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Tese Joelson Goncalves PereiraTRANSCRIPT
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE PS-GRADUAO EM GEOGRAFIA HUMANA
O PATRIMNIO AMBIENTAL URBANO DE CORUMB-MS: IDENTIDADE E PLANEJAMENTO
Joelson Gonalves Pereira
Tese apresentada ao Programa de Ps-graduao em Geografia Humana da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para a obteno do ttulo de Doutor em Cincias Humanas: Geografia.
Orientador: Prof. Dr. Eduardo A. Yzigi
So Paulo 2007
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Jerusalm, cidade to bem edificada, que forma um to belo conjunto!
Salmo 121, 3
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A Teresinha e Gladslayne.
A Jos e Paulo Jos
...com afeto.
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AGRADECIMENTOS Ao povo de So Paulo, mantenedor desta magnfica Universidade de So Paulo; Ao Prof. Dr. Eduardo Yzigi pela prestimosa amizade, pela riqueza de conhecimentos acumulados na convivncia em seu grupo de pesquisa e pelo exemplo de disciplina e amor nossa civilizao urbana; Ao Prof. Dr. Felisberto Cavalheiro (in memorian), pelo privilgio de sua amizade, pelos valiosos conhecimentos obtidos e pelo exemplo de dedicao e entusiasmo para com seus alunos; Prefeitura de Corumb, nas pessoas do Sr. Cssio Augusto Costa Marques, secretrio municipal de infra-estrutura e habitao e da arquiteta e urbanista Lgia Costa Urdan, coordenadora de planejamento urbano, pela oportunidade de minha permanncia junto ao grupo tcnico de elaborao do Plano Diretor Participativo, verdadeiro laboratrio s reflexes alcanadas neste trabalho; Ao prof. Dr. Roberto Paixo, grande incentivador da minha caminhada acadmica, desde a poca da graduao no antigo Centro Universitrio de Corumb-CEUC/UFMS; Ao prof. Marco Aurlio Oliveira, pelas sugestes apresetadas ao enriquecimento do trabalho; Ao arquiteto e urbanista Fbio P. Giovanni pelo auxlio dispensado nos trabalhos de configurao grfica do relatrio; A todos aqueles que, de alguma forma, me auxiliaram na elaborao deste trabalho.
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RESUMO
A presente pesquisa constitui uma abordagem sobre Corumb, cidade edificada sob
um plat calcrio margem direita do rio Paraguai, regio noroeste do estado de
Mato Grosso do Sul. O local marcado por uma forte personalidade espacial,
referenciada na sua fisiografia natural e na permanncia de uma cultura material
representativa enquanto bem patrimonial, em parte reconhecida como patrimnio
histrico, paisagstico e artstico nacional. Estas caractersticas espaciais de
Corumb colocaram-se como objeto desta investigao acadmica, realizada sob a
perspectiva conceitual de patrimnio ambiental urbano, privilegiando a reflexo sobre
dois temas importantes e sempre atuais dentro do campo atuao da cincia
geogrfica: o planejamento e a identidade espacial dos lugares. Como resultado, a
cidade revelou-se, diante de sua representatividade material, favorvel em retratar a
problemtica que envolve a questo da preservao patrimonial no Brasil, bem como
seus resultados afetos aos fatores de qualidade ambiental, de civilizao urbana e
identidade. Por fim, ressalta-se que a leitura apresentada neste trabalho resulta de
uma construo sistemtica, referenciada nos propsitos estabelecidos pelo projeto
de pesquisa iniciado no ano de 2003. As reflexes alcanadas no trato dessa
temtica resultaram de duas preocupaes centrais referentes realidade da rea
estudada e que constituram os principais esforos de sua investigao: a
caracterizao dos elementos de cultura material e de fisiografia representativos do
patrimnio ambiental urbano de Corumb e a problemtica que envolve sua
preservao enquanto materialidade expressiva na definio de uma identidade
espacial.
Palavras-chaves: Corumb, patrimnio ambiental urbano, identidade, planejamento.
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vi
ABSTRACT
This present research is an approach about Corumb, a city built over a limestone
Plateau, on the right bank of Paraguay River, in the northwest region of Mato Grosso
do Sul. The place is marked by its intense spacious personality, which is respected by
its natural physiography and its permanence as a representative material culture
while a patrimonial asset, recognized as a National and Historical Heritage. These
space characteristics of Corumb were the subjects of this academic inquiry carried
out under the assessed perspective of urban and environmental heritage, favoring a
reflection about two important and current subjects: the planning and the space
identity of the places. As a result, in the face of its material representation, the city
showed favorable to portray the problem which involves the patrimonial preservation
question in Brazil, as well as its results related to the factors of environmental quality,
urban civilization and identity. At last, it is emphasized that the reading presented in
this work results from a systematic construction concerned to the purposes
established by the research proposition started in 2003. The achieved reflections
related to the theme resulted from two main worries concerning the reality of the
studied field and which constituted the efforts to this investigation: the
characterization of the material culture elements and the representative physiography
of its urban heritage in Corumb and the problem which involves its preservation
while an expressive materiality defines the space identity.
Keywords: Corumb city, urban and environmental heritage, space identity, planning.
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vii
SUMRIO
RESUMO ........................................................................................................ v
ABSTRACT ..................................................................................................... vi
NDICE ............................................................................................................ ix
LISTA DE FIGURAS ....................................................................................... xii
LISTA DE GRFICOS .................................................................................... xv
LISTA DE PLANTAS ....................................................................................... xvi
LISTA DE TABELAS........................................................................................ xvii
INTRODUO................................................................................................. 01
CAPTULO 1 O AMBIENTE NO CONTEXTO DE RELAES
CULTURAIS ....................................................................................................
12
CAPTULO 2 AS RELAES ENTRE UMA ORDEM SOCIAL E UMA
ORDEM LOCAL .............................................................................................. 24
CAPTULO 3 A CULTURA MATERIAL DAS CIDADES .............................. 30
CAPTULO 4 BREVE CARACTERIZAO DA GEOGRAFIA DE CORUMB ..................................................................................................... 38
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viii
CAPTULO 5 O PATRIMNIO AMBIENTAL URBANO DE CORUMB ..... 47
CAPTULO 6 INVENTRIO DO PATRIMNIO ARQUITETNICO ............ 114
CAPTULO 7 A PRODUO DA CIDADE E OS DESAFIOS
PRESERVAO PATRIMONIAL .................................................................. 144
CONSIDERAES FINAIS............................................................................. 186
BIBLIOGRAFIA................................................................................................ 191
ANEXO............................................................................................................. 201
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ix
NDICE INTRODUO.......................................................................................................
01
CAPTULO 1 O AMBIENTE NO CONTEXTO DE RELAES CULTURAIS .. 12
CAPTULO 2 AS RELAES ENTRE UMA ORDEM SOCIAL E UMA ORDEM LOCAL ................................................................................................... 24
CAPTULO 3 A CULTURA MATERIAL DAS CIDADES .................................. 30
CAPTULO 4 BREVE CARACTERIZAO DA GEOGRAFIA DE CORUMB ........................................................................................................... 38
CAPTULO 5 O PATRIMNIO AMBIENTAL URBANO DE CORUMB ......... 47 5.1. A Fisiografia do meio natural............................................................... 52
5.1.1. O rio Paraguai e a gnese do patrimnio ambiental urbano de Corumb............................................................................... 53 A O rio na escala regional: a definio da geopoltica e da
centralidade de Corumb................................................. 54 B O rio na escala local: a produo da cidade e do seu
cotidiano............................................................................ 56 O rio no contexto histrico do desenvolvimento urbano............................................................................ 56 O rio e a asceno do turismo....................................... 58 O rio como ideal coletivo formulao da viso de futuro.............................................................................. 62 O rio na referncia urbanstica....................................... 63 O rio e a dimenso simblica......................................... 64
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x
O rio enquanto marca do lugar.................................... 64 5.1.2. O domnio das colinas sul.......................................................... 67
5.2. O espao pblico enquanto patrimnio................................................. 73 5.2.1. O centro de Corumb................................................................ 74 5.2.2. Os espaos da convivncia espaos pblicos centrais e a
centralidade do acontecer urbano ............................................ 79 5.2.3. O espao pblico das caladas ................................................ 84
5.3. O patrimnio paisagstico..................................................................... 87 5.4. O patrimnio arquitetnico.................................................................... 90
5.4.1. Contextualizao histrica e o surgimento dos imveis .......... 91 A O legado do comrcio porturio............................................ 91 B O legado arquitetnico da pecuria....................................... 100
5.4.2. A fase de desvalorizao e substituio do antigo .................. 107 5.4.3. Novas perspectivas .................................................................. 111
CAPTULO 6 INVENTRIO DO PATRIMNIO ARQUITETNICO DE CORUMB ........................................................................................................... 114
6.1. Classificao dos imveis conforme rea de proteo......................... 117 6.2. Uso atual dos imveis ...................................................................... 119 6.3. Estado de conservao ....................................................................... 122 6.4. Alterao do desenho original da fachada ........................................... 125 6.5. Estilo de Construo ................................. 127 6.6. Conjuntos remanescentes ................................................................ 128 6.7. Distribuio dos imveis nos logradouros............................................. 130
CAPTULO 7 A PRODUO DA CIDADE E OS DESAFIOS PRESERVAO PATRIMONIAL ........................................................................ 144
7.1. As transformaes na relao com o urbano e suas implicaes ao patrimnio ambiental............................................................................ 148
-
xi
7.2. A construo de uma nova urbanizao............................................... 154 7.2.1. A questo social e a descaracterizao da fisiografia dos
morros e encostas .................................................................... 155 7.2.2. A incoerncia do projeto urbano com as caractersticas
topogrficas do stio de expanso ............................................ 159 7.2.3. A difuso da autoconstruo e o comprometimento da
qualidade tcnica e esttica das construes da periferia ...... 164 7.2.4. Os projetos estatais de habitao popular: oportunidade
perdida na qualificao ambiental urbana ............................... 165 7.2.5. A incontinncia do crescimento horizontal e das deficincias
urbanas .................................................................................... 168 7.3. A desconstruo da antiga urbanizao............................................... 169
7.3.1. Os efeitos da publicidade comercial ......................................... 174
7.3.2. O espao pblico de todos... e de tudo! ................................... 176
7.3.3. Os efeitos da renovao urbana ............................................... 184
CONSIDERAES FINAIS.................................................................................. 186
BIBLIOGRAFIA..................................................................................................... 191
ANEXO.................................................................................................................. 201
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xii
LISTA DE FIGURAS
Figura 01 Localizao do municpio e da cidade de Corumb no estado de Mato Grosso do Sul.............................
