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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM NILMA MACHADO CARVALHO A MEMÓRIA DA SOLIDÃO E DO TÉDIO NAS PERSONAGENS FEMININAS DA NOVELA MEMÓRIAS DE LETICIA VALLE, DE ROSA CHACEL CUIABÁ-MT 2009

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM

NILMA MACHADO CARVALHO

A MEMÓRIA DA SOLIDÃO E DO TÉDIO NAS PERSONAGENS FEMININAS DA NOVELA MEMÓRIAS DE LETICIA VALLE , DE

ROSA CHACEL

CUIABÁ-MT 2009

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C257m Carvalho, Nilma Machado. A memória da solidão e do tédio nas personagens femininas da obra: “Memórias de Letícia Valle” de Rosa Chacel. / Nilma Machado Carvalho – Cuiabá (MT): A Autora, 2009. 85 p.; 30 cm. Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagem). Universidade Federal de Mato Grosso. Instituto de Linguagens. Área de concentração: Estudos Literários.

Orientador: Profª. Drª. Rhina Landos Martínez André. Inclui bibliografia.

1. Literatura Espanhola. 2. Rosa Chacel. 3. Memórias. 4. Personagem Feminina. I. Título. CDU: 821.134.2-055.2

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NILMA MACHADO CARVALHO

A MEMÓRIA DA SOLIDÃO E DO TÉDIO NAS PERSONAGENS FEMININAS DA NOVELA MEMÓRIAS DE LETICIA VALLE , DE

ROSA CHACEL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Estudos de Linguagem, sob a orientação da professora Drª. Rhina Landos Martínez André.

CUIABÁ-MT

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À Maria Abadia, Felipe e Flávia, meus

filhos e mãe, pela compreensão

incondicional.

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AGRADECIMENTOS

Ao término deste trabalho e depois dessa caminhada, às vezes solitária e

árdua, gostaria de agradecer às pessoas que, de alguma forma, trilharam comigo esse

caminho, dando-me força e vontade para prosseguir.

À Profª. Drª. Rhina Landos Martínez André, minha orientadora, pela sua

paciência às minhas dificuldades como pesquisadora iniciante e por ter acreditado na

minha capacidade acadêmica.

À Profª Drª Sheila Dias Maciel e à Profª. Drª. Adja Balbino pela leitura e as

considerações apresentadas ao meu trabalho no momento da qualificação, período

decisivo para mim.

À Profª. Ms. Soraia Lima que fez a correção deste trabalho com carinho e

dedicação, e a quem eu tenho grande afeição e amizade.

À Universidade Federal de Mato Grosso que exerceu seu papel social,

contribuindo sempre para pesquisas no país, aprimorando a ciência e a cultura do

Brasil.

Ao Estado de Mato Grosso que por meio da FAPEMAT, concedeu-me uma

bolsa no período de 01/07/2008 a 30/09/2009.

Ao corpo docente do Programa de Mestrado – MeEL da UFMT, pelas

disciplinas ministradas, que foram importantes fontes de pesquisa para este estudo,

em especial à Profª. Drª Maria Rosa Petroni, por ser insistente ao solicitar à bolsa que

tanto precisava.

Aos meus filhos Felipe e Flávia e minha mãe Abadia que compreenderam a

necessidade que tive de ausentar-me de casa por longo período e, pela força que

deram-me para conquistar mais um grau de conhecimento.

Agradeço, em especial, a minhas irmãs e primas, que foram importantes para

que eu pudesse descontrair-me quando vinha um bloqueio e eu não conseguia

escrever: Niva, Nelci, Nivany, Norma, Tati, Cida, Zânia.

Ao Maurio pelo carinho e paciência prestados nos momentos estressantes em

que eu precisava desabafar dada a dificuldade encontrada.

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Aos amigos que de alguma forma leram e opinaram sobre a pesquisa,

ajudando-me encontrar um norte: meu amigo Renato Augusto e Lena Monteiro.

Agradeço ao Moacir que me ajudou econômica e espiritualmente durante o

período em que fiquei aguardando a bolsa.

Aos colegas de disciplinas pelas conversas que davam sensação de alívio, pois

a angústia, às vezes, se fazia presente.

Enfim a Deus que me deu saúde, força e vontade para buscar e realizar o

desejo de aprender cada vez mais.

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RESUMO

Neste estudo, investigamos, na obra Memórias de Letícia Valle de Rosa Chacel, a

solidão e o tédio que aprisionam as mulheres de uma pequena cidade espanhola,

resultando em sequelas psico-sociais que se vivem no período de pós-guerra civil

espanhol. Partimos da análise das recordações configuradas pela memorialista – um

recurso singular da autora para mostrar a interioridade feminina – subsidiados pelos

estudos teóricos elaborados por Ana Caballé em Narcisos de tinta, quem nos

proporcionou uma visão mais precisa da memória como estética literária. Entendendo

que a memória somente é possível a partir do outro com quem conversamos, em

Halbwachs e sua Memória coletiva, bem como em Le Goff em História e memória,

entre outros, encontramos suporte teórico. Para compreender a função e a

preservação da memória como aspecto intrínseco ao ser humano, investigamos os

escritos de Gusdorf, Les Écritures de Moi, que propõe ser a memória a possibilidade

de reflexão e mudança. O estado de solidão e tédio vividos pelas mulheres, de

maneira peculiar pela protagonista Letícia, considerando os aspectos existencialistas

presentes que dificultam a interação social, foram elucidados com a leitura de

Svendsen em Filosofía do tédio, com Kierkegaard em O desespero humano e Sartre

com O ser e a nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Cândido, Aguiar e Silva e

Núñez Puente contribuíram na análise literária da protagonista. Como conclusão,

observamos que nessa novela materializa-se uma convivência de interação entre

ficção e realidade social, metonimizando problemas da existência humana em

momentos de repressão social.

Palavras-chave: Literatura Espanhola, Rosa Chacel, Memórias, Personagem feminina.

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ABSTRACT

This study investigates, in the work ‘Memories of Leticia Valle’ de Rosa Chacel,

loneliness and boredom that trap women in a small Spanish town, resulting psycho-

social consequences that are living in post-civil war. Part of the review of records set by

memoirist – a singular resource of the author to show the inner female – supported by

theoretical studies prepared by Ana Caballé Daffodils in ink, provided us a more

accurate idea of memory as literary aesthetics. Considering that the memory is only

possible from the other who spoke on Halbwachs and its Collective memory, as well as

Le Goff in History and memory, among others, find theoretical support. To understand

the function and the preservation of memory as intrinsic to the human being, we

investigated the writings of Gusdorf, Les Écritures de Moi, who proposes to be a

memory and the possibility of reflection and change. The state of loneliness and

boredom experienced by women, in different ways by the protagonist Letícia,

considering the present existentialist issues that hinder social interaction, were

elucidated with the reading of Svendsen in of boredom with Kierkegaard in The human

despair and Sartre with The being and nothing': test phenomenological ontology.

Cândido, Aguiar e Silva and Núñez Puente contributed in the literary analysis of the

protagonist. In conclusion, we observed that in this novel a familiarity of interaction

materializes between fiction and social reality, representing problems of the human

existence in times of social repression.

Keywords : Spanish Literature, Rosa Chacel, Memories, Female Character.

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RESUMEN

En este estudio investigamos en la obra Memorias de Leticia Valle de Rosa Chacel,

la soledad y el tedio que aprisiona a las mujeres de una pequeña ciudad española

como resultado de las secuelas psico-sociales que se viven en el periodo de pos-

guerra civil. Partimos del análisis de los recuerdos configurados por la memorialista

– un recurso singular de la autora para mostrar la interioridad femenina –

subsidiados con los principios teóricos elaborados por Ana Caballé en Narcisos de

tinta, quien nos proporcionó una visión más precisa de la memoria como estética

literaria. Entendiendo que la memoria solamente es posible a partir del otro con

quien conversamos, en Halbwachs y su Memoria colectiva, bien como en Le Goff

en Historia e memoria, entre otros, encontramos el soporte teórico. Para

comprender la función y la preservación de la memoria como aspecto intrínseco al

ser humano, investigamos en los escritos de Gusdorf, Les Écritures de Moi, que

propone ser la memoria la posibilidad de reflexión y cambio. El estado de soledad y

tedio vividos por las mujeres, y de manera peculiar por la protagonista Leticia,

considerando los aspectos existencialistas presentes que dificultan la interacción

social, fueron elucidados con la lectura de Svendsen en Filosofía do tédio, con

Kierkegaard en O desespero humano y Sartre con O ser e a nada: ensaio de

ontologia fenomenológica. Cândido, Aguiar e Silva y Núñez Puente contribuyeron

en el análisis literario de las protagonistas. Como conclusión observamos que en

esa novela se materializa una convivencia de interacción entre ficción y realidad

social metonimizando problemas de la existencia humana en momentos de

represión social.

Palabras-clave : Literatura Española, Rosa Chacel, Memorias, personajes femeninos.

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SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS.....................................................................................................v

RESUMO......................................................................................................................vii

ABSTRACT..................................................................................................................viii

RESUMEN....................................................................................................................ix

Introdução......................................................................................................................1

Capitulo 01: A memória inscreve o homem no tempo..................................................6

1.1- Confissões – desvendamento do Eu.............................................................11 1.2- Diários íntimos e a fugacidade temporal.......................................................14 1.3- Memórias: um gênero em evidência..............................................................18

1.3.1- Memórias como estética literária.....................................................................20

1.3.2- Memórias e trauma .........................................................................................27

Capitulo 02: A memória da solidão e do tédio na narrativa feminina do

pós-guerra espanhol ...................................................................................................29

2.1. Considerações sobre o conceito histórico-filosófico de solidão e

Tédio........................................................................................................................... 29

2.2. O tema exílio na escrita feminina de memórias ...........................................33

2.3. Rosa Chacel: uma singular memorialista......................................................36

2.3.1. A desumanização orteguiana em Rosa Chacel...................................40

2.4. Um breve resumo de Memórias de Letícia Valle .........................................43

Capítulo 03: O devir nas memórias de Letícia ............................................................45

3.1- Adentrando as memórias .............................................................................45

3.2- O universo feminino nas memórias de Letícia..............................................54

3.3- As marcas singulares da escrita de memórias em Memórias de

Letícia Valle..................................................................................................................60

3.4- A personagem Letícia Valle: representação do real.....................................66

Considerações finais....................................................................................................74

REFERÊNCIAS............................................................................................................79

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Introdução

Quando entramos em contato com a história do universo feminino

espanhol do século XX, observamos que não existe muita diferença em relação

à história das mulheres de outras épocas e de outros lugares, distantes e

próximos. O papel desempenhado tem sido de silenciamento e marginalização

por ser uma fronteira imposta pela cultura masculina. Mas, é justamente nesse

século que a mulher, de vários pontos do planeta, problematizou o discurso

Amo1, os feminismos e os formalismos, o universo branco ocidental e

heterossexual, para abordar a diversidade e a pluralidade.

O universo feminino como força política transgrediu radicalmente os

paradigmas e contribuiu para erradicar as distinções entre cultura popular e alta

cultura. As mulheres não ficaram indiferentes às tribulações humanas, às

desventuras e privações que afligiam a sociedade e particularmente a elas.

Será esse o caminho que seguirão as muitas escritoras espanholas

Concepción Arenal, Rosalía de Castro, Rosa Chacel, entre outras, lutando por

mudanças nas estruturas sociais. Com elas, fazendo comparações com o

presente, podemos aprender sobre as concepções do feminismo

contemporâneo. Claro que encontraremos uma variedade de posições. Seu

papel tradicional de costureiras, cabeleireiras, enfermeiras ou prostitutas aos

poucos vai se modificando para ocupar um espaço antes limitado aos homens.

A literatura culmina com uma explosão de vozes femininas em quase

todos os âmbitos da cultura. Muitas delas como anarquistas, falangistas,

socialistas, republicanas, enfim políticas por opção própria. A cultura se

enriquece com o novo discurso feminino, com um novo estilo político e

discursivo que se afirmou depois da Guerra Civil Espanhola e da segunda

grande guerra. Os artigos sobre a exploração capitalista, a violência física

militar e a violência psicológica são a referência direta desse feminismo

batalhador.

1 Refere-se ao discurso masculino socialmente estabelecido.

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A história do universo feminino e sua representação na literatura nos

traslada ao passado para entender o presente da literatura escrita por mulheres

em que se conjugam feridas, alegrias, dores e medo. Conhecer e analisar o

escrito deixa a descoberto as estratégias que a mulher usou para se defender

das afiadas garras das aves de rapina e das instituições caducas, bem como

deixam o registro dos mecanismos usados para apagar as vozes dos

oponentes políticos. Diversas tendências literárias surgem para mostrar a

rebeldia, o inconformismo, a ansiedade, a angústia e a solidão como marcas de

um mundo cotidiano desumanizado. A expressão literária da angústia e da

solidão será especialmente visível na forma de autobiografias, memórias,

ensaios ou diários íntimos.

Não podemos esquecer que as imagens profundas deixadas pelo nefasto

período de pós-guerra espanhol se guardam ainda na memória coletiva do

povo espanhol de diversas e múltiplas manifestações artísticas. A literatura,

duplamente escondida entre o exílio e o interior, viveu anos de busca. A

expressão dos problemas existenciais e religiosos ocupava um lugar de

primeira ordem nas gerações imediatas e se converterá numa veia notável

influenciada pela literatura européia de entre-guerras. O ódio, a repressão, a

censura, a fome, o isolamento internacional e as prisões injustas agravarão a

crise econômica, a vida cultural, inclusive o conflito relacionado à fé religiosa.

As filosofias existencialistas encaminham suas abordagens proclamando que a

essência do homem se reduz a sua existência: o homem está jogado no

mundo, sem razão, aguardando a morte. Kierkegaard, Sartre e outros filósofos

abordarão as causas do absurdo da existência pelo absurdo do mundo, em

caos permanente. Rosa Chacel foi uma dessas mulheres que experienciaram

na carne o exílio, a exclusão, a rejeição e a solidão.

Tomando como ponto de partida a história do universo feminino espanhol

e as sequelas que o regime franquista provocou, este trabalho analisa a

vertente memorialista de Rosa Chacel, na obra Memórias de Letícia Valle,

(1945), com o intuito de investigar o tédio e a solidão como marcas do conflito

existencial instalado nas personagens femininas dessa novela. Rosa Chacel, a

partir do gênero memórias, desvenda com singularidade os aspectos

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particulares do universo feminino em seu cotidiano. Através da protagonista

Letícia, a romancista delineia e denuncia a reclusão da mulher no lar.

A personagem protagonista metonimiza a atmosfera da solidão e do

tédio nas mulheres submersas no ambiente doméstico, vendo transcorrer o

tempo, sem nenhuma perspectiva de vida social ou cultural. As personagens

femininas da obra parecem sucumbir ante a vida. Só a jovem protagonista

tenta suprir fora de sua casa a carência de afeto e de comunicação precárias

na sua família.

Ressaltando a condição da mulher, Chacel, nos coloca diante de sua

realidade como escritora e mulher nos tempos do pós-guerra espanhol. Em sua

produção romanesca, Chacel, escreveu e analisou esse universo, refletindo e

apontando soluções mais igualitárias para a relação homem mulher. Segundo

ela, a condição humana deveria evoluir para o transcendental.

Chacel teve uma vasta produção no exílio. Boa parte de suas novelas,

além de tratar pontualmente da temática feminina, trata também do ser humano

como agente em constante evolução. Sua elaboração estética permite olhar a

mulher mais de perto neste momento do século XXI em que a discussão sobre

gêneros está em voga. A reflexão é importante porque na atualidade, a mulher

ainda é discriminada e, na maioria das vezes, não tem voz ativa, sua vida, em

muitos casos, presta-se a conviver consigo mesma, como o romance a

demonstra.

A novela em questão apresenta as memórias de uma menina de onze

anos, Letícia Valle, que retoma reflexões sobre sua convivência com mulheres

na pequena Simancas, em Espanha. Nas memórias, a protagonista revela seu

estado solitário e tedioso e, acima de tudo, suas inquietações, que não

consegue entender por que se sente tão só e isolada.

Sobre o gênero memórias, os pesquisadores Caballé (1995), Halbwachs

(1950) e Güsdorf (1991) entre outros, são unânimes em considerar tal gênero

um recurso que recupera um momento vivido a ser contado, partindo de uma

coletividade envolvida que apresenta repúdio ao que ficou marcado por

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questões de repressão política, violência, luta, dor, em determinado contexto

sócio-histórico.

Objetivando oferecer um testemunho convincente ao leitor, o memorialista

deve traduzir experiências conscientes; seu olhar deve permanecer nos fatos

externos e buscar revivê-los, ressaltando o que mais lhe significou. Sob esse

ponto de vista, buscará momentos de sua existência, muitas vezes com o

intuito de entender certas lacunas que ficaram obscurecidas e assim terá

condições de tentar ver o presente e mudá-lo.

Tentando encontrar as explicações necessárias desde o ponto de vista

histórico e estético a esse objetivo geral proposto, este trabalho está

organizado em três capítulos. No capítulo 01 abordamos os gêneros que tratam

da literatura do eu, confissões, diários íntimos e memórias. A este último

gênero demos mais ênfase por ser nosso marco principal, assim fizemos uma

retomada histórica, concluindo com as teorias atuais.

No capítulo 02 abordamos os temas tédio e solidão, partindo para

considerações filosóficas, que acreditamos ser pressuposto indispensável à

análise da novela propriamente dita. Apresentamos um panorama do contexto

histórico da Guerra Civil Espanhola e do pós-guerra, momento em que Chacel

viveu. Ainda neste capítulo, expusemos alguns momentos da vida da autora,

incluindo uma parte de sua trajetória literária. Chacel é uma escritora relevante

dentro da literatura espanhola e, por que não dizer, universal. Ao ser exilada

viveu em vários países, inclusive no Brasil. Sua criação literária, no dizer de

alguns críticos, é perpassada por uma técnica singular e percebe o ser humano

com um olhar mais aguçado, de uma forma mais abrangente. Além de

romancista, foi uma intelectual que pesquisou sobre o fazer literário, o que

salientamos nesse capítulo.

No capítulo 03 analisamos as personagens femininas da novela em

estudo, dando maior atenção à memorialista/protagonista por ser ela a

narradora de suas memórias. A partir do olhar minucioso de uma menina com

uma maturidade psicológica acentuada, observamos a condição de vida da

mulher espanhola. Além de analisar as marcas discursivas do texto de

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memórias, considerando a fragmentação, o isolamento, o tédio e a solidão que

perseguem as mulheres e a protagonista no presente da narração.

Através das memórias de Letícia Valle, Chacel problematiza a violência

velada sofrida pela mulher, que se sente solitária e entediada, remetendo-nos,

assim, a seu próprio exílio.

A análise tem como suporte teórico autores como Weintraub, Zambrano,

Chacel, Benjamim na discussão sobre o registro por meio da arte a partir da

literatura do Eu; Caballé, Halbwachs, Güsdorf, Le Goff, Ecléa Bosi, entre

outros, para as discussões sobre o gênero memórias. Utilizamos Tussel,

Zavala, Peñalosa, Martín Gaite, Rodriguez-Fischer, Svendsen, Kierkegaard,

Sartre, Ortega y Gasset, entre outros, para as discussões sobre o contexto

histórico espanhol e a filosofia do tédio e da solidão. Esses autores nos deram

subsídios para compreendermos a vida e a obra de Chacel, bem como a

protagonista feminina na obra. Cândido, Aguiar e Silva, Dal Farra e Massaud

Moisés foram nossos pressupostos para analisar a novela na perspectiva

literária.

Assim, toda gama ora levantada contribui para divulgar a utilidade das

memórias no viés literário, porque apresenta-nos um contexto social, político,

histórico e cultural para entender melhor a obra e a autora.

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Capítulo 01

1. A memória inscreve o homem no tempo

A necessidade de registrar o que acontece com o homem está presente na

herança deixada antes mesmo de ele inventar a escrita. As pesquisas sobre as

pinturas rupestres evidenciam os primeiros traços deixados pelo homem primitivo

como forma de representação de seu momento de vida aqui na terra. O homem pré-

histórico ao criar e fabricar instrumentos para sua sobrevivência, além de adquirir certo

conforto ao ambiente de convivência a priori, trouxe com esses utensílios as

manifestações que se materializariam posteriormente na arte. A partir dessas criações

necessárias à sua vida, o homem percebe que os instrumentos também poderiam ser

usados para outros fins, como a construção do conhecimento, por conta disso ele cria

imagens, esculturas e sons, ou seja, as primeiras manifestações artísticas,

colaborando para a história da humanidade e especificamente para o registro

consentido à arte de modo geral. No livro Teoria da Literatura “Revisitada”, 2005, as

pesquisadoras Gonçalves e Bellodi apresentam um panorama da literatura universal

em que explanam sinteticamente as origens da arte na humanidade e por que ela

surge. Logo no prefácio dizem que as primeiras manifestações têm como objetivo o

representar:

nossos ancestrais pré-históricos pintavam essas figuras acreditando que, dessa forma, adquiriam uma espécie de poder sobre as representações. Pintando animais poderiam assumir, sobre eles, poder e, consequentemente, caçá-los com sucesso. (Gonçalves e Bellodi, 2005: 15)

A arte, grosso modo, nasce da vontade dos humanos de tentar representar e

entender as intempéries da vida. Dessa forma, o registro se mostrou uma condição

indispensável para que o homem revisse o que fora vivido em determinada época. Na

verdade, a arte sempre esteve presente na vida do homem desde os tempos

primordiais. As pesquisas antropológicas têm mostrado o processo de construção

social feito por esses primeiros habitantes; além de permitir sabermos a estrutura

social criada por eles, permite-nos também saber sobre o seu lado criativo, verificado

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nas imagens, esculturas etc., deixadas por eles. O ensaio disponível na Revista

Filosofia Capital, 2006, e escrito pela pesquisadora Júlia de Holanda, corrobora nossa

discussão, ela é firme ao apresentar em seu estudo intitulado Fora da arte não há

salvação, que “A criatividade artística nasce (...) do estado de constante insatisfação e

de contínua opção de luta que o homem trava para levar adiante a sua própria

existência” (Holanda, 2006: 4)

Ainda sobre tal discussão, Benjamin (1980: 5) nos coloca a par de suas

considerações, apresentando um breve levantamento sobre a obra de arte,

apontando-nos os caminhos da arte na história de vida do homem. Ao iniciar seu

ensaio, Benjamin vai até as origens para detectar como era a produção existente

inicialmente. Para ele a arte “foi sempre suscetível de reprodução” (Id, p. 5). De acordo

com essa visão, o que um homem fazia poderia ser “refeito por outros” (Id. Ib.), a

técnica configurada era a reprodução, portanto, por motivos variados, a aprendizagem

se dava a partir da cópia dos artistas. Essa técnica “nasceu e se desenvolveu no curso

da história mediante saltos sucessivos” (Id. Ib), contudo, era uma técnica moderna. No

seu levantamento, Benjamin faz muito sucintamente o percurso histórico que a obra de

arte percorreu desde o entalhamento de gravura em madeira até a descoberta da

tipografia, momento em que o homem se inscreve na história não mais por técnicas

reprodutivas, mas com a litografia “as técnicas de reprodução marcaram um progresso

decisivo” (Id. Ib). Isso permitiu que o homem popularizasse a arte, dando-lhe

condições de evoluir no sentido de poder produzir diariamente, fazendo com que ele

se inscrevesse na história, por meio das inscrições de suas experiências vividas ora

singular, ora coletivamente no curso da temporalidade humana.

