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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Instituto de Geociências e Ciências Exatas
Campus de Rio Claro
Gustavo Barbosa
Platão e Aristóteles na Filosofia da Matemática
Rio Claro (SP) 2009
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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Instituto de Geociências e Ciências Exatas
Campus de Rio Claro
Gustavo Barbosa
Platão e Aristóteles na Filosofia da Matemática
Dissertação de Mestrado elaborada junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática – Área de Concentração em Ensino e aprendizagem da Matemática e seus Fundamentos Filosófico-Científicos, para obtenção do Título de Mestre em Educação Matemática. Orientador: Prof. Dr. Irineu Bicudo
Rio Claro (SP) 2009
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Comissão Examinadora
_____________________________________
Prof. Dr. Irineu Bicudo
_____________________________________
Prof. Dr. Inocêncio Fernandes Balieiro Filho
_________________________________
Prof. Dr. Paulo Isamo Hiratsuka
_________________________________
Aluno
Rio Claro, ____ de _____________de________
Resultado_______________________________________
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Este trabalho é dedicado à memória de Guilherme
Eduardo Barboza.
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Agradecimentos
É difícil para mim, expressar com a justa medida toda a minha gratidão. Pretendo fazê-lo de
forma a evitar que fique algo a faltar, e que por isso eu seja erroneamente tomado por ingrato.
Da mesma maneira, procuro evitar que fique algo a sobrar, e que por isso eu seja considerado
adulador. Considero ainda igualmente importante não me esquecer de ninguém, mas se por
acaso acontecer, peço desculpas previamente. Minha frustração na busca das melhores
palavras é consolada pelo poeta alemão Reiner Maria Rilke, que disse: “a maioria dos
acontecimentos é indizível, realiza-se num espaço que nunca uma palavra penetrou”.
Mesmo assim, devo me esforçar.
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer aos meus familiares, principalmente minha
mãe e minha irmã (esta no papel de “co-mãe”). À minha namorada, Fernanda Marostegan, e
também às minhas tias Laura, Lurdes e Leninha, que de um jeito ou de outro também deram a
sua ajuda. Sou imensamente grato a essas pessoas pelo constante apoio desde que resolvi “sair
da caverna” em busca de uma vida melhor para mim e também para elas.
Em segundo, agradeço ao Professor Irineu Bicudo pelo voto de confiança e pelos
ensinamentos que me proporcionou, seja pelas indicações de leituras, pelos detalhes da língua
e cultura grega antiga, ou mesmo pela simples convivência com a sua pessoa. Sigo as palavras
de Sócrates quando questionado na República (337d) sobre qual pena deve sofrer o ignorante:
“Deve aprender junto de quem sabe”. E assim, afirmo que é de muito bom grado que cumpro
a minha pena junto ao Professor Irineu.
Agradeço também à Professora Renata Meneghetti, que me iniciou nos caminhos da
Filosofia da Matemática, ao Professor Inocêncio Fernandes Balieiro Filho pelas dicas argutas
e ao Professor Paulo Isamo Hiratsuka pela disponibilidade em participar da banca
examinadora. As sugestões, críticas e comentários de todos eles contribuíram sobremaneira
para a evolução e finalização deste trabalho.
Desejo agradecer ainda, a todos aqueles que de alguma forma contribuíram com este
trabalho. Preferi aqui não citar nomes, justamente por ser essa categoria a maior, e por isso, a
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mais fácil de cometer injustiças. São essas pessoas os funcionários do departamento de
matemática da UNESP, amigos, conhecidos e professores, que interceptando de alguma forma
os seus caminhos com os meus, puderam me proporcionar algum crescimento ao longo dessa
jornada.
Agradeço aos professores, que, com as suas disciplinas contribuíram para a minha
formação como pesquisador. São eles: o prof. Dr. Sérgio Roberto Nobre, a profª. Drª. Maria
Aparecida Viggiani Bicudo, o prof. Dr. Marcelo de Carvalho Borba e o prof. Dr. Vanderlei
Marcos do Nascimento.
Agradeço ao Grupo de Estudos de Filosofia Sofisticada pelas discussões, divagações,
especulações,... e pelos cafés.
Por fim, mas não menos importante, agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior, CAPES, pelo apoio financeiro, sem o qual esta pesquisa
simplesmente não teria sido possível.
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Pois, um homem justo entre injustos, moderado e consciente, jamais seria completamente iludido pela alma dos outros.
Platão, Carta VII, 350d.
A eficácia das lições depende dos hábitos dos ouvintes. Aristóteles, Metafísica, 3, 994b 32.
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RESUMO
O objetivo dessa pesquisa é participar da discussão acerca das diferentes concepções
de Platão e Aristóteles a respeito da natureza e do estatuto ontológico dos entes matemáticos.
Enquanto Platão situa o âmbito ontológico dos entes matemáticos entre dois mundos, o
sensível e o inteligível, Aristóteles nega o caráter supra-sensível dos objetos matemáticos e
oferece como resposta a sua filosofia empirista da matemática. Aristóteles teria dirigido duras
críticas contra Platão e os acadêmicos nos dois últimos livros da Metafísica, M e N,
respectivamente. Desde a antiguidade, vários autores sustentam que tais críticas referem-se às
“doutrinas não-escritas” de Platão, que seriam cursos por ele ministrados na Academia, cujo
teor ele não quis escrever por considerar que somente à dialética oral caberia o ensinamento
dos primeiros princípios. Utilizando uma metodologia de pesquisa filosófica e também a
história da filosofia e da matemática, foram abordados diversos textos, que vão desde livros e
artigos atuais, até as próprias obras de Platão e Aristóteles relacionadas ao tema. Como parte
das reflexões finais, o presente trabalho destaca a importância da exegese para uma correta
interpretação das filosofias da matemática de Platão e Aristóteles e ainda das relações entre
elas.
Palavras-chave: Filosofia da Matemática. Platão. Aristóteles. Exegese.
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ABSTRACT
The research aim is the discussion about Plato and Aristotle’s different conceiving
about the nature and the ontological status of mathematical entities. While Plato located the
ontological scope of mathematical entities between two worlds, the sensible and the
intelligible, Aristotle denies the character “super-sensible” of the mathematical entities and
offers in response his own empiricist philosophy of mathematics. Aristotle would have direct
harsh criticism to Plato and the academics in two last books of his Metaphysics, M and N,
respectively. Since ancient times several authors argue that these criticism refer to “unwritten
doctrines” of Plato, that they would be courses that he taught at the Academy, whose contents
he did not want to write because he had believe that only oral dialectic should teach the first
principles. Using a philosophical methodology of research and also the history of philosophy
and mathematics several texts were discussed, like current books and articles as well as works
of Plato and Aristotle about the theme. As part of final reflection, the present work highlights
the exegesis importance for a correct interpretation of the mathematics philosophy from Plato
and Aristotle and even the relationships between them.
Key-Words: Philosophy of Mathematics. Plato. Aristotle. Exegesis.
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SUMÁRIO
Introdução................................................................................................................... 10
1. Platão...................................................................................................................... 25
2. A filosofia da matemática de Platão ........................................................................ 36
3. Aristóteles e a Metafísica ........................................................................................ 55
4. Os interlocutores de Aristóteles ............................................................................... 72
5. A filosofia da matemática de Aristóteles ................................................................. 84
6. Exegese e filosofia da matemática ........................................................................... 97
7. Considerações finais.............................................................................................. 123
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 130
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Introdução
“No princípio era o Verbo”1.
A palavra que os primeiros cristãos traduziram por verbo se origina do termo grego
logos (), que possui diversos significados além deste, como medida, fórmula, argumento
e razão.
Portanto, no início havia o Logos!
Razão talvez seja a melhor opção para descrever a atitude com que os primeiros
pensadores gregos se debruçaram sobre o mundo que os cercava. O contato deles com a
natureza era direto e puro, sem quaisquer interferências. Acompanhavam atentamente as
mudanças climáticas, a geração e a corrupção das plantas e dos animais. Quantas noites
teriam passado em torno de uma fogueira, a observar o movimento dos astros no céu, ouvindo
os poemas homéricos acompanhados pela cítara e pela flauta, e prestando ainda o seu culto a
Díonísio. E embriagados pela beleza inexorável que se apresentava diante deles começaram a
especular, como nos relata Aristóteles:
De fato, os homens começaram a filosofar, agora como na origem, por causa da admiração, na medida em que, inicialmente, ficavam perplexos diante das dificuldades mais simples; em seguida, progredindo pouco a pouco, chegaram a enfrentar problemas sempre maiores, por exemplo, os problemas relativos aos fenômenos da lua e aos do sol e dos astros, ou os problemas relativos à geração de todo o universo. Ora, quem experimenta uma sensação de dúvida e de admiração reconhece que não sabe; e é por isso que também aquele que ama o mito é, de certo modo, filósofo: o mito, com efeito, é constituído por um conjunto de coisas admiráveis. De modo que, se os homens filosofaram para libertar-se da ignorância, é evidente que buscavam conhecimento unicamente em vista do saber e não por alguma utilidade prática. (ARISTÓTELES, Met., A 1, 982b, 2002a, p. 11)
A primeira manifestação deste tipo que a história do pensamento ocidental nos traz,
como uma busca pela compreensão da natureza e do papel que homem desempenharia nela, é
proposta por Tales de Mileto (624-548 a.C. aproximadamente).
Afortunadamente para nós, é neste mesmo contexto que surge também a matemática,
mas esta, ao contrário da filosofia, foi concebida como fruto da ambição dos homens de impor
as suas vontades a esta realidade que lhes fora tão hostil.
E foi como o laço arremessado em direção ao pescoço de um cavalo selvagem, que os
antigos povos do Egito e da Babilônia desenvolveram a sua matemática. O conforto de uma
1 Evangelho segundo São João, 1:1, grifo nosso.
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vida organizada em sociedade trazia consigo problemas que precisavam ser domados para que
estes povos pudessem se desenvolver. Tratava-se de questões relativas à distribuição de terras
e comida, à previsão dos períodos de secas e enchentes e à construção de templos. A detenção
do conhecimento matemático pelas castas sacerdotais, bem como a sua manipulação,
garantiria o sucesso desta empreitada que muitos séculos depois seria designada por contrato
social.