39
Figura 02 Imagem do satlite LandSat 5 com a localizao da cidade
de Corumb e localidades circunvizinhas ................................
40
Figura 03 Planta da cidade de Corumb ................................................. 41
Figura 04 Aspecto da disposio dos imveis mais antigos nos lotes, caracterizada pela justaposio, alinhamento e ausncia de recuo da fachada em relao calada .................................
44
Figura 05 Vista area do stio antigo da cidade de Corumb com a delimitao da rea de Tombamento e entorno ......................
45
Figura 06 Descaracterizao das fachadas originais, devido a
substituio de portas e janelas ...............................................
46
Figura 07 Vista do rio Paraguai no porto de Corumb.............................. 53
Figura 08 O porto de Corumb no incio do sculo XX............................. 66
Figura 09 Embarcao de turismo (pesqueiro) no rio Paraguai............... 66 Figura 10 Mesmo a rigidez de um racionalismo pretencioso, encontra
seu limite nas curvas incertas da natureza...............................
66
Figura 11 O valor simblico de um lugar sacralizado pela conscincia... 66
Figura 12 Um espao, vrios significados, inmeras relaes................. 66
Figura 13 A apropriao do rio como marca do lugar revela sua expressividade no imaginrio urbano.......................................
66
Figura 14 Morraria dolomtica e sua floresta semi-decidual submontana
na Parte Alta de Corumb........................................................
67
Figura 15 Aspecto da morraria dolomtica no bairro Nova Corumb........ 69
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xiii
Figura 16 Grupo escolar Lus de Albuquerque (atual Casa de Cultura) em fase de construo no incio do sculo XX ........................
91
Figura 17 Residncia tpica de famlia pecuarista de Corumb, construda na primeira metade do sculo XX........................... 106
Figura 18 Antigo edifcio do Colgio Salesiano de Santa Teresa (primeiro plano), demolido entre as dcadas de 1960 1970 .
110
Figura 19 Colgio Salesiano de Santa Teresa. Edifcio atual .................. 110
Figura 20 Layout do banco de dados digital sobre o patrimnio
ambiental urbano de Corumb, em fase de estruturao, no sistema de informaes geogrficas SPRING 3.6................
116
Figura 21 Inventrio arquitetnico: rua 13 de Junho seo A-B............ 131
Figura 22 Inventrio arquitetnico: rua 13 de Junho seo B-C............ 132
Figura 23 Inventrio arquitetnico: rua Delamare seo A-B................ 133
Figura 24 Inventrio arquitetnico: rua Delamare seo B-C................ 134
Figura 25 Inventrio arquitetnico: rua Dom Aquino................................. 135
Figura 26 Inventrio arquitetnico: Casario do Porto................................ 136
Figura 27 Inventrio arquitetnico: Avenida General Rondon.................. 137
Figura 28 Inventrio arquitetnico: rua 15 de Novembro.......................... 138
Figura 29 Inventrio arquitetnico: rua Antnio Maria Coelho.................. 139
Figura 30 Inventrio arquitetnico: rua Cuiab seo A-B.................... 140
Figura 31 Inventrio arquitetnico: rua Cuiab seo B-C.................... 141
Figura 32 Inventrio arquitetnico: rua Frei Mariano ............................... 142
Figura 33 Inventrio arquitetnico: Antnio Joo ..................................... 143
Figura 34 O livre arbtrio privado no uso do espao pblico ................. 153
Figura 35 Aspecto da ocupao residencial da face norte do morro da Bandeira por famlias carentes.................................................
158
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xiv
Figura 36 Os efeitos atuais de um processo de urbanizao s avessas 161
Figura 37 Planta urbana de Corumb com a espacializao do problemas relacionados ao uso do solo................................... 163
Figura 38 O centro comercial de Corumb: permetro de maior concentrao de estabelecimentos comerciais, financeiros e de servios da cidade, localizado entre as trs praas centrais..................................................................................... 173
Figura 39 Rua Frei Mariano, centro comercial de Corumb: a degradao ambiental imposta pela publicidade comercial .... 176
Figura 40 Cruzamento das ruas Frei Mariano e Delamare: a densidade das redes areas, dos mobilirios urbanos e dos quiosques comerciais expe a banalizao do espao pblico e suprime a visibilidade daquilo que, de fato, mereceria ser visto............ 178
Figura 41 Quiosques comerciais, sito praa da Repblica. O extremo desleixo com o espao pblico ostentado, sem qualquer constrangimento, no mesmo local onde remanesce um dos mais expressivos conjuntos arquitetnicos da cidade.............. 179
Figura 42 Busto em homenagem a Jos Bonifcio: a deteriorao do entorno reduz a visibilidade do monumento ............................ 180
Figura 43 A praa desimpedida de outrora, cercada de balaustradas, compunha com os edifcios de entorno um conjunto eloqente e de grande repercuso visual................................. 183
Figura 44 A praa atual com o terminal de nibus construdo pela prefeitura em 1983 ................................................................... 183
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xv
LISTA DE GRFICOS
Grfico 01 Classificao dos imveis quanto rea de proteo que
integram....................................................................................
117
Grfico 02 Uso atual dos imveis da rea de estudo................................. 119
Grfico 03 Uso atual dos imveis localizados no permetro de tombamento..............................................................................
120
Grfico 04 Estado de conservao da fachada dos imveis da rea de
estudo.......................................................................................
122
Grfico 05 Estado de conservao da fachada dos imveis do permetro de tombamento.........................................................................
124
Grfico 06 Alterao do desenho original da fachada dos imveis da
rea de estudo..........................................................................
125Grfico 07 Estilos de construo dos imveis ........................................... 127
Grfico 08 Distribuio dos imveis nos logradouros................................ 130
Grfico 09 Evoluo da populao do municpio de Corumb por
siturao .................................................................................. 151
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xvi
LISTA DE PLANTAS
Planta 01 Classificao conforme rea de proteo................................. 118
Planta 02 Uso atual dos imveis............................................................... 121
Planta 03 Estado de conservao da fachada.......................................... 123
Planta 04 Alterao do desenho original da fachada................................ 126
Planta 05 Localizao dos conjuntos remanescentes.............................. 129
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xvii
LISTA DE TABELAS
Tabela 01
Principais investimento pblicos realizados na cidade de Corumb entre os anos de 2004 e 2006..................................
77
Tabela 02 Principais festividades e eventos pblicos existentes na cidade de Corumb...................................................................
79
Tabela 03 Lista dos atributos levantados em campo e suas respectivas
variveis....................................................................................
144
Tabela 04 Dados de populao das encostas ribeirinha e de morraria em Corumb.............................................................................
156
Tabela 05 Conjuntos habitacionais construdos em Corumb at 2006... 167
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1
INTRODUO
Em muitas cidades do mundo verifica-se, sobretudo a partir do final da Segunda
Guerra Mundial, um esforo devotado reabilitao da cultura material em
benefcio de uma melhoria da qualidade ambiental urbana, configurando-se, por
conseguinte, em fator favorvel ao desenvolvimento local. Especialmente na
Europa, essa preocupao teve uma participao decisiva nos esforos de
reconstruo de um continente debilitado pelas conseqncias da guerra. O
prevalecimento da restaurao material no propsito da reconstruo de suas
cidades semi-destrudas, propiciou a manuteno de uma rica cultura material
acumulada pelo processo histrico e que representa a prpria identidade urbana
de uma Europa conservadora na valorizao do antigo e do vernacular, embora
aberta inovao tecnolgica.
Esse legado cultural e sua valorizao enquanto bem patrimonial constitui um
dos fatores que propiciaram a prpria recuperao econmica daquele
continente. Basta lembrar que a partir do ps-guerra o turismo ascende como
uma das principais economias da Europa, grande parte favorecido pelos atrativos
urbanos da cultura material, ainda hoje responsveis pela maioria dos fluxos de
turistas que visitam o continente.
Dentre as cidades europias, Paris se destaca como um exemplo onde a cultura
material, sobretudo aquela expressa pela arquitetura, constitui importante indutor
de civilizao capaz de determinar sua identidade espacial e atuar como fator de
qualificao ambiental urbana, ao mesmo tempo que contribui, em grande
medida, para seu importante fluxo de visitantes.
Na capital francesa, a qualidade ambiental urbana, auxiliada pela preservao da
cultura material, faz com que no apenas os monumentos, edifcios ou certos
espaos pblicos, mas toda a cidade, se constitua em atrao ao turista, uma
situao que se converte em desenvolvimento local, por conta do dinamismo
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2
empreendido sua economia atravs da gerao de empregos, receitas e
tributos.
Em nvel de Brasil, nos casos onde houveram intervenes que visassem
preservao do patrimnio e valorizao do ambiente urbano, via de regra foram
deflagrados com o objetivo de promoo do turismo cultural, catalisador de
desenvolvimento e gerao de emprego e renda. No obstante, tais exemplos
ainda constituem exceo em um pas onde a preservao e conservao dos
bens culturais encontram-se ainda muito distantes de se configurar em uma
realidade ideal.
