teologia sistemática - hermann bavinck

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TEOLOGIA SISTEMÁTICA FUNDAMENTOS TEOLÓGICOS DA CRISTÃ Autor: Hermann Bavinck Professor Titular de Teologia, Universidade Livre de Amsterdã Traduzido do Inglês por Vagner Barbosa PREFÁCIO À TRADUÇÃO BRASILEIRA 0 pensamento calvinista vi-veu, no século XIX, uma fase de reavivamento e expansão. Nos Estados Unidos, o Semi-nário de Princeton foi o principal centro de formação e difusão do calvinismo, Velha Escola, nas Américas. Archibald Alexander (1772-1851), Charles Hodge (1797- 1878), Archibald Alexander Hodge (1823-1886) e Benjamin B. Warfield (1851-1921), respectiva-mente, foram os mestres formu-]adores da Velha Teologia de Princeton. Os principais elemen-tos dessa teologia foram: a aceita-ção da inspiração plena da Bíblia e a sua infalível autoridade; a ado-ção do método indutivo para a sis-tematização teológica; o ensino da ciência subordinado à teologia; a defesa da fé ou do ensino bíblico

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Teologia Sistemática

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Page 1: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

TEOLOGIA

SISTEMÁTICA

FUNDAMENTOS

TEOLÓGICOS DA FÉ

CRISTÃ

A u t o r : H e r m a n n B a v i n c kP ro fesso r T i t u l a r de Teo log ia ,Universidade Livre de Amsterdã

Traduzido do Inglês por Vagner Barbosa

PREFÁCIO À TRADUÇÃO BRASILEIRA

0 pensamento calvinista vi-v eu , n o s éc u l o X I X , u ma f a s e d e r e a v i v a m e n t o e expansão.

Nos Estados Unidos, o Semi-nário de Princeton foi o principal centro de formação e difusão do calvinismo, Velha Escola, nas Américas. Archibald Alexander (1772-1851), Charles Hodge (1797-1878), Archibald Alexander Hodge (1823-1886) e Benjamin B. Warfield (1851-1921), respectiva-mente, foram os mestres formu-]adores da Velha Teologia de Princeton. Os principais elemen-tos dessa teologia foram: a aceita-ção da inspiração plena da Bíblia e a sua infalível autoridade; a ado-ção do método indutivo para a sis-tematização teológica; o ensino da ciência subordinado à teologia; a defesa da fé ou do ensino bíblico confessional como um dever pas-toral.

O protestantismo brasileiro foi, na sua origem, moldado pelo calvinismo norte-americano, da Velha Escola. As obras: Teologia Sistemática, (3 volumes) de C. Hodge e Esboços de Teologia, de A. A. Hodge foram utilizadas como texto principal na formação de pastores brasileiros. Atualmente, essas obras estão traduzidas para o português.

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Herman Bavinck (1854 –1921) foi, no final do século XIX, juntamente com Abraham Kuy-per, um teólogo de destaque no reavivamento neocalvinista na Igreja Reformada Holandesa. Foi professor de teologia sistemática no Seminário Teológico em Kapen (1882-1902) e na Universidade Li-vre de Amsterdam (1902-1920). A sua principal obra foi Gerefor-meerde Dogmatiek, Dogmática Re-formada, em quatro volumes, ori-ginalmente publicados entre 1895e 1901, dos quais somente o segundo volume foi traduzido para o inglês como A Doutrina de Deus. Não existe nenhuma obra de Bavink traduziria para o português. Bavinck influenciou profundamente muitos teólogos reformados, holandeses e norte-americanos, sendo Louis Berkhof, o mais conhecido no Brasil, por causa da sua Teologia Sistemática.

Para Bavinck, a teologia era o estudo sistemático do conhecimento de Deus, revelado em Cristo e na Bíblia, e resumido pela Igreja por meio dos credos, catecismos e confissões. Segundo ele, a religião, o temor de Deus, deve ser o elemento que inspira e anima a investigação teológica. Isso deve marcar a cadência da ciência. 0 teóloga é uma pessoa que se esforça para falar sobre Deus. Professara teologia é um trabalho santo. É realizar umanumistração sacerdotal na casa do Senhor. Isso é por si mesmo um serviço de culto, uma consagração da mente e do coração em honra ao Seu nome.

A SOCEP – Sociedade Cristã Evangélica de Publicações Ltda., de forma pioneira e inédita, traz ao público brasileiro, o pensamento de Bavinck. A obra Teologia Sistemática: Os Fundamentos da Fé Cristã, traduzi da do inglês, Our Reasonable Faith, é uma síntese do pensamento teológico de Bavinck, apresentada de maneira simples, profunda e pastoral.

Agradecemos ao rev. Herminsten Maia Pereira da Costa pela cópia em inglês. À SOCEP pelo grande investimento e valiosa contribuição aos continuadores

do calvinismo no Brasil.

