trajedia epopeia e lirica adna candido

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80 GÊNERO E RELIGIÃO NAS ARTES Tragédia, epopeia e lírica: as narrativas das mulheres do Antigo Testamento Adna Candido de Paula* RESUMO Este artigo apresenta uma análise literária dos livros de Rute, Judite e Ester, os únicos li- vros do Antigo Testamento que têm prota- gonistas mulheres. Trata-se de uma leitura acerca do caráter de eleição dessas três mulheres por conta da ação e função empre- endidas por elas dentro de três narrativas bíblicas estruturadas em três gêneros literá- rios – tragédia, epopeia e lírica. Palavras-chave: Narrativas – Mulheres – An- tigo Testamento – Eleição – Promessa. The tragedy, epic, and lyric genres: the narratives of women from the Old Testament ABSTRACT This paper presents an analysis of the Books of Ruth, Judith and Esther, which are the only Old Testament Books with female characters as protagonists. The analysis is concerned with the election character of these three women based on the actions and roles they performed in three biblical narratives which are structured in three literary genres “ tragedy, epic and lyric. Keywords: Narratives – Women – Old Testament – Election – Pledge. * Doutora em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas; atua nas áreas de “Literatura e Religião” e “Literatura e Filosofia”; professora adjunta da Universidade Federal da Grande Dourados. E-mail: [email protected] . Tragedia, epopeya y lírica: las narrativas de las mujeres del Antiguo Testamento RESUMEN Este artículo presenta un análisis literario de los libros de Rute, Judite y Ester, los únicos libros del Antiguo Testamento que tienen pro- tagonistas mujeres. Tratase de una lectura acerca del carácter de elección de esas tres mujeres por cuenta de la acción y función emprendidas por ellas dentro de tres narrativas bíblicas estructuradas en tres géneros literarios – tragedia, epopeya y lírica. Palabras clave: Narrativas – Mujeres – Antiguo Testamento – Elección – Promesa. A literatura e a teologia há muito se cotejam numa relação tensa, às vezes extremamente solícita e, em outras, extremamente relutante. Fato é que a relação entre elas existe, é bastante profícua e reveladora de universos inimagináveis que só pu- deram e podem ser conhecidos porque alguns es- critores e críticos literários, por um lado, e teólo- gos e estudiosos da religião, por outro, ousaram cruzar a ponte que separa essas duas áreas do conhecimento. Em março de 2008, a revista do Instituto Humanitas Unisinos publicou uma coletâ- nea de entrevistas, em parceria com o professor Waldecy Tenório, na qual diferentes pesquisadores, dos dois campos em questão, apresentaram suas considerações acerca dessa relação tensa, rica e conflituosa entre literatura e teologia. A leitura dessas entrevistas, assim como a do relato acerca da tradição, nacional e internacional, de estudos que se debruçam sobre essa relação, oferece um panorama impressionante de obras e autores que se sentiram e se sentem instigados por esse campo de investigação. Em uma dessas entrevistas, o professor Rafael Camorlinga Alcaraz expõe brilhan- temente o elo de apoio entre teologia e literatura: “Ainda que a preocupação-mor da teologia seja com o verum (verdadeiro), ela não pode abrir mão do pulchrum (belo), sob pena de tornar-se ‘feia’; nem a literatura, voltada para a estética, pode des-

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  • 80 GNERO E RELIGIO NAS ARTES

    Tragdia, epopeia e lrica: asnarrativas das mulheres do

    Antigo Testamento

    Adna Candido de Paula*

    RESUMOEste artigo apresenta uma anlise literria doslivros de Rute, Judite e Ester, os nicos li-vros do Antigo Testamento que tm prota-gonistas mulheres. Trata-se de uma leituraacerca do carter de eleio dessas trsmulheres por conta da ao e funo empre-endidas por elas dentro de trs narrativasbblicas estruturadas em trs gneros liter-rios tragdia, epopeia e lrica.Palavras-chave: Narrativas Mulheres An-tigo Testamento Eleio Promessa.

    The tragedy, epic, and lyricgenres: the narratives of

    women from theOld Testament

    ABSTRACTThis paper presents an analysis of the Booksof Ruth, Judith and Esther, which are the onlyOld Testament Books with female charactersas protagonists. The analysis is concernedwith the election character of these threewomen based on the actions and roles theyperformed in three biblical narratives whichare structured in three literary genres tragedy, epic and lyric.Keywords: Narratives Women OldTestament Election Pledge.

    * Doutora em Teoria e Histria Literria pela UniversidadeEstadual de Campinas; atua nas reas de Literatura eReligio e Literatura e Filosofia; professora adjunta daUniversidade Federal da Grande Dourados.E-mail: [email protected] .

    Tragedia, epopeya y lrica:las narrativas de las mujeres

    del Antiguo Testamento

    RESUMENEste artculo presenta un anlisis literario delos libros de Rute, Judite y Ester, los nicoslibros del Antiguo Testamento que tienen pro-tagonistas mujeres. Tratase de una lecturaacerca del carcter de eleccin de esas tresmujeres por cuenta de la accin y funcinemprendidas por ellas dentro de tres narrativasbblicas estructuradas en tres gnerosliterarios tragedia, epopeya y lrica.Palabras clave: Narrativas Mujeres Antiguo Testamento Eleccin Promesa.

    A literatura e a teologia h muito se cotejamnuma relao tensa, s vezes extremamente solcitae, em outras, extremamente relutante. Fato quea relao entre elas existe, bastante profcua ereveladora de universos inimaginveis que s pu-deram e podem ser conhecidos porque alguns es-critores e crticos literrios, por um lado, e telo-gos e estudiosos da religio, por outro, ousaramcruzar a ponte que separa essas duas reas doconhecimento. Em maro de 2008, a revista doInstituto Humanitas Unisinos publicou uma colet-nea de entrevistas, em parceria com o professorWaldecy Tenrio, na qual diferentes pesquisadores,dos dois campos em questo, apresentaram suasconsideraes acerca dessa relao tensa, rica econflituosa entre literatura e teologia. A leituradessas entrevistas, assim como a do relato acercada tradio, nacional e internacional, de estudosque se debruam sobre essa relao, oferece umpanorama impressionante de obras e autores quese sentiram e se sentem instigados por esse campode investigao. Em uma dessas entrevistas, oprofessor Rafael Camorlinga Alcaraz expe brilhan-temente o elo de apoio entre teologia e literatura:Ainda que a preocupao-mor da teologia sejacom o verum (verdadeiro), ela no pode abrir modo pulchrum (belo), sob pena de tornar-se feia;nem a literatura, voltada para a esttica, pode des-

