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UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ
Claudio Pizzeghello
FRAGMENTOS DE UMA HYSTORIA
CURITIBA
2010
Claudio Pizzeghello
FRAGMENTOS DE UMA HYSTORIA
Trabalho de Conclusão do Curso de Especialização em Psicologia Clínica, da Faculdade de Ciências Biológicas e de Saúde da Universidade Tuiuti do Paraná, como requisito parcial para a obtenção do título de Especialista em Psicologia Clínica. Orientador: Jorge Sesarino.
CURITIBA
2010
FRAGMENTOS DE UMA HYSTORIA
CURITIBA
2010
TERMO DE APROVAÇÃO
Claudio Pizzeghello
FRAGMENTOS DE UM HYSTORIA
Esta monografia foi julgada e aprovada para a obtenção do título de
Especialista em Psicologia Clínica no Programa de Pós-graduação da Universidade
Tuiuti do Paraná.
Curitiba, 23 de Junho de 2010.
Especialização em Psicologia Clínica
Universidade Tuiuti do Paraná
Orientador: ____________________________________
Prof. Dr. Jorge Sesarino – CRP 08/02367
Faculdade de Ciências Biológicas e da Saúde
____________________________________
Prof. Dra. Ângela Mara Silva Valore – CRP 08/01051
Faculdade de Ciências Biológicas e da Saúde
O meus sinceros agradecimentos aos professores do Curso de Especialização em Psicologia Clínica, da Faculdade de Ciências Biológicas e de Saúde da Universidade Tuiuti do Paraná: Ângela Mara Silva Valore, Dayse Stoklos Malucelli, Maria Cristina Antunes, Maria Otília Bento Holz, Saint-Clair Bahls e em especial ao Prof. Dr. Jorge Sesarino, que me orientou e me possibilitou um maior manejo da escuta do outro.
RESUMO
O propósito deste trabalho é refletir sobre o conflito psíquico em que se manifesta a neurose – especificamente a histeria –, sob a orientação da abordagem psicanalítica, baseada em Freud e Lacan. Como fontes, foram utilizadas as pesquisas bibliográficas, de autores psicanalíticos freudianos e lacanianos, e a escuta nos atendimentos em sessões de psicanálise em consultório. Este trabalho apresenta inúmeros relatos da paciente, sobretudo sobre as questões relacionadas à indefinição sexual, insatisfação com o estado geral de coisas, inclusive a insatisfação sexual, e o sofrimento corporal (histeria de conversão) com suas respectivas ligações com a teoria psicanalítica. Considerando a abrangência dos conceitos psicanalíticos este estudo limitou-se a expressar apenas alguns fragmentos da história de vida que foram escutados e naturalmente que puderam ser comunicados. Palavras-chave: psicanálise; neurose; histeria.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO......................................................................................................................7
1.1 JUSTITICATIVA.................................................................................................................8
1.2 OBJETIVOS .......................................................................................................................8
1.2.1 Objetivo geral..................................................................................................................8
1.2.2 Objetivos Específicos ....................................................................................................9
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA...................................................................................... 10
2.1 HISTERIA ........................................................................................................................ 10
2.1.1 Primeira teoria de Freud: representação psíquica patógena ............................... 11
2.1.2 Segunda teoria de Freud: a fantasia da sedução.................................................. 14
2.1.3 Da fantasia da castração à conversão histérica .................................................... 16
2.2 FEMINILIDADE............................................................................................................... 21
3 MÉTODO ............................................................................................................................ 25
4 HISTÓRICO DO CASO CLÍNICO .................................................................................. 26
5 DISCUSSÃO ...................................................................................................................... 28
6 CONCLUSÃO .................................................................................................................... 37
REFERÊNCIAS..................................................................................................................... 38
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1 INTRODUÇÃO
Este trabalho traz em seu bojo o tema histeria e foi elaborado a
partir dos conteúdos clínicos obtidos em sessões de atendimentos em
consultório, orientados pela abordagem psicanalítica.
O título escolhido - “Fragmentos de uma Hystoria” - retrata
exatamente o que foi possível cortar, recortar e costurar da história de vida da
paciente, através da escuta da fala da paciente. Hystoria com y é um
neologismo de Lacan que condensa história com hysteros de histeria, e
remete a história à interpretação.
No que diz respeito a sua organização e para melhor
compreensão do leitor, este trabalho é composto por seis partes. Na primeira
parte há uma breve introdução, a justificativa e os objetivos. Na segunda parte
abordo a fundamentação teórica psicanalítica sobre a histeria e a feminilidade.
Na terceira parte há a descrição do método utilizado, na quarta o histórico do
caso clínico. Na quinta parte localiza-se a discussão e na sexta parte a
conclusão.
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1.1 JUSTITICATIVA
Esta monografia é resultante da Prática Profissional de Psicologia
Clínica sob a forma de Estágio Supervisionado, parte integrante do currículo
obrigatório do Curso de Formação de Especialista em Psicologia Clínica, da
Universidade Tuiuti do Paraná.
Neste estágio, os alunos do Curso de Formação de Especialista em
Psicologia Clínica atendem pacientes inscritos na lista de espera da Clínica de
Psicologia da Universidade Tuiuti do Paraná e pacientes de clínicas
particulares, sob a supervisão direta de seu orientador.
1.2 OBJETIVOS
1.2.1 Objetivo geral
Elaborar teoricamente a questão da estrutura clínica da neurose –
especificamente a histeria – em um estudo de caso clínico real.
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1.2.2 Objetivos Específicos
• Refletir sobre o discurso histérico dos fragmentos da historia de uma
mulher que se submeteu a uma análise;
• Relatar o andamento do tratamento clínico de uma mulher.
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2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
2.1 HISTERIA
A histeria pode ser observada, segundo Nasio (1996), conforme o
ponto de vista do qual a contemplemos: o descritivo, a partir de sintomas
observáveis, e o relacional, caso em que a histeria se apresenta como vínculo
doentio do neurótico com outrem.
