tese joelson goncalves pereira

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA HUMANA O PATRIMÔNIO AMBIENTAL URBANO DE CORUMBÁ-MS: IDENTIDADE E PLANEJAMENTO Joelson Gonçalves Pereira Tese apresentada ao Programa de Pós- graduação em Geografia Humana da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Doutor em Ciências Humanas: Geografia. Orientador: Prof. Dr. Eduardo A. Yázigi São Paulo 2007

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Tese Joelson Goncalves Pereira

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE PS-GRADUAO EM GEOGRAFIA HUMANA

    O PATRIMNIO AMBIENTAL URBANO DE CORUMB-MS: IDENTIDADE E PLANEJAMENTO

    Joelson Gonalves Pereira

    Tese apresentada ao Programa de Ps-graduao em Geografia Humana da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para a obteno do ttulo de Doutor em Cincias Humanas: Geografia.

    Orientador: Prof. Dr. Eduardo A. Yzigi

    So Paulo 2007

  • ii

    Jerusalm, cidade to bem edificada, que forma um to belo conjunto!

    Salmo 121, 3

  • iii

    A Teresinha e Gladslayne.

    A Jos e Paulo Jos

    ...com afeto.

  • iv

    AGRADECIMENTOS Ao povo de So Paulo, mantenedor desta magnfica Universidade de So Paulo; Ao Prof. Dr. Eduardo Yzigi pela prestimosa amizade, pela riqueza de conhecimentos acumulados na convivncia em seu grupo de pesquisa e pelo exemplo de disciplina e amor nossa civilizao urbana; Ao Prof. Dr. Felisberto Cavalheiro (in memorian), pelo privilgio de sua amizade, pelos valiosos conhecimentos obtidos e pelo exemplo de dedicao e entusiasmo para com seus alunos; Prefeitura de Corumb, nas pessoas do Sr. Cssio Augusto Costa Marques, secretrio municipal de infra-estrutura e habitao e da arquiteta e urbanista Lgia Costa Urdan, coordenadora de planejamento urbano, pela oportunidade de minha permanncia junto ao grupo tcnico de elaborao do Plano Diretor Participativo, verdadeiro laboratrio s reflexes alcanadas neste trabalho; Ao prof. Dr. Roberto Paixo, grande incentivador da minha caminhada acadmica, desde a poca da graduao no antigo Centro Universitrio de Corumb-CEUC/UFMS; Ao prof. Marco Aurlio Oliveira, pelas sugestes apresetadas ao enriquecimento do trabalho; Ao arquiteto e urbanista Fbio P. Giovanni pelo auxlio dispensado nos trabalhos de configurao grfica do relatrio; A todos aqueles que, de alguma forma, me auxiliaram na elaborao deste trabalho.

  • v

    RESUMO

    A presente pesquisa constitui uma abordagem sobre Corumb, cidade edificada sob

    um plat calcrio margem direita do rio Paraguai, regio noroeste do estado de

    Mato Grosso do Sul. O local marcado por uma forte personalidade espacial,

    referenciada na sua fisiografia natural e na permanncia de uma cultura material

    representativa enquanto bem patrimonial, em parte reconhecida como patrimnio

    histrico, paisagstico e artstico nacional. Estas caractersticas espaciais de

    Corumb colocaram-se como objeto desta investigao acadmica, realizada sob a

    perspectiva conceitual de patrimnio ambiental urbano, privilegiando a reflexo sobre

    dois temas importantes e sempre atuais dentro do campo atuao da cincia

    geogrfica: o planejamento e a identidade espacial dos lugares. Como resultado, a

    cidade revelou-se, diante de sua representatividade material, favorvel em retratar a

    problemtica que envolve a questo da preservao patrimonial no Brasil, bem como

    seus resultados afetos aos fatores de qualidade ambiental, de civilizao urbana e

    identidade. Por fim, ressalta-se que a leitura apresentada neste trabalho resulta de

    uma construo sistemtica, referenciada nos propsitos estabelecidos pelo projeto

    de pesquisa iniciado no ano de 2003. As reflexes alcanadas no trato dessa

    temtica resultaram de duas preocupaes centrais referentes realidade da rea

    estudada e que constituram os principais esforos de sua investigao: a

    caracterizao dos elementos de cultura material e de fisiografia representativos do

    patrimnio ambiental urbano de Corumb e a problemtica que envolve sua

    preservao enquanto materialidade expressiva na definio de uma identidade

    espacial.

    Palavras-chaves: Corumb, patrimnio ambiental urbano, identidade, planejamento.

  • vi

    ABSTRACT

    This present research is an approach about Corumb, a city built over a limestone

    Plateau, on the right bank of Paraguay River, in the northwest region of Mato Grosso

    do Sul. The place is marked by its intense spacious personality, which is respected by

    its natural physiography and its permanence as a representative material culture

    while a patrimonial asset, recognized as a National and Historical Heritage. These

    space characteristics of Corumb were the subjects of this academic inquiry carried

    out under the assessed perspective of urban and environmental heritage, favoring a

    reflection about two important and current subjects: the planning and the space

    identity of the places. As a result, in the face of its material representation, the city

    showed favorable to portray the problem which involves the patrimonial preservation

    question in Brazil, as well as its results related to the factors of environmental quality,

    urban civilization and identity. At last, it is emphasized that the reading presented in

    this work results from a systematic construction concerned to the purposes

    established by the research proposition started in 2003. The achieved reflections

    related to the theme resulted from two main worries concerning the reality of the

    studied field and which constituted the efforts to this investigation: the

    characterization of the material culture elements and the representative physiography

    of its urban heritage in Corumb and the problem which involves its preservation

    while an expressive materiality defines the space identity.

    Keywords: Corumb city, urban and environmental heritage, space identity, planning.

  • vii

    SUMRIO

    RESUMO ........................................................................................................ v

    ABSTRACT ..................................................................................................... vi

    NDICE ............................................................................................................ ix

    LISTA DE FIGURAS ....................................................................................... xii

    LISTA DE GRFICOS .................................................................................... xv

    LISTA DE PLANTAS ....................................................................................... xvi

    LISTA DE TABELAS........................................................................................ xvii

    INTRODUO................................................................................................. 01

    CAPTULO 1 O AMBIENTE NO CONTEXTO DE RELAES

    CULTURAIS ....................................................................................................

    12

    CAPTULO 2 AS RELAES ENTRE UMA ORDEM SOCIAL E UMA

    ORDEM LOCAL .............................................................................................. 24

    CAPTULO 3 A CULTURA MATERIAL DAS CIDADES .............................. 30

    CAPTULO 4 BREVE CARACTERIZAO DA GEOGRAFIA DE CORUMB ..................................................................................................... 38

  • viii

    CAPTULO 5 O PATRIMNIO AMBIENTAL URBANO DE CORUMB ..... 47

    CAPTULO 6 INVENTRIO DO PATRIMNIO ARQUITETNICO ............ 114

    CAPTULO 7 A PRODUO DA CIDADE E OS DESAFIOS

    PRESERVAO PATRIMONIAL .................................................................. 144

    CONSIDERAES FINAIS............................................................................. 186

    BIBLIOGRAFIA................................................................................................ 191

    ANEXO............................................................................................................. 201

  • ix

    NDICE INTRODUO.......................................................................................................

    01

    CAPTULO 1 O AMBIENTE NO CONTEXTO DE RELAES CULTURAIS .. 12

    CAPTULO 2 AS RELAES ENTRE UMA ORDEM SOCIAL E UMA ORDEM LOCAL ................................................................................................... 24

    CAPTULO 3 A CULTURA MATERIAL DAS CIDADES .................................. 30

    CAPTULO 4 BREVE CARACTERIZAO DA GEOGRAFIA DE CORUMB ........................................................................................................... 38

    CAPTULO 5 O PATRIMNIO AMBIENTAL URBANO DE CORUMB ......... 47 5.1. A Fisiografia do meio natural............................................................... 52

    5.1.1. O rio Paraguai e a gnese do patrimnio ambiental urbano de Corumb............................................................................... 53 A O rio na escala regional: a definio da geopoltica e da

    centralidade de Corumb................................................. 54 B O rio na escala local: a produo da cidade e do seu

    cotidiano............................................................................ 56 O rio no contexto histrico do desenvolvimento urbano............................................................................ 56 O rio e a asceno do turismo....................................... 58 O rio como ideal coletivo formulao da viso de futuro.............................................................................. 62 O rio na referncia urbanstica....................................... 63 O rio e a dimenso simblica......................................... 64

  • x

    O rio enquanto marca do lugar.................................... 64 5.1.2. O domnio das colinas sul.......................................................... 67

    5.2. O espao pblico enquanto patrimnio................................................. 73 5.2.1. O centro de Corumb................................................................ 74 5.2.2. Os espaos da convivncia espaos pblicos centrais e a

    centralidade do acontecer urbano ............................................ 79 5.2.3. O espao pblico das caladas ................................................ 84

    5.3. O patrimnio paisagstico..................................................................... 87 5.4. O patrimnio arquitetnico.................................................................... 90

    5.4.1. Contextualizao histrica e o surgimento dos imveis .......... 91 A O legado do comrcio porturio............................................ 91 B O legado arquitetnico da pecuria....................................... 100

    5.4.2. A fase de desvalorizao e substituio do antigo .................. 107 5.4.3. Novas perspectivas .................................................................. 111

    CAPTULO 6 INVENTRIO DO PATRIMNIO ARQUITETNICO DE CORUMB ........................................................................................................... 114

    6.1. Classificao dos imveis conforme rea de proteo......................... 117 6.2. Uso atual dos imveis ...................................................................... 119 6.3. Estado de conservao ....................................................................... 122 6.4. Alterao do desenho original da fachada ........................................... 125 6.5. Estilo de Construo ................................. 127 6.6. Conjuntos remanescentes ................................................................ 128 6.7. Distribuio dos imveis nos logradouros............................................. 130

    CAPTULO 7 A PRODUO DA CIDADE E OS DESAFIOS PRESERVAO PATRIMONIAL ........................................................................ 144

    7.1. As transformaes na relao com o urbano e suas implicaes ao patrimnio ambiental............................................................................ 148

  • xi

    7.2. A construo de uma nova urbanizao............................................... 154 7.2.1. A questo social e a descaracterizao da fisiografia dos

    morros e encostas .................................................................... 155 7.2.2. A incoerncia do projeto urbano com as caractersticas

    topogrficas do stio de expanso ............................................ 159 7.2.3. A difuso da autoconstruo e o comprometimento da

    qualidade tcnica e esttica das construes da periferia ...... 164 7.2.4. Os projetos estatais de habitao popular: oportunidade

    perdida na qualificao ambiental urbana ............................... 165 7.2.5. A incontinncia do crescimento horizontal e das deficincias

    urbanas .................................................................................... 168 7.3. A desconstruo da antiga urbanizao............................................... 169

    7.3.1. Os efeitos da publicidade comercial ......................................... 174

    7.3.2. O espao pblico de todos... e de tudo! ................................... 176

    7.3.3. Os efeitos da renovao urbana ............................................... 184

    CONSIDERAES FINAIS.................................................................................. 186

    BIBLIOGRAFIA..................................................................................................... 191

    ANEXO.................................................................................................................. 201

  • xii

    LISTA DE FIGURAS

    Figura 01 Localizao do municpio e da cidade de Corumb no estado de Mato Grosso do Sul.............................

