspectivas para a Rio+20,
a Conferência das Nações Unidas
sobre Desenvolvimento Sustentá-
vel. O evento seria em Xangai e ele
teria que fazer uma apresentação
em inglês – idioma no qual não se
sente confortável. O Marcos, então,
indicou-me para ir em seu lugar e
juntos preparamos a apresentação.
Berlim entrou nessa história
de maneira ainda mais inespera-
da. Acho que foi obra do elefante
de madeira que fica na estante da
minha sala, com o rabo virado para
a porta. Dizem que dá sorte, né?
Na sexta-feira anterior à viagem,
passei o dia sem internet; o servi-
dor estava fora do ar. Já no fim da
tarde, perto das 17h30, resolvi ir a
uma lan house checar e-mails – e
de perto, nada é normal Foto: Heitor Costa
57valercultural
“ Xangai é conhecida como a cidade mais cosmopolita da China
férias lá, visitando a avó, tios e pri-
mos dele em Cantão, no sul do país.
O Paulo é brasileiro, mas tem puro
sangue chinês: seus pais migra-
ram ainda crianças para São Paulo,
fugindo da pobreza e da fome du-
rante o governo Mao. Minha sogra,
In Fan (que aqui virou Silvana), saiu
de lá com nove anos, em 1964, e
cruzou os oceanos Índico e Atlânti-
co durante 54 dias. No meio do ca-
minho, o navio parou durante uma
semana na África no Sul: havia ru-
mores de uma “revolução” no Brasil
e eles aguardavam mais notícias
para seguir viagem. Meu sogro, Le-
ong, veio dois anos depois, também
criança – e aqui as famílias amigas
se reencontraram.
Desde 2010, tenho sobrenome
chinês: Thaís Brianezi Ng. Em can-
tonês, pronuncia-se “huuummm”,
ou algo parecido, mas no Brasil fi-
cou “enegê”. Isso mesmo: Ng, “ene
maiúsculo e g minúsculo”, como o
Paulo me ensinou. Bem que ele me
alertou sobre a estranheza que o
novo sobrenome causaria nas pes-
soas. E tive prova dela quando fui
renovar meus documentos, depois
do casamento: a funcionária da Se-
cretaria de Segurança Pública achou
Ng tão engraçado que chamou vá-
rios colegas para verem minha car-
teira de identidade.
“Então por que você mudou o
sobrenome?”, vocês devem estar
encontrei uma mensagem urgente
da FES, perguntando se eu toparia ir
de Xangai a Berlim, para participar
também da MacPlanet.com (uma
espécie de Fórum Social Mundial
europeu, com foco ambiental). O
professor uruguaio que iria falar lá
sobre as visões da economia verde
na América Latina teve um impre-
visto e eu o substituiria. Claro que
peguei imediatamente o celular
e telefonei para dizer que toparia,
sim. E corri para casa para colocar
mais umas roupas na mala, que já
estava pronta.
A China, na verdade, estava em
meus planos. Mas no plano do “um
dia”: meu marido e eu planejáva-
mos juntar dinheiro e passar umas
No Instituto de Xangai para estudos internacionais até para tirar foto
oficial os lugares dos palestrantes estavam marcados
Foto
s: A
rqui
vo p
esso
al
58 valercultural
se perguntando. Eu não iria mu-
dar. Thaís Brianezi, apenas, é como
sempre assinei matérias jornalísti-
cas e artigos acadêmicos. E é como
continuo assinando ainda hoje.
Brianezi, aliás, é a única coisa que
permaneceu do pai biológico, que
se separou da minha mãe quando
eu tinha três anos e nunca mais nos
procurou. Além disso, sou feminista:
no ano em que casei, caminhei por
dez dias de Campinas a São Pau-
lo, com outras duas mil militantes
de todo o Brasil. Contando os des-
vios, percorremos 110 quilômetros,
em uma manifestação da Marcha
Mundial das Mulheres. Acontece
que, apesar de todas essas prer-
rogativas, a tradição chinesa me
conquistou: decidi incorporar o so-
brenome do marido quando minha
sogra contou que iriam plantar uma
árvore em Cantão em meu nome,
no jardim da família.
À primeira vista
Conhecer o jardim dos Ng con-
tinua no plano do desejo. Xangai,
porém, agora faz parte da história
vivida. Dizem que a primeira im-
pressão é a que fica. De Xangai, mi-
nha primeira lembrança é o trajeto
do aeroporto até o hotel, mais de
uma hora de puro engarrafamento,
em que o motorista conversava co-
migo em mandarim. Ele sabia que
eu não estava entendendo uma só
palavra, mas seguia falando sem
parar, gesticulando, mostrando-me
os pontos turísticos do caminho. E
eu, para interagir de alguma forma,
a cada prédio, parque ou ponte que
ele apontava, sacava a câmera e ti-
rava uma fotografia.
Xangai é conhecida como a ci-
dade mais cosmopolita da China. É
também a mais populosa, com cerca
Foto: Claudio Zaccherini
No engarrafamento em Xangai, motorista insistia numa “conversa” em mandarim
59valercultural
de 20 milhões de habitantes. Graças
à posição privilegiada na costa leste
do país, ela se consolidou como o
grande centro financeiro e comercial
da China continental. Uma de suas
atrações turísticas, o Bund, revela
bem essa pujança: de um lado do
rio Huangpu está o centro financeiro
antigo, com arquitetura inglesa im-
ponente; do outro, o centro novo,
repleto de arranha-céus. O colega
que me levou lá, à noite, chama-se
Tony. Na verdade, ele é Tang Weiqi,
mas os chineses costumam adotar
um nome ocidental para interagir
conosco, sabendo que é inútil ten-
tar nos ensinar a pronúncia correta
de seus nomes de batismo. Pois
bem, Tang Weiqi Tony desculpou-se
porque a vista do Bund não era tão
bonita quanto ele se lembrava, já
que a política de eficiência energé-
tica do governo chinês obrigara os
prédios a reduzirem sua iluminação.
Tomei um susto: para mim, já esta-
va lindo e superiluminado daquele
jeito; eu só havia visto tanto néon
assim no Japão.
Aliás, muita coisa em Xangai me
lembrou o Japão: as construções
futuristas, as ruas cheias de gente,
a convivência entre o moderno e o
tradicional (maravilhosos jardins do
período imperial e templos budis-
tas destoando da agitação urbana).
Havia, também, certa formalidade
comum: no Instituto de Xangai para
Estudos Internacionais, onde acon-
teceu o seminário sobre a Rio+20,
por exemplo, o lugar de cada pales-
trante estava previamente assinala-
do até na hora de tirar a foto oficial
do evento.
Mas em vários outros aspectos,
senti os chineses mais parecidos
com os brasileiros do que com os
japoneses. As pessoas em Xangai
pareciam mais despachadas, falan-
tes, principalmente fora do ambien-
te de trabalho. Tendo me conhecido
há poucos minutos, convidaram-me
para tomar cerveja, queriam me
mostrar a cidade e, principalmente,
fazer várias perguntas sobre o Brasil.
Nossa economia vai superbem,
não é mesmo? Temos mesmo uma
democracia sólida, aberta à partici-
pação popular? E a Copa do Mundo
de 2014? E as Olimpíadas de 2016?
E eu, de minha parte, queria saber
principalmente como eles vivencia-
vam tantas mudanças recentes na
Foto
: Ton
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“ Descobri, triste, que o sistema educacional chinês não é a maravilha que os rankings mundiais apontam”
Muita coisa em Xangai lembra o Japão: as construções futuristas, as ruas cheias de gente, a convivência entre o moderno e o tradicional
Foto
: Arq
uivo
pes
soal
60 valercultural
China e o que pensavam do gover-
no ditatorial.
Em geral, essas conversas re-
velavam quanto a imagem que tí-
nhamos um do outro era baseada
em propaganda ou em estereótipos
reforçados pelas agências de notí-
cias norte-americanas e europeias.
Descobri, triste, que o sistema edu-
cacional chinês não é a maravilha
que os rankings mundiais de ha-
bilidades em leitura e matemática
me faziam crer. E eles também se
decepcionaram ao saber que a po-
breza no Brasil tem diminuído, mas
que as desigualdades entre ricos e
pobres se mantêm.
Claro que nem tudo o que eu
havia escutado aqui sobre a China
era mentira. A navegação na web,
de fato, é censurada. Os jovens de
lá não podem acessar ao Facebook,
por exemplo. Como consolo, o go-
verno criou uma rede social seme-
lhante, só para chineses.
Descontadas as 24 horas de
avião para chegar a Xangai e as
12 horas até Berlim, passei menos
de quatro dias na Ásia. O suficiente
para dar uma entrevista, em inglês,
para a Rádio Internacional da Chi-
na, estatal, como quase tudo por
lá. Mas não o bastante para matar
minha curiosidade sobre o país – ou
para conseguir escrever sobre ele
algo além dessas impressões tão
subjetivas.
Berlim impactante
Em Berlim passei quase o mesmo período:
pouco mais de quatro dias. A diferença é que
lá tive dois dias livres – e aproveitei para co-
nhecer pontos turísticos que dão testemunho
dos principais acontecimentos do século 20. O
nosso breve e intenso século 20, como diria
a historiador Eric Hobsbawn. Está tudo lá, de
construções nazistas que nos lembram o hor-
ror da Segunda Guerra Mundial aos vestígios
do muro que contam a tensão da Guerra Fria.
Foto: Heitor Costa
A moderna Berlim, em primeiro
plano, edifício da Deutsche Bahn em
Potsdamer Platz
61valercultural
O passeio mais impactante que
fiz foi a Sachsenhausen. Se é que
se pode chamar de passeio a ida a
um antigo campo de concentração.
Logo no portão de entrada, os dize-
res “Arbeit macht frei”, ou seja, “o
trabalho liberta”. Para lá foram en-
viadas, aproximadamente, 200 mil
pessoas perseguidas pelo regime
nazista. Oficialmente, elas estavam
presas até cumprir a pena de traba-
lho forçado em uma das fábricas ao
redor do campo. Há inclusive uma
placa que destaca quem se benefi-
ciou dessa mão de obra escrava, na
qual aparecem nomes conhecidos
como Siemens, BMW, Daimler-Benz
e Volkswagen. Na prática, os prisio-
neiros trabalhavam até morrer. E o
tempo de vida em Sachsenhausen,
com frio, fome e outros maus-tratos,
“ A visita ao que restou do muro de Berlim também foi marcante”
era curto: na fábrica de ladrilhos, a
mais pesada, sobrevivia-se, em
média, 17 dias.
A visita ao que restou do muro
de Berlim também foi marcante. A
explicação dada pelo guia do porquê
o muro foi construído parece ficção,
realismo fantástico. Inicialmente
uma barreira de arames farpados,
depois um obstáculo duplo de ti-
jolos, o muro não dividia a cidade
em dois, como eu havia aprendido
na escola. Ele simplesmente cerca-
va toda a Berlim ocidental, isolan-
do a República Democrática Alemã
(comunista) dessa verdadeira ilha
do livre mercado. O objetivo maior
era evitar que os moradores da Ale-
manha Oriental migrassem para a
República Federal Alemã e, de lá, a
outros países capitalistas. Da noite
para o dia, na madrugada de 13 de
agosto de 1961, muitas famílias de
Berlim foram simplesmente sepa-
radas pelo que os alemães chama-
vam de “muro da vergonha”.
Quando o muro foi derrubado,
em 1989, imaginou-se que o ideário
liberal havia triunfado para sempre:
era o fim da história. Mas a própria
Berlim provou que essa teoria esta-
va errada, com o caso emblemático
da praça Potsdamer. Outrora uma
região central da cidade, durante a
Foto
s: A
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esso
al
Foto: Heitor Costa
62 valercultural
Guerra Fria a Postdamer virou um espa-
ço fantasma, comprimido entre as duas
paredes do muro de Berlim. Quando a
Alemanha foi reunificada, tentou-se fa-
zer da praça um símbolo do capitalismo
vencedor e grandes empresas ganharam
incentivos para erguer prédios sofistica-
dos, como o Sony Center. Uma constru-
ção antiga permaneceu em pé, porém,
sem que a prefeitura conseguisse inte-
ressados em reformá-la. Então, para que
a homenagem não acabasse virando
piada, a solução encontrada foi cobrir
esse edifício com uma espécie de papel
de parede externo, imitando a fachada
de um prédio moderno, cheio de lojas.
Se você passa por lá distraído, nem per-
cebe a maquiagem, jura que são lojas de
verdade. Mas, de perto, tanto em Berlim
quanto em Xangai, as coisas não são tão
normais.
