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6 o Encontro ABRI: perspectivas sobre o poder em um mundo em definição 25 a 28 de julho de 2017, Belo Horizonte-MG. Área Temática Economia Política Internacional Título ARQUIPÉLAGO DE CHAGOS: O ROUBO DE UMA NAÇÃO Filipe Reis Melo – Universidade Estadual da Paraíba (UEPB)

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6o Encontro ABRI: perspectivas sobre o poder em um mundo em definição

25 a 28 de julho de 2017, Belo Horizonte-MG.

Área Temática

Economia Política Internacional

Título

ARQUIPÉLAGO DE CHAGOS: O ROUBO DE UMA NAÇÃO

Filipe Reis Melo – Universidade Estadual da Paraíba (UEPB)

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Resumo

Esta pesquisa analisa o caso do conjunto de ilhas conhecido como arquipélago Chagos, no

Oceano Índico, cujos habitantes foram expulsos pelo Reino Unido entre 1968 e 1973, com o

objetivo de alugar o arquipélago aos Estados Unidos da América para que este país

instalasse na maior das ilhas do arquipélago, Diego Garcia, uma base militar que funciona

até os dias de hoje. É um caso exemplar de violação dos direitos humanos, discriminação,

remoção forçada de população e privação do direito de propriedade, com consequências

transnacionais. Os cerca de dois mil habitantes foram trasladados à força às Ilhas Maurício

e às Ilhas Seychelles. Os objetivos específicos são: dar a conhecer à comunidade

acadêmica das Relações Internacionais a história das Ilhas Chagos e do desterro de seu

povo; relatar a história dos habitantes do Arquipélago Chagos; avaliar do ponto de vista do

Direito Internacional as implicações da legalidade da expulsão dos chagossianos de seu

território; documentar as consequências para a população chagossiana de seu desterro;

avaliar a importância que a base militar instalada na ilha de Diego Garcia tem para a força

militar dos Estados Unidos; avaliar o papel exercido pelos Estados Unidos no caso do

desterro dos chagossianos. No Brasil não há nenhum livro comercializado acerca do caso

da população do Arquipélago Chagos e, muito provavelmente, não se tenha publicado nada

no Brasil sobre este assunto. A principal contribuição é trilhar uma via de pesquisa inédita na

comunidade acadêmica brasileira e trazer à tona um tema relativamente pouco conhecido e

com implicações relevantes para as Relações Internacionais. Esta pesquisa tem sido

realizada no âmbito do Programa de Iniciação Científica (PIBIC) e conta com 4 alunos, cada

um com um subprojeto nas áreas de História, Direito Internacional, Geopolítica e Mídia.

Palavras-chave:

Chagos. Diego Garcia. Base militar. Direito Internacional.

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ARQUIPÉLAGO DE CHAGOS: O ROUBO DE UMA NAÇÃO1

Introdução

Desde o século XVI, a atuação das chamadas potências dominantes europeias chegou a

todos os continentes do mundo. Numa primeira fase, os colonizadores faziam o

levantamento e o reconhecimento dos territórios descobertos e estabeleciam um tráfico de

produtos vegetais e minerais. A coação da população nativa para a realização de trabalhos

forçados, muitas vezes com conivência dos próprios nativos, era prática comum. Numa

segunda fase, durante o processo conhecido como descolonização, já no século XX, povos

que formavam uma mesma nação foram divididos por fronteira entre colônias de metrópoles

diferentes e povos de nações diversas foram unificados numa única jurisdição. As guerras

contra povos sem condições de defesa, o desrespeito aos seus traços culturais, às suas

crenças tradicionais e às formas constituídas de família e de sociedade foram a tônica da

colonização.

Como bem ressaltou o geógrafo Manuel Correia de Andrade (ANDRADE, 2005),

portugueses, espanhóis, franceses, holandeses, britânicos, italianos, belgas, alemães,

russos e japoneses, da mesma forma que árabes e turcos, estenderam seus domínios, em

diferentes épocas e a diferentes locais, e controlaram povos que foram dizimados e

dominados por séculos em nome de uma superioridade étnica, religiosa e social. O poder

das potências colonizadoras lhes permitiu submeter povos a situações extremamente

injustas e, em alguns casos, ao mesmo tempo legais.