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    denhar a tica, pois se tornaria apenas cosmti-ca (ALCARAZ, 2008, p. 15). O mal-estar que seobserva em alguns crticos literrios quanto aproximao entre Belo e Verdade se justifica poruma reao ao carter de injuno atribudo lite-ratura, principalmente romntica. De uma manei-ra geral, a literatura ps-romntica, quando noassociada obrigatoriedade da denncia social, docarter de panfleto, ganhou certa autonomia. Nosignifica, portanto, que tenha deixado de ter impli-caes ticas, ou at mesmo morais, mas no sedeseja obrigada a cumprir com o papel de legisla-dora do agir humano. Nesse mesmo nmero darevista IHU on-line, tem-se a considerao dePaulo Soethe acerca do trabalho do alemo DietmarMieth, no qual a questo tica colocada em foco:A fico literria, segundo Mieth, oferece a pos-sibilidade de se abordar projetos de vida ticosindividuais em seu todo, pela figurao da vida daspersonagens e relaes entre elas [] (SOETHE,2008, p. 26). A compreenso da dimenso tica dafico literria de Mieth paralela ao entendimentoda implicao tica das narrativas ficcionais pos-tulado pelo filsofo francs Paul Ricoeur. As obrasliterrias, enquanto sntese do heterogneo, ou seja,enquanto modelo heurstico de um mundo no qualse encontram sujeitos agindo e sofrendo aes,dispostos em uma temporalidade narrada, a nicaacessvel compreenso, dentro de uma narrativahistrica, a da vida desses mesmos sujeitos, apre-sentam-se como mundos habitveis. Tendo emvista que a redescrio metafrica, caractersticafundamental dos textos literrios, destaca-se nocampo do pthos, dos valores sensoriais, estticose axiolgicos que estruturam o mundo habitvel,percebe-se que a funo mimtica das narrativasse exerce de preferncia no campo da ao e deseus valores temporais (RICOUER, 1975). apartir dessa constatao que Ricouer configura oobjeto primeiro de sua investigao a dimensotica das narrativas ficcionais. Mas seria possveltomar as narrativas bblicas como redescriometafrica do mundo? legtima a leitura dasEscrituras Sagradas enquanto texto ficcional? Deacordo com Robert Alter, sim, visto que Elasrefletem um senso insidioso de estrutura narrativae de uso de sofisticados estilos de prosa

    (ALTER, 2008, p. 12). O autor vai alm ao indi-car que a compreenso da composio literria daBblia facilitaria na interpretao do sentido dostextos bblicos:

    Na tentativa de recuperar os princpios artsticos com os

    quais os antigos escritores hebreus compuseram seus

    trabalhos, podemos ver mais plenamente o que est

    acontecendo nas histrias quais so as implicaes de

    uma insero particular de dilogo, da recorrncia de um

    tema, de um paralelo entre dois episdios, etc. (ALTER,

    2008, p. 13).

    Baseada na legitimidade de estudos dessa natu-reza e da relevncia para a compreenso de impli-caes morais e/ou ticas tanto das narrativasficcionais quanto das narrativas bblicas, entendi-das como narrativas literrias por excelncia, queempreendo esta investigao.

    As Escrituras Sagradas so compostas de duaslistas de livros: os da Bblia hebraica e os da B-blia grega. A primeira, destinada aos judeus daPalestina, dividida em trs partes: a Lei ouPentateuco; os Profetas, anteriores e posteriores,e os Escritos ou Hagigrafos, perfazendo um totalde vinte e quatro livros. Quanto segunda, desti-nada aos judeus da Disperso, dividida em doisgrandes grupos: Legislao e Histria e Poetase Profetas. Na Bblia hebraica, em Escritos,temos o nome de apenas duas mulheres Rute eEster. Os episdios que receberam os nomes des-sas duas mulheres foram retomados na Bblia gre-ga, na parte denominada Legislao e Histria. Aessa designao ser acrescentado o livro deJudite, considerado inspirado, pela Igreja, assimcomo os demais livros da Bblia hebraica. Os li-vros de Rute, Judite e Ester fazem parte do AntigoTestamento, sob o ttulo de Livros Histricos.De uma maioria significativa de livros bblicos quepossuem ttulos masculinos, somente essas trsmulheres mereceram receber livros com seus no-mes. Por qu? Essa a pergunta sobre a qual sedebrua este texto. A investigao legtima namedida em que aos estudos de gnero interessano s analisar a condio da mulher na sociedadeatual, mas tambm investigar a tradio da repre-sentao do papel feminino ao longo da histria da

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    humanidade. Nesse sentido, compreender a rele-vncia literria dessas trs mulheres dentro de umuniverso textual, o do Antigo Testamento, predo-minantemente masculino, inserir a discusso emmbitos culturais mais amplos.

    A fim de compreender os papis de Rute, Juditee Ester dentro da formao e histria do povo ju-daico-cristo, analiso essas figuras femininas en-quanto personagens protagonistas de suas narrati-vas. Considerando o fato de que essas narrativasliterrias esto inseridas em um texto que tem porfundamento ltimo questes morais e ticas, nombito da religio, analiso a trajetria dessas mulhe-res na relao de influncia entre identidade pessoale identidade narrativa. O interesse dessa anlise demonstrar que essas trs mulheres representam,enquanto personagens literrias, paradigmas de aesde valor e, por isso, receberam livros bblicosintitulados com seus respectivos nomes.

    A histria de Rute a primeira a ser narradae todo o enredo construdo a partir de uma es-trutura trgica:

    No tempo em que os Juzes governavam, houve uma

    fome no pas e um homem de Belm de Jud foi morar nos

    Campos de Moab, com sua mulher e seus dois filhos. Esse

    homem chamava-se Elimelec, sua mulher Noemi, e seus

    dois filhos, Maalon e Quelion; eram efrateus, de Belm de

    Jud. Chegando aos Campos de Moab, ali se estabelece-

    ram. Morreu Elimelec, marido de Noemi, e esta ficou s

    com seus dois filhos. Eles tomaram por esposas mulheres

    moabitas, uma chamada Orfa, e a outra, Rute. Permanece-

    ram l uns dez anos. Depois morreram tambm os dois,

    Maalon e Quelion, e Noemi ficou sozinha, sem filhos nem

    marido. Ento, com suas noras, preparou-se para voltar

    dos Campos de Moab, pois ficara sabendo nos Campos

    de Moab que Iahweh visitara seu povo dando-lhe po.

