tradução de literatura infalto-juvenil para língua de sinais

22
 T radução de literatura infanto-juvenil para língua de sinais: dialogia e polifonia em questão Translating Children’s Literature to Brazilian Sign Language: Dialogism and Polyphony  Neiv a de Aquino Albres* Universidade Federal de Santa Catarina Florianópolis – Santa Catarina - Brasil RESUMO:  O objetivo deste trabalho foi a criação de critérios para procedimentos de tradução de literatura infanto-juvenil do Português para a Libras. Para isso, neste artigo, recorremos aos conceitos de dialogia e polifonia de Mikhail Bakhtin. Mediante uma pesquisa de natureza analítico-descritiva, foi possível verica r que o intérprete não traduz apenas o texto, mas é intensamente motivado pelas ilustrações do livro, pelo gênero discursivo e pelo público-alvo potencial do material. PALAVRAS-CHAVE: procedimentos de tradução, tradução de literatura infantil, Libras, dialogia, polifonia.  ABSTRACT : The object of this work was to establish some criteria regarding the procedures for the Translation of children’s literature from Portuguese into Brazilian Sign Language (Libras). To achieve this we applied the concepts of dialogism and polyphony defended by Mikhail Bakhtin. Based on an analytical and descriptive research, it was possible to verify that the sign language interpreter does not translate the text alone but is greatly stimulated by the book’s illustrations, by the discursive genre, and by the material’s prospective target audience. KEYWORDS: translation procedures, children’s literature translation, Libras dialogism, polyphony. *[email protected] http://dx.doi.org/10.1590/1984-639820145540

Upload: bia-flores

Post on 05-Oct-2015

6 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

No artigo apresentado nos mostra critérios utilizados no processo tradutório de acordo com os conceitos de dialogia polifonia de Bakhtin.

TRANSCRIPT

  • RBLA, Belo Horizonte, aop6014

    Traduo de literatura infanto-juvenil para lngua de sinais: dialogia e polifonia em questoTranslating Childrens Literature to Brazilian Sign Language: Dialogism and Polyphony

    Neiva de Aquino Albres*Universidade Federal de Santa Catarina Florianpolis Santa Catarina - Brasil

    RESUMO: O objetivo deste trabalho foi a criao de critrios para procedimentos de traduo de literatura infanto-juvenil do Portugus para a Libras. Para isso, neste artigo, recorremos aos conceitos de dialogia e polifonia de Mikhail Bakhtin. Mediante uma pesquisa de natureza analtico-descritiva, foi possvel verificar que o intrprete no traduz apenas o texto, mas intensamente motivado pelas ilustraes do livro, pelo gnero discursivo e pelo pblico-alvo potencial do material.PALAVRAS-CHAVE: procedimentos de traduo, traduo de literatura infantil, Libras, dialogia, polifonia.

    ABSTRACT: The object of this work was to establish some criteria regarding the procedures for the Translation of childrens literature from Portuguese into Brazilian Sign Language (Libras). To achieve this we applied the concepts of dialogism and polyphony defended by Mikhail Bakhtin. Based on an analytical and descriptive research, it was possible to verify that the sign language interpreter does not translate the text alone but is greatly stimulated by the books illustrations, by the discursive genre, and by the materials prospective target audience.KEYWORDS: translation procedures, childrens literature translation, Libras dialogism, polyphony.

    *[email protected]

    http://dx.doi.org/10.1590/1984-639820145540

  • RBLA, Belo Horizonte, aop6014

    1. Introduo

    A importncia do ato de contar histrias para crianas surdas defendida por Lebedeff et al. (2005), considerando que a literatura um fenmeno da linguagem e uma experincia essencialmente cultural. Para as autoras, a literatura fundamental para a formao do indivduo, sendo ela transmitida de gerao para gerao pela literatura oral ou pela literatura escrita.

    Nas ltimas dcadas, no Brasil, ocorreram importantes conquistas das comunidades surdas, em diferentes espaos, principalmente, o reconhecimento da Lngua Brasileira de Sinais - Libras (BRASIL, 2002). Alm disso, investigaes nas reas da educao e da literatura apontaram para a importncia da lngua de sinais na educao dos surdos, fortalecendo a educao em uma perspectiva bilngue. Essas investigaes envolvem pesquisas sobre as narrativas e histrias contadas por surdos em Libras (KARNOPP, 2010; MOURO, 2012). Tais fatos tornaram fecundas as reflexes sobre a literatura surda e a traduo/interpretao de literatura infanto-juvenil para a produo de materiais digitais Portugus/Libras (RAMOS, 2000; ALBRES, 2012).

    Considerando a relevncia educacional e social das produes de materiais bilngues, em especial, os literrios, tais como os livros traduzidos para a Libras, e a especificidade do pblico-alvo ser de crianas e jovens surdos, procederemos com a anlise de um material digital publicado em CD-ROM, que registre o fazer do tradutor materializado em videogravao.

    Esses materiais bilngues so utilizados para o letramento de crianas surdas, como uma leitura da escrita, bem como uma leitura das imagens do livro. Reily (2003) considera que os educadores de surdos devem refletir mais sobre o papel da imagem visual na apropriao do conhecimento de crianas surdas.

    O uso da imagem em livros vai alm da mera ilustrao, contribuindo com a construo de sentidos e com o letramento visual, tendo diferentes funes, como:

    ler imagens do entorno; 2. ler imagens de livros ilustrados; 3. usar imagens visuais como apoio para leitura de texto simples; 4. ler sinais, smbolos e figuras no ambiente escolar com o objetivo de promover a alfabetizao; 5. criar imagens visuais significativas para registrar compreenso de tarefas; 6. usar figuras em textos de no fico como apoio da aprendizagem de contedo escolar; 7. usar figuras em textos de fico como apoio para aprendizagem de contedo escolar; e, finalmente 8. ler a pgina - diferentes maneiras de apresentar o texto e as figuras (HUGHES, 1998 apud REILY, 2003, p.165).