A história do povo do Arquipélago Chagos é relativamente pouco conhecida no âmbito das

relações internacionais, especialmente no Brasil. Não há registro de nenhuma obra

publicada no Brasil sobre a expulsão do povo nativo do Arquipélago Chagos ocorrida entre

1968 e 1973. Os habitantes do arquipélago Chagos foram expulsos daquele arquipélago

pelo governo britânico com o objetivo de arrendar o arquipélago, durante 50 anos, ao

governo dos Estados Unidos. Este último, construiu na maior das ilhas do arquipélago, a ilha

de Diego Garcia, a sua mais importante base militar fora de seu território. É um caso

exemplar de violação de direitos humanos, privação de direitos de propriedade,

discriminação e tortura, com impactos transnacionais.

Apesar de ser um caso exemplar de desterro de um povo legitimado pelo Direito

Internacional, pode-se dizer que este fato é completamente ignorado pelos professores das

disciplinas de Direito Internacional e de Direitos Humanos. A comunidade acadêmica,

1 Trabalho de pesquisa de iniciação científica (PIBIC) apoiado pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e realizado em conjunto com 4 alunos de graduação do curso de Relações Internacionais (João Carlos Gonçalves, [aluno bolsista/CNPq], José Laudemiro Rodrigues da Costa Filho [aluno bolsista/UEPB], Jessyca Santos de Oliveira e Amanda Nery Magalhães).

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particularmente no Brasil, não conhece a história recente dos chagossianos. Por isso, este

artigo se propõe a fazer uma primeira incursão sobre esse fato histórico ainda sem registro

na academia brasileira.

A primeira parte deste artigo busca resgatar a história recente do Arquipélago Chagos e dar

a conhecer à comunidade acadêmica brasileira das Relações Internacionais o episódio do

desterro dos habitantes dessas ilhas. A segunda parte faz uma avaliação do ponto de vista

do Direito Internacional das implicações da legalidade da expulsão dos chagossianos de seu

território. Na terceira parte do artigo, analisa-se o papel exercido pelos Estados Unidos

neste episódio. Considera-se a importância geopolítica que a base militar instalada na ilha

de Diego Garcia representa para a força militar dos Estados Unidos, bem como para os

interesses britânicos. Na última parte, apresentam-se as considerações finais.

Realizou-se um trabalho de pesquisa documental, baseado em publicações estrangeiras

que trazem a história do povo do Arquipélago Chagos. Alguns documentos oficiais dos

governos britânico e estadunidense foram fundamentais para se entender as motivações do

Reino Unido e dos Estados Unidos para expulsar os habitantes do arquipélago.

O arquipélago Chagos: rápida retrospectiva histórica

O arquipélago Chagos é um conjunto de 55 ilhas localizadas no centro do Oceano Índico, ao

sul da linha do Equador (coordenadas 6°00’ S 71°30’ E). A Figura 1 dá uma noção da

posição estratégica do Arquipélago Chagos, quase que equidistante da costa leste africana,

do sul da Índia e da costa oeste indonésia, e relativamente próximo do Oriente Médio.

Em 1532, no ano em que o navegador português Diego Garcia, na altura a serviço da

Espanha, descobriu o arquipélago, as ilhas estavam desabitadas (SAND, 2009). A partir do

século XVIII, quando o arquipélago passou a ser administrado pela França, foram

introduzidos escravos oriundos da África com o objetivo de produzir coco e seus derivados

(GRANDISON et al, 2003). Posteriormente, uniram-se aos primeiros africanos imigrantes

originários da Índia. Foi só após as Guerras Napoleónicas (1814) que o arquipélago Chagos

passou para o domínio britânico (SAND, 2009). Portanto, na década de 1960, a população

do arquipélago Chagos tinha cerca de 180 anos de história e algumas gerações nascidas no

arquipélago.

