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0 ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS 3º Seminário de Relações Internacionais - Graduação e Pós-Graduação: Repensando interesses e desafios para a inserção internacional do Brasil no século XXI A RECUSA BRASILEIRA AO PROTOCOLO ADICIONAL DA AIEA: ASPECTOS QUE O DISCURSO INSISTE EM IGNORAR. Área temática: Análise de Política Externa Thais Mello de Souza Mestranda em Relações Internacionais do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, com bolsa e financiamento para participação no seminário da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG). Florianópolis-SC 29 e 30 de setembro de 2016

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ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS 3º Seminário de Relações Internacionais - Graduação e

Pós-Graduação: Repensando interesses e desafios para a inserção internacional do Brasil no século XXI

A RECUSA BRASILEIRA AO PROTOCOLO ADICIONAL DA AIEA:

ASPECTOS QUE O DISCURSO INSISTE EM IGNORAR.

Área temática: Análise de Política Externa

Thais Mello de Souza

Mestranda em Relações Internacionais do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, com bolsa e financiamento para participação no seminário da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG).

Florianópolis-SC 29 e 30 de setembro de 2016

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A RECUSA BRASILEIRA AO PROTOCOLO ADICIONAL DA AIEA: ASPECTOS QUE O

DISCURSO INSISTE EM IGNORAR.

Thais Mello de Souza1

RESUMO

O artigo aborda a persistente recusa do Brasil em aderir ao Protocolo Adicional ao

Acordo de Salvaguardas da Agência Internacional de Energia Atômica, e demonstra os

motivos pelos quais se faz necessária uma reavaliação da política brasileira em relação aos

mecanismos de governança internacional nuclear.

Primeiramente, faz-se um levantamento dos argumentos utilizados pelo Brasil para

justificar a não ratificação do Protocolo Adicional e dos aspectos históricos acerca da

relação do país com a questão nuclear, no que tange não apenas ao regime de não

proliferação, mas também à popular crença na relação entre tecnologia nuclear e

desenvolvimento. Em seguida, são abordados aspectos técnicos fundamentais para que se

compreenda a relevância do regime de não proliferação, entre eles o processo de

enriquecimento de urânio e o conceito de “breakout time”, além dos motivos que levaram à

adoção, pela AIEA, de um novo modelo de Salvaguardas Integradas, notadamente a

descoberta de programas nucleares secreto.

Finalmente, faz-se a análise dos argumentos brasileiros à luz das questões técnicas

apresentadas, como forma de contrapor o discurso aos fatos, demonstrando-se que o Brasil

vem ficando isolado na posição de porta-voz dos NNWS (de maneira que a crítica ao regime

perde força como trunfo negocial) e que sua postura é crescentemente paradoxal. Conclui-

se que a não proliferação não pode ser usada como barganha para obter o objetivo maior do

desarmamento das potências nucleares, não apenas por ser ineficaz, mas – ainda pior – por

ser contraproducente, de forma que urge reajustar os rumos da política brasileira para o

regime nuclear.

Palavras-chave: Ordem Nuclear. TNP. Protocolo Adicional. Política Externa Brasileira.

1Mestranda em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG). Graduada em Comunicação Social, pela Universidade Federal do Espírito Santo.

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1 INTRODUÇÃO

Há décadas, a tecnologia nuclear é retratada no Brasil como sinônimo de

desenvolvimento tecnológico e a necessidade de se ter o domínio sobre ela é vista como

uma questão de soberania, autonomia e poder. Isso explica por que, ainda hoje, muitas das

discussões que envolvem o tema se baseiam em argumentos soberanistas, nos quais se

ressalta a oposição entre “nós” (aqueles que têm direito de desenvolver a tecnologia) e os

“outros” (potências que querem manter o monopólio do conhecimento e do mercado).

A busca pela capacidade de desenvolver tecnologia nuclear nacional em escala

industrial é facilmente justificável, não apenas devido a suas aplicações em áreas diversas,

como medicina, agricultura, energia e indústria, mas também em função da experiência

negativa do país com a dependência em relação a suprimentos externos de combustível e

tecnologia (KASSENOVA, 2014, p 1).Por um lado, as motivações brasileiras do ponto de

vista técnico são evidentes; por outro, as motivações políticas também são razoavelmente

claras, ao menos na última década: o Brasil vem tentando se firmar como um ator relevante

na ordem global, inclusive no que diz respeito à governança nuclear.

Desde o governo Lula, o Brasil busca maior proeminência na mediação entre Estados nuclearmente armados e Estados não nuclearmente armados, a fim de, em um âmbito mais amplo, auferir maior poder de barganha nos fóruns internacionais, avançando, inclusive, seu antigo pleito por um assento permanente no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas(HERZ & LAGE, 2013, p6)

Essa posição de mediação condiz com a tradicional postura diplomática do Brasil,

que busca ser um “facilitador de consensos”, ao mesmo tempo em que se esforça para ser

uma espécie de representante informal dos países emergentes ou em desenvolvimento. No

caso do regime de não proliferação, dois pontos em particular agradam aos Estados Não

Nuclearmente Armados (NNWS, do inglês Non Nuclear Weapon States): a retórica brasileira

de crítica ao caráter desigual e discriminatório do regime e a cobrança incisiva por mais

comprometimento com o desarmamento dos Estados Nuclearmente Armados (NWS, do

inglês Nuclear Weapon States).

