terrorismo de estado en rusia

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TERRORISMO DE ESTADO NA RÚSSIA: a guerra na Tchetchênia nos descaminhos da indústria da violência 1

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La guerra de Checheina y la industria de la violencia en retrospectiva. Un libro sobre el genocidio cometido por los rusos en Chechenia. Escrito por Cristina Dunaeva y Fernando Bonfim

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Page 1: Terrorismo de Estado en Rusia

TERRORISMO DE ESTADONA RÚSSIA:

a guerra na Tchetchênia nos descaminhosda indústria da violência

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Page 2: Terrorismo de Estado en Rusia

Robson Achiamé, editorCaixa Postal 50083

Rio de Janeiro/RJ – 20050-970Telefax (0xx21) 2208-2979

[email protected]

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Rio de Janeiro

TERRORISMO DE ESTADONA RÚSSIA:

a guerra na Tchetchênia nos descaminhosda indústria da violência

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Ação Literáriapela Autodeterminação dos Povos

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Copyright © 2006 byAção Literária pela Autodeterminação dos Povos

É vedada a reprodução total ou parcial desta obrasem prévia autorização.

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SUMÁRIO

Apresentação / 7

A região da Tchetchênia: aspectos socioculturais / 11 I. Dados geográficos e demográficos / 11

– Tchetchênia / 11– Tchetchenos / 11– Organização social e econômica / 11– Idioma tchetcheno / 13

II. Moradia tradicional dos tchetchenos / 13– Arquitetura medieval da Tchetchênia e da Inguchétia / 14

III. Apontamentos cronológicos das relações entre a Rússia e aTchetchênia (séculos 16-19) / 16

Estado totalitário na União Soviética e seu legado na Rússiacontemporânea / 19

I. Nota sobre a formação do Estado moscovita na Rússia czarista / 19 II. Levantes populares e revoluções no início do século 20 / 19III. Poder estatal bolchevique e a elaboração do discurso ideológico

comunista (centralização e expansionismo do poder) / 24IV. O Estado totalitário na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas

(URSS): militarização, repressão e russificação / 28 V. O fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e a formação

da atual Federação Russa / 29VI. A ascensão de Vladimir Putin ao poder presidencial da Rússia / 31

Terrorismo de Estado e a guerra na Tchetchênia / 35 I. Introdução / 35

II. Deportação do povo tchetcheno em 1944 / 36 III. A retomada dos movimentos pela autonomia política da Tchetchênia

e os antecedentes da guerra (1990-94) / 37IV. Conflito armado (1994-1996) – 1ª fase da guerra / 41

– Crimes de guerra na vila Samáchki / 48 V. Conflito armado (1999-????) – 2ª fase da guerra / 50

– Situação na região de Stavropol em 1999 / 50– Daguestão – 1999 / 52

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VI. Perdas da população civil durante as guerras na Tchetchênia / 53 VII. Perdas do exército da Federação Russa durante as guerras na

Tchetchênia / 54VIII. Depoimento de um oficial do exército russo / 55 IX. As condições sociais na Tchetchênia na atualidade: Tchetchênia e

gueto / 56

Refugiados tchetchenos / 59 I. Introdução / 59II. Migração forçada na região da Inguchétia / 59

III. Discriminação de tchetchenos em Moscou / 61 IV. Crescimento da xenofobia na Rússia. Discriminação de minorias

étnicas / 62

Palavras no silêncio / 67

Pósfácio / 73

Anexos / 75 I. Cronologia das relações entre a Rússia e a Tchetchênia (séculos 20-21) / 77

II. As Tchekas: decretos, artigos e documentos oficiais / 84 III. Perseguição dos camponeses na União Soviética / 88 IV. In memoriam de Anna Politkóvskaia / 98 V. Pierm e a luta antimilitarista na Rússia contemporânea / 108 VI. Poesia popular tchetchena / 111

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APRESENTAÇÃO

“–Sabe o que é que eu digo às pessoas quando me dizem que estãoescrevendo livros contra a guerra?

– Não sei. Que é que você diz, Harrison Starr?– Eu digo, por que é que, em vez disso, você não escreve um livro

contra geleiras?”(Matadouro nº 5 ou A Cruzada das Crianças. Kurt Vonnegut Jr.)

“Pero con todo, nunca, en ningún período de la vida de la humanidad,las gueras fueron la condición normal de la vida. Mientras los guereros sedestruían entre sí, y los sacerdotes glorificaban estos homicidios, las masaspopulares proseguían llevando la vida cotidiana y haciendo su trabajohabitual de cada día. Y seguir esta vida de la masa, estudiar los métodoscon cuya ayuda mantuvieron su organización social, basada en susconcepciones de la igualdad, de la ayuda mutua y del apoyo mutuo – esdecir, su derecho común –, aun entonces, cuando estaban sometidos a lateocracia o aristocracia más brutal en el gobierno, estudiar esta faz deldesarrollo de la humanidad es muy importante actualmente para unaverdadera ciencia de la vida.”

(El Apoyo Mutuo. Pedro Kropotkin)

Ficção científica e guerra são os temas principais do livro Matadouro nº5 ou A Cruzada das Crianças, do escritor Kurt Vonnegut. Testemunha domassacre de milhares de pessoas no bombardeio sobre a cidade de Dresden,durante a Segunda Guerra Mundial, o personagem Billy Pilgrim percorrediversas falhas no espaço-tempo sideral após ser abduzido pelos tralfa-madorianos – alienígenas que, dentre outras singularidades, não compreendemo significado de livre-arbítrio. Para aqueles estranhos seres, não se prestamexplicações ou advertências sobre acontecimentos que podem ser realizadosou evitados: os acontecimentos simplesmente existem. Dessa maneira, BillyPilgrim passa a aceitar passivamente todas as mazelas de sua existência e domundo ao seu redor, reduzidas numa espécie de predestinação cósmica ouainda, em suas palavras, coisas da vida.

Mas a ficção científica desta concepção de história não reside apenasno romance do escritor. A provocativa interrogação de Harrison Starrcorresponde ao sentimento de apatia e alienação generalizada observada nasociedade russa neste início de século 21, no contexto em que o genocídiodo povo tchetcheno torna-se algo comum, coisas da vida.

A principal motivação deste trabalho, intitulado TERRORISMO DEESTADO NA RÚSSIA: a guerra na Tchetchênia nos descaminhos da

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indústria da violência, é a tentativa de desfazer o silêncio de uma guerraque já vitimou centenas de milhares de pessoas, provocou uma das maioresondas contemporâneas de refugiados na região e instaurou uma política demedo cotidiano de escala continental. E as dificuldades para construí-lo nãoforam poucas, uma vez que a perspectiva de análise autônoma e independenteda questão exigiu uma atividade de pesquisa, incessante, realizada nas brechasde nosso tempo cotidiano e sem qualquer auxílio financeiro.

Assim, entre o final do ano de 2004 e o início de 2006, reunimos e sinte-tizamos os diversos materiais recolhidos (livros, fotos, fanzines, jornais,revistas, documentos etc.) e as impressões subjetivas em ocasião da vivênciade dois meses nas cidades de Moscou e São Petersburgo, além da vila ruralde Priamukhino (Ï ð ÿ ì ó õ è í î). Também traduzimos diversos artigos e textosdisponíveis em sítios eletrônicos, devidamente indicados nas notas dereferência.

Ao mesmo tempo, contamos com a colaboração de Lida Iussupova,representante da ONG Memorial na cidade de Grozny (Ãð î ç í û é), capitalda Tchetchênia (×å÷íÿ), reconhecida ativista na luta em defesa dos direitoshumanos de seu povo. Convidada pela Federação Internacional de DireitosHumanos a participar do IV Fórum Social Mundial, realizado no Brasil emjaneiro de 2005, Lida nos relatou as atuais condições de vida dos tchetchenos,a história das guerras, a resistência de seu povo contra a violenta ditadura doEstado soviético e, atualmente, contra os crimes de guerra das tropas militaresrussas.

Enfocamos basicamente quatro pontos cruciais do tema em questão.Primeiramente, compilamos alguns dados elementares sobre a região doCáucaso setentrional e o povo tchetcheno: geografia, demografia, economia,sociedade, arquitetura e outros aspectos básicos para compreendermos umpovo que incorpora em sua história a luta pelo direito ao autogoverno local ea resistência contra tentativas de dominação. Nesse sentido, citamos tambémos principais focos de conflito entre a Rússia e a Tchetchênia entre os séculos16 e 19.

Em seguida, buscando apresentar um ponto de vista sobre a atualsituação política na Rússia e a origem da guerra na região da Tchetchênia em1994, refazemos a trajetória de formação do Estado totalitário da UniãoSoviética: os levantes populares russos do início do século 20 e suaapropriação ideológica pela ascensão do Partido Bolchevique ao poder apósa Revolução de 1917; a militarização proveniente da industrialização bélicaconjugada ao desmantelamento da vida campesina; a opção do PartidoComunista soviético pela economia capitalista de Estado, traduzida peladivisão do trabalho social; o processo de russificação e sufocamento dashabilidades de auto-subsistência dos povos e comunidades tradicionaisespalhados pelo continente. Salientamos a importância dessa abordagem

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devido à herança latino-americana da mitificação da ideologia comunista,propagandeada intensificadamente durante a época da Guerra Fria (sob aégide falaciosa em que, para combater a política imperialista estadunidense,o “inimigo do meu inimigo é meu amigo”), e cujas conseqüências se revelam,ainda que anacronicamente, na tolerância e cumplicidade de alguns setoresda sociedade em estabelecer vínculos políticos e econômicos com outrasformas de imperialismos contemporâneos (como, por exemplo, o russo ou ochinês). Descrevemos, ao final desta parte, um breve panorama do fim daURSS e da atual ascensão de Vladimir Putin ao poder presidencial da Rússia.

Na terceira parte do trabalho, apresentamos a evolução do conflito naregião da Tchetchênia, principalmente a partir do advento da implosão daUnião Soviética, em 1991, e os conseqüentes movimentos emancipatóriosobservados em suas ex-Repúblicas. Procuramos caracterizar as diferençasfundamentais entre o primeiro período da guerra na Tchetchênia (1994-1996)– fundada na luta pela independência local e pela possibilidade de negociaçõesentre representantes da Federação Russa e da Tchetchênia – e o segundoperíodo da guerra (reiniciada em 1999) – dentro da perspectiva das açõesterroristas de rebeldes tchetchenos e das medidas de controle e repressãoda sociedade russa. Por outro lado, ambos os momentos do conflito res-guardam semelhanças fundamentais: a população civil tomada como refémpelas forças militares, o aumento das dificuldades sociais na Tchetchênia e naRússia, os horrores da guerra. É importante notar que a designação de“atentados terroristas” vincula-se a uma construção político-ideológica dogoverno russo, procurando deslegitimar as reivindicações de independênciapolítica da Tchetchênia. Por outro lado, as operações militares do exércitorusso na Tchetchênia, que causam a morte de civis, assim como os seqüestros,estupros, e outras formas de violência psicológica e torturas, não sãoconsiderados crimes de guerra, nem atos terroristas.

Em decorrência direta de tal panorama, colocamos em seguida aproblemática dos refugiados tchetchenos nas regiões da Federação Russa,principalmente nos territórios vizinhos (como a Inguchétia) e nas grandescidades (como Moscou e São Petersburgo). Nesse sentido, o fortalecimentodo nacionalismo russo aliado a discursos e práticas preconceituosas ouxenófobas (muitas vezes servindo de base ideológica para agressões físicas epsicológicas, linchamentos e assassinatos de indivíduos pertencentes a mino-rias étnicas) acentuam o genocídio em curso do povo tchetcheno.

Colocamos nas considerações finais uma síntese do panorama dasociedade na Rússia contemporânea, centrada na política de medo cotidianoimplementada pelo governo russo através da atualização dos mecanismos derepressão social e no papel crucial dos serviços e produtos da indústria daviolência, objetivando o revigoramento de uma economia decadente: políticae objetivos, aliás, absolutamente condizentes com as justificativas de guerra

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propagadas pelos Estados Unidos na luta global contra o terrorismo. Poroutro lado, destacamos movimentos organizados de resistência contra a guerrana Tchetchênia e contra a xenofobia.

Nos anexos desta obra sistematizamos a cronologia das relações políticase principais conflitos entre a Rússia e a Tchetchênia durante os séculos 20 e21; traduzimos um texto referente à perseguição dos camponeses e outrosobre a criação da Tcheka (× Ê: tcherezvytcháinaia komíssiia), políciabolchevique, e seus desdobramentos no desenvolvimento dos mecanismosde repressão estatal; relatamos a campanha antimilitarista em curso na cidadede Pierm; incluímos algumas fotos que integraram a exposição “Guerra ePaz na Rússia: cultura e resistência no século 21”, organizada em algumascidades do Brasil durante o ano de 2005. Traduzimos um artigo de AnnaPolitkóvskaia, jornalista assassinada há um mês. Ao final, uma poesia populartchetchena.

Ressaltamos que este trabalho é dedicado a todos os que não conside-ram a guerra como algo inerente à História, nem se conformam passivamenteperante violações de direitos humanos fundamentais e que, contrariamente aqualquer concepção de predestinação, acreditam nas atitudes individuais,ações coletivas, movimentos sociais e outras formas de manifestações pararesistirmos aos fundamentalismos religiosos e doutrinas ideológicas, supe-rando com lucidez nossa condição humana – e que isso não seja jamais vistocomo algo alienígena à nossa espécie.

Ação Literária pela Autodeterminação dos PovosNovembro 2006

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Protesto em Moscou contra a guerra na Tchetchênia

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A Região da Tchetchênia: aspectos socioculturais

I. Dados geográficos e demográficos1

Tchetchênia

Território: 19300 km².Divisão administrativa: 12 regiões; seis cidades, quatro vilas urba-

nizadas, 165 vilas.Capital: cidade de Grozny (210.700 habitantes)2.Cidades principais: Chali (Øàëè) (40.350 habitantes), Urus-Martan

(Óðóñ-Ì àðò à í) (39.980 habitantes), Gudermes (Ãóäåðì åñ) (33.750habitantes), Argun (Àðãóí) (25.700 habitantes).

Tchetchenos

Autodenominação: notchkhiyReligião predominante: muçulmanos sunitas.Os povos vainatckhi3, que significa “nosso povo”, autodenominação dos

tchetchenos, assim como de seus irmãos inguches, são moradores enrai-zados do Cáucaso Setentrional. São mencionados nas fontes armênias do século7, sob o nome de nakhtchamat-ian.

No Casaquistão, região para qual os tchetchenos e inguches foram depor-tados em 1944, ainda moram aproximadamente 32.000 tchetchenos. Há diás-poras na Jordânia (5.000 pessoas) e nos Emirados Árabes (1.000 pessoas).

Organização social e econômica

A estrutura social das comunidades tradicionais na região da Tchetchêniae do Cáucaso Setentrional era formada por teipes, compostas por diversasfamílias. Além disso, as teipes aceitavam outros agregados em sua com-posição social, provindos de outras regiões.__________1. Fonte: <<www.kavkaz.memo.ru/regionstext/chechnya>> (acessado em 10 de junho de 2006).2. Dados demográficos referentes ao ano de 2002.3. Dados de 1999. Fonte: idem.

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Nas teipes, constituídas por uma vila ou por um conjunto de vilas, asquestões cotidianas referentes aos seus habitantes eram decididas nosconselhos, compostos pelos anciãos e, em alguns casos específicos, poroutros representantes da comunidade. O Conselho dos conselhos legislavasobre questões que envolviam o coletivo das teipes. Formava-se, ainda, oConselho Maior, congregando todos os povos das montanhas. No caso deguerra, escolhia-se um líder, a quem todos os habitantes juravam lealdademilitar.

A terra, as águas e os bosques pertenciam aos habitantes das vilas. Astarefas de subsistência eram realizadas pela própria comunidade, baseadasessencialmente na plantação de batata, milho e trigo, além das atividadespastoris. Pelas torres de pedra, a segurança da comunidade garantia-se atra-vés de atenta observação do território.

Essa forma de organização social dos povos das montanhas se contra-punha às tentativas de estabelecimento de um Estado ou outras formas dehierarquização institucional. Tais características permaneceram, em parte,até o início da recente guerra na Tchetchênia4.

* * *

Na planície do Cáucaso Setentrional, as ocupações tradicionais sãoagricultura (milho, trigo, cevada, milho-miúdo) e criação de gado; nas regiõesmontanhosas – pastos e agricultura nos terraços.

Indústria artesanal: confecção de burkas (roupa tradicional de pele),curtume, cerâmica, produção de armas e de jóias, trabalhos com madeira epedra, mineração.

Roupa tradicional masculina: tcherkesska, bechmet, charovary, burkae bachlyk. Cobertura para cabeça – papakha (gorro alto de pele), chapéu defeltro, solidéu bordado. Mulheres vestiam camisas longas – vermelhas, ama-relas, verdes ou azuis e charovary; bechmet no inverno. Para cobrir a cabeçausavam lenço de seda ou de lã; calçavam – tchuviaki, botas, sapatos. Atual-mente os moradores idosos preservam alguns elementos dos trajes na-cionais.

Comida tradicional: pratos de farinha de milho ou trigo – galuchki, sopase mingaus variados, panquecas sem sal. Pratos lácteos populares – tvorog(espécie de ricota) com smetana e tvorog com manteiga derretida.

Folclore: lendas, estórias, contos de fadas, canções. Tradições antigasde dança e música. Os instrumentos musicais mais comuns são tchondyrk

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__________4. A autoridade dos anciãos, por exemplo, está presente até os dias atuais, porém foi enfraquecidapelas operações militares – conforme Lida Iussupova, da ONG Memorial.

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__________5. Fonte: <<kavkaz.memo.ru/encyclopediatext/encyclopedia/id/407566.htm>> (acessado em10 de junho de 2006).6. Fonte: <<kavkaz.memo.ru/encyclopediatext/encyclopedia/id/591052.htm>> (acessado em10 de junho de 2006).

(tipo de violino bilateral), detchigpondar (tipo de balalaika montanhesa),zurna, pandeiro e tambor5.

Idioma tchetcheno6

O idioma tchetcheno é uma das línguas nakhsko-daguestãs (do Cáucasooeste). É difundida principalmente na Tchetchênia e nas regiões de Khasav-Iurt (Õàñàâ-Þðò) e Novolákski (Íîâîëàêñê) do Daguestão, e também, naInguchétia e na Geórgia; além disso, em menor grau, na Síria, na Jordânia ena Turquia. Há vários dialetos. A fonética da língua tchetchena possui umvocalismo complexo e um grande número de ditongos e tritongos.

A língua literária tchetchena formou-se no século 20 na base do dialetoda região planície. A escrita em tchetcheno até 1925 funcionava com a grafiaárabe, em 1925-1938 com grafia latina, e a partir de 1938 com grafia cirílica,usando um símbolo auxiliar: a letra I, e alguns dígrafos: (êõ, àü, òI etc.) etrígrafos (óüé). A partir de1991 houve tentativas de retorno à grafia latina.

II. Moradia tradicional dos tchetchenos

A natureza influenciou na formação dos povoados e das moradias naregião da Tchetchênia. Há diferença entre os povoados das montanhas e daplanície. Desde antigamente, o principal material de construção é a pedra, eos materiais secundários são madeira, barro e palha. Construindo as mora-dias nas fendas entre as montanhas, as pessoas erguiam as construções detal maneira que permitisse a melhor defesa. Além disso, a escolha do lugarpara o povoado foi influenciada pela proximidade dos pastos, da água e daboa terra. A terra era muito valorizada, por isso as casas foram construídasem cima das pedras, muitas vezes de difícil acesso. O tipo de moradia maiscomum nos povoados montanhosos eram as casas de um andar com telhadochapado. Também existiam casas de dois andares e torres de defesa de trêsa cinco andares. Estas construções – casas para morar, torre e instalaçõesauxiliares – formavam a fazenda. Dependendo do relevo das montanhas,estas fazendas tinham ocupação horizontal ou vertical. O povoado montanhosoparecia um conjunto desorganizado de construções. Não existiam ruas retas.A terra escassa era dividida entre as teipes. A teipe de muitas famílias tinhamais terra, e a de poucas famílias menos. Assim surgiam os quarteirões:geralmente, os moradores que tinham parentesco ocupavam determinadoquarteirão. Cada povoado tinha invariavelmente uma praça onde o povo se

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reunia e onde construíam a mesquita. O mesmo tipo de planejamento, pos-teriormente, foi transferido para os povoados da planície, que se estendiamao longo dos rios ou das estradas, sendo mais populosos. Se os povoadosdas montanhas contavam, em média, 20 a 25 quintais, os da planície tinham400 ou mais moradias.

Nas planícies utilizavam outros materiais para a construção das casas.As paredes trançadas de galhos, eram rebocadas com barro e esterco fresco.Os telhados faziam com varas de madeira e com cascas de árvores porcima, cobertos com barro espremido por um instrumento especial para quenão crescesse grama.

A casa dividia-se em duas partes (quartos) que não se correspondiamentre si. Cada uma tinha sua saída para a rua. Um quarto pertencia ao donoda casa. Nele também eram recebidos os hóspedes. Outra parte pertencia àdona da casa e às crianças. A casa se aquecia com uma lareira específicaque também servia de forno. Uma chaminé trançada, rebocada com barro,ficava um metro acima do chão. Embaixo da chaminé, em um suporte debarro, o fogo estava sempre acesso. Na chaminé penduravam uma correntecom gancho para as panelas. Havia poucos móveis: poltrona do dono dacasa, mesa para refeição, bancos baixos. Dormiam geralmente no chão,usando colchões, esteiras, tapetes e cobertores guardados nas largas pra-teleiras ao longo do quarto. Ali também estavam baús e louça. Não haviajanelas, mas ao chão faziam-se buracos quadrados que, à noite, eram fecha-dos com madeira.

Casas tipicamente russas feitas de tijolos ou troncos de madeira, comjanelas e portas de entrada, com fornos de ferro e telhados de telha, aparecemna Tchetchênia no século 19, assim como as fábricas de produção de tijolose telhas.

Arquitetura medieval da Tchetchênia e da Inguchétia

A arquitetura medieval da Tchetchênia e da Inguchétia é considerada umfenômeno peculiar e pouco estudado. Entre os monumentos arquitetônicosdestacam-se altares pagãos, catedrais cristãs, criptas de famílias e, finalmente,as torres de defesa e de moradia. Durante muitos séculos os tchetchenos eos inguches viviam como vizinhos muito próximos nos territórios ao longo daprincipal cadeia de montanhas do Cáucaso, entre os atuais territórios daOssétia e do Daguestão.

A região do Cáucaso sempre foi uma encruzilhada da grande migraçãode povos, que se dirigiam do leste para oeste e do sul para o norte. Quandono baixo das montanhas passava uma onda de nômades, pelas montanhassubiam várias tribos. Os contatos culturais entre os povos das montanhas e omundo exterior foram determinados por vários fatores, tais como as cara-

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vanas da grande rota da seda, ou a chegada dos missionários cristãos. So-brevivendo em condições extremamente difíceis, os vainakhi conseguiramcriar uma arquitetura que, atualmente, nos impressiona com sua funcionali-dade e expressão artística. Os vainakhi moravam em torres. Ao lado datorre da moradia construíam a torre de defesa – uma casa-fortaleza, tãocomum no cotidiano dos homens livres na Europa medieval. Nas paredes depedra também enterravam os mortos, pois a terra era escassa e a melhorterra servia para a agricultura. Assim, as torres e as criptas eram construídasem cima da parede. Para as criptas iam os doentes durante as epidemiasperiódicas. Os sobreviventes voltavam para casa.

Nas principais trilhas colocavam os altares. Durante as festas, para esteslugares se dirigiam os habitantes vestidos de branco. Aqui pediam ao deus acolheita e a boa procriação. Após a reza, faziam-se sacrifícios e comilanças.

Os pesquisadores enfocam duas ondas de construção ativa. O primeiroperíodo – séculos 9 até 13 – se deve à chegada de missionários cristãos aoCáucaso Setentrional. Exatamente nesse período aparecem as catedrais eas primeiras torres de defesa. No século 14 são construídas as torres para ascriptas. Os arqueólogos datam da mesma época os altares preservados. Osegundo período refere-se ao século 17, marcado pela proliferação da armade fogo. As torres de defesa foram desmontadas e, do mesmo material,foram construídas as novas torres com as estreitas janelas para armas defogo, ao invés de largas, próprias para o uso de arco e flecha. Isto foiprovocado pelo apogeu do comércio de escravos promovido pelo ImpérioOtomano ao longo de todo o Cáucaso Setentrional.

Na Inguchétia foram preservadas três catedrais cristãs, não há mesqui-tas. Na Tchetchênia, pelo contrário, não há catedrais cristãs, mas foram pre-servadas as mesquitas. Somente no território tchetcheno podemos encon-trar torres de defesa muito curiosas: a fenda vertical entre as montanhas co-berta com uma parede com janelas para atirar; a entrada, muito alta, só eraacessível por uma escada móvel guardada dentro da fortaleza.

A engenhosa torre de defesa é uma edificação única. A base relativamentepequena é um quadrado (4,5m²), enquanto a altura das torres chega a serde 25m a 30m. As paredes são íngremes. O topo da torre é coberto com umtelhado em degraus, que por fora parece uma pirâmide. Dentro da torre,sobre seu segundo nível, arcos internos entrelaçados formam um telhado,cujos alçapões permitiam acesso aos níveis superiores, divididos por umacoberta de troncos de madeira.

Os vainakhi não tinham escrita e, portanto, a história dessa arquitetura éreconstruída através da comparação com outros monumentos históricos detodo Cáucaso.

Infelizmente, a preservação dos monumentos arquitetônicos medievaisdos vainakhi encontra-se sob séria ameaça. Os povoados montanhosos fo-

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__________7. Kuzmin, Valentin Aleksandrovitch – arquiteto; arquiteto-chefe da República Inguchétia eKaratchaievo-Tcherkessia. Atualmente trabalha com a restauração da catedral do século 13 emTkhabo-Ierdy na Inguchétia e da catedral do século 10 em Karatchaievo-Tcherkessia. Há maisde 20 anos trabalha com pesquisa e documentação sobre os monumentos arquitetônicos doCáucaso setentrional.Il´iasov, Latcha Makhmudovitch – filólogo; publicou artigos sobre os monumentos antigos daTchetchênia, que pesquisa e fotografa. Fez várias exposições fotográficas com apoio do Centrode pesquisa e popularização da cultura tchetchena “LAM” (Grozny).8. Fonte: <<kavkaz.memo.ru/bookstext/books/id/612069.htm>> (acessado em 10 de junho de2006).9. Durante a tal chamada “pacificação do Cáucaso” muitos dos povos autóctones foramexterminados pelo Império Russo. Um dos exemplos é o extermínio e a deportação dos povosubykhi e abzakh (que habitavam a costa do Mar Negro), cuja trágica história é descrita porGeorges Dumézil em Documents anatoliens sur les langues et les traditions du Caucase. III.Nouvelles Études Oubykh. Paris: Institut d’Ethnologie: 1965.

ram abandonados pelos seus moradores há muito tempo. Sem reparo, asparedes estão sendo destruídas pelas chuvas ou enxurradas d’água, e partedas torres desabou. Hoje os pastores utilizam as torres para abrigo do re-banho. Ultimamente, somam-se às destruições causadas pelo tempo, asdestruições causadas pela guerra. Por exemplo, as torres de defesa nospovoados Dere e Charoi, e a cripta no vale Targímskoe, foram destruídaspor mísseis. Os túmulos das criptas foram vasculhados à procura de tesouros.

Não existem dados exatos sobre o número de monumentos preserva-dos. Estimativas de pesquisadores7 apontam para aproximadamente 1.500construções na Tchetchênia e na Inguchétia.

III. Apontamentos cronológicos das relações entre a Rússia e aTchetchênia (séculos 16-19)8

Na segunda metade do século 16, a dominação de Ivan, o Terrível, seexpande até a planície caucasiana, onde seus súditos encontram ostchetchenos – moradores da região – no leito do rio Sunja (Ñóíæà), pertodo povoado Tchetchen-aul (×å÷åí-àóë). Daí a origem do nome atribuído aopovo tchetcheno pelos russos.

Durante o século 17, período histórico também conhecido como “Tem-pos Tumultuosos”, no Cáucaso se estabelece o confronto entre os cossacos,homens livres fugidos da servidão e deslocados ao norte do rio Terek(Òåðåê), e os tchetchenos, situados nas planícies montanhosas.

Os cossacos tornam-se “homens do Estado”, conquistando novosterritórios para o Império Russo. Em 1739, a “linha fortalecida de Kizliar” éestabelecida, iniciando a luta do Império Russo contra os montanheses pelocontrole das planícies montanhosas.

Segundo Nikolai I, o czarismo objetivava “dominar os povos dasmontanhas ou o extermínio dos desobedientes”9. Após a conquista, os

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tchetchenos foram expulsos das terras férteis para as montanhas, fugirampara a Turquia, e suas moradias foram destruídas. A atual capital, Grozny, foierguida sobre os escombros de antigas aldeias tchetchenas.

Entre 1780 e 1859 os montanheses lutaram contra os colonizadores. Oapogeu desta luta armada foi a guerra de Cáucaso (1817-1859). Contra osmontanheses, comandados pelo imã Chamil, os russos mobilizaram maistropas que contra Napoleão. Mesmo assim os moradores da Tchetchêniaresistiam ao Império. Um correspondente militar escrevia para um jornalmoscovita: “Na Tchetchênia só aquele lugar é nosso, onde estamosdeslocados. Assim que a unidade militar se move, o lugar volta a ser dosrebeldes”. Muitos soldados russos, não querendo participar da colonização,desertavam e fugiam para a Tchetchênia, livre da servidão. No exército deChamil eles até fundaram um regimento russo. Mas as forças nesta guerraforam demasiadamente desiguais. Após décadas de guerra sangrenta, oczarismo conseguiu conquistar os povos do Cáucaso e incluí-los no Império.

1739Estabelecimento da “linha fortalecida de Kizliar”.1785-1791Levante dos montanheses sob comando do cheque tchetcheno Mansur

(Uchurma), que uniu as tribos dos montanheses na luta contra o Império Russo.1817Avanço do exército russo para a parte montanhosa da Tchetchênia. Início

da Guerra do Cáucaso (1817-1864).1818Fundação da fortaleza Grozny.1834-1859Guerra da Rússia contra o imã Chamil, que uniu várias tribos dos

montanheses contra a intervenção dos russos. 26 de agosto de 1859Tomada da última residência de Chamil, vila Gunib, pelo exército russo.