No início da década de 1960, o Reino Unido negociou com a sua então colônia, as Ilhas

Maurício, os termos de sua independência. Naquela negociação, o governo britânico impôs

como condição para conceder a sua independência que as Ilhas Maurício abrissem mão de

parte de seu território, o Arquipélago Chagos. Assim, em 1965, o arquipélago Chagos foi

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separado do território das Ilhas Maurício. Três anos depois, em 1968, a República de

Maurício adquiriu independência do Reino Unido e o Arquipélago Chagos permaneceu sob

dominação britânica e tornou-se parte do British Indian Ocean Territory (BIOT) (GIFFORD;

DUNNE, 2014).

Figura 1: Mapa do Oceano Índico e localização da base militar Diego Garcia.

Fonte: Geographic Guide. http://www.geographicguide.com/africa-maps/indianocean.htm. Acesso em: 23 jun.

2017.

Entre os anos de 1968 e 1973, os cerca de 2.000 chagossianos foram retirados à força do

arquipélago e divididos em dois grupos. O grupo menor foi levado para as Ilhas Seychelles

(na altura era uma colônia britânica cuja independência foi adquirida em 1976) e o mais

numeroso teve como destino a República de Maurício (GIFFORD, DUNNE, 2014). Os

chagossianos perderam seus pertences e suas propriedades. A população chagossiana

deportada era de terceira e quarta geração, cujos avós ou bisavós já haviam nascido no

arquipélago (SAND, 2009). Na época da expulsão, na Ilha de Diego Garcia, a maior das

ilhas do arquipélago, havia escolas, hospital, igreja, prisão, cemitério, ferrovia, diques e

plantações (GRANDISON et al, 2003). Segundo Grandison et al (2003), as autoridades

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britânicas utilizaram métodos brutais para expulsar os chagossianos de suas casas, o que

incluiu o embargo de alimentos, o extermínio de todos os cães e outros animais de

estimação, e a ameaça de morte aos que resistissem ao desterro. Grandison et al (2003,

p.38) faz o relato:

Nevertheless, in the 1960s the U.K. made an agreement with the U.S. government to forcibly deport the Chagossians in order to grant the United States access to Diego Garcia, the largest island, for a fifty-year term with the possibility of a twenty-year extension, to use as a military base. The authorities employed brutal tactics to force thousands of the Chagossians from their homes, including an embargo aimed at starving the population, the mass extermination of the Chagossians’ pet dogs, and even death threats to any opposition groups.

O acordo firmado entre o governo britânico e o governo dos Estados Unidos previa que a

população do Arquipélago Chagos fosse expulsa das ilhas para que a base militar

estadunidense fosse construída (SAND, 2009). O Reino Unido levou a cabo o processo de

expulsão ilegal da população nativa procurando fazê-lo sem que a mídia noticiasse o fato.

De acordo com os documentos da época, as autoridades britânicas procuraram

expressamente mudar o status da população indígena para população temporária, como

medida de precaução para justificar a expulsão da população, apesar de haver gerações

nascidas em Chagos:

Our understanding is that... a small number of the people [on the islands] were born there and, in some cases, their parents were born there too. The intention is, however that none of them should be regarded as being permanent inhabitants of the islands... [they] will be evacuated as and when defence [sic] interests require this... (1965 British Foreign Office memorandum apud NAUVEL, 2006, p.101) [grifo nosso].

Em fevereiro de 1966, Frank Pakenham, então Secretário de Estado para as colônias

britânicas, enviou uma nota confidencial ao Comissário do BIOT, explicando que a

população local devia ser tratada como se fosse população temporária:

Our primary objective in dealing with the people who are at present in the Territory must be to deal with them in the way which will best meet our future administrative and military needs and will at the same time ensure that they are given fair and just treatment… With these objectives in view we propose to avoid any reference to “permanent inhabitants,” instead, to refer to the peo- ple in the islands as Mauritians and Seychellois… We are… taking steps to acquire ownership of the land on the islands and consider that it would be desirable... for the inhabitants to be given some form of temporary residence permit (SAND, 2009, p.16).

