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Universidade de São Paulo - Departamento de História
Fragmentos selecionados (Pequena antologia)-para uso exclusivo da disciplina Teoria
da História -Seleção: Prof. Elias Thomé Saliba. Versão 2020
(Obs.: Quando não houver indicação do tradutor, a tradução foi feita livremente pelo
professor)
1. Racionalismo/subjetivismo/fenomenologia–desdobramentos e variantes no século
XX.
1.1.Edmund Husserl, Recherches Logiques,1931
1.2.Henri-Irénée Marrou, De la Conaissance Historique, 1954
1.3.Max Weber, The Methodology of the Social Sciences, 1928
1.4.Raymond Aron, Introduction à la Philosophie de l'Histoire,1961.
2. Desdobramentos e variantes da concepção empirista/pragmatismos e suas
variantes:
2.1. H.Taine, As Origens da França Contemporânea, 1875.
2.2. H.Thomas Buckle, History of Civilization in England,1858.
2.3. G.Monod, "Do progresso dos estudos históricos em França. Manifesto inaugural da
Revue Historique,1876
2.4. Charles S.Peirce, Case, love and logic, 1908.
3. Variantes, continuidades e desdobramentos da dialética hegeliana/
historismo/presentismo.
3.1. Jules Michelet.Histoire de la Revolution Française,1833
3.2. José Ortega Y Gasset, História como Sistema, 1941.
3.3. Benedetto Croce. História como História da Liberdade, 1938.
4. Variantes, continuidades, exemplos e desdobramentos do Materialismo.
4.1. P.Cabanis, Rapports du physique et du moral de l'Homme,1844.
4.2. Norbert Wiener, Cybernetica,1948.
4.3. David Brooks, The philosophy of data, New York Times, 2013
5. Variantes, re-interpretações, polêmicas e desdobramentos do marxismo ocidental.
5.1.E.P.Thompson,A Miséria da Teoria.
5.2.Jean-Paul Sartre, Questão de Método,1960.
5.3.Herbert Marcuse, Razão e Revolução; Hegel e o advento da teoria social. 1954.
5.4. Lucien Goldmann, Recherches Dialectiques.l959.
5.5. Idem, Ciências Humanas e Filosofia, 1962.
5.6. Maurice Merleau-Ponty, Les aventures de La Dialectique,1955
5.7.Terry Eagleton, A Ideologia da Estética, 1990.
6. Fragmentação dos ismos no século XX/Teoria do conhecimento como
linguagem/Pós-estruturalismo/ Narratividade e Hermenêutica.
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6.1.Roland Barthes, Le discourse de l´Histoire,1967.
6.2.H.G.Gadamer,Verité et Méthode ,1960.
6.3.Michel Foucault, La Verité et le pouvoir, 1978
6.4.Terry Eagleton, The illusions of Postmodernism,1996
6.5.Hayden White, The burden of History,1966.
6.6.Roger Chartier, “A História hoje: dúvidas,desafios, propostas”, 1994.
6.7.Josep Fontana, Historia: analisis del pasado y proyecto social, 1982.
6.8.Carlo Ginzburg, Chaves do mistério: Morelli,Freud e Sherlock Holmes IN O signo
de três,1979.
6.9.Hayden White, The content of the form; narrative discourse and historical
representation. 1989.
6.10. F.R.Ankersmit, History and Tropology; the rise and fall of Metaphor, 1994.
6.11. Carlo Ginzburg, O fio e os rastros; verdadeiro, falso, fictício. 2007
1. Racionalismo/subjetivismo/fenomenologia–desdobramentos e variantes
no século XX.
1.1. “Na percepção algo é percebido, na imaginação algo é imaginado, na
enunciação algo é enunciado, no amor algo é amado, no ódio algo é
odiado, no desejo algo é desejado, etc. Brentano discerniu o caráter
comum que pode encontrar-se em tais exemplos quando disse: ‘Todo
fenômeno psíquico é caracterizado pelo que os escolásticos da Idade
Média denominaram a existência intencional (ou ainda mental) de um
objeto’, e o que poderíamos chamar, se bem que com expressões um
pouco equívocas, a relação com um conteúdo, a orientação para um
objeto(que não deve entender-se como uma realidade) ou a objetividade
imanente.(...)
O objeto da representação, da intenção, é e significa: o objeto
representado, o objeto intencional. Que represente Deus ou um anjo, um
ser inteligível em si ou uma coisa psíquica ou um quadrado circular, etc.,
o que assim denominamos o transcendente é justamente o que é visado,
logo é objeto intencional; pouco importa na emergência que tal objeto
exista, seja fictício ou absurdo. Quando dizemos que o objeto é
simplesmente intencional, não queremos naturalmente dizer: ele existe,
ainda que apenas na intentio, portanto como componente real desta ou
que exista nesta alguma sombra de objeto; mas queremos sim dizer: o que
existe é a intenção, o visar de um objeto de tal maneira, mas não o objeto.
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Se, pelo contrário, o objeto intencional existe, não é só a intenção ou o ato
de visar que existe, mas também o que é visado.”
(Edmund Husserl, Recherches Logiques,1931.)
1.2. “Em suma, o historiador [segundo o erudito positivista] não constrói
a história: reencontra-a; Collingwood, que não poupa sarcasmos a uma
tal ‘concepção’ de conhecimento histórico pré-fabricado, que seria
preciso apenas engolir para cuspir de volta’, chama a isso “a história feita
com tesoura e cola”, scissors and paste. Ironia merecida, pois nada é
menos exato do que uma análise desse tipo, que não leva em conta a
maneira como realmente procedeu o espírito do historiador. Tal
metodologia só poderia ter como resultado a degradação da história em
erudição, e de fato foi a isso que ela conduziu aquele de seus teóricos que
a levou a sério praticamente, Charles Victor Langlois, o qual, no fim de
sua carreira, não mais ousava compor a história, contentando-se em
oferecer a seus leitores uma montagem de textos...(...)
Mas não, ‘não existe uma realidade histórica, completamente acabada
antes da ciência que conviria simplesmente reproduzir com fidelidade’: a
história é o resultado do esforço, num sentido criador, através do qual o
historiador, o sujeito do conhecimento, estabelece essa relação entre o
passado que ele evoca e o presente que é seu. (...) A teoria precede a
história: a teoria, isto é, a posição, consciente ou inconsciente, assumida
pelo historiador em relação ao passado: escolha e delimitação do assunto,
questões levantadas, conceitos empregados, e, sobretudo, tipos de
relações, sistemas de interpretação, valor relativo atribuído a cada um: é
a filosofia pessoal do historiador que lhe dita a escolha do sistema de
pensamento em função do qual vai reconstituir e, segundo crê, explicar o
passado.”
(Henri-Irénée Marrou, De la Conaissance Historique, 1954.pp.47e
98.)
1.3."Os problemas das disciplinas empíricas devem, sem dúvida, ser
solucionados de forma ‘não-avaliativa’. Não são problemas de avaliação.
Os problemas das ciências sociais são selecionados, porém, pela
relevância a valores (com referência a valores) dos fenômenos tratados.
(...) A qualidade de um evento como 'socioeconômico' não é algo que ele
possui objetivamente. É, antes, condicionada pela orientação de nosso
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interesse cognitivo, provindo da específica significação cultural que
atribuímos ao evento particular num dado caso... Não são as
interconexões de fato das 'coisas, mas as interconexões conceituais de
problemas que definem o campo das várias ciências.(...)Em outras
palavras, a escolha do objeto de investigação e a extensão ou
profundidade com que a investigação procura penetrar na infinita teia
causal são determinadas pelas ideias avaliativas que dominam o
investigador e sua época. No método de investigação, o 'ponto de vista'
orientador é de grande importância para a construção do esquema
conceitual que será utilizado na investigação.(...)A história das ciências
sociais é e será um processo continuo de esforço de ordenar a realidade
analiticamente através da construção de conceitos; de dissolução das
construções analíticas assim elaboradas, através da expansão e alteração
do horizonte científico; e novamente de reformulação de conceitos sobre
bases assim transformadas." `
(Max Weber, The Methodology of the Social Sciences, 1928. pp.23-
31).
1.4. "O historiador pertence ao devir que descreve. Está situado após os
acontecimentos, mas na mesma evolução. A ciência histórica é uma forma
da consciência que uma comunidade toma de si mesma, um elemento da
vida coletiva, como o conhecimento de si um aspecto da consciência
pessoal, um dos fatores do destino individual. Não é ele função
simultaneamente da situação atual, que por definição muda com o tempo,
e da vontade que anima o sábio, incapaz de se destacar de si mesmo e do
seu objeto? Mas, por outro lado, ao contrário, o historiador busca
penetrar a consciência de outrem. É, em relação ao ser histórico, o outro.
