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ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS 3º Seminário de Relações Internacionais - Graduação e
Pós-Graduação: Repensando interesses e desafios para a inserção internacional do Brasil no século XXI
A RECUSA BRASILEIRA AO PROTOCOLO ADICIONAL DA AIEA:
ASPECTOS QUE O DISCURSO INSISTE EM IGNORAR.
Área temática: Análise de Política Externa
Thais Mello de Souza
Mestranda em Relações Internacionais do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, com bolsa e financiamento para participação no seminário da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG).
Florianópolis-SC 29 e 30 de setembro de 2016
1
A RECUSA BRASILEIRA AO PROTOCOLO ADICIONAL DA AIEA: ASPECTOS QUE O
DISCURSO INSISTE EM IGNORAR.
Thais Mello de Souza1
RESUMO
O artigo aborda a persistente recusa do Brasil em aderir ao Protocolo Adicional ao
Acordo de Salvaguardas da Agência Internacional de Energia Atômica, e demonstra os
motivos pelos quais se faz necessária uma reavaliação da política brasileira em relação aos
mecanismos de governança internacional nuclear.
Primeiramente, faz-se um levantamento dos argumentos utilizados pelo Brasil para
justificar a não ratificação do Protocolo Adicional e dos aspectos históricos acerca da
relação do país com a questão nuclear, no que tange não apenas ao regime de não
proliferação, mas também à popular crença na relação entre tecnologia nuclear e
desenvolvimento. Em seguida, são abordados aspectos técnicos fundamentais para que se
compreenda a relevância do regime de não proliferação, entre eles o processo de
enriquecimento de urânio e o conceito de “breakout time”, além dos motivos que levaram à
adoção, pela AIEA, de um novo modelo de Salvaguardas Integradas, notadamente a
descoberta de programas nucleares secreto.
Finalmente, faz-se a análise dos argumentos brasileiros à luz das questões técnicas
apresentadas, como forma de contrapor o discurso aos fatos, demonstrando-se que o Brasil
vem ficando isolado na posição de porta-voz dos NNWS (de maneira que a crítica ao regime
perde força como trunfo negocial) e que sua postura é crescentemente paradoxal. Conclui-
se que a não proliferação não pode ser usada como barganha para obter o objetivo maior do
desarmamento das potências nucleares, não apenas por ser ineficaz, mas – ainda pior – por
ser contraproducente, de forma que urge reajustar os rumos da política brasileira para o
regime nuclear.
Palavras-chave: Ordem Nuclear. TNP. Protocolo Adicional. Política Externa Brasileira.
1Mestranda em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG). Graduada em Comunicação Social, pela Universidade Federal do Espírito Santo.
2
1 INTRODUÇÃO
Há décadas, a tecnologia nuclear é retratada no Brasil como sinônimo de
desenvolvimento tecnológico e a necessidade de se ter o domínio sobre ela é vista como
uma questão de soberania, autonomia e poder. Isso explica por que, ainda hoje, muitas das
discussões que envolvem o tema se baseiam em argumentos soberanistas, nos quais se
ressalta a oposição entre “nós” (aqueles que têm direito de desenvolver a tecnologia) e os
“outros” (potências que querem manter o monopólio do conhecimento e do mercado).
A busca pela capacidade de desenvolver tecnologia nuclear nacional em escala
industrial é facilmente justificável, não apenas devido a suas aplicações em áreas diversas,
como medicina, agricultura, energia e indústria, mas também em função da experiência
negativa do país com a dependência em relação a suprimentos externos de combustível e
tecnologia (KASSENOVA, 2014, p 1).Por um lado, as motivações brasileiras do ponto de
vista técnico são evidentes; por outro, as motivações políticas também são razoavelmente
claras, ao menos na última década: o Brasil vem tentando se firmar como um ator relevante
na ordem global, inclusive no que diz respeito à governança nuclear.
Desde o governo Lula, o Brasil busca maior proeminência na mediação entre Estados nuclearmente armados e Estados não nuclearmente armados, a fim de, em um âmbito mais amplo, auferir maior poder de barganha nos fóruns internacionais, avançando, inclusive, seu antigo pleito por um assento permanente no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas(HERZ & LAGE, 2013, p6)
Essa posição de mediação condiz com a tradicional postura diplomática do Brasil,
que busca ser um “facilitador de consensos”, ao mesmo tempo em que se esforça para ser
uma espécie de representante informal dos países emergentes ou em desenvolvimento. No
caso do regime de não proliferação, dois pontos em particular agradam aos Estados Não
Nuclearmente Armados (NNWS, do inglês Non Nuclear Weapon States): a retórica brasileira
de crítica ao caráter desigual e discriminatório do regime e a cobrança incisiva por mais
comprometimento com o desarmamento dos Estados Nuclearmente Armados (NWS, do
inglês Nuclear Weapon States).
The premise of Brazil’s stance on the global nuclear order is that the order is unfair, that it benefits the nuclear-weapon states, and that it puts undue pressure on countries that do not possess nuclear weapons. A lack of progress toward nuclear disarmament and questionable policy choices of nuclear states provide Brazil with an opportunity to claim that non-nuclear-weapon states should not be expected to do more for the health and strength of the global nuclear order. Nuclear justice and the fight against “double standards” are at the heart of Brasília’s beliefs and rhetoric. (KASSENOVA, 2014, p 1)
3
No que diz respeito ao Protocolo Adicional ao TNP, contudo, o Brasil tem ficado
isolado. Dos membros do TNP, apenas 47 países não assinaram o protocolo adicional.
Destes, os principais são Brasil, Argentina, Arábia Saudita, Síria, Egito, Bolívia e
Venezuela2.