  • RBLA, Belo Horizonte, aop6014

    Essas estratgias de leitura no podem ser ignoradas pelos tradutores de livros bilngues para crianas surdas. Os aspectos lingusticos tambm devem ser observados, considerando-se que a lngua de sinais de modalidade gestual-visual. Alm disso, o processo de retomada de referentes na lngua de sinais brasileira (Libras) tambm se organiza de outra forma, diferente do portugus, cuja modalidade oral-auditiva. Para Barbosa e Viotti:

    Alm de sintagmas nominais e de gestos de apontamento, outros recursos podem ser utilizados para a reativao de referentes, como pantomimas, que podem incluir movimentos do tronco, posio da cabea, expresses faciais, direo do olhar e partes de sinais associados a determinadas personagens (BARBOSA; VIOTTI, 2011, p.62).

    Nesse sentido, interessa-nos compreender como os tradutores trabalham com as ilustraes do livro no processo de significao e em que medida essas ilustraes o auxiliam na construo de suas enunciaes em Libras, tendo como pblico-alvo a criana ou o jovem leitor surdo.

    A traduo materializada por meio da videogravao, edio e composio de material didtico-pedaggico serve de rica fonte para descrio e anlise dos modos de fazer dos tradutores, nessas condies e para a produo de conhecimento no campo das metodologias, visando implementar a traduo de/para a lngua de sinais. A partir da reflexo do fazer dos tradutores podemos construir conhecimento sobre essa rea (AZENHA, 2005).

    2. Dialogismo e polifonia na traduo1

    Toda enunciao, mesmo na forma imobilizada da escrita, uma resposta a alguma coisa e construda como tal. Toda inscrio prolonga aquelas que a precederam, trava uma polmica com elas, conta com as reaes ativas

    da compreenso, antecipa-as (BAKHTIN, 1992, p. 98).

    1 A distino tradicional que se faz entre traduo e interpretao que a nfase no conhecimento lingustico necessrio ao processo de traduo est na lngua escrita, ao passo que para a interpretao se faz necessrio o domnio da lngua oral (PAGURA, 2003, p.230), como tambm o tempo e possibilidade de pesquisa em ambos os casos bem diferente. Desta forma, quando tratarmos da traduo analisada neste artigo, utilizaremos o termo traduo, visto que o trabalho do tradutor envolveu o processo de estudo, preparao, gravao e edio do produto final (texto em Libras vdeo-gravado).

  • RBLA, Belo Horizonte, aop6014

    Essencialmente, o trabalho do tradutor/intrprete exige o lidar com a linguagem, consistindo em dizer algo de um para outro. Para Bakhtin/Volochnov (1992), toda linguagem dialgica, ou seja, todo enunciado sempre um enunciado de algum para algum, e a orientao dialgica um fenmeno prprio do discurso. Logo, o tradutor/intrprete est envolvido na relao entre emissor e receptor, e participa dela quando h comunicao de falantes que usam lnguas diferentes.

    O tradutor leitor, interlocutor do autor do texto-fonte e (co-)autor, quando desenvolve a tarefa de traduo. O dilogo e a polifonia s se tornam conceitos aplicveis dessa tarefa pelo reconhecimento de outra conscincia, de outro eu, copartcipe da interlocuo. A condio bsica para a produo do dilogo, e, por conseguinte, para a definio do binmio dialogismo/polifonia a da expresso das contradies e conflitos inerentes natureza histrico-cultural do eu (SOBRAL, 2008).

    A expresso do locutor, como produo individual, denominada de individualidade criadora, psiquismo, ou ainda, mundo interior (BAKHTIN, 1992, p.44, p.125). Para o autor, o individual se relaciona, imperiosa e dialeticamente, com o social/global, refratado pelas contradies e relaes entre o eu e os outros, nos mltiplos espaos sociais. Dessa forma, a expresso individual cruzada por diferentes vozes, pelos sentidos tambm construdos a partir da polifonia que envolve o tradutor/intrprete.

    O tradutor/intrprete de Libras, na atividade de compreenso do texto em uma lngua e no processo ativo de produo de enunciados em outra lngua, responde ao emissor (autor do livro) e enuncia respondendo a sua conscincia sobre as necessidades do receptor em potencial (criana surda - no caso, de literatura infanto-juvenil). Assim, termina trabalhando dialogicamente com o eu e os outros.

    A polifonia acontece justamente pelo encontro das diversas conscincias, na simultaneidade de signos e de vozes, as quais, por sua vez, se aproximam e distanciam em nossa psique no processo de resposta, ou seja, da atividade responsiva que desenvolvemos na relao do eu e o outro no processo da traduo.

    Todo enunciado um elo na cadeia da comunicao discursiva e no pode ser separado dos elos precedentes que o determinam, tanto de fora quanto de dentro, gerando nele, atitudes responsivas diretas e ressonncias dialgicas (BAKHTIN, 2010, p. 300). Em um determinado momento, como receptor do discurso impresso (livro), o tradutor/intrprete desenvolve uma atividade mental, relaciona-a com suas experincias, seu repertrio e compreende, para ento, construir um novo discurso na lngua de destino.