A cultura greco-romana, por exemplo, deixou um cabedal de registros da sua

existência na terra. O conhecimento e a evolução do saber que o homem clássico

apreendeu foi essencial para que, hoje, tenhamos informações daquele povo tão além

de sua época. A herança deixada é relevante para que compreendamos os

sentimentos expressados por eles nas obras de arte.

O conhecimento popular, mais especificamente dos gregos, postulava a vida

cotidiana da civilização ocidental como uma experiência coletiva, de modo que as

relações humanas eram de interesse social. A busca pelo bem-estar deveria atingir a

todos. Tal empresa, de alguma forma, era representada nas artes. Exemplos disso são

os heróis que lutavam pela coletividade como Ulisses e Aquiles, entre outros.

Com esses exemplos queremos apontar para o desenvolvimento do processo

de criação artística que essas sociedades produziram, mas que pelo processo

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dialético social entraram num período de estagnação, pois com o advento do

capitalismo e a decadência dos ideais franceses, o herói mudou de postura. Ele não

está mais a serviço da coletividade e, na modernidade, passa a ser criado a partir do

homem comum com todas as problemáticas da existência que fazem com que ele se

volte a si mesmo, e em alguns casos, não se reconheça como um ser coletivo e sim

individual.

Esse indivíduo vai, em muitos momentos, entrar em contradição com ele

mesmo e com o outro. Pois, o que lhe estava assegurado outrora na coletividade,

agora não está mais e por isso ele sofre constantes crises existenciais. Será, então,

este novo homem a matéria prima que a literatura vai utilizar nos romances realistas e

naturalistas que tratam mais dos espaços sociais criados pela burguesia. Diante da

nova situação, o individuo estará representado no romance psicológico. E tal romance

mostrará que é preciso lidar com as mudanças do momento, assim este homem em

conflito será o novo herói, tentando lidar com sua individualidade. Essa nova

manifestação romanesca, o registro moderno, agora partirá do indivíduo solitário,

escrevendo normalmente em primeira pessoa sobre seus dramas, traumas e conflitos.

Nasce, então, uma literatura intimista que propicia ao homem o espaço para

que ele possa confessar suas angústias, relatar suas experiências, rever-se no seu dia

a dia. A literatura autobiográfica e a memorialista entre outras, são a ferramenta

necessária para configurar gêneros que tratam do Eu.

O pesquisador Karl J. Weintraub, em seu artigo intitulado Autobiografia y

conciencia histórica (1991:18), discorre sobre os gêneros autobiográficos e afins como

memórias, diários íntimos e auto-retratos que se constituíram em gêneros catárticos

para o homem exteriorizar seus conflitos e dialogar consigo e com os outros. A

literatura, então, torna-se um espaço de fuga em que esse ser solitário encontra para

se refugiar e por meio dele contar aos demais seus problemas individuais que nem

sempre o são. Na verdade, é a tentativa de mostrar para a sociedade suas angústias.

Nesse sentido, a autobiografia, a memória e outros subgêneros como confissões e

diários íntimos foram imprescindíveis para que o homem compreendesse mais a sua

existência, partindo da narração do Eu.

O ensaísta citado concebe a vida como um fato biográfico e não biológico

como a ciência o tem apresentado. O homem não tem natureza e sim história e se

constitui a partir do registro dela. Isso é, a partir do momento que o homem consegue

rever sua história e sua condição de vida, compreende a si e os demais, além disso,

busca por justiça e igualdade. (p. 23)

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Weintraub (1991:25) observa que historicamente o homem teve sua construção

baseada no tempo, ajudando o mundo a ser formado de maneira a preservar esse

elemento de contingência, imprescindível para que o indivíduo se enxergasse dentro

da cultura, libertando-se das injunções apenas coletivas, experimentando o ato de

liberdade dentro da linha cultural e histórica que o envolve. Dessa forma, o viver em

sociedade lhe assegura a condição humana, porém, no seu íntimo, o homem

necessita registrar, de alguma forma, suas angústias ou seus feitos. Ele precisa deixar

sua história de vida para que nela possa haver uma identificação com os outros seres

que o rodeiam.

Por viver em sociedade, muitas vezes o ser humano tem sua individualidade

apagada em detrimento da coletividade, quando, por exemplo, ideologicamente o

Estado torna-se o gerente de sua identidade com o objetivo de controlar as

manifestações que porventura possam surgir nos momentos de desgosto social.

Nasce daí a necessidade de buscar a sua essência individual, pois “(...) todos sentem

que parte de suas experiências são íntimas, que mais ninguém tem acesso a elas.”

(Figueiredo, 1991:16). E uma das muitas possibilidades de lutar para perceber-se

humano está no ato de falar de si mesmo, partindo do ponto de vista do sublime, para

ressaltar um fato grandioso, mas também para evidenciar um fato que deixou marcas

e o que se sente necessidade de relatar, relembrar e compartilhar com seu

semelhante. Sobre a necessidade de entender o individual, o pesquisador Figueiredo

aponta que acontecimentos como

as grandes irrupções da experiência subjetiva privatizada em situações de crise social quando uma tradição cultural (valores, normas e costumes) é contestada e surgem novas formas de vida. Em situações como estas, os homens se vêem obrigados a tomar decisões para as quais não conseguem apoio na sociedade. Nestas épocas, as artes e a literatura revelam a existência de homens mais solitários e indecisos do que em épocas nas quais dominam as velhas tradições e não existem graves conflitos. (Figueiredo, 1991:17-18)

Observamos no exposto que as grandes situações que levam o indivíduo a se

questionar e questionar o sistema social para obter mudanças de valores e normas,

são molas propulsoras para alavancar a ação por parte da população que, via de

regra, ao lutar pelos anseios da coletividade, tenta sair da condição de isolamento,

promovendo a resistência que nem sempre atinge o poderio do Estado. Podemos

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afirmar, então, que as formas de resistência são variadas e os gêneros literários

intimistas dão suporte às vozes que, em muitos casos, são silenciadas.

Para considerar a escrita dos gêneros mencionados é interessante tecer

considerações sobre o Eu, isso é, a individualidade. Há uma grande dificuldade em

entender o indivíduo, entender aqui no sentido de perceber a existência primordial.

Perguntas como “quem eu sou” e “O que sou” não foram resolvidas, porque o homem

ainda está em busca de sua origem e, consequentemente, de si mesmo. Nesse

sentido, a coletividade coloca todos os seres num mesmo patamar e nunca considera

as diferenças por mais gritantes que sejam. No entanto, essas diferenças, mesmo que

sutis, são as marcas da individualidade; em espécie o ser humano pode ser igual,

porém na particularidade é possível perceber que o homem é distinto e único.

Weintraub (1991:28) considera as pessoas como seres incomparáveis, irrepetíveis,

indescritíveis e inefáveis.

A literatura intimista eclode com o passar do tempo, o homem acredita em sua

individualidade, aliás, é isso que o faz sentir-se humano. Precisa ser fiel a si mesmo e

deve tomar as decisões sobre sua vida de acordo com o necessário para o próprio eu.

(Id, p. 28)

Na inquietude de se encontrar, o indivíduo busca recursos que lhe ofereçam

ajuda para tal, assim ele envereda pelos caminhos da literatura que serve de

ferramenta para que a liberdade de expressão seja configurada quando se tem

vontade de elaborar as crises existenciais no espaço e no tempo. Por tal motivo, a

literatura denominada de literatura do Eu ganhou fôlego, atraindo adeptos que se

identificaram com ela pela possibilidade de falar de si mesmos. A história evidencia o

crescimento de tal literatura aproximadamente nos séculos XVIII – XIX, auge do

Romantismo. No entanto, a discussão sobre a individualidade surgiu desde o

Renascimento, porque o homem começa a voltar para si mesmo e a questionar sua

própria existência, tentando encontrar repostas às suas angústias e seus dramas. Por

conta disso, é que em busca de si, o ser humano faz uso dos gêneros intimistas.

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1.1- Confissões – desvendamento do Eu

Publicadas no século IV, As Confissões colocam Santo Agostinho como um dos

primeiros a desvelar sua própria interioridade e foram importantes para que ele

revelasse seus conflitos e apresentasse uma visão particular voltada exatamente para

o eu interior em desacordo com o exterior, dando condições de ter uma visão de si. O

gênero confissões, apesar de se inscrever nos limites da autobiografia, tem caráter

predeterminado no conteúdo e no próprio título da obra de confissão. Além de fazer

uso do narrador de primeira pessoa, não está obrigatoriamente preso à temporalidade,

pois sua principal característica está no registro da experiência projetada, voltado para

a alma na tentativa de extrapolar o que se deseja confessar.

Além de Santo Agostinho, Rousseau com seus escritos em forma de confissões

também teve seu êxito. Sua proposta de refletir sobre o homem foi conseguida e

ademais Rousseau é um exemplo nítido de que o homem necessita explanar seus

tormentos mais ínfimos e dividi-los com o outro por se tratar de seres de natureza

humana e não o contrário, como querem alguns. A literatura confessional como a

autobiografia, memórias, diários, auto-retratos e confissões “puede tener una función

muy especial en la elucidación de la historia y puede además ayudarnos a entender la

vida como um proceso continuo.” (Weintraub, 1991: 26)

Em La confesión: género literario, (2004), Zambrano nos apresenta uma

discussão bastante rica em relação ao gênero confissões. Sobre as questões

levantadas, ela tenta apontar algumas particularidades do texto de confissões,

buscando criar uma teoria para o gênero. Suas primeiras considerações partem da

necessidade que o homem tem de falar e escrever sobre si mesmo. “No escribe

ciertamente por necesidades literarias, sino por necesidad que la vida tiene de

expresarse.” (Zambrano, 2004:25). Segundo Zambrano, está no livro de Job uma das

primeiras confissões de que temos noticias, ele seria “El antecedente de la confesión”,

pois ele fala em primeira pessoa e por isso suas palavras chegam em viva voz a

nossos ouvidos por ser a confissão desprendida de tempo e espaço ( Id. p. 26).

Porém, é ao mesmo tempo real e parte “de la confusión y de la inmediatez temporal”

(Id. p. 27), ou seja, sua originalidade é apresentar outro tempo, aquele que faz

confissões “no busca el tiempo del arte, sino algún otro tiempo igualmente real que el

suyo”. (Id. Ib)

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Chacel, em La confesión (1971), coloca-se de outra maneira na sua forma de

entender o gênero confissões. Nessa obra, ela tenta responder um questionamento de

Ortega y Gasset que teria expressado que o gênero não foi muito salientado pelos

escritores espanhóis. Para Chacel, a confissão é o que brota de um sentimento de

culpa e, portanto, o escritor envereda pelos caminhos da confissão expondo sua

“útima voluntad”, sobressaindo em dois sentidos, que Chacel chamou de “temporal” e

“esencial”. Sendo o temporal “la urgencia con que hoy día deseamos conocer vidas

ajenas” (Chacel, 1971:11), para ela esse temporal expõe a necessidade que o homem

tem de enxergar sua experiência em tempo real, por isso a confissão; e o essencial

reside na vontade de confessar, “cuanta más voluntad existe, más yo hay” (Id.ib).

Zambrano, concordando em parte com Chacel, conclui, num viés igualmente

filosófico, que as confissões surgem de um limite extremo a que o homem chega,

podendo ser um fato individual ou uma circunstância histórica, resultando disso, um

fato crucial que faz com que sua existência se torne um peso, surge, portanto, o

desejo de falar: “La confesión comienza siempre con una huida de si mismo. Parte de

una desesperación. Su supuesto es como el de toda salida, una esperanza y una

desesperación” (Zambrano, 2004: 32). Ou seja, em um momento desesperador a

literatura intimista é levada a uma instância suprema, porque oferece condições de

reflexão e continuidade de vida.

Com a literatura do Eu temos condições de visualizar um estado singular em

determinada época, principalmente em momentos de conflitos. As confissões se

constituíram em um gênero bastante utilizado em períodos de fortes conflitos sociais,

por exemplo, durante as grandes guerras, os pós-guerras e depois da guerra civil

espanhola, pois, ao relatar e desnudar a vida no desterro, nos campos de

concentração, nas prisões etc., é possível chamar a atenção para uma reflexão sobre

as relações humanas.

As confissões se aproximam dos textos denominados testemunhos que também

têm forte influência sobre a literatura do Eu, pois é na autoanálise que o ser humano

se materializa. Na verdade, estão mais que nunca presos ao Eu que se pretende

entender, e por conta disso, se ocupam dessa interioridade, na busca, do

extravasamento para o autoconhecimento. Nesse trajeto, é possível trilhar pelos

caminhos da História. Na visão de Weintraub o homem é um ser histórico e é possível

entender seu eu na perspectiva cronológica.

Falar de si mesmo é uma atividade inerente ao homem, pois a todo momento

está voltado a perceber sua essência, o que lhe dá subsídios para compreender a

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coletividade. Caballé esclarece “El ser humano practica constantemente el ejercicio

de hablar de si mismo” (1995:39). Caballé discute a necessidade que as pessoas

têm de falar de si mesmas, o acúmulo de sentimentos parece, às vezes, transbordar

do inconsciente e sentimos vontade de falar, ou algo que nos angustia promove esse

ato. Contudo, o desabafo é uma particularidade do ser que nem sempre é possível

concretizar porque para falar é preciso ser ouvido, e em muitos casos estamos a

sós. Por isso é preciso encontrar outra forma de expressão mesmo quando o

silenciamento “(...) habla de si cuando calla por el modo de hacerlo, y tal vez sea la

elocuencia de algunos silencios la parte más inapelable de cuaquier discurso sobre

el yo” ( id. ib). Sob a ótica de falar de si mesmo, Caballé alicerça-se na possibilidade

de não ter com quem falar e o indivíduo expressa no silêncio, paradoxalmente, suas

incertezas e traumas.

Diante dessas considerações, o homem pode ter um conjunto de ações que o

projeta à historicidade humana e possibilita uma compreensão do próprio eu.

Weintraub (1991: 25) alude à questão, ao tratar de Santo Agostinho, pois não é tanto

a reconstrução da autêntica personalidade de Santo Agostinho como cogita na

história, mas sim a reconstrução da história da concepção agostiniana de seu

próprio eu.

1.2- Diários íntimos e a fugacidade temporal

A literatura de cunho autobiográfico fez surgir vários subgêneros utilizados

como pressupostos para o refúgio do EU que se desprende do coletivo e precisa voltar

a si mesmo. Assim, os diários íntimos ganham conotação literária com características

singulares, a forma de relatar o dia a dia é sua marca mais evidente. Na perspectiva

de Weintraub (1991: 21) cada anotação no diário tem o valor em si de ser o reflexo de

um momento breve de determinadas situações vitais às quais se atribui uma

importância primordial. E a partir daí é revelada a personalidade do diarista. O seu

valor reside em conseguir trazer um olhar particular do passado para o presente. Para

Güsdorf (1991:250) o diário íntimo é utilizado com o objetivo de relatar as vicissitudes

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da alma. O diarista se coloca dia a dia a empregar o tempo, as atividades e o encontro

do autor com ele mesmo. Com essa prática seria possível sair do momento passado e

se tornar livre.

Contudo, o que surge para ajudar o indivíduo apresenta uma problemática em

relação ao particular que se torna público. Barcelos (2007: 51) em seu artigo

Aproximações: teorias contemporâneas de literatura, identidade e diário, a esse

respeito considera

Não haveria dúvidas de que essa escrita viesse a ser o tão decantado “refúgio do eu”, espaço de exercício da intimidade, longe dos olhares públicos e, em muitos casos, sem quaisquer intenções de se tornarem escritos publicados ou lidos por alguém além do próprio escritor ou de pessoas por ele autorizadas. Entretanto, é exatamente sua publicação e sua acessibilidade à leitura o que contribui para que tais escritos venham a ser considerados sob a perspectiva literária.

(Barcelos, 2007: 51)

No exposto, percebemos que o diário traz à tona o eu íntimo que emerge da sua

particularidade por meio da escrita, tornando-se possível observá-lo em sua

singularidade, porque o diarista se despe e publica sua intimidade com minúcias. E

nessa perspectiva o leitor entra em contato com um momento breve, mas rico, pois ao

escrever o diarista tem o fato quase como uma fotografia, já que a temporalidade é

extremamente real.

Conjeturando sobre a sua importância, notamos que o caráter temporal é

apresentado sempre em um contexto, daí observamos que o espaço e o tempo é que

fazem desse gênero um promissor texto que consegue abordar mais profundamente o

Eu que diariamente se propõe a relatar suas experiências em tempo real, descrevendo

com precisão suas angústias, seus dramas e o ambiente porque acabara de vivê-los.

Percebemos isso a partir da gradação temporal na personalidade de Laura

Palmer, protagonista do romance O diário secreto de Laura Palmer, 1990. De acordo

com as datas marcadas em seu relato diário, vemos como ela se comporta diante do

conflito entre a razão e a emoção: Laura sabe que não deveria desrespeitar as regras

determinadas pela sociedade e especificamente a educação recebida dos pais, mas

atende aos seus instintos mais exacerbados. Envolve-se então com as drogas e vai se

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distanciando de sua família. Outro ponto que percebemos diante dos seus relatos

diários é que mesmo adentrando os caminhos das drogas e a prática do sexo em

demasia, sua consciência não a deixa em paz e se configura na personagem Bob.

Ao recriar o mundo da protagonista Laura Palmer, a escritora Jennifer Lynch,

apresenta o universo da personagem desde o 12º aniversario até o 17º, e o leitor

convive com a protagonista que vai desnudando suas facetas. É por meio de seu

relato diário que o leitor penetra no mundo misterioso de Laura. Ela deixa registrados

comportamentos que normalmente são inconfessáveis e isso lhe traz um dilema entre

o certo e o errado. Suas experiências sexuais com amantes de ambos os sexos e o

início de uma vida voltada às drogas são alguns de seus dramas. No entanto em seus

relatos vemos uma menina que convive com seus pais, aluna exemplar no colégio e

ótima funcionária na loja de departamentos. Entretanto o mundo das drogas acabará

por levá-la à morte.

Em contrapartida Anne Frank apresenta em seu diário os dias que passou com

sua família no porão de sua casa, refugiando-se da perseguição dos alemães durante

a Segunda Guerra. De 1942 a 1944, Anne Frank nos dá condições de perceber os

horrores da guerra no seu dia a dia. Anne e sua família após ficarem sabendo das

ameaças contra os judeus e que poderiam ser expulsos do país vão viver no porão

com mais duas famílias refugiadas. Anne então passa a relatar todos os conflitos que

surgem enquanto eles estão naquele lugar, aguardando o final da guerra. São

descobertos e levados ao campo de concentração onde todos morrem, exceto seu pai,

Otto Frank, que traz a público seu diário íntimo.

Anne Frank, na tentativa de buscar a si mesma e denunciar a violência, utiliza-

se do diário como uma arma no momento de guerra ou no momento da confusão

social. No caso dos exilados ou dos desterros, por exemplo, o exilado consegue por

meio do diário mostrar para o mundo como é sua vida no desterro e a luta singular

entre o indivíduo e o tecido social. A singularidade que surge entre o narrador e

muitas vezes a personagem do diário, tem implicância na possibilidade de entender a

essência humana.

Nesse sentido, o diarista ao expor a violência sofrida em momentos de guerra

deixa expressar a constância de sua angústia no desterro, e também oferece um

testemunho da violência do Estado, registrando dessa forma a história do homem e os

mecanismos de destruição e fragmentação de quem possui as forças do poder, e a

literatura acaba sendo a forma de expressão a fortiori.

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Textos como diários se transformam em armas muito promissoras nas mãos

dos que conseguiram se inscrever na história, fazendo o outro refletir sobre a violência

nos tempos de conflitos em que lutar era a única saída. Por isso os diários fizeram

história e ainda são necessários para refletir o indivíduo que, ao desprender do

coletivo, se sente só e angustiado, como Rolim descreve

Os diários fazem parte da necessidade atual, tanto de narrar a própria experiência, quanto de buscar pela leitura uma identificação com um outro eu que se revela. [...] Portanto, em maior ou menor medida, todo diário é imaginativo, senão puramente ficcional: ou porque é impossível passar para a página a realidade fielmente retratada ou porque a forma do diário pode ser usada a serviço da criação ou, ainda, porque não é possível prever ou identificar com precisão até onde se misturam o desejo de relatar uma realidade verificável com o impulso criador ou as transformações ocorridas nos labirintos da memória. (Rolim e. tal, 2005, 25-26)

Mesmo usando esse gênero, corre-se o risco de não ser compreendido porque

é impossível falar de si mesmo com fidelidade, pois o narrador se mistura ao

personagem, deixando uma margem de desconfiança ao leitor que precisa confiar no

que lê, por conta disso, os diários são em algumas situações rechaçados. Mas sob

outro viés, por exemplo, quando está a serviço de discutir a violência de uma

determinada época, tão necessário como na Guerra Civil Espanhola, o diário

consegue permitir uma visão fiel do sofrimento e da injustiça promovida pelos

poderosos.