    39

    Figura 02 Imagem do satlite LandSat 5 com a localizao da cidade

    de Corumb e localidades circunvizinhas ................................

    40

    Figura 03 Planta da cidade de Corumb ................................................. 41

    Figura 04 Aspecto da disposio dos imveis mais antigos nos lotes, caracterizada pela justaposio, alinhamento e ausncia de recuo da fachada em relao calada .................................

    44

    Figura 05 Vista area do stio antigo da cidade de Corumb com a delimitao da rea de Tombamento e entorno ......................

    45

    Figura 06 Descaracterizao das fachadas originais, devido a

    substituio de portas e janelas ...............................................

    46

    Figura 07 Vista do rio Paraguai no porto de Corumb.............................. 53

    Figura 08 O porto de Corumb no incio do sculo XX............................. 66

    Figura 09 Embarcao de turismo (pesqueiro) no rio Paraguai............... 66 Figura 10 Mesmo a rigidez de um racionalismo pretencioso, encontra

    seu limite nas curvas incertas da natureza...............................

    66

    Figura 11 O valor simblico de um lugar sacralizado pela conscincia... 66

    Figura 12 Um espao, vrios significados, inmeras relaes................. 66

    Figura 13 A apropriao do rio como marca do lugar revela sua expressividade no imaginrio urbano.......................................

    66

    Figura 14 Morraria dolomtica e sua floresta semi-decidual submontana

    na Parte Alta de Corumb........................................................

    67

    Figura 15 Aspecto da morraria dolomtica no bairro Nova Corumb........ 69

  • xiii

    Figura 16 Grupo escolar Lus de Albuquerque (atual Casa de Cultura) em fase de construo no incio do sculo XX ........................

    91

    Figura 17 Residncia tpica de famlia pecuarista de Corumb, construda na primeira metade do sculo XX........................... 106

    Figura 18 Antigo edifcio do Colgio Salesiano de Santa Teresa (primeiro plano), demolido entre as dcadas de 1960 1970 .

    110

    Figura 19 Colgio Salesiano de Santa Teresa. Edifcio atual .................. 110

    Figura 20 Layout do banco de dados digital sobre o patrimnio

    ambiental urbano de Corumb, em fase de estruturao, no sistema de informaes geogrficas SPRING 3.6................

    116

    Figura 21 Inventrio arquitetnico: rua 13 de Junho seo A-B............ 131

    Figura 22 Inventrio arquitetnico: rua 13 de Junho seo B-C............ 132

    Figura 23 Inventrio arquitetnico: rua Delamare seo A-B................ 133

    Figura 24 Inventrio arquitetnico: rua Delamare seo B-C................ 134

    Figura 25 Inventrio arquitetnico: rua Dom Aquino................................. 135

    Figura 26 Inventrio arquitetnico: Casario do Porto................................ 136

    Figura 27 Inventrio arquitetnico: Avenida General Rondon.................. 137

    Figura 28 Inventrio arquitetnico: rua 15 de Novembro.......................... 138

    Figura 29 Inventrio arquitetnico: rua Antnio Maria Coelho.................. 139

    Figura 30 Inventrio arquitetnico: rua Cuiab seo A-B.................... 140

    Figura 31 Inventrio arquitetnico: rua Cuiab seo B-C.................... 141

    Figura 32 Inventrio arquitetnico: rua Frei Mariano ............................... 142

    Figura 33 Inventrio arquitetnico: Antnio Joo ..................................... 143

    Figura 34 O livre arbtrio privado no uso do espao pblico ................. 153

    Figura 35 Aspecto da ocupao residencial da face norte do morro da Bandeira por famlias carentes.................................................

    158

  • xiv

    Figura 36 Os efeitos atuais de um processo de urbanizao s avessas 161

    Figura 37 Planta urbana de Corumb com a espacializao do problemas relacionados ao uso do solo................................... 163

    Figura 38 O centro comercial de Corumb: permetro de maior concentrao de estabelecimentos comerciais, financeiros e de servios da cidade, localizado entre as trs praas centrais..................................................................................... 173

    Figura 39 Rua Frei Mariano, centro comercial de Corumb: a degradao ambiental imposta pela publicidade comercial .... 176

    Figura 40 Cruzamento das ruas Frei Mariano e Delamare: a densidade das redes areas, dos mobilirios urbanos e dos quiosques comerciais expe a banalizao do espao pblico e suprime a visibilidade daquilo que, de fato, mereceria ser visto............ 178

    Figura 41 Quiosques comerciais, sito praa da Repblica. O extremo desleixo com o espao pblico ostentado, sem qualquer constrangimento, no mesmo local onde remanesce um dos mais expressivos conjuntos arquitetnicos da cidade.............. 179

    Figura 42 Busto em homenagem a Jos Bonifcio: a deteriorao do entorno reduz a visibilidade do monumento ............................ 180

    Figura 43 A praa desimpedida de outrora, cercada de balaustradas, compunha com os edifcios de entorno um conjunto eloqente e de grande repercuso visual................................. 183

    Figura 44 A praa atual com o terminal de nibus construdo pela prefeitura em 1983 ................................................................... 183

  • xv

    LISTA DE GRFICOS

    Grfico 01 Classificao dos imveis quanto rea de proteo que

    integram....................................................................................

    117

    Grfico 02 Uso atual dos imveis da rea de estudo................................. 119

    Grfico 03 Uso atual dos imveis localizados no permetro de tombamento..............................................................................

    120

    Grfico 04 Estado de conservao da fachada dos imveis da rea de

    estudo.......................................................................................

    122

    Grfico 05 Estado de conservao da fachada dos imveis do permetro de tombamento.........................................................................

    124

    Grfico 06 Alterao do desenho original da fachada dos imveis da

    rea de estudo..........................................................................

    125Grfico 07 Estilos de construo dos imveis ........................................... 127

    Grfico 08 Distribuio dos imveis nos logradouros................................ 130

    Grfico 09 Evoluo da populao do municpio de Corumb por

    siturao .................................................................................. 151

  • xvi

    LISTA DE PLANTAS

    Planta 01 Classificao conforme rea de proteo................................. 118

    Planta 02 Uso atual dos imveis............................................................... 121

    Planta 03 Estado de conservao da fachada.......................................... 123

    Planta 04 Alterao do desenho original da fachada................................ 126

    Planta 05 Localizao dos conjuntos remanescentes.............................. 129

  • xvii

    LISTA DE TABELAS

    Tabela 01

    Principais investimento pblicos realizados na cidade de Corumb entre os anos de 2004 e 2006..................................

    77

    Tabela 02 Principais festividades e eventos pblicos existentes na cidade de Corumb...................................................................

    79

    Tabela 03 Lista dos atributos levantados em campo e suas respectivas

    variveis....................................................................................

    144

    Tabela 04 Dados de populao das encostas ribeirinha e de morraria em Corumb.............................................................................

    156

    Tabela 05 Conjuntos habitacionais construdos em Corumb at 2006... 167

  • 1

    INTRODUO

    Em muitas cidades do mundo verifica-se, sobretudo a partir do final da Segunda

    Guerra Mundial, um esforo devotado reabilitao da cultura material em

    benefcio de uma melhoria da qualidade ambiental urbana, configurando-se, por

    conseguinte, em fator favorvel ao desenvolvimento local. Especialmente na

    Europa, essa preocupao teve uma participao decisiva nos esforos de

    reconstruo de um continente debilitado pelas conseqncias da guerra. O

    prevalecimento da restaurao material no propsito da reconstruo de suas

    cidades semi-destrudas, propiciou a manuteno de uma rica cultura material

    acumulada pelo processo histrico e que representa a prpria identidade urbana

    de uma Europa conservadora na valorizao do antigo e do vernacular, embora

    aberta inovao tecnolgica.

    Esse legado cultural e sua valorizao enquanto bem patrimonial constitui um

    dos fatores que propiciaram a prpria recuperao econmica daquele

    continente. Basta lembrar que a partir do ps-guerra o turismo ascende como

    uma das principais economias da Europa, grande parte favorecido pelos atrativos

    urbanos da cultura material, ainda hoje responsveis pela maioria dos fluxos de

    turistas que visitam o continente.

    Dentre as cidades europias, Paris se destaca como um exemplo onde a cultura

    material, sobretudo aquela expressa pela arquitetura, constitui importante indutor

    de civilizao capaz de determinar sua identidade espacial e atuar como fator de

    qualificao ambiental urbana, ao mesmo tempo que contribui, em grande

    medida, para seu importante fluxo de visitantes.

    Na capital francesa, a qualidade ambiental urbana, auxiliada pela preservao da

    cultura material, faz com que no apenas os monumentos, edifcios ou certos

    espaos pblicos, mas toda a cidade, se constitua em atrao ao turista, uma

    situao que se converte em desenvolvimento local, por conta do dinamismo

  • 2

    empreendido sua economia atravs da gerao de empregos, receitas e

    tributos.