    Saiu, pois, com suas noras, do lugar onde tinha morado e

    puseram-se a caminho para voltar terra de Jud. Noemi

    disse s suas duas noras: Ide e voltai cada qual para a

    casa de sua me. Que Iahweh vos trate com a mesma

    bondade com que tratastes os que morreram e a mim

    mesma! Que Iahweh conceda a cada uma de vs encontrar

    descanso na casa de um marido! (Rute 1, 2-9).

    A condio da mulher nessa sociedade expos-ta no pano de fundo do relato. A tragdia consiste

    no desamparo e na impossibilidade de escolha,sendo o seu contrrio, a boa escolha, o principalfundamento do gnero trgico, em vistas de umpossvel futuro, da busca pela vida boa, comodisse Aristteles na Potica:

    Porm, o elemento mais importante a trama dos fatos,

    pois a tragdia no imitao de homens, mas de aes

    e de vida, de felicidade [e infelicidade; mas, felicidade] ou

    infelicidade reside na ao, e a prpria finalidade da vida

    uma ao, no uma qualidade. Ora os homens possuem

    tal ou tal qualidade, conformemente ao carter, mas so

    bem ou mal-aventurados pelas aes que praticam. Daqui

    se segue que, na tragdia, no agem as personagens para

    imitar caracteres, mas assumem caracteres para efetuar

    certas aes; por isso, as aes e o mito constituem a

    finalidade da tragdia, e a finalidade de tudo o que mais

    importa (ARISTTELES, 1994, p. 111).

    o carter, ou caracterizao, dessas mulheresque posto como condio de legitimao do valordas aes empreendidas, principalmente no queconsta da ao de Rute. Desamparadas, sem seusrespectivos maridos, s jovens mulheres s resta umcaminho: encontrar conforto na casa de um novomarido. A Noemi cabe a solido e o amparo deIahweh. interessante analisar nesse relato o mundohabitvel institudo, um mundo masculino, onde aescolha mediada pela forma de poder, ou falta dela.Na narrativa, as duas noras, a princpio, recusam-sea voltar casa de seus pais e afirmam o desejo depermanecer ao lado da nova me; mas Noemi pon-dera sabiamente: Voltai, minhas filhas, parti, poisestou velha demais para tornar a casar-me! Mesmocontrariada, Orfa, cujo nome significa a que voltaas costas1, parte em busca de seu povo. Contudo,Rute, cujo nome significa a amiga2, no segue oconselho de Noemi e decide ficar:

    No insistas comigo para que te deixe, pois

    Para onde fores, irei tambm,

    Onde for tua moradia, ser tambm a minha;

    Teu povo ser o meu povo

    E teu Deus ser o meu Deus.

    1 Nota a de rodap da Bblia de Jerusalm, 414.2 Ibidem.

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    Onde morreres, quero morrer

    E ser sepultada.

    Que Iahweh me mande este castigo

    E acrescente mais este

    Se outra coisa, a no ser a morte,

    Me separar de ti (Rt 1.16-17).

    H algo fundamental na escolha de Rute, na m-nima possibilidade de escolha que lhe coube: umapromessa e um acolhimento radical do outro. Afim de bem explicitar a implicao tica presente naescolha dessa mulher preciso compreender a es-trutura interna da identidade pessoal que deve serapreendida em sua dupla articulao: como identida-de idem e como identidade ipse. Ambas tm relaocom a permanncia no tempo, mas de maneirasespecficas. O paradigma da identidade-mesmidade o carter, que representa as marcas distintivase as identidades assumidas pelas quais um indiv-duo pode ser reconhecido como sendo o mesmoao longo do tempo, tanto no nvel fsico quanto nopsicolgico. Quanto identidade-ipseidade, cujoparadigma a promessa, encontra-se nela a baseda constituio do si. A identidade-ipseidade ates-tada pela figura da palavra dada; o empenhofeito pelo outro. No episdio da escolha de Rute,que, contextualmente, sai do padro de no-escolhaimputado s trs mulheres, h uma caracterizaoda identidade-mesmidade, a do estatuto de novafilha. Rute viva permanece ainda a mesma Ruteque existia antes de se casar com o filho de Noemi,entretanto, o rito de passagem do casamento fez delauma nova filha de Noemi. a nova filha, quepermanece no domnio do mesmo, que se estimaenquanto tal, na condio de responsvel pela novame. Estimar-se na qualidade de nova filha oque d suporte ao acesso da identidade-ipseidade deRute. A identidade-ipseidade, enquanto palavra dadae estima de si, , por excelncia, a identidade ticado sujeito.

    Donons tout de suite un nom ce soi-mme rflexif,

    celui de ipsit. [] Lipsit ne disparatrait

    totalement que si le personnage chappait toute

    problmatique didentit thique, au sens de la capacit

    se tenir comptable de ses actes. Lipsit trouve ce

    niveau, dans la capacit de promettre, le critre de sa

    diffrence ultime avec lidentit mmet3. (RICOEUR,

    2004b, p. 155).

    O livro de Rute, dentro do Antigo Testamento, uma histria edificante, que tem por objetivo primei-ro apresentar a recompensa dada aos que confiamna Providncia divina. Rute estrangeira, umamoabita que adora o deus Camos, mas, na condiode nova filha, assume, perante Noemi, a respon-sabilidade tica. O fato de ser estrangeira bastanterelevante na narrativa, pois estende a Providnciadivina a todos, conferindo-lhe caractersticas univer-sais. Dentro da dimenso literria da narrativa, aescolha de Rute, contrria sua condio de des-provida desse direito, coloca-a no seio da estruturatrgica. Antgona, diferentemente de seus outrosirmos, foi a nica que no abandonou o prpriopai, o Rei dipo, quando este foi expulso de Tebaspor seus outros dois filhos, Etocles e Polinice. Emnova situao, na terceira fase da trilogia tebana,Antgona faz outra escolha radical, pelo direito dojusto, o do sepultamento, e pela responsabilidadepelo outro. Contra o poder maior institudo, o dorei, seu tio Creonte, Antgona enterra, com as pr-prias mos, o irmo Polinice e paga com a vida pelaescolha. A narrativa de Rute, assim como a deAntgona, concentra-se na escolha da ao correta,e sem ao no poderia haver tragdia(ARISTTELES, 1994, p. 111). H, igualmente,uma equivalncia entre os limites da ao humana,narrados tanto nas tragdias como nas epopeiasclssicas, que justificam a interferncia dos deusese a confiana na Providncia. Os gregos invoca-vam os deuses quando se deparavam com situaesde aporia e Rute fez a promessa em nome dele: Eteu Deus ser o meu Deus.