Foto
: Hei
tor
Cost
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63valercultural
literatura
64 valercultural
Copa do Mundo de 2014 e as Olim-
píadas de 2016 fizeram o mundo
voltar os olhos para o Brasil. Seja a
Fifa, o COL, o COI, a imprensa inter-
nacional, os turistas, muita gente está de olho
neste país emergente que em uma tacada só
conseguiu o direito de sediar em um curto
espaço de tempo as duas principais compe-
tições esportivas do universo. Nessa mesma
onda, as editoras de livros estão surfando em
busca de novos lançamentos. Futebolísticos
ou olímpicos. Não importa.
É mais comum, claro, o interesse do leitor
por biografias de grandes esportistas. E elas,
Com a proximidade da Copa
do Mundo e das Olimpíadas
no Brasil, livros sobre o
tema ganham mais espaço
e atenção nas editoras
Bárbara Lima e Leandro Curi | jornalistas
65valercultural
de uma maneira geral, não atingem apenas o nicho es-
portivo. Vão além. Não só porque os atletas dignos de
um livro assim são também personalidades do mundo,
mas principalmente porque os textos não se limitam
apenas ao esporte, mas se aprofundam na vida do pro-
tagonista. Vai fundo na história de cada um, desde a
infância até o auge, passando por todos os desafios da
vida de um vencedor.
Só que o desafio agora é outro. Às vésperas da Copa
do Mundo e das Olimpíadas no Brasil, as editoras estão
em busca de novos lançamentos esportivos. A maioria
delas vê agora uma oportunidade de alavancar o seg-
mento no país. Muito embora o esporte seja um dos
fatores que mais aproxima o brasileiro da literatura.
Para Ruy Castro, autor da bíblia das biografias espor-
tivas, o livro Estrela Solitária – Um Brasileiro Chamado
Garrincha, o boom do tema esporte no mercado editorial
começou há pelos menos 15 anos. O livro, lançado em
1995 pela Companhia das Letras, recebeu em 1996 o
Prêmio Jabuti na categoria “Livro do Ano de Não Ficção”.
“As editoras já não têm mais medo de publicar li-
vros do gênero. Até 1994 ou 1995, eles eram tabu”,
afirma o jornalista, colecionador de dezenas de títulos
sobre o Flamengo e que acaba de contribuir com mais
um deles: a terceira e definitiva edição de O Vermelho
e o Negro – Pequena Grande História do Flamengo,
publicado pela Companhia das Letras.
Novos selos
Se antes era tabu, hoje o potencial do mercado é
enorme devido à proximidade de eventos como Copa
do Mundo e os Jogos Olímpicos nos próximos quatro
anos. Por conta disso, várias editoras que não possuem
o DNA esportivo estão desenvolvendo novos selos para
atender a esse mercado específico.
A página principal da loja virtual da Cia. dos Livros,
por exemplo, tem dois destaques que levam o usuário
diretamente para uma seleção de livros e curiosidades
sobre futebol e esportes olímpicos. A editora é responsá-
vel por duas das biografias preferidas entre os amantes
do esporte: Diamante Negro (que conta a trajetória de
Leônidas da Silva) e Fio de Esperança (sobre Telê Santa-
na), ambas escritas por André Ribeiro.
Outra editora, a Magma, já tem quatro títulos espor-
tivos em sua bibliografia. Um livro sobre o centenário
do Corinthians (100 Anos de Paixão), outro sobre Pelé
e dois a respeito do Santos (100 Anos de Futebol Arte e
Biografias de craques do esporte que você não pode deixar de ler
Primeiro Tempo – O início da trajetória de
Pelé com comentários e depoimentos inéditos
Organização: Luiz Felipe Heide Aranha Moura
Estrela Solitária – Um Brasileiro Chamado Garrincha
Autor: Ruy Castro
Agassi – Autobiografia
Autor: Andre Agassi
66 valercultural
“ Às vésperas da Copa do mundo e das Olimpíadas no Brasil, as editoras estão em busca de novos lançamentos esportivos
Considerado o rei do futebol, Pelé também tem livros sobre sua trajetória
3 x Tri). Outros três títulos estão em produção
ou prestes a serem lançados: o Almanaque
do Santos Futebol Clubes, Corinthians, Paixão
Eterna e a biografia de Marcelinho Carioca.
Essa aposta sobre clubes brasileiros ou ído-
los que remetam diretamente a algum time,
como no caso de Marcelinho Carioca com o Co-
rinthians, é uma espécie de moda nesse mer-
cado. Como a maioria dos “leitores esportivos”
67valercultural
não se interessa por outros gêneros (isso não é regra,
mas sim tendência), buscá-lo por meio da paixão pelo
esporte é um caminho muitas vezes mais curto.
“Os livros com temas esportivos atraem um público
que não lê, necessariamente, outros títulos. Os ligados
ao futebol, por exemplo, cativam um público com pai-
xão clubística e cada vez mais transformam esses pro-
dutos editoriais em coleções históricas”, comenta Marco
Piovan, editor da Magma Cultural.
Essas coleções históricas, normalmente, vêm segui-
das de títulos e têm como base os registros fotográficos
das conquistas. Por exemplo, o Corinthians, campeão
pela primeira vez da Libertadores em 2012, vai lançar
em breve um livro fotográfico com o nome de Liberta-
dos. E o Palmeiras, campeão da Copa do Brasil, tam-
bém prepara algo nessa mesma linha.
Crescimento econômico
De acordo com Piovan, não são apenas as conquis-
tas que alavancam o mercado de livros esportivos no
Brasil. Segundo ele, o crescimento econômico do país
ajuda (e muito!) no interesse do brasileiro por literatu-
ra. Seja ela esportiva, romancista, biográfica...
“O crescimento da economia e a ascensão da po-
pulação base da pirâmide para a Classe C revelam, em
parte, o acesso desse público ao mercado editorial”,
disse.
É evidente, no entanto, que com a proximidade
da Copa do Mundo e das Olimpíadas no Brasil, haja
um crescimento maior no nicho esportivo. E se há de-
manda, nada melhor do que as editoras pensarem em
como ofertar.
“O crescimento nas vendas dos títulos esportivos,
especificamente, se deve à fomentação de novos tí-
tulos nessa área. O mercado editorial descobriu esse
nicho e com o apoio da mídia especializada conseguiu
atingir uma grande parcela da população que consome
livros”, finaliza o editor.
Ainda restam pouco menos de dois anos para a
Copa do Mundo e pouco menos de quatro para as Olim-
píadas no Rio de Janeiro. Tempo suficiente para que o
mercado de literatura esportiva marque um golaço e
conquiste muitas medalhas no Brasil.
Diamante Negro (Biografia de Leônidas da Silva)
Autor: André Ribeiro
Ayrton Senna: Uma Lenda a Toda Velocidade
Autor: Christopher Hilton
A Luta de Lance Armstrong
Autor: Daniel Coyle
Tradução: Selma Ziedas
68 valercultural
Também de olho nesse mercado, a Valer
Editora acaba de lançar a série Educação Fí-
sica, em parceria com a Universidade Fede-
ral do Amazonas (Ufam). São 12 obras no
total. Algumas já foram lançadas: Handebol
– Reflexões didático-pedagógicas e técnicas;
Futebol de Campo; Novos olhares no futsal;
Natação; Ginástica Rítmica e Voleibol: Funda-
mentos e Metodologia. Entre as outras moda-
lidades que também ganharão livros estão o
atletismo e o tênis de mesa, ambos em pro-
cesso de finalização.
“Esse é o momento do esporte no Brasil. O
país vive essa expectativa com a aproximação
da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas
de 2016”, comenta Rita Puga, uma das coor-
denadoras da série de livros esportivos, que
garante: “Fomos além da técnica, queremos
mostrar o lado mais humanista do esporte”,
pontua.
A Valer também já publicou outros livros
esportivos que são sucesso: Baú Velho, de
Carlos Zamith, que resgata a memória dos jo-
gadores e clubes amazonenses, e Pepeta: Pá-
ginas de Vida e História, de Carmen Nóvoa e
Silva, sobre o ex-jogador amazonense Pepeta.
Ufam lança série Educação Física
69valercultural
Cite algumas biografias importantes, na sua opinião.
Vou dizer cinco grandes livros que têm a
ver com grandes personagens: A Luta – Nor-
man Mailer (a histórica vitória de Muham-
mad Ali sobre George Foreman, no Zaire, em
1974); Estrela Solitária – Ruy Castro (sobre
Garrincha); Fio de Esperança – André Ribeiro
(sobre Telê Santana); Gracias Vieja (autobio-
grafia de Di Stéfano – não tem no Brasil) e
Diamante Negro – André Ribeiro (sobre Leô-
nidas da Silva).
Certamente a sua paixão pelo espor-te te aproximou da leitura. Quanto ela foi fundamental nesse processo?
Todo dia é. Digo isso porque a cada vez
que você lê, ou relê, descobre uma história
Michael Jordan: a História de um Campeão e o Mundo Que Ele Criou
Autor: David Halberstam
Fio de Esperança (Biografia de Telê
Santana)
Autor: André Ribeiro
Transformando Suor em Ouro
Autor: Bernardinho
Jornalista desde os 18 anos.
Foi repórter da revista PLACAR,
repórter, editor e colunista do jornal
O Estado de S.Paulo e desde 2000
é comentarista dos canais ESPN.
Cobriu as Copas de 1994, 1998,
2006 e 2010.
Entrevista com
Paulo Vinícius Coelho
70 valercultural
nova. Agora, por exemplo, estou
lendo a biografia do Marcelo Bielsa.
É esquisito, porque o cara está vivo,
em plena carreira. Chama-se Último
Romântico e é ótimo. Conta, por
exemplo, as razões pelas quais ele
mudou o time inteiro da Argentina
(meio time, na verdade), antes do
jogo contra a Suécia, responsável
pela eliminação na primeira fase da
Copa do Mundo de 2002, na primei-
ra fase.
Cada dia há mais publicações de livros sobre esporte. Você acha que com a proximidade da Copa e das Olimpíadas no Brasil isso vai aumentar?
O Brasil não está tão atrás as-
sim. Se você visita livrarias na Itá-
lia, percebe isso. Na Inglaterra, é
diferente. Tem muita coisa! Muita
mesmo. Só que tem livros de clu-
bes aos montes. Tem muita coisa
ruim também. A questão é o mer-
cado editorial estar aberto para
publicar tudo o que for bom. Está
mais disponível, mas não totalmen-
te. Agora, não adianta publicar uma
biografia do Neymar aos 20 anos e
outra aos 25.
Fala um pouco sobre as suas publicações. Quais são até aqui? Pretende lançar outros projetos? Quais?
Tem seis livros: Jornalismo Es-
portivo, Futebol Passo a Passo
(para o Lance!), Os 50 maiores jo-
gos das copas, Os 55 maiores jo-
gadores das Copas, Os 100 maio-
res jogadores do futebol brasileiro
e Bola Fora. Eu gosto mesmo é do
Bola Fora. É a história do êxodo do
futebol brasileiro e, embora não
seja um documento definitivo, con-
ta e desmistifica muita coisa. E devo
lançar até o final do ano Marcas
de São Marcos – A história do maior
goleiro da história do Palmeiras.
Mas estou cru, ainda.
Foto: Joel Silva/Folhapress
71valercultural
política indigenista
72 valercultural
Cicatrizes da violência física e ideoló-
gica do passado estão na memória
dos indígenas do rio Negro-AM. As
lembranças – às vezes pesadelos –
transformam-se em exemplos de resistência
e compreensão de fatos e acontecimentos
que os ajudam nas lutas do presente. Lutas
que lhes garantiram, na Constituição de 1988,
o direito à terra e de serem tratados como
índios e portadores de culturas diferenciadas.
Conquistaram também, na Carta Magna, o re-
conhecimento político das suas instituições
reivindicatórias.
Assim se movimentam fortalecidos na
batalha contra o preconceito de que seriam
povos sem alma, sujos, preguiçosos e incapa-
zes. Com apoio da Igreja progressista, setores
republicanos do Estado e ONGs, mantêm-se
em movimento, para que essas vitórias trans-
bordem do papel para políticas públicas de
Um panorama da relação atual das tribos
do rio Negro com a Sociedade Nacional
Marcus Stoyanovith | jornalista
Estado. No alto rio Negro, os indígenas pas-
saram a protagonizar, nos últimos 40 anos,
a sua própria história e destino na relação
com o Estado e com os demais segmentos da
sociedade nacional. Por isso, se sentem mais
fortes como “índios em movimento” do que
como “movimento indígena”.
E em movimento está o gigante rio Ne-
gro, o maior afluente do rio Amazonas. Suas
águas, ao longo do seu curso de 1.700 qui-
lômetros, desenham os contornos das terras
que abrigam 100 mil índios de 23 etnias.