The premise of Brazil’s stance on the global nuclear order is that the order is unfair, that it benefits the nuclear-weapon states, and that it puts undue pressure on countries that do not possess nuclear weapons. A lack of progress toward nuclear disarmament and questionable policy choices of nuclear states provide Brazil with an opportunity to claim that non-nuclear-weapon states should not be expected to do more for the health and strength of the global nuclear order. Nuclear justice and the fight against “double standards” are at the heart of Brasília’s beliefs and rhetoric. (KASSENOVA, 2014, p 1)

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No que diz respeito ao Protocolo Adicional ao TNP, contudo, o Brasil tem ficado

isolado. Dos membros do TNP, apenas 47 países não assinaram o protocolo adicional.

Destes, os principais são Brasil, Argentina, Arábia Saudita, Síria, Egito, Bolívia e

Venezuela2.

2 A POSIÇÃO BRASILEIRA

O Brasil inseriu-se no regime nuclear, entre as décadas de 1930 e 1940, como um

exportador de minerais estratégicos para o programa norte-americano. Embora as

pesquisas tenham começado já nessa época, elas só foram intensificadas após declarações

do governo argentino relatarem avanços na área (JESUS, 2012, p 45) e só resultaram em

avanços efetivos durante os governos militares, quando acordos com os Estados Unidos

(1971) e com a República Federal da Alemanha (1975) possibilitariam a construção das

usinas de Angra I e Angra II, respectivamente.

Durante todo esse período, a tecnologia nuclear no Brasil esteve ligada à noção de

modernidade e desenvolvimento. Vale ressaltar que, até hoje, o controle sobre todas as

etapas do processo nuclear é visto como um objetivo estratégico nacional, estando essa

meta consagrada na Estratégia Nacional de Defesa3. Esse fator foi – e continua sendo –

determinante na posição brasileira em face dos instrumentos de governança internacional

(DAWOOD, HERZ & LAGE, 2015, p2). Tal postura ficou evidente não apenas na rejeição do

país ao TNP (1968), mas também nas estratégias utilizadas durante a negociação do

Tratado de Tlatelolco (1967) para a proscrição de armas nucleares na América Latina, com

o intuito de fragilizar o acordo e limitar sua capacidade restritiva4 (JESUS, 2012, p 45). Tais

posições devem ser compreendidas à luz da dicotomia entre ‘modernidade’ e

‘subdesenvolvimento’ que a tecnologia nuclear encerra no Brasil.

2 Até julho de 2016, não haviam assinado o Protocolo Adicional ao TNP: Argélia, Argentina, Arábia Saudita, Bahamas, Barbados, Belize, Butão, Bolívia, Brasil, Brunei, Ilhas Cook, Dominica, Egito, Guiné Equatorial, Eritréia, Etiópia, Granada, Guiana, Líbano, Libéria, Maldivas, Micronésia, Nauru, Nepal, Niue, Oman, Papua Nova Guiné, Qatar, Santa Lúcia, São Vicente e Granadinas, Samoa, Sam Marino, São Tomé e Príncipe, Serra Leoa, Ilhas Salomão, Somália, Sri Lanka, Sudão, Sudão do Sul, Suriname, Síria, Tonga, Trinidad e Tobago, Tuvalu, Venezuela, Iêmen e Zimbábue. 3 “O setor nuclear transcende, por sua natureza, a divisão entre desenvolvimento e defesa. [...] O Brasil, ao proibir a si mesmo o acesso ao armamento nuclear, não se deve despojar da tecnologia nuclear. Deve, pelo contrário, desenvolvê-la, inclusive por meio das seguintes iniciativas: (a) Completar, no que diz respeito ao programa de submarino de propulsão nuclear, a nacionalização completa e o desenvolvimento em escala industrial do ciclo do combustível (inclusive a gaseificação e o enriquecimento) e da tecnologia da construção de reatores, para uso exclusivo do Brasil; (b) Acelerar o mapeamento, a prospecção e o aproveitamento das jazidas de urânio; (c) Aprimorar o potencial de projetar e construir termelétricas nucleares, com tecnologias e capacitações que acabem sob domínio nacional, ainda que desenvolvidas por meio de parcerias com Estados e empresas estrangeiras [...]”. (defesa.gov.br, 2012, p 20). 4Embora tenha assinado Tlatelolco, o Brasil não abriu mão da cláusula de ratificação universal, de forma que o tratado só entrou em vigor para o país em 1994.

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As mudanças no cenário internacional a partir do fim da década de 1980 e início de

1990, contudo, tiveram grande impacto na forma como os Estados percebiam o regime de

não proliferação. Tradicionais opositores do tratado aderiram a ele, inclusive os NWS França

e China. “A maior parte da comunidade internacional parece agora concordar que é do seu

interesse aderir a um tratado internacional que controla a proliferação horizontal de armas

nucleares, não obstante o fato de que ele possa ser falho e injusto” (WROBEL, 1996, p 143).

Essa mudança de perspectiva foi notória na América do Sul, com os dois únicos países que

mantinham instalações nucleares deixando para trás décadas de desconfianças e

rivalidades.

Tanto Brasil quanto Argentina já haviam obtido o domínio da tecnologia de

enriquecimento de urânio5 quando, em 1991, criaram a Associação Brasileiro-Argentina de

Contabilidade e Controle (ABACC) e firmaram o Acordo Quadripartite, por meio do qual se

estabeleceu um sistema global de salvaguardas que permite à ABACC e à AIEA

monitorarem todas as instalações e os materiais nucleares em ambos os países. Após a

inscrição, na Constituição Federal de 1988, da proibição de utilização da energia nuclear

para fins não pacíficos e após a eliminação da desconfiança em nível regional, não demorou

para que o Brasil aderisse a quase todos os instrumentos de governança nuclear

internacional: Tlatelolco (1994), Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis (1995),

Grupo de Supridores Nucleares (1996), Tratado para Proibição completa de Testes

Nucleares (1996) e o TNP (1998).