Ainda que discursos voltados preservao do patrimnio brasileiro j sejam
audveis no campo governamental uma vez que o Estado reconhece
oficialmente a importncia desse patrimnio e sua preservao e em alguns
segmentos sociais, h, no entanto, uma dificuldade em projet-lo ao alcance das
polticas pblicas, para que se converta em prtica e em benefcios, de forma
efetiva. Esta constatao evidencia, em certo modo, uma viso estreita com que
o tema sempre foi tratado, o que impediu e ainda impede vislumbrar a
preservao da cultura material, como importante vis para a prtica da
cidadania, da qualidade ambiental e ao desenvolvimento social e econmico.
Apesar de constiturem raros remanescentes de uma cultura material que por
muito tempo foi submetida ao interesse do capital, cuja expanso e acumulao
em boa medida se processou s custas de construes, demolies e
reconstrues urbanas, os bens culturais existentes no Brasil ainda so
penalizados por polticas pblicas de preservao ineficientes e, sobretudo, por
uma viso preconceituosa de uma maioria desinformada da populao que os
concebem pejorativamente como coisas velhas, smbolo de atraso e, no caso
em que a sua preservao garantida oficialmente por tombamento, entrave aos
processos de desenvolvimento e modernizao.
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3
Por esta situao, percebe-se uma sociedade desejosa em despir-se de sua
prpria imagem, o que pode ser entendido como um auto-preconceito, uma vez
que estes mesmos bens culturais constituem nada mais que a expresso
material de sua prpria identidade, criada a partir da interao estabelecida entre
a estrutura social e o seu espao. Verifica-se, portanto, um preconceito pela
prpria civilizao que se engendrou ao longo do tempo e que tem nestes
objetos culturais sua representao mais explcita. Sob este aspecto, reporta-se
ao exposto por PIRES (2003) sobre essa condio brasileira: (...) ns no temos
orgulho de nossa civilizao, de tudo o que construmos, do nosso legado
cultural. Isso nos faz dbeis, nos faz subpovo aos olhos internacionais.
Prossegue este mesmo autor, referindo-se a essa situao como elucidativa ao
fato de os atrativos tursticos apresentados pelo Brasil se resumirem
praticamente a seus recursos naturais os quais, por serem na maioria das vezes
comuns aos existentes em outros lugares praia, sol, florestas e montanhas no
so atributos naturais exclusivos do Brasil onde as vantagens oferecidas aos
visitantes so maiores, a exemplo da questo da segurana, acabam, por
conseqncia, contribuindo para a inexpressiva quantidade de turistas recebida
anualmente pelo pas.
Da a preservao de bens culturais constituir, em dias atuais, uma preocupao
cada vez mais crescente medida que se ampliam, tambm, em sentido oposto,
os efeitos relacionados massificao e padronizao cultural da atual
sociedade global. A defesa pela preservao do patrimnio assume, assim, um
carter de resistncia a esse processo, o que eleva a importncia dada a esses
bens, de modo a serem tratados no mais como meros referenciais da histria e
do passado, mas como fator de identidade de uma sociedade e de um lugar.
O ambiente urbano equivale escala espacial do lugar. Neste sentido, h que se
considerar que a cultura material nele existente deve estar relacionada antes
dimenso do cotidiano, portanto, motivo de interesse a seu habitante. Caso isto
ocorra, como conseqncia esta tornar atrativa tambm ao visitante,
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4
favorecendo o fluxo turstico. Nesta perspectiva, a cidade de Paris, pela
preservao de sua cultura material, antes de ser agradvel e atrativa aos
visitantes, o para seu prprio habitante.
Sendo assim, a capacidade do ambiente urbano se constituir em fator de
promoo turstica apenas conseqncia da interao estabelecida entre este
e seu habitante. Nesse sentido, a anlise deve centrar ateno sobre o sistema
de relaes que envolvem os aspectos da cultura material garantidores da
identidade espacial urbana e o contedo social que lhe confere significado. O
que pode ser conseguido ao se considerar os bens culturais inseridos em uma
conceituao mais abrangente, qual seja, o de patrimnio ambiental urbano,
tema profcuo uma abordagem sobre cidade enquanto produto de uma relao
social que se efetiva em formas materias que expressam traos de uma
civilizao urbana construda ao longo do processo histrico.
Quanto a isso, cabe considerar que o patrimnio ambiental urbano, representado
pela arquitetura, espaos pblicos e meio natural constitui marco fundamental na
determinao da personalidade de um lugar, garantindo, portanto, sua
diferenciao ante as demais unidades espaciais. Logo, a cidade tem nos
elementos que integram essa cultura material um importante mecanismo de
defesa face s aes hegemnicas externas de padronizao como, por
exemplo, a reproduo de cdigos de obras, de posturas, planos diretores, ou
mesmo a produo multisseriada de materiais construtivos, os quais, medida
que so empregados, suprimem a personalidade urbana, conferindo a diferentes
lugares, paisagens cada vez mais similares.
Essa questo da identidade espacial sempre se colocou como uma das
principais pertinncias do campo da geografia, ao mesmo tempo que constitui
uma premissa intrnseca definio de suas diferentes categorias de anlise.
Regio, paisagem e lugar, por exemplo, tm em comum o fato de constiturem
unidades espaciais objetificadas por uma singularidade. Dada a impossibilidade
de uma abordagem holstica do espao totalitrio, a viabilizao das anlises
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5
geogrficas sempre se pautou no estabelecimento de recortes espaciais sobre o
todo. No sem motivo a geografia chega a ser definida como o estudo da
individualidade dos lugares, conforme sugere a anlise regional, ou da
diferenciao de reas, como prope os estudos de paisagem (MORAES, 2003).
O certo que a anlise geogrfica incide na compreenso de um espao total
constitudo de unidades singulares, definidas por suas caractersticas peculiares
que lhes conferem uma identidade.
Neste sentido, a abordagem do patrimnio ambiental urbano, ao beneficiar uma
anlise da cultura material como expresso da personalidade do lugar,
compromete-se com o propsito de uma preocupao geogrfica que trata a
identidade espacial como uma questo central ao desenvolvimento do
conhecimento geogrfico, sendo ao mesmo tempo intrnseca ao seu prprio
objeto de investigao.
Essas consideraes encontram-se refletidas nos propsitos da presente pesquisa,
cuja investigao privilegiou a anlise da identidade espacial na perspectiva da
problemtica que envolve a preservao da cultura material urbana enquanto
elemento que assiste definio da personalidade do lugar. A este intuito
estabeleceu-se como unidade espacial de anlise a cidade de Corumb-MS, lugar
de grande expressividade em termos de cultura material representada, sobretudo,
por sua arquitetura e fisiografia, e onde as condies de preservao e mesmo de
qualidade ambiental urbana inerentes realidade brasileira, se reproduzem com
fidelidade.
Cabe mencionar que a proposta do desenvolvimento dessa pesquisa teve origem no
ano 2000, na oportunidade de uma primeira visita do professor Eduardo Yzigi a
Corumb. poca chamou-lhe ateno o fato da cidade ter conseguido conservar
milagrosamente um notvel conjunto arquitetnico de expresso ecltica e art-dec
cuja densidade, sobretudo em seu centro antigo, era capaz de dispor o local como
um fato raro, em nvel de Brasil, de identidade espacial definida pela
representatividade de sua cultura material arquitetnica.
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6
Por outro lado, a forma de preservao a que esse patrimnio encontrava-se
exposto, o que implicava em sua descaracterizao progressiva, associada a uma
lacuna, em termos de produo acadmica, na sua contemplao dentro de uma
perspectiva de patrimnio ambiental urbano, despertou-lhe uma preocupao para
que a cidade fosse includa como objeto de investigao cientfica dentro de seu
grupo de pesquisa intitulado Turismo, territrio, identidade espacial e planejamento,
derivando da o estabelecimento dos primeiros contatos que culminaram na
realizao desta pesquisa.
Convm ressaltar, assim como o que foi observado pelo professor Yzigi, que a
cidade de Corumb ainda conserva, sobretudo em seu stio de ocupao mais
antiga, uma considervel quantidade de edifcios erguidos entre o final do sculo
XIX e incio do sculo XX, auge de sua funo articuladora da economia regional
do antigo Mato Grosso, proporcionada pela navegao do rio Paraguai, da qual
se constitua um porto estratgico que mediava a relao entre o longnquo
estado e o restante do mundo. Tais edifcios, em que se verifica o emprego
predominante do ecltico e do art-dec como linguagem arquitetnica,
constituem um importante fator de identidade que a cultura material impe ao
local.
Independente da localizao (centro/periferia) do uso (comercial/
institucional/residencial), da classe social de seus proprietrios, verifica-se um
quase consenso enquanto linguagem arquitetnica empregada nesses edifcios,
capaz de demonstrar uma preocupao com a noo de conjunto e com a
unidade que predominou na cidade em outros tempos.
Seja na regio do porto, onde a quase totalidade dos imveis ainda conserva
muito de suas formas originais, em face de uma renovao urbana incipiente,
seja na rea central, sobretudo aquela ocupada pelo comrcio onde os prdios
mais antigos encontram-se mesclados com edifcios mais modernos, constata-
se que tais imveis so suficientes para conferir uma noo de conjunto na
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concepo ambiental que se converte em importante marca da personalidade
urbana local.
O conjunto arquitetnico e paisagstico de Corumb representa hoje uma das
mais importantes expresses culturais do estado de Mato Grosso do Sul, da a
defesa por sua preservao alcanar relevncia regional e, tambm, nacional,
uma vez que constitui materializao do processo histrico desenvolvido na
fronteira oeste do Brasil.