    Rute, avaliada por sua ao, ser recompensadapor Iahweh, pois ganhar o respeito de Booz, pa-rente de Elimelec, o marido morto de Noemi, ecom ele contrair npcias e gerar Obed. O valor

    3 Demos imediatamente um nome a esse si-mesmo refle-xivo, o de ipseidade. [] A ipseidade s desaparecetotalmente se o personagem escapa a toda problemticada identidade tica, no sentido da capacidade de se assu-mir como responsvel por seus atos. A ipseidade encon-tra nesse nvel, na capacidade de prometer, o critrio desua diferena ltima com a identidade mesmidade.

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    da ao de Rute reconhecido por toda a comu-nidade de Belm, o que se confirma na fala dasmulheres da cidade que, dirigindo-se a Noemi, ben-dizem o nascimento do filho desta: Bendito sejaIahweh, que no te deixou sem algum para teresgatar; que o seu nome seja clebre em Israel!Ele ser para ti um consolador e um apoio na suavelhice, pois quem o gerou tua nora, que teama, que para ti vale mais do que sete filhos (Rt4,14-15). Implcita a um dos elementos trgicos,o reconhecimento, est a questo do valor, daeleio: O reconhecimento, como indica o pr-prio significado da palavra, a passagem do igno-rar ao conhecer, que se faz para amizade ou inimi-zade das personagens que esto destinadas para adita ou a desdita (ARISTTELES, 1994, p. 118).A eleio , em ltima instncia, estima de si eestima do outro. Como observou Paul Ricur, ainterpelao do outro responsabilidade do su-jeito no seria reconhecida como tal sem uma es-tima de si capaz de responder: Aqui estou!4 Sereleita, avaliada positivamente pelo outro, tanto pelapolis quanto por Noemi, pela escolha e ao em-preendida, rendeu a Rute o direito de fazer parte dagenealogia do Cristo (Mt 1,5), visto que Obed, seufilho, ser o av do rei David.

    , ainda, a respeito de eleio que trata a se-gunda narrativa de mulher do Antigo Testamento,a histria de Judite, cujo nome significa a judia.

    Judite vivia em sua casa desde que se tornara viva havia

    trs anos e quatro meses. Fizera para si um quarto no

    terro da casa. Vestia um pano de saco sobre os rins e

    cobria-se com o manto de sua viuvez. Jejuava todos os dias

    de sua viuvez, exceto nas viglias de sbado, nos sbados,

    nas viglias da lua nova, nas luas novas e nos dias de festa

    e de regozijo da casa de Israel. Era muito bela e de aspecto

    encantador. Manasses, seu marido, lhe deixara ouro, prata,

    servos, servas, rebanhos e campos, e ela administrava tudo

    isso. No havia quem lhe recriminasse uma palavra m,

    pois era muito temente a Deus (Jt 3,4-8).

    A construo da personagem j indica seu valormoral, pois que esta cumpre com os deveres deuma mulher judia e, portanto, torna-se digna aos

    olhos de seu povo. O contexto histrico da narra-tiva de Judite o do reinado de Nabucodonosor e otratamento dado representao desse tempo lite-rria e no histrica. De acordo com o episdio,Nabucodonosor reinava sobre os assrios em Nnive(Jt 1, 1), entretanto, esta cidade j havia sidodestruda por Nabopolassar, seu pai, o que demons-tra certo descomprometimento com a verossimi-lhana. O foco da narrativa no est na documen-tao do evento histrico, antes, centra a importnciada ao de Judite diante do povo desamparado,amedrontado com o massacre iminente.

    De acordo com o relato, no ano 587 da tomadade Jerusalm, o rei Nabucodonosor convocou to-dos os ajudantes de campo e seus conselheiros eos orientou num plano de arrasar a terra. AHolofernes, rei dos assrios, ordenou a execuode todo o Ocidente. Holofernes devastou muitasterras pelo caminho at chegar a Betlia, ondehabitavam os filhos de Israel e, como uma deles,Judite. O povo estava desesperado e os ancios,reunidos com este, pediam aos irmos que resis-tissem ainda por cinco dias e, se o Senhor noviesse em seu socorro nesse perodo, que fossefeita a sua vontade. Era, sem dvida, um pedidode ajuda repleto de angstia e desesperana, o quetornava questionvel a f dos israelitas. Judite, porconta de sua alta respeitabilidade, convoca osancios e os repreende, ao mesmo tempo em queos incita confiana na Providncia divina.

    Ouvi-me, chefes dos habitantes de Betlia. No correta

    a vossa palavra, a que dissestes hoje e diante do povo,

    nem esse juramento que proferistes entre Deus e ns,

    dizendo que entregareis a cidade aos nossos inimigos se,

    neste prazo, o Senhor no vos trouxer socorro. Quem

    sois vs, que hoje tenteis a Deus e vos colocais acima

    dele no meio dos filhos dos homens? Agora colocais

    prova o Senhor Todo-Poderoso! Jamais compreendereis

    coisa alguma! Se no descobris o ntimo do corao do

    homem e no entendeis as razes do seu pensamento,

    como, ento, penetrareis o Deus que fez essas coisas?

    Como conhecereis seu pensamento? Como com-

    preendereis o seu desgnio? No, irmos, no irriteis o

    Senhor, nosso Deus! Se ele no nos quer socorrer em

    cinco dias, ele tem poder de faz-lo no tempo em que

    quiser, como tambm pode nos destruir diante dos nossos4 A resposta de Moiss ao chamado de Deus.

  • 85

    inimigos. No hipotequeis, pois, os desgnios do Senhor

    nosso Deus. No se encurrala a Deus como um homem,

    nem se pode submet-lo como a um filho de homem. Por

    isso, esperando pacientemente a salvao dele, invo-

    quemo-lo em nosso socorro. Ele ouvir a nossa voz, se

    for do seu agrado (Jt 8,11-17).

