tese a carta de caminha e o conceito de literatura na historiografia literaria brasileira
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FABIO WILLIAM LOPES BRAGA
A CARTA DE CAMINHA E O CONCEITO DE LITERATURA NA
HISTORIOGRAFIA LITERRIA BRASILEIRA
ASSIS
2009
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FABIO WILLIAM LOPES BRAGA
A CARTA DE CAMINHA E O CONCEITO DE LITERATURA NA
HISTORIOGRAFIA LITERRIA BRASILEIRA
Dissertao apresentada Faculdade de Cinciase Letras de Assis UNESP UniversidadeEstadual Paulista para a obteno do ttulo deMestre em Letras (rea de Conhecimento:
Literatura e Vida Social).Orientador: Profa. Dra.Slvia Maria Azevedo
ASSIS
2009
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Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)Biblioteca da F.C.L. Assis UNESP
Braga, Fabio William LopesB813c A Carta de Caminha e o conceito de literatura na historiogra-
fia literria brasileira / Fabio William Lopes Braga. Assis, 2009105 f.
Dissertao de Mestrado Faculdade de Cincias e Letrasde Assis Universidade Estadual Paulista.Orientador: Slvia Maria Azevedo
1. Teoria literria. 2. Literatura brasileira Histria e cri-tica. 3. Carta de Pero Vaz de Caminha I. Ttulo.
CDD 801
869.909
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A Deus, em primeiro lugar, cujos ensinamentos tornaram-me o
homem que hoje sou; minha mezinha, a quem sou grato pelo
amor, cuidado, carinho e incentivo nos momentos difceis.
A Slvia Maria Azevedo, professora doutora que me orientou neste
trabalho com muita pacincia. Sem o seu apoio, esta pesquisa no
teria sido concretizada.
Aos professores doutores Marcio Roberto Pereira, Alvaro Santos
Simes Junior e Ana Paula Franco Nbile Brandileone, cujas
orientaes, no Exame de Qualificao e na Defesa, foram-me muitoteis, j que me auxiliaram no reparo de falhas presentes no texto
inicial e me abriram os olhos a questes s quais ainda no havia
atentado.
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Diferentemente do acontecimento poltico, o literrio nopossui consequncias imperiosas, que seguem existindo por siss e das quais nenhuma gerao posterior poder maisescapar. Ele s logra seguir produzindo seu efeito na medidaem que sua recepo se estenda pelas geraes futuras ou seja
por elas retomada na medida, pois, em que haja leitores quenovamente se apropriem da obra passada, ou autores quedesejem imit-la, sobrepuj-la ou refut-la. A literatura comoacontecimento cumpre-se primordialmente no horizonte deexpectativa dos leitores, crticos e autores, seus companheiros
e psteros, ao experienciar a obra.
Hans Robert Jauss
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BRAGA, Fbio William Lopes. A CARTA DE CAMINHA E O CONCEITO DE
LITERATURA NA HISTORIOGRAFIA LITERRIA BRASILEIRA". ASSIS: 2009.
Faculdade de Cincias e Letras, campus de Assis UNESP Universidade Estadual
Paulista Jlio de Mesquita Filho.
RESUMO
Ao longo da histria, muitos estudiosos tentaram definir o que distinguiria a literatura
das demais manifestaes culturais de uma sociedade. A distino entre fico e
realidade, apesar de vlida enquanto tentativa de caracterizar os textos literrios, no
deixa de ser problemtica, pois que as histrias em quadrinhos so fico, mas no soconsideradas como literatura; os autores do Gnesis achavam que escreviam a verdade
histrica, mas alguns o lem hoje como fato e outros, como fico. Se no existe um
texto que seja de todo ficcional ou de todo realidade, h ainda a considerar que qualquer
texto escrito pode ser lido subjetivamente. Tendo em vista as mudanas do conceito de
literatura, o objetivo desta pesquisa analisar algumas histrias da literatura brasileira,
bem como as leituras que elas fazem da Carta de Pero Vaz de Caminha. Ainda hoje h
controvrsias no tocante classificao da obra, considerada literatura por alguns
historiadores da literatura brasileira, enquanto outros a remetem para a histria. A partir
do estudo das concepes literrias presentes na historiografia literria brasileira, a
anlise das leituras de Slvio Romero, Jos Verssimo, Araripe Jnior, Afrnio
Coutinho, Antonio Candido, Alfredo Bosi e Luiz Roncari, a respeito da Carta de
Caminha, permitir a apreenso da sensvel modificao do conceito de literatura
brasileira ocorrida ao longo do tempo.
PALAVRAS-CHAVE: Terry Eagleton; Carta de Caminha; Historiografia Literria
Brasileira.
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BRAGA, Fbio William Lopes. THE CAMINHASLETTER AND THE CONCEPT
OF LITERATURE IN THE BRAZILIAN LITERARY HISTORIOGRAPHY". ASSIS:
2009. Faculdade de Cincias e Letras, campus de Assis UNESP Universidade
Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho.
ABSTRACT
Over the history, many researchers tried to define what would distinguish the literature
from the other cultural manifestations of the society. The distinction among fiction and
reality, despite to be valid while attempt of characterization of literary works, is
problematic, because comic strips are fiction, but they are not considered as literature;
Genesis authors thought they wrote the true story, but today some people read it as a
fact and others as fiction. If there is not a fictional or true text, any writing can be read
subjectively. Considering changes in the literatures concept, the aim of this work is to
analyze the brazilian literary historiography and its reading about the Caminhas Letter.
At present there is still different way of thinking about the classification of the work,
considered literature by some historians of the brazilian literature, while others analyze
it as an historical document. From study of the concept of literature present in the
brazilian literary historiography, the analysis of the readings of Slvio Romero, Jos
Verssimo, Araripe Jnior, Afrnio Coutinho, Antonio Candido, Alfredo Bosi and Luiz
Roncari, about the Caminhas Letter, will let to understand the changes of the brazilian
literatures concept over the time.
KEYWORDS: Terry Eagleton; CaminhasLetter; Brazilian Literary Historiography.
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SUMRIO
INTRODUO.......................................................................... p.08
CAPTULO 1:
A Carta de Caminha: contexto e recepo................................ p.15
1.1 - Consideraes Histricas...................................................... p.15
1.2 - Consideraes Iniciais.......................................................... p.16
1.3 - Condies de Produo......................................................... p.19
1.3.1 - Pero Vaz de Caminha......................................................... p.19
1.3.2 - Aspectos Gerais................................................................. p.201.4 - Condies de Recepo....................................................... p.25
1.5 - Discursos Explcitos ........................................................... p.27
1.6 - Discursos Implcitos ........................................................... p.31
1.7 - A Carta nas imprensas europia e brasileira....................... p.34
CAPTULO 2:
A Carta na viso da Trindade Crtica do sculo XIX................. p.38
2.1 - Leitura de Slvio Romero........................................................ p.382.2 - Leitura de Jos Verssimo....................................................... p.45
2.3 - Leitura de Araripe Jnior........................................................ p.51
CAPTULO 3:
A Carta na historiografia literria brasileira do sculo XX...... p.59
3.1 Leitura de Afrnio Coutinho................................................. p.59
3.2 - Leitura de Antonio Candido.................................................. p.663.3 - Leitura de Alfredo Bosi......................................................... p.73
3.4 - Leitura de Luiz Roncari......................................................... p.81
CONCLUSO............................................................................. p.90
BIBLIOGRAFIA......................................................................... p.98
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INTRODUO
Muitas foram no decorrer da histria as tentativas de se definir o que literatura.
Ainda hoje, no h consenso entre os tericos em relao a quais so as caractersticas
bsicas que definem um texto como sendo literrio. Isso ocorre por um motivo muito
simples:
[...] o que belo, belo para quem? O que artstico, artstico para quem?O que potico, ou literrio, assim para quem? E quando? E onde? E comque bases ou princpios? A quem interessa que assim sejam aceitos (ourejeitados)? Em que contexto? Tudo isso gera respostas plurais e incertezas.(WANDERLEY, 1992, p. 260).
A distino entre fico e realidade um dos princpios utilizados a fim de
separar os textos literrios, que seriam os ficcionais, criados, inventados, dos demais,
literalmente verdicos. Apesar de vlida, essa definio no sustentvel, pois que as
histrias em quadrinhos so textos ficcionais, mas no so consideradas como
literatura; os autores do Gnesis achavam que escreviam a verdade histrica, mas
alguns o lem hoje como fato e outros como fico; e Newman achava que suas
meditaes teolgicas eram verdades, enquanto muitos leitores as consideram hoje
como literatura.
De modo geral, no existe um texto que seja de todo ficcional ou de todo real:
no se pode dizer, por exemplo, que os acontecimentos relatados nos livros de histria
so inteiramente verdicos, embora a carga de veracidade nestas obras seja muito maior.
Ao narrar os fatos, entretanto, historiadores tambm utilizam criatividade e imaginao.
No ingls de fins do sc. XVI e princpios do sc. XVII, a palavra novelfoi usada, ao que parece, tanto para os acontecimentos reais quanto fictcios,
sendo que at mesmo as notcias de jornal dificilmente poderiam serconsideradas factuais. Os romances e as notcias no eram claramentefactuais nem claramente fictcios: a distino que fazemos entre essascategorias simplesmente no era aplicada [...]. (EAGLETON, 1983, p.2).
Por isso, h ainda a considerar que qualquer texto escrito pode ser lido
subjetivamente, poeticamente (no caso da literatura, a linguagem empregada de forma
peculiar); um texto, ainda que concebido com propsitos literrios, pode ser includo ou
no no rol da literatura.
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De acordo com os formalistas russos, que surgiram na Rssia antes da
revoluo bolchevista de 1917, a literatura constituda por uma organizao particular
da linguagem. Ela transforma a linguagem comum, afastando-se da fala cotidiana.
Segundo essa idia, a linguagem literria considerada um conjunto de desvios da
norma. Entretanto, para se conhecer os desvios, necessrio que se identifique a norma.
Se qualquer linguagem em uso apresenta uma grande variedade de discursos, o que
norma para alguns poder ser desvio para outros. Deste modo, tal definio no
procede, pois [...] usar ginnel (beco) em lugar de alleygnay (travessa) pode ser
potico em Brighton, mas constitui linguagem comum em Barnsley [...]
(EAGLETON, 1983, p.5).
