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Reflexões a partir de falas de crianças após assistir um filme de Sembéne Ousmane chamado 'a negra de' (1966).

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Page 1: Uma Experiência Filmica Na Escola - Diogo C. Dos Santos

*Estudante vinculado ao Departamento de História da Universidade Federal Fluminense - UFF, bolsista no Programa de Bolsas de

Iniciação à Docência (PIBID/História), atua como antropólogo junto à 'povos da floresta', indígenas, Caiçaras, Quilombolas.

Uma experiência 'filmica' na escola

(Diogo Campos dos Santos*)

Conheci alguns filmes do cineasta senegalês Sembène Ousmane durante um curso de

História e Cinema, ministrado pela professora Marina Annie Martine Berthet Ribeiro, na graduação

em História no período 01/2015, na Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro.

Escolhi então um filme deste cineasta para fazer um trabalho de discussão com alunos numa

turma de nono ano na Escola Municipal Rachide Salim da Glória Saker, em Niterói-RJ, onde

desenvolvi atividades pelo PIBID – História na mesma universidade, supervisionado pelo professor

de História Hugo Rosa e coordenado pela professora Juniele Rabêlo, utilizando o cinema para

provocar debates reflexivos sobre temas curriculares, no caso relações coloniais, entre os europeus

e os mundos africanos e ameríndios. No caso trabalhamos com um filme 'africano' mas em outras

ocasiões também fizemos movimentos parecidos a partir de filmes indígenas produzidos no Brasil.

O filme foi dirigido por Sembéne Ousmane, autodidata convicto em todas as suas atividades,

desde a estiva à poesia, passando pela escrita de livros e longa lista de produções audiovisuais.

Situado como um dos pioneiros na África em produções cinematográficas, realizou entre 1962 e

2004 quase vinte filmes.

Uma narrativa

No filme 'a negra de' (1966), Doiuana conta a nós, expectadores, sua própria história. Era

uma mulher jovem que vivia em Dakar – Senegal, na década de 1960, e saiu de sua comunidade

para procurar trabalho com “os brancos”. Ao encontrar trabalho e passar algum tempo cuidando dos

três filhos de um casal francês, Doiuana aceita o convite para ir trabalhar com eles na França e se

encanta com as possibilidades de ter um salário melhor, conhecer pessoas, lugares, comprar coisas e

mandar algum apoio financeiro para sua família em Dakar.

Rapidamente percebe-se fazendo todas as tarefas da casa, um apartamento pequeno, sem ter

um minuto do dia para fazer suas coisas. O tempo passa e Doiuana não recebe salário, não sai de

casa e conhece Paris apenas entre o quarto de empregada, a sala, a cozinha e o banheiro.

Recebe tratamentos abusivos, inclusive por amigos do casal, tratando-a como costumamos

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tratar a um animal, com certo ar de exotismo, negando-lhe inclusive a condição de pessoa.

A situação piora com o passar do tempo pois a patroa começa a se revelar mais agressiva e

violenta a cada dia, coibindo atos os mais simples de Doiuana, como por exemplo arrumar-se

impecavelmente. Ela o fazia na esperança de se posicionar como uma pessoa “igual”, que esperava

sair, se divertir e conhecer lugares, pessoas e coisas.

Ao fim Doiuana atenta contra a própria vida cortando os pulsos na banheira do casal

recorrendo ao suicídio como resposta à profunda crise vivida. E a diferença entre certos valores

ocidentais e outros não-ocidentais, que muitas vezes chamamos de tradicionais, fica clara e evidente

quando o marido da patroa, o patrão, vai à Dakar levar de volta alguns pertences de Doiuana e

algum dinheiro e encontra recusa por parte da mãe de Doiuana em recebê-lo.

Vamos tentar falar?

Após assistir o filme com as crianças começamos a conversar e fizemos uma lista com os

nomes das que estavam ali. Pedi-lhes que pensassem, e dissessem, alguma palavra ou expressão

que, de certa forma, condensasse o que pensaram ao assistir o filme. Fui escrevendo uma lista de

nomes e palavras num documento de texto projetado na mesma sala, legível a todas.