Chamil torna-se prisioneiro. Fim da luta dos montanheses pela independência. 21 de maio de 1864Data oficial do fim da Guerra do Cáucaso. O exército russo apaga o

último foco da resistência no Cáucaso Oeste.1869A fortaleza Grozny é renomeada como cidade Grozny.1877-1878Levantes dos montanheses. Levante popular no Daguestão e na

Tchetchênia contra o Império Russo em apoio aos fiéis turcos durante aguerra entre a Rússia e a Turquia.

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18Torre medieval na Tchetchênia

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Estado Totalitário na União Soviéticae seu Legado na Rússia

ContemporâneaI. Nota sobre formação do Estado moscovita na Rússia czarista

A rígida e hierarquizada sociedade feudal czarista russa foi consolidadaatravés da articulação dos diversos principados desde meados do século 15,após a vitória de Ivan III sobre as hordas de tártaros-mongóis que assolarame dominaram o território russo durante mais de um século. Após períodos deinstabilidade e agudas disputas pelo poder, as estruturas político-admi-nistrativas czaristas modernas foram desenvolvidas durante o século 18,principalmente através das ações de Pedro I, o Grande, e Catarina II, aGrande.

O primeiro censo demográfico realizado no Império Russo, em 1897,registrou quase 129 milhões de habitantes, dos quais 44,6% se declaravamrussos. A parte européia da Rússia era habitada por 93,4 milhões de pessoas,sendo quase 10 milhões no Reino da Polônia10, e 2,6 milhões no principadoda Finlândia. Concentravam-se cerca de 9,3 milhões na região do Cáucaso,5,8 milhões na Sibéria e 7,6 milhões nas regiões da Ásia Central. Todos oshabitantes do império foram divididos em classes: nobres (fidalgos), clero,comerciantes, pequenos-burgueses e camponeses, e cada uma dessasclasses possuía seus direitos e obrigações fixados com exatidão11.

II. Levantes populares e revoluções no início do século 20

Entre o final do século 19 e início do século 20 diversas movimentaçõespopulares ocupavam o contexto social do governo do Czar Nikolai II. Aincapacidade e passividade do czarismo na resolução da situação política e aprofunda crise econômica em que mergulhara a Rússia ocasionavam__________10. A Polônia integrava o território do Império Russo desde 1812.11. Âåêà À.Â. Èñòîðèÿ Ðî ññèè. Ìí.: Õàðâåñò. Ì . : Àñò, 2003. Ñ.663 (VEKA, A.V. Históriada Rússia. Moscou: Ast, 2003).

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__________12. Após o massacre, padre Gapón deixa a Rússia e após seu retorno, anos depois, é descobertopor trabalhadores e executado como traidor.

descontentamento social generalizado. Os camponeses, ao lado detrabalhadores concentrados nas grandes cidades e em Petersburgo (antigacapital do Império Russo), ocupavam papel central em tais movimentações.A situação de convulsão social aumentava vertiginosamente.

Círculos e associações estudantis pregavam abertamente o anti-czarismo, incitando sublevações e desobediência aos monarcas. Neste caso,a resposta da monarquia czarista russa foi proibir o funcionamento de taisorganizações, através de decreto governamental (1884). Além disso, ogoverno passou a incorporar os estudantes insurrectos ao Exército Czarista– fato que agravou ainda mais os conflitos e culminou no assassinato doMinistro da Educação Bogolopov, em 1901.

Após a crise da indústria têxtil, em 1899, e com o desencadeamento daslutas por melhorias das condições de trabalho nas regiões petrolíferas deBaku e Batum, em 1903 (com direta ressonância em outras lutas populares,como na Ucrânia), trabalhadores russos passam a se auto-organizarlocalmente e, pouco a pouco, grupos de oposição político-ideológica sefortaleciam: social-democratas, social-revolucionários, comunistas eanarquistas estendiam suas atividades, principalmente nas grandes cidades.

A derrota da Rússia em guerra travada contra o Japão (1904) tambémcolaborou para enfraquecer a legitimidade da monarquia.

Com a intenção de desestruturar a oposição política, o governo czaristapassa a criar organizações operárias, legalizadas para amenizar os protestospopulares e demonstrar interesse e preocupação com as reivindicações dostrabalhadores. Nessas Seções Operárias infiltravam-se agentes gover-namentais, como Zubatov, em Moscou – rapidamente descoberto pelos ope-rários que interromperam suas atividades –, ou padre Gapón, em São Pe-tersburgo – cuja dissimulação propiciou duradouro convívio com traba-lhadores naquelas organizações (proibidas a membros de partidos ou agrupa-mentos revolucionários). Gapón chegou a liderar as mobilizações na fábricaPutilov, inclusive conduzindo uma grandiosa marcha de trabalhadores aoPalácio do czar russo Nikolai II (em janeiro de 1905), para entregarpacificamente um manifesto com reivindicações trabalhistas: na emboscada,os soldados abrem fogo contra os manifestantes, indefensavelmentemassacrados12.

O ano de 1905, em especial, foi marcado por diversas lutas populares,como o nascimento do Soviet (Conselho) de Trabalhadores em SãoPetersburgo. Concebido por diversos trabalhadores que freqüentavam a casade Vsevolod Mikháilovich (Volin), a idéia era criar um organismo permanentede reunião, uma espécie de comitê que acompanharia o desenrolar das

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movimentações populares na Rússia, servindo de vínculo entre os operários,e possibilitando a troca de informações sobre a situação geral, reunindo for-ças revolucionárias.

Nomeado Soviet de Delegados Operários foi presidido por GeorgiNossar, considerado um “sem partido” pelos bolcheviques. Segundo os bol-cheviques, o Conselho duplicava as tarefas da organização partidária,configurando-se como um agrupamento rival politicamente instituído pelostrabalhadores russos. Todavia, a motivação para a formação dos sovietspelos trabalhadores foi o desejo de agrupar e dirigir sua luta dispersa peloterritório russo, e em nenhum caso a tomada do poder político. A trans-formação do caráter apartidário e autônomo da organização e dos objetivosdo Conselho dá-se com a ascensão de Trotski à presidência do organismoque, enquanto menchevique13 e membro do POSDR (Partido OperárioSocial-democrata da Rússia), passa a vincular as ações políticas do Conse-lho às diretrizes de seu Partido.

Outros Conselhos de Trabalhadores também organizavam-se pela Rús-sia, alguns até anteriores ao Conselho de Delegados Operários de SãoPetersburgo, como o caso dos Soviets de Ivanovo-Voznesensk (região in-dustrial de Moscou). Criados a partir das greves de trabalhadores da indús-tria têxtil, suas reivindicações acerca do papel desses Conselhos no controleda gestão da produção fabril, bem como da forma autônoma de organizaçãoda luta operária, influenciaram outras mobilizações populares.

Os ferroviários de Odessa, por exemplo, incorporaram os princípiospolíticos dos Conselhos, desencadeando uma série de greves na região. Como intuito de aplacar tais movimentações, o ministro Trepov envia o navioencouraçado Potemkin (Ï î ò ¸ ì ê è í) para reprimir os movimentosrevolucionários na cidade portuária de Odessa. No entanto, uma repentinasublevação dos marinheiros do encouraçado, impulsionada pelas péssimascondições de trabalho, ocasiona a tomada do navio e o fuzilamento doscomandantes – e os marinheiros se solidarizam com os trabalhadores daquelacidade, estimulando e fortalecendo os protestos na região, ao invés de reprimi-los. O encouraçado Potemkim navega até o porto romeno de Constanta,evitando assim as violentas represálias das autoridades czaristas, porém aindainsuflando outras rebeliões de marinheiros, como nos encouraçados Ochakove Rostilov.

Ao mesmo tempo, soldados também descontentes com suas condiçõesde trabalho se confraternizavam com movimentos grevistas em diversascidades, como em Sevastopol.

Pressionadas pela evolução das movimentações e levantes populares, asautoridades czaristas anunciam a criação da Duma (parlamento), no final de__________13. Tendência minoritária no Partido Comunista.

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1905, visando assegurar alguma legitimidade do poder monárquico eenfraquecer a intensidade das lutas dos trabalhadores. Por um lado, a criaçãodo parlamento ofereceu mais tempo de poder ao governo czarista e, pelooutro, possibilitou a organização de novas associações profissionais,agrupamentos políticos e partidos – muitas vezes clandestinos. No verão de1906 a Duma é dissolvida pelo Czar Nicolai II. Muitos deputados deixam aRússia, e novos parlamentos são instituídos e dissolvidos seqüencialmente,até tornar-se um organismo do governo.

Greves e motins ainda ecoaram na Rússia entre 1906 e 1916, assimcomo outras movimentações populares anticzaristas. Em 1907 é criada aCruz Vermelha Anarquista (atual Cruz Negra), em apoio aos presos russos.Através de permanentes discussões e produções de jornais, indivíduos egrupos revolucionários multiplicavam suas atuações dentro e fora da Rússia.Pouco a pouco, a monarquia agonizava seu poder secular14.

* * *

Em 1917, novo estopim da revolta popular: trabalhadores em Petrogra-do (ex-São Petersburgo) iniciam uma greve que, ultrapassando as rei-vindicações trabalhistas, exigem a saída imediata do czar (fevereiro de1917)15. O Czar Nicolai II finalmente renuncia ao poder, e um governotemporário é formado pelos representantes dos partidos da burguesia até aseleições para a Assembléia Constituinte programadas para novembro.

Os principais problemas observados em 1917 eram os conflitos daPrimeira Guerra Mundial (iniciada em 1914), a péssima situação econômicada Rússia, a pobreza do povo e a urgência das reformas – principalmente dareforma agrária.

Nas áreas rurais surgiam os conselhos e as uniões camponesas. Osconselhos se formavam segundo o princípio de delegação: as organizaçõesde base enviavam seus delegados para o conselho maior, podendo revogarseus mandatos ou reelegê-los. Esse princípio funcionou sem regras fixas, eem acordo com cada especificidade local, até o final de 1917 (quando osbolcheviques começaram a impedir a reeleição dos delegados e passaram areprimir os conselhos contrários à sua política).

Os conselhos camponeses, apoiados pelos partidos de esquerda, insis-tiam na socialização da propriedade16. Os camponeses organizados em__________14. Informações extraídas e sintetizadas a partir da revista Tierra y Libertad. PeriódicoAnarquista, no 205, ago. 2005. Número monográfico: Ciem Años de la Revolución Rusa de1905.15. O texto a seguir é um breve resumo do ensaio Socialistas na Revolução Russa de 1917-1921. Autor: Aleksandr Chúbin. Moscou, 1999.16. Ao contrário do programa de nacionalização realizado pelos bolcheviques após a tomada depoder, quando a terra passou a ser do Estado.

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__________17. Forma tradicional de organização dos camponeses russos.18. Participaram 1.353 deputados, mais da metade foram eleitos pelo exército.19. 1.080 deputados de 336 conselhos e 23 unidades militares.

obschinas17 e grupos de autogestão deveriam descobrir, criar e inventarnovas formas coletivas de uso da terra, dependendo das especificidadeslocais: a terra passava a pertencer aos trabalhadores que nela viviam etrabalhavam; essas pessoas decidiriam as formas de exploração do solo ede organização da produção, da gestão, da divisão do trabalho etc. O mesmodeveria ocorrer com a indústria: as fábricas deveriam ser socializadas, e adistribuição dos produtos realizada pelas organizações de trabalhadores, enão pelo sistema estatal-burocrático.

Estas questões foram discutidas e encaminhadas em forma de projetosde leis para o governo temporário no I Congresso dos Conselhos dosDeputados Camponeses (maio de 1917), o fórum mais representativo desteperíodo18. Os participantes votaram a favor da transferência das terras doslatifundiários (pomieschiki) aos comitês de camponeses (comitês de terra)eleitos localmente; estes deveriam determinar as leis de uso do solo. Oscamponeses, contrários à comercialização, exigiam a proibição dos negócioscom a terra (compra/venda) até o fim de distribuição. Essa exigência viroumedida temporária do governo em 17 de maio e foi aprovada definitivamenteem julho.

Outra importante mobilização foi a reunião do Congresso Pan-Russode Deputados Operários e Soldados, em junho19. Foi decretado o direito àsgreves e dia de trabalho de oito horas (que na prática funcionava desdemarço).

As eleições para a Assembléia Constituinte (AC) se aproximavam epodiam descarregar a tensa situação social que teve seu ápice em julho – emSão Petersburgo, os operários, soldados e marinheiros saíram às ruasclamando “Todo poder aos conselhos!”.

Em setembro, o ponto de vista de Lenin sobre a urgência da tomadaarmada do poder vence entre os dirigentes dos bolcheviques. Em outubrofoi preparado o golpe. Era importante realizá-lo antes das eleições para aAC e apoiar-se na ala radical dos conselhos que se reuniam para o IICongresso.

No II Congresso dos Deputados Camponeses, Operários e Soldadosparticiparam cerca de metade dos conselhos que compuseram o I Congresso.Estavam representadas duas tendências principais: uma radical (bolchevi-ques e anarquistas) e outra moderada (bolcheviques moderados, socialistas-revolucionários de esquerda, mencheviques internacionalistas, líderes dossindicatos de ferroviários Vikjel – Âèêæåëü). Lenin e seus correligionáriosexigiam a tomada do poder pelo partido bolchevique, porém a maioria dos

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delegados considerava a proposta unipartidária uma ameaça de guerra civile uma atitude reacionária. Para os deputados, o golpe de outubro deveriaenveredar-se para a criação de um governo socialista multipartidário res-ponsável perante os conselhos. Um dia antes do golpe foram proclamadosos decretos sobre a paz (fim da guerra) e a terra (socialização).

Em 24 de outubro, o governo temporário fecha a imprensa bolcheviquee começa a mobilização militar. Os bolcheviques, que até então só aguar-davam um pretexto para o golpe, iniciaram o levante. A população apoiou osbolcheviques considerando a atitude do governo uma ameaça à revolução eao congresso que encontrava-se em funcionamento durante aqueles dias.

Em 12 de novembro acontecem as eleições para a Assembléia Cons-tituinte, representando grande decepção para os bolcheviques, que obtiveramapenas 22,5% dos votos (outros partidos socialistas obtiveram 57,2%;socialistas-revolucionários – 50,5%). Nesse contexto, os bolcheviquesiniciaram as perseguições aos deputados logo após as eleições. Em Kaluga,cidade próxima a Moscou, uma manifestação em apoio à Assembléia foiatacada com tiros de fuzil.

Em dezembro de 1917 é promulgado o decreto – mantido em segredopor sete anos – criando a Tcheka20 (polícia secreta bolchevique, futuraNKVD e KGB).

III. Poder estatal bolchevique e a elaboração do discurso ideológicocomunista (centralização e expansionismo do poder)

Em 05 de janeiro de 1918, no dia de abertura da Assembléia Cons-tituinte, o Exército Vermelho dos bolcheviques massacra a manifestação dosoperários e da intelligentsia que apoiava a reunião, causando a morte de 12pessoas.

A Assembléia Constituinte funcionou durante a noite inteira. A Rússiafoi proclamada República Democrática Federal. Foi promulgado o “Decretosobre a paz” (Äåêðåò î ìèðå) estabelecendo a retirada das tropas russasdos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial, e condenando asnegociações unilaterais entre os bolcheviques e o governo da Alemanha. Nodia seguinte, quando os deputados voltaram à reunião, as portas estavamtrancadas: os bolcheviques haviam declarado a dissolução da AssembléiaConstituinte e tomado o controle do prédio. Após isso, todos os outrospartidos, anarquistas e grupos políticos autônomos foram excluídos do novoprojeto de poder.__________20. Ao incluir no ANEXO II desta obra a tradução de alguns documentos da Tcheka, objetivamosa desmistificação de Josef Stalin como único responsável pelas estruturas totalitárias do EstadoSoviético, assinalando o período leninista como precursor do terrorismo de Estado na URSS.

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__________21. Os operários faziam uma avaliação severa do Estado “operário”: “Em 25 de outubro de1917 o Partido Bolchevique apoiando-se em soldados e marinheiros armados derrubou ogoverno temporário e tomou o poder. Nós, operários de Petrogrado, em sua maioria aceitamosesse golpe promovido em nosso nome, mas sem nos consultar e sem nossa participação...Usando nosso nome executavam todos assinalados pelo novo poder como inimigos; nósaceitávamos a redução de nossas liberdades e nossos direitos, esperando a realização daspromessas dadas pelo poder. Mas já se passaram quatro meses e vemos nossa fé humilhada,nossas esperanças esmagadas” (citado em Utopia no Poder. História da União Soviética Desde1917 até Nossos Dias. Gueller M. Nekritch A L., 1986. p.56).

O governo bolchevique congela a transferência das fábricas aos operáriose elabora sua própria lei de uso das terras. Lenin exige a inclusão de pará-grafo que concebe as fazendas estatais: kolkhoz (êî ëõî ç) – sonho agráriodos marxistas. Os camponeses foram massacrados pela fome, pois o Esta-do proibia a troca direta dos produtos entre o campo e a cidade (uma dasexceções foi a organização econômica estruturada por camponeses naUcrânia, burlando as leis bolcheviques). Os operários perderam o controlesobre a gestão da produção nas fábricas, dirigidas agora obrigatoriamentepelos comissários do povo (íàðîäíûå êîìèññàðû) do Partido Comunistabolchevique.

Em março foi assinado o acordo de paz com a Alemanha nas condiçõesexigidas pela Alemanha: a Rússia perdia os territórios da Polônia, parte doCáucaso, países Bálticos e parte da Ucrânia, e além disso pagava indeni-zações. Na Ucrânia começa a guerra de guerrilha contra a ocupação alemã.

As greves de trabalhadores continuavam na Rússia em 1918. Paracontê-las, bolcheviques ocuparam as direções de sindicatos e conselhos,proibindo novas eleições. Contrariados, os operários recriam o sistema derepresentação, elegendo delegados aos conselhos e construindo forte opo-sição à ingerência estatal que abarcava todas as grandes fábricas dePetrogrado (cerca de 56 unidades), e que rapidamente se expandiu paraoutras cidades21. Entre os meses de maio a julho, o movimento de delegadosoperários organizou dezenas de greves e protestos contra o governo, muitosdestes reprimidos violentamente – como os fuzilamentos de manifestantesnas periferias de Petrogrado, na cidade de Tula e na região dos Urais.

Em 13 de maio de 1918 foram implementadas medidas para controlar aprodução e distribuição de gêneros alimentícios, anulando a atuação dosconselhos: os órgãos locais de gestão popular foram transferidos para ocontrole dos comissariados do povo (vinculados ao Estado), e a autogestãofoi substituída pela ditadura dos órgãos burocráticos.

Nesse contexto eclode a guerra civil (1918-1922), repercutindo naformação dos primeiros elementos do processo de russificação do território.Diversas alianças entre bolcheviques e lideranças locais foram estabelecidas,uma vez que as tropas do Exército Vermelho (dirigido pelos bolcheviques,

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apoiado por socialistas) não cobririam toda a enorme extensão territorial noscombates contra o Exército Branco (dirigido por antigos generais das forçasimperiais russas22). Uma das mais célebres alianças neste processo realiza-se com as comunidades camponesas livres do comandante Nestor Makhno,na Ucrânia. Apesar das sucessivas vitórias das tropas de Makhno contra asforças do Exército Branco, resguardando assim a defesa de uma das maisestratégicas regiões soviéticas, o desenrolar dos acontecimentos nãoacompanha o mesmo triunfo: exigindo autonomia política local, e portanto,chocando-se violentamente contra os propósitos expansionistas bolcheviques,o exército de Makhno é atacado e sufocado pelo Exército Vermelho, apóslonga resistência23.

A política de comunismo militar repercutiu em todo o continente.Paralelamente à guerra civil travada entre os exércitos Branco e Vermelho,seguiu-se então a repressão de movimentos populares contrários àmonopolização e centralização do poder político na Rússia. Em 1919, ojornal Pravda24, convertia a máxima “Todo poder aos Sovietes” a “Todopoder às Tchekás”, indicando outro futuro para revolução popular russa de1917. Continuava a guerra civil no Cáucaso Setentrional, no Turquistão e noExtremo Oriente. Em janeiro de 1921 explodiu o levante camponês na Sibé-ria Ocidental, influenciando extenso território. Em todos os lugares a popula-ção exigia o fim da expropriação dos produtos, a liberdade de comércio, ofim da ditadura bolchevique, a permissão da pequena propriedade.

O levante dos marinheiros e operários em Kronstadt (Êðîíøòàäò)25 foipico desse período de lutas. Tudo começou em Petrogrado com as ma-nifestações operárias nos meses de fevereiro e março, apoiadas pelos ma-rinheiros e soldados. A multidão libertou os operários grevistas que haviamsido presos. Em resposta, o Comitê de Petrogrado do Partido Comunistaordenou o fuzilamento dos manifestantes e proibiu todas as aglomerações depopulação sem prévia autorização. Essas notícias chegaram em Kronstadt ecomeçaram os protestos. A maioria dos comunistas desta cidade apoiou aseguinte resolução da manifestação dos marinheiros e da população de 1o demarço de 1921: “Devido ao fato de que os conselhos atuais não representama vontade dos operários e dos camponeses, exigimos imediatamente elegernovos conselhos por voto secreto, e antes das eleições promover debatespolíticos entre todos os operários e camponeses”. A resolução exigia a liber-__________22. O Exército Branco também foi apoiado pelas principais potências européias preocupadascom a possível influência da Revolução Russa em seus territórios.23. Para aprofundar o assunto, ver Anarquia e Organização: plataforma de organização eoutros escritos, coletânea de textos de Nestor Makhno, editada pelo Coletivo Editorial AnarquistaLuta Libertária, em 2001.24. Em russo, “Verdade”.25. Cidade ao lado de Petrogrado, situada no Golfo da Finlândia, porto e base militar.

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dade de expressão para os partidos de esquerda e os anarquistas, a restituiçãode outras liberdades civis, a libertação dos presos políticos socialistas, aanulação dos privilégios dos comunistas e das estruturas da ditadura econômicados bolcheviques. O governo declara o levante em Kronstadt ilegal, e logoapós a fortaleza se rebela. Foi eleito um comitê militar-revolucionário, cujamaioria dos membros era apartidária. A principal idéia era estabelecer umaforma de poder baseada nos conselhos, porém sem a ditadura dosbolcheviques: “Todo poder aos conselhos e não aos partidos!”. Em Petrogradoe outras cidades continuavam as greves, e os operários declaravam seu apoioa Kronstadt. A ampliação do movimento até Petrogrado na ocasião do degelode primavera podia transformar radicalmente a situação no país. Osinsurgentes contavam com o avanço dos exércitos camponeses de Makhno(Ucrânia) e de Antonov (líder do levante camponês na Sibéria). No entanto,no dia 18 de março, o Exército Vermelho liderado por Leon Trotsky tomoua fortaleza e massacrou os insurgentes.

Após o sufocamento dos levantes de 1921 foram proibidas as tendên-cias políticas dentro do próprio Partido Comunista, como a Oposição Ope-rária de Aleksandra Kollontai. As cooperativas e os conselhos dos operáriose camponeses passam a ser dirigidos obrigatoriamente pelos bolcheviques.Inicia-se a perseguição sistemática de membros de outros partidos socialistase anarquistas, com prisões em massa, exílios e assassinatos.

Naquela conjuntura, povos de outras regiões também enfrentavam oprocesso de russificação e de estatização do território, cujo objetivo primor-dial consistia na reconquista dos territórios tornados independentes durantea guerra civil, tais como a Ucrânia, a Geórgia, a Armênia, e outros. Seinicialmente eram celebradas alianças bilaterais entre as lideranças regionaise o Exército Vermelho, posteriormente foram proibidas pelo governo centralrusso a independência diplomática e a autonomia militar dessas regiões,“processos concluídos em 1923-24, antes, por conseguinte, da época deStalin. (...) Quanto a outras nacionalidades, procedeu-se à liquidação vio-lenta das instâncias hostis à reunificação no quadro da URSS: socialismopan-islâmico de Sultan Galiev, Poale Zion etc. Na realidade, os bolchevi-ques não tinham imaginado que, livres graças à Revolução, houvesse naçõesque renascessem como entidades próprias para, só forçadas, aceitarem jun-tar-se à República dos Sovietes” 26.

Dessa maneira, a política leninista referente às etnias e nações privava ospovos de quaisquer formas de desenvolvimento autônomo. Além disso,implementa-se uma política intervencionista e policialesca de dimensõescontinentais, semeando muitas vezes conflitos internos duradouros entre os__________26. Ferro, Marc. A Política das Nacionalidades do Regime Soviético. In: Nações e Nacionalismos.Cordellier, Serge (coord.). Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1995. p. 150.

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povos. A população russa observa o rápido enrijecimento das estruturaspolíticas. Com o monopólio do poder centralizado no Partido Comunista,os bolcheviques, vitoriosos na guerra civil e no combate a outras formas deoposição interna, iniciam o regime ditatorial sobre proletários e camponeses.Para isso, as tchekas assumiam cada vez mais as incumbências de vigilância,controle e punição cotidianas. E o Estado policial soviético inicia vertiginosodescaminho para a emolduração do Estado comunista bélico, ou seja, oimpulso desenfreado à produção industrial de armamentos – que encontraráseu apogeu no período pós-Segunda Guerra Mundial.

IV. O Estado totalitário na União das Repúblicas SocialistasSoviéticas (URSS): militarização, repressão e russificação

Após a criação da URSS em 30 de dezembro 1922, o processo derussificação e militarização no continente continuou abrupto e violento.Abrupto por interromper e subjugar povos e comunidades que, por séculos,desenvolviam suas diversas formas de autogovernos. Em poucos anos, esseexercício de autonomia social foi substituído pela heteronomia estatal sovié-tica (tal processo não fora exclusividade das ações do Partido ComunistaSoviético: em outros continentes, a formação e o desenvolvimento do Es-tado-nação caracterizou-se, essencialmente, pela usurpação das habilida-des de autogoverno de comunidades tradicionais). Violento porque tais co-munidades, descentralizadas e espalhadas pelo continente, experimentarama força dos modernos mecanismos de repressão militar combinados com aforça de persuasão dos modernos mecanismos de propaganda e marketing.A sobrevivência do modo de vida comunitário autônomo fora encurralado.

A ingerência e dominação pelo Estado das atividades comunitáriasessenciais ao autogoverno social, tradicionalmente exercidas pela própriacomunidade e núcleos familiares, se materializou através do surgimento deespecialistas do Partido Comunista: estes passaram a apontar a melhormaneira para administrar a sociedade, gerir a economia, educar, remediarpequenas enfermidades, fazer sexo, lavar roupas, praticar esportes, parircrianças e enterrar os mortos. Indicavam também a música da moda,explicavam os motivos das grandes guerras e das catástrofes humanas, en-fim, retiravam da população civil as habilidades humanas de agir e emitiropiniões sobre a própria vida.

Aos especialistas do Estado foi repassada a incumbência de gestão social.E a especialização da gestão social, por sua vez, nada mais é do que aradicalização da divisão do trabalho, processo capitalista iniciado com aRevolução Industrial, na Inglaterra, e globalizado através das grandes em-presas transnacionais, na atualidade.

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No caso do Estado soviético, a divisão do trabalho configurou-se naformação de uma classe social de gestores (dirigentes), empenhados emsubmeter a classe trabalhadora de camponeses e operários à nova ordemdita comunista. A operacionalização e implementação social dos mecanismosde lealdade aos dirigentes foram criados logo a partir das primeiras medidasde Lenin, principalmente na concepção da Tcheka – os administradores,policiais e funcionários do Partido cuidavam para que toda e qualquerdeslealdade significasse ato contra-revolucionário. No que se refere ao papeldos professores, estes já contavam inicialmente com amplo apoio do aparatoestatal escolar para universalizar o ensino obrigatório do idioma russo emtodas as regiões da União Soviética. A nova ordem bolchevique procuravauniformizar, disciplinar e controlar a totalidade de centenas de povos quehabitavam o extenso continente euro-asiático.

Os conflitos decorrentes desse processo, acentuados pela morte demilhões de pessoas com as repressões stalinistas (como a deportação detchetchenos e outros povos ordenada em 1944), estão na origem das recentesguerras travadas entre o governo russo e os povos de ex-repúblicas sovié-ticas em torno da questão da autonomia política. Assim, para compreender-mos os conflitos atuais na Rússia provenientes da desintegração da URSS –como a guerra na Tchetchênia – percebemos que o processo de russificação,militarização e repressão constituiu a base das violações dos direitos huma-nos cometidos na época do governo imperialista da URSS.

V. O fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e aformação da atual Federação Russa

Apesar da longa duração do regime político totalitário da União Sovié-tica, diversas lutas autônomas e autogestionárias colocavam em xeque odiscurso ideológico comunista e a legitimidade do poder da burocracia esta-tal soviética. Foi principalmente através dessas lutas que os mitos da revo-lução russa e da inevitabilidade do Estado para a gestão da sociedade – tãopropagandeado e alardeado pelos meios de comunicação da URSS e pelosrepresentantes dos Partidos Comunistas – foram desmascarados. Destacam-se os Conselhos Operários na Alemanha (1953) e na Hungria (1956); asComunas de Shangai (1966), Praga (1968) e Gdansk (1980); a GestãoOperária na Itália (1968); a Guerra Civil Espanhola (1936) e as ComisionesObreras na Espanha (1969); a Revolução dos Cravos e as Comissões deTrabalhadores em Portugal (1974); os processos de autogestão na Argélia(1962) e no Chile (início da década de 70); o controle operário da minas naBolívia (anos 50); as ocupações de fábrica na Argentina (1973)27.__________27. Para um estudo mais aprofundado sobre tais lutas, ver As Lutas Autônomas eAutogestionárias, de Cláudio Nascimento (1986).

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Tais lutas objetivavam o autogoverno, e negavam a ingerência do Es-tado nas decisões políticas que pudessem interferir na organização social eeconômica do cotidiano. Esses movimentos organizavam-se, essencialmente,através de assembléias populares e rotatividade de liderança, e não reconhe-ciam a legitimidade dos chefes ou burocratas do Estado e dos sindicatos.

Logo, a relação entre esses movimentos populares e a URSS foi inva-riavelmente tensa. O exército comunista soviético realizava constantesincursões contrárias a esta forma de organização das lutas, que pregavam oautogoverno local em detrimento da lealdade aos funcionários dos partidoscomunistas.

* * *

No governo de Mikhail Gorbatchev (1984-1991), o capitalismo deEstado russo agonizava e seu sistema concorrente, o capitalismo de livremercado, demonstrava-se mais eficaz. Em tal contexto, Gorbatchev iniciareformas políticas e econômicas, conhecidas mundialmente por Glasnost ePerestroika. Tais reformas redimensionavam os poderes político e econômicono país, visando a reestruturação e realocação dos gestores do Partido Co-munista em esferas de poder do capital de livre mercado que começava aocupar o cenário econômico.