Os diaristas conseguem traduzir uma visão do breve momento relatado porque

seu caráter se volta ao cotidiano e, dessa forma, consegue com mais precisão

sensibilizar quem lê sua escrita, porque o fato relatado ainda é muito vivo, pois conta a

distância de um dia apenas. Barcelos afirma que

Da relação entre quem lê e para quem se escrevem os diários íntimos, conclui-se comumente que a motivação de um leitor no processo de leitura de narrativas de vida seria menos sua curiosidade em relação às confissões e revelações daquela subjetividade narrada e mais um movimento de tentativa de reconhecimento de si próprio. A experiência de vida relatada pelo diarista ou autobiógrafo seria interessante por possibilitar ao leitor projetar sua subjetividade, em vez de aceitar

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passivamente os supostos segredos ali revelados. (Barcelos, 2007: 50)

Trazendo os diários para o campo da realidade social, é possível visualizar seu

valor nos períodos de conflitos em que o cidadão necessita de armas para lutar

contra a injustiça social.

É indiscutível o valor literário que os diários íntimos conseguiram configurar

durante a história da humanidade: na cultura greco-romana, na Espanha do pós-

guerra, ou em outros momentos. Poderíamos dizer que o diário nasce da

necessidade de um registro, de uma revelação, para tornar imortal o sujeito diarista

até ganhar outras configurações e adeptos, pois ao falar de fatos do cotidiano o

diarista se vê diante de si, despido em seus sentimentos e emoções. Nos seus

relatos é perceptível este Eu que erige dos eventos, promovendo outro ser, no

momento de relatar os fatos a subjetividade se apresenta e o narrador ao se

entrelaçar à personagem, constitui-se em outro ser que em muitos casos faz com

que o leitor desconfie dele.

Weintraub (1991:29) afirma que ninguém expressa seu Eu numa linguagem

feita por si e para seu próprio Eu senão em linguagem herdada como a obra dos

outros. Na verdade, esse Eu que se forma a partir do outro é construído na

coletividade e lançado em seu momento mais íntimo, para perceber sua própria

existência. Portanto o indivíduo pode criar dentro do seu Eu uma harmonia entre os

elementos de sua época e sua individualidade que sobressaem neste gênero.

1.3- Memórias: um gênero em evidência

Le Goff (1996: 460) faz um estudo trilhando os caminhos que o vocábulo

memória percorreu, ressaltando suas características e suas disparidades em relação

ao contexto vivido outrora e atualmente. Para esse teórico, o termo teria vindo do

vocábulo principal mémoire surgido na Idade Média, no século XI. Daí em diante o

termo foi se transformando e ganhando conotações diversificadas relacionadas ao

contexto social. No século XIII o termo se torna memorial, conceituando as contas

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financeiras; em seguida, mémoire vai designar um dossiê administrativo; já no século

XV aparece o vocábulo mémorable exatamente no momento em que as artes estavam

em ascensão, e, em 1777, aparece memorandun no inglês emprestado do latim.

Assim o termo ganha espaço nos dicionários e enciclopédias.

Essa palavra que surge para definir a área das ciências exatas, por se tratar de

cunho biológico, será utilizada, também, para lembrar os mortos. Le Goff (1996: 462)

expõe que, na Revolução Francesa, houve uma busca para o não esquecimento

daqueles que morreram, a saber, os heróis de guerra que lutaram em defesa do país,

e, assim, esse contexto é apresentado como sendo “A grande época dos cemitérios

[...], com novos tipos de monumentos, inscrições funerárias e rito da visita ao

cemitério.” (Le Goff, 1996: 462)

As comemorações, destarte, foram criadas a partir das memórias que foram

utilizadas pelos românticos. Um dos traços do romantismo era, principalmente, o

nacionalismo exacerbado residente na exaltação dos valores nacionais ambientados

no passado, nesse sentido, o recurso para tais valores foi a memória. Além disso, o

calendário das comemorações foi expandido a muitos países e ganhou status de

memória coletiva: “Em todas as sociedades, os indivíduos detêm uma grande

quantidade de informações no seu patrimônio genético, na sua memória em longo

prazo e, temporariamente, na memória ativa” (Goody,1977, apud Le Goff, 1996: 425).

Na memória coletiva, então, está impresso os conflitos entre a classe

dominante e a luta do povo contra os que detêm o poder. Por esse lado, os que lutam

são silenciados em virtude de ameaçar a ordem social, a classe dominante utiliza

ideologicamente o mecanismo da memória coletiva para se manter no poder, porque a

memória coletiva é o que foi vivido no seio de um grupo, acentuando o que fizera no

passado e o que ficou reconhecido por todo o grupo social; a partir da consciência do

que foi vivido o grupo propõe mudança.

Com efeito, a memória coletiva é um recurso em expansão nas sociedades

modernas que permitem delinear o conhecimento. Porém, ao apagar a memória

individual, a pessoa tende a um estado de conflito constante pautado na angústia

existencial por se desconhecer particularmente e existir somente a partir de um grupo

determinado, porque sua memória individual é descartada e consequentemente

esquecida. A memória coletiva, sem dúvida, é um recurso de poder e, às vezes, é

manipulada historicamente. Le Goff (1996: 477) considera a história como sendo uma

ferramenta que ao recuperar o passado tem como objetivo servir e modificar o

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presente e o futuro; ao mesmo tempo, ressalta que a memória coletiva deve trabalhar

a favor da libertação do homem e não para sua subserviência em relação à sociedade.

O historiador Le Goff em seu ensaio promove essa visão, mas considera outras

perspectivas no âmbito da sociologia. É importante registrar que, em seu estudo

aborda a memória coletiva unicamente pelo viés histórico, desconsiderando a memória

individual à qual já nos referimos e que aprofundaremos mais adiante.

No campo da sociologia, a memória tem sido um recurso em evidência e a

nomenclatura de memória histórica se cambiará para memória social. Nessa linha,

Ecléa Bosi em Memória e Sociedade, (1994), faz um estudo sobre relatos de pessoas

idosas, colhendo seus testemunhos com o objetivo de deslindar a memória social, a

partir desses relatos individuais. O estudo parte da psicologia da memória e apresenta,

sob a perspectiva de Bergson, a condição psicológica do lembrar. Na verdade, o

pressuposto perceptivo de memória que aflora no indivíduo, representado na

passagem das imagens das coisas reais ao nível do inconsciente esgalha na

lembrança e lembrança é usada aqui, no sentido de “vir à tona o submerso” (Bosi,

1994: 46) que desaguará no fluxo da memória.

Para Bosi (2007: 46-47), “Começa-se a atribuir à memória uma função decisiva

no processo psicológico total: a memória permite a relação do corpo presente com o

passado e, ao mesmo tempo, interfere no processo ‘atual’ das representações”. A

autora problematiza, na obra referida, a lembrança individual que é substituída pela

social, mais precisamente a memória histórica modificada, no sentido de “oficial e

celebrativa”. E assim ataca o capitalismo que se serve do trabalho das pessoas, e

depois, na velhice, suas memórias são oprimidas e apagadas.

A pesquisadora acentua ser na velhice que há a possibilidade de estudar a

psicologia da memória, porque o idoso já atravessou “um determinado tipo de

sociedade, com características bem marcadas” (Id. Ib). Nesse sentido, ela nos oferece

um amplo estudo sobre a memória social pautada nas lembranças de idosos e, de

certa forma, esse social mina o individual. Ao considerar os relatos de idosos, Bosi

chama a atenção para o apagamento da memória individual que aflora nesse

momento da vida do ser humano. Sua critica propõe exatamente o inverso, pois para a

psicóloga a memória individual deveria constituir a memória coletiva e não o contrário.

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1.3.1- Memórias como estética literária

O gênero memórias tem sido estudado como um recurso para compreender a

sociedade a partir do indivíduo e do grupo em que ele está inserido. Além de permitir

entrar em contato com fatos que marcaram uma coletividade metonimizados num

indivíduo, o gênero foi usado como recurso da literatura para o depoimento de um

trauma, do sublime entre outros vividos.

Caballé, (1995) na sua obra Narcisos de tinta, pontua considerações assertivas

em relação a memórias e autobiografias produzidas por autores espanhóis. Para

adentrar o gênero memórias, faz uma longa distinção entre ele e a autobiografia por

ambos apropriarem-se do Eu. No contexto em que produz seu estudo, apresenta, em

linhas gerais, o interesse por esse gênero na atualidade, por ter sido objeto de estudos

exclusivos em congressos nacionais e internacionais. Este tipo de relato atraiu para si

um contingente de escritores que viram nessa forma de expressão artística uma

possibilidade de falar sobre suas experiências de vida, porque os gêneros

autobiográficos pressupõem o relato da realidade ligada à individualidade, ou melhor,

algo com que o leitor possa se identificar.

Caballé (1995:37) observa que a problemática reside na impossibilidade de

conhecer-se a si mesmo e o escritor de autobiografia se deixar trilhar pela

subjetividade, pois a autobiografia deve tratar de uma realidade já que o leitor exige a

sinceridade dos fatos com uma linguagem objetiva. Quando o insucesso aparece na

estrutura narrativa é porque o escritor ocupa a posição de autor, narrador e

personagem, permitindo uma discussão lingüístico-discursiva, porque ao falar de si

mesmo, é impossível reduzir a vida a uma simples descrição. Nesse contexto, o leitor

de autobiografia reclama da inverossimilhança que possa existir no gênero, como

aponta Lejeune em seu ensaio El pacto autobiográfico:

el lector es invitado a leer las novelas, no solamente como ficciones que remiten a una verdad sobre la naturaleza humana, sino también como fantasmas reveladores de un individuo. (Lejeune, 1991:59)

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É aí que Caballé (1995) aponta para as sutis diferenças entre autobiografia e

memórias. Para ela, as memórias, além de pertencer ao domínio do eu, permitem que

o memorialista adentre os caminhos de suas lembranças com o objetivo de resgatar

ou reviver acontecimentos ou pessoas que de alguma maneira influenciaram ou

influenciarão o momento presente ou seu futuro. Por conta disso, a história, as

lembranças e os relatos são o suporte técnico desse gênero literário, problematizado

neste estudo. Caballé (1995), retomando as palavras de Corpus Barga, apresenta

pressupostos particulares ao gênero memórias diferenciando-o do gênero

autobiografia, que achamos pertinente transcrever.

Las memorias vienen a resultar todo lo contrario de la autobiografía. En la autobiografía todo se reduce a uno; en las memorias, la autobiografía no es solamente de uno, ni siquiera de uno y todo lo demás, sino de uno en todo los demás (…) Al emprender las mías no me mueve el deseo de contar anécdotas personales, me siento llevado por el afán de registrar lo más posible todo lo vivido, con todo detalle, toda exactitud. La vida de una persona como la de un pueblo (la Historia), no está constituida por los grandes acontecimentos o las grandes personalidades que intervienen en ella. No existe en función de fechas y de nombres; es el acontecer cotidiano y anónimo, si puede decirse. La vida se teje en todos los instantes. Las memorias deben descubrir este tejido, en vez de limitarse a recordar los hechos y las personas que son considerados importantes o curiosos a posteriori. Las memorias no deben ser un montón de retazos, por lujosos que éstos sean, sino una tela inconsutil. (Corpus Barga,1979, apud Caballé, 1995: 108-109)

Caballé, ao basear-se nessas idéias, delimita as linhas demarcando-as entre a

autobiografia e as memórias, resolve a equivalência entre os dois gêneros a partir da

junção do vivido, do momento histórico e a partir de uma singularidade que emerge do

individual, mas que direciona a uma coletividade que se vê refletida nas memórias.

Caballé ainda ressalta que o memorialista deveria estar contando 40 anos, pois do

contrário teria inexperiência em relatar memórias. Na verdade, a ensaísta aponta para

algumas obras de memórias escritas na juventude em que o memorialista não

conseguiu problematizar o fato narrado, o que resultou num fracasso literário.

Para a autora as memórias recuperam um momento vivido que deve ser

contado, considerando que há sempre uma coletividade envolvida, principalmente

naquelas memórias que aludem a manifestações de repúdio a algo que ficou marcado

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por questões de repressão política, violência ou luta, em determinado contexto sócio-

histórico. Assim o memorialista deve oferecer um testemunho convincente ao leitor,

nas memórias o escritor deve traduzir experiências conscientes; seu olhar deve

permanecer nos fatos externos e buscar revivê-los, ressaltando o que mais lhe

significou. Nesse ponto de vista, buscará momentos de sua existência, muitas vezes

com objetivo de entender certas questões que ficaram obscurecidas e assim terá

condições de tentar ver o presente e mudá-lo.

Dessa perspectiva, o gênero literário memórias é uma forma também de

testemunho. Ainda que apresente fatos que marcaram uma individualidade, reforça a

idéia de coletividade e, por conseguinte, tem como objetivo apresentar à sociedade

experiências ocorridas a partir de um fato que em dado momento é individual, mas que

reflete a sociedade porque o memorialista já está distante e amadurecido

intelectualmente ou psicologicamente, assim tem capacidade e experiências para

refletir e despertar o olhar do leitor em relação ao fato, capaz de analisar o homem na

sociedade.

Güsdorf (1991:252) considera o gênero memórias como sendo um subsídio

indispensável para oferecer uma visão pessoal da história, porque concentra-se mais

no coletivo, fugindo, então, à subjetividade proposta pelo narrador, pois a partir dele

conhecemos a realidade social da época. Portanto, nessa linha, as memórias apesar

de apresentarem traços subjetivos têm como objetivo principal rever e repensar

eventos de uma coletividade, principalmente no sentido político, bélico e sobre a

violência de um modo geral.

Güsdorf apresenta um estudo pertinente ao discurso estabelecido sobre a

narrativa em primeira pessoa. Para o pesquisador as escritas do eu englobam todos

os textos a favor de uma individualidade aprofundada no conhecimento dela mesma

como possibilidade de elucidar o passado, o presente e mesmo profetizar o futuro.

Sobretudo, pode-se dizer que, ao longo de sua pesquisa, deu prioridade à vida interior

sobre a presença do mundo exterior. (Güsdorf, 1991:242-243)

Em suas considerações o autor não deixa escapar a necessidade que o

indivíduo tem de escrever sobre sua experiência de vida, seja um fato sublime ou um

fato que carece de verificação

Un nombre certain d’individus éprouve le besoin de se remémorer leur vie, de commémorer ce qu’ils furent, en

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prenant par rapport au devenir de l’existence un recul suffisant pour une conscience de leur personalité et du rôle qu’ils ont joué, qu’ils jouent, dans la société des hommes. (Güsdorf, 1991: 250)

No contexto atual, como já ressaltamos, o gênero vem ganhando fôlego como

estética literária. Halbwachs em sua obra A memória coletiva, 1950, faz-se um

promissor analista de memória, visto que apresenta uma visão social que distingue

memória individual e memória coletiva a partir de singularidades entre elas. Para o

autor, o primeiro testemunho a que recorremos será sempre o nosso e assim

enveredamos pelos caminhos da memória individual. Nessa mesma linha, as

lembranças que buscamos, ainda que nos apoiemos no outro, serão sempre

produzidas a partir do eu que a memória individual faz prevalecer. No entanto, seria

quase impossível falar de uma memória exclusivamente individual, pois só a temos a

partir da vivência de um grupo porque

Nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros, ainda que se trate de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente nós vimos. Isto acontece porque jamais estamos sós. Não é preciso que outros estejam presentes, materialmente distintos de nós, porque sempre levamos conosco e em nós certa quantidade de pessoas que não se confundem. (Halbwachs, 2006: 30)

Nas palavras de Halbwachs, a memória coletiva sobressai da individual, por

não estarmos sozinhos e nossa experiência partir sempre do grupo em que

convivemos. E é por esse viés que nossa pesquisa vai enveredar; o texto literário

criado por meio do gênero memórias trabalha com a verossimilhança com que o

narrador, em primeira pessoa, construirá eventos ancorados no coletivo para

conseguir entender o que ficou obscurecido em tempos difíceis, uma vez que o

objetivo é tentar resolver ou modificar essa circunstância que o atormenta ou que não

deve ser esquecida. E para rememorar as circunstâncias o memorialista recorre a

outros personagens com quem convivia. Halbwachs assegura que

Uma ou muitas pessoas juntando suas lembranças conseguem descrever com muita exatidão fatos ou objetos que vimos ao mesmo tempo em que elas, e conseguem até

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reconstruir toda a sequência de nossos atos e nossas palavras em circunstâncias definidas. (Id, p. 31)

A reconstrução à qual Halbwachs alude faz com que o leitor entre em contato

com outra história, sobretudo a história que se quer contar que é de um tempo

passado, relevante ao indivíduo e à coletividade. Assim, a memória individual

corrobora a memória coletiva. O autor assinala a existência das duas memórias que se

“interpenetram com freqüência, especialmente se a memória individual confirma

algumas de suas lembranças, para torná-las mais exatas [ou] preencher algumas

lacunas” (Id. p. 71).

O teórico, em outras palavras, assegura que não há uma individualidade pura,

pois ao viver em sociedade, estamos assimilando o pensamento social, sendo que o

indivíduo ao buscar suas lembranças recorre às lembranças do grupo ao qual

pertenceu.

Nos romances modernos percebemos a necessidade de contar as memórias

em qualquer circunstância perpassada pela violência causada pelo poder como forma

de repressão. Como observa Caballé, o narrador dessas memórias é uma pessoa

madura que tem a pretensão de deixar registrada sua indignação vivida. Por outro

lado, apropria-se, então, desse gênero literário e segue à risca suas características

ainda sutis, mas, com o máximo de rigor possível, visto que é preciso ser verossímil e

ao mesmo tempo conseguir rigor estético.

Na teoria literária a forma como o homem manifesta sua interioridade é

conhecida como monólogo interior, e este “se liga à consciência, à inteligência e à

memória.” (Lobo, 1993:40)

O monólogo interior é uma técnica apresentada por Èdouard Dujardin em 1887,

empregada posteriormente por Joyce com eficácia na constituição do romance

moderno. Dujardin admite ser o monólogo interior

[...] a fala de um personagem numa cena, com finalidade de introduzir-nos diretamente na vida interior desse personagem, sem intervenção do autor por exemplificações ou comentários; [...] ser, quanto ao tema, uma expressão do pensamento mais íntimo situado mais próximo ao inconsciente; ser, quanto à forma, produzido em frases diretas, reduzidas ao mínimo de sintaxe [...] ( Dujardin, 1931, apud Lobo, 1993:39)

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Essa técnica existe desde sempre na literatura, mas evoluiu grandemente nas

mãos dos escritores que deram uma nova roupagem ao que chamamos hoje de

romance moderno. Podemos observar que os questionamentos do homem moderno

não cessam, ele está sempre conversando consigo mesmo na busca de se conhecer.

No ensaio A ficção impressionista e o fluxo de consciência, Lobo (1993) aponta para

perspectivas que distinguem o monólogo interior do fluxo de consciência, consta que é

perceptível que as duas técnicas são híbridas e, em alguns casos, são utilizadas como

sinônimos. Os romancistas modernos fazem uso do monólogo interior para

representar as crises existenciais às quais o homem contemporâneo atravessa.

Ao narrar o fato recordado, o memorialista abre espaço para discutir questões

de interesse de uma coletividade, ao mesmo tempo em que propõe uma reflexão

histórica sobre a sociedade.

Em decorrência da discussão sobre a memória, como percebemos no trajeto

deste capítulo, queremos trabalhar com o conceito que mais atende às nossas

necessidades na análise da obra em estudo. Segundo Maciel (2007), entre

a memória (singular), capacidade humana de armazenar dados, e a forma literária das memórias (plural) [há] uma conexão implícita. É por meio da memória que se constrói o texto de memórias. Da memória às memórias, no entanto, o caminho traçado não se assemelha à reta que une, menor caminho provável, dois pontos no espaço, mas sim a um feixe de hipérboles, já que as vozes que atuam na recuperação da memória vêm mostrar a interferência de muitos outros fatores na construção do relato. Na verdade é por meio da linguagem que o relato memorialista é construído, tecido de escolhas, silêncios, lembranças e imprecisões. (Medeiros e Maciel, In: Signótica, v. 19, n. 1, p. 15-31, jan./jun. 2007.)

O conceito adotado aqui será aquele apresentado por Caballé nos estudos já

citados. Para esta autora, a vida de uma pessoa difere da vida de uma coletividade,

ela não é construída por grandes acontecimentos ou grandes personalidades. É a

singularidade específica de um anonimato revelado no dia a dia que nos interessa. É a

história particular de uma pessoa que vem à tona. A memória deve perceber esta

singularidade e tecer fios que conduzem às memórias, travando uma discussão entre

memória e memórias, e apresentar o ser humano em sua condição existencial.

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Nesse sentido, Chacel na obra Memórias de Letícia Valle, consegue abstrair da

memória de uma menina um fato marcante e pessoal cuja revelação culmina numa

situação coletiva. No caso da obra em questão, vemos Letícia mergulhada em sua

memória individual, mas conduzindo o fato ocorrido a todas as mulheres que, de

alguma forma, viviam na mesma condição que ela: solitárias e entediadas. Chacel

consegue produzir a novela, utilizando uma estética particular desenvolvida pós-

experimentalismo. Percebemos, na narrativa, que o fio condutor dos acontecimentos

está diretamente ligado à individualidade e ao mesmo tempo à coletividade. A

atmosfera criada por Chacel permite ao leitor sair do texto sem ter certeza dos fatos e

questões importantes levantadas por Letícia. A linguagem conflituosa e os lapsos da

memória deixam o leitor intrigado e faz dele um detetive, pois precisa fazer um pacto

com a memorialista para desvendar o que de fato Letícia precisa desabafar.

A estética de Chacel está baseada numa técnica singular, pois ao pesquisar e

começar a produzir seus textos menores, foi capaz de desenvolver uma técnica que

transcende o nível individual e culmina no universal. De mesmo modo, consegue

apropriar de uma linguagem extremamente rebuscada e penetra no meio social

machista e abstrai de lá o universo feminino. As acusações que traz à tona sobre o

machismo exacerbado são de uma sutileza invejável. Além de abrir a discussão sobre

esse universo paralelo, consegue com riqueza de detalhes escrever sobre a

introspecção vivida por várias de suas personagens de personalidade singular.

