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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO
CENTRO DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA
CURSO DE HISTÓRIA MONOGRAFIA
ISABEL CRISTINA MEDEIROS DE MORAES
LETRAS NEGRAS: representações escravas nos jornais maranhenses (1830 - 1841)
São Luís 2013
ISABEL CRISTINA MEDEIROS DE MORAES
LETRAS NEGRAS: representações escravas nos jornais maranhenses (1830 - 1841)
Monografia apresentada ao Curso de História da Universidade Estadual do Maranhão, para obtenção do grau de licenciada em História.
Orientador: Prof. Dr. José Henrique de Paula
Borralho.
São Luís 2013
Moraes. Isabel Cristina Medeiros de.
Letras Negras: representações escravas nos jornais maranhenses
– anos 1830 a 1841/ Isabel Cristina Medeiros de Moraes – São Luís,
2013.
93 fls.
Monografia (Graduação) – Curso de História, Universidade
Estadual do Maranhão, 2013.
Orientador: Prof. Dr. José Henrique de Paula Borralho
1. Escravidão. 2. Jornais. 3. Anúncios. 4. Representações. 5.
Permanências I.Título
CDU: 070. 326.3 (812.1)”1830/1841”
ISABEL CRISTINA MEDEIROS DE MORAES
LETRAS NEGRAS: representações escravas nos jornais maranhenses (1830 -
1841)
Monografia apresentada ao Curso de História, da Universidade Estadual do Maranhão, para obtenção do grau de licenciado em História.
Aprovada em / /
BANCA EXAMINADORA
_______________________________ Prof. José Henrique de Paula Borralho (Orientador)
Doutor em História Universidade Estadual do Maranhão
_______________________________ Prof. Marcelo Cheche Galves
Doutor em História Universidade Estadual do Maranhão
_______________________________ Profa Tatiana Raquel R. Silva
Doutora em Estudos Afro-brasileiros
Universidade Estadual do Maranhão
A Antônio Neres de Morais, Bernardo
Mascarenhas e tia Maria.
Todos in memoriam, mas presentes em
emoções, intuições, lembranças e
saudades constantes...
AGRADECIMENTOS
Como não é possível se realizar um trabalho solitariamente, sempre
teremos alguém a nos auxiliar, agradecemos sinceramente:
A Deus, a Oxalá, a Ogum, aos Pretos-velhos, aos amigos de luz e
mentores espirituais de longas datas, aos familiares que já partiram, agora
transformados em vigilantes atentos. Acredito que todos me sustentam
incondicionalmente, independente da experiência da fé. Obrigada pela presença
constante, especialmente na realização desta tarefa.
À minha querida mãe Izete Féques Medeiros, pela oportunidade que
tenho de proporcionar-lhe esta alegria. À Douglas Medeiros, único irmão de sangue,
à cunhada Marliete, pela paciência durante este período, onde a responsabilidade
com este trabalho falou mais alto. A todos, a gratidão por entenderem as ausências.
Aos pequenos da família, Antônio, Heitor e Sophia, fontes inesgotáveis de
amor e alegrias.
Um agradecimento especial às filhas queridas, Cláudia, Ana e Fernanda,
as quais certamente encerram esta etapa comigo, com o orgulho estampado no
rosto.
A todos os primos queridos, tios(as) e outros familiares. Trago um
reconhecimento maior por alguns, mas prefiro não citá-los diretamente.
Aos amigos do coração, de todas as idades, endereços, crenças,
convicções e opiniões diversas, os quais de alguma forma engrandecem minha
existência e me fazem prosseguir: Sâmara Lima (pelo carinho e amizade),
Mariazinha (pelo incentivo, pelo notebook), Jandira Paiva (pelo carinho), Drª
Bethânia (pela amizade e respeito), Enfª Carla Azevedo (pelos bons momentos),
Rafah Valadão (pela alegria de sempre), Kris Maciel (pelos longos papos) e tantos
outros de Brasília – DF, assim como de Morros-MA.
Aos caríssimos e inesquecíveis amigos da turma 2005.1 da UEMA,
Nayara Meggie, Elizabeth Ferreira, Marcelo Fortaleza, etc. Seus lindos, muito
obrigada pelas alegrias compartilhadas, pela companhia durante a graduação, e
especialmente, nas viagens por este Brasil afora.
Ao irmão de alma, Uslan Mesquita o qual amo incondicionalmente. Pela
companhia, pelo amor, pelo colo, pela paciência, pelas loucuras, pelas gargalhadas,
por enxugar as lágrimas, pelas “ogrices”, pelas “viagens”...
Só um beijo no coração poderá expressar a gratidão a Samira Tércia,
pelo apoio irrestrito ao entregar em minhas mãos a chave da casa, onde pude me
recolher durante meses e conseguir a tranquilidade necessária para esta tarefa. Meu
carinho total à Lacerda Júnior.
Um agradecimento mais que especial à Profª Cirana Porto. Desse
contato, em 2003, que se transformou em amizade sincera e extremo respeito, veio
o incentivo de que eu era capaz de adentrar o seleto mundo da universidade pública,
aos 39 anos. Por se emocionar e comemorar junto comigo todas essas conquistas.
Nossos momentos serão para sempre. Sem esquecer o caro Luis Guilherme.
À Mariza Bezerra, o meu mais irrestrito reconhecimento pela
intelectualidade e disposição, as quais me auxiliaram sobremaneira. Obrigada
mesmo!
Ao querido orientador/amigo/professor Dr. Henrique Borralho (Papai
Urso), pela ajuda indispensável nesta árdua tarefa.
Aos professores do curso de História da Universidade Estadual do
Maranhão, pelo suporte intelectual, pela ampliação do conhecimento e da cultura,
critérios que estarão comigo por toda a vida.
“Pelo bastão de Xangô e o caxangá de
Oxalá, filho Brasil pede a benção de Mãe
África”.
Clara Nunes
RESUMO
Vastas e consistentes pesquisas existentes acerca da escravidão africana no Brasil
demonstram a notoriedade do tema. Nesse contexto, este trabalho analisa as
representações e/ou imagens sobre esse africano submetido ao trabalho
compulsório, contidas nos anúncios de jornais ludovicenses, na primeira metade do
Século XIX, especificamente entre os anos 1830 a 1841. Para tanto, necessário se
torna entender essa “colcha de retalhos” chamada economia maranhense, debater a
situação do escravo e do negro, suas vivências nesta província, assim como a
influência da imprensa – chamada de “quarto poder” – na elaboração dessas
representações e ambiguidades, inclusive a formação do racismo.
Palavras - chave: Escravidão. Jornais. Anúncios. Representações. Permanências.
ABSTRACT
Vast consistent and existing research about African slavery in Brazil demonstrate the
notoriety of the subject. In this context, this paper analyzes the representations and /
or images on this African subjected to compulsory labor, contained in newspaper
advertisements ludovicenses in the first half of the nineteenth century, specifically
between the years 1830 to 1841. Therefore, it becomes necessary to understand this
"patchwork" economy called Maranhão, discuss the situation of slave and black, their
experiences in this province, as well as the influence of the press - called "fourth
estate" - in making such representations and ambiguities, including the formation of
racism.
Keywords: Slavery. Newspapers. Ads. Representations. Stays.
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Quantidade de escravos em anúncios entre os anos 1841-1856 ............ 48
Tabela 2 – Incidência nos jornais de avisos sobre a Balaiada .................................. 74
Tabela 3 – Diferentes categorias de anúncios sobre os escravos nos jornais .......... 75
SUMÁRIO
LISTA DE TABELAS .............................................................................................. 11
1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 13
2 A ECONOMIA E ESCRAVIDÃO NA PROVÍNCIA MARANHENSE ...................... 19
2.1 O Maranhão na primeira metade do século XIX: uma “colcha de retalhos”
econômica ................................................................................................................. 19
2.2 Conflitos sociais: a Balaiada ................................................................................ 29
2.3 Novos hábitos: importação de luxos, prosperidade econômica e intelectual....... 34
3 ÁFRICA-BRASIL-SÃO LUÍS: aspectos da Escravidão ...................................... 38
3.1 Escravidão em São Luís – anos 1830 – 1841 ..................................................... 41
3.2 Jornais na Província Maranhense ....................................................................... 50
4 A IMPRENSA NO SÉCULO XIX: o “quarto poder” na sociedade e as
representações sobre os escravos ....................................................................... 57
4.1 Imprensa Jornalística no Maranhão .................................................................... 59
4.2 Jornais como fonte histórica ................................................................................ 60
4.3 O escravo e o negro como mercadoria na propaganda brasileira ....................... 62
4.4 Anúncios dos escravos africanos nos jornais maranhenses ............................... 65
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 77
REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 82
ANEXOS ................................................................................................................ 88
1. INTRODUÇÃO
Em 13 de maio de 1888, às vésperas da Proclamação da República, no
Brasil, após assinatura da “famosa” Lei Áurea, a princesa Isabel declarou
oficialmente extinta a escravidão no Brasil. Esse ato representou um grande avanço
para o país, mas ocasionou problemas os quais permaneceram até os dias atuais.
Houve uma “Abolição” da escravatura, sem que se pensasse na inserção dos
negros, agora homens livres e cidadãos dessa nação. Ou, como diz Lopes1 (2010, p.
50) “[...] a sociedade brasileira conseguiu um negócio impressionante, que é criar
uma cultura negra sem negros”.
Há que se considerar que, após a instituição dessa lei, os barões do café
incentivaram a imigração de trabalhadores europeus, em detrimento do negro que
continuou a perder seu lugar nas propriedades rurais. E, temos o negro, agora livre,
relegado à própria sorte, às margens da sociedade, alijado de direitos básicos2. Esse
quadro termina por se configurar em preconceito racial e exclusão social. Esse
negro descobre que aquelas lutas pró Abolição, foram apenas os primeiros e
incipientes passos em busca de igualdade, especialmente, a racial.
O estigma da inferioridade do negro foi reforçado no Brasil, com o
advento de ideias europeias, como o darwinismo social, o positivismo, as teorias
evolucionistas de cunho racial, propagadas pela etnografia europeia do século XIX,
que transformava o negro em “subproduto do racialismo europeu” (HERNANDEZ,
2005, p.131).
Desde o século XVIII, filósofos iluministas na busca por uma “ciência geral
do homem”, reforçavam a imagem pejorativa transmitida ao longo do tempo. O
europeu, dito homem branco ocidental, referencial de inteligência, civilidade, pureza
1Palavras de Nei Lopes (Advogado, escritor, militante social e pesquisador da cultura afro-brasileira)
em entrevista concedida aos jornalistas Vivi Fernandes de Lima e Rodrigo Elias, da Revista de História da Biblioteca Nacional, Ano 5, Nº 53, Fev 2010. 2 Além de deixados à própria sorte, ficaram sem o chamado “capital social” – um espécie de conjunto
de relacionamentos ditos sociais, necessários à sua manutenção e reprodução - que Santos nos esclarece como sendo “[...] um conjunto de recursos atuais que estão ligados à posse de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de intercâmbio e de inter-reconhecimentos, ou em outros termos, à vinculação de um grupo, como conjuntos de agentes que não somente são dotados de propriedades comuns (passíveis de serem percebidas pelo observador, pelos outros ou por eles mesmos) mas também são unidos por ligações permanentes e úteis (BOURDIEU apud SANTOS, 2005, p.21).
e moralidade, viu na escravidão e submissão do homem africano, o caminho para
que o mesmo se salvasse.
Têm-se no século XIX, o pensamento predominante do “culto da raça”,
onde as pessoas eram divididas em raças distintas e desiguais - negra, amarela e
branca - o meio ambiente influenciava a construção de diferenças culturais e a
biologia mostrava uma diferença estrutural no cérebro do branco e do negro levando
consequentemente ao pensamento de que o negro era realmente inferior ao branco.
Em Montelo (1985, p.348) há dois trechos importantes, que convém transcrever para
ajudar a entender os pensamentos que grassava essa época:
A maldição de cor é uma falsidade e uma estupidez. A circunstância de ter nascido com esta pele não exclui a minha condição de homem; sou um ser humano como vocês; tenho uma alma, tenho a consciência de meus direitos e deveres, e também o sentimento de minha dignidade e de minha honra. O cativeiro é um crime e crime que se pratica para com outros homens. Não há nada que justifique a escravidão.
Em outro momento, reitera o autor|:
[...] com o tempo é isso que vai acontecer no Brasil: o brancos comem as negras, os negros comem as brancas, e os filhos dessas benditas trepadas irão desbotando de uma geração para a outra. Em menos tempo do que se pensa, está saindo um tipo novo, bem brasileiro, que nem é preto, nem também é branco e que vai mandar aqui, como hoje mandam os senhores [...] nossos mestiços vão pensar que são brancos e com mais esta novidade: sem ter ódio dos negros, até gostando deles. Um belo dia, vai se ver, não há mais branco para mandar em preto, nem preto para ser mandado e aí, acabou o cativeiro (MONTELO, 1985, p.428).
Mas, saindo do universo de Montelo (1985), têm-se Munanga (1988), a
dizer que esse processo não foi fácil. A sociedade impôs situações ao negro,
impedindo-o, inclusive, de reagir muitas vezes:
[...] colocado à margem da História, da qual nunca é sujeito e sempre objeto, o negro acaba perdendo o hábito de qualquer participação ativa, até o de reclamar. Não desfruta de nacionalidade e cidadania, pois a sua conduta é contestada e sufocada e o colonizador não estende a sua ao colonizado (MUNANGA, 1988, p.23).
Portanto, estava justificada “cientificamente” a situação a qual o negro
estava submetido, incluindo-se aí, sua pouca rentabilidade, preguiça e possível
tendência à marginalização. Para a baixa remuneração, trabalho degradante, falta
de políticas públicas, agressões psicológicas, físicas, ou seja, exclusão social e
miséria foi um pulo. Ideias e mecanismos que perduram até os dias atuais, inclusive
ideológicos de dominação.
Considerando o dinamismo histórico que circunscreve a presença
escrava na formação da estrutura social brasileira, assim como os três séculos que
marcam essa história e suas ambiguidades, a proposta desse trabalho é analisar as
representações sobre o escravo e seus dependentes, a partir dos anúncios dos
jornais ludovicenses, Estrela do Norte do Brasil (1830), Echo do Norte (1834, 1836),
O Publicador Official (1833), O Investigador Maranhense (1836) e Chrônica
Maranhense (1838, 1839, 1840 e 1841). Reafirma-se que esses anúncios continham
uma descrição detalhada do sujeito escravizado, dependendo do objetivo
pretendido: compra/venda/aluguel ou as fugas. Um ponto a ser descerrado e
analisado é a construção das permanências advindas desses anúncios de jornais,
as quais acompanharam o negro até os nossos dias.
Pretende-se verificar de que forma essas descrições fornecem elementos
subjetivos na construção de uma percepção da sociedade em relação aos escravos,
levando-se em consideração que dentro dessa sociedade, mais da metade era
negra. Essa inquietação surge do quadro de contradições de uma sociedade, que
embora profundamente miscigenada, reserva aos descendentes de africanos uma
carga de valores negativos.
Para se chegar aos jornais e consequentemente aos anúncios, foi
necessário efetuar uma pesquisa na Biblioteca Pública Benedito Leite, através de
uma disciplina ministrada na graduação, em 2009. Houve o acesso a esse
instrumento – o jornal Chrônica Maranhense - e abriram-se as possibilidades de se
trabalhar o tema escravidão, quando do trabalho de conclusão de curso.
O recorte temporal da pesquisa (1830 - 1841) foi decidido pelo fato de
que, no primeiro trabalho - em 2009 - as edições do referido jornal do ano de 1838,
foram analisadas e todos os anúncios sobre escravos devidamente transcritos. No
entanto, se percebeu que para uma empreitada maior como um trabalho
monográfico, esse recorte temporal seria insuficiente para abarcar as conjecturas
necessárias.
Outro ponto a ser considerado foi a quantidade de periódicos a serem
analisados: somente o Chrônica Maranhense não daria conta de responder às
inquietações que o tema suscitava. Portanto, foi decidido estender o período e a
quantidade de jornais a se pesquisar.
De início, foram analisados superficialmente 12 periódicos, para
finalmente haver uma concentração específica em cinco jornais, os quais supririam
as necessidades, ao se aproximarem sobremaneira do período escolhido.
Quanto à estrutura, os jornais pesquisados se encontram devidamente
encadernados – alguns microfilmados - e em muito se assemelham: poucas
páginas, linguagem prolixa e rebuscada, ênfase nas críticas, sem uma organização
nítida das sessões. Em se tratando dos assuntos, ali se encontra desde romances e
piadas, passando por ordens do dia, ofícios variados, desagravos, ocorrências de
violência, relatórios da província, além dos avisos/anúncios. Ou como observou
Ferreira:
[...] tratavam das notícias do exterior, da Capital do Império, das outras províncias e do Maranhão, aqui se publicavam ofícios, relatórios, novidades da Câmara Legislativa e da Tesouraria da Fazenda, além das ocorrências policiais, dos obituários, das correspondências, das transcrições [...] [Através desses jornais], podemos perceber em que nível estava o comércio com a Europa, com a chegada constante de navios que traziam tecidos, chapéus, roupas, mobílias e outros acessórios que enchiam os olhos consumidores de uma elite que se espelhava nos moldes europeus. Esta seção nos dá uma noção das transformações pelas quais passava a cidade de São Luís (FERREIRA, 2007, p.22).
Convém lembrar que isso foi possível devido à abertura propiciada pelo
advento da Nova História Cultural. Devido esse tema envolver costumes, relações
de poder entre grupos sociais, representações, além do comportamento humano e
suas vertentes, a Nova História Cultural é apropriadamente eficaz para tal análise. A
partir dos novos interesses que passaram a circundar o objeto de estudo foi possível
substituir também a forma de analisar seu conteúdo. Antes, se compreendia um
documento, enquanto histórico de outra forma. Ele necessitava oferecer
credibilidade, ser “oficial”, passar segurança para que os dados compilados
pudessem ser corroborados a partir de certos critérios. Era necessário haver
exatidão.
Mas, a partir do momento em que houve essas mudanças na concepção
de documento histórico e foi percebida a necessidade de se ampliar os campos de
estudos, as cartas, os escritos de viajantes estrangeiros, os processos judiciais, as
músicas, os panfletos, sermões de pregadores, receitas médicas e gastronômicas,
diários e correspondências oficiais e particulares e até mesmo as tradições orais,
passaram a serem estudados e considerados documentos e/ou herança cultural,
passíveis de reconstruções históricas.
E os jornais se encaixam nessa concepção, pois que se apresentam
como fonte de debates e instrumentos de pesquisas variadas. Sua característica
peculiar de “ideias em movimento”, sua interação e alcance social, os torna um forte
instrumento na divulgação de imagens. “[...] Os impressos, suas ideias e
informações relacionavam-se de forma dinâmica com a sociedade, circulavam, eram
repetidas e podiam ser reapropriadas.” (MOREL apud FERREIRA, 2007, p.44).
Importante se torna entender os olhares da chamada elite acerca do
sujeito escravizado nesses anúncios. Essas visões são baseadas em percepções e
padrões distintos, quase sempre gerando estereótipos, os quais advêm dos
interesses dessa elite. Fica perceptível então, que as chamadas representações são
determinadas pelos grupos. Portanto, as representações escravas geradas a partir
daí se espraiaram pela sociedade ludovicense – e brasileira - fundindo o africano, o
negro e o escravo em um só elemento. Conforme Oliveira (2008, p.49):
[...] essa forma de representar e explicar a condição a que eram submetidos os africanos [...] adquire descomposturas cotidianas muito comuns no Maranhão [...] as representações dos negros escravizados eram reforçadas nos textos jornalísticos, nas memórias, nas propostas dos governantes, a literatura pela força das ideias evolucionistas [...] a manter a representação dos negros, de um modo geral como integrantes de uma espécie num estágio inferior de evolução humana.
Corroborando esse ponto de vista, Ferreira (2007, p.49) relata que essas
representações traduzem a realidade mental dessa elite maranhense, na primeira
metade do século XIX, as quais certamente se fazem presentes nos anúncios dos
jornais pesquisados:
[...] acreditamos que o imaginário ludovicense na primeira metade do século XIX teve sua base concreta de existência na euforia material vivenciada pela cidade de São Luís, adquirido em consequência dos lucros da lavoura agroexportadora sustentada pelo trabalho escravo, e em conjunto com as representações elaboradas pela elite maranhense sobre esse momento e sobre a composição da estrutura social maranhense, que incluía a si própria e os outros estratos sociais.
Esta pesquisa foi organizada em três capítulos distintos, considerando as
especificidades necessárias. No capítulo intitulado “A Economia e a Escravidão na
Província Maranhense”, se busca entender a economia maranhense, essa “colcha
de retalhos”, sua suposta decadência e/ou crises e as exportações no período.
Sempre relacionando à escravização do africano – força motriz, nesse contexto.
Como pano de fundo, as questões sobre a Balaiada e o letramento, o “aumento” da
intelectualidade da elite maranhense.
No capítulo seguinte, “Formação do Racismo - África – Brasil”, a proposta
é debater a situação do negro, sua chegada a este continente, suas vivências diárias
na cidade de São Luis entre os anos 1830 a 1841. Paralelo a isso tudo a formação
do racismo, as teorias raciais, os jornais.
Para encerrar a sequência de capítulos, “A Imprensa no Século XIX: o
“quarto poder” na sociedade e as representações sobre os escravos” trata da
imprensa no Século XIX, as imagens e/ou representações do negro e do escravo
nessa dita imprensa, o detalhamento das características dos mesmos nos anúncios,
obviamente em São Luís, foco desta pesquisa.
2. A ECONOMIA E A ESCRAVIDÃO NA PROVÍNCIA MARANHENSE
Na tentativa de se entender a relação entre desenvolvimento econômico e
escravidão no Maranhão no século XIX, é necessário analisar o cenário econômico
que se esboça em períodos anteriores, especialmente no que diz respeito às
exportações. O Maranhão, enquanto engrenagem de uma estrutura colonial centrou
suas atividades na agricultura mercantil orientada para o mercado internacional,
empregando o trabalho compulsório como força motriz.
A economia maranhense foi se moldando, ao longo do século XVIII, em
função das oscilações do mercado externo, para atender inicialmente às demandas
decorrentes das crises provenientes das guerras de independência das Treze
Colônias e o crescente mercado consumidor de matérias-primas na Europa a partir
da Revolução Industrial.