Mediante o intercâmbio instalado entre os povos às margens do Mediterrâneo, que foi
uma benéfica conseqüência da sua privilegiada posição, é que:
[...] mercadores, negociantes e estudiosos gregos se dirigiram aos centros de cultura no Egito e Babilônia. Ali entraram em contato com a matemática pré-helênica; mas não estavam dispostos a apenas receber antigas tradições, e se apropriaram tão completamente do assunto que logo ele tomou forma drasticamente diferente. (BOYER, 1996, p. 30)
À que se deve tal diferença? Muito se especula sobre as razões dessa diferença com
que os antigos gregos imprimiram o seu caráter racional para desvelar à pesada e escura
cortina da realidade, em detrimento da religião, que fora a saída encontrada pelas culturas
orientais2. De nossa parte, iremos simplesmente admitir que desde os seus primórdios, os
helenos deveriam ter o logos inscrito nalguma de suas cadeias de DNA.
Deste modo, consideramos que foi com Tales que se deu o “Big Bang” de nossa
cultura filosófico-matemática ocidental, pois a exemplo da teoria física do mesmo nome, é
muito difícil dizer com alguma precisão o que aconteceu nos seus primeiros instantes. Pior
ainda quando nos atrevemos a indagar sobre o que teria ocorrido antes, uma vez que somos
forçados a nos afastar dos possíveis fatos concretos em direção a indesejáveis exercícios
criativos. Essa importância atribuída a Tales já era reconhecida na própria Antiguidade, é ele
quem ocupa o primeiro lugar na lista dos “Sete Sábios” que Platão delineia no Protágoras.3
Coube a Pitágoras (570-490 a.C.) entrelaçar a filosofia e a matemática de uma maneira
singular. Nascido em Samos, não muito longe de Mileto, Pitágoras, a exemplo de Tales, teria
viajado ao Egito e à Babilônia. Do mesmo modo, apoderou-se dos conhecimentos destes
povos e conferiu-lhes uma nova concepção. Uma fecunda simbiose entre filosofia e
matemática se instalou a partir do momento em que coube à matemática fornecer os
pressupostos à concepção naturalista da filosofia. A preocupação dos primeiros filósofos era 2 Não é nosso objetivo aqui fazer um exame dessas coisas, mas quanto a isso, pode-se ler, com proveito,
REALE; ANTISERI, 1990, cap. 1, p. 11-26, e também RUSSELL, 1969, p. 5-28. 3 A saber, além de Tales, compõem a lista: Pittacus de Mitilene; Bias de Priene; Sólon de Atenas; Cleobulus de
Lindus; Myson de Chen e Chilon de Esparta. COOPER; HUTCHINSON, 1997, p. 774.
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compreender o mundo, encontrar a origem das coisas, foi neste contexto que Tales teria
afirmado que “tudo é feito de água” (RUSSELL, 1969, p. 29). Para Pitágoras “tudo é número”
(BOYER, 1996, p. 34). Essa explicação desponta como uma conseqüência tanto do
misticismo envolvendo os números, que Pitágoras (ou “os pitagóricos”, uma vez que a falta
de documentos daquela época aumenta a aura de misticismo em torno da sua figura, uma
dificuldade que já se podia sentir na época de Aristóteles) teria herdado em suas viagens,
quanto como forma de legitimação das crenças primitivas da própria Grécia. “O pitagorismo
[...] foi um movimento de reforma no orfismo, e o orfismo foi um movimento de reforma no
culto à Díonísio” (RUSSELL, 1969, p. 38). O fato é que os números são elevados à condição
de cânone na doutrina de Pitágoras, que fornecia as regras de conduta aos seus discípulos na
comunidade que ele havia criado na cidade de Crotona, localizada na região sul da Itália, parte
do que era conhecido como Magna Grécia. Aliás, devemos a Pitágoras as próprias
concepções, tanto de matemática quanto de filosofia, e não apenas como ciência, mas como
meio de vida.
Talvez a mais notável característica da ordem pitagórica fosse a confiança que mantinha no estudo da matemática e da filosofia como base moral para a conduta. As próprias palavras “filosofia” (ou “amor à saberdoria”) e matemática (ou “o que é aprendido”) supõem-se terem sido criadas pelo próprio Pitágoras para descrever suas atividades intelectuais. (BOYER, 1996, p. 33)
Há aqui um detalhe muito importante, o qual nós não podemos negligenciar. Devemos
nos lembrar que foi necessário aos antigos gregos talhar as rochas do pensamento bruto,
obtendo o cascalho da linguagem, sobre o qual eles pavimentariam as suas idéias (e Idéias!),
permitindo que outros transitassem por elas. E ainda que o polimento constante das pedras no
caminho não o tenha tornado um lugar perfeitamente seguro para se caminhar, sem dúvida,
este era, no entanto, o melhor caminho.
Na filosofia pitagórica o número um é o princípio, é o gerador dos outros números, é o
que confere unidade às coisas, é o logos. O dois é o primeiro número par e todos os números
com esta característica eram considerados femininos. Os ímpares eram considerados números
masculinos. O zero foi uma criação muito posterior. Cada número tinha as suas próprias
particularidades, sendo o número dez o mais perfeito ou sagrado. Conhecido como tetraktys
(REALE, G.; ANTISERI, D., 1990, p. 43; BOYER, 1996, p. 36), o número dez é formado
pela soma dos quatro primeiros números (1 + 2 + 3 + 4); igualmente, estão contidos nele os
quatro primeiros números pares (2, 4, 6, 8) e os quatro primeiros números ímpares (3, 5, 7,
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9)4, do mesmo modo, os quatro primeiros números primos (2, 3, 5, 7) e os quatro primeiros
números compostos (4, 6, 8, 9).
O testemunho de Aristóteles sobre as concordâncias pitagóricas nos mostra que
mesmo quando a matemática não se ajustava adequadamente aos objetos que pretendia
teorizar, ainda assim, havia um determinado empenho em “salvar os fenômenos”:
Eles recolhiam e sistematizavam todas as concordâncias que conseguiam mostrar entre os números e os acordes musicais, os fenômenos, as partes do céu e todo o ordenamento do universo. E se faltava alguma coisa, eles se esmeravam em introduzi-la, de modo a tornar coerente a sua investigação. Por exemplo: como o número dez parece ser perfeito e parece compreender em si toda a realidade dos números, eles afirmavam que os corpos que se movem no céu deviam ser dez; mas, como apenas nove podem ser vistos, eles introduziram um décimo: a Antiterra. (ARISTÓTELES, Met., A 5, 986a, 2002a, p. 27)
Num ambiente como esse, em que filosofia e matemática são “praticadas pelas
mesmas pessoas nos mesmos lugares” (CATTANEI, 2005, p. 22), parece natural que se
aprofundem e com isso evoluam, “[...] e não só contemporaneamente. Suas relações são de
influência recíproca, de mútua provocação a que se superem” (CATTANEI, 2005, p. 22).
A matemática desafia a filosofia
É no próprio seio da escola pitagórica que surge a primeira crise envolvendo a
filosofia e a matemática. Com a constatação de que existem grandezas geométricas
incomensuráveis, têm-se uma incomoda situação em que não se podem explicar certos
segmentos como um múltiplo da unidade; e como explicar a existência de uma magnitude que
não é múltipla do número que gera todos os outros? Se tudo são números, o que são
segmentos incomensuráveis? Não cabe à matemática responder a esta pergunta, ou pelo
menos não cabia naquela época. Como resultado do seu estreito contato com a filosofia, a
prática da matemática passou a criar problemas que não pertencem à sua própria alçada, mas
que devem buscar na filosofia o seu sentido de ser.
4 Para os pitagóricos, o número um não é considerado nem par, nem ímpar. REALE, G.; ANTISERI, D., 1990, p. 43.
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A filosofia desafia a matemática
Se, por um lado, a matemática anima a filosofia, por outro, o mesmo ocorre
inversamente com a criação dos paradoxos de Zenão de Eléia (~ 450 a.C.) – a quem
Aristóteles considera como o criador da dialética (BICUDO, 1998, p. 309) – a respeito do
movimento e da multiplicidade. Dessa vez, é a filosofia, mais especificamente a dialética, que
vai dar origem a questões que somente poderão encontrar amparo na matemática.
Para ficarmos apenas em dois exemplos; temos o paradoxo da dicotomia, que diz que
antes que um objeto percorra uma dada distância, deve percorrer a sua metade, mas
novamente, antes disso, deve percorrer a metade dessa distância (um quarto da distância
inicial) e “assim sucessivamente”. Ora, como essa seqüência não acaba nunca, conclui-se daí
que é impossível iniciar o movimento. Natureza similar tem outro paradoxo envolvendo o
herói mítico Aquiles e uma tartaruga. Numa suposta corrida entre eles, uma distância inicial
de vantagem é dada à tartaruga (chamemos o local de saída de Aquiles de 0P e da tartaruga de
1P ), quando Aquiles atingir este ponto do qual a tartaruga partiu, ela já terá andado mais um
tanto (estará, digamos, num ponto 2P ), quando Aquiles atingir esta nova distância ( 2P ), a
tartaruga terá percorrido mais um outro tanto ( 3P ) e assim ad infinitum. Neste caso, conclui-se
que Aquiles jamais alcançará a tartaruga.
Hoje, é fácil dizermos que ambos os problemas envolvem os assim chamados
infinitésimos, que tornam possíveis os cálculos de limites. E se nos permitimos este
anacronismo é para lembrar (ou relembrar) o quanto um problema, fundamentalmente
filosófico (neste caso, particularmente dialético), precisou esperar pelo devido
amadurecimento da matemática.