1.3.2- Memórias e trauma

A literatura autobiográfica ganha fôlego principalmente depois das grandes

catástrofes ocorridas na história da humanidade. Acentuadamente, no século XX, após

as grandes guerras e eventos como o holocausto. Outros momentos também de

grande efervescência para o homem aconteceram na luta dos indígenas pela

devolução dos territórios usurpados pelo homem branco na América Latina. Quando

esses fatos acontecem o sobrevivente sente a vontade de mostrar ao outro o que

vivera e como isso se deu, assim nasce a vontade de representar as marcas deixadas

pelas catástrofes. O estigma de ter sobrevivido acaba se tornando um fardo, gerando

a ideia de que é necessário retomar o passado para em muitos casos “esquecer”,

embora isso seja difícil a ponto de gerar um trauma. Para Freud, “o trauma traz à

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mente, num período curto de tempo, um aumento de estimulo grande demais para ser

absorvido”. (Freud apud Nestrovski e Seligmann-Silva, 2000: 8)

A literatura do Eu penetra nos caminhos das consciências que sobreviveram a

tragédias, principalmente depois das grandes catástrofes. Os gêneros de testemunhos

como a autobiográfica, e as memórias, entre outros gêneros voltados a representar o

eu e seu trauma ganham notoriedade, na tentativa de fazer a contraposição com o

mundo atual, evoluem com o objetivo de conscientizar sobre os grandes traumas que

assolam a humanidade.

Contudo, em alguns casos, a representação através da palavra cai no malogro

no sentido de a palavra não ser suficiente para expressar um fato tão traumático como

fora a morte de milhões de pessoas nos campos de concentração. A esse respeito

Landos Martínez André em seu estudo aponta sobre

la experiencia traumática, el instante mismo del horror. Es el lenguaje que también desliza por la vivencia del silencio y la mudez, por la oscuridad de la prisión, para testimoniar él mismo esta experiencia, porque esta categoría no puede reducirse a criterios simplificadores por niveles de representación o no representación, sino verlo como la materia esencial para la representación de los momentos de silencio e impotencia, la ausencia de vida y la suspensión del horror. (Landos Martínez André, 2005:17-18)

Como referência, destacamos aqui o livro do sobrevivente de Auschwitz, Primo

Levi, É isto o homem? (1963) em que ele apenas relata e coloca o leitor na cena do

medo e do pavor do campo de concentração onde foi mantido prisioneiro até os

aliados invadirem o campo e o libertarem. Como vemos, em se tratando da Shoah,

alguns teóricos expõem que é impossível descrever o horror vivido. Seligmann-Silva

(2000:80) salienta que “Algumas coisas são tão sublimes que não podem ser atingidas

por pensamentos finitos, não podem ser sugeridas por nenhum signo ou

representação via imagens”.

Portanto, o trauma está diretamente ligado à memória no sentido de tentar

descrever como “resposta a um evento ou eventos violentos inesperados ou

arrebatadores, que não são inteiramente compreendidos quando acontecem” (Caruth,

apud Nestrovski e Seligmann-Silva, 2000:111) e carecem de ser lembrados para

verificação ou superação.

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Capítulo 02

2. A memória da solidão e do tédio na narrativa fem inina do pós-guerra espanhol

2.1. Considerações sobre o conceito histórico-filos ófico de solidão e tédio

A solidão e o tédio são estados de consciência diretamente ligados à existência

humana, por isso temos de revisitar a filosofia existencialista, principalmente a de

Sartre para compreendê-las teoricamente. Sartre sustenta que a existência do homem

concreto está marcada por uma angústia na direção de seu destino, pois o homem

quando surge no mundo não é nada até que ele se vai fazendo e definindo a si

mesmo. Por outro lado, o ser humano comporta uma consciência desgraçada, já que

se encontra dominado por sentimentos de solidão, angústia e desamparo,

precisamente quando percebe que existem situações-limites, como o sofrimento, a

luta, a queda, a morte. Ele é nada porque está radicalmente só, e, ao mesmo tempo,

condenado a ser livre, a inventar-se porque não está atado a nada

Para Sartre o homem está destinado à decepção e ao desespero, na medida

em que é consciente de que vive em um mundo absurdo dominado pela morte, daí a

existência ser uma realidade vazia, que provoca uma consciência desgraçada. Essa

decepção e desespero são plenamente coerentes no contexto do mundo

convulsionado por duas guerras mundiais e outros conflitos armados, como a Guerra

Civil Espanhola no primeiro terço do século XX. Na Europa, muitos outros conflitos

marcaram o período, como os massacres coletivos na Rússia e nos demais

continentes, os genocídios, invasões, guerras civis etc. Tais acontecimentos têm

derrubado a confiança do homem na razão, no direito à vida e no esquema de valores

morais e éticos sobre os que se tinham apoiado, até então: a existência coletiva dos

homens. É assim que o homem registra na historiografia do século XX a banalidade da

vida, a consciência do mal. Não em vão, Hobsbawm denominou precisamente o

século passado como o Século das revoluções.

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Na literatura, esses fatos manifestam absurdamente a eterna solidão do

homem, o sem sentido da vida, o pessimismo da existência e a solidão da sociedade.

Essa história está estreitamente vinculada com a literatura para deixar uma reflexão

filosófica sobre a arte de uma época, bem como se tem refletido sobre os recursos

linguísticos e literários na representação do mal, da catástrofe, da barbárie. Há obras

singulares em forma de ensaios ou de ficção de autores que conviveram com estes

fatos e deixaram em seus escritos as sequelas infinitas da convivência com a morte e

a dor. Malraux, Beckett, Sartre, Pirandello, por exemplo, desde sua perspectiva de

testemunhos de uma época, vão refletir ou vão se perguntar sobre o sentido da vida,

sobre o sentimento trágico da vida que invade o mundo.

Na literatura espanhola, à parte a obra de Unamuno, produz-se na etapa

posterior à guerra civil, uma criação literária marcada pela experiência dramática das

lutas, na qual se percebe uma atitude intelectual e vital análoga a dos outros países

europeus. O desconcerto provocado pelo estalo da guerra provocou o rancor, a

desconfiança, e um estado de ansiedade se traduz no mundo de ficção por meio da

evocação de situações, ambientes e personagens representativos da autoridade, do

poder e da violência.

Em uma série de narrativas autobiográficas, predominantemente diários,

memórias e biografias, principalmente escritas por mulheres, apalpa-se a mesma

sensação de inquietação, angústia e sentimento do absurdo da vida humana. Essa

sensação resulta da recorrência de temas como o da solidão, o tédio, a ansiedade e a

desesperança; quer dizer, da consciência de um mundo inautêntico e alienante.

Claramente os autores vão projetar em seus personagens de ficção esse estado de

ânimo de angústia e incertezas.

A solidão e o tédio, apesar de serem estados da alma próprios do ser humano

de qualquer época, podem ser vistos de forma recorrente na narrativa espanhola do

século XX. As personagens femininas são reflexos da situação da mulher nesse

período: por um lado havia a Igreja e o Estado cobrando uma postura submissa,

voltada somente à sua existência singular; por outro lado a sociedade, historicamente,

também cobra dessa mulher o seu papel fundamental: esposa e mãe. Algumas

mulheres conseguiram sobreviver à custa de resistência intensiva, pois os direitos da

mulher foram conseguidos através de um lento processo de luta. O lar, em alguns

casos, fora o local do isolamento que acabou culminando neste mal-estar que

podemos denominar de tédio e solidão. A mulher que fora aprisionada no lar se sentia

muito entediada e solitária porque não tinha oportunidade de sair de seu “quintal”. Por

estar só não tinha força para se revelar no espaço doméstico e se entediava. Na

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verdade, ela se sentia assim porque não podia expressar-se como um ser com direitos

de pensar e agir por si mesmo, “O tédio normalmente surge quando não podemos

fazer o que queremos, ou temos de fazer o que não queremos.” (Svendsen, 2006:20)

As palavras solidão e tédio transformaram-se em vocábulos muito utilizados no

século passado e neste século XXI. Apresentando como uma de suas acepções o

estado de quem está só e em um lugar ao ermo, fazemos a relação com o homem

moderno que vive nessa condição; os compromissos da modernidade são ágeis e a

competição existente promove o “cada um pra si”. Para alguns teóricos o estado de

estar só não significa necessariamente que se possa estar isolado. A solidão consiste

em estar acometido por um estado de espírito do qual é, muitas vezes, difícil de sair.

A obra O desespero humano, de Kierkegaard nos coloca em uma situação de

tentativa de autoconhecimento. Para o filósofo o desespero do homem é nunca

conseguir a plenitude; há sempre algo que o inquieta, que o deixa em desequilíbrio ou

em desarmonia. Essa constante deságua no tédio e na solidão. O homem, nesse

estado, sugere uma busca incessante no sentido de não conseguir entender o que o

leva ao desespero. Em muitos casos, esse ser é podado e tolhido de sua liberdade,

restando-lhe a possibilidade de lutar contra o repressor ou resignar-se.

O ser humano não consegue viver só, e nem tem capacidade de agir só. Por

conseguinte, é necessário relacionar-se com o outro, porém a problemática reside na

ideia que temos de que o outro não pode viver e agir em nosso lugar. A solidão de

certa forma é positiva, por consequência, é o “quinhão de cada um” segundo Comte-

Sponville (2007:69). Para esse filósofo é o isolamento que traz o conflito encerrado

num “fracasso”. Porém a solidão “é uma dimensão da condição humana. [...] é a regra”

(Id. Ib), e sendo regra só é possível no meio social. Assim, ela existe porque o ser tem

por convenção a ideia de que o viver em sociedade abarca a possibilidade de estar

sempre junto, logo, sendo impossível expressar-se, ele entra em crise consigo mesmo,

e esse momento resulta em um estado desfavorável para que sua vida continue no

curso natural.

Esse é o ambiente no qual a mulher espanhola no contexto de pós-guerra se

encontrava. Ela vivia num espaço hostil em que não tinha liberdade para expressar

suas vontades, conforme regras determinadas pelo ditador espanhol General

Francisco Franco, comandante geral das forças armadas espanholas depois de

ganhar a guerra civil entre 1936-1939. Iniciaria, então, um grande retrocesso aos

direitos conquistados ao longo dos anos 30 pelas mulheres. Com a chegada de

Franco ao poder em 1939 a Espanha viveria 40 anos difíceis, pois o ditador tinha

como objetivo reformular a sociedade ideal. A sociedade pensada por franco teria

como esteio o pai, ou seja, a figura masculina que detinha a autoridade máxima sobre

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a mulher e os filhos (Nunez-Puente, 2004:84-85). Dessa forma, as mulheres entravam

num estado de grande melancolia permeado pelo isolamento e o fastio.

No entanto, uma minoria, como Chacel e Zambrano entre outras, não

aceitaram tal situação e buscaram mecanismos de mudanças por meio da escrita. O

mal-estar as instigou a tomar uma postura antagônica frente ao sistema configurado.

Por isso, elas foram perseguidas e a única saída foi o exílio. Do desterro, elas

relataram suas experiências, apresentando um cenário perverso e esvaziado de

significado; de modo geral, representaram uma voz dissonante que começou a

expressar as negativas sobre a própria pátria que as expulsou. A literatura produzida

por elas foi significativa; essa voz do exílio foi ouvida e outras vozes se levantaram,

formando uma corrente de narrativas de mulheres, para mulheres sobre mulheres,

resultou, então, numa luta coletiva feminina, tentando sair do isolamento existencial,

ajudando aquelas que tinham condições de lutar e não o faziam porque uma força

invisível as impedia. O tédio, então sobressai nesse momento de negação “[...] é um

estado de espírito tipificado pela falta de qualidade, o que o torna mais alusivo que

outros [...]” alude Svendsen (2006:14). Esse estado em alguns casos deixava a mulher

sem opção: o estar entediada era um sinal de que algo tinha de ser verificado, o tédio

é uma doença que ganha caráter na modernidade. Ela, a doença, consegue fazer com

que haja considerável perda de significado o que traz sérios danos à pessoa.

O isolamento, o tédio e a solidão são percebidos como temáticas recorrentes

nas obras de escritoras inseridas na narrativa feminina do pós-guerra espanhol. Nos

romances de caráter intimista, observamos que a escritora está sempre tentando

ressignificar a condição social da mulher no ambiente do pós-guerra, que precisava

sair da situação na qual fora enredada. As personagens femininas e, que normalmente

contam suas memórias, nos diários e nas confissões são bem representadas na

literatura espanhola, percebemos, por meio dos relatos, a frustração instalada no

universo feminino que promoveu uma luta coletiva para transgredir as fronteiras

impostas pelo opressor.

2.2. O tema exílio na escrita feminina de memórias

A Guerra Civil Espanhola, nos anos de 1936 a 1939, foi um momento de muitos

conflitos e de transformação em todas as esferas sociais do país. Em 1938, forças

franquistas cortam a Espanha em duas partes, isolando a Catalunha do resto do país.

Em janeiro de 1939, suas tropas entram em Barcelona e, no dia 28 de março, Madri se

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rende aos militares depois de ter resistido a poderosos ataques por quase três anos.

Assim termina a guerra e começa um período de total angústia para os espanhóis: o

pós-guerra.

Com o término da Guerra Civil em 1939, a Espanha se encontra em situação

crítica em relação à economia e à estrutura social, além de ter deixado um saldo de

um milhão de mortos e destruição de várias cidades; a situação econômica se

encontrava caótica pelos gastos gerados pela guerra.

Esses acontecimentos promoveram uma forte e acentuada desigualdade

social, pois a crise nas indústrias, a agricultura castigada pelas mudanças climáticas e

a chegada de muitos trabalhadores do campo para a cidade, foram fatores

determinantes. Fazia parte também desse contexto a insuficiência de moradia,

alimentação, trabalho e racionamento. A situação decadente do país beneficiou uma

minoria que detinha o poder de compra e acesso a bens de consumo, e ainda elevou a

inflação de alguns produtos. Como Franco não participou da Segunda Guerra Mundial,

a Espanha se viu ilhada e com dificuldades em reconstruir-se.

A junção dos aparelhos ideológicos ao poderio de Franco marca o início de um

período nefasto para a história do país. A Igreja, o militarismo, o estado, a família, a

escola enfim foram instituições utilizadas pelo estado para manter uma nova ordem. A

Igreja se encarregou de direcionar a moral e os bons costumes. Contudo, foi no seio

familiar com a mulher que sua atuação se deu com mais crueldade, pois os direitos

conquistados pelas mulheres nos anos 30 foram esquecidos e perdidos sob o domínio

de Franco. Nuñez Puente (2004: 85-86) esclarece que as mudanças no regime –

entre 1940-1970 – foram um retrocesso para as mulheres espanholas. O franquismo

as censurou em vários aspectos, construiu uma nova mulher voltada para os deveres

religiosos e familiares e sobre quem o marido teria autoridade máxima, cria, portanto,

um novo modelo de família na Espanha. De maneira que se estabelece uma aliança

de efeitos mais reacionários com a Igreja. A mulher, agora, deveria educar seus filhos

dentro das concepções estabelecidas pelo regime, que determinava seu

comportamento: ela deveria se vestir adequadamente sem exageros, comportar-se

como uma pessoa de vida regrada e religiosa, ter muitos filhos, ser submissa e

angelical para confortar o marido inteligente e forte (Nuñez Puente, 2004: 95). E ela

tinha a função de harmonizar o lar e nada poderia fazer em relação aos conflitos

existenciais e pessoais surgidos e vivenciados, porque era sempre silenciada.

A literatura espanhola foi frutífera no período do pós-guerra. Nela foram

traduzidos os dramas humanos que a guerra fez surgir. Com evidência, a narrativa

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feminina sobressai e ganha uma gama de estudos e valor literário, configura, então,

uma literatura feminina, com peculiaridades, conforme o estilo desenvolvido por cada

escritora. Por conta da imposição masculina, o texto escrito por mulheres estava

quase sempre falando de algo repressor; podemos observar nas entrelinhas o seu

pedido de socorro porque as escritoras não podiam ser explícitas nas denúncias dada

a condição que lhes era imposta; era preciso driblar a censura para que seu texto

fosse publicado.

A literatura feminina do pós-guerra progride, porém nem sempre foi assim. A

mulher escritora foi ganhando espaço progressivamente, somente nos anos quarenta

ela começa a escrever, mas com as mesmas características masculinas, novelas rosa

e de evasão de cunho tradicional e conservador. Precisava publicar e por isso

submetia-se à estética vigente; de outra forma seria um fracasso. É sabido de todos

que a mulher teve de lutar por seu espaço. Barzotto (2006) explica a progressão de

vida das mulheres e suas vozes como forma de luta e tentativa de conseguir liberdade

dentro da própria casa, espaço onde é marginalizada e sofre agressões de alguma

maneira. O texto literário escrito pelo gênero feminino “é então uma metonímia da

saga das mulheres, também como uma ferramenta de alerta e denúncia onde há uma

voz por detrás das letras.” (Barzotto, 2006: 4)

A repressão destinada à mulher a lançou em busca de liberdade, vislumbrando

encontrar, de alguma maneira, seu espaço. Ao sair do locus doméstico em que estava

confinada, não só físico como também psicológico, teve um caminho muito difícil a

trilhar. Algumas delas optaram por escrever recordações, a saber, a escrita de

memórias ou diários que permitiam a elas a liberdade para criar e refletir sobre seu

modus vivendi.

No entanto, as mulheres intelectuais exiladas por partidarismo político, e outras

também autodidatas, no desejo de mostrar a sua condição humana, alcançam uma

criação de qualidade mais elaborada esteticamente, com o objetivo específico de

denunciar o tratamento determinado a elas. Assim, a escritora espanhola começa a

escrever nos anos quarenta e sua produção prolifera na Espanha do pós-guerra e se

revela uma literatura de muita qualidade literária. Peñalosa (2004: 265) aponta para

três traços que saltam aos olhos em relação à narrativa feminina: a importância que

dão à personagem; a focalização em primeira pessoa; e a presença da mulher como

tema, como observadora da realidade e receptora dos próprios relatos. É o universo

feminino ressaltado nos romances intimistas, aludindo ao estado solitário e entediante

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que as personagens vivem e que no fundo está representado o estado real da própria

vida.

A produção literária de exílio foi contundente e relevante no pós-guerra. A partir

dessa produção, muitas editoras na América Latina acolheram essas publicações –

México, Argentina, Uruguai... –, que levaram a público toda essa literatura feminina da

mulher exilada, cuja escrita mostrava o engajamento político e psicológico dos dramas

íntimos e, ao mesmo tempo, apresentava à coletividade a questão da mulher e da

sociedade como um todo. Na culminância desse contexto, no desterro, Rosa Chacel

vai produzir suas novelas e como matéria-prima recorre às repressões sofridas pelas

mulheres que não conseguiam serem ouvidas e que normalmente estavam reclusas

ao lar, vivenciando algum drama como violência física, moral ou psicológico.

2.3. Rosa Chacel: uma singular memorialista

Rosa Chacel nasceu em 3 de junho de 1898 em Valladolid, entretanto, desde

os dez anos viveu em Madri, onde ingressou na escola de Bellas Artes em 1915.

Casou-se e foi morar em Roma, onde começou a escrever para a Revista de Ocidente

e a Faceta Literária. Voltou a Madri em 1938, foi perseguida e teve de exilar-se por ser

republicana contrária ao regime de Franco. Passou por Atenas, Genebra, Rio de

Janeiro e Buenos Aires. Voltou a Madri somente em 1974, onde permaneceu até sua

morte em 1994. Por ter estudado na escola de Bellas Artes, Chacel torna-se uma

escritora de múltiplas habilidades frente ao texto literário, na sua amplitude. Escreve

ensaios, poemas, contos, novelas... Escritora consagrada recebeu o Prêmio de Crítica

em 1976, em 1987, o Prêmio Nacional das Letras. Como consequência de seu

sucesso, sua novela Memórias de Letícia Valle é levada às telas de cinema. Em 1990

recebe o Prêmio Castilla e Leon das Letras.

Segundo Rodríguez-Fischer (1993), em um relato publicado pela primeira vez

na Revista de Ocidente (nº 55 [enero de 1928] XIX, p. 79-90), Chacel já apresenta

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uma forma moderna e excelente sensibilidade para a literatura do século XX. Na

verdade, ela transforma o modo de fazer literatura no que se refere à abordagem

temática, pois confronta gerações de tradição do tipo “padres e hijos o madre e hija”

no relato elaborado inicialmente. Contudo, essa ideia primeira desembocará em

temáticas como a existência, a vitalidade e especificamente o estético. (Rodriguez-

Fischer,1993:209)

No ensaio referido por Rodríguez-Fischer, vemos a trajetória feita por Chacel e

sua audácia em elaborar novelas e ensaios entre outros com uma visão muito

particular sobre a condição humana, especificamente em momentos de muita

perseguição em relação à mulher. Rodriguez-Fischer (1993:240) pontua o texto

Chinina Migone como sendo um dos que permite perceber os primeiros traços

literários que Chacel publicara; nesse relato a considera uma escritora vanguardista:

Si desde finales del siglo XIX aparecen en España destacadas mujeres que, con decisión y voluntad, se incorporan a la vida intelectual de su época aportando, además de una obra literaria propia, unos cuantos títulos que reflexionan sobre la condición o situación histórica de la mujer, esa tendencia se acentúa conforme avanza el siglo XX. (Rodriguez-Fischer, 1993:240)

Rodriguez-Fisher (1993) ressalta Chacel como uma escritora que tem a

possibilidade de revolucionar a escrita feminina que mudaria a forma de ver o mundo

caótico pelo transtorno do pós-guerra.

Chacel teria, em 1921, participado de uma conferência em Ateneo madrileño,

na Espanha, e lá expôs preocupações com a temática feminina ao elaborar um texto

intitulado “La mujer y sus posibilidades”. Depois dessa abertura Chacel não parou

mais. Escreveu um vasto repertório de textos relacionados a essa temática. Seus

ensaios refletiram sobre a mulher, mas num plano mais transcendente, voltado ao ser

humano e à sua essência no tempo e no espaço social.

Depois de alguns importantes artigos publicados na Revista de Ocidente, o

caminho inicial estava esboçado, Chacel continua escrevendo sobre temáticas

femininas num espaço delimitado.

Os traços deixados por Chacel em Espanha farão sentido quando ela se muda

para Roma onde se dedica ao aprofundamento do conhecimento sobre escritores que

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contribuíam para uma nova postura literária que privilegiavam a essência humana,

escritores como Proust, Joyce, Freud e, principalmente, aquele que lhe serviria de

apoio, Ortega y Gasset, sua grande influência. É nessa época que Chacel escreve o

relato Chinina Migone, livro de contos, e a sua primeira novela Estación Ida y vuelta,

entre 1925 e 1928.