Em relao natureza de uma obra, por mais que o autor a construa com a
inteno de que ela seja lida como literatura, ela pode ou no alcanar tal condio. Por
outro lado, um texto pode ser fabricado com finalidades vrias, que no a literria, e
passar a ser estudada nas instituies acadmicas como literatura:
Um segmento de texto pode comear sua existncia como histria oufilosofia, e depois passar a ser classificado como literatura; ou podecomear como literatura e passar a ser valorizado por seu significadoarqueolgico. (EAGLETON, 1983, p. 9).
Como exemplo disso, pode-se apontar, na Literatura Brasileira, dois textos
concebidos com inteno no-literria, mas que lograram decolar de seu estado inicial
para inserirem-se no mbito literrio e artstico: a obra Os Sertes, de Euclides da
Cunha, e A Carta de Pero Vaz de Caminha - aquela, de cunho jornalstico e
historiogrfico, que, no obstante sua inteno primeira, obteve de um Araripe Jnior e
de um Slvio Romero tratamento literrio especial; esta, que, muito embora inserida na
tradio das crnicas de viagem e analisada at meados do sculo XX pelos grandeshistoriadores e crticos literrios como documento de valor histrico, vem recebendo, a
partir da segunda metade do sculo passado, tratamento literrio.
fcil perceber que delimitar um conjunto constante de elementos, os quais
caracterizariam a literatura, praticamente impossvel, j que, segundo as palavras de
Wanderley, [...] uma essncia do literrio no existe e qualquer texto pode,
conforme a leitura que dele se faa, conforme o contexto, contrato e uso que o cerquem,
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ser transferido de um lugar exterior para o lugar de honra do literrio [...] (1992, p.
256).
Nos cnones de diversos pases, h obras literrias que, por vezes, noapresentam muitos elementos em comum. (A literatura inglesa abrange tanto
Shakespeare quanto os ensaios de Francis Bacon, os sermes de John Donne e a
autobiografia espiritual de Bunyan). Desse modo, muito mais vivel se pensar na
literatura menos como algo que possui qualidades inerentes, do que como as maneiras
pelas quais o ser humano se relaciona com ela, pois o ato de leitura que faz com que
[...] o espao vazio se transforme em uma obra literria, produzida depois de ter sido
transformada em algo dotado de um significado pela apropriao de um leitor (REIS,
1992, p. 68).
A questo da leitura remete diretamente ao cnon literrio. H no muito tempo,
s obras que faziam parte da tradio literria de um pas eram atribudas certas
qualidades intrnsecas, certos valores estticos que lhes davam o direito de figurarem no
cnon literrio sagrado; sagrado no sentido literal da expresso, uma vez que o termo
kanon, significando no grego uma espcie de vara de medir, foi introduzida nas
lnguas romnicas com o sentido de norma, o mesmo utilizado por telogos nos
primeiros sculos do cristianismo com o intuito de selecionar os autores e textos quedeveriam compor a Bblia Sagrada. O critrio utilizado na constituio do cnon bblico
passou a ser adotado tambm na esfera da literatura, cuja tradio abriu espao a obras
que se transformaram em verdadeiros clssicos da humanidade.
Hoje, para que se tenha uma compreenso da literatura em toda a sua
completude preciso ter em vista que [...] no se pode descurar do fato de que, numa
dada circunstncia histrica, indivduos dotados de poder atriburam o estatuto de
literrio quele texto (e no a outros), canonizando-o (JOBIM, 1992, p. 69).
No entanto, a escolha das obras no feita ao acaso: o processo de canonizao
de obras literrias depende da concepo de literatura dominante em determinada
poca, que faz com que alguns autores sejam consagrados ou preteridos. Noutros
termos, [...] a noo de valor e a atribuio de sentido no so empresas separveis do
contexto cultural e poltico em que se produzem, no podendo [...] ser desconectadas de
um quadro histrico (REIS, 1992, p. 73).
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No possvel falar em cnone e no abordar questes concernentes
Histria da Literatura, haja vista o fato de que esta responsvel direta pela
perpetuao ou no daquele. Se no vivel afirmar que a tarefa do historiador consiste
em acompanhar a trajetria do objeto literrio ao longo do tempo - uma vez que se cai
na armadilha de se pensar que existe um objeto literrio, cujo valor permaneceu
imutvel desde sua criao at os dias de hoje; se [...] a prpria Histria da Literatura
nos mostra que houve sucessivas e diferentes representaes daquilo a que chamamos
literatura (JOBIM, 1992, p. 127); se [...] a nossa civilizao ocidental concebeu de
modos diferentes o que denominou literatura: dependendo do momento, do ponto de
vista, do lugar a partir do qual se fale, ela pode no ser a mesma coisa (JOBIM, 1992,
p. 127); se o universo de autores e obras consagrados como clssicos pelo cnone queherdamos formulado a partir da concepo literria do historiador ou crtico, a
Histria Literria deve ser analisada a partir de uma perspectiva histrica que leve em
considerao o seguinte fato:
[...] o processo de constituio da tradio no aleatrio;necessariamente adota determinados pontos de vista, vises de mundo enormas, em detrimento de outras. Trata-se de selecionar ou recusar, incluirou excluir, lembrar ou esquecer, valorizar ou desvalorizar, aceitar ou
rejeitar, condenar ou reabilitar [...]. (JOBIM, 1992, p. 144).
Tendo em vista a diversidade de obras que so consideradas literrias e as
mudanas de concepo literria ao longo do tempo, intuito desta pesquisa analisar o
conceito de literatura na historiografia literria brasileira e, a partir disso, explorar
algumas leituras da Carta de Caminha luz do conceito de literatura de Eagleton, o
qual prope que a literatura seja vista como uma escrita altamente valorizada, o que
significa dizer que uma obra considerada literria em uma determinada poca pode no
o ser em outra, pois os juzos de valor presentes em uma sociedade entenda-se isso,
a grosso modo, como sendo as diferentes maneiras de se enxergar e analisar textos
escritos podem ser substitudos por outros.
Com a idia de que a literatura um tipo de escrita valorizado em determinado
momento, o conceito literrio passa a ser histrico. Assim, no haver obras cujo
valor termo considerado transitivo por Eagleton ser sempre imutvel: Shakespeare
considerado hoje um grande escritor, e suas obras so valiosas; entretanto, no futuro,
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tais textos podero no ter importncia alguma: tudo depender dos valores atribudos
literatura pelas pessoas dessa poca:
[...] no s impossvel ler uma obra presente como os leitores futuros ofaro, como tambm no se pode prever com exatido sequer se esta obraser considerada digna de ser lida, aos olhos deles. Como saber em quequadro de referncia ela se encaixar? Como saber o ponto de vista com queos crticos e historiadores julgaro as obras contemporneas, passadas efuturas? Como conhecer as significaes e valores que nortearo ojulgamento da posteridade?. (JOBIM, 1992, p. 134).
Para se entender o motivo da mudana de valores literrios ao longo da histria,
basta observar que cada pessoa, baseada nos juzos de valor de sua respectiva poca, l
uma obra literria de modo distinto. Uma vez que cada sociedade, formada por
indivduos que so influenciados por ela, apresenta valores especficos do ponto de
vista literrio, certos elementos de um texto podem ser valorizados em um perodo, mas
desvalorizados em outro: em cada poca, os autores consagrados so lidos com
interesses e preocupaes prprios.
[...] Nenhuma obra e nenhuma avaliao atual dela, pode ser simplesmenteestendida a novos grupos de pessoas sem que, nesse processo, soframodificaes, talvez quase imperceptveis. E essa uma das razes pelasquais o ato de se classificar algo como literatura seja extremamente instvel.(EAGLETON, 1983, p.13).
Por fim, vlido considerar que as opinies dos crticos quanto a determinados
textos esto embasadas em certos modos de ver e valorizar, os quais se vinculam s
ideologias presentes na sociedade. Como exemplo disso, pode-se apontar a leitura da
Carta de Caminha feita por algumas histrias da literatura brasileira dos sculos XIX e
XX.
No sculo XIX, Slvio Romero dedica crnica apenas algumas linhas, ao passo
que Jos Verssimo e Araripe Jnior expressam indiretamente o seu ponto de vistasobre a condio literria dela. No sculo XX, Luiz Roncari, ao analis-la a partir de
uma tica literria mais abrangente, reserva Carta algumas pginas de sua histria
literria, conferindo a ela, portanto, grande importncia junto s demais obras literrias
brasileiras, enquanto Antnio Candido e Alfredo Bosi no fazem uma anlise
aprofundada dela, limitando-se apenas a dizer que o documento deve ser classificado
como literatura de informao.
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Lida como crnica histrica, literatura de viagem (Bosi), a Carta mereceu
pouco espao nas histrias da literatura brasileira, muito embora tenha servido de
inspirao ao romntico Jos de Alencar e aos modernistas Mrio de Andrade e Oswald
de Andrade, como reao ao processo de europeizao do Brasil. Mais recentemente, as
leituras modernas a respeito da obra, com tratamento de texto literrio, contemplam no
apenas o conceito de literatura, tal como concebido na modernidade, como refletem o
clima de imploso das fronteiras dos gneros - a exemplo da crnica, em suas vrias
combinaes, dentre as quais, a crnica-carta de Caminha (1450 - 15/12/1500)
ratificando a tese de que [...] em cada perodo histrico podemos observar uma certa
ordem, a partir da qual se estabelecem, com maior ou menor rigidez, as fronteiras do
literrio (JOBIM, 1992, p. 129).
Justifica-se assim a importncia de recuperar as leituras da Carta de Caminha a
partir das histrias da literatura brasileira de Jos Verssimo (08/04/1857 - 2/12/1916),
Slvio Romero (21/04/1851 18/07/1914), Araripe Jnior (27/06/1848 - 29/10/1911),
Antonio Candido, Afrnio Coutinho, Alfredo Bosi e Luz Roncari (ver bibliografia),
numa pesquisa em que se promove a inter-relao teoria literria e histria literria: a
partir da anlise das convergncias e divergncias existentes entre as obras selecionadas
para este trabalho, a dimenso histrica do conceito de literatura de Eagleton ser
demonstrada nas leituras dos crticos a respeito da Carta.