Cada qual com a sua tradição e maneira de
agir, pensar, viver e conviver. Mas, para eles,
ser diferente não significa ser fragmentado.
A multietnicidade nessa região é considerada
uma força coletiva no enfrentamento dos de-
safios que move a todos, independentemen-
te de serem Tukano, Tariana, Baniwa, Baré,
Yanomami, Dessana, Maku ou mesmo povos
Fotos: Marcus Stoyanovith / W
ilson Nogueira
73valercultural
de outros territórios. Eles se unem
na diferença e, em qualquer lugar
do mundo, se reconhecem e que-
rem ser reconhecidos como uma
grande família, como parentes.
E como parentes se movimen-
tam para se manter fortes contra o
poder econômico, para avançar na
demarcação e regulamentação das
suas terras e assegurar participação
na sociedade nacional sem negar
suas tradições (mitos, ritos, crenças
e cultura). Feita conforme o mode-
lo da organização social indígena, a
Federação das Organizações Indí-
genas do Rio Negro (Foirn), criada
em 1987, com sede em São Gabriel
da Cachoeira, abriga 90 associações
que se relacionam como mais de 35
mil índios de 23 etnias, a maioria
fixada em aldeias, sítios e comuni-
dades. Há aldeias que se localizam
até 17 horas, em viagem de voa-
deira, das cidades de São Gabriel da
Cachoeira, Santa Isabel e Barcelos.
A sobrevivência da Foirn está
no arco de parceiras com entida-
des como a Organização das Na-
ções Unidas (ONU), Coiab, Instituto
Socioambiental (ISA) e instituições
governamentais. A federação e as
associações funcionam como uma
ponte política entre o Estado e ins-
tituições não índias com as aldeias,
cujas lideranças são os caciques, ca-
pitães e pajés. “Somos interlocuto-
res dos líderes das aldeias, sítios e
comunidades”, explica o índio Tuka-
no Maximiliano Corrêa Menezes, 51,
dirigente da Foirn. Ele sublinha que
esse comportamento político é a
essência da organização que existe
para manter viva a tradição. E essa
expressão vem gerando um conflito
que está se fortalecendo na medi-
da em que os indígenas avançam
em suas organizações. É que para
a sociedade branca, ou nacional, o
índio é aquele que vive na aldeia,
julgando como não índios aqueles
que estão na cidade, sem pintura
no rosto e vestidos.
Não por serem exóticos
“Não é o estar nu e com a cara
pintada que define um ser índio ou
não. O que nos identifica como ín-
“Não é o estar nu e com a cara pintada que define um ser índio ou não. O que nos identifica como índio é a nossa alma, a nossa crença, a nossa cultura”
74 valercultural
“Onde o branco vê uma montanha, nós vemos a casa das árvores, das plantas e do iaçá (quelônio da terra); onde ele vê um rio, nós vemos a casa dos peixes. E nós fomos ensinados a cuidar da nossa terra com essa natureza”
dio é a nossa alma, a nossa crença,
a nossa cultura”, corrige André Ba-
niwa, 43, vice-prefeito de São Ga-
briel da Cachoeira. Para ele, vê-los
por esse lado exótico, fortalece os
defensores da tese de que o índio
fora da aldeia não precisa de tanta
terra. Esse discurso, segundo ele, fa-
vorece o projeto de redução dos ter-
ritórios indígenas, inclusive, os já de-
marcados. Mas, explica André, a ter-
ra é tão sagrada para o índio quanto
o cosmos que guia as suas crenças,
alimentação e cultura. “Onde o bran-
co vê uma montanha, nós vemos a
casa das árvores, das plantas e do
iaçá (quelônio da terra); onde ele vê
um rio, nós vemos a casa dos peixes.
E nós fomos ensinados a cuidar da
nossa terra com essa natureza”, ex-
plica o Tukano Maximiliano.
Ele diz que, ao se utilizar da
tecnologia e dos modelos de Eco-
nomia, Educação e Saúde da Socie-
dade Nacional, o índio está no seu
direito constitucional e não deixa
de ser índio por isso. Para ele, essa
é uma maneira de conviver com o
“branco” e que tal comportamen-
to só fortalece a luta pela tradição,
facilitando o acesso à informação
e a comunicação entre os mais ve-
lhos e os jovens. Aliás, Maximiliano
ressalta que os mais velhos são re-
sistentes a essa teoria, ao contrário
dos mais jovens. André Baniwa é
um pouco mais cauteloso, porém é
de acordo que essa forma de vida
fortalece a manutenção da tradição.
“Mas temos que manter viva a cul-
tura e, isso só é possível, ensinan-
do aos mais jovens, nossas crenças
e nossos costumes. Tudo isso, por
meio de uma Educação diferenciada
que tenha nossa ciência, tecnologia
e nossas tradições”, observa André.
75valercultural
Tutela nunca mais
Maximiliano diz que os índios
não entendiam porque eram con-
siderados incapazes. Não en-
tendiam, reforça Max, porque
não sabiam o que o homem
branco dizia sobre eles no
passado. “Hoje também
falamos o português
e podemos dizer
que não aceitamos
esse julgamento.
Mas até a Funai ain-
da hoje nos trata
como tutelados”,
assegura o Tuka-
no Maximiliano. “A Constituição de
1988 nos garante autonomia e en-
tendemos que o Estado foi criado
para proteger todos os seus cida-
dãos. Então todos deveriam ser tu-
telados”, questiona André, respon-
dendo que não. “Somos cidadãos.
Somos diferentes. Somos brasilei-
ros, e é assim que desejamos ser
respeitados”, diz o líder Baré.
Gersen dos Santos Luciano Ba-
niwa, em seu estudo sobre O que
é preciso saber do índio brasileiro
no Brasil de hoje escreve que as
crenças, os valores e a tecnologia
“Até a Funai ainda hoje nos trata como tutelados”
provêm de um conhecimento prá-
tico e profundo, gerado a partir de
milhares de anos de observações e
experiências empíricas que sempre
foram compartilhadas para garantir
um modo de vida específico. E ele
afirma que isso descontrói a tese
de que os índios são incapazes de
gerar sua sobrevivência, precisando
dos brancos para ensiná-los a viver.
“Se existem índios que passaram a
sobreviver sob a tutela do Estado
é porque foram empurrados pelos
colonizadores para tal condição”,
escreve Gersen Baniwa.
Quando citou a Fundação Na-
cional do Índio (Funai), Maximilia-
no lembrou a origem da instituição
com o nome de Serviço de Proteção
ao Índio-SPI, forjada para decidir
sobre tudo o que dizia respeito aos
índios sem que esses tivessem o
A comunicação via radiofonia
A Foirn é a captadora das diferentes demandas das
filiadas instaladas em São Gabriel da Cachoeira, alto rio
Negro, Santa Isabel e Barcelos, médio rio Negro. Cada
cidade, distante mais de 100 quilômetros entre si, onde
o transporte preponderante são os barcos e canoas. A
comunicação com as mais de 90 Associações se dá em
reuniões mensais, semestrais e anuais e no dia a dia,
por meio de atendimentos via radiofonia, a única tec-
nologia de comunicação disponível. Com operadores
que falam mais de uma língua indígena, as lideranças
das comunidades recebem ou enviam contatos diá-
rios para solução de
problemas de saúde,
de abastecimento de
produtos, ou mesmo
para agendar en-
contros.
São 700 comunidades entre os municípios de Bar-
celos, Santa Isabel e São Gabriel da Cachoeira e ne-
nhuma com menos de doze horas de distância (ida e
volta) de suas sedes municipais. “Por meio da radiofo-
nia, são providenciados resgates de índios com picadas
de cobra, acometidos de malária, diarreia e tuberculose
e são informados os calendários de vacinas”, explica
Maximiliano.
Se a radiofonia ajuda a salvar centenas de vidas,
a rádio de Ondas Médias, operada na sede da Foirn,
em São Gabriel da Cachoeira, leva notícias, orientações
e cultura para as comunidades. O programa Vozes do
rio Negro, comandado pelo índio Baré Nivaldo da Sil-
va Cordeiro, é transmitido às terças-feiras, das 6 às 7h.
“Essa é uma forma de nos fazermos mais presentes e
atualizados com os acontecimentos”, diz Maximiliano,
que registra o envolvimento das comunidades entre si
em razão do programa.
76 valercultural
suas próprias vidas, uma contradi-
ção com o que determina a Cons-
tituição.
Retratos locais
Em São Gabriel da Cachoeira,
um dos desafios é a Saúde da Mu-
lher Indígena, segundo a professo-
ra aposentada e atual dirigente da
Associação dos Artesãos Indígenas
(Assai), criada em 1999, a índia pira-
tapuia Cecilia Barbosa Albuquerque.
“A mulher indígena obteve alguns
avanços e hoje já pode viajar sem o
marido para os encontros ou semi-
nários; ela é, cada vez mais, cons-
ciente de que precisa fazer exames
preventivos, mas ainda não conse-
“A mulher indígena obteve alguns avanços e hoje já pode viajar sem o marido para os encontros ou seminários; ela é, cada vez mais, consciente de que precisa fazer exames preventivos, mas ainda não consegue planejar a gravidez”
gue planejar a gravidez”, diz Cecí-
lia. O assunto deve entrar na pauta
de todas as instituições envolvidas,
principalmente com programas de
orientação para os conselhos locais.
“A população pode crescer, mas
sem ser ruim para a mulher”, se
preocupa a piratapuia.
O município foi pioneiro ao ele-
ger duas lideranças indígenas que
formaram chapa para a prefeitura,
em 2008: Pedro Garcia, da etnia
Tariana, prefeito; e André Baniwa,
vice-prefeito. No final do mandato
da dupla, uma certeza é latente:
ainda há muito que amadurecer
nessa área da política pública. Mas,
a cidade vive um feito inédito em
todo o Brasil: em razão da aprova-
ção da Lei Municipal que dá às lín-
guas Tukano, Nheengatu e Baniwa,
o status de línguas co-oficiais que,
juntas à oficial língua Portuguesa,
devem constar no currículo das es-
colas do município e ser oferecidas
em atendimentos de quaisquer ser-
viços públicos.
Em Santa Isabel, o amadure-
cimento político, para o líder Baré
Marivelto Rodrigues Barroso, che-
gou cedo. Desde os 16 anos, no
movimento indígena, aos 21 anos,
As lideranças das
comunidades de Barcelos estão
preocupadas também com o
crescente trabalho semiescravo
da colheita da piaçava,
matéria-prima usada no
artesanato indígena da região.
Além da exploração da mão
de obra indígena, a piaçava já
está em falta na cidade, o que
torna o trabalho dos artesãos e
artesãs cada vez mais difícil.
direito “nem de abrir a boca”. Ma-
ximiliano afirma que essa atitude
foi a responsável pelos movimen-
tos coletivos, a partir dos anos de
1970. A pressão foi tamanha que
obrigou o Governo a uma opção ca-
maleônica, transformando o SPI em
Funai. Os movimentos continuaram
e, atualmente, Maximiliano come-
mora o esvaziamento da Funai, com
a descentralização dos serviços de
saúde para a Funasa, educação para
o Ministério da Educação e meio
ambiente para o Ministério homôni-
mo. Essa conquista possibilitou uma
maior participação dos indígenas e
um caminho para o fim da tutela.
André informa que o caráter de tu-
telados tira o direito de planejarem
77valercultural
“ Temos terra, temos gente para produzir com potencial para comercialização, mas não temos como escoar nem para quem vender o excedente da produção. O comércio local não compra nossa produção”
já preside a Associação das Comuni-
dades Indígenas do Médio Rio Ne-
gro (ACIMRN), criada em 1996, com
atuação em 13 localidades com as
mesmas etnias do alto rio Negro, e
conta com a parceria do trabalho do
Serviço e Cooperação com o Povo
Yanomami (Secoya), uma ONG que
atua em nove comunidades Yano-
mami e atende cerca de 500 índios
na área de educação e saúde. Ma-
rivelto diz que a participação deve
se dar com representações na po-
lítica estadual e nacional, porque,
segundo ele, os problemas são lo-
cais, mas a solução é externa. Ele
cita como exemplo a necessidade
de continuidade das soluções para
a educação indígena, saúde e agri-
cultura familiar.
As pescas comercial, esportiva
e ornamental, praticadas de forma
predatória, são os principais proble-
mas da região. Elas se estendem,
cada vez mais, para dentro das co-
munidades indígenas. Isso afeta a
sobrevivência de várias famílias que
têm o peixe como alimento principal.
“Existem os postos de acesso, mas
depois de pagarem uma pequena
tarifa, não há mais fiscalização”, in-
forma Marivelto, deixando claro que
os indígenas não são contra a pesca
esportiva, desde que praticadas com
regras que não prejudiquem os ín-
dios e demais moradores da região.