    As palavras de Judite, dirigidas s maiores au-toridades de sua cidade, indicam o valor dessamulher. Judite a representante do povo de Israel,sua herona pica. A trajetria de Judite a traje-tria de seu povo e ela construda, a personagemque desempenha na narrativa, como uma heronade valores superiores como aqueles de Ulisses,Aquiles e Nestor na Ilada. Seu discurso, reprodu-zido acima, assemelha-se ao de Nestor na Guerrade Tria, quando este se dirige aos reis gregos e aAgamenon incitando-os a continuar lutando contraos troianos com confiana firme na promessa deZeus. A respeito da superioridade de Nestor,Agamenon o afirma: Sem dvida na assembleia,entre todos os filhos dos Acaios, quem sabe falars tu, meu velho! Ah, Zeus-Padre, Atenaia,Apolo! Se eu tivesse dez acaios desta tmpera emmeu conselho! (HOMERO, 1944, p. 39). Juditereclama para si a permanncia no tempo, a glriaeterna s atribuda a grandes heris como Aquiles,honra que s cabe aos guerreiros vares: Fareialgo cuja lembrana se transmitir aos filhos denossa raa, de gerao em gerao (Jt 8,32). Aestrutura da narrativa pica no sentido hegelianodo termo, como Saga, Livro ou como a Bblia deum povo. A histria herica de Rute insere a nar-rativa acerca da nao de Israel entre as grandespicas, como as gregas, a latina e a portuguesa:Todas as naes grandes e importantes possuemlivros deste gnero, que so absolutamente os pri-meiros entre todos e nos quais se encontra expres-so seu esprito original (HEGEL, 1997, p. 443). Oesprito original do povo de Israel o da sobrevi-vncia na adversidade, sobrevivncia que no podeser atribuda unicamente a ele, mas Providnciadivina, por isso a histria de um povo abenoa-do, ou amaldioado, conforme a leitura que se faadessa eleio.

    A estrutura formal das epopeias clssicas apre-sentava quatro etapas a Proposio, em que o

    poeta informava o assunto; a Invocao, em queo narrador pedia inspirao divina para poder re-digir sua obra; a Narrao, em que se tinha a nar-rativa propriamente dita, com partes variveis de-pendendo da obra, e o Eplogo, em que seesclarecia o desfecho da narrativa, concluindo aao. No h proposio na narrativa de Judite,mas todos os demais elementos formais daepopeia a esto presentes. A invocao semprefeita a uma divindade mitolgica e, na narrativabblica de Judite, o narrador e a herona se fun-dem e na voz da protagonista que se l a invo-cao a Deus solicitando-lhe caracteres especiaisque a tornaro um instrumento de seu povo:

    Pela astcia de meus lbios,

    fere o escravo com o chefe

    e o chefe com seu servo.

    Quebra sua arrogncia

    pela mo de uma mulher. (Jt 9,10)

    D-me palavra e astcia para ferir e matar

    os que forjaram duros planos

    contra tua Aliana,

    tua santa habitao,

    a montanha de Sio

    e a casa que pertence aos teus filhos. (Jt 9,13)

    Judite a personificao do Cavalo de Tria. Aherona encanta e deixa a todos maravilhados comsua beleza: Houve uma agitao em todo o acam-pamento, pois correu pelas tendas a notcia de suachegada. Eles a rodeavam enquanto estava fora datenda de Holofernes aguardando ser anunciada.Admiravam-se de sua beleza e, por ela, admiravamos filhos de Israel (Jt 10,18-19). A herona rece-bida como um trofu de guerra, uma relquia queengrandece a conquista. A astcia de Judite, ao seoferecer como esplio de guerra antes mesmo de abatalha ter se dado, equivale de Ulisses indicandoa Agamenon a construo do Cavalo de Triacomo possibilidade de vencer a imponente Tria.Judite finge se entregar a Holofernes de livre von-tade, mas cria um artifcio estratgico que lhe per-mitir sair do acampamento inimigo sem levantarsuspeitas ela sai todos os dias com sua serva paraorar e banhar-se. Judite se reveste da fragilidade

  • 86 GNERO E RELIGIO NAS ARTES

    feminina como representao, como mscara, quan-do, na verdade, diferentemente de Penlope ouAndrmaca, mulheres picas, ela no frgil.

    A Narrativa, outro elemento formal da epopeia, o relato do assassinato de Holofernes pelasmos frgeis de uma mulher Judite. A heronacumpre um perodo de estadia no acampamento deHolofernes, com o hbito de se ausentar por horas,diariamente, para suas oraes e banho, at o diaem que foi convocada a estar na presena deHolofernes em um banquete. Este j a cobiavasexualmente, acreditando que, ao tomar posse deJudite, estaria simbolicamente se apossando dopovo de Betlia. preciso lembrar que Aquior,chefe de todos os filhos de Amon, havia alertadoHolofernes sobre a especificidade do povo de Is-rael, contando toda a sua trajetria e os momentosde derrota, quando brigados com Deus, e de vit-ria, quando fiis em sua crena no Deus nico.Com base nessa narrativa, construda como mise-en-abme dentro da narrativa central, procedimen-to recorrente nas narrativas picas, Aquior aconse-lha Holofernes:

    E agora, mestre e senhor, se h algum delito nesse povo,

    se pecaram contra seu Deus, neste caso, examinaremos

    bem se h mesmo esse tropeo. Depois subiremos e ata-

    caremos. Mas se no h iniqidade na sua gente, que meu

    senhor passe adiante, para que no acontea que o Senhor

    e Deus deles os proteja e esteja a seu favor. Seramos

    ento motivo de escrnio para toda a terra (Jt 5,20-21).

    Obviamente, Aquior foi punido pelo vaticnio.Judite, representando a figura da mulher frgil,adorna-se com esmero, intensificando o fascnioque causava nos homens do acampamento deHolofernes, e se apresenta ao chefe assrio.Holofernes se rende beleza de Judite e bebe emexcesso ficando assim vulnervel, como ficaram ostroianos aps festejarem a suposta vitria contra osgregos. Judite, no momento em que consegueestar s com Holofernes, corta-lhe a cabea e saido acampamento, como de hbito. Cumprida suamisso, dirige-se a Betlia e mostra ao povo e aosancios a cabea cortada de Holofernes, no que ovacionada, como grande herona, por seu povo:Bendita sejas, filha, pelo Deus altssimo,/ Mais que

    todas as mulheres da terra,/ E bendito seja o Se-nhor Deus,/ Criador do cu e da terra,/ Que teconduziu para cortar a cabea/ Do chefe dos nos-sos inimigos (Jt 13,18). Judite, a judia eleita,assim como o seu povo, tomada como superiors demais mulheres da terra, no s por usar osrecursos cabveis a todas as mulheres da terra,mas por direcionar esses recursos para cumprir osdesgnios de Deus. Caberia aqui, como fez PaulRicoeur, uma investigao acerca do mal, maisespecificamente do mal necessrio para que secumpra a promessa5. Mas, por ora, o que se des-taca nessa narrativa, alm da questo da eleio, a representao pica dessa mulher que, diferente-mente da fora fsica comum aos heris picos,simboliza a fora moral, a confiana irrepreensvelna Providncia divina e o paradigma que ela passaa representar, no s para outras mulheres, maspara toda uma nao. O sumo sacerdote Joaquime o Conselho de ancios louvam-na em sua condi-o de herona a ser exaltada no decorrer da his-tria da humanidade:

    Tu s a glria de Jerusalm!