Psicólogo, estrategista ou filósofo, observa sempre do exterior. Não pode
nem pensar o seu herói, como este se pensa a si mesmo, nem ver a batalha
como o general a viu ou viveu, nem compreender uma doutrina do mesmo
modo que o criador. (...) Julgamos nós que uma ideia fundamental se
destaca das análises precedentes: a dissolução do objeto. não existe uma
realidade histórica, já feita antes da ciência, que conviesse simplesmente
reproduzir com fidelidade. A realidade histórica, por ser humana, é
equívoca e inesgotável. São equívocas a pluralidade dos universos
espirituais através dos quais se desenrola a existência humana, a
diversidade dos conjuntos nos quais vêm situar-se as ideias e os atos
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elementares. É inesgotável a significação do homem para o homem, da
obra para os intérpretes, do passado para os presentes sucessivos."
Raymond Aron, Introduction à la Philosophie de l'Histoire, pp.88-120.
2. Desdobramentos e variantes da concepção empirista/pragmatismos e
desdobramentos.
2.1. “O que é a França contemporânea? Para responder a esta questão
é necessário saber como esta França formou-se ou, melhor ainda, seria
necessário assistir, como um espectador, à sua formação. No fim do século
passado, à maneira de um inseto, a França passou por uma autêntica
metamorfose. Sua antiga organização sofre uma atrofia; ela parece
dilacerar, em si mesma, os tecidos mais preciosos e acaba por mergulhar
em convulsões quase letais. Depois, através de sucessivas crispações e
uma penosa letargia, seu organismo se ratifica e se endireita. Contudo,
sua organização deixa de ser a mesma: por um silencioso trabalho
interior, um ente novo substitui o antigo. Em 1808 todos os seus grandes
traços estão determinados e definitivos: departamentos, distritos e
vilas; nada mudou, desde então, em suas divisões e cortes exteriores:
Concordata, Códigos, Tribunais, Universidade, Instituto, Prefeitos,
Conselho de Estado, impostos, preceptores, Conselho de Finanças,
administração uniforme e centralizada; seus principais órgãos são ainda
os mesmos: nobreza, burguesia, operários, camponeses – cada classe
passa a ter, desde então, a situação, os interesses, os sentimentos e as
tradições, tais como as vemos hoje. Desta maneira, a nova criatura
parece, ao mesmo tempo, estável e completa; portanto, sua estrutura, seus
instintos e suas faculdades demarcam, desde então, o círculo no qual vão
se agitar os seus pensamentos e suas ações.”
H.Taine, As Origens da França Contemporânea( 1875), trecho do
prefácio.
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2.2. "Sendo tão imperfeito o nosso conhecimento da história e, por
outro lado, tão numerosos os materiais de que dispomos, parece
que seria de desejar que alguma coisa se fizesse, em proporções
maiores que as tentadas até agora, e que se fizesse um esforço
enérgico para elevar este importante ramo da investigação ao nível
dos outros, afim de assim mantermos o equilíbrio e a harmonia do
nosso conhecimento. Foi este o espírito que presidiu à concepção da
presente obra. Realizá-lo completamente, é impossível; espero, no
entanto conseguir para a história do homem algo equivalente, ou pelo
menos análogo, ao que outros investigadores vêm realizando nos
diferente ramos das ciências naturais. No que diz respeito à natureza
têm-se explicado fenômenos aparentemente mais irregulares e
caprichosos e tem-se provado que eles estão de acordo com certas leis
fixas e universais. Tudo isto porque homens competentes, e homens,
sobretudo, de espírito paciente e incansável têm estudado os fenômenos
naturais com o intuito de lhes descobrir a regularidade. Se os
fenômenos humanos foram submetidos a um processo semelhante,
teremos todo o direito de esperar resultados semelhantes."
(H.Thomas Buckle, History of Civilization in England(1858), trecho do
prefácio )
2.3. "Pretendemos permanecer independentes de qualquer opinião
política e religiosa, e a lista dos homens eminentes que quiseram conceder
o seu patrocínio à Revista prova que julgam este programa realizável.
Estão longe de professar todos as mesmas doutrinas em política e em
religião, mas pensam conosco que a história pode ser estudada em si
mesma, e sem se preocupar com as conclusões que podem ser tiradas a
favor ou contra esta ou aquela crença. Sem dúvida as opiniões
particulares influenciam sempre numa determinada medida a maneira
como se estuda, como se vê e como se julgam os fatos ou os homens. Mas
devemos esforçar-nos por afastar estas causas de prevenção e de erro
para só julgarmos os acontecimentos e os personagens em si mesmos.
Admitiremos aliás opiniões e apreciações divergentes, com a condição de
que sejam apoiadas em provas seriamente discutidas e em fatos, e que não
sejam simples afirmações. (...) Portanto, não teremos nenhuma bandeira;
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não professaremos nenhum credo dogmático; não nos alistaremos sob as
ordens de nenhum partido; o que não quer dizer que a nossa Revista seja
uma 'Babel onde todas as opiniões virão manifestar-se. O ponto de vista
estritamente científico onde nos colocamos bastará para dar à nossa
coletânea a unidade de tom e de caráter. Todos aqueles que se colocam
neste ponto de vista têm em relação ao passado um mesmo sentimento:
uma simpatia respeitosa, mas independente. (...) Ao mesmo tempo, o
historiador conserva, todavia, a perfeita independência do seu espírito e
em nada abandona os seus direitos de crítico e juiz. As tradições antigas
dos elementos mais diversos, são o fruto de uma sucessão de períodos
diferentes, mesmo de revoluções, que, cada uma no seu tempo e por sua
vez, tiveram todas a sua legitimidade e utilidade relativas. O historiador
não é o defensor de umas contra as outras; não pretende suprimir umas
da memória dos homens para dar às outras um lugar imerecido. Esforça-
se por discernir as suas causas, definir o seu caráter, determinar os seus
resultados no desenvolvimento geral da história. (...)
É assim que a história, sem se propor outro fim e outro objetivo a não ser
o lucro que se tira da verdade, trabalha de uma maneira secreta e segura
para a grandeza da Pátria, ao mesmo tempo que para o progresso do
gênero humano."
(G.Monod, "Do progresso dos estudos históricos em França", Ma-
nifesto inaugural da Revue Historique,1876.)
2.4. “O método pragmatista permite antes de tudo resolver
controvérsias metafísicas que, do contrário, poderiam ser intermináveis.
O mundo é único ou múltiplo? Admite a fatalidade ou a liberdade? É
material ou espiritual? Eis alguns conceitos dentre os quais um ou outro
poderia ser considerado não verdadeiro; logo, as discussões acerca deles
permaneceriam sempre abertas. Nesse caso, o método pragmatista
consiste em tentar interpretar todo conceito pelas suas consequências
práticas. Eis como ele coloca o problema: admitindo que um determinado
conceito seja verdadeiro e o outro não, que diferença resultaria
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praticamente de cada um? Se não conseguirmos encontrar nenhuma
diferença prática, concluiremos que as duas alternativas são equivalentes
e que toda discussão é inútil. Para que uma controvérsia seja séria, é
preciso poder demonstrar qual consequência resulta necessariamente do
fato de que somente esta alternativa é a verdadeira. Logo, com o escopo
de alcançar a perfeita clareza acerca das ideias relativas a um objeto,
devemos considerar unicamente os efeitos de caráter prático que ele, a
nosso juízo, é capaz de determinar, as impressões que devemos esperar
dele, as reações para as quais devemos estar preparados. (...)
Nos meus cursos universitários tenho o hábito de apresentar os problemas
da seguinte forma: em que o mundo seria diferente, se fosse verdadeira
esta ou aquela alternativa? Quando não posso descobrir nenhuma
diversidade, julgo que a oposição entre as duas ideias não tem qualquer
significado. Em outras palavras, o significado prático dos conceitos, num
caso desse tipo, é o mesmo: ora, para nós, uma ideia não tem outro sig-
nificado exceto esse caráter prático.
Ficamos maravilhados ao ver quantas discussões filosóficas pareceriam
destituídas de qualquer significado se fossem submetidas a essa prova de
procurar a sua consequência concreta. (...)
A postura do Pragmatismo já é conhecida há muito tempo porque é a
mesma do Empirismo, embora o apresente, pelo que me parece, de forma
mais radical; no entanto, provoca menores contestações do que qualquer
uma das formas assumidas até agora pelo Empirismo.
O Pragmatismo dá as costas decididamente, e de uma vez por todas, a
uma multidão de hábitos inveterados caros aos filósofos profissionais. Dá
as costas à abstração; a tudo o que torna o pensamento inadequado, ou
seja, às soluções puramente verbais, às más razões a priori, aos sistemas
fechados; a tudo o que pretende ser um absoluto ou um princípio; para
encaminhar-se em direção a um pensamento concreto e adequado, em
direção aos fatos, em direção à ação eficaz. Ao mesmo tempo, o
pragmatismo não se alinha com nenhuma solução particular. Ele é
somente um método. Mas o triunfo universal desse método determinaria
uma considerável mudança no que denominei de temperamento filosófico.