As lideranças estão em movi-
mento para fazer valer o ordena-
mento pesqueiro. O objetivo é um
controle da pesca, pois as dificulda-
des de se encontrar peixe estão au-
mentando e o exemplo é a invasão
das comunidades por pescadores
de fora da região. O líder indígena
lembra que a agricultura familiar
também está na pauta. “Temos ter-
ra, temos gente para produzir com
potencial para comercialização, mas
não temos como escoar nem para
quem vender o excedente da pro-
dução. O comércio local não compra
nossa produção. Estamos esperando
uma posição da Caixa Econômica
para dar prosseguimento aos proje-
tos de Bases de Serviços de Comer-
cialização (BSC)” .
Na área ambiental, um proble-
ma grave afeta os três municípios,
mas em Santa Isabel se apresenta
com maior gravidade. Trata-se da
extração de seixo do leito dos rios.
Essa atividade é danosa ao meio
ambiente porque o seixo serve de
produção primária para do fitoplânc-
ton (microrganismos aquáticos que
possuem capacidade fotossintéti-
78 valercultural
ca), base alimentar de toda a fauna
dos rios. A situação já é do conhe-
cimento dos órgãos dos governos
estadual e federal e as lideranças
indígenas lutam para que haja um
controle ou a suspenção imediata
desse tipo de extração.
Em Barcelos, as terras indígenas
ainda não foram demarcadas, em-
bora os estudos para isso já tenham
sido concluídos. São consideradas
terras indígenas as dos rios Aracá,
Demeni, Padauari, à margem direita
do rio Negro, a partir de Barcelos até
o rio Jurubaxi, e os rios Kiuini e Kau-
rés. “Vamos reunir com a Funai e a
Foirn, em São Gabriel da Cachoeira,
para tratarmos das demarcações”,
assegura a presidente da Associa-
ção Indígena de Barcelos (Asiba), a
índia Baré Dilza Tomas de Melo, 56.
Ela explica que as terras para o índio
não têm valor de mercado; têm va-
lor espiritual segundo os princípios
de cada cultura.
Dona Dilza, como é conhecida
na cidade, fica feliz com o aumen-
to do número de associados e faz
as contas: “Uma média de três ou
quatro todos os dias”. O motivo de
tanta adesão, segundo dona Dilza,
são resultados da organização e
benefícios alcançados na área de
saúde. Ela destaca que os índios
nas aldeias já aceitam o remédio
do branco e os doutores brancos já
reconhecem o poder de cura das
plantas medicinais, utilizadas há
séculos pelos parentes. “Mas eles
estão se associando e nós estamos
com problemas. As mulheres pre-
cisam de equipamentos para fazer
seus exames; os medicamentos e
as vacinas não podem atrasar”, diz
a presidente.
Com a diminuição da discrimi-
nação contra os povos indígenas
na sede do município de Barcelos,
o número de jovens estudantes que
permanecem nas escolas aumentou
nos últimos cinco anos. “A criança
ou o jovem negava a sua identida-
de para evitar a discriminação, mas
isso de pouco valia. A ex-prefeita
da cidade Alberta Oliveira dizia, na
nossa frente, que em Barcelos não
existia índio. Hoje é diferente. Eles
sentem mais força no movimento
indígena que chama a atenção do
mundo todo e isso trouxe mais res-
peito para nós”, reflete dona Dilza.
Um dos desafios na área da edu-
cação também é a implantação de
uma educação diferenciada. A ideia
de se ter uma educação diferenciada
em todas as etapas do ensino está
mais forte porque tem o apoio das
lideranças das aldeias, comunidades
e sítios. Dona Dilza explica que todos
estão bem informados e sabedores
dos seus direitos e seus deveres.
“Os índios lutam, por exemplo, por
uma educação que considere, no
seu conteúdo curricular, a crença
e os rituais, as formas de pesca e
caça, a dança, e música e os modos
de como devemos nos relacionar na
natureza”, exemplifica. O que dificul-
ta a implantação da educação dife-
renciada é a falta de compreensão
da Seduc para esse aspecto.
O fato mais grave na ausência
de um ensino que esteja voltado
aos índios é o esvaziamento das
aldeias, sítios e comunidades pe-
los jovens que se deslocam para as
cidades e acabam se envolvendo
com drogas e álcool. “Nossa luta é
para que as comunidades recebam
escolas e que ensinem a nossa lín-
gua, mais o inglês e o espanhol”, diz
dona Dilza. O ideal, para ela, é que
educação diferenciada se implante
em toda a região do rio Negro.
Agenda multiétnica
A Foirn tem uma agenda multié-
tnica que já foi acordada entre as li-
deranças formais (das organizações
e associações) e tradicionais (das
aldeias, sítios e comunidades). Os
tópicos relevantes da agenda são:
demarcações e regulamentações
das terras indígenas; luta pelo for-
talecimento da identidade indíge-
na; programa de sustentabilidade;
participação dos conselhos locais;
melhorias no atendimento na área
da saúde; instalação de escolas nas
comunidades; agricultura familiar;
universidade indígena com ensino
diferenciado.
Em seu estudo, Gersen Baniwa
escreve que as tradições ainda são
valorizadas na educação indígena.
Assim, essa afirmação justifica o
desejo das lideranças em favor de
uma educação diferenciada. E, ela
já está respaldada na Constituição
Federal, e na Lei de Diretrizes Bá-
sicas – LDB, com a resolução n.° 3,
de 10, de novembro de 1999, do
Conselho Nacional de Educação,
que define os elementos básicos
para a organização, estrutura e fun-
cionamento da escola Indígena. E
“ Nossa luta é para que as comunidades recebam escolas e que ensinem a nossa língua, mais o inglês e o espanhol”
79valercultural
SÃO GABRIEL DA CACHOEIRA
Em São Gabriel da Cachoeira,
85% da população de 37.300 ha-
bitantes (IBGE-2010) pertencem a
uma das 23 etnias indígenas. Mas
eles falam em português, e, no mí-
nimo, mais de uma língua, além da
sua própria que pode ser o nheen-
gatu, tukano ou baniwa.
São Gabriel da Cachoeira é área
de Segurança Nacional, pela Lei
Federal 5.449, de 1968. Lá estão
instaladas a Segunda Brigada de In-
fantaria de Selva, o Quinto Batalhão
o conselho estabelece a inclusão
das estruturas sociais, das práticas
socioculturais e religiosas, e das for-
mas de produção do conhecimen-
to e métodos próprios de ensino/
aprendizagem.
Tradição viva
Algumas das tradições que ain-
da são muito fortes e considera-
das como conteúdo na educação
diferenciada foram recortadas por
Gersen Baniwa. Escreve ele: “A fa-
mília e a comunidade, ou o povo
são responsáveis pela educação das
crianças; é na família que se apren-
de a viver bem, sendo um bom ca-
çador, um bom pescador; aprende
a fazer uma roça, a plantar, a fazer
farinha; a benzer e a curar doenças,
a conhecer as plantas medicinais.
Vai conhecer a geografia das ma-
tas, dos rios e das serras; conhecer
a matemática e a geometria para
construir a casa, a canoa, o remo”.
Gersen Baniwa registra tam-
bém que o método preferencial
das ciências indígenas é a visão da
totalidade do mundo e assinala: “O
indígena deve buscar conhecer o
máximo o funcionamento da na-
tureza, não para dominá-la e con-
trolá-la, mas para seguir com sua
lógica”. Maximiliano, por sua vez,
lembra que as crenças que levam
em consideração a leitura do cos-
mos e os ritos que fazem as pas-
sagens das fases da vida também
são conteúdos da educação dife-
renciada, almejada por todas as li-
deranças, estejam elas à frente das
organizações ou nas aldeias, sítios
e comunidades.
Em movimento
André Baniwa lembra uma ci-
tação no meticuloso estudo do
parente Gersen Baniwa, feita pelo
índio Daniel Mundurucu, que dis-
se preferir a expressão “índios em
movimento” no lugar do conhecido
“movimento indígena”. Muito mais
que uma troca de palavras, a prefe-
rência revela uma luta sem tréguas
pela afirmação das Identidades.
André e Maximiliano, líderes ati-
vistas, dizem que há um processo
de amadurecimento e que as bases
para as novas conquistas já foram
construídas com as organizações
locais, estaduais, nacionais e es-
trangeiras. “Já estamos reconquis-
tando nosso território; o orgulho
de ser índio está de volta no jovem
que já entende que a sobrevivên-
cia está na sua tradição. Estamos
reaprendendo nossa língua, sobre
nossos mitos e rituais”, diz a líder
Dilza Melo. “Eu posso conhecer a
sua comida, você pode conhecer
a minha. Posso aprender a sua lín-
gua e você pode aprender a minha.
Mesmo que sejamos diferentes,
devemos ser todos parentes”, diz
André Baniwa.
de Infantaria de Selva, a 21.° Com-
panhia de Engenharia e Construção
e o Destacamento do Controle do
Espaço Aéreo do município.
Sua economia é pautada pela
agricultura de subsistência (man-
dioca, banana, bata-doce a abacaxi)
e pelos salários dos funcionalismos
municipal, estadual e federal.
SANTA ISABEL DO RIO NEGRO
Distante a 781 km de Manaus-AM,
Santa Isabel do Rio Negro é conhecida
como o teto do Brasil por abrigar dois
picos culminantes do país: o pico da
Neblina e o pico 31 de Março. Esta-
tística do IBGE/2010 contabiliza uma
população de 18.728 hab.
O ano de fundação é datado em
26 de Dezembro de 1957, e o mu-
nicípio possui uma área de 63 mil
quilômetros quadrados. Santa Isa-
bel também foi território de Barce-
los e tem sua economia baseada na
agricultura e na pesca.
As festas da Padroeira Santa Isa-
bel, em 04 de julho, e de Sant’Ana
em 26, do mesmo mês, são as
maiores atrações festeiras do lugar.
Coordenadas de cada cidade
80 valercultural
RETRATOS DA HISTÓRIA
As forças militares da colonização portuguesa e es-
panhola, entre os séculos 16 e 18, foram responsáveis
pelo extermínio de milhares de indígenas no baixo, mé-
dio e alto rio Negro. A motivação da colonização era
exclusivamente econômica.
Na sanha exploratória várias formas de controle fo-
ram colocadas em práticas. Mas nenhuma violência foi
tão duradoura e, sutilmente, perversa, quanto a da Igre-
ja que usou da humilhação para aniquilar o índio que
havia em cada habitante do lugar.
Entre os séculos 16 e 20, foram várias as missões
civilizatórias, com destaque para as salesianas que, ao
longo desse período, assentou-se nos médio e alto rio
Negro e deu início à imposição de um novo modelo
de vida para os indígenas, baseados no lema: “Uma só
religião, uma só língua, uma só bandeira”, escreve a
professora Judith Gonçalves Albuquerque da Universida-
de do Mato Grosso, em um trecho do seu estudo sobre
os Indígenas do rio Negro.
A professora Valeria Augusta Weigel, da Universida-
de Federal do Amazonas-Ufam, escreve em seus estu-
dos que O Papa Leão XIII, com receio da propagação
das ideias humanitárias comunistas, tratou de ocupar
o maior número de espaços e cabeças possíveis. Com
apoio do Governo Brasileiro, os experientes salesianos
expandiram os Internatos e neles instalaram vários jo-
vens índios. Os que fossem pegos falando sua língua
eram obrigados a usar uma placa humilhante e eram
espancados na própria sala-de-aula. “Fora das aldeias
a maioria de nós fala muito baixo e quase não dá prá
uma conversa. Isso é um reflexo das discriminações”,
diz o indío Tukano Maximiliano, dirigente da FOIRN, ex-
-interno de Escola Salesiana.
Gersen Baniwa escreve que durante os últimos 500
anos, mais de mil línguas foram destruídas. Ele coloca
na conta do modelo de educação imposta aos indíge-
nas como causa principal.
Ainda, de acordo com trechos do estudo da pro-
fessora Valéria, só, em 1962, é que o Papa João XXIII,
no Concílio 6, passa a determinar uma outra orienta-
ção para que trocasse a doutrina da severidade pela
da misericórdia. “(...) deseja mostrar-se mãe amorosa
de todos; benigna, paciente, cheia de misericórdia e
bondosa com os filhos dela separados”, diz um trecho
do texto do Papa.
Na década de 1980, durante as comemorações pe-
los 500 anos do descobrimento do Brasil, o Papa João
Paulo II, pede perdão aos índios que passariam a ser re-
conhecidos na suprema Constituição brasileira de 1988.