Paralelamente ao enfraquecimento do poder centralizado no Kremlin,diversas repúblicas soviéticas iniciaram movimentos pela independênciapolítica, brutalmente reprimidos por Gorbatchev. Na Geórgia uma ma-nifestação popular foi massacrada pelo exército da URSS, causando a mortede 20 pessoas. As Repúblicas Bálticas (Letônia, Lituânia e Estônia)conquistam independência em 1991. Conflitos étnicos ressurgem em diver-sas regiões, como em Nagorny Karabakh, entre armênios e azeri. Em agostode 1991, membros proeminentes do Comitê Central do Partido Comunistatentam derrubar Gorbatchev: o golpe fracassa após três dias, mas suscitamanifestações populares e o fortalecimento de lideranças locais, como BórisIeltsin.

Em dezembro, após a renúncia de M. Gorbatchev, Ieltsin assume o po-der e anuncia a dissolução da URSS. A partir disso, diversos Estados Na-cionais e Repúblicas autônomas são criados no território da antiga URSS,assim como a Federação Russa. Tal reestruturação política dá origem a umasérie de incidentes e complicações.

Em primeiro lugar, a população da URSS foi dividida entre 15 novosEstados e teve que optar pela nova cidadania. Assim, nem todo cidadãosoviético obrigatoriamente tornar-se-ia cidadão da Federação Russa. Po-deria optar pela cidadania relacionada à sua origem étnica, ou ainda, optarpela cidadania relacionada ao seu atual país de moradia ou trabalho. Nessa

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divisão, russos não seriam necessariamente cidadãos da Federação Russa,assim como ucranianos, uzbeques, letões e todos os povos pertencentes anações titulares de novos Estados. A anulação da antiga categoria cidadãosoviético propiciou o crescimento de sentimentos e identidades naciona-listas submersos na época da URSS.

Paralelamente à tal reestruturação política, o governo de Ieltsin apresen-tou à população o pacote de reformas democráticas que incluia os direitos eas liberdades civis (como, por exemplo, a liberdade de expressão e de reli-gião), mas também a liberação de preços antigamente controlados pelo Es-tado. Com o surgimento da Federação Russa, uma parte da propriedadeestatal foi privatizada, surgindo oligarcas. As pessoas rapidamente em-pobreceram e se sentiram livres de antiga pressão ideológica. Apareceramnovos e importantes segmentos de economia – com o das drogas (a heroínafoi rapidamente introduzida no mercado e a população jovem induzida aoconsumo em massa). Este cenário permaneceu durante primeiros dois outrês anos após o nascimento da Federação Russa, mediado por formaçõesarmadas mafiosas que controlavam o mercado caótico.

VI. A ascensão de Vladimir Putin ao poder presidencial da Rússia28

No verão de 1999, Vladímir Putin – funcionário do governo poucoconhecido pela população russa, mesmo ocupando importante posto nahierarquia da FSB29 (ex-KGB) – foi nomeado primeiro-ministro da Rússia.Durante os primeiros meses de seu mandato, a popularidade de Putincontinuava completamente inexpressiva.

Essa porcentagem aumentou com a retomada do conflito armado entre aRússia e a Tchetchênia. A guerra se popularizou novamente após asinexplicáveis explosões de prédios residenciais em Buinaisk (Áóéíàéñê),Moscou (Ì î ñêâà) e Volgodonsk (Â îëãî ä î í ñ ê), no final de 1999. Antesdas explosões, a população russa não demonstrava interesse com a novaonda de campanhas militares no Cáucaso, pois as notícias alarmantes destaregião há tempo viraram rotina – a partir do outono de 1994 e do inverno de1994-95, quando começou a primeira fase da atual guerra entre a Rússia e aTchetchênia.

As explosões dos prédios de moradia nas cidades russas indicavam paraa população que, ao contrário da primeira fase do conflito, a guerra naTchetchênia não estaria restrita ao Cáucaso setentrional, mas se estenderia aoutras regiões da Rússia, inclusive às residências dos cidadãos comuns.__________28. Fonte: <<www.volia.nm.ru/read.htm>> (acessado em 10 de junho de 2006). Novembro2004, no 21. Periodico libertário.29. Serviço Federal de Segurança.

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Nessa situação, o então primeiro ministro Putin passou a desempenhar opapel de defensor absoluto da nação, chegando ao poder com o discurso devencer o separatismo e o terrorismo. Porém, a partir desse momento, Putinpassa a promover diversas medidas pouco relacionadas com a repressão aoseparatismo e ao terrorismo, e muito mais diretamente vinculadas com apreparação de um regime rígido e autoritário.

Os oligarcas que exerciam uma forte influência no governo de Ieltsinforam expulsos do país (Berezóvski, Gusínski, Abramóvitch) ou presos (comoKhodorkóvski, ex-proprietário da grande companhia petrolífera Yukos).

Os meios de comunicação – outrora vinculados exclusivamente àburocracia do PC soviético e que por um breve período conquistaram certaautonomia durante o governo de Ieltsin – sofreram nova intervenção estatal:jornalistas independentes do principal canal da televisão (NTV) foramdemitidos, e perseguidos posteriormente em outros canais (como na TV6 eTVC). As ações da NTV foram adquiridas pela companhia parcialmenteestatal Gazprom e por outras instituições do Estado. A censura na imprensafoi restabelecida, principalmente após o início da onda dos chamados“atentados terroristas” (explosões e tomadas de reféns) nas grandes cida-des russas. Com as medidas governamentais voltadas para o controle dosmeios de comunicação, poucos jornais e estações de rádio ainda conse-guem veicular uma programação crítica ao governo.

Após a tragédia na escola de Beslan (Áåñëàí)30, o governo aproveitoupara anunciar uma urgente reforma nas estruturas políticas da Rússia apre-sentada como indispensável ao combate do terrorismo. Foi anunciada amudança no sistema eleitoral, no qual foram proibidas candidaturas autônomas(ou apoiadas por um grupo independente de pessoas de certa localidade)para o Parlamento. As eleições para governadores foram anuladas – agoraestes serão nomeados diretamente pelo Kremlin.

Além disso, em 2004, o governo preparou um pacote de mais de 100leis anti-sociais que, dentre outros aspectos, prevêem: a anulação detransporte gratuito para os aposentados; o cancelamento de distribuiçãogratuita de remédios para os doentes crônicos (por exemplo, para aquelesque sofrem de diabetes); a anulação de subsídios para as vítimas das repressõespolíticas, para portadores de necessidades especiais e para vítimas de ca-tástrofes – inclusive para a população exposta à radiação na ocasião da ex-plosão da usina nuclear de Tchernóbyl (×åðíîáûëü); a anulação de indexa-ção de salários para aqueles que trabalham na região Setentrional da Rússia(costa do Oceano do Norte); a anulação de bolsas para os estudantes etc.

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__________30. No dia 1° de setembro de 2004, em uma escola pública em Beslan, capital da Ossétia doNorte, supostos terroristas tchetchenos fizeram reféns centenas de pessoas, na maioria crianças.O governo russo rejeitou qualquer possibilidade de negociação e no dia 3 de setembro o exércitoinvadiu a escola: 335 pessoas morreram.

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* * *

Utilizando o discurso propagandista sobre a necessidade da união na-cional contra o terrorismo tchetcheno, o Kremlin reassumiu o monopólio doespaço público de discussão política na Rússia. Ao encontrar oposição po-lítica em qualquer esfera social, repentinamente surgia o terrorismo tchet-cheno. No outono de 1999, quando o Kremlin objetivava eleger um fun-cionário desconhecido no país para o cargo da presidência, aconteceram asexplosões dos prédios residenciais. Em 2002, por ocasião da tomada dosreféns durante o espetáculo teatral Nordost em Moscou, o governo aprovei-tou para asfixiar determinadamente os canais de televisão e restabelecer acensura. Antes da segunda eleição de Putin houve a explosão no metrô emMoscou. Após a tragédia em Beslan, houve a promulgação de leis e medi-das anti-sociais.

Aparentemente, o Kremlin não tem interesse em terminar a guerra naTchetchênia. As operações militares revigoram a economia bélica e toda aindústria da violência na Rússia. As forças especiais da polícia (OMON) eos membros da FSB fazem estágio nas regiões de conflito, obtendoexperiência incomparável: experiência para forjar falsas acusações, paraseqüestrar, para torturar. E a guerra continua servindo de pretexto para aanulação das liberdades políticas e dos direitos econômicos da população,também camuflando a corrupção dos órgãos de segurança nacional. A guerrana Tchetchênia torna-se, assim, um mecanismo comum para o exercício epara a reprodução do poder.

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Soldados do exército federal da Rússia em Grozny.

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Terrorismo de Estadoe a Guerra na Tchetchênia

I. Introdução

Os povos das montanhas do Cáucaso Setentrional – tchetchenos,inguches, ossetas, kabardinos, balkaros, karatchai, tcherkesse e outros –sempre representaram entraves para as tentativas imperialistas euro-asiáticas:resistiram aos expansionismos tártaro-mongol, turco-otomano, russo esoviético. A geografia auxilia nas estratégias de resistência. A regiãomontanhosa dificulta o acesso para as tropas dos invasores, enquanto asformas seculares de auto-subsistência das comunidades tradicionais cola-boram para a sobrevivência.

Pastores nômades e agricultores, estes povos organizavam-se atravésde conselhos das comunidades e foram vistos como bárbaros e “atrasados”não só pelo Império Russo que tentou dominá-los durante a longa e san-grenta Guerra do Cáucaso (1817-1864), mas também pelos dirigentes daUnião Soviética que se opuseram à criação de uma República Autônomados Montanheses, logo após a revolução de 1917.

Com a desintegração da URSS, a Tchetchênia novamente proclama aindependência. Mas o poder imperial somente trocou de nome porque, em1994, as tropas russas invadem a Tchetchênia. Começa a guerra, que duraaté hoje – vitimando centenas de milhares pessoas31 e fazendo cerca de500.000 refugiados.__________31. Folha de São Paulo, 27/06/2005. “Rússia. Vice-premiê tchetcheno diz que guerra matou300.000. O vice-premiê tchetcheno Dukvakha Abdurakhmanov disse que cerca de 300.000pessoas morreram na república separatista tchetchena na última década, nas duas guerras porque passou a região. A declaração foi no Daguestão, onde tentava convencer refugiados tchetchenosa voltar ao país”. Vale notar que segundo as ONG´s de defesa de direitos humanos não existemdados exatos sobre o número de mortos durante as duas guerras na Tchetchênia. Segundo osdados da ONG Memorial, durante a primeira guerra (1994-1996) morreram, no máximo, 50.000pessoas civis; o Comitê Estatal de Estatística da Federação Russa calcula 30.000 a 40.000. AONG Human Rights Watch estima que durante os primeiros nove meses da segunda guerra(1999-2000) morreram entre 6.500 e 10.400 civis. Estes são os únicos dados existentes econfiáveis, segundo a ONG Memorial (www.memo.ru). Aleksandr Tcherkassov, membro dessaONG, escreveu sobre a questão em artigo Livro dos Números: Demografia, perdas entre apopulação civil e fluxos de migração em zona do conflito armado na República da Tchetchênia.Crítica das fontes, que pode ser encontrado no site.

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II. Deportação do povo tchetcheno em 1944

Após a derrocada do Império Czarista Russo, os povos do Cáucaso Se-tentrional se auto-organizam e criam a República dos Montanheses (1917-1918)32, governada pelo Conselho de representantes locais. Inicialmente, aRepública dos Montanheses apóia a revolução de 1917. No entanto, em 1920ocorre o primeiro levante contra os bolcheviques – que procuravam instalarseu próprio governo na região e mudar a organização social dos montanheses.Cerca de 10.000 insurgentes (homens livres e sufistas, conhecidos como sectá-rios de uma seita mística, panteísta, maometana) que proclamaram a Liberta-ção Nacional e o Estado Charia (charia: justiça islâmica; leis e normas),declarando gazawat (guerra santa) são massacrados pelos 40.000 solda-dos do Exército Vermelho33.

De acordo com a política nacional da URSS de russificação do conti-nente, novas delimitações das fronteiras territoriais foram estabelecidas noCáucaso. Em 1922, a República dos Montanheses é dissolvida pelo poderbolchevique, e são criadas repúblicas autônomas biétnicas ou monoétnicas.Os tchetchenos continuaram resistindo à política nacional da URSS, e asrevoltas não cessavam. Em 1923, 10.000 montanheses são expulsos para aplanície pelo Exército Vermelho. Após dois anos, Stalin ordena o desar-mamento dos chefes da contra-revolução e do banditismo, realizando ope-rações de limpeza e bombardeios aéreos nas vilas tchetchenas.

Ao mesmo tempo, a coletivização das terras, implantada na Tchetchêniaem 1929, trouxe conseqüências desastrosas para os povoados: devido àinexistência da propriedade privada (as terras, os bosques, as águas per-tenciam às comunidades), a coletivização traduziu-se, na prática, peladesapropriação e estatização dos recursos naturais da região. Nas mon-tanhas, o pastoreio, principal atividade de subsistência, foi condenado pelaideologia soviética devido ao nomadismo.

Com a apropriação estatal das bases econômicas das comunidades ecom a ingerência sobre o modo de vida tradicional, os tchetchenos serebelaram novamente: ocuparam os centros de administração bolcheviquenas cidades e nas vilas, queimando arquivos e prendendo chefes e repre-sentantes dos órgãos do governo. Estas ações foram qualificadas como“terroristas” pelo governo da URSS34. O Exército Vermelho invade a Tchet-chênia e realiza grande campanha de repressão, seqüestrando e assassinan-do os líderes da resistência. A coletivização forçada ocasionou levantes__________32. Faziam parte da República: Tchetchênia, Inguchétia, Ossétia, Kabarda, Balkar e Karatchai.33. Após este levante, Stalin, à época comissário do povo para as questões das nacionalidades,prometeu autonomia, soberania interna e independência para a República dos Montanhesesque aceitou integrar a URSS nestas condições.34. Os rebeldes exigiam do poder soviético: 1. Parar o confisco ilegal da propriedade campesina,ou seja, parar a coletivização. 2. Parar as prisões ilegais de camponeses. 3. Destituir osrepresentantes da OGPU na Tchetchênia, substituindo-os por representantes tchetchenos dasociedade civil local. 4. Cancelar os julgamentos “populares” implementados por ordem do

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__________governo da URSS e restaurar os orgãos charia de justiça. 5. Restabelecer as decisões políticasdo conselho tchetcheno de 1917-1918 e não permitir as interferências do poder central nasquestões internas da Tchetchênia, ou seja, cumprir os acordos estabelecidos entre Stalin e osmontanheses em 1921.35. Somente no ano de 1932 foram reprimidas cerca de 35.000 pessoas.36. Por ordem de Stalin, acusados de traição, foram deportados: tchetchenos, inguches, karatchai,kalmyks, balkary e tártaros da Criméia. Oficialmente, foram deportados 500.000 tchetchenose inguches.37. Texto baseado no artigo Apontamentos sobre as Relações Políticas entre a FederaçãoRussa e a República Tchetchena. Fonte: <<www.memo.ru/hr/hotpoints/CHECHEN/ITOGI/Index2.htm>>; em inglês: <<memo.ru/hr/hotpoints/chechen/checheng/czecz.htm>>(acessado em 10 de junho de 2006).

populares entre os anos de 1929 e 1932, sufocados através de violentarepressão do exército e do terror stalinista35.

Mas as tradições de luta pela liberdade estavam bem vivas entre ostchetchenos, e a indignação popular cada vez mais forte resultou em outrarevolta (1939). Desta vez os rebeldes não lutavam sob os dogmas islâmicos:a ideologia do movimento, liderado pelos representantes da intelligentsia,formados após revolução de 1917 (escritor Kh. Israilov, jurista M.Cheripov,irmão do perseguido líder dos bolcheviques tchetchenos, e outros), foicombater o imperialismo vermelho para uma libertação nacional. Os rebel-des expulsaram os representantes do stalinismo na maior parte das regiõesmontanhosas e proclamaram a criação do governo temporário popular-revolucionário da Tchetcheno-Inguchétia. A luta armada durou três anos,e somente em 1942, após diversos bombardeios aéreos, as tropas do NKVDconseguiram dominar o levante.

Em 1944, o povo tchetcheno foi acusado de “colaboração em massa”com as tropas nazistas. A inverossímil colaboração foi, na realidade, umpretexto para a violenta repressão da luta armada dos tchetchenos contra opoder imperialista de Stalin. Tchetchenos e outros povos insubmissos foramdeportados para a Sibéria e o Casaquistão36, e as Repúblicas da Tchetchêniae Inguchétia apagadas do mapa da URSS.

Os povos massacrados começaram a recuperar seus direitos após a mortede Stalin, em 1954. No entanto, o retorno para a terra natal e a reabilitaçãodas comunidades caucasianas encontraram diversos obstáculos, como umaeconomia local desestruturada, desemprego crônico e um território ocupadopor moradores provindos de outras regiões. Mesmo assim, tchetchenos,inguches e outros povos do Cáucaso passaram a reconstruir suas formas eco-nômicas tradicionais de subsistência e a se reorganizar social e politicamente.

III. A retomada dos movimentos pela autonomia política daTchetchênia e os antecedentes da guerra (1990-94)37

Diversos fatores colaboraram para o processo de intensificação dosmovimentos pró-independência da Tchetchênia no final dos anos 80 e início

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dos anos 90. Primeiramente, para os tchetchenos, a questão de umaassociação étnico-territorial possui significado histórico: a memória da guer-ra contra o Império Russo, a repressão stalinista e as deportações em massasão recordações de várias gerações. Por outro lado, tal processo foi faci-litado pela eleição de Ieltsin para a presidência do Conselho Supremo daFederação Russa (FR), em junho de 1990, e o conseqüente enfraquecimen-to do poder soviético central representado por Gorbatchev.

Ao utilizar os mesmos argumentos de Ieltsin, forças de oposição locaisadvogavam em favor da autonomia política dos territórios vizinhos à FR.O colapso e a desintegração da União das Repúblicas Socialistas So-viéticas (URSS), acentuados pelo despreparo do governo central deGorbatchev em solucionar as demandas regionais pela autonomia dosterritórios e repúblicas soviéticas, resultou em uma série de trágicos conflitos.

Ieltsin empenhava-se em consolidar alianças com líderes locais, visandoa “integridade territorial da Rússia em contraposição à integridade territorialda União Soviética”, em acordo com a teoria desenvolvida por seu principalassessor político Chakhrai38. Em outras palavras, a União Soviética estavafadada ao colapso político, porém tal colapso poderia ser utilizado para ofortalecimento da integridade e expansão territorial da Federação Russa.

Esta teoria encontrou forte oposição em diversos locais. O Tatarstãologo manifestou interesse em desvincular-se da Federação Russa, ao contrárioda República Socialista Autônoma Soviética Tchetcheno-Inguchétia(RSASTchI), aparentemente passiva a qualquer movimentação política.Desde 1983, a RSASTchI estava sob comando de Doku Zagaev, altofuncionário do Partido Comunista. Enquanto presidente do Conselho Su-premo desta República, Zagaev assinou em 1990 uma declaração desoberania da República Tchetcheno-Inguchétia. No entanto, tal ato políticoem nada alterou as relações políticas entre a Tchetchênia-Inguchétia eautoridades da Federação Russa e da União Soviética. Foi formado umComitê Executivo da República Tchetchena, presidido pelo Major-GeneralDzhokar Dudaev. Rapidamente, o Comitê transforma-se em fórum de dis-putas políticas entre a ala radical-nacionalista e a ala democrática liberal.

O conflito político na Tchetchênia acentuou-se após a fracassada tenta-tiva de golpe e aprofundamento da crise política na União Soviética, emagosto de 1991. Nessa conjuntura a República Tchetcheno-Inguchétia édissolvida. E ainda que a Inguchétia tivesse se organizado enquanto umarepública autônoma da Federação Russa, os tchetchenos reivindicavam umaRepública Tchetchena soberana. Tal decisão aumentou a instabilidade políticana região, precipitando uma série de rupturas e divisões entre políticostchetchenos. Ao mesmo tempo, a Federação Russa aumentou a intervenção

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__________38. Chefe do Comitê das Políticas Nacionais, a partir de março de 1992. Principal conselheirode Ieltsin e um dos principais responsáveis pelo começo da guerra na Tchetchênia.

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política na Tchetchênia, exigindo o desarmamento de formações militaresilegais; as forças armadas soviéticas exigiriam a incorporação de todos oshomens tchetchenos na Guarda Nacional, e a crise na região direcionou-separa um conflito armado. Em outubro de 1991, Boris Ieltsin impõe um ultimatoaos líderes separatistas tchetchenos.

No mesmo mês, Dudaev elege-se presidente da autoproclamada Re-pública Tchetchena Itchkeria. A União Soviética (o Conselho Supremo)recusa-se a reconhecer a validade da eleição. Enquanto isso, A. Arsenovtorna-se líder do governo paralelo contra Dudaev na Tchetchênia.

No início de 1992, a situação transformou-se abruptamente. A UniãoSoviética entra em colapso e 15 Estados independentes são reconhecidosno território soviético. Dudaev alinha sua retórica anti-Rússia na arenainternacional, buscando assim a independência política na Tchetchênia. Du-daev procurou, portanto, extrair o máximo de benefícios possíveis da ins-tabilidade política, uma vez que o Kremlin se eximia de qualquer decisãoradical em virtude de sua delicada situação: consolidou seu comando sobreas forças armadas regionais e assumiu o controle dos armamentos localiza-dos no território tchetcheno. Sob olhares atentos do Kremlin, o problema naTchetchênia foi adiado, inclusive devido à maior cobertura da mídiainternacional em relação aos conflitos em Tatarstão.

Apesar de tudo, os diálogos entre a Rússia e a Tchetchênia continuaramdurante tal período. Negociadores russos e tchetchenos acordaram umcomunicado conjunto para a resolução do conflito, incluindo aspectos políti-cos, legais, econômicos e de segurança pública. Todavia, no final de 1992,muitos vislumbraram nos acordos de ampla autonomia política de Tatarstãoum modelo que poderia ser aplicado ou reivindicado na Tchetchênia39.

A escalada do conflito estava perceptível na mobilização das forçasarmadas de ambos os lados, e o governo russo não mais ecoava no territóriotchetcheno. As negociações continuaram na primavera de 1993, e a separaçãotchetchena da Federação Russa configurava-se fato inegável, acentuada ain-da pelo boicote ao referendo governamental russo realizado em abril.Posteriormente, Dudaev inviabiliza todas as estruturas tchetchenas vinculadasao governo russo, procurando também monopolizar a produção (em declínio)de petróleo40. Tais ações políticas colocaram a Tchetchênia na linha direta deconflito com o governo russo.__________39. O Tatarstão e a Tchetchênia foram os dois únicos territórios que se recusaram a assinar oacordo para integração na Federação Russa em 31 de março de 1992. O Tatarstão, após longasnegociações, assinou o acordo em 15 de fevereiro de 1994, entrando assim na Federação Russae conseguindo alguma autonomia (Constituição própria, autonomia nas relações políticas eeconômicas com outros Estados, direito de autodeterminação sobre as questões da propriedade,recursos naturais e terra). Assim, a Thetchênia ficou sozinha na luta pela independência entreos 89 territórios da Federação Russa.40. O território da Tchetchênia está localizado no trajeto do oleoduto Baku-Novorossisk.

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Após os confrontos entre Ieltsin e a Câmara dos Deputados (DUMA)da Rússia, entre setembro e outubro de 1993, a política do Kremlin emrelação à Tchetchênia assume contornos mais definidos. Em acordo com aconstituição russa promulgada em 12 de dezembro de 1993, a RepúblicaTchetchena continua submetida à Federação Russa. Paradoxalmente, diver-sas lideranças políticas que trabalharam intensamente para a desintegraçãoda União Soviética não hesitavam em defender a integridade da Rússia, de-vido principalmente a um possível “efeito dominó”, caso uma das regiões daFederação Russa conquistasse independência.

Durante 1994, um número crescente de declarações e decisões con-traditórias – tanto em Moscou como em Grozny – encaminham o problemapolítico para um conflito bélico. A possibilidade de negociações diretas torna-se gélida. Com o aumento de ataques tchetchenos, a mídia russa trabalhapara construir uma imagem positiva do Conselho Provisório da RepúblicaTchetchena enquanto estrutura legislativa oposta ao não reconhecido “regimede Dudaev”. No outono, ao continuar o processo de mobilização epreparação das forças armadas, Moscou demonstrava claramente quaisseriam as intenções com a administração tchetchena de Dudaev.

Por outro lado, Dudaev continuava a transformação da Tchetchênia emum enclave armado. Jornalistas russos e representantes de organizações dedireitos humanos foram expulsos da região. Antes do início das operaçõesmilitares na Tchetchênia, ambos os lados ainda sustentavam certa esperançaem alcançar algum compromisso de resolução, apesar das inconciliáveisposições nas negociações.

Analisando o histórico das relações políticas entre as esferas governa-mentais da Federação Russa e a República Tchetchena, podemos concluir oseguinte:

1. A mudança do governo em Grozny consolidou-se no período entreagosto e novembro de 1991, apesar das legislações da RSFSR e da URSS;

2. A proclamação de um novo governo independente da RepúblicaTchetchena e a reivindicação de seus atributos políticos, militares e eco-nômicos também conjecturou-se enquanto violação da constituição e le-gislação russas;

3. A tentativa forçada de reagrupar a Tchetchênia na estrutura legal daRússia, em novembro de 1991, acarretou duvidosos resultados sociais: aosolhos de uma significante parte da sociedade tchetchena foram justificadas,dessa maneira, as ações ilegais de forças políticas e militares que lutavampela independência da República Tchetchena;

4. Nem os diferentes elementos da política governamental da Rússia,nem o governo da República Tchetchena Itchkeria (comandada por Du-daev), possibilitaram passos realistas e significativos na solução da crise.

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Nenhum dos governos utilizaram as ferramentas disponíveis para a procurade uma resolução para o conflito;

5. As ações militares secretas realizadas pelo governo da Rússia noterritório tchetcheno auxiliaram a consolidação de uma posição antagônicaentre a sociedade tchetchena e os russos, limitando assim as possibilidadesde uma resolução pacífica ao conflito;

6. A solução militar para a crise foi inadmissível e não pôde ser justifi-cada por qualquer argumento político, militar ou moral.

IV. Conflito armado (1994-1996) – 1a fase da guerra41

Durante as operações militares na Tchetchênia e regiões vizinhas, ambosos lados envolvidos no conflito utilizaram a população civil como escudoshumanos e como reféns. Além disso, desde o início da guerra, o governo daFederação Russa declarava que soldados russos capturados eram “reféns”dos rebeldes tchetchenos. A utilização do termo “reféns” surgiu como resul-tado de uma cuidadosa elaboração político-ideológica. Autoridades russasnegavam a existência do conflito (nacional ou internacional), reduzindo asituação de guerra a um processo de desarmamento de formações criminosas,assunto estritamente interno da Rússia. De acordo com posições oficiais, asituação dos prisioneiros e de detenções individuais enquadravam-se em umcontexto criminal. Em outras palavras, os tchetchenos não recebiam tratamentode inimigos de guerra, mas de formações de grupos criminosos. Como re-sultado, soldados russos capturados por separatistas tchetchenos tambémestavam desprovidos da condição de prisioneiros42. Apresentamos algunsapontamentos centrais deste período da guerra, a seguir:

Em 11 de dezembro de 1994 o presidente da Federação Russa BorisIeltsin assina o decreto nº 2.169, referindo-se às “medidas de garantia delegitimidade, ordem e segurança social no território da República Tchetchena”.Os responsáveis pelas ações de desarmamento e liquidação das formaçõesarmadas, segundo tal decreto, teriam que agir regularmente por tempoindefinido. Ieltsin justifica-se publicamente, e explica os motivos do envio detropas do exército federal para o território tchetcheno: “Nosso objetivo éachar uma solução política para o problema de uma das Repúblicas daFederação Russa – a República Tchetchena; proteger seus cidadãos doextremismo armado. Mas hoje em dia as negociações pacíficas e a liberdadede expressão estão sob ameaça de uma guerra civil. Para 12 de dezembro__________41. Fonte: <<www.memo.ru/hr/hotpoints/CHECHEN/ITOGI/Index1.htm>> (acessado em10 de junho de 2006).42. A condição de prisioneiro de guerra ou indivíduos detidos forçadamente possuiria algumasproteções legais.

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estão previstas negociações entre representantes da Rússia e da Tchetchênia,e precisamos garanti-las”. Além disso, aconselha a “todos os responsáveispela restituição da ordem constitucional na República Tchetchena não utilizarviolência contra a população civil”.

Em seguida, tropas do Ministério de Defesa e do Ministério do Interiorinvadem o território da Tchetchênia por três diferentes direções: de Mozdok(Ì î çä î ê) (do norte através das regiões da Tchetchênia controladas pelaoposição contra-Dudaev), de Vladikavkaz (Âëàäèêàâêàç) (do oeste, da Os-sétia do Norte e da Inguchétia) e de Kizliar (Êèçëÿð) (do leste, do Daguestão).

As tropas que se moviam do norte sem obstáculos passaram pelo territóriotchetcheno e chegaram até as vilas, situadas a 10 km de Grozny (capital daRepública), onde pela primeira vez encontraram a resistência armada. Aqui,perto de vilarejo Dolinski (Äîëèíñêèé), em 12 de dezembro, as tropasrussas foram metralhadas pelo grupo comandado por Vakhi Arsanov: seissoldados foram mortos e 12 feridos; 10 unidades móveis foram incendiadas.As tropas acamparam na linha Dolinski – entre as vilas Pervomaiskaia(Ïåðâî ìàéñêàÿ) e Petropavlovskaia (Ïåòðîïàâëîâñêàÿ). Os tiroteiosforam iniciados. Nos dias seguintes, devido aos metralhamentos destas vilaspor tropas russas, sucederam-se diversas mortes entre a população civil.

Outra coluna de tropas russas que se movia do Daguestão foi parada nomesmo dia 11 de dezembro, antes de atravessar a fronteira da Tchetchênia,na região de Khassav-Yurt (Õàñàâ-Þðò), onde moram principalmente ostchetchenos akkintsy. Multidões de moradores bloquearam as tropas, gru-pos de militares foram capturados e depois enviados para Grozny. Nestadireção as tropas russas não conseguiram invadir a Tchetchênia.

As tropas que se moviam na Inguchétia também foram bloqueadaspela população civil e metralhadas perto da vila Barssuki (Áàðñóêè) (In-guchétia). Três tanques e quatro carros foram danificados. Não houve vítimasentre os militares. O exército revidou, causando mortes entre os civis.Helicópteros metralharam a vila Gazi-Yurt (Ãàçè-Þðò). E as tropas atra-vessaram o território de Inguchétia. Durante estes dias, cerca de 28 unidadesmóveis foram destruídas.