O nível de inserção do país no regime nuclear mudou sensivelmente. Alguns

aspectos, contudo, permaneceram constantes, notadamente a crítica ao caráter

discriminatório do regime. O Brasil salienta, constantemente, a desigualdade dos

mecanismos de governança nuclear, além de condicionar o aprofundamento dos

instrumentos de não proliferação a avanços concretos no processo de desarmamento. Tal

postura foi adotada oficialmente, tendo sido, inclusive, inscrita na Estratégia de Defesa

Nacional:

O Brasil zelará por manter abertas as vias de acesso ao desenvolvimento de suas tecnologias de energia nuclear. Não aderirá a acréscimos ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares destinados a ampliar as restrições do Tratado sem que as potências nucleares tenham avançado, de forma significativa, na premissa central do Tratado: seu próprio desarmamento nuclear. (DEFESA.GOV.BR, 2012).

5 No caso do Brasil, tal êxito foi anunciado em 1987, durante o governo Sarney. Na ocasião, o Brasil admitiu a existência do “Programa Nuclear Paralelo”, sob controle militar, o qual teve início em 1979, como forma de evitar as limitações impostas pelas salvaguardas internacionais, por meio do desenvolvimento de tecnologia nacional (JESUS, 2012, p 46).

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É com base nessa premissa que o Brasil se recusa a assinar o Protocolo Adicional

da AIEA, ao mesmo tempo que consolidar seu status de grande potência global, em

especial a partir do Governo Lula (2003-2010). Com estes dois objetivos em vista – o

desenvolvimento de tecnologia nuclear e o reconhecimento de seu novo status –, o Brasil

vem implementando as seguintes ações:

Construção, em parceria com a Argentina, de um reator nuclear multipropósito para

pesquisas, cujo desenvolvimento está ligado tanto à questão energética quanto à

busca por autossuficiência na produção de radioisótopos a serem usados na

medicina, agricultura e indústria;

Construção de um submarino de propulsão nuclear, em parceria com a França, que

deverá ser concluído em 2023. O Brasil é, atualmente, o único país não

nuclearmente armado que busca ter a capacidade de construir submarinos de

propulsão nuclear. Oficialmente, a decisão de seguir com o Programa de

Desenvolvimento de Submarinos (PROSUB), não obstante as polêmicas

envolvidas6, deve-se a sua importância para a defesa dos recursos do país, em

especial nas águas territoriais e na zona econômica exclusiva. Atualmente, porém,

o projeto é retratado como “a defesa da soberania, a busca por autonomia e a meta

do desenvolvimento nacional” (HERZ, LAGE, 2013, p 8), de forma que, para muitos

brasileiros, ter um submarino nuclear tornou-se um símbolo de status, sinal de que

o país é tecnologicamente avançado e geopoliticamente importante (KASSENOVA,

2014, p 37).

Enriquecimento de Urânio 235 a 5% no Centro Experimental de Aramar da Marinha,

em Iperó-SP (mesmo local em que estão sendo construídos o reator multipropósito

e o protótipo do submarino nuclear brasileiro);

Construção da Usina Nuclear Angra III (que deveria entrar em funcionamento em

2018). De acordo com o Plano Nacional de Energia 2030 (MINISTÉRIO DE MINAS

E ENERGIA), a energia nuclear é crucial para o desenvolvimento do país,

fornecendo uma alternativa à hidroeletricidade, a qual é extremamente dependente

das variações climáticas (a seca entre 2014 e 2015 e o consequente risco de

racionamento jogaram luz sobre esse problema).

Em 2012, o Brasil criou a Amazônia Azul Tecnologias de Defesa (Amazul), com a

atribuição de desenvolver tecnologias para o Programa Nuclear, subordinada ao

Comando da Marinha. O governo defende que a Amazul é fundamental para

viabilizar o projeto do primeiro submarino nuclear brasileiro e para nacionalizar em

6 Para mais informações acerca do PROSUB e das divergências quanto ao programa, ver KASSENOVA, 2014, pp 27-39.

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escala industrial o ciclo de combustível nuclear, alavancando o desenvolvimento

tecnológico relativo ao uso do urânio (HERZ, LAGE, 2013, p 14).

Enquanto avança em diversos aspectos técnicos, desenvolvendo e aprimorando

tecnologia nacional, o Brasil mantém-se fiel às críticas feitas acerca do caráter

discriminatório do regime de não proliferação, levantando com frequência questões como o

direito ao acesso universal à tecnologia nuclear para fins pacíficos, a falta de avanço rumo

ao desarmamento dos NWS, e o tratamento desigual entre os países considerados

“confiáveis” e os “suspeitos” (DAWOOD, HERZ & LAGE, 2015, p4). Para reforçar alguns

desses argumentos, o Brasil uniu-se a outros países na Coalizão da Nova Agenda7,

fundamental para a aprovação dos “Treze passos para o Desarmamento”, na Conferência

de Revisão do TNP, em 2010.

Quanto ao Protocolo Adicional da AIEA, diplomatas e políticos brasileiros

frequentemente argumentam que as restrições cada vez mais rigorosas têm o objetivo de

impedir o desenvolvimento autônomo de tecnologia nos países em desenvolvimento, uma

forma de proteger um tradicional e crescente mercado comercial de produtos nucleares.