No entanto, do ponto de vista econômico o Maranhão é tradicionalmente
percebido sob o signo ideológico da decadência. A construção dessa “ideologia”
corresponde a um discurso empregado largamente pelas elites e repetido de forma
acrítica pela imprensa local afim de consolidar uma imagem de dois momentos
díspares e complementares da economia maranhense.
Um primeiro que corresponderia a uma “idade de ouro da lavoura da
província (fins do século XVIII e primeiras décadas do século XIX)” - identificada
como uma fase de prosperidade – reflexo direto das Reformas de Pombal com a
criação de uma companhia comercial e a abundante entrada de escravos africanos
para incrementar a produtividade. Posteriormente, a fase da ruína econômica, social
e cultural provocada pela abolição do sistema escravista (COSTA, 2001, p.81).
2.1 O Maranhão na primeira metade do século XIX: uma “colcha de retalhos”
econômica
Sobre a economia do Brasil em tempos imperiais, Fragoso (apud
ASSUNÇÃO, 2010, p.144), esclarece que existia “[...] um substancial setor da
economia orientado para o mercado interno [...] formado por fazendas escravistas,
unidades camponesas (usando ou não o trabalho escravo) e estâncias utilizando
trabalho livre não assalariado”, sendo que essa produção poderia ser de
subsistência, para exportação e/ou para o mercado interno.
Algo semelhante ocorria na economia da província do Maranhão: algumas
fazendas produziam arroz e algodão para o mercado externo – e alimentos para sua
própria sobrevivência - enquanto as de gado e de mandioca produziam para sua
sobrevivência interna. Por isso, segundo Assunção (2010, p.144) é possível
entender e “[...] diferenciar claramente entre o setor monetário e o setor não
monetário da economia interna e distinguir três setores e não apenas dois, na
economia: a produção de (auto) subsistência (Setor A), a produção para o mercado
interno (Setor B) e a produção para exportação (Setor C)”.
Mas, para Lisboa (apud FARIA, 2003, p.9), antes nenhuma atividade
lucrativa se desenvolveu por aqui e por volta de 1685, São Luís “[...] era uma
cidade pequena e pobre com pouco mais de mil habitantes, residindo em rústicas
casas, umas de madeira cobertas com folhas de palmeiras, outras de taipa ou
adobe com telhado de telhas vãs”.
E assim, a partir do litoral, com pequenas povoações, fazendas de gado e
engenhos quase sempre às margens dos grandes rios maranhenses, ou seja, por
esses “[...] caminhos naturais aventuraram-se senhores de engenho, criadores de
gado, apresadores de índios e coletores de ‘drogas do sertão’ que iam
descortinando o interior do continente [...]” (BERREDO apud FARIA, 2003, p.9).
Importante lembrar que já havia uma frente devassando o sul do
Maranhão, vinda da Bahia, eram os criadores de gado, a partir do rio São
Francisco. Por volta do século XVIII – primeiras décadas – já existiam fazendas de
gado espalhadas por essas áreas. São encontradas algumas roças e currais,
enquanto povoações e engenhos se espalham. São os primeiros cento e quarenta
anos da colonização portuguesa.
Para Galves (2007, p.2), houve uma expansão nas lavouras de arroz e
algodão, desde meados do século XVIII, mas com significativo aumento no início do
século XIX, especialmente no caso do algodão. O autor também ressalta que a
abertura dos portos, oficializou uma imensa movimentação de navios ingleses,
trazendo variados produtos manufaturados e levando daqui, a produção de algodão.
Com base nesses argumentos, o propósito é perceber de quais formas, a
economia maranhense e o fenômeno da escravidão estão intrinsecamente ligados.
Ademais, busca se compreender também como essa relação alterou as
representações produzidas a partir dos anúncios dos jornais desse período.
São Luís – capital da Província e cidade portuária – sempre teve papel
importante nesse contexto, sendo o Maranhão envolvido com a produção mercantil e
escravista. Havia intensa redistribuição de escravos para as várias fazendas
existentes no continente, o que levou Pereira (2001, p.33) a dizer que “[...] a base da
sustentação material da Província esteve assentada, majoritariamente, na
escravidão de povos africanos, entre a segunda metade do século XVIII até os anos
80 do século XIX”.
Nesse período, mais de quarenta produtos eram exportados do
Maranhão, como a cera, couros secos, farinha de mandioca, entre outros. Mas,
principalmente, algodão, arroz e açúcar. Sempre lembrando que essa economia
continuava limítrofe, insuficiente até mesmo pra suprir as necessidades básicas.
Some-se a isso, a falta efetiva de mão de obra e tem–se um quadro de continuação
da pobreza. Encontramos o milho, o feijão e a mandioca como os produtos básicos
da alimentação da província 3. Importante considerar que a mandioca ainda é um
dos produtos mais consumidos pela população pobre do Maranhão.
Mesmo com as oscilações, os altos e baixos do mercado internacional, a
concorrência dos Estados Unidos e da Índia, o algodão foi o principal produto de
exportação durante toda a primeira metade do século XIX, seguido da produção do
arroz. Obviamente, isso requereu um número expressivo de escravos, chegando-se
a realizar grande importação dos mesmos – fator primordial nesse processo.
Apesar da presença de diversos estudos sobre a economia brasileira,
percebem-se as dificuldades para tal análise, pois que “[...] se baseavam em dados
e estatísticas muito pouco confiáveis” (ASSUNÇÃO, 2010, p.145). Como pensar
essas questões em relação ao Maranhão, com suas diferenças regionais, sua mão
de obra escassa e outros fatores, se os trabalhos acerca da economia maranhense
e as suas dificuldades, quase sempre mostram a repetição dos dados já existentes?
Ainda há muito a ser analisado sobre esse cenário local para que se
tenha uma visão mais ampla. Fatores diferenciados certamente interferiram e
ajudaram a compor e/ou desmistificar esse processo. Existem muitas relações
3 “[...] da mandioca fabricava-se a farinha, a tapioca (um tipo de polvilho) um aguardente – a tiquira. A
farinha era o produto mais consumido, acompanhando tanto os alimentos salgados como os doces, costume que foi preservado pelos maranhenses até os dias atuais” (FARIA, 2003, p.14-15).
intrínsecas que compõem essa “colcha de retalhos” chamada economia
maranhense.
E nesse processo é necessário citar Faria (2003) e seus posicionamentos
acerca dessas nuances, já que em meados do século XVIII, há a tentativa de
dinamizar a produção agrícola com a implantação da Companhia de Comércio do
Grão-Pará e Maranhão pelo Marquês de Pombal. A partir da criação da Companhia,
a qual é “[...] considerada pela historiografia nacional e regional como um marco da
colonização maranhense que aí encerraria a sua primeira fase [...], visava-se
incrementar a economia da Colônia, (FARIA, 2003, p.10). Apesar dessas tentativas
essa fase é considerada de extrema pobreza:
Gaioso, que escreveu sobre o Maranhão no início do século XIX (1813) [...] Dizia esse escritor que a produção da capitania era bastante reduzida, destinada apenas a consumo interno e que o comércio era insignificante. Limitava-se à produção das culturas do arroz vermelho, farinha de mandioca, milho, mamona, algum café, etc. [...] havia uma pequena produção de algodão, que os nativos fiavam transformando em novelos e rolos de pano usados em suas permutações de compra e venda (CABRAL apud FARIA, 2003, p.10).
Outras fontes que atestam a pobreza e a miséria desse período foram as
deixadas pelo Pe. Antonio Vieira, o qual viveu nesta colônia e foi rigoroso em seus
escritos, como diz Faria (2003, p.10). Ele relata a falta de açougues, de hortas, de
locais para comercializar os produtos, que os alimentos se resumiam a peixe e carne
– algumas vezes – e caça, sendo que esta já andava escassa. Descreve a falta de
terras boas para plantação de cana-de-açúcar e tabaco e que mal se tinha a
mandioca por comida diária. Enfim, havia somente uma economia de subsistência,
resultando na falta de gêneros, na escassez de produtos e, consequentemente, o
fantasma da fome a rodar.
Percebe-se que muitos dos trabalhos reafirmam a pobreza da colônia até
a segunda metade do século XVIII, e que seu desenvolvimento viria atrelado à
política mercantil do Marques de Pombal e Companhia Geral do Grão Pará e
Maranhão. Havia toda uma expectativa que esse fosse um dos caminhos para se
solucionar as inúmeras dificuldades econômicas da colônia. Para Sobral (apud
CAMPOS, 2004, p.120), a Companhia de Comércio Grão Pará e Maranhão –
implantada em 1755 – assim como as de Pernambuco e Paraíba, em 1775 - tinha o
propósito de reativar ou mesmo reverter esse quadro “[...] através da introdução de
maiores fornecimentos de mão de obra escrava africana”.
Apesar de se entender que a Companhia pode ter criado condições para
o desenvolvimento da economia gerando produção para “[...] o mercado europeu,
semelhante às demais capitanias do Nordeste e do Sudeste” (ASSUNÇÃO, 2010,
p.147) é importante considerar as consequências disso, visto que “[...] em poucas
outras regiões brasileiras, existia dependência tão grande dos fazendeiros em
relação à burguesia comercial” (ASSUNÇÃO, 2010, p.147).
Por volta de 1780, com a industrialização europeia e a consequente
expansão do mercado de algodão, tem – se o Brasil exportando aproximadamente
75% desse produto, sendo o Maranhão a segunda região exportadora e São Luís, o
quarto porto exportador do Brasil.
A queixa maior dos fazendeiros contra a Companhia eram os juros
abusivos, pois segundo Assunção (2010, p.147) “[...] os lucros dos comerciantes era
de 45% na importação de fazendas secas da Europa, com adicionais de 5% se a
compra fosse a crédito [...] e mais altos na exportação”. Essa situação parece que
não se modificou após o encerramento da atuação da Companhia, já que estudos
sobre São Luís do final do século XVIII ainda fazem alusões a ricos comerciantes
portugueses influentes, com grandes fortunas e levas de escravos, gerando assim,
uma desigualdade social maior que em outras capitanias. Ou seja, não houve
pobreza absoluta e nem opulência e fartura geral, mas sim camadas sociais
estabelecidas.
Outra questão relacionada à exportação, é que os produtos enviados para
a Europa garantiam altos lucros, enquanto as importações mantinham índices
variando entre 12% a 51%. Os lucros dos fazendeiros maranhenses eram aquém do
obtido pelos comerciantes portugueses e os altos preços dos produtos importados
os deixavam sem solidez financeira. Outro fator preponderante nesse processo foi a
aquisição de escravos a altos preços, contribuindo para o endividamento dos
fazendeiros junto a esses comerciantes. Soma-se a esse cenário, o monopólio
criado pelos traficantes e os altos impostos.
Em 1808, houve a abertura dos portos brasileiros ao comércio das nações
europeias, o que parece não ter melhorado a situação dos fazendeiros
maranhenses. Mesmo com os produtos brasileiros chegando ao mercado inglês
através dos Tratados Anglo-portugueses (de 1654 e 1730), o era baseado em baixas
tarifas de importação “[...] ao passo que os produtos brasileiros continuavam a pagar
impostos altos para entrar na Inglaterra” (ASSUNÇÃO, 2010, p.149).
Por volta de 1812, mais da metade das exportações já iam rumo à
Inglaterra e menos da metade (45%), era importado de lá. Por isso, “[...] o Maranhão
constituía assim uma província atípica no Império Brasileiro e mesmo na América
Latina: aqui os negociantes ingleses compravam mais do que vendiam”
(ASSUNÇÃO, 2010, p.150).
Referindo-se a tal fato, Galves (2007, p.2) reafirma que a abertura dos
portos provocou uma movimentação de navios ingleses trazendo produtos
manufaturados e levando daqui a produção de algodão. Esses mesmos ingleses
financiavam lavouras e a compra de mais escravos, provocando assim o
endividamento dos agricultores.
Essa força econômica e monetária inglesa desencadeou a necessidade
de medidas protecionistas para os comerciantes portugueses, visto que “[...] os
ingleses determinavam as taxas de câmbio, os fretes, o valor das moedas e dos
produtos do país. Tinham papel preponderante na importação e na exportação”,
segundo Assunção (2010, p.150).
Essas “desavenças” comerciais e econômicas entre comerciantes
portugueses e ingleses certamente afetaram os fazendeiros maranhenses. Os
ingleses tiravam proveito dessa situação, pois que, provavelmente fizeram “[...]
acordos secretos – monopólio oculto” (ASSUNÇÃO, 2010, p.151) com os
portugueses. Isso sem falar que os ingleses negociavam direto com os fazendeiros,
vendendo-lhes a crédito, estabelecendo a forma de pagamento – moedas de prata
ou ouro e também algodão.
Essa “reorientação” das atividades dos comerciantes portugueses eram
os empréstimos a juros altos – prática então controlada, pois o permitido era 6% ao
ano. Mas os juros cobrados eram de 4 a 6% mensais, o que gerou “[...] execuções
cruéis por parte dos negociantes” (ASSUNÇÃO, 2010, p.152), ou seja, no momento
da cobrança dessas dívidas, não havia respeito da parte dos comerciantes
portugueses em relação aos da Colônia.
Um fato que pode ajudar a entender essa crise da economia maranhense,
é que os fazendeiros “[...] gastavam seus lucros na compra de mais escravos (até
1840) e em importações de luxo [...] seda francesa [...] tecidos de algodão ingleses
[...] o Maranhão exportava, portanto, algodão cru para reimportar, sobretudo, tecidos
de algodão” (ASSUNCÃO, 2010, p.152).
Não houve tentativa de modernização para enfrentar a concorrência
internacional, especialmente os Estados Unidos, cujos investimentos propiciavam
qualidade melhor ao algodão e consequente queda nos custos, o que os levou a
substituir o Maranhão no comércio com a Inglaterra e essa concorrência provocou a
queda nas vendas do dito produto.
Na Europa o preço de algodão já estava em queda entre os anos 1815-
1817 e aqui no Maranhão ainda havia preços altos entre 1817-1819, levando
fazendeiros a adquirirem mais escravos a crédito e os negociantes a comprar
algodão, visando mais lucros. Com a queda dos preços a partir de 1819, ambos
sofreram grandes prejuízos, ficando sem condições de pagar suas contas.
Mais fatores ajudaram a compor o cenário da crise na agricultura: a
Guerra da Independência, a qual desorganizou a produção entre 1822-1823; a
queda da produção local por questões climáticas, entre outros.
Enfim, torna-se relevante analisar a “[...] economia regional, a relação
entre seus diferentes segmentos e os problemas que enfrentavam os agentes
econômicos no Maranhão” (ASSUNÇÃO, 2010, p.156). Aparentemente a prioridade
das autoridades era a exportação, deixando à margem variadas questões internas,
como a comercialização de alimentos - visto que a população era escassa e mal
distribuída - o sistema de transportes precaríssimo e a economia de subsistência
que servia a grande parte da população de escravos e livres pobres.
Desses alimentos, cita-se a carne seca e verde, além da farinha de
mandioca, produtos bastante comercializados. Em outra escala mais limitada,
vinham os produtos lácteos, hortaliças e frutas, peixe, milho, feijão, etc.
Abastecida por Guimarães, Icatu e Alcântara, São Luís era o principal
mercado de alimentos. Itapecuru-Mirim “[...] também chamada simplesmente de ‘a
feira’, era o grande mercado de gado do interior” (ASSUNÇÃO, 2010, p.156) e
Caxias tinha uma importância além do regional, pois que servia de porta para várias
rotas comerciais.
É importante estudar essas crises na economia maranhense a partir de
um dos principais produtos comercializados nesta Província, fonte alimentar para os
maranhenses: a farinha de mandioca. Sua falta no mercado leva os estudiosos a
várias interpretações. É questionável se o desabastecimento teria sido provocado,
em parte, pela preocupação de se produzir para exportação ou pela importação da
mesma por alguns fazendeiros – o que encarecia os preços na capital.
Importante mencionar que as Câmaras Municipais eram responsáveis por
abastecer a população. Por exemplo, a carne verde, cujos contratos previam o abate
e a venda – sempre por preços fixados pela Câmara – deveria ser em quantidade
diária suficiente. Como era previsto, esses fatores levavam ao:
[...] monopólio lucrativos para alguns membros da Câmara ou à sua clientela. Em São Luís, o já referido Antonio José Meireles foi acusado, em 1819, de estar [...] fazendo subir o preço da carne, contra expressa cláusula do contrato [...]. Ainda em 1838, o jornalista Rafael Estevão de Carvalho denunciava as intrigas do chefe informal [...] acusando-o de tentar, outra vez obter lucros ilícitos através do monopólio da carne verde” (ASSUNÇÃO, 2010, p.162).
Para Assunção (2010, p.162), “[...] a prática de arrematar contratos para a
venda de carnes verdes continuou no interior, depois da Independência [...]”,
gerando conflitos, como na chamada Vila do Rosário. E, essas questões estendiam-
se aos campos de Anajatuba e Brejo, onde os grupos envolvidos nesses conflitos
seriam os latifundiários, os fazendeiros de gado, as Câmaras Municipais e o
Governo da Província, todos tentando controlar o mercado local de carne, o que
certamente prejudicava a população e aumentava a insatisfação.
São muitos os fatores que ajudaram a provocar a interiorização da
economia maranhense: a já citada queda do preço do algodão no exterior; a
reorientação da economia da província devido ao crescimento da população pobre e
livre, já na primeira metade do século XIX, entre outros. Grupos de fazendeiros
percebiam e até denominaram esse processo de interiorização da economia de
“decadência” da lavoura, visto a diminuição dos altos lucros anteriores a 1820.
É necessário levar em consideração diferentes elementos que
provavelmente interferiram em todo esse processo. Pereira (2001, p.38), reitera que:
[...] as circunstâncias do mercado externo, as lutas escravas por autonomia e liberdade interferiram nos rumos da vida econômica, política e social da Província maranhense no século XIX [...] outros elementos que impactaram [como a] presença inglesa na atividade comercial de exportação e importação, promovida pela abertura dos portos brasileiros em 1808, o fim do tráfico internacional de escravos.
De qualquer forma, após analisar os pontos de vista desses autores, não
se pode ignorar as considerações acerca da economia maranhense elaboradas por
Faria (2003), Suas observações certamente contribuem, sobremaneira, para
entendimento desta “colcha de retalhos”.
Na historiografia “tradicional”, há discrepâncias acerca da entrada de
escravos africanos nesta província. Autores como Viveiros e Meireles apresentam
estudos com diferentes resultados: 3.000 ou 23.000 escravos africanos entre 1655 e
1755? Essa é uma das questões levantadas por Faria (2003). São diferentes
estudos e compilações, ressaltando-se as dificuldades das fontes.
Mas é provável que a escravidão indígena tenha predominado naqueles
tempos. Afinal, estes estavam disponíveis na própria região sem grandes custos. Até
o momento em que começaram a se dispersar, a se embrenharem na mata,
afastando-se cada vez mais do litoral fugindo dos caçadores, das doenças, do
extermínio iminente. Mas, possivelmente, só com a “proibição” da escravidão
indígena – 1757 - acentuou-se a escravidão africana no Maranhão.
Outra questão analisada por Faria (2003) é a produção de algodão, o qual
inicialmente foi utilizado como moeda, em pequena quantidade, sendo de má
qualidade e com fios grosseiros. Assim como o cultivo do fumo, do couro, das
‘drogas do sertão’4, por exemplo. Esses produtos eram destinados à exportação.
Devido às condições climáticas e geográficas5, a colônia do Maranhão
também desenvolveu economia extrativista, apesar de que essa produção foi mais
intensa no Grão-Pará – inserido no meio da floresta – e, consequentemente, mais
abundante. Essa colônia chegou a exportar volumes bem maiores que o Maranhão.
Continuando a análise sobre a economia maranhense, se percebe que a
pecuária bovina também teve sua fase por aqui6. Consumia-se a carne e exportava-
se o couro, além da venda do boi “em pé” para outras localidades. Para Faria
(2003), a situação do gado bovino foi semelhante ao ocorrido em outras paragens:
4 Drogas do sertão compreendiam “[...] produtos extrativos como cravo, canela, salsaparrilha, âmbar,
urucu, bálsamo, copaíba, anil e madeiras diversas; e outros que eram nativos mas foram cultivados, como a pimenta,a baunilha e o cacau” (FARIA, 2003, p.15). 5 “[...] que por estar situado em uma zona de transição entre as regiões Norte e Nordeste, possui uma
diversidade de vegetação que varia de cerrado (nas proximidades do rio Parnaíba) à floresta equatorial (do centro para o oeste) [...] (FARIA, 2003, p.15). 6 Sobre isso, Faria (2003, p.16) diz: “[...] sua expansão acompanhou o avanço da frente colonizadora
que partiu do litoral espalhando fazendas de criação nas margens dos rios e na baixada maranhense [...] penetrou no Sul do Maranhão como um prolongamento dos rebanhos nordestinos [...] em meados do século XVIII existiam aproximadamente ‘[...] duzentas e três fazendas a criar gado.
chegou para acompanhar o processo da cana de açúcar nos engenhos, como força
de tração e depois se tornou uma atividade independente produzindo o couro e a
carne.
Faria (2003), assim resume a economia do Maranhão, em seus primeiros
cento e quarenta anos de colonização: não havia produção agrícola suficiente para
atender as necessidades locais; era pautada na escravidão indígena; quase
nenhuma transação comercial com a metrópole, somente um navio por ano; sem
necessidade do uso de moedas devido à escassez de negócios e muita pobreza.
Mas, apesar da historiografia oficializar, cristalizar certas informações
sobre esse período econômico do Maranhão, sempre caberão novos estudos e
consequentemente, novas interpretações. Necessário se torna rever alguns
conceitos.
Através de FARIA (2003), se faz a releitura desse período em três
tópicos:
1 – Se Viveiros (apud FARIA, 2003, p.16), afirma que havia falta
constante de algodão e gêneros alimentícios, por que foi necessário que o Senado
da Câmara de São Luís criasse Leis restritivas, regulamentando o comércio desses
produtos para fora da província?7 Segundo esse autor, em várias ocasiões houve
proibição da venda do algodão para fora daqui, já que sua produção não era
suficiente para suprir as necessidades da província e o mesmo era considerado
matéria prima e moeda de troca e negociação. Então essa produção não seria tão
exígua assim? Haveria produção suficiente para suprir a província, a vizinhança e a
Metrópole?