Este entendimento está claro noutros documentos oficiais, como nesta minuta datada de

junho de 1966, assinada pelo Comissário do BIOT:

[the Colonial Office] wish to avoid the term “permanent inhabitants” in relation to any of the islands in BIOT because to recognise that there are permanent inhabitants will imply that there is a population whose democratic rights will have to be safeguarded and which will therefore be deemed by the UN Committee of Twenty-Four to come within its purview […] Subsequently it may be necessary to issue them with documents making it clear that they are “belongers” of Mauritius or the Seychelles and only temporarily resident in BIOT […] It would be highly embarrassing to us if, after giving the Americans to understand that the islands in BIOT would be available to

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them for defence purposes, we then had to tell them that we proposed to admit that they fell within the purview of the UN Committee of Twenty-Four (SAND, 2009, p.16-17) [grifo nosso].

Em novembro de 1970, ainda permaneciam em Chagos cerca de 900 habitantes (SAND,

2009). Naquele mês, o ministro de Relações Exteriores e da Commonwealth, numa carta

endereçada ao Comissário do BIOT, dizia:

We shall continue to try to say as little as possible to avoid embarrassing the United States Administration...We would not wish it to become general knowledge that some of the inhabitants have lived on Diego Garcia for at least two generations and could therefore be regarded as “belongers.” We shall therefore advise ministers in han- dling supplementary [parliamentary] questions...to say that there is only a small number of contract labourers from the Seychelles and Mauritius engaged to work on the copra plantations on the island (SAND, 2009, p.18) [grifo nosso].

Nos vários documentos e missivas oficiais fica claro que as autoridades britânicas

esforçaram-se para que a população nativa de Chagos não fosse assim reconhecida. Desta

forma, qualquer alegação de que o Reino Unido perpetrava uma expulsão de uma

população indígena poderia ser facilmente descartada.

Atualmente, a maioria da população chagossiana mora em condições de pobreza na

República de Maurício, nas Ilhas Seychelles e alguns no Reino Unido, sem direito ao retorno

às suas propriedades (GRANDISON et al, 2003).

A luta dos chagossianos nos tribunais

A expulsão da população nativa do Arquipélago Chagos se deu num contexto de Guerra

Fria entre 1968 e 1973. Esta expulsão foi o resultado de um acordo entre o governo

britânico e o governo dos Estados Unidos que desejava alugar o arquipélago para construir

na maior das ilhas, na ilha de Diego Garcia, um base militar (CENTRAL, 1969; GRANDISON

et al, 2003, SAND, 2009). Toda a tratativa entre os dois governos se deu à revelia do

Parlamento Britânico, do Congresso dos Estados Unidos e das Nações Unidas (SAND,

2009).

A decisão do governo britânico de tomar o Arquipélago Chagos do território das Ilhas

Mauricio violou a Declaração das Nações Unidas de número 1.514 de 1960, que prevê o

direito inalienável das populações das ex-colônias à independência e ao seu território:

any attempt aimed at the partial or total disruption of the national unity and the territorial integrity of a country is incompatible with the purposes and principles of the Charter of the United Nations (SAND, 2009, p.3).

Bem como violou a Resolução 2.066 de 1965 que instava o Reino Unido a evitar toda e

qualquer medida com o objetivo de violar a integridade territorial ou de desmembrar o

território das então colônia Ilhas Maurício (SAND, 2009).

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Em 1967, o governo britânico comprou a maior parte das propriedades produtoras agrícolas,

desmantelou as plantações e parou de enviar os navios que tradicionalmente levavam um

suprimento regular aos moradores do arquipélago (SAND, 2009). Sem nenhum tipo de

consulta à população nativa, os cerca de 2.000 moradores foram informados de que a partir

daquela data, estavam obrigados a abandonar as ilhas (SAND, 2009). Os animais de

estimação como os cães foram abatidos como forma de pressionar os habitantes a

abandonar o local (LANDRISCINA, 2012). Homens armados obrigaram os chagossianos a

embarcar em embarcações portando apenas uma pequena maleta e foram levados para a

República de Maurício ou para as ilhas Seychelles. Nunca mais puderam regressar às suas

casas. Em 1971, o governo britânico publicou uma portaria de imigração que proibia

qualquer cidadão das ilhas Chagos regressar ao arquipélago (SAND, 2009). Todo

chagossiano que saía do arquipélago (era comum viajar a República de Maurício para

tratamento de saúde) era impedido de regressar às suas casas.