2 A POSIÇÃO BRASILEIRA
O Brasil inseriu-se no regime nuclear, entre as décadas de 1930 e 1940, como um
exportador de minerais estratégicos para o programa norte-americano. Embora as
pesquisas tenham começado já nessa época, elas só foram intensificadas após declarações
do governo argentino relatarem avanços na área (JESUS, 2012, p 45) e só resultaram em
avanços efetivos durante os governos militares, quando acordos com os Estados Unidos
(1971) e com a República Federal da Alemanha (1975) possibilitariam a construção das
usinas de Angra I e Angra II, respectivamente.
Durante todo esse período, a tecnologia nuclear no Brasil esteve ligada à noção de
modernidade e desenvolvimento. Vale ressaltar que, até hoje, o controle sobre todas as
etapas do processo nuclear é visto como um objetivo estratégico nacional, estando essa
meta consagrada na Estratégia Nacional de Defesa3. Esse fator foi – e continua sendo –
determinante na posição brasileira em face dos instrumentos de governança internacional
(DAWOOD, HERZ & LAGE, 2015, p2). Tal postura ficou evidente não apenas na rejeição do
país ao TNP (1968), mas também nas estratégias utilizadas durante a negociação do
Tratado de Tlatelolco (1967) para a proscrição de armas nucleares na América Latina, com
o intuito de fragilizar o acordo e limitar sua capacidade restritiva4 (JESUS, 2012, p 45). Tais
posições devem ser compreendidas à luz da dicotomia entre ‘modernidade’ e
‘subdesenvolvimento’ que a tecnologia nuclear encerra no Brasil.
2 Até julho de 2016, não haviam assinado o Protocolo Adicional ao TNP: Argélia, Argentina, Arábia Saudita, Bahamas, Barbados, Belize, Butão, Bolívia, Brasil, Brunei, Ilhas Cook, Dominica, Egito, Guiné Equatorial, Eritréia, Etiópia, Granada, Guiana, Líbano, Libéria, Maldivas, Micronésia, Nauru, Nepal, Niue, Oman, Papua Nova Guiné, Qatar, Santa Lúcia, São Vicente e Granadinas, Samoa, Sam Marino, São Tomé e Príncipe, Serra Leoa, Ilhas Salomão, Somália, Sri Lanka, Sudão, Sudão do Sul, Suriname, Síria, Tonga, Trinidad e Tobago, Tuvalu, Venezuela, Iêmen e Zimbábue. 3 “O setor nuclear transcende, por sua natureza, a divisão entre desenvolvimento e defesa. [...] O Brasil, ao proibir a si mesmo o acesso ao armamento nuclear, não se deve despojar da tecnologia nuclear. Deve, pelo contrário, desenvolvê-la, inclusive por meio das seguintes iniciativas: (a) Completar, no que diz respeito ao programa de submarino de propulsão nuclear, a nacionalização completa e o desenvolvimento em escala industrial do ciclo do combustível (inclusive a gaseificação e o enriquecimento) e da tecnologia da construção de reatores, para uso exclusivo do Brasil; (b) Acelerar o mapeamento, a prospecção e o aproveitamento das jazidas de urânio; (c) Aprimorar o potencial de projetar e construir termelétricas nucleares, com tecnologias e capacitações que acabem sob domínio nacional, ainda que desenvolvidas por meio de parcerias com Estados e empresas estrangeiras [...]”. (defesa.gov.br, 2012, p 20). 4Embora tenha assinado Tlatelolco, o Brasil não abriu mão da cláusula de ratificação universal, de forma que o tratado só entrou em vigor para o país em 1994.
4
As mudanças no cenário internacional a partir do fim da década de 1980 e início de
1990, contudo, tiveram grande impacto na forma como os Estados percebiam o regime de
não proliferação. Tradicionais opositores do tratado aderiram a ele, inclusive os NWS França
e China. “A maior parte da comunidade internacional parece agora concordar que é do seu
interesse aderir a um tratado internacional que controla a proliferação horizontal de armas
nucleares, não obstante o fato de que ele possa ser falho e injusto” (WROBEL, 1996, p 143).
Essa mudança de perspectiva foi notória na América do Sul, com os dois únicos países que
mantinham instalações nucleares deixando para trás décadas de desconfianças e
rivalidades.
Tanto Brasil quanto Argentina já haviam obtido o domínio da tecnologia de
enriquecimento de urânio5 quando, em 1991, criaram a Associação Brasileiro-Argentina de
Contabilidade e Controle (ABACC) e firmaram o Acordo Quadripartite, por meio do qual se
estabeleceu um sistema global de salvaguardas que permite à ABACC e à AIEA
monitorarem todas as instalações e os materiais nucleares em ambos os países. Após a
inscrição, na Constituição Federal de 1988, da proibição de utilização da energia nuclear
para fins não pacíficos e após a eliminação da desconfiança em nível regional, não demorou
para que o Brasil aderisse a quase todos os instrumentos de governança nuclear
internacional: Tlatelolco (1994), Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis (1995),
Grupo de Supridores Nucleares (1996), Tratado para Proibição completa de Testes
Nucleares (1996) e o TNP (1998).