2 – Andrade (apud FARIA, 2003, p.17), pesquisou que uma carta da
época pombalina menciona “[...] a região do rio Mearim produzia açúcar que era
exportado para Portugal, na primeira metade do século XVIII”, ou seja, mais
produtos além dos já citados eram vendidos para o exterior. E Ximendes (apud
FARIA, 2003, p.17), identificou em livros da Câmara de São Luís informações que
mais de seis navios saíam destes portos no começo da segunda metade do século
XVIII, contrariando a informação de, somente um navio por ano. Ressalta-se que
navios de outras nacionalidades – não somente os autorizados pela Coroa –
praticavam contrabando por aqui e negociavam com os colonos.
7 Argumento relatado na obra História do Comércio do Maranhão, segundo esclarece Faria (2003,
p.16).
3 – Pode-se questionar a imagem da São Luis atrasada descrita pelo Pe.
Vieira - 1680 – a qual não possuía sequer açougues, quase nenhum profissional ou
local coberto para se efetuarem pequenos negócios, através das pesquisas de
Ximendes (apud FARIA, 2003, p.18). Esse autor efetuou a pesquisa Livros da
Câmara 8 e descobriu que havia uma cidade e uma economia muito mais dinâmicas
que o retratado anteriormente.
Enfim, acerca da economia maranhense e suas ligações com os escravos
presentes nos anúncios dos jornais, cumpre serem efetuados mais estudos. Mas é
esse um dos papéis do pesquisador: revisar constantemente a historiografia,
acrescentando-lhe novas informações sempre que necessário.
2.2 Conflitos sociais: a Balaiada
Entre 1831 e 1840 houve várias rebeliões, com características, motivos,
ideologias e questões sociais distintas. Em 1838, havia um forte clima de disputas
políticas acontecendo também nesta Província e se tenta compreender de quais
formas isso tudo pode ter interferido na economia, e/ou na questão escravista.
Afinal, os bem-te-vis (considerados liberais) e os cabanos (chamados
conservadores), alternavam entre si o governo provisório.
Com a ascensão da maioria cabana na Assembleia Provincial, os liberais
foram afastados das decisões políticas, inclusive através de fraude e manipulação
nas eleições. Ao se sentirem preteridos e até mesmo marginalizados, os liberais
iniciaram uma forte oposição ao governo provincial.
Ferreira (2007, p.17) reforça essas questões, expressando-se da seguinte
forma:
[...] esses conflitos atingiram seu ápice durante o governo cabano de Vicente Camargo em 1837, quando foram aprovadas duas leis de caráter centralizador pela Assembleia Provincial do Maranhão – a Lei dos Prefeitos e a Lei das Guardas Nacionais – que estendia o poder do presidente da Província por todo o interior do Maranhão, formalizando uma ligação direta do poder policial ao governo e anulando, assim, qualquer participação dos
8 “[...] tendo Corporações de Ofício (alfaiates, tecelões, sapateiros, serralheiros, ferreiros, pedreiros, e
carpinteiros e trabalhadores forros indígenas e negros) [...]” (XIMENDES apud FARIA, 2003, p.18).
fazendeiros do interior, principais colaboradores dos Liberais [...] foi reforçado o recrutamento indiscriminado, de forma sistemática e arbitrária [...] ficou conhecido como popularmente como ‘tempo do pega’.
Tem-se, nesse momento, um motivo suficiente para acirrarem tais
disputas, visto que os fazendeiros aliados dos liberais foram bastante prejudicados e
essas medidas atingiram especialmente as classes populares.
E, como o aporte documental desta pesquisa está fundamentado em
jornais da época, é importante salientar que a imprensa maranhense participou
ativamente desse processo político e dos conflitos que ora aconteciam na província.
Tanto o é, que em 21 de dezembro de 1838, está na seção “Notícias
Extraordinárias” o seguinte anúncio no jornal Chrônica Maranhense:
Consta-nos que há poucos dias uma partida de proletários (ao muito 15 homens) atacaram o quartel de destacamento da Villa da Manga, da qual se apossaram, por haver ali poucos soldados, roubando depois o armamento, soltando os presos, prendendo o ajudante João Onofre e fazendo fugir o sub-prefeito. Até as últimas notícias ficaram ainda estes homens na Villa; mas attento o seu pequeno número, é de crer que sejam facilmente dispersados ou presos [...] um destacamento de 30 homens que saiu em busca delles desta capital no dia 21 do corrente [...] Ainda não sabemos ao certo da occasião e motivos desse desaguisado [...] o descontentamento de uns, a turbulência de outros, a audácia de alguns faccinorosos [...] Depois de havermos escripto o artigo à cima, soubemos que o chefe dos amotinadores da Manga é um tal Raimundo Gomes que foi vaqueiro do Padre Ignacio no Miarim [...] já correm por ahi uns vagos rumores que essa tropa já se eleva a 70 homens e que tem por um de seus cabeças o famoso João Nunes [...] mas ainda insistimos em dizer que não há motivos para grandes receios (CHRÔNICA MARANHENSE, 21.12.1838).
Existia uma clara divisão entre os periódicos maranhenses, de apoio ou
não à Balaiada: enquanto os jornais A Chrônica Maranhense e o Bentevi lideravam a
oposição chamada de liberal, O Investigador Maranhense e A Revista cuidavam de
apoiar o governo provincial.
Para Santos (1983, p.77), “[...] Raimundo Gomes, imediatamente após
tomar de assalto a Vila da Manga e receber as primeiras adesões à causa [...]”
tratou de preparar um manifesto – rapidamente divulgado por toda a província – em
que constavam as principais reivindicações do movimento. Reivindicações essas
que também faziam parte do “repertório” da chamada oposição liberal da província:
respeito às garantias individuais, demissão do Presidente da Província, abolição dos
prefeitos, subprefeitos e comissários devido à inconstitucionalidade da sua criação.
E, se referindo à economia maranhense, convém lembrar que dentre
essas exigências estava a que tratava da expulsão dos comerciantes portugueses9.
Para Santos (1983, p.77), os portugueses eram considerados símbolos de opressão
dos cabanos – grupo político dominante do momento. Estes impediam de certa
forma, a abertura comercial e econômica na província e a essas alturas já havia
interesse em substituir a lavoura do algodão pela cana-de-açúcar.
É importante frisar que, para os moradores de São Luís, os portugueses
eram responsáveis por boa parte dos seus problemas – a alta dos preços,
monopólio de muitas atividades comerciais, especulações – além das questões
nacionalistas: na consciência popular do sertanejo havia as relacionadas à sua
brasilidade.
E continuando sobre a Balaiada, em 1839 tal conflito já contava com a
adesão de Manuel Francisco dos Anjos Ferreira10 e havia se estendido até o Piauí,
alcançando “[...] proporções gigantescas, culminando com a tomada de Caxias, o
maior centro comercial do sertão maranhense” (SANTOS, 1983, p.79). Além de que,
o conflito havia sido ampliado por toda a parte oriental da Província a partir de,
[...] uma via terrestre, atravessando toda a zona, desde o Itapicuru até o Parnaíba, passando pela Chapadinha (Alto Munim) e atingindo a vila do Brejo, era um escoadouro tradicional dos gêneros do sertão maranhense [...] Essa foi a principal área de incidência da Balaiada (SANTOS, 1983, p.79).
Por todas essas análises, com base em teses levantadas por Assunção
(2004) e Santos (1983), fica a dúvida de que formas esse conflito interferiu na
economia maranhense e especialmente no que se refere aos escravos. Afinal, para
Assunção (2004, p. 217) não houve uma aceitação iminente por parte da elite de
que as classes “inferiores” – subalternas – participassem de questões políticas. Por
isso, de certa forma, o caráter político do conflito foi ignorado.
9 Santos (1983, p.77) a partir do “Manifesto Balaio”, cita o artigo referente a expulsão dos portugueses
da Província: “4º Que sejam espulçados empregos portuguezes e dispejarem a província dentro balde 15 dias com exseção dos cazados com famílias brasileiras e os de 60 anos para cima”. 10
Considerado importante líder no conflito, conhecido como Balaio, mal sabia ler, era alto e branco [...] fabricante de balaios. Juntou-se a Raimundo Gomes, pelo fato de ter suas filhas desonradas pelo comandante da força legal [...] retornou à sua vida de roceiro e fabricante de balaios. (SANTOS, 1983, p.85). Apesar de que “[...] Dunshe de Abranches e outros o caracterizam como “pardo”, “índio” ou “de cor” (ASSUNÇÃO, 2004, p.216).
Apesar de que a presença escrava provavelmente, só “[...] foi sentida um
ano depois, em 1839, quando Cosme Bento das Chagas11 iniciou uma insurreição
em algumas fazendas do interior, facilitada pela evasão de famílias inteiras para a
Capital” (FERREIRA, 2007, p.17).
Certamente que os negros encontraram formas de protestar contra suas
condições “sociais”, já que se envolveram – ou foram envolvidos - no conflito. Pode-
se citar que alguns rebeldes mais abastados levaram consigo seus escravos. Alguns
não foram utilizados como soldados e nem combateram, mas serviram nos
acampamentos.
Para Assunção, (2004, p.219), foi formado um verdadeiro exército
paralelo de até três mil escravos rebelados, fugidos ou oriundos de quilombos,
chefiados pelo Cosme Bento das Chagas. Sua ousadia chegou ao ponto do mesmo
estabelecer seu quartel general na fazenda “Lagoa Amarela” e obrigar o antigo
proprietário a alforriar todos os escravos.
[...] não somente prometendo a liberdade, mas de fato extorquindo cartas de alforria ou firmando-as do seu próprio punho, contribuiu para que escravos unir-se ao grupo [...] na sua grande maioria, escravos e escravas das fazendas do Itapecuru. Sobretudo crioulos, congos e angolas, mas também mulatos e africanos de outras nações seguiram o Cosme. Várias fontes atestam a força da sua liderança (ASSUNÇÃO, 2004, p.220).
Sendo este trabalho relacionado às questões dos escravos e às
representações acerca dos mesmos, não se pode deixar de ressaltar a
personalidade de Cosme. Este ultrapassou as expectativas da sociedade
escravocrata da sua época assim como dos representantes políticos, fossem liberais
ou conservadores.
11
Sousa (2004, p.3-6) nos diz que: “[...] 19 de Setembro de 1842 – era executado na Vila de Itapecuru-Mirim, um dos mais valentes homens da História do Maranhão e do Brasil. Refiro-me a Cosme Bento das Chagas, o ‘Negro Cosme’, um dos líderes da maior revolta popular da História do Maranhão, a Balaiada (1838 – 1841) [...] Nascido por volta de 1802, em Sobral no Ceará, Cosme chegou como negro alforriado ao Maranhão, ainda jovem [...] visto por muitos como um bandido sanguinário, um facínora sem escrúpulos e até como feiticeiro chegou a ser tratado. Muitos desconhecem suas qualidades de grande líder. [...] fundou uma pequena escola. Para ele, a leitura poderia oportunizar uma reflexão e uma consciência maior na luta e resistência à escravidão [...] O Negro Cosme foi o último grande líder da Balaiada a ser derrotado, resistiu enquanto pôde. Muitos tiveram o privilégio da anistia, eram considerados inimigos políticos. Agora, ‘um preto, era um preto’. Cosme foi julgado como inimigo social. Claro, nunca uma sociedade escravista deixaria de punir exemplarmente um negro subversivo. Nunca se reconheceria que um “homem de cor” fosse capaz de possuir intuições políticas, sociais e mesmo educacionais”.
O mesmo apresentou a sua visão política, por diversas vezes propôs
alianças com os rebeldes - como atestam cartas - apesar de não ser aceito
inicialmente pelos líderes do movimento. Tanto o é que se apresentava como “Tutor
e Imperador da Liberdade” e “Defensor dos Bem-te-vis”12.
O reconhecimento dos escravos como legítima propriedade era uma das
ideias que grassavam os ideais liberais no período e os rebeldes não intentavam ir
contra essa elite, pois que mantinham o interesse em unir-se a esse grupo. Portanto,
se percebe omissão para com as causas da escravidão, apesar das “[...] aspirações
igualitárias de pelo menos uma parte dos rebeldes. Reivindicavam direitos iguais
para o ‘povo de cor’, tanto ‘cabras’ quanto caboclos” (ASSUNÇÃO, 2004, p.220),
constantes nas cartas e proclamações de Gomes, já na última fase do conflito. Para
este autor, o escravo estava inserido em tudo isso, mas de forma genérica.
Independente disso havia cooperação entre os chamados rebeldes livres
e escravos – inclusive os quilombolas – os quais informavam a movimentação das
tropas legalistas aos rebeldes. Essa proximidade levou o Presidente da Província
Luis Alves de Lima a propor anistia aos rebeldes, mediante a entrega de escravos
fugidos, assim como fomentou discórdia, causando confusão entre os próprios
rebeldes e as tropas. Eram os ex-rebeldes e alguns capitães do mato, agora
transmutados em caçadores de rebeldes e de escravos fugidos – o que certamente,
ajudou a enfraquecer o movimento, apesar de que alguns não se renderam às essas
tentações, continuaram “fiéis” aos seus ideais liberais e não se voltaram contra os
escravos.
Dentro desse contexto, fala-se, em certa animosidade entre Raimundo
Gomes e o negro Cosme. Quando Raimundo Gomes e seu grupo sofreu forte
ataque e refugiou-se junto a Cosme, este o teria mantido preso e quase o executou,
mas não há muitas evidências desse fato, pois tal relato é atribuído a Luis Alves de
Lima13.
Enfim, nesse episódio conhecido como Balaiada torna-se importante
avaliar alguns fatos. Em primeiro lugar, Raimundo Gomes não somente incitava
escravos à sublevação, como os recrutava para o seu exército. Em segundo, o
12
[...] Por obra e graça do sempre lembrado Dom Cosme Bento das Chagas [...] tutor e defensor dos Bem-ti-vis, injustamente enforcado pelo Governo de São Luis (MONTELLO, 1985, p.23). 13
Luis Alves de Lima denotou o episódio dessa forma: “[...] Raimundo Gomes, porém, [...] evadiu-se sem armas, sem bagagem, e indecentemente vestido, foi se oferecer ao negro Cosme, que o reduziu a ser fabricante de pólvora e o tem em guarda; talvez que Raimundo Gomes não se entregue por se reconhecer assaz criminoso e indigno de perdão” (ASSUNÇÃO, 2004, p.222).
Negro Cosme optou pelas tentativas de aliança – campo em que não foi bem
sucedido ao perceber que suas reivindicações na defesa dos escravos passariam
invariavelmente, pelos rebeldes bem-te-vis. Em terceiro, os rebeldes não estavam
preparados para derrubar o governo – talvez nem o pretendessem, tanto que,
sequer investiram contra São Luis, concentrando suas ações somente no interior.
Além de que esperavam a participação da elite liberal, o que não aconteceu.
Assim, se percebe a falta de coesão, a inexperiência em liderança
política, a desunião entre os líderes do movimento, alguns elementos que ajudaram
a provocar o “fracasso” da Balaiada.
2.3 Novos hábitos: importações de luxo, prosperidade econômica e intelectual.
O que se pode constatar é que, certamente essas questões na economia
maranhense provocaram mudanças profundas em várias outras áreas. E a aquisição
de grandes proporções de escravos na produção foi uma delas. Afinal, possuir
muitos escravos era sinal de opulência e prestígio social, como afirma Ferreira (2007
p.15).
Outra forma dos fazendeiros gastarem seus lucros foi com a importação
de artigos de luxo, o que certamente não contribuiu para dinamizar essa economia e
apesar dessas crises e desses momentos de expansão e retração na economia da
Província do Maranhão, o trabalho escravo proporcionou enriquecimento das elites
entre o final do século XVIII e o início do século XIV. Corrêa (apud FERREIRA,
2007, p. 19), “[...] nos fala de dois poderes que se complementam, o material e o
cultural”. Para este autor, os ganhos das lavouras de algodão e arroz foi o
sustentáculo para a formação dos intelectuais maranhenses.
“[...] Entretanto, toda essa prosperidade econômica e cultural só foi
possível graças ao sistema escravista que possibilitou o enriquecimento de uns
poucos à custa da exploração do trabalho de muitos” (FERREIRA, 2007, p.18), ou
seja, se aconteceu uma evolução econômica e cultural, o foi alicerçado na estrutura
escravista.
Houve então um refinamento de hábitos, uma grande assimilação de
costumes europeus. Pode – se falar de um “aumento” da intelectualidade
maranhense e citar igualmente, uma elevação cultural, o que gerou uma espécie de
projeção nacional desta província.
Enfim, essas crises não impediram que essa elite gastasse, investisse os
seus lucros das mais variadas formas, com o intuito de seguir padrões, sempre
ditados pela Europa:
Os anos seguintes até o surgimento e incentivo à empresa açucareira, a partir de meados de 1840, o Maranhão vive um período de transformações econômicas e de redefinição das relações sociais, bem como passa por uma seleção de valores que guiarão essa nova sociedade. O escravo também terá lugar nessas mudanças, visto cada vez mais como símbolo de opulência e prestígio social para quem os possuía. A forma de produção baseada no trabalho escravo do negro é que vai definir as relações sociais no Maranhão oitocentista, as quais eram rigidamente divididas e hierarquizadas de acordo com a condição jurídica e econômica das pessoas. (FERREIRA. 2007, p.15)
Ferreira (2007, p.18), cita que em fins de 1830, há uma espécie de
aprimoramento cultural, um cultivo pelas artes, um modelo de comportamento em
voga – a partir da “euforia econômica da agro-exportação”, elevando esta província
a destaque nacional. “[...] O letramento da elite maranhense foi um destaque na
primeira metade do século XIX [...] o Maranhão passa por um deslumbramento
cultural” (FERREIRA, 2007, p. 18).
Naturalmente, se deve usar de parcimônia ao efetuar a análise dessa
suposta elevação cultural e intelectual maranhense. Afinal, Ferreira (2007, p.17-18)
diz que “[...] Todas essas transformações possibilitaram a projeção da Província no
âmbito intelectual [...] que aos poucos cria o mito da Atenas Maranhense [...]”
assunto devidamente tratado por Maria de Lourdes Lauande Lacroix, em sua obra A
Fundação Francesa de São Luís e seus Mitos.
Assim, segundo Ferreira (2007, p. 19), “[...] os jornais do início do século
XIX foram a arma mais poderosa nas mãos dos intelectuais da elite maranhense” e
certamente, fatores como a escravidão e economia maranhense perpassaram pelas
penas e tipógrafos dessa elite. Ferreira (2007 p.12) ainda reafirma:
Não apenas por se constituir nesse poderoso instrumento de construção e divulgação de ideias e imagens numa dada sociedade, mas também pelo seu poder de manipular interesses e intervir na vida social. Não por menos denominada de ‘o quarto poder’, a imprensa tem o domínio da palavra impressa no século XIX. Os jornais são carregados de discursos e ideologias que expressam o movimento de ideias circulantes numa
determinada época e interagem na complexidade de um contexto histórico e social.
Portanto, a simpatia – ou não – pelas fugas dos escravos e/ou abolição
da escravatura tornam-se assuntos recorrentes na sociedade maranhense, por volta
dos anos 1880. Segundo Soares (1988, p.4), nesse período os anúncios sobre
escravos nos jornais, reduziram-se sobremaneira acompanhando a ascensão do
antiescravismo no seio da sociedade. Por esse tempo, já havia jornais recusando-se
a publicar tais anúncios, no embalo dos abolicionistas ou mesmo receosos dessas
ideias. Já não era de “bom tom” publicar avisos anunciando vendas, compras, trocas
ou aluguel de pessoas. Inclusive porque “[...] sociedades abolicionistas animavam e
favoreciam a fuga de negros e com tal eficiência que se faziam temer pelos
proprietários de diários e não apenas odiar pelos proprietários dos escravos”
(FREYRE apud SOARES, 1988, p.5).
Mas, como se está a discorrer sobre a economia maranhense, dentro do
recorte temporal de 1830 a 1841 e sua ligação com a escravidão, a partir dos avisos
nos jornais, se reafirma que o Maranhão implantou mais tardiamente uma
escravidão agrícola – final do século XVIII - sendo considerada, portanto, uma
sociedade escravista tardia, apesar de que desde o século anterior, escravos
africanos tivessem sido utilizados como mão de obra.
Mas o escravismo maranhense assume, portanto, particularidades que
dizem respeito à sua formação sócio-histórica: inicialmente, os silvícolas foram
bastante utilizados, no sistema de regime escravo, afinal, devia existir cerca de
200.000 índios por estas bandas. Foi a primeira mão de obra utilizada, com direito a
captura, escravização e venda dos mesmos, pois que “[...] era considerado
‘insubstituível’ na coleta de drogas do sertão, pelo conhecimento que possuía da
região e das diferentes espécies vegetais; como remeiro era muito elogiado [...]”
(FARIA, 2003, p.12).
Mas esses indígenas receberam o apoio dos jesuítas, que os queriam
livres para seu projeto de evangelização. Chegou um momento em que os religiosos
foram “radicais”: não aceitaram mais que os mesmos fossem escravizados, nem
mesmo nas chamadas guerras justas – apesar de que no geral, as Ordens
Religiosas se utilizassem do trabalho compulsório do gentio. A sugestão para
resolver tal celeuma, seria a introdução de escravos africanos.
A escravização do africano, a partir do século XVI, portanto, constitui
elemento base do sistema colonial, ao reduzir o escravo à condição de suporte da
empresa comercial explorada pelos portugueses. A escravidão tornou-se viável em
função das condições históricas e econômicas, decorrentes da configuração do
mercado transatlântico. O escravo é apropriado nessa conjuntura, como mercadoria
capaz de gerar riquezas, passando a agregar altos lucros para os agentes
escravocratas.
Todavia, torna-se válido pensar a escravidão para além do aspecto
econômico, considerando para tanto, o dinamismo histórico que circunscreve a
presença escrava na formação social brasileira. Afinal, a partir dessas vivências,
interferências e nuances, houve a construção do racismo no Brasil, o qual
permanece até os dias atuais, segregando, destruindo vidas, dificultando a inserção
do afro descendente na sociedade de forma plena e absoluta, deixando-o a mercê
dos direitos sociais. E essas imagens do negro – geralmente negativas - vinculadas
a partir dos anúncios nos jornais no início do século XIX, certamente contribuíram
para essas (des) construções.
Essas construções histórico/sociais, que forjaram as imagens negativas
sobre os afrodescendentes, continuam inseridas nos seus cotidianos. São
permanências baseadas nos resquícios da escravidão, mas que felizmente tem
levado a sociedade a uma reflexão intermitente sobre o assunto.