(...)Assim, o mundo sempre se apresentou como uma espécie de enigma,
cuja chave deveria ser buscada e encontrada sob forma de uma palavra,
de um nome que esclareceria completamente ou conferiria todo o poder
desejado. Essa palavra designa o princípio do mundo e possuí-la, de certo
modo, equivale a possuir o próprio mundo. Deus, a matéria, a Razão, o
Absoluto, a Energia: eis os nomes que são outras tantas soluções. Uma vez
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de posse desses nomes, nada mais vos resta a fazer: tereis chegado ao fim
da vossa busca metafísica.
Seguis, ao contrário, o método pragmatista? Então vos é impossível
considerar essas palavras como o fim da vossa investigação. É preciso que
dispais todas as palavras do valor que podem ter no seu uso comum e
façais com que desempenhem uma função no próprio campo da vossa
experiência. Então, mais que uma solução, vemos nelas o programa de um
novo trabalho a ser iniciado; e, mais particularmente, vemos nelas uma
orientação sobre os diversos modos pelos quais é possível modificar as
realidades existentes. Logo, com o Pragmatismo, as teorias tornam-se
instrumento de investigação, em vez de serem a resposta de um enigma e
o final de toda investigação. Elas não nos servem para descansar, mas
para seguir adiante; e, se necessário, permitem-nos reconstruir o mundo.
Todas as nossas teorias estavam cristalizadas: o pragmatismo deu-lhes
uma elasticidade que nunca teriam e as colocou em movimento.”
(Charles S.Peirce, Case, love and logic, 1908)
3. Variantes, continuidades e desdobramentos da dialética hegeliana/
historismo/presentismo.
3.1 “A Bastilha, ainda que fosse uma velha fortaleza, não era menos
inexpugnável, bastando que se dedicassem a atacá-la vários dias, com
uma grande artilharia. Naquela crise, o povo não tinha nem tempo e nem
meios de organizar um ataque regular e, mesmo que tivesse, a Bastilha
não tinha nada a temer, pois dispunha não só de víveres suficientes para
esperar por um socorro próximo, como também de uma grande
artilharia de guerra. Seus muros, de dez pés de espessura no cume, e
suas torres, de trinta ou quarenta metros na base, podiam rir-se,
durante muito tempo, e os canhoneios, suas baterias, cujo fogo estava,
dirigido à Paris, poderia demolir todo o Marais e todo o subúrbio de
Saint-Antoine. Suas torres, armadas estrategicamente, com janelas
minúsculas e grades duplas e triplas, permitiria à guarnição militar,
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impingir um verdadeiro massacre aos assaltantes. A tomada da Bastilha
não foi, de modo algum, racional. Foi um ato de fé.
Ninguém o propôs mas, todos acreditaram e todos agiram.
Ao longo das ruas, das pontes, a multidão gritava à multidão: "À Bastilha
! À Bastilha!" E, em meio dos toques de alarma, todos ouviam: "À
Bastilha!" Ninguém, repito, deu a ordem. (...)
O que acontece nesta curta noite, na qual ninguém dorme
para que, na manhã seguinte, todo discussão e toda incerteza
desapareçam com as sombras e os homens passem a ter os mesmos
pensamentos? Naquela noite, cada um realizou interiormente, o juízo
final do passado; cada um, com o objetivo de destruir, condenou um
pretérito sem remissão; naquela noite, a história se converteu numa longa
história de sofrimentos num instinto de vingança do povo. A alma dos
pais, que durante séculos sofreram e morreram em silencio, retornou aos
filhos e começou a gritar... Homens fortes e pacientes, até então
extremamente pacíficos, descobriram, finalmente, que havia chegado o
seu grande dia, o grande dia da Providência. A contemplação dos seus
familiares, sem outros recursos a não ser eles próprios - também não
acalmou o coração destes homens. Longe disto, olhando ainda uma vez
para os seus filhos adormecidos - estes filhos cujo destino seria traçado
neste dia - o pensamento destes homens parecia abraçar todas as gerações
livres que se levantariam do seu berço e sentiu, nesta jornada, todo o
combate do futuro. O futuro e o passado deram, os dois, idêntica
resposta; ambos disseram: "Adiante". E aquilo que está fora do tempo,
fora do futuro e do passado, o imutável Direito, repetiu a mesma ordem.
O imortal sentimento de justiça apaziguou o coração atormentado do
homem, dizendo-lhe: 'Vá tranquilo. Não importa o que possa suceder-
te. Morto ou vencedor, eu estou contigo..."(...)
A Bastilha não foi tomada, há que reconhecê-lo; ela se
entregou. Sua má consciência o atordoou, enlouquecendo-a e fazendo
com que perdesse todo o vigor.”
(Jules Michelet.Histoire de la Revolution Française,1833,IV,p. 302)
3.2. "O Espírito (hegeliano), na sua caminhada para a liberdade, pode
ser comparada a um personagem a que acontece perder-se em si mesmo,
na selva magnífica de si próprio, e se afana heroicamente por se
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encontrar. Para tanto, precisa de cair na conta de que existe e tudo o resto
- pedra, astro, ave, homem - não passa de secreção sua, ensaios que vai
realizando para chegar a se tornar consciência de que é e é tudo.(...)
Quando Heine, sem dúvida, ao sair de uma lição de Hegel, perguntava ao
seu cocheiro: 'O que são as Idéias?1, este respondia: 'As ideias?...as ideias
são as coisas que se nos metem na cabeça." Porém o caso é que podemos
mais formalmente dizer que as coisas são as ideias que saem fora da
cabeça e são tomadas por nós como realidades. (...)
(...) O homem não é coisa alguma, mas um drama - sua vida é um puro e
universal acontecimento, que acontece a cada um, e no qual cada um não
é, por sua vez, senão acontecimento. Todas as coisas, sejam quais forem,
são meras interpretações que se esforçam em dar o que encontram. O
homem não encontra coisas, senão que as põe ou as supõe. O que ele
encontra são puras dificuldades e puras facilidades para existir. O
próprio existir não lhe é dado já feito e presenteado como à pedra, mas,
diremos que ao encontrar-se com que existe, ao acontecer-lhe existir, o
único" que encontra ou lhe acontece é não ter outro remédio a não ser
fazer alguma coisa para não deixar de existir. Isso mostra que o modo de
ser da vida, nem sequer como simples existência, é ser já, posto que o
único que nos é dado e que existe quando existe vida humana é o ter que
se virar cada um com a sua. (...)
Sobre essas possibilidades de ser, é importante dizer o que se
segue: a) que também não nos são presenteadas, senão que temos de
inventá-las, seja originalmente, ou por recepção dos demais homens,
inclusive no âmbito de nossas vidas. Cada um inventa projetos de fazer e
de ser, tendo em vista as circunstâncias. É só isso que encontramos e que
nos é dado: a circunstância. Esquecemos excessivamente que o homem é
impossível sem imaginação, sem a capacidade de inventar para si uma fi-
gura de vida, de idear a personagem que vai ser. O homem é o romancista
de si mesmo, original ou plagiário, b) Entre essas possibilidades, temos
que escolher; logo somos livres. Porém, entenda-se bem, livres à força,
tanto se o desejarmos como no caso contrário. A liberdade não e uma
atividade exercida por um ente, o qual além e antes de exercitá-la, possui
um ser fixo. Ser livre quer dizer carecer de identidade consecutiva, não
estar adstrito a um ser determinado, poder ser outro do que era, e não
poder se instalar de uma vez e para sempre em qualquer ser deter-
minado. A única que tem que ser fixa e estável no ser livre é a sua
instabilidade constitutiva. (...)
(José Ortega Y Gasset, História como Sistema, 1941.p.41 e segtes.
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3.3. “As exigências práticas que subjazem a todo juízo histórico dão a
toda história o caráter de ´história contemporânea´, porque, por mais
remotos no tempo que possam parecer os acontecimentos aí relatados, a
história na realidade se refere às necessidades presentes e às situações
presentes em que esses acontecimentos vibram. Suponha-se que eu tenha
de escolher entre realizar ou evitar um ato de expiação e que volte meus
pensamentos para a compreensão do que é ´expiação´, que formas e
transformações sofreu – esse instituto ou sentimento – antes de atingir
uma significação puramente moral. Mesmo o bode expiatório dos hebreus
e todos os numerosos ritos mágicos dos povos primitivos fazem parte do
drama de minha mente nessa ocasião e, na medida em que examino sua
história em minha mente, componho a história da situação em que eu
próprio estou.