Antes de tratar especificamente das leituras crticas da crnica, necessrio
resgatar o panorama cultural em que se deu a produo no s deste documento, mas
tambm de outros que se inserem na tradio das narrativas de viagem. Alm disso,
com o propsito primeiro de adentrar no texto de Pero Vaz de Caminha, para que, em
seguida, o leitor possa pisar no terreno da crtica literria com mais segurana, que se
prope, no primeiro captulo desta dissertao, um breve estudo acerca das condies
de produo e recepo da obra, alm dos discursos que se fazem presentes nela, comvistas a situar o leitor no tempo e no espao.
Com a finalidade de melhor fundamentar a argumentao, o relato de Caminha -
cuja edio utilizada foi a de Jaime Corteso (1943), que oferece, alm de uma
transcrio modernizada, um belssimo estudo acerca do documento - comparado e
contrastado com os principais documentos produzidos no perodo em questo: os
Dirios de Cristvo Colombo (1451(?) 1506), as Cartas de Amrico Vespcio
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(1451-1512), a Carta do Mestre Joo Faras e a Relao do Piloto Annimo. claro
que no h nada de novo nas idias expostas, sendo a anlise apenas uma reunio de
pensamentos dos principais crticos e estudiosos da rea.
Tendo em vista essa contextualizao geral, o segundo captulo explora as
leituras da Carta feitas pela trindade crtica do sculo XIX - composta por Slvio
Romero, Jos Verssimo e Araripe Jnior - a partir de uma anlise das concepes
literrias explicitadas no perodo de formao e de amadurecimento desses
historiadores.
O terceiro captulo abarca as leituras de Antonio Candido, Afrnio Coutinho,
Alfredo Bosi e Luiz Roncari, que fazem parte do segundo momento de produo de
histrias literrias no Brasil, em que os elementos internos da obra passam a fazer parte
do rol de preocupaes do historiador: no excluindo os fatores extrnsecos da obra
(contexto histrico-poltico-social; questes biogrficas), mas tendo em vista uma nova
forma de encarar a literatura, os novos ideais possibilitam o estudo integrado de fatores
intrnsecos e extrnsecos, cuja tnica principal a independncia da literatura enquanto
manifestao cultural autnoma. Como leituras subsidirias, destacamos a de Ronald de
Carvalho, Antonio Soares Amora e Jos Aderaldo Castello, cujos conceitos de literatura
aparecem diludos ao longo do captulo.
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CAPTULO 1
A Carta de Caminha: contexto e recepo
1.1 - Consideraes Histricas
Com a queda de Constantinopla em 1453, os turcos otomanos passaram a
dominar toda a regio do Mediterrneo, fechando o caminho do mar vermelho sembarcaes das naes crists da Europa. Tal fato ocasionou o encarecimento extremo
das especiarias bastante consumidas pelos europeus. Assim sendo, necessrio era o
descobrimento de uma nova rota para as ndias. dianteira dos empreendimentos
martimos, Portugal e Espanha (os dois povos ibricos) os realizaram seguindo turnos
diferentes: o primeiro dirigiu-se para o leste, contornando a costa da frica, enquanto
este se lanou ao mar pelo lado contrrio, tendo como capito Cristvo Colombo, que,
uma vez rejeitado pela coroa de Portugal, buscou o apoio da Espanha. Com uma frota
de trs navios, o genovs, partindo de Palos a trs de agosto de 1492, descobriu o novomundo no dia doze de outubro do mesmo ano.
No que diz respeito a Portugal, num perodo de setenta anos os portugueses
multiplicaram expedies martimas em direo ao Oriente. Com o aumento gradativo
dos conhecimentos nuticos do imprio luso, D. Manuel organiza uma frota destinada
s ndias, cujo comando entregue a Vasco da Gama, que, aportando em Calecut dez
meses depois da partida em Lisboa, retorna a Portugal com suas naus carregadas de
especiarias.
A fim de assegurar o domnio portugus na regio, D.Manuel resolve enviar
para l uma forte esquadra - que, diga-se de passagem, a maior at ento organizada
pelo pas - em cujo comando coloca Pedro Alonso de Goveia, fidalgo que, pouco
depois, adota o nome Pedro lvares Cabral. Trata-se, segundo o historiador Baslio
de Magalhes, de uma frota composta de [...] 10 naus de trs mastros (com bocas de
fogo, roteiro e astrolbio), 2 caravelas e 1 barca de mantimentos (1942, p.10).
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digno de nota o cuidado com o planejamento dessa viagem, cujo objetivo
era a fundao de feitorias que pudessem assegurar o monoplio adquirido. Veja-se
o que dizem os estudiosos J.F de Almeida Prado e Maria Beatriz Nizza da Silva,
acerca dessa questo:
[...] sucediam-se junto ao cais da Ribeira reunies de veteranos do oceano,tcnicos, pilotos vrios ou astrlogos, em que at informantes mercadores,como o judeu Gaspar, tomavam parte. Pormenor algum era esquecido nointuito de garantir o mximo de segurana projetada viagem. No menoscuidadosa foi a composio dos seus principais elementos, aos quais seriamconfiados a maior e melhor esquadra at ento reunida no Tejo para fins deatingir riquezas alm oceano. (1965, p.29).
Apresentando uma populao de mil e quinhentos homens especializados nas
mais diversas reas, a esquadra parte de Lisboa no dia 9 de maro de 1500. Cabral
afasta-se da costa da frica ou para evitar as calmarias do mar da guin, ou para
reconhecer, tendo em vista instrues secretas do Rei, a faixa entregue a Portugal pelo
Tratado de Tordesilhas. De qualquer forma, o fato que Cabral logo avista sinais de
terra que se acentuam no dia 21 de abril. Na tarde seguinte, surge um monte ao qual foi
posto o nome de Monte-Pascoal. Uma vez efetuada a posse da regio, Cabral
prossegue em sua jornada s ndias, enviando de volta a Lisboa a nau dos mantimentos
com o objetivo de comunicar as novas do descobrimento contidas em trs cartas, a
saber: a de Pero Vaz de Caminha; a do Mestre Joo Faras e a do Piloto Annimo.
1.2 - Consideraes Iniciais
Na poca das grandes navegaes, era comum viajantes relatarem os feitos de
suas viagens por intermdio de cartas. Da pena de Pero Vaz de Caminha, amigo do rei
de Portugal, D. Manuel I, que o indicou para que viajasse na frota de Pedro lvares
Cabral, nasceu o principal documento que se refere ao descobrimento do Brasil: a
Carta de Caminha.
Sendo o resultado das anotaes feitas por ele ao longo de 54 dias, essa obra
pode ser considerada a certido de nascimento do Brasil. O escrivo iniciou a redao
da Carta no dia 9 de maro de 1500, momento em que a enorme esquadra de Cabral,
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composta de 13 navios, partiu do porto do Restelo, em Lisboa. No dia 2 de maio do
mesmo ano, j finalizada, ela foi enviada a Portugal juntamente com vrios outros
relatos remetidos ao rei.
Ao contrrio de um relato annimo feito tambm durante essa viagem, a obra de
Caminha nunca foi divulgada, talvez por seu tom pessoal. Ela ficou esquecida no
arquivo da administrao rgia da Torre do Tombo por dois sculos e meio, vindo a ser
publicada pela primeira vez somente em 1817 na Corografia Braslica do padre Aires
do Casal. Visto que se trata de um documento histrico, poucos historiadores e crticos
literrios lhe deram ateno em suas obras: at hoje, apenas alguns estudiosos se
debruaram sobre ela com a inteno de verificar seu valor literrio.
interessante notar que as terras e os povos brasileiros s entram no universo
da literatura por ocasio da chegada dos primeiros portugueses. Ou seja, o relato de
Caminha, na viso do crtico literrio Luis Roncari, [...] foi a primeira tentativa de
produzir pela palavra escrita uma imagem e um juzo dos homens e da regio (2002, p.
20). Porm, no se pode esquecer de que tudo visto pelos olhos do estrangeiro, que
est diante de uma paisagem tropical to incomum para ele. No difcil imaginar a
surpresa dos portugueses diante de seres to diferentes dos europeus, que faz com que
degredados sejam enviados s aldeias indgenas a fim de que tomem conhecimento domodo de vida dos nativos e do convvio que estes tm com a natureza.
O contraste cultural claramente visvel na obra: de um lado esto os
portugueses, homens civilizados e cristos; de outro, esto os indgenas, habitantes de
uma terra dotada de uma natureza exuberante e rica que os acolhe. Para aqueles, o que
tinha valor era o ouro e a mo-de-obra indgena, enquanto que para estes, o que os fazia
satisfeitos era uma conta de colar ou um guizo, ou seja, a troca de objetos que poderia
ser feita com os portugueses. Tal tenso, resultante do confronto entre duas culturas
completamente diferentes um dos aspectos mais importantes da Carta. O seguinte
trecho simboliza de maneira profunda tais diferenas:
Enquanto cortvamos lenha, faziam dois carpinteiros uma grande Cruz,dum pau que ontem para isso se cortou. Muitos deles vinham ali estar comos carpinteiros. E creio que o faziam mais por verem a ferramenta de ferrocom que faziam do que por verem a Cruz [...]. (CAMINHA apudCORTESO, 1943, p. 227).
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A partir de uma leitura atenta, pode-se perceber que Caminha mescla
descries dos aspectos fsicos e culturais dos primeiros habitantes do Brasil com suas
impresses acerca da nova terra. A harmonia existente entre o homem e a natureza
um fator preponderante na obra. Isso se revela na forte aproximao que Caminha
estabelece entre ambos: parece que um faz parte do outro e os elementos da natureza
so intrnsecos constituio dos ndios.
So bastante interessantes as descries do espao nativo propriamente dito. Ao
longo do relato, Caminha d maior nfase aos ndios; entretanto, encontram-se
belssimas descries de animais, plantas e rios, os quais so contabilizados,
quantificados. Toda essa preocupao com os nmeros compreensvel pelo fato de
que o escritor, estando numa posio de submisso ao rei, devia inform-lo de maneira
precisa dos recursos e homens encontrados na nova terra. Apesar disso, o leitor no
deixa de se sensibilizar diante das imagens apresentadas na Carta, visto que, segundo
Roncari, no obstante a grande quantidade de dados numricos que o documento
apresenta, Caminha vai alm do simples registro frio dos fatos:
[...] os focos centrais da Carta estiveram voltados para as terras e oshomens, tentando capt-los e criar deles uma imagem cujo poder evocativo(somos capazes de nos emocionar ainda tentando imaginar aquelas terras eaqueles homens a partir da leitura da Carta) d forma de seu registro
tambm um valor literrio. (2002, p. 28).