A matemática na Academia de Platão
Platão [...] deu um imenso impulso em toda a ciência matemática e em particular à geometria, pelo apaixonado estudo que a isso dedicou e que divulgou quer recheando seus escritos de raciocínios matemáticos, quer despertando em toda a parte a admiração por esses estudos naqueles que se dedicavam à filosofia.5
5 TIMPANARO-CARDINI, M. (ed.) Proclus, Commento al I libro degli “Elementi” di Euclide. Introd., trad. e
notas. Pisa, 1978. apud CATTANEI, 2005, p. 30.
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A fecunda simbiose entre a matemática e a filosofia, iniciada por Tales de Mileto e
refinada pela escola pitagórica, tem um lugar especial no pensamento de Platão. O encontro
entre a matemática e a pesquisa filosófica é mais estreito e ainda mais complexo no
pensamento desse filósofo que, em vez de reduzir a natureza aos números, utilizou o tipo de
certeza proporcionado pelas ciências matemáticas na sua busca pelo Bem.
Quando se tem em conta que grandes matemáticos, como Eudoxo de Cnido, Teeteto
de Atenas, Amiclas de Heracléia, Teudio de Magnésia, Ateneu de Cízico, entre diversos
outros (CATTANEI, 2005, p. 30-31), fizeram parte da Academia, realizando suas pesquisas
em conjunto, compreende-se que mesmo quando deixamos de lado a discussão a respeito de
Platão ter sido ou não um matemático profissional, ele, por certo, deve ter a sua importância
na fixação da matemática como uma ciência dedutiva.
Seu mérito repousa na enorme influência que exerceu como entusiasta pelo estudo
dessa ciência, “quem não é geômetra não entre!” (CATTANEI, 2005, p. 30) era o aviso que se
podia encontrar na entrada de sua escola – a Academia –, a qual era uma instituição dedicada
à formação ética e política. Diferentemente da educação ofertada pelos sofistas, que visava
treinar o caráter, a Academia buscava aprimorar o intelecto. O propósito de Platão na
República – entre outras coisas – é educar os guardiões da cidade. Para isso, o estudo das
ciências matemáticas era indispensável. Na Academia, vigorava o espírito socrático, que
certamente permeava os calorosos debates sobre os mais variados temas, da mesma forma
como eles se apresentam nos Diálogos.
Igualmente, o criador da Academia foi um grande crítico dos métodos matemáticos,
tendo muito possivelmente contribuído com a sua terminologia. O rigor matemático teria
fornecido a Platão os meios de chegar a uma definição segura das coisas, “[...] aquilo quanto a
que elas nada diferem, mas quanto a que são todas o mesmo” (PLATÃO, Mênon, 72c, 2001,
p. 23-25). E eis que ele propõe que para se chegar à verdade das coisas, nosso exame deve
proceder a partir de uma hipótese. “Por ‘a partir de uma hipótese’ quero dizer a maneira como
os geômetras freqüentemente conduzem suas investigações” (PLATÃO, Mênon, 86e, p. 69).
A exemplo dos geômetras, Platão procurou partir do que é inicialmente assumido como
verdade “[...] não como princípios, mas realmente como hipóteses, como degraus e pontos de
apoios”(PLATÃO, Rep., VI 511b, 2006, p. 263), e num processo que avança passo a passo
forçando nossa alma a se elevar, chegar à consequências necessárias.
Platão se empenhou, sobretudo, na busca pelo conhecimento. A importância do papel
que as ciências matemáticas desempenham na sua teoria do conhecimento é algo freqüente em
seus Diálogos. Cabem a elas “[...] facilitar que a própria alma abandone o devir e se volte para
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a verdade e para a essência” (PLATÃO, Rep., VII 525c, 2006, p. 282). O lugar da matemática
na metafísica platônica é justamente entre o sensível e o inteligível e sua simbiose com a
filosofia passa a representar neste caso uma simbiose com a dialética. Neste liame, ela estreita
os laços com as teorias da reminiscência (que sustenta que aprender é recordar) e
metempsicose (crença na transmigração das almas) de Platão para explicar como é possível
chegarmos aos universais partindo-se dos particulares.
É a natureza bifronte da matemática que nos permite o caminho ascendente e
descendente da dialética. Ora, no primeiro, tomando aquilo que é procurado como se fosse
admitido e extraindo deles as conseqüências necessárias, que nos permitiria chegar a outro
fato mais simples e que explicaria o anterior, e procedendo sempre desta maneira, ou seja,
“assim por diante”, até transcender o caráter de aceitabilidade intrínseca das hipóteses,
alcançaríamos um princípio “não-hipotético”. Uma hipótese caracteriza-se como algo que
deve (ou não) ser aceito pelos participantes de um diálogo, já o princípio não-hipotético (a
idéia do Bem) de Platão seria algo “auto-evidente” para todos, que não estaria sujeito a
critérios subjetivos de aceitação. O próprio Platão teve dificuldades na explicação desse
conceito e como se chegaria até ele. O fato é que não se pode alcançá-lo pelo simples
raciocínio. Há toda uma aura de misticismo em torno da metafísica platônica, especialmente
no que diz respeito à sua idéia do Bem. Mas uma vez alcançada esta Idéia, procedendo agora
pelo caminho descendente da dialética seria possível deduzir todas as hipóteses subseqüentes
e garantir assim uma fundamentação completamente segura para todo o conhecimento.
Aristóteles, o aluno revolucionário
Esse é o panorama da matemática na Academia quando o jovem estrangeiro da
Macedônia nela ingressa em 367 a.C. Naquela ocasião, o escolarca responsável pela direção
da escola era Eudoxo de Cnido, o qual se acredita ter apresentado o novo discípulo ao mestre,
quando este retornou. E seria justamente esse discípulo que se tornaria notável por suas
próprias realizações posteriores, entre as quais se destaca uma candente disputa com Platão e
alguns acadêmicos. A passagem de Aristóteles pela Academia mudaria para sempre a história,
pois este se permitiu discordar do seu mestre quanto às coisas de que trata a matemática
(SILVA, 2007, p. 43). Mais tarde ele se queixaria de que “[...] para os filósofos de hoje, as
matemáticas se tornaram filosofia, mesmo que eles proclamem que é preciso ocupar-se delas
só em função de outras coisas” (ARISTÓTELES, Met., A 9, 992a 30, 2002a, p. 61).
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A simbiose entre a filosofia e a matemática foi convertida pelas mãos de Aristóteles
em sua mais controversa versão: matemática e metafísica.
Ao mesmo tempo em que se identificam como ciências teoréticas, elas divergem pelos
seus objetos de estudo. Que os objetos matemáticos existam, disso o Estagirita não dúvida,
mas que eles existam como substância supra-sensível – como queria o seu mestre – ou, como
imanentes às coisas sensíveis – como queriam os pitagóricos – ele considera “impossível”
(), “absurdo” (), “risível” ().
Qual deve ser então o estatuto ontológico dos entes matemáticos?
Encontrar uma resposta alternativa é o propósito que o Estagirita destinou
especialmente aos dois últimos livros da sua Metafísica. E chega-se com isso ao cerne da
refutação: “Portanto, nossa discussão versará não sobre seu ser mas sobre seu modo de ser”
(ARISTÓTELES, Met., M 2, 1076b 10, p. 593).
Enquanto Platão situa o âmbito ontológico dos entes matemáticos como
“intermediários” entre os outros dois, a saber, o das coisas sensíveis e o mais alto, que
compreende as Idéias, Aristóteles não apenas nega o caráter supra-sensível dos objetos da
matemática, mas oferece como resposta o seu próprio entendimento dos entes matemáticos.
Desta forma, Aristóteles é o primeiro e único a proferir um Não! em meio a um coro
antigo de Sim! (CATTANEI, 2005, p. 35). “Aristóteles com freqüência dá o melhor de si, do
ponto de vista filosófico, quando é polêmico” (ANNAS, 2003, p. 77, tradução nossa). Mas
estes livros teriam ainda um sabor especial para os intérpretes de Platão, que os consideraram
a chave para uma correta interpretação do pensamento deste filósofo, por fazerem alusões a
doutrinas que ele teria ensinado na Academia e que não constam em seus Diálogos – e que
por esta razão são chamadas de “doutrinas não escritas”. As distinções entre escrita e
oralidade são os alicerces fundamentais sobre os quais se situam as diferentes correntes
hermenêuticas do platonismo, que surgiram já entre aqueles que conviveram com Platão e que
teriam aprendido diretamente com ele – Speusippus e Xenócrates – além do Estagirita.
A hermenêutica emerge assim, como um dispositivo fundamental para uma multifocal
apreciação do platonismo, na qual a matemática encontra outras disposições, além da
tradicionalmente conhecida na “metáfora da linha dividida”. O Estagirita recorta essa linha
oferecida pelo seu mestre como uma representação dos níveis do conhecimento e esmiúça
cada um dos seus segmentos com os seus novos instrumentos de pesquisa: a teoria da
substância.
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Platão e Aristóteles sob uma perspectiva geral da Filosofia da Matemática
A busca por um significado para os objetos de que trata a Matemática tem atraído e
desafiado as mentes de grandes pensadores em todos os tempos. No decorrer dessa busca
diversas teorias têm sido criadas, muitas vezes atribuindo suas origens ao mundo sensível,
este, que podemos chamar de “o mundo real em que vivemos” e no qual nos vemos inseridos.
É ele quem nos fornece todos os ingredientes e as experiências necessárias para que possamos
compreendê-lo. Em outros casos, alguns destes princípios parecem pertencer a um reino
exterior, outra dimensão, que não é contaminada por nossas sensações, mas que somente nos é
acessível mediante a atividade do pensamento. E foi assim que os objetos matemáticos
passaram a fazer parte de nosso campo de especulação; alternando-se entre os sentidos e a
intelecção (e por vezes fundindo-os), ora fundamentando-se sobre a lógica, ora sobre a
intuição, como ferramenta empírica ou técnica da razão. Configurando-se lentamente no que
hoje se apresenta como o rico mosaico que constitui o domínio da Filosofia da Matemática.