O nível de inserção do país no regime nuclear mudou sensivelmente. Alguns
aspectos, contudo, permaneceram constantes, notadamente a crítica ao caráter
discriminatório do regime. O Brasil salienta, constantemente, a desigualdade dos
mecanismos de governança nuclear, além de condicionar o aprofundamento dos
instrumentos de não proliferação a avanços concretos no processo de desarmamento. Tal
postura foi adotada oficialmente, tendo sido, inclusive, inscrita na Estratégia de Defesa
Nacional:
O Brasil zelará por manter abertas as vias de acesso ao desenvolvimento de suas tecnologias de energia nuclear. Não aderirá a acréscimos ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares destinados a ampliar as restrições do Tratado sem que as potências nucleares tenham avançado, de forma significativa, na premissa central do Tratado: seu próprio desarmamento nuclear. (DEFESA.GOV.BR, 2012).
5 No caso do Brasil, tal êxito foi anunciado em 1987, durante o governo Sarney. Na ocasião, o Brasil admitiu a existência do “Programa Nuclear Paralelo”, sob controle militar, o qual teve início em 1979, como forma de evitar as limitações impostas pelas salvaguardas internacionais, por meio do desenvolvimento de tecnologia nacional (JESUS, 2012, p 46).
5
É com base nessa premissa que o Brasil se recusa a assinar o Protocolo Adicional
da AIEA, ao mesmo tempo que consolidar seu status de grande potência global, em
especial a partir do Governo Lula (2003-2010). Com estes dois objetivos em vista – o
desenvolvimento de tecnologia nuclear e o reconhecimento de seu novo status –, o Brasil
vem implementando as seguintes ações:
Construção, em parceria com a Argentina, de um reator nuclear multipropósito para
pesquisas, cujo desenvolvimento está ligado tanto à questão energética quanto à
busca por autossuficiência na produção de radioisótopos a serem usados na
medicina, agricultura e indústria;
Construção de um submarino de propulsão nuclear, em parceria com a França, que
deverá ser concluído em 2023. O Brasil é, atualmente, o único país não
nuclearmente armado que busca ter a capacidade de construir submarinos de
propulsão nuclear. Oficialmente, a decisão de seguir com o Programa de
Desenvolvimento de Submarinos (PROSUB), não obstante as polêmicas
envolvidas6, deve-se a sua importância para a defesa dos recursos do país, em
especial nas águas territoriais e na zona econômica exclusiva. Atualmente, porém,
o projeto é retratado como “a defesa da soberania, a busca por autonomia e a meta
do desenvolvimento nacional” (HERZ, LAGE, 2013, p 8), de forma que, para muitos
brasileiros, ter um submarino nuclear tornou-se um símbolo de status, sinal de que
o país é tecnologicamente avançado e geopoliticamente importante (KASSENOVA,
2014, p 37).
Enriquecimento de Urânio 235 a 5% no Centro Experimental de Aramar da Marinha,
em Iperó-SP (mesmo local em que estão sendo construídos o reator multipropósito
e o protótipo do submarino nuclear brasileiro);
Construção da Usina Nuclear Angra III (que deveria entrar em funcionamento em
2018). De acordo com o Plano Nacional de Energia 2030 (MINISTÉRIO DE MINAS
E ENERGIA), a energia nuclear é crucial para o desenvolvimento do país,
fornecendo uma alternativa à hidroeletricidade, a qual é extremamente dependente
das variações climáticas (a seca entre 2014 e 2015 e o consequente risco de
racionamento jogaram luz sobre esse problema).
Em 2012, o Brasil criou a Amazônia Azul Tecnologias de Defesa (Amazul), com a
atribuição de desenvolver tecnologias para o Programa Nuclear, subordinada ao
Comando da Marinha. O governo defende que a Amazul é fundamental para
viabilizar o projeto do primeiro submarino nuclear brasileiro e para nacionalizar em
6 Para mais informações acerca do PROSUB e das divergências quanto ao programa, ver KASSENOVA, 2014, pp 27-39.
6
escala industrial o ciclo de combustível nuclear, alavancando o desenvolvimento
tecnológico relativo ao uso do urânio (HERZ, LAGE, 2013, p 14).
Enquanto avança em diversos aspectos técnicos, desenvolvendo e aprimorando
tecnologia nacional, o Brasil mantém-se fiel às críticas feitas acerca do caráter
discriminatório do regime de não proliferação, levantando com frequência questões como o
direito ao acesso universal à tecnologia nuclear para fins pacíficos, a falta de avanço rumo
ao desarmamento dos NWS, e o tratamento desigual entre os países considerados
“confiáveis” e os “suspeitos” (DAWOOD, HERZ & LAGE, 2015, p4). Para reforçar alguns
desses argumentos, o Brasil uniu-se a outros países na Coalizão da Nova Agenda7,
fundamental para a aprovação dos “Treze passos para o Desarmamento”, na Conferência
de Revisão do TNP, em 2010.
Quanto ao Protocolo Adicional da AIEA, diplomatas e políticos brasileiros
frequentemente argumentam que as restrições cada vez mais rigorosas têm o objetivo de
impedir o desenvolvimento autônomo de tecnologia nos países em desenvolvimento, uma
forma de proteger um tradicional e crescente mercado comercial de produtos nucleares.
