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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO RIO DE JANEIRO - FFP
História Antiga do Oriente | Prof.ª Lolita Guimarães Guerra
Aluno: Matheus de Oliveira Vieira
21 de julho de 2015
O professor de História e o livro didático no ensino fundamental
Reflexões a partir da etnia egípcia no livro “Nova História Crítica”
O ensino fundamental é o momento ideal para o professor trabalhar a personalidade
crítica e a capacidade de análise e compreensão histórica dos alunos, visto que estes possuem
a vantagem de ter mais tempo para aprofundar as discussões em sala de aula. Livres da
maratona mecânica da preparação para o vestibular, podem experimentar o conhecimento
pelo sabor da curiosidade e da discussão.1 Apesar do quadro aparentemente favorável, há uma
crença arraigada na mentalidade dos profissionais de educação de que o aluno do ensino
fundamental ainda não tem capacidade para ser exposto à uma análise mais crítica e, menos
ainda, à discussão historiográfica. Este menosprezo da capacidade do aluno e a preocupação
em “passar todo o conteúdo” propiciam uma inversão na relação de ensino: o livro didático
faz o papel do professor, ao conduzir a aula; e o professor faz o papel do livro didático,
servindo para consulta. Torna-se necessária a reflexão: se é difícil supor que um aluno de
quinta série tem capacidade para discutir historiografia, é impossível pretender que ele decore
todas as informações presentes nas páginas dos livros didáticos. O desinteresse do aluno é
notável na medida em que a história parece aos seus olhos um conjunto de acontecimentos de
um passado distante. Configuram-se então dois problemas: a supervalorização do livro
didático, com suas “verdades concretas” que anulam a chance do aluno desenvolver uma
análise e um discurso próprios; e a completa ruptura do passado com o presente que a prática
equivocada da docência provoca.
Não é a pretensão deste trabalho, discutir a escolha das obras que farão parte do
Programa Nacional do Livro Didático, os Parâmetros Curriculares Nacionais, a crise da
educação no Brasil, ou qualquer outra problemática externa à sala de aula. Será discutida a
relação entre professor, aluno e livro didático. Em outras palavras, como o professor pode
1 É preciso considerar que, para fins deste trabalho, será pensado o ensino fundamental somente a partir do sexto ano (antiga quinta série), quando a disciplina de História passa a integrar o currículo.
trabalhar com o que tem em mãos para dar uma aula interessante e crítica. As reflexões serão
feitas a partir de um estudo de caso: a abordagem da etnia egípcia no livro “Nova História
Crítica”, de Mário Furley Schmidt.
A coleção “Nova História Crítica”, publicada pela editora Nova Geração, foi aprovada
pelo Programa Nacional do Livro Didático e distribuída para mais de 50 mil escolas de todo o
país entre 1999 e 2007.2 Os livros têm uma linguagem informal que busca alcançar o público
adolescente, muitas ilustrações e nenhuma preocupação em discutir a relação entre as
civilizações e culturas. No capítulo 5 do primeiro volume, “O Egito Antigo”, o autor aborda a
questão das etnias com ênfase:
Talvez você e seus colegas já tenham feito essa pergunta: será que os povos negros
da África nunca formaram uma grande civilização? Uma civilização admirada por
todo o mundo? Pois bem, aí vai uma informação preciosa, amigo leitor: os antigos
egípcios eram africanos! Isso mesmo, eles nada tinham do tipo físico europeu. A
extraordinária civilização egípcia, tão admirada no passado e nos tempos atuais foi
construída pela inteligência, criatividade e trabalho duro de milhões de pessoas de
pele escura. 3
Nota-se que a temática das etnias é uma preocupação central para o autor na discussão
do Egito Antigo, visto que esse trecho abre o capítulo e que a mesma temática o encerrará. O
professor certamente cairá nos mesmos equívocos do autor se não fizer um estudo prévio da
obra e do tema, mas para o professor preparado e preocupado em proporcionar boas reflexões
históricas, o trecho oferece equívocos suficientes para sustentar uma aula inteira de
discussões.
Em primeiro lugar, o trecho sugere que o Egito foi a única grande civilização da
África Antiga, o que demonstra no mínimo um descuido do autor, visto que no mesmo ano de
publicação da obra, foi sancionada a lei 10.639, que torna obrigatória a inclusão de História
da África em todos os currículos escolares nos estabelecimentos de ensino fundamental e
médio.4 O professor pode, neste caso, enumerar e apresentar outras nações africanas e explicar
brevemente, para não fugir do tema central da aula, porque o estudo de outras civilizações
africanas começou a avançar tardiamente em relação aos do Egito. O professor também pode
2 TEODORO, R. F. Aspectos estruturais da coleção de livros didáticos “Nova História Crítica”. 2008. 61 f. Monografia (Bacharelado em História) – Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Ouro Preto, Mariana, 2008. p. 4.3 SCHMIDT, M. F. Nova História Crítica. São Paulo: Nova Geração, 1 vl., ed. 2001. p. 894 BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de Janeiro de 2003. Dispõe sobre a inclusão no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm> Acesso em: 19 jul 2015
fazer uma reflexão acerca da utilização da expressão “grande civilização”. Por que se pode
chamar o Egito Antigo de grande civilização? São boas questões para a sala de aula.