Com o desenrolar do tempo, como é absolutamente normal em qualquer segmento do
conhecimento, as diversas doutrinas surgidas apoiavam-se em suas predecessoras, quando não
para juntar-se a elas – fornecendo-lhes uma nova roupagem –, mas muitas vezes também para
confrontá-las. Contudo, olhando para o horizonte disposto hoje a nossa frente, podemos
facilmente nos perder em meio a seus meandros, em virtude tanto da quantidade, quanto da
amplitude dos conceitos envolvidos. Da mesma forma como acontece aos viajantes que se
encontram perdidos numa floresta, relatados no Discurso do método6 de Descartes, devemos
evitar ficar dando voltas e muito menos permanecer parados no mesmo lugar, escolhendo uma
direção e seguindo sempre reto por ela, sem nos desviar por quaisquer motivos.
E se diante de concepções às vezes díspares, desejamos ter uma visão central, e que ao
mesmo tempo nos ofereça um panorama holístico dos principais problemas que por séculos
afligiram filósofos e matemáticos, somos obrigados a retroceder no tempo. Em geral, quando
se pretende analisar algum aspecto de nossa sociedade moderna, não importa qual ramo
histórico sigamos, seja o filosófico, o científico (no nosso caso o da História da Matemática)
ou o sociológico, em se tratando da história do pensamento ocidental, chegaremos, por fim, a
um único lugar, a Grécia antiga. Assim ocorre com as artes, com a política, com as ciências, e
outros segmentos que não nos convém aqui rememorar.
6 DESCARTES, R. Vida e obra; Discurso do Método; As Paixões da Alma; Meditações. São Paulo: Nova
Cultural, 1999, p. 55. Coleção Os Pensadores.
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Sabe-se que algumas técnicas de cálculo foram desenvolvidas por egípcios e
babilônicos, em ambos os casos a experiência era o critério último de verdade. Os gregos, por
sua vez, em posse de tais resultados e de outros próprios, desenvolvidos pelas Escolas jônica e
pitagórica, proporcionaram uma verdadeira reviravolta no modo de se conceber os mathemata
(. Sob esse termo estavam englobados não apenas as figuras da geometria e os
números da aritmética, mas também os corpos celestes e os sons musicais estudados pela
astronomia e harmonia, respectivamente. Aos habitantes da Hélade não mais satisfazia “fazer”
matemática no sentido prático da palavra, isto é, apenas operando símbolos representativos de
entidades concretas para a solução de problemas concretos.
Os elementos pertencentes à história: os seus fatos, datas, percalços, personagens e
contextos, serão para nós, em nossa jornada, as estrelas pelas quais iremos nos orientar em
nossa navegação pelos mares da filosofia.
Nesse nosso percurso, tornar-se-á necessário apresentar, mesmo que brevemente,
nossos personagens principais; Platão e Aristóteles. Conhecendo o ambiente em que viveram,
as circunstâncias que os levaram a busca do conhecimento e as sementes que germinaram nas
suas teorias, por isso relembrar a introdução da História da Filosofia Ocidental de Russell:
Para compreender uma época ou uma nação, devemos compreender sua filosofia e, para que compreendamos sua filosofia, temos de ser, até certo ponto, filósofos. Há uma relação causal recíproca. As circunstâncias das vidas humanas contribuem muito para determinar a sua filosofia, mas, inversamente, sua filosofia muito contribui para determinar tais circunstâncias. (RUSSELL, 1969, p. X)
Seria possível parafrasear o trecho acima no contexto da matemática? As
circunstâncias da matemática numa dada época contribuem para determinar a sua filosofia?
Vale também a recíproca? Uma filosofia da matemática contribui para determinar as
circunstâncias sobre as quais se desenvolve a matemática? De que modo a matemática
interfere no statu quo da filosofia e vice-versa?
Uma ilustração das divergências que Platão e Aristóteles protagonizaram no âmbito da
constituição ontológica dos objetos da matemática certamente pode nos proporcionar alguma
luz numa busca por essas respostas.
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Fundamentação Teórica
Ao investigar as concepções sobre a natureza dos objetos da matemática de acordo
com Platão e Aristóteles, uma questão em especial vem à tona; qual a metodologia de
pesquisa a ser empregada?
Tradicionalmente, podemos pensar que a metodologia positivista de pesquisa, da
forma como foi idealizada por Augusto Comte (1798-1857), propõe uma “aplicação da
abordagem científica na realidade social humana” (GOLDENBERG, 1997, p.17). Tal atitude
implicaria assumir nas ciências humanas os pressupostos utilizados na pesquisa das ciências
exatas que, entre outras coisas, considera a realidade como constituída de fatos objetivamente
mensuráveis e que as causas desses fatos podem ser determinadas através de uma abordagem
experimental, na qual o papel do pesquisador seria praticamente neutro. De fato, isso não se
ajusta à nossa pesquisa, pois não há nela questões empíricas a serem testadas ou
comportamentos a serem sistematizados. Logo, refutamos o paradigma de pesquisa positivista
como uma metodologia de pesquisa adequada à nossa proposta, que é estudar as concepções
de Platão e Aristóteles no que diz respeito às coisas de que trata a matemática, ao seu modo de
ser.
Poderíamos então pensar num estudo com pesquisa qualitativa, visto que esta tem seu
foco nos assim chamados “processos” e não apenas nos “resultados” ou “produtos” da
pesquisa (BOGDAN; BIKLEN, 1994, p.49). E ainda, a pesquisa qualitativa
[...] em vez de privilegiar a sistematicidade garantida por um método determinado, a objetividade dada pela neutralidade do investigador e pela consistência dos dados tratados, [...] privilegiam-se descrições de experiências, relatos de compreensões, [...] e outros procedimentos que dêem conta de dados sensíveis, de concepções, de estados mentais, de acontecimentos, etc. (BICUDO, 2006, p.107)
Mas novamente, em boa parte dos estudos qualitativos o que se vê é uma interação do
pesquisador com o campo, isto é, o ambiente natural desenvolvendo o papel de fonte direta
dos dados. Nesse contexto, cabe ao pesquisador descrever os fenômenos observados.
Entretanto, “[...] em filosofia, com efeito, não lidamos com dados, acontecimentos ou fatos
puramente exteriores que o pensamento se contentaria em encontrar, constatar, registrar,
porque seria incapaz de produzi-los” (FOLSCHEID; WUNENBURGER, 2006, p. 7).
Diferentemente dessa tradição, há a pesquisa conhecida pela denominação de “estado
da arte” (FERREIRA, 2002, p. 258) ou “estado do conhecimento”. Essa modalidade de
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pesquisa, que tem como objetivos o mapeamento e a discussão sobre a produção acadêmica
feita nos diferentes campos do conhecimento e em diferentes épocas servem como uma
bússola para o pesquisador, permitindo a ele conhecer tudo aquilo que já foi produzido (ou
pelo menos grande parte), para que possa situar a sua pesquisa num contexto maior, e ir além,
apontando novas direções, estendendo os limites do conhecimento. Deste modo, mesmo não
sendo o nosso objetivo produzir um estudo de caráter bibliográfico sobre a natureza e o status
das entidades matemáticas no pensamento de Platão e Aristóteles, ao voltarmos nossa atenção
para a pesquisa de “estado da arte” surge uma questão de fundamental importância para o
desenvolvimento do nosso trabalho que é: Qual é o “estado da arte” do tema de nossa
pesquisa? Essa indagação nada tem de particular com o nosso projeto de pesquisa em
particular, mas antes, acreditamos que deva fazer parte de toda e qualquer tese ou dissertação,
sob o risco de se estar recriando a roda.
E assim nos voltamos aos fundamentos da atividade filosófica para desenvolver nossa
linha de pesquisa, que são: ler, refletir e interrogar. O método é inerente à própria atividade
filosófica, contudo pode-se questionar como será feita cada uma dessas etapas acima, e é isso
que nos propomos a responder brevemente a seguir.
Podemos inicialmente “ter uma interrogação e andar em torno dela em todos os
sentidos, sempre buscando todas as suas dimensões e andar outra vez e outra ainda, buscando
mais sentido, mais dimensões e outra vez...” (BICUDO, 1993, p. 18). No que diz respeito à
pergunta diretriz, encontrar a pergunta nem sempre é uma tarefa fácil, muito pelo contrário,
na maioria dos casos o caminho é longo, tortuoso, e requer paciência, e mesmo assim uma vez
encontrada não significa que será definitiva (ARAÚJO; BORBA, 2006, p. 29-31).
Freqüentemente, a pergunta diretriz passa por transformações ao longo do desenvolvimento
da pesquisa, o que é natural já que ao progredir novas referências podem surgir em detrimento
de outras, novos horizontes podem irromper levando o pesquisador a novas e até inesperadas
perspectivas.
O início da pesquisa certamente é a parte mais difícil, pois começamos com uma
leitura, e essa indica outras, e que por sua vez indicam outras, e assim sucessivamente. Novas
concepções de diferentes autores vão aparecendo a todo instante, dando-nos a impressão de
que aquilo que procuramos vai se tornando mais e mais distante. Temos no início – fazendo
um livre uso dos termos aristotélicos – pura matéria sem forma. Pouco a pouco começa a se
fazer sentir em nós uma sensação de segurança com relação à articulação dos dados.
O objetivo desse trabalho é participar das diferentes concepções que tinham Platão e
Aristóteles a respeito dos objetos da matemática, e como referencial teórico inicial para tal
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temos os livros: Entes Matemáticos e Metafísica: Platão, a Academia e Aristóteles em
confronto, de Elisabetta Cattanei e Aristotle’s Methaphysics: Books M and N translated with
Introduction and Notes, de Julia Annas. Então a partir dessas duas obras surgem praticamente
todas as outras encontradas na bibliografia. Logo, nossa pesquisa bibliográfica se deu por
indicação direta das notas e referências encontradas nesses trabalhos. Esses dois livros, mais a
Metafísica de Aristóteles, juntamente com os diálogos de Platão utilizados em nossa pesquisa,
constituem as fontes primárias de nosso trabalho. As fontes secundárias constituem-se de
todas as outras obras, como livros e artigos que auxiliam na sustentação da discussão.