3 ÁFRICA – BRASIL – SÃO LUÍS: ASPECTOS DA ESCRAVIDÃO
A década de 1990 e os primeiros anos do terceiro milênio trouxeram e
reavivaram um intenso debate acerca da situação do negro no Brasil. O interesse
pela temática deve-se principalmente, à atuação do movimento negro que mesmo
expressando uma diversidade de interesses e longe de uma convergência
ideológica, conseguiu articular politicamente suas principais bandeiras de luta em
torno do reconhecimento pelo Estado brasileiro, da permanência de uma “chaga”
social difícil de mensurar: o racismo.
Este tem atuado como uma silenciosa máquina de exclusão que está
estruturalmente enraizado através dos tempos e cujo cerne é a escravidão negra.
Somando-se às pressões internas - movimento negro, partidos políticos e/ou
parlamentares engajados, setores da igreja, universidades, movimentos sociais -
tem-se a comunidade internacional exigindo do Estado a construção de mecanismos
de reversão das exclusões econômicas e étnico-raciais.
Esse escravismo – moderno – ajudou a impulsionar as engrenagens
embrionárias do chamado Capitalismo. Essa estrutura político-econômica, mesmo
carregando em si marcas dessa modernidade, surge como agência promotora do
sistema colonial posto em prática, neste contexto pela burguesia europeia.
Escravizar o africano - a partir do século XVI - portanto, constituiu elemento básico
do sistema colonial, já que o reduziu à condição de suporte da empreitada comercial
explorada pelos portugueses.
Percebe-se que a escravidão torna-se viável em função das condições
históricas e econômicas e das características apresentadas pelo mercado
transatlântico. O cativo africano é visto nessa conjuntura, como uma peça, um bem.
Uma mercadoria capaz de gerar riquezas, passando a agregar altos lucros para os
agentes escravocratas.
Mas, é importante tentar compreender porque o africano é retirado do seu
habitat – o continente africano – e passa a ser escravizado, já que:
desde a chegada dos primeiros europeus ao território africano, em meados do século XV, já se encontravam estabelecidos no continente, Estados, política e economicamente organizados e norteados por uma ordem social [...] as estruturas políticas tradicionais africanas se baseavam nas
instituições familiares [...] economicamente a agricultura era tida como a atividade principal (COSTA apud HERNANDEZ, 2005, p.1).
Possivelmente, havia uma estrutura social, cultural e econômica vigente
na África e não indícios de atraso ou “incivilidade”, como disseram os europeus
quando adentraram tal continente. Porque o mesmo foi praticamente demolido em
sua essência e se tornou exportador de mão-de-obra e de riquezas naturais?
Inaugurou-se assim o tráfico de escravos, o qual perdurou por séculos,
sustentando a economia das Américas e os portugueses, pioneiramente inseriram
os escravos africanos numa rota transatlântica, dando impulso à engrenagem
capitalista de compra-transporte-venda-revenda.
Respaldados na vigorosa ideologia cristianizadora dos textos bíblicos -
“tanto católicos quanto protestantes - encontrariam na Bíblia quanto nas tradições
das interpretações cristãs”, argumentos que legitimassem a prática da escravidão,
como em Levítico 25:38, 44/6: “[...] todos os vossos servos e servas que possuirdes,
devem vir dos povos pagãos que vos rodeiam [...] serão vossos servos para sempre”
(BLACKBURN, 2003, p.88).
Os negros podiam ser escravizados de várias formas. Dentre essas havia
maneiras legais (consideradas tradicionais) e os meios ilegais. Robert Conrad (1985)
mostra que, dentre as formas “legais”, estavam: a condenação por juízes locais
africanos por adultério ou roubo; a substituição de familiares por escravos
masculinos e prisioneiros de guerra. Podiam ser consideradas “ilegais”: o rapto e
venda de parentes próximos por chefes de família; grupos africanos que capturavam
cativos injustamente e diziam que eram prisioneiros de guerras justas; e finalmente
portugueses que escravizavam parentes livres de fugitivos.
A chegada do europeu ao continente africano pontuou o chamado modelo
de “civilidade”, o qual deveria ser repassado aos negros. Se existia uma espécie de
estrutura político-histórico-cultural há muito por lá, a mesma foi ignorada e
considerada primitiva, selvagem e o negro, um bárbaro. A partir desses
desdobramentos, passa-se a considerar a raça negra como inferior e a missão do
branco, civilizatória e com o intuito de elevar o nível dos africanos ao da Europa.
A partir dessas percepções - simbolicamente falando - a cor preta passa a
ser relacionada a impurezas, brutalidades e imoralidades, ou seja, a representação
do pecado e maldição divina, enquanto o branco remeteria à inocência, paz.
Portanto, necessário se fazia evangelizar o povo africano, imerso no pecado e
perdição. Necessário salvar das penas eternas esse povo considerado inferior,
mesmo que para isso o homem escravizasse outro homem.
Aliado a esses fatos, se tem no século XIX, a corrente filosófica
evolucionista a permear o seio intelectual, onde se afirmava que o meio ambiente
influenciava nas diferenças culturais. Obviamente, para se possuir superioridade
evolutiva o modelo a ser seguido seria o europeu. Paralela a essa corrente, outra,
fundamentada em estudos biológicos indicava diferenças entre os cérebros do
homem branco e do negro. Pregava-se uma inferioridade nata no homem negro.
Com a disseminação de tais ideias, a inferioridade atribuída ao negro,
deixou de pertencer apenas ao fator biológico e estendeu-se a outros pontos,
conforme Munanga (1988, p.20):
o continente, os países, as instituições, o corpo, a mente, a língua, a música, a arte, etc. Seu continente é quente demais, de clima viciado, malcheiroso, de geografia tão desesperada que o condena à pobreza e à eterna dependência. O ser negro é uma degeneração devida à temperatura excessivamente quente.
Alicerçado nesses aspectos, o próprio africano assume esse discurso do
dominador participando - involuntariamente - da criação de mecanismos de
dominação, especialmente os ideológicos. Isso o leva inclusive, a tentar assimilar a
cultura do outro – o colonizador/dominador.
E o que se vê daí em diante é o negro tentando assimilar a educação do
branco, apreendendo sua história, sua memória, sua geografia, substituindo seus
valores religiosos pelo cristianismo – lembrando que isso também pode ser
considerado estratégias de sobrevivências. Mas ao mesmo tempo, esse negro vai
descobrindo que a internalização dos valores e conceitos da cultura europeia não
acontecera até então. Seus esforços pareciam em vão, não havia sido alcançado o
objetivo, a equiparação com o branco.
Portanto, verifica-se que, praticamente durante todo o século XIX, os
africanos – e sua história - foram considerados inferiores. E logicamente essa
concepção foi disseminada em nosso país. À mercê de teorias raciais, pensava-se
que a mistura do negro com o restante da população poderia comprometer o futuro
do país, já que o ‘correto”, o desejado seria o embranquecimento. Essa forma de
pensar - advinda das teorias raciais - ultrapassava a elite intelectual e espraiava-se
pela população, a qual também se preocupava que essa mistura entre as três raças,
pudesse gerar uma espécie de descendência degenerada.
Esses estudos e debates sobre o negro só foram iniciados no final do
Século XIX e, a partir de 1930, muda-se o panorama: intelectuais passam a ver os
negros como provenientes de uma raça e cultura inferior, mas ao mesmo tempo,
com algo de positivo a agregar. Um desses estudiosos é o sociólogo Gilberto Freyre,
com a obra Casa Grande & Senzala (1999), que revolucionou gerações de cientistas
sociais e pesquisadores não só dentro como fora do país.
Para este sociólogo, havia uma espécie de paternalismo nas relações
senhores/escravos e essa relação era harmônica, sem conflitos. O autor constrói
uma narrativa sociológica na qual tende a diluir os antagonismos de uma sociedade
escravocrata, partindo do pressuposto da evolução social por meio da miscigenação.
Esses estudos formatados por vários pensadores ajudaram a criar o mito
da “democracia racial”: o Brasil passa a ser visto como o local onde várias raças
conviviam em harmonia, onde não se viam preconceitos e/ou discriminações sociais.
O mundo volta os olhos para o Brasil e a sua – suposta – democracia racial,
especialmente após os desastres ocorridos durante a II Guerra Mundial, onde povos
exterminaram povos.
Todavia, torna-se válido pensar a escravidão a partir de uma visão macro,
considerando para tanto o dinamismo histórico que circunscreve a presença escrava
na formação social brasileira. Afinal, três séculos de escravidão marcam a história da
formação do povo brasileiro com ambiguidades em torno das representações sobre
o escravo e seus descendentes.
3. 1 Escravidão em São Luís – anos 1830-1841
É sabido que o Brasil recebeu e abrigou uma enorme quantidade de
africanos durante o período em que o tráfico de escravos prevaleceu – entre os
séculos XVI e XIX, como nos informa Parrone (2004, p. 6-7). Segundo ela, o “Navio
Infame”, “navio negreiro” ou “tumbeiro” – arrastou mais de 11 milhões de africanos
para a América. Em caravelas ou barcos a vapor “[...] os traficados eram em maioria,
homens de 8 a 25 anos”.
Semelhante informação nos fornece Farias (2010, p.18) ao esclarecer que
os negros eram submetidos a condições hostis no momento do transporte “[...]
Espremidos nos porões dos navios negreiros, milhares de homens, mulheres e
crianças [que] suportavam calor, sede, fome, sujeira, ataques de ratos e piolhos,
surtos de sarampo ou escorbutos. Muitos não resistiam e eram jogados ao mar”.
Têm sido constantes as pesquisas e/ou estudos, onde se tenta determinar
– ou pelo menos, aproximar-se – do volume de negros africanos que aqui estiveram,
segundo Pantoja (apud MEIRELES, 2009, p.131). Devido à sua complexidade, não
há um consenso acerca do assunto, mas alguns autores falam de 6 a 11 milhões de
negros desembarcados por aqui.
Os estados de Pernambuco, Rio de Janeiro e a Bahia foram os
precursores da escravidão na América Portuguesa, devido à lavoura da cana-de-
açúcar com a importação de escravos nos séculos XVI e XVII. A mineração no
século XVIII, também sobreviveu a partir da escravidão de maneira semelhante ao
lucrativo ciclo açucareiro do Nordeste.
O desembarque de africanos nos portos de Belém e São Luís está
registrado a partir da segunda metade do século XVIII, com a criação da Companhia
Geral de Comércio do Grão Pará e Maranhão, em 06 de Junho de 1755, pelo
Marques de Pombal. A administração era feita diretamente por Portugal e possuía o
objetivo de fortalecer o comércio com nossos patrícios. A dita Companhia oficializou
e monopolizou o comércio de escravos, inclusive a venda dos mesmos.
Outros estudos referem-se à entrada de africanos nesta Província em
data anterior, já que em 1655, foi instituído o cargo de Juiz da Saúde, antes da
criação da Companhia de Comércio. Esse cargo foi criado para que todos os navios
que chegassem com negros fossem visitados, evitando os surtos de doenças, muito
comuns no período, devido às condições insalubres do transporte.
Esses levantamentos da entrada de negros cativos no Maranhão
puderam ser efetivados através dos chamados “registros de viagens” e das “visitas
da saúde” aos navios que aqui aportavam – entre os anos de 1779 a 1799, sendo
que:
Foi possível compilar 203 viagens negreiras para o Maranhão, sendo que 131 desses registros são de tumbeiros vindos da África e 72 são daqueles vindos de portos brasileiros, o que permitiu montar um quadro geral do comércio de cativos para essa área. (MEIRELES, 2009 p.132).
Segundo Meireles (2009, p.133), apesar de não ser possível afirmar com
veemência que os negros aqui desembarcados vieram somente desses locais,
devido à complexidade e à fragmentação das fontes, consta uma maior incidência
de registros dos mesmos, como procedentes de Bissau, Cacheu, Angola, Luanda,
Cabinda, Costa da Mina, Malagueta, Moçambique.
Outra informação importante é que a Companhia Geral de Comércio do
Grão Pará e Maranhão comprou cerca de 31.317 escravos ou “peças”, sendo que
12.000 vieram para o Maranhão - apesar de estudos indicarem outros números.
Afinal, podem ter desembarcado 25.365 ou mais de 30.000 escravos. O que se pode
dizer, é que às vésperas da Independência do Brasil, o Maranhão mantinha a mais
alta taxa da população de escravos do Império, os mesmos envolvidos em trabalhos
variados no campo e na cidade de São Luís.
Portanto, pode-se dizer que o Maranhão é considerado uma sociedade
escravista tardia, já que no final do século XVIII se desenvolveu mais fortemente
uma escravidão agrícola por aqui, ainda que desde o século anterior, escravos
africanos tivessem sido utilizados como mão de obra. Tem – se, portanto, o
escravismo maranhense com particularidades que dizem respeito à sua formação
sócio histórica.
Entre os anos de 1812 a 1821, nesta Província, desembarcaram 36.356
negros retirados da África, tais como sudaneses, bantos e outras diversas etnias,
além dos já citados acima. Ferreira (2007) relata que em 1821, Maria Graham14,
apontara que a população escravizada era cerca 71% de negros (as) e 29% de não
negros. Conforme alguns dados obtidos através de relatos de viajantes que
estiveram no Brasil em tempos Imperiais:
Maranhão Thomas Ewbank 280.000 (em 1845)
Charles Ribeyrolles 370.000 (em 1856)
São Luís Daniel Parish Kidder 33.000 (em 1841)
14
Sobre essa viajante, Galves (2007, p.2) nos esclarece que: ”[...] A inglesa Maria Graham esteve no Brasil por duas vezes entre 1821 e 1825. Não visitou o Maranhão, mas colheu informações sobre a economia maranhense, publicadas como apêndice de seu Diário de Viagem (1990)”.
George Gardner 26.000 (em 1841)
Tabela 1. Quantidade de escravos em São Luís entre os anos 1841-1856
Fonte: Caldeira (apud FEREIRA, 2007, p.16).
De qualquer forma, sempre que se encontram dados acerca do número
de negros que aqui chegaram e foram escravizados, da vida que levavam, suas
ocupações e de vários outros fatores, isso requer uma análise cuidadosa devido às
incertezas que se apresentam. São diversas obras, diferentes pesquisadores e
vários ângulos a descortinar esse universo escravocrata.
Quando na contemporaneidade se pensa nas vivências escravas – na
cidade de são Luís, na primeira metade do século XIX, foco deste trabalho - torna-se
necessário uma reflexão acerca de como seria essa cidade e de como seriam essas
vivências. Certamente, a mesma era recheada de experiências múltiplas, as quais
se tornam difícil avaliar já que se conservaram apenas construções dessa realidade.
E, certamente são outras concepções morais, atitudes comportamentais, valores e
experiências que permeavam aquela sociedade.
E, com essas dificuldades e diferenças, se tenta compreender as
vivências escravas sabendo-se dessa presença constante e maciça no espaço e na
economia urbana: ali estavam misturados escravos de ganho e de aluguel,
disputando espaço e trabalho, ali escravos tentavam dominar e controlar a
“urbanidade” que lhe é apresentada, ali viviam suas experiências de ócio e ódio,
suas formas de sociabilidade e de solidariedade, seus amores, suas articulações de
resistência.
Nesse cenário urbano, eles mantinham certa autonomia e mobilidade
social, escapavam do controle dos senhores, trabalhavam e transgrediam,
experimentavam suas múltiplas vivências, assim como suas readequações e
rearranjos. Inclusive, pelo fato de que, “[...] dados de 1821 indicam que 77,8% da
população da província eram compostos por escravos e libertos” (GALVES, 2007, p.
02).
Para Lopes (2010, p.39), nesse período, a cidade de São Luís passou por
uma série de melhoramentos na infraestrutura urbana, advindos da prosperidade
econômica o que certamente gerou mecanismos de disciplina e regulamentação
urbana. Portanto, se sabe que o poder público mantinha seus mecanismos como
forma de exercer um determinado controle social, como as posturas urbanas. Afinal,
eram pobres, escravos e forros convivendo em um espaço geográfico específico.
Mas, aparentemente, não foi fácil e simples manter esse controle social, pois a
dinâmica das atividades escravas proporcionava mobilidade aos cativos.
Além de que havia uma desconfiança explícita para com os “de cor”, ou
seja, para a sociedade escravocrata da época, ser negro – escravo ou mesmo
alforriado – suscitava de pronto as piores impressões e “[...] os escravos eram
sujeitos à justiça privada dos seus senhores, complementada pela ação repressiva
do Estado” (ASSUNÇÃO, 2004, p.208).
Mas, nesse conturbado universo, há muito relatos de resistência
escrava. Como forma de escapar dessa repressão social “[...] a resistência escrava
no quotidiano é revelada pela tradição oral; muitos relatos mostram as “manhas”
usadas pelos escravos para enganar seus senhores” (ASSUNÇÃO, 2004, p.210).
Muitas dessas estratégias estão explicitadas nos anúncios dos jornais, entre os anos
1830 – 1841, como a seguir, onde o escravo fugido Marcelino, tenta passar
despercebido, vestido como liberto:
Fugio em Dezembro de 1934, hum escravo de nome Marcelino, molato claro [...] 22 annos alto e robusto, cabeça pequena e de cabellos ingrovinhados,cara puxada, pouca barba, olhos negros subrancelhudo, nariz afillado, beiços grossos, pescoço um tanto comprido, joelhudo e pez direitos [...] anda bem vestido para passar como liberto [...] quem o pegar e apresentar (ECHO DO NORTE, 29.05.1838. Grifo nosso).
Outra forma de resistência usada pelos escravos era a fuga e a
consequente reunião em quilombos, o que era facilitada pelas extensas florestas
não colonizadas, permeadas de rios e riachos (ASSUNÇÃO, 2004, p 211). Mesmo
com as constantes incursões a vida nos quilombos apresentou-se como viável,
aumentando sempre o número de escravos fugidos a habitarem tais locais. Havia
ligações e/ou intercâmbio entre os mesmos, desmistificando a hipótese do
isolamento, conforme nos aponta Soares (apud ASSUNÇÃO, 2004, p.211). Sobre
esse assunto, Azevedo (2006, p.58-59) diz: “[...] o sertão da província está cheio de
mocambeiros, onde vivem os escravos fugidos com suas mulheres e seus filhos,
formando uma grande família de malfeitores [...] atacam na estrada os viajantes”.
Existiam outras formas de resistência dos escravos maranhenses entre os
anos 1830 a 1841: a mobilização e insurreição, o banditismo – ataques nas
estradas, o roubo de gado -, ataques e assassinatos de comerciantes portugueses,
capacidade de escapar ao recrutamento militar, escondendo-se nas matas densas
por longos períodos com a ajuda dos familiares, participação no conflito Balaiada,
dentre outras.
Dessa forma os escravos prosseguiam em seu dia a dia, brigando para
sobreviver, resistindo à árdua e desigual luta, reinventando-se. Tanto o é, que
Galves exemplifica essas resistências a partir de um relato de Frei Nossa Senhora
dos Prazeres ”[...] o escravo que se liberta calça logo xinela e quer ser tratado como
branco, e quem lhe chame negro. Só às pessoas pode chamar rapariga (nomes que
em todo Maranhão indicam escravidão)” (PRAZERES apud GALVES, 2007, p.3).
Muitos exemplos há, de que os escravos em São Luis acharam suas formas
de participação nesses vários contextos, o que terminava por “incomodar” ainda
mais aquela sociedade escravocrata. Eles estavam espalhados em todas as áreas,
misturados aos brancos, aos pobres, confundindo-se com os seus pares e até com
os negros forros. Estavam literalmente resistindo usando das suas maneiras
peculiares. Afinal, eram escravos urbanos e por isso participavam de um cenário
muito mais complexificado do que o vivido em meio rural.
Por isso, vestiam-se, trajavam-se de acordo com a situação e com o ambiente
a ser “desbravado”. Josué Montelo em “Os Tambores de São Luís” (1985) fornece
algumas representações dos negros desse período, algo que também é recorrente
em relatos históricos específicos. No trecho abaixo, o negro Damião se surpreende
com os trajes e os “ares” dos escravos, no dia a dia da cidade:
Damião viu a calçada cheia de negros. Uns estavam vestidos com ar de senhores, e eram solenes até na maneira de andar, a roupa bem passada, óculos de aro de metal, chapéu alto. Também viu negras trajadas com esmero, pose de brancas, a garofinha espichada a ferro, a blusa cavada mostrando o começo dos seios [...] (MONTELO, 1885, p.191-192).
E, sobre as negras, vestidas de forma que lembravam mulheres brancas,
Montelo (1985, p. 217-218) as descreve dessa forma: “[...] A preta vestia-se com
esmero, a saia estampada, o cabeção de linho com as mangas de renda francesa
[...] cordão de ouro, pulseiras também de ouro [...] pingente de brilhantes nas
orelhas, um vistoso pente espanhol nos cabelos”.
Mas convém lembrar que essa característica do escravo de fundir-se à
cidade, de misturar-se e produzir economicamente – mesmo que os lucros fossem
para seus senhores – não dizia respeito somente a esta Província. Farias (2010,
p.19) relata a trajetória da negra Rita Maria da Conceição e seu marido Antonio José
de Santa Rosa – também negro – no Rio de Janeiro:
Durante quase sete anos, o casal vendeu hortaliças, legumes e aves em duas bancas na Praça do Mercado, conhecida como Mercado da praia do Peixe. Instalado à beira da Baía de Guanabara, nas proximidades do Largo do Paço (atual Praça XV de Novembro), esse grande centro de abastecimento de gêneros de primeira necessidade reunia quitandeiras, mercadores e carregadores africanos.
E, em se tratando da economia maranhense, Assunção (2010, p.157)
esclarece que os escravos estavam inseridos no mercado de alimentos, onde havia
tentativas de regulação e/ou organização:
Os pretos, ou pretas, eu venderem farinha, milho e arroz, feijão, hortaliças, frutas e outros quaisquer gêneros a retalho, não poderão fazer feira se não na praça de Nossa Senhora do Rosário, pena de pagarem mil-réis, ou dois dias de prisão, fica porém livre o trânsito dos Tabuleiros pelas ruas como ate agora se praticava.
Através das posturas estabelecidas pela Câmara, se percebe a inserção
dos escravos nesse mercado nas ruas de São Luis, já que havia tentativas de
limitação dos mesmos, pois uma estabelece que “[...] ninguém poderá comprar a
escravos objeto nenhum, ou comerciar com estes sem a permissão dos seus
senhores, administradores ou feitores” (CÓDIGO DE POSTURAS DE SÃO LUÍS
apud ASSUNÇÃO, 2010, p.157).