Com esta novela, Chacel cria um circuito confessional, pois sua produção

romanesca permeará entre autobiografias, diários, memórias e confissões, com a

focalização na primeira pessoa. No entanto, essa novela é ainda uma tentativa de

inovação, Rodríguez-Fischer (1993: 243) acredita que se trata de uma “(...)

consonancia con el experimentalismo de aquellos años en que se buscaba la

renovación de la prosa española (...)”. A novela recebe já as influências de Ortega y

Gasset na construção da personagem que transforma seus pensamentos e os fatos da

vida em realidade. Ortega y Gasset admite que “El hombre rinde el máximum de su

capacidad cuando adquiere la plena conciencia de sus circunstancias. Por ella

comunica con el universo” (Ortega y Gasset, apud Rodriguez-Fischer, 1993: 245).

É interessante ressaltar que toda a obra chaceliana envereda por esse pensamento,

ou seja, o homem deve tomar consciência de sua condição de vida, por isso a

literatura voltada ao intimismo atinge o ponto máximo em sua elaboração cuidadosa.

Na tentativa de penetrar na alma humana, Chacel constrói a personagem

Teresa da novela de mesmo nome publicada em 1941, em que ela tenta esmiuçar o

íntimo da personagem, dando voz às meditações, às sensações, às recordações, às

fantasias e aos temores da heroína expressos por um narrador de primeira pessoa em

estilo indireto livre. Acrescenta-se aí a Espanha mostrada como pano de fundo no

momento em que a personagem caminha pelas ruas e medita sobre a vida. (Id. p.

248). O trabalho de criação e invenção que Chacel tem é acentuado em Teresa. Nela

prenuncia um rigor literário refinado. Verificamos que muita coisa se perdera quando a

Guerra Civil Espanhola foi alçada e ela teve de sair do país por ser contrária ao regime

em voga. Contudo, ela não permaneceu calada, “(...) la autora la continuó a lo largo de

cuarenta años, manteniendo los planteamientos estéticos anteriores, permaneciendo

fiel al punto de partida.” (Rodriguez-Fischer, 1993: 253)

Nos primeiros anos de exílio, Chacel volta a escrever narrativas que vão de

romances a contos. Sua obra produzida – Sobre el piélago, 1952 e Ofrenda a una

virgen loca, 1961, e mais dois trabalhos foram agrupados em Icada, Nevda, Diada

(1971), todos pertencentes ao gênero fantástico, gênero que a influenciou a partir das

leituras de Poe e Baudelaire (Id. p.254). Ainda nessa perspectiva, publicara em 1960

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La sinrazón. É interessante considerar que Chacel não se limita a um único estilo, ao

contrario “gusta de fundir en sus relatos los elementos más diversos.” ( Id. Ib)

A obra Memória de Letícia Valle, objeto de nosso estudo, publicada na

Argentina em 1945 foi bastante lida e traduzida em vários países. Essa obra apresenta

um rigor intelectual voltado aos princípios da escola orteguiana, voltado à essência

humanista. Com essa obra a escritora não só ressalta os problemas relacionados à

guerra, mas também cria um estilo, abordando problemas universais aos quais o ser

humano está submetido em qualquer tempo conflituoso. Nessa obra também está

presente uma das características do estilo estético criado por Chacel, o mistério. Ou

seja, são narrativas abertas, pois é descartada qualquer possibilidade de explicitar o

mistério em que as personagens se envolvem. Nas palavras de Rosales é evidenciado

que

El desentrañamiento del misterio es una de las claves de la narrativa de Rosa Chacel. Con una curiosodad infatigable, Chacel persigue lo que le inquieta hasta que consigue disoverlo en palabras. Misterios cotidianos, […], son en gran medida lo que alimenta el fuego creador de esta escritora. Ella, consciente del papel que desempeñan en su obra, atesora aquellos hechos que de alguna forma están tocados por el misterio. ( Rosales, 2000: 5)

Chacel escreveu quase toda sua obra praticamente no exílio, por conta disso é

que suas novelas demoraram a chegar à Espanha e, somente algum tempo depois,

ganharam reconhecimento nacional como narrativas do pós-guerra. Desenvolveu, com

inteligência, novelas, contos, ensaios, deixando um grande ganho para a literatura

espanhola e latino-americana.

A maioria de seus críticos a considera como uma das mais nobres escritoras

de narrativa feminina espanhola, e que se insere no meio literário, exatamente pela

sua inovação no que concerne o fazer novela, pois se apropria de uma excepcional e

minuciosa observação psicológica, apresentando-nos os conflitos mais íntimos e

singulares das personagens, normalmente femininas. Não obstante, nos anos

quarenta, sua obra foi ignorada pela crítica, por várias razões, principalmente porque

estava em evidência somente novelas rosa e de evasão, outro fator foi o de que sua

obra era muito elaborada e não fora entendida a priori, nem mesmo por intelectuais,

como aponta a própria Chacel em entrevistas. No entanto, após 20 anos de atraso sua

obra se instala na Espanha e é lida como uma obra de vanguarda. (Peñalosa, 2004:

168-169)

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A crítica é unânime em manifestar que ela soube criar uma estética essencial

para discutir a condição da mulher na Espanha do pós-guerra. No universo de sua

obra está presente a mulher e sua convivência no meio masculino. Foi pesquisadora

da essência feminina, a partir da qual escreveu ensaios problematizando e analisando

o papel social da mulher. Por isso, Peñalosa (2004: 170), constata que atualmente é

uma das escritoras que mais desperta o interesse dos estudiosos da literatura,

especificamente os que pesquisam temáticas femininas.

2.3.1. A desumanização orteguiana em Rosa Chacel

Ortega y Gasset no texto A Desumanização da Arte, 1925, apresenta os rumos

que a arte moderna tomou no início do século XX. Naquele momento, a vanguarda

artística trabalhou com a desrealização do processo artístico, determinando uma nova

abordagem estética. O artista jovem ao valorizar o corporal ao espiritual, o gozo e a

liberdade ao formal e circunspecto, projeta-se ao que Ortega y Gasset denominou de

arte desumanizada. A nova arte rompe com a tradição dos padrões estéticos

antecedentes, instaurando, assim, uma movimentação tumultuosa entre o artista e o

público, à medida que exige uma nova sensibilidade para a sua apreciação. O

vocábulo desumanização explicita as diferenças entre a nova arte e a anterior. De

maneira clara, indica que a arte anterior era uma arte humanizada, e que essa nova

tendência passa por um processo de corrosão em virtude das novas intenções e

soluções da arte que surgem. A humanização está vinculada à desrealização da

“realidade”. O desumano está em tentar recriar o real na perspectiva da arte

desumanizada, refletindo sobre a realidade da vida, de maneira deformada por romper

com aspectos humanos; em contrapartida a arte humanizada se encontra

exclusivamente no labor artístico, “Essa nova vida, essa vida inventada, prévia

anulação da espontânea, é precisamente a compreensão e o prazer artístico” (Ortega

y Gasset, 2001: 42)

É nesse sentido que Chacel, seguidora das ideias orteguianas, busca

concomitantemente o rigor estético e uma obra que alargue os limites da realidade

humana, que seria o ponto de partida para que ela vislumbrasse uma literatura de alto

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nível estético, pois o artista “aumenta o mundo, acrescenta ao real, que já está aí por

si mesmo, um irreal continente.” (Id. p. 54).

Além do experimentalismo, a novelista escreveu artigos teóricos sobre gêneros

em evidência como confissões e sobre outros grandes temas da literatura. Segunda

Cora Requena, pesquisadora de Chacel, esta escritora teria se engajado no grupo de

1925, também conhecido como Generación de 27 por pactuar das mesmas ideias do

grupo em que Ortega y Gasset era a figura central. Sua obra também foi alcunhada de

desumanizada. No entanto, nas considerações de Cora Requena, Chacel neste grupo

compartilhou teorias de como produzir literatura e

Con ellos compartió no sólo algunos postulados claves sobre la manera de producir literatura, como son, por ejemplo, la caracterización interior de los personajes o la idea orteguiana de la “biografía de las ideas”, sino también la suerte de que sus novelas fueran tildadas (y lo continúan siendo) de deshumanizadas, aun cuando, a diferencia de lo que ocurrió con la obra de sus compañeros de generación, en el caso de Rosa Chacel esta recriminación habría de abarcar toda su producción novelística, pues pese a la incuestionable evolución que ésta experimentó a lo largo de sesenta años, la autora se mantuvo siempre fiel al proyecto de escritura que inaugurara en el año 1930 con la publicación de Estación. Ida y vuelta. ( Requena, 2002: 1)

Na obra A desumanização da arte, Ortega y Gasset critica de forma rígida a

arte moderna que não consegue se fazer entendida esteticamente. Para ele, a

tentativa de deformar o natural que chama de homem, como a sentimentalidade, o

melodramático promove uma ilusão e no fundo não causa prazer estético, porque está

voltada para a tentativa de fazer o público se identificar com um drama parecido e

vivido. Nesse sentido, Ortega y Gasset chama a atenção para o prazer estético que a

arte nova deforma. Vem então daí a influência tomada por Chacel ao buscar o mais

alto grau de forma para sua produção artística. O trabalho artístico vivido e produzido

por ela está presente em toda sua obra, começado por um experimentalismo,

amadurecido posteriormente. Como observa Rodríguez-Fischer (1993) textos como

“La mujer em galeras” (1973); “Comentario a un libro histórico” (1980); “La esclava”

(1992), são textos que revelam grande amadurecimento teórico como resultado de

quarenta anos do início de sua carreira. Em outro artigo sobre a desumanização

em Chacel, Requena analisa a obra da escritora na perspectiva humanista e não

desumana pela influência de Ortega y Gasset como acreditam alguns criticos, pois em

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cada personagem homem ou mulher revela-nos a riqueza estética da sua criação;

além de discutir temas recorrentes e universais. Segundo Requena esta narradora é:

una de las escritoras más arriesgadas y representativas de la literatura española del siglo XX y una heredera legítima de los movimientos de vanguardia que sacudieron el mundo del arte a comienzos del siglo pasado; y su obra, extraordinariamente moderna, “deshumanizada”, intelectual, pasional, es uno de los más humanos y bellos obsequios de la literatura española contemporánea. (Requena, 2007: 9)

Requena nos apresenta uma escritora preocupada com o universo feminino e

como a mulher foi vista naquele momento do pós-guerra. Por suas ideias às vezes

radicais, não foi aceita no Movimento Feminista, pois sua forma de ver a mulher era da

maneira mais universal, o que talvez não fosse propício para o contexto. Segundo

Requena, Chacel “luchó siempre por hacer participar a la mujer del pensamiento

filosófico, científico, político y artístico de su época aunque algunas de sus opiniones

son difícilmente entendibles fuera de su contexto histórico”, (Requena, 2001: 2).

Para essa pesquisadora, há nas narrativas chacelianas dois tipos de mulheres:

o primeiro é a mulher feminina: aquela que não extrapola o espaço doméstico, é vista

como uma personagem tipificada, o “espejo” da mulher na sociedade espanhola, não

cultiva a intelectualidade e normalmente é uma personagem secundária; o segundo

tipo são mulheres e meninas livres, às vezes com as mesmas oportunidades que a

esfera masculina, normalmente são protagonistas em busca de liberdade, criatividade

e inteligência, quase sempre participam do espaço destinado aos homens. Para

Chacel o homem e a mulher são seres humanos, nesse sentido não se deveria fazer

distinção entre ambos; a arte humanizada está em levá-los ao mesmo patamar de ser

humano.

Rosa Chacel foi parte importante da geração de 27, ao lado de Zambrano,

entre outras escritoras que assumiram claramente estar a serviço da intelectualidade

ou de esquerda, tanto que foram exiladas e mesmo assim sua escrita foi profícua. A

escritora espanhola logra êxito com suas novelas discutindo o comportamento da

mulher e a Espanha tem noticias e testemunhos que, de modo geral, Chacel ajudou a

mudar a literatura do século XX.

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2.4. Um breve resumo de Memórias de Letícia Valle

Letícia é uma menina de 11 anos que se dispõe a contar suas memórias dos

cinco meses vividos em Simancas, uma pequena vila próximo a Valladolid, onde

Letícia vai morar com seu pai e sua tia Aurélia uma solteirona que cuida dos dois.

Após a chegada em Simancas, a menina se desprende da família, ficando muito livre

pela vila e, entediada, vai ter aulas com a professora que percebe nela um talento

musical e a indica para estudar música com a professora Luisa. Quando Letícia

começa a ter aulas de música, conhece Dom Daniel, marido de Luisa, com quem tem

aulas de História posteriormente e, a partir daí, começa a nutrir pelo professor

sentimentos de amor, promovendo ciúmes na esposa, por quem Letícia tinha

sentimentos maternos. Esse envolvimento culmina na separação dos três, o professor

desaparece2, Luisa resigna-se e Letícia é levada para morar com a tia Frida e tio

Alberto em outra cidade, para que continuasse seus estudos e convivesse com

Adriana, uma prima de idade equivalente. O drama vivido fez com que Letícia

escrevesse as memórias desses cinco meses, retomando um fato especifico que é

sempre aludido, mas nunca explicitado. Contudo em seus relatos ela sempre se refere

ao acontecido o que a deixa muito solitária e infeliz.

2 Segundo artigos de teóricos de Chacel, acontece um fato trágico que levaria D. Daniel ao suicídio, resultado do envolvimento amoroso entre Letícia e ele. No entanto, Chacel astutamente não deixa explícito este fato. Por isso no decorrer da análise vamos aludir à tragédia como um fato traumático vivido pela protagonista.

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Capítulo 03

3- O devir nas memórias de Letícia

3.1- Adentrando as memórias

Recorremos a testemunhos para reforçar ou enfraquecer e também para completar o que sabemos de um evento sobre o qual já temos alguma informação, embora muitas circunstâncias a ele relativas permaneçam obscuras para nós. O primeiro testemunho a que podemos recorrer será sempre o nosso. Quando diz: “não acredito no que vejo”, a pessoa sente que nela coexistem dois seres – um, o ser sensível, é uma espécie de testemunha que vem depor sobre o que viu, e o eu que realmente não viu, mas que talvez tenha visto outrora e talvez tenha formado uma opinião com base no testemunho de outros. Assim, quando voltamos a uma cidade em que já havíamos estado, o que percebemos nos ajuda a reconstituir um quadro de que muitas partes foram esquecidas. Se o que vemos hoje toma lugar no quadro de referências de nossas lembranças antigas, inversamente essas lembranças se adaptam ao conjunto de nossas percepções do presente. É como se estivéssemos diante de muitos testemunhos. Podemos reconstruir um conjunto de lembranças de maneira a reconhecê-lo porque eles concordam no essencial, apesar de certas divergências. (Halbwachs, 2006: 29)

Halbwachs (2006) em poucas palavras remete-nos ao ambiente retomado pela

protagonista Letícia ao analisarmos a obra Memórias de Letícia Valle, considerando a

trajetória feita por ela, enfatizamos as marcas das lembranças trilhadas na novela.

Para reforçar suas evocações, Letícia se ancora nas personagens com quem viveu

maior parte do tempo.

Seu relato é intenso e nebuloso, porque apesar de ser uma menina com uma

maturidade psicológica e singular, tenta buscar nas lembranças o trauma, os dramas

acontecidos por volta de cinco meses antes de completar doze anos. No início da

novela, expõe a necessidade de relatar suas memórias e buscar compreender o

estado de isolamento no qual se encontra. Dessa forma, circula entre o tempo

presente e o passado. Esforça-se para dar início ao relato, porém, na tentativa de

expor a necessidade de escrever suas memórias, titubeia entre o presente e o

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passado, buscando um princípio a partir de suas lembranças mais distantes, porque

nesse momento não consegue ter clareza de como ou de onde começar, assim, ela

expõe algumas palavras

Ahora, las peores [cosas] ya no me dan miedo: me atrevo a repetirlas aquí, las escribiré para que no se borren jamás en mi memoria. Y no por consolarme: necesito mirarme al espejo en ellas y verme rodeada de todas las cosas que he adorado, de todas las cosas de que me han separado, como si ellas me hubiesen hecho daño”. (Chacel, 1985: 8)3

Letícia inicia, então, suas memórias, proferindo a data importante de seu

aniversário, a saber, o aniversário remonta ao nascimento que é celebrado com

festividade por marcar um momento importante na cultura humana. Letícia ao dar

ênfase a esse fato permite perceber que, a partir de suas recordações, renascerá,

transformando-se em outra pessoa.

No entanto, exatamente no início de seu relato a atmosfera é de muita solidão.

É clara sua condição de isolamento, pois não tem ninguém ao seu lado e lembra-se

das palavras do pai, as únicas que, talvez, teriam ficado em sua memória “Es inaudito,

es inaudito!”, e ela no seu canto, tentando dizer ao pai o que não teve coragem ou

condições; esse momento vem agora em sua memória “Eso es lo que yo estaba

queriendo decirte siempre. Yo no sabía decir que todo lo mío era inaudito, pero

procuraba dártelo a entender, y tú de todo decías que no tenía nada de particular...” (

Id. p.8). O sentimento de tristeza a invade e ela tenta rever sua vida, buscando

entender aquele fato específico cujo viver se tornou enfadonho.

Letícia, agora, busca em sua memória uma retomada para esclarecer o que

ficara obscuro. O início do seu relato é conflituoso e incerto; em meio à reflexão ela

transita no tempo, mostrando-nos uma Letícia às vezes insegura, às vezes serena, às

vezes revoltada e totalmente indecisa sobre qual fato relatar. Ela se guia pelo leitor

virtual, apresentando a ele o mote de sua novela: expõe com clareza por que sente

necessidade de escrever

3 As citações que se referem à obra em estudo, foram extraídas de: CHACEL, Rosa. Memórias de Letícia Valle. Primera edición. Barcelona: Editorial Lúmen, 1985.

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Caballé (1995: 108) assegura que as dimensões da memória coincidem com as

do papel em que esta se configura para ofertar ao leitor um espaço em que os

acontecimentos ainda estão recentes, e por isso é possível perceber o micro-histórico,

as faces das várias personagens e as descrições que surgirão das memórias. É este

microespaço que Letícia utiliza para relembrar, escrever e rever sua experiência

aflitiva e isso a deixa em constante busca de auto-afirmação. As marcas de sua

reflexão estão por toda a novela “la distancia es una ventaja para mí: me aísla, es mi

propiedad y no siento aquel deseo de explicaciones.” (Id. p.8) A protagonista busca no

presente uma explicação para sua existência, “O ser nos será revelado por algum

meio de acesso imediato, o tédio, a náusea, etc...” anota Sartre (2007:19). É o que ela

nos apresenta, pois na tentativa de escrever, reviver um momento que a entedia e a

isola, percebe-se desesperada e se entrega às recordações. Ela está num momento

de crise existencial e busca a possibilidade de alcançar a cura para sua essência

humana.

Ao mesmo tempo, em meio à intensidade do monólogo interior que vem à tona

em forma de memória, Letícia parece falar sem travas, as palavras atropelam sua

consciência, nesse impulso ora fala de um assunto, ora fala de outro e principalmente

de si mesma. A necessidade de exprimir-se é a proposta do recurso memória, o

memorialista ao falar de si mesmo está dizendo algo mais além da simples descrição

de suas memórias, afirma Caballé (1995:37). Portanto, sem a pausa dos capítulos,

podemos perceber a necessidade que a narradora tem em expor suas angústias

descontroladamente.

A narradora, agora na condição de autora de sua vida, percebe que o fato a ser

exposto, ainda é um problema grave, ela não lida muito bem com o assunto

traumatizante para si, pois ainda se sente só. Na tentativa de retomar o fio da

narrativa, tem como companhia somente uma planta que a observa da janela, a hera –

espécie de trepadeira que permanece verde o ano todo –, representando a única

companhia de Letícia, “es mi compañera [...], Cuando la miro, como cuando la olvido o

cuando duermo”. (Id. ib). Segundo Chevalier (2003: 486), hera “simboliza a força

vegetativa e a persistência do desejo”, assim vemos a protagonista passando pela

vida motivada pelo desejo, mas é podada como se fosse uma planta que extrapola os

limites estabelecidos.

Suas introspecções colocam o leitor no cenário lembrado. Toda ação parte “do

rio da memória [...] tudo, [...] está no romance como tempo interior, tudo é seu tempo

interior”, (Moisés. 1974: 107). Ao narrar a história, Letícia revela sob o monólogo

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interior os resquícios de perturbações e descontrole em relação ao seu consciente, o

que não é possível desconsiderar para uma análise totalizadora da trama. Ao apoiar-

se no tempo psicológico (Moisés. 1974: 107), Chacel aguça o interesse do leitor para

que penetre nas lembranças da narradora porque só sabemos da história a partir das

recordações da protagonista. Apesar da fragmentação que marca o tempo presente e

o passado, ela precisa seguir com suas retomadas marcadas pelo fluxo da memória:

“Há horas mortais, dias vazios, enquanto em outros momentos, seja porque os

eventos se precipitam seja porque nossa reflexão se acelera...” conforme Halbwachs

(2006: 116). Desse modo, Letícia inicia seu relato. Sua volta no tempo é um abismo

que a fará buscar o que de fato procura ou precisa, agora no presente.

A protagonista assume o papel de narradora, por isso ela se configura como

narrador-personagem, assim, o leitor manterá um dialogo com a personagem, e, com

isso, os fatos parecerão mais convincentes (Bosi, 1977, apud Dal Farra, 1978:11). O

romance é introspectivo visto que é narrado em primeira pessoa, com focalização

autodiegética (Aguiar e Silva, 1986: 770) porque a heroína e a narradora configuram-

se na mesma personagem, havendo um intervalo temporal entre o que é narrado e o

quando se narra. Na confluência dos dois eus surgem posturas díspares quanto ao

modo de pensar da personagem nesses dois tempos, conforme esclarece Aguiar e

Silva:

Amadurecido ou envelhecido, o eu narrador, ao rememorar eventos de eu narrado, pode assumir uma atitude irônica e judicativa ou uma atitude solidaria perante o eu narrado, pois que o fluir do tempo esgarça a identidade entre o eu narrador e o eu narrado, instaurando entre ambos uma relação ambígua e complexa de continuidade e de ruptura. (1986: 770)

Nessa atmosfera, vemos erigir das memórias da protagonista os fatos que ela

precisa elaborar, com as marcas traumáticas que a impedem dar o início. Para Freud

“o trauma traz à mente, num período curto de tempo, um aumento de estímulo grande

demais para ser absorvido”. (Nestrovski e Seligmann-Silva, 2000:8). Letícia retoma

sua infância, a morte da mãe, a ausência do pai alcoólatra e o suposto romance com

seu professor.