Nesse aspecto, parece proveitoso reproduzir alguns trechos do artigo escrito pelo Diplomata

Samuel Pinheiro Guimarães, ex-Secretário Geral do Itamaraty:

Esse processo industrial [de enriquecimento de urânio] é extremamente complexo e apenas oito países do mundo detêm o conhecimento tecnológico do ciclo completo e a capacidade industrial para produzir todas as etapas do ciclo. Um deles é o Brasil. [...] Certas iniciativas dos países nucleares, a pretexto de enfrentar ameaças terroristas, podem afetar profundamente as possibilidades de participação do Brasil nesse mercado. Tais iniciativas se caracterizam por procurar concentrar nos países altamente desenvolvidos a produção de urânio enriquecido e de impedir sua produção em outros países, em especial naqueles que detêm reservas de urânio e tecnologia de enriquecimento. [...] Por outro lado, esses países procuram restringir por todos os meios a transferência de tecnologia, procuram impedir o desenvolvimento autônomo de tecnologia e procuram conhecer o que os demais países estão fazendo, sem revelar o que eles mesmos fazem. O Protocolo Adicional aos Acordos de Salvaguarda com a AIEA, previstos pelo TNP, é um instrumento poderoso, em especial naqueles países onde há capacidade de desenvolvimento tecnológico - caso do Brasil. [...] A concordância do Brasil com a assinatura de um Protocolo Adicional ao TNP permitiria que inspetores da AIEA, sem aviso prévio, inspecionassem qualquer instalação industrial brasileira que considerassem de interesse, além das instalações nucleares (inclusive as fábricas de ultracentrífugas) e do submarino nuclear [...]. Ora, os inspetores são formalmente funcionários da AIEA, mas, em realidade, técnicos altamente qualificados, em geral nacionais de países desenvolvidos, naturalmente imbuídos da “justiça” da existência de um

7 Em junho de 1998, Brasil, Egito, Irlanda, México, Nova Zelândia, África do Sul, Suécia e Eslovênia fundaram a

Coalizão na Nova Agenda, com o propósito central de fazer avançar o desarmamento e garantir a proibição da sua futura produção.

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oligopólio nuclear não só militar, mas também civil, e sempre prontos a colaborar não só com a AIEA, o que fazem por dever profissional, mas também com as autoridades dos países de que são nacionais. O Protocolo Adicional e as propostas de centralização em instalações internacionais da produção de urânio enriquecido são instrumentos disfarçados de revisão do TNP no seu pilar mais importante para o Brasil, que é o direito de desenvolver tecnologia para o uso pacífico da energia nuclear. Esta foi uma das condições para o Brasil aderir ao TNP, sendo a outra o desarmamento geral, tanto nuclear como convencional, dos Estados nucleares. [...] Os Estados nucleares, sob variados pretextos, aumentaram suas despesas militares [...] e assim, portanto, descumpriram as obrigações assumidas solenemente ao subscreverem o TNP. Agora tentam rever o Tratado para tornar a situação deles ainda mais privilegiada. Ao contrário da maior parte dos países que assinaram o Protocolo Adicional, o Brasil conquistou o domínio da tecnologia de todo o ciclo de enriquecimento do urânio e tem importantes reservas de urânio. Só três países - Brasil, Estados Unidos e Rússia - têm tal situação privilegiada em um mundo em que a energia nuclear terá de ser a base da nova economia livre de carbono, indispensável à sobrevivência da humanidade. Aceitar o Protocolo Adicional e a internacionalização do enriquecimento de urânio seria, assim, um crime de lesa-pátria. (GUIMARÃES, 2010)

Em suma, a diplomacia brasileira difunde a ideia de que o Protocolo Adicional é um

instrumento para manter o controle dos NWS sobre a tecnologia de enriquecimento, uma

forma de preservar, para si próprios, um próspero mercado. A rejeição ao TNP é feita,

portanto, com base na defesa da soberania e no direito do desenvolvimento autônomo de

tecnologia. É importante destacar que, historicamente, ambos são discursos com amplo

potencial de aceitação no Brasil (assim como em diversos países com passado de

exploração colonialista e imperialismo capitalista).

Além dos argumentos ideológico-comerciais, o Brasil utiliza ainda um aspecto

técnico relevante para reafirmar sua rejeição ao TNP: o país já está subordinado a um

robusto sistema de salvaguardas desde a criação da ABACC e a assinatura do Acordo

Quadripartite, em 1991; destarte, não haveria necessidade para que Brasil e Argentina

firmassem um novo protocolo. Com efeito, as salvaguardas realizadas pela ABACC em

parceria com a AIEA foram oficialmente aceitas, em 2011, como um critério alternativo ao

Protocolo Adicional pelo Grupo de Supridores Nucleares (NSG, do inglês Nuclear Supliers

Group)8.

3 O RISCO DA PROLIFERAÇÃO: ASPECTOS TÉCNICOS

8 A 21ª Reunião Plenária do NSG, em 2011, determinou novas e mais rígidas diretrizes para o controle das transferências de tecnologias de enriquecimento de urânio e reprocessamento de combustível nuclear. As novas regras estabelecem que apenas países que atendam aos mais elevados padrões de proteção física, segurança e salvaguardas nucleares (logo, que tenham ratificado o Protocolo Adicional) terão acesso desimpedido àquelas tecnologias sensíveis. Foi aberta uma exceção para Brasil e Argentina, devido ao acordo Quadripartite.

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Para entender por que o controle sobre o enriquecimento é tão importante no

regime de não proliferação – e, consequentemente, a relevância do Protocolo Adicional –,

faz-se necessário recorrer a uma explicação de teor mais técnico do que político.

De maneira sucinta, os artefatos nucleares causam a explosão por meio da fissão

do núcleo da célula, processo que libera uma certa quantidade de energia (calor e radiação).

