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TEORIA CRÍTICA NA ERA DA INDÚSTRIA CULTURAL. ou UMA ANÁLISE DA DERROTA DO ESCLARECIMENTO. Por Marianna Waltz Dissertação de Mestrado em Semiologia apresentada à Coordenação de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientador: Professor Doutor André Luiz de Lima Bueno. Universidade Federal do Rio de Janeiro 2006

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TEORIA CRÍTICA NA ERA DA INDÚSTRIA CULTURAL.

ou

UMA ANÁLISE DA DERROTA DO ESCLARECIMENTO.

Por Marianna Waltz

Dissertação de Mestrado em Semiologia apresentada à Coordenação de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientador: Professor Doutor André Luiz de Lima Bueno.

Universidade Federal do Rio de Janeiro 2006

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SILVA, Marianna Waltz Moreira. Teoria Crítica na Era da Indústria Cultura. Ou: Uma Análise da Derrota do Esclarecimento. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006.

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________ Professor Doutor André Luiz de Lima Bueno, UFRJ (Orientador)

__________________________________________ Professor Doutor Luís Alberto Nogueira Alves, UFRJ

__________________________________________ Professor Doutor Victor Lemus, UFRJ

Defendida a Dissertação:

Conceito:

Rio de Janeiro, ___ / ___ / 2006.

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RESUMO

SILVA, Marianna Waltz Moreira. Teoria Crítica na Era da Indústria Cultura. Ou: Uma Análise da

Derrota do Esclarecimento. Rio de Janeiro, 2006. Dissertação (Mestrado em Ciência da Literatura –

Área Semiologia)- Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.

Este trabalho tem o objetivo analisar a teoria crítica da sociedade e o pensamento dos intelectuais da

Escola de Frankfurt – Adorno, Horkheimer, Marcuse e Benjamin –, com foco no desenvolvimento da

sociedade capitalista industrial e de sua razão tecnológica, assim como no crescente aperfeiçoamento dos

mecanismos da Indústria Cultural. O texto avalia a percepção dos autores sobre a tecnologia e a arte e

sobre questões como o fetiche da mercadoria, o estabelecimento da divisão entre horas de trabalho e lazer,

os mecanismos de manipulação dos indivíduos, a falsa democracia das massas, entre outras. Capítulo a

capítulo é possível acompanhar as motivações para o pessimismo que caracteriza a fase final da teoria de

Frankfurt e que também a torna alvo de suas maiores críticas.

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ABSTRACT

SILVA, Marianna Waltz Moreira. Teoria Crítica na Era da Indústria Cultural. Ou: Uma Análise da

Derrota do Esclarecimento. Rio de Janeiro, 2006. Dissertação (Mestrado em Ciência da Literatura –

Área Semiologia)- Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.

In this work we intend to analyse the Critical Theory and the thought of the Frankfurt School members –

Adorno, Horkheimer, Marcuse e Benjamin -, focusing mainly the development of the industrial society

and its technological reason, so as the growing power of the Culture Industry mechanisms. The text also

examine their perception over technology and art, and over questions as commodity fetishism, the division

between labour and holiday hours, masses manipulation and false democracy. Chapter by chapter it´s

possible to verify the progress in the pessimism, which characterizes the frankfurtians last phase.

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AGRADECIMENTOS

Ao Alexandre, que além de ignorar comigo o sol na janela por vários finais de semana, ainda compartilhou a leitura de quase toda a bibliografia e criou interesse especial pelo tema. A meus pais, pelo constante estímulo ao meu auto-desenvolvimento. A meus amigos, por me receberem sempre de braços abertos após os constantes períodos de ausência. Ao André Bueno, não apenas pelo empréstimo valioso – e impagável - de conhecimento, mas também pela extrema paciência com meus horários apertados. Ao Banco do Brasil, que, ao permitir que me ausentasse para assistir às aulas, viabilizou a concretização deste projeto.

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Sumário __________________________________________________________________________________________________________

Introdução ..................................................................................................................................... 4 1. Esclarecimento e Indústria Cultural ........................................................................................7 1.1. A atrofia da razão ...................................................................................................................7 1.2. A Indústria Cultural ............................................................................................................. 13 2. A Escola de Frankfurt .......................................................................................................... 17 3. Pensamento frankfurtiano .................................................................................................... 23 3.1. Capitalismo: o primeiro inimigo ......................................................................................... 23 3.2. O mundo da mercadoria ...................................................................................................... 27 3.3. Fácil manipulação ................................................................................................................ 30 3.4. Falsa democracia de massas ................................................................................................ 35 3.5. De Marcuse a Freud: possibilidade de felicidade na organização social ............................ 37 4. Tecnologia e Arte ................................................................................................................ 44 4.1. Tecnologia: de aliada a traidora .......................................................................................... 44 4.1.1. O “integrado” Benjamin ................................................................................................... 49 4.2. Arte: ruína ou felicidade? .................................................................................................... 54 4.2.1. Marcuse: arte como promessa de felicidade ..................................................................... 56 4.2.2. Estilo e harmonia, arte e confronto com a tradição .......................................................... 58 4.2.3. Arte na cultura de massas ................................................................................................. 63 4.2.4. O ponto de vista de Benjamin .......................................................................................... 64

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4.2.5. Adorno x Debord .............................................................................................................. 68 5. Debord e o Espetáculo .... .................................................................................................... 73 5.1. Debord – apoio e contraponto ............................................................................................. 73 5.2. Teoria Social ........................................................................................................................ 75 5.3. Características da Sociedade do Espetáculo ........................................................................ 78 5.4. Razão tecnológica ................................................................................................................ 80 5.5. O fim da experiência vivida ................................................................................................ 81 5.6. Alienação e mundo da mercadoria ...................................................................................... 83 6. O Desencantamento ............................................................................................................. 85 6.1. Marcuse: Eros e Civilização fica para trás .......................................................................... 87 6.2. Radicalismo e Limitações .................................................................................................... 93 6.2.1. Grande Recusa .................................................................................................................. 94 6.2.2. Dialética Negativa ............................................................................................................ 95 7. Crítica Atual ........................................................................................................................ 98 7.1. A influência de Frankfurt .................................................................................................... 98 7.2. O dialético Habermas ........................................................................................................ 101 7.3. O radical Debord ............................................................................................................... 105 7.4. O integrado Eco ................................................................................................................. 107 Conclusão ................................................................................................................................. 117 Referências ............................................................................................................................... 121

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Introdução __________________________________________________________________________________________________________

O que nos propuséramos era, de fato, nada menos do que descobrir por que a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie. (ADORNO, 1985, p.11)

A citação acima, extraída da Dialética do Esclarecimento de Adorno e

Horkheimer, reflete a preocupação dos autores com o desenvolvimento da sociedade

capitalista industrial e de sua razão tecnológica, assim como com o crescente

aperfeiçoamento dos mecanismos da Indústria Cultural.

O texto foi escrito em 1947, quando começavam os primeiros indícios de que a

mudança qualitativa imaginada até então havia sofrido um retrocesso: o caminho de

emancipação que deveria ser trilhado pela ciência positiva estava se transformando em

uma mudança de amarras. Ao invés de estarem presos aos mitos medievais, os

indivíduos foram atados ao esquematismo do pensamento tecnológico, às leis do

trabalho e à mediocridade da comunicação de massas.

Com esse prólogo em mente, o objetivo deste trabalho é a análise do pensamento

dos intelectuais da Escola de Frankfurt – Adorno, Horkheimer, Marcuse e Benjamin -,

cujo foco está exatamente na abordagem desses temas à luz de uma teoria crítica da

sociedade. O grupo alia vários campos do conhecimento humano – filosofia, sociologia,

economia, psicologia, comunicação, arte – e tem como meta, em última instância,

buscar os meios para a construção de uma sociedade madura, liberta de mitos e,

consequentemente, feliz. A felicidade – por menos usual que isso soe hoje em dia - era

o objeto final dos frankfurtianos.

Os intelectuais de Frankfurt possuíam base marxista, mas sua teoria se constituía

em oposição ao marxismo oficial e dogmático da antiga União Soviética. Os primeiros

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textos do grupo ainda mostram alguma confiança na derrubada do capitalismo e na

instauração de uma sociedade ideal. Pouco a pouco, no entanto, deixam de considerar a

opção revolucionária e as possibilidades de mudanças estruturais no sistema. O tom dos

textos fica mais duro e pessimista, passagem que fica clara ao compararmos por

exemplo Eros e Civilização e Ideologia da Sociedade Industrial de Marcuse.

Sendo assim, nos três primeiros capítulos realizamos a conceituação da Indústria

Cultural e mostramos a sua relação com a sociedade capitalista e com a tecnologia.

Vemos como os conceitos se misturam: a tecnologia permitiu o desenvolvimento dos

meios de comunicação de massa, que por sua vez a legitimam. A Indústria Cultural é,

ao mesmo tempo, ferramenta de perpetuação do capitalismo e sua principal porta-voz.

Nesta etapa, apresentamos a visão desses intelectuais sobre o capitalismo industrial

avançado e sobre questões como o fetiche da mercadoria, o estabelecimento da divisão

entre horas de trabalho e lazer, os mecanismos de manipulação dos indivíduos, a falsa

democracia das massas, entre outros.

Os frankfurtianos também são responsáveis por análises bastante aprofundadas

da tecnologia e da arte, como mostraremos no capítulo quatro. A primeira é tida ora

como aliada, ora como inimiga. Em um primeiro momento, a proximidade de Marx faz

com que seja vista como essencial para o combate à escassez. Posteriormente passou a

ser compreendida como viabilizadora da Indústria Cultural e aliada do sistema vigente,

contribuindo para seu reforço e perpetuação. A arte, por sua vez, assume diferentes

papéis: mera contemplação, protesto político ou até mesmo caminho para a felicidade.

Apesar de não pertencer ou estar relacionado à Escola de Frankfurt, dedicamos o

capítulo cinco à visão de Guy Debord sobre as mesmas questões apontadas pelos

intelectuais frankfurtianos. Em A Sociedade do Espetáculo, observamos que Debord

tem um diagnóstico parecido, mas assume um viés mais prático e revolucionário,

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ratificado por sua participação no movimento estudantil de maio de 1968. Seu

pensamento serve como um contraponto mais radical aos problemas levantados pelo

grupo.

Finalmente, no capítulo seis apontamos o recrudescimento da atitude negativa

que caracteriza a fase final da teoria de Frankfurt e que também a torna alvo de suas

maiores críticas. Ao não vislumbrar a possibilidade de concretização prática de suas

idéias, os frankfurtianos recusam-se a abrir diálogo com o sistema e assumem posturas

pessimistas, como a evidenciada na Grande Recusa de Marcuse, ou buscam alternativas

a exemplo da Teoria Estética de Adorno.

Assim, chegamos ao capítulo sete, que é dedicado ao que chamamos de crítica

atual. Os autores de Frankfurt nunca foram tão lidos, mas pesam sobre seus trabalhos

uma série de críticas, relacionadas sobretudo ao pessimismo, ao imobilismo prático e,

muitas vezes, ao utopismo de suas idéias. Nele relacionamos as visões de Jürgen

Habermas, Guy Debord (ao final da década de 80) e de Umberto Eco.

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1 - Esclarecimento e Indústria Cultural __________________________________________________________________________________________________________

Chegara mesmo ao ponto de pensar que a escuridão em que os cegos viviam não era, afinal, senão a simples ausência de luz, que o que chamamos de cegueira era algo que se limitava a cobrir a aparência dos seres e das coisas, deixando-os intactos por trás do seu véu negro. Agora, pelo contrário, ei-lo que se encontrava mergulhado numa brancura tão luminosa, tão total, que devorava, mais do que absorvia, não só as cores, mas as próprias coisas e seres, tornando-os, por essa maneira, duplamente invisíveis.1

Abramos os olhos, Não podemos, estamos cegos, disse o médico, É uma grande verdade a que diz que o pior cego foi aquele que não quis ver, mas eu quero ver, disse a rapariga dos óculos escuros, Não será por isso que verás, a única diferença era que deixarias de ser a pior cega (...). 2

1.1. A atrofia da razão

A sociedade atual é irremediavelmente o lar da Indústria Cultural. Tudo tem

preço e objetivo de mercado. Tudo parece seguir um padrão preestabelecido. É certo

que palavras, roupas, hábitos alimentares e sentimentos sempre foram mais ou menos

determinados pela cultura, mas o que se observa atualmente é uma catalogação

dinâmica e artificial de tipos, estabelecidos de acordo com interesses econômicos ou,

muitas vezes, apenas identificados e potencializados por eles.

Em algumas décadas, a possibilidade de estar ou não inserido na sociedade de

massas deixou de existir. As diferenças são prontamente inseridas, rotuladas e

transformadas em novas mercadorias. Até mesmo as questões existenciais foram

catalogadas e devidamente respondidas através de alguns produtos culturais, como os

livros de auto-ajuda, por exemplo. A discussão sobre a melhor maneira de acabar com o

sistema também perdeu completamente o sentido: depois das derrotas socialistas e da

total perda de esperança em uma “revolução proletária” – até o termo parece fora de

1 - Saramago, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo, Companhia das Letras, 1995.

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propósito hoje em dia -, a sociedade capitalista industrial só pode ser vista e analisada

do lado de dentro.

Quando isso ocorre, verifica-se que, apesar do desenvolvimento técnico, o

esclarecimento nunca esteve tão distante. A quantidade de opções e informações

disponíveis não representa uma democratização ou um aumento do nível cultural dos

indivíduos, mas um barateamento da cultura, uma caricatura do esclarecimento. Da

mesma forma, o progresso material foi desigualmente distribuído e beneficia sobretudo

aos países desenvolvidos.

Assim como no livro de Saramago, o mundo contemporâneo é tomado por uma

espécie de cegueira branca: a que ofusca pelo excesso; onde a falta é conseqüência

direta da abundância. O processo que levou à cegueira atual foi detectado por Adorno e

Horkheimer e descrito com precisão em a Dialética do Esclarecimento. Em meio ao

exílio nos Estados Unidos, os autores judeus-alemães puderam conhecer de perto a

sociedade industrial de massas em seu estágio inicial de desenvolvimento. E não

gostaram do que viram.

Até então, ambos haviam mantido a confiança na razão crítica, que conseguiria

se impor cedo ou tarde em acompanhamento ao progresso da humanidade. Adorno e

Horkheimer acreditavam que, “apesar dos percalços e retrocessos, a humanidade

chegaria, em última instância, a realizar a promessa humanística, contida na concepção

kantiana da razão libertadora. A razão acabaria por realizar-se concomitantemente com

a liberdade, a autonomia e o fim do reino da necessidade.”3

Essa verdadeira razão crítica, que se opõe à razão instrumental, vem do

esclarecimento, que pode ser definido como o “processo de ‘desencantamento do

mundo’, pelo qual as pessoas se libertam do medo de uma natureza desconhecida, à qual

2 - Saramago, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo, Companhia das Letras, 1995. 3 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.20.

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atribuem poderes ocultos para explicar seu desamparo em face dela”.4 O objetivo do

esclarecimento seria investir os homens na posição de senhores da própria vida,

dissolvendo mitos e substituindo a imaginação pelo saber. Na visão de Adorno e

Horkheimer, o saber, temperado pela razão crítica, seria a porta para o desenvolvimento

da humanidade, que se libertaria dos mitos e primitivismos e daria vazão a todo o seu

potencial de conhecimento.

Iluminismo não é para Adorno apenas um movimento intelectual da era moderna; é antes a direção fundamental do espírito humano expressa na visão científico-utilitária da realidade, e imposta desde o ingresso da humanidade nos tempos históricos. Iluminista é o ânimo de assenhoreamento da matéria, é o imperialismo da vontade humana que atua apoiada na abstração do real desenhada pela ciência. Opõe-se ao espírito mágico, à ação ainda baseada na imitação da natureza. 5

Neste sentido, o texto marca o rompimento com esse esclarecimento ideal, com

a convicção de que cedo ou tarde o espírito humano passaria a percorrer a trilha do

desenvolvimento. “A onipotência do sistema capitalista, reificado no mito da

modernidade, estaria, segundo essa nova análise, deturpando as consciências

individuais, narcotizando a sua racionalidade e assimilando os indivíduos ao sistema

estabelecido”.6

Bárbara Freitag, citando Jürgen Habermas, afirma que esse trabalho constitui

uma espécie de ruptura dos dois autores com os trabalhos anteriores, dando início a

reflexões teóricas mais radicais, que posteriormente conduziriam Adorno à sua nova

concepção de dialética negativa. Segundo a autora, Adorno e Horkheimer abandonam

definitivamente os paradigmas do materialismo histórico, buscando um novo caminho

4 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.7-8. 5 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.48. 6 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.20.

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que igualmente se afasta dos paradigmas do positivismo e do neopositivismo que

dominam as ciências naturais e humanas de sua época.7

Voltando à Dialética, o ponto crucial para os autores é a verificação de que a

razão crítica, ao invés de trabalhar para a promoção do conhecimento e da liberdade,

acabou por promover a “mitologização do esclarecimento sob a forma de ciência

positiva”.8

Para Freitag, o texto descreve uma dialética da razão que em sua trajetória,

originalmente concebida como processo emancipatório que conduziria à autonomia e à

autodeterminação, se transforma em seu contrário: em um crescente processo de

instrumentalização para a dominação do homem.9

Desta forma, ao invés de conduzir à produção de um conhecimento que visasse à

emancipação do espírito humano, a razão levou à técnica e à ciência positiva, que

reforçaram as amarras que o atavam. Essa razão instrumental, longe de libertar, tem

caráter repressivo e ditatorial. A razão converte-se “em uma razão alienada que se

desviou do seu objetivo emancipatório original, transformando-se em seu contrário: a

razão instrumental, o controle totalitário da natureza e a dominação incondicional dos

homens. A essência da dialética do esclarecimento consiste em mostrar como a razão

abrangente e humanística, posta a serviço da liberdade e emancipação dos homens, se

atrofiou, resultando na razão instrumental”.10 Ou seja, o porquê da autodestruição do

esclarecimento.

Neste processo, a ciência positiva converte-se na nova metafísica e o

esclarecimento “regride à mitologia da qual jamais soube escapar.”11 A razão fica

submetida ao “imediatamente dado”, ao cálculo e à classificação. Tudo se resume a

7 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.21. 8 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.8. 9 - Freitag, op. cit, p.34. 10 - Freitag, op. cit, p.35.

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fatos e números e aquele que não compactua dessa verdade é deixado de lado. Como

afirma a Dialética, o espírito conhecedor acolhe com avidez a charlatanice e a

superstição exatamente pelo receio de ficaria excessivamente suscetível às mesmas

charlatanice e superstição, se não se restringisse à constatação de fatos e ao cálculo de

probabilidades.

No trajeto para a ciência moderna, os homens renunciaram ao sentido e substituíram o conceito pela fórmula, a causa pela regra e pela probabilidade.12

Assim, “toda a pretensão do conhecimento é abandonada”. Quanto mais se

afasta do conceito e da possibilidade de negação, mais o pensamento conforma-se com a

mediocridade e com a repetição. Para os autores: “quanto mais a maquinaria do

pensamento subjuga o que existe, tanto mais cegamente ela se contenta com essa

reprodução”.13

O fato de que o espaço higiênico da fábrica e tudo que acompanha isso, o Volkswagen e o Palácio dos Esportes, levem a uma liquidação estúpida da metafísica, ainda seria indiferente, mas que eles próprios se tornem, no interior do todo social, a metafísica, a cortina ideológica atrás da qual se concentra a desgraça real não é indiferente.14

O mecanismo da razão instrumental é tão efetivo que nem mesmo a oposição

consegue cumprir seu papel. O processo global de produção assegura-se de não facilitar

o discurso destoante, que é devidamente esterilizado. Adorno e Horkheimer observam

que as tendências opostas à ciência oficial não se modificaram menos que a ideologia

dominante, saindo de seu elemento crítico e atuando como mero instrumento a serviço

11 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.38. 12 - Ibid., p.21. 13 - Ibid., p.38. 14 - Ibid., p.15.

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da ordem existente. Com isso, o pensamento se vê privado “não só do uso afirmativo da

linguagem conceitual científica e cotidiana, mas igualmente da linguagem da

oposição”.15

Se não há outro lado a ouvir, sem a possibilidade de diálogo, as massas

absorvem submissamente as verdades da ciência positiva. O esclarecimento “ideal” fica

cada vez mais distante e dá lugar ao esclarecimento totalitário. Este “só reconhece como

ser e acontecer o que se deixa captar pela unidade. Seu ideal é o sistema do qual se pode

deduzir toda e cada coisa”.16

Os autores têm uma visão interessante na medida em que deslocam o ângulo de

observação sobre o problema. Para eles, o esclarecimento é totalitário como qualquer

outro sistema. “Sua inverdade não está naquilo que seus inimigos românticos sempre

lhe censuraram: o método analítico, o retorno aos elementos, a decomposição pela

reflexão, mas sim no fato de que para ele o processo está decidido de antemão.”17 O

esclarecimento totalitário confunde pensamento e matemática e transforma esta última

na “instância absoluta.”

O medo que o bom filho da civilização moderna tem de afastar-se dos fatos – fatos esses que, no entanto, já estão pré-moldados como clichês na própria percepção pelas usanças dominantes na ciência, nos negócios e na política – é exatamente o mesmo medo do desvio social. Essas usanças também definem o conceito de clareza na linguagem e no pensamento a que a arte, a literatura e a filosofia devem se conformar hoje.18

É notável que, apesar do tom marcadamente negativo, o pessimismo ainda não é

total no texto. Adorno e Horkheimer parecem fazer um alerta e mencionam que o

pensamento crítico deve tomar partido pelos “últimos resíduos de liberdade” e pelas

15 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.12. 16 - Ibid., p.22. 17 - Ibid., p.37. 18 - Ibid., p.14.

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“tendências ainda existentes a uma humanidade real”. A dialética negativa ainda não é

um beco sem saída então, processo que se acirra apenas posteriormente, com o

desenvolvimento da Indústria Cultural, e culmina com o movimento estudantil de maio

de 1968.

1.2. A Indústria Cultural

Pelos caminhos da ciência instrumental, chega-se à Indústria Cultural, que

representa a perfeita regressão do esclarecimento à ideologia capitalista. O termo foi

cunhado em Dialética do Esclarecimento e o exílio nos Estados Unidos permitiu que

Adorno e Horkheimer observassem toda a extensão do fenômeno e também previssem o

que estava por vir.

A Indústria Cultural utiliza-se da tecnologia e é viabilizada por ela. É ao mesmo

tempo ferramenta e produto do sistema capitalista. Serve como porta-voz e é a própria

voz do sistema. Como afirma Freitag, a Indústria Cultural caracteriza-se por sua

dimensão anti ou acultural (dissolução da obra de arte, produção e reprodução de

mercadorias ditas culturais); por sua vinculação com a moderna técnica (rádio, tevê,

cinema, fotografia, imprensa); por seu consumo de massas e seu caráter de mercadoria.

Desta forma, “constitui a fórmula moderna que a sociedade burguesa encontrou para

autoperpetuar-se”.19

A cultura e a arte, antes vias de transcendência, expressão ou contestação,

transformam-se em mercadorias reproduzidas em série e designadas de acordo com os

interesses do sistema econômico capitalista. Segundo os autores, a Indústria Cultural

desenvolveu-se com o predomínio que o efeito, a performance tangível e o detalhe

técnico alcançaram sobre a obra. Assim, a idéia passa a ser menos importante e menos

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perceptível que a forma. A revolução tecnológica-industrial desencadeia o processo de

dissolução da obra de arte e da cultura.

Se a cultura respeitável constituiu até o século dezenove um privilégio, cujo preço era o aumento do sofrimento dos incultos, no século vinte o espaço higiênico da fábrica teve por preço a fusão de todos os elementos da cultura num cadinho gigantesco.20

A Indústria Cultural inibe a crítica e “confere a tudo um ar de semelhança”.21

Mesmo nas décadas de 40 e 50 – portanto bem longe da globalização atual –, Adorno e

Horkheimer já conseguem verificar na sociedade de massas um de seus pontos-chave: a

lógica do consumo das mercadorias. A humanidade, agora composta por consumidores,

está dividida e subdividida em níveis de consumo. Cada grupo está mapeado e deve

consumir a gama de opções a sua disposição.

Não há possibilidade de ficar de fora do esquematismo da produção. Toda a

diferença é imediatamente absorvida pelo sistema para em seguida transformar-se

também ela em produto passível de reprodução. “Uma vez registrado em sua diferença

pela Indústria Cultural, ele passa a pertencer a ela assim como o participante da reforma

agrária ao capitalismo”.22

Para todos algo está previsto; para que ninguém escape, as distinções são acentuadas e difundidas. O fornecimento ao público de uma hierarquia de qualidades serve apenas para uma quantificação ainda mais completa. Cada qual deve se comportar, como que espontaneamente, em conformidade com seu level, previamente caracterizado por certos sinais, e escolher a categoria dos produtos de massa fabricada para seu tipo.23

A Indústria Cultural também cria a oposição entre trabalho e lazer e serve para

preencher o tempo do trabalhador durante a noite e prepará-lo para novo expediente no

19 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.73. 20 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.15. 21 - Ibid., p.113. 22 - Ibid., p.123.

