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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Curso de Ciências Sociais
Disciplina: Antropologia Urbana
Prof.: Livio Sansone
Estudante: Jaiana Meneses
COMUNICAÇÃO INTERCULTURAL
Um olhar sobre as conversações entre vendedores e turistas estrangeiros em
pontos turísticos de Salvador.
SALVADOR – BAHIA
2009
ÍNDICE
Introdução .........................................................................................03
Um olhar sobre as conversações entre vendedores
brasileiros e turistas
estrangeiros .......................................................................................05
Investigando em Salvador .................................................................07
O vendedor.........................................................................................08
Avaliações...........................................................................................11
Referências Bibliográficas ..................................................................13
INTRODUÇÃO
Imaginemos a seguinte situação: dois desconhecidos oriundos de países
e culturas diferentes que não falam a mesma língua e tentam se comunicar. Um
deles é um vendedor brasileiro e o outro um turista estrangeiro, com a intenção
de venda e compra respectivamente. Partindo do ponto básico que toda
comunicação se desenvolve porque os indivíduos envolvidos falam a mesma
língua, a referida situação, a princípio, pode parecer infrutífera ou uma
conversação caótica que certamente vai levar ao insucesso da negociação.
Todavia, encontros diários de vendedores ambulantes e turistas nos pontos mais
visitados da cidade de Salvador e a constante compra e venda de produtos entre
eles, revelam sucesso nos processos de interpretação mútua.
Tratase neste caso de diálogos de negociação e barganha entre pessoas
que não compartilham nenhum ou um conjunto muito limitado de signos de
linguagem. Abrese aqui o ponto de interrogação: como funciona a comunicação
entre sujeitos que falam línguas diferentes procedentes de culturas igualmente
distintas que criam estratégias de comunicação intercultural?. No caso de
vendedores e turistas estrangeiros a necessidade dessa comunicação
intercultural se dá pelo interesse mútuo entre as partes envolvidas: de um lado o
interesse dos vendedores de venderem seus produtos, por outro lado pela
curiosidade e desejo do turista de adquirir um produto e o interesse de pagar
pouco. Como esta comunicação se desenrola é o objetivo da etnografia que
neste relatório aborda pontos teóricos que tangenciam a pesquisa e a
observação dos vendedores e turistas nas negociações.
Esta pesquisa mal poderia ter sido realizada sem o aporte de tecnologias
multimídia como a câmera digital, gravadores e filmadora. Estes recursos
beneficiaram e muito o trabalho captando ângulos, sotaques, trejeitos,
hesitações, malentendidos e improvisações que não são transpostos com tanta
riqueza e beleza nas anotações e facilmente vulneráveis ao esquecimento na
memória.
São elementos que na fala corriqueira sem uma atenção devida e sem
estes recursos valiosos se perderiam por completo e foram fundamentais pelo
fato de este trabalho se debruçar essencialmente nestas entrelinhas e falas
expressas da comunicação cotidiana.
Por este motivo, este relatório da etnografia está recheado de imagens,
porém, infelizmente, sem o sabor das falas no momento em que elas
acontecem...tentarei pontuar uma ou outra descrição e transcrição de algumas
entrevistas com vendedores, sobre as comunicações entre os vendedores e
turistas.
Um olhar sobre as conversações entre vendedores brasileiros e turistas
estrangeiros
A pesquisa visa permear o campo da comunicação intercultural
abordando os métodos de conversação entre vendedores brasileiros e turistas
estrangeiros na tentativa de negociar produtos nos pontos turísticos de Salvador.
O estudo busca compreender como se desenvolvem negociação e
barganha entre pessoas que não compartilham nenhum ou um conjunto muito
limitado de signos de linguagem, ou seja, indivíduos que não falam a mesma
língua e mesmo assim interagem e comunicamse correspondendo expectativas
mútuas.
No âmbito da comunicação intercultural embaseime no trabalho de duas
polonesas KielbasiewiczDrozdowska e Radko (2006) que a conceituam
basicamente como a comunicação entre representantes de diferentes culturas,
nacionalidades ou etnias que se dá a nivel interpessoal. Este tipo de
comunicação tem sido bastante beneficiado com a intensificação das migrações,
turismo internacional, mercado livre e globalização através de meios verbais ou
nãoverbais. A intensa urbanização se conecta com o crescimento intenso da
globalização econômica, cultural com maiores intercâmbios de diferentes grupos
e universos simbólicos. O termo globalização aparece como a intensificação e
aceleração de processos mais antigos (SANSONE, 2008).