Por si só, esse processo não oferece risco. Na verdade, trata-se de algo que acontece

constantemente na natureza. O que a bomba faz é concentrar uma quantidade significativa

de material com alta probabilidade de fissão em um pequeno espaço (matéria crítica), a fim

de possibilitar uma reação em cadeia, a qual aumentará exponencialmente a quantidade de

energia liberada. Nas bombas feitas com alta concentração de Urânio 235, por exemplo, o

primeiro núcleo se parte, liberando dois nêutrons, os quais se chocam com outros dois

núcleos, causando novas fissões e liberando outros dois nêutrons cada um, que causarão

novas fissões e assim sucessivamente, numa progressão geométrica. À guisa de exemplo,

em 10 kg de urânio, numa reação em cadeia perfeita, os choques entre as partículas se

repetiriam por mais 84 vezes, até que todos os núcleos tivessem sofrido fissão – tudo em

apenas uma fração de segundo. Isso liberaria a energia equivalente a 300 milhões de quilos

de TNT9 (MULLER, 2010, p 167).

Os artefatos nucleares mais comuns utilizam como combustível o Urânio 235 ou o

Plutônio 239. Essa escolha deve-se ao fato de que ambos são instáveis e seus núcleos

apresentam a tendência de se partir quando atingidos por um nêutron, liberando novas

partículas que continuem a reação em cadeia. O Plutônio é fácil de obter, sendo um resíduo

do processo de produção de energia em reatores nucleares. Sua utilização para a

fabricação de bombas, entretanto, enfrenta outras dificuldades, notadamente a alta

tendência à fissão espontânea, que pode levar ao início da reação em cadeia antes de o

material estar completamente comprimido (GARVIN, 2002, p.59). Como resultado, foi

preciso desenvolver um novo design de artefato: a esfera de implosão, que utiliza uma

esfera oca com o material físsil no interior e explosivos ao redor. O relevante, neste ponto, é

notar que, embora o material seja de mais fácil aquisição, o artefato é muito mais difícil de

se produzir, tanto devido à instabilidade do plutônio quanto às questões de engenharia

(MULLER, 2010, p 171).

9A título de comparação, a bomba detonada em Hiroshima continha 60 kg de Urânio (quase todo do isótopo 235), e resultou em uma explosão de 13 quilotons (equivalentes a 13 milhões de quilos de TNT). Logo, apenas 1,3% dos núcleos foram efetivamente fissionados. Após a explosão, as demais partículas de urânio se dispersaram na atmosfera, interrompendo a continuidade da cadeia.

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A bomba de urânio, ao contrário, é considerada de muito fácil construção. O design

do tipo “gun” ou “canhão” é tão simples que nem sequer foi testado antes do lançamento

sobre Hiroshima, em 1945. A dificuldade desse artefato é, precisamente, obter o urânio 235.

3.1 O PROCESSO DE ENRIQUECIMENTO

Os elementos encontrados na natureza são constituídos por átomos compostos

basicamente por prótons, nêutrons e elétrons. Os dois primeiros compõem o núcleo do

elemento e determinam sua massa. Os elétrons têm carga negativa e estão presentes na

mesma quantidade que os prótons, os quais têm carga positiva. A quantidade de prótons em

cada núcleo é o que determina o número atômico do elemento, suas propriedades e

características. O urânio, por exemplo, tem número atômico 92, ou seja, tem sempre 92

prótons. É possível, entretanto, que um mesmo elemento tenha quantidades diferentes de

nêutrons, o que altera a massa e, consequentemente, as propriedades físicas do átomo,

embora ele mantenha as propriedades químicas. Elementos com o mesmo número atômico

(mesma quantidade de prótons), mas número diferente de massa são os chamados

isótopos.

O urânio mais comum encontrado na natureza tem massa atômica igual a 238, que

equivale a 92 prótons e 146 nêutrons. Esse é o chamado Urânio 238 (U-238), que responde

por mais de 99% do total de urânio existente. Em cerca de 0,7% das partículas extraídas da

natureza, no entanto, o núcleo tem menos nêutrons, resultando no isótopo Urânio 235 (U-

235). Embora ambos tenham as mesmas propriedades químicas, há uma diferença

fundamental, no que concerne às características físicas: o U-238 é uma partícula

comparativamente mais estável, que se for atingida por um nêutron tende a “capturá-lo”10,

enquanto o U-235 é um átomo instável que tende a partir-se, dando origem a dois novos

núcleos. Como vimos anteriormente, é essa fissão que possibilita a reação em cadeia

necessária à explosão do artefato nuclear.

A separação do isótopo U-238 (mais comum) do U-235 (indicado para fissão) é um

processo extremamente complexo, que pode ser feito de diferentes maneiras11, sendo a

mais comum por meio de um conjunto de centrífugas. Essa separação é chamada de

10Se o U-238 capturar um nêutron, ele transforma-se no isótopo U-239. Este, por sua vez, decai por meio da

emissão de um raio beta negativo, transformando-se em outro elemento, o netúnio 239. O netúnio também

decai por raio beta negativo, tornando-se um átomo de plutônio 239. Este é um isótopo radioativo do Plutônio,

altamente físsil, indicado para a produção da bomba de implosão ou para outro reator. Tal processo demonstra

a facilidade de obtenção do Pu-239 se comparado com o U-235.

11Gareth Evans enumera quatro diferentes processos de enriquecimento: por meio de centrífugas, de difusão gasosa, de separação eletromagnética e a laser (EVANS, 2009, p 54).

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“enriquecimento”, e é precisamente esse o processo mais crítico regulado pelo Protocolo

Adicional do TNP. Richard Muller explica o funcionamento das centrífugas:

“Uranium is combined with fluorine to make a gas, uranium hexafluoride. This is then placed in rapidly rotating cylinders. The gas with the heavier U-238 tends to concentrate on the outer part of the cylinder, leaving the lighter U-235 near the center. These are then piped out […]. In fact, the enrichment in one centrifuge is small, and the gas must be pumped through thousands of centrifuges in order to get enough enrichment for nuclear power plants or nuclear weapons” (MULLER, 2010, P 168).