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dia seguinte. Ao invés de almejar a felicidade real, os consumidores abdicam da

experiência e entregam-se à ilusão da felicidade virtual, via tecnologia. “A enxurrada de

informações precisas e diversões assépticas desperta e idiotiza as pessoas ao mesmo

tempo”24 e todas as necessidades podem ser satisfeitas pelo aparato técnico e pelas

mercadorias disponíveis. Claro, como bem observam Adorno e Horkheimer, essas

necessidades devem ser de antemão organizadas, é preciso se arranjar com o que é

oferecido. A diversão favorece a resignação e a Indústria Cultural volta sempre a

oferecer como paraíso o mesmo cotidiano vivido.25

A técnica também é aliada do sistema na medida em que favorece a

manipulação. Para os autores, a publicidade e a Indústria Cultural acabam por se

confundir tanto técnica quanto economicamente:

Tanto lá como cá, a mesma coisa aparece em inúmeros lugares, e a repetição mecânica do mesmo produto cultural já é a repetição do mesmo slogan propagandístico. Lá como cá, sob o imperativo da eficácia, a técnica converte-se em psicotécnica, em procedimento de manipulação das pessoas. Lá como cá, reinam as normas do surpreendente e no entanto familiar, do fácil e no entanto marcante, do sofisticado e no entanto simples. O que importa é subjugar o cliente que se imagina como distraído ou relutante.26

Adorno e Horkheimer, por outro lado, recusam-se a seguir pelo atalho de crer

que a “barbárie da Indústria Cultural” é uma conseqüência do cultural lag, do atraso da

consciência norte-americana relativamente ao desenvolvimento da técnica. Ao

contrário, os autores têm bastante claro que a Europa pré-fascista é que se encontrava

atrasada em relação à tendência ao monopólio cultural.27

23 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.116. 24 - Ibid., p.15. 25 - Ibid., p.133. 26 - Ibid., p.153. 27 - Ibid., p.124.

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A questão do surgimento da Indústria Cultural, detectada com precisão por Adorno e

Horkheimer, foi analisada sob diferentes enfoques por todos os frankfurtianos. Guy

Debord, que não faz parte do grupo mas que também é analisado neste trabalho, chama-

a de espetáculo. O ponto comum entre todos eles é a visão crítica da sociedade e, entre

outros, a recusa em aceitar a tendência à mediocridade e à submissão, estimulada pelos

bens culturais de massa.

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2 – A Escola de Frankfurt __________________________________________________________________________________________________________

Antes de partirmos para uma análise mais aprofundada da Indústria Cultural e da

sociedade que a criou, é importante entender o contexto em que a questão foi

inicialmente formulada e a discussão maior que a situou.

Assim, não há como evitar que a primeira parada seja o lugar que originou,

fundamentou e levou para o centro do debate intelectual contemporâneo boa parte da

discussão envolvendo a teoria crítica em oposição à teoria tradicional, a cultura de

massas, a necessidade de transformação da sociedade, o atual papel da arte, entre outros

tópicos. Ou seja, a Escola de Frankfurt.

Para José Guilherme Merquior, a escola neohegeliana de Frankfurt é uma das

“mais sugestivas formações ideológicas do nosso tempo.”28 E neste sentido cabe

destacar que ela está muito mais para uma formação ideológica, realmente, do que para

um instituto, materialmente falando.

Bárbara Freitag observa que a Escola de Frankfurt refere-se simultaneamente a

um grupo de intelectuais e a uma teoria social. Além disso, o nome só surgiu na

verdade depois da publicação dos trabalhos mais significativos de seus membros, e a

unidade geográfica sugerida ocorreu por muito pouco tempo no período pré-segunda

guerra mundial. Em termos históricos, a crescente preocupação com o anti-semitismo

na Alemanha, estimulado pelo nazismo, levou à criação de filiais do Instituto em

Genebra, Londres e Paris em 1931. Logo depois, em 1933, o governo alemão decreta o

fechamento da sede por suas “atividades hostis ao Estado”. A matriz foi então

transferida para Genebra e um ano depois para Nova York. A reabertura em Frankfurt

só voltou a ocorrer em 1950.

28 - Merquior, José Guilherme. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.21.

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Desta forma, boa parte das produções - algumas das mais significativas

inclusive, como a própria Dialética - foi realizada durante o período de exílio e após a

guerra o núcleo original havia perdido Benjamin, que cometeu suicídio em 1943, e

Marcuse, que optou por permanecer nos Estados Unidos. Os trabalhos da época da

emigração, por exemplo, como sugere Freitag, estiveram sempre marcados pelo impacto

causado pela avançada cultura de massas americana e pela inevitável repugnância pelo

american way of life.

Em linhas gerais, a teoria crítica parte de Marx, mas se opõe ao marxismo oficial

e ortodoxo que representou a base da então futura URSS. Da mesma forma, os

frankfurtianos “originais” corroboravam – ao menos inicialmente – a possibilidade de

transformação da sociedade através da luta de classes. No decorrer dos anos, no entanto,

as expectativas em relação à possibilidade e mesmo à necessidade de uma revolução

proletária foram se esvaziando. É importante ressaltar ainda que, à exceção de Marcuse,

que teve alguma militância na juventude, os demais nunca foram militantes políticos.

O foco do pensamento desses intelectuais, apesar, é claro, de suas inúmeras

particularidades e divergências, estava na teorização de uma sociedade que permitisse a

construção de um conhecimento emancipatório. Esse, por sua vez, viabilizaria um

sistema que levaria em última instância à felicidade humana e à democratização dessa

felicidade. Pode-se dizer que a estrada comum trilhada por todos eles foi a teoria crítica

da sociedade, cada qual idealizando sub-caminhos diferentes até o destino e dosando as

paragens, fosse através da arte, da dialética negativa, da crítica à tecnologia, à ciência

positiva e ao capitalismo.

Freitag comenta que no artigo Teoria Tradicional e Teoria Crítica, de 1936,

Horkheimer tematiza pela primeira vez o conflito existente entre dialética e positivismo.

Para ele, praticar teoria e filosofia é “algo inseparável da idéia de nortear a reflexão com

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base em juízos existenciais comprometidos com a liberdade e a autonomia do

homem”.29 Neste sentido, o autor contrapõe a filosofia de Descartes (teoria tradicional)

ao pensamento de Marx (teoria crítica), “denunciando o caráter sistêmico e conservador

do primeiro, e sublinhando enfaticamente a dimensão humanística, emancipatória do

segundo”.30

Merquior afirma que “o marxismo não é, naturalmente, a única versão possível

de uma teoria crítica da sociedade”31, mas a verdade é que nessa época a teoria crítica

encontra-se intrinsecamente relacionada a Marx. Horkheimer se defende, de alguma

forma, e afirma que a intenção não é priorizar Marx em detrimento de Descartes, mas

englobar o pensamento do segundo no primeiro. Em sua interpretação,

a teoria tradicional, que se estende do pensamento filosófico de Descartes à filosofia e ciência modernas, se preocupa em formar sentenças que definem conceitos universais. Para tal procede dedutiva ou indutivamente e defende o princípio da identidade, condenando a contradição. As manifestações empíricas da natureza e da sociedade devem e podem, segundo essa orientação teórica, ser subsumidas nas sentenças gerais, encaixando-se no sistema teórico montado a priori (com auxílio da dedução) ou a posteriori (através da indução). Entre as sentenças gerais e os fatos empíricos existe uma hierarquia de famílias e espécies de conceitos, à semelhança da moderna biologia, estabelecendo-se em todos os momentos uma relação de subordinação e integração. Os fatos se tornam casos singulares, exemplos ou concretizações do conceito ou da lei geral.32

Deste modo, observa-se que a teoria tradicional baseia-se nos conceitos do

positivismo e aplica-os não apenas às ciências naturais, mas também às questões sociais.

E quase todo o debate promovido pelos frankfurtianos parte da verificação de que a

razão instrumental não conseguiu levar a humanidade a uma via de libertação. Ao

29 - Horkheimer, 1936 apud Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.37. 30 - Horkheimer, 1936 apud Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.37. 31 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.15. 32 - Horkheimer apud Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.37.

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contrário, mostrou-se dócil às tendências repressivas e acabou assim por reforçar o

sistema dominante.

A teoria crítica, por outro lado, não se limita aos conceitos preestabelecidos, mas

“procura integrar um dado novo no corpo teórico já elaborado, relacionando-o sempre

com o conhecimento que já se tem do homem e da natureza naquele momento

histórico”.33 A teoria crítica também é responsável pela mais significativa resposta de

Frankfurt ao domínio da ciência positiva: a dialética negativa.

A dialética negativa, tal qual idealizada pelos frankfurtianos, está relacionada

àquele esclarecimento “ideal” a que almejavam Adorno e Horkheimer e à razão

iluminista na conceituação de Kant e Hegel. Ou seja é a razão emancipatória que

contrapõe-se à razão instrumental e ao positivismo. Freitag, ao descrever o pensamento

de Adorno, afirma que “ela consistiria no esforço permanente de evitar as falsas

sínteses, de desconfiar de toda e qualquer proposta definitiva para a solução de

problemas, de rejeição de toda visão sistêmica, totalizante da sociedade”.34 Para Adorno,

“a dialética não possui nenhum cânone específico, não trabalha segundo regras

definidas e não produz um saber que permita a prognose segura e inequívoca da

realidade.”35

A crítica passa a ser o elemento que permeia todo processo de conhecimento, não somente pondo em questão uma hipótese explicativa de um problema específico (...), mas suscitando uma atitude de desconfiança face ao conhecimento como tal, cujos objetivos e resultados são permanentemente questionados. A crítica, compreendida como o princípio da negatividade, vem a ser o elemento constituinte do método e da teoria crítica, que se fundem com o objetivo político e social a ser alcançado. 36

33 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.39 34 - Ibid., p.48. 35 - Ibid., p.48. 36 - Ibid., p.47.

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Em oposição à dialética está a ciência positiva, que se utiliza da lógica formal

para se colocar como lugar da verdade incontestável. Os positivistas atribuem ao

método o papel predominante no processo do conhecimento, privilégio esse

veementemente contestado por Adorno e pelos demais frankfurtianos.

Sob a proteção das alegadas neutralidade e objetividade, a razão instrumental

não permite questionamentos quanto a seus pressupostos, “ignorando assim as relações

de troca e os interesses de lucro e dominação que condicionam e manipulam sua própria

área de saber”.37 Freitag observa que, com isso, a produção científica dessas áreas “não

se percebe como saber interessado que atende a interesses políticos específicos e que se

presta à apropriação de poderes econômicos e políticos que desconhece”.38

Marcuse, segundo Merquior, designa o pensamento negativo “no impulso

dialético que nega continuamente o dado e o existente, no passo rebelde e crítico da

destruição criadora”39 e verifica – em alinhamento com Hegel - que a própria essência

criadora do homem advém deste impulso.

A negação e principalmente a imagem da “destruição criadora” não deixam

dúvidas de que Marcuse também acompanha o pensamento político de Marx – apesar de

distanciar-se depois, já que o segundo não chega a duvidar em nenhum momento da

ruína do capitalismo e da consecução do projeto de felicidade humana. Ambos

acreditam ser forçoso “denunciar o estado como opressor, ultrapassando as liberdades

burguesas e conquistando para a humanidade inteira a gerência dos meios de

produção”.40

37 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.50. 38 - Ibid., p.50. 39 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.21. 40 - Ibid., p.22.

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Apesar de já terem corpo nos anos 40, os estudos de Frankfurt disseminaram-se

pela Europa principalmente a partir da segunda metade da década de 60, e em especial

com o movimento estudantil de maio de 1968.

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3 - Pensamento frankfurtiano __________________________________________________________________________________________________________

3.1. Capitalismo: o primeiro inimigo

O capitalismo representou uma mudança irreversível na sociedade e no

pensamento humano. Mais do que apenas uma alteração no modelo econômico, o modo

de produção capitalista implicou profundas transformações na relação do homem com o

mundo, com a arte e com o trabalho.

O alto desenvolvimento tecnológico – visto pelos positivistas e também por

Marx como a mais perfeita arma contra a escassez – viabilizou o consumo de massa e

possibilitou a reprodução de praticamente todos os produtos, o império da mercadoria.

Viabilizou também o desenvolvimento da Indústria Cultural, que levou a uma falsa

democratização dos bens culturais e à criação da diferenciação entre horas de trabalho e

horas de lazer. Além disso, a comunicação de massa rapidamente tornou-se aliada dos

setores econômicos na produção de necessidades e no estímulo ao consumo. Ao

condicionar as escolhas, passou a determinar comportamentos socialmente aceitos e,

assim, a perpetuar o sistema vigente, domando os “instintos rebeldes” das massas.

Inicialmente, no entanto, os intelectuais de Frankfurt juntavam-se a Marx na

condenação do sistema capitalista, que levava à acumulação injusta de bens apenas

pelos detentores dos meios de produção, em detrimento das massas que vendiam sua

força de trabalho. O inimigo não foi logo de início a razão tecnológica, mas meramente

a maneira como ela vinha sendo apropriada pela classe dominante. Ainda acreditavam

que a ciência positiva era capaz de libertar a humanidade dos mitos e medos ancestrais e

levá-la à construção de um saber livre, emancipatório e motivado apenas pelo desejo do

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bem comum. Assim, a crença era de que a mudança no sistema econômico poderia

levar à utilização “benigna” da ciência positiva.

E em nome de que a valorização da luta revolucionária é adotada pelos críticos da cultura? Em nome da aspiração de felicidade. A crítica da cultura aspira ao fim da repressão, isto é, ao advento de um mundo em que a felicidade individual não só seja possível, como esteja em harmonia com o bem coletivo. De modo que o pensamento negativo, enquanto vanguarda da filosofia, considera toda a história da metafísica sob o prisma desse combate: toda a tradição filosófica do Ocidente é vista como um equivalente intelectual da luta histórica pela conquista da felicidade.41

Para Marx a ruína do capitalismo ocorreria por si só. Merquior cita As Etapas

do Pensamento Sociológico, de Raymond Aron, e mostra que Marx tem duas hipóteses

para a queda inevitável do sistema: “1) na primeira, o crescimento incessante da

produção acarretaria a ultrapassagem do nível de renda das massas, e o regime de

oferta-e-procura entraria em pane por falta de consumidores; 2) na segunda, à medida

em que a produção aumentasse, apoiada nos aperfeiçoamentos tecnológicos, o poder de

compra das massas populares (o “exército de reserva”), reduzidas ao desemprego

maciço, iria minguando até chegar a uma situação intolerável.”42 Na verdade, segundo

Aron, Marx acreditava sobretudo na segunda hipótese. Para ele, a pauperização

acabaria por provocar a destruição do sistema: “na primeira hipótese, o capitalismo se

suicidaria: uma dinâmica puramente econômica o liquidaria. Na segunda, porém, a

liquidação do sistema passaria pela revolta social, pela intensificação máxima da luta de

classes. Esta é, portanto, a perspectiva ao mesmo tempo econômica e revolucionária”.43

41 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro,1969, p. 149. 42 - Ibid., p. 240. 43 - Ibid., p. 241.

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Freitag comenta que, muitos anos mais tarde, escrevendo em retrospectiva àquele

momento inicial no ensaio A Teoria Crítica Ontem e Hoje, de 1970, Horkheimer revisa

sua posição original e apresenta os três grandes equívocos na teoria marxista: em

primeiro lugar, a proletarização progressiva da classe operária não aconteceu. O

capitalismo conseguiu produzir um excedente de riquezas e acabou assim por desativar

o conflito de classes e as condições para uma revolução proletária efetiva. Em segundo

lugar, a atividade estatal preveniu o desencadeamento de crises econômicas

“decorrentes das alternâncias da produção excessiva e da falta de consumo, por um

lado, e do consumo excessivo que leva à falta de produtos, por outro”.44 Finalmente,

Horkheimer observa que “a esperança de Marx de que a justiça poderia se realizar

simultaneamente com a liberdade revelou-se ilusória”.45 As riquezas excedentes geradas

pelo capitalismo, que possibilitavam a redução das desigualdades materiais, eram

produzidas “ao preço da redução sistemática da liberdade”.

Além disso, como vimos, foi-se percebendo que a razão tecnológica jamais seria

convertida em aliada. Ao valorizar a lógica estrita e a matemática em detrimento do

conhecimento histórico acumulado pela humanidade; ao privilegiar a forma e o método

e não o conteúdo; ao descartar o questionamento ao dado, a ciência positiva nada mais

fez que contribuir para a construção de uma sociedade repressiva e irracional.

A experiência do nazismo demonstrara quanto a razão pode ser inútil diante das forças da barbárie; o exílio nos Estados Unidos acabaria de persuadir os professores de Frankfurt, europeus enojados pelos aspectos imbecilizantes da sociedade de massa, da irracionalidade da razão tecnológica.46

44 - Horkheimer, 1970 apud Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.40. 45 - Horkheimer, 1970 apud Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.40. 46 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro,1969, p.50.

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Marcuse avalia em Ideologia da Sociedade Industrial, de 1964, que a ciência e

a técnica não são apenas forças produtivas, mas funcionam como ideologia para

legitimar o sistema. Para ele, os homens tornam-se cada vez mais submissos ao

processo produtivo e, em nome dessa produtividade, recalcam outros aspectos da

reflexão científica e existencial, “como a crítica do status quo e a emancipação dos

homens do reino da necessidade”.47 Assim, ao invés de buscar a libertação da

humanidade – seu objetivo original – a ciência trabalha para o capital e para a

manutenção das relações de classe.

Marcuse acredita que, ao promoverem o progresso “desejado e aplaudido por

todos”, a ciência e a técnica se tornam a base legitimadora do sistema capitalista,

“desativando o conflito de classes e silenciando as reivindicações por um sistema

político e econômico menos alienado”.48 Com isso, apesar da aparente neutralidade,

transformam-se elas próprias na ideologia tecnocrática: a partir daí não cabe mais

discutir questões políticas politicamente, ou seja, à base de negociações e lutas, “e sim,

tecnicamente, de acordo com o princípio instrumental de meios ajustados a fins”.49

Freitag mostra o complemento de Habermas à posição de Marcuse, em que o

primeiro afirma que a “simbiose entre ciência e técnica com a dominação econômica e

política no capitalismo moderno mostra quão profundamente ambas estão

comprometidas com o interesse das classes dominantes”.50 Por isso, a conclusão de que

não basta simplesmente mudar a teoria e a filosofia política para mudar o mundo. Para

Habermas, como veremos mais à frente, a superação da sociedade capitalista só pode

ocorrer com a reformulação radical dos conceitos de ciência e tecnologia que nela

atuam.

47 - Marcuse, 1964 apud Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.93. 48 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.93. 49 - Ibid., p.93. 50 - Ibid., p.95.

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3.2. O mundo da mercadoria

Seguindo adiante, vemos que o mundo em que a ciência e a técnica são a

ideologia nada mais é do que o mundo da mercadoria.

Não apenas a economia é dominada pela lógica de mercado, mas todos os

aspectos da vida humana, entre eles a reflexão crítica e filosófica. Ou seja, também o

pensamento se converte em mercadoria. Tudo segue a dinâmica do mercado e da

produtividade; a otimização do lucro e da produção transformam-se no objetivo geral da

sociedade.

No sistema capitalista os homens são ensinados a representar dois papéis

alternadamente: clientes e consumidores, e é só através desses personagens que eles

interessam à indústria. Para Adorno e Horkheimer, a humanidade inteira foi reduzida a

essa fórmula. “Enquanto empregados, eles são lembrados da organização racional e

exortados a se inserir nela com bom-senso. Enquanto clientes, verão o cinema e a

imprensa demonstrar-lhes, com base em acontecimentos da vida privada das pessoas, a

liberdade de escolha, que é o encanto do incompreendido”.51

Mais do que isso, perde-se a verdadeira noção das necessidades reais da

humanidade. Segundo Marcuse, ainda em Ideologia da Sociedade Industrial, a

produção de bens segue uma lógica técnica: a produção visa ao lucro e não àquilo que

os homens querem ou necessitam. O que importa é o valor de troca – quer dizer, o que

se ganha consumindo ou produzindo alguma coisa. Para os produtores é muito simples:

valor é sinônimo de lucro; já para os consumidores o valor depende de uma série de

estímulos complexos realizados pelo próprio sistema. Atualmente, o marketing é

responsável ao mesmo tempo por produzir necessidades e criar valor para produtos

51 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.137.

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(publicidade, propaganda, patrocínios, entre outros); por controlar a eficácia dos

estímulos efetuados junto ao público (pesquisas de opinião); e por verificar novas

oportunidades de mercado.

Marcuse propõe a distinção entre as “necessidades verídicas” e as “falsas

necessidades”. Para ele, entre as primeiras estariam apenas as necessidades vitais de

alimento, roupa e teto. As falsas seriam “aquelas superimpostas ao indivíduo por

interesses sociais particulares ao reprimi-lo: as necessidades que perpetuam a labuta, a

agressividade, a miséria e a injustiça. (...) A maioria das necessidades comuns de

descansar, distrair-se comportar-se e consumir de acordo com os anúncios, amar e odiar

o que os outros amam e odeiam, pertence a essa categoria de falsas necessidades”.52

Desta forma, além de instaurar a lógica do valor de troca, a própria sociedade

capitalista, através de sua principal ferramenta – a Indústria Cultural -, tem o poder de

determinar o que vale e o que não vale. E ainda de perpetuar a idéia de satisfação e o

prazer em estar integrado ao consumo.

Os meios de transporte e comunicação em massa, as mercadorias, casa, alimento e roupa, a produção irresistível da indústria de diversões e informação trazem consigo atitudes e hábitos prescritos, certas reações intelectuais e emocionais que prendem os consumidores mais ou menos agradavelmente aos produtores e, através destes, ao todo. Os produtos doutrinam e manipulam; promovem uma falsa consciência que é imune à sua falsidade. E, ao ficarem esses produtos benéficos à disposição de maior número de indivíduos e de classes sociais, a doutrinação que eles portam deixa de ser publicidade; torna-se um estilo de vida. É um bom estilo de vida – muito melhor do que antes – e, como um bom estilo de vida, milita contra a transformação qualitativa.53

Assim, o fetiche da mercadoria toma o lugar da necessidade. Mercadorias

decidem o comportamento dos homens e as particularidades do eu também “são

mercadorias monopolizadas e socialmente condicionadas, que se fazem passar por algo

52 - Marcuse, Herbert. A ideologia da Indústria Cultural. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p.26.

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natural”.54 Para Adorno, “o aparelho econômico, antes mesmo do planejamento total, já

provê espontaneamente as mercadorias dos valores que decidem sobre o comportamento

dos homens”.55

A partir do momento em que as mercadorias, com o fim do livre intercâmbio, perderam todas suas qualidades econômicas salvo seu caráter de fetiche, este se espalhou como uma paralisia sobre a vida da sociedade em todos os seus aspectos. As inúmeras agências da produção em massa e da cultura por ela criada servem para inculcar no indivíduo os comportamentos normalizados como os únicos naturais, decentes, racionais.56

Voltando ao marketing, Abraham H. Maslow57 desenvolveu uma teoria da

motivação, segundo a qual as necessidades humanas estão organizadas em uma

hierarquia. Somente depois de resolvidas as necessidades classificadas como as mais

intensas (fisiológicas) é que uma pessoa passa a ficar motivada a resolver uma

necessidade do segundo nível de importância. A hierarquia proposta obedece a seguinte

ordem: fisiológicas (alimento, repouso, abrigo, sexo); de segurança (proteção contra

perigos, doenças, incertezas, desemprego, roubo); sociais (relacionamento, aceitação,

afeição, amizade, compreensão, consideração); de estima (necessidades do ego:

orgulho, auto-respeito, progresso, confiança, status, reconhecimento, apreciação,

admiração pelos outros); e de auto-realização (auto-realização, auto-desenvolvimento,

auto-satisfação). Neste sentido, pode-se dizer que o sistema atuou primeiramente nas

mais primordiais e pouco a pouco foi avançando para as mais elaboradas e, quanto mais

avança sobre os mecanismos psicológicos mais complexos dos indivíduos, tanto maior é

o seu controle sobre eles.

53 - Marcuse, Herbert. A ideologia da Indústria Cultural. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p.32. 54 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.145. 55 - Ibid., p.40. 56 - Ibid., p.40. 57 - Maslow, Abraham H. Maslow no gerenciamento. Qualitymark Ed., Rio de Janeiro, 2001.

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Para Marcuse, um dos motivos para que a dimensão emancipadora ou crítica na

produção de mercadorias tenha sido sufocada foi exatamente o fato de que a economia

capitalista conseguiu satisfazer necessidades básicas das massas dos países

desenvolvidos. Com algumas de suas reivindicações atendidas diminuiu a insatisfação e

o ímpeto revolucionário dos indivíduos.

No que tange à arte e aos bens culturais, também estes seguem a lógica de

mercado, como veremos à frente. A cultura transformada em mercadoria, como observa

Freitag, perde sua característica de cultura, passa a ser meramente um valor de troca.58

Para Adorno, “o que se poderia chamar de valor de uso na recepção dos bens culturais é

substituído pelo valor de troca; ao invés do prazer, o que se busca é assistir e estar

informado, o que se quer é conquistar prestígio e não se tornar um conhecedor”.59 Assim

como nas demais mercadorias, a cultura só tem valor na medida em que pode ser

trocada, não na medida em que é algo em si mesma. Adorno observa ainda que o novo

não é o seu caráter mercantil, que já existia na sociedade burguesa. A novidade é que

hoje ela “se declara deliberadamente como tal, e é o fato de que a arte renega sua

própria autonomia, incluindo-se orgulhosamente entre os bens de consumo, o que lhe

confere o encanto da novidade”.60

3.3. Fácil manipulação

Como vimos, uma das principais funções desempenhadas pela Indústria Cultural

é reforçar o sistema e determinar a vontade e a atitude dos indivíduos, agora

consumidores. Esse controle é bastante sutil, nada é diretamente imposto. A diversão

58 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.71. 59 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.148. 60 - Ibid., p.147.