    Em nvel de Brasil, nos casos onde houveram intervenes que visassem

    preservao do patrimnio e valorizao do ambiente urbano, via de regra foram

    deflagrados com o objetivo de promoo do turismo cultural, catalisador de

    desenvolvimento e gerao de emprego e renda. No obstante, tais exemplos

    ainda constituem exceo em um pas onde a preservao e conservao dos

    bens culturais encontram-se ainda muito distantes de se configurar em uma

    realidade ideal.

    Ainda que discursos voltados preservao do patrimnio brasileiro j sejam

    audveis no campo governamental uma vez que o Estado reconhece

    oficialmente a importncia desse patrimnio e sua preservao e em alguns

    segmentos sociais, h, no entanto, uma dificuldade em projet-lo ao alcance das

    polticas pblicas, para que se converta em prtica e em benefcios, de forma

    efetiva. Esta constatao evidencia, em certo modo, uma viso estreita com que

    o tema sempre foi tratado, o que impediu e ainda impede vislumbrar a

    preservao da cultura material, como importante vis para a prtica da

    cidadania, da qualidade ambiental e ao desenvolvimento social e econmico.

    Apesar de constiturem raros remanescentes de uma cultura material que por

    muito tempo foi submetida ao interesse do capital, cuja expanso e acumulao

    em boa medida se processou s custas de construes, demolies e

    reconstrues urbanas, os bens culturais existentes no Brasil ainda so

    penalizados por polticas pblicas de preservao ineficientes e, sobretudo, por

    uma viso preconceituosa de uma maioria desinformada da populao que os

    concebem pejorativamente como coisas velhas, smbolo de atraso e, no caso

    em que a sua preservao garantida oficialmente por tombamento, entrave aos

    processos de desenvolvimento e modernizao.

  • 3

    Por esta situao, percebe-se uma sociedade desejosa em despir-se de sua

    prpria imagem, o que pode ser entendido como um auto-preconceito, uma vez

    que estes mesmos bens culturais constituem nada mais que a expresso

    material de sua prpria identidade, criada a partir da interao estabelecida entre

    a estrutura social e o seu espao. Verifica-se, portanto, um preconceito pela

    prpria civilizao que se engendrou ao longo do tempo e que tem nestes

    objetos culturais sua representao mais explcita. Sob este aspecto, reporta-se

    ao exposto por PIRES (2003) sobre essa condio brasileira: (...) ns no temos

    orgulho de nossa civilizao, de tudo o que construmos, do nosso legado

    cultural. Isso nos faz dbeis, nos faz subpovo aos olhos internacionais.

    Prossegue este mesmo autor, referindo-se a essa situao como elucidativa ao

    fato de os atrativos tursticos apresentados pelo Brasil se resumirem

    praticamente a seus recursos naturais os quais, por serem na maioria das vezes

    comuns aos existentes em outros lugares praia, sol, florestas e montanhas no

    so atributos naturais exclusivos do Brasil onde as vantagens oferecidas aos

    visitantes so maiores, a exemplo da questo da segurana, acabam, por

    conseqncia, contribuindo para a inexpressiva quantidade de turistas recebida

    anualmente pelo pas.

    Da a preservao de bens culturais constituir, em dias atuais, uma preocupao

    cada vez mais crescente medida que se ampliam, tambm, em sentido oposto,

    os efeitos relacionados massificao e padronizao cultural da atual

    sociedade global. A defesa pela preservao do patrimnio assume, assim, um

    carter de resistncia a esse processo, o que eleva a importncia dada a esses

    bens, de modo a serem tratados no mais como meros referenciais da histria e

    do passado, mas como fator de identidade de uma sociedade e de um lugar.

    O ambiente urbano equivale escala espacial do lugar. Neste sentido, h que se

    considerar que a cultura material nele existente deve estar relacionada antes

    dimenso do cotidiano, portanto, motivo de interesse a seu habitante. Caso isto

    ocorra, como conseqncia esta tornar atrativa tambm ao visitante,

  • 4

    favorecendo o fluxo turstico. Nesta perspectiva, a cidade de Paris, pela

    preservao de sua cultura material, antes de ser agradvel e atrativa aos

    visitantes, o para seu prprio habitante.

    Sendo assim, a capacidade do ambiente urbano se constituir em fator de

    promoo turstica apenas conseqncia da interao estabelecida entre este

    e seu habitante. Nesse sentido, a anlise deve centrar ateno sobre o sistema

    de relaes que envolvem os aspectos da cultura material garantidores da

    identidade espacial urbana e o contedo social que lhe confere significado. O

    que pode ser conseguido ao se considerar os bens culturais inseridos em uma

    conceituao mais abrangente, qual seja, o de patrimnio ambiental urbano,

    tema profcuo uma abordagem sobre cidade enquanto produto de uma relao

    social que se efetiva em formas materias que expressam traos de uma

    civilizao urbana construda ao longo do processo histrico.

    Quanto a isso, cabe considerar que o patrimnio ambiental urbano, representado

    pela arquitetura, espaos pblicos e meio natural constitui marco fundamental na

    determinao da personalidade de um lugar, garantindo, portanto, sua

    diferenciao ante as demais unidades espaciais. Logo, a cidade tem nos

    elementos que integram essa cultura material um importante mecanismo de

    defesa face s aes hegemnicas externas de padronizao como, por

    exemplo, a reproduo de cdigos de obras, de posturas, planos diretores, ou

    mesmo a produo multisseriada de materiais construtivos, os quais, medida

    que so empregados, suprimem a personalidade urbana, conferindo a diferentes

    lugares, paisagens cada vez mais similares.

    Essa questo da identidade espacial sempre se colocou como uma das

    principais pertinncias do campo da geografia, ao mesmo tempo que constitui

    uma premissa intrnseca definio de suas diferentes categorias de anlise.

    Regio, paisagem e lugar, por exemplo, tm em comum o fato de constiturem

    unidades espaciais objetificadas por uma singularidade. Dada a impossibilidade

    de uma abordagem holstica do espao totalitrio, a viabilizao das anlises

  • 5

    geogrficas sempre se pautou no estabelecimento de recortes espaciais sobre o

    todo. No sem motivo a geografia chega a ser definida como o estudo da

    individualidade dos lugares, conforme sugere a anlise regional, ou da

    diferenciao de reas, como prope os estudos de paisagem (MORAES, 2003).

    O certo que a anlise geogrfica incide na compreenso de um espao total

    constitudo de unidades singulares, definidas por suas caractersticas peculiares

    que lhes conferem uma identidade.

    Neste sentido, a abordagem do patrimnio ambiental urbano, ao beneficiar uma

    anlise da cultura material como expresso da personalidade do lugar,

    compromete-se com o propsito de uma preocupao geogrfica que trata a

    identidade espacial como uma questo central ao desenvolvimento do

    conhecimento geogrfico, sendo ao mesmo tempo intrnseca ao seu prprio

    objeto de investigao.

    Essas consideraes encontram-se refletidas nos propsitos da presente pesquisa,

    cuja investigao privilegiou a anlise da identidade espacial na perspectiva da

    problemtica que envolve a preservao da cultura material urbana enquanto

    elemento que assiste definio da personalidade do lugar. A este intuito

    estabeleceu-se como unidade espacial de anlise a cidade de Corumb-MS, lugar

    de grande expressividade em termos de cultura material representada, sobretudo,

    por sua arquitetura e fisiografia, e onde as condies de preservao e mesmo de

    qualidade ambiental urbana inerentes realidade brasileira, se reproduzem com

    fidelidade.

    Cabe mencionar que a proposta do desenvolvimento dessa pesquisa teve origem no

    ano 2000, na oportunidade de uma primeira visita do professor Eduardo Yzigi a

    Corumb. poca chamou-lhe ateno o fato da cidade ter conseguido conservar

    milagrosamente um notvel conjunto arquitetnico de expresso ecltica e art-dec

    cuja densidade, sobretudo em seu centro antigo, era capaz de dispor o local como

    um fato raro, em nvel de Brasil, de identidade espacial definida pela

    representatividade de sua cultura material arquitetnica.

  • 6

    Por outro lado, a forma de preservao a que esse patrimnio encontrava-se

    exposto, o que implicava em sua descaracterizao progressiva, associada a uma

    lacuna, em termos de produo acadmica, na sua contemplao dentro de uma

    perspectiva de patrimnio ambiental urbano, despertou-lhe uma preocupao para

    que a cidade fosse includa como objeto de investigao cientfica dentro de seu

    grupo de pesquisa intitulado Turismo, territrio, identidade espacial e planejamento,

    derivando da o estabelecimento dos primeiros contatos que culminaram na

    realizao desta pesquisa.

    Convm ressaltar, assim como o que foi observado pelo professor Yzigi, que a

    cidade de Corumb ainda conserva, sobretudo em seu stio de ocupao mais

    antiga, uma considervel quantidade de edifcios erguidos entre o final do sculo

    XIX e incio do sculo XX, auge de sua funo articuladora da economia regional

    do antigo Mato Grosso, proporcionada pela navegao do rio Paraguai, da qual

    se constitua um porto estratgico que mediava a relao entre o longnquo

    estado e o restante do mundo. Tais edifcios, em que se verifica o emprego

    predominante do ecltico e do art-dec como linguagem arquitetnica,

    constituem um importante fator de identidade que a cultura material impe ao

    local.

    Independente da localizao (centro/periferia) do uso (comercial/

    institucional/residencial), da classe social de seus proprietrios, verifica-se um

    quase consenso enquanto linguagem arquitetnica empregada nesses edifcios,

    capaz de demonstrar uma preocupao com a noo de conjunto e com a

    unidade que predominou na cidade em outros tempos.

    Seja na regio do porto, onde a quase totalidade dos imveis ainda conserva

    muito de suas formas originais, em face de uma renovao urbana incipiente,

    seja na rea central, sobretudo aquela ocupada pelo comrcio onde os prdios

    mais antigos encontram-se mesclados com edifcios mais modernos, constata-

    se que tais imveis so suficientes para conferir uma noo de conjunto na

  • 7

    concepo ambiental que se converte em importante marca da personalidade

    urbana local.