Em 12 de dezembro esta coluna do exército federal foi metralhada davila Assinóvskaia (Àñèí îâñêàÿ) (Tchetchênia). Entre militares russos houvemortos e feridos; em resposta, a vila foi metralhada e houve mortes entre a po-pulação civil. A vila Assinóvskaia foi cercada. Perto da vila Novy Charoi(Í î â û é Ø à ð î é), uma multidão de moradores bloqueou a estrada (decla-rações dos funcionários do governo russo que os rebeldes armados manda-ram a população sair na frente não correspondem à realidade). Assim, o avançodas tropas russas levaria inevitavelmente primeiro à necessidade de atirarcontra pessoas desarmadas (ao que neste momento os soldados e os oficiaisnão estavam preparados), e depois ao confronto com os grupos de resistên-

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cia organizados dentro de cada vilarejo – que possuíam armas automáticas,metralhadoras e granadas. Na região situada ao norte da vila Basmut (Áàñìóò)estavam baseadas as formações militares regulares da República TchetchenaItchkeria (RTI), com armamento pesado. Como resultado, no oeste daTchetchênia as forças federais se fixaram pela linha da fronteira da RTI nafrente das vilas Samachki (Ñàìàøêè), Davydenko (Äàâûäåíêî ), Novy Charoi(Í î âàé Øàðîé), Atchkhoi Martan (À÷õî é Ì à ðòà í) e Bamut (Áàìóò).Aqui, temporariamente, se estabeleceu o regime de “nem guerra, nem paz”.

Passados três dias, em 15 de dezembro, o chefe das Forças Armadas daFederação Russa general Gratchiov demitiu um grupo de oficiais de alto esca-lão que se negou a entrar com o exército na Tchetchênia e que exigiu “antesdo começo de uma ampla operação militar que pode causar grandes perdasentre a população civil” a ordem por escrito emitida pelo chefe. O general-coronel Mitiukhin foi nomeado o comandante da operação.

No mesmo dia 15 de dezembro, em Grozny, começou a trabalhar ogrupo de Sierguei Kovaliov, responsável pelos direitos humanos na FederaçãoRussa. Faziam parte deste grupo os deputados da Câmara e um representanteda ONG Memorial.

Em 16 de dezembro o Conselho Superior da Federação Russa emitiuuma declaração aconselhando Ieltsin a parar imediatamente a operação mi-litar e a entrada do exército, e começar as negociações. O chefe do governoda Rússia Tchernomyrdin declarou sua disponibilidade para encontrar Du-daev (no caso de desarmamento completo por parte deste). Ieltsin envioupara Dudaev um telegrama mandando entregar todas as armas, propondo o,cessar-fogo e encontrar seus representantes para assinar um documentooficial. Ieltsin também edita decreto que restabelece todos os órgãos russosdo poder institucional no território tchetcheno.

A partir de 18 de dezembro, a cidade de Grozny, capital da Tchetchênia,foi bombardeada. As bombas e os mísseis destruíam os bairros residenciais,onde não havia qualquer base militar, causando diversas mortes entre oscivis. Apesar da afirmação de Ieltsin em 27 de dezembro proibindo osbombardeios da cidade, as forças aéreas continuaram lançando bombas emísseis.

Em dezembro as tropas federais passando pelo norte da vila Samachki,aproximaram-se de Grozny pelo norte e pelo oeste, deixando as regiõesmeridionais livres. Os corredores nestas regiões que ligam Grozny com asvilas vizinhas permitiram a fuga da população da capital durante bombardeiose batalhas.

Em 19 de dezembro (data prevista pelo governo russo para o término daoperação militar), o general Mitiukhin é afastado do comando, que foi oferecidoao general-coronel Vorobiov. Este negou-se a assumir o comando eposteriormente foi demitido do exército. O comando foi assumido pelo generalKvachnin.

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Em 23 de dezembro a Câmara Estatal exigiu uma moratória imediatapara as ações militares e o começo das negociações, e manifestou as con-dolescências aos parentes e aos amigos dos mortos.

O Ministro das Relações Internacionais Kózyrev, numa ligação telefônica,pediu para responsável pelos direitos humanos da Federação Russa SiergueiKovaliov perguntar para os dirigentes tchetchenos em que condições elespodiam entrar em negociações com Moscou. Kovaliov imediatamente en-trou em contato com Dudaev que concordou num cessar-fogo imediato eem negociar todas as questões, incluindo o desarmamento. Não houvenenhuma reação de Moscou a essa declaração.

Em 26 de dezembro o exército russo começou os bombardeios das vilasnas regiões rurais. Durante os três próximos dias foram bombardeadas maisde 40 vilas.

No dia seguinte Ieltsin apareceu na televisão “justificando” o uso de for-ças armadas para solução do problema na Tchetchênia e falou do começodas negociações. Posteriormente, o então chefe da FSB (ex-KGB) Stepachindetalhou que não se tratava das negociações, mas de um ultimato.

No dia 31 de dezembro as tropas russas começaram a invasão de Grozny.O plano do exército russo previa com quatro grupos realizar rápidas bata-lhas e se unir no centro da cidade. Por vários motivos, principalmente porqueo lema da invasão foi atingir o resultado a qualquer custo, o exército tevemuitas baixas... Mais de 25.000 civis morreram durante a tomada de Grozny,que durou várias semanas (até 6 de março 1995).

No dia 17 de abril de 1995, um grupo de assistência da Organizaçãopara Segurança e Cooperação na Europa, comandado pelo diplomata hún-garo István Diarmati, inicia seus trabalhos em Grozny. A continuidade dasações militares na Tchetchênia trouxe sérias conseqüências para o prestígioda Rússia na arena internacional. Um novo cessar-fogo foi acordado entreos dias 28 de abril e 12 de maio, após a assinatura de um decreto de Ieltsinsobre “Medidas suplementares para a normalização das condições naRepública Tchetchena”, visando garantir a reaproximação e participação deuma série de países nas comemorações do qüinquagésimo aniversário davitória na Segunda Guerra Mundial. Apesar do período do cessar-fogo, forçasfederais continuavam as hostilidades e bombardeios nas pequenas vilas e,após 12 de maio, reiniciaram suas operações nas áreas urbanas e suburba-nas. No início do mês de junho, o exército russo já havia tomado Grozny eas planícies na Tchetchênia, e ocupado importantes regiões nas montanhas,atravessando as trincheiras tchetchenas e dirigindo-se às fronteiras da Geór-gia. A vitória parecia algo irreversível.

Em 14 de junho, um grupo de combatentes sob o comando do líder daresistência armada tchetchena Chamil Bassaev captura 1.500 prisioneiros nacidade Budionnovsk (Áóä ¸ í î âñê), na região vizinha de Stavropol

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(Ñòàâðîïîëü). Para iniciar as negociações, os combatentes exigiam um cessar-fogo, enquanto mantinham os reféns no hospital municipal. No dia 17,aumentando a dramática situação dos habitantes locais, um destacamento deelite do Ministério do Interior e do Serviço de Segurança Federal conduzuma invasão mal-sucedida ao hospital, repleta de imprevistos ocorridos noconflito com os combatentes. Após a fracassada ação, negocia-se a liberaçãoda maior parte dos reféns, sob a condição de imediata suspensão dasoperações militares na Tchetchênia e início de conversações de paz. Bassaevretorna à Tchetchênia utilizando reféns como “escudos humanos”.

Em 19 de junho, em Grozny, iniciam-se as negociações entre re-presentantes da Federação Russa e da República Tchetchena Itchkeria, comparticipação da Organização para Segurança e Cooperação na Europa. Osprincipais pontos de acordo são o desarmamento das tropas tchetchenas, aretirada do exército russo da região e a realização de eleições livres. Alémdisso, são estabelecidas trocas de prisioneiros de guerra, e permitido o retornode combatentes tchetchenos às suas vilas.

Porém, tais acordos, mediados por uma Comissão Especial de Obser-vação (CEO), foram adiados/enfraquecidos devido à complexidade dasnegociações. Uma insignificante quantidade de armas foi recolhida doscombatentes tchetchenos, enquanto tropas russas retiraram-se para poucosquilômetros das vilas e das cidades. Em regiões isoladas, bombardeios aéreose outras operações militares continuavam, assim como ataques às basesmilitares russas.

Os trabalhos da Organização para Segurança e Cooperação na Europaesvaziam-se paulatinamente no mês de outubro, principalmente após oassassinato de um membro da CEO, o general russo Anatoli Romanov. AFederação Russa interrompe os diálogos com a administração tchetchena deDudaev, reestruturando seus representantes na região e preparando alegitimação de eleições. Doku Zavgaev torna-se presidente da RepúblicaTchetchena, eleito em meio a um processo eleitoral fraudulento com diversasfalsificações. As eleições não ocorrem em diversas cidades e regiões con-troladas pela administração da República Tchetchena Itchkeria. Na cidadede Gudermes, forças armadas do general Dudaev inviabilizam as eleições,ocasionando uma das mais sangrentas e destrutivas batalhas. Assim, emdezembro de 1995, os conflitos recomeçam.

No início do ano de 1996, o coordenador da missão da Organizaçãopara Segurança e Cooperação na Europa, Tim Guldimann, reinicia os traba-lhos diplomáticos na região. Aslan Maskhadov ordena que cessem todos osataques contra a retaguarda das forças federais. Como resposta, o generalrusso Viacheslav Tikhomirov afirma “não reagir a qualquer declaração debandidos”. Por outro lado, Dudaev afirma que não irá permitir um cessar-fogo na Tchetchênia.

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Em 9 de janeiro, um destacamento tchetcheno sob o comando de SalmanRaduev ataca um aeroporto militar na cidade de Kisliar, no Daguestão, fa-zendo 1.500 reféns levados ao hospital municipal. Após as negociações, osreféns são libertados em maioria, e os combatentes retornam ao territóriotchetcheno com cerca de 100 reféns, utilizados como “escudos humanos”.Sem sucesso, as forças federais tentam bloquear a ação tchetchena emPervomaiskoe (Ï å ð âî ì àéñêî å), bombardeando e destruindo completa-mente a vila.

Durante os meses de fevereiro e março, o exército russo conduz repeti-das operações de “limpeza” em diversas vilas, encontrando forte resistênciadas forças armadas da República Tchetchena Itchkeria. No dia 8 de março,um destacamento tchetcheno sob o comando de Ruslan Gelaev entra nacidade de Grozny, conseguindo o controle de uma significativa parte dacidade. Sofrendo várias perdas, o exército russo utiliza armas pesadas ehelicópteros para a retomada completa da cidade, destruindo indiscri-minadamente moradias residenciais. Após dois dias, o destacamentotchetcheno deixa Grozny, levando mais de 100 pessoas como reféns.

Em abril, o ministro da justiça Valentin Kovalev sugere ao presidente daRepública Tchetchena Itchkeria, Dzhokar Dudaev, “comparecer volun-tariamente a uma corte na Rússia, onde receberia julgamento com todas asgarantias de proteção”. No entanto, na noite de 22 de abril, Dudaev é atingidopor um míssel na vila de Gekhi-Chu (Ãåõè-×ó) e morre.

Após um período de pesados conflitos, o exército russo anuncia a to-mada de Bamut, a última vila sob controle de forças tchetchenas. No final demaio, em Moscou, Boris Ieltsin se reúne com uma delegação da RepúblicaTchetchena Itchkeria, encabeçada pelo sucessor de Dudaev, o vice-pre-sidente Zelimkhan Iandarbiev. O acordo assinado prevê a “suspensão dasbatalhas, operações militares e medidas para regular o conflito armado naTchetchênia”, além de troca de prisioneiros de guerra. Boris Ielstin congratulapessoalmente os soldados russos em Mozdok (Ì î ç ä î ê), na Ossétia doNorte, pela “vitória” na Guerra da Tchetchênia.

Em uma aparente atmosfera pacífica são realizadas, em junho, as eleiçõespresidenciais da Federação Russa. Apesar de inúmeros casos de violações,fraudes e falsificações, Boris Ieltsin é reeleito, indicando o general Aleksan-dar Lebed para o cargo de Secretário do Conselho de Segurança na Rússia.Lebed havia recebido 14,7% dos votos no primeiro turno das eleiçõespresidenciais (ficando em terceiro lugar), defendendo uma plataforma deutilização de “meios enérgicos” para a resolução da crise na Tchetchênia.

No mês posterior, a Rússia estabelece a permanência de todos os cercose bloqueios militares em vilarejos onde não sejam observadas condiçõespolíticas normais. Além disso, anuncia um ultimato para os combatentestchetchenos libertarem todos os prisioneiros. Dia 9 de julho as forças russas

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bombardeiam a vila de Gekhi (Ãåõè), onde destacamentos tchetchenosestariam baseados. Em 10 de julho a vila de Makhkety (Ìàêõåòû) é cercadae bombardeada, causando grande destruição e numerosas mortes. Pro-nunciamentos nas mídias russas sugerem que as operações militares en-contram-se fora do controle presidencial, porém Lebed sustenta que taisações seriam precisos ataques aos destacamentos tchetchenos de Iandarbiev.

Em 12 de julho, um bonde é explodido nas ruas de Moscou, matando 28pessoas. As autoridades logo relacionam a ação com o conflito na Tchet-chênia, e o prefeito da cidade, Yurii Luzhkov, ordena às forças policiais ainquirição de tchetchenos dispersos em Moscou pela “prestação de contasde tal ação”.

As operações militares russas são reiniciadas em montanhas da região daTchetchênia. Em 6 de agosto, forças armadas da República TchetchenaItchkeria entram na cidade de Grozny. Nas primeiras horas do combate, asforças federais russas sofrem perdas significativas e surpreendem-se cerca-das em suas bases, seus centros de comando e nos prédios administrativosno centro da cidade. Grozny encontrava-se praticamente sob o controle dasunidades tchetchenas. A situação demandava uma ação decisiva, embora apossibilidade de uma catástrofe iminente não era reconhecida pelos co-mandantes militares russos, nem pelos burocratas de Moscou. No decorrerdas batalhas, uma fracassada tentativa de reocupação da cidade aumenta onúmero de perdas no exército russo. Assim, as forças federais decidembombardear Grozny com artilharia pesada, causando enorme tragédia entrea população civil que, nesse contexto, é forçada a abandonar a cidade.

Em 11 de agosto, Lebed encontra Maskhadov na Tchetchênia. Os líderesconcordam em resolver os problemas dentro de sete dias, visando um novocessar-fogo e uma nova retirada das forças armadas russas. No entanto, dia19, uma ordem direta de Ieltsin exige a retirada total das forças armadas daRepública Tchetchena Itchkeria dentro de 48 horas. Antes do prazoencerrado, reiniciam os bombardeios sobre Grozny. Mais uma vez, refugia-dos abandonam em massa a cidade, mesmo continuando sendo alvos dosataques aéreos nas estradas. Nesse momento, a estimativa contava cercade 500 soldados mortos, além de 2.000 mortos entre a população civil.Apesar do fato de que cerca de 220.000 refugiados tenham deixado a cidade,Grozny ainda possuia 50.000 habitantes. Lebed, chegando na Tchetchênia,declara que o problema do ultimato seria resolvido na manhã do dia 22 deagosto, “diretamente por considerações humanas e julgamentos serenos”.Naquele dia, Lebed e Maskhadov assinam um documento que enfrentava aseparação dos dois lados oponentes, a retirada do exército e o controleconjunto de algumas regiões de Grozny. No dia 30 de agosto, em Khasav-Iurt, Lebed e Maskhadov assinam uma “Declaração conjunta” de princípios,na qual se empenhariam em continuar o processo de negociação, acordando

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__________43. Este texto é uma síntese do relatório sobre as violações de direitos humanos cometidaspelas tropas russas no início da primeira guerra. Texto na íntegra pode ser encontrado em:<<http://www.memo.ru/hr/hotpoints/CHECHEN/SAMASHKI/Sam-ru.htm>> (acessado em10 de junho de 2006).

para o dia 31 de dezembro a data de assinatura de um acordo político entreRússia e Tchetchênia.

Em 31 de dezembro de 1996 está terminada a remoção de todas astropas federais do território da Tchetchênia. Em janeiro de 1997 acontecemas eleições para a presidência da Tchetchênia. Entre 16 candidatos é eleitoAslan Maskhadov. Em 12 de maio, Moscou, Ieltsin e Maskhadov assinamacordo de paz e de princípios das relações entre a Federação Russa e aRepública Tchetchena Itchkeria.

Crimes de guerra na vila Samáchki (7 e 8 de abril de 1995)43

No começo de abril de 1995 a vila Samáchki (Ñàìàøêè) foi invadidapelo exército russo. Os moradores, proibidos de abandonarem as casas,foram massacrados, seus lares incendiados, saqueados e destruídos. Oschefes da operação não foram responsabilizados, ninguém foi acusado e ogoverno russo se negou de assumir as mortes entre a população civil. Estaoperação foi uma das primeiras ações de limpeza (“zatchístka”) promovidaspelo exército russo. Os representantes das ONG´s de direitos humanosconseguiram registrar os crimes dias após o massacre e levaram as acusaçõespara a justiça da Federação Russa, mas nada foi provado, ninguém foiindenizado, ninguém foi julgado.

A vila Samáchki está situada no oeste da parte planície da Tchetchênia,do lado da fronteira com a Inguchétia. A principal estrada da república queliga duas grandes cidades Grozny (capital) e Gudermes (Ãóäåðì åñ) comNazran (Íàçðàíü), capital da Inguchétia passa a 4km da vila, alem da ferro-via que passa no meio da povoação.

Antes da guerra em Samáchki moravam 14.600 pessoas; no períododas operações militares dentro da vila havia 4.500/5.000 mil moradores,segundo os anciãos, e 5.000/6.000 mil segundo a administração. Havia trêsescolas. A maioria absoluta da população da vila é tchetchena, mas haviaalguns moradores russos.

Após a invasão do exército russo, em dezembro de 1994, em Samáchkifoi estabelecido um regime de “nem paz, nem guerra”: situação comum emmuitas povoações que foram cercadas pelas tropas russas, muitas vezes seencontrando no meio de fogo cruzado, mas preservando o cotidiano, namedida do possível, pois o exército não entrava na vila.

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__________44. Os anciãos redigiram uma declaração desmentindo a informação da TV russa. Esta declaraçãofoi apresentada numa conferência de imprensa organizada pela ONG Memorial. O governorusso e a administração da TV não se pronunciaram a respeito deste episódio.

A população foi acusada de esconder os guerrilheiros tchetchenos que seencontravam nos bosques próximos à povoação. Os anciãos entraram emnegociações com os comandantes das tropas russas e garantiram a não-participação da população no conflito armado. Mesmo assim o exército russoredigiu um ultimato aos anciãos exigindo a entrega de 264 fuzis, duasmetralhadoras e um tanque (alegando que este foi visto na vila) e pedindo apassagem das tropas russas por meio da vila. No dia seguinte (7 de abril) oexército russo começou o bombardeio de um dos bairros da vila e a populaçãocomeçou a fugir. Os anciãos novamente se reuniram com chefes das tropas einsistiram na inexistência de armamentos dentro da vila, também pediram apermissão para os moradores se refugiarem. Foi dada a ordem de permitir asaída de moradores, mas, ao mesmo tempo, os bombardeios recomeçarame a maior parte de população ficou com medo de sair. Mesmo assim cercade 100 pessoas conseguiram fugir da vila antes do começo da operação,sendo que muitos homens jovens foram presos pelos militares que controla-vam as saídas da vila.

À noite do mesmo dia, a TV russa veiculou notícia de que os anciãos davila Samáchki foram executados pelos guerrilheiros, acusados de facilitar aentrada das tropas russas na vila. Agência de notícias russa Interfax informouque os anciãos sobreviventes pediram ao exército russo ajuda para retiraros moradores da vila. Segundo as testemunhas e os próprios anciãos44, oscarros que os levavam de volta a Samáchki após as negociações, forammetralhados pelo exército russo, ninguém foi ferido, nem morto.

À tarde de 7 de abril, 350 soldados do exército russo começaram oataque à vila que durou até a tarde do dia seguinte. Durante a operaçãomorreram 16 soldados e 52 ficaram feridos.

Durante esta operação morreram 103 moradores de vila Samáchki –homens, mulheres, muitos velhos. O mais jovem dos mortos tinha 15 anos, omais velho 96. Estas pessoas morreram fuziladas dentro das próprias casas,que foram queimadas ou explodidas com granadas (200 casas foramdestruídas). Alguns corpos foram queimados pelos soldados. As organiza-ções humanitárias como Cruz Vermelha e Médicos sem Fronteiras foramproibidas de entrar na vila e prestar assistência médica aos feridos. O prédioda escola foi queimado.

As ONG´s de direitos humanos e uma comissão parlamentar investigarama operação, colheram depoimentos das vítimas, foram atrás dos presos,mas até hoje ninguém assumiu a responsabilidade por esse tipo de operaçãoque se tornou comum durante o período das guerras.

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V. Conflito armado (1999 -????) – 2a fase da guerra

Em 1999, o exército da Federação Russa novamente invade a tchetchê-nia e permanece no território até hoje. Após um ano de operações militaresna região a guerra foi proclamada como vencida pela Rússia e atualmente“estão sendo apagados alguns focos de resistência” e promovidas asoperações de “limpeza” (çà÷èñòêè). Na realidade, o conflito, muito longede ser resolvido, espalha-se rapidamente pelo território do Cáucaso Se-tentrional (Inguchétia, Daguestão, Ossétia do Norte e ultimamente, Ka-bardino-Balkária).

O êxodo dos refugiados durante esse período foi ainda maior, mas comsérios agravantes, como a proibição de cruzar as fronteiras da república (nocomeço da guerra somente um corredor foi aberto para a fuga da populaçãoe isso graças à atitude do presidente da vizinha Inguchétia que, na época, senegou a proibir a entrada de refugiados no seu território; esse corredor foiconstantemente bombardeado), o encerramento dos acampamentos e acogitação da volta, forçada e sob ameaças, para as casas destruídas.

Em seguida apresentamos um breve histórico dos acontecimentos naregião de Stavropol e no Daguestão que, ao lado das explosões de prédiosresidenciais em três cidades russas, serviram de pretexto para o recomeçoda guerra na Tchetchênia.

Situação na região de Stavropol em 1999 (antes do começo dasegunda guerra)45

A população da região de Stavropol (Ñòàâðîïîëü) vinha sofrendo oimpacto das ações de grupos criminosos baseados no território daTchetchênia, tais como: seqüestro de pessoas visando o pagamento pelalibertação; assaltos armados à polícia e ao exército nas regiões fronteiriças;roubo de gado, de transporte e de máquinas técnicas.

Vale notar que esses grupos muitas vezes incluíam não somentetchetchenos, mas também russos e outros povos do Cáucaso setentrional. Oterritório tchetcheno foi usado como região onde era possível se esconder, eesconder com facilidade as pessoas e os bens roubados.

Desde 1995 até 1999 da região de Stavropol foram seqüestradas e estãodesaparecidas mais de 200 pessoas.

A situação mais alarmante era a da região de Kursk (Êóðñê), que seencontra justamente na fronteira com a República da Tchetchênia. Muitos__________45. Este texto é baseado na pesquisa realizada por um grupo da ONG Memorial em 21-29 demarço de 1999.Fonte: <<www.memo.ru/hr/news/stawrop/stawr.htm>> (acessado em 10 de junho de 2006).

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dos seqüestrados eram parentes de donos de grandes empresas/comércios,que precisaram vender grande parte de suas propriedades para pagar aosseqüestradores. Esta situação era similar em outras regiões de Stavropol.Com freqüência, os seqüestros foram realizados pelos grupos armados sobencomenda.

Perto do povoado Galiugáievskaia (Ãàëþãàåâñêàÿ), situado nas pro-ximidades da fronteira, mais de 5.000ha estavam desocupados, pois osmoradores tinham medo de trabalhar nesta região. Nela, grupos armadosroubaram tratores e um ônibus. Certa vez um trator foi roubado junto com ooperador, que foi libertado só após atravessar a fronteira.

A parte leste da região de Kursk, que servia de pasto para os rebanhosde ovelhas, encontrava-se abandonada. Durante os últimos anos, grandesrebanhos foram levados para o território tchetcheno. Porém, segundo osentrevistados, muitas vezes os próprios moradores levavam os rebanhos paraoutro lado da fronteira, usando os casos de roubo pelos grupos armadoscomo desculpa.

A situação na região era tensa e abria espaço para as ações que violavamos direitos humanos, como formação de grupos armados ilegais pelosmoradores da região, privações de livre movimentação e moradia de pessoas,aquisição e guarda ilegal de armamentos, assim como tomada de decisõespelos poderes locais que prejudicavam a ordem constitucional.

A principal exigência dos entrevistados era a de fechamento da fronteiracom a Tchetchênia e controle daqueles que a atravessavam. Assim como aatribuição de status de uma fronteira interestatal, ao invés de uma fronteiraentre as regiões que fazem parte da mesma federação. A maioria concordavaem estabelecimento de estado de sítio na região, mesmo demonstrandopreocupações quanto à inevitável presença de tropas federais russas nestecaso.

Havia denúncias de abusos cometidos pelo exército federal russodeslocado na região para controlar o território.

Uma jovem do povoado Galiugaievskaia foi violentamente estuprada, emorreu no dia 12 de outubro de 1998. Como todas as pistas indicavam parao exército, o processo foi levado adiante pela procuradoria militar. Ninguémfoi acusado.

Outro problema na região era a posição dos cossacos perante a situação.Muitos funcionários das organizações cossacas aumentaram e provocaram axenofobia, o nacionalismo e a histeria em relação à moradia na região dosdaguestãos, tchetchenos, inguches, islâmicos em geral e quaisquer pessoasnão-eslavas e não-cristãs. Estas organizações almejavam a formação degrupos armados que “restabeleceriam a ordem” na região.

A xenofobia e o nacionalismo dos cossacos, infelizmente, tiveram apoiode alguns funcionários do governo de Stavropol, que estavam prontos aestabelecer um regime de controle sobre a movimentação, a moradia e a

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permanência de pessoas segundo os critérios étnicos, mesmo reconhecendoa ilegalidade de tais procedimentos. Em condições do aumento de tensãoeles consideravam tais restrições inevitáveis.

Apesar destas tensões, na região fronteiriça continuava o comércio depetróleo. Para a agricultura local o petróleo barato que vinha do territóriotchetcheno sob sistema de crédito representava, muitas vezes, a únicaalternativa para a continuação dos trabalhos. Na prática este petróleo debaixa qualidade era roubado e provinha das fábricas clandestinas.

Daguestão – 199946

Região Novolákski:

Em 5 de setembro de 1999, de manhã, os povoados da região No-volákski (Í îâîëàêñêèé) no Daguestão foram tomados por grupos armadosvindos da Tchetchênia, sob o comando de Chamil Bassaev. Os militares e ospoliciais romperam o cerco, muitos deles foram capturados, e pelo menosseis soldados foram violentamente assassinados no povoado de Tukhtchar(Òóõ÷àð). Os combatentes perseguiram os funcionários da administração eda justiça, exerceram “requisições” das propriedades estatais e privadas.No território ocupado passaram a saquear as casas abandonadas. Apopulação civil, inclusive tchetchenos akkintsy, moradores desta região como apoio de quem contava Basaev, não apoiaram os combatentes e foramembora da região. Akkintsy dos povoados Akhar (Àõàð) e Chuchia (Ø ó ø è à),vizinhos da Tchetchênia, resistiram aos combatentes. Mesmo assim, as forçasfederais os acusaram de traidores.

Em uma semana as tropas russas tiraram os combatentes do Daguestão.Os federais, após fortes bombardeios e metralhamentos, entraram nas vilas.Os grupos armados autônomos daguestãos e a polícia durante alguns diasnão permitiam a volta dos tchetchenos akkintsy para suas casas. Duranteestes dias os grupos autônomos roubaram e destruíram praticamente todasas casas dos akkintsy na região Novolákski; algumas das casas foramqueimadas. Durante estas destruições os grupos paramilitares conseguiramsuperar em atrocidades os combatentes do Bassaev.

Finalmente, os moradores conseguiram voltar para as casas, mas asrelações entre os povos continuaram tensas.

Zona Kadárskaia (Êàäàðñêàÿ):

Na década de 1990, grupos de fundamentalistas islâmicos estabelece-ram controle sobre os povoados Karamakhi (Êàðà ìàõè) e Tchabanmakhi(×àáàí ìàõè).__________46. Fonte: <<www.memo.ru/hr/news/rel0928.htm>> (acessado em 10 de junho de 2006).

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Apesar dos protestos da população nos povoados, fortaleceu-se umregime teocrático, que não obedecia ao poder republicano.

As negociações (das quais não participaram os moradores) entre osrepresentantes do governo do Daguestão, do poder federal e os “wahha-bitas” (fundamentalistas islâmicos) fortaleceram as posições desses últimosna zona Kadárskaia. Em 1999, eles tinham o controle total sobre a popula-ção. Os representantes do poder laico foram expulsos. Foi estabelecido naregião o julgamento charia.

Quando as tropas federais começaram a operação militar nestespovoados, os moradores não foram avisados nem pelo poder federal, nempelos wahhabitas. Após as primeiras bombas caírem, quase toda a populaçãofugiu de suas casas. Os bens que os moradores poderiam salvar, caso fossemavisados, foram abandonados em casas destruídas durante os bombardeios,saqueadas pelas tropas federais e, muitas vezes, queimadas. Os moradores,que formaram os grupos autônomos de resistência, e que entraram no po-voado Karamakhi após o exército, responsabilizam por esta ação as tropasespeciais do Ministério do Interior. Foi registrado o caso de tortura e dehomicídio violento de um combatente wahhabita, e também foram registradoscasos de violação de cadáveres.

Mesmo assim, em comparação com as operações análogas durante aguerra na Tchetchênia, a operação em Zona Kadárskaia foi mais positiva emaspectos humanos. A saída dos moradores não foi interditada, nem peloexército nem pelos grupos armados, nem pelos wahhabitas. Durante o primeirodia de batalha, os povoados não foram bombardeados com armamentospesados. Isso permitiu minimizar as vítimas entre a população civil.

VI. Perdas da população civil durante as guerras na Tchetchênia

10/12/2004

Os dados sobre as mortes e a migração de civis dentro da zona do con-flito armado na Tchetchênia durante os últimos 10 anos são contraditórios e,em sua maioria, pouco confiáveis.

O Estado russo não contabilizava os civis que morreram na Tchetchênia.Após a primeira guerra (1994-1996) o Comitê Estatal de Estatística procuroudiversas ONG’s para a obtenção desses dados. A ONG Memorial calculaque, entre 1994 e 1996, foram mortos até 50.000 civis. No inverno de 1994-1995, durante a tomada de Grozny (capital da Tchetchênia), morreram de25.000 a 29.000 pessoas.