Logo em seguida voltamos ao início da lista e perguntei, uma a uma, se elas poderiam

lembrar de alguma passagem da história de Doiuana ligada às palavras que representam o que elas

imaginaram, ou pensaram no primeiro momento após assistir o filme.

Entendendo o discurso como um lugar privilegiado onde encontramos elementos

surpreendentes sobre como e o quê pensamos sobre “nós” e sobre os “outros”, e sobre como

criamos imagens do mundo a partir, e também de filmes, recorri a essas falas para pensar que

efeitos, nítidos em seus enunciados, esse filme pôde provocar-lhes e em que pontos elas são

afetadas pelos sentidos cinematográficos mobilizados na construção de imagens e sons sobre alguns

tipos de 'relações coloniais'.

Um dos primeiros nomes da lista:

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Lucas diz: “Senti tristeza porque ela morre e deixa a família.”

Muitas relações comumente articuladas por nós, professores e estudantes de história, ao lidar

curricularmente com temas como colonialismos na África costumam ser pensadas em termos da

relação dos Estados-nação, e da disputa e domínio políticos que os movimentos coloniais impõe às

sociedades não-ocidentais em geral.

No registro de Lucas, sua experiência com a história de Doiuana, parece passar por outros

caminhos ou pelos mesmos caminhos mas com diferenças de grau, que geralmente objetivamos e

valoramos: se fixou na morte de Doiuana e em como isso representava deixar a sua família. Morte e

parentesco são aqui evidenciados por Lucas como antagônicos, morrer é deixar seus parentes.

Além do mais, a história do que chama-se 'humanidade' é plena de assassinatos de muitos

humanos, e muitos mais 'não-humanos'. E ainda hoje, aquilo que nossos filhos aprendem na escola

sob o nome de História Universal é, na essência, uma longa série de matanças de povos narradas

sob uma estética pseudo-salvadora sob várias formas literárias, tão enfadonhas quanto velhas,

praticamente ultrapassadas.

Seguindo adiante ouvimos o que nos diz Jayane:

“Quando a patroa começa a mandar nela, não como uma empregada mas como se ela fosse escrava dela. Ela

ser negra, eu acho que estava envolvido nisso.”

Curioso pensar que conceitos de relações tão estreitas como “colonialismo” e “escravidão”

estejam tão presentes em nossos discursos “curriculares” por assim dizer, mas que em nossas vidas

podem assumir formas as mais variadas. A fala de Jayane nos fez pensar em como certa maneira de

pensar a vida, de construir o mundo a partir do conceito, modus operandi do que Lévi-Strauss

chama de “o homem de ciência” ou “engenheiro” em oposição ao “pensador selvagem” que pensa

e constrói o mundo segundo sua “instrumentalidade”, pode nos permitir falar quotidianamente em

colonialismo[s] e escravidõe[s], sem reconhecer que esses 'conceitos sociais', que atingem o tempo

todo pessoas inclusive parentes, sejam reais, atuais e também extensíveis a outras relações, entre

certos humanos e outros humanos mas também entre humanos e não-humanos. Relações essas tão

veementemente negadas por mitos 'modernos', como o mito de que 'abolimos a escravidão' – como

se fosse concebível apenas um tipo de escravidão e uma assinatura num papel a fizesse não-existir

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mais. Ou, olhando mais profundamente, a grande separação entre natureza e cultura (Viveiros de

Castro, 2002; Latour, 1994).

Sigamos em frente. Sobre as expressões “revolta” e “falta de respeito”, ditas pela mesma,

Beatriz comenta:

“Por ela ser de uma classe menor, por ela não ter condição, a patroa acabou diminuindo ela de alguma forma.

Em questão social e econômica também, ela não tem dinheiro e está precisando daquele emprego. Eu achei isso

revoltante, de que ela (a patroa) estava fazendo pouco caso mas poderia ser ao contrário. Uma falta de respeito por a

pessoa ser pobre. Então revolta e falta de respeito.”