Muito embora os trs documentos mencionados a crnica de Caminha, a
Carta de Mestre Joo Faras e o Relato do Piloto Annimo descrevam a viagem de
descoberta do Brasil, cada um deles, segundo o pensamento do historiador Paulo
Roberto Pereira, focou seu olhar num determinado aspecto, o que resultou na produo
de trs cartas que se complementam mutuamente. No que diz respeito ao curto relato de
Mestre Joo Faras cujas primeiras linhas fornecem a informao de que o escritor era
bacharel em artes e medicina, formao que lhe permitiu exercer a medicina associada
astrologia - digno de nota o fato de que ele apresenta somente dados referentes s
estrelas do cu brasileiro, ao passo que o de Caminha se reporta aos homens e
natureza do Brasil:
[...] estas duas pginas, dirigidas a El- Rei D. Manuel I, permitem situarMestre Joo como o narrador dos cus e Pero Vaz como o etngrafo denovas terras. Essa juno entre o olhar terreno de Caminha sobre a VeraCruz nomeada por Cabral e o perscrutar do cu austral por Mestre Joo, queo descreveu e denominou de Cruz (Cruzeiro do Sul), se completam
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harmoniosamente, oferecendo a primeira viso escrita da terra e do cudo Brasil, ao mesmo tempo una e mltipla. (PEREIRA, 1999, p. 72).
Ao contrrio da Carta de Mestre Joo Faras, a do Piloto Annimo em tudo
ratifica as informaes apresentadas por Pero Vaz, ainda que de suas pginas noemane a argcia e sensibilidade deste:
A Relao do Piloto Annimo, apesar de na parte referente ao Brasil selimitar a informaes sem os grandes detalhes que encontramos na Carta deCaminha, um precioso documento. Pode-se observar que seus comentriosem quase tudo confirmam o texto caminhiano, embora sem odesenvolvimento deste. O autor, pelas notcias que oferece, no eracertamente um piloto. Pois, se bem repararmos nesta narrativa, s existemdois ou trs termos tcnicos de Nutica e praticamente nenhum cientfico,Escrito sob a forma de um dirio, quem o redigiu era certamente umescrivo como Pero Vaz de Caminha, pois, no final do relato [...] arrola ospesos, as moedas e os lugares de onde vm as especiarias. (PEREIRA,1999, p. 82).
1.3 - Condies de Produo
1.3.1 - Pero Vaz de Caminha
invivel pensar nas condies de produo de determinado texto, sem refletir
nas qualificaes prprias daquele que o escreveu. Em virtude disso, vlido ressaltar
alguns aspectos referentes a Pero Vaz de Caminha. O cronista era filho de Vasco
Fernandes, natural de Caminha e [...] pertencente clientela [...] do Duque de
Guimares, ou seja, sequaz deste prncipe da Real Casa na qualidade de feudatrio [...]
como sucedia na estratificao social do tempo (PRADO; SILVA, 1965, p.61). As
funes que desempenhou Fernandes era a de mestre da balana da moeda da cidade do
Porto e a de recebedor-mor dos dinheiros de Ceuta. Alm de prestar servios ao Duque
de Guimares, o pai de Caminha ainda servia a D. Afonso V, rei de Portugal, o qual
concedeu famlia de Fernandes funes hereditrias perante a realeza, enquanto os
contemplados justificassem a confiana neles depositada.
Dessa forma, Fernandes passou seu ofcio a Pero Vaz de Caminha, que, por sua
vez, deixou-o a seus filhos ou netos. No difcil medir o grau de importncia da
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famlia do missivista, razo pela qual o rei o escolheu para servir na feitoria de
Calecut. Se o escrivo pertencia a uma linhagem de alta estirpe, obviamente ele havia
tido boa instruo e, por isso, dominava muito bem a linguagem culta da poca,
requisito bsico funo que desempenharia nas ndias. Caminha era o homem ideal,
por conseguinte, para o trabalho designado, visto que pertencia nobreza, alm de ser
bastante culto, o que ele pouco demonstrou na Carta enviada ao rei, cuja linguagem
distancia-se bastante do latim, lngua erudita da poca.
De modo geral, a grandeza da Carta, enquanto literatura de informao que
possui, segundo Luz Roncari, qualidades literrias muito alm das dos relatos de
viagem do mesmo perodo, pode ser medida menos pelo fato de apresentar informaes
bastante minuciosas do que pela forma com que Caminha utiliza a linguagem
quinhentista: ele seleciona cuidadosamente os vocbulos a serem colocados no relato,
de maneira que muitos deles denotam sentidos dbios que conferem graciosidade
crnica. Ao tratar das qualificaes do escrivo, Jaime Corteso diz as seguintes
palavras:
[...] sempre que o funcionrio rgio coincidia com o homem de curiosidadecientfica, de gosto e cultura literria, suas obras pertencem literatura deviagens. De caso contrrio, os livros de bordo ou as cartas - dirios, emborasejam quase sempre de grande interesse histrico, no tem que ver
propriamente com a histria literria [...]. (CAMINHA apud CORTESO,1943, p.21).
Pertencendo a essa classe de funcionrios, Caminha deixa, ao elaborar o seu
relato, que o escritor que existe nele alvorea em sua pele de escrivo.
1.3.2 - Aspectos Gerais
O final do sculo XV marca o trmino de uma fase constituda de lendas e
tradies antigas, no que diz respeito geografia da Terra, e o incio de uma nova era
pautada em grandes descobertas, que fazem cair por terra todas as crenas antigas. As
lendas e fantasias que circulavam pela Europa, ainda que absurdas, tendo em vista
nossos conhecimentos atuais, alimentavam o imaginrio de toda a populao - at
mesmo dos intelectuais e cientistas da poca - e funcionavam como uma barreira aos
grandes empreendimentos martimos.
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Os primeiros homens que se lanaram ao mar fizeram-no cheios de temor:
esperavam encontrar nos grandes oceanos monstros e gigantes que costumavam tragar
navios. Com o passar dos anos, entretanto, tais lendas foram sendo abandonadas, uma
vez que as tentativas consecutivas acabaram por desmistificar os mistrios que
cercavam os mares. bvio que qualquer viagem pelo oceano apresentava um risco
constante, mas os conhecimentos nuticos que os portugueses acumularam ao longo do
tempo proporcionaram expedio de Cabral uma segurana muito maior. Agora, os
lusitanos tinham plena conscincia dos objetivos da viagem, da rota a ser seguida e dos
perigos do mar.
Tendo em vista estes fatores, a Carta redigida pelo escrivo nomeado pelo rei
no poderia continuar perpetuando aquelas lendas antigas contidas nos relatos de
Cristvo Colombo, que chega a confirmar a existncia de sereias:
Nessa terra toda h muitas tartarugas que os marinheiros capturaram emMonte Cristi, quando vinham desovar em terra, e eram enormes, feitograndes escudos de madeira. Ontem, quando o Almirante ia ao Ro del Oro,diz que viu trs sereias que saltaram bem alto, acima do mar, mas no eramto bonitas como pintam, e que, de certo modo, tinham cara de homem.(COLOMBO, 1984, p. 87).
Ainda que pautado num procedimento mais racional e humanista, que pressupe
uma atenta observao dos fatos, em detrimento da crena em histrias contadas por
outras pessoas, Caminha no poderia, no entanto, desconsiderar algumas idias ainda
presentes em sua poca (pois todo ser humano encontra-se inserido em determinado
espao, tempo e lugar, e, portanto, influenciado por certos valores culturais): no incio
das grandes navegaes, o europeu acreditava piamente na existncia de um paraso
terrestre, no qual haveria em clima perfeito e uma natureza exuberante e divina; ou seja,
em um ambiente isento do pecado original.
O crtico literrio Donaldo Schler observa muito a propsito que, impregnado
dessa concepo, o missivista descreve uma regio povoada por homens que fazem
lembrar o paraso perdido, o antigo den bblico: Caminha, ao subordinar a realidade a
padres previamente elaborados, no permite que o discurso seja afetado pelo referente.
Impermevel aos fatos, confirma o texto paradisaco em que se formara [...] (2001,
p.73).
No obstante a viso ednica do escrivo da frota de Cabral, h uma diferena
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gritante entre essa crnica e a dos viajantes que o precederam:
O parecer, ao se isolar do ver, destaca a Carta de Caminha tanto denarrativas fantasiosas, correntes na Idade Mdia, alheias ao cuidado da
fidelidade referencial, como da literatura buclica, eivada de esteretiposliterrios. Pelas suas caractersticas, a carta conquista um espao prprio nombito da produo literria. (SCHLER,2001, p.36).
Homem instrudo na cultura humanista da poca, o escrivo um observador
arguto. Em contraposio aos produtores de relatos fantasiosos, ele muito sensato,
uma vez que prefere seduzir o leitor com as qualidades do texto a despertar o seu
interesse com informaes que no provm da observao. Portanto, o Brasil
resguardado desde o incio da seduo do fantstico, ainda que as descries deCaminha aludam, de forma racional, ao paraso criado por Deus. Srgio Buarque de
Holanda, ao tratar dessa questo, faz, categoricamente, a seguinte afirmao:
No est um pouco neste caso o realismo comumente desencantado, voltadosobretudo para o particular e o concreto, que vemos predominar entrenossos velhos cronistas portugueses? Desde Gndavo e, melhor, desde PeroVaz de Caminha at, pelo menos, Frei Vicente do Salvador, umacuriosidade relativamente temperada, sujeita, em geral, inspiraoprosaicamente utilitria, o que dita as descries e reflexes de tais autores[...] Muito mais do que as especulaes ou os desvairados sonhos, aexperincia imediata que tende a reger a noo do mundo desses escritorese marinheiros, e quase como se as coisas s existissem verdadeiramente ea partir dela. [...] Podiam admitir o maravilhoso, e admitiam-no at de bomgrado, mas s enquanto se achassem alm da rbita de seu saber emprico.Do mesmo modo, em suas cartas nuticas, continuaro a inscrever certostopnimos antiquados ou imaginrios, at o momento em que se vejamlevados a corrigi-los ou suprimi-los, conforme o caso. (HOLANDA, 1996,p.5).
Neste ponto, no se pode deixar de traar um paralelo entre a crnica de Pero
Vaz e a do Piloto Annimo: embora ambos estejam inseridos no mesmo ambiente
cultural, aquele se deixa influenciar pelo imaginrio da poca muito menos do que este,
o que demonstrado no seguinte trecho, que pode ser encontrado no quarto captulo do
relato do Piloto.