Não existem dados oficiais de perdas de população civil durante a se-gunda guerra na Tchetchênia (iniciada em 1999). A procuradoria diz que são

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__________47. Dados da ONG Human Rights Watch.48. Dados da ONG Memorial.49. Informações mais detalhadas no livro Soldado Desconhecido da Guerra do Cáucaso,Moscou, 1997.

menos de 1.000 pessoas, enquanto as listas de nomes mostram númerosbem superiores. Avaliações das organizações de defesa de direitos humanospermitem afirmar que durante o período de operações militares intensas naTchetchênia (outono de 1999 – primavera de 2000) morreram de 6.500 a10.500 civis47.

Durante o período “pacífico” – marcado por incursões guerrilheirastchetchenas e, ao mesmo tempo, por “limpezas” e outras operações ofensivasdo exército federal russo – morreram de 5.300 a 10.700 pessoas até o anode 2004 48. Assim, a avaliação do número de mortos durante segunda guerraé de 10.000 a 20.000 civis, além de cerca de 5.000 pessoas desaparecidas.

Os dados oficiais da Federação Russa sobre a população atual daRepública Tchetchênia são superestimados em 1.088.000 pessoas (outubrode 2002). Por outro lado, o Comitê Estatal de Estatística indica em seuanuário do ano de 2003 uma população tchetchena de 813.000 pessoas.

VII. Perdas do exército da Federação Russa durante as guerrasna Tchetchênia

10/12/2004

Durante a primeira guerra na Tchetchênia, as organizações de defesa dedireitos humanos conseguiram estabelecer contato com ambas as partesenvolvidas no conflito, participando diretamente na busca dos desapare-cidos e na libertação dos presos. Em janeiro de 1997, o número de mortosdo exército russo contabilizava 4.379 pessoas. Cerca de 600 pessoas con-tavam como desaparecidas, somadas ao mesmo número de desertores49.Tais dados correspondiam ao número de corpos não reconhecidos depo-sitados na cidade de Rostov no Laboratório de Medicina Especializada nº124, e ao número dos restos corporais não exumados encontrados noterritório da Tchetchênia. Sendo assim, o número total dos mortos por partedo exército russo durante a primeira guerra foi de até 6.000 pessoas. Dadosoficiais indicam até 20.000 feridos. A partir desta guerra, o Ministério doInterior e o Exército russo passaram a publicar a lista dos nomes dos mortos.

A comparação das listas oficiais com as listas dos Comitês das Mães dosSoldados, região por região, demonstrou que os dados das organizaçõesnão-governamentais superam os dados oficiais em 13%. Ou seja, as dis-crepâncias das listas oficiais não objetivavam apenas esconder os dados

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__________50. Retchkalov V. Homem de uma fenda da montanha diferente: Conversa dentro de umblindado com chefe do serviço secreto no caminho a Duba-Iurt, Tchetchênia// Notícias. 2003.28 de março. (Ðå÷êàëîâ Â. ×åëîâåê èç äðóãîãî óùåëüÿ: Áåñåäà â áðîíåòðàíñïîðòåðå ñí à÷àëüíèêî ì ðàçâåäêè ï î ä îð îãå íà Äóá à - Þ ðò\\ Èçâåñòèÿ. 2003. 28 ìàðòà).

sobre as mortes, mas ocultar a inexistência de trabalhos sistemáticos a respeitode cada caso particular (impedindo assim compensações para as famílias,indenizações etc). Muitos oficiais dedicados à devida identificação de mor-tos e desaparecidos foram expulsos do exército, como Viatcheslav Izmáilove Vladímir Scherbakov.

Durante a segunda guerra na Tchetchênia, as relações entre as ONGs eas forças militares envolvidas no conflito foram completamente diferentes. Aprocura dos presos e dos desaparecidos foi impossibilitada, e a contagemindependente dos mortos não foi realizada. O Exército e o Ministério do Interiorcontinuam publicando suas listas de mortos, e o Ministério de Defesa continuaocultando suas listas. Podemos supor que o número total de perdas doExército russo na Tchetchênia durante a segunda guerra deve corresponderaproximadamente à primeira guerra. Impossível contestar ou confirmar os da-dos oficiais até o Estado não revelar os nomes de todas as pessoas mortasem sua causa.

VIII. Depoimento de um oficial do exército russo

“O termo esquadrão da morte apareceu no Brasil na década de 60.Assim se autonomeavam grupos de policiais que sob proteção de seussuperiores iniciaram extrema repressão contra a criminalidade, executandosuspeitos sem julgamento e sem investigação. Geralmente, as vítimas nãoeram grandes criminosos, mas assaltantes, ladrões de rua, mendigos.Posteriormente, os esquadrões da morte foram utilizados por governos naAmérica Latina para reprimir oposições e movimentos de guerrilha”. (p.44)

ÇÄÅÑÜ ÆÈÂÓÒ ËÞÄÈ×å÷íÿ: õðîíèêà íàñèëèÿ(“AQUI MORAM PESSOAS – Tchetchênia: crônica da

violência”)

Nos últimos anos, o termo “esquadrão da morte” tem sido utilizado naTchetchênia para designar grupos de militares federais russos que seqüestram,interrogam, torturam e executam moradores suspeitos de “ligações cri-minosas”. Não há julgamento ou qualquer direito de defesa. Tal procedimentoconfirma-se através dos trabalhos de reconhecimento de corpos realizadona Tchetchênia por ONG´s, além de depoimentos dos próprios militares en-volvidos nas operações de limpeza, assim como descrito no jornal Izvestia50:

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Oficial: Eles reclamam das limpezas, queixam-se de desaparecimentosdos parentes. Só que isso não acontece por acaso. Pessoas normais não so-mem na Tchetchênia. Somem monstros que devem ser exterminados, extintos.

Jornalista: São vocês que seqüestram pessoas à noite e depois asexterminam?

Oficial: Cerca de 30% delas são seqüestradas e mortas pelos própriostchetchenos dentro do esquema de criminalidade, durante acertos de contas.Vinte por cento estão por conta dos extremistas, que exterminam colabo-radores com o governo federal. E cerca de 50% somos nós que execu-tamos. Com nossa justiça corrupta simplesmente não há outra saída. Se,seguindo as leis, encaminhamos os terroristas capturados para a prisão deinquérito “Chernokozovo”, rapidamente os parentes os compram de volta.Passamos a usar estes métodos quando os principais grupos dos extremis-tas foram exterminados. As tropas ficaram paradas. Vieram procuradores,começaram a fazer bobagens, como instituir a paz. Tudo deve ser confirmadocom provas etc. Supomos que temos uma informação quente que determi-nada pessoa é um bandido, com os braços em sangue até os cotovelos.Vamos até ela com o procurador, mas na casa do sujeito não há nenhumabala. Como vamos prendê-lo? Por isso exterminar os bandidos na caladada noite é o meio mais eficaz da guerra. Eles temem isso. E em nenhum lugarse sentem em casa. Nem nas montanhas, nem dentro das casas. Hoje nãoprecisamos das grandes operações. Precisamos das operações noturnas,precisas, cirúrgicas. Os fora da lei podem ser combatidos somente fora dalei.

Jornalista: Você gosta deste procedimento?Oficial: Não sempre. Com este negócio às vezes pessoas inocentes

desaparecem. Pois os tchetchenos agora estão dividindo o poder e, acon-tece, denunciam uns aos outros. E quando nós ficamos sabendo da verdadejá é tarde para consertar alguma coisa. A pessoa não existe mais.

IX. As condições sociais na Tchetchênia na atualidade: Tchetchêniae gueto

A infra-estrutura urbana da República Tchetchênia foi destruída com aguerra. O sistema de canalização da capital, Grozny, praticamente nãofunciona. A população das cidades procura comprar água trazida de outroslugares. Os moradores dos prédios carregam a água pelas escadas, pois oselevadores, na sua maioria, estão danificados. A calefação funciona em al-guns edifícios, com diversas interrupções. A eletrificação é reconstruídalentamente: os moradores improvisam ligações clandestinas, criando situa-ções de perigo para a vida e danificando aparelhos domésticos com descar-gas elétricas desreguladas.

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As condições sanitárias estão em colapso. Apenas algumas avenidascentrais na cidade recebem limpeza adequada, enquanto nos demais locaisacumula-se toneladas de lixo. No mercado central, ao lado das montanhasde entulho e outros detritos, comercializa-se carnes, verduras e frutas.

O desemprego é um problema gravíssimo. O trabalho informal é reali-zado majoritariamente pela população: os trabalhadores nunca podemrecorrer a alguma instância da justiça, pois não há contratos firmados. Semdocumentos, os comerciantes são coagidos a pagar propina para a admi-nistração dos mercados. Além disso, são assaltados por grupos armados euniformizados. Os mercados surgem espontaneamente: as mulheres ficamcom suas barracas nos lugares mais cômodos para os fregueses.

A administração da cidade, ao invés de combater a sujeira, prefere com-bater as vendedoras. No final de dezembro de 2003, o Ministério de Defesae Ministério do Interior da Rússia fizeram a operação de “limpeza” nomercado central, destruindo e queimando as tendas e as barracas no territó-rio adjacente ao mercado central. Milhares de pessoas perderam emprego,os preços de alimentos subiram, especialmente os do pão.

Os homens que possuem automóveis trabalham como taxistas clan-destinos. O negócio mais lucrativo é extração e refinação de condensadorde petróleo, atividade perigosa e extremamente prejudicial à saúde, assimcomo a coleta de metais e outros materiais nas fábricas abandonadas. Oscoletores freqüentemente se explodem com minas, e são presa fácil para osbandidos armados.

O sistema de saúde é caótico. Além do tratamento dos feridos e enfer-mos, as crianças precisam de sério acompanhamento para reabilitaçãopsicológica, pois muitas vezes permanecem longos períodos escondidas nosporões, sem alimentação adequada.

A falta de vagas para as crianças nas escolas é permanente. Não hácondições adequadas para o ensino, nem instalações para os estudos (mesase cadeiras), nem sequer materiais escolares: os pais são obrigados a pro-videnciá-los no mercado, por conta própria. As crianças cegas não têm pos-sibilidade de estudar, e somente 10% de crianças surdas-mudas estudamem escolas especializadas.

As estradas e ruas são extremamente perigosas ao tráfego, sem qual-quer obra de reparação. Os bloqueios móveis dos militares russos espalham-se e surgem em qualquer lugar e a qualquer hora do dia ou da noite. Natentativa de furar esses bloqueios, muitos tchetchenos são capturados,interrogados, torturados e mortos. Esse é o caso de Magoriev Magomed,cuja perícia do corpo realizada pela ONG Memorial indicou marcas detortura e sinais de execução sumária. Enterrado na Vila Atagui, seus parentessouberam disso só após duas semanas. Magomed e outro passageirotrafegavam pela rodovia na cidade de Gudermes, quando foram parados emum posto de bloqueio móvel dos federais russos.

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A população tchetchena está enclausurada em seu próprio território. Deacordo com o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, “guetos e prisões sãodois tipos de estratégia de “prender os indesejáveis ao chão”, de confinamentoe imobilização. (...) Pode-se dizer que as prisões são guetos com muros, eos guetos são prisões sem muros. Diferem entre si principalmente no métodopelo qual seus internos são mantidos no lugar e impedidos de fugir – mas elessão imobilizados, têm as rotas de fuga bloqueadas e mantidos firmemente nolugar nos dois casos”51.

Dessa maneira, o resultado das recentes ações das tropas militares russasdurante a guerra na Tchetchênia é a destruição da possibilidade de autogo-verno comunitário naquela região, e o controle territorial da população naformação de um gueto.

__________51. BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio deJaneiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p.109-10.

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Corpo de Magoriev Magomed após perícia realizada pela ONG Memorial,onde se constata marcas de tortura e execução sumária.

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Refugiados TchetchenosI. Introdução

A situação de vida insustentável em grandes cidades e povoados daTchetchênia leva milhares de pessoas a fugir para as áreas rurais ou paraos campos de refugiados nas repúblicas vizinhas. Estas alternativas nãoamenizam os problemas, pois as vilas rurais são constantemente alvo dasoperações de limpeza (bombardeios generalizados e prisões em massa)pelas tropas russas, enquanto a precariedade e a instabilidade da vidanos campos de refugiados não possibilita qualquer esperança para ostchetchenos. Alguns arriscam um novo destino nos grandes centrosurbanos da Rússia – como Moscou ou São Petersburgo – encontrandoxenofobia, preconceito e repressão da polícia: são eternos suspeitos deterrorismo.

De acordo com os dados fornecidos por “Memorial” Human RightsCenter e “Migration Rights” Network, em 2003, foram registrados67.015 migrantes forçados tchetchenos na Rússia. As regiões da Ingu-chétia e de Stravopol constituem as áreas de maior concentração dosrefugiados, devido à proximidade da Tchetchênia e à infra-estruturaencontrada nas estações temporárias de residência.

O número de migrantes forçados tchetchenos diminuiu substancialmenteem relação ao ano anterior. Segundo as organizações citadas, foramregistrados 87.258 migrantes forçados no ano de 2002. Todavia, taisnúmeros representam a concessão oficial do status de migrante forçadopelo Estado russo.

II. Migração forçada na região da Inguchétia

Desde o verão de 2002, a ameaça de remoção dos refugiados tchetchenosde acampamentos na Inguchétia tornou-se uma inevitável realidade. Diversosmétodos de forte pressão para que os migrantes forçados retornassem àTchetchênia eram utilizados: ameaças, suspensão de ajuda humanitária,interrupções no fornecimento de gás e eletricidade, e até destruição dosacampamentos, como o acampamento “Iman”, na vila de Aki-Yurt (Àêè-Þ ðò). Pessoas foram levadas para a Tchetchênia em condições insustentáveis.

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Os perigos conseqüentes da falta de água, moradia, infra-estrutura e segurançaainda persistiam, enquanto foram consideradas insignificantes pelasautoridades russas.

Somente após a intervenção da Comissão de Direitos Humanos da UniãoEuropéia foi suspenso o retorno forçado de refugiados de acampamentospara a Tchetchênia. Em março de 2003, o presidente da República da In-guchétia Murat Zyazikov assegurou que não seriam permitidos retornosforçados de refugiados para a Tchetchênia. No entanto, tal política foisubstituída por outras formas de persuasão, como supostas compensaçõespor perdas e danos de moradias àqueles que voltassem para a Tchetchênia.

Outro agravante para o retorno de refugiados refere-se aos novos locaisde moradia predeterminados pelas autoridades. Muitas vezes, os prédiosescolhidos já abrigavam novos moradores, gerando portanto o aumento donúmero de cidadãos desalojados na Tchetchênia – foi o caso da tentativa deremoção dos refugiados do acampamento “Bella” para a rua Chailkovsky,em Grozny.

No verão de 2004, todos os acampamentos provisórios para refugiadosna Inguchétia foram removidos. A maior parte dos refugiados foi compelidaa retornar à Tchetchênia. Aqueles que conseguiram permanecer nos centros

Unidade Federativa Russa

InguchétiaRegião de StavropolDaguestãoRegião de KrasnodarRegião de RostovOssétia do Norte – AlaniaRegião de VoronejRegião de VolgogradoRegião de AstrakhanKarachaevo-TcherkessiaMoscouRegião de NizhegorodRegião de BelgorodRegião de MoscouSão PetersburgoRegião de São PetersburgoOutras regiõesTotal

Número de Migrantes Forçados(MF) da Tchetchênia

_______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

16.95014.3046.1624.7713.6921.6371.5201.1841.1841.0841.006

891625518468383

10.63667.015

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de residência provisória (cerca de 10.000 pessoas) na Inguchétia se en-contram, atualmente, vivendo sob péssimas condições habitacionais.

Diversas razões sustentam a recusa dos refugiados em retornar àTchetchênia, porém as principais alegações recaem sobre a absoluta falta degarantias de segurança e a destruição generalizada da infra-estrutura dasvilas e cidades.

III. Discriminação de tchetchenos em Moscou

A captura de reféns no teatro de Moscou durante o espetáculo Nord-Ost, em 2002, foi o início de uma nova campanha de perseguição detchetchenos e outros “nativos caucasianos”, repetindo o mesmo cenário po-lítico conseqüente das explosões de prédios residenciais no outono de 1999e da passagem subterrânea da Praça Pushkin no verão de 2000. Asinvestigações dos crimes foram substituídas pela perseguição aleatória decidadãos. O princípio de vingança e responsabilidade coletiva começou aser implementada, mesmo que as perseguições recaíssem, até mesmo, sobrepessoas sem qualquer suspeita de terrorismo.

A polícia passou a investigar todos os apartamentos aonde famíliastchetchenas residiam permanente ou temporariamente. Nenhum documentoautorizando o direito legal para tais ações foi apresentado durante asinspeções. Requisitavam dos moradores, mesmo daqueles com registroresidencial permanente, explicações por escrito sobre os propósitos da es-tada na cidade, e interrogavam sobre suas atividades no momento con-comitante ao curso da ação de tomada do teatro. As inspeções eram acom-panhadas por rudeza, insultos e ameaças de expulsão de Moscou.

Muitos deles, primeiramente os mais jovens, eram levados de suas casasou ruas para departamentos policiais, fotografados, retiradas impressõesdigitais e, muitas vezes, estatura e peso medidos. Caso houvesse questio-namentos sobre a legitimidade da ação repressiva, como solicitações de do-cumentos ou ordens judiciais, incriminações por porte de drogas e outrasacusações poderiam ser falsificadas pela polícia.

Crianças cujos pais não tinham adquirido registro residencial em Moscoueram expulsas da escola, reativando assim o item 5 das regras de registro naregião de Moscou, abolido anteriormente pela justiça. Oficialmente, osinspetores estatais aconselhavam os pais a procurar uma nova escola emque o diretor se responsabilizasse pessoalmente pela matrícula das crianças.

Ao mesmo tempo, nenhum registro de permanência era expedido nosDepartamentos do Interior para cidadãos vindos da Tchetchênia. O registrode residência podia ser expedido para, no máximo, 10 dias de permanência.Freqüentemente, eram solicitadas fotografias adicionais e impressões digitais.

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Mesmo sem nenhum documento oficial apontando tal procedimento, tor-nava-se óbvia uma orientação geral para interferências no registro de re-sidentes da Tchetchênia em Moscou.

Tal orientação desenvolveu-se paulatinamente, iniciada por detenções einvestigações realizadas aleatoriamente e que, posteriormente, acabou as-sumindo formas mais violentas: proibição de ligações telefônicas para pes-soas detidas, falsificações de boletins de ocorrência por porte ilegal de drogase armas, acusações sobre ligações com terroristas. Os locais das prisõesnão encontravam-se disponíveis para parentes ou representantes de orga-nizações não-governamentais, impossibilitando ações de defesa anteriores àconsubstancialização das acusações. Esta campanha de perseguição foireconhecida pela Procuradoria de Moscou no ano de 2000, em um encontrocom representantes de organizações de defesa de direitos humanos.

No entanto, tal campanha repetiu-se, desestabilizando a situação socialem Moscou na medida em que generaliza o medo e cria um ambiente favo-rável à corrupção, ao abuso de autoridade, à xenofobia e ao racismo.

IV. Crescimento da xenofobia na Rússia. Discriminação de minoriasétnicas

Nos últimos anos, as tendências nacionalistas têm crescido de-masiadamente na Rússia. A xenofobia é dirigida essencialmente aos cau-casianos, asiáticos, africanos e representantes de minorias étnicas. Os ata-ques de grupos de jovens extremistas (skinheads e outros grupos neonazis-tas) a pessoas com aparência não-eslava tornaram-se mais freqüentes. Mui-tas vezes esses ataques e espancamentos resultam em morte. O objetivodeste breve relato é analisar o que provoca a tensão na área das relaçõesentre as nações e quais são os fatores que determinam a grave situação dealtos níveis da intolerância étnica.

Imediatamente após a explosão no metrô moscovita, em 6 de fevereirode 2004, Putin acusou Aslan Maskhadov (então presidente da Tchetchênia)como sendo responsável por este ato: “O próprio ato de chamar às nego-ciações com Maskhadov após realização dos crimes comprova a relação deMaskhadov com bandidos e terroristas. Nós não necessitamos destas com-provações. Sabemos certamente que Maskhadov e seus bandidos estãoconectados a este terror”, proclamou o chefe de Estado para a NTV (umdos maiores canais da TV russa). Estas palavras foram pronunciadas nãosomente antecipando a decisão da corte judicial, mas antes de se saber osprimeiros resultados das investigações, logo após a explosão.

A partir deste pronunciamento do presidente, os órgãos da justiçapromoveram ações que pouco estavam relacionadas com a investigação dossupostos atos terroristas. Nas últimas semanas de fevereiro de 2004 foi efe-tuada uma série de enquadramentos e aprisionamentos dos muçulmanos nas

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mesquitas de Moscou. A operação foi nomeada de “turbilhão-antiterror”; ospresos foram interrogados sobre o que eles fazem em Moscou. Segundo osórgãos do poder, foram detidos os “ideólogos do terrorismo”, que nãoparticiparam diretamente dos atos, mas seriam culpados em promoverideologia similar (pelas palavras do Chefe do Departamento de SegurançaPública do Ministério do Interior da Rússia).

A idéia de controle sobre a ideologia foi proclamada em 12 de abril de2004 pelo Vice-Procurador da Federação Russa Koliesnikov: “Temos queincriminar os pregadores do wahhabismo nas casas de rezas”.

A posição do poder judiciário é similar. Assim, em abril de 2004, umadas cortes de Moscou contemplou o pedido do procurador de Moscou A.Zuiev de considerar como literatura extremista a obra do fundador dowahhabismo Mukammed ibn Suleiman at-Tamimi Livro da Unideidade.Agora este livro é proibido para distribuição no território da Federação Russa,o que significa que os seguidores de uma das correntes do islã tornam-seilegais, independentemente de cometer ou não algum crime.

Nos últimos tempos, as decisões das cortes abrem espaço para a ex-pansão da xenofobia e das tendências nacionalistas, fortalecendo aquelesque cometem arbitrariedades na Tchetchênia. Infelizmente, tais decisõesencontram apoio na maioria da população da Federação Russa. Encontra-mos um exemplo em um julgamento na cidade de Rostov-na-Donu (Ðîñòîâ-íà-Äîíó). O júri popular absolveu o grupo de reconhecimento militar sobcomando do capitão Ulman. Este grupo de três oficiais e um sargento-mor,em janeiro de 2002, exterminou seis moradores da região de Chatoi (Øàòîé),na Tchetchênia. Porém, foram cometidas irregularidades durante a escolhados membros do júri, o que possibilitou aos advogados de acusaçãorecorrerem da decisão.

O poder judiciário da região central da Rússia revela-se indulgente aosadeptos da ideologia do fascismo. Em fevereiro de 2004, a corte de Moscoucondenou somente um dos participantes de um pogrom52 na feira em Iáse-nevo (Moscou), e decretou apenas dois anos de prisão condicional paraoutros dois envolvidos. O crime aconteceu quando os grupos fascistasatacaram os feirantes, na maioria caucasianos, para “comemorar” o aniver-sário de Hitler em 21 de abril de 2001: cerca de 150 jovens, gritando slo-gans nacionalistas, atacaram os vendedores, destruindo 30 barracas e ferin-do 10 pessoas.

Não há prazo previsto para o término do processo contra os assassinosde Massa Maioni, cidadão de Angola, refugiado na Rússia. Em 23 de agostode 2001, em Moscou, às 17 horas, perto do centro de recepção de refugia-

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__________52. Assim foram chamados os ataques que Centena Negra, grupo ultra-nacionalista da Rússia,fazia destruindo as vilas dos judeus, matando pessoas e incendiando as casas; esta palavravirou termo para a descrição dos ataques racistas e nacionalistas sobre os moradores.

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dos, um grupo de jovens de 15 a 17 anos, armados com garrafas quebradase paus, atacou seis africanos. Pol Massa Maioni foi gravemente ferido;inconsciente, ele foi levado para hospital, onde morreu em 5 de setembrosem sair do coma. Ele deixou a mulher, cidadã da Rússia, e dois filhos pe-quenos. As ações dos assassinos de Massa Maioni foram classificadas comoespancamentos que causaram a morte. Porém, os advogados de defesa dosassassinos, recorrendo da sentença, solicitaram uma nova investigação que,inesperadamente, “descobriu” que a morte de Pol fora causada por quedasobre o asfalto. Os autores da nova investigação negaram os resultados daprimeira: procedimento ilegal porque só a corte tem este poder de decisão.Em conseqüência, a acusação foi substituída para vandalismo, nova versãoapresentada no julgamento. Durante as audiências foi indicada uma terceirainvestigação que confirmou os resultados da primeira, mas a acusação per-maneceu a mesma da segunda investigação, e os assassinos estão livres.

A prefeitura de Moscou demonstra sua parcialidade em relação à posi-ção de diferentes grupos da sociedade perante a guerra na Tchetchênia. Porexemplo, a manifestação organizada pelo movimento Ação contra os imi-grantes ilegais, que conclamava “Limpar Moscou dos bandidostchetchenos”, havia sido proibida após vários pedidos realizados pelosgrupos de direitos humanos e antimilitaristas, proibida sob o pretexto de pre-cisar tirar a neve do local... Quando a alegação da neve tornou-se incabí-vel, esta manifestação xenófoba foi permitida. Por outro lado, quando asorganizações sociais de Moscou entraram com pedido de realização de umamanifestação de luto para lembrar 60 anos da deportação dos tchetchenos einguches pela ditadura stalinista, a prefeitura se negou a sequer analisar opedido. Mesmo assim, a manifestação aconteceu, resumindo-se em levar asflores até a pedra memorial, que foi erguida na praça Lubianka em memóriadas vitimas das repressões da URSS. Os organizadores foram multadospela prefeitura de Moscou.

Como na Rússia as manifestações podem acontecer somente após apermissão do Estado e o governo se outorga o poder de negar o direito doscidadãos se manifestarem livremente, a prefeitura de Moscou proibiu du-rante cinco semanas os piquetes contra a guerra na Tchetchênia que vêmacontecendo no centro da cidade desde 1999, início da segunda fase daguerra.

Esta omissão, e muitas vezes estímulo à xenofobia por parte do podergovernamental, acarreta trágicas conseqüências, como crimes dos quais amídia raramente noticia:

– em Moscou, no dia 17 de julho de 2003, um refugiado do Azebaidjão,Magakian Artur Iurievitch, foi espancado por skinheads até a morte. O casofoi levado para justiça só após apelo da ONG Memorial para a procura-doria, mas a investigação praticamente não avançou;

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– em setembro de 2003, em Ekaterinburgo (Åêàòåðèíáóðã), ao lado doDepartamento do Interior, um grupo de jovens gritando slogans racistasespancou o jornalista negro da rede local de televisão Martin Adams. Duran-te o espancamento, nenhum funcionário da instituição “responsável” pelasegurança pública prestou socorro;

– no mesmo mês de setembro, na região de Stavropol, uma família dearmênios foi assassinada. Pela manhã, o quintal da casa desta família foi in-vadido por três homens de máscaras, que atiraram na mulher e no filho, e omarido foi ferido por tiros e facadas;

– em dezembro de 2003, em São Petersburgo, um estudante nanaets53

da Universidade Estatal de Leningrado, Serguei Beldy, foi atacado porpessoas vestidas de preto e morreu no hospital com ferimentos graves;

– em 14 de janeiro de 2004, em Moscou, uma menina tadjique de 13anos foi atacada durante passeio num dos parques da cidade. A amiga damenina, que tinha aparência eslava, foi solta. A menina foi encontrada com19 feridas e passou por cirurgias no hospital. Ela morreu de insuficiênciapulmonar após três semanas, pois havia ficado muitas horas jogada na neveapós o ataque. Ao contrário do homicídio de outra menina tadjique em SãoPetersburgo, que foi muito comentado, no caso do crime de Moscou nem ospais, nem médicos quiseram apelar para a sociedade e mídia. Os pais temiampela vida de outros filhos, e os médicos pela própria segurança – fatos tãoalarmantes e sérios quanto o homicídio;

– no final de fevereiro de 2004, em Omsk (Î ì ñ ê), skinheads espan-caram a esportista buriata54 Darima Nimaeva, de 17 anos, que participavade um campeonato de arco e flecha. Ela foi atacada voltando para o hotel eficou gravemente traumatizada;

– em março de 2004, no centro da cidade de Kursk (Êóðñê), doisestudantes estrangeiros da faculdade de medicina foram violentamenteespancados. Um deles, Guru Parab Kalimukhod, da Malásia, foi espancadopor um grupo de jovens armados com paus. O outro, Vitkhitung MudinSing, do Sri Lanka, foi atacado perto do instituto por um grupo de adoles-centes que o agrediram na cabeça com uma garrafa; este estudante foiinternado no hospital com distúrbio neurológico;

– no final de abril de 2004, em Kostroma (Êî ñòð îì à), um menino ar-mênio de 11 anos foi atacado. As roupas do menino foram incendiadas. Aspessoas na rua apagaram o fogo. Após alguns dias, foi noticiado na imprensaque, segundo a polícia da cidade, não foi um ataque de skinheads, mas umacidente durante brincadeira de crianças. Porém, logo após o crime, tes-temunhas afirmavam que o menino fora atacado por pessoas carecas vesti-das de roupas pretas, parecidas com uniforme;__________53. Etnia da Rússia oriental.54. Etnia da Rússia oriental, sul da Sibéria.

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– em 19 de junho de 2004, Nikolai Guirenko foi morto a tiros na portade seu apartamento em São Petersburgo; Nikolai foi etnógrafo, chefe decomissão sobre os direitos de minorias étnicas da União de Cientistas deSão Petersburgo, membro do projeto Campanha civil de resistência con-tra xenofobia, racismo, discriminação étnica e anti-semitismo na Federa-ção Russa. Foi perito de processo jurídico do assassinato do azeri Mamedov(2002) e do julgamento do grupo extremista nacionalista Shultz-88. Nikolaiestava-se preparando para ser perito em um caso similar na cidade de VelíkiNovgorod;

– três estudantes (dois peruanos e um espanhol) foram agredidos em 9de outubro de 2005. Segundo a polícia, cerca de 20 jovens armados compaus, barras metálicas e navalhas atacaram os estudantes, à noite, na cida-de russa de Voronezh (Âîðîíåæ) (500 km ao sul de Moscou), onde dezenasde estrangeiros foram assassinados na última década. O peruano EnriqueAngelis Hurtado, de 18 anos, da Academia de Arquitetura de Voronezh,morreu por causa dos ferimentos sofridos;

– em novembro de 2005, foi assassinado o músico e ativista políticoTimur Katcharava. Ele foi atacado por um grupo de neonazistas no centrode São Petersburgo. O assassinato aconteceu após um protesto contra aguerra na Tchetchênia, seguido de distribuição gratuita de comida para osmoradores de rua (Food not Bombs). Timur tinha 20 anos, cursava o 4o anode filosofia na Universidade Estatal de São Petersburgo, e tocava nas bandas“Sandinista!”55 e “Distress”.(www.stop-it.narod.ru – site em memória de Timur).