    Tu s o supremo orgulho de Israel!

    Tu s a grande honra de nossa raa!

    Realizando tudo isso com tua mo,

    Fizeste benefcios a Israel,

    E Deus se comprazeu [sic] com isso.

    Abenoada sejas pelo Senhor Todo-poderoso

    Na sucesso dos tempos! (Jt 15,9-10)

    Falta considerar, ainda, o ltimo elemento dasepopeias clssicas tambm presente na narrativa deJudite o Eplogo. A trajetria de um heri pico,por conta do grande feito realizado, por si ou emnome de uma nao, deve ser conhecida e coeren-te com a construo literria dessa personagem. Olivro de Judite contm todos os passos da herona,antes do fato herico realizado por ela e depois desua conquista. Judite, enquanto vivia, ficou fa-mosa em toda a terra (Jt 16, 21) e teve vida lon-ga, viveu at cento e cinco anos. Quando morreu,

    5 Empreitada a ser realizada em outra ocasio tendo emvista os limites de um artigo e o objetivo primeiro destetexto.

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    a casa de Israel chorou-a por sete dias. [] Nohouve mais quem inquietasse os filhos de Israel nosdias de Judite e nem por muito tempo depois desua morte (Jt 16, 24-25). O fato de narrar o fimda trajetria de vida de Judite, caracterstica dapoesia pica, tem por objetivo conferir relevo ao paradigmtica desse sujeito exemplar. Comoobservou Hegel,

    como s um homem [no caso da narrativa em questo,

    uma mulher] pode agir e afirmar-se, pode-se dizer que

    o indivduo que constitui o ponto mais alto da epopia,

    como fonte de ao e portador de sentimentos que por

    esta ao procura satisfazer. [] a unidade pica no

    estar completa seno quando a ao particular atingir o

    seu termo [] dando a mediao direta entre as duas

    esferas, quer dizer, entre a ao individual e a totalidade

    do mundo. (HEGEL, 1997, p. 488-490).

    A terceira, e ltima, narrativa bblica do AntigoTestamento que tem como protagonista uma mulher a histria de Ester, cujo nome significa estrela.A trajetria dessa herona apresenta-se, primeiravista, como uma trajetria pica, pois trata, assimcomo na histria de Judite, da narrativa a respeitode uma mulher que salvou o povo judeu do exter-mnio. Contudo, analisada em sua estrutura profun-da, a narrativa, dentro da dimenso literria, apre-senta caractersticas essenciais do gnero lrico, acomear pelo elemento maravilhoso, que abre oepisdio o sonho proftico de Mardoqueu:

    Gritos e rudos, ribomba o trovo, treme o cho, tumulto

    sobre toda a terra. Dois enormes drages avanam, ambos

    prontos para o combate. Lanam um rugido; ao ouvi-lo,

    todas as naes se preparam para a guerra contra o povo

    dos justos. Dia de trevas e de escurido! Tribulao, afli-

    o, angstia e espanto caem sobre a terra. Transtornado

    de terror diante dos males que o esperam, todo o povo

    justo se prepara para morrer e invoca a Deus. Ora, de seu

    grito, como uma pequena fonte, brota um grande rio, de

    guas caudalosas. A luz se levanta com o sol. Os humildes

    so exaltados e devoram os poderosos. (Est 1,1d-1j).

    Mardoqueu primo de Ester e a criou desdeque seus pais faleceram. O sonho de Mardoqueu o elemento de fantasia, caracterstico da poesia

    lrica, como observou Hegel: uma obra lricapode ainda exprimir [] o contedo essencial dareligio, da arte, dos prprios pensamentos cien-tficos, na medida em que se adaptem s formasda fantasia e da intuio e que penetrem no dom-nio do sentimento (HEGEL, 1997, p. 513). O queest em foco na narrativa, ao servir de sua aber-tura, o encantamento, e todo ele atribudo figura feminina de Ester. Para compreender o en-cantamento preciso considerar o fato deAssuero, cujo trono estava na cidade de Susa, terrepudiado sua rainha, Vasti, por ela ter se recusadoa se apresentar, com sua beleza, no banquete dorei. Indignado com a recusa de Vasti, o reiAssuero decide lhe impor um castigo: Segundo alei, disse ele, que se deve fazer rainha Vasti porno haver ela cumprido a ordem do rei Assuerotransmitida pelos eunucos? (Est 1,15). O com-portamento arredio da rainha Vasti e sua recusa emservir ao rei criam um precedente do comporta-mento feminino inaceitvel para a cultura e para asociedade ali representada. O que se deve castigarno s a atitude da rainha Vasti, mas toda pos-svel insubordinao.

    Pois a conduta da rainha chegar ao conhecimento de

    todas as mulheres, que olharo seus maridos com des-

    prezo, dizendo: O rei Assuero ordenou que se trouxes-

    se a rainha Vasti sua presena e ela no veio! Hoje

    mesmo as mulheres dos prncipes da Prsia e da Mdia

    diro a todos os oficiais do rei o que ouviram falar sobre

    a conduta da rainha; ento haver muito desprezo e ira.

    Se bem parecer ao rei, promulgue, de sua parte, uma

    ordem real, que ser inscrita nas leis da Prsia e da

    Mdia e no ser revogada: que Vasti no venha mais

    presena do rei Assuero; e o rei confira sua qualidade de

    rainha a outra melhor do que ela. (Est 1,17-19).