    [...] Portanto, toda compreenso plena real ativamente responsiva e no seno uma fase inicial preparatria da resposta. O prprio falante est

  • RBLA, Belo Horizonte, aop6014

    determinado precisamente a essa compreenso ativamente responsiva: ele no espera uma compreenso passiva [...] (BAKHTIN, 2010, p. 271-272).

    na enunciao concreta que o tradutor/intrprete constri sua contra palavra, ou seja, suas respostas ao discurso recebido, que conversa com suas experincias lingusticas e culturais, que generaliza, que reflete como enunciar o dito em outra lngua. Lugares de enunciao, coletivamente constitudos, conduzem construo de diferentes sentidos do enunciado, ainda que esse enunciado se preserve com as mesmas palavras, oraes ou estruturas. Portanto, a traduo no se reduz a um fenmeno meramente lingustico. Contudo, revela-se como uma refrao fecunda do eu, como versa Bakhtin (1992):

    O ser, refletido no signo, no apenas nele se reflete, mas tambm se refrata. O que que determina esta refrao do ser no signo ideolgico? O confronto de interesses sociais nos limites de uma s e mesma comunidade semitica, ou seja: a luta de classes. Classe social e comunidade semitica no se confundem. Pelo segundo termo, entendemos a comunidade que utiliza um nico e mesmo cdigo ideolgico de comunicao. Assim, classes sociais diferentes servem-se de uma s e mesma lngua. Consequentemente, em todo signo ideolgico confrontam-se ndices de valor contraditrios (BAKHTIN, 1992, p.47 - grifos no original).

    Refrao do eu, assinalada acima, d-se pelo contato com o discurso alheio, da busca ativa pelo sentido da inteno do outro (autor), ou seja, na construo do dilogo responsivo ativo. Formaes discursivas so configuraes ideolgicas diludas no nterim comunicativo. Logo, podemos concluir que as expresses em lnguas orais ou em lnguas de sinais, fora da comunicao entre falantes concretos, so desprovidas de afeies ou, nos termos de Bakhtin (2010), de juzos de valor:

    H palavras que significam especialmente emoes, juzos de valor: alegria, sofrimento, belo, alegre, triste etc. Mas tambm esses significados so igualmente neutros como todos os demais. O colorido expressivo s se obtm no enunciado, e esse colorido independe do significado de tais palavras, isoladamente tomado de forma abstrata [...] (BAKHTIN, 2010, p. 292).

    O tradutor/intrprete, a todo o momento, faz uso de juzo de valor no processo de interpretao, h valorao do contedo da obra, da relao desse contedo com seus valores pessoais e da sociedade em que vive, como

  • RBLA, Belo Horizonte, aop6014

    tambm, h valorao do pblico a quem se destina a sua traduo. Essa cadeia de atividade psquica caracterizada como resposta aos enunciados precedentes (BAKHTIN, 2010, p.297). Respostas essas, que so construdas para confirmar ou refutar tais enunciados. As respostas so dadas no sentido de posicionamento ou reao, referente formulao precedente e essencial na tarefa do tradutor/intrprete de refletir e dialogar com seus outros no processo de construo de enunciaes na lngua de destino da traduo.

    Quando da traduo de livro impresso, o tradutor assume o papel de interlocutor e de locutor, ativando o dilogo e a polifonia (SOBRAL, 2008). Em sua tarefa, est essencialmente presente o eu e o outro.

    No campo dos estudos da traduo, a questo da (in)fidelidade da traduo desde o incio foi um problema posto, autores ps-modernos questionam a originalidade dos textos e pregam a diluio da autoria, levando em considerao a subjetividade do tradutor (ARROJO, 2004).

    3. Percurso Metodolgico

    A pesquisa foi desenvolvida objetivando compreender e formular critrios tradutrios para uma traduo de literatura infanto-juvenil, do Portugus para a Libras, a partir da anlise de uma obra literria traduzida. Situa-se no campo das investigaes qualitativas da linguagem, portanto, configura-se como uma pesquisa de natureza analtico-descritiva.

    Selecionamos a obra Guilherme Augusto Araujo Fernandes2, de autoria de Mem Fox, editada no Brasil pela Editora Brinquebook e traduzida por Neiva de Aquino Albres e Sylvia Lia Grespan Neves para a Libras.

    IMAGEM 1: Capa do Livro Guilherme Augusto Arajo Fernandes

    2 Sinopse do livro: http://www.brinquebook.com.br/livro.php?livro=103

  • RBLA, Belo Horizonte, aop6014

    A anlise foi realizada a partir de uma posio exotpica, em que o pesquisador se coloca como observador da produo discursiva (BAKHTIN, 2010). Na anlise exotpica, h uma tenso entre o eu e o outro, em que o pesquisador toma uma posio nica, a partir do espao/tempo que ocupa e se expe ao devir. Como ser cognoscente, o pesquisador constri uma anlise particular sobre os dados. Assim, a obra de literatura infanto-juvenil traduzida algo inacabado e parte integrante e inconclusa da experincia do pesquisador, estando disponvel para o acabamento, para sua interpretao e para a construo de novos conhecimentos sobre ela. Assinar iluminar e validar o pensamento com aquilo que somente do meu lugar se pode ver ou dizer. Esse lugar nico daquele que pensa ou cria aquele do conceito de exotopia [...] (AMORIM, 2009, p. 25).

    A partir da anlise geral da obra, selecionamos alguns trechos para compor o relatrio da pesquisa e, dessa forma, construmos os dados. Como procedimento, foi realizada a decupagem da traduo para lngua gestual-visual (ato de recortar, dando forma impressa/congelada sinalizao), possibilitando o registro, para ento descrever detalhadamente a sequncia enunciativa e compar-la com a ilustrao do livro e com o texto-fonte (portugus).

    Aps a seleo dos trechos, organizamos a apresentao dos dados da seguinte forma:

    Expusemos a contextualizao do texto-fonte (escrito em portugus);Apresentamos a imagem original da pgina (tela) do CD-ROM;Descrevemos o texto em portugus e a ilustrao do livro;Apresentamos em uma tabela o texto em portugus e, logo abaixo, a

    traduo para a Libras (decupagem) acompanhada da Glosa3 de cada sinal. Numeramos os sinais lexicais componentes de cada trecho, para serem mais facilmente retomados na anlise, denominando-os de sinais.