As primeiras reflexes sobre a necessidade de preservao ao que se
chamavam de antigos casares da cidade (GUIZZO,1979) emergem em nvel
estadual, no final da dcada de 1970. Tal interesse alcanou a anuncia oficial,
culminando com a definio de um permetro que incluiu o stio mais antigo da
cidade o qual foi definido como rea de tombamento por um decreto municipal de
1985, ato este posteriormente ratificado pelo IPHAN, que em 1992 definiu essa
mesma rea como pertencente ao patrimnio artstico nacional.
Entrementes, passado quase duas dcadas de decretado o tombamento,
verifica-se que tal medida no foi suficiente para garantir a efetiva preservao
do conjunto. Avalia-se, assim, que sua importncia circunscrita ao campo formal
, ainda, ausente de plena equivalncia no campo prtico. Alheio a qualquer
determinao legal, pari-passu, um conjunto de fatores, que vo desde a ao do
tempo at a ausncia de fiscalizao estatal, conspira contra a idia de
preservao resultando em sucessivos casos de abandono, m conservao,
modificaes das formas originais das fachadas mediante substituio de
elementos como portas e janelas, bem como pela introduo de marquises de
concreto, revestimentos cermicos e toldos publicitrios.
Por estes vrios aspectos elencados, observa-se em Corumb uma
sobreposio de atributos de ordem arquitetnica, histrica, artstica e
fisiogrficas que em conjunto conferem notoriedade ao seu patrimnio ambiental
urbano e, por conseguinte, transfiguram-se em marcas proeminentes da
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identidade do lugar, no obstante, permeados por fatores que se contrapem ao
ideal de sua preservao.
A cidade um artefato, coisa feita, fabricada pelo homem e como todo artefato ,
ao mesmo tempo, produto e vetor de relaes sociais, lembra MENESES (1983).
Tal considerao converte-se em importante medida na compreenso da
realidade inerente ao patrimnio ambiental urbano de Corumb, o qual constitui
uma realidade objetiva, porm impossvel de inteligibilidade quando descolado da
estrutura social da qual emerge como resultado de relaes.
Esta situao suscita a preocupao com os fatores de identidade espacial e
qualidade ambiental da cidade de Corumb que, na tica da cultura material,
esto diretamente subordinados preservao e valorizao de seu patrimnio
ambiental urbano. Considerando tal premissa, destaca-se este trabalho, tambm,
como uma contribuio s reflexes quanto ao papel desempenhado por essa
cultura na definio da identidade urbana e a importncia de sua preservao,
com suporte no planejamento, promoo do desenvolvimento local.
Atendendo a esses propsitos e com base no encaminhamento terico-
metodolgico adotado sua realizao, a pesquisa foi desenvolvida como um
esforo em se responder a dois questionamentos distintos e correlatos: o qu
preservar e como preservar. O propsito da primeira questo consistiu em
caracterizar os elementos materiais presentes na cidade de Corumb,
representativos do seu patrimnio ambiental urbano ensejando, inclusive, uma
abordagem mais sistemtica definida pela realizao de um inventrio sobre o
acervo arquitetnico digno de preservao. A segunda questo devotou-se
compreenso da valorizao desses bens patrimoniais que se efetiva em
diferentes formas pelas quais ocorre a relao da estrutura social com a cidade,
possibilitando, por conseguinte designao de pressupostos favorveis
preservao do patrimnio ambiental urbano de Corumb como atributo notvel
de identidade espacial e civilizao urbana.
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O esforo em responder a esses questionamentos ocorrem mediante o
encaminhamento de duas hipteses: a primeira, estabelece que a preservao
dos valores ambientais e patrimoniais urbanos de Corumb depende do
desenvolvimento de uma conscincia coletiva da sociedade local, pelo qual estes
possam ser reconhecidos como bens preservveis. A segunda , considera que essa
preservao depende de uma ao mais incisiva do poder pblico no trato de uma
gesto patrimonial.
Ancorados nessas proposies hipotticas que referenciam o problema da
preservao do patrimnio ambiental urbano de Corumb, os resultados da
pesquisa apresentam-se estruturados nos captulos que seguem, os quais
contemplam, em seu cunjuto, os propsitos de investigao do objeto de estudo.
O primeiro captulo evidencia O ambiente no contexto das relaes culturais,
expondo conceitualmente o interacionismo simblico existente entre a estrutura
social e a materialidade do mundo exterior. Tal perspectiva lana luz ao
entendimento dos esquemas de valorao, de sentido e de representao pelos
quais so articulados os esquemas de comportamento que expressam o carter da
relao entre a estrutura social e a materialidade que compe o patrimnio
ambiental urbano.
No segundo captulo, so tratadas as consideraes sobre a importncia de uma
ordem institucional pblica que, mediante instrumentos de normatizao e
regulamentao por ela operadas, institui, mesmo que conceitualmente, um
controle sobre as relaes que os atores sociais estabelecem com a cidade. Tal
considerao conduz ao entendimento de que a organizao do ambiente urbano
resulta de uma relao conduzida simblicamente pela estrutura social para com
o meio, mais a organizao dessa relao arbitrada por uma ordem institucional.
O terceiro captulo estebelece o conceito de patrimnio ambiental urbano,
enfatizando seu reconhecimento na estrutura urbana mediante valores
potencialmente qualificados capazes de designar certas formas materiais como
bens preservveis. A leitura prossegue destacando as motivaes que se
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colocam no centro do interesse por sua preservao, com nfase s questes
relacionadas memria urbana, ao sentimento de pertena e identidade
espacial.
As consideraes referentes rea de estudo so introduzidas pelo captulo
quatro. Este apresenta uma leitura que incide sobre a caracterizao geogrfica
da cidade de Corumb e enfatiza os principais aspectos de sua natureza urbana,
os quais comprovam a pertinncia dessa unidade espacial como objeto de
anlise favorvel construo do conceito de patrimnio ambiental urbano.
O captulo quinto, apresenta o resultado da realizao de uma abordagem sobre a
cidade, no objetivo de uma caracterizao daquilo que consiste seu patrimnio
ambiental urbano, partindo-se de um esforo investigativo de carter documental,
cartogrfico e bibliogrfico, associado a realizao de levantamentos de campo.
Essas atividades tiveram o propsito da realizao de uma descrio que no
ficasse restrita apenas a um levantamento das formas materiais potencialmente
qualificadas como bens preservveis, mas sim de uma abordagem que considerasse
o patrimnio ambiental urbano como uma uma construo cultural, no sentido de
constituir produto de uma relao simblica operada sobre o meio ao longo do
processo histrico. Tal perspectiva de abordagem concorreu para que esse
levantamento fosse superior a um simples inventrio da fisiografia, da arquitetura,
dos espaos pblicos, enfim, das formas materiais representativas da identidade
urbana, de modo que proporcionou, tambm, a reconstituio da histria que se
efetivou nesse patrimnio e do entendimento sobre a forma como ele se insere no
contexto atual das relaes sociais.
No sexto captulo, apresentado o resultado de um levantamento emprico no qual
se props a realizao de um inventrio sobre o patrimnio arquitetnico da cidade,
conforme proposta original sugerida pelo professor Eduardo Yzigi realizao da
pesquisa. O resultado desse inventrio constitui uma caracterizao do acervo
arquitetnico de Corumb, que procede de um levantamento cadastral de campo,
realizado entre os anos de 2003 e 2004, cujo produto foi, posteriosmente,
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organizado em um banco de dados digital, operacionalizado por sistema de
informaes geogrficas.
Por fim, o captulo stimo expe os desafios da preservao do patrimnio
ambiental urbano de Corumb, no contexto de uma produo urbana marcada
por conflitos de ordem social e urbanstica. Abordado sob o aspecto de uma
construo e de uma desconstruo urbanas, motivadas pela ascenso de uma
crise social, associada perda de uma eficcia institucional na regulao normativa
do espao urbano, o tema descreve as principais evidncias do comprometimento
dos elementos representativos da identidade espacial da cidade, o que contribui
para a reduo dos valores potencializadores de uma qualidade ambiental e dos
atributos expressivos definio da personalidade do lugar, encontrados na
fisiografia do stio urbano, na relao social com o espao pblico e na forte
expresso do seu conjunto arquitetnico.
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CAPTULO 1
O AMBIENTE NO CONTEXTO DE RELAES CULTURAIS
Jac, partindo de Bersabia, tomou o caminho de Hara. Chegou a um lugar, e ali
passou a noite (...) Serviu-se como travesseiro de uma das pedras que ali se encontravam,
e dormiu naquele mesmo lugar. E teve um sonho: via uma escada, que, apoiando-se na
terra, tocava com o cimo o cu (...) No alto estava o Senhor, que lhe dizia: Eu sou o Senhor
(...) darei a ti e a tua descendncia a terra em que ests deitado (...) Estou contigo (...) e no
te abandonarei sem ter cumprido o que te prometi.
Jac, despertando do seu sono, exclamou: (...) Quo terrvel este lugar! nada menos
que a casa de Deus (...). No dia seguinte, pela manha tomou Jac a pedra sobre a qual
repousara a cabea e a erigiu como estela, derramando leo sobre ela. Deu o nome de
Betel (Casa de Deus) a este lugar.
Gnesis 28, 10-19.
Antes de iniciar qualquer movimento em direo compreenso do objeto
proposto patrimnio ambiental urbano faz-se necessrio situar o ponto de
partida do caminho a ser percorrido no seu processo de anlise, o qual importar
enfatizar, primeiramente, a estruturao da subjetividade que, no campo prtico
da vida cotidiana define a relao estabelecida entre indivduo e mundo real,
especialmente em relao aos objetos. Neste propsito, a perspectiva de
abordagem incide sobre o campo especfico da cultura material enquanto sub-
categoria de anlise do denso universo exploratrio da cultura a qual est
relacionada (...) queles elementos cuja expresso material apresenta enquanto
parte do ambiente, do tecido urbano, do habitat humano e do cotidiano
(GERALDES, 2004).