Vemos aqui como instrumentalizamos a utilização quase 'mágica' de certos conceitos

teóricos rumo à 'universalização'. Beatriz fala sobre as pessoas serem divididas em classes, onde

segundo sua ideia, existem “classes menores” e/ou “classes maiores” e argumentando que o critério

dessa divisão seria a posse ou não de “condições”. O que Beatriz chama aqui de “condições” me

parece ser diretamente relacionado a certas condições materiais, ou propriedade de riquezas, bens,

enfim recursos financeiros em geral. Logo em seguida ela classifica como “outra questão” o que ela

chama de “social e econômica” relacionando a ausência de dinheiro à necessidade daquele emprego

obtido por Doiuana. Num mundo de necessidades fabricadas no qual fazemos e do qual fomos

feitos, Beatriz nos indica uma necessidade fabricada e muitas vezes imposta: ter um emprego.

Logo em seguida, o que inicialmente parecem certas afirmações sólidas e com posições

rígidas sobre o lugar das pessoas no mundo transforma-se em uma posição, não relativa, mas

passível de ser pensada de outro modo, mais precisamente ao contrário. Quer dizer, ela aprende que

o mundo é assim, cindido, dividido, assim como nos é posto pela 'Constituição Moderna' onde

'moderno' é duplamente assimétrico, pois “assinala uma ruptura na passagem regular do tempo e

assinala um combate no qual há vencedores e vencidos” (Latour, 1994), mas sua resposta reconhece a

não-totalidade de certos dualismos, ou das diferenciações clássicas entre colonizadores e

colonizados, ao colocar a possibilidade das coisas poderem ser, acontecerem numa situação inversa:

a patroa poderia muito bem, como uma humana que é, encontrar-se em uma posição de sofrer o

mesmo que estava a cometer com outra pessoa. Apesar de utilizar conceitos como 'classe menor' em

oposição à 'classe maior', Beatriz não reproduz tão bem – pelo menos não tanto quanto esperado por

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alguns de seus professores, 'mestres' – o fixismo de categorias polarizadas que tanto nos é

apresentado sob formas 'naturais' ou 'da natureza' por grande parte das ciências ditas humanas, a

sociologia, a história e etc. Assim ela 'imagina', mesmo que a partir do mundo ocidental, que as

categorias “classe menor” e “classe maior” não são lugares rígidos onde Doiuana e sua 'patroa'

estariam enclausuradas, ao contrário, Beatriz supõe que o inverso também seria 'imaginável', dando

testemunho do fracasso intrínseco de 'nossa' educação colonial pretensamente totalizante.

Passemos à próxima colocação quando Evelin diz:

“Se essa mulher do filme já nasceu rica, é claro que ela vai contratar alguém de baixa classe social, ela vai

tratar como ela tratou a mulher negra. Pode ter a ver também com sofrer no passado e querer fazer alguém sofrer no

futuro.”

Nessa fala, Evelin coloca certos valores bem naturalizados, não sem grandes esforços

institucionais (digo escola, igreja e etc.), no mundo ocidental. Ou seja, vivemos num mundo onde

quem tem bens e recursos “produtivos” explora quem não os possui, segundo certas ideologias

dicotômicas detentoras de certas 'verdades' científicas - lembremos sempre: a partir da separação

entre natureza e cultura, amplamente discutida por boa parte de uma antropologia contemporânea

ou 'antropologia simétrica' (ver trabalhos de Viveiros de Castro, 2002 e 2015; Latour, 1994; Goldman, 2015).