[...] vimos um peixe que apanharam, que seria grande como uma pipa emais comprido e redondo, e tinha a cabea como um porco e os olhospequenos e no tinha dentes e tinha orelhas compridas do tamanho dumbrao, e da largura de meio brao. Por baixo do corpo tinha dois buracos, ea cauda era do comprimento de brao e outro tanto de largura. E no tinhanenhum p em stio nenhum. Tinha plos como o porco e a pele grossacomo um dedo e as suas carnes eram brancas e gordas como a de porco.(COLOMBO apud PEREIRA, 1999, p. 78).
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A despeito da inexistncia de monstros e seres do mar, as fortes tempestades e
os grandes furaces que podiam aparecer no decorrer das viagens no eram lendas, e os
marujos deveriam se precaver contra as foras da natureza. Portanto, pode-se inferir
que a escrita da famosa Carta no foi uma tarefa fcil, conquanto Caminha fosse um
homem culto e preparado.
No preciso uma leitura atenta para perceber que o escrivo discorre
rapidamente sobre a longa travessia do oceano para se demorar nos saborosos detalhes
do contato do homem branco com o ndio. Para Donaldo Schler, [...] mais lhe
importa contemplar o paraso achado do que demorar-se em dificuldades de
chegar [...] (SCHLER, 2001, p.47); porm, no absurdo pensar que a pouca
informao sobre a viagem revela menos do carter humanista de Pero Vaz Caminha do
que das grandes dificuldades enfrentadas pelos tripulantes ao longo da jornada, o que
no exclui o ilustre escritor.
Ao se analisar o contedo desta crnica, no se pode esquecer que ela escrita
com vistas a satisfazer o desejo do rei D.Manuel de saber algo sobre as regies
existentes alm do oceano. Deste modo, a relao emissor - receptor ocupa o primeiro
plano no relato. Ora, se esse tipo de escrito remete a algo essencialmente pessoal, tendoem vista que Quem escreve cartas fala do seu lugar, de suas vises e de suas opinies
[...] (SCHLER, 2001, p.30), o escrivo no poderia falar de fatos que no
presenciou: a importncia do documento, portanto, d-se na medida em que exibe
imagens e situaes vistas por uma testemunha ocular, Pero Vaz de Caminha. Ao
contrrio dos outros relatos de viagem que circulavam no continente europeu, o do
escrivo refere-se no a situaes imaginadas ou sonhadas, mas sim testemunhadas.
Considerando esse fato, pode-se dizer que a crnica do missivista irradia gotas de
veracidade que certamente deixam o rei, o destinatrio direto da Carta, bastantesatisfeito, visto que o que ele espera so informaes precisas a respeito das terras
descobertas.
A grosso modo, Caminha tem pouco tempo para escrever. Suas anotaes so
feitas diariamente a fim de manter a preciso dos fatos: Como era lgico, os escrives
apontavam essas notas progressivamente e dia-a-dia, ao sabor dos acontecimentos. Da
os livros ou relaes dos escrives tomarem a forma de dirios [...] (CAMINHA apud
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CORTESO, 1943, p. 16). No obstante as condies adversas produo de um
texto de carter oficial, sabe-se da existncia de duas verses da Carta enviada ao rei de
Portugal: a primeira, considerada uma espcie de rascunho, apresenta o que ocorre
desde a chegada, [...] dia 21 de abril de 1500, at a vspera da partida, sexta-feira, 1
de maio [...] (SCHLER, 2001, p.35). A segunda, redigida a partir dessas notas,
enviada ao rei.
Muito embora haja a possibilidade de alterao de dados, o epistolgrafo no
muda o que foi anotado dia aps dia: Caminha deixa intacta a anotao feita no
domingo de que os aborgines no constroem casas, mesmo que anote no dia seguinte,
melhor informado, a existncia de uma aldeia com dezenas de habitaes (SCHLER,
2001, p.35). Isso deixa claro a preocupao do cronista de preservar a integridade das
descries feitas diariamente, que seria quebrada se ele alterasse as impresses de um
s dia apenas.
digna de nota a dificuldade encontrada pelos cronistas na descrio de
ambientes e homens que eles nunca haviam visto. Cada viagem feita trouxe novas
informaes corte portuguesa; no entanto, raros eram os textos impressos acerca desse
tipo de viagens, sendo comum nesta poca a circulao de narrativas orais que
difundiam as novidades trazidas pelos empreendimentos martimos. Por isso, Caminhano dispunha de referenciais que pudessem orient-lo na escritura do relato, que
requeria um maior cuidado no que diz respeito escolha de palavras a serem utilizadas.
Segundo Schler (2001), o escrivo elege o mais difcil: a descrio dos
homens, da fauna e da flora. Para os navegadores, no faltam conhecimentos nuticos:
com a ajuda de aparelhos, os portugueses podiam j traar caminhos no grande oceano;
porm, em se tratando da nomeao de uma nova terra que apresenta plantas e animais
exticos nunca dantes vistos, a dificuldade torna-se latente, uma vez que no h
sistemas de classificao que possam ser utilizados nesse caso. Com relao a isso,
Denise Gomes Dias, em ensaio intitulado Os nomes de Caminha para as coisas do
Brasil, faz a seguinte afirmao:
Aquelas narrativas, embebidas numa atmosfera de curiosidade edeslumbramento face ao novo, misturam a descrio das viagens e seuspercalos ao detalhamento do ambiente geogrfico e etnogrfico. De modogeral, os homens responsveis pela escrita dessas crnicas de viagemdeparavam-se com um problema de estreita relao com o bom desempenhodo seu ofcio: como traduzir em palavras velhas uma realidade inusitada?.(1996, p. 257).
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Por um lado, no tocante descrio dos ndios, Caminha extremamente
minucioso, dada a sua educao humanista; por outro, ele utiliza uma linguagem
bastante vaga quando tece comentrios acerca da fauna e da flora, o que
compreensvel pelo fato de a zoologia e a botnica da poca se encontrarem em estado
precrio, ao passo que a nfase dada ao homem pela cincia e pelas artes determina a
importncia do ser humano.
A despeito da ausncia de nomenclatura para as paisagens novas, Pero Vaz de
Caminha, de forma genial, procura descrev-las, utilizando o vocabulrio conhecido, a
partir do qual cria neologismos que tornam o relato bastante pitoresco.
1.4 - Condies de Recepo
A carta de Caminha vem de um outro mundo, de um novo mundo embebido de
exotismo, esperana e sonhos. A correspondncia dos navegadores abala pretenses de
saber total. Quem atravessa o mar traz informaes nicas (SCHLER, 2001, p.31).
Tendo em vista a importncia dessas informaes, a produo de cartas passa a ser um
recurso bastante estratgico, pois, caso a fria dos ventos destrua a frota de navios, todo
o conhecimento adquirido ao longo do percurso no se perde nas guas dos mares.
Inicialmente o oceano foi atravessado por navios; agora, percorrido por relatos
que passam a substituir pessoas. Assim, - ao se levar em considerao as palavras do
crtico Chartir (1999, p. 11), que, no tocante ao ato da leitura, afirma que [...] um
texto s existe se houver um leitor para lhe dar um significado - compreende-se que o
rei, no tendo diante de si o informante, v-se levado a conversar com palavras grafadasno papel. As lacunas o querem intrprete, convidam-no a dizer o que elas no dizem
(SCHLER, 2001, p.31).
No momento em que as narrativas de viagem comearam a circular pela Europa,
j havia a imprensa nascente criada por Gutenberg, que facilitou sobremaneira a difuso
dessas crnicas, cujo contedo despertava grande interesse na populao em geral, haja
vista a quantidade de benefcios que tais viagens poderiam proporcionar aos pases que
as financiavam. As informaes contidas nessas cartas eram aguardadas, em virtude
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disso, com bastante ansiedade por todos. A respeito disso, os historiadores Prado e
Silva afirmam que A notcia do descobrimento da ilha de Vera Cruz causou grande
alvoroo em Lisboa no meio oficial, assim como entre cartgrafos, especialistas em
navegao, mercadores e no povo [...] (1965, p.69).
Entretanto, a despeito da existncia da imprensa, que propiciou uma maior
circulao desses textos, ainda que a lentido dos transportes e da impresso fosse algo
claramente notvel, a Carta de Caminha no foi divulgada por causa de um motivo
bvio: considerando a grande concorrncia comercial existente entre os pases
europeus, era interesse da corte portuguesa manter em segredo as informaes
referentes terra recm-descoberta:
Os que sumariamente ajuzam da poltica de D. Manuel, ou de algunsmonarcas que lhe sucederam, por certos silncios ou carncias de escritos,esqueceram que o monarca quela data tinha o maior interesse em lanarpoeira nos olhos da Espanha para assim poder protelar, como protelou, oconflito das soberanias no Novo Mundo. (CAMINHA apud CORTESO,1943, p.29).
Por essa razo, o governo procurava evitar nos portos a divulgao de notcias
que excediam quelas que o prprio soberano enviava aos sogros e concorrentes com o
intuito de afirmar a possesso portuguesa sobre os territrios descobertos. Se os sditos
que participavam das viagens deixassem escapar qualquer informao no permitida
pelo rei, este poderia puni-los severamente. Assim sendo, enquanto h pela Europa
difuso das Cartas de Vespcio e de outros relatos, em Portugal reina absoluto silncio
[...] sobre o que despertava o mximo de curiosidade nos demais reinos europeus
(PRADO; SILVA, 1965, p.37).
Sabendo disso, os concorrentes enviavam a Portugal espias que tinham por
misso colher notcias dos marujos que acabavam de regressar dos empreendimentos
martimos. assim que o relato de um piloto da frota de Cabral vai parar nas mos dos
agentes venezianos em Lisboa. Esse indivduo, provavelmente portugus, conduziu
uma das naus que se dirigiam s ndias e passou Histria como piloto annimo, visto
que vendeu informaes a espias estrangeiros, desobedecendo ordem do rei quanto
manuteno do sigilo em relao a tudo o que pudesse provocar intervenes de outros
pases europeus interessados em impedir quePortugal prosperasse e se sobrepusesse a
eles.