De modo semelhante, o estado presente de minha mente constitui o
material e consequentemente a documentação para um juízo histórico, a
documentação viva que carrego em mim. O que usualmente é chamado,
num sentido histórico, documentação, quer escrita, esculpida ou
retratada ou aprisionada em registros de gramofone, ou talvez existente
em objetos naturais, esqueletos ou fósseis, essas coisas não são de fato
documentação, a menos que estimulem e mantenham firme em mim a
lembrança de estado de espíritos que são meus. Para todos os outros
propósitos, permanecem como tintas coloridas, papel, pedra, discos de
metal ou cera e coisas do tipo, sem nenhuma eficácia psíquica. Se não
tenho sentimentos (por mais que sejam inativos) de amor cristão, de
salvação pela fé, de honra cavalheiresca, de radicalismo jacobino ou de
reverência por tradição antiga, em vão percorrerei as páginas dos
evangelhos, ou das epístolas paulinas, ou as epopeias carolíngias, ou os
discursos feitos na Convenção Nacional, ou os poemas, as peças teatrais e
os romances que o século XIX registrou sua nostalgia pela Idade Média.
Os documentos conhecidos especificamente como tais por pesquisadores
parecerão muito pequenos na massa total de documentos, se tivermos em
mente todos os outros documentos em que continuamente nos apoiamos,
como a língua que falamos, os costumes que nos são familiares, a intuição
e o raciocínio que usamos quase por instinto, as experiências que
trazemos como se estivessem em nosso corpo.
(Benedetto Croce. História como História da Liberdade, 1938, capitulo II,
pp.29-30.)
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4. Variantes, continuidades, exemplos e desdobramentos do Materialismo.
4.1. 'Para termos uma ideia justa das operações de que resulta o
pensamento, devemos considerar o cérebro como um órgão particular,
destinado especialmente a produzi-lo, tal como o estômago e os intestinos
se dedicara a operar a digestão, o fígado a filtrar a bile, as parótidas e as
glândulas maxilares e sublinguais a preparar os sucos salivares. As
impressões, ao chegarem ao cérebro, fazem-no entrar em atividade, como
os alimentos, ao caírem no estômago, o excitam à secreção mais
abundante do suco gástrico e aos movimentos que favorecem a sua pró-
pria dissolução. A função própria de um é perceber cada impressão
particular, vincular-lhe símbolos, combinar as diferentes impressões,
compará-las entre si, e daí extrair juízos e decisões; como a função do
outro é agir sobre as substâncias nutritivas, cuja presença o estimula,
dissolvê-las, assimilar os seus sucos à nossa natureza. (...). Nós vemos as
impressões chegarem ao cérebro por intermédio dos nervos: elas
apresentam-se então isoladas e incoerentes. A víscera entra em ação; age
sobre elas: e logo as devolve metamorfoseadas em ideias, que a linguagem
da fisionomia e do gesto ou os sinais da palavra e da escrita manifestaram
exteriormente. Concluímos com a mesma certeza que o cérebro digere de
algum modo as impressões e que realiza organicamente a secreção do
pensamento."
(P.Cabanis, Rapports du physique et du moral de l'Homme,1844.pp.137-
138) .
4.2. " Em todas as épocas da técnica, desde Dédalo ou Hieron de
Alexandria, o homem tem se preocupado com o fato de o engenheiro ser
capaz de apresentar um simulacro operatório de um organismo vivo. Tal
desejo de fabricar e de estudar autômatos foi sempre expresso nos termos
da técnica viva da época. (...) No tempo de Newton, o autômato
transformou-se na caixa de música com movimento de relojoaria, com
pequenas personagens que faziam grotescas piruetas na tampa. No século
XIX o autômato é uma máquina 'térmica aperfeiçoada, que queima
combustível em vez de queimar a glicose dos músculos humanos. Por fim,
o autômato atual abre as portas por meio de células fotoelétricas, ou
aponta um canhão para o local onde o radar referenciou um avião, ou
calcula a solução de uma equação diferencial. (...)
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Os numerosos autômatos do século atual estão adaptados ao mundo
externo, quer pela recepção das impressões, quer pela realização de
tarefas. Contém órgãos sensoriais, efetivadores e o equivalente a um
sistema nervoso capaz de integrar a transferência de informações de uns
para outros. Prestam-se muito bem à descrição em termos de fisiologia. Ë
quase miraculoso que os possamos reunir numa única teoria
simultaneamente com os mecanismos fisiológicos. (...) O autômato
moderno existe na mesma espécie de tempo bergsoniano que o organismo
vivo, e, por consequência, não há nenhuma razão para que o modo
essencial de funcionamento do organismo vivo não seja o mesmo do de
um autômato desse tipo. O vitalismo é vitorioso na medida em que mesmo
os mecanismos correspondam à estrutura temporal do vitalismo; mas
dissemos que a sua vitória significa derrota completa porque, em tudo
quanto tenha relação com a moralidade ou a religião, a nova mecânica é
tão mecânica como a antiga. Chamar ou não materialismo a este ponto de
vista é uma questão de palavras: a ascendência da matéria caracteriza
uma fase da física do século XIX, muito mais da época atual, e o termo
materialismo chegou a não ser mais do que um sinônimo aproximado de
mecanicismo. Com efeito, toda a controvérsia mecanicista-vitalista foi
relegada para o limbo das questões mal postas."
(Norbert Wiener, Cybernetica,1948, trad.por J. Davall).
4.3. “Se você me pedisse para descrever a filosofia que está na ordem do
dia, eu diria que é o dataísmo. Agora temos a capacidade de reunir
enorme quantidade de dados. Essa capacidade acarreta um certo
pressuposto cultural – que tudo o que é mensurável deve ser medido;
que os dados são lentes transparentes e confiáveis que nos permitem
filtrar todo o emocionalismo e a ideologia; que os dados vão nos ajudarão
a fazer coisas importantes, como prever o futuro.(...) A revolução dos
dados nos oferece formidáveis vias de acesso à compreensão do presente e
do passado. Como escreveu Chris Anderson, ’podemos dizer adeus à toda
teoria do comportamento humano, da linguística à sociologia. Podemos
esquecer a taxonomia, a ontologia e a psicologia. Quem sabe por que as
pessoas fazem o que fazem? A questão é que fazem, e podemos rastrear e
medir isso com uma fidelidade sem precedentes. Com dados suficientes,
os números falam por si mesmos.’
(David Brooks, The philosophy of data, New York Times, 2013)
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5. Variantes, re-interpretações, polêmicas e desdobramentos do
marxismo.
5.1. "A investigação da história como processo, como sucessão de
acontecimentos ou "desordem racional", acarreta noções de causalidade,
de contradição, de mediação e da organização (por vezes estruturação) da
vida social, política, econômica e intelectual. Essas elaboradas noções
"pertencem" à teoria histórica, são refinadas dentro dos procedimentos
desta teoria, são pensadas dentro do pensamento. Mas não é verdade que
a teoria pertença apenas à esfera da teoria, (...)Na medida em que uma
noção e endossada pelas evidências, temos então todo o direito de dizer
que ela "existe lá fora", na história real. É claro que não existe realmente,
como um plasma que adere aos fatos, ou como um caroço invisível dentro
da casca das aparências. O que estamos dizendo é que a noção foi posta
em diálogo disciplinado com as evidências, e mostrou-se operacional; isto
é, não foi desconfirmada por evidências contrárias, e que organiza com
êxito, ou "explica", evidências até então inexplicáveis. (...)Não considero a
historiografia marxista como dependente de um corpo geral de
marxismo-como-teoria, localizado em alguma outra parte. Questiono a
noção de que se trate de uma Teoria, que tenha uma Sede, independente
destas práticas: uma Sede textual auto-confirmadora, ou uma Sede na
sabedoria de algum partido marxista, ou numa prática teórica
purificada.(...) Pelo contrário, se há um terreno comum para todas as
praticas marxistas, então ela deve estar onde o próprio Marx o situou, no
materialismo histórico. É este o terreno do qual surge toda a teoria
marxista, e ao qual ela deve, no fim, retornar."
(E.P.Thompson,A Miséria da Teoria, 1978)
5.2. “Se a Filosofia deve ser, ao mesmo tempo, totalização do saber,
método, Ideia reguladora, arma ofensiva e comunidade de linguagem; se
esta 'visão de mundo´ é também um instrumento que trabalha as socieda-
des carcomidas, se esta concepção singular de um homem ou de um grupo
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de homens torna-se a cultura e, por vezes, a natureza de toda uma classe,
fica bem claro que as épocas de criação filosófica são raras. Entre o
século XVII e "o século XX, vejo três que designarei por nomes célebres:
há o "momento1 de Descartes e de Locke, o de Kant e de Hegel' e,
finalmente, o de Marx. Estas três filosofias tornam-se, cada uma por sua
vez, o humo de todo o pensamento particular e o horizonte de toda
cultura, elas são insuperáveis enquanto o momento histórico de que são
expressão não tiver sido superado, já o verifiquei amiúde: um argumento
'antimarxista´ não passa do rejuvenescimento aparente de uma ideia pré-
marxista. Uma pretensa superação'do marxismo será, no pior dos casos,
apenas uma volta ao pré-marxismo e, no melhor, apenas a redescoberta
de um pensamento já contido na filosofia que se acreditou superar.