    Construmos tambm um esquema visual que permitisse a anlise da traduo para a Libras em conjunto com a ilustrao da pgina do livro,

    3 McCleary et al. (2010) consideram que, para glosar um discurso em Libras, necessrio garantir um vnculo unvoco entre a palavra usada para a glosa (que tem a funo de nomear o sinal) e a sua forma. Ressaltam ainda que, para a apresentao e anlise de trechos de discurso espontneo ou semiespontneo, o sistema de glosas simples bastante limitado. Fazem-se muitas vezes necessrios outros recursos, j que uma mesma configurao de cabea, tronco e face pode tambm ter diferentes funes no discurso. Para eles, a transcrio o registro daquilo que diretamente observado na gravao.

  • RBLA, Belo Horizonte, aop6014

    apresentando a ilustrao dos sinais produzidos pela tradutora em uma nica linha, a fim de relacion-la ilustrao do livro.

    Esses recursos de anlise podero ser apresentados, todos ou somente o que for necessrio, de acordo com a discusso de cada categoria de anlise.

    A partir da observao do todo das enunciaes, pudemos proceder anlise da traduo da obra, segundo duas categorias: a) Uso do espao pelo tradutor para o processo de gerao de sentidos; e b) Espaos na perspectiva do leitor de texto multimodal. Identificamos as estratgias utilizadas, as semelhanas e as modificaes entre as obras (Portugus/ Libras) e os recursos lingusticos e discursivos empregados pelas tradutoras. A anlise foi realizada a partir da teoria enunciativo/discursiva, construda por Bakhtin/Volochnov (1992).

    4. Anlise dos dados

    A forma como o tradutor em seu trabalho construiu os sentidos sobre o texto-fonte e o materializou em texto de chegada (videogravao) nos servem de dados para serem analisados luz da teoria enunciativo/discursiva.

    Organizamos a anlise em duas categorias: a) Uso do espao pelo tradutor para o processo de gerao de sentidos, e b) Espaos referenciais na perspectiva do leitor de texto multimodal. Na primeira categoria, analisamos dois trechos de traduo correspondentes a duas pginas do livro, de sequncia aleatria, mas que revelam o processo de gerao de sentidos a partir do texto verbo-visual. J na segunda categoria, analisamos a visualizao de uma pgina do livro para a discusso da visualizao do material digital em Libras.

    As convergncias e divergncias entre a lngua portuguesa e a lngua de sinais nos possibilitaram identificar critrios tradutrios dos tradutores para produzir sentidos correspondentes na lngua de chegada, ou seja, em Libras.

    a) Uso do espao pelo tradutor para o processo de gerao de sentidos

    Trecho 1- Contextualizao:

    O ttulo Guilherme Augusto Araujo Fernandes o nome do personagem (menino) que era vizinho de um asilo de idosos, todos seus amigos. Mas, era de Dona Antnia que ele mais gostava. Essa a primeira pgina do livro e introduz o contexto e o espao fsico em que se desencadeia a histria.

  • RBLA, Belo Horizonte, aop6014

    IMAGEM 2: pgina do CD-ROM

    Na pgina analisada (imagem 2), apresentado o seguinte texto escrito: Sua casa era ao lado de um asilo de velhos e ele conhecia todo mundo que vivia l. No que diz respeito elaborao lexical, gramatical e sinttica do texto em portugus, a composio geral se destaca pela simplicidade. O uso cotidiano e o registro coloquial da linguagem permeiam a narrativa. A ilustrao apresenta o menino brincando no quintal de sua casa, em primeiro plano; e uma parte da casa vizinha com pessoas na varanda separada por um muro, em segundo plano. Dessa forma, o texto e a imagem introduzem dois espaos distintos, a casa e o asilo.

    Apresentamos a seguir que critrios a tradutora adotou para expressar esses dois espaos diferentes (Tabela 1 referente ao trecho 1).

    TABELA 1

    Vdeo disponvel em: https://www.youtube.com/watch?v=nNyp9yZmd6U

  • RBLA, Belo Horizonte, aop6014

    Do trecho 1, destacamos a intensa discursividade verbo-visual como motivadora da enunciao da tradutora. Dessa forma, a tradutora no l apenas as palavras do livro, mas tambm l e atribui sentido, considerando a ilustrao, a forma grfica, bem como o contexto social em que a leitura se d. A ilustrao visual traz consigo o potencial de ser aproveitada como recurso para transmitir conhecimento sobre o espao onde se passa o conto. Pudemos levantar que os termos BRINCAR2, BALANAR3, NO-MEIO-MURO4, SENTADOS8 foram motivados pela ilustrao do livro, visto que, no constam no texto-fonte em portugus. Da mesma forma que o termo vivia foi omitido na traduo como elemento lexical, j que estar sentado na varanda do asilo indicaria a sua permanncia nesse local, ou seja, viver l.

    Para a construo do efeito de espacialidade na enunciao em Libras, a tradutora usa o movimento do corpo, o local de sinalizao no espao, a apontao e a direo do olhar. Barbosa (2011) menciona que a referenciao em Libras faz uso de sinais manuais e pronomes, de marcas no manuais como posio da cabea e do tronco e expresses faciais especficas, sendo estas referenciaes relevantes na introduo e retomada de referentes do discurso.

    A seguir, apresentamos um esquema para indicar a introduo dos referentes, com base na ilustrao do livro, a partir do movimento do corpo em direo a esses dois espaos mentais,4 sendo que diminumos a imagem da sinalizao para que fiquem em uma nica linha.

    ESQUEMA 1

    4 Espaos mentais so mecanismos de instaurao da pessoa no discurso e esto relacionados a particularidades discursivas, onde referentes dos sinais de apontamento so projetados ao redor do corpo do sinalizador. Liddell (2003) define a integrao de espaos mentais como uma operao cognitiva geral, que combina ou mistura espaos mentais diferentes a fim de criar algum significado.