Mesmo com o Código de Posturas determinando e delimitando a
movimentação dos escravos, independente de quaisquer situações as quais
estavam expostos eles encontravam formas de resistência e luta nesse espaço
urbano. Inclusive porque “[...] o código de posturas foi um projeto idealizado por
membros da elite, objetivando criar uma cidade ideal [...] inviabilizado pela cidade
possível, que é a cidade real, que transgride e resiste” (LOPES, 2010, p.41).
Mas apesar de submetidos, encontraram formas de viverem
paralelamente aos ditos códigos. Possivelmente, essa “teimosia” em driblá-los,
trouxe-lhes a pecha de criminosos:
a suspeição generalizada foi um elemento que segregou durante muito tempo escravos, negros forros e negros livres [...] o estigma social da escravidão fez de todo negro um criminoso em potencial, de todo escravo suspeito um fujão e de muitos libertos um mentiroso que se passava por
forro. Daí o porquê de muitos escravos terem requerido na justiça a liberdade por conta da reescravidão, prática recorrente na época (LOPES, 2010, p.45).
Mas, independente das dificuldades impostas ao africano para sobreviver,
sobressaía-lhes as habilidades, como em várias obras específicas do período
pesquisado, 1830 a 1841. Josué Montelo (1985) em Os Tambores de São Luis
apresenta um trecho onde é mostrada a rotina de uma preta doceira e seu tabuleiro:
[...] não adiantava cobrir os doces com a toalha, o pó parecia penetrar-se pela fazenda, para ir misturar-se às cocadas, mães-bentas e aos pés-de-moleque [... ] e o certo é que fazia mais de vinte anos que, todos os dias, com exceção dos sábados e domingos, armava na mesma esquina [...] o velho tabuleiro, com os doces ainda quentes (MONTELO,1985, p.237).
Em outro momento do romance, onde o personagem Damião refere-se à
negra Suzana, explicitando as habilidades da mesma, reitera esse mesmo autor:
[...] ficava ela na varanda, à cabeceira da mesa, fazendo flores de papel, cortando forminhas de doces, preparando trajes de anjos para procissões, retocando grinaldas de noiva, compondo máscaras de carnaval, bordando camisinhas de batizado (MONTELO, 1985, p.374).
Outro literato maranhense também informa sobre os negros urbanos.
Aluísio de Azevedo (2006, p.19-20), em O Mulato, assim se refere a esses
trabalhadores, descrevendo suas rotinas:
E os aguadeiros, em mangas de camisa e pernas arregaçadas, invadiam sem cerimônia as casas para encher as banheiras e os potes [...] tudo estava adormecido; só os pretos faziam as compras para o jantar ou andavam no ganho [...] doutro lado da praça, uma preta velha, vergada por imenso tabuleiro de madeira, sujo, seboso, cheio de sangue e coberto por uma nuvem de moscas, apregoava [...]’Fígado, rins e coração!’. Era uma vendedeira de fatos de boi. [...] para lá convergiam, apressadas e cheias de interesse, as peixeiras, quase todas negras, muito gordas, o tabuleiro na cabeça, rebolando os quadris [...] cruzavam-se os negros no carreto.
Mas não só dessas atividades, viviam os escravos africanos, os mesmos
envolveram-se em várias outras áreas, desde que sobrevivessem – forma de
resistência – ou que proporcionassem lucros aos seus senhores.
Boa parte desses indivíduos exerciam atividades relacionadas a ganho e
aluguel, onde “[...] a atividade de ganho era resultado de acordo entre o escravo e o
seu senhor [...] uma quantia predeterminada que o cativo deveria levar ao seu
senhor no final do dia ou da semana [...] o excedente ficava com o escravo”
(LOPES, 2010, p.30-31). No caso do aluguel de escravos, nos exemplifica Ferreira
(2007, p.46):
O aluguel de escravos para os mais diversos serviços, por sua vez, se tornou uma prática urbana cada vez mais comum, pois mesmo quem não tinha condições de comprar um escravo tomava-o de aluguel, e outros que não tendo meio de vida específico faziam dessa prática o sustento de toda a família.
Percebe-se, então, que não existiam somente proprietários com grandes
levas de escravos a seu serviço e bem estar. Era possível – e plausível – que
pessoas com menos posses, vivessem da renda produzida por seus poucos
escravos.
Apesar de que não seja absolutamente possível perceber essa nuance
nos avisos, é uma constante encontrar avisos de jornais oferecendo as
especialidades de escravos urbanos. O jornal Chrônica Maranhense (29.09.1839),
destaca que “[...] quem tiver escravos officiaes de sapateiro e os queira alugar, dirija-
se [...]. Em outra edição, o mesmo periódico avisa que” “[...] quem quiser alugar
ammas de leite, dirija-se a rua das Viollas (CHRÔNICA MARANHENSE 13.10.1839).
Avisos semelhantes são encontrados também no ano seguinte “[...]
preciza-se de uma amma de leite que não tenha cria e que esta goze saúde, quem
a tiver e quiser alugar (CHRÔNICA MARANHENSE, 09.01.1840) ; “[...] na praia
pequena, em caza de da viúva Trindade, tem para alugar uma preta para ama de
leite, sadia e sem cria” (CHRÔNICA MARANHENSE, 09.04.1840).
E, esses senhores negociavam seus escravos de acordo com suas
necessidades. Isso nos leva a pensar na possibilidade deles comprarem e/ou
venderem escravos para serem alugados por outrem, de acordo com alguns avisos
encontrados nos jornais alvo desta pesquisa: “[...] Em caza de Manoel Antonio dos
Santos e Cia, há para vender dois negros, hum que serve para serviço de rossa e
outro para serviços de cazas e cozinha sofrivelmente, de nação Angola, quem o
quizer comprar” (A ESTRELLA DO NORTE DO BRASIL, 17.04.1838).
Podem ser citados exemplos advindos de outros jornais usados na
pesquisa:
[...] em caza de José Rodrigues Roxo [...] vendem-se dois mulatos sapateiro e hum moleque próprio para aprender qualquer officio [...] D. Maria Alexandrina de Castro, tem para vender huma preta creoula de nome Margarida, idade 23 annos, he costureira, borda alguma cousa, goma, lava, cozinha, sabe arear assucar e fazer toda qualidade de doces [...] he inteligente para todo serviço de huma casa; [...] e he escrava de bons costumes (CHRÔNICA MARANHENSE, 30.11.1839).
Tais situações expostas nesses anúncios revelam que os escravos
negros maranhenses reagiram de diferentes formas à situação degradante que a
escravidão estabelecera. Enfrentando a sociedade escravista, escreveram
importantes capítulos da história brasileira. Por isso, a intenção é mostrar que os
escravos estavam envolvidos em várias atividades comerciais, possuíam várias
habilidades, muitas das quais eram usadas como forma de resistência. Como agiam,
por onde andavam, como se conduziam, como se relacionavam entre si e com quem
os rodeava. Tentar expor a situação dos escravos em São Luís, entre os anos 1830
a 1841. Ou pelo menos, levantar uma parte desse véu.
3.2 Os Jornais na Província Maranhense
Dentro dessa dinamicidade complexa, o jornal era um instrumento
peculiar presente e colaborador nesse processo. Importante, devido às
circunstâncias do contexto, à necessidade e forma de comunicação vigente no
período.
É necessário que se reconheça o jornal como instrumento capaz de
formar opiniões, de reformular conceitos, de estabelecer valores, contribuindo assim,
para a formação do imaginário do objeto estudado – neste caso, o escravo. A partir
dos anúncios constantes nesses jornais do início do século XIX, tenta-se estabelecer
como alguns parâmetros e imagens – positivas ou não - se cristalizaram ao longo do
tempo. Para Ferreira (2007, p.12):
Não apenas por se constituir nesse poderoso instrumento de construção e divulgação de ideias e imagens numa dada sociedade, mas também pelo seu poder de manipular interesses e intervir na vida social. Não por menos
denominada de ‘o quarto poder’, a imprensa tem o domínio da palavra impressa no século XIX. Os jornais são carregados de discursos e ideologias que expressam o movimento de ideias circulantes numa determinada época e interagem na complexidade de um contexto histórico e social.
Os periódicos maranhenses entre os anos 1830 a 1841 se apresentam
como disseminadores de ideias e estão estritamente ligados às convenções
político/partidárias dos seus editores e jornalistas. Convém lembrar que sua
ascensão, denota o florescimento intelectual e cultural porque passava São Luís, a
partir do desenvolvimento econômico – apesar de que esse boom econômico
derivasse da escravização do negro africano. As lavouras do arroz e do algodão
trouxeram a opulência e a riqueza necessárias para a eclosão desse momento de
intelectualidade entre os maranhenses, momento esse que trouxe o título de “Atenas
Maranhense” e alçou esta província ao reconhecimento nacional. Sobre tal fato,
Ferreira (2007, p.18) reintera que:
Maranhão passa por um deslumbramento cultural decorrente da euforia econômica da agro-exportação, passando a cultivar o gosto pelas artes e a adotar um modelo de comportamento e de valores que seria responsável por conferir à Província maranhense uma singularidade que a destacaria no cenário nacional. As habilidades refinadas de escrita e leitura vão estar presentes não só na literatura, mas também na imprensa que se dizia na época uma das mais brilhantes do Império.
Importante lembrar que o desenvolvimento da imprensa no Maranhão é
um reflexo da imprensa nacional. Acompanha o progresso que grassa as
instituições públicas e privadas e o desenrolar do estabelecimento da República,
entre outros fatores. Imprensa essa que surgiu somente em 1808 – a Imprensa
Régia - com a finalidade de divulgação de documentos e atos oficiais. A partir daí,
fora do Rio de Janeiro aos poucos se desencadeou “[...] o surgimento de inúmeros
jornais na Capital do Reino e também nas províncias: Bahia, Pernambuco,
Maranhão, São Paulo” (CAPELATO apud FERREIRA, 2007, p.19).
O jornal adquire nesse contexto, uma importância geral que era
“informar”. Todavia poucas pessoas detêm o “poder” da leitura. É de praxe que se
use o jornal para dar informações – os avisos - conforme se encontra no Chrônica
Maranhense15.
Com linguagem prolixa e rebuscada - característica predominante nesse
período – os jornais tratavam assuntos relacionados à política e economia, trazia
notícias de outras províncias, publicava crônicas, discursos, orçamentos aprovados
para as despesas da nossa província – e muitos outros documentos oficiais – além
de anedotas, direitos de respostas a interpelações variadas. Em todas as edições,
após o encerramento dos assuntos tratados, havia duas colunas: as “variedades” e
os “avisos”. Sua edição, diária e o uso era recorrente por todos que buscavam
informações.
Seguem alguns avisos no Chrônica, que mostram assuntos de relevância
pública, como os avisos da negociação de letras de câmbio, o convite e a
programação das festividades do Senhor Jesus dos Navegantes:
Pela Thezouraria da Fazenda se pretende negociar Letras para Londres: as pessoas, a quem convier dar as referidas Letras, poderão concorrer nos dias 08, 10 e 12 do corrente mez das 9 horas da manhã até às 2 da tarde, a fim de se tratar do competente ajuste. E para que se chegue ao conhecimento de todos, mandou o Snr. Contador servindo de Inspector de Fazenda affixar o presente. Secretaria da Thezouraria de Fazenda do Maranhão 2 de janeiros de 1838 – Francisco Joze Cezar ao Amaral, official maior (CHRÔNICA MARANHENSE, 09.01.1838). A mesa da Irmandade do Senhor Jesus dos Navegantes, faz sciente ao respeitável público, que no dia 28 do corrente mez de Janeiro terá lugar, na Igreja do convento de Stº Antonio, a Festividade que se costuma celebrar em louvor e glória do mesmo Senhor; havendo na noite antecedente as respectivas vésperas, tudo com a decência possível: prevenindo-se outro sim, que no mesmo dia da Festividade, haverão missas resadas das 5 horas da manhã athe as 8 (CHRÔNICA MARANHENSE, 09.01.1838).
Ferreira (2007, p.20) diz que “[...] A estrutura jornalística era quase que
exclusivamente dedicada a uma causa específica, o que ficava evidente na escolha
dos temas e na linguagem empregada”. Os jornais – e as suas publicações – não
eram imparciais, quase sempre estavam a serviço de um grupo político/partidário.
Há um posicionamento e partidarismo político explícito:
Os longos artigos, a linguagem carregada e panfletária, o estilo incisivo na defesa da opinião, ataques aos jornais de idéias contrárias ao governo ou, a defesa intransigente das medidas oficiais, caracterizaram as páginas dos
15
“Jornal Chrônica Maranhense, assigna-se no escriptorio do Tabelião o Snr Joaquim Batista da Cunha, na Rua da Paz, numero 20, Maranhão, na Typographia de I. J. Ferreira. Controle bibliotecário nº 151” (CRHÔNICA MARANHENSE, 01.01.1838).
periódicos maranhenses. O tom agressivo das críticas, em geral, endereçadas sem qualquer dissimulação a um determinado nome da administração pública ou da alta sociedade, o uso de extenso cardápio de figuras de linguagem, o ataque claro e direto a outros periódicos de idéias divergentes, os artigos extensos e por vezes complexos e os discursos inflamados, marcaram o modo de fazer jornalismo na São Luís da época (FERREIRA, 2007, p.21).
A importância da imprensa nesse contexto representa o posicionamento
do jornalista, um intelectual atuante, o qual foi forjado quando do desenvolvimento
da economia maranhense e foi possível transformar o trabalho escravo em
intelectualidade e crescimento cultural.
Mesmo ressaltando a importância da imprensa, é salutar reconhecer que
o termo “quarto poder” não é apropriado ao período – 1830 a 1841. Afinal, não havia
ainda um estabelecimento formal dos outros três poderes ao lado dos quais a dita
imprensa ocuparia seu lugar: Executivo, Judiciário e Legislativo. Entende-se que tal
expressão refere-se mais propriamente a discussões contemporâneas sobre mídias.
Após tal ressalva, é necessário retomar o fio da discussão, pois segundo Ferreira:
Não por menos denominada de ‘o quarto poder’, a imprensa tem o domínio da palavra impressa no século XIX. Os jornais são carregados de discursos e ideologias que só expressam o movimento de ideias circulantes numa determinada época e interagem na complexidade de um contexto histórico e social (FERREIRA, 2007, p.13).
Mas, nem sempre esses jornais mereceram papel de destaque nas
pesquisas históricas, os mesmos suscitavam desconfianças enquanto objeto
historiográfico “[...] esta fonte-objeto não mereceu maiores considerações no debate
historiográfico brasileiro, mesmo nos anos subsequentes a 1931, período de
significativas transformações na historiografia brasileira” (IGLESIAS apud CHECHE,
2004, p. 66).
Foi necessário que se mudasse a visão sobre um documento histórico,
assim como “[...] da própria concepção de História” (CHECHE, 2004 p.67). Questões
como a falta de objetividade, a curta duração e/ou inconstância desses jornais, uma
possível dependência econômica do poder público e as ideologias político-
partidárias das cabeças pensantes “atrás” das edições, ajudaram a disseminar
essas desconfianças.
Nesta Província, os jornais também se apresentam como fonte
inesgotável de estudos. A imprensa adquire seu destaque nesse cenário, conforme
trecho do Jornal Chrônica Maranhense (01.01.1838):
Além dos artigos sobre a política da província e do Império, cujo sentido e tendência acabamos de descrever, outros publicaremos nos, próprios ou tradusidos sobre a legislação, a moral, e a literatura propriamente ditas. Não faltarão notícias tanto políticas como comerciaes; as estrangeiras se darão quando se obtiverem e forem importantes.
E, conforme modelo “vigente”, os jornalistas posicionam-se de acordo
com as suas convicções, como mostra mais um trecho retirado do referido jornal.
Nele, o editor reafirma que defenderá a causa oposicionista:
[...] quanto á parte doctrinária e às opiniões, continuaremos a deffender os interesses da oposição, e por conseqüência, da liberdade e da ordem, a quem ella deffende; a pugnar pela obseervância das nossas leis e pelo progressivo aperfeiçoamento dellas [...] procuraremos em geral guardar a decência e moderação que todo escriptor a si e ao povo deve guardar [...] (CHRÔNICA MARANHENSE, 15.12.1838).
E, nesta Província, os intelectuais travavam uma luta político/partidária.
Conforme nos esclarece Ferreira (2007, p.16), havia uma tensão entre esses
intelectuais, divididos em partidos políticos:
[...] as tensões entre as elites regionais e locais [...] caracterizaram as lutas entre portugueses e nacionais se mantiveram vivas e, pelos anos de 1830, se agrupavam em dois partidos: os conservadores chamados Cabanos e os liberais mais conhecidos como Partido Bem-te-vi. Ideologicamente essas facções políticas que se formaram a partir das camadas sociais enriquecidas no final do século XVIII, viviam uma indefinição política, que tinha em comum a criação de uma consciência nacional que se calcava no ódio aos portugueses.
Essas tensões e lutas entre facções políticas contrárias, muitas delas
oriundas das camadas sociais abastadas podem ter levado as classes populares -
escravos, sertanejos miseráveis - que estavam atreladas a ricos proprietários rurais,
a insatisfações variadas. E a decisão política por parte dos conservadores de
aumentar o poder dos prefeitos culminou na revolta popular conhecida como
Balaiada, conforme já tratado em capítulo anterior.
E conforme o conflito avançada, perdurava e recrudesciam os
combates, se percebe a preocupação da sociedade, especialmente a elite. O editor
do Crhônica Maranhense assim demonstra, quando escreve “[...] Adiamos a
publicação de vários artigos prometidos, para podermos dar as importantes notícias
de Brejo, de Tutoya, Caxias, Miritiba” (CRHÔNICA MARANHENSE, 06.01.1839).
Era o jornal cumprindo seu papel de informar. Fazia parte das suas
atribuições divulgar as notícias, mesmo com as dificuldades inerentes: a distância, o
tempo e a forma para que as notícias chegassem à redação, muitas vezes através
de cartas:
[...] o descontentamento de alguns, a turbulência de outros, a audácia de alguns faccinorosos [...] eis o que provavelmente deu causa a esta desagradável occorrencia. Como quer que seja não há motivo algum para se nutrirem sérios receios [...] depois de havermos escripto o artigo acima, soubemos que o chefe dos amotinados da Manga é um tal Raimundo Gomes que foi vaqueiro do padre Ignacio no Miarim [...] já correm por ahi uns vagos rumores que essa tropa já se eleva a 70 homens e que tem por um dos seus cabeças o famoso João Nunes [...] mas ainda assim insistimos em dizer que não há motivos para grandes receios (CHRÔNICA MARANHENSE, 21.12.1838).
E, se tratando das questões sobre os escravos, as mesmas se apoiam
em anúncios de jornais maranhenses, em princípios do século XIX, especificamente
entre os anos 1830 e 1841. Eles nos mostram esse universo dos escravos, eles
apresentam detalhes da vida desse segmento social.
Através dos anúncios dos jornais, é possível perceber que as
características físicas e/ou comportamentais dos escravos são ressaltadas, com o
objetivo de identificá-los. Identificar para realizar bons negócios, mostrando a melhor
imagem dos escravos para vender ou alugar, ou ainda, ajudar a capturar mais rápido
em caso de fugas.
Como já foi dito, para a sociedade da época, havia uma suspeição
generalizada em relação ao escravo, ele era quase sempre um “sujeito” passível de
cometer crimes, havia uma desconfiança latente... Era o estigma da escravidão a
segregar – ainda nos dias atuais, o sabemos.
Então como realizar bons negócios, com o “objeto” escravo? Através dos
anúncios em jornais, era possível interferir nesse processo, ressaltando as melhores
características físicas e/ou comportamentais do escravo, como nos dois anúncios
abaixo:
Huma molatinha de 13 anos de idade, faz bem renda, goma alguma couza, e tem todas as proporçoens para ser aplicada a tudo quanto he precizo,
acha-se a venda em casa de Franciscos Ferreira de Carvalho, Largo do Palácio. O mesmo preciza comprar duas pretas mossas (CHRÔNICA MARANHENSE, 10.02.1838). [...] vende hum escravo criollo official de marcineiro idade de 26 a 28 annos de boa figura (...); também se vende hum molato crioulo de 30 annos, pouco mais, embarcadiço e que trabalha (...) bem apessoado e sadio; quem pretender a ambos ou a algum delles (CHRÔNICA MARANHENSE, 05.04.1838).
O mesmo se vê no anúncio da venda de uma negra, apta aos serviços
domésticos. Segundo a publicação: “[...] Vende-se huma negra moça, sadia, de bons
costumes, que sabe lavar, gomar, cozinhar, cozinhar e entende de todo arranjo de
uma caza” (CHRÔNICA MARANHENSE, 07.05.1840).
Como se percebe são muitas as características físicas, morais,
comportamentais, que são levadas em consideração nos anúncios dos jornais do
século XIX sobre os escravos. Apesar da “intenção” de informar – para se realizar
bons negócios e/ou recuperar negros fugidos – esses anúncios dão a oportunidade
de revelar a vida, o dia a dia dos escravos.
Diante desse quadro, torna-se importante analisar as relações entre
esses escravos e a sociedade maranhense – formada por grandes proprietários
rurais e comerciantes – a qual sabemos era escravocrata e patriarcal. Detinha o
capital escravista mercantil e consequentemente, o poder político local e de decisão.
É necessário apreender os sentidos e as representações vinculadas nos
anúncios de compra e venda, troca e aluguel de escravos, constantes nesses jornais
pesquisados. A partir das descrições detalhadas desses anúncios se busca perceber
as rupturas e continuidades das imagens elaboradas em torno do escravo.
4 A IMPRENSA NO SÉCULO XIX: o “quarto poder” na sociedade e as
representações sobre os escravos
“A imprensa foi um setor da sociedade que se manteve atento para o
desenvolvimento de todas as questões que sacudiram o país no início do século
XIX” (FERREIRA, 2007, p.19). Esse momento histórico corresponde a um período
de substanciais mudanças ocorrendo em nosso país, com base em ideais
propaladas na Europa, mas com grandes possibilidades de assimilação.
Afinal, trata-se de um período em que a cultura, a política e outros
aspectos da vida social se modernizam, a partir dos modelos vigentes trazidos de
fora do país. Aqui desembarcavam tecidos, móveis e utensílios, revistas de moda,
acessórios, roupas e concepções diversas expressas em literatura específica.
Convém lembrar que é o momento da implantação de melhorias nas estruturas de
urbanização e os jovens estão na Europa bebendo das fontes da intelectualidade e
da modernidade vigentes por lá.