Para isso, assumimos uma posição de neutralidade, procurando desfrutar dos
benefícios que Russell distingue:
Ao estudar-se um filósofo, a atitude correta consiste em não se experimentar nem reverência nem desprezo, mas, desde o começo, uma espécie de simpatia hipotética, até que seja possível saber se se deve crer em suas teorias, sendo que somente então deve manifestar um renascimento da atitude crítica, a qual deve assemelhar-se tanto quanto possível, ao estado de espírito de uma pessoa que abandona as opiniões que até então professava. O desprezo impede a primeira parte deste processo; a reverência, a segunda. Duas coisas devem ser lembradas: primeiro, que um homem cujas opiniões e teorias são dignas de estudo deve ter possuído uma certa inteligência, mas que é provável que nenhum homem haja chegado à verdade completa e definitiva sobre qualquer matéria. Quando um homem inteligente manifesta uma opinião que nos parece evidentemente absurda, não deveríamos procurar que ela, de certo modo, é verdadeira, mas deveríamos procurar compreender como foi que ela chegou a parecer verdadeira. Este exercício de imaginação histórica e psicológica amplia, ao mesmo tempo, o escopo de nosso pensamento, e nos ajuda a compreender quão tolos muitos de nossos preconceitos mais caros parecerão a uma época de espírito diverso. (RUSSELL, 1969, p. 46-47)
Estabelecemos então, uma relação estreita, direta e constante com os textos, tanto os
“modernos”, quanto os dos próprios Platão e Aristóteles. Os primeiros são os que têm como
norte as novas doutrinas hermenêuticas do platonismo – ainda que alguns autores não
concordem plenamente com as mesmas. O papel da exegese, muito importante no contexto da
filosofia, tem sua força redobrada quando se trata de temas da filosofia antiga, como no nosso
caso, a filosofia de Platão, porquanto é nas interpretações que outros dão aos seus textos que
se fundamentam os paradigmas interpretativos.
Quando se busca compreender o pensamento de um filósofo, é prática comum
examiná-lo sob as diferentes perspectivas de outros pensadores, que se não lhes foram
contemporâneos, viveram, pelo menos, num período imediatamente posterior. É nos
comentários feitos por outros que os esforços de contemplar um todo filosófico de um
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determinado pensador se renovam. Deste modo, Aristóteles é, por excelência, o primeiro
comentarista de Platão, pois lhe dirigiu suas críticas enquanto este ainda era vivo. Quem nos
explica como se relacionam todas as nossas fontes, primarias e secundárias, e a importância
dessas relações para a nossa pesquisa é o erudito ítalo-germânico Vittorio Hösle:
De tudo isso resulta para toda investigação abrangente da obra de Platão a obrigação de estudar, em primeiro lugar, os testemunhos coletados tardiamente a respeito das preleções não publicadas de Platão (que certamente ainda iam além de questões teóricas específicas em nível de princípios), em segundo lugar as teorias filosóficas de seus discípulos imediatos (também e justamente dos menos originais, uma vez que eles têm um valor especial enquanto fontes), e, em terceiro lugar, os trabalhos científicos que surgiram no contexto da Academia e dos quais alguns se devem à própria sugestão de Platão. (HÖSLE, 2008, p. 18)
Este trabalho é amparado também pela história da filosofia, porém de maneira não
fragmentada, ou para melhor dizer, não como um amontoado de fatos, datas e nomes isolados,
mas seguindo uma seqüência dinâmica do pensamento, que vai desde os predecessores de
Platão e Aristóteles até a influência que estes, por sua vez, tiveram sobre pensadores de nosso
tempo.
Para isso, utilizamo-nos ainda do método histórico como forma de método científico
específico da história como ciência social. De fato, essa metodologia compreende as técnicas
e diretrizes mediante as quais os historiadores fazem uso de suas fontes e outras evidências
em suas investigações.
Muitas vezes torna-se necessário em nosso trabalho, averiguar a origem dos vocábulos
utilizados, consultando os termos gregos e o uso que se faz deles, para que possamos
compreender melhor os conceitos envolvidos. Por exemplo, é difícil precisar em que
momento longínquo do tempo surgiu o fenômeno da educação como a conhecemos hoje.
Utilizamo-nos de uma expressão moderna que aglomera conceitos e abrange aspectos que em
outros lugares e em outras culturas receberam diferentes nomes que apenas podem ser
entendidos em seus próprios termos, como é o caso da Paidéia no âmbito da cultura grega
antiga.
Cabe ressaltar que esse passeio por diferentes perspectivas de pesquisa não teve como
finalidade encontrar um algoritmo a ser seguido, mas sim “conceber uma metodologia de
pesquisa que subentende uma certa visão de conhecimento” (ARAÚJO; BORBA, 2006, p.43),
que para nós é o conhecimento filosófico. A busca por uma metodologia de pesquisa se deu
não na tentativa de justificar o objeto de nosso estudo pelo seu método, ou, legitimar a
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matéria pela forma, mas, inversamente, procuramos demonstrar a adequação do paradigma
adotado ao estudo proposto. Tal adequação emergiu de forma natural, podendo essa conduta
ser descrita, sem perda de generalidade, pelas palavras de Araújo e Borba (2006, p. 42) que
afirmam:
[...] quando decidimos desenvolver uma pesquisa, partimos de uma inquietação inicial e, com algum planejamento, não muito rígido, desencadeamos um processo de busca. Devemos estar abertos para encontrar o inesperado; o plano de fundo deve ser frouxo o suficiente para não “sufocarmos” a realidade, e, em um processo gradativo e não organizado rigidamente, nossas inquietações vão se entrelaçando com a revisão da literatura e com as primeiras impressões da realidade que pesquisamos para, suavemente, delinearmos o foco e o design de nossa pesquisa.
Influenciados pelo método socrático, que Platão utilizava amplamente como
instrumento pedagógico em seus Diálogos, consideramos que a melhor maneira de
representar o nosso posicionamento perante a pesquisa a que nos propusemos é mediante uma
metáfora. Assim, nossa posição assemelha-se a de um estudante de xadrez, que analisando
uma partida entre dois grandes-mestres, reproduz atentamente cada movimento, levando em
consideração as possíveis variantes que outros antes dele apontaram, procurando compreender
as diferentes linhas de jogo e, na medida do possível, tentando encontrar por si mesmo, em
cada lance, o próximo movimento. Freqüentemente, os grandes-mestres costumam lançar
compilações em que dispõem suas notas particulares sobre suas mais importantes partidas. É
com este espírito que lemos os livros M e N da Metafísica, que sem dúvida é o relato da
grande “imortal” partida da filosofia da matemática. Platão inicia a partida com sua
característica abertura – a Teoria das Idéias. Aristóteles reage energicamente com sua Teoria
da substância. Lance após lance, o jogo se desenvolve, gambitos são engendrados, peças são
trocadas, e a tensão aumenta quanto mais nos aproximamos do final da partida, que termina
empatada. Enquanto alguns afirmam que o Estagirita teria conseguido dar um cheque-mate
em seu mestre, outros sustentam que o estilo próprio de jogo de Platão, ainda que seja aberto a
críticas, não permite que adversário algum venha a derrotá-lo.
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1. Platão
“Para o homem, a vida não examinada não vale a pena viver”
Platão, Apologia de Sócrates, 38a.
“... que os homens ruins sequer têm o direito de louvar; um homem que foi o único, ou o primeiro dentre os mortais, a provar com clareza, mediante sua própria vida e o rumo de seus argumentos, que um homem se torna bom e feliz ao mesmo tempo”.
Aristóteles apud Barnes, 2005, p. 39.
A Atenas de sua época
Nascido no ano de 428/427 a.C. e descendendo de uma família ateniense de classe
alta, Platão viveu, sobretudo, num período de transição. Era o fim do Império Ateniense, o
declínio de uma potência artística e cultural cujo legado se tornaria a base das tradições
ocidentais. Ao mesmo tempo dava-se a ascensão do império macedônico, este beneficiado
pelas chamadas guerras do Peloponeso (431-404 a.C.), que dividiram o antigo mundo grego
em dois blocos; um liderado por Atenas e outro por Esparta.
Inicialmente unidas contra um inimigo comum – a saber, os persas –, o conjunto das
cidades gregas passaram a ficar sob o comando dessas duas cidades, pois demonstraram
possuir, em tempos de guerra, o maior dos dons; o de liderar. Atenas havia passado por um
período de crescentes avanços nos domínios da política e da cultura, atingindo o seu apogeu
durante o governo de Péricles, entre 460 e 430 a.C. A necessidade de estabelecer rotas
comerciais com as cidades vizinhas e o reforço da frota proporcionado por Temístocles, em
meados de 490 a.C., assegurou aos atenienses a primazia no mar. Esparta, por sua vez, mesmo
considerada inferior em diversos aspectos quando comparada a Atenas, representava a grande
potência militar terrestre da época. Seu regime de governo oligárquico garantia a tão sonhada
estabilidade política e sua organização militar “[...] sugeria uma solução política baseada no
sacrifício das liberdades individuais em nome da disciplina e da ordem social” (PLATÃO,
1999, p. 8).
Tendo finalmente vencido as hordas vindas do oriente – os persas, os gregos tinham
que lidar agora com as antigas rivalidades, ampliadas pela crescente ambição instaurada no
seio da aristocracia, o que fez surgir um novo e crucial problema: a quem caberia liderar a
partir de então?
A luta pela hegemonia, que alternava por curtos períodos de tempo entre um grupo e
outro, enfraquecera a ambos, contribuindo assim para que o rei Filipe da Macedônia levasse a
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cabo os seus planos de expansão, subjugando as cidades gregas em torno de 337 a.C., cerca de
dez anos após a morte de Platão.
Nesse meio tempo ocorreu uma série de eventos que deixariam marcas indeléveis na
alma de um jovem Platão, determinando assim todo o rumo de sua filosofia. Conhecer os
bastidores da vida de Platão, mesmo que de forma sucinta, nos permite compreender as suas
motivações, como, por exemplo, na busca por um governante ideal, no seu cuidado com as
palavras e quanto às coisas que se pode conhecer.