Os casos são muitos e percebe-se que a onda de agressão que se expandepela Rússia não encontra obstáculos por parte do poder instituído. Pelocontrário, esta onda da xenofobia é usada com muita maestria pelo governorusso para a criação de uma “imagem do inimigo” – culpado de todas asdesgraças da vida de hoje.

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__________55. www.myspace.com/sandinistaxspbhc; www.voicehardcore.by.ru/sandinistatxt.htm – letrasde Sandinista!

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Palavras no Silêncio– Você saberia me dizer como saio daqui? – perguntou Alice.– Depende de aonde você quer chegar, – respondeu o gato.

CAROLL, L. Alice no País das Maravilhas.

A guerra na Tchetchênia parece se tornar um beco sem saída, apa-rentemente é uma situação de desespero. Para a população da pequenarepública no Cáucaso Setentrional, a presença das tropas do exército daFederação Russa – uma constante ameaça e causa de intermináveis viola-ções de direitos humanos – tornou-se cotidiana, insuportável e odiada. Paragrande parte dos cidadãos da Federação Russa essa guerra também tornou-se cotidiana. Apesar de distante e longínqua, é um distúrbio que vem à tonacom as explosões e tomadas de reféns, provocando ódio em relação aossupostos autores dessas tragédias. Paradoxalmente, está ausente o ódio àguerra em si, apresentada como uma guerra justa, aquela que deve ser vencidaa qualquer custo, pois o inimigo surge exatamente como causador de muitosdos males que ameaçam a vida política, social e econômica do país.

Enquanto isso, os interessados no fim das operações militares se vêemcercados por todos os lados, sem possibilidade de apelar a ninguém, vivendonum gueto dentro de uma guerra silenciada.

Atualmente a guerra na Tchetchênia está sendo apresentada pelo gover-no da Federação Russa, para o país e para o exterior, como uma operaçãocontraterrorista, um conflito interno (um dos agravantes mais sérios do usodessa terminologia é a impossibilidade de julgar os crimes cometidos contraa população civil como crimes de guerra). A Federação Russa é membro doConselho de Segurança da ONU e possui o direito de veto a qualquer deci-são dessa entidade, então a questão da Tchetchênia não pode ser resolvidapor meio dessa instituição. As organizações internacionais de defesa de di-reitos humanos em geral possuem enormes dificuldades em atuar na regiãodo conflito devido às complicações criadas pelo governo da Rússia, res-tringindo-se aos trabalhos nos campos de refugiados fora da Tchetchênia eaos eventuais envios de mantimentos e medicamentos para a região. Osagentes dessas instituições correm sérios riscos ao permanecer na Tchet-chênia, e freqüentemente são forçados a sair da região por causa das amea-ças de seqüestros (no final de 2001, o coordenador do programa interna-cional Médicos sem Fronteiras, um dos estrangeiros mais atuantes na região,

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foi seqüestrado, fato que forçou a saída de muitas entidades internacionaisda Tchetchênia56). Além disso, foi aprovada no início de 2006 a lei que res-tringe o funcionamento das ONG’s internacionais no território da Rússia,dificultando o recebimento de financiamento do exterior pelas ONG’s russas.

No começo de 2005, cinco refugiados tchetchenos, residentes na Eu-ropa, ganharam seus casos contra a Federação Russa na corte internacionalde Estrasburgo. Para aqueles que permanecem dentro da Federação Russa,qualquer apelação à justiça parece ser perigosa (além de impossível deganhar), e potencialmente causadora de novas ameaças e problemas maissérios. A saída dos refugiados para a Europa e outros países, no presentemomento, é rara e esporádica devido ao custo elevado dessa operação e àsgrandes implicações jurídicas, sem mencionar a hospitalidade bastantetemerosa da comunidade internacional às vítimas dessa guerra.

* * *

Os conflitos atuais, como a guerra na Tchetchênia, têm sua origem napolítica nacional da União Soviética, assim o fenômeno da passividade (ouapatia?) social também deve provir dessa época e é necessário analisar osmecanismos de persistência de um sistema totalitário/ ditatorial.

Quais são as estratégias totalitárias que permitem a continuidade daguerra na Tchetchênia e produzem os silêncios como respostas aos acon-tecimentos relacionados com o conflito e a situação política e econômica naRússia? A mudez imposta pelo governo e as razões do silêncio da popula-ção perante a guerra que se tornou cotidiana, a reconstrução da imagem doinimigo, e a conseqüente política do medo cotidiano instaurada nos grandescentros urbanos da Rússia são os resquícios de um regime totalitário? Estaafirmação faz lembrar das palavras de Hanna Arendt: “... o país pode voltarao totalitarismo da noite para o dia sem grandes convulsões...”57. Como amanutenção e a perpetuação do poder na URSS em grande parte era daresponsabilidade do aparelho policial, basta lembrar que o atual presidenteda Rússia foi alto membro da FSB (ex-KGB) antes de se eleger e que,durante os últimos 20 anos, não houve qualquer transformação nas estru-turas de poder.

Vale a pena prestar atenção aos fenômenos que confirmam a persistên-cia de elementos de dominação herdados do totalitarismo: a criação de ima-gem de inimigo, culpado de todas as desgraças da sociedade; o resgate de__________56.<<http://www.caucase.fr/Revue_de_presse/Archives/Janvier2005/janv05_novaya1.htm>>(acessado em 11 de outubro de 2005).57. ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo: Anti-Semitismo, Imperialismo, Totalitarismo.Tradução Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 351.

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culto de personalidade, a idolatria do chefe do governo que percebe-se naRússia de hoje58; a necessidade de uma guerra, de um conflito para a ma-nutenção da ordem social; a constituição do cotidiano das grandes cidadesna base do medo.

Passados 15 anos desde a desintegração da URSS, podemos perceberque, em termos de poder, pouca coisa mudou: as elites governantes continuamsendo as mesmas e os mecanismos de domínio estão sendo resgatados daépoca anterior (cujo fim fora tão festejado um dia) e aplicados com eficiência.

* * *Áåç ñëîâ - Sem palavras – esse foi o nome dado às manifestações

organizadas pelo governo da Rússia para lembrar as vítimas da tomada deescola em Beslan (Ossétia do Norte) em 2004. No entanto, um ano após atragédia, o que mais se esperava eram justamente as palavras e as declara-ções por parte do governo que explicariam o grande número de vítimas, ainexistência das investigações sobre a operação militar mal planejada, odescontamento das mães de Beslan (organizadas num comitê exigindo arenúncia do presidente Putin) – entre outros assuntos que estão sendo omiti-dos, silenciados, evitados de serem mencionados pelo poder. Essa mudez, osilêncio, são instrumentos políticos muito eficazes para manter a região doCáucaso Setentrional dentro do cerco, no bloqueio de informação, pois assimo resto da população da Federação Russa continua vivendo em “paz”,enquanto a guerra continua.

Acontece que, na situação atual, 10 anos após o começo da guerra naTchetchênia59, falar sobre esse assunto se tornou inconveniente para muitoscidadãos russos, assim como para os principais canais da TV, para jornais,revistas, políticos e dirigentes russos, exceto nos casos extraordinários quan-do ocorre algo como em Beslan60.

As palavras faltam quando há incerteza, ou medo de falar, ou o assuntoencontra-se esgotado. Parece que no caso da Rússia são todas essas razões__________58. A multiplicação das imagens do presidente em todos os locais de Moscou (lojas, escritóriosde todos os tipos, escolas, cafés, sem falar dos espaços públicos) e sua aparição diária nosnoticiários da TV, qualquer que seja o assunto, foram dois fatos que fazem lembrar imediatamenteda época soviética permeada pela idolatria aos governantes.59. Expressão da mídia russa que, ao se referir ao conflito, paradoxalmente “esquece” da razãooficial deste – justamente a questão de pertencimento do território à Rússia, então, seguindo alógica, a guerra seria na Rússia, já que a Tchetchênia faz parte da Federação Russa.60. Vale salientar que durante a tomada da escola em Beslan a censura aos meios de comunicaçãonão foi abolida. Pelo contrário, os canais de TV estatal omitiam as informações (reduziam onúmero de reféns, não informaram sobre o começo do ataque à escola, em 3 de setembro) e nãodivulgavam as exigências apresentadas ao governo russo pelo grupo que tomou os reféns (umadas principais exigências foi o fim das operações militares no território da Tchetchênia). Osjornalistas foram impedidos de viajarem para Beslan (como Anna Politkóvskaia, que foienvenenada durante a viagem).

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__________61. Site: <<www.refugee.ru>>.62. Site: <<www.memo.ru>>; em inglês: <<www.memo.ru/eng/index.htm>>.63. A ONG “Memorial”, no primeiro momento, buscou resgatar a memória das vítimas derepressões políticas stalinistas e do período soviético em geral, mas com a eclosão do conflitoem Nagorny Karabakh iniciou os trabalhos de monitoramento de violações de direitos humanose de assistência jurídica aos primeiros refugiados.64. Em Moscou, no Comitê da Assistência Civil, funciona uma pequena escola para os filhosde refugiados.65. Participamos de alguns protestos em Moscou, logo após a explosão da escola em Beslan.Numa das principais praças da cidade, no fim da tarde, foram acesas as velas, abertas as faixascom as inscrições contra a guerra, contra o genocídio dos tchetchenos promovido pelo exércitorusso sob o comando do presidente Putin, contra o imperialismo, contra o terrorismo estatal

que mantêm as pessoas caladas. O medo de falar é aquele aprendido naescola, dentro de um sistema totalitário, e tão bem expresso pela sabedoriapopular contando que “até as paredes possuem ouvidos” e divulgado am-plamente nos cartazes de propaganda ideológica da década de 1930: “Otagarela é um achado para o espião”. E o assunto esgotado, fechado, nalógica do “já sei de tudo, não preciso de mais informação”, demonstra osucesso e a conclusão do processo da construção da imagem de inimigoempreendido pelos governantes da Rússia no período da passagem da eco-nomia socialista planificada, ou capitalismo de Estado, para a economia demercado “livre”, resultando na perda pela população dos poucos direitossociais e econômicos advindos do regime anterior.

Porém, no meio dessa mudez estonteante, há aqueles que têm o quedizer, que não têm medo de falar e que querem ser ouvidos. Encontramosessas vozes dissonantes, por exemplo, em duas ONG´s em Moscou – Comitêde Assistência Civil (Êî ìèòåò Ãðàæäàíñêî å ñ îäåéñòâèå)61 e Memorial(Ì å ì î ð è àë)62. Ambas as instituições surgiram com a desintegração daUnião Soviética e o começo de migrações e de êxodos de antigos cidadãossoviéticos na procura de novas velhas pátrias e na fuga dos primeiros conflitosterritoriais63. Com o começo da guerra na Tchetchênia, estas ONG´s pas-saram a trabalhar com a defesa de direitos humanos na região do conflito ecom os refugiados da guerra, seja nos acampamentos provisórios ouassentamentos, seja nos centros urbanos da Rússia64.

Em Moscou e São Petersburgo encontramos diversos movimentos deresistência contra a guerra na Tchetchênia. Apesar das sérias dificuldadespara a atuação política na Rússia – as manifestações acontecem somenteapós a permissão do Estado, e o governo se legitima o poder de negar odireito dos cidadãos de se manifestarem livremente – os movimentos sociaisorganizam piquetes antimilitaristas semanalmente. Em geral, participam dosprotestos cidadãos comuns, grupos políticos organizados (partidos deoposição, anarquistas, coletivos autônomos etc) e ONG’s de direitos hu-manos65.

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Preocupados com o crescimento da intolerância e do preconceito étnicona Rússia, um coletivo antifascista de São Petersburgo edita a revistaTumbalalaika – Melodia Antifascista (Òóì á àëàëàéêà-Àíòèôàøèñòñêèéì î ò è â)66 e promove seminários e discussões. O conteúdo das revistas écomposto de matérias sobre a situação dos refugiados, dos ciganos epequenos povos da Sibéria (minorias étnicas que sofrem muito preconceito,mesmo nas piadas), dos moradores de rua; retratam a resistência – desde ahistória da Segunda Guerra Mundial até as organizações contemporâneascomo, por exemplo, a FARE (Futebol Contra o Racismo na Europa –Football Against Racism in Europe); com muita ironia e inteligênciadenunciam as práticas nacionalistas na Rússia de hoje, e fazem uma análiseda produção cultural (filmes, livros, música) acerca da questão. Segundo osautores, a liberdade, o respeito à individualidade, o auto-respeito, a responsa-bilidade e o senso de humor derrotaram e sempre derrotarão todas astentativas de estabelecer modos de vida e governos autoritários e totalitários.

Outros grupos e coletivos antifascistas67 se organizam localmente epromovem ações simultâneas como, por exemplo, no dia 8 de maio (data emque se comemora a derrota do fascismo na Segunda Guerra Mundial). Em2006, as manifestações denunciavam os assassinatos promovidos pelosneonazistas nos últimos dois anos e a conivência das autoridades frente aoscrimes. Ao invés de investigá-los, o governo russo acaba incentivando ossentimentos xenófobos através da atual política nacionalista.

Assim, os dois principais objetivos de luta antifascista na Rússia de hojesão:

– a resistência às organizações nacionalistas, neonazistas e fascistas; estaresistência se dá através das manifestações e protestos nas ruas, açõesculturais, impressão de materiais didáticos e revistas;

– denúncia da política do governo Putin em relação à guerra naTchetchênia, à discriminação das minorias étnicas e denúncia do discursooficial (do governo e da grande mídia) claramente nacionalista (basta lembrarda inauguração de um novo feriado nacional – Dia da União Nacional quandoem Moscou abertamente desfilaram grupos neonazistas portando símbolosfascistas e clamando “Uma Rússia para os russos” e Moscou para osmoscovitas”).

__________que causou a morte de centenas de crianças. Foram distribuídos panfletos e os participantestrocaram idéias com as pessoas que passavam na praça. Muitos passavam direto, sem levantaros olhos, ou recusavam-se a receber os panfletos – o medo e a tensão em Moscou, capital doimpério russo, estão generalizados. Outros solidarizavam-se com a manifestação, conversavam,demonstravam interesse com a questão.66. http://tumbalalaika.memo.ru67. www.antifa.ru

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* * *

A política de medo cotidiano implementada globalmente em nosso pla-neta – acentuada após os atentados políticos em 11 de setembro de 2001,nos Estados Unidos – tem dinamizado diversos segmentos econômicos li-gados à indústria da violência. O fluxo de movimentação financeira provenien-te da ampla cadeia produtiva desenvolvida através dessa indústria – pro-dução de armamentos, serviços de “defesa” e segurança, soldados mer-cenários, financiamento de redes e atentados terroristas, diversificadaprodução cinematográfica e midiática etc – representa o mais fundamentalsegmento da economia capitalista na atualidade.

A guerra na Tchetchênia e suas implicações nas recentes formas devigilância e controle da sociedade russa também tem dinamizado ossegmentos econômicos da indústria da violência naquele continente. Asregiões de conflito configuram-se enquanto campos de treinamento para osnovos soldados que ingressam nas forças armadas russas e, paralelamente,para os rebeldes cooptados pelas forças de resistência tchetchena. Em am-bos os casos, os treinamentos oferecem oportunidades para a qualificaçãode combatentes estrangeiros.

As vantagens e promoções de produtos militares oferecidos pelaFederação Russa atraem um amplo e diversificado leque de consumidores –desde o Brasil (negociações para a aquisição de aviões militares Sukhoi), oumesmo o governo venezuelano de Hugo Chavez (instalação de fábricas defuzis Kaláchnikov, além de outros bilionários acordos com a indústria bélicarussa), até o Estado de Israel.

Esses novos produtos de segurança e de defesa oriundos das recentespesquisas científico-militares sugerem para nosso modo de vida contem-porâneo as receitas de liberdade e segurança. Nanotecnologia, controlebiogenético, neuromarketing são apenas alguns exemplos das futurasinovações das grandes corporações para o controle da sociedade global noséculo XXI. O mais novo produto propagandeado é a pistola elétrica paraimobilização instantânea de suspeitos de terrorismo.

Mas a política de medo cotidiano não é novidade para a população russa,que já enfrentara outrora a paranóia do poder repressivo stalinista, as de-portações e assassinatos em massa, a cultura da delação instaurada pelo PCsoviético. A diferença é a mudança do alvo desta política de medo cotidiano.Se antes os agentes e espiões do livre mercado capitalista eram os inimigos,hoje as minorias étnicas parecem ser as responsáveis por toda a pobreza efalta de perspectiva na sociedade contemporânea: é necessário vigiá-las,julgá-las, caracterizá-las como potenciais suspeitos. Nesse sentido, adesigualdade social é camuflada pela diferença étnica.

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PosfácioOs materiais históricos contemporâneos são importantíssimos para a

compreensão e a análise dos tempos em que vivemos, queiramos ou não. Àsvezes lamentamos que a história não é uma ciência exata, pois seria muitomais fácil aprender suas leis e fórmulas de uma vez por todas e não errarnunca mais. Mas a história é uma ciência humana e subjetiva (prostituta dequalquer poder) e por isso é preciso ter muito cuidado e ser objetivo, ter aposição política e a autoconsciência bem definidas e expressas. Precisamoscompreender as origens de muitos acontecimentos trágicos, as causashistóricas e os acasos, as rupturas esperadas e imprevistas do processohistórico. Tenho convicção de que nas disciplinas históricas há uma lei, comose fosse uma lei de desenvolvimento da sociedade, – quanto menos interesseem relação às ciências humanas há na sociedade, mais catástrofes sociaisacontecem; quanto mais há negligência em relação a essas ciências, maisconfusões e desastres. A condição mais importante da estabilidade dasociedade e do Estado é a autoconsciência social de seus membros. A históriado século 20 demonstrou a infertilidade e o perigo de uma história “oficial”embasada na humilhação de outros povos, no desprezo e na inveja em rela-ção aos outros países. A Rússia explorou até o final seus recursos com arevolução, que não levou a uma união nacional, mas a uma catástrofe, àmorte de muitas pessoas. A revolução de outubro de 1917 não trouxeliberdade para ninguém; mais uma vez os povos foram obrigados a seguiruma política que a cada ano se tornava mais perversa em seus aspectos, taiscomo a coletivização, as repressões, a deportação, o extermínio: a políticanacional da URSS.

Lida Iussúpova (ONG Memorial de Grozny)

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Anexos

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Moradores da vila Keankhi (Tcthetchênia, 2002).

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Anexo I – Cronologia das relações entre a Rússia e a Tchetchênia(séculos 20-21)

1914-1918Participação dos regimentos tchetcheno e inguche na chamada “Divisão

Selvagem” do exército russo durante a Primeira Guerra Mundial.

27 de fevereiro de 1917Revolução de Fevereiro na Rússia. Fim da monarquia czarista.

Março 1917I Conselho dos montanheses em Vladikavkaz. Fundação da “União dos

Montanheses do Cáucaso”.

25 de outubro 1917Revolução de Outubro na Rússia, tomada do poder pelo partido dos

bolcheviques. Os tchetchenos e os inguches são proibidos de participaremna “Divisão Selvagem”.

11 de maio de 1918Proclamação da independência da República dos Montanheses.

1919-1920Ações militares na Tchetchênia e na Inguchétia contra o exército do general

Deníkin (Exército Branco). Parte dos vainakhi (autodenominação detchetchenos e inguches) lutam ao lado dos bolcheviques contra cossacos doExército Branco. Outra vertente lutava pela fé, sob comando do emir Uzun-Khadji, contra todos os não-islâmicos.

1920Criação do alfabeto inguche com letras latinas.

Março de 1920Entrada de batalhões do Exército Vermelho em Grozny. Proclamação do

poder soviético na Tchetchênia e na Inguchétia.

17 de novembro de 1920Fundação da República Autônoma Soviética Socialista: anexação da

Tchetchênia e da Inguchétia à Rússia Soviética.

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1922-1924, 1925, 1929-1930, 1932, 1933-1934, 1937-1939, 1940-1942

Levantes “anti-soviéticos” na Tchetchênia e na Inguchétia. Ações derepressão violenta do Exército Vermelho contra os rebeldes vainakhi.

1929Início da coletivização em massa. Campanha contra as autoridades

religiosas.

1934Criação da região autônoma da Tchetchênia e da Inguchétia.

1934Instituição de um único alfabeto tchetcheno-inguche, com grafia latina.

1936A região autônoma da Tchetchênia e da Inguchétia é transformada em

República Autônoma Soviética Socialista Tchetchênia-Inguchétia.

1937-1938“Grande Terror” na Tchetchênia-Inguchétia. Milhares de pessoas são

presas sob acusações políticas.

1938Alfabeto tchetcheno-inguche é modificado para a grafia em cirílico.

23-27 de fevereiro de 1944Deportação para a Ásia Central de tchetchenos e inguches. Início da luta

de guerrilheiros contra os representantes do poder soviético, impedindo eparalisando as deportações.

07 de março de 1944Decreto do Conselho Superior da URSS sobre a liquidação da Re-

pública Autônoma Soviética Socialista Tchetchênia-Inguchétia. As casasdos deportados foram entregues aos migrantes. A deportação durou 13anos.

09 de janeiro de 1957Decreto do Conselho Superior da URSS sobre a restituição da

República Autônoma Soviética Socialista Tchetchênia-Inguchétia. Início doretorno dos tchetchenos e dos inguches para suas terras.

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26-28 de agosto de 1958Pogroms espontâneos contra os tchetchenos em Grozny. Multidão ocupa

os prédios da administração no centro da cidade, que foram retomados apósa entrada de regimentos do exército de outras regiões.

1958-1991Tchetchenos e inguches que voltaram para as casas se viram frente à

inexistência de vagas para o trabalho na indústria. Durante décadas, odesemprego e falta da terra (apesar da anexação das regiões ao norte do rioTerek) foram alguns dos problemas principais na região.

Novembro de 1990Primeiro conselho nacional tchetcheno. Eleição do Comitê do congresso

do povo tchetcheno (ÎÊ×Í), chefiado pelo general soviético DjokharDudaev.

Agosto de 1991Direção do partido comunista da República Autônoma Soviética

Socialista Tchetcheno-Inguchétia apóia os golpistas em Moscou (queobjetivaram destituir o então líder da URSS Gorbatchev), resultandono enfraquecimento dos órgãos legítimos do poder na república. Emsetembro o poder é tomado pelos radicais nacionalistas do Î Ê × Í .

Divisão da Tchetchênia e da Inguchétia em duas repúblicas separadas.

27 de outubro de 1991Eleição de Dudaev para a presidência e a proclamação da independência

da Tchetchênia.

7 de julho de 1992Retirada do exército soviético da Tchetchênia.

31 de outubro - 4 de novembro de 1992Confrontos sangrentos na região de Prigorodnaia (Ïðèã îð îä íàÿ), na

Inguchétia: conflito entre os inguches e os ossetas. Os inguches são expulsosda Ossétia Setentrional.

26 de novembro 1994Tentativa fracassada de tomada do poder em Grozny pela “oposição

tchetchena” (organizada pelos serviços especiais dos militares russos). Osparticipantes são capturados.

29 de novembro de 1994Ultimato de Ieltsin para o governo tchetcheno, exigindo a rendição.

79

Page 79: Terrorismo de Estado en Rusia

11 de dezembro de 1994Entrada das tropas russas na Tchetchênia. Início do primeiro período de

guerra entre a Rússia e a Tchetchênia.

31 de dezembro de 1994Início da ocupação de Grozny pelas tropas federais russas (até março

de 1995).

Abril de 1995O exército russo estabelece o controle sobre a região planície da

Tchetchênia.

7-8 de abril de 1995“Limpeza” (zatchistka) da vila Samáchki pelas tropas federais. Mais de

100 moradores foram mortos durante a operação.

Maio de 1995Avanço das tropas federais russas para as regiões montanhosas da

Tchetchênia.

14-20 de junho de 1995O grupo de Chamil Bassaev faz 1.500 pessoas de reféns num hospital

público em Budionovsk. Os reféns são soltos nas negociações. Em Groznysão iniciadas as negociações pacíficas entre as forças tchetchenas e russas.Reconhecimento do governo dos separatistas pelos russos. Cessar-fogoacordado por seis meses.

14 de dezembro de 1995Rússia tenta a realização de eleições para “dirigente da República

Tchetchênia”. Retomada de ações militares pelos separatistas.

09-18 de janeiro de 1996Em Kizliar (Daguestão), tomada de mais de 1.500 reféns num aeroporto

pelos grupos de Salman Raduev. Confrontos armados na vila Pervomaiskoe.

22 de abril de 1996Assassinato do presidente da Tchetchênia Dudaev. O vice-presidente,

Zelikhman Iandarbiev, assume o cargo no dia seguinte.

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Page 80: Terrorismo de Estado en Rusia

06-21 de agosto de 1996Grupos armados tchetchenos tomam o poder em Grozny. Confrontos na

cidade. Negociações entre Aleksandr Lebed68 e Aslan Maskhadov.

31 de agosto de 1996Aleksandr Lebed e Aslan Maskhadov assinam em Khasav-Iurt uma

declaração conjunta sobre os princípios de relações entre a Federação Russae República Tchetchênia. Fim do primeiro período de guerra.

31 de dezembro de 1996Retirada das tropas russas da Tchetchênia.

27 de janeiro de 1997Eleição de Maskhadov para a presidência. Governo da Rússia reconhece

as eleições.

12 de maio 1997No Kremlin, Maskhadov e Ieltsin assinam o acordo de paz e de princípios

de relações entre a Federação Russa e República Tchetchena Itchkeria69. Opoder político de Maskhadov é instável num país devastado. Em julho de1998, em Gudermes, acontece um confronto entre os extremistas religiosose as forças leais a Maskhadov.

1997-1999Quase toda a população não-vainakhi abandona a Tchetchênia70.

Agosto-setembro de 1999Invasão de grupos extremistas da Tchetchênia no Daguestão, começo de

ações militares.__________68. Aleksandr Lebed, general do exército russo, participou das eleições presidenciais de 1996 eobteve terceiro lugar (Ieltsin ficou em primeiro lugar, seguido de Ziugánov (Partido Comunistada Rússia)). Trocou seu apoio à candidatura de Ieltsin pelo posto de Secretário do Conselho daSegurança da Federação Russa. Exigiu a renúncia do chefe das Forças Armadas e insistiu nasubstituição do Ministro de Interior da Federação Russa, acusando os dois de se aproveitaremda guerra na Tchetchênia. A iniciativa de acordo de paz entre a Federação Russa e a Tchetchêniapartiu dele. Foi demitido em outubro de mesmo ano (1996) acusado de colaborar com osrebeldes tchetchenos.69. Em janeiro de 1994, Dudaev muda o nome do país para a República Tchetchena da Itchkeria.Itchkériia é um território que inclui somente duas regiões montanhosas no sul do país: Chatoie Vedénski. Assim, Dudaev proclama a superioridade dos montanheses em relação aos habitantesda planície.70. Esse abandono começou no final da década de 1980 e aumentou após a chegada dosseparatistas ao poder, pois os moradores “falantes de russo” tornaram-se alvo das pressõescriminais.

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Page 81: Terrorismo de Estado en Rusia

Outubro de 1999Entrada das tropas federais russas na Tchetchênia. Início do segundo

período da guerra.

Dezembro de 1999 - janeiro 2000Bloqueada a tentativa de ocupação de Grozny pelas tropas federais.

Bombardeios aéreos e fuzilamentos na cidade.

Fevereiro de 2000Retirada das tropas tchetchenas de Grozny para as montanhas.

Bombardeios e batalhas nas vilas da região Oeste da Tchetchênia.

Março de 2000Fim das grandes operações militares na Tchetchênia.

Junho de 2000Ex-muftiyi (líder religioso islâmico) da Tchetchênia Akhmad Kadyrov é

nomeado Chefe de administração da República Tchetchênia.

Verão de 2000Início de novas estratégias de guerra. Pelas forças tchetchenas, a tática

de guerrilha e de ataques; pelas forças federais, as “limpezas” nas vilas,prisões e desaparecimento de pessoas.

Outono de 2002Tomada de reféns durante o espetáculo Nord-Ost no teatro de Moscou.

A operação de resgate que utilizou gás químico resultou na morte de, pelomenos, 116 pessoas.

2003Início da estratégia de “tchetchenização” do conflito pela Federação Russa,

passando a utilizar forças militares formadas por tchetchenos e transferindoo poder para a administração tchetchena leal ao Kremlin.

05 de outubro de 2003Akhmad Kadyrov é eleito presidente da República Tchetchênia, integrante

da Federação Russa. As organizações de direitos humanos apontaram gravesfraudes durante a eleição.

09 de maio de 2004Akhmad Kadyrov é assassinado na Techetchênia.

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Page 82: Terrorismo de Estado en Rusia

29 de agosto de 2004Alu Alkhanov é eleito presidente.

1º de setembro de 2004No primeiro dia letivo, rebeldes tomam escola em Beslan (Ossétia do

Norte), com mais de 1.000 reféns. As tropas russas invadem a escola e, noconflito, morrem mais de 350 pessoas, entre elas várias crianças.

Abril de 2005Assassinato de Maskhadov.

2006No começo do ano foi aprovada a lei que restringe o funcionamento das

ONG´s na Rússia, prejudicando a atuação de organizações independentescontrárias à guerra na Tchetchênia.

Junho de 2006Assassinato de Sadulaev, líder de rebeldes tchetchenos que havia

substituído Maskhadov.

Julho de 2006Assassinato de Chamil Bassaev na véspera da reunião do G-8 em São

Petersburgo.

7 de outubro de 2006Assassinato do jornalista russa Anna Politkóvskaia, conhecida pelas

publicações que denunciaram os crimes cometidos na Tchetchênia.

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Page 83: Terrorismo de Estado en Rusia

Anexo II – As Tchekas: decretos, artigos e documentos oficiais

Criada pelo decreto de 07 de dezembro de 1917 pelo Conselho dosComissários do Povo, a Tcheka Pan-Russa de Luta contra a Sabotagem e aContra-revolução71 multiplicou suas ações através das tchekas locais, cujasfunções primordiais eram proceder detenções, interrogatórios, pesquisas eoutras medidas relacionadas a resistências contra o poder bolchevique. Entreos anos de 1918 e 1921, uma série de decretos, artigos e documentos oficiaisexemplificam alguns dos aspectos ideológicos do “comunismo” implementadopelos bolcheviques, alguns transcritos a seguir72:

1. Carta de V. I. Lenin a G. ZinovievAssunto: Protesto de Lenin contra a suave ação repressiva da tcheka

de Petrogrado sobre movimentos populares terroristas da cidade.Trecho: “Os terroristas vão nos considerar bodes loucos. A militariza-

ção está na ordem do dia. Havemos de estimular com energia o caráter demassas do terror contra os contra-revolucionários, especialmente emPetrogrado, onde o exemplo deve ser decisivo”.