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A despeito de qualquer pretenso no intuito de designar uma conceituao
definitiva e consensual a respeito de algumas manifestaes operadas no campo
social, que se organizam a partir dos objetos que compem essa cultura material,
a exemplo de valor, significado, memria e identidade, vale o propsito de lanar
luz a estas noes fundadoras que entrevem na relao social as quais definem
o patrimnio ambiental urbano.
Para iniciar esta compreenso, sugere-se que seja restabelecida a noo sobre a
dualidade existente entre natureza e cultura: a primeira enquanto entidade real,
objetiva, pr-existente, e a segunda, considerada no seu aspecto mais pertinente
e elementar, a de constituir um fator estritamente humano, sendo por isso, talvez,
o atributo subjetivo mais especfico da condio humana. Como forma de
enfatizar a incidncia de uma sobre a outra, cabe considerar uma observao
sumria: sem a incidncia da cultura a natureza insignificante. Isto no sentido
mais puro e restrito do termo insignificante, cuja raiz etimolgica sugere
ausncia de significado, considerao que refora o que prefere MENESES
(2003): as coisas s tem sentido em situao.
A natureza no reconhece em si mesma a sistematizao das estruturas que a
compe, isto constitui um aspecto estabelecido pela cultura. Atravs da cultura o
homem atribui ao mundo fsico exterior uma organizao estabelecida por
classificaes, modelos, tipologias, padres, conceitos, esquemas, codificaes,
etc., todas organizaes mentais, atravs das quais o homem torna possvel a
legibilidade da disformidade da natureza e de todo o mundo exterior. Sem este
aspecto vero mundo exterior seria to confuso quanto contemplar um mosaico
em que as posies das peas no compusessem um todo coerente.
Num carter mais pragmtico, a partir do momento em que a organizao
mental, operada pela cultura, atribui uma coerncia complexidade do mundo
real, objetivando as coisas que o compe, denominando-as, conceituando-as,
classificando-as, identificando suas propriedades... o homem passa a conhecer
seu objeto de ao e a relacionar com ele. Como essa relao cultural seu
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resultado ser sempre acompanhado de representao. Dessa operao deriva
a sistematizao da realidade cujo resultado consiste na produo do
conhecimento, que permite ao homem agir sobre o mundo, de modo a
transform-lo em favor no apenas de suas meras necessidades orgnicas
(carter biolgico), mas tambm de suas necessidades produtivas (carter
econmico), de seus interesses (carter ideolgico) e de suas representaes
(carter simblico). Conforme afirma LARAIA (1986) ao citar KROEBER, (...)
superando o orgnico, o homem de certa forma se libertou da natureza de modo
que, pela cultura, sua relao com o mundo exterior (...) passou a depender
muito mais de um aprendizado do que a de agir atravs de atitudes
geneticamente determinadas.
Esta concepo ganha coro na geografia cultural de CLAVAL (2004) para quem
a cultura, ao racionalizar a ao humana sobre o ambiente, permite que seja
ampliada sua capacidade diante de possibilidades meramente instintivas:
Reduzido programao biolgica que recebe, o homem no seria
nada: o papel do instinto em nossa existncia no desprezvel, e as
aptides que a cultura desenvolve esto inscritas em nosso genes, mas
deixam o homem desarmado face a um ambiente que s nutre graas a
operaes complexas, das quais nenhuma evidente (147).
Considera ainda que, em se tratando de um atributo a-orgnico, a construo da
cultura permeia um processo de aprendizagem pelo qual o indivduo se forma
imitando e aprendendo, uma vez que o sistema cultural da qual faz parte
sempre pr-existente. Assim, colaborando a esta afirmao, HALL (2004)
considera em sua definio de sujeito sociolgico que a cultura, no sendo auto-
suficiente, formada na relao com outras pessoas responsveis por mediar
aos sujeitos sentidos, valores e smbolos.
Enfim, a sistematizao da realidade pela cultura, respondendo por liberar o
homem de seu confinamento a um quadro meramente biolgico e instintivo, o
que o conduz possibilidade de apropriao do mundo exterior mediante uma
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relao simblica. Esta afirmao patente e redunda na idia de cultura
enquanto instancia interposta entre o homem e o mundo exterior, o que levou
LARAIA (op. cit.) afirmao de que (...) a cultura uma lente atravs da qual o
homem v o mundo.
Colocada nesta perspectiva antropolgica, mais que amplificar a noo da
dualidade indivduo mundo exterior, esta primeira considerao favorvel
para explicitar, especificamente, a relao estabelecida entre estrutura social e
cultura material e conduz a um dado capital apontado pela semitica e favorvel
a este entendimento: no existe relao estabelecida entre o homem e mundo
exterior que no seja mediada por signos. Esta sentena passvel de fcil
compreenso, sem a necessidade de mobilizar um esforo maior que a simples
observao de aes prticas do cotidiano como, por exemplo, a linguagem
abstrao da realidade utilizada na comunicao entre indivduos.
Correspondendo a um dos aspectos mais expressivos de um sistema cultural, a
linguagem nada mais que uma codificao estruturada a partir de um conjunto
articulado de smbolos. Cada conjunto articulado de smbolos corresponde a uma
expresso que dispe de um sentido. Dessa forma so formada as palavras
utilizadas para designarem as coisas. Um conjunto de palavras, por sua vez,
constituir uma sentena que expressar um sentido. Essa sentena, que
corresponde a uma codificao da realidade, passvel de ser decodificada por
todos os indivduos que dominam este mesmo cdigo, de modo que a sentena
tenha um sentido comum a todos, tornando possvel a comunicao. A
linguagem , assim, a prova mais cabal da mediao sgnica entre o homem e o
mundo exterior. atributo da cultura, e no das coisas a que ela se refere. Por
esse motivo, a palavra casa enquanto expresso grfica no se articula por
verossimilhana com casa enquanto expresso fontica, muito menos estas
vo se articular com casa enquanto coisa fsica, objeto pertencente ao mundo
exterior. Quanto a isso, MOREIRA (2002) expe que:
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medida que compartilham conjuntos de smbolos, so as pessoas
capazes de comunicar mutuamente e agir de maneira que faam sentido
para outras pessoas. Os objetos no tm sentido predefinidos (sentidos
inerentes); as pessoas trazem os objetos existncia pelas maneiras
com que agem em relao a eles.
A mediao sgnica, sempre presente na relao do homem com o mundo
exterior, corresponde a uma organizao mental operada pela conscincia e
responde por operacionalizar toda ao humana sobre a realidade. nesta
perspectiva que a cultura material produzida, resultando da transformao da
natureza em benefcio das necessidades humanas das orgnicas s
simblicas. Assim, a edificao de uma casa poder ter a propriedade de no
apenas servir ao abrigo (necessidade orgnica), mas tambm de ostentar a
condio social e o status de seu morador (representao simblica), da mesma
forma que os padres de eloqncia, sublimidade e dimenses colossais em que
so erigidas as catedrais crists no so gratuitos, mas articulados a um
esquema de representao simblica, emitem mensagens que transcendem seu
mero carter pragmtico. Somado a isso, tem-se que um objeto cultural, uma vez
constitudo como tal, poder assumir a condio de base de representao
social, mobilizando comportamentos individuais e coletivos carregados de
sentido, de valores, de significados, os quais s podem ser entendidos no
contexto do sistema cultural ao qual se referem.
Nas ltimas dcadas, esta concepo vem se mostrando favorvel ao
desenvolvimento de uma nova abordagem epistemolgica sobre o espao
urbano baseada em correntes de pensamento de inspirao estruturalista e
fenomenolgica. Tal abordagem desloca a compreenso do urbano para um
contexto de interacionismo simblico que destaca sua organizao e apropriao
na perspectiva subjetiva de representao sgnica e de percepo.
No campo da semitica estruturalista o espao urbano considerado suporte de
um texto no-verbal gravado pela prtica social que se efetiva em seu uso. Como
essa prtica cultural, logo representativa, sua constituio representa os
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prprios pensamentos de seus habitantes. Com base neste preceito, a
abordagem do espao urbano equivale a um exerccio de hermenutica onde as
caractersticas fsicas de sua materialidade, associadas ao seu uso e
transformao ao longo do tempo, compem uma estrutura sgnica passvel de
interpretao e pela qual revelado o universo subjetivo de seus habitantes,
atravs do qual agem em relao cidade:
Ruas, avenidas, praas, monumentos, edificaes configuram-se como
uma realidade sgnica que informa seu prprio objeto: o contexto urbano.
(...) o elemento que aciona esse contexto o usurio, e o uso a sua
fala, sua linguagem. A transformao da cidade a histria do uso
urbano como significado da cidade. Sua vitalidade nos ensina o que o
usurio pensa, deseja, despreza, revela suas escolhas, tendncias e
prazeres (FERRARA, 1988, p.4).
A cidade, assim, se apresenta como uma estrutura sgnica fundamentada na
lgica semitica onde contexto urbano se expressa como um cdigo de
linguagem em que a composio estabelecida entre sua materialidade, seu uso e
seu processo histrico equivale a um significante que se articula a um significado
inerente conscincia da estrutura social.
No mesmo contexto de uma interao simblica, LYNCH (1999) desenvolve uma
abordagem sobre a cidade no aspecto de produo de imagens ambientais por
seus habitantes. Estas imagens so entendidas como entidades psquicas
constitudas de um processo bilateral entre observador e seu ambiente (p. 07),
as quais, dispondo de um significado tanto prtico quanto emocional, conformam
um quadro mental que orienta a relao do sujeito com seu ambiente.