Sua educação e o encontro com os sofistas
Platão seguramente recebeu a educação que era destinada a um jovem ateniense de sua
classe, tendo estudado poesia, música7 e também praticado ginástica. O meio em que viveu
lhe permitiu uma ampla e sólida formação cultural, por meio da qual teve contato com as
concepções filosóficas dos “pré-socráticos”, além, é claro, das ciências matemáticas. E seriam
elas, com destaque para a geometria e a aritmética, que desempenhariam um papel vital sobre
todo o seu pensamento, tratando-se na verdade, de um tema recorrente em seus Diálogos, e
que, devido à tradição exegética, estende-se para além deles.
Acredita-se que Platão tenha recebido lições de um sofista, já que
Os pais que dispunham de recursos confiavam a tarefa de completar a educação de seus filhos aos sofistas. Estes se encarregavam de ensinar-lhes a arte da retórica e, de um modo geral, tudo o que fosse necessário para transformá-los em políticos bem-sucedidos. (PLATÃO, 1996, p. 13)
Mas quem eram os sofistas e qual é exatamente a natureza de seus ensinamentos?
A palavra vem de sophos (), que “[...] abrange todo gênero de habilidade ou
destreza física ou intelectual, artística ou política” (HARE, 2004, p. 69). Deste modo, os
sofistas podem ser interpretados como “sábios” ou “engenhosos”. Eram considerados mestres
na arte de retórica e a ensinavam por toda parte àqueles dispostos a lhes pagar.
Apesar do tom irônico com que eles aparecem nos Diálogos, não se trata
simplesmente de um grupo de oportunistas com vistas apenas no lucro financeiro. Esta
certamente é a visão mais precipitada, e por isso mesmo superficial (e errônea!) que se pode
ter a respeito do movimento sofístico, uma vez que “do ponto de vista histórico, a sofística é
7 Poesia e música eram contempladas em conjunto na Grécia Antiga, a declamação de poemas era acompanhada,
em geral, pelos sons da cítara ou da flauta. PLATÃO, 1996, p. 105.
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um fenômeno tão importante como Sócrates ou Platão. Além disso não é possível concebê-los
sem ela” (JAEGER, 2001, p. 341).
É certo que o florescimento da vida intelectual grega tenha fornecido oportunidades
aos cidadãos, no âmbito da educação e da cultura, jamais vistas dantes, diminuindo, na
medida do possível, a distância entre governantes e governados. Esse importante fator social
implicou a demanda de uma nova estrutura educacional que não deveria se limitar à formação
do ideal de Homem como é encontrado nos poemas homéricos, mas que privilegiasse os
interesses da nobreza. Pois bem, os filhos desta necessitavam de conhecimentos diferenciados
que lhes desse a vantagem nas assembléias, e já que “[...] as qualidades fundamentais de um
homem de Estado não se podem adquirir. [...] Pode-se, no entanto, desenvolver o dom de
pronunciar discursos convincentes e oportunos” (JAEGER, 2001, p. 339-340). Habilidade
fundamental numa cidade-estado em que laços de sangue poderiam e até garantiam o acesso
de uma pessoa à estrutura do poder, porém a sua manutenção dependia, em grande parte, dos
seus dotes oratórios. Simultaneamente, em decorrência do aprimoramento da experiência
democrática ateniense, cada vez mais os líderes bem-nascidos cediam lugar a homens do
povo, que por sua vez procuravam de todas as formas assegurá-lo aos seus filhos, vendo nos
sofistas o auxílio necessário aos seus desígnios. Entre as diversas transformações instauradas
pelos sofistas, destaca-se o rompimento da estrutura social que restringia a cultura a
determinadas camadas.
É muito provável que Platão, em torno de seus vinte anos, tenha conhecido Sócrates e
freqüentado o seu círculo, não com o intuito de se tornar um filósofo, mas com o propósito de,
mediante o estudo da filosofia, aprimorar seus conhecimentos para a vida política. Todavia, o
destino, sempre caprichoso, mudaria por completo os rumos de seus objetivos.
Olhando para além da dicotomia instaurada entre retórica e filosofia, que foi antes uma
decorrência da situação política das cidades-estados da época, deve-se compreender que o
propósito dos primeiros sofistas era a formação do espírito. Servindo-se de uma
multiplicidade de métodos como a poesia, a música, a gramática, a retórica e a dialética,
buscavam uma “[...] intelecção universal da essência das coisas humanas” (JAEGER, 2001, p.
339), que, amparadas pela política e pela ética, transpunham as concepções de uma educação
espiritual consideradas puramente sob a ótica dos conteúdos intelectuais, ou formais, para
figurar o homem na completude de sua condição social.
Enquanto matemática e filosofia se animam mutuamente na ampliação dos horizontes
especulativos da realidade circundante, a sofística vem a preencher, no contexto do
conhecimento, um espaço outrora vazio, visto que, ao contrário das duas primeiras, não tem
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como escopo um saber teórico ou científico, mas trata de uma exigência de ordem
estritamente prática.
Assim sendo, esse novo “saber enciclopédico” (polimathia / e estruturado
passou a representar um fenômeno que veio a formular os conceitos ocidentais da educação
como difusão do saber, e que, unindo uma nova racionalidade às antigas tradições poéticas,
abriu um novo caminho para o desenvolvimento social, ético e político.
Em contrapartida, tendo em conta o ambiente da Atenas em que Platão cresceu, isto é,
de decadência propiciada por intermináveis batalhas, pela fome e pelo empobrecimento, que
trazem em sua esteira toda a sorte de degradação cívica e moral, não é de se espantar que a
educação sofística tenha sido reduzida a meros exercícios de eloqüência. Por esta razão, por
ter se tornado um conhecimento baseado em parcialidades e por isso não verdadeiro, é que
Platão e Aristóteles combateram o sistema educacional dos sofistas, atribuindo-lhes o caráter
negativo de fundadores do subjetivismo e do relativismo moral com o qual durante muito
tempo diversos historiadores da filosofia têm concordado. Felizmente essa posição tem
sofrido mudanças (e com justiça) desde o século passado em grande parte devido ao profundo
trabalho do filólogo alemão Werner Jaeger (1888-1961).
As desilusões na política
A expansão do relativismo moral e o agravamento das disputas políticas
transformaram o que era inicialmente um conflito entre as cidades gregas em um conflito no
próprio interior delas, e a reviravolta da moralidade e a deturpação do significado das palavras
estimulou Sócrates a buscar um sentido seguro para elas na expressão dos conceitos. Assim
ele é visto nos Diálogos questionando as pessoas sobre “o que é a justiça?” ou “o que é a
virtude?”
Quanto a Platão, podemos pensar que um jovem que crescesse no seio da aristocracia
ateniense decerto aspirasse a uma carreira política, e ele próprio confirma em sua Carta VII
quando diz: “Quando eu era jovem, senti o mesmo que muitos: pensei, mal me tornasse
senhor de mim mesmo, ir direto à política. E eis como alguns eventos das coisas políticas me
atingiram” (PLATÃO, Carta VII, 324b8-c,1996, p. 47).
Certamente a atmosfera política encontrada na Atenas daquela época contribuiu
sobremaneira para que Platão tivesse desistido da carreira política, embora essa temática tenha
sido o seu maior interesse durante toda a sua vida. Outro evento, que veio a somar-se às suas
desilusões na esfera da política, ocorreu em 399 a.C., quando, depois da restauração da
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democracia, o seu mestre e amigo Sócrates foi condenado à morte sob a acusação de
desvirtuar os jovens atenienses e de não acreditar nos deuses da cidade.
A derrocada de quaisquer ambições políticas que porventura Platão poderia ainda
nutrir veio a acontecer quando em 388 a.C., aos quarenta anos, viajou para a Sicília, onde
conheceu em Siracusa um jovem chamado Díon (409-354 a.C.). Os laços de amizade entre
este e Platão se desenvolveram a ponto de o rapaz vir a se tornar seu discípulo, tendo
absorvido suas doutrinas e, talvez entusiasmado por elas, persuadido o mestre a intervir na
corte de seu cunhado, o rei Díonísio I. A empreitada não logrou sucesso e os eventos
envolvendo Díon e sua família terminaram anos depois com a sua morte pelas mãos de Calipo
– suposto amigo que pertencia ao círculo da Academia – sob as ordens do filho de Díonísio I
e seu sucessor no trono, Díonísio II.
As viagens
A morte de Sócrates foi um golpe duro em Platão, que, logo após, partiu em viagem,
talvez em busca de novos ares que o ajudassem a refletir sobre os acontecimentos ocorridos
ou mesmo para organizar suas idéias, ou, quem sabe, desejoso de aumentar os seus
conhecimentos, ou até mesmo por todas essas coisas juntas! Sobre isso, tudo o que podemos
fazer é apenas especular. É certo que visitou Megara, onde Euclides (435-365 a.C.) – o
filósofo, não o geômetra –, que também era membro do grupo ligado a Sócrates, havia
fundado uma escola filosófica. Platão esteve ainda no norte da África, onde, em Cirene “[...]
inteirou-se das pesquisas matemáticas desenvolvidas por Teodoro, particularmente as
referentes aos irracionais” (PLATÃO, Carta VII, 1996, p. 11).
Não se sabe ao certo quais os motivos da primeira visita de Platão à Sicília nem quanto
tempo ela durou, mas sabe-se que foi nessa ocasião que ele teve contato com os pitagóricos,
chegando a conviver com o famoso matemático e político Árquitas de Tarento (428-347 a.C.).
Assim iniciava-se uma fecunda relação que foi principalmente marcada pela influência mútua.
A Academia e os primeiros diálogos
Após o infeliz episódio em Siracusa, Platão retornou à Atenas e lá fundou uma escola
filosófica situada nas proximidades de um bosque dedicado ao herói mitológico Academo, e
que, por essa razão, receberia o nome de Academia. A sua estrutura organizada em forma de
uma comunidade de pessoas vivendo com propósitos semelhantes e também sob preceitos
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comuns pode ser considerada como uma sugestão vinda dos pitagóricos que Platão
incorporou. Analisando Pitágoras sem toda a áurea de mistério que o envolve, levando-se em
conta a função que desempenhou na sociedade criada sob o seu nome em Crotona, no sul da
Itália, e ainda relacionando-o com o que é encontrado nos Diálogos, temos que ele se
aproximou bastante do ideal de rei-filósofo descrito posteriormente na República.