    A rainha Vasti foi, de fato, deposta e todo umharm foi formado a fim de que Assuero pudesseescolher sua nova rainha. Entre as mulheres desseharm estava Ester e foi sua obedincia e submis-so que a tornou a eleita do rei Assuero. Cada umadas mulheres do harm poderia solicitar um enxovale adornos extras quando fosse sua vez de se apre-sentar ao Rei, mas Ester nada pediu alm do quelhe fora indicado pelo eunuco real (Est 2,15). Toda

  • 88 GNERO E RELIGIO NAS ARTES

    a introduo do livro de Ester, desde o relato dosonho de Mardoqueu at a eleio desta pelo rei,estrutura a narrativa no gnero lrico, pois, alm deapresentar o elemento fantstico do sonho tambminsere a narrativa no campo da subjetividade. aescolha de Assuero por uma mulher, paradigma in-verso da primeira esposa, que est em questo. Asubjetividade tambm ser o leitmotiv da persegui-o dos judeus na narrativa. Mardoqueu salvou orei de um atentado contra sua vida, mas foi Am,do pas de Agag, que foi beneficiado. Mardoqueuno fazia reverncias a Am, como os demais servosdo rei, e por isso este se voltou contra Mardoqueue todo o seu povo. Nesse relato, tem-se a expressomxima da caracterizao da alteridade; o outro odesconhecido, o estrangeiro:

    No meio dos povos, em todas as provncias de teu reino,

    est espalhado um povo parte. Suas leis no se pare-

    cem com as de nenhum outro e as leis reais so para eles

    letra morta. Os interesses do rei no permitem deix-lo

    tranqilo. Que se decrete, pois, sua morte, se bem pare-

    cer ao rei, e versarei aos seus funcionrios, na conta do

    Tesouro Real, dez mil talentos de prata. (Est 3,8-9).

    Caso, nesse relato, o foco da rejeio do outrofosse somente sua condio de estrangeiro, a estru-tura profunda da narrativa seria antes pica que l-rica, mas no o caso. O discurso sobre o outro,sobre sua especificidade incompreensvel e, portanto,perversamente justificvel para o genocdio, umsubterfgio para legitimar um ataque pessoal,deliberadamente subjetivista. A insubordinao deMardoqueu motivar a perseguio:

    Verificando, pois, Am que Mardoqueu no se ajoelhava,

    nem se prostrava diante dele, encheu-se de furor. Como

    lhe tivessem declarado de que povo era Mardoqueu,

    pareceu-lhe pouco em seus propsitos atentar apenas

    contra Mardoqueu, e premeditou destruir todos os ju-

    deus, povo de Mardoqueu, estabelecido no reino de

    Assuero (Est 3,5-6).

    Nesse relato, a diferena entre lrica e pica sutil, mas no detalhe que ela se torna perceptvel.Segundo Hegel, graas ao carter de particulari-dade e individualidade, que constitui a base da

    poesia lrica, que se pode observar a especificidadedo gnero, afinal,

    o contedo pode oferecer uma grande variedade e ligar-se

    a todos os assuntos da vida social, mas sob este aspecto,

    difere essencialmente do contedo da poesia pica [] a

    poesia lrica foca apenas um lado particular desta totalida-

    de ou, pelo menos, mostra-se incapaz de explicitar e de-

    senvolver a sua mensagem de forma to completa quanto

    a da poesia pica. (HEGEL, 1997, p. 513).

    A subjetividade perpassa, igualmente, a decisodo rei Assuero de revogar sua deciso contra opovo judeu. Se num primeiro momento, o rei, poruma gratido no justificada por Am, tendo emvista que foi Mardoqueu quem o livrou do atenta-do, permite a perseguio aos judeus e assina acarta de condenao deste, num segundo momento,por motivo subjetivo, decide revogar sua sentena.A personagem do rei, no livro de Ester, irritante-mente frgil, to volvel quanto a inconstncia quedesejou punir na figura da rainha deposta.

    Mardoqueu, ciente do decreto do rei, instigadopor Am, avisa Ester, que tambm era judia, dosperigos que corria e pede a ela que interceda porseu povo:

    No imaginas que, porque ests no palcio, sers a nica

    a escapar dentre todos os judeus. Pelo contrrio, se te

    obstinares a calar agora, de outro lugar se levantar para

    os judeus salvao e libertao, mas tu e a casa de teu

    pai perecereis. E quem sabe se no teria sido em vista de

    uma circunstncia como esta que foste elevada realeza?

    (Est 4,13-14).

    Ester abraou a misso e, assim como fezJudite, jejuou, humilhou com aspereza seu cor-po, despindo-se, assim, da carne e dos adornos.A orao de Ester a Deus um pedido de transfor-mao de sua condio: A mim d-me coragem,/Rei dos deuses e dominador de toda autoridade./Pe em meus lbios um discurso atraente/ Quandoeu estiver diante do leo,/ Muda seu corao, paradio de nosso inimigo,/ Para que ele perea/ Comtodos os seus cmplices (Est 4,17r-17s). As s-plicas de Ester sero atendidas e Assuero permitiraos judeus que se vinguem de seus perseguidores.

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    A vitria dos judeus, nesse episdio, igualmentelrica, afinal ela assegurada por um recursoritualstico-subjetivista. O rei Assuero repete portrs vezes o juramento que faz sua rainha, apsela se mostrar inteiramente submissa e idlatra deseu marido, completamente diferente da esposaanterior. Ao se apresentar ao rei, depois do decretoassinado, a rainha faz uso de toda sua beleza efragilidade e, ao ser reanimada aps desmaiar di-ante dele, declara: Senhor, disse ela, eu te vi se-melhante a um anjo de Deus. Ento meu coraose perturbou e eu tive medo de teu esplendor. Poiss admirvel, senhor, e teu rosto cheio de encanto(Est 5,2a). Ester no cortou a cabea do mal,como fez Judite; cortou a indiferena do rei emrelao a seu povo. Fez-se dcil e confivel, capazde se submeter ao seu poder, o que contrariou ainformao de Am sobre o povo judeu. Assuerofaz a promessa a Ester, mas ao povo judeu queele estende o voto. Liricamente, por conta da re-petio ritualstica, o rei reitera em trs diferentesmomentos sua promessa:

    Dize-me o que desejas e, ainda que seja a metade de todo

    o meu reino, te darei (Est 5,3); Pede-me o que quiseres,

    rainha Ester, e te ser concedido. Ainda que me peas a

    metade do reino, t-la-s! (Est 7,2);

    S na cidade de Susa os judeus mataram e exterminaram

    quinhentos homens, bem como os dez filhos de Am.