De acordo com a quantidade de centrífugas pelas quais o gás passa, mais

“enriquecido” ele se torna, ou seja, maior a concentração de U-235 em relação à de U-238.

De maneira geral, o nível de enriquecimento é dividido em três grupos: Urânio Pouco

Enriquecido (LEU-Low Enriched Uranium), até 19,75%; Urânio Altamente Enriquecido (HEU-

Highly Enriched Uranium), de 20% a 80%; e Weapons Grade, a 90%. Em regra, usa-se a

seguinte medida do enriquecimento de acordo com o uso que será dado ao material físsil:

Produção de energia (ou locomoção de submarinos): enriquecimento de 3% a

5%;

Uso medicinal ou em pesquisas: enriquecimento a 12 a 19,75%;

Uso militar: enriquecimento de 80 a 90%.

TABELA 1 – ENRIQUECIMENTO DE URÂNIO12 Centrífugas necessárias para produzir 15kg de Urânio na

concentração final desejada, após centrifugação por um ano.

Concentração Inicial de Urânio

235

Concentração Final de Urânio

235

Trabalho Separativo*

Quant (kg) necessária no

início

Quant de Centrífugas IR-1 (0,5)

0,72% 90% 226 2.590 6.769

5% 90% 62 281 1.853

20% 90% 20 68 596 *Trabalho separativo necessário para obter 1kg de material na qualidade desejada por ano.

O tempo necessário para enriquecer o Urânio depende da quantidade de

centrífugas disponíveis e da concentração a que se quer chegar – além do grau de

concentração inicial do produto. O que a tabela acima demonstra é que a maior dificuldade

no enriquecimento está nas etapas iniciais do processo. Partindo-se do Urânio in natura, é

necessário um enorme volume de trabalho separativo para se produzir um material com

90% de U253. Já para um país que possui urânio a 5%, esse trabalho cai

consideravelmente (pois a maior parcela do trabalho concentra-se nas partes iniciais, que já

foram realizadas). Ainda assim, obter urânio enriquecido para a fabricação de armamentos

12 Tabela elaborada pelo professor Eugênio Diniz, com base nos dados disponíveis nos relatórios da AIEA.

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demandaria uma quantidade muito grande de centrífugas (mais de 1800 trabalhando por um

ano) e um elevado volume de material disponível. Por outro lado, uma vez atingida a marca

de 20% de enriquecimento, não seria difícil, para um país chegar aos 80 ou 90% de

concentração de U235, nível necessário para a fabricação de artefatos nucleares. Isso

porque o trabalho separativo necessário para transformar o Urânio de 5% para 20%

representa aproximadamente 2/3 do esforço necessário para estender o processo até 90%.

Tal análise permite entender, por exemplo, a dificuldade de se chegar a um acordo

com vistas a garantir a finalidade pacífica do programa nuclear iraniano. Firmado em julho

de 2015, o acordo entre Irã e o “P5+1”13, entre outras coisas, limitou o número de

centrífugas iranianas, obrigou o país persa a diminuir o estoque de urânio enriquecido,

estabeleceu o teto para o percentual de enriquecimento e, ainda, condicionou a retirada das

sanções à realização das vistorias pelos técnicos da AIEA, colocando em prática as

determinações do Protocolo Adicional14. O pano de fundo dessas exigências é o conceito de

“Breakout time”, ou seja, o tempo que um estado não nuclearmente armado demora para

produzir urânio enriquecido suficiente para um artefato nuclear, uma vez que decida fazê-lo.

Não cabe a esse artigo avaliar o acordo ou o programa nuclear iraniano. O que

importa, nesse espaço, é exemplificar o conjunto de questões envolvidas quando se

pretende assegurar a impossibilidade de que um ator, qualquer que seja, uma vez

determinado a produzir um armamento nuclear, não seja capaz de fazê-lo. Nesse aspecto,

torna-se fundamental compreender o regime de salvaguardas imposto pela AIEA.

3.2 AS SALVAGUARDAS DA AIEA

Antes mesmo da assinatura do TNP, a AIEA já possuía a função de salvaguardara

não utilização da tecnologia nuclear para fins militares, conforme registrado em seu

estatuto15, de 1957. Após a assinatura do TNP, em 1968, os países signatários não

nuclearmente armados passaram a estar sujeitos a um regime de Salvaguardas

13Cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas (Estados Unidos, Rússia, Inglaterra, França e China) mais a Alemanha. 14O Irã havia assinado o Protocolo Adicional em 18 de dezembro de 2003, mas ainda não havia ratificado; logo, o documento não estava em vigor até a data de negociação do tratado. 15ARTICLE III: Functions. (A) The Agency is authorized: (5) To establish and administer safeguards designed to

ensure that special fissionable and other materials, services, equipment, facilities, and information made

available by the Agency or at its request or under its supervision or control are not used in such a way as to

further any military purpose; and to apply safeguards, at the request of the parties, to any bilateral or

multilateral arrangement, or at the request of a State, to any of that State's activities in the field of atomic

energy;

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Abrangentes (Comprehensive Safeguards Agreement), baseadas em um tratado bilateral

firmado com a agência, a partir do modelo do INFCIRC 15316.