    O conjunto arquitetnico e paisagstico de Corumb representa hoje uma das

    mais importantes expresses culturais do estado de Mato Grosso do Sul, da a

    defesa por sua preservao alcanar relevncia regional e, tambm, nacional,

    uma vez que constitui materializao do processo histrico desenvolvido na

    fronteira oeste do Brasil.

    As primeiras reflexes sobre a necessidade de preservao ao que se

    chamavam de antigos casares da cidade (GUIZZO,1979) emergem em nvel

    estadual, no final da dcada de 1970. Tal interesse alcanou a anuncia oficial,

    culminando com a definio de um permetro que incluiu o stio mais antigo da

    cidade o qual foi definido como rea de tombamento por um decreto municipal de

    1985, ato este posteriormente ratificado pelo IPHAN, que em 1992 definiu essa

    mesma rea como pertencente ao patrimnio artstico nacional.

    Entrementes, passado quase duas dcadas de decretado o tombamento,

    verifica-se que tal medida no foi suficiente para garantir a efetiva preservao

    do conjunto. Avalia-se, assim, que sua importncia circunscrita ao campo formal

    , ainda, ausente de plena equivalncia no campo prtico. Alheio a qualquer

    determinao legal, pari-passu, um conjunto de fatores, que vo desde a ao do

    tempo at a ausncia de fiscalizao estatal, conspira contra a idia de

    preservao resultando em sucessivos casos de abandono, m conservao,

    modificaes das formas originais das fachadas mediante substituio de

    elementos como portas e janelas, bem como pela introduo de marquises de

    concreto, revestimentos cermicos e toldos publicitrios.

    Por estes vrios aspectos elencados, observa-se em Corumb uma

    sobreposio de atributos de ordem arquitetnica, histrica, artstica e

    fisiogrficas que em conjunto conferem notoriedade ao seu patrimnio ambiental

    urbano e, por conseguinte, transfiguram-se em marcas proeminentes da

  • 8

    identidade do lugar, no obstante, permeados por fatores que se contrapem ao

    ideal de sua preservao.

    A cidade um artefato, coisa feita, fabricada pelo homem e como todo artefato ,

    ao mesmo tempo, produto e vetor de relaes sociais, lembra MENESES (1983).

    Tal considerao converte-se em importante medida na compreenso da

    realidade inerente ao patrimnio ambiental urbano de Corumb, o qual constitui

    uma realidade objetiva, porm impossvel de inteligibilidade quando descolado da

    estrutura social da qual emerge como resultado de relaes.

    Esta situao suscita a preocupao com os fatores de identidade espacial e

    qualidade ambiental da cidade de Corumb que, na tica da cultura material,

    esto diretamente subordinados preservao e valorizao de seu patrimnio

    ambiental urbano. Considerando tal premissa, destaca-se este trabalho, tambm,

    como uma contribuio s reflexes quanto ao papel desempenhado por essa

    cultura na definio da identidade urbana e a importncia de sua preservao,

    com suporte no planejamento, promoo do desenvolvimento local.

    Atendendo a esses propsitos e com base no encaminhamento terico-

    metodolgico adotado sua realizao, a pesquisa foi desenvolvida como um

    esforo em se responder a dois questionamentos distintos e correlatos: o qu

    preservar e como preservar. O propsito da primeira questo consistiu em

    caracterizar os elementos materiais presentes na cidade de Corumb,

    representativos do seu patrimnio ambiental urbano ensejando, inclusive, uma

    abordagem mais sistemtica definida pela realizao de um inventrio sobre o

    acervo arquitetnico digno de preservao. A segunda questo devotou-se

    compreenso da valorizao desses bens patrimoniais que se efetiva em

    diferentes formas pelas quais ocorre a relao da estrutura social com a cidade,

    possibilitando, por conseguinte designao de pressupostos favorveis

    preservao do patrimnio ambiental urbano de Corumb como atributo notvel

    de identidade espacial e civilizao urbana.

  • 9

    O esforo em responder a esses questionamentos ocorrem mediante o

    encaminhamento de duas hipteses: a primeira, estabelece que a preservao

    dos valores ambientais e patrimoniais urbanos de Corumb depende do

    desenvolvimento de uma conscincia coletiva da sociedade local, pelo qual estes

    possam ser reconhecidos como bens preservveis. A segunda , considera que essa

    preservao depende de uma ao mais incisiva do poder pblico no trato de uma

    gesto patrimonial.

    Ancorados nessas proposies hipotticas que referenciam o problema da

    preservao do patrimnio ambiental urbano de Corumb, os resultados da

    pesquisa apresentam-se estruturados nos captulos que seguem, os quais

    contemplam, em seu cunjuto, os propsitos de investigao do objeto de estudo.

    O primeiro captulo evidencia O ambiente no contexto das relaes culturais,

    expondo conceitualmente o interacionismo simblico existente entre a estrutura

    social e a materialidade do mundo exterior. Tal perspectiva lana luz ao

    entendimento dos esquemas de valorao, de sentido e de representao pelos

    quais so articulados os esquemas de comportamento que expressam o carter da

    relao entre a estrutura social e a materialidade que compe o patrimnio

    ambiental urbano.

    No segundo captulo, so tratadas as consideraes sobre a importncia de uma

    ordem institucional pblica que, mediante instrumentos de normatizao e

    regulamentao por ela operadas, institui, mesmo que conceitualmente, um

    controle sobre as relaes que os atores sociais estabelecem com a cidade. Tal

    considerao conduz ao entendimento de que a organizao do ambiente urbano

    resulta de uma relao conduzida simblicamente pela estrutura social para com

    o meio, mais a organizao dessa relao arbitrada por uma ordem institucional.

    O terceiro captulo estebelece o conceito de patrimnio ambiental urbano,

    enfatizando seu reconhecimento na estrutura urbana mediante valores

    potencialmente qualificados capazes de designar certas formas materiais como

    bens preservveis. A leitura prossegue destacando as motivaes que se

  • 10

    colocam no centro do interesse por sua preservao, com nfase s questes

    relacionadas memria urbana, ao sentimento de pertena e identidade

    espacial.

    As consideraes referentes rea de estudo so introduzidas pelo captulo

    quatro. Este apresenta uma leitura que incide sobre a caracterizao geogrfica

    da cidade de Corumb e enfatiza os principais aspectos de sua natureza urbana,

    os quais comprovam a pertinncia dessa unidade espacial como objeto de

    anlise favorvel construo do conceito de patrimnio ambiental urbano.

    O captulo quinto, apresenta o resultado da realizao de uma abordagem sobre a

    cidade, no objetivo de uma caracterizao daquilo que consiste seu patrimnio

    ambiental urbano, partindo-se de um esforo investigativo de carter documental,

    cartogrfico e bibliogrfico, associado a realizao de levantamentos de campo.

    Essas atividades tiveram o propsito da realizao de uma descrio que no

    ficasse restrita apenas a um levantamento das formas materiais potencialmente

    qualificadas como bens preservveis, mas sim de uma abordagem que considerasse

    o patrimnio ambiental urbano como uma uma construo cultural, no sentido de

    constituir produto de uma relao simblica operada sobre o meio ao longo do

    processo histrico. Tal perspectiva de abordagem concorreu para que esse

    levantamento fosse superior a um simples inventrio da fisiografia, da arquitetura,

    dos espaos pblicos, enfim, das formas materiais representativas da identidade

    urbana, de modo que proporcionou, tambm, a reconstituio da histria que se

    efetivou nesse patrimnio e do entendimento sobre a forma como ele se insere no

    contexto atual das relaes sociais.

    No sexto captulo, apresentado o resultado de um levantamento emprico no qual

    se props a realizao de um inventrio sobre o patrimnio arquitetnico da cidade,

    conforme proposta original sugerida pelo professor Eduardo Yzigi realizao da

    pesquisa. O resultado desse inventrio constitui uma caracterizao do acervo

    arquitetnico de Corumb, que procede de um levantamento cadastral de campo,

    realizado entre os anos de 2003 e 2004, cujo produto foi, posteriosmente,

  • 11

    organizado em um banco de dados digital, operacionalizado por sistema de

    informaes geogrficas.

    Por fim, o captulo stimo expe os desafios da preservao do patrimnio

    ambiental urbano de Corumb, no contexto de uma produo urbana marcada

    por conflitos de ordem social e urbanstica. Abordado sob o aspecto de uma

    construo e de uma desconstruo urbanas, motivadas pela ascenso de uma

    crise social, associada perda de uma eficcia institucional na regulao normativa

    do espao urbano, o tema descreve as principais evidncias do comprometimento

    dos elementos representativos da identidade espacial da cidade, o que contribui

    para a reduo dos valores potencializadores de uma qualidade ambiental e dos

    atributos expressivos definio da personalidade do lugar, encontrados na

    fisiografia do stio urbano, na relao social com o espao pblico e na forte

    expresso do seu conjunto arquitetnico.

    .

  • 12

    CAPTULO 1

    O AMBIENTE NO CONTEXTO DE RELAES CULTURAIS

    Jac, partindo de Bersabia, tomou o caminho de Hara. Chegou a um lugar, e ali

    passou a noite (...) Serviu-se como travesseiro de uma das pedras que ali se encontravam,

    e dormiu naquele mesmo lugar. E teve um sonho: via uma escada, que, apoiando-se na

    terra, tocava com o cimo o cu (...) No alto estava o Senhor, que lhe dizia: Eu sou o Senhor

    (...) darei a ti e a tua descendncia a terra em que ests deitado (...) Estou contigo (...) e no

    te abandonarei sem ter cumprido o que te prometi.

    Jac, despertando do seu sono, exclamou: (...) Quo terrvel este lugar! nada menos

    que a casa de Deus (...). No dia seguinte, pela manha tomou Jac a pedra sobre a qual

    repousara a cabea e a erigiu como estela, derramando leo sobre ela. Deu o nome de

    Betel (Casa de Deus) a este lugar.

    Gnesis 28, 10-19.