A estrutura narrativa é bastante peculiar, por ser narrada em primeira pessoa,

temos uma visão ampla do espaço, do ambiente, da ação e principalmente das

personagens, ficando, assim, o leitor em contato com a trama na sua totalidade. Por

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certo, essa divisão é um ponto que suscita comentários, visto que, a novela caminha

de forma não-linear; a partir do recurso de memória, a protagonista rememora, mas

também reflete no momento da lembrança, porque é estabelecido um contato com o

que se narra com o narrador. Surgindo daí uma lacuna passível de investigação.

Essa lacuna entre o narrador e o fato narrado incita o leitor a penetrar junto

com Letícia no monólogo interior (Dujardin, apud Lobo, 1993:39). Nesse sentido, a

narradora coloca o leitor num ambiente cuja denúncia traz à tona a condição social

dela e da mulher, especificamente, as que habitavam em Valladolid e na vila de

Simancas na Espanha. Neste ambiente e, a partir das lembranças da protagonista,

vemos explicitamente o sentimento de tédio e de solidão das personagens femininas,

apoiando-nos em Svendsen (2006:20). Conseguimos visualizar o condicionamento ao

qual elas estavam submissas e não conseguiam sair para buscar mudanças, pois

perderam até a capacidade de pensar, assim não tem força de vontade para sair

daquele estado.

As marcas dessas lembranças e do tempo retomados estão por toda a

narrativa, porque ela “compara muitas consciências a um mesmo momento” como

sugere Halbwachs (2006:116). O tempo passado que Letícia remonta transparece

algumas marcas de que o passado deve ser lembrado para que ela possa verificar sua

condição de mulher e seguir sua vida, pois agora no presente sente necessidade de

se desprender do que outrora a fizera infeliz e solitária.

Em se tratando de um romance aberto 4, o leitor não fica à vontade no

fechamento da intriga referida, pois Letícia não apresenta com clareza os fatos

relatados, há sim um “fluir caótico da corrente de consciência” (Aguiar e Silva, 1986:

770) que conduz o leitor a refletir com ela sobre seu estado.

Segundo Halbwachs (2006:119), “A memória não tem poder sobre os estados

passados e não os devolve a nós em sua realidade de outrora”, daí haver tempos

distintos no romance. A partir do que Letícia nos conta, percebemos sua situação e

visualizamos em suas lembranças uma fenda para observarmos a condição das

mulheres de um modo geral.

4 Esse termo é usado por Aguiar e Silva ao tratar do romance fechado e romance aberto. O

termo se refere ao romance aberto no sentido de mostrar que os romances abertos fazem uso

do monólogo interior. Ver: AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel. Teoria da Literatura. 7ª edição.

Coimbra, Livraria Almedina, 1986, p. 726.

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Nas memórias, a protagonista revela seu estado solitário e tedioso e, acima de

tudo, não consegue entender porque se sente tão só e isolada. Para Letícia, escrever

é uma tentativa de elaborar ou reelaborar o que ficara pendente, no entanto a memória

dever ser “um lembrar ativo: um trabalho de elaboração e de luto em relação ao

passado, realizado por meio de um esforço de compreensão e de esclarecimento...”

aponta (Gagnebin, 2006:105), assim, o objetivo de suas rememorações deve culminar

em conseguir a catarse; entretanto, percebemos que ao final do relato isso não se

configura, na verdade, não lhe resolvem nada as lembranças, pois tem somente a

hera como companhia no presente “... es ella que va a medir mi tiempo. Cuando la

miro, como cuando la olvido o cuando duermo, ella va avanzando...” (Id. p.8)

Mediante essas palavras percebemos que para Letícia não havia o que escolher,

pois, considerando sua família, a vida estava condicionada, estaria só e infeliz em

qualquer lugar. Em Valladolid, por exemplo, teria o mesmo fim que as demais

mulheres da família, estaria entregue ao espaço doméstico sem chance de evoluir,

porque teria mais familiares obrigando-a ou determinando seu comportamento

fragmentado “Sólo la angustia de tener que aprender unas cosas para comprender

otras,...” (Id. p. 10) . Ao mudar-se para Simancas, tem possibilidades de se tornar uma

pessoa mais livre, no entanto ela cai numa armadilha. Tem liberdade, mas é

impossibilitada de romper com os costumes do universo feminino internalizados. Por

mais que tente, não percebe a liberdade vislumbrada. Isso está no romance como

fagulhas do fluxo da memória. A mulher estava presa ao modelo determinado pela

ditadura de Franco conforme descreve Nuñez Puente:

Las prácticas religiosas regulaban aspectos íntimos de la vida privada, sobre todo de las mujeres, como el modo de vestirse, de comportarse y em general de su actitud ante la vida. (Nuñez Puente, 2004: 85)

No princípio da narrativa, a protagonista faz uma reflexão muito rígida em

relação a si mesma e a sua família, principalmente sobre sua mãe, com quem não

teve convivência, contudo não esquece o único momento em que filha e mãe

estiveram próximas. Nesse momento, suas memórias atingem o máximo de

intensidade com uma singularidade impressionante, ao falar do afeto materno recorda

com tamanha objetividade o carinho que recebeu da mãe, que, apesar de não se

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lembrar dela fisicamente, não esquece o momento que marcou sua vida, uma volta ao

útero materno

Me parecia sentir precisamente un no sentir en algún sitio, un tener una parte mía como perdida, como ciega. Era como si estuviese pegada a algo que, aunque era igual que yo misma, era inmenso, era algo sin fin, algo tan grande, que sabía que no podría nunca recorrerlo entero, y entonces, aunque aquella sensación era deliciosa, sentía un deseo enorme de hacerla cambiar de sitio, de salir de ella, y me agarraba al fin. ( id. p. 10)

É perceptível a harmonia simbiótica que Letícia rememora entre ela e a mãe,

dado que essa atmosfera de ternura é o retorno ao aconchego do útero materno onde

sente sua mãe com fulgor. As sensações relembradas por ela são as que ficaram

registradas no seu inconsciente e, talvez, veio à tona nesse instante de extrema

sensibilidade. Tal fato lembrado pela protagonista é verossímil, já que agora ela está

mais madura e tem consciência de seu nascimento,

Recuerdo el ruido ligerísimo que hacía mi piel al despegarse de la de ella, como el rasgar de un papel de seda sumamente fino. Recuerdo cómo me quedaba un poco en el aire al incorporarme, y seguramente entonces la miraba y ella me miraría. (id. p.10)

Letícia sensibiliza o leitor e o convida a partilhar de suas lembranças a todo

momento, chamando-o à reflexão, para entender o que ocorrera, por que estava tão

entediada outrora e principalmente no momento presente.

Seu relato, então, recupera o momento vivido cinco meses antes de seu

aniversário de doze anos, objetivando chegar ao ponto exato que pretende desabafar

cuando era pequeña, oía hablar...” (Id. p. 9), “Me parecía sentir precisamente un no sentír en algun sitio...” (Id. 9) “ Recuerdo cómo me quedaba un poco en el aire...” (Id. 9) “Es raro: si recuerdo lo que sentía...” (Id. p. 11) “Cuando yo preguntaba,

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era un alzarse de hombros...” (Id. 12) “...yo pasaba la mayor parte del tiempo con mi tía Aurélia...” (Id. p. 12).

Ao se lembrar dos momentos da infância, a tia que cuidava dela, a casa da avó,

os momentos em que passeava em Valladolid e até mesmo a professora particular nos

remete ao panorama da infância da memorialista menina. Letícia, ao retomar aqueles

meses, faz um contraponto com o momento presente “Esto río era pensar, pienso

ahora, para ver hasta donde llegan mis recuerdos, pero entonces era otra cosa,

enteramente otra cosa.” (Id. p. 17)

E a história se constrói a partir das lembranças cronologicamente ancoradas na

retomada de alguns meses, mas ainda na infância, como propõe Caballé em suas

explicações sobre relato do passado:

(...) a medida que avanza la cronología del relato aumenta la fuerza de la invención. Y es que siempre resulta más fácil asumir los compromisos con el niño del pasado que con el hombre del presente.” (Caballé, 1995:116)

A narradora volta de forma decidida a partir das dimensões ainda infantis. Em

todos os espaços que ela retoma, conta com clareza a experiência que viveu junto às

personagens, pois o ser humano lembra dos fatos a partir das pessoas com quem

convivera, como sustenta Halbwachs (2006). Ou seja, só conseguimos lembrar o que

vivemos, apoiando nossas lembranças no que os outros falaram. Dessa forma, temos

um registro mais verossímil. Ao visualizar a escola das Carmelitas, Letícia fala das

meninas que ainda tinham uma postura muito infantilizada, elas brincavam de

“comidinha” e não questionavam quase nada do que estava ao seu redor.

Depois dessa passagem, as lembranças se voltam para o momento do retorno

do pai que participava duma guerra, momento muito esperado pela narradora. Esse

instante é lírico para ela que já havia se decepcionado com a família de um modo

geral e, portanto, projeta na figura do pai suas esperanças:

Cuando cambió todo fue a la vuelta de mi padre. Los días en que se supo que estaba herido se animó todo el mundo en las dos casas. Las noticias llegaban a la de mi abuela; mi tía y yo íbamos allí y parecía que unos y otros teníamos ya algo que hacer: esperarle, cuidarle luego. (Id. p. 20)

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No fragmento acima, começa a aparecer o estado de tédio em que as duas mulheres

estavam e estariam mergulhadas. Como a tia não tinha objetivo de vida, vivia em

função de cuidar da sobrinha e, desta maneira, mergulhava na monotonia da vida e

sentia o mesmo que Letícia: a volta do pai da menina seria uma forma de ter algo

importante a se fazer. A expectativa de cuidar de alguém reanima-as do estado de

tédio de que elas estavam acometidas. Assim, a narrativa parece ganhar mais ação, a

narradora, nesse momento, escreve num tom mais alegre, seus sentimentos de

felicidade ficam mais claros, parece que as brumas que permeiam a narrativa diluem-

se quando ela fala do pai.

!Yo esperaba tanto de su llegada! Creía que él iba a explicarme, que él iba a estar cerca de mi en todo lo que me interesaba, que con mirarle solo comprendería aquellos misterios, aquellos dramas que yo sabía que llevaba dentro.” (Id. p.20)

Vemos no fragmento anterior o regozijo das duas mulheres que viviam de maneira

monótona em busca de algo que as fizesse sentir úteis para a vida. Essas lembranças

remetem à família núcleo que amarga as reflexões de Letícia, entretanto ela só vai

chegar a essa conclusão no final da narrativa, por acreditar que pode ser diferente.

No entanto, o retorno do pai traz muitos transtornos às duas mulheres, Letícia e

tia Aurélia. Infelizmente ele volta doente e com marcas irreversíveis dos traumas da

guerra, além da deficiência física – a perda de uma das pernas. Ele não quer viver na

cidade e é a partir desse momento que a família se muda para Simancas, uma vila

afastada de Valladolid. Um lugar simples e tranquilo, que beira o bucólico.

As lembranças de Simancas parecem ficar mais intensas, pois é o lugar que

permite à narradora reviver com mais força suas reminiscências. Ali estava mais livre

“yo dejé de ser el centro de la casa.” (Id. p. 22). Essa liberdade aos poucos fez com

que Letícia se interessasse mais pelo lugar e, mesmo negando a vila, busca uma

forma de sair do tédio que sentia, às vezes conseguia escapar de casa com o objetivo

de fazer algo necessário “... yo me escapaba; buscaba de cuando en cuando un

pretexto para salir...” (Id. p. 23).

Observamos que, ao mudar para Simancas, as memórias começam a obedecer

a uma cronologia mais clara, esse é o cenário próprio para começar a história porque

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Letícia quer reviver esse momento e não outro. Ela tem um propósito nesse relato. A

partir de então, o leitor vai se deparar com mulheres que vão corroborar o estado

solitário e tedioso que rapidamente é apresentado nas primeiras páginas. Na verdade,

“ahora el no hacer nada lo hacía de otro modo.” (id. p.24).

3.2- O universo feminino nas memórias de Letícia

As personagens femininas da obra parecem sucumbir ante a vida. Só a jovem

protagonista tenta resolver fora de sua casa a carência de afeto e de comunicação

precárias em sua família. A memorialista extravasa com detalhes minúsculos sua

convivência familiar, seus interesses externos e suas inquietações na tentativa de

retomar reflexões sobre sua convivência com mulheres na pequena Simancas.

Letícia enfatiza o universo feminino, abordado com certa sutileza, mas de forma

clara: o abandono, o encerro, a rotina instalados nas mulheres que cercarão seu

universo. No desenvolvimento da narrativa, a protagonista apresenta a condição

existencial de cada mulher com quem teve contato, porque o ambiente no qual se vive

traz recordações mais vivas. A esse respeito Halbwchs afirma:

Nosso ambiente material traz ao mesmo tempo a nossa marca e a dos outros. Nossa casa, nossos móveis e a maneira como são arrumados, todo o arranjo das peças em que vivemos, nos lembramos nossa família e os amigos que vemos com freqüência nesse contexto. (Halbwachs, 2006:157)

Letícia se lembra de diferentes espaços povoados por mulheres com costumes

e formação diversa. Todas elas estão presas em seu recinto familiar por algum motivo,

ou não tinham ideias de como sair do condicionamento no qual viviam há muito tempo,

ou poderia ser que a resignação imperava. A pequena Simancas, com sua estrutura,

suas tradições, as pessoas e seus objetos que as cercam nos dizem muito sobre o

grupo que vive ou viveu ali, pelas marcas que ficam contidas na interioridade, tal como

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expõe Halbwachs, que “as imagens espaciais desempenham esse papel na memória

coletiva”, (Halbwachs, 2006:159).

O primeiro espaço que podemos observar é a casa onde Letícia morava, lá

havia as empregadas, o pai, a tia e ela; sendo a família constituída por mulheres,

porém dominadas por uma minoria masculina. Esta casa era a materialização do

próprio fastio. A menina se sentia muito aborrecida e se queixava de seu cotidiano “...

desde que caí en el pueblo, todo me dio igual: me levantaba sin llamarme nadie y en

cuanto oscurecía ya estaba deseando irme a la cama.” (Id. p. 25). O abandono, o

cansaço, o encerro são constantes que se manifestam não só nas pessoas, mas

também em todos os espaços retratados pela protagonista; é um ambiente

caracteristicamente doméstico de total fastio.

A protagonista metonimiza a atmosfera do isolamento indolente configurado

nas personagens femininas submersas no ambiente doméstico. Ela descreve o

transcorrer do tempo e as ações das mulheres daquela vila que não tinham nenhuma

perspectiva de vida social ou cultural. A memorialista, sobretudo, reunia qualidades

que muitas mulheres não possuíam. Nas memórias fica claro que Letícia era uma

menina perspicaz, inteligente, questionadora e com um temperamento especial.

Sentia-se muito livre naquela pequena cidade, mas, ainda com liberdade sente que a

vida e a cidade não lhe oferecem nada interessante, chamando-nos a atenção para

uma reflexão que perpassa a essência humana e culmina, algumas vezes, no

metafísico, denunciando a monotonia da vida das personagens femininas.

É importante a decisão que ela faz quando vai estudar no colégio das

Carmelitas, aqui observamos um confronto entre o que era “ser menina” e sua singular

maturidade. Esse confronto é determinante para entendermos a precocidade da

protagonista que tem uma psicologia, às vezes, incomum para as meninas de sua

idade. No colégio sente “horror” das meninas que ainda brincavam de “comidinha” e

de bonecas. A comidinha poderia remeter ao destino doméstico e a continuidade do

papel familiar que as mulheres têm como cotidiano: tornar-se uma esposa reclusa ao

lar para cozinhar, ter filhos, bordar e esperar o marido.

A protagonista nos coloca a par dos conflitos existenciais vividos por várias

mulheres naquele pequeno espaço em que a mulher só existia para um único papel

social: o de esposa e consequentemente mãe.

Dessa forma, talvez o interesse de Letícia em escrever suas memórias, esteja

no fato de ela ser muito precoce e enxergar uma realidade obscura aos olhos de

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outrem, mas não tem a maturidade para definir o que lhe era necessário, enquanto

crescia e recebia instruções de pessoas alheias e nunca de sua família. Em particular,

Letícia necessita que outras mulheres saibam que: a orientação e a afeição familiar

são primordiais à educação. No fragmento que segue, é revelada a falta de

comunicação entre ela e o pai:

Cuando quiero decirme a mi mísma algo de todo lo que secedió, sólo se me ocurre la frase de mi padre: “!Es inaudito, es inaudito!” Me parece verle en su rincón, metido em su butaca, cogiéndose la frente con la mano y repitiéndola, y yo, desde el mío, diciéndole sin decirle: “Eso es lo que yo estaba queriendo decirte siempre. Yo no sabía decir que todo lo mío era inaudito, pero procuraba dártelo a entender, y tú de todo decías que no tenía nada de particular. (Id. p. 7)

Nas lembranças da narradora-protagonista deslindam, num mesmo contexto,

mulheres que desistiram ou não tiveram discernimento para perceber sua própria vida.

A professora ensina às meninas a arte da costura e as delicadezas que eram próprias

da mulher, para refletir a história das mulheres até o infinito, quer dizer, a mestra,

conforme exigia o meio, ensina Letícia a bordar, e Letícia na sua vontade de viver

conta histórias e canta para todas. É nesse momento que a professora projeta na

menina a possibilidade de mudança, indicando-lhe Luisa, professora de música e

esposa de D. Daniel, para receber aulas de música.

Ao sair da casa, Letícia conhece Luisa, professora de música, entre ambas

estabelece-se uma relação especial. Em suas recordações, a narradora confessa que

Luisa era uma mulher diferente, havia algo nela que a seduzia por que lhe oferecia

tudo que a garota desejava.

Em outros termos, Letícia ficou deslumbrada com Luisa, ao ponto de fazer uma

minuciosa descrição dela, considerando todos os aspectos que lhe saltaram aos olhos

naquele primeiro contato. Em contrapartida, vemos que o mesmo ocorreu com Luisa,

pois, em troca, deixa sua casa à disposição da menina. Entre outras coisas, Letícia

encontrou naquela casa a família perfeita: pai, mãe e irmãos. A passagem que segue

é pertinente para entendermos esse sentimento tão forte surgido em ambas:

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Cuando le oí decir “adiós, querida”, me di cuenta de que no era castellana. Su desenvoltura me deslumbró; no era elegante como algunas señoras de Valladolid que yo admiraba, no sé si se puede emplear aquí esta palabra, pero yo diría que era mundana. Ya sé que doy a esto un sentido que no es el que se le da generalmente: para mí, mundana quiere decir que no tiene la manía de estarse quieta que tiene toda mí familia. Tampoco tenía el aire de viajera de mi primera profesora. Bueno, aquélla era una princesa, pero tenía algo de persona emprendedora. Llevaba un vestidillo de vuela que se le desabrochaba por todas partes y tenía puesta unas chinelas de tafilete rojo que hacían que sus tobillos resultasen aún más huesudos.

Esa fue mi impresión cuando la miré al marcharme, a la puerta de su casa. Había un cerco oscuro, entre azul y verde, alrededor de sus ojos grises muy grandes. Sólo por tener aquellos ojos ya se podía decir que era muy guapa, y en realidad lo era. Estaba mal peinada, de un modo gracioso, y tan delgada que parecía que en vez de estar criando a un hijo estuviese criando diez a un tiempo. (Id. p. 32)

Ao observarmos as descrições minuciosas do primeiro encontro, no trecho, temos a

evidência do relacionamento cordial que a protagonista teve com a professora de

música. Letícia vislumbra em Luisa a família que sempre buscava. Vê na professora a

possibilidade de sentir a afeição materna que nunca sentira, e que tanto a deixava

solitária, infeliz e em constante busca.

É interessante notarmos que a mistura do tempo traz as reflexões do estado de

Letícia e da própria professora que à primeira impressão mostra-se uma pessoa

diferente e feliz, porém no decorrer da ação revela resignada:

(...) después, fui viendo que su cara era siempre igual; no podía cambiar de expressión sino en algunas ocasiones muy graves, en las que aquella misma franqueza se hacía ruda, y su voz, que en general era suave, se hacía chillona. Yo no vi nunca más que momentos pasajeros de ese aspecto suyo, pero ahora estoy segura de que se habrá quedado así para siempre. (Id. p.32)

É interessante nesse momento, quando ela se volta ao presente da narração e

tece considerações do condicionamento ao qual Luisa ainda se submete:

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(...) la casa probablemente sigue igual. (…) Si pienso en esto acabo por perder la fe. Me vuelve loca esta soledad; que este yo aqui con mi desesperación y otros en otro sitío con la suya, y que al mismo tiempo las cosas se queden como estaban. Porque entonces pienso: aquella luz de otras veces, aquel ambiente, no querían decir nada, no estaban hechos para mí. (Id. p.32)

A alternância entre o tempo presente e o passado cria momentos de tensão,

exacerbados pelo estado emocional que aflora na narradora, pois, ao se lembrar de

Luisa, a atmosfera é de muita solidão e piedade. Já que via na amiga uma relação de

puro amor: o de estar junto e sentir uma a outra como se a priori lembrasse da mãe.

Sentia em Luisa a mãe ausente e questiona o porquê de tanta recusa por parte dela

em se libertar do ambiente familiar. Luisa sucumbe à imposição social. Em troca, não

havia nada que abalasse a condição social daquela mulher em que a ideologia do

momento estava tão arraigada.