Quanto ao ´revisionismo', ele é um truísmo ou um absurdo: não tem
sentido readaptar uma filosofia viva ao curso do mundo; ela se lhe adapta
por si mesma através de mil iniciativas, mil pesquisas particulares, pois
não se dissocia do movimento da sociedade. (,..)bSe este movimento da
filosofia não existe mais, das duas uma: ou está morta ou esta 'em crise'.
No primeiro caso, não se trata de revisar mas de lançar por terra um
edifício apodrecido; no segundo caso, a 'crise filosófica' é a expressão
particular de uma crise social e seu imobilismo é condicionado pelas
contradições que dilaceram a sociedade: uma pretensa 'revisão’ efetuada
por 'especialistas’ não passaria, pois, de uma mistificação idealista sem
alcance real; é o próprio movimento da Historia, e a luta dos homens em
todos os planos e em todos os níveis da atividade humana que libertarão o
pensamento cativo e lhe permitirão atingir o seu pleno desenvolvimento."
(Jean-Paul Sartre,Questão de Método,p.11-12)
5.3 "(...)Segundo Marx, a teoria correta é a consciência de uma prática
que visa a mudar o mundo. O conceito de verdade de Marx, está, porém,
longe do relativismo. Há uma só verdade e uma só prática capazes de
realizá-lo. A teoria demonstrou as tendências que trabalham pela
consecução de uma ordem racional de vida, as condições para a criação
desta ordem, e os passos iniciais que devem ser dados. A meta final desta
nova prática social foi formulada: a abolição do trabalho, o emprego de
meios socializados de produção para o livre desenvolvimento de todos os
indivíduos. O resto é tarefa da atividade livre do próprio homem. A teoria
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segue a prática a todo o momento, analisando a situação que se
transforma e formulando seus conceitos de acordo com ela. As condições
concretas de realização da verdade podem variar, mas a verdade
continua a ser a mesma - e a teoria continua a ser sua guardiã última. A
teoria preserva a verdade mesmo se a prática revolucionária se desvia do
seu caminho próprio. A prática segue a verdade, e não a verdade a
prática. Este absolutismo da verdade completa a herança filosófica da
teoria marxista e, de uma vez por todas, separa a teoria dialética das
formas subsequentes de positivismo e relativismo.”
(Herbert Marcuse, Razão e Revolução; Hegel e o advento da teoria social,
trad. Marília Barroso, Rio, Paz e Terra(1978). pp.293.)
5.4. "Enfim, todas estas considerações, nos explicam também porque as
duas concepções filosóficas unilaterais, que são o subjetivismo e o
objetivismo, encontram-se sempre, com suas consequências práticas, não
apenas entre os pensadores burgueses, mas também entre os teóricos e os
militantes do proletariado, onde elas se exprimem, sobretudo, por dois
grandes grupos de correntes políticas: a) o blanquismo, o anarquismo, o
trotskismo, que são a forma operária do subjetivismo idealista da
superestimação do homem e da subestimação das condições objetivas;
b)o stalinismo, o reformismo, o economicismo, as teorias da
espontaneidade, que são a expressão operária do materialismo objetivista
da superestimação das condições objetivas e da subestimação do homem.
E poder-se-ia acrescentar que são os intelectuais e certas camadas
operárias radicalizadas que favorecem o primeiro, e que são as
burocracias dos grandes organismos operários, partidos, sindicatos,
organismos de Estado na U.R.S.S. ou a participação operária nos Estados
capitalistas que, ao contrário, favorecem o segundo. Eis porque, na vida e
na obra de todos os grandes teóricos e chefes políticos do proletariado,
desde Marx até Lenin e o jovem Lukács, encontramos esta luta em duas
frentes: contra as ilusões de esquerda e os oportunismos de direita,
através da qual eles se esforçam por estabelecer, cada vez de novo, o
pensamento dialético... "
Lucien Goldmann, Recherches Dialectiques[l959], Paris, Éditions
Gallimard, (1980), pp.100-101.
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5.5. "O fundamento da história é a relação do homem com os outros
homens, o fato de que o eu individual só existe como pano de fundo da
comunidade. O que procuramos no conhecimento do passado e a mesma
coisa que procuramos no conhecimento dos homens contemporâneos.
Primeiro, as atitudes fundamentais dos indivíduos e dos grupos humanos
em face dos valores, da comunidade e do universo. Se o conhecimento da
história nos apresenta uma importância prática, é porque nela
aprendemos a conhecer os homens que, em condições diferentes e com
meios diferentes, no mais das vezes inaplicáveis à nossa época, lutaram
por valores e ideais, análogos, idênticos ou opostos aos que possuímos
hoje; o que nos dá consciência de fazer parte dum todo que nos
transcende, a que no presente damos continuidade, e que os homens
vindos depois de nós continuarão no porvir. A consciência histórica existe
apenas para uma atitude que ultrapassa o eu individualista, ela é
precisamente um dos principais meios para realizar esta superação. Para
o racionalismo, o passado não é senão um erro cujo conhecimento é útil
para iluminar o progresso da razão; para o empirismo, o passado consiste
numa massa de fatos reais que são, como tais, exatos em relação a um
futuro conjetural; só a atitude dialética pode realizar a síntese,
compreendendo o passado como etapa e caminho necessário e válido para
a ação comum dos homens duma mesma classe no presente, a fim de
realizar uma comunidade humana autêntica e universal no futuro.(...)”
(Lucien Goldmann, Ciências Humanas e Filosofia, 1962) trad. De Lupe
C.Garaude e José Arthur Gianotti.)
5.6. "A conclusão destas aventuras seria, portanto, que a dialética é um
mito? Mas a ilusão foi apenas de precipitar num único evento histórico - o
nascimento e o crescimento do proletariado - a. significação total da
história; de acreditar que a história organizava por si mesma a sua
própria recuperação e que o poder do proletariado estaria na sua própria
supressão - a negação da negação. A ilusão foi de acreditar que o
proletariado portava, em si mesmo, a dialética e que a missão de guindá-
lo ao poder implicava na suspensão provisória de toda apreciação
dialética, paradoxalmente... para colocar a dialética no poder. Foi a ilusão
de fazer o jogo duplo da verdade e da prática autoritária, jogo no qual a
vontade acabou por perder a consciência de sua tarefa revolucionária, e a
verdade parou de controlar as finalidades. Hoje, como há cem anos e
como há trinta e oito anos, continua a ser verdade que ninguém é sujeito e
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ninguém é livre sozinho, que as liberdades se contrariam e se exigem uma
à outra, que a história é a história do seu debate, que se inscreve e que é
visível nas instituições, nas civilizações, na esteira das grandes ações
históricas, que há possibilidade de as compreender, de as situar, senão
num sistema com uma hierarquia exata e definitiva e na perspectiva de
uma sociedade "verdadeira', homogênea, final, ao menos como diferentes
episódios duma única vida, cada um dos quais é uma experiência e pode
passar aos seguintes...0 que envelheceu, portanto, não foi a dialética mas,
a pretensão de encerrá-la num fim da história, ou numa revolução
permanente, num regime que, definindo-se como a contestação de si
mesmo, não tem mais necessidade de ser contestado
externamente...(...)Eis a verdadeira questão: a revolução é um caso limite
do governo ou o fim do governo?(...) Concebe-se no segundo sentido e
pratica-se no primeiro sentido. As revoluções são verdadeiras como
movimentos e falsas como regimes."
(Maurice Merleau-Ponty,Les aventures de Ia Dialectique,1955,pp.300-
302)
5.7 "A ciência reconstrutiva pela qual Habermas tentará desnudar a
lógica interna do mundo-da-vida e da história será uma pragmática
universal, cujo objetivo é reconstruir as estruturas invariáveis de
qualquer situação de conversação concebível. A crença de Habermas é a
de que a linguagem, não importa quão distorcida ou manipuladora, tem
sempre o consenso ou o entendimento como seu telos interno. Falamos
com os outros para ser entendidos, mesmo quando o conteúdo de nossa
enunciação for imperioso ou ofensivo; e se não fosse assim, não nos
daríamos ao trabalho de falar. Em qualquer ato de fala, não importa
quão degradado seja, alguns critérios de validade são implicitamente
colocados e reconhecidos reciprocamente: critérios de verdade, de
inteligibilidade, de sinceridade e de propriedade performativa.(...)