    Antes de iniciar qualquer movimento em direo compreenso do objeto

    proposto patrimnio ambiental urbano faz-se necessrio situar o ponto de

    partida do caminho a ser percorrido no seu processo de anlise, o qual importar

    enfatizar, primeiramente, a estruturao da subjetividade que, no campo prtico

    da vida cotidiana define a relao estabelecida entre indivduo e mundo real,

    especialmente em relao aos objetos. Neste propsito, a perspectiva de

    abordagem incide sobre o campo especfico da cultura material enquanto sub-

    categoria de anlise do denso universo exploratrio da cultura a qual est

    relacionada (...) queles elementos cuja expresso material apresenta enquanto

    parte do ambiente, do tecido urbano, do habitat humano e do cotidiano

    (GERALDES, 2004).

  • 13

    A despeito de qualquer pretenso no intuito de designar uma conceituao

    definitiva e consensual a respeito de algumas manifestaes operadas no campo

    social, que se organizam a partir dos objetos que compem essa cultura material,

    a exemplo de valor, significado, memria e identidade, vale o propsito de lanar

    luz a estas noes fundadoras que entrevem na relao social as quais definem

    o patrimnio ambiental urbano.

    Para iniciar esta compreenso, sugere-se que seja restabelecida a noo sobre a

    dualidade existente entre natureza e cultura: a primeira enquanto entidade real,

    objetiva, pr-existente, e a segunda, considerada no seu aspecto mais pertinente

    e elementar, a de constituir um fator estritamente humano, sendo por isso, talvez,

    o atributo subjetivo mais especfico da condio humana. Como forma de

    enfatizar a incidncia de uma sobre a outra, cabe considerar uma observao

    sumria: sem a incidncia da cultura a natureza insignificante. Isto no sentido

    mais puro e restrito do termo insignificante, cuja raiz etimolgica sugere

    ausncia de significado, considerao que refora o que prefere MENESES

    (2003): as coisas s tem sentido em situao.

    A natureza no reconhece em si mesma a sistematizao das estruturas que a

    compe, isto constitui um aspecto estabelecido pela cultura. Atravs da cultura o

    homem atribui ao mundo fsico exterior uma organizao estabelecida por

    classificaes, modelos, tipologias, padres, conceitos, esquemas, codificaes,

    etc., todas organizaes mentais, atravs das quais o homem torna possvel a

    legibilidade da disformidade da natureza e de todo o mundo exterior. Sem este

    aspecto vero mundo exterior seria to confuso quanto contemplar um mosaico

    em que as posies das peas no compusessem um todo coerente.

    Num carter mais pragmtico, a partir do momento em que a organizao

    mental, operada pela cultura, atribui uma coerncia complexidade do mundo

    real, objetivando as coisas que o compe, denominando-as, conceituando-as,

    classificando-as, identificando suas propriedades... o homem passa a conhecer

    seu objeto de ao e a relacionar com ele. Como essa relao cultural seu

  • 14

    resultado ser sempre acompanhado de representao. Dessa operao deriva

    a sistematizao da realidade cujo resultado consiste na produo do

    conhecimento, que permite ao homem agir sobre o mundo, de modo a

    transform-lo em favor no apenas de suas meras necessidades orgnicas

    (carter biolgico), mas tambm de suas necessidades produtivas (carter

    econmico), de seus interesses (carter ideolgico) e de suas representaes

    (carter simblico). Conforme afirma LARAIA (1986) ao citar KROEBER, (...)

    superando o orgnico, o homem de certa forma se libertou da natureza de modo

    que, pela cultura, sua relao com o mundo exterior (...) passou a depender

    muito mais de um aprendizado do que a de agir atravs de atitudes

    geneticamente determinadas.

    Esta concepo ganha coro na geografia cultural de CLAVAL (2004) para quem

    a cultura, ao racionalizar a ao humana sobre o ambiente, permite que seja

    ampliada sua capacidade diante de possibilidades meramente instintivas:

    Reduzido programao biolgica que recebe, o homem no seria

    nada: o papel do instinto em nossa existncia no desprezvel, e as

    aptides que a cultura desenvolve esto inscritas em nosso genes, mas

    deixam o homem desarmado face a um ambiente que s nutre graas a

    operaes complexas, das quais nenhuma evidente (147).

    Considera ainda que, em se tratando de um atributo a-orgnico, a construo da

    cultura permeia um processo de aprendizagem pelo qual o indivduo se forma

    imitando e aprendendo, uma vez que o sistema cultural da qual faz parte

    sempre pr-existente. Assim, colaborando a esta afirmao, HALL (2004)

    considera em sua definio de sujeito sociolgico que a cultura, no sendo auto-

    suficiente, formada na relao com outras pessoas responsveis por mediar

    aos sujeitos sentidos, valores e smbolos.

    Enfim, a sistematizao da realidade pela cultura, respondendo por liberar o

    homem de seu confinamento a um quadro meramente biolgico e instintivo, o

    que o conduz possibilidade de apropriao do mundo exterior mediante uma

  • 15

    relao simblica. Esta afirmao patente e redunda na idia de cultura

    enquanto instancia interposta entre o homem e o mundo exterior, o que levou

    LARAIA (op. cit.) afirmao de que (...) a cultura uma lente atravs da qual o

    homem v o mundo.

    Colocada nesta perspectiva antropolgica, mais que amplificar a noo da

    dualidade indivduo mundo exterior, esta primeira considerao favorvel

    para explicitar, especificamente, a relao estabelecida entre estrutura social e

    cultura material e conduz a um dado capital apontado pela semitica e favorvel

    a este entendimento: no existe relao estabelecida entre o homem e mundo

    exterior que no seja mediada por signos. Esta sentena passvel de fcil

    compreenso, sem a necessidade de mobilizar um esforo maior que a simples

    observao de aes prticas do cotidiano como, por exemplo, a linguagem

    abstrao da realidade utilizada na comunicao entre indivduos.

    Correspondendo a um dos aspectos mais expressivos de um sistema cultural, a

    linguagem nada mais que uma codificao estruturada a partir de um conjunto

    articulado de smbolos. Cada conjunto articulado de smbolos corresponde a uma

    expresso que dispe de um sentido. Dessa forma so formada as palavras

    utilizadas para designarem as coisas. Um conjunto de palavras, por sua vez,

    constituir uma sentena que expressar um sentido. Essa sentena, que

    corresponde a uma codificao da realidade, passvel de ser decodificada por

    todos os indivduos que dominam este mesmo cdigo, de modo que a sentena

    tenha um sentido comum a todos, tornando possvel a comunicao. A

    linguagem , assim, a prova mais cabal da mediao sgnica entre o homem e o

    mundo exterior. atributo da cultura, e no das coisas a que ela se refere. Por

    esse motivo, a palavra casa enquanto expresso grfica no se articula por

    verossimilhana com casa enquanto expresso fontica, muito menos estas

    vo se articular com casa enquanto coisa fsica, objeto pertencente ao mundo

    exterior. Quanto a isso, MOREIRA (2002) expe que:

  • 16

    medida que compartilham conjuntos de smbolos, so as pessoas

    capazes de comunicar mutuamente e agir de maneira que faam sentido

    para outras pessoas. Os objetos no tm sentido predefinidos (sentidos

    inerentes); as pessoas trazem os objetos existncia pelas maneiras

    com que agem em relao a eles.

    A mediao sgnica, sempre presente na relao do homem com o mundo

    exterior, corresponde a uma organizao mental operada pela conscincia e

    responde por operacionalizar toda ao humana sobre a realidade. nesta

    perspectiva que a cultura material produzida, resultando da transformao da

    natureza em benefcio das necessidades humanas das orgnicas s

    simblicas. Assim, a edificao de uma casa poder ter a propriedade de no

    apenas servir ao abrigo (necessidade orgnica), mas tambm de ostentar a

    condio social e o status de seu morador (representao simblica), da mesma

    forma que os padres de eloqncia, sublimidade e dimenses colossais em que

    so erigidas as catedrais crists no so gratuitos, mas articulados a um

    esquema de representao simblica, emitem mensagens que transcendem seu

    mero carter pragmtico. Somado a isso, tem-se que um objeto cultural, uma vez

    constitudo como tal, poder assumir a condio de base de representao

    social, mobilizando comportamentos individuais e coletivos carregados de

    sentido, de valores, de significados, os quais s podem ser entendidos no

    contexto do sistema cultural ao qual se referem.

    Nas ltimas dcadas, esta concepo vem se mostrando favorvel ao

    desenvolvimento de uma nova abordagem epistemolgica sobre o espao

    urbano baseada em correntes de pensamento de inspirao estruturalista e

    fenomenolgica. Tal abordagem desloca a compreenso do urbano para um

    contexto de interacionismo simblico que destaca sua organizao e apropriao

    na perspectiva subjetiva de representao sgnica e de percepo.

    No campo da semitica estruturalista o espao urbano considerado suporte de

    um texto no-verbal gravado pela prtica social que se efetiva em seu uso. Como

    essa prtica cultural, logo representativa, sua constituio representa os

  • 17

    prprios pensamentos de seus habitantes. Com base neste preceito, a

    abordagem do espao urbano equivale a um exerccio de hermenutica onde as

    caractersticas fsicas de sua materialidade, associadas ao seu uso e

    transformao ao longo do tempo, compem uma estrutura sgnica passvel de

    interpretao e pela qual revelado o universo subjetivo de seus habitantes,

    atravs do qual agem em relao cidade:

    Ruas, avenidas, praas, monumentos, edificaes configuram-se como

    uma realidade sgnica que informa seu prprio objeto: o contexto urbano.

    (...) o elemento que aciona esse contexto o usurio, e o uso a sua

    fala, sua linguagem. A transformao da cidade a histria do uso

    urbano como significado da cidade. Sua vitalidade nos ensina o que o

    usurio pensa, deseja, despreza, revela suas escolhas, tendncias e

    prazeres (FERRARA, 1988, p.4).

    A cidade, assim, se apresenta como uma estrutura sgnica fundamentada na

    lgica semitica onde contexto urbano se expressa como um cdigo de

    linguagem em que a composio estabelecida entre sua materialidade, seu uso e

    seu processo histrico equivale a um significante que se articula a um significado

    inerente conscincia da estrutura social.

    No mesmo contexto de uma interao simblica, LYNCH (1999) desenvolve uma

    abordagem sobre a cidade no aspecto de produo de imagens ambientais por

    seus habitantes. Estas imagens so entendidas como entidades psquicas

    constitudas de um processo bilateral entre observador e seu ambiente (p. 07),

    as quais, dispondo de um significado tanto prtico quanto emocional, conformam

    um quadro mental que orienta a relao do sujeito com seu ambiente.