BARCELOS
Foi a primeira capital do Amazo-
nas, na época da Província e, com
122.475.728 quilômetros quadra-
dos, é considerado o segundo maior
município do Brasil, atrás apenas de
Altamira, no Pará. Barcelos está a
405 quilômetros da capital. Foi fun-
dada em 6, de maio, de 1758.
Barcelos conta com uma popula-
ção de 25.835 habitantes, segundo
o IBGE/2010. Além do turismo, sua
economia se baseia nos cultivos da
mandioca, arroz e banana. Apesar de
ser considerada a terra do peixe orna-
mental, um sucesso mundial, a cidade
sofre com a escassez dos peixinhos,
em razão da captura predatória.
Como atrações turísticas, tem a
Festa do Peixe Ornamental (Acará
Disco e Cardinal), as visitações aos
Parques Nacional do Jaú e Estadual
da Serra do Aracá; Cachoeira do El
Dourado, com quase 400 metros de
altura e o abismo Guy Collet, a ca-
verna mais profunda do Brasil.
81valercultural
gastronomia
Banquete
84 valercultural
BanqueteGelado
Sorvetes naturais de frutas da região
conquistam cada vez mais novos paladares
D ona de um exclusivo “acervo” de
frutas, especiarias e iguarias, a
Amazônia tem conquistado cada
vez novos paladares. E não é só
com seus pratos típicos ou seus
peixes de água doce. O sabor regional se destaca tam-
bém quando misturado à cremosidade dos sorvetes.
Estes, aliás, são a pedida certa para enfrentar o calor do
verão amazônico.
Um conceito que se apurou por mais de 40 anos
resultou na união de uma família para resgatar o tra-
dicional ramo da matriarca. O sorvete artesanal. Dos
tempos que dona Creuza Braga fazia seus próprios
sorvetes onde morava, na avenida Joaquim
Nabuco, esquina com Sete de
Setembro. Quase meio século
depois, o resgate deu origem
à sorveteria Zero Grau, localizada na rua Pará, 660, no
Vieiralves.
Lá, uma dose de refrescância pode ser recebida,
por exemplo, com a receita autêntica do sorvete De-
Renata Paula e Lane Lima | jornalista
lícia de Cupuaçu, ou das frutas Bacuri, Buriti, Tucumã
e Araçá-boi.
Ainda na era da tropicalidade das frutas, a Zero
Grau também oferece sorvete de Sorva, que é uma
fruta amazônica de coloração esverdeada, passando a
castanho quando madura, possui a casca fina e o leite
viscoso. Tanto a fruta com o sorvete são facilmente en-
contrados de novembro a fevereiro.
Os irmãos Ana Lúcia e Carlos Bra-
ga assumem a direção da sorve-
85valercultural
teria, que oferecem as receitas sem
conservantes, com puro extrato da
fruta e leite. Além dos sabores, o
cliente tem a opção de acrescentar
ao sorvete, mousse de cupuaçu ou
chocolate e cobertura de açaí.
A fruta gelada
Na mesma época em que a vi-
zinhança procurava as delícias de
Dona Creuza, surge a sorveteria
Glacial, na avenida Getúlio Vargas,
esquina com a rua Lauro Cavalcante,
loja que até hoje se mantém ativa.
Com 50 sabores, sendo 20 regionais
(entre eles cupuaçu, tucumã, açaí,
graviola, araçá-boi e pitomba), a fá-
brica já possui 12 lojas, sendo umas
em Presidente Figueiredo, Manaca-
puru, Itacoatiara, Maués e várias em
Manaus.
Se o requinte permitir, o regio-
nalismo também atravessa as bar-
reiras da culinária e dá vez ao Pettit
Gateou Amazônico, que consiste em
um bolo de chocolate ao leite, ge-
leia de cupuaçu, calda de chocolate
quente e castanha-do-brasil para
decoração.
Inovação
A autenticidade das fábricas e
distribuidoras de sorvete tem dado
aos clientes opções exclusivas com
sorvetes com doces de cupuaçu,
castanha-do-brasil, murici, tapioca
e até queijo bola. Como é o exem-
plo da Vaca Lambeu, uma marca
local que se aproveita das delícias
locais para inovar e transformar o
que seria uma simples sobremesa
num verdadeiro banquete gelado.
Da polpa ao doce da fruta, a fá-
brica aposta na mistura de sabores
e cores para chamar mais a atenção
da clientela. Para a sócia da loja,
Marina Oliveira, os sabores tradicio-
nais nem sempre têm vez na balan-
ça. De acordo com ela, as maiores
procuras da loja são de sabores ita-
lianos e regionais.
A empresa também lançou no-
mes exclusivos para simbolizar as
misturas, como “Paz e Amor”, que
surge da mistura dos sorvetes de
açaí e tapioca. Ou os coloridos como
Caprichoso e Garantido, Paraen-
se, Pavê de Cupuaçu e o Carimbó
(sorvete de castanha com doce de
cupuaçu). E também o que resultou
no nome da fábrica que mistura os
sorvetes de queijo bola e doce de
cupuaçu.
Os produtos da fábrica podem
ser encontrados em pontos de ven-
das disponíveis em toda Manaus,
mas a loja oficial fica na rua Jorge
Viega, 1, no Conjunto Eldorado, bair-
ro Parque Dez, zona Centro-Sul.
Foto
s: C
aio
Luiz
/ L
ane
Lim
a
86 valercultural
Em São Paulo, a sorveteria Ta-
perebá, na Vila Madalena, região
conhecida por seu roteiro gastro-
nômico, oferece um novo conceito
aos seus clientes. Há sete anos no
mercado paulistano, a loja chama
atenção por unir a técnica italia-
na em produzir sorvetes cremosos
com os incomparáveis sabores do
Norte e Nordeste do país. Dos con-
vencionais aos exóticos, as iguarias
são feitas artesanalmente no local
com frutas selecionadas e nativas
da Amazônia, do Cerrado e da Mata
Atlântica, compradas em um sítio
localizado no interior do Estado.
Açaí, bacuri, cacau, camu-camu,
castanha, cupuaçu, graviola, guara-
ná, jabuticaba, murici, pitanga, ca-
rambola, taperebá, tapioca e umbu
são alguns dos sabores do cardápio.
Diariamente, cerca de doze sa-
bores revezam-se na vitrine. Difícil
é escolher o mais gostoso. David
Barkan, fotógrafo, é um dos fre-
quentadores assíduos do local. Seu
sorvete preferido é o de taperebá,
sabor que tem recebido reconheci-
mento inquestionável tanto de con-
sumidores como de especialistas
em gastronomia. “Mas não deixo
de experimentar as novidades”,
afirma Barkan que destaca cajá,
umbu, cupuaçu e ba-
curi em sua lis-
ta de frutas
exóticas.
Já o paraense Fernando Braga,
economista que mora em São Pau-
lo há 40 anos, diz que visita o local
para lembrar-se de sua terra natal.
“Sempre peço de tapioca ou açaí.
Estou há muitos anos aqui, mas não
deixo de comer as delícias amazô-
nicas”, afirma.
As crianças também solicitam
diferentes sorvetes dentre as mais
de cem receitas. Júlio Parente, de
dez anos, lista suas preferências.
“Banana com paçoca, goiabada
com queijo e abacaxi com hortelã”.
Das frutas nortistas ele é enfático:
“Prefiro o bacuri”.
Em sua primeira experiência
na sorveteria Taperebá, Carolina
Ornellas escolheu o cupuaçu. Já o
marido Mauro é do Maranhão e já
está acostumado com as frutas re-
gionais. “Desta vez escolhi tapioca,
estou adorando”, comenta.
No colorido que enche os olhos
de quem chega, outras frutas como
abacaxi, figo, caju, lichia, manga,
mamão papaia, acerola e pera
completam o time de delícias.
Delícias do Norte e Nordeste em São Paulo
87valercultural
em Londres
Em meio ao silêncio, as árvores, as
flores, paz e as demais sepulturas.
Lá no fim do caminho, onde todos
sabem, está o último lugar de des-
canso de um grande pensador e não ape-
nas pensador, mas um homem de ação
também, Karl Marx.
Karl Marx foi, com certeza, o mais in-
fluente de todos os filósofos políticos, é
o mais famoso refugiado que a Inglater-
ra recebeu e o “hóspede” do mausoléu
mais visitado no cemitério de Highgate,
no norte de Londres.
Na verdade, primeiramente Marx foi
enterrado cerca de 150 metros do local
onde está hoje o seu memorial. Teve
um enterro muito modesto, com cerca
de uma dúzia de pessoas como teste-
munhas. Mas, com o passar do tempo,
sua influência intelectual aumentou o
Túmulo do famoso
filósofo é o mais visitado
no cemitério Highgate
Ao pé do memorial, o professor universitário Tom Ward e a esposa que incluíram a visita a Marx no roteiro de viagem
em memória
Ana Goreth Antony | jornalista
88 valercultural
Fotos: Ana G
oreth Antony
89valercultural
número de admiradores que vinham
visitá-lo cresceu tanto que foi preciso
um lugar mais acessível para o grande
mestre receber a todos.
Em 1956, o conselho da associação
do Marx Memorial Library comprou o
lugar onde hoje está o memorial es-
culpido por Laurence Bradshaw, mas
as inscrições são originais. As palavras
na pedra são a prova viva de que se
enterra o corpo, mas não se enterra o
homem, suas palavras e seus ideais.
No topo, lê-se o convite a todos
os trabalhadores do mundo. “Workers
of all lands United” – “Trabalhadores
de todo mundo unidos”. Logo abaixo,
mais palavras de desafio “The Philoso-
phers have only interpreted the world
in various ways. The point however is
to change it”. – “Os filósofos interpre-
taram o mundo de várias maneiras. O
ponto, entretanto, é tentar mudá-lo”.
Do alto de sua lápide, o busto de
Marx olha com severidade aos que
veem ao seu encontro. Talvez não seja
severo para todos, para alguns, ele pa-
rece dizer: “Bem que eu avisei”, em
tempos em que a Europa enfrenta sua
maior crise econômica desde 1930.
Pelo menos é assim que Tom Ward,
professor de Ciências Sociais da Uni-
Marx em ação
“Quem é dado por morto, vive mais”. O filósofo alemão
Robert Kurz (1943-2012) recorria sempre a esse adágio
para reafirmar importância do legado intelectual de Karl
Marx (1818-1883), para o qual se voltam os que querem
compreender o modo de produção capitalista, principal-
mente em seus ciclos de crise, como o que varre o mundo,
atualmente, a partir dos Estados Unidos e da Europa. No
ensaio Marx depois do marxismo, publicado em 24 de
setembro de 200, no jornal Folha de S. Paulo, Kurz afirma
que a razão do vigor do pensamento marxista é simples:
“A teoria de Marx só poderá morrer em paz junto com o
seu objeto, o modo de produção capitalista”.
No mesmo texto, Kurz alerta que a exemplo do que
acontece com todo pensamento teórico que ultrapassa a
data de validade de um determinado espírito de época,
também a obra de Marx carece de uma nova abordagem
que lhe descubra novas facetas e descarte velhas interpre-
tações. Novas abordagens à luz das contradições internas
do capitalismo – as que geram crises socioeconômicas de
magnitude global – só viriam a fortalecer a crítica radical,
inaugurada por Marx, a esse modo de produção. A síntese
dessas críticas está nos tomos de O Capital, publicado em
1867, em francês. No Brasil, a obra foi publicada em 1960,
pela editora Civilização Brasileira
O Manifesto comunista (publicado pela primeira vez
em 1848), escrito em parceria com Friedrich Engels (1820-
1895), pontificou a internacionalização das ideias de Marx
como forças mobilizadoras do proletário em favor de uma
nova ordem mundial que devolvesse aos trabalhadores os
meios de produção. “Proletário de todos os países, uni-
-vos”, o brado do manifesto, tornou-se símbolo da corren-
te marxista do movimento operário. Mais que retórica ou
elemento estratégico do socialismo, o manifesto expressa
o compromisso do socialismo com a emancipação da hu-
manidade e instauração de um humanismo revolucioná-
rio, no qual não haverá lugar para exploração do homem
pelo homem.
O conhecimento das ideias de Marx é essencial para a
formação intelectual e atuação dos profissionais das áreas
das ciências sociais e dos que militam em movimentos
sociais.
90 valercultural
versidade de New Mexico Highlan-
ds, nos Estados Unidos, o encarou.
Esta é a primeira vez que Ward e
sua esposa visitam o Reino Unido,
mas fizeram questão de incluir a vi-
sita a Karl Marx no roteiro.
O professor está visivelmente
emocionado e afirma que o lugar
inspira tranquilidade e até mes-
mo pode sentir o cheiro de Marx.