    Indicao dos dois espaos mentais, a casa e o asilo do trecho 1

  • RBLA, Belo Horizonte, aop6014

    No incio da enunciao, a tradutora tende o corpo para o lado direito e, ao final, para o lado esquerdo (na perspectiva do sinalizador), como verificamos no sinal 1 e 12, e ao meio indicado pela ilustrao do muro, os sinais 4, 5 e 6, a tradutora demarca a fronteira entre os dois espaos; a partir do sinal 6, a direo do olhar se volta para o espao do asilo, o posicionamento do corpo da tradutora acompanha a imagem referencial (ilustrao do livro).

    Concordamos com Sobral (2003) quando ele considera que o tradutor no repete, mas transcria. No trecho 1, fica evidenciada a atividade de leitor e de um novo enunciador da tradutora, respeitando o modo de ser da lngua para a qual traduz sem perder o texto a ser traduzido. Identificamos tambm que, alm da tradutora no perder o texto, ela no perdeu a imagem, ou seja, o todo verbo-visual indispensvel para a leitura, sendo modelo de leitor para seu pblico-alvo potencial, crianas e jovens surdos.

    O processo de leitura do livro como um todo, das imagens e do texto, por isso, Reily (2003) considera que, para alunos surdos, o caminho da aprendizagem necessariamente ser visual, da a importncia dos tradutores de material literrio e didtico-pedaggico compreenderem mais sobre o poder constitutivo da imagem.

    Esse trabalho no meramente lingustico, mas essencialmente discursivo. A primeira pgina do livro requer a introduo dos espaos da casa e do asilo. No prximo trecho, descreveremos tambm sobre o uso de dois espaos, porm, com o propsito de apresentar o discurso dos personagens.

    Trecho 2- Contextualizao:

    Quando o menino (Guilherme) soube que a Dona Antonia, a idosa que ele mais gostava, perdera a memria, ele quis saber o que isso significava e foi perguntar aos outros moradores do asilo. Cada idoso o respondera de uma forma, respostas abstratas que o conduziram no processo de construo do conceito de memria. O menino obteve vrios tipos de respostas, neste trecho analisado, da senhora Silvano, por exemplo, que lhe conta que a memria algo quente.

  • RBLA, Belo Horizonte, aop6014

    IMAGEM 3: pgina do CD-ROM

    Na pgina analisada (imagem 3) apresentado o seguinte texto escrito:Mas Guilherme Augusto queria saber mais; ento, ele procurou a Sra.

    Silvano que tocava piano.- O que uma memria? - perguntou.- Algo quente, meu filho, algo quente.Na ilustrao, podemos ver a idosa, senhora Silvano, segurando com

    as duas mos uma cumbuca apoiada em uma base (mesa); e o menino, ao seu lado, empilhando uns quadradinhos.

    Para melhor organizao da anlise, dividimo-la em duas partes. Primeiro, discorremos sobre a introduo (trecho 2a), e depois, analisamos o dilogo entre os personagens (trecho 2b).

    TABELA 2

    IMAGEM 3: pgina do CD-ROM

    Sequncia da sinalizao apresentada na traduo (trecho 2a)

    Vdeo disponvel em: https://www.youtube.com/watch?v=IjCfeuActyM

  • RBLA, Belo Horizonte, aop6014

    Na primeira sentena (trecho 2a), que estava em formato de narrativa, a tradutora fez uso do procedimento de reconstruo do perodo (BARBOSA, 2004), em que requereu a ateno de como a organizao de cada lngua (portugus e Libras) fazendo com que redividisse o perodo da lngua-fonte para a lngua-alvo, a Libras.

    Na primeira parte manteve-se a postura e expresso corporal de narrador da histria, pois direciona o olhar para o leitor e foi motivada pelas condies lingustico-culturais da comunidade alvo da traduo, ou seja, da comunidade surda e de suas formas de dizer na sua lngua espao-visual. Logo, inicia-se a produo em Libras com uma pergunta, mesmo que, no texto-fonte em portugus, a estrutura sinttica no tenha sido essa. Assim, a sentena GUILHERME

    1 ENTENDER

    2 PRONTO

    3 SIGNIFICADO

    4

    MEMRIA5? NO

    6, em Libras, corresponde a uma pergunta retrica, a

    qual, conforme indicado por Albres (2010) constitui um recurso lingustico da Libras, muito usado em contao de histrias.

    Na segunda parte (trecho 2a) do perodo, a tradutora faz uso do espao mental sub-rogado5 (incorporando o menino). Nessa parte do trecho 2a traduzido, predominam oraes simples e curtas em ordem direta. O sujeito em portugus est em terceira pessoa (ele) e a tradutora, durante o procedimento de traduo, transforma-o em discurso direto, usando a primeira pessoa (eu). Essa estrutura essencial enunciao que envolve incorporao dos personagens.

    Fica evidente que [...] o discurso no um amontoado de palavras, mas um todo arquitetnico, nem existe traduo que despreze os modos de uso das palavras na lngua traduzida e consiga criar efeitos semelhantes na lngua para a qual se traduz (SOBRAL, 2003, p. 208). Dessa forma, a tradutora usa da individualidade criadora, relacionando-se dialeticamente com as duas culturas envolvidas na traduo. Consideramos que, nessa perspectiva, a traduo de ordem lingustico-discursiva e no meramente lingustica.

    5 O espao mental sub-rogado um espao integrado, em que os sinalizadores podem assumir o papel de qualquer participante da situao narrada e sinalizar como se fossem eles. Essas entidades criadas pelo sinalizador so entidades sub-rogadas, ou seja, so representaes mentais em tamanho natural, que assumem posies realistas, por serem incorporadas pelo prprio sinalizador (MOREIRA, 2007).