Do ponto de vista descritivo a histeria é uma neurose que se manifesta
à maneira de distúrbios diversificados e passageiros. Os mais clássicos são
os sintomas somáticos como as perturbações da motricidade (dificuldades na
marcha, paralisias faciais, etc.), distúrbios da sensibilidade (dores localizadas,
enxaquecas, etc.), distúrbios sensoriais (cegueira, surdez, etc.), afecções
específicas (insônias, amnésias, etc.). A maioria destes sintomas caracteriza-
se por serem transitórios e por não resultarem de nenhuma causa orgânica.
Outro traço clínico da histeria refere-se ao corpo compreendido como
sexuado, que se divide em parte genital (frigidez, aversão sexual, etc.) e
corpo não-genital, que aparece muito erotizado.
Do ponto de vista relacional, adotado pelo psicanalista, a histeria é
compreendida não apenas pelo estudo teórico da psicanálise, mas a partir da
experiência da transferência com o analisando, a partir da qual se reconhece
três estados, a saber: o de um eu insatisfeito, um eu histericizante e um eu
11
tristeza. Este assunto será abordado mais à frente no tópico “Da fantasia de
castração à conversão histérica”
Para a psicanálise, a histeria não é, como se costuma acreditar, uma doença que afeta um indivíduo, mas o estado doentio de uma relação humana que assujeita uma pessoa a outra. A histeria é, antes de mais nada, o nome que damos ao laço e aos nós que o neurótico tece em sua relação com os outros a partir de suas fantasias. Formulemos isso com clareza: o histérico, como qualquer sujeito neurótico, é aquele que, sem ter conhecimento disso, impõe na relação afetiva com o outro a lógica doentia de sua fantasia inconsciente. Uma fantasia em que ele desempenha o papel de uma vítima infeliz e constantemente insatisfeita. É precisamente esse estado fantasístico de insatisfação que marca e domina toda a vida do neurótico. (NASIO, 1991, p. 15).
2.1.1 Primeira teoria de Freud: representação psíquica patógena
A histeria, segundo Freud, teve origem nos primórdios da medicina, à
qual vinculava as neuroses ao aparelho sexual feminino. A compreensão da
histeria teve início com os trabalhos de Charcot, e com as posteriores
pesquisas de Freud.
“O nome “histeria” teve origem nos primórdios da medicina e resulta do
preconceito, superado somente nos dias atuais, que vincula as neuroses às
doenças do aparelho sexual feminino.” (FREUD, Vol I, 1988).
De acordo com Nasio, a primeira teoria de Freud dizia que a neurose
histérica era “provocada pela ação patogênica de uma representação
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psíquica, de uma idéia parasita não consciente e intensamente carregada de
afeto”. (NASIO, 1991, P. 25).
Influenciado por Charcot, Freud aceitou que a histeria era uma doença
por representação, porém, mais tarde, Freud se afastou dessa idéia e
imprimiu modificações em sua teoria, considerando que a idéia parasita,
causa do sintoma, era uma idéia de conteúdo sexual.
No início, Freud convenceu-se de que o doente histérico havia sofrido
uma experiência traumática de sedução sexual efetuada por um adulto, em
sua infância. Esse trauma era provocado pela violência do adulto e consistia
na superabundância de afeto sexual inconscientemente recebido, que levava
a um excesso de tensão inassimilável e errante e não conseguia descarregar-
se, ficando à deriva no interior do eu, sob a forma de intensa tensão,
produzindo desta forma os sintomas.
O elemento essencial do trauma era o vestígio psíquico acarretado
pela agressão do adulto. A causa da histeria era esse vestígio psíquico de um
trauma, uma imagem superinvestida de afeto, isolada, sob a forma de uma
representação inconsciente com grande carga de energia sexual e fonte de
uma dor intolerável para o eu. Não era sedução em si que atuava, mas a
representação do que era percebido na cena traumática.
(...) a escolha da sede somática da conversão é explicada, muito esquematicamente, segundo a seguinte seqüência: parte do corpo percebida na cena traumática (o braço, por exemplo) – imagem inconsciente de um braço – paralisia conversiva do braço. (NASIO, 1991, p.32).
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Segundo Freud, a neurose histérica é provocada pela inabilidade com
que o eu pretende neutralizar a representação sexual intolerável, pois quanto
mais o eu a ataca, mais ele a isola. A esta defesa do eu, Freud chamou de
recalcamento.
(...) O impulso essencial da histeria, portanto, consiste no conflito entre uma representação portadora de um excesso de afeto, por um lado, e por outro, uma defesa infeliz – o recalcamento – que torna a representação ainda mais virulenta. Quanto mais o recalcamento se encarniça contra a representação, mais ele a isola e a torna perigosa. Assim, o eu se esgota e se enfraquece num combate inútil, que produz o efeito inverso da meta buscada. (NASIO,1991, p.28).
A solução do conflito entre a representação sobrecarregada que
procura liberar seu excedente de energia e a pressão do recalcamento, que a
impede de descarregar essa sobrecarga, é chamada de solução de
compromisso e consiste no investimento de outras representações menos
perigosas e intoleráveis do que a primeira representação recalcada. A
sobrecarga de uma representação intolerável se desloca de um estado
primário (momento em que a sobrecarga investiu a cena traumática), para um
estado secundário (momento em que ela investiu uma representação
qualquer, que pertence ou ao pensamento, no caso da obsessão, ou ao
mundo externo, no caso da fobia, ou ao corpo, histeria).
A solução de compromisso no caso da histeria de conversão é a
mobilização da sobrecarga contornando o recalcamento num estado
secundário, onde investe uma representação qualquer pertencente ao corpo,
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solução essa precária, uma vez que provoca um sintoma neurótico como
sofrimento.