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através dos bens culturais modernos é acrítica e mina a vontade de questionamento,

enquanto a repressão é indireta e gerada pelas próprias instituições e grupos sociais.

Não há regras formais de comportamento, mas os modos de agir e consumir dos

indivíduos são impostos pelo seu “meio-ambiente”: amigos, parentes, trabalho, clube,

entre outros. Os meios de comunicação, por sua vez, indicam a todos os padrões

aceitáveis de família, relacionamentos, vestuário, lazer. As necessidades materiais dos

consumidores também são manipuladas. Cada vez surgem novos produtos que, ao

nascerem, já se tornam indispensáveis para a continuação da vida moderna. Como

afirma Adorno, “o mecanismo da oferta e da procura continua atuando na superestrutura

como mecanismo de controle em favor dos dominantes. (...) A produção capitalista os

mantêm tão bem presos em corpo e alma que eles sucumbem sem resistência ao que

lhes é oferecido”.61

A tese de defesa do sistema passa pela idéia de que a Indústria Cultural apenas

oferece o que os consumidores querem, ou seja, de que é a demanda que gera a oferta e

não o contrário. O discurso esquece todo o trabalho “educativo” realizado nos

bastidores das escolhas dos indivíduos. Adorno chama de regressão das massas a

incapacidade atual dos indivíduos de “poder ouvir o imediato com os próprios ouvidos,

de poder tocar o intocado com as próprias mãos: a nova forma de ofuscamento que vem

substituir as formas míticas superadas”.62

Pela mediação da sociedade total, que engloba todas as relações e emoções, os homens se reconvertem exatamente naquilo contra o que se voltara a lei evolutiva da sociedade, o princípio do eu: meros seres genéricos, iguais uns aos outros pelo isolamento na coletividade governada pela força.63

61 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.125. 62 - Ibid., p.47.

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Cabe aqui retomar a oposição entre cultura e civilização presente na sociedade

burguesa, ou seja, a distinção “entre mundo das idéias e dos sentimentos elevados de um

lado e mundo da reprodução material, do outro”.64 De acordo com Freitag, enquanto o

segundo seguia a lógica da necessidade e impunha sofrimento e abstenção aos homens,

o primeiro conduzia à liberdade, à felicidade e à realização espiritual, “se não realizadas

no presente, pelo menos prometidas para o futuro.”65 Essa separação justificava a

exploração dos trabalhadores no dia-a-dia, já que havia a contrapartida da felicidade

sugerida pela sociedade em seus bens culturais.

No capitalismo, essa separação perdeu a razão de ser. A ciência positiva não

sustentava mais a promessa de felicidade futura, produzindo a necessidade de uma

satisfação mais imediata e lógica. Quer dizer, era preciso alterar a forma de

mascaramento e dissimulação do controle. Desta forma,

a fim de tornar os trabalhadores dóceis e submissos, não bastava recorrer à dicotomia entre civilização e cultura, entre escassez material externa e riqueza espiritual interna. Tornou-se imperioso mudar os padrões de organização da produção cultural que foi sendo gradativamente cooptada pela esfera da civilização, isto é, sendo absorvida pelo sistema da produção de bens materiais que reestruturou inteiramente as formas de circulação e consumo da cultura.66

A Indústria Cultural é o resultado da absorção da cultura pela esfera da

civilização. A felicidade antes prometida para o futuro ou imaginada apenas para o

mundo espiritual ou interior precisava ser entregue. E é esse o objetivo da cultura de

massas: produzir bens culturais em escala, capazes de levar a ilusão da satisfação

imediata aos consumidores. A grande promessa da Indústria Cultural é a felicidade

“fast food” ao alcance de todos.

63 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.47. 64 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.68. 65 - Ibid., p.68. 66 - Ibid., p.70.

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Segundo Freitag, a Indústria Cultural “cria a ilusão de que a felicidade não

precisa ser adiada para o futuro, por já estar concretizada no presente”.67 Mais ainda:

“ela elimina a dimensão crítica ainda presente na cultura burguesa, fazendo as massas

que consomem o novo produto da Indústria Cultural esquecerem sua realidade

alienada”.68

Com isso, chega-se a uma das mais importantes características da sociedade

capitalista, que é a instituição da distinção entre trabalho e lazer. A Indústria Cultural é

a indústria da diversão e é através dessa mesma diversão que media o controle aos

consumidores. A promessa de felicidade, claro, nunca é cumprida e as horas de lazer

nada mais são do que “o prolongamento do trabalho sob o capitalismo tardio”.69

Representam um escape ao processo de trabalho mecanizado e o momento de

recuperação antes de retornar a ele no dia seguinte.

O pretenso conteúdo não passa de uma fachada desbotada; o que fica gravado é a seqüência automatizada de operações padronizadas. Ao processo de trabalho na fábrica e no escritório só se pode escapar adaptando-se a ele durante o ócio. Eis aí a doença incurável de toda diversão. O prazer acaba por se congelar no aborrecimento, porquanto, para continuar a ser um prazer, não deve mais exigir esforço e, por isso, tem de se mover rigorosamente nos trilhos gastos das associações habituais. O espectador não deve ter necessidade de nenhum pensamento próprio, o produto prescreve toda reação: não por sua estrutura temática – que desmorona na medida em que exige o pensamento – mas através de sinais. Toda ligação lógica que pressuponha um esforço intelectual é escrupulosamente evitada.70

A diversão sem esforço anestesia pouco a pouco a capacidade crítica e a vontade

da capacidade crítica e torna mais fácil o controle. O conteúdo perde espaço para a

forma e o que importa são os momentos de “lazer” durante a noite, sendo secundária a

67 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.72. 68 - Ibid., p.72. 69 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.128. 70 - Ibid., p.128.

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qualidade desse lazer. Assim, a produção cultural de massa deve ocupar o espaço que

resta ao trabalhador depois de um longo dia de trabalho, “sem lhe dar trégua para pensar

sobre a realidade miserável em que vive”.71

Para Adorno, divertir-se significa estar de acordo, e isso só é possível quando se

isola o processo social do todo, quando se abandona a pretensão da obra de refletir o

todo em sua limitação. “Divertir significa sempre: não ter que pensar nisso, esquecer o

sofrimento até mesmo onde ele é mostrado. A impotência é a sua própria base. É na

verdade uma fuga, mas não, como afirma, uma fuga da realidade ruim, mas da última

idéia de resistência que essa realidade ainda deixa subsistir.”72 Além disso, “quanto mais

firmes se tornam as posições da Indústria Cultural, mais sumariamente ela pode

proceder com as necessidades dos consumidores, produzindo-as, dirigindo-as,

disciplinando-as e, inclusive, suspendendo a diversão: nenhuma barreira se eleva contra

o progresso cultural”.73

Desta forma, Freitag observa que a cultura de massa não permite a elaboração de

uma posição crítica face a sua realidade, misturando a realidade material e suas formas

de representação e anulando, progressivamente, os mecanismos de reflexão e crítica.74

As massas desmoralizadas por uma vida submetida à coerção do sistema, e cujo único sinal de civilização são comportamentos inculcados à força e deixando transparecer sempre sua fúria e rebeldia latentes, devem ser compelidas à ordem pelo espetáculo de uma vida inexorável e da conduta exemplar das pessoas concernidas. A cultura sempre contribuiu para domar os instintos revolucionários, e não apenas os bárbaros.75

71 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.72. 72 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.135. 73 - Ibid., p.135. 74 - Freitag, op. cit., p.73. 75 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. op. cit, p.143.

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Para Marcuse, os meios de comunicação de massa não encontram dificuldade

em fazer aceitar interesses particulares como sendo de todos os homens sensatos. “As

necessidades políticas da sociedade se tornam necessidades e aspirações individuais, sua

satisfação promove os negócios e a comunidade, e o conjunto parece constituir a própria

personificação da Razão”.76

Até mesmo os discursos excessivamente vagos e superficiais da cultura de massa

cumprem a sua função, segundo Adorno. A ausência de juízos de valor rígidos, ao

invés de representar um obstáculo, serve como fonte de legitimação do sistema. Para

Adorno é justamente a vagueza ideológica da Indústria Cultural, “a aversão quase

científica a fixar-se em qualquer coisa que não se deixe verificar”77, que acaba por

ratificar a realidade existente.

3.4. Falsa democracia de massas

A Indústria Cultural produz a ilusão de uma falsa democracia de massas. A

enorme quantidade de opções existentes, os diversos grupos sociais e comportamentos

socialmente aceitos, enfim, tudo isso faz crer que a liberdade é uma das características

da sociedade capitalista afinal. Mas isso é exatamente o que ela não é. Na verdade, “a

liberdade de escolha da ideologia, que reflete sempre a coerção econômica, revela-se em

todos os setores como a liberdade de escolher o que é sempre a mesma coisa”.78

O ingresso na “felicidade de massas” cobra seu preço: a liberdade ou até mesmo

a intenção de liberdade precisam ser esquecidas.

76 - Marcuse, Herbert. A ideologia da Indústria Cultural. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p,13. 77 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.138. 78 - Ibid., p.156.

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Para Marcuse, “a livre escolha entre ampla variedade de mercadorias e serviços

não significa liberdade de escolha se esses serviços e mercadorias sustêm os controles

sociais sobre uma vida de labuta e temor – isto é, se sustêm alienação.”79 Do mesmo

modo a reprodução espontânea de padrões pelo indivíduo não significa autonomia, mas

a eficácia dos controles. O autor também observa que até mesmo os movimentos de

oposição ao governo em nome da democracia servem de sustentáculo ideológico aos

interesses repressivos.

Todos podem ser como a sociedade todo-poderosa, todos podem se tornar felizes, desde que se entreguem de corpo e alma, desde que renunciem à pretensão de felicidade. Na fraqueza deles, a sociedade reconhece sua própria força e lhes confere uma parte dela. Seu desamparo qualifica-os como pessoas de confiança. É assim que se elimina o trágico. Outrora, a oposição do indivíduo à sociedade era a própria substância da sociedade. Ela glorificava ”a valentia e a liberdade do sentimento em face de um inimigo poderoso, de uma adversidade sublime, de um problema terrificante”. Hoje, o trágico dissolveu-se neste nada que é a falsa identidade da sociedade e do sujeito, cujo horror ainda se pode divisar fugidiamente na aparência nula do trágico.80

Adorno afirma que a acessibilidade dos produtos culturais não fez com que estes

perdessem o seu caráter de mercadoria. Para ele, “a eliminação do privilégio da cultura

pela venda em liquidação dos bens culturais não introduz as massas nas áreas de que

eram antes excluídas, mas serve, ao contrário, nas condições sociais existentes,

justamente para a decadência da cultura e para o progresso da incoerência bárbara.”81 A

cultura de elite foi transformada em cultura de massa, mas não na perspectiva que

chegou a ser idealizada por Marcuse. Não houve democratização da cultura e, como

observa Freitag, a dissolução da obra de arte não ocorreu porque o sistema de produção

de mercadorias havia sido suprimido e sim porque ela foi transformada em mercadoria.

79 - Marcuse, Herbert. A ideologia da Indústria Cultural. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p.28. 80 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.144.

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Voltando à oposição entre cultura e civilização, a reconciliação entre ambas não ocorreu

de fato.

3.5. De Marcuse a Freud: possibilidade de felicidade na organização social

Marcuse busca uma âncora em Freud para analisar a questão da felicidade dentro

da estrutura social. Para o segundo, o conflito entre a aspiração individual à felicidade e

a organização da sociedade não conhecerá nunca uma solução definitiva, já que a

“contradição entre o princípio do prazer e o princípio da realidade é eterna”.82

Na teoria de Freud, “a história do homem é a história da sua repressão”:83 a

sociedade civilizada baseia-se na permanente subjugação dos instintos humanos, sendo

incompatível com a sua livre gratificação. Segundo ele, essa coação constitui mesmo

um pré-requisito para o progresso, pois “se tivessem liberdade de perseguir seus

objetivos naturais, os instintos básicos do homem seriam incompatíveis com toda a

associação e preservação duradoura: destruiriam até aquilo a que se unem ou em que se

conjugam”.84 Assim, a felicidade deve estar subordinada às disciplinas do trabalho, da

monogamia e à sujeição às leis e à cultura do sistema estabelecido.

Essa repressão introduz o indivíduo ao princípio da realidade em detrimento ao

princípio do prazer: “o homem aprende a renunciar ao prazer momentâneo, incerto e

destrutivo, substituindo-o pelo prazer adiado, restringido mas ‘garantido’ ”.85

A luta pela existência tem lugar num mundo demasiado pobre para a satisfação das necessidades humanas sem restrição, renúncia e dilação

81 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.150. 82 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.24. 83 - Marcuse, Herbert. Eros e Civilização. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p.33. 84 - Ibid., p.33. 85 - Ibid., p.34.

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constantes. Por outras palavras, qualquer satisfação que seja possível necessita d trabalho, arranjos e iniciativas mais ou menos penosas para a obtenção dos meios de satisfação das necessidades. Enquanto o trabalho dura, o que, praticamente, ocupa toda a existência do indivíduo amadurecido, o prazer é suspenso e o sofrimento físico prevalece. E como os instintos básicos lutam pelo predomínio do prazer e a ausência de dor, o princípio de prazer é incompatível com a realidade, e os instintos têm de sofrer uma arregimentação expressiva.86

Assim, há um permanente mal-estar na civilização, uma vez que esta reprime os

instintos naturais de prazer e agressividade. Esse mal-estar, como observa Freud, não é

privilégio da sociedade capitalista, mas de todas as estruturas sociais e decorre dos

“sacrifícios pulsionais exigidos pela vida social”.87

Eis o mal-estar: frustração e culpa. O ressentimento contra a civilização é uma conseqüência lógica desse mal-estar.88

Segundo Sérgio Paulo Rouanet, o mal-estar é inerente a qualquer tipo de

civilização, em qualquer estágio evolutivo. “Mas podemos presumir que ele se revista

de formas especiais conforme o período histórico. Ele foi um no início da vida social,

outro nas cidades antigas, outro nos grandes impérios, outro no feudalismo, outro na

monarquia absoluta”.89 Atualmente, então, podemos falar num mal-estar moderno e

assim,

tratando-se de um mal-estar na modernidade, o ressentimento se dirige contra o modelo civilizatório que dá seus contornos à modernidade: o Iluminismo. O ressentimento antimoderno se transforma assim num ressentimento contra-iluminista. O mal-estar na modernidade é a expressão psíquica do contra-iluminismo atual. Ele se traduz na rejeição global de todo o projeto iluminista”.90

86 - Marcuse, Herbert. Eros e Civilização. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p.51. 87 - Rouanet, Sérgio Paulo. Mal-estar na modernidade. São Paulo, Companhia das Letras,1993, p. 96. 88 - Ibid., p. 96. 89 - Ibid., p. 96. 90 - Ibid., p. 98 e 99.

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Desta forma, observa Rouanet, a razão que nos recusa tantas possibilidades de

prazer se converte em inimiga. “O homem descobre como é agradável escapar dela,

pelo menos por algum tempo, cedendo às seduções do absurdo”.91 Apesar de não haver

ligação direta entre as idéias, o ponto de vista de Rouanet corrobora a imensa facilidade

dos produtos culturais em influenciar os indivíduos, que parecem deixar-se levar pela

sua simplicidade e irracionalidade.

Marcuse também aponta para o irracional da sociedade. Para ele, “sua

produtividade é destruidora do livre desenvolvimento das necessidades e faculdades

humanas; sua paz, mantida pela constante ameaça de guerra; seu crescimento,

dependente da repressão das possibilidades reais de amenizar a luta pela existência –

individual, nacional e internacional”.92

A união da produtividade crescente e da destruição crescente; a iminência de aniquilamento; a rendição do pensamento, das esperanças e do temor às decisões dos poderes existentes; a preservação da miséria em face da riqueza sem precedente, constituem a mais imparcial acusação – ainda que não seja a razão de ser desta sociedade, mas apenas um subproduto. O seu racionalismo arrasador, que impele a eficiência e o crescimento, é, em si, irracional.93

De volta à repressão na sociedade atual, Marcuse observa que a diferença está

em sua dimensão interior. Merquior afirma que a ambição de Marcuse é exatamente

demonstrar como a sociedade de massas destruiu as aspirações de liberdade e de

satisfação embutidas na tradição ideológica do Ocidente. Essa repressão não é gerada

por uma coação externa, mas por uma “dissimulada e sofisticada regulamentação das

próprias atividades da mente – numa espécie de ‘brain washing’ em escala coletiva”.94

91 - Rouanet, Sérgio Paulo. Mal-estar na modernidade. São Paulo, Companhia das Letras,1993. P 105. 92 - Marcuse, Herbert. Eros e Civilização. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p.14. 93 - Ibid., p.16. 94 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.26.

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Desta forma o autor sentencia que o procedimento repressivo da sociedade tecnológica

“consiste em colocar a interiorização a serviço de finalidades repressivas”.95

Na sociedade industrial moderna, o divórcio entre os modos de vida e as verdadeiras aspirações humanas é tão grande, que um novo gênero de repressão suplementar se faz necessário: a moldagem da psique.96

Além disso, Marcuse avalia que a sociedade tecnológica, através da Indústria

Cultural e da perspectiva de auto-liquidação da cultura, exagera na dose repressiva. O

autor cria a expressão “surplus repression” para designar “a dose de repressão

dispensável do ponto de vista do crescimento e da preservação da civilização, porém

requerida pelas forças interessadas na manutenção do ‘establishment’ – da estrutura

insatisfatória da sociedade.”97 Para ele, o progresso e o alto nível de produtividade

atuais já permitiriam que a energia voltada para o trabalho alienado fosse reduzida e a

continuidade da repressão aos instintos não ocorre mais em função da luta pela

existência, mas sim pelo interesse em dominar. Os agentes dessa repressão-extra,

porém, não são necessariamente indivíduos designados e conscientes desse fim, mas

tendências sociais, muitas vezes inconscientemente encarnadas pelos indivíduos.

Freud analisa que, ao repreender os instintos, a civilização traz em si o germe de

sua própria ruína. Para Marcuse esse potencial destrutivo é ainda maior na sociedade de

massas.

Finalmente, Marcuse acredita que o controle exercido na sociedade

contemporânea é – ou transformou-se em - um controle impessoal. Não há um centro

único de poder e decisão, a máquina gira sozinha, transformando empregados, patrões e

95 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.26. 96 - Ibid., p.27. 97 - Ibid., p.27.

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as projeções pessoais da publicidade moderna em “simples funcionários de uma

autoridade realmente impessoal: o aparelho de produção.”98

Essa idéia faz eco com a alegoria utilizada por Adorno para a sociedade

capitalista. O autor utiliza-se do mito de Ulisses, em que para escapar ao canto das

sereias este ordena que todos os marinheiros tapem os ouvidos com cera, enquanto ele

próprio fica amarrado ao mastro da embarcação. Quando a melodia surge, ele não

consegue escapar, apenas escuta em desespero. Os demais, surdos, não conseguem

ouvir os pedidos para que o desatem. Assim, “alertas e concentrados, os trabalhadores

têm que olhar para frente e esquecer o que foi posto de lado. A tendência que impele à

distração, eles têm que sublimá-la num esforço suplementar. É assim que se tornam

práticos”.99 Ulisses, por outro lado, não é mais livre do que seus empregados. O poder

de escolha também não existe mais para ele, que está irremediavelmente paralisado

pelos laços com que se atou à práxis. Ele percebe a sedução e a beleza do canto das

sereias, mas nada mais pode fazer: “quanto maior se torna a sedução, tanto mais

fortemente ele se deixa atar, exatamente como, muito depois, os burgueses, que

recusavam a si mesmos a felicidade com tanto maior obstinação quanto mais acessível

ela se tornava com o aumento de seu poderio. (...) Sua sedução transforma-se,

neutralizada num mero objeto de contemplação, em arte.”100

98 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.30. 99 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.45. 100 - Ibid., p.45.

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Marcuse, no entanto, ainda não está totalmente contaminado pelo pessimismo

em Eros e Civilização. Ao contrário, utiliza-se da psicanálise de Freud para tenta

encontrar uma solução para a sociedade futura.

Neste sentido, sua grande pergunta é se a relação entre “liberdade e repressão,

produtividade e destruição, dominação e progresso”101 constitui efetivamente o princípio

da civilização ou apenas desta civilização específica.

Para tentar responder a essa questão ele examina a hipótese de uma sociedade

não-repressiva, mas para isso precisa ir além da teoria de Freud, na medida em que este

parece refutar a idéia e simpatizar com o pensamento de que uma sociedade sem coação

inviabilizaria a vida em comunidade e o progresso.

Marcuse, por sua vez, segue o raciocínio do próprio Freud quando este afirma

que a natureza dos instintos é “historicamente adquirida”. A partir daí, conclui que essa

natureza está, portanto, sujeita a mudanças “se as condições fundamentais que foram a

causa dos instintos adquirirem tal natureza tiverem também mudado”.102 Assim,

Marcuse continua a defender que “as próprias realizações da civilização repressiva

parecem criar as precondições para a gradual abolição da repressão”103 e que se o

processo histórico criasse condições para a obsolescência do princípio do desempenho –

ou seja, da organização repressiva e integrada da sexualidade e do instinto de destruição

– também seria possível libertar os instintos de suas restrições. Para ele, “isso implicaria

a possibilidade real de uma eliminação gradual da mais-repressão, pelo que uma

crescente área de destrutividade poderia ser então absorvida ou neutralizada pela libido

assim fortalecida”.104

101 - Marcuse, Herbert. Eros e Civilização. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p.28. 102 - Ibid., p.130. 103 - Ibid., p.28. 104 - Ibid., p.124.

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Tal critério implica uma crítica do princípio de realidade estabelecido, em nome do princípio de prazer – uma reavaliação da relação antagônica que prevaleceu entre as duas dimensões da existência humana.105

Marcuse, desta forma, tem o seu momento de otimismo teórico, em que

consegue imaginar soluções para a humanidade a partir de mudanças estruturais na

sociedade. Seu objetivo principal sempre foi a identificação dos meios para a

estruturação de uma sociedade livre e feliz. A Grande Recusa desta época ainda era uma

“negação positiva”, quer dizer, ainda vislumbrava a transformação social. Claro, a

intenção soa utópica e foi considerada assim pelo próprio Marcuse de Ideologia da

Sociedade Industrial.

105 - Marcuse, Herbert. Eros e Civilização. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p.125.

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4 – Tecnologia e Arte __________________________________________________________________________________________________________

A tecnologia e a arte são pontos dos mais fundamentais dentro do pensamento de

todos os frankfurtianos, além de estarem diretamente relacionados à Indústria Cultural:

seja possibilitando a sua existência, seja como oposição e alternativa, ou até mesmo

confundindo-se com ela.

4.1. Tecnologia: de aliada a traidora

No que diz respeito à tecnologia, ora ela é vista como aliada, ora percebida como

a pior das inimigas. Marx acreditava que o desenvolvimento tecnológico era essencial

para o combate à escassez e, neste sentido, o problema não era a tecnologia em si, mas

apenas sua utilização indevida pelo capitalismo. Inicialmente, Adorno, Horkheimer e

Marcuse também enxergaram-na como instrumento para o progresso da humanidade,

tanto material como espiritualmente. Em sua visão, a ciência positiva promoveria a

emancipação da humanidade de medos e mitos ilógicos e levaria ao esclarecimento.

O principal crime do desenvolvimento tecnológico, no entanto, foi viabilizar o

surgimento da Indústria Cultural e de todas as suas conseqüências, como vimos

observando. A principal delas, inclusive, o reforço do sistema e da sociedade vigentes.

Assim, é a ligação entre tecnologia e comunicação de massas que é atacada e pode-se

ousar dizer que os produtos dessa união são os principais objetos de atenção desses

intelectuais. Se essa afirmação parece simplista em um primeiro momento, basta

enumerar que entre os seus efeitos diretos e indiretos está o fortalecimento do sistema

capitalista; a perda da aura da obra de arte descrita por Benjamin; o empobrecimento da

experiência vivida; o abandono definitivo da luta de classes; a alienação dos

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consumidores; entre outras questões. Também foi essa aproximação – ou a constatação

de suas conseqüências - que provocou uma mudança radical na teoria crítica, que ficou

mais dura, cética e pessimista.

A desilusão de Adorno e Horkheimer com a tecnologia já é clara em Dialética

do Esclarecimento. No texto, os autores chegam à conclusão de que “o espírito de

domínio tecnológico da natureza não assegura uma existência verdadeiramente

humana”106. Para eles, se por um lado o aumento da produção fornece os meios

materiais para um mundo mais justo, por outro confere grande poder ao aparelho

técnico e aos grupos sociais que o controlam. Assim, “o indivíduo se vê completamente

anulado em face dos poderes econômicos. Ao mesmo tempo, estes elevam o poder da

sociedade sobre a natureza a um nível jamais imaginado.”107

Adorno não se limita a analisar a tecnologia de forma ampla, mas avalia o seu

efeito prático através dos produtos da Indústria Cultural. Para ele, esses produtos

provocam a atrofia da atividade intelectual do espectador. E essa paralisação não se

deve unicamente a mecanismos ou armadilhas psicológicos, mas à própria estrutura e à

forma de acompanhamento e utilização desses produtos.