A quem ele descreveu como “um
dos mais importantes pensadores
sociais de todos os tempos. E que
teve muito a dizer sobre Capitalis-
mo”, disse Ward que, antes de par-
tir, ainda recomenda um livro para
reflexão, Why Marx was right (Por
que Marx estava certo?) de Terry Ea-
gleton. O livro foi escrito depois do
começo da crise em 2008 e levan-
tou algumas críticas no Reino Unido.
De acordo com elas, o autor fez o
possível, mas não mostrou a verda-
deira importância pensamento de
Marx e porque ele estava certo.
O cemitério de Highgate
Como numa grande ironia do
destino, o lugar de descanso de um
dos maiores críticos do sistema ca-
pitalista é vizinho a grandes man-
sões e comunidades fechadas no
norte da capital inglesa.
Highgate é uma das mais exclu-
sivas e caras áreas ao norte de Lon-
dres. No século passado era apenas
um vilarejo, mas com o passar do
tempo foi adicionada ao resto da ci-
dade. É uma área muito verde, que
reteve parte de sua beleza natural,
onde as casas grandes e imponen-
tes existem em perfeita harmonia
com as árvores. O lugar todo é um
tanto quanto constrante e dormen-
te se comparado com a energia que
transcende da grande cosmopolita
Londres.
O cemitério de Highgate em si é
dos mais tradicionais da cidade, do
tempo em que os funerais tinham
todo um ritual de homens vesti-
dos em verde-escuro e de cartolas
pretas, como nos livros de antiga-
mente. As árvores crescem entre os
túmulos, assim a natureza acolhe as
lápides.
Segundo o aposentado Eric
Palker – que visita o lugar há muitos
anos semanalmente com a amiga
Joice Bell, para cuidar do túmulo dos
91valercultural
• A filha de Karl Marx, Eleanor, uma
das fundadoras da Liga Socialista e
que escreveu muito sobre a ques-
tão da mulher em política e socie-
dade teve suas cinzas depositadas
no local em 1956.
• Em 1970 o memorial sofreu um
atentado a bomba. Mais uma prova
de que um homem como Karl Marx
não descansa e vive por gerações
por meio de sua obra e pensa-
mentos, inspirando todo o tipo de
reações.
• E Engels, o companheiro de obras e
lutas? Engels não foi enterrado, foi
cremado e a seu pedido teve suas
cinzas jogadas no Canal da Mancha
de um lugar chamado Beachy Head
no condado inglês de East Sussex.
Beachy Head é o mais alto dos
penhascos britânicos, com 162 me-
tros, também muito conhecido por
ser um lugar popular em suicídios.
Contudo o lugar é muito bonito, o
penhasco de encontro ao mar.
CURIOSIDADES
avós de Joice –, o cemitério mudou
muito e até mesmo partes que eram
apenas jardins tiveram que acolher
mais sepulturas, assim como cons-
truções antigas foram demolidas a
fim de criar mais espaço.
Palker se sente tão à vontade
no cemitério, conta estórias curiosas
como onde estão enterrados os pais
do cantor Rod Stewart. “Sabia que o
Rod Stewart, antes de ser famoso,
trabalhava como coveiro aqui?”. Ele
me pergunta e, de acordo com as
informações on-line, apesar da mi-
nha surpresa, é verdade.
O cantor Rod Stewart cresceu
em Highgate e teve um trabalho
temporário como coveiro naquele
cemitério.
Joice é ainda mais apaixonada
pelo lugar e, segundo ela, existem
bons livros que relatam como os fu-
nerais de antigamente eram muito
mais bonitos. “Havia a cerimônia
na igreja antiga, no lado oeste, e o
caixão vinha por uma passagem por
debaixo da terra para esse lado”,
conta a aposentada que insistiu em
não revelar a idade.
O cemitério está em funciona-
mento desde 1860. De tão antigo,
tem algumas lápides que começam
afundar com o movimento do solo
e é preciso ajuda de máquinas para
erguê-las novamente.
Em 1981, a Associação dos Ami-
gos do Cemitério de Highgate to-
mou conta da administração, é uma
associação sem fins lucrativos. Qual-
quer pessoa interessada pode fazer
parte e custa apenas £12 por ano.
De acordo com Dee Linnell,
uma aposentada que estava muito
animada com a possiblidade de se
“ O cantor Rod Stewart cresceu em Highgate e teve um trabalho temporário como coveiro naquele cemitério
Eric Palker e Joice Bell visitam o cemitério toda semana
92 valercultural
tornar associada, visitar o cemitério
de Highgate é uma ótima experiên-
cia. “A experiência foi maravilhosa,
estou voltando pela segunda vez,
serei voluntária no futuro, existem
esculturas lindas como o “Sleeping
Angel” (Anjo Adormecido)”, diz ao
mostrar um postal que acabara de
comprar.
Passeio
O cemitério é dividido em duas
partes: oeste e leste. Para visitar a
parte oeste, paga-se £7 libras e é
necessário o horário certo porque
precisa-se de guia, um outro pro-
blema é que nessa parte as fotogra-
fias são limitadas a uso pessoal.
Mas Marx está no lado leste do
cemitério, onde a entrada é ape-
nas £3 libras e se pode ficar quanto
tempo quiser e tirar quantas foto-
grafias o turista desejar.
Para se chegar ao cemitério
de Highgate, usando o transporte
público, deve se usar a linha pre-
ta conhecida como Nothern Line
que corta a cidade de norte a sul, o
nome da estação é Archway. A saída
é na esquerda e aponta para uma
rua Highgate hill que na verdade é
uma ladeira. No topo da rua existem
duas igrejas e, ao atravessar a rua,
um magnífico parque.
O parque Waterlow é vizinho ao
lado leste do cemitério e de lá pode
se observar algumas das cruzes e
lápides que, aos poucos, em meio
a alegria enchem o ar de respeito e
por si só fazem com que o visitante
sinta que está no caminho certo.
Dee Linnell, aposentada
93valercultural
cinema
Um filme deautor ou um autor de filmes
Akira Kurosawa é considerado um
dos maiores diretores de cinema
de todos os tempos. É dele o filme
Tagemuscha: a sombra do samurai,
o filme que assistimos com calma para sobre
ele tecer os comentários que se seguem. A
razão da escolha é ser reconhecido como um
Uma reflexão sobre o filme
Kagemuscha: a sombra do Samurai, de
Kurosawa, considerado o mais ocidental
dos diretores japoneses
Neiza Teixeira | escritora e filósofa
94 valercultural
Um filme deautor ou um autor de filmes
dos mais interessantes da obra do diretor, in-
clusive, este filme marca o ponto de viragem
na obra e no ressurgimento de Kurosawa.
Especificamente, chama-se a atenção para o
caráter autoral da obra e para a linguagem
universal que estabeleceu, inclusive garantin-
do a manutenção e o conhecimento da cultu-
ra japonesa, e a relação que estabeleceu com
a linguagem cinematográfica ocidental.
Assim como é perceptível a marca, por
meio de uma linguagem musical muito par-
ticular de Philip Glass em todas as suas com-
posições, o mesmo se pode dizer de cada um
dos filmes de Kurosawa, considerado o mais
Fotos: Divulgação
95valercultural
ocidental dos diretores japoneses.
Sem querer prolongar a discussão e
sem a aprofundar como se deveria,
este é um dos motivos que nos fa-
zem classificar os seus filmes como
“filmes de autor”. E, como conse-
quência, dizer que este diretor, que
contribuiu para a compreensão do
“cinema arte” ou como “obra de
arte”, como linguagem fundamen-
tada, sempre foi coerente consigo
mesmo, com a sua obra e com as
pessoas que sempre esperam um
cinema de qualidade e um cinema
revelador/desvelador.
Temas recorrentes
Kurosawa é um dos diretores ja-
poneses que teve melhor aceitação
e que influenciou o cinema ociden-
tal. Foi com ele que o Ocidente se
virou para o Japão para ver e ouvir o
que aquele país trazia de novo tan-
to para a linguagem cinematográ-
fica como para a cultura ocidental,
cansada de si e ávida de novidades.
Detentor, no seu trajeto, de prêmios
de grande envergadura, como o
“Leão de Ouro”, “Palma de Ouro” e
reconhecido com o “Oscar de Hon-
ra” pela sua influência em cineastas
do mundo inteiro e pelo bem-estar
ou mal-estar que trouxe à huma-
nidade, divertindo-a, inspirando-a,
enriquecendo-a, encantando-a, Ku-
rosawa diz, na sua obra, como nos
percebe, como nos consegue ver.
Se o Japão, nos filmes de Kuro-
sawa, dialoga consigo mesmo, re-
vivendo no cinema o seu passado,
detalhando-o, escavando-o, mais
uma vez Kagemuscha: a sombra
do samurai é uma atitude de re-
conhecimento de si mesmo e um
diálogo com o Ocidente. A estética
do filme, que traz uma temática ja-
ponesa, expõe o Ocidente na sua
linguagem, como também temas
que lhes são caros, por exemplo, a
tragédia humana, que apresenta a
crise de identidade, a incapacidade
de sermos o outro e a ambiguidade
de uma vida sem sentido: ela pode
ser o tudo como pode ser o nada.
Para enfatizar, não se pode esque-
cer Sonhos, onde van Gogh, prede-
cessor do Expressionismo, é um dos
meios de revelação. Da mesma for-
ma que van Gogh se faz presente, a
tragédia, de forte influência shakes-
peareana, é o discurso utilizado. Na
perspectiva shakespeariana, Kuro-
sawa, um homem nascido no Japão,
“ Kurosawa é detentor de prêmios como o Leão de Ouro e Palma de Ouro
96 valercultural
educado no Japão, mas com o olhar
de cima, do seu país e do mundo,
via o que a todos ou à maioria não
cabe ver. Através do meu olhar,
sinto que Kurosawa trouxe o máxi-
mo possível de olhares para dizer,
simplesmente: Vejam: Este é o ho-
mem! Pensem nisso!
Kagemuscha: a sombra do samurai
A palavra “kagemuscha”, em ja-
ponês, refere-se ao “guerreiro das
sombras”, um sósia e um impostor.
A ideia deste filme chegou quando
Kurosawa, por intermédio de um li-
vro de história do Japão feudal, sou-
be da existência de Schigen Takeda
(1521-1573), um dos senhores da
guerra do Japão feudal, que tinha o
hábito de contratar sósias para con-
fundir os adversários. Esta informa-
ção levou à criação de uma história
que se passa entre os anos de 1572
e 1575, no período que antecede a
unificação do Japão. A guerra envol-
ve três clãs, em luta pela detenção
do poder. O objetivo da guerra, que
se degenerou em guerra civil, era
tomar a capital Kioto.
O líder do clã Takeda, Schigen,
é ferido gravemente por um atira-
dor do clã adversário, quando quis
ouvir o tocador de flauta do castelo
assediado, que tocava todas as noi-
tes, e que impressionava os seus
guerreiros. O tiro foi mortal, mas,
antes de morrer, ele pediu aos seus
generais que não revelassem a sua
tragédia durante três anos, o que
fez com que um sósia, um ladrão
prestes a ser executado, e que foi
salvo por seu irmão, um dos seus
sósias habituais, assumisse o seu lu-
gar. A não divulgação da sua morte
por três anos garantiria a estabilida-
de do clã por esse período. O sósia,
cujo nome ninguém nunca soube
qual era, assumiu com habilidade
e prontidão o lugar do guerreiro,
colocando uma questão presente
em Raschmon, a verdade. Somente
conheciam a verdade sobre Schi-
gen os homens mais próximos, os
demais, até mesmo seu neto, esta-
vam convencidos de que o chefe do
clã estava vivo, porém, o cavalo de
Schigen encarregou-se de destruir a
farsa, confirmada pelas concubinas.
O velho ladrão foi expulso, sob pe-
dras, do castelo. Todavia, ainda que
expulso e apedrejado, ele seguiu
com a nova identidade, que se re-
vela, principalmente, nas cenas fi-
nais do filme.
Os estandartes do exército de
Schigen trazem a insígnia do clã:
um losango formado por quatro lo-
sangos, em referência aos elemen-
tos do lema dinástico: “Veloz como
o vento, silencioso como a floresta,
feroz como o fogo e imóvel como
a montanha”; todos os adjetivos
concentram-se na figura do chefe
do clã. Kagemuscha viu o guerrei-
ro Schigen morto, quando tentava
roubar coisas e fugir. A descoberta o
deixou apavorado, mas foi conven-
cido a ficar, e o nada-ser permitiu-
-lhe ser o guerreiro morto, o que se
constitui num tema para a psicolo-
gia e para a filosofia; por isso, em
cenas paradigmáticas revela-se a
sua tragédia: ele assiste à derrocada
97valercultural
do clã Takeda, devido à leviandade do filho de
Schigen; dilacera-se com a derrota, visível na
cena em que ele descobre o peito no ensejo
de mostrar a dor que o lacerava; é acossado
pelo dilaceramento que domina a todos que
nada são e que descobrem, sem panejamen-
tos, a exiguidade do tempo, a fragilidade de
cada um e do todo.