Uma imagem constituda pela integrao de trs componentes bsicos:
identidade, que consiste na identificao de um objeto e seu reconhecimento
enquanto entidade separvel; estrutura, que se refere relao espacial do
objeto com seu observador e outros objetos e, por fim, significado que este
objeto representa aos seu observador.
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Embora reconhea que a imagem mental decorra de um processo formulado por
uma autonomia individual, uma vez que cada indivduo cria e assume sua prpria
imagem, LYNCH considera haver uma espcie de consenso substancial entre os
membros de um mesmo grupo. Assim, um dado sistema cultural ao conformar
uma perspectiva similar de vrios observadores, produz o que ele denominou de
imagens de grupo ou imagens pblicas comuns, as quais so reconhecidas
como referentes a reas consensuais de uma coletividade urbana.
Apesar disso, reconhece a complexidade de tratar a questo do significado na
abordagem da imagem ambiental, por consider-lo elemento de maior
instabilidade e de menor consistncia dentre os trs componentes que
consubstanciam uma imagem. Esta constatao o fez dispensar ateno
especial aos atributos de estrutura e identidade, o que define uma nfase
devotada aos aspectos fsicos do ambiente. Dessa abordagem em que excetua a
considerao com o significado, LYNCH formula o conceito de imaginabilidade, o
qual define como:
(...) a caracterstica, num objeto fsico, que lhe confere uma alta
probabilidade de evocar uma imagem forte em qualquer observador
dado. aquela forma, cor ou disposio que facilita a criao de
imagens mentais claramente identificadas, poderosamente estruturadas
e extremamente teis ao ambiente (...) em que os objetos no so
apenas passveis de serem vistos, mas tambm ntida e intensamente
presentes aos sentidos (p. 11).
A imaginabilidade sugere que a forma urbana transcenda os objetivos funcionais
a que ela se prope, permitindo que a cidade seja comunicvel a seus usurios
na condio de uma imagem ambiental agradvel ao olhar, que seja capaz de
despertar o prazer sensorial, de modo que o viver na cidade possa proporcionar
ao seu habitante o desfrute de uma satisfao emocional constante.
Sob o aspecto ambiental, perspectiva til ao entendimento do patrimnio
ambiental urbano dentro do contexto de um interacionismo simblico, esta
relao pode ser aplicada na compreenso do carter de sua organizao
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regulada pela representao que dispe estrutura social que a produz, uma vez
que a conscincia (imanente) agindo sobre mundo exterior (transcendente) cria
um esquema de valorao, de sentido e de representao pelos quais so
articulados os esquemas de comportamento que expressam a relao da
estrutura social com o meio.
Nesta lgica, pelo valor atribudo a um fragmento florestal remanescente o
mesmo pode ser reconhecido pelo sentido pejorativo de mato ou como uma
unidade ecossistmica em que subsiste uma cadeia de interdependncia entre
seus componentes fsicos e biolgicos. Essas duas concepes, antagnicas,
implicaro em duas possibilidades de relacionamentos distintos sob um mesmo
objeto dado. Conforma a natureza dessa relao o resultado ser a configurao
de uma organizao ambiental que, expressa pela paisagem, reflete o
reconhecimento do objeto no universo da conscincia coletiva. Quanto a isso,
BERQUE (1999), entendendo essa interao simblica na perspectiva da
percepo expe que:
Na evoluo histrica dos ambientes humanos parece que as
sociedades organizam seus ambientes em funo da percepo que
elas tm deles e, reciprocamente, parece que elas os percebem em
funo da organizao que do a eles.
Neste argumento est a essncia de sua posio quanto definio da
paisagem em sua instncia simblica, onde a mesma pode ser considerada,
concomitantemente, como marca e como matriz cultural. Marca, uma vez que
(...)expressa uma civilizao, mas tambm matriz porque participa dos
esquemas de percepo, de concepo e de ao ou seja, da cultura que
canalizam, em certo sentido, a relao de uma sociedade com o espao e com a
natureza (BERQUE, op. cit).
Estas consideraes so esclarecedoras de uma evidncia colocada como ponto
central para a abordagem do patrimnio ambiental urbano: a de que o ambiente
forjado por uma relao simblica estabelecida entre a estrutura social e o
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mundo exterior. Logo, mais que identificar os objetos culturais representativos
desse patrimnio ambiental urbano, faz-se importante compreender a trama
social que se estabelece nessa base de representao.
A prpria designao das formas ambientais qualificadas na composio de um
patrimnio ambiental urbano que assiste definio da identidade espacial de
um lugar, parte de uma classificao em que um recorte sob a cultura material
imposto pelo reconhecimento de valores que qualificam esses objetos como
representativos enquanto bens patrimoniais.
Patrimnio ambienta urbano , acima de tudo coisa fsica, composio articulada
de objetos de existencia material que, dispondo de atributos valorativos
potencialmente qualificados, participam como inrcias dinmicas na definio de
uma trama social. Sua designao, porm, dada pela relao estabelecida
entre sujeito e objeto. Uma relao de mo dupla que consiste tanto na ao
operada pelo sujeito coletivo sobre esses objetos impondo-lhes um valor, quanto
no valor representado por esses objetos ao sujeito, o que induz a
comportamentos sociais que os referenciam, numa razo subjetiva, como
suportes de memria, pertencimento e identidade com o lugar. O patrimnio
ambiental urbano se inscreve na conscincia coletiva como significado e como
percepo. Assim, sua permanncia enquanto trao civilizatrio material de um
sistema cultural parte do seu reconhecimento pela estrutura social.
Essa cultura material revestida de valores qualificados remanesce como herana
do processo histrico materializado no espao. Desta feita, sua permanncia
assiste paisagem, enquanto expresso visvel desse espao, como uma
acumulao desigual do tempo. O conceito de patrimnio, iluminado pela
perspectiva do materialismo histrico, orienta de forma satisfatria o
entendimento de sua constituio enquanto resultado das relaes de produo
ao longo do tempo. Assim, sua natureza material resulta de um contexto de
(re)produo espacial engendrado pelas transformaes no modo de produo
que, ao se reorganizar implica na produo de novas materialidades
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concomitante cristalizao de formas antigas, as quais constituiro testemunho
material de um antigo momento do modo de produo (SANTOS, 2002).
A cidade enquanto produo material por excelncia, ostenta em sua paisagem
um cenrio de reconstruo que a define como um palimpsesto onde a cada
conjectura econmica um novo texto se reescreve sob as marcas de um antigo
que no se apagou por completo. Sendo depositrio de uma acumulao
desigual do tempo, o espao urbano se reconstri com a produo de novas
feies e com a conservao de algumas formas antigas, as quais chegam ao
presente como rugosidades, reabilitadas ao desempenho de novas funes no
contexto de um novo momento do modo de produo. Quanto a isso, SANTOS
(2002) expe que:
Os objetos geogrficos aparecem nas localizaes correspondentes aos
objetivos da produo num dado momento e, em seguida, pelo fato de
sua prpria presena, influenciam-lhes os momentos subseqentes da
produo.
Essa perspectiva econmica ao enfatizar a constituio das formas espaciais
enquanto materialidades subordinadas ao do modo de produo, de modo a
constitu-las ao mesmo tempo produto-resultado e condio-meio sua
reproduo, limitam a compreenso de seu papel na composio de um
esquema de representao situado na base de uma relao simblica entre
essas formas-objetos e a estrutura social que as produziu. Tal entendimento
central abordagem das formas-objetos em sua abstrao na conscincia, uma
vez que nessa instncia estes passam a dispor de uma designao valorativa
que se manifesta em termos de representatividade do bem material como
suporte de memria ao pertencimento e identidade.
Nas ltimas dcadas, a nova geografia cultural prioriza a abordagem da
paisagem no contexto de um interacionismo simblico. Nela est presente
justamente essa preocupao de significado da paisagem:
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Os espaos da superfcie terrestre, enquanto objetos de investigao,
devem ser concebidos no como entidades simplesmente
tridimensionais, mas como entidades quadrimensionais, como
complexos de fenmenos espaos-temporais.
A configurao ambiental surge como marcas deixadas pelo modo como o
homem se relaciona com ele. O carter desse relacionamento se define pelo
significado atribudo ao meio pela matriz cultural.
Essas concepes prope uma perspectiva salutar abordagem da produo do
ambiente pela estrutura social o qual se configura por uma relao simblica que
emerge da conscincia coletiva, da qual o sonho de Jac constitui um exemplo
sntese dessa construo.
Analisando este exemplo, verifica-se que o acontecimento, mesmo que
localizado na subjetividade de um sonho, foi suficiente para uma redefinio da
conscincia sobre o lugar. O juzo de valor, tambm alterado pela mundana da
conscincia induz o indivduo, por conseguinte, a estabelecer uma nova forma de
relao com esse ambiente.
Pela manh, aps o sonho, a composio objetiva do lugar permanecia
rigirosamente inalterada salvo, provavelmente, nas condies atmosfricas
especialmente de temperatura e umidade e suas conseqncias no meio.
O mesmo no se pode afirmar quanto a sua esfera subjetiva, substancialmente
concentrado sobre a pedra, que passa a desempenhar importncia central na
instncia sgnica da trama estabelecida. O valor simblico que esse objeto
adquire pelo acontecimento que nele teve lugar, no corresponde mais a sua
banalidade material. Passando a atuar como uma inrcia dinmica, mobiliza
comportamento tornando objeto de reverncia. A partir de ento assume a
condio de marco de uma aliana espiritualmente estabelecida, sinal do
empenho da promessa de posse futura e definitiva do lugar, monumento
fundador de uma nao vindoura e co-herdeira da mesma promessa, base
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material da representao simblica de um encontro abstrato acontecido em
sonho que, pela crena, credita-se como verdade e, pela qual todas as demais
condies anteriores se sustentam.