Logo em seguida ela fala partindo de pressuposições e analogias construídas, então o que ela

expressa não vem de uma enunciação individual mas de um 'agenciamento coletivo de enunciação'

(Rolnik, 2012). Essa fala coloca algumas observações pertinentes. Muito embora Evelin seja uma

menina, diriam alguns 'genuínamente' brasileira e como tal vestida com a 'roupa' da cultura, que

deve atender aos apelos quase-irresistíveis de certa[s] identidade[s], afinal de contas são sempre

várias, 'negra', 'pobre', 'mestiça', sobrepondo-se todas na direção de uma mesma e um tanto vaga

ideia de 'unidade', algo próximo ao conceito de 'povo' enquanto 'um povo', não me parece que ela

assim [co]responde, justamente negando a homogeneização, negando-se a imaginar as coisas 'tal

como conhecemos', o Estado 'tal como o conhecemos', o mundo 'tal como o conhecemos'. Que será

que quer dizer 'realmente' a expressão 'tal como o conhecemos'? Será que ela envolve certa

naturalização de algo? E quem é esse 'nós'? 'Nós' europeus? Mas quem é europeu aqui? Será 'nós'

humanos? Mas, que humanos? Será 'nós' ocidentais? E os não-ocidentais, imaginam o mundo da

mesma maneira que 'nós'? Perguntas demais para os modernos cheios de certeza que garantimos nos

transformar através da 'purificação' (Latour, 1994), operada pelo discurso científico.

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Essa ideia de 'alguém que sofre no passado e quer que outro alguém sofra no futuro'

evocada por Evelin me lembrou que existe um ditado, particularmente sinistro em 'nossa cultura'

que diz: “eu perdoo você, mas eu não esqueço!” É a típica 'economia do perdão' no mundo cristão,

uma ideia de que você não pode esquecer que temos uma 'culpa' a priori e que é sempre resgatada

pela memória: eu te perdoo mas não esqueço! Isto é, eu não perdoo coisa nenhuma, porquê se

tivesse perdoado teria esquecido.

No universo indígena amazônico, das terras baixas da América do sul, por exemplo, isso

passa por outros caminhos: justamente por serem 'humanos' eles esquecem das coisas que lhe foram

feitas, ou da vingança que lhes é devida. Assim, sucede-se que uma aldeia está muito bem em festa,

recebendo outras aldeias e acontece uma morte. Aconteceu alguma coisa que alguém lembrou do

mal que uma certa pessoa fez à seus parentes, ou alguém que foi morto, enfim, a pessoa lembra e

volta tudo que ela sentia, porquê ela não tinha perdoado, ela tinha apenas esquecido, ou seja, é gente

humana, e portanto não pode perdoar, e também é gente feliz pois esquece as coisas. Esse exemplo,

nos permite ponderar sobre o grande problema com o mundo moderno: a homogeneização da vida

através da universalização monolítica de seus valores e preceitos. Apenas pensemos a partir de

'outros' referenciais a 'nossa' posição, afinal de contas a temporalidade moderna é “imposta a um

regime temporal que corre de forma totalmente diversa, os sintomas de um desentendimento se

multiplicam. Como Nietzsche havia observado, os modernos tem a doença da historia” (Latour,

1994).

Vivian diz: “Eu falei preconceito, eu achei preconceito o modo como a patroa trata ela. Que no começo trata de um

jeito e depois vai mudando. E ainda ela sofreu preconceito dos patrões ainda pela mãe dela quando escreveu aquela

carta falando que ela tinha uma vida muito boa em Paris.”

De muitas formas os sentidos aqui são apreendidos por cada pessoa, inclusive a

interpretação e remontagem que operamos ao tentar entender a lógica do filme e sua relação com o

tempo. O filme começa já na França na situação de vilipêndio vivida por Doiuana. Após essa parte

Doiuana assume a narração do começo da história e 'voltamos' no tempo para ver e ouvir como toda

aquela situação começou.

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Em várias falas as crianças se referem a um momento que diz respeito ao tempo ainda em

Senegal, dizendo por exemplo:

Vivian continua: “...tinha um cara lá que escreve as cartas e aparece no início.”

O “início” citado aqui pode ser o 'início do filme', ou a primeira parte, e também pode ser o

'início da história' que está exatamente deslocado para um momento posterior no decorrer do filme.