Nesse aspecto, parece proveitoso reproduzir alguns trechos do artigo escrito pelo Diplomata
Samuel Pinheiro Guimarães, ex-Secretário Geral do Itamaraty:
Esse processo industrial [de enriquecimento de urânio] é extremamente complexo e apenas oito países do mundo detêm o conhecimento tecnológico do ciclo completo e a capacidade industrial para produzir todas as etapas do ciclo. Um deles é o Brasil. [...] Certas iniciativas dos países nucleares, a pretexto de enfrentar ameaças terroristas, podem afetar profundamente as possibilidades de participação do Brasil nesse mercado. Tais iniciativas se caracterizam por procurar concentrar nos países altamente desenvolvidos a produção de urânio enriquecido e de impedir sua produção em outros países, em especial naqueles que detêm reservas de urânio e tecnologia de enriquecimento. [...] Por outro lado, esses países procuram restringir por todos os meios a transferência de tecnologia, procuram impedir o desenvolvimento autônomo de tecnologia e procuram conhecer o que os demais países estão fazendo, sem revelar o que eles mesmos fazem. O Protocolo Adicional aos Acordos de Salvaguarda com a AIEA, previstos pelo TNP, é um instrumento poderoso, em especial naqueles países onde há capacidade de desenvolvimento tecnológico - caso do Brasil. [...] A concordância do Brasil com a assinatura de um Protocolo Adicional ao TNP permitiria que inspetores da AIEA, sem aviso prévio, inspecionassem qualquer instalação industrial brasileira que considerassem de interesse, além das instalações nucleares (inclusive as fábricas de ultracentrífugas) e do submarino nuclear [...]. Ora, os inspetores são formalmente funcionários da AIEA, mas, em realidade, técnicos altamente qualificados, em geral nacionais de países desenvolvidos, naturalmente imbuídos da “justiça” da existência de um
7 Em junho de 1998, Brasil, Egito, Irlanda, México, Nova Zelândia, África do Sul, Suécia e Eslovênia fundaram a
Coalizão na Nova Agenda, com o propósito central de fazer avançar o desarmamento e garantir a proibição da sua futura produção.
7
oligopólio nuclear não só militar, mas também civil, e sempre prontos a colaborar não só com a AIEA, o que fazem por dever profissional, mas também com as autoridades dos países de que são nacionais. O Protocolo Adicional e as propostas de centralização em instalações internacionais da produção de urânio enriquecido são instrumentos disfarçados de revisão do TNP no seu pilar mais importante para o Brasil, que é o direito de desenvolver tecnologia para o uso pacífico da energia nuclear. Esta foi uma das condições para o Brasil aderir ao TNP, sendo a outra o desarmamento geral, tanto nuclear como convencional, dos Estados nucleares. [...] Os Estados nucleares, sob variados pretextos, aumentaram suas despesas militares [...] e assim, portanto, descumpriram as obrigações assumidas solenemente ao subscreverem o TNP. Agora tentam rever o Tratado para tornar a situação deles ainda mais privilegiada. Ao contrário da maior parte dos países que assinaram o Protocolo Adicional, o Brasil conquistou o domínio da tecnologia de todo o ciclo de enriquecimento do urânio e tem importantes reservas de urânio. Só três países - Brasil, Estados Unidos e Rússia - têm tal situação privilegiada em um mundo em que a energia nuclear terá de ser a base da nova economia livre de carbono, indispensável à sobrevivência da humanidade. Aceitar o Protocolo Adicional e a internacionalização do enriquecimento de urânio seria, assim, um crime de lesa-pátria. (GUIMARÃES, 2010)
Em suma, a diplomacia brasileira difunde a ideia de que o Protocolo Adicional é um
instrumento para manter o controle dos NWS sobre a tecnologia de enriquecimento, uma
forma de preservar, para si próprios, um próspero mercado. A rejeição ao TNP é feita,
portanto, com base na defesa da soberania e no direito do desenvolvimento autônomo de
tecnologia. É importante destacar que, historicamente, ambos são discursos com amplo
potencial de aceitação no Brasil (assim como em diversos países com passado de
exploração colonialista e imperialismo capitalista).
Além dos argumentos ideológico-comerciais, o Brasil utiliza ainda um aspecto
técnico relevante para reafirmar sua rejeição ao TNP: o país já está subordinado a um
robusto sistema de salvaguardas desde a criação da ABACC e a assinatura do Acordo
Quadripartite, em 1991; destarte, não haveria necessidade para que Brasil e Argentina
firmassem um novo protocolo. Com efeito, as salvaguardas realizadas pela ABACC em
parceria com a AIEA foram oficialmente aceitas, em 2011, como um critério alternativo ao
Protocolo Adicional pelo Grupo de Supridores Nucleares (NSG, do inglês Nuclear Supliers
Group)8.
3 O RISCO DA PROLIFERAÇÃO: ASPECTOS TÉCNICOS
8 A 21ª Reunião Plenária do NSG, em 2011, determinou novas e mais rígidas diretrizes para o controle das transferências de tecnologias de enriquecimento de urânio e reprocessamento de combustível nuclear. As novas regras estabelecem que apenas países que atendam aos mais elevados padrões de proteção física, segurança e salvaguardas nucleares (logo, que tenham ratificado o Protocolo Adicional) terão acesso desimpedido àquelas tecnologias sensíveis. Foi aberta uma exceção para Brasil e Argentina, devido ao acordo Quadripartite.
8
Para entender por que o controle sobre o enriquecimento é tão importante no
regime de não proliferação – e, consequentemente, a relevância do Protocolo Adicional –,
faz-se necessário recorrer a uma explicação de teor mais técnico do que político.
De maneira sucinta, os artefatos nucleares causam a explosão por meio da fissão
do núcleo da célula, processo que libera uma certa quantidade de energia (calor e radiação).