    Que tero eles feito nas demais provncias do reino? E

    agora, pede-me o que quiseres e te ser concedido! O

    que ainda desejas, e ser feito! (Est 9,12).

    A mudana de fortuna do povo judeu pode serlida como caracterstica do drama, mas o que temrelevo na narrativa a astcia de Ester, o que irlhe conferir o ttulo do livro bblico. O elementolrico se estende leitura que Mardoqueu faz,posteriormente, do sonho que teve e que serviu deabertura para a narrativa:

    Tudo isso vem de Deus! Se recordo o sonho que tive a

    esse respeito, nada foi omitido: nem a pequena fonte que

    se converteu em rio, nem a luz que brilha, nem o sol,

    nem a abundncia das guas. Ester esse rio, ela que se

    casou com o rei, que a fez rainha. Os dois drages so-

    mos Am e eu. Os povos so aqueles que coligaram para

    destruir os judeus. Meu povo Israel, aqueles que invo-

    caram a Deus e foram salvos (Est 10,3a-3f).

    O que se observa na atribuio de sentido aosonho de Mardoqueu a relevncia simblica danarrativa. Aqui se tem presente uma das relaescaras ao filsofo Paul Ricoeur, a da ligao estreitaentre smbolo, como estrutura de duplo sentido, emetfora, como insero da renovao semnticano discurso. O smbolo no se transforma emmetfora porque, diferentemente dessa que ocorreno logos, ele ocorre na linha limtrofe entre bios elogos. O smbolo nasce no eixo congruente ondefora e forma coincidem. A diferena entre os dois crucial a metfora uma inveno livre dodiscurso, j o smbolo possui algo que no podeser reduzido a uma transcrio lingustica, semn-tica ou lgica. esse elemento irredutvel ao sen-tido que propicia a descontextualizao do smbo-lo e a recontextualizao em outros momentos,prtica que interessa ao texto bblico. O smbolocoloca em ao todo um trabalho com a lingua-gem e s atua quando sua estrutura interpretada,ou seja, quando ela incita compreenso. Contudo,o smbolo necessita da metfora, no prescindenem lhe superior, pois a metfora que organizao smbolo dentro da linguagem. O sonho deMardoqueu smbolo, medida que permite a in-terpretao dada por Mardoqueu, e metfora, medida que permite o acesso ao valor simblicodentro do texto. A nfase do sonho de Mardoqueuest na leitura de Ester como a pequena fonte quese converteu em rio. Ester a estrela que, fazendo-se doce e pequena, conduziu o povo judeu vin-gana contra seus inimigos.

    O encerramento da narrativa de Ester, diferente-mente do aspecto de totalidade da narrativa pica deJudite, fragmentado e inconclusivo. Ao lrico nointeressa informar a totalidade dos acontecimentos,no existe uma histria para contar, nem o poemapode despertar no leitor o desejo de saber como vaiacabar esse mesmo poema (AGUIAR E SILVA,1968, p. 235). No h desfecho na narrativa de Ester,no se sabe como viveu o resto de seus dias, nem sefoi adorada por seu povo. O ciclo se fecha comocomeou, com o sonho de Mardoqueu.

  • 90 GNERO E RELIGIO NAS ARTES

    As narrativas dessas trs mulheres, as nicas squais foram atribudos livros bblicos no AntigoTestamento, so histrias de sujeitos capazes, nosentido ricoeuriano do termo. Segundo PaulRicoeur, a identidade pessoal est condicionada aoexerccio de certas capacidades: a capacidade defalar, de agir, de contar, de se imputar e, principal-mente, de prometer e de cumprir com a palavradada. A promessa feita ao outro, em suas diferen-tes dimenses, como ocorreu com essas trsmulheres, tanto um esforo para existir quantopara ser responsvel por outro. Esse desejo deexistir deve ser discernido da afirmao vital de simesmo, e entendido como tributrio atribuio devalor conferida a mim pelo outro: cest un autre,comptant sur moi, [qui] me constitue responsablede mes actes6 (RICOEUR, 2003c, p. 130). A pro-messa faz do outro testemunha e garantia dosengajamentos do sujeito. As narrativas ficcionais,segundo Ricoeur, so o local, por excelncia, ondese manifestam os paradigmas de promessa. Nessesentido, explorando o carter metafrico dos textosliterrios e o fato de esse carter permitir adescontextualizao e a recontextualizao da nar-rativa em diferentes momentos, as narrativas des-sas trs mulheres representam trs formas de pro-messas sendo que cada uma delas expe apotencialidade feminina na caracterizao dos as-pectos particulares. A promessa individual de cada

    uma dessas mulheres s diferentes apreenses dooutro o igual em infortnio, o coletivo e ocompanheiro amoroso representa a dimenso dembitos da promessa maior, a da Aliana, a deDeus com seu povo.

    Referncias bibliogrficasAGUIAR E SILVA, Vtor Manuel de. Teoria da literatura.2. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1968.ALCARAZ, Rafael Camorlinga. A f dos crentes literrios.IHUon-line Revista do Instituto Humanitas Unisinos. SoLeopoldo, Unisinos, n. 251, Ano VIII, p. 14-16, 17 mar. 2008.ALTER, Robert. Um mergulho na narrativa bblica. IHUon-line Revista do Instituto Humanitas Unisinos. So Leopoldo,Unisinos, n. 251, Ano VIII, p. 12-14, 17 mar. 2008.ARISTTELES. Potica. Traduo, prefcio, introduo,comentrios e apndices de Eudoro de Sousa. 4. ed. Lisboa:Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1994.BBLIA. Portugus. A Bblia de Jerusalm. 5. ed. rev. SoPaulo: Paulus, 1996.HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Curso de esttica: o sis-tema das artes. Trad. lvaro Ribeiro. So Paulo: MartinsFontes, 1997.HOMERO. Ilada. Traduo, prefcio de notas de Pe. M.Alves Correia. Lisboa: Livraria S da Costa, 1944. v. 1.RICOEUR, Paul. La mtaphore vive. Paris: Le Seuil, 1975.____. Parcours de la reconnaissance. Trois tudes. Paris:Stock, 2004.____. Responsabilit et fragilit. Autres Temps, n. 76-77, 2003.SOETHE, Paulo. Teologia e Literatura: a cena alem. IHUon-line Revista do Instituto Humanitas Unisinos. So Leopoldo,Unisinos, n. 251, Ano VIII, p. 25-26, 17 mar. 2008.

    6 [] um outro, contando comigo, [que] me constituiresponsvel por meus atos.