Mas, não estariam estas propostas num nível tão rarefeito de abstração
que perdem qualquer valor efetivo? Será que se pode realmente projetar
ideais políticos a partir de supostas invariáveis e universais estruturas
profundas da conversação?(...) Em Modern Tragedy, Raymond Williams
cita Albert Camus, dizendo que "se o desespero move a fala ou o
pensamento, e acima de tudo, se ele resulta numa obra literária, a
fraternidade se estabelece, objetos naturais são justificados e o amor
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nasce" O pior não acontece, como diz Edgar em King Lear, enquanto
somos capazes de dizer: " aconteceu o pior". De acordo com esta hipótese,
o próprio ato da fala ou do diálogo, não importa quão brutal ou estéril,
carrega consigo um compromisso tácito com a razão, a verdade e o valor,
estabelecendo uma reciprocidade, mesmo a mais terrivelmente desigual,
na qual poderemos vislumbrar a possibilidade da reciprocidade humana
mais completa, e assim as linhas fugazes de uma forma de sociedade
alternativa.(...)
A verdade para Habermas é aquele tipo de proposição que, se as
condições discursivas o permitissem, implicaria um consentimento livre
de qualquer um que entrasse, sem nenhuma espécie de constrangimento,
na discussão; e nesse sentido, a verdade é algo a ser antecipado e que não
pode ser inteiramente assegurado no presente. Só no contexto da
democracia radical, em que as instituições sociais tenham sido
transformadas para assegurar, em princípio, a participação igualitária e
completa de todos na definição dos significados e valores, pode haver
propriamente verdade; e qualquer verdade que cheguemos a negociar
agora, num estado de comunicação desigual, dominadora e
sistematicamente distorcida, se referirá, de algum modo, a esta condição
futura idealizada. Se quisermos conhecer a verdade, temos que mudar
nossa maneira de viver."
Terry Eagleton,A Ideologia da Estética, 1990, trad.Mauro Rego Costa.)
6. Fragmentação dos ismos no século XX/Teoria do conhecimento como
linguagem/Pós-estruturalismo/ Narratividade e Hermenêutica.
6.1. (...)“Como se vê, por sua própria estrutura e sem que haja
necessidade de fazer apelo à substância do conteúdo, o discurso histórico
é essencialmente elaboração ideológica, ou, para ser mais preciso,
imaginário, se é verdade que o imaginário é a linguagem pela qual o
enunciante de um discurso (entidade puramente linguística) ‘preenche’ o
sujeito da enunciação(entidade psicológica ou ideológica). Compreende-se
daí que a noção de fato histórico tenha muitas vezes suscitado, aqui e ali,
certa desconfiança. Já dizia Nietzsche: ‘Não existe fato em si. É sempre
preciso começar por introduzir um sentido para que haja um fato’. A
partir do momento em que a linguagem intervém(e quando não
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interviria?), o fato só pode ser definido de maneira tautológica: o notado
precede do notável, mas o notável não é - desde Heródoto, quando a
palavra perdeu sua acepção mítica - senão aquilo que é digno de
memória, isto é, digno de ser notado. Chega-se assim a esse paradoxo que
pauta toda a pertinência do discurso histórico: o fato nunca tem mais do
que uma existência linguística e, no entanto, tudo se passa como essa
existência não fosse senão a ‘cópia’ pura e simples de uma outra
existência, situada num campo extraestrutural, o ‘real’.”
(Roland Barthes,Le discourse de l´Histoire.,1967)
6.2.
“Como se faz a experiência do mundo? Não é sempre através da
linguagem que nos aproximamos dos fatos e não é a linguagem que pré-
forma todas as possibilidades de interpretar os resultados de nossas
observações? Se é verdade que a linguagem é tão decisiva em nossa
abordagem das coisas, talvez se ache que isso coloca em perigo o valor de
nosso conhecimento do mundo. Mas eu acho que se subestimam nesse
caso as possibilidades da linguagem; o relativismo de que se suspeita ao se
considerar a variedade e a multiplicidade das línguas parece algo muito
fictício. Existe o fenômeno da tradução, sabe-se aprender uma língua
estrangeira, utilizá-la e empregar vários esquematismos linguísticos, e não
se pensa de forma alguma em perder algo ao se mergulhar numa nova
língua. Ao contrário, percebe-se que tudo se torna mais vasto, mais
amplo, que tudo é novo e é por isso que é interessante e instrutivo. A
teoria que permite descrever este resultado é a teoria da hermenêutica.
Isso significa que cada língua oferece a possibilidade de dizer tudo. E é
por isso que cada língua não é absolutamente uma limitação de nossa
experiência e é apenas um intermediário que nos aproxima das coisas.
Decerto é sempre uma aproximação um tanto limitada, mas é possível
mudar de perspectiva, é possível nos aproximarmos de um outro ponto de
vista numa outra língua etc. Por isso o caso da hermenêutica é
fundamental e não se limita a uma questão de metodologia das ciências
humanas. Pois aproximar-se do mundo pela linguagem não é típico das
ciências humanas, mas da situação humana em geral.”
H.G.Gadamer,Verité et Méthode (1960).
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6.3. “A história não está fora do âmbito do poder(...) é produzida apenas
em virtude de múltiplas formas de repressão. Cada sociedade tem (...) sua
‘política geral’ de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz
funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem
distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos; a maneira como se
sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados
para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de
dizer o que funciona como verdadeiro. (...) Por ‘verdade’ não quero dizer
‘o conjunto das coisas verdadeiras segundo os quais se distingue o
verdadeiro do falso e das regras se atribui ao verdadeiro efeitos
específicos de poder’, entendendo-se também que não se trata de um
combate ‘em prol’ da verdade, mas em torno do estatuto da verdade e do
papel econômico e político que ele desempenha.
A ‘verdade’ deve ser entendida como um conjunto de procedimentos
regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o
funcionamento dos enunciados. A ‘verdade’ está ligada a sistemas de
poder, que a produzem e a sustentam. (...) Um ‘Regime de Verdade”.
(Michel Foucault, La Verité et le pouvoir, 1978)
6.4.“A palavra pós-modernismo refere-se em geral a uma forma de
cultura contemporânea, enquanto o termo pós-modernidade alude a um
período histórico específico. Pós-modernidade é uma linha de pensamento
que questiona as noções clássicas de verdade, razão, identidade e
objetividade, a ideia de progresso ou emancipação universal, os sistemas
únicos, as grandes narrativas ou os fundamentos definitivos de
explicação. Contrariando essas normas do iluminismo, vê o mundo com
contingente, gratuito, diverso, instável, imprevisível, um conjunto de
culturas ou interpretações desunificadas gerando um certo grau de
ceticismo em relação à objetividade da verdade, da história e das normas,
em relação às idiossincrasias e a coerência das identidades. Essa maneira
de ver, como sustentam alguns, baseia-se em circunstâncias concretas: ela
emerge da mudança histórica ocorrida no Ocidente para uma nova forma
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de capitalismo - para o mundo efêmero e descentralizado da tecnologia,
do consumismo e da indústria cultural, no qual as indústrias de serviços,
finanças e informação triunfam sobre a produção tradicional, e a política
clássica de classes cede terreno a uma série difusa de ‘políticas de
identidade’. Pós-modernismo é um estilo de cultura que reflete um pouco
essa mudança memorável por meio de uma arte superficial, descentrada,
infundada, auto-reflexiva, divertida, caudatária, eclética e pluralista, que
obscurece as fronteiras entre a cultura ‘elitista’ e a cultura ‘popular’,
bem como entre a arte e a experiência cotidiana. O quão dominante ou
disseminada se mostra essa cultura - se tem acolhimento geral ou
constitui apenas uma campo restrito da vida contemporânea - é objeto de
controvérsia. (...) Com a devida vênia a Hegel, pareceria agora que o real
é irracional, e o racional, irreal.”
(Terry Eagleton,The illusions of Postmodernism,1996)
6.5. “Atualmente, a História tem uma oportunidade de se valer das novas
perspectivas sobre o mundo oferecidas por uma ciência dinâmica e por
uma arte igualmente dinâmica. Tanto a ciência como a arte
transcenderam as concepções mais antigas e estáveis do mundo que
exigiam que elas expressassem uma cópia literal de uma realidade
presumivelmente estática. E ambas descobriram o caráter essencialmente
provisório das construções metafóricas de que se valem para
compreender um universo dinâmico. Por isso, afirma implicitamente a
verdade proclamada por Camus quando escreveu: ‘Antes, tratava-se de
descobrir se a vida devia ou não ter um sentido para ser vivida. Agora se
torna claro, pelo contrário, que ela será mais bem vivida se não tiver
nenhum sentido.’ Poderíamos retificar a afirmação para ler: ela será mais
bem vivida se não tiver um sentido único, mas muitos sentidos diferentes.