Por si só, esse processo não oferece risco. Na verdade, trata-se de algo que acontece
constantemente na natureza. O que a bomba faz é concentrar uma quantidade significativa
de material com alta probabilidade de fissão em um pequeno espaço (matéria crítica), a fim
de possibilitar uma reação em cadeia, a qual aumentará exponencialmente a quantidade de
energia liberada. Nas bombas feitas com alta concentração de Urânio 235, por exemplo, o
primeiro núcleo se parte, liberando dois nêutrons, os quais se chocam com outros dois
núcleos, causando novas fissões e liberando outros dois nêutrons cada um, que causarão
novas fissões e assim sucessivamente, numa progressão geométrica. À guisa de exemplo,
em 10 kg de urânio, numa reação em cadeia perfeita, os choques entre as partículas se
repetiriam por mais 84 vezes, até que todos os núcleos tivessem sofrido fissão – tudo em
apenas uma fração de segundo. Isso liberaria a energia equivalente a 300 milhões de quilos
de TNT9 (MULLER, 2010, p 167).
Os artefatos nucleares mais comuns utilizam como combustível o Urânio 235 ou o
Plutônio 239. Essa escolha deve-se ao fato de que ambos são instáveis e seus núcleos
apresentam a tendência de se partir quando atingidos por um nêutron, liberando novas
partículas que continuem a reação em cadeia. O Plutônio é fácil de obter, sendo um resíduo
do processo de produção de energia em reatores nucleares. Sua utilização para a
fabricação de bombas, entretanto, enfrenta outras dificuldades, notadamente a alta
tendência à fissão espontânea, que pode levar ao início da reação em cadeia antes de o
material estar completamente comprimido (GARVIN, 2002, p.59). Como resultado, foi
preciso desenvolver um novo design de artefato: a esfera de implosão, que utiliza uma
esfera oca com o material físsil no interior e explosivos ao redor. O relevante, neste ponto, é
notar que, embora o material seja de mais fácil aquisição, o artefato é muito mais difícil de
se produzir, tanto devido à instabilidade do plutônio quanto às questões de engenharia
(MULLER, 2010, p 171).
9A título de comparação, a bomba detonada em Hiroshima continha 60 kg de Urânio (quase todo do isótopo 235), e resultou em uma explosão de 13 quilotons (equivalentes a 13 milhões de quilos de TNT). Logo, apenas 1,3% dos núcleos foram efetivamente fissionados. Após a explosão, as demais partículas de urânio se dispersaram na atmosfera, interrompendo a continuidade da cadeia.
9
A bomba de urânio, ao contrário, é considerada de muito fácil construção. O design
do tipo “gun” ou “canhão” é tão simples que nem sequer foi testado antes do lançamento
sobre Hiroshima, em 1945. A dificuldade desse artefato é, precisamente, obter o urânio 235.
3.1 O PROCESSO DE ENRIQUECIMENTO
Os elementos encontrados na natureza são constituídos por átomos compostos
basicamente por prótons, nêutrons e elétrons. Os dois primeiros compõem o núcleo do
elemento e determinam sua massa. Os elétrons têm carga negativa e estão presentes na
mesma quantidade que os prótons, os quais têm carga positiva. A quantidade de prótons em
cada núcleo é o que determina o número atômico do elemento, suas propriedades e
características. O urânio, por exemplo, tem número atômico 92, ou seja, tem sempre 92
prótons. É possível, entretanto, que um mesmo elemento tenha quantidades diferentes de
nêutrons, o que altera a massa e, consequentemente, as propriedades físicas do átomo,
embora ele mantenha as propriedades químicas. Elementos com o mesmo número atômico
(mesma quantidade de prótons), mas número diferente de massa são os chamados
isótopos.
O urânio mais comum encontrado na natureza tem massa atômica igual a 238, que
equivale a 92 prótons e 146 nêutrons. Esse é o chamado Urânio 238 (U-238), que responde
por mais de 99% do total de urânio existente. Em cerca de 0,7% das partículas extraídas da
natureza, no entanto, o núcleo tem menos nêutrons, resultando no isótopo Urânio 235 (U-
235). Embora ambos tenham as mesmas propriedades químicas, há uma diferença
fundamental, no que concerne às características físicas: o U-238 é uma partícula
comparativamente mais estável, que se for atingida por um nêutron tende a “capturá-lo”10,
enquanto o U-235 é um átomo instável que tende a partir-se, dando origem a dois novos
núcleos. Como vimos anteriormente, é essa fissão que possibilita a reação em cadeia
necessária à explosão do artefato nuclear.
A separação do isótopo U-238 (mais comum) do U-235 (indicado para fissão) é um
processo extremamente complexo, que pode ser feito de diferentes maneiras11, sendo a
mais comum por meio de um conjunto de centrífugas. Essa separação é chamada de
10Se o U-238 capturar um nêutron, ele transforma-se no isótopo U-239. Este, por sua vez, decai por meio da
emissão de um raio beta negativo, transformando-se em outro elemento, o netúnio 239. O netúnio também
decai por raio beta negativo, tornando-se um átomo de plutônio 239. Este é um isótopo radioativo do Plutônio,
altamente físsil, indicado para a produção da bomba de implosão ou para outro reator. Tal processo demonstra
a facilidade de obtenção do Pu-239 se comparado com o U-235.
11Gareth Evans enumera quatro diferentes processos de enriquecimento: por meio de centrífugas, de difusão gasosa, de separação eletromagnética e a laser (EVANS, 2009, p 54).
10
“enriquecimento”, e é precisamente esse o processo mais crítico regulado pelo Protocolo
Adicional do TNP. Richard Muller explica o funcionamento das centrífugas:
“Uranium is combined with fluorine to make a gas, uranium hexafluoride. This is then placed in rapidly rotating cylinders. The gas with the heavier U-238 tends to concentrate on the outer part of the cylinder, leaving the lighter U-235 near the center. These are then piped out […]. In fact, the enrichment in one centrifuge is small, and the gas must be pumped through thousands of centrifuges in order to get enough enrichment for nuclear power plants or nuclear weapons” (MULLER, 2010, P 168).