Enfim, Luisa, a personagem que tem uma ligação mais próxima com Letícia,

também está resignada. Apesar de ser intelectual, a professora de música, não

extrapola o espaço doméstico, nem mesmo quando acontece a tragédia, o sumiço do

marido. Nas memórias de Letícia fica o questionamento: será que antes era assim

também? Na verdade, era, por isso Luisa sentia felicidade ao lado da narradora, pois a

força de viver e a alegria da menina de onze anos a tiravam do estado letárgico o qual

vivia há anos. Ao reviver o acontecido, a maturidade que a faz refletir sobre os

sentimentos da amiga, permite perceber que, apesar de tudo que aconteceu, a casa

continuava a mesma, o ambiente não mudara

Na matriarca da família de Letícia, temos uma senhora forte que passa a

tradição da postura da mulher às demais da família. O ambiente no qual elas vivem é

marcado pela desesperança. Além de não terem intenção de sair à procura de sonhos,

as mulheres vivem somente para o papel que lhes é designado pela sociedade

machista: devem ser boas esposas e se entregarem às tarefas domésticas como

bordar, fazer artesanatos, lecionar...

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Mi pobre tía me sacaba a pasear todos los días, y siempre, antes o después de nuestro paseo, nos deteníamos en casa de mi abuela. Allí era donde había grandes conversaciones alrededor de la camilla. Las tías se entretenían en hacer encaje de Irlanda, calados de Tenerife: tenían la habitación inundada de cestillos y bastidores. Yo me asfixiaba allí, y (...). (Id. p. 12-13)

Aurélia era a tia que cuidava da educação da menina. Contudo, Letícia não lhe

obedecia pois tía Aurelia, “era la menos aficionada a hablar” (Id. Ib.). Era uma

solteirona que falava pouco e tinha poucas amigas em Valladolid, levava Letícia aos

lugares que ela necessitava ir, mas em Simancas a deixa à vontade e a garota se

encarrega de ir e vir conforme seu desejo. E, quando a avó determinava que a tia e

Letícia tivessem de comprar coisas ou de explicar algo, a tia Aurélia deixava a cargo

de Letícia: ela tinha uma “memória prodigiosa”. Isso vai conduzindo o leitor a confiar

nela, pois com uma boa memória se lembraria de tudo mais fielmente.

Outra personagem também plana (Candido, 1981) é a professora primeira de

Letícia, a que percebe seu talento musical. Essa personagem é a representação da

própria solidão

¡Era tan extraña para mí aquella señora! Yo no me había sentido nunca confusa delante de mi profesora cuando era pequeña.(…) Las primeras lecciones fueron tan angustiosas para ella como para mí: preguntas y respuestas que se iban consumiendo poco a poco, y, al cerrar cada libro, un carpetazo como un suspiro de descanso. (...) Intenté mil veces sacar alguna conversasión que me diese una pista de sus gustos o de sus habilidades: inútil. La pobre se escondía porque sabía que su instrucción era muy escasa y no quería perder su autoridad cometiendo algún error. (Id. p. 25-26)

O excerto mostra que a professora é uma pessoa que carece de companhia e, nas

férias da escola mantém outras duas meninas e Letícia como companhia, agradando-

as para mantê-las nas tardes tediosas. Nesse grupo outra personagem revela vontade

de se lançar à vida, é a menina mais alta, que chama a atenção da narradora, mas

que ainda não tem discernimento sobre os conflitos existentes.

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Em contrapartida a personagem Frida, uma tia, foge à normalidade, é uma

mulher viajada e estudada. Formada em arqueologia o que a levava a ter curiosidade

em conhecer os lugares que remontavam à memória de um povo.

A mi tía, con sus estudios arqueológicos por el Mediterráneo, le gusta mucho enseñarme a sus amigas. Vienen generalmente unas cuantas a tomar el té con ella, junto a la chimenea, y luego hacen tricot y charlan todas a un tiempo. (Id. p. 168)

No entanto, era uma mulher entregue a esses deleites, sem uma função social.

Havia um vazio nela que a fazia falar sem parar e, além de não se importar com os

negócios da família levava uma vida fútil, que sua condição financeira permitia e,

nessa esteira, tenta levar sua filha Adriana, uma menina que aprende o que era

determinado para a mulher dessa classe social desde cedo: dançar, falar línguas

diferentes e viajar. O que fica claro nessas duas personagens que aparecem em meio

à ação narrativa, é o contraponto com as mulheres que habitam Simancas, porém

todas, apesar da diferença cultural, estão resignadas e entregues ao seu vazio

existencial, não vislumbram uma vida melhor nem qualquer liberdade de escolha.

3.3- As marcas singulares da escrita de memórias em Memórias de Letícia Valle

Sabe-se que para escrever é preciso sistematizar o que se pretende expor,

como Letícia necessita escrever por questões emocionais, ela tem de encontrar um fio

que conduza à seqüência dos fatos “Pero? A qué conduce este discutir? Estamos muy

lejos, como siempre estuvimos, con la diferencia de que ahora la distancia es una

ventaja para mí.” (Id. p.7-8) se pergunta indecisa.

Ela tenta ir por muitos caminhos, e, em meio a reflexões, lembra-se de vários

fatos na tentativa de dar sequência a eles, mas não consegue ter clareza sobre o que

de fato planeja fazer em princípio, pois a memória, fluindo intensamente, deixa-a

confusa, e ela fica entre um eu narrado e um eu narrador, “Claro que si ahora lo que

ha pasado te parece inaudito es porque sigues creyendo que anteriormente nada tenía

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nada de particular.” Diz a si mesma (Id. p. 3) e “Aquí ya no pueden quitármelas, ní

ellas pueden irse; aqui seran como yo quiera, no pueden estas otras que están de

veras a mí alrededor; las veo, pero me niego a creerlas.” (Id. p. 8), dando se ela

mesma a resposta às dúvidas e incertezas.

Ainda no início da narrativa, Letícia fala do que sente no presente. Mora com a

tia Frida e sua família; ela se lembra de Adriana e dos deveres que terá de assumir em

relação aos estudos. Notamos, então, certa rebeldia em relação ao contexto em que

está vivendo, ao procurar pela liberdade que ainda não encontrou:

tengo que aprender de prisa el alemán para poder seguir los estudios con ella. No aprenderé el alemán, ni esquiaré, ni estudiaré nada. No iré por ese camino que me marcan, no seguiré a ese paso. (Id. p.8-9)

As recordações sobre a mãe são emotivas, por isso ela ancora no nascimento

o princípio de tudo, ainda mais no caso da protagonista, que não conheceu e nem

conviveu com a mãe:

Esto me atormenta más que nunca cuando quiero hacerme una idea de cómo sería mi madre. Cuando era pequeña, oía hablar de ella y me decía a mí misma: No era así, yo recuerdo otra cosa, pero ¿qué es lo que yo recordaba? Nada, claro, nada que se pueda decir ni siquiera oscuramente. La verdad es que nunca pude recordar cómo era mí madre, pero recuerdo que yo estaba con ella en la cama. (Id. p 10)

Desde criança Letícia tentava entender sua vida, buscava respostas e sempre

vivera em função do que a família determinava – os tios, as tias, a avó, e nunca o pai e

a mãe –, por isso a recordação mais forte e mais viva está no lirismo das lembranças

da mãe:

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Por muchos años que pasen, no se me borrará este recuerdo, y puedo hundirme en él tan intensamente, sobre todo de un modo tan idéntico a cuando era realidad, que en vez de parecerme que cada vez lo miro más desde lejos me parece que, al contrario, algún día pasaré más allá de él. (Id. p. 10)

A lembrança citada destaca um momento de puro lirismo na novela, porque era a

única lembrança que tinha da mãe, tanto que Letícia, se lembrava das sensações e

não das imagens que normalmente são mais fortes. Por isso ela só começa a escrever

depois da organização das recordações nebulosas, “pienso ahora, para ver hasta

dónde llegan mis recuerdos.” (Id. p.17).

As marcas das memórias estão mais fortes quando ela nos fala da afeição

materna e paterna, lembrava-se da mãe por sentir o calor e o aconchego no útero;

enquanto a relação paterna era a possibilidade de sentir mais afeto, não obstante, o

pai também ser desprovido de afeição, na verdade era um homem amargo e

injustiçado pela vida, visto que fora um combatente de guerra que volta debilitado e

infeliz. O pai não realiza o desejo da filha que tanto o esperava, e a decepção é

tamanha que ela abdica de sua participação em sua vida:

Pero no fue así, y no es que él se apartase, no; me quería mucho, quería tenerme siempre co nél, pero no quería que le preguntase. Mi mirada, mi ansiedad, yo creo que le hacían daño. No tenía valor para recordar. ( Id. p.20)

Outra importante marca de memória é a que vai permear as lembranças da

residência da professora Luiza e D. Daniel, mais acentuado a princípio em Luisa.

Quando Letícia a vê, surge um sentimento materno mesclado com um erotismo, “signo

da harmonia, da conjunção dos opostos e, sem dúvida, da fecundidade”, declara

Chevalier (2003:376). Tais sentimentos embebedam a protagonista, nesse lugar ela

pretendia ser feliz e se apropria da atenção de Luisa que projeta também em Letícia o

que gostaria de ser. As recordações de Letícia revelam o acolhimento de Luisa:

Recordaré siempre que al despedirnos en la puerta me dijo: “Ya sabes, puedes venir desde mañana a eso de las seis. Bueno, tú puedes venir a cualquier hora; adiós, querida.” (...)

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Doña Luisa se puso a enseñarme todo la casa antes de que yo mostrase interés por ella. ( Id. p.32-33)

Luisa vive suas emoções através da menina, é como se ela voltasse ao

passado e tivesse a chance de ser uma mulher feliz, talvez porque Letícia tivesse se

interessado de forma especial por ela. No primeiro momento em que elas se veem, a

protagonista se deslumbra diante de uma mulher tão formosa, e com um ar de

princesa, mas ao mesmo tempo “mundana” com a conotação de mundo, daquela que

o está sentindo. Ambas convivem de forma harmoniosa, a amizade transcende o nível

ordinário. Elas nutrem uma pela outra algo mais forte que uma simples amizade entre

uma professora e uma aluna.

Letícia, em suas lembranças, faz uma descrição minuciosa de Luisa.

Observamos na sutileza das descrições a atmosfera de amor, afeição, erotismo e

solidão do sentimento que ficara nas memórias. O tempo da memória nos conduz ao

que Halbwachs sugere:

Há horas mortas, dias vazios, enquanto em outros momentos, seja porque os eventos se precipitam seja porque nossa reflexão se acelera, ou porque estivéssemos em estados de exaltação e efervescência afetiva, temos a impressão de viver anos em algumas horas ou alguns dias. É o que acontece quando se compara muitas consciências a um mesmo momento. (Halbwachs, 2006: 116)

Nesse excerto, apontamos a relação que Letícia nutre por Luisa e, ao final da

narrativa, a protagonista não aceita ver a amiga infeliz, apesar de tudo que viveram

juntas.

Nas considerações da narradora, Luisa deveria se transformar em uma mulher

diferente depois da tragédia: estava livre. Poderia mudar de cidade, de vida, mas se

entrega ao vazio, e no presente Letícia a sente mais solitária e entediada,

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su cara era siempre igual; no podía cambiar de expresión sino en algunas ocasiones muy graves, en las que aquella misma franqueza se hacía ruda, y su voz, que en general era suave, se hacia chillona. Yo no vi nunca más que momentos pasajeros de ese aspecto suyo, pero ahora estoy segura de que se habrá quedado así para siempre. Aquella mirada de confianza no volverá a repetirla nunca. (Id. p. 32)

Ao falar de Luisa, ela traz todas as recordações para o tempo presente e, ao mesmo

tempo em que o descreve, reflete sobre a condição de vida daquela mulher que repete

a história das mulheres viúvas.

Na construção das lembranças, Letícia revive o que ocorrera entre ela e o

professor D. Daniel, naquela casa de onde não saia mais. O tempo passado começa a

correr cronologicamente depois que Letícia passa a estudar música e História com D.

Daniel. Assim a narrativa ganha marcas temporais

Ya en los últimos días de noviembre.” (Id. p. 40); No recuerdo cómo terminó aquella tarde, pero si que yo perdí mi tranquilidade. (Id. p.43); Tenía el recuerdo de haberlo hecho otras veces. (Id. p.47); Cada vez que recobraba la conciencia me decía a mi misma que había sido tal el embelesamiento de aquella tarde que no podría fácilmente borrar la impresión. (Id. p.48) ; El año había terminado, pero no cambió nada, no se empezó una vida nueva. (Id. p.73); El mes de marzo ya fue diferente. (Id. p.74); Y nuevamente por aquellos días yo volví a retroceder, pero no hacía el atontamiento como durante el invierno; más lejos: volví a reanudar las fantasías, los ensueños de cuando era pequeñísima. (Id. p.78).

Uma marca importante é quando Letícia mistura o tempo presente com o

passado, questionando o que fizera e quem fora. Nesse momento ela tem a certeza de

que em tudo que viveu não poderia ter sido diferente. Os parentes, entretanto,

pressupunham que a tragédia seria algo premeditado dado se tratar de uma moça que

iniciava a vida e de um homem maduro e experiente.

Ao término do relato, Letícia percebe que não conseguiu desabafar o

necessário, ainda está infeliz. No entanto, de alguma forma, sente-se, fazendo

previsões em favor de sua vida. Nada parece ter adiantado ter relembrado, ela contou

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suas memórias de forma fragmentada, apresentou momentos mais intensos, contudo,

ainda estava transtornada e extremamente sozinha:

En el día de hoy, ya distante de los hechos, puedo traer a la memoria aquellos momentos de agitación reviviendo sus más pequeños detalles, porque la que actuaba en ellos era yo misma, la que soy ahora; pero el día después, ¿quién era yo el día después? Sólo puedo recordarlo como se recuerda lo ajeno, como si me hubiera visto a mí misma, desde una ventana (…) Yo no era más que un muerto que andaba. (Id.p 138); Ahora es muy otra cosa lo que me queda por decir. Si pudiese seguir llenando páginas con los detalles olvidados de imágenes o de pensamientos, eso significaría que la vida continuaba; pero no, no continúa. (Id.p.158); “Podría dar por terminado el relato. Estamos ya en el mês de marzo. (Id. p.166).

O levantamento das marcas memorialísticas nos esclarece a genialidade e o

experimentalismo de Chacel, ao iniciar a leitura da novela nos deparamos com um

passado marcado pelo verbo no imperfeito, conduzindo-nos a um cenário de muita

solidão, tédio e reflexão a partir de momentos relembrados, pois conforme Perrot, “os

modos de registros das mulheres estão ligados à sua condição, ao seu lugar na família

e na sociedade” (2005:39).

Outra questão que sobressai ao texto memorialístico é o envolvimento que

temos de fazer com a narradora em relação à solidariedade que ela nos reclama, pois

está definitivamente só. Consegue passar uma angústia existencial, apontando o

mesmo drama de outras mulheres com quem convive, e também acometidas pelo

mesmo estado, porém estas não conseguem perceber tal fato e Letícia, além de

percebê-lo, descreve-o e reflete sobre ele: o isolamento das mulheres daquele lugar.

Por isso ela conclui o relato apontando por que escreve e por que se sente bem ao

fazê-lo

De pronto me acuerdo... No, eso no lo escribiré. Descobrí todos mis sentimientos sublimes hasta que desembocaron en aquello, porque para eso lo hice: para que se viese dónde fueron a parar. De lo de ahora no quiero decir nada, no quiero que resulte conmovedor mi sufrimiento; al contrario, si sigo escribiendo es sólo porque no quiero pasar por alto esta red de detalles grotescos que se teje alrededor mío, para mi bien. (Id. p 168)

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3.4- A personagem Letícia Valle: representação do r eal

A personagem é considerada um dos elementos mais importante e mais

maleáveis da narrativa. Na obra A poética de Aristóteles, a personagem é a imitação

do real. No entanto, no século XIX, com surgimento do romance psicológico esse

conceito é ampliado, pois a necessidade de uma nova postura frente ao que estava

nascendo ganha direito a revisão. O romance moderno exigiu, então, novas pesquisas

e estudos voltados à sua interpretação.

Na modernidade não se tem mais o herói eloquente totalmente previsível e

vencedor ao final da narrativa. Na verdade, com a decadência dos ideais franceses, o

herói mudou de postura, a personagem protagonista passou a ser criada a partir do

homem comum. No século XX, com efeito, os formalistas russos criaram a teoria para

o estudo da personagem, na concepção deles a personagem não é a imitação do ser

real, mas um ser constituído e com existência apenas dentro do texto. Sua criação

postula a partir da linguagem e assim ganha “fisionomia própria”.

Por certo, a teoria da literatura contribuiu para o novo romance nascido no

século passado. As considerações frente à personagem constituíram uma ferramenta

a mais na interpretação do romance moderno.

Na perspectiva de Aguiar e Silva (1986: 686), a personagem constitui um

elemento estrutural indispensável à narrativa, visto que é a personagem que dará ação

à narrativa. Dessa forma, é imprescindível que sua criação sobressaia ao contexto

narrativo, obtendo, assim, prestigio social. No âmbito dessa teorização, Brait (1985:

11) afirma que a personagem é um problema linguístico e sua construção parte da

representação também de pessoas, já que o texto será seu espaço e o autor deverá

criá-la linguisticamente para que possua vida própria e obtenha vivacidade extratexto.

Cândido (2004) assegura que depois do término da leitura de um romance o

que sobressai é sempre a personagem, devido à relação que o ser ficcional tem com a

pessoa real. Com efeito, a personagem é a comunicação entre o ser real que se

apossa da ficção, discutindo um problema social.

Letícia é a personagem principal e a heroína da novela em estudo, segundo o

que Moisés (2004) dispõe sobre a personagem. Sendo, então, a protagonista (Aguiar

e Silva, 1986) e, por se tratar de um romance em primeira pessoa, também se

configura como narradora. Portanto está na ação como personagem-narradora,

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contando-nos por meio da primeira pessoa, dando mais veracidade ao fato narrado,

pela profundidade da qual extrai os sentimentos mais íntimos, ainda que sejam

fragmentados. Bosi afirma que o “eu que se dá no texto é apenas o sujeito do

enunciado gramatical como também o sujeito da enunciação, logo objeto e mola da

criação ficcional” (Bosi, apud, Dal Farra, 1977: 12)

Letícia pode ser considerada como uma personagem mista, pois em seu relato

vemos a vitalidade crescente no seu cotidiano. Apesar de sentir muita falta de

referência familiar, gosta de viver, pensa na liberdade, envolve-se com as artes,

dispõe-se a participar das festividades na escola, momento em que declama um

poema.

Projetada como personagem esférica (Cândido, 2005), por revelar de forma

interna sua vida interior, Letícia mostra-se tomada de uma alegria e intensidade na

forma de viver, está sempre em busca de algo necessário à sua plenitude. Suas

descrições físicas são poucas, no entanto o que ela deixa transparecer por meio do

seu discurso, chama a atenção, porque ainda menina lança-se a vida e, dotada de

uma alegria ainda infantil, percebe-se e sente-se mulher. Busca seus anseios porque

sua energia lhe permite e sua alegria – como seu próprio nome significa –,

acompanhado do sobrenome Valle indica seus anseios, como se tivesse um imenso

descampado por descobrir.

Letícia ganha liberdade para decidir o que quisesse fazer, e, com o objetivo de

estudar música, consegue a permissão de sua família para ter aulas com Luisa. No

entanto, as aulas de música ficam de lado, ela encontra naquela casa o que sempre

lhe faltou, a estrutura triangular de uma família perfeita: pai, mãe e filhos. E, dessa

forma, aproveita para se adentrar na casa e usufruir de afeto familiar, por isso vai

estudar História com o marido da professora.

Em seu rememorar fica explícito todo seu domínio sobre si mesma, acaba

sendo seduzida, porque com muita liberdade, não enxerga as complexidades que a

vida oferece. Mesmo no presente da narração, já mais madura, tenta ser autoritária

consigo mesma, rebelando-se em relação aos estudos, diz que não fará aula de

alemão, nem vai esquiar e nem vai estudar nada, assim mostra sua capacidade de

perceber-se livre e independente. Letícia, então, faz reflexões voltadas para as coisas

divinas. Diz que a vida pode ser algo que vem e vai e finaliza “Deus é o principio e fim

de todas as coisas” (id. p.5). Vemos então que o plano para o qual chama a atenção é

um plano universal.

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Outro fato importante é retomado pela lembrança de como rezava no escuro,

essa escuridão podemos relacioná-la com a obscuridade dos fatos que a acometeram

e que ela precisa revelar. Com efeito, reza no escuro e, ao abrir e fechar de olhos se

perde de si mesma, portanto toca-se atenta para ver se está mesmo por ali como se

se sentisse nula e sem referência.

Ao pensar na escuridão sente angústia e reza. Interessante essa recordação,

pois muitos já viveram o pânico de não enxergar quando a escuridão os faz perder-se

de si mesmos. Na verdade, conforme Svendsen é no estado de “insônia em que o “eu”

perde sua identidade na escuridão, preso num vazio aparentemente infinito” (2006:13-

14).

Assim, ela se lembra de fatos que foram relevantes para seu

autoconhecimento. Ao se dispor a escrever suas memórias, precisa pensar sobre o

que fora vivido, por isso o estado antitético em que se encontra é ressaltado, com uma

afirmação veemente: “Sinto tal necessidade de pensar por conta própria que, quando

não o posso fazer [...] “ acolhe a [ opinião] dos outros como se fosse um ser sem

“sentimentos” (id.p. 6)

A heroína faz uma analogia bastante interessante com o mito de Narciso,

sabemos que Narciso se interessava apenas por si mesmo, essa analogia faz com

que, em suas memórias, Letícia reveja a si mesma. Na verdade, as memórias devem

suscitar os fatos num determinado momento histórico com o objetivo catártico, como

argumenta Caballé (1995: 108/109), portanto a narradora está olhando para dentro de

si, para depois mudar, transformar-se em outra pessoa mais polida humanamente.

Apesar de ser perspicaz e atenta a tudo ao seu redor, Letícia mostra, através

de suas memórias, como se sentia desnorteada com o que sempre lhe ocorria no dia a

dia, lembrava-se do estilo de música que as amigas da tia Aurélia tocavam: Fugas,

estilo musical que é toada a muitas vozes. Essa analogia com fuga mostrava ainda

uma menina que pensava em muitos questionamentos para os quais não obtinha

resposta de ninguém. No entanto às vezes a mulher que tentava sair de dentro dela

falava mais alto. Em determinado momento em que não tinha maturidade para

entender certas coisas, via-se criança e elucubrava sobre o assunto; em outro

momento apresentava uma maturidade além do normal.