(...) A conversão é uma solução ruim porque não resolve a dificuldade principal que causa a histeria, a saber, o encerramento do excesso de carga energética num elemento isolado e desvinculado do conjunto, seja esse elemento uma representação psíquica ou uma zona corporal conversiva. (...). (NASIO, 1991, p.32).
2.1.2 Segunda teoria de Freud: a fantasia da sedução
A teoria da conversão, segundo Nasio (1991), continua atual, acima de
tudo quando se considera as modificações que Freud efetuou em 1900, época
em que apontou que a origem da histeria não é mais uma representação, mas
uma fantasia inconsciente e o que é convertido não é mais a sobrecarga da
representação, mas uma angústia fantasística. Essa foi a descoberta que fez
Freud abandonar a teoria do trauma real como origem da histeria.
(...) Frued considerou que já não era necessário, para explicar o aparecimento de um sintoma de conversão, descobrir um evento traumático real na história do paciente. A representação dolorosa já não precisava surgir de uma sedução sexual longínqua, praticada por um adulto. Bastava, agora, pensar numa infância, imaginar o desenvolvimento do nosso corpo pulsional e compreender que cada experiência vivida quando éramos crianças, no nível de diferentes zonas erógenas – boca, ânus, músculos, pele, olhos – tinha o valor exato de um trauma. Sem ter que sofrer uma experiência traumática real, desencadeada por um agente externo, o próprio
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eu infantil, ao longo de toda a sua maturação sexual, era a sede natural da eclosão espontânea e violenta de uma tensão excessiva denominada desejo. (NASIO, 1991, p.37).
Nesta acepção, trauma refere-se à idéia de um acontecimento
psíquico carregado de afeto, centrado numa região erógena do corpo e
consiste na ficção de uma cena traumática, a fantasia. Nas zonas erógenas
ocorre uma sexualidade excessiva, não-genital e auto-erótica submetida à
pressão do recalcamento.
(...) Segundo a primeira teoria o incidente traumático real da histeria consistia na ação perversa de um adulto sobre uma criança passiva, agora a perspectiva se inverte por completo: é o próprio corpo erógeno da criança que produz o evento psíquico, pois ele é o foco de uma sexualidade fervilhante, a sede do desejo. De um desejo que trás em si a idéia de que um dia possa realizar-se na satisfação de um gozo ilimitado e absoluto. (NASIO, 1991, p.38). Mesmo depois de considerar o corpo erógeno como produtor do evento traumático, a causa principal da histeria continua residindo na atividade inconsciente de uma representação superinvestida, mas agora o conteúdo dessa representação desenrola-se de acordo com um cenário chamado fantasia, que leva em conta uma zona corporal altamente investida sendo fonte de angústia. O que é relevante agora é buscar, por trás do sintoma, uma fantasia angustiante e não mais um acontecimento traumático datável na história do paciente. (...) podemos afirmar que angústia da fantasia se transforma num estado perturbado da vida sexual do histérico, num estado de sofrimento devido a uma erotização geral do corpo, paradoxalmente acompanhado por uma inibição concentrada no nível da zona genital. A conversão global da angústia leva, pois a um contraste espantoso: um corpo globalmente erotizado coexiste dolorosamente com uma zona genital anestesiada. (NASIO, 1991, p.44).
A teoria freudiana da conversão foi renovada, uma vez que se passou
à reflexão de uma fantasia inconsciente e não mais de uma representação
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(imagem de uma parte do corpo superinvestida de energia), e em termos de
angústia e não mais em termos de excesso de energia.
2.1.3 Da fantasia da castração à conversão histérica
A teoria sexual infantil atribui a todos os seres humanos um falo
universal, portanto, a menina considera que todos têm falo e que um dia o seu
vai crescer.
A fantasia fundadora da histeria feminina está relacionada à angústia
de castração diante da ameaça que significa a mãe castrada e resume-se na
cena em que a menina (na fase fálica) descobre visualmente o corpo da mãe,
percebendo que ela é castrada. Essa parte que falta à mãe não é o pênis,
mas a ficção de um pênis poderoso, que a psicanálise conceitua como falo.
Tomada de uma intensa vontade de ter o falo que lhe falta, a menina vivência
um ódio reivindicatório em relação à mãe e a julga responsável por tê-la feito
menina e por não ter lhe garantido uma força fálica. A angústia resultante
disso é inconsciente por estar submetida ao recalcamento e converte-se em
sofrimento da vida sexual, ou seja, ocorre uma erotização global do corpo em
contrapartida a uma inibição da zona genital.
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Passado por esta angústia de perder o falo, o histérico confunde-se
em relação à sua identidade sexual, não sabe se é homem ou mulher e essa
indeterminação faz com que ele se apegue mais ainda ao seu falo,
aumentando a angústia e transformando-a em sofrimento. Mas o histérico
tenta resolver essa angústia através do mecanismo conversivo da angústia da
castração, que afeta a totalidade do corpo e a região genital, ou seja, ocorre
uma transferência da angústia de castração para o corpo não-genital
(falicização do corpo não-genital) e a retirada do interesse do corpo genital.
Para estabelecer o mecanismo de conversão, que transforma a
angústia histérica em sofrimento corporal, Nasio compara esse mecanismo a
um movimento de vasos comunicantes em que toda energia fálica encontra
uma saída:
(...) a libido fálica contida num vaso – que seria a fantasia inconsciente de castração – escoa para um outro vaso, representado pelo corpo real e sofredor do histérico. Acumulada até então no nível do falo fantas ístico, a libido deixa sua fonte central e, pouco a pouco, vai falicizando o corpo real, ou seja, difunde-se por todas as partes do corpo, com a exceção pontual da chamada zona genital. Enquanto, no inconsciente, o corpo se condensava, reduzindo-se a ser apenas o falo, agora, na realidade, é todo o corpo real do histérico que se vê invadido pelo fenômeno da falicização. Assim o corpo real torna-se um corpo que sobre pose ser um imenso falo. (...) (NASIO, 1991, p. 57).