Data: 26 de junho de 1918Fonte: V.I. Lenin, Obras (em russo), tomo 35, p. 275.

2. Decreto do Conselho dos Comissários do Povo sobre o terrorvermelho

Assunto: Segurança da retaguarda do exército garantida pelo terrorTrecho: “É indispensável que, com a finalidade de reforçar a atividade

da Tcheka Pan-Russa, integremos a esta o maior número possível decamaradas responsáveis do Partido. Pela mesma razão, a fim de proteger aRepública Soviética contra seus inimigos de classe, devemos exilá-los emcampos de concentração. Todas as pessoas relacionadas com organizaçõesda guarda branca, com complôs ou rebeliões, devem ser fuzilados”.

Data: 05 de setembro de 1918Fonte: Izvestia, nº 195, 1918.3. Ordem nº 113 da Tcheka Pan-Russa às tchecas locais sobre as mo-

dificações e melhorias de seus métodos de trabalhoAssunto: Nove pontos sobre os abusos e repressões generalizadas das

tchekas locais e sobre a necessidade de ampliação e complexificação desuas atividades__________71. Tcheka: abreviação para Comissão especial – ×Ê: ×åðåçâû÷àéíàÿ Êî ìèññèÿ (lê-se tcherezvytchái-naia komíssiia).72. Extraídos do texto: “Las tchecas: decretos, artigos e documentos oficiais”. In: El TerrorBajo Lenin. Baynac, Jacques. Os trechos escolhidos procuram representar o teor essencial dosdocumentos.

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Page 84: Terrorismo de Estado en Rusia

Resumo do documento: “I. Não aterrorizar os pequenos-burguesespacíficos; II. Oferecer possibilidades de trabalho aos pequenos-burgueses esocialistas; III. Deter o terror contra a população que não nos é hostil; IV.Prestar os cuidados máximos às estradas de ferro, estimulando deste modosua reorganização; V. Não interpretar o Protocolo para a Defesa de 03 dedezembro de 1918 como uma restrição das atividades das tchekas, masconsiderá-lo como um passo para que as tchekas realizem um trabalho maiscomplexo e delicado; VI. Recordar e ter sempre presente que o poder centralmantém seu ponto-de-vista de luta implacável contra os verdadeiros inimi-gos, ainda que respeite os grupos que permanecem passivos na luta política;VII. O poder soviético central não compartilha com o ponto de vista da-queles que consideram esta política uma debilidade do regime contra tudo econtra todos; VIII. Criar uma forma colegiada de controle à Tcheka Pan-Russa que assegure a continuidade de funcionamento da tcheka local; IX.Levar adiante atividades e trabalhos comuns com o Comitê do Partido lo-cal”.

Data: 19 de dezembro de 1918Fonte: Sobre la Historia de la Checa Panrussa, Moscou, 1958.

4. Decreto do Comitê Executivo Central dos Sovietes sobre a supres-são das tchekas distritais

Assunto: Três proposições para a Tcheka Pan-Russa alcançar umaorganização correta e mais racional de luta contra a contra-revolução e asabotagem

Resumo do documento: “I. Suprimir todas as tchekas distritais. Trans-ferir todos os prisioneiros às tchekas das províncias apontando ao mesmotempo as razões precisas do encarceramento; II. Integrar os membros dastchekas distritais nas tchekas de província; III. Prolongar a existência dastchekas distritais por razões justificadas”.

Data: 24 de janeiro de 1919Fonte: Izvestia, nº 16, 1919.

5. Nota de F. E. Dzerjinsky (chefe da Tcheka Pan-Russa) a Piatnitskysobre a obrigação de formular a acusação no prazo de cinco dias após adetenção

Transcrição: “Camarada Piatnitsky:É indispensável enviar uma circular a todas as seções e a todos os

investigadores com o objetivo de indicar-lhes a necessidade de porte deordem de prisão onde deve formular-se a acusação quando levada a cabouma detenção. A cópia desta ordem deve encontrar-se na prisão junto aoexpediente do detido, devendo ser comunicada no prazo de cinco dias apóso momento de sua detenção.

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Page 85: Terrorismo de Estado en Rusia

F. Dzerjinsky.Data: 25 de abril de 1919Fonte: Sobre la Historia de la Checa Panrussa, p. 276)

6. Nota de Dzerjinsky a Mesing, membro colegiado da Tcheka Pan-Russa, sobre a criação de grupos tchequistas junto aos dirigentes dossindicatos:

Assunto: Objetivo de atrair os trabalhadores às tchekasTrecho: “Considero que seria muito útil criar, junto à direção dos

sindicatos, grupos de tchequistas – ou melhor, troikas73 – (dois entre eles,porém com nossa aprovação, e um dos nossos). A missão dessas troikas: aluta contra os abusos cometidos nos sindicatos”.

Data: 18 de março de 1921Fonte: Op. Cit., p. 436.

7. Ordem nº 186 (confidencial):Transcrição: “Tem chegado à Tcheka Pan-Russa certas informações

segundo as quais as pessoas detidas por razões políticas, membros dediferentes partidos anti-soviéticos, encontram-se em certas ocasiõesencarceradas em condições muito inadequadas e que em seus expedientesexistem numerosas anomalias.

A Tcheka Pan-Russa assinala que as pessoas acima mencionadas nãodevem ser consideradas como castigadas, mas sim exiladas provisoriamenteda sociedade em interesse da revolução, e que as condições de seusinternamentos não devem representar caráter punitivo”.

Presidente da Tcheka Pan-Russa: F. Dzerjinsky.Administrador: G. Yagoda.Fonte: Latzis, Las checas, Moscú, 1921.

8. Ordem referente aos refénsAssunto: Ordem telegrafada referente à necessidade de repressão às

permanentes conspirações na retaguarda do exército bolchevique –conspirações de socialistas-revolucionários de direita, e outros crápulascontra-revolucionários

Trechos: “É necessário terminar imediatamente com este relaxamento eestes bons modos. Todos os socialistas-revolucionários conhecidos pelossovietes locais devem ser detidos na região. Deve ser tomado um conside-rável número de reféns entre a burguesia e os oficiais. De maneira que, àmenor tentativa de resistência, deve-se fuzilar em massa esses reféns. (...)__________73. Essas troikas (grupos de três pessoas) tornaram-se instituições que tinham o poder dejulgar pessoas e até condenar à pena de morte (sem nenhum direito à defesa).

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Page 86: Terrorismo de Estado en Rusia

Nem a menor vacilação, nem a menor indecisão da aplicação do terror demassas”.

Fonte: “Periódico da Tcheka”, nº 01, p. 11. 22 de setembro de 1918.

Os documentos, artigos e cartas acima selecionados podem nos clarificaros caminhos utilizados pelo poder bolchevique, pontualmente durante operíodo de liderança leninista, para a configuração dos primórdios do Estadopolicial soviético.

Paralelamente à constante preocupação em impedir os abusos deautoridade e repressões deliberadas realizadas pelas tchekas locais, a TchekaPan-Russa não hesitava em estimular o terror em massa e a aproximação desuas atividades com outros órgãos estatais, como os Partidos Comunistaslocais ou mesmo sindicatos.

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Page 87: Terrorismo de Estado en Rusia

Anexo III – Perseguição dos camponeses na União Soviética74

1. Resistência dos camponeses: migrantes especiais e a repressãodo poder Soviético

Após a Revolução Russa, os bolcheviques adotaram o programa dereforma agrária dos socialistas-revolucionários, baseado essencialmente nadistribuição de terra proporcionalmente ao número de integrantes de cadafamília de camponeses. O programa dos bolcheviques se baseava nanacionalização, ou seja, na transferência das terras para o Estado, enquantoos socialistas-revolucionários reivindicavam a socialização das terras pelosconselhos de camponeses – organizados nas comunidades para decidircoletivamente os princípios de distribuição e administração das fazendas.

Com o começo da coletivização em massa dos kulaki (pequenos agri-cultores e fazendeiros)75, criou-se no país uma situação política alarmante.Durante a primeira etapa da coletivização (1927-1929) a resistência doscamponeses foi pouco perceptível, resumindo-se a atos episódicos dedesobediência. Com a escalada da violência no final de 1929-1930, aumen-taram os protestos e rapidamente radicalizaram-se os métodos e os meiosde resistência: desde a recusa e agitações contrárias às kolkhoz (fazendascoletivas estatais) até o extermínio de gado, destruição de propriedade, outerror contra os funcionários do partido e dos soviets, além de levantesarmados em grupos.

Esta situação explosiva foi descrita numa carta de circulação restrita doComitê Central do Partido Comunista (02 de abril de 1930): “a situaçãopode resultar numa ampla onda de levantes camponeses; metade de nossosfuncionários de base pode ser abatida pelos camponeses, a colheita seráanulada, a construção das kolkhoz suspensa; a situação do país, interna eexterna, encontra-se sob ameaça” 76. Nesse contexto, Stalin escreve a cartaVertigem dos alcances, amenizando os abusos administrativos. Mas osagricultores continuaram com as mesmas opções: kolkhoz, falência oumigração forçada e desapropriação (raskulatchivanie).

O primeiro ato de resistência dos camponeses foi a matança do gado noinverno de 1929-30: a quantidade do gado nas aldeias diminuiu mais quedurante a guerra civil de 1917-1922. Em algumas regiões os camponeses serebelaram e foram combatidos pelo Exército Vermelho, comandado pelos__________74. Resumo da transcrição do texto de Viktor Kirillov extraído do site: www.memo.ru75. A abrangência do termo kulaki pode referir-se tanto a agricultores inconformados com aintervenção estatal em sua produção até pequenos e médios fazendeiros. O termo acompanhaas diversidades regionais, possuindo diversas atribuições e significados. Literalmente, em russo,significa punhos - êóëàêè .76. Documentos depõem: Da História das Aldeias Antes e Durante a Coletivização. (1927-1932). Moscou, 1989. p. 390.

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Page 88: Terrorismo de Estado en Rusia

heróis da guerra civil – desta vez, porém, o combate travou-se contra opovo soviético, ao invés do Exército Branco ou colaboracionistas.

Na região das montanhas Urais, que dividem a Europa e a Ásia, regis-tram-se vários exemplos de resistência camponesa à coletivização: levantesgeneralizados; espancamentos de ativistas das kolkhoz; o “levante bovino”na vila Krutoiarskaia, em março de 1930, e com a proliferação do movimen-to pela migração para o Extremo Oriente; panfletagem contra as kolkhoz econtra os soviets na vila Rutiajevo, perto da cidade de Pierm; levante arma-do na vila Achap em março de 193077.

Mas como acontecia na prática a resistência contra as coletivizações?Podemos exemplificar através dos conflitos decorrentes do plano de de-portação criado pela OGPU78 para os kulaki dos Urais (incluindo a regiãode Taguil), em fevereiro de 1930. O poder bolchevique considerava que aoperação não resultaria em protestos e terminaria bem rápido. Mas osresponsáveis pela deportação estavam equivocados. A violência gerararesistência. Os acontecimentos principais aconteceram em 07 e 08 de marçode 1930 na vila Sévernaia (40 km de Taguil). As tentativas de deportação detrês famílias de pequenos agricultores, cujos chefes já haviam sido presosanteriormente, resultaram em forte protesto de toda a vila. A multidão decamponeses encontrou os policiais com os gritos: “Chegaram os ladrões,estão levando pessoas honestas, não entregaremos nossos vizinhos àviolência!”, conseguindo impedir a deportação das famílias. Na segundatentativa, os policiais encontraram uma multidão de 300 pessoas. Ouviam-segritos: “Não temos kulaki, eles nos alimentavam, não permitiremos de-portação, vão embora para não perder suas cabeças!”. De ambos os ladoshouve disparos de tiros. Com dificuldades, os representantes do poderfugiram. Os camponeses, armados, cercaram a vila com pontos de vigilân-cia. A casa do conselho da vila foi cercada e os representantes do partidocomunista e policiais presos. Na terceira vez, os intrusos foram expulsospela multidão de 400 pessoas aglomeradas após o badalar dos sinos. Apósisso, o Comitê Regional do Partido Comunista dos bolcheviques entregou àvila uma nota, na qual as ações dos camponeses foram classificadas comoum levante contra o poder. Isso assustou os camponeses, cessando assim aresistência organizada. Mais de 50 funcionários da OGPU e comunistasocuparam a vila, prendendo 20 lideranças locais (condenados como mem-bros de organizações anti-soviéticas) e deportando suas famílias79.__________77. Plotnikov I. E. Sobre Ritmo e Formas de Coletivização em Ural// História Nacional, 1994, no 3.p. 87. Ivanova M.A Resistência à Coletivização Forçada// Totalitarismo e Individualidade. p.91.78. Osnovnóie Gosudárstvennoe Politítceiskoe Upravlénie Îñíîâíîå ÃîñóäàðñòâåííîåÏîëèòè÷åñêîå Óïðàâëåíèå (Administração Politica Estatal).79. Dados do arquivo estatal da Federação Russa: ÍÒÔ ÃÀÑÎ. Ô.Ð-21. Îï.1. Ä.1219. Ëë.65-67.

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Page 89: Terrorismo de Estado en Rusia

__________80. Bazarov A. Kulak e Agrokulak. Tcheliabinsk, 1991. p. 268.81. Dados do arquivo estatal da Federação Russa: ÍÒÔ ÃÀÑÎ. Ô.Ð-21. Îï.1. Ä.1219. Ë.178

A arbitrariedade da violência estatal forçava os camponeses aos levan-tes. Nas regiões de migração forçada surgiam milhares de bandos. Forma-vam-se células insurgentes ligadas aos bandos formados pelos pequenos agri-cultores fugitivos (que fugiam para não serem deportados) e outros presospolíticos. As manifestações dos insurgentes foram as seguintes: “Pela novaordem sem comunistas”; “Pelo comércio livre”; “Pela não entrega do pão ao Es-tado”; “Pela permanência do que produzimos em nosso local de produção” 80.

Outro exemplo de resistência encontramos nas minas de Turin, naprimavera de 1930. Mais de 600 pessoas se rebelaram contra a tentativa daOGPU de mandar os migrantes forçados temporariamente deslocados nasminas adiante para a taigá (floresta russa). Os rebeldes conseguiram parar ocomboio e libertar os presos, conclamando: “Exigimos terra e pão, não noslevarão vivos para a taigá” 81.

Os protestos dos camponeses contra a política de coletivização e mi-gração forçada traduziam suas carcterísticas populares. As formas dosprotestos eram variadas: declarações orais e por escrito, sabotagem, greves,fugas, divulgação de discursos e práticas antiestatais, violações sistemáticasdas leis da ditadura, saques da propriedade estatal e luta armada.

As fugas de migrantes forçados, faltas injustificadas ao trabalho,sabotagens, baixa produtividade no trabalho e outras formas de resistênciaativa influenciaram as mudanças administrativas do exílio. Na segundametade de 1931 foi adotada a retirada de crianças e jovens das famílias demigrantes forçados, visando à criação de “cidadãos novos”. A necessidadede quadros qualificados para o trabalho impulsionou novas formas deorganização no trabalho – de artél à brigada, utilizando a competição socialistae o trabalho de vanguarda (udárniki), assim como premiações para superaçãode metas.

Nos exílios, em 1930-1931, não havia escolas nem professores, e ape-nas as crianças de migrantes forçados que moravam junto à população localestudavam. Até a primavera de 1931, somente 15,5% de filhos de migrantesforçados estavam nas escolas. Os adultos e jovens podiam assistir somenteaos cursos pagos de alfabetização e participar dos “espaços vermelhos”(lugares de propaganda política, geralmente, painéis com imagens de líderes,slogans políticos e pequena biblioteca). No entanto, em março de 1932, osdados oficiais soviéticos indicavam que 82,2% de filhos de migrantes forçados,de oito a 11 anos de idade, já freqüentavam as escolas. Além disso, váriasbibliotecas, espaços vermelhos e oficinas (drama, coral, música, ateísmo,política) estavam funcionando.

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Page 90: Terrorismo de Estado en Rusia

Os órgãos de vigilância política sempre temiam o grande número deprofessores (cerca de 42,2% no ano de 1932), também migrantes forçados.Com urgência, por meio da mobilização de quadros pedagógicos na Ucrânia,Cáucaso Setentrional e Bielorússia, eles foram substituídos pelos “verdadeirospatriotas de seu próprio país” 82. Através da implementação deste sistemaeducacional (muitas vezes entrelaçado com intensa propaganda política), osfilhos de migrantes forçados incorporavam a nova moral comunista soviética,que os induzia a considerar seus próprios pais como “inimigos do povo”.

2. Pequenos agricultores presos e deportados

Em 30 de janeiro de 1930, o Comitê Central do Partido Comunistalança decreto “Sobre a liquidação de propriedade dos pequenos agricultoresnas regiões de coletivização total”. Segundo este decreto, os pequenosagricultores foram classificados em três categorias:

Primeira categoria – contra-revolucionários, organizadores de atosterroristas e de levantes;

Segunda categoria – contra-revolucionários, pequenos agricultores maisricos e semifazendeiros;

Terceira categoria – pequenos agricultores.

Chefes de famílias de pequenos agricultores da primeira categoria erampresos, e seus casos encaminhados para a análise do “grupo de três” (assina-vam sentenças de morte ou prisão perpétua sem julgamento) da OGPU, decomitês regionais do PC e de procuradorias. Membros de famílias dosenquadrados na primeira categoria e os pequenos agricultores da segundacategoria foram retirados de sua terra e deportados para as regiões longínquas,residindo em povoados especiais. Agricultores da terceira categoria foramestabelecidos nas novas terras das regiões de onde provinham, fora daskolkhoz83. Neste decreto, havia a estimativa de quantidade de pequenosagricultores de primeira e segunda categorias por regiões:84

__________82. Sapójnikov A. G. Sobre a Localização e Vida de Migrantes Forçados na Região do Ural noInício de Década de 1930// História das Repressões na Região do Ural Durante o PoderSoviético. Iekaterinburg, 1994. p.89.83. Ivnítski N.A. Coletvização e Raskultachivanie (começo de década de 19 30). Moscou:Mestre, 1996. p.68. Zemskov V.N. Deportação de Pequenos Agricultores na Década de 1930// Pesquisas Sociológicas. 1991, no 10. p.3.84. Ivnítski N.A. Coletvização e Raskultachivanie (começo de década de 19 30). Moscou:Mestre, 1996. p. 69.

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Page 91: Terrorismo de Estado en Rusia

Deportação em 1930-193185

Médio VolgaBaixo VolgaCáucaso Setentrional e DaguestãoRegião Central de Terra PretaSibériaUralCasaquistãoUcrâniaBelorússia

Regiões Primeira categoria Segunda categoria

_____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

3-4.0004-6.0006-8.0003-5.0005-6.0004-5.0005-6.00015.0004-5.000

8-10.00010-12.000

20.00010-15.000

25.00010-15.00010-15.00030-35.000

6-7.000

Origem da deportação

Ucrânia

Cáucaso Setentrional

Baixo Volga

Médio Volga

Região Central de Terra Preta

Quantidadede famíliasdeportadas

63.720

38.404

30.933

23.006

26.006

Destino da deportação

Região SetentrionalUralSibéria OesteSibéria LesteIacútiaRegião de Extremo Oriente

UralCáucaso SetentrionalRegião SetentrionalUralCasaquistãoRegião SetentrionalUralSibéria LesteCasaquistãoRegião de Extremo OrienteMédio VolgaRegião SetentrionalUralSibéria LesteCasaquistãoRegião de Extremo OrienteIacútia

Quantidadede famílias

19.65832.127

6.5565.056

97323

25.99512.40910.963

1.87818.092

5.566663620

11.4772.1802.500

10.2361.4082.367

10.5441.097

354

__________85. Zemskov V.N. Destino da Deportação de Pequenos Agricultores// História Nacional. 1994.no1. p. 118-120.

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Page 92: Terrorismo de Estado en Rusia

Origem da deportaçãoQuantidadede famíliasdeportadas

Destino da deportação Quantidadede famílias

Bielorússia

Criméia

Tatarstão

Ural

Região de Níjni Nóvgorod

Região Oeste

Basquíria

Região SetentrionalRegião industrial de Ivánovo

Região de Moscou

Região de Leningrado

Região de Extremo OrienteSibéria OesteSibéria Leste

Oriente Médio

CasaquistãoTranscaucásia

15.724

4.325

9.424

28.394

9.169

7.308

12.820

3.0613.655

10.831

8.604

2.92252.09116.068

6.944

6.765870

Região SetentrionalUralRegião de Extremo OrienteIacútiaRegião StentrionalUral

UralRegião de Extremo Oriente

UralRegião de LeningradoRegião SetentrionalUralCasaquistãoRegião de Níjni NóvgorodUralSibéria OesteSibéria LesteBasquíriaRegião SetentrionalUralUralSibéria OesteCasaquistãoUralSibéria OesteSibéria LesteIacútiaRegião de LeningradoRegião de Extremo OrienteSibéria OesteSibéria LesteCasaquistãoCaúcaso SetentrionalUcrâniaOriente MédioCasaquistãoCasaquistão

4.7639.1131.561

2871.5532.772

7.8101.614

26.8541.5402.4715.201

501.4977.3085.3051.5156.0003.0613.6553.1124.7292.972

3371.269

929725

5.3442.922

52.09116.068

1592.2133.4441.1286.765

870

Iagóda86, chefe da NKVD (Comitê do Povo para os Assuntos doInternos), escreve87 que durante a deportação dos camponeses das regiõesda coletivização total em 1931, foram deportadas 162.962 famílias (787.241pessoas) – 242.776 homens; 223.834 mulheres; 32.0731 crianças – número__________86. Chefe da NKVD até 1936 quando foi demitido e virou Comissário do Povo para asComunicações. Depois foi preso. Após ele Iejov virou chefe do NKVD. NKVD e OGPU sãodois nomes para o mesmo departamento.87. Nota a Stalin, 1931.

93

Page 93: Terrorismo de Estado en Rusia

que, somado com os deportados em 1930, totaliza em 240.757 famílias(cerca de 1.158.986 pessoas)88. Todavia, a quantidade de pequenos agri-cultores registrados no local de exílio é bem inferior à quantidade dosdeportados89.

Distribuição de migrantes especiais no final de 1931 90

RegiãoUralRegião SetentrionalSibéria OesteSibéria LesteExtremo OrienteAldanCasaquistão SetentrionalCasaquistão MeridionalOriente MédioUcrâniaCáucaso SetentrionalRegião de Nijni NovgorodRegião de LeningradoMédio Volga

Família130.067s/dados66.20620.64710.497

s/dados33.098

9.8412.0733.520

13.8111.4498.140

s/dados

Pessoas54.0818131.313283.890

91.33143.7465.600

149.61742.34710.47215.05755.8695.915

32.90512.500

Aonde estariam 382.012 pessoas? Muitos morreram durante a de-portação – com o frio, a fome, as infecções, sem comida e sem água potável.Muitos fugiram. Muitos foram encaminhados para os campos de con-centração. A deportação de pequenos agricultores continuou em 1932-1933.

__________88. Ivnítski N.A. Coletvização e Raskultachivanie (começo de década de 1930). Moscou:Mestre, 1996. p.194.89. Nota de Iagóda para Stalin, 04/01/1932.90. Ivnítski N.A. Coletvização e Raskultachivanie (começo de década de 1930. Moscou:Mestre, 1996. p.242.

94

Page 94: Terrorismo de Estado en Rusia

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06.

95

Page 95: Terrorismo de Estado en Rusia

Dinâmica da quantidade de migrantes forçados em 1932-194092

Os migrantes forçados, deportados em 1930-1931, foram isentos deimpostos até 01 de janeiro de 1934. A partir desta data, a isenção foi abolidae todos passaram a pagar os impostos como qualquer cidadão comum. Osmigrantes forçados não tinham direito de sindicalização, e o Estado retinha5% do salário para a manutenção de campos de concentração (GULAG’s)e de campos de trabalho, onde morava a maioria de deportados (até agostode 1931, o Estado retirava 25% do salário. A partir de fevereiro de 1932,houve um decréscimo para 15%)93.

No período inicial da coletivização, todos os kulaki deportados nãotinham direitos eleitorais. A partir de 1933, os filhos dos deportados queatingiam a maioridade começaram a votar, desde que bem comportadosno trabalho. Até 1935, os adultos readquiriram seus direitos eleitorais so-mente em casos individuais, após cinco anos de deportação e apresentandocaracterísticas positivas no perfil comportamental e profissional.

O decreto do Comitê Central do PC de 25 de janeiro de 1935 devolviaos direitos eleitorais para os migrantes forçados, mas não permitia a saídados locais de deportação.

Durante o período entre 1934-1938, 31.515 de pessoas foram libertadasna condição de “deportados injustamente”, enquanto 33.565 crianças foramtransferidas para os orfanatos, as casas de parentes ou “sob res-ponsabilidade de terceiros”. Milhares de pessoas foram libertadas devidoao ingresso para os estudos, casamento com não-migrantes, e outras razões.

No início da Segunda Guerra Mundial (junho de 1941), os migrantesforçados não foram alistados no exército. No entanto, posteriormente, NKVDdivulgou uma nota estimulando a libertação mais rápida de jovens deporta-dos com seu respectivo encaminhamento para o exército. Em 1942, 50.000membros de famílias dos kulaki foram alistados para servir no Exército__________92. Dados do arquivo estatal da Federação Russa: ÃÀÐÔ, ô.9479, îï.1, ä.89, ë.216.93. Zemskov V.N. Deportação de Pequenos Agricultores na Década de 1930// PesquisasSociológicas. 1991, no 10. p.8-9; Zemskov V.N. Destino da Deportação de Pequenos Agricultores// História Nacional. 1994. no 1. p. 118.

96

Número

de

migrantes

forçados

Janeiro

Dezembro

1932

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1933

1.142.084

1.072.546

1934

1.072.546

973.693

1935

973.693

1.017.133

1936

1.017133

916.787

1937

916.787

877.651

1938

877.651

938.552

1939

938.552

997.513

1940

997.513

930.221

Page 96: Terrorismo de Estado en Rusia

__________94. Dados do arquivo estatal da Federação Russa: ÃÀÐÔ, ô.9479, îï.1, ä.107, ë.74; ä.113,ë.215.95. Dados do arquivo estatal da Federação Russa: ÃÀÐÔ, ô.9401, îï.12, ä.207 (á/ë).96. Dados do arquivo estatal da Federação Russa: ÃÀÐÔ, ô.9479, îï.1, ä.140, ë.12. ÃÀÐÔ,ô.9479, îï.1, ä.89, ë.218; ä.139, ë.29.97. Zemskov V.N. Destino da Deportação de Pequenos Agricultores// História Nacional. 1994.no 1. p. 138-142.

Vermelho. A mobilização terminou em novembro de 1942 com 60.747 demigrantes forçados alistados94.

Todos os alistados para o exército, junto com os membros de suas famílias,tinham os direitos civis devolvidos, e recebiam os passaportes de identificaçãoe isenção de pagamento da taxa de 5% para o Estado95.

Durante 1943, 102.520 de pessoas alistadas no exército e membros defamílias foram libertados dos campos de trabalho. Além disso, durante 1941-1943, mais 136.240 migrantes forçados obtiveram a liberdade (62.808pessoas, em 1941; 63.113, em 1942; 10.319 pessoas, em janeiro-marçode 1943)96.

A partir de setembro de 1944 foi interrompida a retirada de 5% de saláriosdos “ex-kulaki”, utilizada para a administração e a vigilância de campos detrabalho. Os migrantes forçados passam a pagar todos os impostos e taxasprevistos pelo Estado soviético.

Após o término da guerra, os migrantes forçados passam a ser libertadosem massa. Mesmo assim, o governo do país não apoiou a iniciativa doMinistério do Interior para a libertação de todos os ex-deportados. Em 1947,481.186 pessoas continuavam nos locais de deportação; em 1948, 210.556pessoas; em 1949, 124.585 pessoas; e em 1952, 28.009 pessoas97. Ospequenos agricultores foram totalmente libertados somente em 13 de agostode 1954, após a morte de Stalin.

97

Page 97: Terrorismo de Estado en Rusia

anexo IV

In memoriam de Anna PolitkóvskaiaAnna Politkóvskaia (1958-2006), jornalista russa, foi assassinada

em 7 de outubro de 2006, em Moscou. Em sua memória e para que nãocesse o trabalho por ela desenvolvido, decidimos traduzir este trecho deum dos livros da autora. O livro é sobre a guerra na Tchetchênia, e oconto é a denúncia das torturas realizadas pelo exército russo.

Anna foi uma das poucas jornalistas que abertamente denunciavaos crimes cometidos na Tchetchênia publicando artigos, escrevendolivros, entrando com as ações de denúncia na justiça.

No dia da tomada de escola em Beslan, em 1° de setembro de 2004, ajornalista foi vítima de uma curiosa infeção intestinal depois de ter bebidoum chá no avião que a levava de Moscou à capital da Ossétia do Norte.

Recentemente, a jornalista investigava as causas que levaram à mortede reféns em Moscou (em 2002, durante o espetáculo Nord-Ost).

Na mídia internacional comentaram muito o assassinato, porémpouco foi dito sobre o trabalho da jornalista; e este relato é um bomexemplo para pensarmos na situação que possibilitou o crime e emseus possíveis agentes.

UMA GUERRA ALHEIA OU A VIDA ATRÁS DACANCELA. TCHETCHÊNIA98.

Campo de concentração comercial

Em janeiro de 2001, haviam trazido para a revista onde trabalho99 asreclamações coletivas de 90 famílias de moradores de vilas de um bairro

98

__________98. O texto a seguir é a tradução de um dos contos (com pequenas reduções) que faz parte dolivro de Anna Politkóvskaia, jornalista assassinada em Moscou há duas semanas (em 7 deoutubro de 2006).Politkóvskaia, Anna. Uma Guerra Alheia ou a Vida atrás da Chancela. Tchetchênia. Moscou,2002. Edição realizada com apoio de Departamento de Comissário Superior da ONU para osRefugiados e das Fundações Ford e Mott.Ïîëèòêîâñêàÿ, Àííà. ×óæàÿ âîéíà èëè æèçíü çà øëàãáàóìîì. ×å÷íß. Ìîñêâà, 2002.Èçäàíèå îñóùåñòâëåíî íà ñðåäñòâà Óïðàâëåíèÿ Âåðõîâíîãî êîìèññàðà ÎÎÍ ïî äåëàìáåæåíöåâ, ôîíäà Ôîðäà è ôîíäà Ìîòòà99. Anna trabalhou na revista Novaia Gazeta (Jornal Novo) até a data de sua morte.