Após a sua remoção forçada, a população chagossiana tentou, em várias ocasiões, sem

sucesso, reaver o seu território. Em 1975, um grupo de chagossianos conseguiu levar o seu

caso à Alta Corte de Londres. Aquele que ficou conhecido como o caso Ventacassen

(Ventacassen era o sobrenome de Michel Ventacassen, responsável pela demanda judicial)

resultou num acordo em 1982 que obrigou o governo britânico a compensar 1.344

chagossianos que então viviam na República de Maurício (GRANDISON et al, 2003). A

compensação foi de 2.976 libras esterlinas para cada um (GRANDISON et al, 2003). Parte

das famílias não recebeu nenhuma compensação e vários chagossianos entraram em greve

de fome para demonstrar a sua desaprovação com o acordo que, além de fazer um

pagamento irrisório frente às perdas impostas pelas autoridades britânicas, impedia

qualquer possibilidade futura de novas reclamações a qualquer chagossiano e a seus

descendentes (GRANDISON et al, 2003). Os que receberam a compensação monetária

tiveram que assinar um documento redigido em inglês (idioma cuja maioria dos

chagossianos não entendia2) no qual renunciavam ao seu direito de retorno às Ilhas

Chagos, bem como ao seu direito de solicitar qualquer outro tipo de compensação. Os cerca

de 500 chagossianos que viviam nas Ilhas Seychelles não receberam nenhuma

compensação (GRANDISON et al, 2003).

Em 1999 a luta dos chagossianos por justiça voltou aos tribunais britânicos. Desde então um

pequeno grupo de advogados ligados ao Chagos Refugee Group tem trabalhado para que

os chagossianos possam regressar à sua terra.

2 Na época da expulsão, a maioria da população chagossiana falava o idioma crioulo chagossiano, uma ramificação do crioulo francês.

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No ano 2000, a Suprema Corte britânica decidiu que a expulsão dos chagossianos fora

ilegal (SAND, 2009). Como resultado desta decisão, a ordem que havia expulsado os

chagossianos era considerada ilegal e, portanto, os chagossianos nascidos no arquipélago e

seus filhos tinham o direito ao reassentamento. No entanto, o governo do Reino Unido

alegou que por conta de seu acordo com os Estados Unidos, o retorno à ilha de Diego

Garcia, onde está instalada a base militar, não seria possível o reassentamento.

Em 2004, um tribunal de Londres considerou que as ordens para expulsar os chagossianos

haviam extrapolado as competências legais e em 2007, a Corte de Apelação considerou que

a decisão do governo britânico de expulsar os chagossianos havia sido um abuso de

autoridade da Coroa Britânica (GRANDISON et al, 2003).

Em 2007, as Nações Unidas adotaram a Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas,

ratificado por 143 países, inclusive pelo Reino Unido. Esta Declaração garante o direito dos

povos a não serem removidos à força de suas terras ou de seus territórios.

No entanto, em 2008, a maioria dos membros da House of Lords decidiu que a Rainha do

Reino Unido tinha competência para expulsar a população nativa do arquipélago Chagos

sob o argumento de que o arquipélago ainda não era uma colônia britânica na época da

expulsão dos chagossianos (GRANDISON et al, 2003).