A zona genital torna-se desinvestida de afeto (o vaginismo e a frigidez
são exemplos de distúrbios característicos da vida sexual da histérica) e o
corpo não-genital organiza-se como um poderoso falo que o outro castrado
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não tem. Um falo que vive sua sexualidade pelo corpo todo, ignorando a
sexualidade genital e produzindo sofrimentos.
(...) A zona genital torna-se, assim, um corpo esvaziado e desinvestido de afeto, enquanto o corpo não-genital se excita e se organiza como um falo poderoso, lugar de veneração narcísica, objeto de todas as seduções, mas também sede de múltiplos sofrimentos. O corpo não-genital se converte no falo em que o histérico se transforma: ele é o falo. Vemos claramente que, para o histérico, ter o falo é, na realidade, sê-lo. Mas que falo é esse? Justamente o que faltava à mãe, ao Outro castrado na fantasia de castração. Agora podemos compreender de onde vem o sofrimento do vivido pelo histérico. O sujeito sofre por sido transformado no falo de que o Outro é castrado. Ele é o que o Outro não tem; e isso incomoda. É que esse excesso de narcisismo, esse falicismo difundido pelo corpo, constitui um tal excesso que, mesmo que proporcione ao sujeito o sentimento de existir, isso se dá ao preço da dor de estar constantemente submetido às solicitações do mais anódino dos estímulos provenientes do mundo externo. Um leve sussurro, o roçar banal de um tecido, a menor inflexão de uma voz ou um simples olhar são captados pelo histérico-falo como estímulos sexuais ininterruptamente renovados. À maneira de um sexo que se esgotasse querendo responder às excitações, mas sem nunca descarregar, o histérico permanece libidinalmente perturbado: ele é um corpo-falo que sofre pelo excesso de narcisismo e pela genitalidade zero. Vive sua sexualidade pelo corpo todo, exceto onde deveria vivê-la. (...) (NASIO, 1991, p. 60).
Voltemos as estados do eu histérico, citados no início deste texto. Um
deles é o eu insatisfeito. Em sua fantasia inconsciente o histérico
desempenha o papel da vítima e está sempre insatisfeito, porque isso atenua
a sua angústia e o protege do perigo de viver a satisfação de um gozo, o que
o faria desaparecer.
(...) O histérico deseja estar insatisfeito porque a insatisfação lhe garante a inviolabilidade fundamental de seu ser. Quanto mais insatisfeito ele é, mais fica protegido da ameaça de um gozo que ele percebe como um risco de desintegração e loucura. (NASIO, 1991, p. 46).
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Para afastar a ameaça de um gozo que poderia desintegrá-lo, o
histérico inventa inconscientemente um cenário de fantasias para provar a si
mesmo que só existe gozo insatisfeito, cirando um Outro ora forte, ora fraco, e
desproporcional às suas expectativas.
(...) quer se trate do poder do outro ou a falha no outro, seja com o Outro de sua fantasia ou com o outro de sua realidade, é sempre a insatisfação que o eu histérico faz questão de encontrar como sua melhor guardiã. O mundo da neurose, povoado de pesadelos, obstáculos e conflitos, torna-se assim a única barreira protetora contra o perigo absoluto do gozo. (NASIO, 1991, p. 16).
O estado do eu histericizante é aquele em que o sujeito sexualiza o
que não é sexual, seja um gesto, uma palavra, até um silêncio que percebe
no outro ou que se dirija a ele. Esse sexualizar não é no sentido vulgar,
pornográfico, mas no sentido de fantasias sensuais.
(...) Histericizar é erotizar uma expressão humana, seja ela qual for, embora, por si só, intimamente, ela não seja de natureza sexual. É exatamente isso que faz o histérico: com toda a inocência, sem saber ele sexualiza o que não é sexual; (...). (NASIO, 1991, p. 17).
O estado do eu tristeza corresponde à incerteza do histérico em
relação à sua identidade sexual. O histérico pode se identificar até com a
insatisfação que aflige, por exemplo, um casal. Nestes momentos de tristeza é
possível perceber a identificação com o sofrimento, ele já não é homem ou
mulher, mas a dor da insatisfação. “(...) E com essa dor, fica na
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impossibilidade de se dizer homem ou mulher, de afirmar, muito
simplesmente, a identidade de seu sexo. (...)” (NASIO, 1991, p. 19).
(...) è muito freqüente constatar o quanto o sujeito adota, com surpreendente desenvoltura, tanto o papel de homem quanto o de mulher, mas, principalmente, o papel do terceiro personagem através de quem o conflito surge ou, ao contrário, graças a quem o conflito é aplacado. Quer o histérico desencadeie o conflito ou o elimine, seja ele homem ou mulher, ele ocupa invariavelmente o papel do excluído. É justamente o fato de ser rejeitado para esse lugar de excluído que explica a tristeza que tão freqüentemente acabrunha os histéricos. (...) a face da histeria num tratamento analítico – e além dele, em qualquer relação com outrem – apresenta-se com uma ligação insatisfatória, erotizante e triste, inteiramente polarizada em torno da recusa tenaz a gozar. (NASIO, 1991, p. 19-20).
Nasio parte da hipótese de que a escuta e a interpretação do
psicanalista funciona como um conjunto de representações. O psicanalista faz
o papel de um eu que acolhe a representação irreconhecível que o eu
histérico recalcou, neutralizando, assim, a sobrecarga mórbida, facilitando que
ela seja distribuída entre o conjunto de suas próprias representações.
(...) A escuta do analista integra e dissipa aquilo que o histérico recalca e concentra (...) O fato de um sintoma adquirir valor simbólico e ter uma possibilidade de desaparecer significa que a representação irreconciliável de que esse sintoma é substituído pode ser integrada no sistema de representações da escuta analítica, e eu sua sobrecarga pode ser disseminada. (...). (NASIO, 1991, p. 34).