Nesse processo, a imprensa não ficou alheia. Ainda de acordo com
Ferreira (2007, p.21,) em um artigo publicado no jornal carioca A Imprensa, transcrito
do jornal O Progresso de 12 de outubro de 1850, a imprensa é comparada a uma
verdadeira “obra divina” cujo papel é lançar luz à escuridão reinante. É considerada
também, como o “quarto poder” 16, apesar de algumas ressalvas em contrário.17
Dentre outras considerações, o artigo ressalta a importância da Europa e
dos Estados Unidos nesse processo, sendo essas regiões consideradas “símbolos
de civilização” e “progresso” (FERREIRA, 2007, p.21), pois compreenderam melhor
que todos os demais países a importância extrema da imprensa.
Segundo Pereira (2006, p.14-15), a imprensa é “[...] no século XIX, o
locus de discussão e de circulação de ideias [...] [pois] cumpria a função de um
circuito de interatividade”, ou seja, os jornais cumpriam o papel de informar,
disseminar o caráter político vigente. Eles propiciavam a formação de opiniões,
16
Essa expressão “quarto poder”, faz alusão à liberdade das mídias, do jornalismo e a sua capacidade de manipulação da opinião pública. É uma comparação aos outros três poderes que regem a sociedade democrática, o Legislativo, o Judiciário e o Executivo. Através da imprensa, é possível mudar comportamentos, não somente individuais, como da própria sociedade, coforme nos esclarece Cleves (2012). 17
C.f, p. 53.
registravam as atividades diárias necessárias, divulgavam as ideias do grupo político
a que serviam, criticavam duramente os outros periódicos quando estes não
partilhavam da mesma opinião. Enfim, relacionavam-se de forma dinâmica com
aquela sociedade na qual estavam inseridos.
Tanto o é, que ainda no século XIX os jornais também denunciavam. Por
exemplo, a falta de ética na política. Como o caricaturista ítalo-brasileiro Angelo
Agostini, o qual chegou ao Brasil com 16 anos e aos 21 já editava jornais ilustrados,
em São Paulo, como o Dom Quixote. Foram mais de 40 anos de uma carreira
jornalística pautada no humor ilustrado, onde não poupava político nenhum, de
acordo com a realidade da época:
Dom Quixote, publicado de 1895 a 1903 [...] esse jornal usava textos e imagens para reproduzir as notícias de um país em crise, com conflitos e revoltas de Norte a Sul, sem deixar de lado o bom humor [...] o centro das denúncias do periódico era um país cheio de políticos que não demonstravam qualquer compromisso com a ética (IPANEMA, 2010, p.68, e 69).
Outra situação inusitada, apresentada pela imprensa brasileira a qual
seria o inverso da situação acima: quando o próprio governante sendo muito
atacado e criticado pela imprensa, cria um jornal a seu favor, como Getulio Vargas.
O mesmo “[...] criou um jornal a favor do governo [...] A última Hora, fundada em
1951, pelo jornalista Samuel Wainer, com a ajuda de Getúlio Vargas” (RHBN, 2010,
p. 11). Por medo que o arquivo desse material fosse destruído pelos inimigos que o
próprio Getúlio colecionou, o mesmo foi guardado em segurança durante anos.
Circulou de 1951 a 1971, ano em que foi vendido. Esses fatos são contados por
Medeiros (RHBN, 2010, p.11), o qual informa que todo esse material está sob a
responsabilidade do Arquivo Público de São Paulo, desde 1990. Está sendo
organizado, sendo que uma parte já se encontra digitalizada e disponível, de graça,
na internet.
Outra característica relevante é que a liberdade de imprensa sempre
caminhou lado a lado com a censura. Conforme já dito anteriormente, a criação da
imprensa deu-se em 1808 e foi um mecanismo para divulgar os atos e fatos
referentes à realeza que por aqui se instalara.
Surgiu, assim, a Imprensa Régia no país o “[...] primeiro número da
Gazeta do Rio de Janeiro, que inaugurou a imprensa escrita no país [...] criada para
divulgar as informações oficiais [...] o poder real já mantinha cada letra sob seu
rigoroso controle” (REVISTA DE HISTÓRIA DA BIBLIOTECA NACIONAL, 2010,
p.86).
Somente por volta de 1821, foi decretada por D. João VI, a abolição da
censura prévia, a qual foi recebida com entusiasmo pelos jornalistas e editores.
Afinal, era a primeira amostra do que seria a liberdade de imprensa. Infelizmente,
fora um engano: a censura só mudara de posição. A partir daquela data, a mesma
passou a acontecer nas formas já impressas e não mais nos manuscritos. Mas, de
qualquer forma, essas discussões estavam apenas no início, muitos decretos e
várias leis surgiram para dar novos rumos, uma nova nomenclatura à liberdade de
imprensa, imbróglio que persiste até os dias atuais.
4.1 Imprensa jornalística no Maranhão
Essas construções, essas percepções acerca da imprensa e
consequentemente, dos jornais, também aconteceram nesta província. Aqui,
também a imprensa e os jornais floresceram acompanhando o ritmo do restante do
país. Conforme expõe Ferreira (2007, p.19), a “[...] imprensa maranhense
acompanhou de muito perto todo o desenvolvimento da imprensa nacional” 18. Aqui,
os jornais foram, ao mesmo tempo, um meio limitado de informações – já que
poucas pessoas tinham acesso às letras – e um meio poderoso de cristalizar a
opinião pública. Um feito conseguido pelos intelectuais jornalistas, especialmente, no
caso da política partidária, já que os mesmos quase sempre pertenciam e defendiam
um grupo específico.
Levando-se em consideração o florescimento intelectual que se
desenvolveu aqui, em meados do século XIX, é natural que se perceba a imprensa
acompanhando tal fenômeno. Nos jornais, se reunia a intelectualidade maranhense.
Há uma estreita relação entre esse crescimento intelectual e os jornais. Esse
18
“A imprensa maranhense acompanhou de muito perto todo o desenvolvimento da imprensa nacional e também estava dividida entre os adeptos da causa emancipacionista e os contrários à independência, ou seja, os periódicos do período estavam sensivelmente ligados às discussões em voga nas primeiras décadas do século XIX. Sua gênese esta associada às disputas políticas entre facções rivais, à lusofobia e estruturação do Estado, e acompanha as transformações em andamento no âmbito nacional” (FERREIRA, 2007, p.19).
jornalista suscitava as discussões no seio da sociedade, situação bastante comum,
no período estudado, como nos apresenta Ferreira (2007, p.19): “[...] o papel do
jornalista, confundia-se, portanto, com a figura do intelectual engajado, movido por
convicções políticas, funcionando como uma espécie de incitador dos debates”
Usando uma linguagem rebuscada, discursos inflamados e radicais,
defesa exacerbada das opiniões – contrárias ou a favor da causa em evidência
naquele momento – críticas agressivas a determinadas figuras, o jornalismo
maranhense se sobressaía e acompanhava o tom nacional. Era esse o papel dos
intelectuais/jornalistas que habitavam o universo jornalístico do Maranhão, entre os
anos 1830 a 184119.
4.2 Jornais como fonte histórica
Mesmo sabendo a trajetória – inclusive social - que a imprensa detém e
reconhecendo os jornais como fonte profunda de estudos é válido se conhecer
algumas nuances que adquirem salutar importância no entendimento deste estudo.
Durante muito tempo os jornais não mereceram essa pecha de
instrumento histórico devido, entre outros fatores à sua suposta instabilidade – curta
duração, poucas e breves edições – assim como à sua provável dependência ao
poder público, como esclarece Galves (2004, p.66). Esse autor reafirma que, mesmo
com as inovações no debate historiográfico brasileiro e com a história adquirindo
outro caráter – o de ciência em construção - os jornais continuaram carregando o
estigma de “fonte suspeita”.
Afinal, seriam necessárias mudanças estruturais para que o historiador
pudesse pesquisar e interpretar o jornal como documento histórico, passível de
credibilidade. Podem-se citar questões metodológicas como um dos fatores que
impediam esse olhar. Além de que a tendência era se analisar grandes jornais –
maiores tiragens, tempo maior de duração e consequentemente, mais (suposta)
credibilidade – o que dificultava ainda mais o estudo.
19
“A imprensa era o principal núcleo dos intelectuais maranhenses na primeira metade do século XIX,
ao mesmo tempo em que dela se utilizaram para expressar o modo como viam ou percebiam a
sociedade” (FERREIRA, 2007, p.20).
Felizmente, se inicia o processo inverso a tudo isso, em que os conceitos
sobre a História e as pesquisas históricas se ampliam: ”[...] a compreensão da
História como ciência em construção, passível de interpretações díspares, a partir de
fontes, abordagens e problemáticas diferentes” (GALVES, 2004, p.67).
Uma questão primordial precisa ser citada, pois foi observada quando da
pesquisa: a dificuldade de recolher dados nos pequenos jornais. Há inconstância
nas edições, faltam números, folhas e/ou transcrições ou as mesmas estão ilegíveis.
Possivelmente, essa questão foi uma das que contribuíram e geraram desconfianças
em relação a esse objeto de pesquisa, o jornal de pequeno porte.
Mas, quando estudiosos se propuseram a analisar jornais foi perceptível
que muitas possibilidades e véus se descortinavam. Era um mundo novo a ser
pesquisado. Percebeu-se que esse tipo de fonte histórica abria novas possibilidades
de análise do seu conteúdo, historiograficamente falando. Afinal, “[...] a história do
Brasil do século XIX, está nos anúncios dos jornais [...] eles constituem os nossos
primeiros clássicos, especialmente, os anúncios relativos a escravos” (FREYRE,
1979, p. 7).
E se torna possível usá-los para novas abordagens, novos
questionamentos e percepções histórico/culturais. E se descobre que é possível
reconstruir, refazer caminhos não somente a partir dos ofícios e falas de Presidentes
de província e dos discursos político/partidários – geralmente, exaltados - dos
jornalistas que os escrevem. É possível fazer reconstruções sobre os escravos,
objetivo deste trabalho, apesar de que:
[...] durante muitos anos a experiência de vida dos escravos foi excluída da historiografia da escravidão. Só, muito recentemente os avanços da história social possibilitaram o aprofundamento das análises sobre diversos temas que valorizam a subjetividade dos escravos (LOPES, 2010, p.13).
Portanto, analisar esses anúncios de jornais sobre escravos leva o
leitor/pesquisador a empreender várias “viagens”. Torna-se possível analisar muitos
vieses e novas (re) interpretações surgiriam já que são encontrados detalhes
inconfundíveis sobre esses sujeitos, os quais podem levam a entender melhor essas
relações escravos-senhores e a sociedade pertinente aos dois. Para Freyre (1979,
p. XV), os jornais:
[...] abrem perspectivas inesperadas. Sugere novas abordagens de assuntos [...] Oferece bases ou apoios para interpretações em profundidade [...] Por exemplo: com relação aos tipos constitucionais de homens mais presentes entre anúncios de escravos [...] os longilíneos [...] os brevilíneos [...] os muitos de dentes bons [...] os vários tipos de cabelos [...] os sinais de castigos [...] os trajados como e fossem quase fidalgos [...] os contentes da vida (FREYRE, 1979, p. XV).
Outra questão que pode ser questionada a partir dos anúncios sobre
escravos é a existência da tal “benignidade” entre estes e seus senhores, a qual foi
levantada pelo autor citado. Os anúncios revelam a “crueldade” existente nesse
sistema escravista, pois o escravo era tratado como objeto e, em vários casos, como
animal. Naturalmente, que não há surpresa ou mesmo indignação, já que se está
tratando de relação escravo/senhor, dentro de uma sociedade escravocrata e
patriarcal. Essa percepção é encontrada na obra de Freyre (1979, p.XII):
A verdade, porém, é que dos anúncios de escravos à venda ou que pudessem ser comprados ou alugados, em jornais brasileiros do séc. XIX há uns tantos que revelam o que, na verdade, houve de cruel, em contraste com aquelas evidências de benignidade nas relações de não poucos senhores com seus escravos. A benignidade nas relações de senhores com escravos, no Brasil patriarcal não é para ser admitida, é claro, senão em termos relativos. Senhor é sempre senhor.
Desde o começo do século em questão esses tipos de anúncios –
compra/venda, leilões, troca, fugas e aluguel de escravos - revestiam os jornais do
Império bem mais que outros assuntos, permitindo-se fazer levantamentos acerca
da natureza dessas relações escravocratas, das representações que
permaneceram, as quais advém desse período20. E há o esforço para apreender não
somente sobre essas relações, mas as “entrelinhas”, o “não dito”. Poderá ser
mostrado o caráter antropológico resultante desse período permeado por conflitos e
negociações, mas que não trabalhava ainda com o caráter de conflito racial em toda
a sua pujança.
4.3 O escravo e o negro como mercadoria na propaganda brasileira
20
Segundo explica Freyre (1979, p. XIV) o estudo dos anúncios, presentes em jornais do século XIX e referentes aos escravos, permitiu “[...] chegar-se a importantes conclusões ou interpretações de caráter antropológico, quer psicossomático, quer de todo cultural, à base das descrições oferecidas das figuras, falas e gestos dos negros – ou mestiços – à venda e, sobretudo, fugidos: altura, forma de corpo, pés, mãos, cabeças, dentes, modo de falar, gesticulação [...]”.
O negro na propaganda de jornais – inclusive aqui nesta província – vem
de longas datas. Ao longo desse estudo, várias publicações do período estudado
bem como anteriores e/ou posteriores mostram isso. Cadena (2008, p.1), explica
que data de 1809 a “descoberta” do jornal como importante mecanismo de
informação sobre a população negra do Rio de Janeiro:
Em 25 de janeiro de 1809, ou seja, cinco meses após a estreia da Gazeta do Rio de Janeiro, o Sr. Vicente descobria que o jornal era um veículo para atingir um número maior de pessoas do que o boca-a-boca tradicional ou o manuscrito, à intempérie, colado num prédio público. Então, publicava o primeiro anúncio de escravos da imprensa brasileira, reportando a fuga, durante o carnaval de uma mulata com educação acima da média: ‘No dia do entrudo [...] fugio a Vicente Guedes de Souza, uma mulata [...] estatura ordinária, clara e com sinais de sardas pela cara, fala português e inglês [...] este anúncio inaugura um estilo (a descrição minuciosa com requintes de ficha policial).
É importante ressaltar que um dos mais importantes espaços “recheado”
de anúncios de escravos, estudado por Freyre (1979, p.16) foi o periódico intitulado
“[...] Diário de Pernambuco – jornal particularmente valioso para esse tipo de estudo,
da vida brasileira, do seu período escravocrático, sem interrupção, de 1825 a 1888
[...]”. Foi esse um dos jornais brasileiros a oferecer material para tão valiosos
estudos, como explica o próprio Freyre (1979, p.XXIX e XXXVII):
[...] sesquicentenário Diário de Pernambuco [...] esse jornal do Recife, fundado em 1825, durante anos e anos publicou anúncios e mais anúncios de escravos à venda ou para alugar ou fugidos [...] Diário de Pernambuco apareceu em 1825 como publicação destinada principalmente a acolher anúncios comerciais. Crescentemente noticioso se tornaria esse Diário fundado por Antonino José de Miranda Falcão”.
Com base nos argumentos de Cadena (2008, p.1), em 1809, vê-se que a
presença do negro enquanto mercadoria passou a ser uma constante nos jornais. Ali
ele dividia espaço e atenção dos leitores com anúncios de fretes, vendas de casas e
fazendas. E, um pouco mais tarde, em 1840 com anúncios de remédios.
Possivelmente, foram mais de um milhão de anúncios publicados nesse período -
apesar de que, esse autor, não soube precisar o autor de tal levantamento e/ou
estudo. Ele esclarece que até 1851, foram muitas publicações de anúncios, os quais
foram diminuindo a partir desse período. Foi um processo tão intenso que os
fabricantes europeus de “tipos” 21 logo providenciaram para o Brasil, a vinheta de um
negro em fuga e sua trouxa à costa, imagem bastante usada para ilustrar os
anúncios.
O romance “Os Tambores de São Luis” apresenta um exemplo peculiar
dessa forma de anunciar um escravo fugido. O personagem Sarnambi, assim diz a
uma dama que vai até o jornal Diário do Maranhão mandar publicar um anúncio
onde busca recuperar sua escrava: “[...] Eu, se fosse a senhora [...] punha em cima
do anúncio aquela figurinha do negro com um pau no ombro, levando uma trouxa
[...] a Chica, assim, será agarrada mais depressa” (MONTELO, 1985, p.391).
Nessa lógica, Cadena (2008, p.4) explica que o regime de escravidão,
“[...] seria o mais rentável negócio, o mais abrangente mercado da primeira metade
do século XIX. Anúncios de compra e venda, recompensas, anúncios de fretes, de
companhias de seguros, de serviços de empreitada, anúncios marítimos... tudo tinha
a ver com o comércio ilícito”.
Como o trabalho requer e referindo-se às permanências advindas desse
período, convém lembrar que o negro aparece de outras formas nas propagandas.
Podemos citar a falta de visibilidade do mesmo, no papel de consumidor. Sendo
mercadoria por tanto tempo, tendo ilustrado as páginas dos jornais em praticamente
todo o século em questão – o XIX – ele foi ignorado enquanto público alvo. Afinal, o
negro comprava produtos de segunda mão ou somente consumia produtos já
usados, isso sem falar que o alvo dos comerciais eram os ditos brancos,
consumidores em potencial. Obedecendo a essa lógica, como e porque se
preocupar com propagandas direcionadas aos negros? Porque fazê-lo?
Outra situação a ser destacada, que se entende como uma permanência
engendrada em séculos de legitimação do sistema escravista corresponde a pouca
presença de modelos negros em comerciais. Geralmente, os modelos usados são
brancos, loiros, de olhos azuis, o qual apresenta os mais variados produtos.
Provavelmente, o medo de quedas nas vendas, provocada pelo racismo implícito ou
mesmo explícito no seio da sociedade, leva os responsáveis por agências a
evitarem modelos negros, aumentando e alimentando o preconceito racial22.
21
“[...] Por “tipos”, entende-se os caracteres individuais de uma família tipográfica [...] remonta aos tipos móveis [...] para a composição de palavras nas prensas tipográficas” (GUNTHER, 2006, p.11). 22
Felizmente, esse quadro vem mudando na atualidade e, ”[...] pouco a pouco, moças e rapazes bonitos ganham espaço em áreas que nada tem a ver com rebolado e ziriguindum” (MOHERDAUI, 2001), e a sociedade já vê com bons olhos – e aprecia – a beleza negra estampada em comerciais e
Esse problema é visível e latente em uma sociedade que “embranquece”
e cria subcategorias de negros: mulatos, sararás, não brancos, jambos, etc. Ou na
categoria brancos: louros, castanhos, ruivos, etc. Mas, apesar de se perceber essa
dualidade proveniente da relação negro/escravo e toda a carga negativa que aí
persiste, ainda se forjam padrões estéticos na propaganda brasileira. Processo esse,
iniciado lá no século XIX, nos anúncios dos jornais a partir da imagem suspeita e
negativa do escravo.
4.4 Anúncios dos escravos nos jornais maranhenses
Como não é o mote deste trabalho averiguar e/ou interpretar o tempo de
vida desses periódicos, suas trajetórias, discursos proferidos e suas convicções
políticas, o jornal que mais chamou a atenção e permitiu encontrar as informações
necessárias ao desenvolvimento da pesquisa foi o Chrônica Maranhense.
Suas edições foram às ruas entre 1838 até 1841. Esse periódico estava
vinculado ao Partido Liberal (os chamados Bem-te-vis), na política daquele período.
Foi fundado por João Francisco Lisboa, um dos mais influentes
intelectuais/jornalistas da província do Maranhão, naqueles tempos. O jornal
Chrônica Maranhense envolveu-se sobremaneira no episódio Balaiada e por causa
dos discursos veementes proferidos, o seu fundador e ao mesmo tempo jornalista e
redator “[...] foi acusado de insuflar as massas e de ser o influenciador teórico do
movimento” (FERREIRA, 2007, p.24).
Mesmo antes de o conflito eclodir, o Chrônica já publicava suas
impressões acerca das questões sociais e políticas que grassavam aquele
período23. Aliás, é importante afirmar que esse periódico – Chrônica Maranhense -
foi o que mais divulgou o conflito da Balaiada e o ano de 1839, como o período onde
mais houve notícias sobre esse assunto. Igualmente, se observa que em 1940,
não somente os relaciona a escolas de samba. Felizmente, os negros avançam em outras esferas sociais e já se tornou comum vê-los atuando em áreas anteriormente “reservadas” aos brancos. O publicitário Washington Olivetto esclarece que “[...] Sempre foi difícil colocar personagens negros nas campanhas. Os clientes não aprovavam. Hoje, eles pedem para incluir negros e já existem vários comerciais em que todos os atores são negros" (REVISTA VEJA ON LINE, 2001). 23
Como exemplo da divulgação dos conflitos sociais da época, citamos a seguinte nota publicada no jornal: “[...] Ainda não sabemos ao certo da ocasião e motivos desse desaguisado [...] o descontentamento de uns, a turbulência de outros, a audácia de alguns facinorosos [...] eis o que provavelmente deu causa a esta desagradável occorrencia” (CHRÔNICA MARANHENSE, 21.12.1838).
aumentaram as chamadas “Ordens do Dia”, referentes às batalhas que ora
aconteciam, com a consequente diminuição dos avisos.
Tanto o é que foi realizado o seguinte levantamento, onde é mostrada a
incidência desses avisos, repassando para a população as informações acerca da
Balaiada, especificamente:
ANO MÊS QUANTIDADE DE
AVISOS TOTAL
1839
ABRIL 2 2
MAIO 3 3
JUNHO 7 7
JULHO 4 4
AGOSTO 4 4
SETEMBRO 2 2
OUTUBRO 2 2
NOVEMBRO 1 1
DEZEMBRO 1 1
1840
JANEIRO 3 3
FEVEREIRO 4 4
MARÇO 6 6
MAIO 3 3
SETEMBRO 1 1
DEZEMBRO 1 1
1841
JANEIRO 3 3
FEVEREIRO 1 1
Tabela 2. Incidência nos jornais de avisos sobre a Balaiada Fonte: Chrônica Maranhense (1839, 1840, 1841)
E para exemplificar essas afirmações sobre a exposição desse conflito
nas páginas do Chrônica Maranhense, estão transcritos abaixo alguns desses
avisos, apesar de que pesquisas específicas sobre o conflito Balaiada não serem o
objetivo do trabalho:
Hontem, 23 do corrente chegou a esta capital a notícia do desastre acontecido as nossas forças em Miritiba. Um grupo de rebeldes, cujo
número se avalia em 300 surpreendeu o destacamento [...] matando-nos, muitos soldados e a gente que existia na povoação, inclusive mulheres e crianças, as cazas foram invadidas [...] (CHRÔNICA MARANHENSE, 26.03.1840). Foi finalmente pacificada a província do Maranhão, pois que de todas as partes officiaes que temos visto, não consta que nas Comarcas que forão invadidas pela rebeldia nenhum grupo se encontre, restando apenas estes dous numerosos que se acabarão de apresentar [...] (CHRÔNICA MARANHENSE, 29.01.1841).