    Uma imagem constituda pela integrao de trs componentes bsicos:

    identidade, que consiste na identificao de um objeto e seu reconhecimento

    enquanto entidade separvel; estrutura, que se refere relao espacial do

    objeto com seu observador e outros objetos e, por fim, significado que este

    objeto representa aos seu observador.

  • 18

    Embora reconhea que a imagem mental decorra de um processo formulado por

    uma autonomia individual, uma vez que cada indivduo cria e assume sua prpria

    imagem, LYNCH considera haver uma espcie de consenso substancial entre os

    membros de um mesmo grupo. Assim, um dado sistema cultural ao conformar

    uma perspectiva similar de vrios observadores, produz o que ele denominou de

    imagens de grupo ou imagens pblicas comuns, as quais so reconhecidas

    como referentes a reas consensuais de uma coletividade urbana.

    Apesar disso, reconhece a complexidade de tratar a questo do significado na

    abordagem da imagem ambiental, por consider-lo elemento de maior

    instabilidade e de menor consistncia dentre os trs componentes que

    consubstanciam uma imagem. Esta constatao o fez dispensar ateno

    especial aos atributos de estrutura e identidade, o que define uma nfase

    devotada aos aspectos fsicos do ambiente. Dessa abordagem em que excetua a

    considerao com o significado, LYNCH formula o conceito de imaginabilidade, o

    qual define como:

    (...) a caracterstica, num objeto fsico, que lhe confere uma alta

    probabilidade de evocar uma imagem forte em qualquer observador

    dado. aquela forma, cor ou disposio que facilita a criao de

    imagens mentais claramente identificadas, poderosamente estruturadas

    e extremamente teis ao ambiente (...) em que os objetos no so

    apenas passveis de serem vistos, mas tambm ntida e intensamente

    presentes aos sentidos (p. 11).

    A imaginabilidade sugere que a forma urbana transcenda os objetivos funcionais

    a que ela se prope, permitindo que a cidade seja comunicvel a seus usurios

    na condio de uma imagem ambiental agradvel ao olhar, que seja capaz de

    despertar o prazer sensorial, de modo que o viver na cidade possa proporcionar

    ao seu habitante o desfrute de uma satisfao emocional constante.

    Sob o aspecto ambiental, perspectiva til ao entendimento do patrimnio

    ambiental urbano dentro do contexto de um interacionismo simblico, esta

    relao pode ser aplicada na compreenso do carter de sua organizao

  • 19

    regulada pela representao que dispe estrutura social que a produz, uma vez

    que a conscincia (imanente) agindo sobre mundo exterior (transcendente) cria

    um esquema de valorao, de sentido e de representao pelos quais so

    articulados os esquemas de comportamento que expressam a relao da

    estrutura social com o meio.

    Nesta lgica, pelo valor atribudo a um fragmento florestal remanescente o

    mesmo pode ser reconhecido pelo sentido pejorativo de mato ou como uma

    unidade ecossistmica em que subsiste uma cadeia de interdependncia entre

    seus componentes fsicos e biolgicos. Essas duas concepes, antagnicas,

    implicaro em duas possibilidades de relacionamentos distintos sob um mesmo

    objeto dado. Conforma a natureza dessa relao o resultado ser a configurao

    de uma organizao ambiental que, expressa pela paisagem, reflete o

    reconhecimento do objeto no universo da conscincia coletiva. Quanto a isso,

    BERQUE (1999), entendendo essa interao simblica na perspectiva da

    percepo expe que:

    Na evoluo histrica dos ambientes humanos parece que as

    sociedades organizam seus ambientes em funo da percepo que

    elas tm deles e, reciprocamente, parece que elas os percebem em

    funo da organizao que do a eles.

    Neste argumento est a essncia de sua posio quanto definio da

    paisagem em sua instncia simblica, onde a mesma pode ser considerada,

    concomitantemente, como marca e como matriz cultural. Marca, uma vez que

    (...)expressa uma civilizao, mas tambm matriz porque participa dos

    esquemas de percepo, de concepo e de ao ou seja, da cultura que

    canalizam, em certo sentido, a relao de uma sociedade com o espao e com a

    natureza (BERQUE, op. cit).

    Estas consideraes so esclarecedoras de uma evidncia colocada como ponto

    central para a abordagem do patrimnio ambiental urbano: a de que o ambiente

    forjado por uma relao simblica estabelecida entre a estrutura social e o

  • 20

    mundo exterior. Logo, mais que identificar os objetos culturais representativos

    desse patrimnio ambiental urbano, faz-se importante compreender a trama

    social que se estabelece nessa base de representao.

    A prpria designao das formas ambientais qualificadas na composio de um

    patrimnio ambiental urbano que assiste definio da identidade espacial de

    um lugar, parte de uma classificao em que um recorte sob a cultura material

    imposto pelo reconhecimento de valores que qualificam esses objetos como

    representativos enquanto bens patrimoniais.

    Patrimnio ambienta urbano , acima de tudo coisa fsica, composio articulada

    de objetos de existencia material que, dispondo de atributos valorativos

    potencialmente qualificados, participam como inrcias dinmicas na definio de

    uma trama social. Sua designao, porm, dada pela relao estabelecida

    entre sujeito e objeto. Uma relao de mo dupla que consiste tanto na ao

    operada pelo sujeito coletivo sobre esses objetos impondo-lhes um valor, quanto

    no valor representado por esses objetos ao sujeito, o que induz a

    comportamentos sociais que os referenciam, numa razo subjetiva, como

    suportes de memria, pertencimento e identidade com o lugar. O patrimnio

    ambiental urbano se inscreve na conscincia coletiva como significado e como

    percepo. Assim, sua permanncia enquanto trao civilizatrio material de um

    sistema cultural parte do seu reconhecimento pela estrutura social.

    Essa cultura material revestida de valores qualificados remanesce como herana

    do processo histrico materializado no espao. Desta feita, sua permanncia

    assiste paisagem, enquanto expresso visvel desse espao, como uma

    acumulao desigual do tempo. O conceito de patrimnio, iluminado pela

    perspectiva do materialismo histrico, orienta de forma satisfatria o

    entendimento de sua constituio enquanto resultado das relaes de produo

    ao longo do tempo. Assim, sua natureza material resulta de um contexto de

    (re)produo espacial engendrado pelas transformaes no modo de produo

    que, ao se reorganizar implica na produo de novas materialidades

  • 21

    concomitante cristalizao de formas antigas, as quais constituiro testemunho

    material de um antigo momento do modo de produo (SANTOS, 2002).

    A cidade enquanto produo material por excelncia, ostenta em sua paisagem

    um cenrio de reconstruo que a define como um palimpsesto onde a cada

    conjectura econmica um novo texto se reescreve sob as marcas de um antigo

    que no se apagou por completo. Sendo depositrio de uma acumulao

    desigual do tempo, o espao urbano se reconstri com a produo de novas

    feies e com a conservao de algumas formas antigas, as quais chegam ao

    presente como rugosidades, reabilitadas ao desempenho de novas funes no

    contexto de um novo momento do modo de produo. Quanto a isso, SANTOS

    (2002) expe que:

    Os objetos geogrficos aparecem nas localizaes correspondentes aos

    objetivos da produo num dado momento e, em seguida, pelo fato de

    sua prpria presena, influenciam-lhes os momentos subseqentes da

    produo.

    Essa perspectiva econmica ao enfatizar a constituio das formas espaciais

    enquanto materialidades subordinadas ao do modo de produo, de modo a

    constitu-las ao mesmo tempo produto-resultado e condio-meio sua

    reproduo, limitam a compreenso de seu papel na composio de um

    esquema de representao situado na base de uma relao simblica entre

    essas formas-objetos e a estrutura social que as produziu. Tal entendimento

    central abordagem das formas-objetos em sua abstrao na conscincia, uma

    vez que nessa instncia estes passam a dispor de uma designao valorativa

    que se manifesta em termos de representatividade do bem material como

    suporte de memria ao pertencimento e identidade.

    Nas ltimas dcadas, a nova geografia cultural prioriza a abordagem da

    paisagem no contexto de um interacionismo simblico. Nela est presente

    justamente essa preocupao de significado da paisagem:

  • 22

    Os espaos da superfcie terrestre, enquanto objetos de investigao,

    devem ser concebidos no como entidades simplesmente

    tridimensionais, mas como entidades quadrimensionais, como

    complexos de fenmenos espaos-temporais.

    A configurao ambiental surge como marcas deixadas pelo modo como o

    homem se relaciona com ele. O carter desse relacionamento se define pelo

    significado atribudo ao meio pela matriz cultural.

    Essas concepes prope uma perspectiva salutar abordagem da produo do

    ambiente pela estrutura social o qual se configura por uma relao simblica que

    emerge da conscincia coletiva, da qual o sonho de Jac constitui um exemplo

    sntese dessa construo.

    Analisando este exemplo, verifica-se que o acontecimento, mesmo que

    localizado na subjetividade de um sonho, foi suficiente para uma redefinio da

    conscincia sobre o lugar. O juzo de valor, tambm alterado pela mundana da

    conscincia induz o indivduo, por conseguinte, a estabelecer uma nova forma de

    relao com esse ambiente.

    Pela manh, aps o sonho, a composio objetiva do lugar permanecia

    rigirosamente inalterada salvo, provavelmente, nas condies atmosfricas

    especialmente de temperatura e umidade e suas conseqncias no meio.

    O mesmo no se pode afirmar quanto a sua esfera subjetiva, substancialmente

    concentrado sobre a pedra, que passa a desempenhar importncia central na

    instncia sgnica da trama estabelecida. O valor simblico que esse objeto

    adquire pelo acontecimento que nele teve lugar, no corresponde mais a sua

    banalidade material. Passando a atuar como uma inrcia dinmica, mobiliza

    comportamento tornando objeto de reverncia. A partir de ento assume a

    condio de marco de uma aliana espiritualmente estabelecida, sinal do

    empenho da promessa de posse futura e definitiva do lugar, monumento

    fundador de uma nao vindoura e co-herdeira da mesma promessa, base

  • 23

    material da representao simblica de um encontro abstrato acontecido em

    sonho que, pela crena, credita-se como verdade e, pela qual todas as demais

    condies anteriores se sustentam.