Em seu trabalho, as autoras delineiam diversas ramificações do termo,
este podendo caracterizarse como (a) comunicação crosscultural, que se
realiza entre membros de um mesmo país porém representantes de diferentes
zonas regionais, com costumes, comportamentos e histórias diferentes; (b) a
comunicação internacional, que se caracteriza por membros de diferentes
nações representadas por instituições governamentais, associações, empresas
e etc; (c) a comunicação global, que lida com a transferência de valores de uma
cultura para outra como a ideologia ou a economia; (d) comunicação intra
cultural, que se refere à comunicação entre pessoas de uma mesma cultura mas
que se deparam com certos valores da cultura dominante, como a relação entre
gêneros, etnias, gerações, etc (2006).
Justamente pelas limitações culturais imbricadas na interação entre dois
indivíduos de universos culturais diferentes, instalase a dificuldade de prever o
comportamento do outro na comunicação. As barreiras da comunicação
intercultural se dão a níveis pessoal, situacional e cultural, isto é, dependem das
contingências que relacionam os três níveis produzindo efeitos inesperados e
muitas vezes depende da capacidade pessoal de controlar tais limitações
(KielbasiewiczDrozdowska, Radko 2006).
No caso dos vendedores e turistas, acontece que muitas vezes essas
barreiras são superadas pela intenção de comunicar, onde ambos se esforçam
para passar e decodificar a mensagem com o foco no acordo e no sucesso da
venda.
Todos os indivíduos estão inseridos em uma circunscrita (mas
obviamente porosa e não hermética) pauta cultural, a qual corresponde a todos
os valores, instituições, sistemas de orientação e guias peculiares – língua, leis,
hábitos, modas, etc – em um momento determinado da história de um grupo
social. Isto prevê que os indivíduos submersos nas águas de sua própria cultura,
conseguem antecipar atitudes mútuas (SCHUTZ, 1999).
Se para compreender uma mensagem percorremos alguns passos como:
compreender os signos do comunicador, o que se quer expressar por meio
destes signos e o contexto em que os signos são utilizados deliberadamente,
construímos sentido para nossas ações verbais e nãoverbais. Contudo, quando
os signos não são compartilhados ou padronizados na interação composta por
indivíduos pertencentes a pautas culturais distintas, não há uma perfeita
congruência no sistema expressivo e interpretativo e pode até ocorrer a falta da
comunicação, se não existir interesse mútuo em realizála.
Dentro de nossa mesma pauta cultural refinamos nossos signos e sinais
culturais para a interação comunicativa trabalhando constantemente com a
economia de olhares, gestos e palavras – quando usar o que, quando e como
dos recursos linguísticos –. Na comunicação entre vendedores e turistas, estes
signos não foram refinados e é como se pudéssemos acompanhar os
mecanismos básicos ou o que há de mais elementar numa comunicação; um
exemplo disso é, quando os turistas não conseguem chegar a um valor ideal
para a mercadoria e lidam com a insistência impertinente dos vendedores,
simplesmente saem sem maiores sutilezas para encerrar a conversa – o que
causaria um certo malestar numa negociação normal ou ao menos, entre
sujeitos que pertencem à mesma pauta cultural, neste tipo de comunicação é
absolutamente corriqueiro e sem maior importância.
INVESTIGANDO EM SALVADOR
O contexto empírico deste trabalho é o Centro Histórico da cidade de
Salvador da Bahia, especificamente a área que abrange o Pelourinho e o
Mercado Modelo. Estes dois pontos turísticos funcionam como o eixo central do
turismo na cidade de Salvador; concentram um dos acervos históricos mais
antigos do país contemplado por contruções centenárias, edifícios de arquitetura
rara entre outras peculiaridades e tem recebido grandes investimentos públicos
e privados alocados no plano de desenvolvimento do turismo, implementado em
1991, os quais trazem benefícios para a atividade turística em Salvador.
E é nesta constelação onde notase grande fluxo de turistas estrangeiros
e grande quantidade de comerciantes interagindo no intuito de respectivas
compras e vendas.