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Diferentemente desse relato, que em pouco tempo passou a circular por toda
Europa - cinco anos depois do regresso de Cabral - em publicaes sucessivas do Paesi
Nuovamente Ritrovatti, a Carta de Caminha foi muito bem guardada pela corte
portuguesa, uma vez que ela continha informaes minuciosas acerca do Brasil.
Devido, portanto, ativssima espionagem estrangeira e grande dificuldade de
conseguir dados exatos sobre os descobrimentos, essa crnica torna-se para o rei um
material de extraordinrio valor, sendo [...] resguardada das vistas dos espias
diplomatas e somente conhecida e divulgada em princpios do sculo XIX pelo padre
Aires do Casal (PRADO; SILVA, 1965, p.37).
Portanto, aps o regresso da esquadra de Cabral, o dirio do escrivo no
divulgado por D. Manuel I, que, sendo o nico receptor dela, juntamente com a corte
portuguesa, guarda o documento, cujas informaes adormecem na Torre do Tombo,
privando a populao de Portugal e, principalmente, os governos de outras regies da
Europa do contato com ela.
1.5 - Discursos Explcitos:
Indiscutivelmente, a Carta de Caminha fornece as primeiras imagens das terras
brasileiras e dos homens que aqui viviam. No entanto, o que mais importa a
identificao dos valores morais e materiais que fizeram com que os portugueses
tenham se lanado ao mar procura de novas regies. Por ser o missivista um homem
educado luz das doutrinas catlicas e criado em um pas civilizado, em que as idias
humanistas guiavam os europeus a uma nova forma de enxergar o mundo, no de
espantar que o seu relato reflita valores religiosos que mascaram ambies e desejos
dos habitantes do velho mundo.
Donaldo Schler (2001) observa muito acertadamente que trs propsitos bem
definidos orientam as viagens dos navegadores ibricos: a busca do paraso terrestre, a
implantao da cruz de Cristo e a posse. J foi dito que no perodo histrico em questo
o imaginrio das pessoas era povoado de monstros que habitavam os mares,
dificultando as viagens, e de crenas religiosas: durante muito tempo, circulou a lenda
de um monge irlands que, aps vencer perigos grandiosos ao longo de sete anos, teria
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chegado ao paraso terrestre. bvio que na poca de Caminha j no se acreditava
to piamente nessas questes, mas ainda sim, no dirio do escrivo, pode-se notar a
influncia de tais idias. No final da Carta, h uma descrio minuciosa da terra
descoberta, que, engrandecida por Caminha, assemelha-se ao paraso ednico:
Tem, ao longo do mar, nalgumas partes, grandes barreiras, delas vermelhas,delas brancas, e a terra por cima toda ch e muito cheia de grandesarvoredos. De ponta a ponta, tudo praia-palma, muito ch e muito formosa[...] Porm a terra em si de muitos bons ares, assim frios e temperados [...]guas so muitas; infinitas. E em tal maneira graciosa que, querendo-aaproveitar, dar-se- nela tudo, por bem das guas que tem. (CAMINHAapud CORTESO, 1943, p.239-240).
Porm, o missivista no foca a sua ateno s na natureza brasileira,
absolutamente diferente da desolada paisagem africana conhecida pelos portugueses.
Ele, na verdade, pauta-se muito mais nas caractersticas dos nativos:
A feio deles serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos ebons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. No fazem omenor caso de encobrir ou mostrar suas vergonhas; e nisso tm tantainocncia como em mostrar o rosto. (CAMINHA apud CORTESO, 1943,p.204).
A imagem inocente dos ndios - que vivem de forma to natural quanto oprimeiro casal que habitou o jardim do den bblico, ou seja, sem a necessidade de uso
de vestimentas que cobrissem suas vergonhas - em contato com uma natureza to rica e
exuberante, brota em Caminha a impresso de um quadro paradisaco, que, de certa
forma, est de acordo com as lendas pregadas at ento.
De modo geral, o discurso que embasa os feitos de Portugal o religioso. Numa
poca em que o Imprio Catlico perdia cada vez mais fiis para o protestantismo, no
difcil deduzir que algo precisava ser feito a fim de que a Igreja, detentora da cultura e
das riquezas durante todo o perodo medieval, no desmoronasse em face da reforma
protestante, que abalou toda a estrutura econmica, social, poltica e cultural da Europa:
tornou-se necessria a procura de novos fiis para que a perda sofrida fosse
compensada. Uma das formas encontradas pela corte portuguesa para reavivar a
presena do catolicismo foi a conquista de novas regies e a converso dos habitantes
primitivos. Nesse sentido, os grandes empreendimentos martimos justificam-se na
medida em que procuram propagar a santa f catlica e trazer mais conversos aos ps
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de Jesus. Nas palavras de Donaldo Schler:
O sonho, mais atrativo que a cincia, mais forte que o sopro do vento, nodeteve as velas alinhadas na rota do sol. No sonhava apenas Cabral,
sonhavam tambm os portugueses, povo messinico incumbido de levarpara terras estranhas a cruz de Cristo [. ..]. (2001, p.43).
Segundo esse discurso, os maiores beneficirios do processo de colonizao
desencadeado um pouco mais frente seriam os prprios ndios, uma vez que
passariam estes da condio de homens incultos, no-civilizados e no-conhecedores da
verdade crist de seres humanos iluminados pela santa f catlica, a nica que poderia
libert-los daquele mar de sombras em que eles estavam mergulhados: aparecendo na
Carta como homens que no possuam religio, governo e cultura, [...] acolh-loscomo protegidos sem os consultar era at um ato humanitrio (SCHLER, 2001,
p.36).
A questo religiosa, por conseguinte, faz-se presente em todo o relato, figurando
como o principal motivo pelo qual os portugueses se encontram em terras brasileiras.
Ilustra bem esse fato o episdio em que Padre Henrique, pregando em terras brasileiras,
enfatiza o papel desempenhado pela religio nas conquistas ultramarinas:
[...] subiu a uma cadeira alta; e ns todos lanados por essa areia. E pregouuma solene e proveitosa pregao da histria do Evangelho, ao fim da qualtratou da nossa visita e do achamento desta terra, conformando-se com osinal da cruz, sob cuja obedincia viemos, o que foi muito a propsito e fezmuita devoo. (CAMINHA apud CORTESO, 1943, p.213).
No causa espanto que essa mesma viso aparea tambm nos mais importantes
relatos de cronistas que antecederam Caminha. A ttulo de exemplo, veja-se o que
afirma Cristvo Colombo no dirio de sua primeira viagem:
E digo que Vossas Majestades no devem consentir que aqui venha ouponha p nenhum estrangeiro, salvo catlicos cristos, pois esse foi oobjetivo e a origem do propsito, que esta viagem servisse para engrandecere glorificar a religio crist, no se permitindo a vinda a estas paragens aningum que no seja bom cristo. (COLOMBO, 1984, p. 66).
O smbolo mximo dessa pretenso aparentemente religiosa dos portugueses a
grande cruz de madeira confeccionada por dois carpinteiros com o intuito de fix-la em
algum grande monte, onde ela pudesse ser vista e adorada.
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Devido ao carter pacfico e amigvel dos ndios, Caminha pressupe que a
nica coisa que falta a eles para que sejam cristos a comunicao com o homem
branco:
E, portanto, se os degradados, que aqui ho-de-ficar, aprenderem bem a suafala e os entenderem, no duvido que eles, segundo a santa inteno deVossa Alteza, se ho de fazer cristos e crer em nossa santa f, qual prazaa nosso Senhor que os traga, porque, certo, esta gente boa e de boasimplicidade. E imprimir-se- neles qualquer cunho, que lhes quiserem dar.E pois Nosso Senhor, que lhes deu bons rostos, como a bons homens, poraqui nos trouxe, creio que no foi sem causa.
Portanto Vossa alteza, que tanto deseja a santa f catlica, deve cuidar dasua salvao. E prazer Deus que, com pouco trabalho, seja assim.(CAMINHA apud CORTESO, 1943, p.233).
Muito embora a catequizao dos indgenas seja colocada em primeiro plano na
redao do missivista, os discursos mercantilistas e polticos tambm se fazem
presentes. Para garantir a acumulao de metais, os pases europeus necessitam de
colnias que possam lhes proporcionar isso. Decorre da o interesse dos portugueses de
saber se havia ouro na nova terra. Para Prado e Silva, [...] ste o passo de maior
significao da carta de Pero Vaz, que de momento a momento cresce de interesse e
melhor revela a mentalidade dos atores e orientadores dos principais acontecimentos da
poca (1965, p.44).
muito interessante o modo com que, logo no incio, os portugueses
interpretam os gestos dos ndios: visto que a ganncia pelo ouro to grande, qualquer
sinal por parte dos nativos motivo para se pensar que h esse metal precioso nas terras
de Vera Cruz:
Porm um deles ps olho no colar do capito, e comeou a acenar com amo para a terra e depois para o colar, como que nos dizendo que ali haviaouro. Tambm olhou para um castial e assim mesmo acenava para a terra enovamente para o castial, como se l tambm houvesse prata. (CAMINHA
apud CORTESO, 1943, p.206).
Caminha, no entanto, tem a conscincia de que o gesto pode ter outro
significado, ao afirmar que isto tomvamos ns assim por assim desejarmos. O
desejo concreto pelo metal explicitado um pouco mais frente: Falava, enquanto o
capito esteve com ele, perante ns todos, sem nunca ningum o entender, nem ele a
ns quantas cousas lhe demandvamos acerca douro, que ns desejvamos saber se na
terra havia (CAMINHA apud CORTESO, 1943, p.220).
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Aspecto latente na carta o contraste entre a cultura europia e a dos nativos
aqui no Brasil. No possvel, num primeiro momento, a comunicao verbal entre
ambos; por isso, o portugus testa o nvel civilizacional dos ndios, que so reprovados,
uma vez que [...] no reconhecem o carneiro, rejeitam po, peixe, mel, passa de figo,
no sentem atrao pelo vinho [...] (SCHLER, 2001, p.53). Para os portugueses, os
nativos esto aqum do estgio cultural de um modesto campons de Portugal, porque
transmitem uma certa impresso de bestialidade. Os primitivos so, portanto,
comparados aos animais:
Depois de danarem, fez-lhes ali, andando no cho, muitas voltas ligeiras esalto real, de que eles se espantavam e riam e folgavam muito. E conquantocom aquilo muito os segurou e os afagou, tomavam logo uma esquiveza
como de animais monteses, e foram-se para cima. (CAMINHA apudCORTESO, 1943, p.221).
bem verdade que Caminha os elogia, dizendo que eles so muito limpos e
asseados. No obstante, Por mais compreensivo que o epistolgrafo tente ser,
permanece a opinio de que se trata de gente com pouco saber (SCHLER, 2001,
p.53).