Ressalvada a importância do Chrônica Maranhense em fornecer material
para a pesquisa (anúncios), retoma-se a análise dos anúncios dos escravos nesse e
em outros jornais.
Mesmo com as dificuldades que toda pesquisa histórica demanda, se
conseguiu apreender e organizar as informações sobre as fugas, compra, venda e
aluguel de escravos dispostas nos jornais. Pareceu relevante sistematizar os
documentos submetidos ao estudo em “categorias”, com o intuito de analisar
separadamente já que os avisos mudam de acordo com os interesses do
proprietário de escravos.
Nessa direção existem anúncios que versam sobre a recuperação de
negros fugidos. Do mesmo modo, existem outros sobre comprar e/ou vender e
alugar escravos. Portanto foi organizada a tabela abaixo para facilitar a visualização
dos diferentes tipos de anúncios nos jornais nesse período:
JORNAL ANO FUGAS COMPRA
VENDA
ALUGUEL
LEILÃO
OUTROS
AVISOS TOTAL
A ESTRELA DO NORTE DO
BRASIL
1830 06 08 0 03 17
O PUBLICADOR
OFFICIAL 1833 03 04 01 01 09
ECHO DO NORTE 1834 10 05 01 0 16
1836 11 06 01 01 19
O INVESTIGADOR
MARANHENSE 1836 01 01 01 0 03
1838 07 11 01 03 21
CHRÔNICA
MARANHENSE
1839 07 05 03 0 15
1840 10 11 02 0 23
1841 02 02 0 0 04
Tabela 3. Diferentes categorias de anúncios sobre os escravos nos jornais
Fonte: A Estrela do Norte do Brasil (1830); O Publicador Official (1833); Echo do Norte (1834,1836); O Investigador Maranhense (1836), Chrônica Maranhense (1838; 1841)
Também se considerou oportuno referir alguns exemplos de anúncios
sobre os escravos, os quais apresentam situações diferenciadas envolvendo os
mesmos. Na nota a seguir, há o caso onde um Juiz avisa que recolheu um escravo
fugido, identificando-o a quem interessar possa para que seu dono o receba de
volta:
Pelo Juízo de Direito da Comarca do Brejo, se faz público [...] que na cadeia da Villa se acha recolhido o escravo cafuz de nome Romão, baixo de idade de vinte annos, olhos pequenos, sem barba, rosto um tanto largo para baixo, rendido de huma verilha, pés e mãos a proporcionados, sem mais signaes (ECHO DO NORTE, 01.10.1836).
Na lógica da oferta de serviços de natureza escrava, outra forma dos
jornais se referirem ao negro é a procura de amas de leite na condição de escravas,
para que pudessem suprir as necessidades, por exemplo, da Santa Casa de
Misericórdia. O anúncio a seguir destinava-se à procura de amas de leites para os
órfãos abandonados na roda dos expostos:
A meza da Caza de Santa Misericordia desta cidade, querendo prevenir imenços malles a que estão sujeitos os inocenttes expostos na roda da mesma caza [...] athe o presente não se tem descuberto amma para delle tomar conta e dar-lhe os primeiros alimentos; por isso roga as pessoas que tiverem escravas com bastante leite e querão cenpallar neste serviço [...] por caridade ou por ajuste a dinheiro (O PUBLICADOR OFFICIAL, 23.01.1833).
Dentre os vários tipos de anúncios, se publicam os dois abaixo, onde
os senhores buscam encontrar seus escravos, mas explicitam que os mesmos não
fugiram das suas fazendas: foram roubados pelos rebeldes durante a Balaiada,
juntamente com vários animais.
Marcelino Jose da Silva e Nicolau Jose Teixeira fazem sientes que de suas fazendas do Munim e São Lourenço, lhe foram roubados pelos rebeldes dez escravos e huma grande porção de cavallos, éguas, poldros, burros [...] rogão a todas pessoas que tiverem alguns dos dittos escravos ou animaes [...] (CHRÔNICA MARANHENSE, 01.03.1840).
quanto aos rebeldes, em número de mais de 150 se retiraram, levando cerca de 80 escravos da fazenda dos srs Jansem (CHRÔNICA MARANHENSE, 30.05.1840).
Mas é necessário retornar aos anúncios, alvo desta pesquisa. Nos avisos
de fuga de escravos, o objetivo do senhor é recuperar seu bem. Para tanto, ele
anuncia no jornal e detalha as informações sobre esse escravo, tanto as suas
características físicas como as comportamentais. Ele descreve tal como o considera:
um objeto, um bem, uma mercadoria. E esse bem lhe custou caro, por isso lhe é
importante, o que justifica a oferta de recompensa a quem souber alguma notícia ou
capturar o fugitivo.
E essa característica de anunciar detalhadamente nos jornais, a fuga do
escravo, se encontra inclusive na obra Os Tambores de São Luís, de Josué Montelo.
Nesse romance, encontramos a trajetória de vida do personagem Damião, filho do
negro Julião. É a saga de um negro inicialmente escravizado, depois forro.
Inteligente, tenta vencer através do estudo, mas não encontra seu lugar no mundo
dos ditos brancos.
Nesse romance, passado e presente do Damião se misturam, além da
narrativa da escravidão em si: desde a chegada dos negros nos navios tumbeiros, o
martírio sofrido, além da história de vida do Damião. Paralelo a tudo isso vai
acontecendo a narrativa de fatos históricos ocorridos no Maranhão. Tem como pano
de fundo a sonoridade constante dos tambores, oriunda da Casa das Minas. É a
religião do Damião, trazida da África.
Nesse romance, tem-se um trecho interessante: o personagem
Prudêncio, ao chegar ao quilombo onde todos se refugiaram após a fuga, informa ao
escravo Julião, pai do ainda pequeno Damião que “[...] tem sordado do Governo te
procurando – preveniu o Prudêncio [...] nós apanhou como bicho, e não disse onde
tu tava. Até nos jorná de São Luís se falou que tu fugiu, depois de tocar fogo na casa
do teu sinhô (MONTELO, 1985, p.21).
Esse detalhamento das características do escravo certamente ajudava a
localizar o tal negro fujão, especialmente se ele possuía algo que o diferenciasse
dentre os outros, como no exemplo abaixo, onde o mesmo era gago:
Fugiu da casa do Major João Serra, na Rua da Cruz, um moleque de nome Baltasar, preto, baixo, de boa figura, com uma cicatriz no braço direito e nas costas. Vestia calça azul e camisa branca. É meio gago. Quem o apreender e levar ao seu senhor será bem gratificado (MONTELO, 1985, p.389).
Ou no caso abaixo onde o escravo, além das características “básicas”
detalhadas, possuía marcas de ferro com as iniciais do seu dono:
Tendo desaparecido hum negro por nome Joze do Gentio de Angola [...] 25 a 30 annos, estatura ordinária, seco de corpo, rosto comprido e descarnado e tem os dentes do queixo de cima abertos a maneira de forquilha, canellas finas, calcanhares rachados [...] bem vizivel huma verruga [...] possui a contramarca S. P. ou D.[...] quem o aprehender (ECHO DO NORTE, 23.11.1834 – Grifo nosso)
Ou se pode reconhecer a severidade dos castigos a que os escravos
estavam submetidos, onde muitos dos senhores eram cruéis, papel social “natural”
naquela sociedade escravocrata, conforme abaixo. Nesse caso, o escravo fugira
com a mordaça de flandres:
Com as mãos no rosto para não gritar, depois de ler o anúncio em que o Major Mundico Rego pedia a captura e seu escravo Lourenço, que lhe havia fugido de casa levando na boca uma mordaça de folhas-de-flandres e tendo nas costas e nos tornozelos as marcas de castigos recentes (MONTELO, 1985, p. 390).
Certamente que nessa pesquisa se encontrou muitos anúncios
detalhando marcas de castigos:
No domingo fugio huma escrava de nome Leopoldina, não muito retinta, terá 12 ou 16 annos; peito atacado mas pequeno, o lugar das orelhas onde se poe os brincos he grosso [...] tem marcas de chicote pelos ombros e costas, levou vestido um mandrião de riscado azul [...] e não he muito alta [...] quem a trouxer (CRHÔNICA MARANHENSE, 16.08.1840 – Grifo nosso.) Ao capitão Joze Lopes de Carvalho, fugio hum escravo por nome Vicente, nação crioulo, com signaes seguintes: estatura baixa, nariz largo, cor retinta e com alguns signaes nas nádegas, de castigo, quem o apanhar terá boas alvíssaras (A ESTRELLA DO NORTE DO BRASIL, 06.03.1830 – Grifo nosso). Acha-se fugido hum escravo de nome Manoel João, crioulo preto [...] 28 annos [...] boa altura e de bom corpo, cabeça aproporcionada, olhos negros, nariz chato e uma das ventas franzidas [...] nas costas da mão direita junto ao dedo polegar tem leve signal de um talho [...] he canhoto e tem igualmente signaes brancos de surra (ECHO DO NORTE, 29.05.1836 – Grifo nosso).
Fugio nesta cidade [...] molato de idade 20 annos [...] magro, carrancudo, huma cruz de tinta no braço esquerdo, falta de dois dentes adiante [...] algumas vergalhadas no lombo [...] quem o pegar ou delle souber (ECHO DO NORTE, 10.07.1834 – Grifo nosso).
Mas, em certos momentos, parece perceptível certa ternura nessa
relação. No caso abaixo, a senhora parece sentir falta da sua negrinha Chica, o que
é imediatamente rechaçado quando se lê que a pequena escrava já possuía marcas
de ferro e cicatrizes de castigos pelo corpo, ou seja, a única intenção é recuperar o
seu bem, a sua mercadoria:
Eu quero que tu me ajudes a descobrir minha negrinha. Chama-se Chica o diabo da pequena. Têm na bunda esquerda duas marcas de ferro e nas costas uma cicatriz de relho. A Chica é tudo para mim. Sem ela, estou no mato sem cachorro; não sei como me arranjar (MONTELO, 1985, p. 391).
E no desenrolar da pesquisa, continuou a chamar a atenção o
detalhamento das características dos escravos, constantes nos anúncios dos
jornais24. E foi necessário se fazer os seguintes questionamentos: a necessidade de
detalhar as características dos escravos estaria assentada na “coisificação” imposta
aos mesmos, pelos ditos brancos? No universo urbano – ou mesmo rural - desses
negros, todos “pareciam” iguais? Certamente, que a intenção dos seus senhores era
identificá-los o mais rápido possível e recuperar esse bem que tantos lucros
geravam aos mesmos.
Para Freyre (1979, p. XIV), é possível efetuar uma ampla análise desses
anúncios, chegando-se a interpretações antropológicas discursivas, seja quando se
tenta encontrar um negro fugido, seja quando se tenta vender, comprar ou alugar:
[...] a análise sistemática de anúncios relativos a escravos nos jornais brasileiros do século passado veio permitir chegar-se a importantes conclusões ou interpretações de caráter antropológico, quer psicossomático, quer de todo cultural, à base das descrições oferecidas das figuras, falas e gestos dos negros – ou mestiços – à venda e, sobretudo,
24
Não somente nos avisos referentes a fugas, compra e/ou vendas, se percebe esse detalhamento. Encontramos, também, no enredo de literaturas sobre a época essa forma de descrever o negro escravizado: “[...] vestido com simplicidade, a camisa de algodão por cima das calças de riscado, os pés espalhados nas sandálias abertas, tinha, contudo uma dignidade natural, própria da sua figura esguia [...] destacava-lhe a orelha pequena, o pescoço rijo alongando-se para o ombro, os lábios carnudos levemente avermelhados, o nariz meio achatado [...] a pele muito negra [...] confirmativa da estirpe superior da sua raça africana [...] só por traição jogados um dia no porão de um navio negreiro [...]” (MONTELO, 1979, pp.155-156). Parece ser uma característica da época, como podemos ver nesse trecho do romance Os Tambores de São Luís.
fugidos: altura, forma de corpo, pés, mãos, cabeças, dentes, modo de falar, gesticulação.
Esse detalhamento das características dos escravos deve estar
diretamente ligado à representação de “mercadoria” que eles carregam, pois
enquanto “um bem” eles precisam ser recuperados o mais rápido possível em caso
de fuga.
Nessa lógica, se for necessário e/ou lucrativo vendê-los ou alugá-los, é
necessário que sejam dotados das melhores qualidades, sejam físicas ou de
personalidade, pois convinha ressaltar as “vantagens”, escamotear os “vícios”,
transformando os ditos em excelentes produtos:
Os anúncios foram sintomáticos desta questão, ao venderem seus escravos, os anunciantes qualificando-os enquanto mercadorias, como sem vícios, de bons costumes, boa conduta e qualidade, trabalhador, de boa figura, sem defeito, moléstia ou lesão alguma; e para comprá-los, exigindo que fossem muito fieis, ágil e sadio, que não fosse bêbado, ladrão, fujão. Todas estas são características que designam um escravo e chegam a ser consideradas como próprias dessa 'classe' (FERREIRA, 2007, p.55)
Mesmo com todo arsenal de informações disponíveis para estudos, o qual
pode ser encontrado nos jornais, se entende que esse material deva ser analisado
com a devida cautela e parcimônia necessária, já que nos casos de venda, aluguel
ou troca de escravos suas qualidades eram ressaltadas, a fim de se obter o melhor
negócio possível. Aliás, desde a chegada dos lotes de africanos aos nossos portos,
os comerciantes já se preocupavam com essas tentativas de engodo25.
Nesses anúncios, “[...] suas mentiras, são, porém, mais sutis”
(FREYRE,1979, p.18), ou seja, há deformações da verdade, com o intuito de
esconder idades de escravos, suas reais condições de saúde e vitalidade, suas
predisposições e habilidades para serem empregados em serviços domésticos ou na
lavoura, etc.
Importante lembrar que esses problemas podiam advir da penosa
travessia do Atlântico, já que era necessário reduzir ao máximo o estoque de víveres
25
Devido a essas artimanhas, os compradores tentavam prevenir-se de maus negócios. Portanto, encontramos relatos de que os mesmos preocupavam-se “[...] em fazer os negros, quase nus, muitos só de tanga, escancararem os dentes, botarem a língua de fora, saltarem, tossirem, rirem, dançarem [...]” (FREYRE,1979, p.20), com o intuito de avaliarem a real condição dos lotes que pretendiam adquirir.
e água a bordo economizando assim, espaço para caberem mais peças, o que,
invariavelmente levava a casos de inanição e várias doenças entre os subjugados26 .
Levando-se em consideração essas questões nos casos de fugas em que
havia a necessidade de recuperação do escravo, geralmente as características
descritas se aproximavam ao máximo da realidade. Era importante ressaltar, de
forma nua e crua as piores características do fugitivo, pois “[...] fosse o anunciante
embelezar a figura do fujão que era capaz de ficar sem ele para toda a vida”
(FREYRE, 1979, p.26).
E, nos anúncios presentes nos periódicos maranhenses, não se foge à
regra: aqui também se ressalta tais características, em toda a sua plenitude. É
relatado o tempo da fuga, como ele se trajava, aonde poderiam ter ido, quais sinais
apresentava no corpo, como é o seu temperamento, sua idade, quem é o seu
senhor e, principalmente que haverá recompensa para quem o trouxer, as tais
“boas alvíssaras”.
No anúncio abaixo, além da descrição física - como de praxe - verifica-se
o detalhe dele ser mulato claro e, especialmente, do fato do mesmo andar bem
vestido para passar como liberto.
Fugio em Dezembro de 1834, hum escravo de nome Marcelino, molato claro [...] 22 annos alto e robusto, cabeça pequena e de cabellos ingrovinhados,cara puxada, pouca barba, olhos negros subrancelhudo, nariz afillado, beiços grossos, pescoço um tanto comprido, joelhudo e pez direitos [...] anda bem vestido para passar como liberto [...] quem o pegar e apresentar terá boas alvíssaras [...] (ECHO DO NORTE, 29.05.1836).
Ou se reconhece nos anúncios abaixo, não somente as características do
sujeito, como os defeitos físicos que o mesmo traz, provavelmente resultante de
trabalhos penosos ou mesmo castigo, onde lhe foi deslocado o pulso. Mas também
se avisa que o mesmo possui alguns ofícios.
Em julho de 1831, fugio desta cidade hum cafuz amulatado [...] cabello alaranjado, de nome Wenceslau, crioulo de Alcântara [...] 30 annos, estatura ordinária para mais baixo que alto, a cabessa traz por cima da nuca muito sahida para fora como uma ponta de martello; uma das juntas da munheca foi deslocada, ficando na mesma parte a mão torcida para um dos lados [...] cicatrizes de assoutes nas nadigas e coxa, uma das pernas quebrada na
26
“[...] se desenvolverem entre os negros, principalmente entre os moleques e crias que sobreviviam ao horror de tais viagens, doenças e deformações [...] o ‘mal-de-luanda’, o escorbuto, as ‘pernas tortas’, os ‘braços finos’ os ‘joelhos tronchos’ [...] cabeças deformadas, cabeças quadradas [...] peitos estreitos, as doenças dos pulmões” (FREYRE, 1979, p. 23).
junta [...] as pontas dos pés metidas para dentro [...] alfaiate, tecelão e também entende de carpina e vaqueiro [...] quem dele souber [...] (ECHO DO NORTE, 24.08.1836).
No caso abaixo, devido o escravo representar uma mercadoria, um bem
para seu dono o mesmo não desiste de recuperá-lo. Quatro anos depois, o escravo
fugido ainda é procurado, sua fuga e características ainda são anunciadas nos
periódicos ludovicenses.
A D. Maria Clara Alves F. de Alcântara, fugiu haverá quatro annos hum preto escravo de nome Ventura, idade pouco mais ou menos 36 annos, espadaúdo, cabeça chata, baixo, um pouco fulla e he crioullo [...] (CHRÔNICA MARANHENSE, 20.05.1840).
Reitera-se que os anúncios continham toda a identificação possível do
negro fujão, cujo intuito era recuperá-lo o mais breve possível, por isso “[...] a
linguagem dos anúncios de negros fugidos, é franca, exata e às vezes, crua [...]
minuciosa e até brutal nas minúcias” (FREYRE, 1979, p.26). E, usando essa
linguagem brutal para localizar esses negros, detalhavam suas marcas de castigos
ou tribais, algumas trazidas da África, suas deformidades por causa do trabalho
penoso e o que mais pudesse ajudar na localização dessa mercadoria27.
Convém lembrar que quando se trata de vender, comprar ou alugar esse
escravo, a linguagem e o enredo do aviso se alteram. Ele passa a representar as
conveniências do negócio, mostra as melhores características do sujeito, amplia a
capacidade e o “profissionalismo” que o escravo possui para diversas tarefas.
Era comum que o proprietário de escravos direcionasse seus cativos para
o aprendizado de ofícios e em pouco tempo tirasse proveito dessa condição do
escravo. Conforme esclarece Ferreira (2006, p.44) “[...] os escravos são cada vez
mais cedo entregues aos mestres profissionais para aprenderem um oficio que
futuramente dariam grandes lucros aos seus senhores pelo aluguel de seus
serviços”.
27
“[...] Um fato é evidente: um número considerável desses escravos eram indivíduos em quem o excesso de trabalho deixara marcas ou deformações profundas [...] destaca-se em muitos anúncios, o estigma do trabalho: a deformação por assim dizer profissional das mãos, dos pés, do andar, do corpo inteiro do escravo [...] de nome Joaquim, torado por não ter dedo nos pés, por ter amassado cal com os mesmos e a cal lhe ter aberto feridas e comido os dedos [...] dois molequinhos fugidos, todos dois com “crôa na molleira de carregar areia [...] de muitos negros fugidos, o anunciante dá como traço identificador a marca de surra, a ferida ou cicatriz de “anjinho” de tronco, de corrente no pescoço, de ferro nos pés [...] as tatuagens, os talhos, as marcas de fogo de tribo ou nação africanas de sua origem, os sinais de ferros quente dos compradores” (FREYRE, 1979, p. 29-30; 34-35).
Nesses discursos – os anúncios de compra, venda e aluguel - nada de
depreciar os escravos, nada de defeitos físicos, nada de “maus modos”, somente
boa saúde e vitalidade. O negro era visto como detentor de bons ofícios, dentre
outras qualidades, como nos exemplos transcritos a seguir.
Quando se vende ou aluga, se ressalta as qualidades das negras. As
mesmas são oferecidas, levando-se em conta suas habilidades para cozinhar, lavar,
passar. Ou a escrava pode ser oferecida com um detalhe a mais: é excelente
doceira, além de boa para serviços de casa.
Manoel Luis dos Santos [...] tem para vender duas negras [...] huma sabe bem lavar gomar e cosinhar [...] a outra sabe lavar e serviço de rossa, idade de 20 a 24 annos [...] pode dirigir-se à dita casa (A ESTRELLA DO NORTE DO BRASIL, 27.03.1830).
Quem quizer comprar uma negra com as habilidades de boa rendeira, boa doceira, boa cosinheira, coze, e lava alguma coisa mal [...] tem um filho mulato de 14 annos bom para ofício [...] (ECHO DO NORTE, 29.09.1834).
Nos anúncios a seguir, os escravos oferecidos estão relacionados a
algum tipo de ofício, tanto para quem deseja comprar como para quem quer vende-
los: pode ser oleiro, próprios para trabalho na roça, alfaiate, etc. Mas é necessário
ser sadio, com bons costumes, além de que pode ser adquirido a prazo.