De acordo com a quantidade de centrífugas pelas quais o gás passa, mais
“enriquecido” ele se torna, ou seja, maior a concentração de U-235 em relação à de U-238.
De maneira geral, o nível de enriquecimento é dividido em três grupos: Urânio Pouco
Enriquecido (LEU-Low Enriched Uranium), até 19,75%; Urânio Altamente Enriquecido (HEU-
Highly Enriched Uranium), de 20% a 80%; e Weapons Grade, a 90%. Em regra, usa-se a
seguinte medida do enriquecimento de acordo com o uso que será dado ao material físsil:
Produção de energia (ou locomoção de submarinos): enriquecimento de 3% a
5%;
Uso medicinal ou em pesquisas: enriquecimento a 12 a 19,75%;
Uso militar: enriquecimento de 80 a 90%.
TABELA 1 – ENRIQUECIMENTO DE URÂNIO12 Centrífugas necessárias para produzir 15kg de Urânio na
concentração final desejada, após centrifugação por um ano.
Concentração Inicial de Urânio
235
Concentração Final de Urânio
235
Trabalho Separativo*
Quant (kg) necessária no
início
Quant de Centrífugas IR-1 (0,5)
0,72% 90% 226 2.590 6.769
5% 90% 62 281 1.853
20% 90% 20 68 596 *Trabalho separativo necessário para obter 1kg de material na qualidade desejada por ano.
O tempo necessário para enriquecer o Urânio depende da quantidade de
centrífugas disponíveis e da concentração a que se quer chegar – além do grau de
concentração inicial do produto. O que a tabela acima demonstra é que a maior dificuldade
no enriquecimento está nas etapas iniciais do processo. Partindo-se do Urânio in natura, é
necessário um enorme volume de trabalho separativo para se produzir um material com
90% de U253. Já para um país que possui urânio a 5%, esse trabalho cai
consideravelmente (pois a maior parcela do trabalho concentra-se nas partes iniciais, que já
foram realizadas). Ainda assim, obter urânio enriquecido para a fabricação de armamentos
12 Tabela elaborada pelo professor Eugênio Diniz, com base nos dados disponíveis nos relatórios da AIEA.
11
demandaria uma quantidade muito grande de centrífugas (mais de 1800 trabalhando por um
ano) e um elevado volume de material disponível. Por outro lado, uma vez atingida a marca
de 20% de enriquecimento, não seria difícil, para um país chegar aos 80 ou 90% de
concentração de U235, nível necessário para a fabricação de artefatos nucleares. Isso
porque o trabalho separativo necessário para transformar o Urânio de 5% para 20%
representa aproximadamente 2/3 do esforço necessário para estender o processo até 90%.
Tal análise permite entender, por exemplo, a dificuldade de se chegar a um acordo
com vistas a garantir a finalidade pacífica do programa nuclear iraniano. Firmado em julho
de 2015, o acordo entre Irã e o “P5+1”13, entre outras coisas, limitou o número de
centrífugas iranianas, obrigou o país persa a diminuir o estoque de urânio enriquecido,
estabeleceu o teto para o percentual de enriquecimento e, ainda, condicionou a retirada das
sanções à realização das vistorias pelos técnicos da AIEA, colocando em prática as
determinações do Protocolo Adicional14. O pano de fundo dessas exigências é o conceito de
“Breakout time”, ou seja, o tempo que um estado não nuclearmente armado demora para
produzir urânio enriquecido suficiente para um artefato nuclear, uma vez que decida fazê-lo.
Não cabe a esse artigo avaliar o acordo ou o programa nuclear iraniano. O que
importa, nesse espaço, é exemplificar o conjunto de questões envolvidas quando se
pretende assegurar a impossibilidade de que um ator, qualquer que seja, uma vez
determinado a produzir um armamento nuclear, não seja capaz de fazê-lo. Nesse aspecto,
torna-se fundamental compreender o regime de salvaguardas imposto pela AIEA.
3.2 AS SALVAGUARDAS DA AIEA
Antes mesmo da assinatura do TNP, a AIEA já possuía a função de salvaguardara
não utilização da tecnologia nuclear para fins militares, conforme registrado em seu
estatuto15, de 1957. Após a assinatura do TNP, em 1968, os países signatários não
nuclearmente armados passaram a estar sujeitos a um regime de Salvaguardas
13Cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas (Estados Unidos, Rússia, Inglaterra, França e China) mais a Alemanha. 14O Irã havia assinado o Protocolo Adicional em 18 de dezembro de 2003, mas ainda não havia ratificado; logo, o documento não estava em vigor até a data de negociação do tratado. 15ARTICLE III: Functions. (A) The Agency is authorized: (5) To establish and administer safeguards designed to
ensure that special fissionable and other materials, services, equipment, facilities, and information made
available by the Agency or at its request or under its supervision or control are not used in such a way as to
further any military purpose; and to apply safeguards, at the request of the parties, to any bilateral or
multilateral arrangement, or at the request of a State, to any of that State's activities in the field of atomic
energy;
12
Abrangentes (Comprehensive Safeguards Agreement), baseadas em um tratado bilateral
firmado com a agência, a partir do modelo do INFCIRC 15316.
A característica predominante das vistorias realizadas sob o INFCIRC 153 era a de
apurar a correção dos relatórios apresentados pelo Estado. Conforme explica Cooley, os
agentes da AIEA vistoriavam exclusivamente as instalações declaradas pelo Estado,
verificando se não havia divergência entre a contabilidade de material declarado e o
existente no site (2006, p 62). O choque que sacudiria a AIEA e o regime de não
proliferação veio no início da década de 1990, na esteira da Guerra do Golfo. A descoberta
de um programa nuclear clandestino no Iraque, colocado em prática dentro das próprias
instalações vistoriadas pelos agentes, resultou em descrédito e crítica generalizada em
relação ao sistema de salvaguardas.