O VENDEDOR
Neste estudo, não se tem como foco, nem enquanto complemento, a
preocupação com a trajetória e história de vida dos vendedores, embora se perceba
fundamental, um traçado do perfil deles.
Muitas vezes, estes vendedores não se inserem no mercado de trabalho formal
e escapam da imobilidade do desemprego gerando renda autonomamente na
informalidade, vendendo artigos de artesanato – como pulseiras, colares, brincos, ou
vendendo fitas do Senhor do Bonfim, água mineral, bebidas, etc pulseiras, bijuterias, etc
–.
Alguns outros oscilam do formal para o
informal, pagando taxas irregularmente à Prefeitura de Salvador, mas ao mesmo tempo
estão vulneráveis a abandonarem seu local de trabalho. Outros que são contratados
formalmente pelos donos de tendas e pontos de venda dentro do Mercado Modelo se
colocam numa posição mais estável, contando com um salário fixo além das comissões
adquiridas com a venda dos produtos.
Os vendedores em geral, pertencem às camadas mais baixas da sociedade
soteropolitana e conseguem angariar com este trabalho a média de um salário mínimo e
possivelmente mais durante a alta estação, época em que aumenta o fluxo de turistas.
O típico turista estrangeiro que negocia estes produtos com os vendedores é
oriundo do continente europeu e – quando não é português – não fala nada ou
pouquíssimo da língua portuguesa. Este turista deseja pagar pouco e está disposto a
barganhar, muitas vezes pela desconfiança que se estabelece por um certo préconceito
da possível tentativa do vendedor ambulante querer cobrar um preço exorbitante. O
poder aquisitivo deste turista é muito maior em relação ao do vendedor ambulante, assim
a quantia paga por uma mercadoria acaba por ter um valor irrisório, ao passo que para o
vendedor ambulante seria um valor muito vantajoso.
O ponto característico e denominador comum entre os vendedores é a falta de
domínio da norma padrão da língua portuguesa, ou seja, detém a básica ou a mínina
assimilação da língua. Mas quando qualquer destes vendedores é questionado se fala
espanhol, ou inglês, ou alemão, sua resposta é afirmativa: “sim, falo todas as línguas, o
que vier eu falo!” (Vendedor A). Quando questionados sobre como foi o aprendizado
destas línguas, a resposta é sempre constante e enfática, o aprendizado é nas ruas a
partir da escuta ativa da fala dos turistas, sem instruções ou aulas em curso específico.
Segundo eles não é possível identificar imediatamente a procedência do turista
somente pelo visual, assim precisam abordar os turistas e provocar uma conversação –
speak English?, hablas español? sprichst deutsch? – para identificar a sua procedência e
dai desenvolver o dialogo para comercializar o produto. O trecho da entrevista a seguir
com uma vendedora do Mercado Modelo exemplifica:
Entrevistador I Como você percebe que eles são turistas? Pelo sotaque?Vendedora É, é pelo olhar, pelo jeito que ele anda, pelo jeito que ele olha. A gente conhece quando é estranheiro. O olhar diferente.[...]Entrevistador II E todomundo aqui vende igual, ou tem um vendedor que tem mais experiência, vende melhor, uma pessoa mulher ou homem que tem mais experiência, jeito, fama de bom vendedor...Vendedora Têm pessoas mais velhas que já tem o macete, a maladrangem de vender mais. Já tem gente que tem anos aqui e já tem aquela malícia de vender mais, eu não. Mas sim, tem vendedores assim.Entrevistador I Quem falar mais inglês, ou falar uma outra língua vende mais:Vendedora Não, basta ter um bom papo.Entrevistador I E como é que papeia? Como é que batepapo assim?