Com a derrota nas instâncias britânicas, os chagossianos levaram o caso ao Tribunal

Europeu de Direitos Humanos. A tentativa foi infrutífera porque o Tribunal Europeu de

Direitos Humanos considerou a petição inadmissível, sob o argumento de que alguns

chagossianos já haviam recebido uma módica compensação do governo britânico na

década de 1980 no caso Ventacasen (GRANDISON et al, 2003). A corte negou o status de

vítimas aos 1.786 chagossianos interessados porque 471 deles haviam recebido

compensação do governo britânico no caso Ventacassen (GRANDISON et al, 2003). De

acordo com o entendimento do referido tribunal, quando certo número de membros de uma

comunidade recebe compensação, todos os demais membros daquela comunidade perdem

automaticamente o direito de recorrer aos tribunais.

As implicações deste caso para o Direito Internacional são várias e se presta a diferentes

interpretações na área do Direito Internacional, em temas como o cumprimento da

Convenção sobre os Direitos da Criança e da Convenção Internacional sobre a Eliminação

de todas as Formas de Discriminação Racial das Nações Unidas. A Corte Europeia de

Direitos Humanos, ao tomar a decisão de rechaçar o petição dos chagossianos, indicou que

a compensação recebida por alguns cidadãos chagossianos foi adequada e, como

consequência, os chagossianos perdem automaticamente o seu direito de retorno às suas

terras. Esta situação não é estranha à história da colonização ao redor do mundo e,

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particularmente, no caso da história da colonização europeia. A decisão da Corte Europeia

de Direitos Humanos pode ser interpretada como um aval à decisão britânica de remover

forçosamente a população nativa do arquipélago Chagos e pagar a alguns chagossianos

uma módica compensação, o que se enquadra numa mentalidade colonial. Ao mesmo

tempo, a decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos abre a porta para que futuramente

se possa legitimar ações similares em prejuízo de populações vulneráveis.

Finalmente, essa decisão impõe um significativo prejuízo às novas gerações de

chagossianos cujos ascendentes foram expulsos de suas terras, pois não os considera

vítimas da decisão do governo britânico. As implicações da decisão da Corte Europeia para

o Direito Internacional são importantes e suscita discussões sobre o cumprimento da

Convenção sobre os Direitos da Criança e da Convenção Internacional sobre a Eliminação

de todas as Formas de Discriminação Racial das Nações Unidas, haja vista que o Reino

Unido é signatário de ambas convenções.

A proclamação feita pelo Reino Unido, em 2010, de uma área marinha protegida no entorno

do arquipélago de Chagos desencadeou uma queixa de violação da soberania da República

de Maurício. Em março de 2015, o Tribunal Permanente de Arbitragem constatou que o

direito da República de Maurício a sua soberania foi tolhido pela medida do governo

britânico. A batalha do governo da República de Maurício por recuperar o Arquipélago

Chagos teve mais um capítulo em 23 de junho de 2017, quando em votação na Assembleia

Geral das Nações Unidas, 94 países votaram a favor da República de Maurício, 15 a favor

do Reino Unido e 65 abstiveram-se. Com esta decisão da Assembleia Geral, o assunto será

levado ao Tribunal Internacional de Justiça, em Haia, nos Países Baixos, para que este

tribunal se pronuncie a respeito do pleito da República de Maurício que alega o seu direito

sobre o Arquipélago Chagos (SENGUPTA, 2017).

Base militar de Diego Garcia: uma herança da Guerra Fria

O período conhecido como Guerra Fria (1945-1991) marcou intensamente as Relações

Internacionais na segunda metade do século XX. A tensão entre os Estados Unidos e a

União Soviética em sua luta por ocupar os espaços das diferentes regiões do globo era a

tônica daquele período. A região do Oceano Índico não ficou à margem desta dinâmica.

Alguns documentos desclassificados pela Central Intelligence Agency (CIA), dos Estados

Unidos, mostram a preocupação do governo estadunidense com o interesse soviético em

estreitar relações com países da região, a exemplo da República de Maurício e da então

República de Malgache (hoje República de Madagascar).

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Mauritius has granted permission for Soviet ships to use Port Louis, and a Soviet cultural program is planned for 1969. The Soviets and the Malagasy Republic have been discussing the establishment of relations for several years. In November, 1968, the Soviets approached the Malagasy government with a proposal for the installation of a space-tracking station, but President Tsiranana apparently reject the request under strong French urging (CENTRAL, 1969, p.5).