Os estudiosos de Platão parecem não discordar quanto às considerações de que foi
nessa época que ele compôs os seus primeiros diálogos, que são geralmente chamados de
“diálogos socráticos”. Neles encontramos Sócrates como personagem principal promovendo
discussões a respeito de virtudes como a coragem, a piedade, a amizade. Com o seu método
de refutação (elenchus / ), Sócrates questiona os seus interlocutores a respeito das
definições de tais virtudes, e insistindo sistematicamente na carência e contradições de suas
respostas, leva-os a reconhecer, por fim, a sua própria ignorância. Entretanto, podem se
frustrar todos aqueles que pensarem que poderão encontrar nesses diálogos uma definição
dessas coisas dada por Sócrates; ele limita-se a fazer questionamentos, denunciando a
fragilidade das falsas conceituações. Por esta razão esses diálogos são chamados também de
“aporéticos”8.
Outro atributo notadamente pitagórico na filosofia de Platão é a importância da
matemática para a aquisição do conhecimento, seja ele filosófico, científico ou mesmo moral.
Pitágoras teria afirmado que “tudo são números”, o que pode parecer um absurdo à primeira
vista, porém não quando considerado dentro de uma tradição iniciada ainda nos primórdios da
filosofia e com que a matemática irá se entrelaçar de forma peculiar.
Transformando a argila dos precursores em cerâmica
O início da filosofia é marcado pela busca da essência mais íntima do mundo, sua
harmonia e ordem. Nessa visão o universo seria um imenso relógio funcionando com
impecável precisão, onde cada corpo, cada ser faria parte de suas engrenagens; a isso os
gregos designaram kosmos (). Os primeiros pensadores procuraram compreender a
natureza (physis / – entendida aqui como realidade primeira – elegendo um elemento
físico como o princípio (arché / ) constituinte de todas as coisas, aquilo que a tudo
origina, rege e anima. É nesse contexto que vemos Tales dizer, entre os séculos VII e VI a.C.
8 Aporia () significa “dificuldade de passar”. = passagem, e = sem passagem,
que não se pode atravessar. Trata-se de um termo utilizado “no sentido de dúvida racional, isto é, de dificuldade inerente a um raciocínio, e não no de estado subjetivo de incerteza”. ABBAGNANO, 1998, p. 75.
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em Mileto, que tudo é feito de água. Anaximandro, também de Mileto e contemporâneo de
Tales, acreditava que a substância primeira não era a água, uma vez que ela parece existir
numa certa proporção com os outros elementos, como a terra e o fogo. Para Anaximandro
todos esses elementos são derivados de alguma outra coisa que lhes é anterior e que lhes
mantém em equilíbrio. Este princípio deveria ser algo sem limites, indefinido e indeterminado
(apeiron / ). Ainda em Mileto viveu Anaxímenes, que foi discípulo de Anaximandro,
e que acreditava, por sua vez, que o ilimitado de seu mestre não era outra coisa senão o ar,
que em sua forma natural não tinha forma ou limites, mas quando condensado transformava-
se em água, mais denso, ainda, tornar-se-ia terra e, por fim, pedra.
Com o que temos visto acima, o próximo elo dessa cadeia será Pitágoras, que seguindo
os passos de seus predecessores nomeia também um princípio para todas as coisas, ao mesmo
tempo em que rompe com essa tradição, pois não propõe um elemento físico, mas a
matemática. Mesclando ciência e misticismo, Pitágoras não somente aprecia as relações
numéricas entre as notas produzidas pelos instrumentos musicais, mas eleva o conceito de
harmonia () a considerações cósmicas. Aristóteles sintetiza muito bem a doutrina
pitagórica quando diz:
Os assim chamados pitagóricos [...] primeiro se aplicaram às matemáticas, fazendo-as progredir e, nutridos por elas, acreditaram que os princípios delas eram os princípios de todos os seres. E dado que nas matemáticas os números são, por sua natureza, os primeiros princípios, e dado que justamente nos números, mais do que no fogo e na terra e na água, eles achavam que viam muitas semelhanças com as coisas que são e que se geram [...]; e além disso, por verem que as notas e os acordes musicais consistiam em números; e, finalmente, porque todas as outras coisas em toda a realidade lhes pareciam feitas à imagem dos números e porque os números tinham a primazia na totalidade da realidade, pensaram que os elementos dos números eram elementos de todas as coisas, e que a totalidade do céu era harmonia e número. (ARISTÓTELES, Met., A 5, 985b 20 – 986a 5, 2002a, p. 27)
Quando passa a ocupar o eixo central da cosmologia, a matemática firma-se como
argumento dedutivo-demonstrativo, transformando a theoria () que até então era
entendida como “contemplação do divino” em “contemplação intelectual do divino”.
Concebida assim, a matemática seria, na opinião de Russell “[...] a fonte principal da crença
na verdade exata e eterna, bem como num mundo supersensível e inteligente” (RUSSELL,
1969, p. 43). Diante disso, Platão parecia ter encontrado na matemática uma maneira de
superar as aporias socráticas, e como os seus objetos, os círculos, as retas, os triângulos são
sempre mais perfeitos do que suas representações desenhadas na areia e juntamente com os
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números constituem entidades eternas e imutáveis, Platão irá reservar-lhes um lugar de honra
em sua doutrina das Idéias. No entanto, o misticismo intelectual herdado dos pitagóricos se
manifesta de um modo ainda mais forte na sua concepção do “princípio não-hipotético”, bem
como nos caminhos que levam até ele.
Ainda sobre a teoria das Idéias, Platão recebeu influência de outros dois filósofos da
época. Um deles foi Heráclito de Éfeso, próxima de Samos e de Mileto, localizadas um pouco
a oeste e um pouco sul, respectivamente. Tendo vivido entre os séculos VI e V a.C., ele ficou
amplamente conhecido pelo aforismo que contém a essência de seu pensamento, o qual diz
que “não se pode entrar duas vezes no mesmo rio”, pois as águas que nos banharam já se
foram e mesmo nós, sofrendo continuamente a ação silenciosa e inexorável do tempo,
também já não somos mais. Crátilo, que foi discípulo de Heráclito e que transmitiu as suas
doutrinas ao jovem Platão na ocasião de sua estada em Atenas, teve uma postura mais radical;
para Crátilo não era possível se banhar nem mesmo uma vez no mesmo rio. De qualquer
forma, para Heráclito essas concepções levavam a outras mais profundas, como a idéia de que
esse fluxo constante caracterizava uma passagem de um estado das coisas ao seu contrário.
Tudo o que é frio está destinado a se tornar quente e vice-versa, o jovem tornar-se-á velho e
morrerá, mas é daquilo que está morto que a vida retorna, jovem outra vez. Platão parece
exprimir esse modo de pensar no início do Fédon, quando Sócrates já em seu último dia é
visitado na prisão por seus amigos, e sentado no catre esfregando com a mão a perna que lhe
fora libertada das correntes, diz:
É uma coisa muito estranha [...] isso que os homens denominam prazer. Ela harmoniza perfeitamente com a dor que se acredita constituir o seu contrário! Porque, se não é possível que sejam encontrados juntos, quando se é objeto de um dos dois, deve-se esperar quase sempre o outro, como se fossem inseparáveis. (PLATÃO, 1999, p. 120)
O outro filósofo que teve grande influência sobre Platão foi Parmênides, que floresceu
na segunda metade do século VI a.C na cidade de Eléia, no Sul da Itália. Sempre que
ouvirmos falar dos filósofos Eleatas, lembremo-nos de que foi Parmênides o fundador dessa
escola. Sua postura era completamente oposta à de Heráclito, ou seja, que nada muda. De
acordo com essa visão é preciso tomar cuidado com os nossos julgamentos feitos mediante os
sentidos, pois somos enganados pela aparência das coisas. Sendo assim, devemos
fundamentar nossos conhecimentos unicamente sobre a razão. Alguns o consideram o criador
da lógica ou da metafísica baseada a lógica (RUSSELL, 1969, p. 56), outros remetem a ele
uma inovadora transformação da cosmologia em ontologia (teoria do ser) (REALE;
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ANTISERI, 1990, p. 50). A nós interessa saber como Platão fará uso desses ideais,
entrelaçando-os com outros e conferindo-lhes uniformidade. Essa influência se deu por meio
de Sócrates, que em sua juventude teria se encontrado e aprendido com Parmênides.