    Antes, objeto desprezvel, a noite suporte utilitrio para o sono de Jac, pela

    manh, referencia material de um acontecimento acorpreo. Essas trs fases

    que se sucedem e que definem uma seqncia abrupta at a definio simblica

    do objeto s so possveis pela conscincia, mobilizadora de sentido.

    Objeto, ambiente e acontecimento se compuseram em uma lgica prpria

    estabelecida pelo sentido definido pelo indivduo. Definitivamente, para Jac,

    aps ter despertado do sono, aquele lugar jamais seria o mesmo.

  • 24

    CAPTULO 2

    AS RELAES ENTRE UMA ORDEM SOCIAL E UMA ORDEM INSTITUCIONAL

    Afinal, no h ordem social sem a definio de normas. CLAVAL, 2001.

    A conscincia a guia das aes humanas operadas sobre o mundo exterior.

    No obstante, na perspectiva do ambiente urbano, cabe a considerao de que a

    relao dos atores sociais com a cidade seja, tambm, regulada

    institucionalmente, mediante normatizaes operadas pelos intrumentos de

    regulamentao que, teoricamente, estabelece os limites entre permisso e veto

    conduta social que nela se realiza.

    Nesta perspectiva, a estruturao do ambiente urbano resulta da relao que a

    estrutura social mantm com o meio, mais a organizao dessa relao arbitrada

    pela ordem institucional. Neste aspecto, o nvel de eficcia alcanado pelos

    instrumentos constitudos pela ordem institucional na regulao da ao social

    que produz e organiza o espao urbano, resultar em mltiplas possibilidades

    quanto configurao de sua qualidade ambiental, implicando na produo de

    um ambiente que poder residir em algum ponto de uma nuance bipolar entre

    harmonia e conflito, preservao e deteriorao.

  • 25

    Esta ordem institucional operacionalizada tanto pelos instrumentos de

    regulamentao quanto pelo processo de gesto que inclui a elaborao e a

    implementao desses instrumentos, bem como a fiscalizao e todos os seus

    sub-processos incluindo a aplicao de medidadas coercitivas necessrios

    ao seu cumprimento. A cidade como produto de uma construo coletiva e

    cumulativa no tempo, motivada pelo predomnio de necessidades, objetivos e

    interesses mltiplos, j constitui por sua prpria natureza a materializao de

    conflitos, de modo que a fragilidade dos suportes de gesto e regulamentao

    promove a intensificao de tal situao.

    A realidade urbana brasileira, constituda nos ltimos cinquenta anos, um

    exemplo expressivo dessa deficincia institucional. Aqui, o encontro entre a

    fragilidade de um processo de gesto urbana e o comprometimento de uma

    conscincia de coletividade que poderia induzir a uma maior participao poltica,

    resulta no somente no agravamento da condio da cidade enquanto territrio

    de conflitos representados em sua paisagem, mas tambm na produo de um

    ambiente que, por esses mesmos conflitos, excetua-se de uma capacidade

    motivao do prazer, do bem-estar e do conforto de seus habitantes.

    O fraquejo da ordem institucional em sua capacidade de administrar o urbano

    reflete, sobretudo, em sua ausncia na conduo e zelo pela aplicabilidade das

    normas bsicas regulamentadoras de uso, ocupao, postura e esttica da

    cidade, o que define o carter conflituoso da relao social que se debate neste

    ambiente. O carter subjetivo das concepes e interesses individuais sobre o

    ambiente encontra equilbrio na base objetiva representada pelas normas

    regulamentadoras da conduta social. O controle sobre a complexidade das

    relaes que caracterizam o cotidiano urbano dependem da coerncia dessa

    base de regulamentao com a realidade a que ela se refere, bem como do

    interesse do poder pblico sua aplicabilidade no processo de gesto da cidade.

  • 26

    ABRANS (1972) reconhece que nos pases menos desenvolvidos a deficincia

    no processo de gesto impe limitaes aos instrumentos normativos

    regulao do espao urbano:

    Nos pases menos desenvolvidos, a regulamentao virtualmente um

    fracasso da poltica urbana. Freqentemente as autoridades no tm

    possibilidade de fazer prevalecer as restries simplesmente por falta

    de pessoal de fiscalizao.

    Em termos de preservao ambiental e patrimonial tanto o tombamento como

    qualquer outro instituito adotado como medida na proteo de bens se

    enquadram nesse conceito. Vale ressaltar que nas timas trs dcadas o Brasil

    constituiu uma das mais bem conceituadas legislaes ambientais do mundo,

    servindo inclusive como modelo a outros pases. No entanto, a dificuldade em

    sua aplicabilidade em razo do comprometimento de interesses corporativos e,

    principalmente, pela deficincia no processo de gesto estatal quanto ao

    monitoramento e fiscalizao, reduz seu efeito sob um efetivo controle das aes

    sociais operadas no ambiente.

    No caso do tombamento, o potencial de sua eficincia enquanto instrumento

    adequado preservao neutralizado pela vigncia de uma concepo que o

    considera como medida autosuficiente e isolada na garantia da proteo

    patrimonial e no como parte integrante de um conjunto de aes e tomadas de

    deciso.

    Distante de uma suposta autonomia de ao, o tombamento consiste num

    elemento constituinte de um processo onde tambm se conjugam a educao

    patrimonial necessria conscientizao da sociedade sobre o valor do bem; os

    estmulos iniciativa da revitalizao e requalificao que proporcionem a

    valorizao ambiental do objeto tombado e seu entorno; adoo de medidas

    garantia do cumprimento de sua funo social; a concesso de incentivos pelo

    mrito da preservao; o estabelecimento de critrios de uso e conservao que

    permitam, conjuntamente, o resguardo de suas caractersticas originais e a

  • 27

    possibilidade de sua adequao s novas tecnologias e necessidades

    contemporneas e, por fim, a fiscalizao, no como simples prtica de

    policiamento estatal, mas antes como uma medida motivada por um sentimento

    de co-responsabilidade social pela garantia da preservao de um bem que, pelo

    tombamento, tornou-se patrimnio de uma coletividade.

    A poltica de tombamento apresenta um aspecto autoritrio na designao dos

    bens materiais dignos de preservao, uma vez que esta parte geralmente da

    iniciativa de uma elite formada por tcnicos, intelectuais e acadmicos. Por outro

    lado, como garantir o reconhecimento dos valores qualificados dos bens por

    parte de uma sociedade que no dispe de uma educao patrimonial

    necessria a este propsito? O tombamento, ao contrrio de ser um fim em si

    mesmo, carece ser considerado como um processo de preservao mais amplo

    que envolva o reconhecimento do bem, sua institucionalizao enquanto bem

    preservvel e medidas que efetivem sua preservao.

    O risco do tombamento, quando considerado como medida isolada,

    descontextualizada das aes complementares, consiste na possibilidade de

    promover um efeito contrrio preservao patrimonial. A realidade brasileira

    exclarecedora de que a simples constituio de uma lei dispondo sobre o rigor da

    preservao pode implicar no abandono de conjuntos inteiros por parte de seus

    proprietrios, induzindo a um processo de deteriorao e m conservao que

    pode ocasionar a perda irrecupervel do patrimnio. Neste sentido, o

    tombamento assume seu sentido figurativo de cair por terra.

    Cabe considerar que o estabelecimento do tombamento enquanto medida de

    proteo implica necessariamente em uma mudana no aspecto da autonomia

    do interesse privado sobre o bem. Mesmo que sejam preservados a propriedade

    jurdica e uso a seu proprietrio, a posse do objeto enquanto representao, e,

    por conseguinte, a especulao sobre sua preservao, passa a dispor de um

    interesse coletivo.

  • 28

    A restrio no carter de posse do bem torna-se inversamente prorporcional a

    ampliao da responsabilidade sobre um patrimnio que, pelo tombamento, foi

    designado como pertencente tanto a uma coletividade presente quanto a

    geraes futuras, s quais tornou-se representativo enquanto cultura material.

    Logo, a cooperao de uma gesto pblico-privada na manuteno desse

    patrimnio torna-se justificvel, inclusive em termos financeiros, mediante a

    concesso de benefcios tributrios que incentivem sua preservao.

    Ressalta-se, tambm, que a incoerncia dos institutos de regulamentao reduz

    a capacidade do poder pblico no controle e gesto urbana. Sem um sistema de

    regulamentao eficiente tanto em suas determinaes quanto em sua

    aplicabilidade o poder torna-se fraco e o pblico torna-se privado. Esta situao

    explicita no carter do uso do espao pblico em que a lgica da sua apropriao

    marcada por uma fraca atuao do arbtrio institucional ocasionando a

    produo desse espao em conformidade com critrios individuais e em

    observncia a interesses particulares.

    A poluio visual do comrcio, a falta de acessiblidade das caladas, a m

    conservao das fachadas, a privatizao das praas pelo comercio ambulante e

    as solues mal resolvidas na implantao das redes de concessionrias, so

    alguns exemplos de situaes encontradas num espao cuja construo,

    pautada no livre arbtrio do interesse privado, se coloca frente de uma

    preocupao coletiva.

    O distanciamento da ordem institucional no gerenciamento do territrio urbano

    impe reflexo na contribuio construo de uma estrutura scio-espacial que

    refora a condio da cidade enquanto espao de antagonismo social. A

    distino da cidade em subespaos de incluso e excluso ganha relevo na

    multiplicao dos condomnios privados e na ampliao da cidade informal que

    se expande pelas reas imprprias ocupao residencial.

  • 29

    Assim, os espaos confinados representados pelos condomnios fechados

    surgem da necessidade de garantir aos seus moradores um ambiente de

    excelncia em termos de segurana e qualidade ambiental, algo que dificilmente

    poderiam usufruir em outras reas da cidade. No contraponto dessa realidade as

    reas favelizadas surgem da necessidade bsica da moradia e representam a

    sntese de um ambiente destitudo de qualquer possibilidade de conferir

    dignidade aos seus residentes. Nas duas situaes, mesmo distintas quanto

    apropriao social e a qualidade ambiental, a caraterstica comum

    representada pela pouca presena do poder pblico em sua administrao

    normativa.