Antes, objeto desprezvel, a noite suporte utilitrio para o sono de Jac, pela
manh, referencia material de um acontecimento acorpreo. Essas trs fases
que se sucedem e que definem uma seqncia abrupta at a definio simblica
do objeto s so possveis pela conscincia, mobilizadora de sentido.
Objeto, ambiente e acontecimento se compuseram em uma lgica prpria
estabelecida pelo sentido definido pelo indivduo. Definitivamente, para Jac,
aps ter despertado do sono, aquele lugar jamais seria o mesmo.
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CAPTULO 2
AS RELAES ENTRE UMA ORDEM SOCIAL E UMA ORDEM INSTITUCIONAL
Afinal, no h ordem social sem a definio de normas. CLAVAL, 2001.
A conscincia a guia das aes humanas operadas sobre o mundo exterior.
No obstante, na perspectiva do ambiente urbano, cabe a considerao de que a
relao dos atores sociais com a cidade seja, tambm, regulada
institucionalmente, mediante normatizaes operadas pelos intrumentos de
regulamentao que, teoricamente, estabelece os limites entre permisso e veto
conduta social que nela se realiza.
Nesta perspectiva, a estruturao do ambiente urbano resulta da relao que a
estrutura social mantm com o meio, mais a organizao dessa relao arbitrada
pela ordem institucional. Neste aspecto, o nvel de eficcia alcanado pelos
instrumentos constitudos pela ordem institucional na regulao da ao social
que produz e organiza o espao urbano, resultar em mltiplas possibilidades
quanto configurao de sua qualidade ambiental, implicando na produo de
um ambiente que poder residir em algum ponto de uma nuance bipolar entre
harmonia e conflito, preservao e deteriorao.
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Esta ordem institucional operacionalizada tanto pelos instrumentos de
regulamentao quanto pelo processo de gesto que inclui a elaborao e a
implementao desses instrumentos, bem como a fiscalizao e todos os seus
sub-processos incluindo a aplicao de medidadas coercitivas necessrios
ao seu cumprimento. A cidade como produto de uma construo coletiva e
cumulativa no tempo, motivada pelo predomnio de necessidades, objetivos e
interesses mltiplos, j constitui por sua prpria natureza a materializao de
conflitos, de modo que a fragilidade dos suportes de gesto e regulamentao
promove a intensificao de tal situao.
A realidade urbana brasileira, constituda nos ltimos cinquenta anos, um
exemplo expressivo dessa deficincia institucional. Aqui, o encontro entre a
fragilidade de um processo de gesto urbana e o comprometimento de uma
conscincia de coletividade que poderia induzir a uma maior participao poltica,
resulta no somente no agravamento da condio da cidade enquanto territrio
de conflitos representados em sua paisagem, mas tambm na produo de um
ambiente que, por esses mesmos conflitos, excetua-se de uma capacidade
motivao do prazer, do bem-estar e do conforto de seus habitantes.
O fraquejo da ordem institucional em sua capacidade de administrar o urbano
reflete, sobretudo, em sua ausncia na conduo e zelo pela aplicabilidade das
normas bsicas regulamentadoras de uso, ocupao, postura e esttica da
cidade, o que define o carter conflituoso da relao social que se debate neste
ambiente. O carter subjetivo das concepes e interesses individuais sobre o
ambiente encontra equilbrio na base objetiva representada pelas normas
regulamentadoras da conduta social. O controle sobre a complexidade das
relaes que caracterizam o cotidiano urbano dependem da coerncia dessa
base de regulamentao com a realidade a que ela se refere, bem como do
interesse do poder pblico sua aplicabilidade no processo de gesto da cidade.
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ABRANS (1972) reconhece que nos pases menos desenvolvidos a deficincia
no processo de gesto impe limitaes aos instrumentos normativos
regulao do espao urbano:
Nos pases menos desenvolvidos, a regulamentao virtualmente um
fracasso da poltica urbana. Freqentemente as autoridades no tm
possibilidade de fazer prevalecer as restries simplesmente por falta
de pessoal de fiscalizao.
Em termos de preservao ambiental e patrimonial tanto o tombamento como
qualquer outro instituito adotado como medida na proteo de bens se
enquadram nesse conceito. Vale ressaltar que nas timas trs dcadas o Brasil
constituiu uma das mais bem conceituadas legislaes ambientais do mundo,
servindo inclusive como modelo a outros pases. No entanto, a dificuldade em
sua aplicabilidade em razo do comprometimento de interesses corporativos e,
principalmente, pela deficincia no processo de gesto estatal quanto ao
monitoramento e fiscalizao, reduz seu efeito sob um efetivo controle das aes
sociais operadas no ambiente.
No caso do tombamento, o potencial de sua eficincia enquanto instrumento
adequado preservao neutralizado pela vigncia de uma concepo que o
considera como medida autosuficiente e isolada na garantia da proteo
patrimonial e no como parte integrante de um conjunto de aes e tomadas de
deciso.
Distante de uma suposta autonomia de ao, o tombamento consiste num
elemento constituinte de um processo onde tambm se conjugam a educao
patrimonial necessria conscientizao da sociedade sobre o valor do bem; os
estmulos iniciativa da revitalizao e requalificao que proporcionem a
valorizao ambiental do objeto tombado e seu entorno; adoo de medidas
garantia do cumprimento de sua funo social; a concesso de incentivos pelo
mrito da preservao; o estabelecimento de critrios de uso e conservao que
permitam, conjuntamente, o resguardo de suas caractersticas originais e a
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possibilidade de sua adequao s novas tecnologias e necessidades
contemporneas e, por fim, a fiscalizao, no como simples prtica de
policiamento estatal, mas antes como uma medida motivada por um sentimento
de co-responsabilidade social pela garantia da preservao de um bem que, pelo
tombamento, tornou-se patrimnio de uma coletividade.
A poltica de tombamento apresenta um aspecto autoritrio na designao dos
bens materiais dignos de preservao, uma vez que esta parte geralmente da
iniciativa de uma elite formada por tcnicos, intelectuais e acadmicos. Por outro
lado, como garantir o reconhecimento dos valores qualificados dos bens por
parte de uma sociedade que no dispe de uma educao patrimonial
necessria a este propsito? O tombamento, ao contrrio de ser um fim em si
mesmo, carece ser considerado como um processo de preservao mais amplo
que envolva o reconhecimento do bem, sua institucionalizao enquanto bem
preservvel e medidas que efetivem sua preservao.
O risco do tombamento, quando considerado como medida isolada,
descontextualizada das aes complementares, consiste na possibilidade de
promover um efeito contrrio preservao patrimonial. A realidade brasileira
exclarecedora de que a simples constituio de uma lei dispondo sobre o rigor da
preservao pode implicar no abandono de conjuntos inteiros por parte de seus
proprietrios, induzindo a um processo de deteriorao e m conservao que
pode ocasionar a perda irrecupervel do patrimnio. Neste sentido, o
tombamento assume seu sentido figurativo de cair por terra.
Cabe considerar que o estabelecimento do tombamento enquanto medida de
proteo implica necessariamente em uma mudana no aspecto da autonomia
do interesse privado sobre o bem. Mesmo que sejam preservados a propriedade
jurdica e uso a seu proprietrio, a posse do objeto enquanto representao, e,
por conseguinte, a especulao sobre sua preservao, passa a dispor de um
interesse coletivo.
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A restrio no carter de posse do bem torna-se inversamente prorporcional a
ampliao da responsabilidade sobre um patrimnio que, pelo tombamento, foi
designado como pertencente tanto a uma coletividade presente quanto a
geraes futuras, s quais tornou-se representativo enquanto cultura material.
Logo, a cooperao de uma gesto pblico-privada na manuteno desse
patrimnio torna-se justificvel, inclusive em termos financeiros, mediante a
concesso de benefcios tributrios que incentivem sua preservao.
Ressalta-se, tambm, que a incoerncia dos institutos de regulamentao reduz
a capacidade do poder pblico no controle e gesto urbana. Sem um sistema de
regulamentao eficiente tanto em suas determinaes quanto em sua
aplicabilidade o poder torna-se fraco e o pblico torna-se privado. Esta situao
explicita no carter do uso do espao pblico em que a lgica da sua apropriao
marcada por uma fraca atuao do arbtrio institucional ocasionando a
produo desse espao em conformidade com critrios individuais e em
observncia a interesses particulares.
A poluio visual do comrcio, a falta de acessiblidade das caladas, a m
conservao das fachadas, a privatizao das praas pelo comercio ambulante e
as solues mal resolvidas na implantao das redes de concessionrias, so
alguns exemplos de situaes encontradas num espao cuja construo,
pautada no livre arbtrio do interesse privado, se coloca frente de uma
preocupao coletiva.
O distanciamento da ordem institucional no gerenciamento do territrio urbano
impe reflexo na contribuio construo de uma estrutura scio-espacial que
refora a condio da cidade enquanto espao de antagonismo social. A
distino da cidade em subespaos de incluso e excluso ganha relevo na
multiplicao dos condomnios privados e na ampliao da cidade informal que
se expande pelas reas imprprias ocupao residencial.
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Assim, os espaos confinados representados pelos condomnios fechados
surgem da necessidade de garantir aos seus moradores um ambiente de
excelncia em termos de segurana e qualidade ambiental, algo que dificilmente
poderiam usufruir em outras reas da cidade. No contraponto dessa realidade as
reas favelizadas surgem da necessidade bsica da moradia e representam a
sntese de um ambiente destitudo de qualquer possibilidade de conferir
dignidade aos seus residentes. Nas duas situaes, mesmo distintas quanto
apropriao social e a qualidade ambiental, a caraterstica comum
representada pela pouca presena do poder pblico em sua administrao
normativa.