É impossível não reconhecer um filme de
Kurosawa: pela sua plasticidade, pelo jogo
estético, pelo desempenho dos atores, pelos
diálogos que instaura, pelo caráter expressio-
nista. Kurosawa, por meio dos seus filmes,
inclusive recorrendo à história, tentou com-
preender o homem, daí a presença marcante
de Shakespeare na sua obra. Conforme a sua
cinematografia, a vida humana é tragédia.
Portanto, a nossa questão é o que fazer de-
pois que sabemos disso.
Além disso, evidencia-se a nossa incapa-
cidade de vir-a-ser o outro e, pior que tudo, a
nossa perdição quando nos perdemos de nós
próprios. Ver Kagemuscha é assistir a uma
peça composta por dezesseis quadros, cuida-
dos, um a um, pelo diretor, daí a beleza do
figurino, do cenário, da composição. O filme
“ Seus filmes tentam compreender o homem, daí a presença marcante de Shakespeare na sua obra
que aqui se vê reúne o que qualquer crítico
rigoroso considera importante, e o que não
pode deixar de ver.
Os espaços são clinicamente escolhidos;
as tomadas de câmera chegam e se desfazem
como as águas da cena final rumo ao infinito/
finito, na hora certa; a lentidão com que as
cenas decorrem convida-nos a ver e a pensar.
A tragédia é narrada passo a passo até o mo-
mento derradeiro. Na cena que nos aproxima
do final, o show macabro é proporcionado
pelos cavalos agonizantes, em câmera lenta
e em vários ângulos, que se misturam com os
guerreiros mortos ou em agonia, desfazendo
qualquer distanciamento entre ambos.
Por fim, Kagemuscha, numa cena quixo-
tesca, corre por cima dos cadáveres, no único
momento em que pode guerrear, com uma
lança em punho, quando é ferido pelo adver-
sário. O vermelho do seu sangue expande-se
pelo seu corpo numa coloração que visa pro-
porcionar um efeito estético, e que nos leva
ao teatro japonês, indicando-nos que o que
vemos é cinema, é arte. É na água que se
misturam o sangue do ser-nada e o estan-
darte do clã Takeda, que Kagemuscha não
consegue apanhar, porque se encontra morto,
e porque as águas do mesmo rio, próximas
entre si, seguem em caminhos contrários, o
que mostra toda Impossibilidade. Afinal, o ho-
mem não é mais do que um. E tudo é mera
representação.
98 valercultural
Quixote ou as virtudesda ambiguidade
literatura
100 valercultural
Numa rua de mercadores de To-
ledo, um jovem vende cartapá-
cios e velhos papéis escritos em
árabe. Um desses folhetos nar-
ra a história de uma tal Dulcineia del Toboso
(também, conhecida como Aldonça Louren-
ço), mulher que tinha uma especial habilida-
de para salgar a carne dos porcos; era a His-
tória de don Quijote de la Mancha, escrita por
historiador arábico chamado Cide Hamete Be-
nengeli. Não foi difícil achar no mercado al-
gum mouro versado em línguas que pudesse
traduzir a história ao castelhano. O trabalho,
feito em troca de passas e trigo, demandou
um mês e meio, e tinha sido encomendado
por Miguel de Cervantes Saavedra. Este epi-
sódio é narrado no capítulo 9 de El Ingenioso
Hidalgo Don Quijote de la Mancha, escrito
em 1605 por Miguel de Cervantes Saavedra.
No capítulo 6 dessa mesma obra, um pa-
dre e um barbeiro examinam a biblioteca de
Don Quijote (também conhecido como Alon-
so Quijano), em procura das obras que teriam
provocado a loucura do ingenioso hidalgo,
leitor de abstrusos romances de cavalaria.
Na biblioteca encontram as causas do desva-
rio: Amadis de Gaula, Sergas de Esplandián,
Florismarte de Hircania, El Caballero Platir,
Palmerín de Inglaterra, Don Belianís, entre
outros títulos que, por prudência e para que
não provoquem males maiores, recomendam
queimar. Encontram também outras obras,
que preferem salvar do fogo, e para as quais
reservam, porém, sólidas frases de ironia e
escárnio. Uma dessas obras é La Galatea, de
Miguel de Cervantes, más versado en des-
dichas que en versos, segundo a definição
do padre. Este, que diz ser muito amigo do
autor, afirma que “o livro tem algo de boa
invenção; propõe algo, e não conclui nada” e
finalmente recomenda guardá-lo, à espera de
uma segunda parte anunciada
pelo autor, que quiçá possa
ser recebida com alguma
misericórdia.
No capítulo 2 da se-
gunda parte, escrita às pressas por
Cervantes em 1615, um ano depois da pu-
blicação em Tarragona do Quixote apó-
crifo do suposto licenciado Alonso
de Avellaneda, Don Quixote e
Sancho Panza descobrem
por intermédio do bacharel
Carrasco que a fama das suas
vidas e aventuras já corria pelo
mundo, divulgada no romance El Ingenioso
Hidalgo don Quijote de la Mancha, escri-
to por Cide Hamete. Depois descobri-
Apreciam-se no Quixote não apenas a divertida sucessão
de aventuras, a satírica invectiva contra os livros de
cavalaria e a memorável caracterização dos personagens,
mas também toda uma série de questionamentos
relativos à arte de narrar
Alfredo Cordiviola | professor de literatura da UFPE
101valercultural
102 valercultural
rão também que existia um outro
romance, o de Avellaneda, que con-
tinha no prólogo palavras que eram
melhor esquecer, e incluía dados
errôneos e casos falazes.
Assim, nessa trama de ficções
superpostas, Cervantes, o autor, é
mais um personagem, Cide Ha-
mete, um sonho de Cervantes,
é o “verdadeiro” autor, e os dois
personagens principais leem suas
próprias aventuras em romances
apócrifos ou imaginários. Se o ato
da leitura postula a relação entre
um mundo que está dentro do livro,
com suas peripécias e invenções, e
outro mundo que está fora (aque-
le que espreita e ressurge quando
o livro é fechado), o Quixote nos
lembra permanentemente que en-
tre o mundo do leitor e o mundo
do livro há uma continuidade estra-
nha, perturbadora. Como no breve
relato de Júlio Cortázar, “Continuidad
de los Parques”, em que o leitor se
transforma em vítima da história
que estava lendo, Cervantes pare-
ce querer dizer que em cada livro,
como nisso que chamamos o real,
há muitos mundos, nem todos re-
ais, nem todos imaginários. Em
“Magias Parciais do Quixote”, Jorge
Luis Borges se pergunta por que é
inquietante que Dom Quixote seja
leitor do Quixote (ou Hamlet es-
pectador de Hamlet), e responde
com um argumento que poderia ter
sido subscrito por Cervantes: “tais
inversões sugerem que se os per-
sonagens de uma ficção podem ser
leitores ou espectadores, nós, seus
leitores ou espectadores, podemos
ser fictícios”.
Clássico universal
Talvez tenha sido essa inquieta-
ção um dos motivos que provoca-
ram o sucesso imediato do roman-
ce e a sua perduração na fervorosa
categoria dos clássicos universais.
O Dom Quixote pode ser lido como
uma experiência de leitura (Quixote
como leitor que substitui a realida-
de pela Literatura, ou para quem
a Literatura é a realidade), como
melancólico desengano do mundo,
como fábula sobre o ocaso do Im-
pério, como canto final do magnífico
Século de Ouro das letras espanho-
las. Pode ser visto também como o
fundador de um gênero (o romance
moderno) e como um importan-
te elemento na conformação dos
discursos de identidade hispânica.
Como Shakespeare, como Dante,
Cervantes e seu Quixote tiveram a
boa ou má sorte de ser conside-
rados fundadores de uma tradição
nacional e, ao mesmo tempo, em-
blemas de universalismo.
Leitores situados em épocas e
contextos muito diferentes soube-
ram apreciar no Quixote não ape-
nas a divertida sucessão de aven-
turas, a satírica invectiva contra os
livros de cavalaria e a memorável
caracterização dos personagens,
mas também toda uma série de
questionamentos relativos à arte
de narrar e aos modos em que a
Literatura processa e transgride os
estatutos do real. Leitores como
Sterne, Diderot e Machado
de Assis, que recuperam a
lição cervantina de privi-
legiar o sonho e as am-
biguidades da paródia
e da imaginação.
O ácido humor e a
celebração e a críti-
ca da ficção desenham
uma peculiar linhagem
que deliberadamente
une o Quixote, Tris-
tran Shandy, Jac-
“ Como Shakespeare, como Dante, Cervantes e seu Quixote tiveram a boa ou má sorte de ser considerados fundadores de uma tradição nacional
103valercultural
ques, o Fatalista e Brás Cubas, em textos que
postulam suas gêneses fictícias e proclamam
o império da linguagem e do riso implacável.
No século 19, em que os romancistas de lín-
gua espanhola não conseguem se livrar dos
efeitos tantalizantes das convenções realis-
tas e naturalistas, Machado de Assis revive
e prolonga uma tradição que transforma o
romance em espaço privilegiado para ence-
nar as tensões entre ilusão e realidade, arte
e vida, verdade e ficção. De Memórias Pós-
tumas (1881) a O Alienista (1882) e Quincas
Borba (1891), essa tradição, esquecida pelas
letras latino-americanas, ressurge de maneira
excepcional no melancólico destino das per-
sonagens machadianas.
Transcedental
A fama do Quixote, porém, transcende a
leitura pontual, a invenção literária e a exege-
se apaixonada; mesmo quem nunca leu o ro-
mance é capaz de reconhecer toda uma série
de significações associadas com a errância do
Cavaleiro da Triste Figura e com o conjunto de
oposições que o une a seu escudeiro Sancho
Pança. Um adjetivo como “quixotesco”, que
surge como consequência do romance, mas
excede suas páginas, torna-se com o tempo
uma palavra comum para designar projetos
utópicos ou imaginários que interpelam e en-
tram em direto conflito com as postulações
do real. No pensamento ibero-americano, e
particularmente a partir do século 19, há toda
uma tradição que reivindica o sentido político
desse adjetivo. Influenciados pelas interpre-
tações de Miguel de Unamuno, que resgatam
o modelo do Quixote como emblema de crí-
tica e transformação social, muitos publicistas
e ideólogos espanhóis e latino-americanos
fundam revistas que desconfiam dos dogmas
e aspiram, por meio de sátira político-social,
a mudar a sociedade. Periódicos como San-
cho Panza (Madrid, 1863), Don Quijote (La
Habana, 1864), Don Quijote (México, 1919)
se multiplicam como instrumentos para dis-
cutir ideais nacionalistas e reformistas. Nessa
linha se inscrevem também duas publicações
criadas no Rio de Janeiro, Don Quijote, revista
104 valercultural
ilustrada fundada por Ângelo Agos-
tini (1895-1903), e sua homônima,
dirigida por Bastos Tigre (1917-
1927), que utilizam o mito quixotes-
co para questionar as contradições e
promessas da nascente República.
Para o Quixote de Agostini, a Dul-
cineia é a pátria brasileira, tão bela
e tão forte, pela qual está disposto
a lutar contra todos os inimigos em
prol do ideal de “mais civilização,
mais progresso, mais humanidade”.
Mas sabe que no seu caminho há,
como em La Mancha, penúrias e
desilusões, sintomas de uma época
de expectativas frustradas, que dão
lugar a um hiato cada vez maior en-
tre as aspirações de transformação
e as limitações da precária ordem
republicana. Um hiato que encon-
trará sua máxima expressão em
duas grandes epopeias da tristeza:
em Lima Barreto, no penoso fim das
inúteis iniciativas do funcionário pú-
blico Policarpo Quaresma (1915), e
no José Lins do Rego de Fogo Morto
(1943), na sombra do Capitão Vito-
rino, que cavalga solitário, falando
com ninguém, pelas imediações do
engenho de Santa Fé.