(...)
O historiador não presta nenhum bom serviço quando elabora uma
continuidade especiosa entre o mundo atual e o mundo que o antecedeu.
Ao contrário, precisamos de uma História que nos eduque para a
descontinuidade de um modo como nunca se fez antes; pois a
descontinuidade, a ruptura e o caos são o nosso destino. Se, como disse
Nietzsche, ‘temos a arte para não precisar morrer de verdade’, temos
também a verdade para escapar à sedução de um mundo que não passa
de uma criação dos nossos meios. A História é capaz de prover uma base
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em que possamos buscar aquela ‘transparência impossível’ que Camus
exige para a humanidade ensandecida de sua época. Só uma consciência
histórica pura pode de fato desafiar o mundo a cada segundo, pois
somente a história serve de mediadora entre o que é e o que os homens
acham que deveria ser, exercendo um efeito verdadeiramente
humanizador. Mas a história só pode servir para humanizar a
experiência se permanecer sensível ao mundo mais geral do pensamento e
da ação do qual procede e ao qual retorna. E, enquanto se recusar a usar
os olhos que tanto a arte moderna quanto a ciência moderna lhe podem
dar, ela haverá de permanecer cega - cidadã de um mundo em que ‘as
pálidas sombras da memória em vão se debatem com a vida e com a
liberdade do tempo presente.”
(Hayden White,The burden of History, History and Theory,1966)
6.6. “A partir da afirmação, absolutamente fundamentada, de que toda
história, qualquer que seja ela, é sempre uma narrativa organizada com
base em figuras e fórmulas que as narrações imaginárias mobilizam,
alguns concluíram pela anulação de qualquer distinção possível entre
ficção e história, já que esta é, e não passa de, uma ‘fiction-making
operation’, segundo a expressão de Hayden White. A história não traz
mais (nem menos) um conhecimento verdadeiro do real do que o faz um
romance, é absolutamente ilusório querer classificar e hierarquizar as
obras dos historiadores em função de critérios epistemológicos indicando
sua maior ou menor pertinência para dar conta da realidade passada que
é seu objeto.(...) Contra uma tal abordagem ou um tal desvio, é preciso
lembrar que a ambição de conhecimento é constitutiva da própria
intencionalidade histórica. Ela funda as operações específicas da
disciplina: construção e tratamento dos dados, produção de hipóteses,
crítica e verificação de resultados, validação da adequação entre o
discurso do conhecimento e seu objeto. (...)Entretanto, não é, ou não é
mais, possível pensar o conhecimento histórico, instalado na ordem do
verdadeiro, nas categorias do ‘paradigma galileano’, matemático e
dedutivo. O caminho é forçosamente estreito para quem pretende
recusar, ao mesmo tempo, a redução da história a uma atividade literária
de simples curiosidade, livre e aleatória, e a definição de sua cientificidade
a partir unicamente do modelo de conhecimento do mundo físico. (...) [A
História] é uma prática científica, produtora de conhecimentos, mas uma
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prática cujas modalidades dependem das variações dos seus
procedimentos técnicos, dos constrangimentos que lhe impõem o lugar
social e a instituição de saber onde ela é exercida, ou ainda das regras que
necessariamente comandam a sua escrita. O que também pode ser dito de
maneira inversa: a História é um discurso que aciona construções,
composições e figuras que são as mesmas da escrita narrativa, portanto
da ficção, mas é um discurso que, ao mesmo tempo, produz um corpo de
enunciados científicos, se entendemos por isso, com Michel de Certeau, ‘a
possibilidade de estabelecer um conjunto de regras que permitem
controlar operações proporcionais à produção de objetos determinados’.”
(Roger Chartier, “A História hoje:dúvidas,desafios, propostas”, 1994)
6.7 (...) “Nosso objetivo dificilmente pode ser o de converter a história em
uma ‘ciência’ - em um corpo de conhecimentos e métodos, cerrado e auto-
suficiente, que se cultiva para si mesmo - mas, sim, pelo contrário, o de
arrancá-la à fossilização cientificista para voltar à convertê-la numa
‘técnica’: num instrumento para a tarefa da mudança social. (...) É
necessário re-politizar nosso exame do presente...(...)É necessário
reconstruir a imagem global da sociedade, como propôs um dia o
materialismo histórico, porém não para fabricar um caleidoscópio de
aspectos diversos, mas sim para centrar toda essa diversidade em torno
do que é fundamental: os mecanismos que asseguram a exploração de uns
homens por outros, e que não só atuam através de regulamentações do
trabalho ou do salário, nem se fundamentam só em elementos coercitivos
físicos, mas que impregnam toda a nossa vida, nossas formas de
compreender a sociedade, a família, o homem e a cultura. E também,
logicamente, nossa forma de pensar a história, inclusive a supostamente
‘progressista’.(...) A superação da crise não pode basear-se na negação
global do anterior e a sua apressada substituição por achados pontuais,
que só respondem a uma pequena parte dos nossos problemas como
historiadores, mas sim que exige um esforço sério para recuperar, ao
mesmo tempo, alguns fundamentos teóricos e metodológicos sólidos, e,
sobretudo, o contato com os problemas reais dos homens e mulheres do
nosso tempo, dos quais as tendências pós-modernas nos
distanciaram.(...)Isso explica também a preocupação para convencer-nos
hoje de que não há mais futuros a explorar, porque estamos no fim da
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história. O que não é verdade. Porque nunca é o fim da história, somente
que sempre nos encontramos no fim de uma história e no começo de outra
ou de outras cujo curso não podemos predizer com nenhum método, por
refinado e científico que seja, não só pela complexidade da previsão, como
também porque a trajetória do porvir dependerá do que entre todos nós
queiramos e saibamos fazer. Esse caráter imprevisível do futuro tem sido,
como já disse, a origem de boa parte de nosso desânimo e do nosso
desconserto. Não deve ser assim, mas sim que temos de aprender a
construir com ele uma esperança que nos anime, neste tempo em que se
generalizou uma nova série de profecias, negativas e sombrias, com o
objetivo de recobrar a confiança em que, como disse uma poeta da minha
terra, ‘tudo está por fazer e tudo é possível’.”
(Josep Fontana, Historia: analisis del pasado y pryecto social, 1982,epílogo}
6.8. (...) “Ora, é claro que o grupo de disciplinas que chamamos de
indiciárias não entra absolutamente nos critérios de cientificidade
dedutíveis do paradigma galileano. Trata-se, de fato, de disciplinas
eminentemente qualitativas, que têm por objeto casos, situações e
documentos individuais, enquanto individuais, e justamente por isso
alcançam resultados que têm uma margem não eliminável de
casualidade: basta pensar no peso das conjecturas( o próprio termo é de
origem latina adivinhação) na medicina ou na filologia, além da própria
arte adivinhatória. A ciência galileana tinha uma natureza totalmente
diversa, que poderia adotar o lema escolástico individuum est ineffabile,
do que é individual não se pode falar. O emprego da matemática e o
método experimental, de fato, implicavam respectivamente a
quantificação e a repetibilidade dos fenômenos, enquanto a perspectiva
individualizante excluía por definição a segunda, e admitia a primeira
apenas em funções auxiliares. Tudo isso explica por que a História nunca
conseguiu se tornar uma ciência galileana.(...) Esse ponto de partida
permaneceu inalterado, não obstante as relações sempre mais estreitas
que ligam a história às ciências sociais. A história se manteve como uma
ciência social sui generis, irremediavelmente ligada ao concreto. Mesmo
que o historiador não possa deixar de se referir, explícita ou
implicitamente, a séries de fenômenos comparáveis, a sua estratégia
cognoscitiva assim como os seus códigos expressivos permanecem
intrinsecamente individualizantes (mesmo que o indivíduo seja talvez um
grupo social ou uma sociedade inteira). Nesse sentido, a História é como a
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medicina, que usa as classificações de doenças para analisar, por indícios,
a enfermidade de um determinado paciente. E como o do médico, o
conhecimento histórico é indireto, baseado em signos e fragmentos de
evidências, indiciário, conjectural.”