Juntamente com a descoberta de outros graves descumprimentos – como o desvio
de material físsil na Coreia do Norte, em 1993; a declaração Sul-Africana sobre seu arsenal
nuclear secreto, em 1989; e a descoberta da rede de tráfico internacional do Dr. Khan17–, o
programa clandestino do Iraque ofereceu uma janela de oportunidade, possibilitando o
consenso político necessário para o significativo fortalecimento do regime. É essa a origem
do Protocolo Adicional e do “State Level Approach” (FINDLAY, 2007). Ficou claro que a
tarefa da AIEA precisava ser expandida. Não bastava averiguar se o relatório entregue pelos
países estava correto, mas era preciso verificar que também estava completo.
The organization would now verify not only non-diversion of declared nuclear material—that is, the correctness of nuclear material inventories reported to the IAEA by the state—but also the absence of undeclared nuclear material, facilities or activities in a non-nuclear weapon state, or the completeness of a state’s declaration (BOURESTON, 2007, p 6).
A pedido do Conselho de Governadores da AIEA, o secretariado elaborou e propôs
um plano de fortalecimento das salvaguardas (o Programa 93+2) a ser posto em prática em
duas etapas: a primeira incluía ações que a AIEA poderia implementar imediatamente,
aprimorando as Salvaguardas Abrangentes; a segunda requeria a assinatura de um novo
acordo, a fim de ampliar as capacidades dos agentes. Dessa mudança de perspectiva,
surge o conceito de Salvaguardas Integradas, que se baseiam em uma abordagem em nível
16Information Circular nº 153 – The Structure and Content of Agreements Between the Agency and States
Required in Connection with the Treaty on the Non-Proliferation of Nuclear Weapons.
17Agentes da AIEA detectaram, por meio da aferição e contabilidade do material, que a declaração da Coreia do Norte apresentava imprecisões, com o volume declarado de plutônio estranhamente baixo. Já a declaração voluntária da África do Sul, embora esse país ainda não fosse parte do TNP, demonstrou a provável existência de fluxos de contrabando de tecnologia e material (FINDLAY, 2007). Quanto ao cientista paquistanês, comprovou-se que, durante anos, o Dr. Khan forneceu tecnologia nuclear clandestina para países como Coreia do Norte, Líbia e Irã.
13
nacional (State Level Approach), enquanto as salvaguardas abrangentes tinham como
fundamento uma abordagem em nível local, focado em cada instalação (Facility Level
Approach) (FINDLAY, 2007, p 3). A vistoria, sob a nova política, passa a olhar para o Estado
como um todo. Entre as novas ações aplicáveis estão a coleta de amostra ambiental (para
medição do nível de radiação), a utilização de tecnologia remota (como identificação de
novas instalações suspeitas por satélite) e o aproveitamento de informações repassadas por
terceiros países.
Em 1997, o Conselho de Governadores aprovou o Modelo de Protocolo Adicional,
ou INFCIRC 540. O Protocolo expandiu as capacidades da agência, obrigando os países a
permitir o acesso dos agentes aos diversos locais envolvidos em todo o ciclo de produção
nuclear, desde a mineração até a armazenagem de resíduos, incluindo locais não
declarados em que possa ser desenvolvido um programa nuclear, como usinas, centros de
pesquisa e reatores desativados. Ademais, os relatórios dos países passam a abranger a
produção de equipamentos nucleares, a importação e a exportação de artigos e até os
projetos para futuras instalações. O tempo de aviso prévio para as vistorias não
programadas passa a ser de pelo menos 24 horas, embora a simples demanda por
inspeções especiais continue sendo um tema extremamente delicado e altamente politizado
(FINDLAY, 2007, p 5).
Apesar de continuar apresentando limitações – como a impossibilidade de impor a
presença dos agentes e o cumprimento das obrigações –, a aplicação das salvaguardas
integradas já permitiu a identificação de atividades secretas no Egito, na Coreia do Sul e no
Irã. O novo regime de vistoria, portanto, não garante que todos os países cumprirão o
compromisso de não proliferação, mas impõe novos constrangimentos aos países que
tenham atividades ilegais, aumentando o risco de descoberta das mesmas, em especial nos
Estados cobertos pelo Protocolo Adicional.
4 CONCLUSÃO
Na busca por um papel mais protagônico no regime nuclear internacional, o Brasil
utiliza uma retórica soberanista e de aparente defesa dos NNWS, demandando um maior
equilíbrio entre os três pilares do TNP (não proliferação, desarmamento e acesso à
tecnologia nuclear para fins pacíficos). Para reforçar sua posição, alguns conceitos são
utilizados de forma pouco transparente e certos aspectos de extrema importância são
minimizados.
O processo de desarmamento das potências nucleares é e deve continuar sendo
um objetivo político fundamental, não apenas para a diplomacia brasileira, mas para todos
14
os Estados que fazem parte desse regime. A não proliferação, entretanto, não pode ser
usada como barganha para obter o objetivo maior do desarmamento total. O risco de
utilização de armamentos nucelares aumenta exponencialmente à medida que novos atores
têm acesso a essa tecnologia. O problema torna-se absolutamente crítico quando envolve,
por exemplo:
Estados com menor domínio da tecnologia, pois aumenta o risco de falhas nos
sistemas de detecção e, consequentemente, de lançamentos indevidos;
Estados com pequeno território ou com pequenos arsenais, uma vez que o
atacante terá maior chance de, com um ataque, destruir a capacidade de retaliação
do inimigo, algo que diminui a força da dissuasão e, ainda pior, incentiva o primeiro
ataque;
Estados geograficamente próximos, o que diminui o tempo entre a identificação do
primeiro ataque e a resposta, obriga a flexibilização dos procedimentos de
lançamento e facilita a tomada de decisão por autoridades tomadas pelo pânico,
podendo resultar, inclusive, em guerra impremeditada.