A característica predominante das vistorias realizadas sob o INFCIRC 153 era a de

apurar a correção dos relatórios apresentados pelo Estado. Conforme explica Cooley, os

agentes da AIEA vistoriavam exclusivamente as instalações declaradas pelo Estado,

verificando se não havia divergência entre a contabilidade de material declarado e o

existente no site (2006, p 62). O choque que sacudiria a AIEA e o regime de não

proliferação veio no início da década de 1990, na esteira da Guerra do Golfo. A descoberta

de um programa nuclear clandestino no Iraque, colocado em prática dentro das próprias

instalações vistoriadas pelos agentes, resultou em descrédito e crítica generalizada em

relação ao sistema de salvaguardas.

Juntamente com a descoberta de outros graves descumprimentos – como o desvio

de material físsil na Coreia do Norte, em 1993; a declaração Sul-Africana sobre seu arsenal

nuclear secreto, em 1989; e a descoberta da rede de tráfico internacional do Dr. Khan17–, o

programa clandestino do Iraque ofereceu uma janela de oportunidade, possibilitando o

consenso político necessário para o significativo fortalecimento do regime. É essa a origem

do Protocolo Adicional e do “State Level Approach” (FINDLAY, 2007). Ficou claro que a

tarefa da AIEA precisava ser expandida. Não bastava averiguar se o relatório entregue pelos

países estava correto, mas era preciso verificar que também estava completo.

The organization would now verify not only non-diversion of declared nuclear material—that is, the correctness of nuclear material inventories reported to the IAEA by the state—but also the absence of undeclared nuclear material, facilities or activities in a non-nuclear weapon state, or the completeness of a state’s declaration (BOURESTON, 2007, p 6).

A pedido do Conselho de Governadores da AIEA, o secretariado elaborou e propôs

um plano de fortalecimento das salvaguardas (o Programa 93+2) a ser posto em prática em

duas etapas: a primeira incluía ações que a AIEA poderia implementar imediatamente,

aprimorando as Salvaguardas Abrangentes; a segunda requeria a assinatura de um novo

acordo, a fim de ampliar as capacidades dos agentes. Dessa mudança de perspectiva,

surge o conceito de Salvaguardas Integradas, que se baseiam em uma abordagem em nível

16Information Circular nº 153 – The Structure and Content of Agreements Between the Agency and States

Required in Connection with the Treaty on the Non-Proliferation of Nuclear Weapons.

17Agentes da AIEA detectaram, por meio da aferição e contabilidade do material, que a declaração da Coreia do Norte apresentava imprecisões, com o volume declarado de plutônio estranhamente baixo. Já a declaração voluntária da África do Sul, embora esse país ainda não fosse parte do TNP, demonstrou a provável existência de fluxos de contrabando de tecnologia e material (FINDLAY, 2007). Quanto ao cientista paquistanês, comprovou-se que, durante anos, o Dr. Khan forneceu tecnologia nuclear clandestina para países como Coreia do Norte, Líbia e Irã.

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nacional (State Level Approach), enquanto as salvaguardas abrangentes tinham como

fundamento uma abordagem em nível local, focado em cada instalação (Facility Level

Approach) (FINDLAY, 2007, p 3). A vistoria, sob a nova política, passa a olhar para o Estado

como um todo. Entre as novas ações aplicáveis estão a coleta de amostra ambiental (para

medição do nível de radiação), a utilização de tecnologia remota (como identificação de

novas instalações suspeitas por satélite) e o aproveitamento de informações repassadas por

terceiros países.

Em 1997, o Conselho de Governadores aprovou o Modelo de Protocolo Adicional,

ou INFCIRC 540. O Protocolo expandiu as capacidades da agência, obrigando os países a

permitir o acesso dos agentes aos diversos locais envolvidos em todo o ciclo de produção

nuclear, desde a mineração até a armazenagem de resíduos, incluindo locais não

declarados em que possa ser desenvolvido um programa nuclear, como usinas, centros de

pesquisa e reatores desativados. Ademais, os relatórios dos países passam a abranger a

produção de equipamentos nucleares, a importação e a exportação de artigos e até os

projetos para futuras instalações. O tempo de aviso prévio para as vistorias não

programadas passa a ser de pelo menos 24 horas, embora a simples demanda por

inspeções especiais continue sendo um tema extremamente delicado e altamente politizado

(FINDLAY, 2007, p 5).

Apesar de continuar apresentando limitações – como a impossibilidade de impor a

presença dos agentes e o cumprimento das obrigações –, a aplicação das salvaguardas

integradas já permitiu a identificação de atividades secretas no Egito, na Coreia do Sul e no

Irã. O novo regime de vistoria, portanto, não garante que todos os países cumprirão o

compromisso de não proliferação, mas impõe novos constrangimentos aos países que

tenham atividades ilegais, aumentando o risco de descoberta das mesmas, em especial nos

Estados cobertos pelo Protocolo Adicional.

4 CONCLUSÃO

Na busca por um papel mais protagônico no regime nuclear internacional, o Brasil

utiliza uma retórica soberanista e de aparente defesa dos NNWS, demandando um maior

equilíbrio entre os três pilares do TNP (não proliferação, desarmamento e acesso à

tecnologia nuclear para fins pacíficos). Para reforçar sua posição, alguns conceitos são

utilizados de forma pouco transparente e certos aspectos de extrema importância são

minimizados.