Essas foram, portanto as principais influências de Platão: Pitágoras, Parmênides,
Heráclito e Sócrates. Elementos das doutrinas de cada um deles estarão sempre presentes no
desenrolar de nosso trabalho. E se “a originalidade em filosofia consiste freqüentemente não
em ter novos pensamentos, mas em tornar claro os que antes não o era” (HARE, 2004, p. 19),
veremos que em Platão pode-se encontrar ambas as coisas. Ele combina a parte principal do
pensamento de cada um de seus predecessores, e assim utiliza como liga conhecimentos que
ele “parteja” de si próprio com o escopo de descortinar a essência mais intima da natureza,
tornando claras as coisas que ele considerava não serem. Essa reformulação por parte de
Platão e suas novas propostas para as questões envolvendo o conhecimento fazem parte de um
processo em que ele parece se afastar progressivamente da posição de Sócrates. Os diálogos
desse período, marcado pela “segunda navegação” de Platão, são denominados “diálogos de
transição”. Quem nos explica o seu significado são os professores italianos Giovanni Reale e
Dario Antiseri:
Na antiga linguagem dos homens do mar, “segunda navegação” se dizia daquela que se realizava quando, cessado o vento e não funcionando mais as velas, se recorria aos remos. Na imagem platônica, a primeira navegação simbolizava o percurso da filosofia realizado sob o impulso do vento da filosofia naturalista. A “segunda navegação” representa, ao contrário, a contribuição pessoal de Platão, a navegação realizada sob o impulso de suas próprias forças. (REALE; ANTISERI, 1990, p. 134)
Em posse disso, vemos a sua teoria das Idéias nascer como uma proposta de
conciliação entre as concepções de Heráclito e Parmênides. Também conhecida como
Hiperurânio (), que seria um termo utilizado no Fedro (247c) em que Platão
nos fala que “nenhum poeta ainda cantou nem cantará a região que se situa acima dos céus”
(PLATÃO, 1971, p. 226). Em seu intento Platão se empenha na separação de dois mundos,
utilizando-se do método socrático e do misticismo pitagórico. Superando a primeira
navegação dos filósofos pré-socráticos, que eram ainda prisioneiros dos sentidos, Platão parte
de “um mundo dos sentidos, sempre em fluxo” (HARE, 2004, p. 24), sendo passível apenas
da opinião (doxa / ), em direção a “um mundo unificado de Idéias, não acessível aos
nossos sentidos, mas somente ao pensamento, único a ser totalmente cognoscível” (HARE,
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2004, p. 24), logo, objeto do conhecimento (episteme / ). Platão atribuía à esfera da
opinião os conhecimentos passiveis de serem apreendidos pelos sentidos, algo intermediário
entre o conhecimento e a ignorância, como Sócrates o diz na República (PLATÃO, 477a-b,
2006, p. 217):
– Então, se o conhecimento se refere ao ser e, necessariamente, a ignorância se refere ao não-ser, também se deve procurar entre a ignorância e a ciência, um meio termo cujo objeto seja esse meio termo.
E um pouco adiante (PLATÃO, 578d, 2006, p. 217) ele arremata:
– Não afirmamos anteriormente que, se aparecesse algo que, ao mesmo tempo, fosse semelhante ao ser e ao não ser, tal coisa se poria como meio-termo entre o puro ser e o não-ser absoluto, e que não seria objeto nem da ciência nem da ignorância, mas o meio-termo, que aparecesse de novo entre a ignorância e a ciência? – Está certo. – Agora está à vista o meio-termo entre elas, aquilo que chamamos de opinião? – Está.
Quanto às Idéias, elas representam um mundo ordenado, imutável e perfeito do ser, o
lugar onde “[..] existe uma Beleza em si e por si, uma Bondade, uma Grandeza em si e por si,
e a mesma coisa ocorre com tudo o mais” (PLATÃO, 1999, p. 168). Todos os objetos
sensíveis não passam, por conseguinte de cópias imperfeitas e corruptíveis, que nos
confundem pela sua multiplicidade, o que as torna matéria da opinião. As coisas inteligíveis
apenas são apreendidas pela razão, que se servindo de hipóteses “[...] não como princípios,
mas realmente como hipóteses, como degraus e pontos de apoios” (PLATÃO, Rep., VI, 511b,
2006, p. 263) força a nossa alma a se elevar ao “princípio de tudo”; o Bem, tema da dialética.
É neste ponto que a matemática adquire o seu importante papel na teoria do
conhecimento de Platão. No Corpus platonicum cabe à matemática proporcionar, com seus
métodos e formas de raciocinar, a nossa transição entre o sensível e o inteligível. E mesmo em
se tratando de uma parte no todo da doutrina das Idéias, o debate em torno da natureza dos
entes matemáticos, se são Idéias ou se são aspectos imanentes dos objetos sensíveis, amplia-
se e torna-se a pedra angular de uma disputa envolvendo, além de Platão, alguns eminentes
membros da Academia, como Aristóteles, Speusippus, Xenócrates e um grupo de
“acadêmicos pitagorizantes” (CATTANEI, 2005, p. 242).
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“Aristóteles é o único membro verdadeiramente original da Academia” (ANNAS,
2003, p. 76, tradução nossa), pois talvez tenha sido aquele que mais se afastou da sombra do
mestre no que diz respeito à natureza dos objetos da matemática. Isso ficará evidente quando
cotejarmos os pontos de vista de Speusippus, Xenócrates e dos pitagóricos, e identificarmos
nestes, diversos graus de parentesco com as doutrinas platônicas, que o Estagirita prontamente
refutou.
Por maiores que tenham sido as discordâncias de Aristóteles com relação à bem
elaborada edificação platônica dos entes matemáticos, ele concordava com Platão em
princípio, isto é, ambos compartilhavam a busca por uma fundamentação do conhecimento
nos sistemas axiomáticos.
É irônico notar que é justamente neste local, na Academia, lugar de debates e
pesquisas científicas de alto nível, centro de formação ético-política, no qual a matemática e a
filosofia, ao mesmo tempo em que desfrutam de seu mais sublime encontro, enfrentam
também o seu mais ressonante desencontro.
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2. A filosofia da matemática de Platão
Aquele, Adimanto, que tem seu pensamento verdadeiramente voltado para os seres não tem lazer para baixar seus olhos para as atividades dos homens, para lutar com eles e encher-se de inveja e animosidade, mas, vendo e contemplando objetos ordenados e imutáveis que, entre si, nem cometem nem sofrem injustiças e se mantêm todos em ordem e segundo a razão, tentam imitá-los e assemelhar-se a eles. Ou acreditas que, quando se convive com o que se admira, há como não imitá-lo?
Platão, A República, VI 13, 500b-c.
Quando se pretende abordar o que se pode chamar de “uma filosofia da matemática de
Platão” alguns cuidados extras devem ser tomados de início. Além de se levar em conta o fato
de que cada pensador tem a sua própria forma de filosofar, suas respectivas peculiaridades –
seja quanto ao método utilizado ou no tocante aos temas em que se detém –, consideramos
que, em Platão, particularmente, deve-se redobrar a dose de cautela. E por quê? Porque em
geral, conforme vamos estreitando nossas relações com as obras de algum grande pensador, a
matéria vai naturalmente delineando uma forma, que se encerra de maneira não exata, mas
satisfatoriamente sob um conceito.
Como exemplo, podemos citar a Metafísica de Aristóteles; afinal, o que se espera
encontrar num texto com esse nome, além de uma abordagem dessa temática? O mesmo
pode-se dizer a respeito da República ou das Leis. Contudo, estas representam uma exceção
no conjunto da obra de Platão, pois a maioria de seus diálogos tem como título o nome de seu
principal personagem, o qual é o interlocutor de Sócrates na ocasião, e que serve de fio
condutor para a exposição das doutrinas de Platão. Bastam apenas alguns exemplos para
convencer definitivamente os mais incrédulos; eis como se designam alguns deles: Eutífron,
Críton, Fédon, Crátilo, Teeteto, Parmênides, Filebo, Fedro, Cármides, Laques, Lísis,
Eutidemo, Protágoras, Górgias, Mênon, Íon, Crítias, entre diversos outros (inclusive aqueles
considerados espúrios e também os que foram escritos em conjunto com outros escolarcas).
Uma característica que é inerente ao pensamento de Platão é a complementaridade de
seus textos, isto é, a particularidade com que eles se completam. Assim o vemos em diversos
trechos dos Diálogos, em que ele parece deixar algumas “pontas soltas”, para retomá-las
depois em outros. Por exemplo, a teoria da reminiscência é tratada no Fédon e no Mênon, e a
teoria das Idéias, que é característica dos “diálogos intermediários” é retomada no
Parmênides. Isto ocorre por que Platão buscava uma “reformulação permanente e
multiplicação das vias de abordagem dos problemas” (PLATÃO, 1999, p. 12). Devemos
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também nos lembrar que, de acordo com a divisão que os estudiosos fazem da obra escrita de
Platão, ele estaria seguindo uma espiral evolutiva, que teria como ponto de partida os
“diálogos aporéticos” ou “diálogos socráticos” – nos quais ele estaria ainda muito ligado às
opiniões de seu mestre – rumo à suas próprias concepções, devidamente amadurecidas, e que
são encontradas a partir dos seus “diálogos de transição”.
Tendo dito essas coisas, a questão que nos interessa neste momento é se Platão teria
feito uma abordagem sistemática do conhecimento. Teria ele criado normas de raciocínio –
um método – que cuidassem de suas questões lógicas, metafísicas, dialéticas, políticas e
morais, juntamente com a sua solução para cada uma delas?
A resposta é não!
Quando nos referimos ao platonismo na esfera da filosofia da matemática, não
podemos atribuir uma doutrina a Platão da mesma forma como associamos, por exemplo, o
logicismo a Frege e Russell, isto é, como um corpo de preceitos, um sistema filosófico em sua
acepção moderna. E isso ocorre justamente porque não era essa a intenção de Platão. Ele
estaria mais preocupado em estimular as pessoas a pensar, colocando deste modo as almas no
caminho certo do conhecimento puro e desinteressado, que outrora vislumbraram antes de
serem condenadas ao devir mundano, a esse doloroso vir-a-ser, e sofrer as tribulações do
corpo e a ignorância da mente.
Uma boa parte do platonismo, assim como nós o conhecemos hoje, é, portanto, uma
criação posterior a Platão. O platonismo na moderna filosofia matemática é descrito como
uma teoria que trata das verdades das proposições matemáticas, sendo “usualmente tomado
como um tipo de realismo, equivalente a crença de que os objetos da matemática tais como os
números literalmente existem independente de nós e de nossos pensamentos a respeito deles”
(ANNAS, 2003, p.3, tradução nossa). E apesar do inegável auxílio que nos prestam todos
aqueles que ao longo dos séculos contribuíram de alguma forma para a sua edificação, nosso
interesse irá se restringir apenas às coisas que o próprio Platão tratou.
Pode-se sim moldar uma filosofia da matemática de Platão, mas por meio de duas vias
confluentes. A primeira reúne trechos dos Diálogos nos quais Platão nos oferece nuances da
sua teoria dos entes matemáticos, o que é particularmente difícil, considerando-se o caráter
multifário de sua obra. A segunda se dá conciliando e até mesmo confrontando esses achados
com a reconstrução de suas reflexões sobre as ciências matemáticas, feita principalmente por
Aristóteles.
A diferença sutil entre Platão e os outros filósofos da matemática é que no seu caso a
forma não nos é dada, ou pelo menos não da m