De um lado, portanto, a centralizao do poder, a disciplina eclesistica, o
pudor, a competio que no conhece limites e a ambio; de outro, a ausncia degoverno, religio e pudor, alm da presena da antropofagia, caractersticas que, na
tica do homem branco, ofendem as regras fundamentais da convivncia em sociedade.
1.6 - Discursos Implcitos:
Os portugueses empreenderam as grandes viagens sob a bandeira do
Cristianismo. Entretanto, a religio camuflava os verdadeiros interesses da nao
portuguesa: econmicos, comerciais e civilizatrios. No final do sculo XV, o pas
ibrico j tinha alcanado um xito extraordinrio na tipografia, nas letras, nas cincias
e nos descobrimentos martimos. Tudo isso conferiu aos lusitanos evidncia entre as
naes europias. Em virtude disso, Portugal precisava de colnias que pudessem
proporcionar o dinheiro necessrio para que o status adquirido na Europa fosse
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mantido. No difcil notar, portanto, que, ao desembarcarem no Brasil, os
navegantes estavam menos preocupados com o estado espiritual dos ndios do que com
o que estes poderiam oferecer nao portuguesa:
Da Carta de Caminha dimana impresso de que o maior interesse do autorversava sobre a pessoa dos silvcolas, muito alm de simples surpresa oucuriosidade pelo seu aspecto despertadas [...] O mesmo expediente de seaproveitar naturais em msteres construtivos numa regio em que tudo seencontrava por fazer devia sobrevir mente do missivista, se bem que demomento no atinasse Pero Vaz como aproveit-los para valorizar odomnio que viera se juntar coroa do afortunado. (PRADO; SILVA, 1965,p.45).
De fato, o que importava para os lusitanos era a posse da terra e dos primitivos
habitantes. Em relao a isso, Donaldo Schler (2001) observa de forma muito lcidaque Caminha exalta o clima, o solo, as guas e a aparncia robusta dos nativos menos
com interesse esttico (ou por simpatia pela presteza deles em suprir os portugueses de
gua) do que com a inteno de enaltecer a robustez e a docilidade, enquanto virtudes
caractersticas de povos destinados ao trabalho servil.
A superioridade do homem branco manifesta-se principalmente na atitude do
portugus frente aos ndios. bastante desconcertante o modo como Pedro lvares
Cabral recebe os nativos no navio. A Carta revela que o capito mor da esquadra senta-
se num trono, [...] bem vestido, com uma medalha de ouro ao pescoo, rodeado de
seus dignatrios em plano inferior, para receber homens nus [...] (SCHLER, 2001,
p.50).
interessante notar tambm que os portugueses no pensam no fato de que
aquela regio e os diversos locais que a constituem poderiam j ter sido nomeados
pelos ndios que ali habitavam. Quando os europeus atravessam os mares, intencionam
submeter o desconhecido ao seu domnio civilizador. Dessa forma, ao chegarem aqui,
do nome a tudo o que encontram, visto que a nomeao indica a posse da regio que
agora entra na esfera da lngua portuguesa; mas no sem agresso, uma agresso sutil
que visa anulao da cultura autctone. Veja-se o trecho inicial da crnica:
Neste dia, a horas de vspera, houvemos vista de terra! Primeiramente dumgrande monte, mui alto e redondo; e doutras serras mais baixas ao sul dele;e de terra ch, com grandes arvoredos: ao monte alto o capito ps nome MONTE PASCOAL e terra - a TERRA DE VERA CRUZ. (CAMINHAapud CORTESO, 1943, p.201).
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Tudo isso d uma idia do sentimento de superioridade do portugus em
relao quilo que seja diferente do que ele conhece e do discurso colonizador que
aparece de forma implcita e camuflada na Carta de Caminha. O intuito de submeter os
ndios coroa fica bem claro no final do relato: [...] se Vossa alteza aqui mandar quem
entre eles mais devagar ande, que todos sero tornados ao desejo de Vossa alteza [...]
(CAMINHA apud CORTESO, 1943, p. 238).
Outra questo que pode ser inferida a partir da leitura dodirio do escrivo o
desejo do colonizador pelas ndias brasileiras. Segundo Roncari, ao utilizar o termo
vergonha de forma ambgua no seguinte trecho - Outra trazia ambos os joelhos, com
as curvas assim tintas, e tambm os colos dos ps; e suas vergonhas to nuas e com
tanta inocncia descobertas, que nisso no havia vergonha alguma (CAMINHA apud
CORTESO, 1943, p.219) - Caminha cria uma forma elegante, e por que no dizer
humorstica, para se referir ao fato de que os portugueses olhavam para os rgos
sexuais das ndias como se estivessem admirando [...] o seu rosto, sem experimentar
nenhuma mudana em seus sentimentos (RONCARI, 1994, p.35).
No entanto, tal viso parece ser bastante ingnua, tendo em vista que os
europeus no estavam acostumados com a nudez. Mais sensato pensar, portanto, que
a indiferena infantil registrada na Carta algo bastante utpico, sendo o olharinsistente e malicioso do homem branco sobre as ndias um fato mais real e
convincente. Schler, a respeito disso, observa muito a propsito que
Os folguedos narrados na Ilha dos Amores em Os Lusadas parecem corresponder
melhor aos fatos do que os castos olhares na carta. A arte sabe ser mais verdadeira, por
vezes, do que o registro documental [...] (SCHLER, 2001, p.39).
Considerando o pudor difundido pela Igreja Catlica na poca, no ousado
afirmar que, talvez, os tripulantes tenham conferido intenes erticas ao fato de os
ndios, de maneira geral, rasparem parte da cabeleira de seus rgos sexuais, uma vez
que no dispunham do sabo dos ocidentais e, por isso, tinham o costume de se depilar
por questes higinicas.
Por fim, no se pode deixar de mencionar o menosprezo dos portugueses quanto
s culturas judia e rabe. Recuperando a cultura greco-romana, os europeus do perodo
rejeitavam a cultura dos rabes e da Idade Mdia. Ao descrever os ndios, Pero Vaz
observa que eles no eram circuncidados: Nenhum deles era fanado, mas, todos assim
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como ns [...] (CAMINHA apud CORTESO, 1943, p.212). Tal afirmao no
feita inocentemente, pois mostra a viso de Caminha, ocidental: se os ndios fossem
circuncidados, os portugueses transfeririam a eles a repulsa e o dio a culturas repelidas
na Europa. Curioso que o escrivo estabelece uma comparao entre os indgenas e os
portugueses ao escrever assim como ns. Se os nativos se aproximam da cultura
europia, eles so dignos do contato com os portugueses: A ausncia da circunciso
nos moradores das terras descobertas franqueava acesso negado a povos com os quais
os portugueses conviviam na Europa (SCHLER, 2001, p.57).
1.7 - A Carta nas imprensas europia e brasileira
De modo geral, a pea apresenta uma trajetria muito misteriosa, j que, nos trs
sculos subseqentes viagem de Cabral, ela permanece completamente indita e
desconhecida em meio a outros documentos guardados no Arquivo Real de Lisboa.
Paulo Roberto Pereira, em evento organizado pela Academia Brasileira de Letras em
2000, por ocasio das comemoraes do Descobrimento do Brasil, lembra muito a
propsito que a Histria Colonial Brasileira foi escrita toda com o desconhecimento
desta crnica:
Toda a documentao do sculo XVI que se refere Descoberta do Brasil,em nenhum momento sequer menciona este documento que, porunanimidade, considerado o principal documento da Histria ColonialBrasileira, conforme falava Varnhagen. (Pereira, 01/11/2008, 2000).
Tendo em vista que, embora dianteira dos empreendimentos martimos, a
administrao portuguesa teme revolues, possvel compreender o motivo pelo qual
o texto no foi publicado no Brasil at o sculo XIX: de maneira geral, nas palavras deSchler, Portugal [...] recebe a inveno de Gutemberg como recurso e ameaa. A
divulgao da imprensa poderia favorecer a proliferao de idias nocivas ao governo
[...] Proibiu-se a instalao da imprensa nas colnias[...] (SCHLER, 2001, p.151).
Por isso, ainda que houvesse sido, na poca, publicado na Europa, o dirio de
Caminha no seria divulgado aqui no Brasil, haja vista o fato de que no h Imprensa
em nosso pas at a chegada da corte portuguesa em 1808, momento em que a
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administrao de Portugal passa a ter sua sede no Rio de Janeiro e o processo de
independncia poltica da colnia desencadeado.
No famoso estudo desenvolvido por Jaime Corteso, encontra-se a informaode que [...] a Carta de Pero Vaz de Caminha foi dada, pela primeira vez, a estampa, na
Corografia Braslica do Pe. Manuel Aires do Casal, em 1817, pelos prelos da Impresso
Rgia do Rio de Janeiro [...] (CORTESO, 1943, p. 25). No entanto, ainda que tenha
sido o primeiro a revel-la ao pblico, injusto atribuir a ele a honra de t-la
descoberto, uma vez que, muito antes de 1817, ela j havia sido encontrada na Torre do
Tombo: por volta de 1790, um erudito historiador castelhano, Juan Bautista Muoz,
dirigiu-se a Lisboa a fim de recolher documentao para a sua Historia del Nuevo
Mundo, publicada em 1793. No decorrer de sua pesquisa, viu e extratou a Carta (que j
se encontrava catalogada), muito embora no tenha se referido a ela em sua obra,
incluindo-a to-somente em sua coleo de notas manuscritas.
Portanto, antes de Muoz, algum se deparou com o dirio de Caminha e deu a
ele o devido valor. De fato, a Histria confirma isso, pois se sabe que no dia 19 de
fevereiro de 1773 o Guarda-mor do Arquivo de Portugal, Jos de Seabra da Silva,
ordenou que se fizesse uma cpia em boa letra da Carta para uma melhor inteligncia
do seu original. Esse fato certamente o responsvel pelas circunstncias que atrouxeram ao Arquivo da Real Marinha do Rio de Janeiro, onde Aires do Casal a
encontrou.