Essa constatação não quer dizer que, obrigatoriamente, os potenciais novos
Estados nuclearmente armados serão os responsáveis por futuras catástrofes. Significa,
simplesmente, que os riscos aumentam consideravelmente quanto mais atores adquirem
ogivas nucleares e quanto menores forem suas capacidades. Ora, em se tratando de tal
nível de destruição, nenhum aumento de risco deve ser considerado aceitável. Ademais, na
medida em que aumentar o número dos países possuidores de armamentos nucleares, mais
difícil será atingir o desarmamento. Senão pelo simples fato de que mais atores deverão
abrir mão de seus arsenais, mas sim – e talvez principalmente – porque mais atores terão o
conhecimento necessário para voltar a produzir rapidamente seus artefatos, uma vez
atingido o desarmamento. Essa é a hipótese do “hegêmona nuclear global”, o qual, ao
menos durante algum tempo, poderia vir a ter o monopólio da bomba. A mera possibilidade
de que isso venha a acontecer é um fator fortemente dificultador nas negociações do
desarmamento e, logicamente, quanto maior o número de atores capazes de atingir esse
status, mais difícil o processo de construção de confiança com vistas ao desarmamento
total. Condicionar avanços no regime de não proliferação ao prévio ou concomitante
desarmamento é, portanto, ineficaz e – ainda pior – contraproducente.
O argumento de que o Protocolo Adicional seria uma maneira de impedir que novos
países desenvolvam tecnologia nuclear autônoma parece ser usado para envolver
emocionalmente a população – levantando antigos traumas e sentimentos anticolonialistas.
O INFCIRC 540 estabelece novas capacidades fiscalizatórias, a fim de que os agentes da
AIEA consigam aferir a acuidade e a completude dos relatórios dos países, ou seja, visa a
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garantir que os programas nucleares desenvolvidos tenham efetivamente fins pacíficos.
Nada em seu texto objetiva restringir o desenvolvimento tecnológico nacional. Vale ressaltar
que não se tem notícia de programa nuclear que tenha sido cerceado ou limitado sem que
nenhuma irregularidade tenha sido claramente identificada pela AIEA18.
Quanto à possibilidade de espionagem por parte dos agentes que fazem a
fiscalização, poder-se-ia argumentar simplesmente que tal problema afetaria igualmente
todos os países signatários e, no entanto, não impediu a assinatura do protocolo por
diversos países detentores de tecnologia nuclear avançada, tais como a Alemanha, o Japão,
a Bélgica, além de todos os NWS. Para não restringir a análise ao aspecto mais evidente,
entretanto, pode-se recorrer a diversos estudos acerca da proteção de informações no setor
nuclear, alguns deles elaborados pelos próprios especialistas da ABACC e da CNEN19.
Peixoto e Vinhas ratificam a existência de inúmeros princípios, ferramentas e metodologias
destinadas a proteger informações sensíveis em face das salvaguardas, e concluem:
Over the past few years there have been significant developments in equipment and techniques, suitable for effective enrichment verification activities. These developments can be used without disclosing additional information and helping to reduce the inspection effort, allowing less human presence in the plants and increasing the transparency (PEIXOTO, VINHAS, p 8, grifo nosso).
Em se tratando da ABACC, o reconhecimento de que as salvaguardas
implementadas pela Associação são eficientes para assegurar o caráter pacífico do
programa nuclear brasileiro (e o fato de que foram aceitas pelo NSG), no entanto, não
apaga o fato de que essa situação específica – a própria existência da ABACC – é um caso
que somente se aplica a Brasil e Argentina, deixando outros países não signatários do
Protocolo sem a cobertura de um sistema de salvaguardas integradas. Em outras palavras,
a resistência liderada pelo Brasil ao Protocolo Adicional fragiliza o regime de não
proliferação como um todo, servindo como apoio político a países que não estão submetidos
aos mesmos controles implementados pela ABACC.
Paradoxalmente, o Brasil se submete a um regime amplo de salvaguardas
realizadas pela ABACC com o apoio da AIEA, ao mesmo tempo que ajuda a legitimar a não
realização de vistorias completas em outros países – cujos programas podem nem sempre
ser tão idôneos.
Ademais, o aumento da aceitação ao Protocolo Adicional vem enfraquecendo a
posição brasileira de “porta voz” dos NNWS, fazendo que a política de crítica ao regime
18 No caso iraniano, a AIEA descobriu, em 2002, a existência de instalações nucleares não declaradas, construídas a partir da rede de A. Q. Khan. Independentemente do juízo de valor acerca das sanções e das negociações em curso, é importante ter em mente que o processo foi iniciado por um desvio em relação ao sistema de salvaguardas abrangentes, ao qual o Irã estava legalmente obrigado. 19Comissão Nacional de Energia Nuclear.
16
perca força como trunfo político e negocial. Portanto, é preciso reconhecer a mudança dos
ventos no cenário internacional e reajustar os rumos da política nacional, buscando novas
bases de negociação para a inserção aprofundada do Brasil no regime de não proliferação.
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