A posição estratégica do Arquipélago Chagos no centro do Oceano Índico e logo abaixo da

linha do Equador fez do arquipélago um local cobiçado pelas grandes potências. Uma base

militar em Diego Garcia colocaria a força militar dos Estados Unidos numa posição

estratégica, bem próximo ao Oriente Médio, região de grandes interesses geopolíticos. Sand

(2009, p.2) faz um ilustrativo relato de como os Estados Unidos perceberam a importância

da ilha de Diego Garcia:

After alternative locations (in particular, the tortoise island of Aldabra in the Seychelles) had to be turned down in the face of protests by nature conservationists and scientists (from the Royal Society of London and the Smithsonian Institution of Washington, D.C., in particular), the Pentagon made up its mind that Diego Garcia was what it needed –with Admiral Horacio Rivero, Jr., vice chief of U.S. naval operations, blurting out at a briefing in the fall of 1964: “I want this island!” So that is when the atoll made its entry on the stage of global politics and in modern world history [grifo nosso].

Em reunião do Departamento de Estado dos Estados Unidos em 1968, fica clara a sua

decisão de utilizar a ilha de Diego Garcia como base estratégica no Oceano Índico: “In the

Indian Ocean Area, all the alternatives pointed to the importance of Diego Garcia as a supply

base and staging area. […] the possible deployment of Poseidon-armed nuclear subs would

be much easier to handle from this island base” (DEPARTMENT, 1968, p.7).

O documento secreto da CIA, de 1969, intitulado “Power Politics Drift Into the Western

Indian Ocean”, desclassificado em 2005, aponta como a criação do BIOT teve como objetivo

utilizar o arquipélago para fins militares (CENTRAL, 1969, p.4):

BIOT was created specifically to provide sites to military facilities on islands with populations theoretically so small as to cause no political difficulties. In addition to the leased US facility on Diego Garcia, a British military facility was planned for Aldabra.

Um documento secreto do National Security Council (NSC), dos Estados Unidos, de 1986,

intitulado United States Policy Toward The Southwest Indian Ocean, confirma o

entendimento de que a região é “estrategicamente importante para os Estados Unidos”

porque é palco de movimentos militares e navios petroleiros entre o Golfo Pérsico e a

Europa Ocidental, além de ser local de “valiosos recursos minerais” e por este motivo os

Estados Unidos “precisam obter e manter” o acesso a países da região, ao mesmo tempo

que deter o uso da região pela União Soviética (NATIONAL, 1986, p.5). Neste mesmo

documento está expresso que um dos objetivos dos Estados Unidos nessa região deve ser

desencorajar a República de Maurício a reclamar a sua soberania sobre o Arquipélago

Chagos (NATIONAL, 1986, p.10).

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Em março de 1971, chegaram os primeiros equipamentos para o início das obras de

construção da base militar em Diego Garcia e em 1973 a base militar entrou em operação.

Hoje a base de Diego Garcia é considerada a maior base militar dos Estados Unidos fora de

seu território (SAND, 2009). Entre 2.000 e 4.000 pessoas entre civis e militares trabalham na

ilha para dar suporte às operações militares (MALAISÉ, 2001; TISSEYRE, 2005; SAND,

2009). O porto tem capacidade para receber até 20 navios de guerra e nele são capazes de

atracar os maiores porta-aviões dos Estados Unidos (SAND, 2009). Possui base para

munições e mísseis de longo alcance. A pista de pouso está preparada para operar com os

supercaças-bombardeiro de longo alcance como os B-52 e os B-2 (NAUVEL, 2006). Esta

base também serve como centro de vigilância de comunicação e do espaço (MALAISÉ,

2001).