São feitos de tal forma que sua apreensão adequada exige, é verdade, presteza, dom de observação, conhecimentos específicos, mas também de tal sorte que proíbem a atividade intelectual do espectador, se ele não quiser perder os fatos que desfilam velozmente diante de seus olhos.108

Merquior observa certa ambivalência na postura de Adorno, causada pela defesa

do espírito crítico ao mesmo tempo em que denuncia o imperialismo da razão

tecnológica. Na visão do segundo, a razão tecnológica deixa de ser meramente um

106 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.49. 107 - Ibid., p.14.

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instrumento à disposição do homem e passa a representar uma “investida tirânica contra

a natureza e contra o próprio homem”. Na verdade, essa “ambivalência” percebida por

Merquior revela o endurecimento e a gradual mudança de rumos dos intelectuais de

Frankfurt – a perda de confiança no teor emancipatório da razão tecnológica e sua

conversão em inimiga.

Esse “amadurecimento” também é observado em Marcuse, que avalia a

tecnologia sob duas perspectivas diferentes. Em um primeiro momento, como vimos,

integra-a em sua utopia de uma sociedade sem repressão, em que o trabalho é abolido e

os seres humanos vivem em constante estado de satisfação e felicidade. Neste caso a

tecnologia tem o duplo papel de substituir os indivíduos nos processos de trabalho,

liberando-os para a diversão, e promover o fim das necessidades materiais.

Desta forma, ao defender a tecnologia Marcuse tem em mente um projeto de

transformação da sociedade atual em uma sociedade ideal. Isso significaria corrigir

suas deficiências, entre outras coisas aliviando a carga de trabalho dos indivíduos e

liberando-os para o prazer e a criação. Merquior observa que apesar do pessimismo

com relação ao momento presente, Marcuse insiste em que o nível do progresso

tecnológico alcançado em nosso tempo conquistou “o espaço subjetivo e objetivo para o

reino (possível, embora inviável) da felicidade humana“.109 Neste momento não há

dúvidas de que Marcuse ainda está conceitualmente próximo de Marx e acredita que

não considerar “as possibilidades de maior felicidade contidas no nível já atingido pelo

progresso tecnológico”110 é ser conivente com a repressão.

A perda do otimismo, porém, não tarda. Em Ideologia da Sociedade Industrial,

o tom utilizado já é bem mais sóbrio. Neste texto, Marcuse avalia que a tecnologia

108 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.119. 109 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.289.

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acaba por compactuar com o controle social e desenvolver-lhe formas cada vez mais

complexas e eficazes. Ele afirma que o aparato produtivo torna-se totalitário ao

determinar não apenas os comportamentos socialmente necessários, mas também as

“necessidades e aspirações individuais”.111 Desta forma, reconhece que a noção da

“neutralidade” da tecnologia não pode mais ser sustentada: “a tecnologia não pode,

como tal, ser isolada do uso que lhe é dado; a sociedade tecnológica é um sistema de

dominação que já opera no conceito e na elaboração das técnicas”.112

As aptidões (intelectuais e materiais) da sociedade contemporânea são incomensuravelmente maiores do que nunca dantes – o que significa que o alcance da dominação da sociedade sobre o indivíduo é incomensuravelmente maior do que nunca dantes. A nossa sociedade se distingue por conquistar as forças sociais centrífugas mais pela Tecnologia do que pelo Terror, com dúplice base numa eficiência esmagadora e num padrão de vida crescente.113

Para Marcuse, apesar de o desenvolvimento atual da tecnologia já possibilitar

uma liberação de energia para além do trabalho alienado, como descrito em Eros e

Civilização, ela trabalha exatamente na tendência oposta: “o aparato impõe suas

exigências econômicas e políticas para a defesa e a expansão ao tempo de trabalho e ao

tempo livre, à cultura material e intelectual.”114 O afastamento de Marx também é

inevitável, já que, como observa Merquior, o primeiro nunca “chegou a duvidar de que,

dadas certas condições, a felicidade seria atingida pelo homem”.115

Marcuse condena a razão tecnológica porque ela exige a separação entre o ego e

os instintos e potencializa a separação entre o homem e a natureza. Voltando à

110 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.289. 111 - Marcuse, Herbert. A Ideologia da Sociedade Industrial. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p.18. 112 - Ibid., p.19. 113 - Ibid., p.14. 114 - Ibid., p.24.

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aproximação com Freud, Marcuse rechaça ainda o princípio da realidade, “definido

como sufocação necessária dos instintos em nome da paz social e da possibilidade do

convívio humano”116 e declara que este não é senão “a máscara do princípio da

eficiência, da religião da eficácia, da fúria tecnológica a cujo serviço o homem aliena as

suas ‘chances’ de felicidade”.117

Na verdade há forte identificação entre os posicionamentos de Adorno e

Marcuse sobre a questão tecnológica. Segundo Merquior,

o tema forte da ‘maldição iluminista’ em Adorno corresponde, cem por cento, à crítica marcusiana da sociedade tecnológica. Neste sentido, os fundamentos últimos da ‘dialética do iluminismo’ e as raízes da teoria de Marcuse são idênticos.118

Ambos mostram-se pessimistas em tempo integral no que diz respeito ao

presente. Inicialmente, no entanto, há expectativas com relação às possibilidades

futuras, cujo fim leva ao recrudescimento do pensamento negativo, como veremos

adiante. Além disso, ambos não admitem concessões, não há possibilidade de diálogo

com a sociedade tecnológica e menos ainda com a cultura de massas. Ou as duas são

destruídas, ou a humanidade é que o é. Como conseqüência, Adorno volta-se à

negatividade e à teoria estética, enquanto Marcuse fecha-se na Grande Recusa.

4.1.1 . O “integrado” Benjamin

Walter Benjamin tem opinião diversa a respeito dos efeitos da tecnologia e da

razão tecnológica. Apesar de ter experimentado um dos seus produtos mais irracionais,

115 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.23. 116 - Ibid., p.43. 117 - Ibid., p.43.

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o fascismo, Benjamin nunca deixou de enxergar possibilidades positivas em sua

utilização.

Para Merquior, um dos fatores que explicam a “integração” de Benjamin neste

aspecto, pelo menos em relação a Adorno, Marcuse e Horkheimer, é o fato de o

primeiro não ter cumprido exílio nos Estados Unidos. Nessa experiência, os três

últimos encontraram a concretização de todos os seus pesadelos: a sociedade

tecnológica plenamente desenvolvida. Merquior consegue reconstruir com precisão a

imagem do horror que os refinados burgueses europeus devem ter sentido frente ao

american way of life:

Para os três exilados, a cultura americana não é senão o último e mais sutil avatar da repressão: da repressão de tal modo triunfante, que dispensa todas as suas formas físicas e diretas, contentando-se com a moldagem universal das consciências, executada pela onipotência dos ‘mass media’, em pleno regime de liberdade. A repugnância pelo ‘american way of life’ é o traço psicológico que está na origem do ceticismo adorno-marcusiano diante das chances de humanização da sociedade tecnológica.119

Ainda na opinião de Merquior, a visão de Benjamin sobre a tecnologia é muito

mais matizada que a dos demais frankfurtianos e implica uma visão de mundo que

“oferece dimensões bem mais amplas do que o pessimismo de Frankfurt”.120

Boa parte dos argumentos de Benjamin sobre a tecnologia está presente no texto

A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica. Nele, o autor constrói teses

sobre as tendências evolutivas da arte nas condições produtivas do capitalismo da

década de 30, mais particularmente sobre a evolução das suas técnicas de reprodução,

em especial a fotografia e o cinema.

118 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.96. 119 - Ibid., p.99. 120 - Ibid., p.100.

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O objeto principal de Benjamin é a perda da aura na arte, que ocorre em virtude

do desenvolvimento da tecnologia e conseqüente capacidade de reproduzir tecnicamente

as obras. A aura pode ser definida como o invólucro da obra de arte e que contém

elementos espaciais e temporais: “a aparição única de uma coisa distante, por mais perto

que ela esteja”.121 Benjamin identifica os fatores sociais específicos que condicionam o

seu declínio atual, que, para ele, deriva de circunstâncias estreitamente ligadas à

crescente difusão e intensidade dos movimentos de massas.

Fazer as coisas “ficarem mais próximas” é uma preocupação tão apaixonada das massas modernas como sua tendência a superar o caráter único de todos os fatos através da sua reprodutibilidade. (...) Retirar o objeto do seu invólucro, destruir sua aura, é a característica de uma forma de percepção cuja capacidade de captar “o semelhante no mundo” é tão aguda, que graças à reprodução ela consegue captá-lo até no fenômeno único.122

É preciso entender, no entanto, que Benjamin não lamenta a perda da aura. Para

ele, como observa Freitag, longe da esfera da contemplação a obra adquire um novo

valor – o valor de consumo -, tornando-se acessível a todos os indivíduos. A obra de

arte não é destruída com a possibilidade da reprodução, ela é radicalmente

transformada. Mudam ao mesmo tempo a sua natureza e a forma de apreensão pelo

consumidor.

A obra de arte reprodutível abala a tradição e, com isso, promove a atualização

do objeto reproduzido. Assim, cria-se a possibilidade de renovação também da

humanidade. A obra de arte reprodutível estabelece um diálogo com os movimentos de

massa dentro da sociedade atual, coisa que a arte tradicional há muito não fazia. Neste

sentido, um dos maiores focos de Benjamin está nas virtudes potenciais do cinema.

121 - Benjamin, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In: Obras escolhidas I. São Paulo, Brasiliense, 1985, p.170 122 - Ibid., p.170.

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Para ele, é um erro tentar apreciar um filme ainda dentro da esfera do sagrado ou

tentar encontrar elementos da obra de arte tradicional na montagem cinematográfica. A

arte mudou, o olhar também precisa mudar. Não importa se os produtos da Indústria

Cultural podem ou não ser considerados arte, isso não é relevante. O que importa é que,

arte ou não, a Indústria Cultural ocupou parte do espaço da arte tradicional e, em sua

opinião, resgatou e renovou funções que estavam atrofiadas.

Benjamin, no ponto de interseção com os demais frankfurtianos, acredita que a

expansão tecnológica é potencialmente benéfica à humanidade e que é o capitalismo

que a desvirtua. Merquior lembra que, no epílogo da A Obra de Arte na Era de sua

Reprodutibilidade Técnica, Benjamin “acusa o nazismo de desviar para a guerra a

direção democrática contida na tecnologia moderna.”123 Assim, sua principal diferença

em relação aos seus contemporâneos de Frankfurt talvez seja incluir determinados

produtos culturais, em especial o cinema, entre os “efeitos positivos” da tecnologia.

Um dos trunfos do cinema é o poder de penetrar no indivíduo. Neste ponto, há o

contraste com a arte tradicional, em que é o espectador que penetra na obra através da

mera contemplação. O cinema produz um choque que não é mais sentido com a arte e

este “choque nos adapta, tanto quanto nos adaptamos a ele”.124 A experiência

cinematográfica produz um novo tipo de percepção em que cada indivíduo é ao mesmo

tempo ativo e passivo.

A descrição cinematográfica da realidade é para o homem moderno infinitamente mais significativa que a pictórica, porque ela lhe oferece o que temos o direito de exigir da arte: um aspecto da realidade livre de qualquer manipulação pelos aparelhos, precisamente graças ao procedimento de penetrar, com os aparelhos, no âmago da realidade”.125

123 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.121. 124 - Ibid., p.121. 125 - Benjamin, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In: Obras escolhidas I. São Paulo, Brasiliense, 1985. p.187.

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Benjamin diverge radicalmente de Adorno nesta questão, já que para o segundo,

como vimos, a forma de acompanhamento do cinema proíbe a atividade intelectual do

espectador. Para Benjamin, ao contrário, a experiência cinematográfica implica um

aprendizado: “o filme serve para exercitar o homem nas novas percepções e reações

exigidas por um aparelho técnico cujo papel cresce cada vez mais em sua vida

cotidiana. Fazer do gigantesco aparelho técnico do nosso tempo o objeto das inervações

humanas – é essa a tarefa histórica cuja realização dá ao cinema o seu verdadeiro

sentido”.126 Segundo ele, a recepção através da distração constitui o sintoma de

transformações profundas nas estruturas perceptivas e tem no cinema o seu cenário

privilegiado.

Benjamin observa ainda, em um dos pontos mais importantes, que a

reprodutibilidade técnica modifica a relação da massa com a arte. A arte tradicional

vinha perdendo significação social, o que distanciava a atitude de fruição da atitude

crítica, ou seja: desfrutava-se o que era convencional, sem criticá-lo; criticava-se o que

era novo, sem desfrutá-lo. O cinema, por sua vez, consegue promover uma

reaproximação com o público. No cinema,

a associação de idéias do espectador é interrompida imediatamente, com a mudança da imagem. Nisso se baseia o efeito de choque provocado pelo cinema, que, como qualquer outro choque, precisa ser interceptado por uma atenção aguda. O cinema é a forma de arte correspondente aos perigos existenciais mais intensos com os quais se confronta o homem contemporâneo.127

O autor analisa ainda a questão da representação diante da câmera e traça um

paralelo interessante: de dia, os indivíduos alienam-se diante de um aparelho, durante o

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trabalho. À noite realizam a sua vingança através do ator cinematográfico; este afirma

sua humanidade diante do aparelho e, mais ainda, “coloca esse aparelho a serviço do seu

próprio triunfo”.128 O cinema ainda possibilitaria que o indivíduo criasse consciência

dos condicionamentos que determinam sua existência, mas assegurando-lhe, por outro

lado, um grande espaço de liberdade.

Benjamin não deixa de perceber, contudo, a expropriação do potencial positivo

da reprodutibilidade técnica pelo capitalismo. Para ele, o capital cinematográfico

inverte as relações de controle – ao invés das massas controlarem o conteúdo e a forma

no cinema, aproveitando-lhe as oportunidades revolucionárias, ocorre justamente o

oposto. O capital “estimula o culto do estrelato, que não visa conservar apenas a magia

da personalidade, há muito reduzida ao clarão putrefato que emana do seu caráter de

mercadoria, mas também o seu complemento, o culto do público, e estimula, além disso,

a consciência corrupta das massas, que o fascismo tenta por no lugar de sua consciência

de classe”.129

Assim, o capital cinematográfico corromperia e falsificaria o interesse original

das massas pelo cinema, relacionado à sua consciência de classe, e o vincularia aos

interesses de uma minoria, como ocorre com os demais aspectos da sociedade

capitalista. Por este motivo, Benjamin considera a expropriação do capital

cinematográfico “uma exigência prioritária do proletariado”.130

Ao analisar o pensamento de Benjamin sobre a tecnologia, não há como não lhe

notar por um lado a originalidade e, por outro, a ingenuidade. Como mencionamos, há

semelhanças com a fase inicial de Adorno e Marcuse no que diz respeito à má utilização

126 - Benjamin, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In: Obras escolhidas I. São Paulo, Brasiliense, 1985. p.174. 127 - Ibid., p.192. 128 - Ibid., p.179. 129 - Ibid., p.180. 130 - Ibid., p.185.

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da tecnologia pelo sistema capitalista. As diferenças, porém, são gigantescas quanto ao

papel da arte e dos produtos da Indústria Cultural, em especial o cinema. Talvez, se

tivesse sobrevivido à guerra, Benjamin produzisse, a exemplo de Marcuse (com Eros e

Civilização e Ideologia da Sociedade Industrial) um trabalho mais crítico e mais

pessimista. Talvez, ao contrário, conseguisse estabelecer uma ponte, já naquela época,

entre o pessimismo e a sociedade de massas. Talvez perseguisse ainda mais a

conscientização através da Indústria Cultural. Talvez não.

4.2. Arte: ruína ou felicidade?

A questão estética também está no cerne da teoria crítica. A arte aparece como

forma de protesto, como mera contemplação, ou até mesmo como caminho inequívoco

para a felicidade. Também assume parte da culpa pelo fortalecimento do sistema e da

comunicação de massa, uma vez que fracassa em seu papel político. Por vezes a arte

pode existir na cultura de massas, por outras extingue-se com elas.

Veremos a seguir os principais pontos de vista dos intelectuais de Frankfurt no

que diz respeito à arte na sociedade capitalista avançada e um contraponto entre as

idéias de Adorno e Guy Debord sobre a experiência artística no mundo contemporâneo.

O segundo chega a decretar sua morte, dado o fracasso das vanguardas estéticas e

políticas.

Como ponto de partida temos a sociedade iluminista, que a tolerava enquanto

mero objeto de contemplação e deleite. Segundo Merquior, a estética também assume

uma função de compensação, “uma tentativa de restaurar um outro cosmos, um mundo

essencialmente diverso do da razão tecnológica”.131 Para ele, a arte iluminista traz em si

131 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.51.

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um sentimento de nostalgia e remete a um passado de harmonia do homem com a

natureza. A sociedade positivista só admite a arte enquanto memória passiva de uma

felicidade remota - a experiência estética constitui a conciliação, a nostalgia da

identificação entre homem e natureza.

Assim, a arte ao mesmo tempo aproxima-se e distancia-se da magia na sociedade

iluminista. Por um lado, para assumir o papel contemplativo e nostálgico, precisa

abdicar da pretensão ao conhecimento efetivo, característico da experiência mágica.

Por outro, não abandona a busca pela totalidade:

a arte fabrica um substitutivo quase perfeito do objeto mágico. Em ambos existe a solicitação da totalidade. A magia invocava o mana, a unidade divina; a arte evoca o todo, ‘pretende o absoluto’.132

Neste ponto, cabe voltar ao conceito de Benjamin sobre a aura da obra de arte –

que é exatamente o elemento que se perde na transição da sociedade iluminista para a

sociedade moderna avançada, com o aprimoramento da reprodutibilidade técnica da

obra de arte. A aura é “herdeira da magia” e a “vocação da totalidade modela cada

verdadeira obra de arte, tal como, outrora, cada simples gesto mágico”.133

Pertence ao sentido da obra de arte, da aparência estética, ser aquilo em que se converteu, na magia do primitivo, o novo e terrível: a manifestação do todo no particular. Na obra de arte volta sempre a se realizar a duplicação pela qual a coisa se manifestava como algo espiritual, como exteriorização do mana. É isto que constitui sua aura.134

Ao que nos parece, então, é possível ter como premissa que a principal

modificação no papel da arte com o advento do capitalismo industrial avançado é a

132 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.51. 133 - Ibid., p.51.

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perda da sua aura e da sua identificação com a magia. Com a reprodução em massa, a

arte perde seu caráter único, aprofunda o seu caráter de mercadoria e deixa de ser um

elo de ligação com a natureza. É neste recorte específico e com esta questão em mente

que avaliaremos o ponto de vista dos intelectuais de Frankfurt.

4.2.1. Marcuse: arte como promessa de felicidade

Na mais poética das imagens, Marcuse acredita que a arte carrega consigo a

promessa de felicidade. Ele destaca a expressão artística do domínio puramente estético

e a transporta para a vida em seu ideal de sociedade não-repressiva. A dimensão estética

de Marcuse prevê a transformação da própria vida em obra de arte, através do fluxo

livre dos instintos humanos.

Merquior observa que na teoria de Marcuse a arte vem sempre triunfante,

“baseada na expressão tranqüila e plena de uma harmonia superior”.135 A posição de

Marcuse contrasta radicalmente com a de Adorno nesse ponto. Para o segundo, não há

nada de glorioso na arte, ao contrário esta “é a encarnação do desespero, da revolta e da

dilaceração”.136 Além disso, o fenômeno artístico para este restringe-se ao campo da

própria arte e “não a uma projeção do estético em outros planos da atividade

humana”.137

Seguindo Freud, Marcuse reconhece na fantasia o impulso de superar a realidade

humana e reconciliar o homem com a natureza; neste sentido, associa-a à arte, na

medida em que esta é uma forma de expressar e dar forma à primeira:

134 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.32. 135 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.56. 136 - Ibid., p.56.

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Como processo mental independente e fundamental, a fantasia tem um valor próprio e autêntico, que corresponde a uma experiência própria – nomeadamente, a de superar a antagônica realidade humana. A imaginação visiona a reconciliação do indivíduo com o todo, do desejo com a realização, da felicidade com a razão. Conquanto essa harmonia tenha sido removida para a utopia pelo princípio da realidade estabelecido, a fantasia insiste em que deve e pode tornar-se real, em que o conhecimento está subentendido na ilusão. As verdades da imaginação são vislumbradas, pela primeira vez, quando a própria fantasia ganha forma, quando cria um universo de percepção e compreensão – um universo subjetivo e, ao mesmo tempo, objetivo. Isso ocorre na arte.138

Para ele, a arte também modela a “ ‘memória inconsciente’ da libertação que

fracassou, da promessa que foi traída”.139 Assim, consegue opor a imagem do homem

livre à repressão da sociedade tecnológica, mas - da mesma forma que Adorno –

acredita que a libertação só vem da “negação da não-liberdade”.140 Ou seja, a arte tem o

papel de reaproximar o indivíduo de premissas importantes aprisionadas no inconsciente

e levá-lo ao caminho da crítica à realidade atual. Para conseguir dar conta desse papel a

expressão artística deve estar desvinculada da forma e dos padrões estéticos

estabelecidos:

A própria vinculação da arte à forma vicia a negação da não-liberdade em arte. Para ser negada, a não-liberdade deve ser representada na obra de arte com semblante da realidade. Esse elemento de parecença sujeita, necessariamente, a realidade representada a padrões estéticos e, assim, priva-a do seu terror. Além disso, a forma da obra de arte inculca ao conteúdo as qualidades de fruição de prazer. Estilo, ritmo, métrica, introduzem uma ordem estética que em si mesmo é agradável, reconciliando-se com o conteúdo. A qualidade estética da fruição, mesmo do entretenimento, tem sido inseparável da essência da arte, por mais trágica, por mais intransigente que a obra de arte seja.141

137 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.55. 138 - Marcuse, Herbert. Eros e Civilização. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p.134. 139 - Ibid., p.134. 140 - Ibid., p.134.

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Mas novamente ao contrário de Adorno, mesmo em seu momento mais

pessimista Marcuse parece não duvidar da arte, acreditando que “a dimensão estética

ainda conserva uma liberdade de expressão que permite ao escritor e ao artista chamar

os homens e as coisas por seus nomes – dar nome ao que seria de outro modo

inominável”.142

4.2.2. Estilo e harmonia, arte e confronto com a tradição

O conceito de estilo segundo Adorno exprime tanto na Idade Média como no

Renascimento a estrutura diversificada do poder social e não uma conformidade a leis

estéticas, idéia que não passa de uma “fantasia romântica retrospectiva”. Para ele, “os

grandes artistas jamais foram aqueles que encarnavam o estilo da maneira mais íntegra e

mais perfeita, mas aqueles que acolheram o estilo em sua obra como uma atitude dura

contra a expressão caótica do sofrimento, como verdade negativa.” 143

Desta forma, o estilo não passa de uma promessa. Por um lado, visa à

universalidade e à harmonia através das formas de expressão artísticas da sociedade, por

outro, não chega a – e nem pode – entregá-las. E o seu valor está exatamente nessa

busca de antemão fracassada: o verdadeiro estilo está sempre próximo à totalidade, mas

não chega a atingi-la e é isso que lhe confere a autenticidade.

é tão-somente neste confronto com a tradição, que se sedimenta no estilo, que a arte encontra expressão para o sofrimento. O elemento graças ao qual a obra de arte transcende a realidade, de fato, é inseparável do estilo. Contudo, ele não consiste na realização da harmonia – a unidade problemática da forma e do conteúdo, do interior e do exterior, do indivíduo e da sociedade -, mas nos traços

141 - Marcuse, Herbert. Eros e Civilização. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p.135. 142 - Marcuse, Herbert. A ideologia da Indústria Cultural. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p.227. 143 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.122.

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em que aparece a discrepância, no necessário fracasso do esforço apaixonado pela busca da identidade.144

Segundo Adorno, diferentemente da grande obra de arte, a obra medíocre

sempre se ateve à semelhança com outras e “a Indústria Cultural acaba por colocar a

imitação como algo de absoluto. Reduzida ao estilo, ela trai seu segredo, a obediência à

hierarquia social.”145 Sob esse ponto de vista, o estilo da Indústria Cultural representa

para Adorno a própria negação do estilo.

A reconciliação do universal e do particular, da regra e da pretensão específica do objeto, que é a única coisa que pode dar substância ao estilo, é vazia, porque não chega mais a haver uma tensão entre os pólos: os extremos que se tocam passaram a uma turva identidade, o universal pode substituir o particular e vice-versa.146

Adorno defende a inutilidade da arte, o seu distanciamento de qualquer possível

valor de troca. Afastando-se do caráter de mercadoria e da produção material, a arte não

se dirigiria aos aspectos quantitativos. Em detrimento do racionalismo da ciência

positiva, a experiência artística remete aos fins qualitativos, considerados irracionais,

como a felicidade do indivíduo (a promessa de felicidade, mais precisamente). A

inutilidade artística tem o potencial de libertar a natureza de sua condição de simples

meio ou instrumento (ADORNO apud JAPPE, Anselm).

Isso não significa, na opinião de Adorno, que o processo artístico

contemporâneo deve se isolar das forças produtivas. Ao contrário, uma arte aquém do

estágio de seu possível desenvolvimento técnico em uma sociedade – como o jazz, em

144 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.122. 145 - Ibid., p.122. 146 - Ibid., p.122.