Há uma quebra na contagem linear do tempo, instituída pelo diretor, que move noções de “início”

que não necessariamente dizem respeito ao princípio do filme. Assim podemos pensar que o escritor

de cartas da comunidade de onde vem Doiuana, aparece num momento inicial da narrativa o que

não necessariamente é o mesmo lugar do início do filme.

E segue Vivian:

“porque a mãe dela imaginava que ela tava vivendo uma vida boa e esqueceu da família, como aconteceu com a rica: o

dinheiro subiu a cabeça dela e ela mudou totalmente o modo.”

Aqui, segundo Vivian, parece que o momento inicial da história deslocado para a segunda

parte do filme, do início das relações de trabalho estabelecidas em Dakar entre Doiuana e a patroa

francesa ficou marcada uma mudança não apenas nas expectativas frustradas de Doiuana mas

também na relação entre elas, com um detalhe: para Vivian houve uma certa “ascensão” da patroa

ao mudarem-se de volta para a França. O que é caracterizado aqui como ascensão, volta à França e

ao modo de vida 'moderno', é revelador de outra patroa, uma mulher permanentemente estressada,

também afetada de maneira a sentir e refletir as angústias que a vida moderna pode nos provocar.

Não estamos negando a existência de 'opressões' nas relações contadas por essa história, mas apenas

observando que se houve uma 'transformação' (Viveiros de Castro, 2015) em alguém nessa história ela

aconteceu em ambos os sentidos, na relação entre as duas.

Conclusão

A tri-divisão iluminista entre povos 'selvagens', 'bárbaros' e 'civilizados', incorporada pela

sociedades industriais, desdobra-se em “dicotomias tipológicas” que “destacam aspectos variados

de um contraste em última análise redutível a ‘Nós’ versus os ‘Outros’, constituindo o núcleo das

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‘teorias do grande divisor’ que singularizam o Ocidente moderno frente às demais sociedades

humanas” (Viveiros de Castro, 2002). Todas essas dicotomias fazem referência aos pares

“primitivo/civilizado” ou “tradicional/moderno” e são encontradas em abundância nas falas

selecionadas, observando-se que diversas vezes com significados 'outros' que não as caixinhas fixas

em um dos polos 'indivíduo/sociedade' ou 'natureza/cultura'.

Por seu turno, nossas relações com as crianças refletem, exprimem os 'Grandes Divisores'

entre 'Nós', os ocidentais, e 'Eles', todos os outros, dos mares da China até a Terra do Fogo, dos

Nuer aos 'favelados', quando tratamos de grandes temas como 'Colonialismo na África' costumamos

fazê-lo a partir de categorias fechadas, conceitos fechados como se o mundo e todas as

possibilidades de pensamento coubessem em sua estreiteza.

Assim sendo, o que essas crianças dizem não são meros erros interpretativos, como se

houvesse uma verdade 'científico-social-humana' que elas, pobrezinhas, em processo de

'sociologização' pelas regras sociais, irão alcançar no fim de uma linha evolucionista. O que elas

pensam, e dizem, não cabe nos polos dicotômicos 'constitutivos', que fazem parte da 'Constituição

Moderna'. O mundo delas (crianças/incompletas?), ainda que o mesmo que o nosso

(adultos/completos?), é composto por variações e posições inconstantes situadas a partir de si

próprias e não situadas por outra pessoa apenas.

O que as questões colocadas por essas crianças pode nos fazer pensar sobre 'nós', pronome

perigoso por excelência? Por quê fazemos, como 'modernos' que somos, algumas distinções

'básicas' para a constituição de certas realidades universalizadas? Que instituímos um 'socius' que

separa, justamente, o 'social' do 'natural' e a partir dessa impomos outras distinções fundamentais

para o mundo moderno em que 'quase-vivemos', isto é, 'nós' “estamos sempre quase-sendo aquilo

que gostaríamos de ser” (Viveiros de Castro, 2009), sem nunca o ser efetivamente.

Gostaria de defender aqui, que pensemos mais no que as pessoas dizem e não no que elas

são capazes de repetir, enfim, que estejamos mais atentos às 'diferenças' do que às 'repetições'.

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