Em 2015, a base militar de Diego Garcia voltou a ser notícia na mídia britânica. De acordo

com o jornal The Guardian (CIA, 2015), Lawrence Wilkerson, ex-chefe da equipe do

secretário de Estado dos Estados Unidos, Colin Powell, afirmou que a base militar

estadunidense de Diego Garcia é utilizada para manter presos secretamente, onde são

interrogados sob condições desconhecidas e que o serviço secreto dos Estados Unidos

(CIA) usa a base de Diego Garcia para cometer “atividades nefastas” (“nefarious activities”).

Por outro lado, o governo dos Estados Unidos sempre que é provocado a se pronunciar

sobre o caso do desterro da população do Arquipélago Chagos argumenta que o território

não lhe pertence e que só o Reino Unido pode dar explicações sobre este assunto. Do

ponto de vista da maior potência militar do planeta, a base militar instalada na ilha de Diego

Garcia é peça essencial para as suas ações na África, no Oriente Médio e na Ásia. A sua

construção teve um papel fundamental durante a Guerra Fria, impondo pressão sobre a

China e a então União Soviética. Sabe-se que os aviões que bombardearam o Afeganistão

desde 2001 na luta dos Estados Unidos contra a Al Qaeda partiram da base militar de Diego

Garcia (NAUVEL, 2006). Do mesmo modo, os ataques ao Iraque a partir de 2003 com os

bombardeiros de longo alcance como os B-52 e os B-2 também partiram daquela base

militar. As intervenções militares dos Estados Unidos em Camboja, Paquistão, Iraque,

Eritreia e Somália também tiveram o apoio da base militar de Diego Garcia (NAUVEL, 2006).

Considerações Finais

A história do Arquipélago Chagos e de sua população é parte da história colonial europeia e

representa um trágico capítulo na história dos Direitos Humanos. A expulsão da população

chagossiana de suas terras executada pelo governo do Reino Unido com o apoio dos

Estados Unidos é um caso exemplar de violação dos Direitos Humanos perpetrado por duas

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potências contra uma população indefesa. O exílio forçado dos chagossianos representa

uma violação do Direito Internacional uma vez que nenhuma pessoa pode ser exilada de

sua terra natal a não ser por um tribunal composto por seus pares. É um caso exemplar de

violação dos direitos humanos, discriminação, remoção forçada de população e privação do

direito de propriedade, com consequências transnacionais.

O fato é que este episódio relativamente pouco conhecido na área das relações

internacionais revela como uma potência colonial como o Reino Unido pôde expulsar

legalmente uma população nativa de sua terra, efetuar um pagamento simbólico a alguns

chagossianos, ainda que este pagamento não compensasse as perdas, os prejuízos e os

danos psicológicas infligidos às vítimas, e finalmente, alugar o território para que a maior

potência militar do planeta ali instalasse, provavelmente, a sua maior base militar fora do

território dos Estados Unidos.

Apesar da debilidade da população chagossiana, esta conseguiu empreender uma luta nos

tribunais por seus direitos cujos resultados ainda estão por ser definidos. A situação do

governo britânico perante este assunto não é confortável, uma vez que tanto a comunidade

acadêmica, quanto a imprensa mundial tem se debruçado cada vez mais sobre este caso. A

insistência da República de Maurício de buscar, no âmbito das Nações Unidas, recuperar o

Arquipélago Chagos que lhe foi arrancado três anos antes de obter a sua independência

ainda é uma batalha que não chegou ao fim.

A posição estratégica do Arquipélago Chagos é motivo de cobiça para qualquer potência

internacional. Para os Estados Unidos, dispor de uma base militar naquela região é

fundamental para assegurar os seus interesses. Assim como a base de Guantánamo, em

Cuba, a base de Diego Garcia é citada como local “caixa preta”, ou seja, onde não se sabe

que tipo de operações ali são realizadas, nem quem permanece preso, nem sob que

condições.

Portanto, a principal contribuição deste artigo é trilhar uma via de pesquisa inédita na

comunidade acadêmica brasileira e trazer à tona um tema relativamente pouco conhecido

cujas repercussões tocam áreas relevantes como a História das Relações Internacionais, a

Geopolítica, os Direitos Humanos e o Direito Internacional.

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