Page 98: Terrorismo de Estado en Rusia

montanhês da Tchetchênia: de vilas Makhkiety, Tovzieni, Selmentgauzen eKhottúni. O texto era surpreendente, pois centenas de pessoas clamavampor uma deportação voluntária o mais rápido possível, e para qualquer localda Rússia, mas fora da Tchetchênia. As causas: fome permanente, frioinsuportável, ausência de médicos, completo isolamento do resto do mundo.E como uma causa em especial: as cruéis incursões punitivas que vêmrealizando nestas vilas os militares deslocados nos arredores da vila Khottúni.

Os fatos pareceram tanto fantásticos, quanto clamorosos. Então, foipreciso ir para aquele lugar e verificar as informações. A viagem começouem 18 de fevereiro.

Só que aconteceu o seguinte: toda esta estória montanhesa, qualquerque seja o ponto de vista, se desmonta em pedaços incompatíveis. De umlado, dezenas de relatos aterrorrizantes, inquisidores sobre as torturasrealizadas pelos federais100; expressões faciais esquisitas e alienígenas daquelesque sofreram os abusos por parte dos militares (quando a mão que anota osrelatos congela de horror ao ouvir as estórias reveladas)...

E de repente, como um grande pedaço do mesmo mosaico: os mesmosrelatos, só que desta vez ao vivo, e não mais relatados. Que já estão acon-tecendo comigo. Os quadrinhos que ganham a vida para confirmar tudo quefora ouvido. E já é para mim que estão dirigidos os gritos: “Parada! Prafrente!”. E um cara do FSB101 que mal tinha saído das fraldas em cargo dealferes aspirante, com um sorriso enjoativo herdado de seus ancestrais deprofissão de 1937, no meu ouvido (e não mais ao meu relatador recente)suspira várias baboseiras e sujeiras: “Te fuzilar seria pouco... Você estápiscando demais, então está mentindo...”.

Primeiro quadrinho. À espera da prisão.

Vakha, da vila Tovzieni, é um homem forte de cinqüenta anos. Hoje emdia, ele se ocupa de tarefas comunais, mas antes, na época da União Soviética,foi do serviço secreto de segurança e professor da escola local. Volunta-riamente, Vakha recolhe as informações sobre as atrocidades cometidas peloexército russo. Ele também é comandante de grupo de autodefesa da vila evive esperando pela prisão.

Vakha conta histórias curiosíssimas sobre a curta permanência de Bas-saev e seu grupo na vila. Conta como toda a população da vila torcia pelaprisão tão esperada deste homem... Bassaev e seu grupo estavam fracos. E

99

__________100. Assim chamam na Tchetchênia os integrantes do exército da Federação Russa.101. Serviço Federal de Segurança, a ex-KGB: a qual Anna se refere neste parágrafo lembrandodas repressões da década de 1930.

Page 99: Terrorismo de Estado en Rusia

era somente querer levá-los presos. Porém, o exército russo que rodeava avila, de repente se afastou e ficou longe: justo durante o período da per-manência de Bassaev no local.

E ele se foi. Quer queiram acreditar, quer não.E assim que os bandidos foram embora para as montanhas, os militares

passaram a prender e a torturar os moradores da vila que não tinham nenhumaconexão com Bassaev. Deixando livres aqueles que realmente estavammanchados de sangue. Pois na vila todos sabem tudo sobre todos. O resultado:centenas de mortos. Centenas de desaparecidos. A lista destas pessoas, Vakhaguarda num esconderijo.

Segundo quadrinho. Bundas gostosas.

Issa mora em Selmentgauzen. No começo de fevereiro ele ficou presoem campo de concentração no território de uma unidade militar do exércitoda Rússia nos arredores da vila Khottúni.

Sobre seu corpo apagavam os cigarros, arrancavam suas unhas, batiamnos rins com garrafas pet cheias d’água.

Depois o jogaram num buraco que os milicos chamam de “banheira”.Este buraco estava cheio d’água (e era no inverno) e após jogar os tchetche-nos lá, os militares, em seguida, jogavam os petardos que enchiam o espaçode fumaça.

Issa sobreviveu. Mas nem todos conseguiram.Issa não estava sozinho neste buraco: estava com mais cinco pessoas.

Os oficiais que os interrogavam diziam aos tchetchenos que eles têm bundasbonitas e os estupravam. E justificando tais ações diziam: “Suas mulheresnão nos dão”.

Agora os tchetchenos estuprados dizem que se vingar “pelas bundasgostosas” será a tarefa de suas vidas e dizem que “seria melhor nos fuzilarque...”.

Issa não conseguiu se recuperar do choque. Ele foi liberado após pa-gamento de resgate juntado pela vila inteira. Antes de liberá-lo os militaresainda zombaram dos parentes que se reuniram na frente da guarita da zonado regimento tentando descobrir o destino daqueles que estavam presos nosburacos.

A linha de produção de seqüestros e desaparecimentos sob nome de“caça aos bandidos” não acaba. Então, chegou a hora de deduzir o seguinte:a segunda guerra na Tchetchênia somente mudou o vetor dos crimes queestão sendo realizados.

Nesta terra, aquilo que a “operação contra-terrorrista” teria que combater:os seqüestros desenfreados, a escravidão, o comércio de escravos e as

100

Page 100: Terrorismo de Estado en Rusia

negociações de “mercadorias” vivas, – tudo isso é praticado pelos atuaisdonos de situação: pelos militares federais. Ou seja, pelos funcionários doEstado, em nome do Presidente e da Constituição da Federação Russa.

Estamos sentados no único quarto minúsculo de Issa, onde só há o fogãoe a tarimba. A família é muito pobre.

A filha de Issa que tem quatro anos me olha horrorizada, sem piscar. Emseus olhos cinzas gigantes de medo, nos olhos deste ser magrinho e desnutridome vejo como um urso que veio para devorá-la.

A mulher de Issa explica:– Ela entende que você não é daqui, que você é igual àqueles que

espancavam meu marido na frente dela. E o levaram.

Terceiro quadrinho. Torturas com eletrochoque.

Rozita da vila Tovziéni quase não mexe os lábios. Seus olhos se fixarame olham para algum lugar dentro do próprio ser. Rozita não aparenta alguémvivo. Ela ainda tem dificuldades em andar: suas pernas e seus rins estãodoendo.

Um mês atrás Rozita teve que passar pelo campo de filtragem (como eladenomina o lugar) acusada de “acolher os combatentes”. Isto gritavam paraela os militares que a mandaram para o “campo”.

Rozita já fez muitos anos. Ela tem muitos filhos e alguns netos. A netamenor, de três anos, que antes não falava russo, mas que viu como destrataramsua avó, agora grita as palavras em russo: “Deitada!” e “Pro chão!”.

Rozita foi levada de casa na madrugada; a casa foi cercada e ela nãoteve muito tempo para arrumar as coisas. Ela foi jogada no buraco ajeitadopara estes casos no território da unidade militar nos arredores da vila Khottúni.

– Empurravam você? Pisoteavam você?– Sim, é comum por aqui.Mas que palavras são essas? “É comum...”.Com as pernas dobradas, Rozita ficou no buraco gelado, no chão de

terra, durante 12 dias de janeiro. O soldado que vigiava o buraco ficou compena e numa das noites lhe jogou um pedaço de carpete.

– Coloquei por baixo de mim. O soldado, ele é um ser humano, – Rozitamexe com dificuldades seus lábios.

“Seu” buraco não era muito profundo. Não mais de um metro e vinte. Efoi feito de tal jeito que a pessoa se sentia desprotegida de frio no meio doinverno e das montanhas: não havia telhado e fazia frio 24h por dia. E nãodava para ficar em pé, pois o buraco é coberto com uns troncos grandes quenão dá para mover com a cabeça. E assim passaram os 12 dias: de cócorasou sentada naquele pedaço de carpete.

101

Page 101: Terrorismo de Estado en Rusia

Mas por quê?Rozita acabou não sabendo quem foi que ela “acolheu”. Nenhuma

acusação foi apresentada a ela. Porém, ela foi interrogada três vezes. Osoficiais jovens que se apresentaram como funcionários de FSB, prendiamfios elétricos nas mãos da Rozita. Fios nus nos dedos de uma mão e daoutra, conectados atrás do pescoço.

– Sim, eu gritava muito. Confesso. Doía muito quando a corrente elétricapassava por mim. Mas o resto de tempo do interrogatório eu agüentei emsilêncio. Eu tinha medo de irritá-los mais ainda.

Os caras do FSB falavam: “Você está dançando mal. Temos que aumentara voltagem”.

E, de fato, aumentavam. De “dança” eles chamavam as convulsões docorpo de Rozita. E Rozita gritava mais e mais.

– E o que eles queriam ao torturar?– Eles não haviam perguntado nada de específico.O “específico” fora discutido com os parentes de Rozita. Por meio de

intermediários, os parentes receberam a ordem: procurar dinheiro para oresgate. E acrescentaram que seria melhor se apressar, pois Rozita não estásuportando bem o buraco, ela é capaz de não agüentar.

Primeiro, os militares pediram 5.000 dólares. Os moradores da vila (aqui,a comunidade inteira costuma juntar o dinheiro para os resgates) responderamque mesmo vendendo todas as propriedades seria impossível conseguir talmontante de dinheiro. E os militares foram compreensíveis, eles dividiram asoma por 10.

Passado um dia, o dinheiro foi trazido. Rozita, quase sem conseguir andar,saiu para a liberdade, à guarita do deslocamento militar.

E aí? O que nós temos? Quem é ela? A avó Rozita da vila Tovziéni? Acombatente? Se não, por que ela foi presa? Se sim, por que foi liberada? E,em qualquer um dos casos, por que foi torturada? E por que ela foi usadacomo uma mercadoria “viva”? Há tantas perguntas sem respostas... Asperguntas passam a ser retóricas. Está na hora de fazermos uma conclusãopreliminar: no território de uma unidade militar, deslocada nos arredores davila Khottúni da região Vedeno (onde estão deslocados o 45o RegimentoAerotransportado e 119o Regimento de Desembarque Aéreo do Ministériode Defesa, assim como as pequenas unidades do Ministério do Interior, daJustiça e do FSB) existe um verdadeiro campo de concentração, e aindacom uma vocação comercial.

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Quarto quadrinho. O adestrador dos porquinhos.

O comandante do 45o Regimento Aerotransportado é um homeminteressante e determinado. O coronel serviu no Afeganistão e na primeiraguerra da Tchetchênia. Ele xinga a guerra, pensa alto sobre seus filhos quecrescem com um pai ausente, e está pronto para terminar a “segunda guerratchetchena” logo, o mais rápido possível, pois sente-se entediado com ela.

... Estamos passeando pelo regimento. O comandante mostra o refeitório,bem simpático para as condições de uma campanha militar no meio dasmontanhas. Ele me leva para o armazém lotado de carne em conserva eoutros mantimentos: fato que, segundo ele, exclui por completo a possibilidadede seus soldados saquearem as vilas e roubar gado (ações apontadas portodos os moradores).

O comandante me mostra os buracos, onde após as “limpezas”102 ostchetchenos ficam presos. O coronel é muito protetor e me segura pelo braçopara que eu não escorregue no barro lamacento para um dos buracos deseis metros de profundidade.

O buraco é exatamente assim como as testemunhas o descrevem. Trêsmetros por três. Uma corda desce para o precipício escuro. Por esta cordasaem para os interrogatórios. Apesar de um frio intenso, os buracos cheirambem forte. Aqui é assim, os tchetchenos devem fazer suas necessidadesdebaixo de seus próprios pés. E continuar em pé no mesmo pedaço deterra. Ou sentar, caso tenha a vontade.

O comandante sente um certo desconforto por tudo o que se passa erevela algo surpreendente: um dia veio para o regimento o próprio chefe deagrupamento, o general Baranov. Ele viu os tchetchenos presos no meio docampo e para que eles não interferissem na paisagem, mandou colocá-losnos buracos que, inicialmente, foram feitos para enterrar o lixo. Daí pra frente,esta prática tornou-se costumeira. O coronel foi sincero:

– Colocamos aí somente os combatentes. Não colocaríamos aí as pessoascomuns...

– Mas, neste caso, por quê soltam os presos? Por quê não são abertasos processos judiciais? Não os transferem para a procuradoria?

– Não é nossa culpa, – pronuncia o coronel com uma voz trágica.As perguntas ficam suspensas no ar.

__________102. Operações de limpeza (zatchistki): incursões de exército russo nas vilas tchetchenas,causas de mortes de civis, quando muitas pessoas vão presas sem nenhuma acusação e as casassão saqueadas e destruídas.

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O coronel não acha as palavras. Além de:– Olha, você sabe como funcionam as coisas...– Não, eu não sei.Nos despedimos.

Quinto quadrinho. Provado pela própria experiência.

Passaram-se dois minutos após a conversa com o coronel e fui presa.Foi assim: primeiro, os desconhecidos de uniformes militares durante

mais de uma hora me ordenaram ficar parada no meio do campo. Depoisveio um blindado com os militares armados e com um oficial de etimologiadesconhecida. Prenderam-me, puseram-me no carro e fomos embora. “Teusdocumentos são falsos; teu Iastrjémbski ajuda Bassaev, e você é umacombatente”, – assim me disseram no local aonde fui trazida.

Depois foram os interrogatórios demorados numa barraca. Sem registros.Sem acusação oficial e sem documentos. Os oficiais jovens, um após outro,sem distintivos me lembram que são de FSB e que seu único comandante éo próprio Pútin, presidente do país, fizeram-me compreender que a liberdadeterminou: não se pode andar, não se pode telefonar, todos os objetos pessoaissão postos na mesa.

Prefiro omitir os detalhes mais repugnantes, pois são inconvenientes. Noentanto, justamente estes detalhes (os carrascos não podiam adivinhar)serviram de principal confirmação de que tudo que os tchetchenos haviamme contado sobre as torturas e os sofrimentos não era mentira. As informa-ções se confirmavam a cada hora que se passava.

Periodicamente, os oficiais jovens foram substituídos por um de patentesuperior, de rosto moreno e olhos arregalados e tontos. Seu sobrenome eraDurakov103, fazer o quê! De vez em quanto, Durakov mandava todo mundoembora da barraca, ligava uma musiquinha que considerava “lírica” emencionava a solução feliz de nosso conflito, caso eu fosse um pouco mais“conciliadora”: acho que as explicações de como Durakov compreendia estaminha “conciliação” são desnecessárias.

Os “jovens” que o substituíam eram mais perversos, eles “trabalhavam”meus pontos fracos: olhavam as fotos de meus filhos falando daquilo queteria que ser feito a eles “por causa da mamãe”...

Finalmente, Durakov, que com freqüência rasgava a camisa com os gritos:“Eu derramo meu sangue nesta guerra!”, olhou para o relógio e me disse:“Vamos. Vou te fuzilar”.

Levou-me da barraca, e já estava completamente escuro. Não dá paraenxergar nada nesta terra privada de eletricidade. Andamos um pouco e

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__________103. Durak, em russo, significa “babaca”.

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ele pronunciou: ”Quem não se escondeu, não é culpa minha!”. E aí tudo seiluminou com os disparos da artilharia.

O coronel ficou contente porque “funcionou” e que eu me agachei ater-rorizada.

Depois, ele me levou até uma peça reativa de artilharia “Grad” nomomento de disparo programado: foi para isso que ele tinha verificado ahora.

– Bem, vamos embora!E logo, da escuridão surgiu uma escada levando para baixo. “É a sauna.

Dispa-se”.Ao perceber que não houve o efeito esperado ele ficou muito bravo: “Eu

te entrego minha alma e você, sua praga combatente!!!”E acrescentou: “Lembra? Quem não se escondeu, não é culpa minha!”.Na sauna entrou mais um oficial do FSB (ele mesmo se apresentou desta

maneira). O coronel reportou: “Não quer se lavar”. O oficial colocou asgarrafas que trazia sobre a mesa e me levou para fora.

E novamente ficamos andando pelo campo escuro e novamente tiveque descer uma escada. Desta vez, foi uma casamata que me serviu de abri-go até minha libertação no dia 22 de fevereiro.

Na parede estava um panfletinho: 119o Regimento de Desembarque Aé-reo. E uma explicação: dezoito de seus integrantes são Heróis da Rússia.Trouxeram-me um chá. Tomei e fiquei tonta, as pernas ficaram bambas e tiveque pedir para sair. Fiquei vomitando.

Eu exigia: me apresentem uma acusação, façam um protocolo, me man-dem para a prisão, aí os parentes poderão me trazer pasta e escova de dente.

Não! Uma combatente! Se você trabalhasse para nós, você iria ter detudo! Ao invés disso, você foi ver os buracos! Uma praga! Filha da mãe!Bassaev pagou por você a Iasrjembski. Iastrjembski pagou a teu chefe deredação. E o chefe de redação te enviou para cá.

Oh, o horror da estupidez militar!Na manhã de 22 de fevereiro, na casamata, entrou um oficial e disse que

seria meu acompanhante até Khankala104 e que estava com todos meusdocumentos e pertences que “serão entregues ao FSB”. Do lado do heli-cóptero que iria me transportar estava o próprio Durakov que se despediude seguinte maneira: “Se eu pudesse, te fuzilaria”.

Assim que a máquina pousou em Khankala, outros oficiais me pegaram.Estes eram da procuradoria militar de Grozny, e me sinto grata a eles pornão precisar novamente ficar presa sob guarda dos funcionários do FSB quegravemente prejudicaram sua saúde psíquica durante a “operação contra-__________104. Em Khankala, nas proximidades da capital, Grozny, encontra-se a maior base militar russana Tchetchênia.

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terrorista”. Expliquei-me na procuradoria. Meu acompanhante também foiinterrogado e revelou-se que além de minha credencial de jornalista N1258,de 12 de janeiro de 2001, emitida pelo ajudante do presidente da FederaçãoRussa, Serguei Iastrjémbski, não havia mais nada. Pois é: o coronel estavamentindo. Não havia nada, nem fitas do gravador, nem filmes fotográficos –tudo foi roubado na unidade militar nos arredores da vila Khottúni.

Escrevi uma declaração ao procurador do exército exigindo incriminaçãode meus seqüestradores e torturadores. Fiz isso sem muita esperança. En-treguei minha credencial ao procurador para a realização de uma investiga-ção oficial sobre a falsidade ou não de um documento emitido pelo depar-tamento do senhor Iastrjémbski. Também fiz exame de corpo de delito nohospital de Khankala com o intuito de evitar quaisquer insinuações futurasdo FSB, que, aliás, começaram logo à noite. No jornal da noite, o senhorZdanóvitch, chefe do centro de imprensa do FSB, declarou que segundoseus informantes a “jornalista Politkóvskaia usa entorpecentes e foi por issoque ela viu uns buracos nos lugares onde estes não existem; e que devido aesses fatos a jornalista foi encaminhada para os exames médicos”.

O pesadelo acabou com o vôo para Mozdok. Daí, os membros dogoverno da República Tchetchênia e seu chefe Serguei Iliasov em pessoa,me transferiram rapidamente para Piatigórsk e de lá para Moscou.

E foi assim que os pedaços desconexos desta história toda se compuseramem um todo. E chegou a hora de deduzirmos o seguinte....

Meus caros, tudo isso está se passando dentro de nosso próprio país.Neste exato momento de nossas vidas. Com a Constituição vigente e comsua garantia presente: o presidente Pútin que se declara “decidido e firme”.Com a procuradoria em funcionamento. Com os defensores de direitoshumanos, oficiais e das ONG´s. Com o lorde grisalho e bonito105 cansadode viajar de Estrasburgo para a Tchetchênia... Mas está tudo aí: os buracos,os fios elétricos, as convulsões, os interrogatórios...

E ninguém ousaria dizer que eu não tinha visto nada disso, ouvido ousentido. Tudo foi provado pela própria experiência.

Fevereiro de 2001

P.S. Curta adição de 2002.Os buracos usados para prisões e torturas nos territórios de unidades

militares deslocadas na Tchetchênia há tempo não são novidade. Jogam ne-les os tchetchenos e os soldados que cometeram algum crime. Estes “buracos”já possuem uma descrição jurídica devido ao caso de Budanov, o coman-dante de 160o Regimento de Tanques, que seqüestrou e matou uma jovem

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__________105. Encarregado da defesa de direitos humanos da União Européia em 2001.

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tchetchena Elza Kungaeva. Faz parte deste caso a descrição do episódio dooficial Roman Bagreev que se negou de cumprir as ordens do comandanteembriagado e foi parar num dos buracos, onde se encontravam algunstchetchenos, prisioneiros ilegais.

No entanto, Issa, Vakha e Rozita, testemunhas e vítimas destes buracos,há tempo foram fuzilados, logo após nosso encontro. Eles foram assassinadosde maneira similar: vieram homens desconhecidos num blindado, conferiramo nome, e dispararam os Kalachnikov.

Durakov subiu de cargo: a guerra possibilita as carreiras rápidas.Zdanóvitch virou general do FSB e está “infiltrado” na mídia independente:

hoje em dia ele é vice do chefe de segundo canal da TV estatal. Andamdizendo que lá ele é responsável pela segurança de tudo!

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Protesto em Pierm contra a indústria bélica (2004).

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Anexo V – Pierm e a luta antimilitarista na Rússia contemporânea

Na cidade de Pierm (Ï å ð ì ü), região do Ural, cerca de 1.000 km a lestede Moscou, o movimento social organizado localmente, procura evitar ainstalação de uma usina de incineração de mísseis nucleares. Grupos deativistas, em conjunto com a população da cidade, procuram impedir acontinuidade do programa de incineração de mísseis. Tal luta transcende àquestão específica da usina, abarcando outros problemas derivados dagigantesca estrutura da indústria bélica russa.

A usina escolhida para o programa de queima de mísseis situa-se emZakamsk, um pequeno distrito da cidade de Pierm. Assim como as demaisindústrias bélicas russas, a usina Zavod imieni Kirova (Kirovskii zavod)encontrou seu apogeu durante o período da corrida armamentista. Aindahoje produz e testa os motores de mísseis balísticos. Todavia, após adissolução da União Soviética no início dos anos 90, a usina incorporououtras atividades em sua cadeia produtiva. Através dos acordos internacio-nais de eliminação de armamentos nucleares, e com o aval do então go-vernador de Pierm, Yuri Trutnev (atual ministro de recursos naturais do go-verno russo), a usina Kirovskii zavod incluiu a incineração de mísseis comcombustível sólido no novo processo produtivo. O programa de destruiçãodos mísseis intercontinentais com combustível sólido em Pierm está sendoplanejado há um ano e meio, visando utilização de quatro indústrias locais –Kirovskii zavod é a primeira delas.

Kirovskii zavod (FGUP Perm Factory Mashinostroitel) foi licenciadapara ser a primeira empresa russa de incineração dos mísseis com combustí-vel sólido – SS-22 Scalpel, com raio de alcance de 10.000 km. Cada foguetepode carregar 20 ogivas nucleares de 550 toneladas (46 vezes mais potenteque a bomba atômica lançada em Hiroshima).

O programa de queima de mísseis está sendo viabilizado com fundosfinanceiros estadunidenses liberados a partir da legislação Lugar-Nunn,vigente há 13 anos. A verba é remetida para a empresa russa Mashinostroitelatravés da transnacional Washington Group International (http://www.wgint.com/) que, atualmente, opera em 30 países e possui 26.000empregados. Em 2003, Richard Lugar, membro do congresso dos EUA,visitou o complexo industrial de Pierm, acordando o início das atividadesindustriais bélicas junto ao governador local O. Tchirkunov.

No procedimento utilizado para a queima dos mísseis, retira-se pri-meiramente a ogiva nuclear. Em seguida, os mísseis com combustível sólido(alojado dentro dos motores) e corpo ligeiramente radioativo são incineradosa uma temperatura média de 3.500 graus Celsius. Segundo especialistas russose estadunidenses, dióxidos altamente tóxicos são liberados durante aincineração. Mesmo em poucas quantidades, tais dióxidos se acumulam

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facilmente nas cadeias alimentares, contaminando organismos vivos e ini-ciando processos cancerígenos. Os dióxidos liberados são quimicamenteestáveis, ou seja, indissolúveis organicamente durante décadas. Tecnologiasseguras de reciclagem dos motores de mísseis com combustível sólido nãoexistem.

Além dos dióxidos que contaminam a atmosfera da cidade, a altapericulosidade da ferrovia que transporta os mísseis para a fábrica tambémrepresenta outro agravante. Atravessando a cidade, os trilhos encontram-seem péssimas condições estruturais, ocasionando freqüentes acidentes. Em14 de julho de 2004, por exemplo, um vagão de trem que transportavaácido hidroclórico descarrilou dos trilhos da ferrovia, a 400m da usinaKirovskii zavod.

Apesar da ausência da análise estatal de impacto ambiental – pré-condi-ção para o início de quaisquer atividades bélicas similares à incineração demísseis balísticos –, a empresa russa Mashinostroitel já anunciou a constru-ção de painéis de queima dos mísseis e um forno. Os projetos referentes aosfornos e ao galpão de estoque dos mísseis, que constituem apenas dois dadezena de itens infra-estruturais necessários para a execução do programa,foram qualificados de altamente vulneráveis e perigosos por analistasindependentes consultados pela comunidade, neste caso professores douto-res em química e biologia da Universidade Estatal de Pierm. Apesar dasdificuldades para obter informações sobre os processos industriais doprograma em curso, o diretor da usina Kirovskii zavod já confirmou a quei-ma de sete mísseis SS-24 de 98 toneladas.

A usina Kirovskii zavod, que em 2004 completou 70 anos, é rigidamen-te cercada e vigiada pelas forças armadas russas, impedindo tanto o acessoda população como também o conhecimento público das atividadesindustriais bélicas. Sua extensão ultrapassa 12km, e o contingente de tra-balhadores do complexo industrial chega a dois terços dos 100.000 habitantesde Zakamsk (Çàêàìñê).

As condições dos trabalhadores dessa usina não são menos aterradoras:salários atrasados há mais de três meses, constante ameaça de desemprego,pressões cotidianas para a manutenção do sigilo dos processos e atividadesrealizados no interior da fábrica, condições de trabalho altamente perigosassem qualquer adicional por atividade de risco. Esse último aspecto dopanorama trabalhista é reforçado pelo terror impregnado na comunidadeadvindo do estado de saúde dos trabalhadores aposentados, que apresentamquadros clínicos irreversíveis causados por contaminação.

As estratégias de ação organizadas pela população, contrária à queimados mísseis e foguetes em Pierm, estão impulsionadas pelo sucesso deprotestos populares antecedentes. No início da década de 90, a populaçãode Pierm conseguiu impedir a instalação do programa de queima de mísseis.

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Adiando forçadamente as atividades industriais, o governo russo transferiu arealização do projeto para a cidade de Votkinsk (Âîòêèíñê), em uma usinasituada a oito quilômetros desta cidade de 100.000 habitantes. Em 2001,manifestantes em Votkinsk pressionaram o governo local e também obstruí-ram a execução do programa. Assim, o governo russo obrigou-se a retornarpara o governo de Pierm a responsabilidade pelo empreendimento bélico.

O governo local já gastou a verba fornecida há sete anos pelo convêniorusso-estadunidense que instituiu o programa de queima de mísseis.Pressionado pela possibilidade de investigações acerca do desvio da verba,o governo de Pierm utiliza recursos do orçamento público para a continuidadedo projeto.

Atualmente, a resistência contra o programa de queima de mísseis emPierm possui amplo apoio popular, principalmente da comunidade deZakamsk, além das ações de cinco grupos de ativistas que atuam na cidade:Movimento Resistência Anarco-Ecológica, União da Segurança Química,Movimento Autônomo de Moscou e outras cidades russas, Movimento contraa Violência de Ekaterinburgo, Guardiões do Arco-Íris.

As estratégias de resistência utilizadas pela população de Pierm e pelosgrupos de ativistas englobam uma gama muito variada de ações:acampamentos permanentes de protesto na frente da usina Kirovskii zavod,bloqueios de prédios da administração, panfletagem, reuniões públicas,performances teatrais, atos e manifestações. As audiências públicas discutemo programa de queima de mísseis.

Em novembro de 2005, durante a queima de um dos mísseis, a unidade dafábrica que abrigava o forno explodiu. Segundo testemunhas, uma nuvempreta saiu da fábrica, e os moradores de Zakamsk sentiram dores na gargantae dificuldades para respirar. Porém, este acidente não interrompeu a operação,e nos dias posteriores os reatores foram queimados a céu aberto. O acidentefoi reconhecido pelas autoridades russas. O ministro de defesa visitou a cidade,mas “não detectou nenhuma irregularidade”. Enquanto isso, a população deZakamsk sofre agravamentos de doenças respiratórias. Em dezembro, ajustiça declarou a queima uma atividade irregular e criminosa que viola asnormas de segurança, preservação de meio ambiente e saúde pública.

Porém, as queimas continuam....Maiores informações: www.seu.ru (União pela segurança química);[email protected] - lista de discussão sobre situação em

Pierm.

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Anexo VI – Poesia popular tchetchena

Três vezes davam o leite para a terra sorverE três vezes arrancavam o soloE só quando a terra negou-se a sorverColocadas as primeiras pedras;Oito pedras gigantes que formariam as quinas da torreE cada pedra valia um touro e em peso – oito touros.Cada pedra doze touros carregavamTrincando seus cascos a tamanha forçaE cada pedra lapidavam por doze dias quatro lapidadores...Dos vários locais da montanha trouxeram pedaços de várias pedras que,juntados com massa, tornavam-se um todo indissolúvel.Primeiro andar está terminadoAqui nunca passa o diaAqui os presos titilando correntes indagarão sobre o destino!Segundo andarO teto está feito e a corrente do forno está penduradaAqui a família encurtará seus dias no caso da guerraQuarto andarAqui ficarão os guardiões, revezando-se à janela.E os quarto lados do mundo vistos na palma da mão.Assim as pedras deitavam em uma fila após outra fila,Andar após andar crescia a torre.E assim no dia 360 terminou Iand o quinto andar!Aqui ficará o telhado leve como a luzConstruído como um cone reto – eretoAs pedras se deitam numa escada,Espremendo-se para cimaE seladas por finas lascas de pedra.Está terminada a canção de trabalho e das pedras –É impossível estar mais acima:Sobre a cabeça as nuvens andam deslizando, o sol se põe.Atravessando Djerakh a torre lança sua sombra.Assim o dia 365 virou a última pedra.

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Campos de refugiados tchetchenos na Inguchétia (2002)

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Imagens de Grozny

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Protestos contra a guerra

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115Protestos contra a indústria bélica em Pierm (2004)