Na verdade, aí está a genialidade de Chacel: constrói uma personagem

protagonista memorialista e por meio dela metonimiza o comportamento do universo

feminino espanhol, com suas angústias, problemas, dores, sem saída, etc. Assim,

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observamos os fragmentos que surgem no início da narrativa. Segundo Cândido, ao

falar da composição da personagem, “Cada um desses fragmentos, mesmo

considerado um todo, uma unidade total, não é uno, nem contínuo” (Cândido, 2005:

56).

Em suas memórias, Letícia busca incessantemente a liberdade que a leva a se

envolver com a professora Luisa e com o D. Daniel, porque, até então, ela vivia

cercada de cuidados com a vida regrada dentro das convenções sociais determinadas

por sua família.

Letícia se lembra que, ao instalar-se em Simancas, apresenta-se um tanto

insatisfeita com a mudança repentina. Porém, vai se adaptando e fazendo amizade.

Portanto em determinado momento da ação, Letícia é convidada a participar de um

evento promovido pela professora de música, e nesse contexto, vemos que ela se

entrega a essa apresentação com entusiasmo. Letícia se sente muito feliz nesse

contexto em que declama o poema:

Si es difícil en cualquier caso medir el aliento que hay que dar al primer verso, mucho más lo es en La Carrera, pues el poema se desboca en las primeras palabras con el impulso de un caballo que no obedece al freno. (Id. p. 127)

Observamos que Letícia aproveita esse momento artístico para dar vazão aos seus

sentimentos, apresentar-se diante de uma plateia eleva seu estado espiritual, junta-se

o desejo de estar no palco, mostrar seus conhecimentos poéticos e sua arte de

declamar e o intento de se dirigir indiretamente ao professor, quer dizer uma figura

feminina de Narciso.

En los cuatro primeros alejandrinos ya me sonó a mi misma mi voz como un galope, y en seguida me esforcé en suavizar lo que había oído al médico llamar la monotonía onomatopéyica: no me fue difícil. Después de sugerir el ímpetu del caballo, empieza la descripción de las imágenes airadas que pasan junto al rey moro.” ( Id. p. 127-128)

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Apesar do nosso objetivo aqui ser o de tratar da produção de memórias, não podemos

desconsiderar o diálogo entre Memórias de Letícia Valle e a obra A la orilla de um

pozo, (1936), um livro de poesia que trata da amplitude literária de Chacel, a temática

clássica e autobiográfica. Observemos as imagens presentes no fragmento do poema

“Narciso” do livro citado:

¿Dónde habitas, amor, en qué profundo

seno existes del agua o de mi alma?

Lejos, en tu sin fondo abismo verde,

a mi llamada pronto e infalible.

Nuestras frentes unánimes separa

frío, cruel cristal inexorable.

O poema escrito anteriormente à obra em estudo, remonta aos anseios de

Letícia, pois no início da narrativa quando Letícia participava do momento

feminino na casa da abuela, sentia vontade de sair às ruas para comprar o

necessário para os afazeres domésticos. Às vezes se envolvia com outras

questões que a faziam refletir. Considerando o poema “Narciso”, Letícia se

sentia feliz e pensava na Grécia e particularmente em Narciso. Sabemos que

Narciso é a figura mitológica que possui uma beleza extremada e, por isso,

acabou se frustrando, porque se apaixonou por si mesmo ao ver sua imagem

refletida na água. Por isso sofre com a contrariedade da natureza humana que

tem como condição se apaixonar pelo “outro”. O reflexo da imagem de Narciso

remonta ao vocábulo refletir, que na sua denominação latina significa

reflectere: voltar para trás; nesse sentido, voltar requer um olhar particular para

si mesmo, entrando em contato com uma parte que desconhecemos de nós

mesmos ou algo que ainda nos é obscuro. Percebemos que Letícia, no início

do relato, prepara o leitor para algo que está no seu subconsciente que será

revelado nas páginas que seguem. O que deve ser ressaltado aqui é a ligação

de uma obra com outra. A autora conseguia manter um diálogo entre suas

produções literárias. O romance dialoga com o poema “Narciso”, mito referido

nas lembranças de Letícia, apresentado uma visão do eu interior.

Diante de tanta liberdade e com tantas coisas por descobrir, a narradora se

projeta em várias ambiências domésticas. A partir de suas lembranças, vemos que

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cada espaço determinado à mulher, era nebuloso, frio, tedioso e solitário, segundo

Perrot, a mulher “é uma memória do privado, voltada para a família e para o íntimo”

(2005:39). Contudo, a protagonista consegue ir bordar com as meninas na casa da

professora e obtém a permissão de sua família, que lhe compra o material necessário

para tal empreitada, o que nos remete ao universo feminino permitido e delimitado

pela sociedade da época.

Nas lembranças de Letícia revive-se o primeiro contato um tanto intrigante,

entre ela e o professor Dom Daniel e, de uma forma sutil, Chacel apropria-se de uma

situação corriqueira entre um adulto e uma criança para indicar o que está por vir:

Todas [chicas] en coro alrededor de doña D. Luisa, cuando apareció su marido en la puerta. Le acompañaba el médico, y doña Luisa se abalanzó a saludarle, buscando pretextos para disculpar el descuido en que la encontraban. Ponía las manos en los hombros del médico y le decía “Ay, doctor, estas muchachas me tienen loca!” Pero miraba a su marido y yo veía que tenía ansias de preguntarle: ¿ Qué hora es?” (Id. p. 33)

Em meio à bagunça que as meninas faziam, D. Daniel carinhosamente segura

em suas mãos um punhado de cachos dos cabelos de Letícia e aperta-os próximo ao

pescoço dela e diz que ela é a aluna que dá mais trabalho, pois tem juba de uma fera.

Assim somos colocados diante de um momento de muita afeição e amizade entre ela

e D. Daniel, seria ele a preencher o espaço vazio que o pai deixara?

Letícia se lembra também da bondade do arquivista para com ela, pois a

pedido da esposa, aceita administrar aulas a ela e, a partir daí, a narradora faz

considerações importantes, sobre esse sentimento o qual fora envolvida. De D. Daniel

recebia educação, orientação, afeto..., fora seduzida pelo amor que não recebia do pai

e da tia Aurélia.

Na mesma noite do dia em que Letícia se põe a estudar como sempre fizera,

seus pensamentos se voltam sempre a se lembrar do seu novo professor,

atrapalhando os exercícios dados como tarefa, pois está sempre embriagada nas

lembranças daquela tarde marcante. No entanto, logo a seguir diz que tudo isso é

mentira, na verdade o responsável seria o embrutecimento que contraiu em detrimento

da preguiça em estudar. Percebemos que as emoções da narradora são contraditórias

em alguns momentos, mas são coerentes ao final do relembrar. A narradora tenta nos

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manter numa linha sequencial de ações, mas ela mesma se encarrega da contradição,

pois está presa às lembranças que gostaria de esquecer, um dos motivos dos conflitos

que a acometem, por isso escreve.

Letícia se descobre diferente depois do primeiro encontro com D. Daniel, o que

a leva a confessar: “Me abandonaba a pensar en aquellas cosas que me envolvían en

un encanto, en un calor...[...] Me había zambullido de tal modo en el mundo de las

mujeres [...] Ya me di yo cuenta de que allí empezaba una nueva fase facultad ”( id. p.

49). Essas passagens são relevantes, porque a narradora admite estar se

desenvolvendo e se tornando mulher. Lembrava-se também do afeto e da experiência

que tivera com sua mãe, por isso se deixava levar por sensações de bem-estar em

relação a ambos – Luisa e o marido. No fundo o que sentia naquela casa que a

acolhera era afeição por todos da família, inclusive pelos filhos do casal. Após estes

entremeios, Letícia relata sua rotina na casa do diretor do Arquivo, esta rotina segue

em harmonia, até que o professor começa a nutrir por ela um desejo diferenciado,

explícito em suas memórias.

Na verdade, as insinuações por parte de D. Daniel em relação à menina só

encontram barreiras depois de Luisa sofrer um acidente, assim, há uma quebra na

narrativa que será a preparação para o desfecho. Até o acidente, Letícia não

compreende as aulas do professor e se deixa levar pelo seu afeto, até porque não

consegue se livrar dos sentimentos que estão fervilhando entre ambos.

Enquanto Luisa e D. Daniel estiveram fora por conta do acidente, Letícia se

sente na mais extrema solidão, vai de um lado a outro aguardando o casal retornar do

hospital. Nesse ínterim, Letícia se encarrega de repensar sua vida. Permanece horas

e horas na ponte vendo as folhas que vão descendo rio abaixo. A ponte tem uma forte

simbologia, pois representa a passagem de um momento a outro, e ela parece não ter

condições de fazer a travessia. De fato, está tão envolvida que se transporta para o

lugar físico e psicológico de Luisa, sentindo todos os cuidados do professor. Ademais,

faz considerações melancólicas, confessa segredos, tem dúvidas e, nessa inquietude,

não vê outra saída senão escrever, porque mergulha na memória para suprir a

necessidade de escrever, assim se entrega aos acontecimentos do passado, tentando

capturar todos os motivos que a angustia.

Nesse monólogo interior intenso, Letícia afirma ter adquirido recentes

experiências as quais, na sua concretude, vão externar-se na tragédia premeditada

por seu pai, quando pede explicações a D. Daniel sobre o ocorrido. Após essa

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discussão, a suposta tragédia é materializada e o tio Alberto se encarrega de salvar a

conduta da menina, ora ameaçada pela sedução do professor.

É notório enfatizar o recurso estilístico utilizado por Chacel. Na verdade, em

suas memórias, Letícia faz uma crítica dura ao sugerir que o opressor configura-se

nas personagens masculinas: o pai, o tio, o professor, dando indícios de ter sido

seduzida por este último, ele aproveitara de sua ingenuidade, de sua carência

paternal. Com evidência, esse fato permite refletir sobre o que acontece com uma

coletividade. Ou seja, no universo feminino sempre houve o abuso do homem no que

concerne à sexualidade, ou melhor, o homem sempre achou por direito usufruir do

corpo da mulher ou, como diria Perrot, “A virilidade repousa sobre a representação de

um desejo masculino, natural, irrefreável, que necessita de um exutório.” (2005: 448).

Letícia então sente ser inundada por uma leveza existencial, pois ao

rememorar o passado, se livra de um drama que não a deixava prosseguir com seus

ideais “Entonces empecé a bostezar y a sentir unas ganas locas de dormir

profundamente.” ( Id. p. 170).

Depois das memórias escritas ela se sente como se tivesse tirado um peso de

si mesma, está aliviada. Contudo, ainda sucumbe à reclusão do lar, pois sua

convivência agora terá a família de tio Alberto como referência. Entretanto, é possível

que seja mais uma mulher preparada para o casamento, pois não existe a

possibilidade de mudança. Por isso Aurélia a entrega ao irmão Alberto. Todo o texto

se baseia em uma memória ainda que sua tristeza seja permanente, há possibilidade

de outros caminhos para Letícia, porém não é explicitado ao final da narrativa.

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Considerações finais

Conforme a revisão bibliográfica efetuada no primeiro capítulo desta pesquisa

realizada para analisar a obra Memórias de Letícia Valle, constatamos a importância

da escritora Rosa Chacel para a narrativa espanhola produzida nas décadas de 40 e

50 do século XX, em meio à Guerra e o Pós-guerra civil espanhol, dando ênfase ao

relato memorialístico.

Sem pretensão de escrever um tratado sobre a narrativa intimista, ainda na

primeira parte deste trabalho fizemos um levantamento teórico para entendermos a

importância de um texto que centra a ação no Eu interior. Fizemos a pesquisa

considerando também os gêneros: diários íntimos, confissões e memórias, pois

Chacel publicou também esses gêneros contos, novelas, entre outros.

A arte literária tem permitido ao ser humano a condição de falar de si mesmo,

sobressaem cada vez mais na contemporaneidade textos intimistas. Foi a partir

desses gêneros que as mulheres exiladas puderam expor ao outro suas angústias

surgidas no ambiente doméstico o qual as deixava sem perspectiva de acreditar que a

vida poderia ser diferente.

Os gêneros intimistas ganharam várias seguidoras, especificamente no

contexto da Guerra Civil em 1936/1939, por qual a Espanha passou, o momento crítico

em relação à economia e a estrutura social, a situação econômica confusa no mais

absoluto caos gerado pela guerra, são fatos que permeiam pela incidência que estes

tiveram na vida doméstica e na relação familiar. A Igreja se alia a Franco e propõe

mudanças com objetivo de recuperar o bem-estar familiar e social. Portanto criou

regras “indispensáveis” à mulher, pois elas seriam o pilar: deveriam ser boas esposas

e boas donas de casa. Algumas mulheres aceitavam docemente este papel outras se

rebelavam. As que conseguiram sair desse ciclo foram perseguidas ou exiladas e, lá

do desterro começaram a falar dos maus-tratos outrora vividos.

No viés memorialístico, vimos explícitos sentimentos de violência psicológica

materializados no tédio e na solidão vividos por mulheres num ambiente social hostil e

desolador. O universo feminino “desfrutava” da prisão doméstica, mas aparentemente

não havia impedimento físico sobre aquelas mulheres. A tradição mostrada por meio

das personagens na obra Memórias de Letícia Valle, revela a violência velada, sob a

liberdade aparente, a mulher não consegue sair da estagnação. Ela está sempre

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recebendo das mais velhas os ensinamentos que perpetuarão sua resignação, a

mesma estrutura da novela sem a divisão por capítulos, é um ponto que suscita

comentários, visto que o tempo caminha linearmente a partir do recurso de memória.

Nesse sentido, a narradora coloca o leitor num ambiente cuja denúncia traz à tona a

condição social da mulher, especificamente, as que habitavam Valladolid e a vila de

Simancas na Espanha.

As lembranças revelam o contexto sócio-histórico, o sentimento de monotonia

e tristeza da mulher naquele momento, fazendo-nos rever o condicionamento ainda

presente nos dias atuais, apesar de tantas evoluções sociais e políticas.

Chacel, ao apropriar-se da técnica sem capítulos, possibilita a leitura da

intensidade do cotidiano, pois não há quebra ou pausa entre o fluxo de consciência

que abarca um momento e outro. Por conseguinte, remetendo-nos ao desabafo da

protagonista necessário para rever, refletir e entender o passado e o presente. Nesse

contexto, expõe a reclusão da mulher ao lar, historicamente reprimida, perseguida,

silenciada e incapaz de tomar decisões talvez por conta do seu gênero diferenciado,

ou por ter um papel imposto ideologicamente pelo poder masculino, conforme analisa

Perrot (2005). Acentuamos também nesta parte do trabalho o trauma que fica na

memória e do qual nasce uma vontade de contar, relembrar, escrever com o objetivo

de esquecer e apagar a memória que causa dor.

No segundo capítulo desta pesquisa, fomos rever os filósofos que tratam do

tédio e da solidão, os pressupostos para nossa análise literária. A mulher que surge da

memória da protagonista está sempre enclausurada e enfiada nos afazeres

domésticos. Por mais que ela tente sair deste espaço, observamos que ela não tem

força motriz suficiente. Na verdade é levada desde muito cedo a acreditar que só há

uma saída, ser esposa e mãe para cuidar do lar.

Foram estes fatos que levaram a mulher a se revelar publicamente a conquistar

e ocupar um lugar em espaços nunca sonhados. Surgem escritoras que

transformariam a literatura espanhola do século XX. Nesse período, escritoras como

Rosa Chacel, Maria Teresa León e Cecília G. de Guilarte, pertencentes a “Generación

de 27”, um grupo de mulheres exiladas e com uma produção literária prolífera fora do

país de origem, partilharam das temáticas vinculadas às questões mais universais e

até metafísicas.

Com evidência, a narrativa feminina sobressai e ganha uma gama de estudos

pelo seu valor literário, estabelecendo-se desta maneira, uma literatura feminina com

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as peculiaridades e o olhar feminino, conforme o estilo desenvolvido por cada

escritora. Por conta da repressão masculina, no texto escrito por mulheres entre

algumas temáticas que abordam aparece a repressão masculina

Esta repressão se mostra esteticamente elaborada no comportamento

feminino, por exemplo na mulher recriada pela memória de Letícia, poderíamos

assegurar que é a própria Chacel, falando com a voz de Letícia. Na tentativa de se

libertar e se tornar uma possivelmente intelectual como se projetara, é exilada na

América Latina, e no exílio encontra-se com outras mulheres que pactuam dos

mesmos ideais que os dela. Apesar de todos os esforços da escritora em se rebelar

contra o regime de Franco, ela só consegue deixar sua mensagem através da sua

produção literária, que entra na Espanha somente algum tempo depois da morte do

ditador. A partir de então a crítica começa a perceber o seu valor literário, incluindo-a

entre os grandes nomes da Narrativa Feminina de Pós-guerra.

Somente depois da morte do ditador a Espanha fica sabendo também da

existência de várias escritoras que foram exiladas e, por conseguinte, foram

silenciadas, pois não aceitavam o tratamento destinado às mulheres.

Na literatura espanhola, questões sobre a repressão relacionadas ao universo

feminino foram muito evidentes, mais particularmente na elaborada pelas intelectuais

que mostraram aos seus compatriotas o sentimento em relação à expatriação. No

desterro, as mulheres tiveram muito sucesso na arte de escrever, pois abordaram a

literatura intimista com o objetivo de aludir ao sentimento de infelicidade e solidão na

condição de expatriada e de mulher.

Quanto à terceira parte de nossa pesquisa, aí efetivamente procedemos à

análise propriamente dita, tratamos da mulher em seu espaço doméstico cercada pela

solidão e pela monotonia que as fazem resignar-se ao enclausuramento. Nessa

novela, constatamos metonimizado o sofrimento de modo geral. Por meio da memória

de Letícia vemos uma cidade totalmente feminizada, a narrativa vai se fazendo a partir

das personagens femininas que povoam os espaços da novela. Em todas as casas

elas são maioria, no entanto há um silenciamento de vozes tão sutil, mas que não se

percebem como seres capazes e com vida própria.

Halbwachs (2006: 29) admite que “O primeiro testemunho a que podemos

recorrer será sempre o nosso.”, o que constatamos por meio da memória da

protagonista. Ela faz sua investida na vida, apesar das carências que sofre. Não é

medrosa, tem força de vontade e busca o que lhe falta, porém sofre os percalços que

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o vilão lhe proporciona. Aquele em quem ela confia é quem a leva ao fracasso. Ou

seja, confirmamos que a protagonista testemunha a vilania configurada na

personagem masculina. Observamos que Chacel cria um ambiente machista, com

reflexos da realidade vivida por ela e outras mulheres de mesma época. O espaço da

intelectualidade era reservado para os homens, e as mulheres eram de alguma forma

impedidas de participar de tal ambiente.

Verificamos que, naquela época como nos dias atuais, apesar de tantas

conquistas, a mulher ainda é massacrada. Remetendo-nos à memória da narradora, o

desabafo da protagonista é necessário para fazê-la rever, refletir e seguir em frente.

Ela expõe a reclusão da mulher ao lar, a repressão e a perseguição por conta do seu

gênero diferenciado, além de mostrar o papel imposto ideologicamente pelo poder

masculino.

Chacel é uma excepcional observadora, lapidadora e escultora literária do

caráter e dos conflitos psicológicos, por que cria uma técnica inovadora para discutir a

questão do discurso Amo. Ao pensar uma novela de memórias, está falando de uma

coletividade, pois parte de uma memória singular para discutir o coletivo, isto é, as

memórias das mulheres que sofrem discriminação por ser do gênero feminino.

Ao estruturar a novela sem capítulos, apresenta-nos a memória de uma menina

com onze anos de idade, vivendo “prisioneira” a mais significativa parte de sua vida,

num ambiente que é de muita hostilidade, sobretudo o que “va más allá de la simple

descrpción o aseveración”, como expõe Caballé (1995: 38). A protagonista ao

dizer para o leitor o motivo porque quer escrever suas memórias, está no fundo

tentando desabafar suas angústias configuradas pela fragmentação que fora

acometida pelos adultos. Ao descrever suas memórias proporciona um momento de

revisão à vida.

Letícia sofre desde o principio da novela, nunca conhecera a mãe e como em

momentos de hipnose, volta ao útero materno para senti-la como se precisasse da

força materna para viver. Ao projetar sua carência afetiva no retorno do pai, sente

mais uma frustração porque não recebe o afeto do pai, e, por fim, ao se incluir na

residência do casal que poderia lhe dar tudo que precisava é totalmente violentada por

eles. O casal se apaixona pela vivacidade da protagonista e a seduz com afeto, aulas,

a amizade, culminando em um triângulo amoroso com fim trágico. Letícia ao fazer

análise do passado continua solitária e tentando se encontrar na vida, Luisa estagna-

se, e o professor desaparece.

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Memórias de Letícia Valle, enfim, é uma referência no que concerne ao texto

de memórias. As relações humanas apresentadas nas memórias nos dão um

panorama da opressão prolongada e de sua manutenção.

Nessa novela, as memórias trazem à tona o diálogo ininterrupto de uma

sociedade que marginaliza a mulher. Negando-lhe o direito de manifestar sua

liberdade de ser humano. Condicionada social, político e economicamente, poucas

vezes agia para mudar. Vemos clara a tentativa de Letícia e o trágico final que se

estabelece por ela ter saído do padrão permitido. O relato se encaminha pela linha de

textos de memórias nos quais o memorialista escreve para esquecer e para refletir

sobre os fatos vividos, pois quando a protagonista termina o relato, sente-se aliviada.

O catártico é alçado. Sobre isso Gusdorf assegura:

Retour à soi, retour sur soi attestant la revendication d’un patrimoine personnel, d’un espace vital propre, en dépit des empiètements mutuels, des interférences imposées par la coexistence sociale. J’écris, donc je suis ; si je prends la parole, si je prends la plume, c’est que j’existe à part moi et que ma vie doit avoir un sens. (Gusdorf, 1991:250)

A memória singular que se configura é, então, a memória coletiva, através da

linguagem literária que erige das lembranças oportuniza ao ser humano rever suas

ações: fragmentação, silenciamento, violência, trauma entre outros fatores, numa

perspectiva estética para chegar ao sublime.

A partir da análise de Memórias de Letícia Valle, contribuímos para o

entendimento do universo feminino e apontamos para fatos que ainda não foram

resolvidos na sociedade em que vivemos. Por meio da Literatura é possível perceber o

sofrimento que acomete a mulher em qualquer contexto sócio-histórico.

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