No condomno privado a gesto oficial, praticamente ausente, substituda por
uma administrao interna que dispe de instrumentos normativos prprios e que
definem sua organizao enquanto unidade autnoma dentro da estrutura
espacial urbana. Nas reas favelizadas e aglomerados sub-normais, esta mesma
deficincia da presena do poder institucional amenizada pela atuao de uma
rede de solidariedade representada por associaes comunitrias, movimentos
sociais, igrejas e organizaes no-governamentais, as quais respondem por
proporcionar condies mnimas de assistncia e acesso a cidania a essas
comunidades.
O condomnio e a favela constituem, assim, dois extremos que revelam uma
clssica disparidade entre a ordem institucional e a ordem social na produo de
um espao urbano que se efetiva em conflito e que depe contra a noo da
cidade enquanto expresso de civilizao.
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CAPTULO 3
A CULTURA MATERIAL DAS CIDADES
Sob o ponto de vista acadmico, cabe a YZIGI (2006) a definio mais atual
sobre a noo de patrimnio ambiental urbano, adotada realizao desta
pesquisa:
Defino o patrimnio ambiental urbano como sendo constitudo de
conjuntos arquitetnicos, espaos urbansticos, equipamentos pblicos e
elementos naturais intra-urbanos, regulados por relaes sociais,
econmicas e culturais, onde o conflito deve ser o menor possvel e a
incluso social uma exigncia crescente. So reconhecidos e
preservveis por valores potencialmente qualificados: pragmticos,
cognitivos, estticos e afetivos, de preferncia sem tombamento.
Geograficamente, esses conjuntos podem se apresentar sob a forma de
manchas urbanas ou formaes lineares, sem limites perenes, mas
sempre transcendendo as unidades de significado autnomo. O conceito
se refere tanto a um conjunto existente como a um processo em
construo: trata-se, pois, do ser e do devir (p. 228).
Ao considerar os objetos urbanos em sua totalidade, o conceito de patrimnio
ambiental urbano, promove uma ampliao espacial sobre os elementos dignos
de preservao, superando a importncia devotada exclusivamente unidade,
como na antiga noo de patrimnio histrico, passando a valorizar a
preservao do conjunto (o objeto e seu entorno), conforme explicitado por BOSI
(1986: 136):
O conceito de Patrimnio Ambiental Urbano parte do rompimento com a
viso monumentalista da preservao e prope um procedimento que
incorpora ao monumento isolado no s o seu entorno imediato como
ainda seu entorno paisagstico.
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Ainda conforme esta autora, a noo de patrimnio ambiental urbano ao sugerir
no apenas a preservao do monumento histrico, mas da prpria cidade e dos
elementos culturais que a identificam, mostra a importncia em se considerar a
preservao aliada ao planejamento como vis garantia da qualidade ambiental
urbana, fundamental ao desenvolvimento local:
Do conceito de Patrimnio Ambiental Urbano que conduz a uma relao
entre preservao e mecanismos de organizao das cidades, como
legislao e uso do solo, planos de desenvolvimento urbano, planos de
circulao e transporte e demais instrumentos utilizados pelo setor
pblico para orientar o desenvolvimento das cidades, pretende-se partir
ento para uma experincia concreta (p. 136).
Na compreenso da idia de patrimnio ambiental urbano fundamental ater-se,
tambm, s relaes estabelecidas entre os objetos que o compem e a
sociedade que o produz. Neste sentido faz-se necessrio considerar um dado
primrio, o de que a cidade e tudo o que ela contm um artefato e como
qualquer artefato produzida pelo homem. Evidencia-se, assim, no campo da
cultura material, a indissociabilidade entre o artefato e a estrutura de relaes
sociais que lhe deu origem, e serve de base a estas mesmas relaes que so
importantes compreenso e ao reconhecimento do patrimnio ambiental
urbano (MENESES, 2002).
Neste enfoque, a questo do valor, que reconhecido pela sociedade nos bens
culturais, constitui um dado que refora a noo da interao e inseparabilidade
entre as coisas e a sociedade.
Em todos os objetos possvel reconhecer um valor. No obstante, tratar-se de
um atributo subjetivo no intrnseco sua prpria natureza, diferentemente do
que ocorre com suas caractersticas fsico-qumicas como cor, textura, peso,
forma, volume, etc. Assim, o valor constitui um dado externo ao objeto, algo que
lhe atribudo, seja individualmente ou coletivamente em uma dada sociedade, a
partir do significado representado pelo objeto no contexto social. Subentende-se
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que o valor atribudo a um mesmo objeto pode variar em diferentes sociedades e,
numa mesma sociedade, em funo de uma lgica espao-temporal.
Na continuidade desse raciocnio, pode-se recorrer a YZIGI (2003: 59), quanto
considerao da existncia de quatro categorias de valores que podem ser
reconhecidos nos bens culturais:
(...) qualquer bem cultural, inclusive o patrimnio ambiental urbano, []
portador dos seguintes valores: a) cognitivos, quando associados
possibilidade de conhecimento atravs de suas mais variadas formas,
isto , informao veiculada pelo objeto; b) formais, com suas virtudes
estticas, no naquele sentido universal, mas sua capacidade de
potenciar a percepo sensorial; c) afetivos, os que incluem as
relaes subjetivas do indivduo em sociedade e que embutem as cargas
simblicas identitrias de pertencimento; d) pragmticos, os que se
prestam ao uso altamente qualificado ou criao tecnolgica.
A interao entre o bem cultural e a sociedade mediada pelo significado que
aquele representa para esta, de forma que a noo de ambiente no patrimnio
ambiental urbano no est relacionada apenas a seus atributos fsicos, mas,
antes, s relaes estabelecidas entre a estrutura social e o lugar (YZIGI, op.
Cit, 2003). Dessa forma, a importncia dos bens culturais enquanto meros
artefatos s adquirem sentido pelo contedo social que os produziram e que os
fazem teis pelos diferentes valores que representam essa sociedade, sem os
quais constituiriam apenas coisas compostas de propriedades fsico-qumicas
(MENESES, 1997). Uma idia tambm explicitada por ALEXANDER (1981: 166):
Sabemos que o que conta em um edifcio ou em urna cidade no , unicamente,
sua forma exterior, sua geometria fsica, mas os acontecimentos que ali tm
lugar.
Dessa forma, os bens culturais, marcas remanescentes do passado, atuam como
testemunhas documentais a nos informar, por todos os seus detalhes e nos
inferir, por exemplo, sobre antigas organizaes espaciais da cidade, ciclos
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econmicos e seus perodos de auge e decadncia, o papel do antigo ncleo na
escala regional, a estrutura social e a relao da prpria sociedade com a cidade.
Enfim, uma nica e primeira vista despercebida casa residencial do final do
sculo XIX, por seu estilo e tcnica de construo, forma, materiais empregados,
disposio no lote ou em relao rua, guarda uma grande riqueza de contedo
sobre a realidade urbana que lhe efetivou enquanto materialidade, subsdio
essencial para se estabelecer, de forma mais criteriosa e racional, as aes do
presente e as perspectivas do futuro. Assim, se a casa guarda seu valor
enquanto registro de um tempo, obviamente, maior importncia tem um conjunto
de bens culturais presente em uma cidade, j que fornece uma dimenso bem
mais ampla de seu patrimnio ambiental urbano.
Da a importncia da preservao das cidades consideradas histricas
transcender o mbito local, passando a ser objeto de interesse regional e
nacional. A esse respeito, no Brasil, em vista da ordem destrutiva imposta
cultura material, arrolada ao longo da histria, sobretudo no perodo mais
recente, resta-nos poucos exemplos de cidades com essa caracterstica, entre as
quais podemos destacar Ouro Preto, Mariana e Diamantina (MG), Parati (RJ) e
Gois Velho (GO). Alm dessas, subsistem outras que em seus bairros ou reas
centrais ainda encerram conjuntos arquitetnicos capazes de conferir uma
paisagem histrica de importante carga informativa, a exemplo do que ocorre
tanto nas grandes capitais como So Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, ou
mesmo em centros menores, como Olinda (PE), Paranagu (PR), Sobral (CE) e
Corumb (MS), os quais tm a importncia de sua preservao reconhecida
oficialmente pelo tombamento sendo integrados ao patrimnio histrico nacional.
A importncia da cultura material das cidades se acentua, ainda mais, ao somar
a seu aspecto cognitivo sua condio de referencial da memria social (fator
primordial e imprescindvel na permanncia da autenticidade urbana ao longo de
sua histria) a qual, por sua vez, constitui suporte fundamental da identidade,
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mecanismo de reteno de informao, conhecimento, experincias do passado
(MENESES, op cit. 1997).
Neste sentido, ao ser considerado suporte de memria e retentor de informao,
a cultura material urbana torna possvel assegurar o sentimento de pertena dos
habitantes da cidade, algo que os identifica com o lugar. Ou seja, o lugar se torna
uma extenso de sua prpria existncia, a partir do vinculo afetivo que
estabelecido entre a cidade e os que nela habitam, uma situao que assegura a
permanncia dos artefatos urbanos e a continuidade da autenticidade do lugar.
Quanto a isso, FONTES (et al. 1986: 52) afirma que:
Qualquer parte do ambiente urbano, seja um quarteiro, uma praa, uma
rua, uma esquina ou uma edificao, possui um significado muito mais
representativo do que seus respectivos valores materiais. So elementos
que simbolizam a relao entre o lugar e seus habitantes, fatores
importantes no desenvolvimento psicolgico do homem.
Os imveis remanescentes de outras pocas constituem a histria inscrita no
urbano, tornando marca dos acontecimentos passados, que coe