O processo de desarmamento das potências nucleares é e deve continuar sendo

um objetivo político fundamental, não apenas para a diplomacia brasileira, mas para todos

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os Estados que fazem parte desse regime. A não proliferação, entretanto, não pode ser

usada como barganha para obter o objetivo maior do desarmamento total. O risco de

utilização de armamentos nucelares aumenta exponencialmente à medida que novos atores

têm acesso a essa tecnologia. O problema torna-se absolutamente crítico quando envolve,

por exemplo:

Estados com menor domínio da tecnologia, pois aumenta o risco de falhas nos

sistemas de detecção e, consequentemente, de lançamentos indevidos;

Estados com pequeno território ou com pequenos arsenais, uma vez que o

atacante terá maior chance de, com um ataque, destruir a capacidade de retaliação

do inimigo, algo que diminui a força da dissuasão e, ainda pior, incentiva o primeiro

ataque;

Estados geograficamente próximos, o que diminui o tempo entre a identificação do

primeiro ataque e a resposta, obriga a flexibilização dos procedimentos de

lançamento e facilita a tomada de decisão por autoridades tomadas pelo pânico,

podendo resultar, inclusive, em guerra impremeditada.

Essa constatação não quer dizer que, obrigatoriamente, os potenciais novos

Estados nuclearmente armados serão os responsáveis por futuras catástrofes. Significa,

simplesmente, que os riscos aumentam consideravelmente quanto mais atores adquirem

ogivas nucleares e quanto menores forem suas capacidades. Ora, em se tratando de tal

nível de destruição, nenhum aumento de risco deve ser considerado aceitável. Ademais, na

medida em que aumentar o número dos países possuidores de armamentos nucleares, mais

difícil será atingir o desarmamento. Senão pelo simples fato de que mais atores deverão

abrir mão de seus arsenais, mas sim – e talvez principalmente – porque mais atores terão o

conhecimento necessário para voltar a produzir rapidamente seus artefatos, uma vez

atingido o desarmamento. Essa é a hipótese do “hegêmona nuclear global”, o qual, ao

menos durante algum tempo, poderia vir a ter o monopólio da bomba. A mera possibilidade

de que isso venha a acontecer é um fator fortemente dificultador nas negociações do

desarmamento e, logicamente, quanto maior o número de atores capazes de atingir esse

status, mais difícil o processo de construção de confiança com vistas ao desarmamento

total. Condicionar avanços no regime de não proliferação ao prévio ou concomitante

desarmamento é, portanto, ineficaz e – ainda pior – contraproducente.

O argumento de que o Protocolo Adicional seria uma maneira de impedir que novos

países desenvolvam tecnologia nuclear autônoma parece ser usado para envolver

emocionalmente a população – levantando antigos traumas e sentimentos anticolonialistas.

O INFCIRC 540 estabelece novas capacidades fiscalizatórias, a fim de que os agentes da

AIEA consigam aferir a acuidade e a completude dos relatórios dos países, ou seja, visa a

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garantir que os programas nucleares desenvolvidos tenham efetivamente fins pacíficos.

Nada em seu texto objetiva restringir o desenvolvimento tecnológico nacional. Vale ressaltar

que não se tem notícia de programa nuclear que tenha sido cerceado ou limitado sem que

nenhuma irregularidade tenha sido claramente identificada pela AIEA18.

Quanto à possibilidade de espionagem por parte dos agentes que fazem a

fiscalização, poder-se-ia argumentar simplesmente que tal problema afetaria igualmente

todos os países signatários e, no entanto, não impediu a assinatura do protocolo por

diversos países detentores de tecnologia nuclear avançada, tais como a Alemanha, o Japão,

a Bélgica, além de todos os NWS. Para não restringir a análise ao aspecto mais evidente,

entretanto, pode-se recorrer a diversos estudos acerca da proteção de informações no setor

nuclear, alguns deles elaborados pelos próprios especialistas da ABACC e da CNEN19.

Peixoto e Vinhas ratificam a existência de inúmeros princípios, ferramentas e metodologias

destinadas a proteger informações sensíveis em face das salvaguardas, e concluem:

Over the past few years there have been significant developments in equipment and techniques, suitable for effective enrichment verification activities. These developments can be used without disclosing additional information and helping to reduce the inspection effort, allowing less human presence in the plants and increasing the transparency (PEIXOTO, VINHAS, p 8, grifo nosso).

Em se tratando da ABACC, o reconhecimento de que as salvaguardas

implementadas pela Associação são eficientes para assegurar o caráter pacífico do

programa nuclear brasileiro (e o fato de que foram aceitas pelo NSG), no entanto, não

apaga o fato de que essa situação específica – a própria existência da ABACC – é um caso

que somente se aplica a Brasil e Argentina, deixando outros países não signatários do

Protocolo sem a cobertura de um sistema de salvaguardas integradas. Em outras palavras,

a resistência liderada pelo Brasil ao Protocolo Adicional fragiliza o regime de não

proliferação como um todo, servindo como apoio político a países que não estão submetidos

aos mesmos controles implementados pela ABACC.

Paradoxalmente, o Brasil se submete a um regime amplo de salvaguardas

realizadas pela ABACC com o apoio da AIEA, ao mesmo tempo que ajuda a legitimar a não

realização de vistorias completas em outros países – cujos programas podem nem sempre

ser tão idôneos.

Ademais, o aumento da aceitação ao Protocolo Adicional vem enfraquecendo a

posição brasileira de “porta voz” dos NNWS, fazendo que a política de crítica ao regime

18 No caso iraniano, a AIEA descobriu, em 2002, a existência de instalações nucleares não declaradas, construídas a partir da rede de A. Q. Khan. Independentemente do juízo de valor acerca das sanções e das negociações em curso, é importante ter em mente que o processo foi iniciado por um desvio em relação ao sistema de salvaguardas abrangentes, ao qual o Irã estava legalmente obrigado. 19Comissão Nacional de Energia Nuclear.

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perca força como trunfo político e negocial. Portanto, é preciso reconhecer a mudança dos

ventos no cenário internacional e reajustar os rumos da política nacional, buscando novas

bases de negociação para a inserção aprofundada do Brasil no regime de não proliferação.

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