Esse Quixote, que com desvaira-
da obstinação combate inimigos re-
ais e imaginários, todos impossíveis
de vencer, perdura na memória po-
pular, como lembra Câmara Cascudo
ao estudar as influências hispânicas
no Nordeste, por meio da tradição
impressa ou oral de narrativas fa-
miliares, provérbios e refrões. Como
o pícaro ibérico, que luta pela sua
sobrevivência em condições sem-
pre adversas, e o gracioso do teatro
barroco espanhol, que ironiza va-
lores e usos com o instrumento da
sua lúcida loucura, o escudeiro tos-
co e prático e o cavaleiro andante
e insensato são figuras permanen-
temente parafraseadas nos folhetos
de cordel, nos desafios dos cantado-
res e nos autos populares. São tipos
heroicos e cômicos, provenientes
desse mundo ibérico e mediterrâ-
neo que oferecem o substrato e as
mitologias que conformam o proje-
to estético de Ariano Suassuna.
Vitoriosos fracassos
O Quixote e Sancho são também
tipos melancólicos, como aparecem
nos lânguidos desenhos de Porti-
nari comentados pelos versos de
Drummond; melancólicos porque
sabem que o único recurso possível
é continuar andando, mesmo quan-
do parece não haver sentido nem
ocasião. São tipos que fracassam,
como Pierre Menárd, o inverossímil
escritor simbolista francês sonhado
por Borges, que pretendia escrever
o Quixote para criar não apenas
uma cópia, mas algo “infinitamente
mais rico”, e mais ambíguo (por-
que a ambiguidade é uma riqueza,
como ensina o próprio Cervantes).
Ou como Macedonio Fernández, o
escritor argentino que escreve um
romance que consta de infinitos
prólogos e nunca começa (Museo
de la Novela de la Eterna, 1967).
Fracassam, mas sabem fazer des-
se fracasso uma espécie de vitória
que é mais duradoura e real que as
agruras da vida.
Talvez a grande presença de
Cervantes na literatura latino-ame-
ricana esteja justamente aí, nos vi-
toriosos fracassos que se revelam
nas páginas de um Machado, um
Lima Barreto, um Borges, um Mace-
donio, entre tantos outros. Filhos de
La Mancha, segundo afirma Carlos
Fuentes em “O Milagre de Assis”,
filhos de um mundo manchado, im-
puro, sincrético, barroco, corrupto,
animados pelo desejo de manchar
sob a condição de ser, de contagiar
sob a condição de assimilar, de
que as aparências se multipliquem
a fim de multiplicar o sentido das
coisas, contra a falsa consolidação
de uma leitura única, dogmática,
do mundo”. Autores que escrevem
com a missão de dilatar os espaços
da imaginação, a nossa, individual
e coletiva imaginação que, às ve-
zes, em épocas incertas como esta
e como todas na América Latina,
parece ser a única coisa que ainda
nos resta.
“ A fama do Quixote transcende a leitura pontual, a invenção literária
105valercultural
O poeta é um navegador solitário
do vasto mar do tempo e da
memória. É alguém que cons-
pira contra o esquecimento,
a negação da magia, o obscurecimento da
consciência. Não é outra a matéria utilizada
por Luiz Bacellar, em Frauta de Barro, para
elaborar seu discurso poético. A memória é
o repositório de onde recolhe as fraturas com
que compõe seu canto.
Frauta de Barro, seu livro de estreia, pu-
blicado em 1963, é um passeio pelo tempo,
um mergulho no passado, de onde recolhe a
matéria com que constrói sua poesia. Bacellar
é o arqueólogo de uma época subtraída, des-
troçada pelo destilar corrosivo dos dias, traga-
da pela voracidade do progresso (compulsório
nos trópicos).
Seu trabalho poético é o de um rapsodo
que preserva, através de seu canto, a memó-
ria de um tempo estiolado, desaparecido sob
a esteira da modernidade. O mundo de que
tenta remontar a face estilhaçada é a provín-
cia. Ao voltar-se para o passado, o poeta faz
a crítica do caráter desagregador, corrosivo do
progresso.
literatura
Tenório Telles | escritor
Uma rapsódia da memória
106 valercultural
Poesia orgânica
Frauta de Barro é um livro cheio de res-
sonâncias. Um caleidoscópio de formas poé-
ticas e temas. O livro possui uma arquitetura
interior, composta basicamente de sete par-
tes. Os blocos de poemas são constituídos de
“sequências de sonetos”, “os romanceiros”,
“os noturnos”, “os escorços” e os “poemas
dedicados”.
O nome da obra já é uma evidência das
preocupações temáticas do autor. Frauta de
Barro: “Frauta”, forma primitiva de flauta. “De
Barro”, a matéria de que é feito o instrumen-
to, afirmação de seu caráter substantivo. Sua
poesia é orgânica, plasmada de temas liga-
dos ao cotidiano popular, ao folclore.
Afirmação de seu talento poético, Bacellar
trabalha igualmente com formas e temas eru-
ditos, compondo textos perpassados por uma
densa carga existencial. A recorrência a pro-
cessos de composição mais formais, a uma
dicção poética clássica terá seu momento de
afirmação com a obra Quarteto (publicada
originalmente com o nome de Quatro Movi-
mentos, em 1975). O rigor e a elaboração da
linguagem são as marcas definidoras do livro.
Outro traço marcante em sua poesia, é
o musical. No primeiro soneto do “prólogo”,
que abre Frauta de Barro, o poeta descreve
como encontrou na infância seu “frio tubo
de argila”, sua frauta de barro, em que vai
“toscamente improvisando” as “estórias que”
narra. O livro é como se fosse uma sonata,
tocada por uma rústica frauta:
Em menino achei um dia
bem no fundo de um surrão
um frio tubo de argila
e fui feliz desde então;
rude e doce melodia
quando me pus a soprá-lo
jorrou límpida e tranquila
como água por um gargalo.
E mesmo que toda a gente
fique rindo, duvidando
destas estórias que narro,
não me importo: vou contente
toscamente improvisando
na minha frauta de barro.
É o tema recomeçado
na minha vária canção. Bacellar (1928-2012): a memória de um tempo estiolado
Foto: Ham
ilton Salgado
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O texto foi composto num dis-
curso poético fluido, perpassado
pela musicalidade. Vertido numa
linguagem vigorosa, límpida. Sim-
ples, despida de excessos formais.
Em Bacellar, a formalidade é antes
de tudo uma sutileza. Quanto ao
plano de estruturação dos versos, é
evidente a opção do autor pela re-
dondilha maior.
A leitura do primeiro terceto do
soneto de abertura é uma revelação
das preocupações temáticas de Ba-
cellar. A matéria de seu canto são
“estórias” que improvisará em sua
tosca frauta de barro.
Para retratar estas “estórias”,
nos temas de viés popular e fol-
clórico, o poeta utiliza-se de versos
de sete sílabas, usados nas canções
populares, remontando às cantigas
medievais portuguesas.
A despeito de seu caráter popu-
lar, a redondilha maior não aparece
apenas em criações populares e
canções. Camões fez uso dessa for-
ma de verso nas suas “redondilhas”.
A análise da estruturação das
estrofes do soneto revela uma par-
ticularidade dessa forma poética.
Compõe-se de cinco estrofes: dois
quartetos, dois tercetos e um dístico.
Bacellar rompe, nos três textos que
compõem o prólogo, com a forma
petrarquiana e mais tradicional do
soneto, de quatro estrofes. Acres-
centa mais dois versos, formando
assim uma quinta estrofe, a que se
chama esteticamente de estrambo-
te, ou cauda.
O soneto que apresenta essa es-
truturação estrófica, chama-se “so-
neto de estrambote”, ou de “cau-
da”. O “estrambote” pode ter de
um a três versos. Nos três sonetos
que compõem “variações sobre um
prólogo”, as estrofes acrescidas são
de dois versos, como pode ser ob-
servado no soneto de entrada: É o
tema recomeçado / na minha vária
canção.
Crítica ao tempo fugaz
O caráter agônico, elegíaco da
poesia de Luiz Bacellar talvez pos-
sa ser explicado pelo fato de seu
imaginário infantil, sua sensibili-
dade terem se sedimentado sob a
atmosfera perene de um mundo
provinciano, em que o tempo era
uma dimensão palpável da vida,
percebia-se o seu trotar silencioso.
Bacellar não é poeta desse
equívoco em que se transformou a
modernidade. Ao voltar-se para a
infância, para as reminiscências, faz
a crítica desse nosso tempo fugaz,
dessa conspiração contra a memó-
ria. O terceiro soneto da série “so-
bre um prólogo” é uma evidência
dessas preocupações do autor:
Nos longes da infância paro;
há uma inscrição sobre o muro:
Frauta clara, arroio escuro,
frauta escura, arroio claro.
E esse cavalo capenga?
E esse espelho espedaçado?
E a cabra? E o velho soldado?
E essa casa solarenga?
Tudo volta do monturo
da memória em rebuliço.
Mas tudo volta tão puro!...
E, mais puro que tudo isso,
essa anárquica inscrição
feita no muro a carvão.
São temas recomeçados
na minha vária canção.
Observe-se a atmosfera de
quase imobilidade que perpassa o
texto, os elementos temáticos do
poema: “cavalo capenga”, “espelho
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espedaçado”, “cabra”, “o velho sol-
dado”, “casa solarenga”, clara evi-
dência de um mundo provinciano,
em tudo diferente do que surgiu
com a vida moderna: veloz, baru-
lhento, de edifícios envidraçados,
carros, congestionamentos, em que
as distâncias se encurtaram, mas o
seres humanos estão mais distan-
ciados.
A busca narcísica
Bacellar, esse Narciso que busca
seu rosto no passado, é um poeta
que se mira na superfície líquida
da memória. Num esforço de re-
miniscência recupera os objetos,
as formas das coisas, as fachadas
das casas, as imagens que guarda
das pessoas, da cidade, suas vielas,
seus becos, os sons, as estórias que
povoaram sua infância.
Essas preocupações temáticas
são recorrentes em vários textos de
Frauta de Barro, como na série dos
três sonetos “provincianos”. A in-
fância é uma constante em seu dis-
curso, como se observa nos versos
finais do poema “Porta para o quin-
tal”: ...nos varais / a roupa brinca
de navio de velas / minha perdida
infância reinventando...
No soneto “Finis gentis meae”,
persistem as preocupações com o
passado, a consciência da voracida-
de do tempo, da brevidade da exis-
tência, sendo a memória o leito em
que os destroços, as lembranças são
depositadas:
Súbito chega a Tarde pressentida
a roçagar musgosos, carcomidos
muros; com a fímbria azul de
[seus vestidos
restaurando-os na grave
[despedida.
(...)
Os textos da série de “Sonetos
provincianos”: “Porta para o quintal”,
“Lavadeiras” e “Finis gentis meae”,
quanto ao aspecto formal, possuem
uma estrutura petrarquiana.
Quanto à metrificação, a estrutu-
ra não é fixa, os três sonetos pos-
suem versos com 10 sílabas poéti-
cas, coincidência de sons fortes na
sexta e décima sílabas, sendo, por-
tanto, decassílabos heroicos.
A leitura dos “Três noturnos mu-
nicipais”: “da Praça da Saudade”,
“do bairro dos Tocos”, “da rampa do
mercado”, atestam a permanência
de um discurso poético fundado na
subjetividade, plasmado por forte
carga existencial. A tecitura poética
“do noturno da rampa do mercado”
é enfronhada por uma atmosfera de
melancolia, nostálgica, como se de-
preende da leitura dos dois primei-
ros quartetos:
As luzes das barcaças sonham
[ventos
quando em águas propícias e
[serenas
no cansado ancorar brilham
[pequenas
em alvos lucilares cismarentos...
O rio e a noite expandem seus
[lamentos
Os mastros tristes são candeias
[plenas
de oleosas saudades e de penas
sirgando macilentos barlaventos...
O poeta descreve as “barcaças”
ancoradas à noite na “rampa do
mercado”, suas luzes tênues, so-
nhando “ventos”. O autor cria um
cenário triste, elegíaco, dominado
pelo rio e pelas trevas como pano
de fundo.
O noturno é uma “composição
musical de caráter melancólico, sim-
ples”. A utilização poética de formas
musicais por Bacellar evidencia a
importância da música em sua obra.
*Frauta de Barro possui uma es-
trutura e um discurso poético musi-
cal. Bacellar cumpre o desafio lan-
çado pelo poeta norte-americano
Ezra Pound: reconciliar a poesia com
a música. Como na antiga Grécia,
em que as composições eram feitas
para ser acompanhadas ao som da
lira. Compôs uma rapsódia da me-
mória, um cantar elegíaco para um
tempo desmoronado.
Como os velhos rapsodos gre-
gos, Luiz Bacellar tece seu cantar
nostálgico solado pelo som agres-
te de sua velha frauta de barro. É
preciso salvar o passado para não
perdermos o futuro. Afinal, é difícil
enfrentar o desconhecido, o impal-
pável sem que se conheça as velhas
rotas do tempo. A travessia se cum-
pre. E a velha frauta, bojuda de tan-
tos cantares, fez-se versos, poesia.
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