  • RBLA, Belo Horizonte, aop6014

    Apresentamos a seguir a anlise do trecho 2b:

    TABELA 3

    Os dilogos entre o menino (protagonista) e os idosos, os quais ocupam vrias pginas de todo o conto, exigem do tradutor o uso da incorporao dos personagens, ou seja, o uso do espao mental sub-rogado. Se tal recurso lingustico pode garantir a fluidez do texto em Libras, constatamos que, algumas especificidades so executadas de forma cautelosa, para que essa incorporao seja coerente com a imagem projetada logo abaixo do local em que a tradutora ocupa na tela do CD-ROM, para que, assim, propicie a construo de sentidos de quem fala o que para quem. A fim de construir

    Sequncia da sinalizao apresentada na traduo (trecho 2b)

    TABELA 3

    Vdeo disponvel em: https://www.youtube.com/watch?v=IjCfeuActyM

  • RBLA, Belo Horizonte, aop6014

    o efeito de tecido textual em Libras que compe um material multimodal, a tradutora faz uso do movimento do corpo e da direo do olhar para explicitao de qual personagem enuncia.

    O incio da relao da sinalizao com a imagem se realiza pela incorporao do jeito e da ao da Sra. Silvano tomando algo quente. Pela pantomima, a tradutora leva o leitor a relacionar a ilustrao do livro (Sra. Silvano) com a sua sinalizao (sinal 14). A tradutora introduz a informao de que Guilherme brincava na situao e de que, lentamente, a idosa tomava algo em uma cumbuca (sinal 19-20 e sinal 25, respectivamente). Motivada pela posio da ilustrao a ser lida pelo interlocutor, coloca o corpo para o lado direito (na perspectiva do sinalizador) para representar Sra. Silvano e o corpo para o lado esquerdo (na perspectiva do sinalizador) ao representar o Guilherme; aqui tambm, o posicionamento do corpo da tradutora acompanha o posicionamento dos personagens ilustrados na pgina do prprio livro.

    Entretanto, no s o posicionamento que indica quem est enunciando em Libras, mas a pantomima, o gesto motivado pela ilustrao do livro tambm tem um feito fundamental para essa leitura. No texto escrito em portugus, no h meno da ao de brincar, mas o tradutor foi motivado pela ilustrao contida na pgina do livro, para criar o contexto espao-visual de sinalizao e enuncia BRINCAR18 ENCAIXAR19, assim como no h a meno do ato de TOMAR

    25, tambm incorporado na

    sinalizao da tradutora.

    ESQUEMA 2

    Indicao dos dois espaos mentais, o Silvano e o Guilherme do (trecho 2b)

  • RBLA, Belo Horizonte, aop6014

    O que enunciado nesse espao pr-determinado pelo sinal TOMAR14

    ou GUILHERME

    15 o discurso direto ou a incorporao gestual dos

    personagens delimitados. A incorporao do personagem com base na ilustrao, nesse caso, tende tambm a indicar a troca de turno de fala.

    No processo de interpretao, vamos construindo sentidos sobre o texto e tecendo nossos juzos de valor. Apesar de o tradutor ser tambm um interlocutor, nesse momento, ele tem um papel especial de emissor, que faz escolhas do que e como traduzir.

    Um ponto interessante a se discutir : At onde interpretar? Poderia o tradutor fazer uma explicao do sentido de quente? Sim, poderia. Todavia, a tradutora compreendeu que no cabe ao tradutor interpretar o sentido de quente... Cabe ao leitor final fazer essa interpretao. Mesmo porque, a cada idoso para quem pergunta sobre o significado de memria, Guilherme tem uma resposta diferente. Guilherme ouve que memria algo: bem antigo, que faz chorar, faz rir, vale ouro e que quente... Ento, a cada resposta dessas, h diversas possibilidades interpretativas, na busca pelo sentido pretendido pelo autor (escritor) sendo do leitor final a tarefa de faz-lo.

    Constatamos que, para introduzir a Senhora Silvano nessa pgina do livro, a tradutora fez uso da pantomima TOMAR14; esse personagem retomado usando a mesma pantomima logo depois do sinal de TOMAR25. Para apresentar o que a Senhora Silvano enuncia, foi mantido o trao dessa pantomima em uma das mos, ou seja, a mo esquerda em suspenso com o formato da mo do sinal TOMAR, como se estivesse segurando a cumbuca em toda a sinalizao subsequente (sinais 26 a 30). Ao introduzir o personagem Guilherme, motivado pela ilustrao do livro, enuncia GUILHERME15 BRINCAR17, quando da enunciao de Guilherme, que pergunta o que significa memria, a tradutora mantm parte do sinal BRINCAR em uma das mos, construindo um tecido lingustico-discursivo (sinais 19 a 22).

    Concordamos com Barbosa (2012) que, nas lnguas sinalizadas, por serem elas de natureza gesto-visual, a referncia s entidades feita espacialmente, com o uso de sinais e gestos, que aparecem tanto na introduo quanto na retomada de referentes. Por isso, as escolhas de formas referenciais, nos discursos sinalizados, esto, fundamentalmente, relacionadas organizao espacial e traduo de livros de literatura infanto-juvenil com ilustraes, as quais, por sua vez, iluminam as possibilidades de criao dos espaos e marcas dos personagens.

  • RBLA, Belo Horizonte, aop6014

    Apesar das ilustraes servirem de fonte inspiradora para a criao da introduo e retomada dos referentes, cabe destacar o papel autoral do tradutor. Assim, identificamos a individualidade criadora fortemente marcada pela reao do eu e dos outros do tradutor.

    b) Espaos referenciais na perspectiva do leitor de texto multimodal

    Atualmente, as crianas e jovens tm se apropriado de diferentes linguagens presentes em um texto, quer seja impresso ou digital. H capacidades que se mobilizam na leitura de textos em que essas diferentes linguagens se fazem presentes textos multimodais (BARROS, 2009). Para a autora (2009), cada linguagem dessas tem sua representao especfica, produzida culturalmente, alm de seu potencial comunicacional. Consideramos que materiais didticos e de literatura infanto-juvenil para surdos so organizados em mdias digitais que congregam, na mesma pgina, a ilustrao, o texto e a imagem do tradutor/intrprete enunciando em lngua de sinais.