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sua opinião - pode ser considerada “reacionária”, uma vez que não dá conta da

complexidade dos problemas atuais.147

Anselm Jappe afirma que “toda a estética de Adorno baseia-se no fato de que,

também na arte, se encontra a contradição entre o potencial das forças produtivas e seu

uso atual.”148 Assim, a arte configuraria uma forma de dominação da natureza,

submetendo os objetos a uma transformação – em especial a arte moderna, na visão do

frankfurtiano, já que esta promove uma reestruturação da realidade segundo suas

próprias regras. Por outro lado, ao contrário do que faz a tecnologia, a arte domina a

natureza apenas para “lhe restituir seus direitos”, propondo à sociedade “exemplos de

um uso possível de seus meios numa relação com a realidade que não seja de

dominação nem de violência”.149

Adorno também vê no material artístico a semente – e o dever - da ruptura. A

arte só existe na contradição e desta forma não pode ser harmônica. Como observa

Merquior, a homogeneidade é suspeita e torna-se cúmplice da ordem social, devendo ser

denunciada pelo anticonformismo da arte.

Todo grande artista prefere a ruptura à falsa harmonia da forma identificante, assimiladora, igualitária. (...) O preço da autenticidade da obra é a impossibilidade de realização formal completa, a privação da plenitude “clássica”. A verdadeira obra é maneirística; deve conter aquele arrevesamento estilístico em que se mostra a intransigência da arte diante da invasão aplainadora do veneno social.150

Assim, ao contrário de Marcuse, que consegue projetar a arte em sua sociedade

conciliada, a obra de arte para Adorno “só entretém com a paz e com a felicidade a

relação de uma nostalgia incurável; mas o seu desejo quase selvagem de um acordo

147- Jappe, Anselm. O "fim da arte" segundo Theodor W. Adorno e Guy Debord. Disponível em: http://www.rizoma.net. Acesso em: 11 abr 2006. 148 - Ibid. 149 - Ibid.

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impossível, o seu repúdio indomável da falsa ordem do universo, é a força que a

constrói como linguagem rancorosa da ruptura”.151

Para Adorno a arte é sobretudo a agente da crítica social; a expressão da crise de

valores deixa de ser secundária e torna-se a razão de ser da obra de arte. A qualidade

heróica presente no classicismo de Lukàcs desaparece, pois só pode existir atualmente,

na visão de Adorno, como mera ideologia.

O estilo que testemunha a desumanização não pode transmitir o naturalmente humano, o valor e a qualidade que a repressão destrói ou neutraliza. O estilo que presencia a violência é ele próprio vítima da tortura: é como forma amaldiçoada e retorcida que se recusará a dizer, numa última resistência, num protesto tão raivoso quanto inútil contra a falta de sentido do real.152

Este posicionamento leva Adorno a uma valorização da arte moderna, na medida

em que esta é fiel à realidade da crise da sociedade atual e consegue encarnar um dos

principais papéis da arte em sua opinião, ou seja, chega a ser o negativo da sociedade ao

invés de seu espelho. Adorno deposita nos movimentos de vanguarda o quê de

esperança que lhe resta em relação à expressão artística na era da cultura de massas.

A simpatia pela arte moderna também se deve à sua impossibilidade de absorção

imediata, ao esforço necessário ao seu entendimento. A arte moderna não compactua

com a simplificação imposta pela Indústria Cultural e “exige o emprego da inteligência

para, em troca, premiar a sensibilidade”.153

Freitag afirma que “a partir de Adorno, que havia identificado na obra de arte de

vanguarda (em especial a música) o último reduto ou esconderijo da razão, passou-se a

pensar o tema da cultura e da arte como a última possibilidade de cultivar a razão e

150 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.55. 151 - Ibid., p.56. 152 - Ibid., p.55. 153 - Ibid., p.122.

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preservá-la da contaminação instrumentalizada”.154 Merquior, por sua vez, critica-o

pelo seu “excessivo apreço pela ruptura”, que acaba por afastá-lo “do equilíbrio

dinâmico dessa dialética”. Ele lembra que entre o apolíneo e o dionisíaco de Nietzsche

havia uma relação de conflito e cooperação que margeava o entendimento e aliava

“maliciosamente os impulsos adversários”. Em Adorno, ao contrário, a balança pesa

para o fragmento em si, sem esperanças de acordo.155

Se por um lado deposita grande responsabilidade na arte, por outro, Adorno não

acredita em sua chance real de sucesso. No fundo, Adorno reconhece que o protesto da

arte – também ele – é ineficaz. Deste modo, a arte constituiria a “expressão da digna,

porém inútil, revolta do indivíduo contra o roubo dos seus direitos à felicidade”.156

4.2.3. Arte na cultura de massas

Como vimos até aqui, a arte na cultura de massas não existe para Marcuse e

Adorno, quer dizer, não existe em conformidade às regras da Indústria Cultural. Parece

ficar claro que, apesar de cogitarem a arte em uma sociedade tecnológica, esta não diz

respeito aos bens culturais de massa. A cultura de massa e os seus produtos não são

considerados arte por nenhum dos dois. O único que parece conviver com essa

possibilidade é Benjamin, em sua experiência inicial com o cinema.

Podemos dizer que a Indústria Cultural é a forma “pela qual a produção artística

e cultural é organizada no contexto das relações capitalistas de produção, lançada no

mercado e por este consumida”.157 A grande questão é que, em seu domínio, a arte

“deixa de ter o caráter único, singular, deixa de ser a expressão da genialidade, do

154 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.119. 155 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.88.

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sofrimento, da angústia de um produtor (artista, poeta, escritor) para ser um bem de

consumo coletivo, destinado desde o início à venda, sendo avaliado segundo sua

lucratividade ou aceitação de mercado e não pelo seu valor estético, filosófico, literário

intrínseco”.158

Para Marcuse, ao afastar-se da crítica aprofundada e do esforço intelectual,

assim como de uma realidade material de exploração, a arte assume uma função

alienante, “na medida em que faz com que os homens se ajustem e se adequem às

formas desumanas de organização à sociedade, remetendo para o futuro os seus desejos

de felicidade e realização”.159 Segundo Adorno, os bens culturais perdem a

característica primordial da arte: a sua capacidade de ruptura e oferecem em troca o que

ele chama de prazer culinário:

os fragmentos isolados proporcionam apenas um deleite vulgar; diante deles, o prazer estético cede à baixa sensualidade do simplesmente ‘agradável’. Esta forma de fragmentação caracteriza as obras de arte em que o enfraquecimento da estrutura serve ao predomínio do que Adorno chama de sentido culinário. O culinário em arte representa a vitória do “gostoso” sobre a profundidade emotiva e a carga intelectual do verdadeiro processo estético.160

4.2.4. O ponto de vista de Benjamin

A opinião destoante no que diz respeito à arte na sociedade de massas é a de

Benjamin, que pode ser considerado um caso à parte. Ele realiza um diagnóstico

preciso sobre as mudanças na experiência artística, decorrentes, por sua vez, de

alterações profundas na própria sociedade. Para ele, o fim da experiência efetivamente

156 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.131. 157 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.72. 158 - Ibid., p.72. 159 - Ibid., p.69.

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vivida e a modificação entre as formas de relacionamento dos indivíduos entre si e com

os objetos são determinantes para o papel da arte.

Benjamin avalia que antes da formação da grande cidade “o contato com

desconhecidos conservava o privilégio da surpresa” da mesma forma que a

contemplação da obra de arte conservava “um sabor misterioso”, “reminiscência dos

objetos do culto, as obras de arte apareciam como únicas e longínquas.”161 Para ele, “a

implantação da arte sem aura equivale à degradação das relações humanas”162, processo

sugerido no ensaio de 1939 sobre Baudelaire.163

Mas apesar dessa análise desfavorável, e de forma diretamente contrária aos

demais frankfurtianos, Benjamin consegue enxergar um papel positivo na arte

tecnologicamente reproduzível da era moderna. A posição mais amena de Benjamin é

por isso mesmo mais apreciada pelos intelectuais contemporâneos, como Habermas.

Seu objeto de estudo principal é o cinema, como vimos, que contém para ele o germe

da politização e talvez o potencial “desalienante” em relação às massas.

Dadas as grandes diferenças, há, no entanto, semelhança com a posição de

Adorno no que diz respeito a esse potencial libertador da arte. Para os autores, isso

ocorre na medida em que esta expõe o mundo como ele é, sem idealizações.

No coração da estética expressionista de Adorno e Benjamin, mora a esperança de que, se o mundo for mostrado em toda a sua sinistra carga de violência, o choque resultante leve à revolta contra a injustiça. Esta é para eles a verdadeira contribuição da arte à libertação dos homens.164

160 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.56. 161 - Ibid., 1969, p.89. 162 - Ibid., p.90. 163 - Benjamin, Walter. Obras Escolhidas Volume 3, Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo, Brasiliense, São Paulo, 1989. 164 - Merquior, op. cit., p.118.

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A lógica é a de que “se os homens forem confrontados com as ruínas do

humano, talvez se recordem das promessas da felicidade”.165

Mas além do aspecto crítico, voltado basicamente para a vida social, Benjamin

enxerga na arte o seu componente universal, que não parece não fazer parte do escopo

de Adorno. Assim, “a compreensão da obra ‘em relação a seu tempo’ é apenas uma

etapa na interpretação e no juízo; não poderá nunca explicar a universalidade do estético

e o seu interesse contemporâneo”.166

No esquema de Benjamin, a arte reflete a luta contra a desumanização e seus aspectos essencialmente históricos, mas reflete, igualmente, certos limites da condição humana que, se não podem propriamente ser chamados “atemporais”, pelo menos acompanham o homem em todas as fases do seu caminho histórico, desde que ele se reconhece como tal. A estética de Benjamin conjuga a noção dos universais da conduta humana com a consciência das raízes históricas da arte. A teoria de Adorno não tem lugar para esse primeiro elemento.167

A estética de Benjamin e sua interpretação sobre a cultura também passam pela

revalorização do conceito de alegoria, que é contraposto ao de símbolo. Segundo

Merquior, o autor “não se limita a contemplar na cultura uma projeção do homem: ele

se apaixona precisamente pelo que a cultura tem de fossilizado, de prescrito, de caduco

e até de morto”.168

Benjamin é um intérprete do não-familiar, um comentador do que se tem habitualmente por não-comentável. Onde a cultura aparece como natureza, o ensaísta entra em contato com a obra, para fazê-la confessar o que nela ficou submerso – e que, na carícia lúcida das mãos que o decifram, reviverá como potencialidade de uma conduta humana.169

165 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.118. 166 - Ibid., p.103. 167 - Ibid., p.135. 168 - Ibid., p.104.

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Neste sentido, o veículo natural dessa “verdade desprendida da intenção é a

alegoria”.170 Na lógica alegórica, os objetos não estão presos a significados únicos e

fixos: há várias possíveis significações, mutáveis de acordo com o contexto e o tempo

histórico. Não há coincidência entre sujeito e objeto, como no símbolo. A alegoria é, na

verdade, exatamente o contrário dessa fusão perfeita: “é precisamente a representação

em que há distância entre significante e significado, entre o que está dito e o que se quer

dizer”.171

A alegoria, além disso, não está ligada à universalidade e não tem a pretensão de

representar o todo. Merquior observa que as alegorias “correspondem, no reino das

idéias, ao que as ruínas são no reino das coisas”.172 Desta forma, o conceito de alegoria é

“polissêmico, aberto, histórico, hostil a todo gênero de monismo na interpretação da

realidade”.173

Merquior afirma que no esquema de Goethe, a representação por símbolo

implica:

a) uma captação do Todo no particular; b) a coincidência entre o sujeito e o objeto; c) a harmonia entre homem e natureza; d) um efeito comunicativo direto, que prescinde de comentário decifrador; e) o amor ao aspecto sensível, concreto, do representado; e f) a revelação de algo em última análise inexprimível, pois o símbolo, por mais significativo que nos pareça, contém sempre uma inesgotável reserva de sentido.174

Com isso, o símbolo contrasta diretamente com a alegoria, “que não procede por

fusão do subjetivo com o objetivo nem do homem com o meio natural, não dispensa

exegese, é abstrata, desinteressada do sensível, e se cristaliza em conceitos, sem nenhum

169 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.104. 170 - Ibid., p.104. 171 - Ibid., p.106. 172 - Ibid., p.104. 173 - Ibid., p.110.

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sentido inesgotável”.175 Enquanto o símbolo tem uma natureza plástica, atrelando a idéia

a sua forma adequada, a alegoria é temporal, “porque sempre exprime algo diverso do

que se pretendia dizer com ela”.176

A alegoria é estranha a esse tipo de atingimento direto do universal. O objeto alegórico é representação de outro, e até de vários outros, mas não do todo. A alusividade da alegoria é pluralista e não monista: ela remete à diversidade, não a uma suposta unidade do diverso.177

4.2.5. Adorno x Debord

Anselm Jappe faz um interessante paralelo entre as posições de Adorno e Guy

Debord sobre o papel da arte na sociedade de massas. Em alguns pontos importantes, a

questão é vista de forma semelhante: assim como Adorno, Debord problematiza a

atitude de mera contemplação da arte na sociedade espetacular e lamenta a sua

transformação em mercadoria. Além disso, ambos enxergam potenciais

transformadores no processo artístico.

A grande diferença fica sob o ponto de vista da possibilidade de sobrevivência

da arte na era da cultura de massas ou até mesmo da sua legitimidade. Para Debord, “a

cultura é o lugar da busca da unidade perdida” e a sua história também é a história da

revelação de sua insuficiência, “como uma marcha para sua auto-supressão”.178

O fim da história da cultura manifesta-se por dois lados opostos: o projeto de sua superação na história total e sua manutenção organizada como objeto morto, na contemplação espetacular. Um desses

174 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.105. 175 - Ibid., p.105. 176 - Ibid., p.104. 177 - Ibid., p.106. 178 - Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Contraponto Ed., Rio de Janeiro, 1997, p.120.

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movimentos ligou seu destino à crítica social; o outro à defesa do poder de classe.179

No artigo O "fim da arte" segundo Theodor W. Adorno e Guy Debord, Jappe

afirma que, para Debord, a arte moderna chega ao apogeu e termina com Dada e os

surrealistas.180 Essas vanguardas estéticas realizaram uma última tentativa desesperada

de suprimir e, ao mesmo tempo, realizar a arte. Com o seu fracasso e também com o

fracasso do movimento proletário e das vanguardas políticas, a arte perde a razão de ser:

“compreende-se a si mesma como alienação, como projeção da atividade humana numa

entidade separada” e, “para quem quiser ser fiel ao sentido da cultura, não resta outro

remédio senão negá-la como cultura e realizá-la na teoria e na prática da crítica

social”.181 Assim, Debord atesta o fim da arte na sociedade contemporânea.

Adorno não chega a tamanha ousadia. Avalia que o processo artístico encontra-

se em dificuldades, chega até a questionar o seu direito de existência, mas não vai além.

Não decreta o fim da arte e de forma nenhuma compartilha a posição de transportá-la

para a prática, considerando essa visão totalitária.

Para o autor, o problema do protesto contra a arte não está no ataque à ordem

social e estética existente, mas na crença de que a atitude de abolir a arte reflete, na

verdade, a conformidade com o sistema. Em Teoria Estética Adorno afirma que "a

abolição da arte numa sociedade semibárbara e que avança para a completa barbárie

converte-se em sua colaboradora" (ADORNO apud JAPPE) e apesar de visitar a idéia da

impossibilidade de se produzir arte após Auschwitz, enxerga-a ao mesmo tempo como

um último refúgio contra a sociedade industrial avançada. A postura de Adorno foi alvo

179 - Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Contraponto Ed., Rio de Janeiro, 1997, p.121. 180 - Jappe, Anselm. O "fim da arte" segundo Theodor W. Adorno e Guy Debord. Disponível em: http://www.rizoma.net. Acesso em: 11 abr 2006. 181 - Ibid.

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de críticas pelos movimentos de contestação radical, que o acusavam de recolher-se à

teoria e negar a práxis política.

Referindo-se principalmente à arte moderna, Adorno acredita que a obra de arte

deve sua função crítica precisamente à sua inutilidade prática, como vimos

anteriormente: não serve “nem para a ampliação dos conhecimentos, nem para o prazer

imediato, nem para a intervenção direta na práxis.” Para ele, "só quem não se submete

ao princípio da troca defende a ausência de dominação: apenas o inútil representa o

valor de uso atrofiado”; neste sentido, “as obras de arte representam o que seriam as

coisas uma vez que deixassem de ser deformadas pela troca". (ADORNO apud JAPPE)

Voltando a Debord, este enxerga na arte, assim como Adorno, uma

representação das potencialidades da sociedade e acredita que as relações tradicionais

que contradizem o desenvolvimento necessário das forças produtivas devem ser

combatidas. A diferença é que para o primeiro o processo de inovação chegou a um

esgotamento, já que cada nova descoberta torna inútil a sua repetição posterior. Além

disso,

o desdobramento paralelo das forças produtivas extra-estéticas transpôs um patamar decisivo, criando a possibilidade de uma sociedade já não inteiramente dedicada ao trabalho produtivo, uma sociedade que teria tempo e meios para "brincar" e entregar-se às "paixões". A arte, enquanto simples representação de tal uso possível dos meios, a arte enquanto sucedânea das paixões, estaria, portanto, superada. Assim como o progresso das ciências tornou a religião supérflua, a arte demonstra ser, em seu progresso posterior, uma forma limitada da existência humana. (DEBORD apud JAPPE)

Outro ponto significativo de delimitação entre os dois autores diz respeito ao

conceito de alienação: para Adorno a arte continua funcionando como pilar de

resistência à "alienação"; Debord, por outro lado, não acredita mais nessa capacidade.

Jappe observa que isso se deve em parte porque Debord conceitua alienação como “o

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alheamento da subjetividade”, enquanto que para Adorno “a própria subjetividade pode

converter-se facilmente em alienação”.182

Debord apropria-se da análise do fetichismo da mercadoria de Lukács -

posteriormente abandonada pelo segundo por levar ao erro de considerar toda

objetividade como alienação - em que se “atribui à mercadoria, enquanto coisa sensível

e trivial, as propriedades das relações humanas que presidiram sua produção.”183 A

expansão da lei da mercadoria sobre a sociedade “coisifica” e domina os indivíduos,

aprisionando-os em relações passivas e objetivas com a realidade. Segundo Jappe,

“nem Debord nem o Lukács de História e consciência de classe duvidam de que possa

existir uma subjetividade ‘sã’ , não-reificada, a qual situam no proletariado e cuja

definição oscila entre categorias sociológicas e filosóficas”.184

Para Adorno, ao contrário, o que aliena o sujeito de seu mundo é justamente o ‘subjetivismo’, a propensão do sujeito a ‘devorar’ o objeto. Sujeito e objeto não formam uma dualidade última e insuperável nem podem ser reduzidos a uma unidade como o ‘ser’, mas constituem-se reciprocamente. As mediações objetivas do sujeito são, contudo, mais importantes que as mediações subjetivas do objeto, já que o sujeito continua sendo sempre uma forma de ser do objeto; ou, em termos mais concretos: a natureza pode existir sem o homem, mas o homem não pode existir sem a natureza. (ADORNO apud JAPPE) (...) O ‘pensamento identificante’ conhece uma coisa determinando-a como exemplar de uma espécie; porém, desse modo, não encontra na coisa senão o que o próprio pensamento nela introduziu, e nunca pode conhecer a verdadeira identidade do objeto.185

Na tradução de Jappe, Adorno atesta que “num mundo em que todo objeto é

igual ao sujeito, o sujeito torna-se um mero objeto, uma coisa entre as coisas” e que

apenas a arte teria a capacidade de “contribuir para a superação do sujeito dominador”,

182 - Jappe, Anselm. O "fim da arte" segundo Theodor W. Adorno e Guy Debord. Disponível em: http://www.rizoma.net. Acesso em: 11 abr 2006. 183 - Ibid. 184 - Ibid.

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reconciliando sujeito e objeto. Apenas na experiência artística o sujeito poderia

“desenvolver-se livremente e dominar seu material sem violentá-lo, o que significa

sempre, em última instância, violentar-se a si mesmo”.186

Jappe também observa que Debord concorda com Adorno no valor da pura

negatividade aplicada à arte no período entre 1850 a 1930, mas no que diz respeito ao

período atual, o primeiro acredita ser possível passar à positividade, “pois, ainda que

não se tenha produzido uma melhora efetiva da situação social, estão dadas as condições

para isso”.187 Para Adorno, ao contrário, essa reconciliação só é possível na obra de arte.

185 - Jappe, Anselm. O "fim da arte" segundo Theodor W. Adorno e Guy Debord. Disponível em: http://www.rizoma.net. Acesso em: 11 abr 2006. 186 - Ibid. 187 - Ibid.

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5 – Debord e o Espetáculo __________________________________________________________________________________________________________

A vitória do sistema econômico da separação é a proletarização do mundo”.188

5.1. Debord – apoio e contraponto

Em 1967, Guy Debord publicou a sua própria visão sobre a Indústria Cultural e

o sistema vigente, a que chamou de “Sociedade do Espetáculo. Mais radical e agressivo

em seus argumentos, Debord aproxima-se novamente de Marx em um momento em que

os frankfurtianos já o haviam deixado de lado. Debord parece mais prático e suas idéias

sobre os malefícios da cultura de massa seguem alguns caminhos não trilhados pelos

demais intelectuais.

Antes de continuarmos, cabe, no entanto, uma breve explicação das posições

políticas de Debord e da Internacional Situacionista, grupo criado, liderado e extinto por

ele.

A Internacional Situacionista foi fundada em 1958 e dissolvida em 1972 e não

reuniu mais que setenta membros. Tinha como projeto político a crítica radical da vida

cotidiana no capitalismo, e propunha a desmontagem do capitalismo enquanto

civilização. Como fica evidenciado pela quantidade de participantes, não se pretendia

como um grupo político hegemônico, mas queria antes “afrontar as vicissitudes dos

projetos revolucionários de seu tempo no sentido de anunciar-lhes a derrota antecipada,

já que a ontologia política de tais movimentos apresentava-se como face da mesma

moeda das sociabilidades do projeto burguês”.189

188 - Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Contraponto Ed., Rio de Janeiro, 1997, p.22. 189 - Revista Espaço Acadêmico da UFG, número 48.

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O movimento situacionista punha-se não só como o negativo da sociabilidade burguesa, mas também como o negativo daqueles que se antepunham ‘formalmente’ a tal sociabilidade; o situacionismo quis-se como o negativo das negações formais (vide as práticas políticas dos socialismos contemporâneos) da sociedade burguesa.190

Debord defendia a revolução da vida cotidiana, cujo sujeito seria o proletariado

e cujo espaço seria não apenas o da produção mas o da vida social como um todo.

Assim como os frankfurtianos, propunha a recusa em bloco às condições existentes e foi

uma das bases intelectuais e materiais mais importantes do movimento estudantil de

1968.

Também é bem-vinda uma contextualização da obra de Debord em relação aos

demais frankfurtianos, o que faremos com o pensamento de Adorno. Segundo Anselm

Jappe, nenhum livro de Adorno foi traduzido para o francês antes de 1974, ano em que a

teoria situacionista já estava elaborada; e em sua opinião dificilmente o alemão teve a

oportunidade de conhecer os textos de Debord. Posto isso, há grande semelhança entre o

tema central do espetáculo de Debord e o da Indústria Cultural de Adorno e

Horkheimer, ou seja, a recusa absoluta ao diálogo com a sociedade capitalista e a

análise de todos os seus malefícios. O ponto de divergência fica por conta do papel da

arte, como vimos anteriormente. Para Jappe, “Debord e Adorno reconhecem no que

descrevem uma falsa forma de coesão social, uma ideologia tácita apta para criar um

consenso acerca do capitalismo ocidental, um método para governar uma sociedade e,

finalmente, uma técnica para impedir que os indivíduos, que estão tão maduros para a

emancipação como o estado das forças produtivas, tomem consciência disso.”191 Da

mesma forma,

190 - Revista Espaço Acadêmico da UFG, número 48. 191 - Jappe, Anselm. O "fim da arte" segundo Theodor W. Adorno e Guy Debord. Disponível em: http://www.rizoma.net. Acesso em: 11 abr 2006.

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a infantilização dos espectadores não é um efeito secundário do espetáculo ou da Indústria Cultural e, sim, a realização de seus objetivos antiemancipatórios: segundo Adorno, o ideal da Indústria Cultural é ‘rebaixar o nível mental dos adultos ao de crianças de onze anos’; segundo Debord, no espetáculo, a necessidade de imitação que o consumidor sente é justamente a necessidade infantil.192

Vários pontos debatidos pelos frankfurtianos são encontrados aqui: a constatação

do fim da experiência vivida, o mundo da mercadoria, os mecanismos de manipulação

da sociedade de massas, a diferenciação entre as horas de trabalho e as horas de lazer, a

análise do controle impessoal realizado pelo sistema, entre outros pontos.