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2.2 FEMINILIDADE
No texto “Sexualidade Feminina” (Freud, 1931), Freud escreve que no
complexo de Édipo normal, a criança liga-se ao genitor do sexo oposto,
mantendo hostil o seu relacionamento com o genitor do próprio sexo,
entretanto, não há paralelismo nítido entre o desenvolvimento sexual
masculino e feminino.
Para o menino, o seu primeiro objeto de amor foi a mãe e continua
sendo, com aprofundamento dos seus desejos eróticos e com melhor
compreensão das relações entre o pai e a mãe, quando se estabelece que o
pai é seu rival.
Já com as meninas, o primeiro objeto de amor também foi a mãe,
entretanto, há o desligamento da mãe e é encontrado o caminho em direção
ao pai.
O Complexo de Édipo é o núcleo das neuroses. Segundo Freud, “Os
neuróticos, porém, não chegam absolutamente a nenhuma solução: o filho
permanece por toda vida subjugado à autoridade do pai e é incapaz de
transferir sua libido a um objeto sexual externo. Com o relacionamento
modificado, o mesmo destino pode esperar a filha. Nesse sentido o complexo
de Édipo justificadamente pode ser considerado o núcleo das neuroses.”
(Freud, 1916-1917, p. 340 - 341).
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A bissexualidade dos seres humanos aflora mais nas mulheres do que
nos homens, uma vez que, o homem possui apenas uma zona sexual
principal – o pênis –, enquanto a mulher possui duas: a vagina e o clitóris,
semelhantemente ao órgão masculino. Para a mulher a vida sexual é dividida
em duas fases, a primeira possui um caráter masculino e a segunda é
especificamente feminina, havendo uma transição de uma fase para a outra.
Paralelamente existe outra diferença entre ass crianças do sexo
anatômico masculino e feminino. Para o homem, a mãe é o seu primeiro
objeto de amor, pelo fato de alimentá-lo e cuidar dele, até que encontre
alguém que a substitua, ao passo que para a mulher, a mãe também exerce
as mesmas funções, entretanto, ao final do desenvolvimento dela, o pai deve
se tornar o novo objeto de amor.
Com o desenvolvimento da mulher, quando há a transição da fase
masculina para a feminina, deve haver a mudança do sexo do objeto, da mãe
para o pai.
Apenas em relação ao menino encontra-se a situação de amor por um
objeto e ódio por outro (pai). É a partir da descoberta da castração que se
impõe a transformação do complexo de Édipo que conduz à criação do
superego, quando o agente paterno é internalizado. Já na menina, há o
reconhecimento da castração, da superioridade imaginária do homem e da
sua própria inferioridade, ms ela se coloca contra esse estado de coisas. A
partir daí abrem-se três possibilidades de desenvolvimento: a primeira é a
renúncia à sua sexualidade, uma vez que assustada pela comparação com os
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meninos, cresce insatisfeita com o seu clitóris, abandonando a sua
sexualidade. A segunda a leva a uma auto-afirmação em relação a sua
masculinidade, onde busca conseguir um pênis, tornando-se o objetivo de sua
vida e a fantasia de ser homem prevalece. Tal complexo de masculinidade
pode resultar numa escola de objeto homossexual manifesta. Na terceira, a
mulher atingirá a atitude feminina final, tomando o pai como objeto,
encontrando a forma feminina do complexo de Édipo, constituindo o resultado
final de um desenvolvimento muito demorado, o que freqüentemente nunca é
superado pela mulher e resulta em conseqüências menores e menos
importantes.
A fase pré-edipiana da mulher é de uma importância maior do que a
dos homens, já que vários fenômenos da vida sexual feminina podem ser
explicados, em referência a essa fase. Poe exemplo, muitas mulheres
escolhem o marido conforme o modelo do pai, ou o colocam em seu lugar,
sendo que em algumas situações torna-se o herdeiro do relacionamento dela
com a mãe, quando há impressão que se ocupam por uma luta com seus
maridos, tal como na luta com suas mães, o que pode ser explicado como um
caso de regressão. A atitude hostil para com a mãe se origina numa fase
anterior a do complexo de Édipo – pré-edipiana –, quando ocorre o desmame,
sendo reforçada e explorada na fase edipiana.
Inúmeros fatores implicam nesse afastamento em relação à mãe, que
era um objeto amado, e são determinados pelas circunstâncias da
sexualidade infantil em geral. O ciúme de outras pessoas é o mais
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determinante, já que o amor infantil é possessivo, exige a exclusividade,
porém não tem objetivo, sendo incapaz de obter a satisfação completa. Mas
tarde, na vida madura, a falta de satisfação completa pode favorecer um
resultado diferente. Outro fator diz respeito ao complexo de castração sobre a
menina, que não tem pênis, onde há três caminhos de escolha:
a) o que leva a cessação de toda vida sexual;
b) o que leva a uma desafiadora superenfatização de sua
masculinidade;
c) os primeiros passos no sentido da feminilidade definitiva. Quando
da descoberta da própria deficiência – um ser castrado –, a menina atém-se
à expectativa de ter um órgão genital do mesmo tipo e por um longo período,
que vai além da expiração de tê-lo. No início, a menina encara a castração
como algo muito particular a seu corpo, só mais tarde compreendendo que
outras crianças e até mesmo adultos têm a mesma deficiência, e então a
feminilidade – e sua mãe – sofre uma grande depreciação a seus olhos.
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3 MÉTODO
Para a realização do trabalho e satisfação dos objetivos foram
efetuados atendimentos clínicos com uma jovem mulher de vinte e três anos,
inicialmente casada, mãe um filho de três anos, que atuava como estagiária
em uma construtora e estudante do Curso de Administração de Empresas, a
qual me referirei doravante, sempre que possível, como Y.