    No condomno privado a gesto oficial, praticamente ausente, substituda por

    uma administrao interna que dispe de instrumentos normativos prprios e que

    definem sua organizao enquanto unidade autnoma dentro da estrutura

    espacial urbana. Nas reas favelizadas e aglomerados sub-normais, esta mesma

    deficincia da presena do poder institucional amenizada pela atuao de uma

    rede de solidariedade representada por associaes comunitrias, movimentos

    sociais, igrejas e organizaes no-governamentais, as quais respondem por

    proporcionar condies mnimas de assistncia e acesso a cidania a essas

    comunidades.

    O condomnio e a favela constituem, assim, dois extremos que revelam uma

    clssica disparidade entre a ordem institucional e a ordem social na produo de

    um espao urbano que se efetiva em conflito e que depe contra a noo da

    cidade enquanto expresso de civilizao.

  • 30

    CAPTULO 3

    A CULTURA MATERIAL DAS CIDADES

    Sob o ponto de vista acadmico, cabe a YZIGI (2006) a definio mais atual

    sobre a noo de patrimnio ambiental urbano, adotada realizao desta

    pesquisa:

    Defino o patrimnio ambiental urbano como sendo constitudo de

    conjuntos arquitetnicos, espaos urbansticos, equipamentos pblicos e

    elementos naturais intra-urbanos, regulados por relaes sociais,

    econmicas e culturais, onde o conflito deve ser o menor possvel e a

    incluso social uma exigncia crescente. So reconhecidos e

    preservveis por valores potencialmente qualificados: pragmticos,

    cognitivos, estticos e afetivos, de preferncia sem tombamento.

    Geograficamente, esses conjuntos podem se apresentar sob a forma de

    manchas urbanas ou formaes lineares, sem limites perenes, mas

    sempre transcendendo as unidades de significado autnomo. O conceito

    se refere tanto a um conjunto existente como a um processo em

    construo: trata-se, pois, do ser e do devir (p. 228).

    Ao considerar os objetos urbanos em sua totalidade, o conceito de patrimnio

    ambiental urbano, promove uma ampliao espacial sobre os elementos dignos

    de preservao, superando a importncia devotada exclusivamente unidade,

    como na antiga noo de patrimnio histrico, passando a valorizar a

    preservao do conjunto (o objeto e seu entorno), conforme explicitado por BOSI

    (1986: 136):

    O conceito de Patrimnio Ambiental Urbano parte do rompimento com a

    viso monumentalista da preservao e prope um procedimento que

    incorpora ao monumento isolado no s o seu entorno imediato como

    ainda seu entorno paisagstico.

  • 31

    Ainda conforme esta autora, a noo de patrimnio ambiental urbano ao sugerir

    no apenas a preservao do monumento histrico, mas da prpria cidade e dos

    elementos culturais que a identificam, mostra a importncia em se considerar a

    preservao aliada ao planejamento como vis garantia da qualidade ambiental

    urbana, fundamental ao desenvolvimento local:

    Do conceito de Patrimnio Ambiental Urbano que conduz a uma relao

    entre preservao e mecanismos de organizao das cidades, como

    legislao e uso do solo, planos de desenvolvimento urbano, planos de

    circulao e transporte e demais instrumentos utilizados pelo setor

    pblico para orientar o desenvolvimento das cidades, pretende-se partir

    ento para uma experincia concreta (p. 136).

    Na compreenso da idia de patrimnio ambiental urbano fundamental ater-se,

    tambm, s relaes estabelecidas entre os objetos que o compem e a

    sociedade que o produz. Neste sentido faz-se necessrio considerar um dado

    primrio, o de que a cidade e tudo o que ela contm um artefato e como

    qualquer artefato produzida pelo homem. Evidencia-se, assim, no campo da

    cultura material, a indissociabilidade entre o artefato e a estrutura de relaes

    sociais que lhe deu origem, e serve de base a estas mesmas relaes que so

    importantes compreenso e ao reconhecimento do patrimnio ambiental

    urbano (MENESES, 2002).

    Neste enfoque, a questo do valor, que reconhecido pela sociedade nos bens

    culturais, constitui um dado que refora a noo da interao e inseparabilidade

    entre as coisas e a sociedade.

    Em todos os objetos possvel reconhecer um valor. No obstante, tratar-se de

    um atributo subjetivo no intrnseco sua prpria natureza, diferentemente do

    que ocorre com suas caractersticas fsico-qumicas como cor, textura, peso,

    forma, volume, etc. Assim, o valor constitui um dado externo ao objeto, algo que

    lhe atribudo, seja individualmente ou coletivamente em uma dada sociedade, a

    partir do significado representado pelo objeto no contexto social. Subentende-se

  • 32

    que o valor atribudo a um mesmo objeto pode variar em diferentes sociedades e,

    numa mesma sociedade, em funo de uma lgica espao-temporal.

    Na continuidade desse raciocnio, pode-se recorrer a YZIGI (2003: 59), quanto

    considerao da existncia de quatro categorias de valores que podem ser

    reconhecidos nos bens culturais:

    (...) qualquer bem cultural, inclusive o patrimnio ambiental urbano, []

    portador dos seguintes valores: a) cognitivos, quando associados

    possibilidade de conhecimento atravs de suas mais variadas formas,

    isto , informao veiculada pelo objeto; b) formais, com suas virtudes

    estticas, no naquele sentido universal, mas sua capacidade de

    potenciar a percepo sensorial; c) afetivos, os que incluem as

    relaes subjetivas do indivduo em sociedade e que embutem as cargas

    simblicas identitrias de pertencimento; d) pragmticos, os que se

    prestam ao uso altamente qualificado ou criao tecnolgica.

    A interao entre o bem cultural e a sociedade mediada pelo significado que

    aquele representa para esta, de forma que a noo de ambiente no patrimnio

    ambiental urbano no est relacionada apenas a seus atributos fsicos, mas,

    antes, s relaes estabelecidas entre a estrutura social e o lugar (YZIGI, op.

    Cit, 2003). Dessa forma, a importncia dos bens culturais enquanto meros

    artefatos s adquirem sentido pelo contedo social que os produziram e que os

    fazem teis pelos diferentes valores que representam essa sociedade, sem os

    quais constituiriam apenas coisas compostas de propriedades fsico-qumicas

    (MENESES, 1997). Uma idia tambm explicitada por ALEXANDER (1981: 166):

    Sabemos que o que conta em um edifcio ou em urna cidade no , unicamente,

    sua forma exterior, sua geometria fsica, mas os acontecimentos que ali tm

    lugar.

    Dessa forma, os bens culturais, marcas remanescentes do passado, atuam como

    testemunhas documentais a nos informar, por todos os seus detalhes e nos

    inferir, por exemplo, sobre antigas organizaes espaciais da cidade, ciclos

  • 33

    econmicos e seus perodos de auge e decadncia, o papel do antigo ncleo na

    escala regional, a estrutura social e a relao da prpria sociedade com a cidade.

    Enfim, uma nica e primeira vista despercebida casa residencial do final do

    sculo XIX, por seu estilo e tcnica de construo, forma, materiais empregados,

    disposio no lote ou em relao rua, guarda uma grande riqueza de contedo

    sobre a realidade urbana que lhe efetivou enquanto materialidade, subsdio

    essencial para se estabelecer, de forma mais criteriosa e racional, as aes do

    presente e as perspectivas do futuro. Assim, se a casa guarda seu valor

    enquanto registro de um tempo, obviamente, maior importncia tem um conjunto

    de bens culturais presente em uma cidade, j que fornece uma dimenso bem

    mais ampla de seu patrimnio ambiental urbano.

    Da a importncia da preservao das cidades consideradas histricas

    transcender o mbito local, passando a ser objeto de interesse regional e

    nacional. A esse respeito, no Brasil, em vista da ordem destrutiva imposta

    cultura material, arrolada ao longo da histria, sobretudo no perodo mais

    recente, resta-nos poucos exemplos de cidades com essa caracterstica, entre as

    quais podemos destacar Ouro Preto, Mariana e Diamantina (MG), Parati (RJ) e

    Gois Velho (GO). Alm dessas, subsistem outras que em seus bairros ou reas

    centrais ainda encerram conjuntos arquitetnicos capazes de conferir uma

    paisagem histrica de importante carga informativa, a exemplo do que ocorre

    tanto nas grandes capitais como So Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, ou

    mesmo em centros menores, como Olinda (PE), Paranagu (PR), Sobral (CE) e

    Corumb (MS), os quais tm a importncia de sua preservao reconhecida

    oficialmente pelo tombamento sendo integrados ao patrimnio histrico nacional.

    A importncia da cultura material das cidades se acentua, ainda mais, ao somar

    a seu aspecto cognitivo sua condio de referencial da memria social (fator

    primordial e imprescindvel na permanncia da autenticidade urbana ao longo de

    sua histria) a qual, por sua vez, constitui suporte fundamental da identidade,

  • 34

    mecanismo de reteno de informao, conhecimento, experincias do passado

    (MENESES, op cit. 1997).

    Neste sentido, ao ser considerado suporte de memria e retentor de informao,

    a cultura material urbana torna possvel assegurar o sentimento de pertena dos

    habitantes da cidade, algo que os identifica com o lugar. Ou seja, o lugar se torna

    uma extenso de sua prpria existncia, a partir do vinculo afetivo que

    estabelecido entre a cidade e os que nela habitam, uma situao que assegura a

    permanncia dos artefatos urbanos e a continuidade da autenticidade do lugar.

    Quanto a isso, FONTES (et al. 1986: 52) afirma que:

    Qualquer parte do ambiente urbano, seja um quarteiro, uma praa, uma

    rua, uma esquina ou uma edificao, possui um significado muito mais

    representativo do que seus respectivos valores materiais. So elementos

    que simbolizam a relao entre o lugar e seus habitantes, fatores

    importantes no desenvolvimento psicolgico do homem.

    Os imveis remanescentes de outras pocas constituem a histria inscrita no

    urbano, tornando marca dos acontecimentos passados, que coe