5.2. Teoria social

Como mencionamos, Debord é mais radical e está envolvido de forma muito

mais prática com a luta de classes. O autor confia na negação – possivelmente inspirado

em Adorno e Marcuse -, mas apenas se ela produzir efeitos materiais. Segundo Debord,

“a teoria crítica do espetáculo só se torna verdadeira ao unificar-se à corrente prática da

negação na sociedade.”193

Sem dúvida, o conceito crítico de espetáculo pode também ser divulgado em qualquer fórmula vazia da retórica sociológico-política para explicar e denunciar abstratamente tudo, e assim servir à defesa do sistema espetacular. Porque é evidente que nenhuma idéia pode levar além do espetáculo existente, mas apenas além das idéias existentes sobre o espetáculo.194

Para Debord, o sistema capitalista deveria ser derrubado e isso só ocorreria

através da conscientização dos trabalhadores. Nisso há outra diferença de tom em

relação aos frankfurtianos, um pouco menos crentes no potencial teórico das massas.

192 - Jappe, Anselm. O "fim da arte" segundo Theodor W. Adorno e Guy Debord. Disponível em: http://www.rizoma.net. Acesso em: 11 abr 2006. 193 - Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Contraponto Ed., Rio de Janeiro, 1997, p.131.

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Debord acredita que a burguesia chegou ao poder por ser a classe da economia que se

desenvolve e que o proletariado só alcançará esse poder se se tornar a classe da

consciência. Segundo ele, a revolução proletária depende de que a teoria seja pela

primeira vez reconhecida e vivida pelas massas, “ela exige que os operários se tornem

dialéticos e inscrevam seu pensamento na prática”.195 Assim, a luta de classes

revolucionária deveria desenvolver a crítica do espetáculo, que seria a “teoria de suas

condições reais, das condições práticas da opressão atual”.196

A vitória atual do sistema capitalista é conseguida sobretudo através da

separação entre o trabalhador e o que ele produz. Desta forma, o indivíduo perde o

ponto de vista unitário sobre o que produziu e sobre o processo produtivo, além da

comunicação direta com os demais produtores. Com isso, os atributos decisivos da

unidade e da comunicação tornam-se exclusividade da direção do sistema. Por este

motivo, não há outra saída, segundo Debord, que não a luta de classes. Para ele, o

sujeito só pode emergir da luta que existe dentro sociedade.

Por outro lado, e ao contrário de Marx, Debord não aguarda a ruína inevitável do

sistema capitalista e nem acredita que a classe operária esteja destinada à revolução,

como ainda parece crer o primeiro. A teoria crítica da Sociedade do Espetáculo não

espera milagres da classe operária e “considera a nova formulação e a realização das

exigências proletárias como uma tarefa de grande fôlego”, onde “o caminhar obscuro e

difícil da teoria crítica deverá ser também o apanágio do movimento prático agindo na

escala da sociedade”.

Guy Debord também consegue fazer uma leitura ampla dos efeitos do sistema

capitalista sobre o mundo, analisando os movimentos históricos recentes e a situação

nos países periféricos. Para ele, o espetáculo dá a ilusão de que as sociedades são

194 - Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Contraponto Ed., Rio de Janeiro, 1997, p.131. 195 - Ibid., p.85.

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completamente distintas e isoladas, e que os países do bloco socialista ou

subdesenvolvidos podem fugir à sua ordem. Isso cria, em sua opinião, as “falsas lutas

espetaculares”, mas

na condição real de setores particulares, a verdade de sua particularidade reside no sistema universal que as contém: no movimento único que transforma o planeta em seu campo, o capitalismo.197

Além disso, a dominação sobre as regiões subdesenvolvidas não se dá apenas

pelo poder econômico, mas também – e sobretudo – pelo poder do espetáculo

propriamente dito. Ele observa que mesmo nos lugares onde a base material ainda está

ausente, a sociedade moderna já invadiu espetacularmente a superfície social. Isso

acontece seja na definição do programa das classes dirigentes, seja no condicionamento

das mercadorias a serem desejadas, seja na apresentação de falsos modelos de

revolução.

Para ele o poder burocrático também faz parte do espetáculo, “como sua

pseudonegação geral, e seu sustentáculo”. Essas especializações totalitárias do discurso

e da administração sociais “acabam se fundindo, no nível do funcionamento global do

sistema, em uma divisão mundial das tarefas espetaculares”.198 Segundo Debord, o

stalinismo, que extingue a verdade e a realidade em prol da ideologia totalitária, não

passa de um “primitivismo local do espetáculo”, que da mesma forma que as sociedades

subdesenvolvidas compõe o jogo do espetáculo mundial.

Sobre o fascismo, enxerga-o como uma reação da sociedade capitalista à

subversão proletária, tendo copiado a forma de organização do stalinismo e o ajudado a

destruir o movimento operário. Em trecho que poderia ter sido escrito por Adorno e

196 - Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Contraponto Ed., Rio de Janeiro, 1997, p.131. 197 - Ibid., p.38.

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Horkheimer, Debord afirma que o nazismo “apresenta-se como aquilo que é: uma

ressurreição violenta do mito, que exige a participação em uma comunidade definida

por pseudovalores arcaicos: a raça, o sangue, o chefe”.199

Debord parecia realmente acreditar que os acontecimentos de 1968,

principalmente através da ação do grupo extremista IS, poderiam levar a humanidade a

uma mudança histórica e o proletariado a realmente cumprir o seu papel revolucionário.

Os situacionistas foram capazes de propor a única teoria da temível revolta de maio; e a única que apresentava novas acusações estrepitosas, que ninguém havia feito. Quem lamenta o consenso? Nós o liquidamos”.200

Finalmente, percebe-se também que a teoria social de Debord, ao menos na

teoria, não acaba na revolução. Apesar de defender a luta de classes, a “tomada” de

poder pelos trabalhadores, o estágio de equilíbrio imaginado após o momento de

conflito é a democracia. Para ele é preciso emancipar-se do espetáculo, mas nem o

indivíduo isoladamente nem a multidão sujeita a manipulação são capazes de realizar

esse feito. Esse papel caberia ao que ele chama de “Conselho”, ou seja, a democracia –

a classe “capaz de ser a dissolução de todas as classes” e na qual “a teoria prática

controla a si mesma e vê sua ação”.

5.3. Características da Sociedade do Espetáculo

Para Debord, a Sociedade do Espetáculo é exatamente o contrário da sociedade

sem classes, em que os trabalhadores conseguem ter a posse direta de seus momentos de

atividade. É o lugar da separação do trabalho e da alienação das massas e da

198 - Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Contraponto Ed., Rio de Janeiro, 1997, p.38. 199 - Ibid., p.75.

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“conservação da inconsciência na mudança prática das condições de existência.”201 É

onde o poder separado desenvolve-se em si mesmo, “no crescimento da produtividade

por meio do refinamento incessante da divisão do trabalho em gestos parcelares,

dominados pelo movimento independente das máquinas; e trabalhando para um

mercado cada vez mais ampliado”.202 Segundo o autor, é “a afirmação onipresente da

escolha já feita na produção, e o consumo que decorre dessa escolha.” No espetáculo,

forma e conteúdo são “a justificativa total das condições e dos fins do sistema

existente”.203

Para Debord, o espetáculo é o herdeiro da fraqueza do projeto filosófico

ocidental. Ele é a tentativa frustrada da ciência positiva de explicar e libertar o mundo

através da razão tecnológica. Mas ao invés de emancipar utilizando-se da tecnologia, a

sociedade capitalista tornou-se muito mais um fórum para a “incessante exibição da

racionalidade técnica específica que decorreu desse pensamento”.204 A racionalidade

técnica deixou de ser um instrumento para a busca da verdade e tornou-se, enquanto

espetáculo, a única verdade – ou melhor, a única realidade.

Ao que parece, o espetáculo é algo mais amplo do que a Indústria Cultural, ou

talvez resulte de um aperfeiçoamento do conceito. Ao invés de ser um instrumento, ou

o sustentáculo do sistema, como a segunda, o espetáculo confunde-se com o próprio

capitalismo ou ainda, como sugere Debord, confunde-se com o momento histórico que

nos contém. Constitui-se de uma “enorme positividade, indiscutível e inacessível”.205 É

seu próprio produto e é “pseudo-sagrado”.

200 - Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Contraponto Ed., Rio de Janeiro, 1997, p.151. 201 - Ibid., p.21. 202 - Ibid., p.21. 203 - Ibid., p.21. 204 - Ibid., p.19. 205 - Ibid., p.16.

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O espetáculo apresenta-se ao mesmo tempo como a própria sociedade, como uma parte da sociedade e como instrumento de unificação. Como parte da sociedade, ele é expressamente o setor que concentra todo olhar e toda consciência. Pelo fato de esse setor estar separado, ele é o lugar do olhar iludido e da falsa consciência: a unificação que realiza é tão somente a linguagem oficial da separação generalizada.206

Além disso, não há um objetivo espetacular definido, ele é um fim em si mesmo.

Para Debord, “a sociedade que se baseia na indústria moderna não é fortuita ou

superficialmente espetacular, ela é fundamentalmente espetaculoísta. No espetáculo,

imagem da economia reinante, o fim não é nada, o desenrolar é tudo. O espetáculo não

deseja chegar a nada que não seja ele mesmo.”207

Debord também identifica ainda na década de 60 a crescente impossibilidade de

se extrapolar o espetáculo. Não é possível ignorá-lo ou viver a sua margem, como

Adorno e Horkheimer ainda pareciam acreditar na Dialética do Esclarecimento. Estes

já haviam identificado como as ciências humanas absorviam a linguagem da razão

tecnológica; Debord vai mais além e mostra que a própria análise do espetáculo é feita

através da linguagem do espetacular, obrigando o interlocutor a passar “para o terreno

metodológico dessa sociedade que se expressa pelo espetáculo.”208

5.4. Razão tecnológica

Como temos observado, o espetáculo ou a Indústria Cultural são vistos como

conseqüência da evolução da razão tecnológica. Isso traz à questão um quê de

fatalismo, como se a História não pudesse ter progredido de outra maneira e também

leva a uma certa passividade, já que parece não haver muito que fazer.

206 - Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Contraponto Ed., Rio de Janeiro, 1997, p.14. 207 - Ibid., p.17. 208 - Ibid., p.16.

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Guy Debord, no entanto, tem outra visão sobre o assunto. Para ele, o espetáculo

não é o produto necessário do desenvolvimento técnico: “ao contrário, a sociedade do

espetáculo é a forma que escolhe seu próprio conteúdo técnico”.209 E neste sentido

escolhe aquela que é mais capaz de reforçar as estruturas vigentes.

Se o espetáculo, tomado sob o aspecto restrito dos ‘meios de comunicação de massa’, que são sua manifestação superficial mais esmagadora, dá a impressão de invadir a sociedade como simples instrumentação, tal instrumentação nada tem de neutra: ela convém ao automovimento total da sociedade. Se as necessidades sociais da época na qual se desenvolvem essas técnicas só podem encontrar satisfação com sua mediação, se a administração dessa sociedade e qualquer contato entre os homens só se podem exercer por intermédio dessa força de comunicação instantânea, é porque essa ‘comunicação’ é essencialmente unilateral; sua concentração equivale a acumular nas mãos da administração do sistema os meios que lhe permitem prosseguir nessa precisa administração.210

5.5. O fim da experiência vivida

Debord aprofunda a questão do fim da experiência levantada principalmente por

Benjamin, entre os frankfurtianos. Para ele, com o espetáculo, tudo o que era vivido

diretamente pelos indivíduos tornou-se uma representação. A vida na sociedade

transforma-se em “uma imensa acumulação de espetáculos”.211 Não há centralização,

não há unidade, mas apenas uma colcha de retalhos de percepções visuais e ideologia.

As partes somadas não formam mais um todo:

As imagens que se destacaram de cada aspecto da vida fundem-se num fluxo comum, no qual a unidade dessa mesma vida já não pode ser restabelecida. A realidade considerada parcialmente apresenta-se em sua própria unidade geral como um pseudomundo à parte, objeto de mera contemplação.212

209 - Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Contraponto Ed., Rio de Janeiro, 1997, p.20. 210 - Ibid., p.20. 211 - Ibid., p.13. 212 - Ibid., p.13.

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O mundo deixa de ser real e torna-se uma sucessão de imagens. Quando isso

acontece, essas “simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes de um

comportamento hipnótico”.213 O espetáculo utiliza-se da tecnologia para fazer ver aquilo

que já não se pode tocar diretamente. Isso resulta em um empobrecimento e no

processo de negação da vida real.

Segundo Debord, a realidade vivida é invadida por essa contemplação do

espetáculo e acaba por retomar em si a ordem espetacular. Ou seja, realidade e

espetáculo acabam por se fundir: “a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo é real.

Essa alienação recíproca é a essência e a base da sociedade existente”.214 Assim, quanto

mais o espectador contempla, menos ele vive; “quanto mais aceita reconhecer-se nas

imagens dominantes da necessidade, menos compreende sua própria existência e seu

próprio desejo”.215

Para Debord, o espetáculo é “a expressão da separação e do afastamento entre o

homem e o homem”.216 As “vedetes”, ou seja, os modelos de identificação com a vida

devem compensar o estilhaçamento das especializações produtivas de fato vividas. Mas

elas não cumprem o seu papel, na medida em que não são o indivíduo, mas o seu oposto

– ao compactuarem com o espetáculo, renunciaram a toda qualidade autônoma para

identificaram-se “com a lei geral de obediência ao desenrolar das coisas.”217

Voltando de certa forma ao debate sobre a técnica, Debord critica mais uma vez

a sociologia por sua tentativa de isolar a racionalidade industrial do conjunto da vida

social e quase concluir que a sociedade espetacular “têm como causa o infeliz encontro,

quase fortuito, de um imenso aparato técnico de difusão das imagens, com a imensa

213 - Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Contraponto Ed., Rio de Janeiro, 1997, p.18. 214 - Ibid., p.15. 215 - Ibid., p.24. 216 - Ibid., p.138.

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atração dos homens de nossa época pelo pseudo-sensacional”.218 Como já vimos,

Debord discorda dessa visão fatalista e acredita que essa atração decorre simplesmente

do fato de que os homens não vivem mais acontecimentos reais.

Porque a própria história assombra a sociedade moderna como um espectro, surge uma pseudo-história construída em todos os níveis do consumo da vida, para preservar o equilíbrio ameaçado do atual tempo congelado.219

5.6. Alienação, mundo da mercadoria

Já afirmamos que as principais questões dos intelectuais alemães relativas à

Indústria Cultural - ou ao espetáculo - também são recorrentes em Debord. A questão

do fetichismo da mercadoria, por exemplo, que na verdade vem de Marx, tem destaque

no texto. Para Debord, o “espetáculo é o momento em que a mercadoria ocupou

totalmente a vida social”.220

Neste aspecto, porém, ao contrário do que ocorre em outras questões como o fim

da experiência ou a tecnologia, Debord não acrescenta muita coisa de novo ao debate

sobre a Indústria Cultural.

O autor afirma que o princípio do fetichismo da mercadoria se realiza

completamente no espetáculo, “no qual o mundo sensível é substituído por uma seleção

de imagens que existe acima dele, e que ao mesmo tempo se fez reconhecer como o

sensível por excelência”.221 A questão da criação de necessidades também é abordada

de forma semelhante à dos frankfurtianos, talvez a novidade fique com a criação do

conceito de “sobrevivência ampliada”, que se refere à abundância de mercadorias em

217 - Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Contraponto Ed., Rio de Janeiro, 1997, p.40. 218 - Ibid., p.129. 219 - Ibid., p.129. 220 - Ibid., p.30. 221 - Ibid., p.28.

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um nível muito além da necessidade humana. Para ele, o poder econômico transformou

o trabalho humano em trabalho-mercadoria, resultando em uma abundância que resolve,

mas excede a sobrevivência. A necessidade sempre volta a aparecer e sempre em um

grau superior.

O crescimento econômico libera as sociedades da pressão natural, que exigia sua luta imediata pela sobrevivência; mas, agora, é do libertador que elas não conseguem se liberar.222

As forças do poder econômico suprimem a necessidade, “a base imutável das

sociedades antigas”223, pelo desenvolvimento econômico infinito. Com isso substituem

essas necessidades “legítimas” por pseudonecessidades, que têm na verdade a única

função de reforçar o sistema. Essas pseudonecessidades não são comparáveis aos

“desejos autênticos” e representam uma ruptura absoluta com o desenvolvimento

orgânico das necessidades sociais. Para Debord, “sua acumulação automática libera um

artificial ilimitado, diante do qual o desejo vivido fica desarmado”224, modificando e

reconstruindo a todo instante o espaço da mercadoria.

Debord também destaca a perda de qualidade (preocupação bastante evidente

em Adorno, principalmente) em detrimento da quantidade. Para ele isso apenas traduz

o caráter fundamental “da produção real que afasta a realidade”. A mercadoria é a

“igualdade confrontada consigo mesma, a categoria do quantitativo”.225

Há ainda referência ao controle impessoal, descrito por Marcuse. Ao falar sobre

a produção de alienação conseqüente da expansão da Indústria Cultural e da forma do

222 - Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Contraponto Ed., Rio de Janeiro, 1997, p.29. 223 - Ibid., p.34. 224 - Ibid., p.45. 225 - Ibid., p.28.

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espetáculo na sociedade, Debord afirma que “o que cresce com a economia que se move

por si mesma só pode ser a alienação que estava em seu núcleo original”.226

226 - Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Contraponto Ed., Rio de Janeiro, 1997, p.24.

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6- O Desencantamento __________________________________________________________________________________________________________

Como vimos, os frankfurtianos foram pouco a pouco perdendo a confiança nos

benefícios da tecnologia e na aplicação coerente da ciência positiva. Mas reforçamos

novamente o gradualismo do processo e o fato de que isso não ocorreu de forma

simultânea.

Adorno e Horkheimer já mostravam uma desconfiança maior que a de seus

companheiros na Dialética do Esclarecimento. A humanidade afundava em “uma

espécie de barbárie”, acreditavam. De qualquer modo, apesar do diagnóstico sombrio,

esse texto ainda vislumbra possibilidades de a ciência positiva retornar a suas origens

libertárias. Marcuse, do mesmo modo, não cogita diálogo com o sistema capitalista,

mas cria a sua utopia de sociedade feliz em Eros e Civilização.

Assim, houve um momento em que a teoria crítica de Frankfurt acreditava, ainda

que literalmente mais no plano da teoria, em uma sociedade em que a tecnologia e a

ciência fossem utilizadas para suprir não só as necessidades materiais, mas também as

do espírito, levando os indivíduos à emancipação. Como vimos, a arte e a política

teriam um papel fundamental no caminho até essa civilização. O grande inimigo comum

era o sistema capitalista e, quando ele fosse superado, haveria espaço para a

concretização de tais possibilidades.

O pensamento negativo, assim como a arte, guardava o dever de defender os

últimos resquícios do pensamento livre na sociedade tecnológica, fosse através da

dialética da negação – do movimento questionador e por isso mesmo libertador – ou

através do protesto e da construção artística.

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O desencantamento dos frankfurtianos com a viabilidade da implantação de suas

teorias no mundo contemporâneo, no entanto, os conduz a um pessimismo extremo, que

é apontado como uma de suas principais limitações.

6.1. Marcuse: Eros e Civilização fica para trás

Em prefácio de 1966 a uma nova edição de Eros e Civilização, Marcuse já

mostra um tom menos otimista, esclarecendo e se reposicionando em relação a alguns

aspectos do livro.

O autor deve o anterior tom positivo à crença de que “as realizações da

sociedade industrial avançada habilitariam o homem a inverter o rumo do progresso”227,

rompendo as associações fatais de produtividade e destruição, liberdade e repressão.

Isso porque, em sua percepção, o fundamento lógico para a dominação dos indivíduos

havia deixado de existir, e a necessidade pelo trabalho era artificialmente perpetuada

pelo sistema no sentido de preservá-lo.

No texto de 66, Marcuse admite ter minimizado “o fato desse fundamento lógico

‘obsoleto’ ter sido amplamente reforçado (se não substituído) por formas ainda mais

eficientes de controle social”.228 Ou seja, “as próprias forças que tornaram a sociedade

capaz de amenizar a luta pela existência serviram para reprimir nos indivíduos a

necessidade de tal libertação”.229

A sobrevivência e o patriotismo já não eram discursos adequados ao

convencimento das massas, mas ficou claro para Marcuse que mecanismos ainda mais

poderosos haviam sido desenvolvidos para justificar a necessidade ininterrupta de

produção de mercadorias supérfluas, base da sobrevivência da sociedade. Assim, o

227 - Marcuse, Herbert. Eros e Civilização. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p.13. 228 - Ibid., p.13.

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autor percebe a utilização da libido e do instinto de destruição no processo de cooptação

das massas ao sistema capitalista.

O ‘látego econômico’, mesmo em suas formas mais refinadas, já deixou de ser adequado, ao que parece, para garantir a continuidade da luta pela existência na organização antiquada de hoje, assim como as leis e o patriotismo também já não parecem apropriados para assegurar um apoio popular ativo à cada vez mais perigosa expansão do sistema. A administração científica das necessidades instintivas converteu-se, desde há muito, em fator vital na reprodução do sistema: a mercadoria que tem de ser comprada e usada traduz-se em objetos da libido; e o Inimigo nacional, que tem de ser combatido e odiado, é destorcido e inflado a tal ponto que pode ativar e satisfazer a agressividade na dimensão profunda do inconsciente.230

Desta forma, o controle social abandona a força, agora desnecessária, e

contabiliza a adesão voluntária de colaboradores, já que a servidão tornou-se cada vez

mais compensadora e agradável. Para Marcuse, essa palatabilidade do sistema e sua

reprodução aprimorada, mais ainda – a conivência dos indivíduos com o sistema -,

representam o fim de outros “sistemas possíveis de vida que poderiam extinguir servos

e senhores, assim como a produtividade de repressão”.231 Ele observa que a maioria das

pessoas está ao lado da continuidade, ao lado “daquilo que é – não com o que podia e

devia ser”. Os próprios trabalhadores, os sujeitos históricos da revolução, converteram-

se em mão-de-obra sindicalizada e atuante em defesa do status quo.

O fato de a grande maioria de a população aceitar e ser levada a aceitar essa sociedade não a torna menos irracional e menos repreensível. A distinção entre consciência verdadeira e falsa, entre interesse real e imediato, ainda tem significado. O homem tem de vê-la e passar da consciência falsa para a verdadeira, do interesse imediato para o interesse real. Só poderá fazê-lo se viver com a necessidade de modificar o seu estilo de vida, de negar o positivo, de recusar. É precisamente essa necessidade que a sociedade estabelecida consegue reprimir com a intensidade com que é capaz de ‘entregar as mercadorias’ em escala cada vez maior, usando a

229 - Marcuse, Herbert. Eros e Civilização. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p.13. 230 - Ibid., p.13. 231 - Ibid., p.15.

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conquista científica da natureza para conquistar o homem cientificamente.232

Essa supressão do agente da revolução proletária, segundo Marcuse, deriva entre

outras coisas da oportuna introjeção da democracia na sociedade capitalista, uma vez

que os indivíduos livres não necessitam de libertação e os oprimidos não são

suficientemente fortes para se libertarem.

A libertação é a mais realista, a mais concreta de todas as possibilidades histórica e, ao mesmo tempo, a mais racionalmente, mais eficazmente reprimida – a possibilidade mais abstrata e remota. Nenhuma filosofia, nenhuma teoria pode desfazer a introjeção democrática dos senhores em seus súditos. Quando, nas sociedades mais ou menos afluentes, a produtividade atingiu um nível em que as massas participam de seus benefícios, e em que a oposição é eficaz e democraticamente ‘contida’, então o conflito entre senhores e escravos também é eficientemente contido.233

Em Ideologia da Sociedade Industrial, Marcuse apresenta o problema da

inviabilidade prática da teoria crítica atual. Como vimos, a alteração da estrutura da

sociedade desqualificou a burguesia e o proletariado enquanto agentes de transformação

histórica. As duas classes, ao contrário, uniram-se ao objetivo comum da preservação e

desenvolvimento da sociedade atual. Desta maneira, a crítica recua para um alto nível

de abstração e retira do terreno das possibilidades a harmonia entre a teoria e a prática:

“até mesmo a análise mais empírica das alternativas históricas parece especulação

irreal”.234

Sem as condições sociais capazes de permitir “a dissociação real do estado de

coisas existente”235, a crítica deixa de ser uma oposição eficaz e torna-se incapaz de

fornecer uma alternativa fora do sistema atual.

232 - Marcuse, Herbert. Eros e Civilização. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p.17. 233 - Ibid., p.16. 234 - Marcuse, Herbert. A Ideologia da Sociedade Industrial. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p.16. 235 - Ibid., p.34.

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Mas os fatos e as alternativas existem como fragmentos que não se casam, ou como um mundo de objetos mudos sem um sujeito, sem a prática que moveria esses objetos na nova direção. A teoria dialética não é refutada, mas não pode oferecer o remédio. Não pode ser positiva. De fato, o conceito dialético, ao compreender os fatos dados, transcende a estes. Este é o próprio indício de sua veracidade. Ela define as possibilidades históricas, até mesmo as necessidades históricas; mas a realização destas só pode estar na prática que responde à teoria, e, na atualidade, a prática não dá tal resposta. Tanto em bases teóricas como empíricas, o conceito dialético pronuncia sua própria desesperança.236

Os argumentos passam em definitivo para a dimensão utópica, a crítica não

consegue mais demonstrar aos próprios oprimidos a sua prisão. Para Marcuse, a maior

fraqueza da teoria crítica é exatamente a “sua incapacidade para demonstrar as

tendências libertadoras dentro da sociedade estabelecida”.237

Mesmo assim, Marcuse pareceu sinalizar a possibilidade de uma solução prática,

o que estimulou a sua utilização como base intelectual para os movimentos estudantis

nos Estados Unidos, Europa e para as tentativas de revolução e protesto em países

subdesenvolvidos, inclusive o Brasil. Para o autor, nos países desenvolvidos a

sociedade converte-se no “Estado de Bem Estar Social”, que deve ser combatido. Mas

isso só seria possível através de sua substituição por um “Estado Beligerante”, que se

propusesse a reconstruir o sistema produtivo sem vestígios das bases mentais para a

dominação e a exploração.