Os atendimentos foram realizados em consultório particular, no
período compreendido entre Junho de 2008 e Outubro de 2009, sendo que
entre Fevereiro de 2009 e Julho de 2009 o tratamento fora interrompido, a
pedido de Y, em função de atividades acadêmicas do último semestre letivo
da graduação, perfazendo o total de trinta de duas sessões semanais.
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4 HISTÓRICO DO CASO CLÍNICO
A paciente trouxe como queixa a sua insatisfação com o estado geral
da sua vida. Desde a insatisfação no âmbito sexual, passando pela
insatisfação com o trabalho do marido, que possuía uma lan house, passando
também pela falta de atenção do marido, na condição de pai para com o filho,
não fixando as regras que a paciente julgava corretas para a criação do filho,
tais como permitir que o filho se alimentasse apenas com biscoitos, doces e
chocolates.
Nas entrevistas iniciais foi possível investigar aspectos da vida
cotidiana da paciente de uma forma muito satisfatória, ou seja, a paciente
colaborou bastante com muitos detalhes pormenorizados, entretanto, sabe-se
que a pessoa com conflitos não apresenta imediatamente tudo o que a
preocupa, considera alguns fatos da sua vida como já superados ou que não
tem nada a ver com o que acontece e restringe sua fala ao que considera que
pode ou deve comunicar.
A paciente teve o seu primeiro relacionamento estável, entre os quinze
e dezenove anos.
Após o término desse relacionamento a paciente fora apresentada por
sua avó materna a um rapaz de aproximadamente vinte e cinco anos. Deu-se
início a um novo relacionamento, transformando-se em casamento. Segundo
a paciente a última relação sexual que tivera, fora há ano e meio atrás por
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falta de interesse por par te do marido, que a considerava fora de forma após o
nascimento do filho.
No decorrer do tratamento a paciente começa a frequentar casas
noturnas (danceterias) e conhece um homem de trinta e um anos e, após
alguns encontros, teve relações sexuais com o mesmo. Ainda no mesmo
ambiente conhece outros dois homens e inicia também relações sexuais com
os mesmos, sendo que um deles viria a ser tornar o seu namorado.
Nesta trajetória a paciente decidiu oficializar a separação do marido e
muda-se, juntamente com o filho, para um apartamento cedido por sua mãe.
A partir daí o namoro é oficializado e passam a ter um convívio diário.
A paciente relata, novamente, episódios de sua insatisfação sexual,
pois afirma que o namorado é muito “comportado”.
Em Fevereiro de 2009 a paciente me comunica que tomou a decisão
de se afastar, temporariamente, do tratamento e justificou que era necessário
para a conclusão do trabalho acadêmico. Em Agosto de 2009 a paciente
retoma o tratamento.
No re-início a paciente relata situações de falta de reconhecimento do
seu trabalho, por parte dos donos da construtora, e solicita o desligamento do
emprego. Um novo período de insatisfação se instala e novas dívidas
financeiras são assumidas.
28
5 DISCUSSÃO
O objetivo dessa discussão é buscar a articulação de alguns
fragmentos da história da paciente, obtidos através da escuta psicanalítica de
sessões consideradas relevantes, por demonstrarem algumas características
da estrutura da neurose – especificamente a histeria – a saber: insatisfação e
sofrimento corporal (histeria de conversão).
Ao longo das entrevistas preliminares e durante as sessões iniciais a
paciente relatou que havia tido, até então, dois relacionamentos com homens.
O primeiro aos quinze anos de idade com um rapaz de dezoito anos,
relacionamento este que durou quatro anos e com uma gravidez indesejada e
interrompida. O segundo ocorreu logo após, aproximadamente três semanas
depois do rompimento do primeiro, que logo se tornou muito intenso
socialmente, com vários passeios e jantares, e sob forte influência das
famílias, pois a paciente fora apresentada a um neto de uma amiga de sua
avó materna.
Desde o início do namoro, o casal se relacionava sexualmente, de
forma esporádica, e na quinta relação sexual, com aproximadamente três
meses de namoro, a paciente ficara grávida. O casal, em comum acordo, e
contando com o apoio das famílias decidiu manter o curso normal da
29
gravidez. O desejo de ter um filho se concretizava, a busca por um falo
avançava, falo este privado pela mãe.
Segundo Freud (1933, p. 126), “A descoberta de que é castrada
representa um marco decisivo no crescimento da menina. Daí partem três
linhas de desenvolvimento possíveis: uma conduz à inibição sexual ou à
neurose, outra, à modificação do caráter no sentido de um complexo de
masculinidade, a terceira, finalmente, à feminilidade normal.”.
Na primeira linha, a menina, devido à sua inveja do pênis, renuncia à
satisfação masturbatória derivada do clitóris. Coloca-se numa posição
inferiorizada até constatar que a mãe também é castrada, o que torna
possível abandoná-la como objeto e volta seu amor para o pai, como tentativa
de possuir o pênis recusado pela mãe, entretanto, a situação feminina
somente ocorre se tal desejo for substituído por um filho.
Na segunda linha, há o desenvolvimento de um forte complexo de
masculinidade, pois a menina se recusa a reconhecer a castração, evitando a
passividade rumo à feminilidade. Cabe aqui uma breve reprodução de um
trecho do texto de Freud (1933, p. 115) quanto à passividade: “(...) quando
dizem ‘masculino’, os senhores geralmente querem dizer ‘ativo’, e quando
dizem ‘feminino’, geralmente querem dizer ‘passivo’. Ora é verdade que existe
uma relação desse tipo. A célula sexual masculina á ativamente móvel e sai
em busca da célula feminina, e esta, o óvulo, é imóvel e espera
passivamente.”.
A terceira linha é o da feminilidade normal.
30
Ao longo do trabalho psicanalítico foi identificado que a escolha da
paciente se deu em função da primeira linha de desenvolvimento, ou seja,
inibição sexual ou neurose mesmo tendo o filho em substituição à perda do
falo.