    No esquema 3, indicamos o panorama de visualizao do leitor a quem se destina o material traduzido. necessria, ao tradutor, a sensibilidade

    ESQUEMA 3

    Indicao da visualizao do CD-ROM pela criana ou jovem.Vdeo disponvel em: https://www.youtube.com/watch?v=8U0Z3y0QVIk

  • RBLA, Belo Horizonte, aop6014

    de organizar espacialmente lugares, objetos e pessoas para que seja possvel interpret-los, fazendo a relao da ilustrao com a enunciao do tradutor, ou seja, que use da mesma direo do movimento, da direo do olhar e da sinalizao para com a posio dos personagens e objetos na tela, considerando que sua videogravao compor um texto multimodal, facilitando, assim, a leitura do material pelo pblico-alvo.

    No trecho selecionado (esquema 3), o texto apresenta a seguinte mensagem: E os dois sorriram e sorriram, pois toda a memria perdida de Dona Antonia tinha sido encontrada, por um menino que nem era to velho assim. Por sua vez, a ilustrao apresenta os dois personagens frente a frente e a Dona Antnia de braos abertos, indicando o incio de um abrao; e o menino (Guilherme), segurando uma bola e com o corpo direcionado para a idosa (acima) espera desse contato corporal. J o texto escrito, faz referncia ao sorriso mtuo.

    A tradutora constri sua enunciao expressando um abrao ao final, visto que essa se refere ltima pgina do livro. Aqui, destacamos um ponto que revela a subjetividade do ato da traduo. Assim, o sorriso face a face dos personagens incorporado e complementado com a enunciao do abrao. A enunciao da tradutora no final da histria marcada pela construo discursiva relativa a um encerramento e motivada pela ilustrao do livro, apesar de no constar explicitamente no texto-fonte em portugus. O cuidado com os espaos referenciais pela tradutora congrega o texto verbo-visual. Imagem, escrita e sinalizao compem um todo a ser lido e interpretado pelo leitor surdo, tanto que o corpo da tradutora, no momento em que incorpora a idosa abraando a criana, est posicionado na mesma direo que a ilustrao da idosa impressa na tela.

    5. Anotaes conclusivas

    As anotaes que apresentamos sobre esse texto, a partir de uma produo de traduo e de uma reflexo descritivo-analtica, revelam uma perspectiva lingustico-discursiva de traduo. No campo do discurso de literatura infanto-juvenil, constatamos o quanto o tradutor motivado pela organizao verbo-visual (texto escrito e ilustrao) do livro impresso e trabalha na construo de outro texto verbo-visual (texto escrito, ilustrao e sinalizao), compondo um material digital (CD-ROM) em Libras.

    Tomamos como categoria de anlise o uso dos espaos referenciais: primeiro, apontando os critrios para a construo da enunciao pelo

  • RBLA, Belo Horizonte, aop6014

    tradutor e, segundo, considerando a perspectiva do leitor do material digital para a produo da traduo. Na traduo analisada, fez-se uso de dois espaos para indicar localidades (casa e asilo) e dois espaos distintos para apresentar o discurso dos personagens (Sra. Silvano e Guilherme).

    Quando da indicao de espaos fsicos, a tradutora fez uso de movimento do corpo, da produo do sinal no local espao referencial, da apontao e da direo do olhar. Quando da indicao de espaos de enunciao, para referir-se aos diferentes personagens, a tradutora fez uso de recursos lingusticos, como movimento do corpo, tomando como motivao a localizao do personagem na ilustrao, da apontao, direo do olhar e da pantomima para introduzir e para retomar os personagens do discurso.

    A tradutora cuidou de reunir as diferentes linguagens a serem congregadas em uma mesma pgina da mdia digital, considerando que a leitura dos espaos estabelecidos para os referentes devem ser apresentadas na perspectiva do possvel leitor de texto multimodal, tendo conscincia de que esse pblico-alvo de crianas e jovens surdos. A tradutora congrega os diferentes textos para compor o novo texto, sendo modelo de leitor para o pblico-alvo potencial.

    No menos importante, os aspectos discursivos so apreciados ao introduzir a histria, especificando os espaos em que o conto acontece (primeira pgina do livro), e ao finalizar a histria, com um abrao entre os principais personagens (ltima pgina do livro). Nossos achados corroboram com a concepo de autoria do tradutor, pois, hoje tanto o original como a traduo so vistos como produtos iguais da criatividade do autor e do tradutor (BASSNETT, 2003, p. 08).

    Constatamos que, no procedimento de traduo, a dialogia aflora e, a partir deste ponto, pode-se dizer que o tradutor atua como um interlocutor do livro e um locutor do texto da traduo; coloca a linguagem em relao, a linguagem o prprio objeto de sua atividade. Pensando no outro, destinatrio de sua tarefa, produz assim um movimento dialgico. Nesse procedimento, ativam-se diferentes vozes que o constituem e exerce-se a essncia criadora do humano, vivendo a polifonia.

  • RBLA, Belo Horizonte, aop6014

    Referncias

    ALBRES, N. A.; NEVES, S. L. G. De sinal em Sinal: comunicao em Libras para aperfeioamento do ensino dos componentes curriculares. So Paulo: FENEIS, 2010.

    ALBRES, Neiva de Aquino. Traduo de literatura infantil: entre a construo de sentidos e o uso dos recursos lingusticos. In: III Congresso Brasileiro de Pesquisas em Traduo e Interpretao de Lngua Brasileira de Sinais e Lngua Portuguesa. Florianpolis-SC: UFSC. 15 a 17 de agosto de 2012.