Para ele, apesar da desilusão com a eficácia da práxis atual e com críticas à

imaturidade dos protestos e de argumentos, ainda há um fio de possibilidade de

estruturação social no que ele chama de “solidariedade instintiva” entre os movimentos

dos jovens dos países desenvolvidos e as revoltas nos países atrasados. O atraso

histórico e todos os horrores presenciados com o superdesenvolvimento técnico e

236 - Marcuse, Herbert. A Ideologia da Sociedade Industrial. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p.232. 237 - Ibid., p.233.

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científico representariam uma nova oportunidade de levar o progresso para outra

direção. Para ele, a luta pela vida hoje, “a luta por Eros, é a luta política”.238

A revolução nas sociedades superdesenvolvidas deveria representar a eliminação

desse superdesenvolvimento e de sua inerente racionalidade repressiva, interrompendo a

produção de bens supérfluos e destrutivos e, assim, constituindo um estágio superior de

desenvolvimento humano em que “as mutilações somáticas e mentais infligidas ao

homem por essa produção seriam eliminadas”.239 Há, sem dúvida, bastante ingenuidade

no argumento, especialmente quando menciona a vantagem histórica das nações

subdesenvolvidas de poderem “saltar o estágio de sociedade afluente”. Para ele, essas

nações “por sua pobreza e fraqueza”, poderiam ser “forçadas a renunciar ao uso

agressivo e supérfluo da ciência e da tecnologia”.240

Marcuse também conclama mesmo que sem muita convicção os excluídos da

sociedade – “o substrato dos párias e estranhos, dos explorados e perseguidos de outras

raças e de outras cores, os desempregados e os não-empregáveis”241 – que existem fora

do processo democrático. Para ele, “sua oposição é revolucionária ainda que sua

consciência não o seja”242 e é a natureza de sua miséria que ainda justifica a necessidade

de se transformar as condições existentes.

O autor apela ainda para a recusa organizada da elite intelectual, que, em sua

opinião, poderá ter o efeito já não obtido com manifestações tradicionais, como greves.

Ele admite que a idéia pode parecer irrealista, mas não isenta o intelectual de sua

responsabilidade política na sociedade industrial contemporânea. Essa posição encontra

semelhança na responsabilidade atribuída por Umberto Eco243 aos intelectuais da cultura

238 - Marcuse, Herbert. Eros e Civilização. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p.23. 239 - Ibid., p.18. 240 - Ibid., p.18. 241 - Marcuse, Herbert. A Ideologia da Sociedade Industrial. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p.235. 242 - Ibid., p.235. 243 - Eco, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo, Editora Perspectiva, 1979.

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no sentido de reformar e intervir na comunicação de massa, como veremos adiante.

Marcuse afirma ainda que essa recusa do intelectual pode encontrar apoio na recusa

instintiva dos jovens em protesto. Para ele, “a juventude está na primeira linha dos que

vivem e lutam por Eros contra a Morte e contra uma civilização que se esforça por

encurtar o ‘atalho para a morte’, embora controlando os meios capazes de alongar esse

percurso”.244

Por outro lado, o movimento estudantil de maio de 1968 parece ter contribuído

significativamente para ratificar a atitude negativa mais radical dos frankfurtianos. Os

estudantes protestavam contra as estruturas autoritárias fundamentando-se nas reflexões

críticas de Marcuse, Adorno e Horkheimer. A idéia era transpor a teoria crítica para se

chegar à prática revolucionária.

Freitag observa inclusive que foi a partir daí que Marcuse passou a ser visto

como o ideólogo da New Left americana e dos movimentos de protesto dos estudantes

europeus. Também nessa época ocorreu a reintegração das duas correntes de reflexão da

Escola de Frankfurt: a alemã, de Horkheimer e Adorno, e a americana, baseada nos

trabalhos de Marcuse.

Segundo Freitag, “em nome da unidade da teoria e prática, da relação dialética

entre o particular e o universal e entre o sujeito do conhecimento e seu objeto” 245, os

estudantes defendiam a transformação radical da sociedade, partindo da democratização

da própria universidade, e apregoavam a destruição da família e do Estado autoritário.

Mas os frankfurtianos assustaram-se “com a radicalidade do movimento e com a

imaturidade da grande maioria dos estudantes que seguiam seus dirigentes, não por

motivos racionais, mas por sua liderança carismática, que paralisava a autocrítica dos

244 - Marcuse, Herbert. Eros e Civilização. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p.23. 245 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.24.

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seus adeptos”.246 Eles enxergaram características fascistas no movimento e passaram a

combatê-lo ao invés de apoiá-lo. Assim,

a incorporação da teoria crítica ao movimento estudantil parecia anunciar o seu fim. A desilusão e incompreensão de ambas as partes – frankfurtianos e estudantes – terminou com a saída de Horkheimer para a Suíça (1967), a morte prematura de Adorno (1969) e a crítica de Marcuse a certas simplificações da New Left.247

Desta forma, na década de 60 os intelectuais de Frankfurt abandonam

definitivamente Marx e o paradigma da luta de classes como caminho para o fim do

capitalismo. Como observa Freitag, “evapora-se toda e qualquer esperança de que a

classe operária pudesse efetivamente reverter o processo de consolidação e perpetuação

do sistema vigente”.248

Esses grandes batalhões de trabalhadores não tinham condições de reconhecer o desespero de sua situação material, contentando-se com as melhorias salariais, em detrimento da perda de autonomia e da consciência de sua exploração e alienação objetiva.249

A teoria crítica conclui que nenhuma força contemporânea seria capaz de

garantir a necessária reestruturação da sociedade e, deste modo, perde a crença e a

conexão com a experiência prática.

6.2. Radicalismo e Limitações

Sem um projeto prático, sem uma válvula de escape às suas convicções, os

frankfurtianos recrudescem sua teoria e fecham-se na contestação amarga e pessimista

246 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.25. 247 - Ibid., p.26. 248 - Ibid., p.79. 249 - Ibid., p.80.

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da sociedade atual. Ao não ter mais a práxis como objetivo e nem tampouco admitir o

diálogo com o sistema em vigor, os protestos do pensamento negativo soam vazios e

encontram aí a maior parte das resistências e críticas. O pessimismo radical de

Frankfurt é considerado um beco sem saída e a fonte de suas limitações teóricas.

6.2.1. Grande Recusa

Da utopia da sociedade feliz, Marcuse passa à defesa única da Grande Recusa,

encarada como a luta derradeira contra “a tendência à sufocação da crítica e da

diferenciação, por meio do estabelecimento do império da uniformidade, do

conformismo unidimensional”.250

Para ele, a dialética deve transcender o real rumo à definição de possibilidades

históricas, mas, como formula Merquior, a Grande Recusa não consegue ultrapassar a

amarga contestação e muito menos prevalecer contra a sociedade repressiva.251

Voltando aos conceitos desenvolvidos em Eros e Civilização,

o fim da repressão não é considerado como realmente possível porque a práxis histórica não funciona no sentido de Eros. A tendência da civilização contemporânea não se encaminha para a implantação da felicidade. A sociedade industrial avançada se afasta do horizonte da harmonia entre o princípio do prazer e o princípio da realidade.252

Para Marcuse, toda a sociedade está dominada pela repressão, que só pode ser

combatida na ordem utópica da dimensão estética. Ou seja, como vimos anteriormente,

250 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.291. 251 - Ibid., p.153. 252 - Ibid., p.153.

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a conclusão é de que não há na prática atual possibilidades de concretização da teoria da

sociedade não-repressiva. O sistema atual é ilegítimo e rejeitado.

6.2.2. Dialética Negativa

De forma semelhante a Marcuse, Adorno define a sua dialética negativa como o

“esforço permanente de evitar as falsas sínteses, de desconfiar de toda e qualquer

proposta definitiva para a solução de problemas, de rejeição de toda visão sistêmica,

totalizante da sociedade”.253 Para Adorno, a dialética não possui cânones específicos,

nem regras definidas e tampouco se responsabiliza por prognósticos precisos sobre a

realidade existente.

Deste modo, a dialética deveria forçar a dúvida, a crítica, reconduzindo os

indivíduos sempre ao pensamento emancipado. Mas, como vimos, o poder criativo da

negação é sobrepujado pelo imobilismo da negativa absoluta. O pessimismo

incondicional compromete a sua possibilidade prática. Para ele,

depois que a cultura se transformou gradativamente em Indústria Cultural, depois que a arte perdeu sua aura, dissolvida no consumo de massa, e depois que a filosofia e a ciência se reduziram ao positivismo, em que sua pobreza somente permite a reflexão afirmativa do existente, restam poucas alternativas à sociedade moderna de assegurar sua auto-reflexão e crítica.254

Afastado da expectativa pela extinção da sociedade tecnológica, Adorno volta-se

para a estética do protesto, que transfere para a arte a responsabilidade pela ruptura com

o sistema. A arte deve ser o veículo de protesto por excelência, deve revelar a tirania e

interromper, sustar “em alguns pontos – coágulos, constelações – a fluência da

253 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.48. 254 - Ibid., p.81.

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repressão”.255 Para Adorno, a arte - sobretudo a composição musical, sua especialidade

– guarda uma pequena área de verdade, que ainda não foi destruída pelo ao avanço do

sistema.

Segundo Freitag, a teoria estética é para Adorno a única forma consistente de

negar e criticar as condições materiais e sociais de vida social: “o horror gerado pelo

regime nazista, a paralisação imposta pelas sociedades industriais massificadas, a

estupidez da vida humana inserida em relações de trabalho e dominação que a

transforma em acessório da máquina produtiva e do aparelho de dominação”256 – tudo

isso só poderia ser captado no campo da estética.

A teoria estética procura desvendar na obra de arte sua essência, seu verdadeiro caráter de negadora do real estabelecido, sem submetê-la a sistemas conceituais coerentes ou ao processo de produção e reprodução da mercadoria. Procura, quase que intuitivamente, afinar-se e sincronizar-se com ela para compreender sua mensagem negadora e contestadora.257

Por outro lado, o pensamento de Adorno leva à constatação subliminar de que

também a arte é incapaz de salvar a cultura. Ao mesmo tempo em que lhe atribui a

responsabilidade de guardiã da verdade, sinaliza o seu fracasso. O protesto é ineficaz e

a arte não consegue fugir da mera expressão da revolta.

O desgosto ante a marcha da cultura, que já circunscrevera a obra de arte como protesto, em sensível detrimento das suas características cognitivas, termina por condenar globalmente a arte. Esta fica, implicitamente, responsabilizada pela sua incapacidade de redimir a cultura.258

255 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.130. 256 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.81. 257 - Ibid., p.84. 258 - Merquior, op. cit., p.134.

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Assim, seja na Grande Recusa ou na estética do protesto, a negatividade deixa de

ter compromisso com a criação histórica. As alternativas possíveis na teoria não são

viáveis na prática contemporânea.

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7 – A Crítica Atual __________________________________________________________________________________________________________

7.1. A influência de Frankfurt

Passadas quase seis décadas desde a publicação da Dialética do Esclarecimento,

Adorno e os demais autores de Frankfurt nunca foram tão lidos, comentados e

pesquisados. Seu pensamento permanece como base da teoria da cultura atual, mas

também é alvo de uma série de críticas, principalmente no que diz respeito ao seu

pessimismo absoluto, ao seu conceito kantiano de razão e ao rígido papel atribuído à

arte, entre outros aspectos. Adorno voltou-se para a estética como último refúgio de

resistência, mas colocou-a ele próprio em cheque, além de ter sido taxado de elitista. A

Grande Recusa de Marcuse, por outro lado, valeu-lhe o rótulo de utopista.

Antes de partirmos para os pontos de vista “atuais”, no entanto, é importante

ressaltar que o pensamento frankfurtiano foi elaborado como um contraponto ao

positivismo da época, que se aliava ao capitalismo, e já constituía a base intelectual da

sociedade. Os intelectuais de Frankfurt conseguiram muito precocemente elaborar uma

crítica aprofundada e dura contra questões que muitas vezes apenas se insinuavam.

Além do repúdio ao nazismo e ao fascismo, eles criticaram o marxismo “oficial” muito

antes da constituição da URSS e conseguiram antever com aguçada clareza as

conseqüências do capitalismo avançado que observaram em seus primórdios nos

Estados Unidos. Assim, o alcance teórico desses autores foi muito além da produção

intelectual que lhe era contemporânea, o que – claro – causou resistência em um

primeiro momento e fez com que a difusão de suas idéias ocorresse tardiamente.

É importante que esse mérito lhes seja reconhecido e que suas opiniões e, muitas

vezes, radicalismo sejam contextualizados. Outro ponto relevante é que, ao ler o

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trabalho desses autores, percebe-se que havia receio de que possíveis concessões

pudessem constituir porta de entrada para a contaminação teórica. O momento era de

firmar posicionamentos e por isso não havia espaço para diálogo; era necessário que a

teoria crítica se consolidasse e constituísse oposição e não complemento ao pensamento

vigente – já então muito poderoso e com forte capacidade de “absorção”.

Ressalvas feitas, passamos à crítica atual. Freitag avalia que

a revitalização do pensamento crítico de Adorno, Horkheimer, Benjamin e Habermas e a assimilação de autores novos como Altvater, Offe e outros pode ser compreendida como uma forma de reação da sociologia americana ao positivismo, até então hegemônico nos centros de estudo e treinamento dos cientistas sociais americanos.259

A autora também destaca o fato de que cabe muito mais à nova geração de

cientistas sociais alemães a difusão da teoria crítica, uma vez que Adorno e Horkheimer,

em seu exílio nos Estados Unidos na década de 40, viviam em um “enclausuramento

lingüístico intencional”, falando e publicando em alemão e mantendo-se isolados das

correntes de pensamento americano.

Ao abordar a recepção da teoria crítica no Brasil Freitag menciona Carlos

Nelson Coutinho, que identifica duas etapas de assimilação do pensamento crítico de

Frankfurt no Brasil. “A primeira se teria dado no final da década de 60 via Marcuse (e

portanto através dos Estados Unidos), assumindo entre nós uma coloração

contracultural e irracionalista. A segunda, ocorrida no final da década de 70,

mediatizada por Rouanet, assumiria uma conotação radicalmente racionalista, buscando

recuperar na teoria crítica seu elemento iluminista original.260

259 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p. 132. 260 - Ibid., p.139.

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Assim, da primeira metade do século XX para cá, os conceitos da teoria crítica

foram amplamente difundidos, estudados e – naturalmente – contestados e

desenvolvidos.

Freitag observa que, no desenvolvimento de suas idéias, os frankfurtianos

passaram de um marxismo relativamente ortodoxo, quando ainda se concebia a

possibilidade de uma revolução proletária, à radicalidade da dialética negativa. Como

mencionamos, a recusa absoluta em dialogar com sociedade tecnológica e o

posicionamento sem concessões levou-os a uma desesperança total e à percepção de que

a razão não encontrava em nossa época “nenhuma ancoragem objetiva em nenhum

grupo ou suporte social”.261

Neste capítulo, traremos a visão de três intelectuais “contemporâneos”, mais do

que isso, três visões bastante distintas sobre as questões da teoria crítica e da Indústria

Cultural. Não se pretende aqui esgotar o assunto, mas apenas exemplificar as discussões

atuais sobre o tema.

Jürgen Habermas é considerado o herdeiro intelectual dos frankfurtianos e o

principal representante da chamada “segunda geração” de Frankfurt. Sendo assim, ele

parte diretamente das idéias de Adorno, Horkheimer, Marcuse e Benjamin, para então

aperfeiçoá-las e criar uma nova teoria, que fornece, em sua opinião, uma alternativa ao

beco sem saída para onde se encaminharam seus antecessores.

Guy Debord, por sua vez, pode ser considerado o mais radical entre os três

autores. Já conhecemos o seu posicionamento sobre a Sociedade do Espetáculo no

decorrer deste trabalho e veremos mais uma vez seus argumentos, mas com a

perspectiva do final da década de oitenta. Observaremos que permanece a

impossibilidade de diálogo com o sistema e o apelo revolucionário nas entrelinhas.

261 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.149.

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Umberto Eco, por sua vez, é uma unanimidade da sociedade contemporânea e

adota uma postura “integrada” no que diz respeito aos produtos da Indústria Cultural.

Acusa os “apocalípticos” de elitistas e condena sua postura de imobilismo e recusa ao

diálogo com a sociedade de massas.

7.2. O dialético Habermas

Voltando a Habermas, assim como seus antecessores, ele também dedica boa

parte de sua obra à crítica ao tecnicismo e cientificismo da sociedade contemporânea,

mas admite dialogar com ela. A sua perspectiva não é mais a de quem antevê o começo

de um processo, mas a de quem vive sob esse processo concretizado e maduro, no caso,

o capitalismo avançado. A perspectiva de Habermas não é a de quem vê possibilidade

de mudança do sistema, mas sim de mudança no sistema. Habermas não está de fora,

como se acreditavam os frankfurtianos, mas dentro, como se infiltrado e tentando

ampliar as brechas existentes até integrá-las ao ambiente dado.

Desta forma, Habermas parte das idéias da “primeira fase” de Frankfurt e

preserva grande parte de seus conceitos centrais, especialmente no que diz respeito à

condenação do positivismo, à analise crítica da realidade e à rejeição de falsos

determinismos. Por outro lado, discorda em pontos-chave, sobretudo na crença no

diálogo com o sistema, elaborando uma teoria alternativa à teoria crítica tradicional.

Outro aspecto que o afasta dos demais é a descrença em uma razão objetivada na

História. Os frankfurtianos da primeira geração já haviam deixado de lado o marxismo

tradicional no decorrer da evolução de seu pensamento, mas com Habermas este

distanciamento fica ainda mais evidente, já que o trabalho deixa de ser o lugar social da

emancipação ou mesmo de oferecer essa possibilidade. Para Freitag, “Habermas

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encontrou um caminho que permite sair dos impasses da dialética negativa, mas à custa

de tanto ecletismo que hoje dificilmente pode ser considerado um pensador marxista.”262

Não que não haja aderência a Marx. Habermas reconhece a importância da

tecnologia e da racionalidade técnica no desenvolvimento da sociedade de massas e

também concorda que o grande problema é que o sistema de reprodução material ainda

não encontrou formas justas de distribuir os bens produzidos. Por outro lado, discorda

fortemente da visão marxista de que a revolução proletária e conseqüente transformação

das condições sociais constituíssem a solução para o problema – ou mesmo que isso

tivesse sido viável em algum momento.

A alternativa de Habermas é a Teoria da Ação Comunicativa, publicada em

1981. Nela, o autor propõe um novo paradigma para a discussão sociológica e elabora

um novo conceito de razão, que não está relacionado à visão instrumental

contemporânea, mas que também ultrapassa a razão kantiana, “subjetiva, autônoma,

capaz de conhecer o mundo e de dirigir o destino dos homens e da humanidade”.263

Habermas foge do pessimismo na medida em que deposita sua fé na competência

lingüística e cognitiva dos atores, “capazes de, no diálogo, na disputa, no

questionamento radical, produzirem uma razão comunicativa que pouco tem em comum

com a razão kantiana: ela não é subjetiva, não é transcendental, não é inata”.264

Na verdade a crítica de Habermas aos frankfurtianos deve-se, como observa

Freitag, à discordância no que diz respeito aos conceitos de razão, verdade e

democracia. Para Habermas, Horkheimer e Adorno se atêm a um conceito histórico-

filosófico de razão, de inspiração marxista, que, “apesar do ceticismo crescente quanto à

possibilidade de que a classe operária viesse a assumir os destinos da história,

262 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.150. 263 - Ibid., p.59. 264 - Ibid., p.60.

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assegurando a concretização de uma racionalidade liberadora na sociedade moderna”,265

não os deixa abandonar a crença em uma razão objetivada na história.

Segundo Habermas, quando fica claro que a revolução proletária não irá ocorrer,

a teoria crítica perde a sua base material e busca refúgio na radicalização do protesto e

na estética. Para ele, o resgate da concepção emancipatória de razão não ocorre através

da superação das relações de trabalho, mas através da mediação da intersubjetividade.

Na concepção da teoria da ação comunicativa, a “razão passa a ser

implementada socialmente no processo de interação dialógica dos atores envolvidos em

uma mesma situação”266, buscando o consenso através da argumentação. Segundo

Freitag, a racionalidade não é uma faculdade abstrata para Habermas, “mas um

procedimento argumentativo pelo qual dois ou mais sujeitos se põem de acordo sobre

questões relacionadas com a verdade, a justiça e a autenticidade. Tanto no diálogo

cotidiano como no discurso, todas as verdades anteriormente consideradas válidas e

inabaláveis podem ser questionadas”.267

A razão comunicativa circunscreve um conceito para o qual o questionamento e a crítica são elementos constitutivos, mas não sob a forma monológica, como ainda ocorria na Dialética do Esclarecimento ou na Dialética Negativa, e sim de forma dialógica, em situações sociais em que a verdade resulta de um diálogo entre pares, seguindo a lógica do melhor argumento.268

Habermas confere à razão comunicativa – que ainda estaria preservada em certos

nichos da sociedade - a capacidade de reorientar a razão instrumental, arrancando-lhe o

poder determinante sobre o destino dos indivíduos e atribuindo-lhe meramente o papel

de fornecer as bases materiais para a organização e sobrevivência da sociedade

moderna. Para ele,

265 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.108. 266 - Ibid., p.59. 267 - Ibid., p.59.

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é na esfera social e da cultura (ou no que futuramente chamaria de Lebenswelt, mundo vivido) que devem ser conjuntamente fixados os destinos da sociedade, através do questionamento e da revalidação dos valores e das normas vigentes no mundo vivido. Somente quando este reconquistar o terreno perdido pode ocorrer o que na modernidade se tornou urgente: a descolonização do mundo vivido pelo sistema, a capacidade de agir comunicativamente para todos os atores. A razão dialógica, comunicativa, estaria, desta forma, recolocando em seu devido lugar a razão instrumental.269

Sobre o conceito de verdade, a crítica de Habermas diz respeito à incapacidade

de Adorno e Horkheimer de formular uma teoria capaz de “satisfazer os requisitos da

ciência e remeter ao conceito integral de razão hegeliana que abrange a dimensão

científica, como a prática e a estética expressiva”.270 Esta impossibilidade, em sua

opinião, também é determinante no radicalismo final da dialética negativa. Na

perspectiva de Habermas, “razão e verdade deixam de ser conteúdos, valores absolutos

universais, para serem definidos formalmente como procedimentos, isto é, regras de

jogo, fixadas consensualmente”.271

Finalmente, sobre a democracia, observa que os frankfurtianos encaravam-na

com receio em relação à sociedade de massas e traziam de suas experiências nos

Estados Unidos a percepção de que a “democracia de massas” era na verdade uma

permanente ameaça à sobrevivência da razão. Para os intelectuais de Frankfurt, as

massas não tinham capacidade e nem vontade crítica e constituíam mero grupo de

manobra (percepção bastante lúcida, diga-se), suscetível assim a todo o tipo de liderança

carismática, como o fascismo. Neste ponto, diferem de Habermas, que contrapõe a

descrença no julgamento das massas à “fé inquebrantável na capacidade de aprendizado

dos sistemas sócio-culturais modernos, que ajustam seus mecanismos de autocontrole e

268 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.60. 269 - Ibid., p.63. 270 - Ibid., p.110. 271 - Ibid., p.112.

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de auto-orientação de acordo com os graus de complexidade e diferenciação

atingidos”.272

Desta forma, na visão de Freitag, Habermas está mais próximo de Benjamin que

dos demais frankfurtianos:

Critica Marcuse, Adorno e Horkheimer por terem adotado uma posição tradicional, limitada e idealista em relação à obra de arte e à cultura: tradicional porque continuam vendo na obra de arte somente uma promessa de felicidade; limitada, por se basearem em um conceito burguês de arte, no qual fenômenos artísticos como o jazz, o surrealismo, o filme contemporâneo, happenings, etc., não têm lugar, e, finalmente, idealista, por não admitirem a alteração interna da estrutura e função da arte e cultura que acompanha o desenvolvimento do capitalismo tardio.273

7.3. O radical Debord

Sobre Guy Debord cabe notar que não há mudanças estruturais significativas em

seu pensamento contemporâneo em relação ao descrito na década de 60 na Sociedade

do Espetáculo. Ele reconhece, é claro, que as lutas operárias desapareceram do cenário

geopolítico, mas, apesar de não afirmar isso diretamente, a percepção é de que a

revolução permanece como o único meio possível de se enfrentar os efeitos do

espetáculo. Para Debord, continua a não existir nenhuma possibilidade de diálogo com

a sociedade espetacular.

Diferentemente de Habermas, ele não enxerga brechas no poder espetacular e

tampouco espaço para uma razão comunicativa em determinados nichos da sociedade.

Acredita, ao contrário, que o próprio espetáculo organiza discussões vazias sobre si.

Em suma, o debate sobre o espetáculo faz parte do espetáculo e ocorre com a sua devida

conivência.

272 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.65.