Retomando aos relatos da paciente, o casal decide pela formalização
do relacionamento (casamento civil) e a avó do companheiro compra um
apartamento para o casal.
Decorridos os primeiros meses de compartilhamento do mesmo teto,
todas as expectativas da paciente tornaram-se frustradas no que diz respeito
ao relacionamento. Uma gama imensa de expectativas domésticas não se
cumpriu. Segundo a paciente, ela mesma teve que mobiliar o quarto do filho,
pois o marido sempre “a enrolava e não comprava nada”, assim como uma
simples troca de lâmpada queimada do quarto do filho era ela quem fazia.
Numa determinada sessão a paciente se questiona sobre a sua
definição sexual, já que era ela quem assumia, muitas vezes o papel de
“homem da casa”, que se preocupava com “coisas que homem deve fazer”.
Em outra sessão a paciente traz mais questões sobre o papel do
marido, pois “ele tem carro, ele podia muito bem fazer as compras para a
casa, ou pelos menos podia ir me pegar no mercado... mas nem isso... eu
sem carro tenho que voltar de táxi com um monte de compras...”. Foi
perguntado à paciente o motivo pelo qual ela não ia ao mercado com o carro
do marido e ela respondeu que “não vou porque não tenho carteira de
motorista”.
31
Durante a gravidez, que ocorrera sem risco, e mesmo após o
nascimento do filho, o marido, segundo a paciente, não a procurava
regularmente para satisfazê-la sexualmente. A paciente relata que esperava
que o casal mantivesse pelo menos uma relação sexual por semana, o que
não ocorria. Entretanto, quando o marido a procurava para manter relações
sexuais, ela relata que “já não era a mesma emoção, pois sinto dores na hora
de transar com ele”. Um indicativo de um dos tipos de inibições durante o ato
sexual, a aversão sexual.
Para Nasio (1991), “(...) podemos afirmar que a angústia da fantasia
se transforma num estado perturbado da vida sexual do histérico, num estado
se sofrimento devido a uma erotização geral do corpo, paradoxalmente
acompanhado por uma inibição concentrada no nível da zona genital.”.
Sem a satisfação sexual, sem o interesse do marido pelas
manutenções domésticas básicas, a paciente se manifesta mais insatisfeita
com o estado geral das coisas de sua vida.
A paciente se coloca no papel de vítima e está sempre insatisfeita, o
que possibilita atenuar a sua angústia, evitando desta forma alcançar o perigo
de vivenciar a satisfação que ela percebe como aniquilação e loucura.
Na seqüência, a paciente relata que o marido deixou um emprego
formal (empregado sob as regras da CLT) e decidiu abrir uma lan house,
como empreendedor, onde trabalharia nos períodos da tarde e noite. Fora
feito um acordo entre o casal de tal forma que no período da manhã o marido
cuidaria do filho, na ocasião com um ano e meio de vida, para que a paciente
32
prosseguisse na sua graduação. Novos conflitos surgiram dessa situação,
onde, segundo a paciente, o marido não cuidava direito do filho, oferecendo
biscoitos, doces e chocolates em barra no café da manhã da criança, ao invés
de pão e café com leite, além de deixar a casa toda desarrumada com as
brincadeiras promovidas entre ambos. “Sempre sobra pra mim” referindo-se à
arrumação, posteriormente, da casa.
No decorrer do tratamento a paciente declara que ela própria preferia
alimentar-se de biscoitos, doces e chocolates, pois não apreciava preparar as
refeições já que “dava muito trabalho cozinhar e depois ter que lavar a louça
toda”. Com relação à manutenção da ordem da casa a paciente também se
posicionou como: “só arrumo mesmo e limpo a casa porque eventualmente
recebemos visitas e não pega bem ter a casa bagunçada”.
Segundo Freud (1905, p. 43), “(...) um rosário de censuras a outras
pessoas leva-nos a suspeitar da existência de um rosário de autocensuras de
conteúdo idêntico. Basta que se volte cada censura isolada para a própria
pessoa do falante. Há algo de inegavelmente automático nessa maneira de
defender-se de uma autocensura dirigindo a mesma censura contra outrem.”.
Decorridos dois anos e meio do nascimento do filho a paciente foi
contratada para atuar como estagiária em uma construtora e então matricula o
filho em uma escola infantil para que possa cumprir o estágio no período da
tarde. Já no primeiro semestre a escola demonstra, segundo a paciente,
negligência nos cuidados com o seu filho, de tal forma que pequenas
escoriações no corpo da criança foram percebidas pela paciente. Questionada
33
sobre a gravidade das escoriações, a paciente responde que “é pequena, mas
a escola tem que ter o cuidado”. A rotina do período da manhã do filho
também fora alterada, possibilitando desta forma que, segundo a paciente, o
filho recebesse melhores cuidados e atenção. Através de um acordo com uma
tia paterna da paciente ficara estabelecido que a criança passaria as manhãs,
onde receberia as refeições.
Nesse mesmo período, afirma a paciente, as relações sexuais do
casal cessaram completamente. Questionada sobre as razões da interrupção
das relações sexuais, a paciente diz que: “ele me achava gorda e não queria
transar com uma gorda”. Do início desta nova postura do casal – não ter
relações sexuais – até o relato da paciente, um ano e meio havia se passado.
O grau de insatisfação da paciente estava crescendo a cada dia que
passava, seja, porque a irmã e a mãe não lhe pagam o que deviam, seja
pelas atitudes do marido que “passa as manhãs fumando um cigarro e outro
de maconha” alternadamente. Com relação às dívidas da irmã e da mãe,
tratava-se de compras, que vinham se acumulando meses a fio, efetuadas em
lojas de roupas e em grandes magazines, com a utilização do cartão de
crédito da paciente, já que ambas (irmã e mãe) estavam impossibilitadas de
ter cartão de crédito.