Quem pretende comprar um escravo abil para vaqueiro, fale a Joze Martins de Lemos [...] Quem tiver algum escravo oleiro [...] que saiba fazer telha e tijolo e o quizer vender, pode dirigir-se a [...] (CHRÔNICA MARANHENSE, 13.10.1839). Vende-se hum escravo molato official de alfaiate, sadio, de bons costumes, de idadde de 20 a 21 annos, quem o pretender [...] Joze Maria Faria de Mattos preciza comprar hum escravo de bons costumes [...] (CHRÔNICA MARANHENSE, 29.03.1940). Antonio Pinto F. Viana [...] tem escravos ladinos, próprios para roça, para vender a vista ou a prazo boas firmas; e entre elles hum preto official de pedreiro e de carapina (CHRÔNICA MARANHENSE, 05.02.1841).
Mas, quando se analisa esses avisos e suas nuances, os ditos e não
ditos, uma questão precisa ficar clara: é necessário lembrar que nessa época não
havia a contestação da escravidão, a ninguém perpassava a ideia de que havia algo
errado. A sociedade era escravocrata, pautada na mão de obra escrava com todas
as prerrogativas necessárias ao senhor.
Por isso, existia a “[...] condição dos cativos, considerados propriedade e
comparados a animais, dos quais seu senhor tem supremo poder, sem direito a
ações ou mesmo pensamentos próprios” (FERREIRA, 2007, p.54), algo que não
causava espanto ou mesmo incômodo a essa sociedade. Ou, como diz Farias
(2010, p.17), os escravos eram do ponto de vista dos direitos, “[...] iguais ao gado, à
enxada e a quaisquer instrumentos de trabalho nas mãos de um senhor, que deles
poderia fazer o que bem quisesse”.
Todavia, um fato importante a ser mencionado é que segundo Freyre,
(1979, p.16), com o passar dos anos – e quanto mais recrudescia a campanha
abolicionista - esses anúncios sobre escravos foram diminuindo a intensidade e
desapareceram aos poucos. Ainda de acordo com o autor, os jornais foram aderindo
ao movimento emancipador e “[...] os negros fugidos foram se sumindo aos poucos,
escondendo-se nos cantos das páginas [...] deixando de aparecer com títulos em
negrita [...] Até que desapareceram de todo. Era a Abolição que se aproximava”.
Opinião igualmente partilhada por Soares (1988, p.4) ao dizer que “[...] a
publicação nos jornais dos anúncios dos escravos (vendas, compras, leilão, fugas)
reduziu-se paralelamente à desintegração do escravismo no Brasil”. Essa sociedade
– assim como as ações de proprietários dos folhetins e seu rentável negócio dos
avisos – começa a perceber essa mudança e seu inevitável desfecho.
Não é necessário se concentrar nesse pormenor por não fazer parte da
proposta deste trabalho além de fugir à temporalidade escolhida. Inclusive, porque
uma das pretensões nesse estudo após se pesquisar e transcrever tantos avisos, é
mostrar que a partir dali se forjaram imagens negativas sobre o escravo, as quais
permanecem até os dias atuais, engendrando diferentes conflitos raciais.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
É perceptível que o africano, o negro e o escravo tiveram suas imagens
fundidas. Elas foram diluídas a partir das representações sociais construídas em
mais de três séculos de escravidão em nosso país. Obviamente que, durante a
análise nos periódicos maranhenses, se encontrou essas características
representativas impregnadas nos mesmos.
As imagens disseminadas pelos anúncios de jornais do início do Século
XIX – anos 1831 a 1840 – ajudaram a construir percepções acerca desses sujeitos
escravizados as quais perduraram ininterruptamente, encaminhando-os fatalmente à
discriminação e ao preconceito. Sequer foram levadas em consideração as
situações degradantes as quais os negros foram submetidos, já que se está a
dialogar acerca de uma sociedade patriarcal, pautada na mão de obra escrava,
situação considerada absolutamente “normal”.
Os jornais e seus anúncios foram uma espécie de instituição efetivada a
partir de várias nuances: a intelectualidade reinante no período, a necessidade da
informação, o sistema escravista plenamente inserido no imaginário popular, entre
outros.
Mais interessante é o poder que a imprensa jornalística ainda possui:
basta uma olhada nos jornais atuais para se captar as imagens negativas do agora
chamado afro descendente, disseminadas indiscriminadamente contribuindo para o
preconceito.
A partir do momento em teorias raciais adentraram o país, ameaçando o
futuro deste, os intelectuais de várias áreas saíram em “campo” para estudarem as
tais raças inferiores ou mestiçagem e tentar encontrar algo que fosse a cara desse
país.
No final do século XIX foram muitas as situações controversas
envolvendo a mistura das raças. Pode-se dizer que todo esse processo ajudou a
gerar os pensamentos raciais. Ferreira diz que houve uma espécie de divisão, a qual
ajuda a:
[...] evidenciar o preconceito que marcou todo o século XIX, o eurocentrismo que colocava de um lado o europeu civilizado e cordato, e do outro o
africano bárbaro e violento, um jogo de imagens contrárias que foi bastante utilizado nos discursos dos jornais (FERREIRA, 2007, p.32).
Sempre houve uma estrutura social baseada na permanência do escravo,
a qual perdura até os dias atuais. Para Lopes (apud LIMA; ELIAS 2010, p.53),
muitas atitudes atuais ainda permitem que se relacione intrinsecamente negro e
escravo. O “elogio à mestiçagem” em detrimento da cultura negra é uma dessas
formas, algo que camufla a desigualdade racial ainda existente e diminui o avanço
dos direitos civis dos negros. Ainda de acordo com Lopes (apud LIMA; ELIAS 2010,
p.55), “[...] outra coisa perversa é um incensamento da periferia, da cultura de rua.
Em vez de trazer essas manifestações para o centro, acham melhor deixar ela lá,
onde não incomodam [...]”.
Felizmente há uma enorme tentativa de se repensar conceitos arraigados,
de se revisar a literatura específica – e se incluir outras fontes “não oficiais” - de se
refazerem determinadas imagens construídas ao longo do tempo. Afinal, são
construções históricas alicerçadas fortemente na mentalidade escravocrata, por
mais de três séculos. E ainda persiste no imaginário que o negro e escravo são um
só, que estão intrinsecamente ligados, que o negro está relacionado à violência, à
sensualidade!
Mas, apesar de tudo, há projetos de inclusão e autonomia sociais
referentes aos negros. A educação é um deles e desde o Império já se pensou
nisso. Segundo Reis (2004), o jurisconsulto Perdigão Malheiros já questionava de
que forma as crianças negras poderiam se tornar futuros cidadãos, que educação
receberiam e como deveria ser essa educação28.
Para Santos, possuir, valorizar a educação formal foi uma das técnicas
sociais - ou estratégias – para ascender verticalmente “[...] houve uma propensão
dos negros em valorizar a escola e a aprendizagem escolar como um ’bem supremo’
[...] um ‘abre-te sésamo’ da sociedade moderna [...] (2005, p.22). A escola adquire
28
SILVA (2010, pp.80,81) nos diz em “Uma escola diferente” que: “A pedido de pais de alunos, em
1853 foi aberto no Rio de Janeiro um colégio para ‘meninos da cor preta e parda’ [...] o ingresso e a permanências das populações não bancas nas escoas brasileiras mobilizam importantes discussões [...] no tempo da escravidão, um grupo de pais de meninos ‘ pretos e pardos’, [...] enfrentou o desafio de escolher um professor ‘preto’ para seus filhos [...] e de ajudá-lo a manter uma escola específica para eles [...] o professor relata que em algumas escolas ou colégios, os pais dos alunos de cor branca não queriam que seus filhos ombreiem com os de cor preta [...]”.
um status de ascensão social para esse negro ansioso em superar a séria exclusão
social a que foi submetido.
Felizmente um logo caminho já foi percorrido e hoje é possível se pensar
em melhorias nessa área, dentro das chamadas ações afirmativas. O sistema de
cotas para o excludente ensino superior do país é uma dessas ações.
Desde 1995, começou-se a falar das tais ações afirmativas, mas apenas
2,2% dos pardos e 1,8 % dos negros estavam diplomados ou nas universidades
contra 11,4% dos ditos brancos. Essas distorções chamaram a atenção e foram
buscadas formas de atenuar ou resolver o problema. Agora [...] a nova regra, até
2016, 50% das vagas das universidades federais serão reservadas para alunos de
escolas públicas, sendo até 25% para negros [...] (COSTA, 2012, pp.86-87)
Ele indica outras situações que mostram melhorias no universo
afrodescendente: a lei nº 10.639 de 09 de Janeiro de 2003, sancionada pelo então
Presidente da República Luis Inácio Lula da Silva, alterando a Lei nº 9.394/96,
acrescendo-lhe alguns artigos29. A dita Lei rege que no ensino fundamental e médio,
tanto oficial como particular torna-se obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-
brasileira, incluindo a História da África e dos africanos. Outrossim, estabelece o dia
20 de Novembro como “Dia da Consciência Negra”.
E em outros aspectos já se percebe avanços relacionados às políticas de
inclusão. O respeito às religiões afro é mais um desses fatores: atualmente a
tolerância às religiões afro alcançou um nível admirável, onde é possível falar
abertamente sobre, praticar, divulgar, pesquisar cientificamente inclusive em
grandes instituições de ensino superior. Chegou-se ao nível de possuir a Umbanda30
como a primeira religião brasileira. Mas antes, a situação era absolutamente
desfavorável:
29
LEI nº 9.394/96 - Art 26-A, Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-brasileira; §1º O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. §2º Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras Art 79-B O calendário escolar incluirá o dia 20 de Novembro como “Dia da Consciência Negra”. 30
A umbanda é considerada uma religião tipicamente brasileira. Surgiu no início do século 20, em
centros urbanos da região Sudeste e pode ser entendida como uma religião formada pela mistura das crenças e práticas do Candomblé, do Kardecismo (Espiritismo), da chamada macumba carioca e seus rituais afro-indígenas, do catolicismo popular (Projeto História da PUC – Programa de Estudos Pós Graduados em História).
[...] o africano Manoel liderou uma insurreição quilombola no vale do Paraíba em 1838 [...] sua liderança pode estar relacionada a elemento os culturais [...] essa influência talvez significasse reconhecimento de alguma função religiosa [...] quase sempre acusados de feiticeiros, esses líderes realizavam rituais para recém nascidos, curas, diagnósticos, para enfermidades [...] preparavam feitiços para proteção contra mordidas de cobra, ataques de animais, acidentes de trabalho, inveja de companheiros ou a ira de feitores e senhores[...] (MACHADO; GOMES, 2010, 28-29 – Grifo nosso).
Sempre é imprescindível lembrar que essas conquistas atuais é uma
“resposta” às imagens imprecisas e negativas acerca do africano/negro/escravo as
quais foram forjadas desde o tempo da escravidão e estavam expostas nos
anúncios dos jornais, segundo Ferreira (2007, p.36):
O preconceito realmente existia nessa sociedade, é nisso que os portugueses chamados, no artigo, de "Marinheiros e Corcundões", se fundamentaram e aproveitaram para atiçar a “gente de cor” e criar cisões entre as camadas populares e os liberais maranhenses. Muitos estigmas recaíam sobre os mulatos no Maranhão, considerados como ‘classe perigosa’, e chamados sarcasticamente de cabras ou bodes.
Sabe-se que a capoeira ganhou o mundo a partir do Brasil, mostrou a
ginga da afro descendência, é praticada em escolas, ONG’s e instituições, mas já
foi perseguida e seus praticantes confundidos com facínoras:
A “luta” que lembrava o passado escravocrata e colonial aparentemente destoaria dos textos e fotografias que serviam como uma reafirmação do projeto de modernizar o país [...] O artigo “A capoeira” assinado pelo escritor simbolista Lima Campos [...] ilustrações do caricaturista Calisto Cordeiro (1877-1957) [...] trata de inseri-la no melhor das nossas tradições brasileiras e recompor um quadro em que o capoeirista deixa de ser um elemento perigoso, pertencente a maltas sanguinárias, para se tornar um símbolo unificador da nação. [...] o escritor revela seu verdadeiro objetivo: transformar a capoeira em um símbolo de um Brasil mestiço (DEALTRY, 2010, p.62-63).
Ou se pode citar o samba. Foi muito criticado pelos requebrados sensuais
das negras no início do século XX e por ser derivado da cultura negra, mas hoje é
usado em salas de aula especialmente o chamado samba enredo. Catani (2010,
p.80-83) diz que a maioria dos sambas enredo continuou falando sobre os fatos
históricos brasileiros:
Sambas-enredo abrem inúmeras possibilidades de interpretação histórica e inspiram atividades de sala de aula [...] Sempre às voltas com assuntos
históricos, os sambas de enredo funcionam como uma ferramenta didática diferenciada [...] se o carnaval criou escolas para ensinar samba, por que o samba não pode virar instrumento pedagógico?
Enfim, é possível se falar de vários eventos de políticas públicas de
inclusão, conquistadas pelos afro descendentes nos dias atuais. Sempre lembrando
que essa luta é de todos e que essas imagens negativas que permaneceram, advém
das imagens e das representações negativas construídas em mais de três séculos
de escravidão africana.
Mas essa luta por melhores condições de vida, políticas públicas,
inserção – social, profissional, religiosa, educacional e outras – ainda é incipiente.
Há um longo caminho a ser percorrido e que muito do que é “oferecido” pelo Estado,
muito do que é bandeira de luta do Movimento Negro continua aquém do
necessário.
Afinal, “[...] os negros ajudaram a construir esta nação. A independência
também foi conquistada pelos homens de cor! Eles deram seu suor e seu sangue
para que o Brasil prosperasse e se emancipasse [...]” (MONTELO, 1985, p.349).
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ANEXOS
ANEXO A – Depoimento do Sr. Raimundo Nonato – Comunidade
Itamoari, de Cachoeira do Piriá – PA (Encerramento do I Encontro Nacional de
Lideranças das Comunidades Remanescentes de Quilombos Tituladas)31.
“Muita coisa no nosso país é herança da nossa raça, não só do ponto de
vista cultural, mas do ponto de vista econômico, porque afinal nossos ancestrais é
que durante muito tempo eram a única força econômica no país, eram a única força
de trabalho existente no país. Então, na verdade, a gente construiu este país em
todos os seus aspectos. Alguém já falou aqui ontem: ‘Os nossos ancestrais
trouxeram a metalurgia’. Tudo isso foi apagado, e a gente não aprende isso, aqueles
que tem a felicidade de chegar aos bancos das escolas, da escola de hoje com o
currículo de hoje, não aprende essas coisas. Aqueles que chegam aos bancos das
escolas com esse currículo de hoje, às vezes, são capazes de sair pensando que
negro é sinônimo de escravo, que africano é sinônimo de escravo, e não é assim,
quer dizer, os africanos foram tornados escravos por causa de uma contingência
política, econômica, sobretudo econômica por causa da colonização europeia.
Poderia não ser africano, poderia ser um outro continente. Da mesma forma como o
continente americano foi invadido por causa dessa política e muitas comunidades
indígenas foram dizimadas, nós, também estamos aí nesse caldo, mas não somos
inferiores a ninguém. Por isso, temos que ter tratamento igualitário, tratamento
equânime, por isso nós queremos ter direito à cidadania plena. Só que para isso,
nós temos várias tarefas, porque além da gente lutar com o Poder Público para que
ele resgate conosco a dívida que tem com a nossa população, nós temos que
demonstrar à sociedade que o resgate dessa dívida não é um favor, é um direito à
justiça. A sociedade considera que a pobreza e a indigência é o nosso lugar normal,
e isso nós temos que mostrar que não é normal, nós fomos jogados a esse lugar
mas não queremos ficar nele e vamos trabalhar para sair dele. Trabalhar para ter de
fato tratamento igualitário, vamos trabalhar para que a nossa Constituição brasileira
31
I Encontro Nacional de Lideranças das Comunidades Remanescentes de Quilombos Tituladas –
Organizado pelo Ministério da Cultura/Fundação Cultural Palmares, em parceria com o Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA, por intermédio do Instituto de Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA e representantes quilombolas de várias comunidades brasileiras, representantes de órgãos governamentais, militantes da causa negra,nas suas mais diversas vertentes e parlamentares comprometidos com a causa quilombola. Brasília, de 12 a 14 de Dezembro de 2001 (Fundação Cultural Palmares, 2002, p.7).
possa por em prática aquela grande máxima que diz que todos são iguais perante a
lei. Muitos de nós não fazemos juz nem a esse preceito máximo da Constituição.
Então precisamos de uma série de lutas para conseguir alcançar esse patamar de
igualdade, para podermos fazer juz àquela igualdade que é o preceito máximo da
Carta Magna. Para isso a gente precisa lutar, a gente não tem que deixar o estado
nem a União dormirem tranquilos. Quando eu falo Estado, é a União, é o nosso
Estado lá, é o Mato Grosso, é Pernambuco, é a Bahia. A gente não pode deixar que
os dirigentes durmam tranquilos, a gente tem que ir lá aperrear em Cachoeira do
Piriá para que tenham políticas públicas para nos beneficiar, para nos valorizar.
Políticas Públicas específicas para valorizar a população negra, nós temos esse
direito e isso significa justiça. Esse povo que assume o poder e que passa a ser a
elite dirigente tem uma obrigação para com a população negra, e se a gente não
estiver lá batendo na porta, lógico que as coisas não vêm às nossas mãos; ou a
gente vai e luta – e não deixa ninguém dormir tranquilo enquanto a gente não tiver
tranquilidade – ou então as pessoas não vão dar de mãos beijadas, nada para nós.
A sociedade está tranquila com a nossa situação, e a gente está lá, ‘fumado’, sem
título de terra, sem acesso à saúde, sem acesso a educação, mas a sociedade
dorme tranquila e ninguém se preocupa com isso, porque no imaginário dessa
sociedade, aquele é o nosso lugar. Só que nós temos que reverter esse quadro, nós
temos que mostrar que aquele não é o nosso lugar, e nós não queremos mais ficar
nele. Nós temos que reverter isso. Mas enquanto a gente também se conformar que
aquele é o nosso lugar, é claro que ninguém vai dar nada pra gente. Na hora em que
se fala de cota, voces já que a cota assanha, aí todo mundo começa a falar. Parece
assim que está todo mundo dormindo tranquilo e de repente, ‘Cota para negro!
Peraí! Tá querendo o quê?’. Não, nós temos cota sim, só que nós temos cota zero.
Só que quando se fala de cota 20%, 30% para a população negra, aí a sociedade
acorda, porque no imaginário dessa sociedade, se negro tiver cota preferencial de
20%, 30%, seja o que seja, em tese ele está tirando o lugar daquele que se
considera dono daquele privilégio, o legítimo dono daquele direito. Então ‘cota para
negro em universidade’, 20%, aí o negócio pega, aí todo mundo acorda, mas não
pode, ‘porque vai facilitar que negro entre, imagine eu, que nem negro sou, sou até
claro, não cheguei na universidade, como é que negro vai entrar?!’ Então aquele que
se considera claro, ele acha que ele é o legítimo dono, então a gente tem que
reverter tudo isso e o esforço é muito grande. Nesse sentido vocês podem se
articular com os movimentos negros que existem na área mais urbana, ir às
secretarias de saúde, exigir treinamento de agente de saúde, e junto com o
Movimento Negro da área urbana, que sabe onde está a Secretaria de Trabalho. A
Secretaria de Trabalho recebe dinheiro do FAT e nesse recurso existe uma linha de
qualificação para a comunidade quilombola, então a gente tem que ir lá cobrar e
acompanhar isso. Não é só o Carlos Moura ou a Zélia que a gente tem que aperrear;
a gente tem que aperrear o Carlos Moura, a Zélia, a gente tem que aperrear todo o
Estado em todos os níveis, município, federação, o Estado de cada um e a União,
todos tem que ser pressionados para que a gente, de fato possa alcançar uma vida
digna. Obrigado.”
ANEXO B - Viagem de um Naturalista Inglês ao Rio de Janeiro e Minas
Gerais (1933-1835) - Charles James Fox Bumbury32
“Durante a minha estada neste país ouvi falar de diversos casos de
assassinatos, cometidos principalmente por escravos e mais por motivos de
vingança do que com o fim de roubo. Contaram-me casos notórios de homens que
empregavam os seus escravos para assassinar pessoas contra as quais tinham
ódio. Tão imperfeitas são a polícia e a administração da justiça que geralmente
esses ficam impunes. Com relação à condição e tratamento dos escravos no Brasil,
não posso dar informação alguma muito segura. Ouvi narrações muito contraditórias
feitas por diferentes pessoas residentes no país e as minhas próprias oportunidades
de observação não me permitem chegar a qualquer conclusão satisfatória. Sem
dúvida, ouvi falar de alguns casos de crueldades atrozes, mas não tenho meios para
julgar se esses casos eram exemplos ou exceções à regra.
Uma cousa podemos concluir com segurança: o senhor, tendo poder
ilimitado e irresponsável sobre seus escravos, é contrário à razão supor que muitas
vezes ele não abuse desse poder. Não sei, de fato, se as leis ostensivamente
concedem ao senhor o poder de vida ou morte; aliás, creio que não; mas se as leis
são tão ineficientes para a proteção dos cidadãos livres, é claro que não podem
oferecer segurança alguma a uma infeliz raça de homens que são privados de todos
os direitos sociais e políticos. Uma circunstância que parece indicar que a condição
dos escravos, se torna, muitas vezes, insuportável, é o número muito elevado de
fugitivos; quase que não se pode pegar um jornal do Rio sem ver os anúncios a
respeito deles. As florestas do Corcovado são o refúgio mais comum dos negros
fugidos, que, muitas vezes, dizem, roubam e maltratam as pessoas que encontram
pelos caminhos. Há alguns anos antes, eles ali se juntavam em tão grande número
que se tornaram o terror da vizinhança, frequentemente descendo e assaltando as
casas no vale; afinal o governo foi obrigado a mandar um destacamento de 200
soldados para capturá-los.
32
O autor partiu de Falmouth em Junho de 1833, fazendo uma viagem rápida e agradável, avistando
a 17 de julho, a cidade de Cabo Frio no Rio de Janeiro. O navio aportou em Cabo Frio nessa data e no Rio de Janeiro no dia 18/07/1833. No Jornal do Commercio, de 19/07 do mesmo ano, consta o
nome do paquete inglês Reynal, aportando entre nós.
A Constituição proíbe o uso da tortura, açoite, marcação com ferro em
brasa, e todo castigo cruel; mas essa disposição humanitária se aplica apenas aos
livres. Um senhor que não quer ele mesmo castigar os seus escravos pode mandá-
los para a prisão a fim de serem açoitados pelo carrasco. Nenhuma acusação feita
por um escravo contra ao seu senhor pode ser aceita; nem pode o escravo ser
testemunha em tribunal de justiça, assim, pelo menos, era a lei quando estive no
Brasil”.