O segundo ponto a ser analisado versa sobre a etnia dos egípcios. O autor se apega à
afirmação de que a civilização egípcia é negra, sem exceções. Aproxima-se do pan-
africanismo de Cheikh Anta Diop, embora não faça referência, e não leva em consideração as
rupturas, descontinuidades e interações com outros povos e culturas na história do Egito
Antigo. Mais uma vez pode-se constatar a desatualização nos debates historiográficos por
parte do autor. Dezessete anos antes da publicação da primeira edição da coleção “Nova
História Crítica”, Ciro Flamarion tratava a questão das etnias com mais responsabilidade e
propriedade:
...situado na confluência da África e da Ásia, nunca esteve (o Egito) isolado, sendo
inaceitável pretender que sua população foi exclusiva ou predominantemente
“branca”, tanto quanto “negra” já que tudo indica ter sido sempre muito mesclada,
pelo menos desde o Neolítico.5
A discussão sobre a cor da pele, afirma Ciro Flamarion, é no fundo irrelevante diante
de questões mais importantes na história egípcia,6 mas é tão acentuada no livro didático que se
torna uma boa oportunidade para apresentar aos alunos uma discussão historiográfica acerca
do tema. Na verdade, mais do que uma boa oportunidade, é obrigação do professor, para que
os alunos possam entender a História como uma construção, e não como um conjunto de
verdades absolutas. Diante dessa questão, o professor pode apresentar importantes
egiptólogos para sua turma e levar algumas curtas frases para discutir em sala de aula; ou
pode passar um trabalho, no caso de falta de tempo em sala, com referência definida em livros
especializados, como o “O Egito Antigo”, de Ciro Flamarion. Outra possibilidade é fazer uma
comparação com o Brasil. Se 500 anos de interação e mescla de povos e culturas fizeram do
Brasil um país sem etnia definida, o que dizer do Egito Antigo com mais de 2500 anos de
relações comerciais com povos vizinhos? Segundo Braudel, já no século XXV a.C., o rio Nilo
possibilitou a relação comercial entre Egito e Núbia e, pouco tempo depois, pela rota de
Coptos a Qoeir, possibilitou atingir o mar Vermelho.7 Obviamente, precisam ser feitas as
pontuações necessárias. Os períodos de colonização e posterior desenvolvimento do Brasil
aconteceram com a utilização de uma tecnologia consideravelmente superior do que a
desenvolvida pelos egípcios na antiguidade; mas a comparação se faz possível se avaliarmos
5 CARDOSO, C. F. S. O Egito Antigo. São Paulo: Brasiliense, 1982. p. 56 Ibidem.7 BRAUDEL, F. O Espaço e a História no Mediterrâneo. São Paulo: Martins Fontes, 1988. p. 59
que, na história das relações egípcias com outros povos, o período é maior e a distância entre
os povos, bem mais curta.
Outro problema encontrado no primeiro livro da coleção “Nova História Crítica”, é
que os capítulos são divididos por civilizações, de forma que cada capítulo é uma descrição de
cada uma delas, e não é discutida a relação entre elas. Para o aluno, fica a impressão de que as
civilizações antigas não interagiam umas com as outras e nem exerciam ou sofriam influência.
Obviamente, os livros didáticos são obras de resumo, mas essa é uma questão demasiado séria
e central no estudo de História Antiga para ser deixada de fora. Segundo Fernand Braudel, já
no início do segundo milênio há uma cultura cosmopolita no Mediterrâneo, tendo o Egito uma
posição de destaque:
No início do segundo milênio emergem, portanto, dois setores marítimos: a costa
libanesa e as ilhas do Egeu. Cria-se, assim, um fenômeno extraordinariamente novo,
estabelece-se uma cultura cosmopolita, na qual as contribuições de diversas
civilizações [...] podem ser reconhecidas. Dessas civilizações, umas permanecem
nos domínios dos impérios: o Egito, a Mesopotâmia, a Ásia Menor dos hititas.8
A omissão das relações comerciais constitui mais um grave erro do livro e que deve
ser contornado pelo professor em sala de aula. Neste caso, em particular, o professor pode
trabalhar com um mapa do Mediterrâneo, em pôster ou projetado, para explicar as relações
entre as civilizações e culturas que o livro apresenta. Este mapa pode estar presente em todas
as aulas para que se reporte a ele toda vez que seja necessário localizar geograficamente o
aluno. Outra forma de trabalhar a localização geográfica e as relações comerciais, é que cada
aluno tenha um mapa impresso em preto e branco onde ele possa pintar e nomear as regiões
que já foram estudadas. Essa atividade propiciará dúvidas valiosas para o aprendizado e
tornará mais fácil a visualização dos alunos quando o professor quiser explicar alguma
interação entre dois ou mais povos.
8 BRAUDEL, F. O Espaço e a História no Mediterrâneo. São Paulo: Martins Fontes, 1988. p. 60-61.
REFERÊNCIAS
CARDOSO, Ciro. Um historiador fala de teoria e metodologia. Bauru: EDUSC, 2005, “Cap.
1 – Tempo e História”, P. 11-36
MOTTA, Márcia. “História e memórias”. In: BADARÓ, Marcelo (org.) História: pensar e
fazer. Rio de Janeiro: Laboratório Dimensões da História, 1998, p. 73-89
FONTANA, Josep. História dos Homens. Bauru: EDUSC, 2004, “Introdução” e “Cap. 16 –
Em Busca de Novos Caminhos”, p. 11-19 e 471-490.
GONZAGA, Luiz. GONZAGUINHA. A viagem de Gonzagão e Gonzaguinha. EMI-Odeon,
1994, faixa 4 – “Pequena memória para um tempo sem memória”
<http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/07/150708_borisfausto_ms> Acesso em: 10 jul. 2015.
<https://www.youtube.com/watch?v=9AZsvLf1DJ0> Acesso em: 10 jul. 2015.