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Como era teoricamente previsível, a experiência prática da realização sem obstáculos dos desígnios da razão mercantil logo mostrou que, sem exceção, o devir-mundo da falsificação era também o devir-falsificação do mundo. Exceto uma herança ainda considerável, mas com tendência a diminuir, de livros e construções antigas – que são, aliás, cada vez mais selecionados e considerados de acordo com as conveniências do espetáculo -, já não existe nada, na cultura e na natureza, que não tenha sido transformado e poluído segundo os meios e os interesses da indústria moderna.274

Assim, o que muda na verdade é apenas o diagnóstico da sociedade, que fica

ainda mais duro e pessimista. Para ele a mudança de maior importância desde então é

exatamente a própria continuidade do espetáculo, e não em virtude do aperfeiçoamento

técnico, mas principalmente em função de a “dominação espetacular ter podido educar

uma geração submissa a suas leis”.275

Debord afirma que, como os acontecimentos de 1968 “não destruíram em

nenhum lugar a organização social existente, o espetáculo, que dela parece brotar

espontaneamente, continuou a se afirmar por toda parte.”276 Pior ainda: alastrou-se,

aprofundou-se e “chegou a incorporar novos procedimentos defensivos, como costuma

acontecer com o poder quando se vê atacado”.277 O espetáculo contemporâneo

caracterizaria-se pela combinação de cinco aspectos principais: “a incessante renovação

tecnológica, a fusão econômico-estatal, o segredo generalizado, a mentira sem

contestação e o presente perpétuo”.278

Deste modo, de lá para cá o espetáculo ficou ainda mais poderoso e confundiu-

se com a própria realidade. O presente deve deixar de lado o passado, já que “o poder

absoluto suprime a história de modo mais radical quanto mais ele for levado a isso por

273 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.78. 274 - Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Contraponto Ed., Rio de Janeiro, 1997, p.173. 275 - Ibid., p.171. 276 - Ibid., p.168. 277 - Ibid., p.168. 278 - Ibid., p.175.

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interesses ou obrigações impreteríveis, e sobretudo se encontrou facilidades práticas de

execução”.279 O domínio da história, que representava o memorável, o conhecimento

que deveria durar, os acontecimentos “cujas conseqüências se manifestariam por muito

tempo” deu lugar à importância instantânea, que será sempre substituída por outra

importância instantânea, que, com esse processo, acaba por adquirir um caráter de

eternidade.

A preciosa vantagem que o espetáculo tirou dessa marginalização da história – de já ter condenado toda a história recente a passar para a clandestinidade e ter conseguido fazer todos esquecerem o espírito histórico na sociedade – foi, antes de tudo, abarcar sua própria história, o movimento de sua recente conquista do mundo. Seu poder já soa familiar, como se sempre tivesse estado presente.280

7.4. O integrado Eco

Em Apocalípticos e Integrados, Umberto Eco cunha os dois termos do título,

que ganharam fama e designam, por um lado, aqueles que não admitem diálogo com a

sociedade de massas – como Adorno, Horkheimer, Marcuse e Debord; de outro, aqueles

que encaram a indústria da cultura ou o espetáculo como processos naturais do

desenvolvimento do capitalismo e que possuem uma série de aspectos favoráveis.

Benjamin e Habermas não se enquadrariam em nenhum dos dois conceitos e, ele

próprio, não se inclui em nenhum dos grupos, mas sem dúvida tem um forte viés de

integração em seu discurso.

Eco condena tanto apocalípticos como integrados pela difusão de conceitos

genéricos, que ele chama de “conceitos fetiche”, e por havê-los utilizado em polêmicas

improdutivas. O próprio termo “cultura de massa”, por exemplo, é visto como

279 - Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Contraponto Ed., Rio de Janeiro, 1997, p.177. 280 - Ibid., p.178.

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“genérico, ambíguo e impróprio”. O autor entende que, se a cultura é um fato

aristocrático, então é um contra-senso imaginá-la partilhada por todos. Ou seja, neste

sentido, a cultura de massa seria a anticultura.

Neste ponto cabe uma observação: ao mencionar os apocalípticos, os principais

alvos de Eco são sem dúvida os frankfurtianos, sobretudo Adorno e Horkheimer. Neste

sentido, ele assume a premissa de que a cultura é, na verdade, um fato aristocrático, o

que o leva, por conseqüência, a reduzir os intelectuais de Frankfurt a meros aristocratas

elitistas, deixando de lado todo o seu embasamento teórico e o contexto histórico em

que estavam inseridos, aspectos que vimos analisando neste trabalho até então. Assim,

taxá-los de elitistas e encerrar a questão é no mínimo injusto e distante dos fatos. Além

disso, ao não tomar partido de forma efetiva por nenhuma das duas posições, Eco

coloca-se no confortável espaço do liberal de esquerda esclarecido.

Posto isso, retomamos a exploração do conceito de cultura de massa. O

integrado de Eco enxerga-a de forma positiva: um “alargamento da área cultural” onde

finalmente há espaço para a circulação de uma arte e de uma cultura dita popular. Por

outro lado, o grupo apocalíptico, na opinião do autor, vê a sociedade moderna não como

“uma aberração transitória e limitada”, mas como “o sinal de uma queda irrecuperável,

ante a qual o homem de cultura (...) pode dar apenas um testemunho extremo, em

termos de Apocalipse”.281

A imagem do Apocalipse ressalta dos textos sobre cultura de massa; a imagem da integração emerge da leitura dos textos da cultura de massa. Mas até que ponto não nos encontramos ante duas faces de um mesmo problema, e não representarão esses textos apocalípticos o mais sofisticado produto oferecido ao consumo de massa? 282

281 - Eco, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo, Editora Perspectiva, 1979, p.8. 282 - Ibid., p.9.

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Na visão de Eco, o apocalíptico entrevê a existência de uma “comunidade de

super-homens”, capazes de se elevar acima “da banalidade média”. Neste ponto, o autor

faz uma comparação entre o super-homem conformista da cultura de massa (o

superman) e o super-homem proposto pelo crítico apocalíptico. O segundo “opõe, à

banalidade imperante, a recusa e o silêncio, alimentado que é pela total desconfiança em

qualquer ação que possa modificar a ordem das coisas”.283 Mas essa postura tem efeito

inócuo e leva apenas à passividade: “expulsa pela porta, a integração volta pela

janela”.284

Ao avaliar a comunicação de massa, Eco encara-a com naturalidade, analisa-a do

lado de dentro e sem a perspectiva de saída. Em sua opinião, a sociedade de massas

está dada e é preciso partir dela; a possibilidade de retorno passa a ser um mero

saudosismo. Para ele, o mundo da comunicação de massa “nasce com o acesso das

classes subalternas à fruição dos bens culturais, e com a possibilidade de produzir esses

bens graças a processos industriais”.285 A Indústria Cultural indica um contexto

histórico e não possui dois níveis diferentes, quais sejam a comunicação de massa e a

cultura aristocrática, mas estabelece “uma rede de condicionamentos recíprocos”.

O universo da comunicação de massa é (...) o nosso universo; e se quisermos falar de valores, as condições objetivas das comunicações são aquelas fornecidas pela existência dos jornais, do rádio, da televisão, da música reproduzida e reproduzível, das novas formas de comunicação visual e auditiva. Ninguém foge a essas condições, nem mesmo o virtuoso, que, indignado com a natureza inumana desse universo da informação, transmite o seu protesto através dos canais de comunicação de massa.286

O autor também avalia que vários aspectos da Indústria Cultural possuíam raízes ou até

mesmo existiam de forma efetiva em sociedades anteriores. Eco fornece, por exemplo,

283 - Eco, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo, Editora Perspectiva, 1979, p.10. 284 - Ibid., p.10. 285 - Ibid., p.11.

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mostras de reprodução em série antes da cultura de massa, como a bíblia e livro. Para

ele, as “epopéias cavalheirescas, queixas sobre fatos políticos ou de ocorrência diária,

motejos anedotas ou coplas (...) possuem a primeira característica dos produtos de

massa, a efemeridade”.287 Além disso, já forneciam certos tipos de sentimentos com o

objetivo de causar efeitos determinados no público e tinham inclusive o aspecto

publicitário evidenciado em seus títulos.

Guardadas as devidas proporções, a defesa é de que a reprodutibilidade em série

há muito já condicionava os seus produtos-alvo. Eco também defende a idéia de uma

cultura popular, além de, da mesma forma, remetê-la a sociedades anteriores. Para ele,

esse tipo de literatura contribuía para a alfabetização do público e para sua crescente

inclusão social. Do mesmo modo, não seria casual “a concomitância entre civilização do

jornal e civilização democrática, conscientização das classes subalternas, nascimento do

igualitarismo político e civil, época das revoluções burguesas.”288

Eco, como vimos, também se opõe fortemente à postura imobilizada e elitista

do “homem de cultura”, afirmando que a relação dialética com a Indústria Cultural é a

única postura possível. E critica diretamente os “pseudomarxistas da Escola de

Frankfurt” pela convicção conceitual de que o papel do pensador não é o de “propor

remédios, mas, quando muito, testemunhar sua própria dissensão”.289 Para ele, “a

existência de uma categoria de operadores culturais que produzem para as massas,

usando na realidade as massas para fins de lucro, ao invés de oferecer-lhes reais

ocasiões de experiência crítica”,290 não justifica o afastamento e a negação de antemão

da cultura. Assim, a censura ao apocalíptico diz respeito à recusa em estudar e entender

os produtos culturais e suas formas de consumo, preferindo rejeitá-los antecipadamente.

286 - Eco, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo, Editora Perspectiva, 1979, p.11. 287 - Ibid., p.13 288 - Ibid., p.14 289 - Ibid., p.17

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Lembramos aqui a ressalva feita no início deste texto e apontamos mais uma vez

a postura intransigente em relação aos frankfurtianos. O pessimismo dos autores é fato,

mas ele não deriva – como afirmado – de um desconhecimento ou de uma recusa em

estudar os produtos culturais. Da mesma forma, a atitude negativa foi recrudescendo

gradualmente e fez parte de um processo de aprofundamento e desencantamento teórico.

Assim, é no mínimo leviano levantar a acusação de “preguiça intelectual” ou “má-

vontade de antemão”, como parece ser a intenção de Eco.

Voltando a Apocalípticos, o autor também faz referência ao postulado expresso

na fórmula ceci tuera cela. Ou seja, a nova tecnologia passa a competir com as

anteriores para posteriormente destruí-las. Para isso, cita como exemplo o texto

platônico em que este descreve a invenção da escrita: ao ser confrontado com a

descoberta, o faraó Tamus ao invés de enxergar-lhe o mérito preocupa-se que esta venha

a provocar um enfraquecimento da memória humana. Assim, utiliza-se do trecho do

Fedro para lembrar que “toda modificação dos instrumentos culturais, na história da

humanidade, se apresenta como uma profunda colocação em crise do “modelo cultural”

precedente; e seu verdadeiro alcance só se manifesta se considerarmos que os novos

instrumentos agirão no contexto de uma humanidade profundamente modificada, seja

pelas causas que provocaram o aparecimento daqueles instrumentos, seja pelo uso

desses mesmos instrumentos.”291

Neste mesmo sentido, considera miopia histórica “avaliar a função da imprensa

segundo as medidas de um modelo de homem típico de uma civilização baseada na

comunicação oral e visual“292 ou, do mesmo modo, analisar a cultura de massa sob a

ótica de um homem renascentista que não existe mais.

290 - Eco, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo, Editora Perspectiva, 1979, p.19 291 - Ibid., p.34. 292 - Ibid., p.34.

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O autor também aponta o elitismo de alguns posicionamentos, questionando se

por trás da intolerância com a cultura de massa não está “um desprezo que só

aparentemente se dirige à cultura de massa, mas que, na verdade, aponta contra as

massas”293, em nostalgia à época em que a cultura pertencia apenas ao círculo da classe

dominante.

Diante de certas tomadas de posição, nasce a suspeita de que o crítico constantemente se inspire num modelo humano que, mesmo sem ele o saber, é classista: o modelo de um fidalgo renascentista, culto e meditativo a quem uma determinada condição econômica permite cultivar, com amorosa atenção, suas experiências interiores, preservando-as de fáceis comistões e garantindo-lhes, ciosamente, a absoluta originalidade. Mas o homem de uma civilização de massa não é mais esse homem. Melhor ou pior, é outro, e outros deverão ser os seus caminhos de formação e salvação.294

Finalmente, Eco propõe uma espécie de julgamento em que à cultura de massa cabe

o banco dos réus. Assim, elenca os argumentos que lhes são a favor e contra, ou seja,

opõe argumentos apocalípticos e integrados. Do lado das críticas, afirma, entre várias

coisas, que os mass media: 295

- difundem por todo o globo uma cultura de tipo homogêneo, destruindo as

características culturais próprias de cada grupo étnico;

- “dirigem-se a um público incônscio de si mesmo como grupo social

caracterizado; o público, portanto, não pode manifestar exigências face à cultura

de massa, mas deve sofrer-lhes as propostas sem saber que as sofre”;

- “tendem a provocar emoções intensas e não mediatas; em outros termos: ao

invés de simbolizarem uma emoção, de representá-la, provocam-na; ao invés de

a sugerirem, entregam-na já confeccionada”;

293 - Eco, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo, Editora Perspectiva, 1979, p.36. 294 - Ibid., p.38. 295 - Ibid., p.40-42.

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- estão sujeitos à lei da oferta e da procura, dando ao público somente o que ele

quer, “ou, o que é pior, seguindo as leis de uma economia baseada no consumo e

sustentada pela ação persuasiva da publicidade, sugerem ao público o que este

deve desejar”;

- “mesmo quando difundem os produtos da cultura superior, difundem-nos

nivelados e “condensados” a fim de não provocarem nenhum esforço por parte

do fruidor”;

- “encorajam uma visão passiva e acrítica do mundo”;

- “assumem os modos exteriores de uma cultura popular mas, ao invés de

crescerem espontaneamente de baixo, são impostos de cima. Como controle das

massas desenvolvem uma função que, em certas circunstâncias históricas, tem

cabido às ideologias religiosas. Mascaram porém essa sua função de classe

manifestando-se sob o aspecto positivo da cultura típica de uma sociedade do

bem-estar onde todos têm as mesmas oportunidades de acesso à cultura, em

condições de perfeita igualdade”.

Já a defesa da cultura de massa é construída nas seguintes bases:296

- “a cultura de massa não é típica de um regime capitalista. Nasce numa

sociedade em que toda a massa de cidadãos se vê participando, com direitos

iguais, da vida pública, dos consumos, da fruição das comunicações; nasce

inevitavelmente em qualquer sociedade de tipo industrial”;

- a cultura de massa não tomou o lugar da cultura superior, “simplesmente se

difundiu junto a massas enormes que, tempos atrás, não tinham acesso aos bens

de cultura”;

296 - Eco, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo, Editora Perspectiva, 1979, p.44-48.

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- à difusão de produtos de entretenimento que ninguém ousaria julgar positivos

“replica-se que, desde que o mundo é mundo, as multidões amaram os circenses

(...)” e isso não deveria portanto ser considerado “como um sinal particular da

decadência dos costumes”;

- “uma homogeneização do gosto contribuiria, no fundo, para eliminar, a certos

níveis, as diferenças de casta, para unificar as sensibilidades nacionais, e

desenvolveria funções de descongestionamento anticolonialista em muitas partes

do globo”;

- “os mass media oferecem um acervo de informações e dados acerca do universo

sem sugerir critérios de discriminação; mas, indiscutivelmente, sensibilizam o

homem contemporâneo face ao mundo; e na realidade, as massas submetidas a

esse tipo de informação parecem-nos bem mais sensíveis e participantes, no bem

e no mal, da vida associada, do que as massas da antigüidade, propensas a

reverências tradicionais em face de sistemas de valores estáveis e indiscutíveis”.

Como conclusão, Eco tenta se colocar no meio termo entre os dois grupos, apesar

de, como mencionamos, aparentar mais simpatia com a integração. Para ele não se trata

absolutamente de condenar a cultura de massa ou pretendê-la como cultura superior.

Em sua opinião as duas esferas podem coexistir e a questão fundamental seria de

garantir também às massas a “fruição de experiências de ordem superior, dando a cada

um a possibilidade de chegar a elas”.297 A idéia de Eco é que possa haver uma livre

circulação dos indivíduos entre os produtos “superiores” e os produtos de massa.

Entre o consumidor de poesia de Pound e o consumidor de um romance policial, de direito, não existe diferença de classe social ou de nível intelectual. Cada um de nós pode ser um e outro, em diferentes

297 - Eco, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo, Editora Perspectiva, 1979, p.39.

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momentos de um mesmo dia, num caso, buscando uma excitação de tipo altamente especializada, no outro, uma forma de entretenimento capaz de veicular uma categoria de valores específica.298

O principal erro dos integrados seria esquecer o caráter de mercadoria da cultura

submetida às leis gerais do mercado e considerar a multiplicidade de seus produtos

como boa em si mesma, sem a necessidade de críticas e correções do rumo. Por outro

lado, o pecado apocalíptico é exatamente “pensar que a cultura de massa seja

radicalmente má, justamente por ser um fato industrial, e que hoje se possa ministrar

uma cultura subtraída ao condicionamento industrial”.299

A falha está em formular o problema nestes termos: ‘é bom ou mau que exista a cultura de massa?’ (...) Quando, na verdade, o problema é: ‘do momento em que a presente situação de uma sociedade industrial torna ineliminável aquele tipo de relação comunicativa conhecido como conjunto dos meios de massa, qual a ação cultural possível a fim de permitir que esses meios de massa possam veicular valores culturais?’300

Como exemplo do bom uso da cultura de massa, o autor elenca o aparecimento

de edições críticas e de coleções populares, que em sua opinião representam uma

“vitória da comunidade cultural sobre o instrumento industrial com o qual ela

felizmente se comprometeu”.301

Na mesma linha de Marcuse em seu prefácio político a Eros e Civilização, que

conclama a recusa geral dos intelectuais, Eco atribui aos homens de cultura a

responsabilidade por uma “atitude de indagação construtiva” aplicada ao novo modelo

humano da comunicação de massa. Ele afirma que o problema da cultura de massa é

que sua operação é conduzida “por “grupos econômicos” que miram fins lucrativos, e

realizada por “executores especializados” em fornecer ao cliente o que julgam mais

298 - Eco, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo, Editora Perspectiva, 1979, p.58. 299 - Ibid., p.49. 300 - Ibid., p.50.

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vendável”, sem a participação dos homens de cultura, que limitam-se ao protesto.

Assim, os meios de massa ainda não teriam sido alvo de uma análise crítica

aprofundada, buscando uma orientação de rumos ao invés de uma mera execração.

Para ele é fundamental a participação de um grupo de produtores cultos em

relação dialética com a massa de fruidores. Eco propõe ema ação político social que

permita também às massas usufruir a alta cultura. Mas além de afirmar que dificilmente

isso acontecerá “de modo pacífico e institucionalizado” e que “a luta de uma ‘cultura de

proposta’ contra uma ‘cultura de entretenimento’ sempre se estabelecerá através de uma

tensão dialética feita de intolerâncias e reações violentas”302 não fornece outras

sugestões do caminho a seguir.

301 - Eco, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo, Editora Perspectiva, 1979, p.50. 302 - Ibid., p.60.

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Conclusão __________________________________________________________________________________________________________

Tentamos analisar neste trabalho as principais questões desenvolvidas pelos

intelectuais da Escola de Frankfurt, em especial aquelas relacionadas à Indústria

Cultural e a suas correlações com a sociedade capitalista e com a cultura

contemporânea.

Vimos que não há unanimidade nas análises e caminhos percorridos, mas

algumas idéias parecem prevalecer. Adorno, Horkheimer, Marcuse e Benjamin avaliam

de forma bastante precisa o mecanismo de alienação e barateamento cultural presente na

sociedade de massas. A lógica da mercadoria, a mecanização, o processo de idiotização

dos indivíduos, a falsa democratização da cultura são expostos em toda sua extensão.

Em todos os casos também há análises aprofundadas e repletas de matizes sobre o papel

da tecnologia e da arte, que tentamos apresentar no capítulo quatro.

Além disso, o pensamento frankfurtiano é marcado de forma irremediável pela

experiência do nazismo e - à exceção de Benjamin – pelo exílio nos Estados Unidos, o

que contribui para o tom duro, sem concessões e também para as críticas quanto ao seu

pessimismo. Na verdade, o difícil contexto histórico e a constatação da impossibilidade

de uma transformação social, entre outros fatores, os conduzem a um beco sem saída.

Mas isso não inviabiliza ou diminui o valor de sua contribuição.

É importante sinalizar que as questões abordadas: difíceis, complexas, tensas

eram em boa parte originais então. Ou seja, o mérito antes de tudo foi identificar a

existência do problema e conseguir projetar a sua importância para a vida futura dos

indivíduos. Os intelectuais de Frankfurt conseguiram apontar, delimitar e avaliar com

clareza as mazelas da sociedade tecnológica – antes que elas estivessem evidentes - e de

seu maior instrumento de perpetuação, a Indústria Cultural.

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Vendo em perspectiva e com algumas respostas – e mais algumas decepções -

em mãos parece fácil identificar falhas de percurso e proceder à acusação, o que não

deixa tal atitude menos leviana ou conivente com o status quo.

Por outro lado, aos que vêm depois, como ocorre com toda teoria, cabe sem

dúvida o aperfeiçoamento. Neste sentido, no último capítulo relacionamos alguns

exemplos da “crítica atual”, ou seja, de como as questões levantadas pelos

frankfurtianos são abordadas hoje em dia. Vimos que Habermas, considerado o

principal representante da “segunda geração de Frankfurt”, confia basicamente na sua

teoria da ação comunicativa, que pretende escapar ao pessimismo na crença de que a

competência lingüística e cognitiva dos indivíduos é capaz de conduzir, através do

diálogo, a uma razão comunicativa. Debord, por sua vez, não altera sua posição da

década de 60 e parece ainda acreditar em uma saída revolucionária, enquanto Eco prega

abertamente a integração.

Apesar de serem posicionamentos bastante diferentes, como vimos, o ponto em

comum entre os três é que trazem críticas veladas às posições frankfutianas, seja por seu

pessimismo, seu imobilismo prático ou por seu caráter muitas vezes utópico. Também

trazem em comum o fato de não conseguirem superar a teoria crítica original e

apresentarem soluções tão “utópicas” quanto as posições que tentam superar. Eco, por

exemplo, parece repetir a sugestão de Marcuse de conclamar a participação dos

intelectuais no processo produtivo. Habermas, ao propor a razão comunicativa, esquece

que na maior parte das vezes o diálogo não ocorre em igualdade de forças e nem sempre

– ou quase nunca – a opinião vencedora é a melhor. Eco e Habermas admitem dialogar

com o sistema, enquanto Debord isola-se e não desenvolve em nada o seu pensamento

anterior.

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Posto isso, no entanto, ainda cabem algumas observações. Em nossa opinião a

primeira constatação é de que não há, hoje em dia, possibilidade real de uma cultura

descondicionada da Indústria Cultural. Não existe mais o lugar do observador puro e

incontaminado, capaz de trazer o olhar de fora para o sistema. Como mencionou

Debord, a Indústria Cultural já produziu uma geração inteiramente nascida sob o seu

domínio, ou seja, que não conheceu nenhum outro modo de enxergar o mundo.

Além disso, parece-nos que o problema realmente não está na existência de uma

cultura de massa em si, mas no fim de uma “cultura de alto nível”. O que ocorre em

nosso tempo é que a cultura barateada passou a ser hegemônica, a ponto de sufocar ou

condenar à extinção os bens culturais “de qualidade superior”. Essa sim é a novidade.

E isso não ocorre apenas em virtude da impossibilidade de sua coexistência com

a Indústria Cultural, mas também - e sobretudo – em função do regime de trabalho

imposto pelo sistema capitalista, pela era moderna. Benjamin, através de Baudelaire,

anuncia o desaparecimento da flânerie. Com ela, desaparece também a figura clássica

do homem de cultura. Os detentores do poder econômico, também eles, estão

submetidos às leis do capital. Também eles estão submetidos à divisão entre horas de

trabalho e horas de lazer - o feitiço virou contra o feiticeiro. O sistema capitalista tem

como efeito colateral o fim do intelectual, do humanista, como esse existia até o século

XIX. Eco afirma que:

O homem de uma civilização de massa não é mais esse homem. Melhor ou pior, é outro, e outros deverão ser os seus caminhos de formação e salvação. (ECO, 1979, p.38)

Deixando de lado o aspecto “integrado” de Eco parece claro que a afirmação de

que o homem da civilização de massa está distante do intelectual renascentista procede.

Nosso objetivo não é encontrar uma solução para o “problema da cultura de massa”,

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mas nos parece que a sua análise passa necessariamente pela adoção da premissa de que

o que havia então não existe mais.

Desta forma, o desafio parece ser o de revitalizar a cultura dita superior e fazer

com que ela saia de determinados nichos e consiga se alastrar pela sociedade,

promovendo-se uma democratização real da cultura. Pelo que vemos, porém, e apesar

da simplicidade da sentença, a sua aplicação está bem longe de ser simples. A Indústria

Cultural, a ideologia tecnológica e o ritmo de trabalho da sociedade capitalista têm

constituído um antídoto poderoso à necessidade de reflexão e liberdade.

Sendo assim, o dilema ainda não foi superado. Permanece a percepção de

Marcuse de que não há prática atual capaz de responder à teoria crítica. Ou então: ainda

não há teoria atual capaz de viabilizar as mudanças práticas necessárias.

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