Tendo em vista essas informaes histricas, desaparece a lenda de que
estrangeiros descobriram-na e divulgaram-na:
Assinalou-a primeiro, com perfeita conscincia do seu valor excepcional, oportugus Jos de Seabra da Silva; pela primeira vez a publicou o portugusPe. Manuel Aires do Casal. Resta saber quem a trouxe de Portugal para oarquivo da Real Marinha do Rio de Janeiro. Presumia Manuel de Souza
Pinto que a cpia tivesse viajado para o Brasil na bagagem da corteportuguesa o que se nos afigura hiptese aceitvel. (CORTESO, 1943,p. 34).
Alm da transcrio, que, segundo Corteso, m, Casal produz o primeiro
estudo, ainda que breve, do documento. interessante notar que, alm de primeiro
editor, ele tambm o primeiro censor da crnica: as partes consideradas mais
perigosas, mais erticas, ele preferiu eliminar de sua edio:
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[...] na Corografia, ela aparece mutilada em todas as passagens que,provavelmente, o seu primeiro divulgador julgou ofensivas ao pudor. MasAires do Casal acrescenta ao documento as primeiras notas doze,contendo, na sua maioria, explicaes exatas. (CORTESO, 1943, p. 34).
Um pouco mais frente, em 1821, Ferdinand Denis publica-a, em verso
francesa, no Journal des Voyages, e, em 1828, surge uma verso alem, publicada por
DOlfers, no Feliners Reisen durch Brasilien. Com a proclamao da independncia do
Brasil em 1822, intensifica-se entre os brasileiros o interesse pela investigao das
razes da nacionalidade. Dessa forma, edies so feitas com freqncia em nosso pas
a partir dessa data. Uma verso digna de nota aquela feita por Francisco Adolfo
Varnhagem, que, guiado pelo desejo de reconstruir a prpria histria do Brasil o quese comprova pelo fato de ter ele publicado a Carta de Mestre Joo em 1843 - publica a
sua edio da Carta em 1877. Segundo Paulo Roberto Pereira (2000), esta uma
edio quase perfeita, alis, a primeira realmente moderna, haja vista o fato de que as
que vieram depois da do Padre Ayres do Casal so praticamente cpias dela.
Em Portugal, o ressentimento provocado pela ruptura entre metrpole e colnia
retardou o movimento de interesse em torno do documento. No entanto, em 1826, a
Academia de Cincias de Lisboa a inclui na Coleo de notcias para a histria e
geografia das naes ultramarinas: esta a primeira edio feita em Portugal.
Por ocasio do Quarto Centenrio do Descobrimento da Amrica, em 1892, e do
Quarto Centenrio do Descobrimento do Brasil, em 1900, a Carta volta a ser foco do
interesse dos eruditos. Em 1900 surge o primeiro estudo do historiador Capistrano de
Abreu, publicado com o ttulo Descobrimento do Brasil pelos portugueses, sendo o
segundo, Vaz de Caminha e sua Carta, divulgado em 1908 na Revista do Instituto
Histrico e Geogrfico Brasileiro. Dois anos depois, surge o primeiro estudo de
natureza filolgica do documento, A Carta de Vaz de Caminha, de Joo Ribeiro.Segundo Corteso, esses dois trabalhos marcaram poca, j que Apontavam, por assim
dizer, um plano e um mtodo (CORTESO, 1943, p. 37).
Em 1923 surge a famosa edio de Carolina Michalis de Vasconcelos, que, sob
a tica do historiador Paulo Roberto Pereira, no apresenta a mesma sensibilidade que
outros portugueses tiveram ao conviver com a nossa realidade. Dentre eles merecem
destaque Antnio Baio, diretor da Torre do Tombo que fez, em 1940, uma edio
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muito boa, e Jaime Corteso, que viveu no Brasil e publicou obras excepcionais,
dentre elas a que trata da Carta de Caminha, o mais completo estudo sobre a crnica,
que serve de base para esta pesquisa.
A partir da segunda metade do sculo XX, estudos de outros historiadores e
crticos literrios, cuja abordagem abrange tanto o vis documental, quanto o literrio,
vieram enriquecer e complementar os j existentes. Dentre os principais pesquisadores
do mbito literrio, podemos destacar Luiz Roncari, Mrio Chamie, Donaldo Schler,
Maria Aparecida Ribeiro e Carlos Nejar. Embora todos esses nomes sejam muito
importantes, o foco desta dissertao a historiografia literria brasileira dos sculos
XIX e XX. Portanto, restringir-nos-emos a alguns historiadores literrios do sculo
passado, cujas leituras sero analisadas no captulo terceiro. Por ora, o foco recair na
leitura da Carta feita por algumas histrias da literatura brasileira do sculo XIX: a de
Slvio Romero, Jos Verssimo e Araripe Jnior.
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CAPTULO 2
A Carta na viso da Trindade Crtica do sculo XIX
2.1 - Leitura de Slvio Romero
Antes de explorar o terreno das concepes literrias de Slvio Romero, cumpre
lembrar que o primeiro historiador da literatura brasileira se enquadra, juntamente com
Jos Verssimo e Araripe Jnior, no que os crticos denominaram de gerao de 70,
formada por um grupo de estudiosos que buscaram romper com a crtica romntica em
voga. Apoiado em critrios naturalistas e cientficos, Romero pretendeu analisar a
sociedade brasileira como um todo, com o objetivo de desmistificar os ideais
romnticos, que deturparam, segundo ele, a verdadeira identidade nacional.
Com relao formao desses crticos, mais especificamente a de Romero,
Candido, em O mtodo crtico de Slvio Romero, faz a seguinte observao:
[...] nota-se, desde logo, o predomnio das influncias de ordem cientfica.Na segunda metade do sculo XIX, o advento, no Brasil, do positivismo edo evolucionismo, exigia de quem se aventurasse pela filosofia umafundamentao cientfica do pensamento. Bacharel, sem preparo suficiente,como tantos dos seus contemporneos, Slvio teve uma admirao semlimites pelas correntes de seu tempo e, at o fim da vida, no perdeu maiscerto ar de novo-rico da cultura, usando e abusando de termos tcnicos,inventando designaes, apelando a cada instante para os seus mentores. Osprincipais dentre eles foram Buckle, Taine, Haeckel e Spencer [...].(CANDIDO, 1988, p. 31).
Conseqncia lgica da adoo de mtodos positivistas e evolucionistas no
estudo da literatura foi a mudana na forma de enxerg-la: ao invs de focar-se na obra,
o crtico naturalista passou a ter em conta a relao existente entre o escrito literrio e a
sociedade:
O que ser, ento, a crtica fundamentada nestes princpios meio, raa,cultura? O seu primeiro efeito destruir o critrio esttico e valorativovigente at ento. A conseqncia prxima tomar como critrio de valorliterrio o carter representativo do escritor, a sua funo no processo dedesenvolvimento cultural. Este critrio, bastante sociolgico e poucoesttico, parecido ao que Taine adotou, a fim de estudar a arte [...].(CANDIDO, 1988, p. 52).
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Um pouco mais frente, completando a explicao anterior, Candido
acrescenta:
A crtica brasileira pr-romeriana, essencialmente retrica, dava comosubentendido que a obra decorre de um ato da vontade do seu autor, emobedincia s regras dos gneros e do bom gosto; o critrio de julgamentoera o grau de aproximao ou afastamento, relativo a estas regras e a estegosto mdio. A crtica romeriana postula que a obra um produto, no sda inteligncia, mas dos fatores que determinam a direo desta fatoreshistricos, geogrficos, tnicos, sociais. O ponto de referncia se desloca,portanto, da obra realizada para o processo a que devida, e o critrio dejulgamento a concordncia da obra com o conjunto dos processos [...].(CANDIDO, 1988, p.102).
O que importa para Romero no a literatura enquanto manifestao artstica,
mas sim a relao que se estabelece entre escritor/obra e o seu grau de
representatividade nacional. No difcil perceber que o objetivo de sua Histria da
literatura brasileira menos traar um panorama da literatura do Brasil at aquele
momento do que apresentar uma pesquisa completa acerca da cultura brasileira em
geral, com o propsito de definir a identidade brasileira. Explica-se, assim, a tendncia
do historiador de tentar abarcar todos os mbitos da cultura do pas, motivo que levou
Candido a fazer a seguinte afirmao a respeito do crtico:
[...] foi mais historiador da cultura e socilogo, e disso se orgulhava, comoconvinha aos padres cientificistas do seu tempo, que reduziam a obraliterria ao estudo dos fatores externos e a reputavam sintoma de umaorgnica mais ampla soldando-a de tal forma na natureza e na sociedade,que sufocavam a sua essncia nesses desvios do acessrio. (CANDIDO,1988, p. 12).
interessante notar que at a poca de Silvio Romero nenhum brasileiro
havia escrito ainda uma histria geral do Brasil. At mesmo a histria poltica, social
e econmica tinha sido feita por estrangeiros. Ferdinand Wolf, austraco, foi o
primeiro a tentar traar um panorama mais ou menos completo da literaturabrasileira. Antes dele, todos os escritos referentes ao Brasil foram colocados em
segundo plano nas histrias literrias estrangeiras produzidas at ento. Devemos,
portanto, a autores nacionais, somente pequenos ensaios, monografias e antologias
sobre uma e outra poca de nossa literatura, os quais recebem a denominao de
parnasos, florilgios e bosquejos. Acerca dessas obras, o historiador faz uma rpida
descrio nas pginas iniciais do primeiro volume de sua narrativa.
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Segundo o estudioso da literatura Alberto Luiz Schneider, a despeito do
ttulo, a obra de Romero parece ser mais um tratado sociolgico que histria literria
propriamente dita:
O primeiro tomo da Histria da literatura brasileira inteiramente dedicadoaos fatores extra-literrios. Em mais de trezentas pginas, o autor abordouas teorias sobre a Histria do Brasil, as raas que teriam constitudo apopulao brasileira, a mestiagem, as tradies populares, o meio fsico, asalteraes da lngua portuguesa, as relaes econmicas, as instituiespolticas e culturais, alm de versar sobre a pobreza educacional e astendncias imitao estrangeira. (2005, p.25).
Schneider (2005) ainda assinala que, nos trs tomos posteriores ao primeiro,
Romero escreveu sobre a literatura brasileira. No obstante, no se restringe aos
escritores ficcionais, j que sua obra abarca poetas, romancistas, cronistas,historiadores, telogos, moralistas e jurisconsultos, ou seja, tudo o que diz respeito
cultura do pas.