    AMORIM, Marilia. Para uma filosofia do ato: vlido e inserido no contexto. In: BRAIT, B. Bakhtin: dialogismo e polifonia. So Paulo: Contexto, 2009. p.17-43.

    ARROJO, Rosemary. Traduo, (in)fidelidade e gnero num conto de Moacyr Scliar. In: Rev. Brasileira de Lingustica Aplicada, v.4, n.1, p.27-36, 2004.

    AZENHA Jr., J. A traduo para a criana e para o jovem: a prtica como base da reflexo e da relao profissional. In: Pandaemonium Germanicum. Revista de Estudos Germnicos. So Paulo, Humanitas, v.9, p.367-392, 2005.

    BAKHTIN, Mikhail (Volochnov). Marxismo e Filosofia da Linguagem. So Paulo: Ed. Hucitec, 1992 (publicado originalmente em 1929).

    BAKHTIN, Mikhail. Esttica da criao Verbal. 5 ed. So Paulo: Editora Martins Fontes, 2010, p.3-90. (publicado originalmente em 1923).

    BARBOSA, Heloisa Gonalves. Procedimentos tcnicos da traduo: uma nova proposta. 2a ed. Campinas: Pontes, 2004.

    BARBOSA, Thas Bolgueroni; VIOTTI, Evani de Carvalho. Processo de referenciao na Libras: estudo de uma narrativa. ENAPOLL. 14 edio do ENAPOL (Encontro dos Alunos de Ps-Graduao em Lingustica). So Paulo: USP. 14, 15 e 16 de junho de 2011.

    BARBOSA, Thas Bolgueroni. Retomada de referentes na lngua de sinais brasileira: fatores discursivos e cognitivos. Simpsio Internacional de Lingustica Funcional. 25, 26 e 27 de Maio de 2011. Disponvel em: http://www.silf2011.com/documents/CadernodeResumosSILF2011.pdf

    BARBOSA, Thas Bolgueroni. Um estudo do processo de referenciao em narrativas contadas em Libras. VII Encontro de Ps-Graduandos (EPOG) Estudos Interdisciplinares nas Humanidades: perspectivas e limites. 5 a 9 de novembro de 2012. Disponvel em: http://www.epog.fflch.usp.br/sites/epog.fflch.usp.br/files/Caderno_de_Resumos_e_Programa%C3%A7%C3%A3o_Final.pdf

    BARROS, Cludia Graziano Paes de. Capacidades de leitura de textos multimodais. In: Revista Polifonia. Cuiab, EDUFMT, n.19, p.161-186, 2009. Disponvel em: http://cpd1.ufmt.br/meel/arquivos/artigos/341.pdf

    BASSNETT, Susan. Estudos de traduo. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2003. Traduo de Vivina de Campos Figueiredo.

  • RBLA, Belo Horizonte, aop6014

    BRASIL. Lei n 10.436, de 24 de abril de 2002. Regulamento. Dispe sobre a Lngua Brasileira de Sinais - Libras e d outras providncias, 2002.

    KARNOPP, Lodenir Becker. Produes culturais de surdos: anlise da literatura surda. Cadernos de Educao | FaE/PPGE/UFPel | Pelotas [36]: 155 - 174, maio/agosto 2010.

    LEBEDEFF, T. B.; GUEDES, Sussi Abel Menine; SOUZA, Tatiane de; ASSIS, Giovana Aparecida de. Quem conta um conto aumenta vrios pontos: uma discusso sobre a importncia e a arte de contar histrias para o desenvolvimento de crianas surdas. Ponto de Vista (UFSC), Florianpolis- SC, v.6/7, n.6/7, p.97-105, 2005.

    LIDDELL, Scott K. Grammar, gesture and meaning in American Sign Language. Cambridge: University Press, 2003.

    MCCLEARY, Leland; VIOTTI, Evani; LEITE, Tarcsio de Arantes. Descrio das lnguas sinalizadas: a questo da transcrio dos dados. Alfa Revista de Lingustica. So Paulo, 54 (1): 265-289, 2010. Disponvel em

    MOREIRA, Renata Lcia. Uma descrio de Dixis de Pessoa na lngua de sinais brasileira: pronomes pessoais e verbos indicadores. Dissertao (Mestrado em Lingustica). Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas (FFLCH) - USP, 2007.

    MOURO, Claudio Henrique Nunes. Adaptao e traduo em literatura surda: a produo cultural surda em lngua de sinais. In: IX ANPED Sul. Seminrio de Pesquisa em Educao da Regio Sul. 2012.

    PAGURA, Reynaldo Jos. A interpretao de conferncias: interfaces com a traduo escrita e implicaes para a formao de intrpretes e tradutores. DELTA [online]. 2003, vol.19, n.spe, pp. 209-236.

    RAMOS, Cllia Regina. Uma leitura da traduo de Alice no pas das maravilhas para a lngua brasileira de sinais. Dissertao (Mestrado em Letras), Cincia da Literatura. Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras. RJ, 2000.

    REILY, Lcia H. As imagens: o ldico e o absurdo no ensino de arte para pr-escolares surdos. In: SILVA, I.; KAUCHAKJE, S.; GESUELI, Z. (Org.). Cidadania, surdez e linguagem. So Paulo: Plexus, 2003.

    SOBRAL, Adail. Posfcio. In: BENEDETTI, Ivone C.; SOBRAL, Adail (Org.). Conversas com tradutores: balanos e perspectivas da traduo. So Paulo: Parbola, 2003. p. 201-214.

    SOBRAL, Adail. Dizer o mesmo aos outros: ensaios sobre traduo. So Paulo: Special Book. Service Livraria, 2008.

    Data de submisso: 20/02/2014. Data de aprovao: 22/04/2014.