Y relata também que foi procurar um médico para identificar a (s)
causa (s) de um dor recorrente em suas pernas e procedeu também, sob
orientação médica um exame chamado ecografia dos membros inferiores.
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Após receber o resultado do exame e voltar ao consultório médico recebeu o
diagnóstico de que nada irregular acontecia com as suas pernas.
Segundo Freud
(...) as fantasias inconscientes são os precursores psíquicos imediatos de toda uma série de sintomas histéricos. Estes nada mais são do que fantasia inconscientes exteriorizadas por meio de ‘conversão’; quando os sintomas são somáticos, com freqüência são retirados do círculo das mesmas sensações sexuais e inervações motoras que originalmente acompanham as fantasias quando ainda eram inconscientes. Assim é anulada a renúncia ao hábito da masturbação e atingindo o propósito de todo o processo patológico, que é o restabelecimento da satisfação sexual primária original – embora nunca, é verdade, de forma completa, mas numa espécie de aproximação. (FREUD,1906-1908, p. 151)
Novas sessões ocorrem e as queixas dirigidas ao analista persistem
até que em uma determinada sessão, Y chega esboçando grande felicidade,
quando anuncia, já no início da sessão: “fiquei com o P.” e quando
questionada o que significava ‘ficar’, a paciente, sorrindo, diz: “transei muito...
foi muito bom... bom demais”. A paciente, ainda ‘casada’ com o marido,
anunciava que “consegui um homem de verdade...”, o que se pode traduzir
para “consegui um falo de verdade...”. Nos dias seguintes àquela sessão a
paciente, que conheceu P. em uma danceteria, teria mais algumas relações
sexuais com este homem e então cessaria o relacionamento, alegando que
havia se estabelecido uma rotina indesejada.
A partir do momento de ruptura, a paciente continua a freqüentar bares
noturnos e danceterias e conhece um rapaz, o R, que ela também ‘fica’. Ficar
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aqui representa, na definição de Y, “dar uns beijos e uns “amassos” dentro do
carro”.
Paralelamente a este ‘ficar’ a paciente conhece outro rapaz na mesma
danceteria, o A., inicia um novo relacionamento com ele. Desde o primeiro
encontro Y passa a manter relações sexuais com o rapaz. A partir do terceiro
encontro a questão da prevenção de DST e gravidez cai por terra e o casal
passa a manter relações sexuais sem o uso do preservativo, mesmo que
tenha uma preocupação no dia seguinte, no período fértil, de ingestão da
pílula do dia seguinte. Vale ressaltar que se estabelece, rapidamente, um
senso de confiança mútua entre o casal, pois a preocupação é evitar uma
gravidez indesejada apenas.
Concomitantemente, a paciente anuncia a dissolução de seu
casamento e muda-se, juntamente com o seu filho, para um apartamento
cedido pela mãe.
O caso amoroso entre a paciente e o rapaz A. transforma-se em
namoro, e com isso A. passa a freqüentar o apartamento de Y, inclusive
dormindo durante a semana no apartamento. A paciente afirma “que foi
melhor assim, pois ele sendo meu namorado, minha mãe não pode falar
nada...”
Outra característica daquele período, diz respeito aos dias de finais de
semana, quando a paciente passa a ‘viver’ no apartamento em que A. reside
com os pais.
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A paciente volta a apresentar queixas, inclusive sobre a insatisfação
sexual, pois reporta que “o meu namorado é muito bom, atencioso, romântico,
bonito, mas ta faltando uma pegada melhor na cama...”. Quando solicitada
para definir exatamente o termo ‘pegada’, a paciente afirma que: “ter pegada
é fazer um sexo mais ativo, mais forte”. Y relata também que A. é pouco
preocupado com as preliminares e que ela sente muita falta disso.
Outra razão da insatisfação da paciente diz respeito aos dias em que o
namorado dorme em seu apartamento, pois em tais dias ela tem que fazer o
jantar, o que para a paciente representa um sacrifício, conforme dito
anteriormente, pois além de cozinhar precisa também efetuar a limpeza dos
utensílios.
A paciente a partir do seu sentimento de perda, de ter sido
desaparelhada por não possuir o falo, sente-se lesada e surgem a infindáveis
reivindicações histéricas, que ao longo do atendimento puderam ser
identificadas através do embate em que trava com seus companheiros
(marido, amante, namorado) e com o próprio analista, colocando abertamente
os sintomas como enigma a ser decifrado por esse outro.
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6 CONCLUSÃO
A proposta deste trabalho foi apresentar, mesmo que parcialmente, a
história de vida de uma jovem mulher, que através da clínica psicanalítica
pode comunicar a sua angústia e o seu sofrimento psíquico, sendo que,
naturalmente, a paciente buscava justamente atenuar tal sofrimento.
A jovem mulher trouxe inúmeras queixas sobre a sua insatisfação
sexual que por mais que se esforçava conscientemente na escolha de
parceiros que lhe pareciam ótimos amantes, bons homens, atenciosos, gentis,
nem de longe lhe garantiam a sua plena satisfação. Apenas durante o
tratamento a paciente se envolveu com quatro homens distintos, na tentativa
de suas infindáveis reivindicações histéricas pudessem eliminar a sua falta.
Partindo do seu sentimento de ter sido lesada, a histérica se coloca como
traída, pelo falo e por quem não lhe garantiu tal falo.
É verdade que me vejo impossibilitado de esclarecer satisfatoriamente
a origem do quadro de neurose – especificamente a histeria – apresentado
pela paciente, em virtude da incompletude da análise, portanto, me permiti
apresentar aqui apenas uma parte do material de investigação psicanalítica.
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Faz-se necessário aqui, destacar que a estrutura da neurose –
especificamente a histeria - é muito mais do que o até então escrito.
Fica ainda muito para pesquisar.
Espero que tenha podido dar uma idéia, mesmo que excessivamente
resumida, da estrutura da neurose – especificamente a histeria –.
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Imago, 1996.
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