(Carlo Ginzburg,Chaves do mistério: Morelli,Freud e Sherlock Holmes IN
O signo de três,1979)
6.9. “O fardo da história pesa sobre os historiadores porque estes, no
fundo, se recusam a admitir a franqueza, a desordem e a natureza
incontrolável do passado.(...) Os historiadores despojaram a história do
tipo de falta de significação que pode provocar os seres humanos
contemporâneos a tornar sua vida diferente para si mesmos e seus filhos,
ou seja, dotar a própria vida de um significado pelo qual, eles sozinhos,
tenha inteira responsabilidade. Ninguém jamais pode mudar com alguma
convicção politicamente eficaz da apreensão da ´forma como as coisas de
fato são ou foram´ para o tipo de insistência moral de que ´deveria ser o
contrário´- sem passar por um sentimento de repugnância ou um
julgamento negativo a respeito da situação que deve ser suplantada. E
precisamente porque a reflexão histórica é educada para compreender a
história de tal maneira que possa perdoar qualquer coisa ou, na melhor
das hipóteses, praticar um tipo de ´interesse desinteressado´ (...) ela está
afastada de qualquer conexão com uma política visionária e consignada a
uma atividade que sempre será antiutópica por natureza.(...) Mesmo o
marxismo é antiutópico, pois admite que a história é totalmente
compreensível. (...) Hoje, por exemplo, ninguém se satisfaz com enfoques
convencionais sobre o Holocausto e as modernas reivindicações sionistas
ou palestinas. Necessitamos de uma historiografia na qual sejamos
confrontados com o horror e o caos do passado. Isso fará com que nós nos
determinemos a tornar a vida diferente para nós mesmos e para as
gerações futuras. Talvez esta seja a única maneira de nos libertarmo-nos
do fardo da história.”
(Hayden White, The polítics of historical interpretation IN The content of
the form; narrative discourse and historical representation. 1989, pp.72-
80. )
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6.10. “Gostaríamos de explicar o movimento da consciência histórica que
anteriormente mencionamos, através de uma imagem. Comparemos a
história com uma árvore. Na tradição essencialista da historiografia
ocidental, os historiadores centraram sua atenção para o tronco da
árvore. Supostamente, este foi o caso dos sistemas especulativos: eles
definiram, por assim dizer, a forma e a natureza do tronco. O historismo
e as formas científicas da historiografia moderna - com suas ênfases
elogiáveis naquilo que de fato aconteceu no passado e sua pouca
receptividade aos esquemas apriorísticos – estariam situados nos galhos e
ramos da árvore - embora sua atenção estivesse também centrada no
tronco. Da mesma maneira que os seus predecessores especulativos, tanto
os historistas quanto os defensores do escrito histórico científico sempre
acalentaram a esperança e a pretensão de, em última instância, ainda
dizer algo a respeito do tronco. Neste aspecto, são significativos os
estreitos laços entre a chamada história social cientifica e o marxismo. De
qualquer forma, seja no plano ontológico, epistemológico ou metodológico
– desde o historismo, a historiografia sempre se aplicou em reconstruir a
linha essencialista que corre através do passado. Pela primeira vez, a
vertente historiográfica pós-moderna pretende romper com esta tradição
secular de essencialismo. A escolha já não recai no tronco, nem nos galhos
– e, sim, nas folhas da árvore. Segundo a visão pós-moderna, o objetivo já
não é mais a integração, síntese ou totalidade do passado, mas a busca dos
fragmentos históricos que sobreviveram. (...)Como sugeri, tenho razões
para supor que nossa relação com o passado (e nossa compreensão do
mesmo) terá, no futuro, uma natureza mais metafórica do que literal. O
que quero dizer é o seguinte: a frase literal – “esta mesa tem um
comprimento de dois metros” – dirige nossa atenção a uma situação
particular, fora daquilo que a própria linguagem exprime. Já numa
expressão metafórica como “a história é uma árvore sem tronco”, nossa
atenção se desloca para aquilo que acontece entre as meras palavras
história e arvore sem tronco. Segundo a visão pós-moderna, o centro de
atenção já não é para o passado em si mesmo, mas para a incongruência
entre presente e passado, entre a linguagem que empregamos agora para
falar acerca do passado e o passado mesmo. Já não há uma linha que
corre através da história que seja capaz de neutralizar tal incongruência.
Isto explica a atenção ao detalhe de aparência incongruente,
surpreendente ou perturbador que Freud, em seu ensaio sobre o
“ominoso”, definiu como “tudo aquilo que foi destinado a permanecer
oculto, em segredo e veio à luz”: em síntese, atenção a tudo aquilo que não
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tinha importância ou significado para a historiografia com pretensões
científicas.” (...)
Se estamos de acordo com a aplicabilidade do insight pós-
modernista na historiografia, eu gostaria de esboçar certas conclusões.
Para o modernista, dentro de uma perspectiva científica, dentro de uma
visão de história que nós inicialmente aceitamos, a evidência é, em
essência, a evidência de que alguma coisa aconteceu no passado. O
historiador modernista segue uma linha de raciocínio a partir de suas
fontes e evidências até uma realidade escondida por trás das fontes. Por
outro lado, na visão pós-modernista, a evidência não aponta para o
passado, mas para outras interpretações do passado; para isso é que nós,
de fato, usamos a evidência. Para expressar isto através de uma imagem:
para o modernista, a evidência é uma lajota que ele pega para ver o que
está embaixo dela; para o pós-modernista, por outro lado, é uma lajota na
qual ele pisa para se deslocar para outras lajotas: horizontalidade ao
invés de verticalidade”
F.R.Ankersmit, History and Tropology; the rise and fall of Metaphor,
1994.
6.11. “Num ensaio publicado em History and Theory, F.R. Ankersmit,
estudioso holandês de teoria da historiografia, sustentou a que a
tendência a concentrar a atenção nos fragmentos, em vez de em conjuntos
mais vastos, é a expressão típica da “historiografia pós-moderna”. Para
esclarecer seu ponto de vista, Ankersmit serviu-se de uma metáfora
vegetal (que, na verdade remonta à Namier e, talvez, a Tólstoi). No
passado, os historiadores se ocupavam do tronco da árvore ou dos galhos;
seus sucessores pós-modernos se ocupam apenas das folhas, ou seja, de
fragmentos minúsculos do passado que investigam de maneira isolada,
independentemente do contexto mais ou menos amplo (os galhos, o
tronco) de que faziam parte. Ankersmit, que adere às posições céticas
formuladas por Hayden White no início dos anos 70, vê com muita
simpatia essa virada na direção do fragmento. Ela exprime, a seu ver,
uma atitude antiessencialista ou antifundacionalista que traz à luz a
natureza “essencialmente pós-moderna da historiografia”: uma atividade
de tipo artístico, que produz narrações incomensuráveis entre si. A
ambição de conhecer o passado está superada: o significado dos
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fragmentos é buscado no presente, no mundo ´em que a sua configuração
pode ser adaptada a formas de civilidade existentes no dia de hoje.´ (...)
Na última década, Giovanni Levi e eu polemizamos repetidas vezes contra
as posições relativistas, dentre elas a que reduz a historiografia a uma
dimensão textual, privando-a de qualquer valor cognitivo, e que
Ankersmit faz sua calorosamente. (...) A atitude experimental que
aglutinou, no fim dos anos 70, o grupo de estudiosos italianos de micro-
história baseava-se na aguda consciência de que todas as fases que
marcam as pesquisas são construídas e não dadas. Todas: a identificação
do objeto e da sua relevância; a elaboração das categorias pelas quais ele
é analisado; os critérios de evidência; os modelos estilísticos e narrativos
por meio dos quais os resultados são transmitidos ao leitor. Mas essa
acentuação do momento construtivo inerente à pesquisa se unia a uma
rejeição explícita das implicações céticas (pós-modernas, se quiserem) tão
largamente presentes na historiografia europeia e americana dos anos 80
e início dos 90. (...) O que unifica programaticamente todas essas
pesquisas é a insistência no contexto, ou seja, exatamente o contrário da
contemplação isolada do fragmento, elogiada por Ankersmit. (..) Um
objeto histórico pode ser escolhido por ser típico ou por ser repetitivo e,
por isso, serializável. As pesquisas micro-históricas italianas enfrentaram
a questão da comparação de uma forma diferente e, em certo sentido,
oposta: através da anomalia e não através da analogia. Antes de tudo,
supondo como potencialmente mais rica a documentação mais
improvável: a exceção normal evocada por Edoardo Grendi como essa
expressão que se tornou merecidamente famosa. Em segundo lugar,
mostrando que toda configuração social é o resultado da interação de
incontáveis estratégias individuais: um emaranhado que somente a
observação próxima possibilita reconstituir. (...) Hoje a insistência na
dimensão narrativa da historiografia se faz acompanhar de atitudes
relativistas, que tendem a anular de fato qualquer distinção entre ficção e
história, entre narrações fantásticas e narrações com pretensões de
verdade. Contra essas tendências, ressalte-se, ao contrário, que uma
maior consciência da dimensão narrativa não implica uma acentuação
das possibilidades cognitivas da historiografia, mas, ao contrário, a sua
intensificação. É precisamente a partir daqui, portanto, que deverá
começar uma crítica radical da linguagem historiográfica de que, por ora,
só temos algumas referências.”
Carlo Ginzburg, O fio e os rastros; verdadeiro, falso, fictício. 2007,
excertos das pp. 274-278 e 329.
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