Vendedora Tipo assim, a gente chega num acordo. eles gostam muito de desconto. A gente manda ele olhar, embola um inglês, falo pra ele ‘smol’, ‘big’, mostra pra ele a loja, mostra a mercadoria e ele vai se interessando, afinal se ele for pagar a vista, a gente vai e faz um bom desconto. Eles gostam muito, mesmo que você faça um desconto de 1 real pra ele já é tudo.Entrevistador II Ganha o freguês! [Risos].Vendedora Ganha o freguês. Já motiva ele. Então, você sabendo levar o cliente, sempre mostrando a mercadoria pra ele, falando pra ele “olha amigo, se você gostar eu lhe dou um desconto, pagando a vista sempre tem um desconto” por isso ele se interessa.Entrevistador I Mas fala isso em espanhol ou inglês...Vendedora Não, a gente fala, quando a gente fala “eu te dou um bom desconto (com sotaque)” eles compreendem. [Risos]. Eles sempre gostam da mercadoria, e eles olham, se interessam e aqui na loja que eu trabalho sempre tem preço, eles olham o preço, faz a pesquisa, se interessa, volta e faz uma boa compra. Tem até vendedor que é insistente e empurra mesmo a mercadoria, eu não faço isso. eu deixo o cliente à vontade.Entrevistador II Mas ele vende mais que tu?Vendedora Eles vendem mais caro. Eu vendo, faço minha venda, se não vendesse não estaria aqui. Faço minha boa venda, mas faço minha venda honesta. Mostro pra ele [turista] o preço que o dono botou aí. Nada mais, nada menos. Mostro o preço aqui ó. Tem peça que pode custar 35 e tem um desconto.
O desenvolvimento da conversação dificilmente será realizado em apenas um
idioma, pressupondo então mais do que técnicas para manejar todo o arcabouço de
vocabulários que o vendedor utiliza em linguas que ele considera estrageira, pois muitas
vezes não passam de por exemplo, uma palavra em português com um sufixo estrangeiro
e uma coleção de neologismos – peixito, colazeichon, moni, géude – que são sua
bagagem de palavras em diversas línguas através do qual ele gerencia a negociação com
muita improvisação e criatividade.
Como foi averiguado que nenhum dos vendedores desenvolve uma conversa
completa em apenas um idioma, percebese que essa é apenas uma “carta na manga”
para atrair o turista na conversação. Além deste recuso, outros também estão disponíveis
tanto para vendedores quanto para turistas. Eles não hesitam em recorrer ao papel para
anotar um valor quando precisam. Alguns gestos como movimentar as mãos para baixo
com a palma virada para o chão para indicar menos ou preço mais barato e o sinal de
dinheiro esfregando o polegar e o indicador.já se tornaram consagrados.
No primeiro momento, o vendedor oferece um valor dez vezes mais caro da
mercadoria para ter uma margem de barganha
– durante a conversa, ele diminui o valor para a
metade da primeira oferta para se mostrar
bastante flexível na negociação.
A mercadoria comercializada.
Gravuras de Cícero Matos
AVALIAÇÕES
Na pesquisa pôdese observar e é possível inferir que existem diferenças
substanciais entre os indivíduos que falam mais ou menos palavras comuns e entre
aqueles que comunicam ao menos algumas palavras em idiomas latinos, havendo um
desenvolvimento maior do diálogo entre estes. Porém, uma diversidade de movimentos
gestuais, palavras inventadas com base em um certo imaginário do que pode
corresponder à lingua do outro, a atenção voltada para a compreensão do outro e
antecipações mútuas com vistas a prever as expectativas do outro foram constantes que
foram detectadas em praticamente todas as negociações com êxito da venda ou não.
Assim, observouse haver maior desenvoltura na comunicação dos sujeitos que melhor
se articulam com gestos e sinais.
Vendedores na Praça Cairu
Enxergamos a partir dos horizontes/limites de nossa própria cultura e na
comunicação, além destes, existem outros fatores que a influenciam – e com a
experiência deste tipo de comunicação intercultural, podemos perceber que relativizar e
superar as barreiras culturais pode criar uma ponte para dialogarmos e trocarmos mais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
KIELBASIEWICZDROZDOWSKA Iwona; RADKO Sylwia. The role of intercultural communication in tourism and recreation. Studies in Physical Culture and Tourism, [S.n.], vol.13, n. 2, p.7585, 2006.
SANSONE, Livio 2008. “Urbanismo, globalização e etnicidade”, in: Osmundo Pinho e Livio Sansone orgs. Raça: Novas Perspectivas Antropológicas, Salvador: Edufba, 151192.
SCHUTZ, Alfred. El forastero: ensayo de psicología social. In: ____ Estudios sobre teoría social. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1999. cap. 4.
COULON, Alain. Etnometodologia. Tradutor Ephraim Ferreira Alves, título original L’ethnométhodologie. Petrópolis: Vozes, 1995