Arival Dias Casimira

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PREFÁCIO À EDIÇÃO EM INGLÊS

A queles que estão familia-r izados com a histór ia das i g r e j a s R e f o r m a d a s d a Holanda -isto é, das gereformeerde como distintas das Hervormde Kerken - saberão que entre os herdeiros da itfischeiding de 1834 e aDoleantie de 1886 não há nomes tão estimados quanto os de Abraham Kuyper e Hermann Bavinck. Eles foram figuras heróicas de realizações gigantescas no trabalho cristão. Suas carreiras, realizadas praticamente ao mesmo tempo, no final do século XIX e no começo do século XX devem serconsideradas como um favor especial de Deus em beneficio do Cristianismo Histórico tanto na Europa quanto no Novo Mundo. Esses dois homens, que como tempo chegaram a ser mencionados juntos como partidários da causa da Reforma na Holanda, têm sido freqüentemente comparados e contrastados. Alguns os diferenciam da seguinte forma: "Em Kuyper nós temos um exem-plo de gênio br i lhante, em Bavinck um exemplo de talento mentalmente preciso e de julga-mento esclarecido". O Rev. J. H. Landwehr, primeiro biógrafo de Bavinck, aponta outro contraste: Bavinck tinha um espírito Aristotélico, enquanto Kuyper ti-nha um espírito Platônico. Bavinck era o homem do conceito claro e preciso, enquanto Kuyper era o homem da idéia produtiva. Bavinck trabalhou com dados his-tóricos; Kuyper trabalhou espe-culativamente por meio da intui-ção. Bavinck tinha espírito carac-teristicamente indutivo; Kuyper tinha mente de natureza dedu-tiva. Esses dois homens se complementaram no renasci-mento da vitalidade do Holanda do século XIX.

Hermann Bavinck nasceu em 13 de dezembro de 1854. O centenário de seu nascimento foi grandemente celebrado na Holanda em 1954, e a natureza e o escopo de suas contribuições foram revistas com grande apreço. Bavinck nasceu na cidade de Hoogeveen na província de Drenthe. Seu povo veio originariamente do condado de Bentheim. Seu pai, o Rev. Jan Bavinck, foi um ministro das igrejas que em 1834 se interessaram em manter a pura tradição do Cristianismo Histórico separada da Igreja do Estado da Holanda.

O jovem Bavinck alcançou distinção como estudante de um colégio em Zwolle e foi para a Escola Teológica de sua igreja em Kampben. Ali ele permaneceu por apenas um ano. Ele quis ir para Leiden para realizar seus estudos teológicos superiores. Leiden deu a ele pelo menos duas coisas: um grande respeito pela erudição e uma confrontação, em primeira mão, com a moderna teologia liberalmente afetada. Essas duas lições foram de grande importância para ele. O ideal de uma erudição teologicamente sólida para o Cristianismo Reformado ortodoxo permaneceu firme em sua vida no decorrer de toda a sua carreira. Seu conhecimento profundo sobre os mais novos pensa mentos religiosos serviu para aprofundar

suas convicções Calvinistas e habilitou-o a elaborar uma teologia realisticamente voltada para os problemas de seu tempo.

Em 1880 ele se graduou em Leiden, tendo feito sua dissertação sobre a

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ética de Ulrico Zwinglio. Ele trabalhou como ministro de uma igreja em Franeker por um ano, e foi então nomeado Professor de Dogmática na Escola Teológica de Kampben. O assunto de sua aula inicial, "A Ciência da San-ta Divindade" (De Wetenschal, der Heilige Godgeleerdlieid,1882), fascinou-o durante toda a sua vida. Durante a década de seus árduos estudos e ensino eficaz em Kampben, Bavinck três vezes foi convidado para lecionar teologia na Universidade Livre de Amsterdã. Ele só aceitou depois do terceiro convite, e só depois de satisfazer sua consciência (veja sua brochura Decline or Acoept [Blijz,epi of Heengann], Kampben, 1902) de que isso não prejudicaria a integridade da educação teológica em sua igre ja . Fo i só quando Abraham Kuyper trocou a pasta de catedrático em Amsterdã pela pasta de Ministro no governo de Hague que Bavinck tornou-se seu sucessor em Amsterdã.

Bavinck era primariamente o teólogo, o dogmático. Sua magnus opus são os quatro volumes de sua Pefórmed Dogmatics (Gerefornicerde Kampben, surgindo primeira-mente durante os anos 1895-1901 e, depois, em uma forma revisa-da, em 1906-1911. Um volume de sua obra, A Doutrina de Deus, edi-tado e traduzido pelo Dr. W. Hendriksen, foi publicado em C rand Rapids em 1951.0 presen-te volume, Os Fundamentos de Nos-sa Fé, escrito em 1909 como a Magnalia Dei (As Maravilhosas Obras de Deus), é um resumo de sua Dogmática em quatro volu-mes. Os Fundamentos de Nossa Fé é menos técnico, menos exclusiva-mente profissional, mais intenci-onalmente popular do que a Dogmática, e é mais amplamente amparado por referências da Es-critura, mas é, como a obra mai-or, um livro de dogmática Cristã básica. Ele apresenta claramente e em fina perspectiva as doutrinas fundamentais do ensino bíblico.

A l g u n s t ê m d i t o q u e Bavinck foi mais um filósofo do que um teólogo. É verdade que sua filosofia exibe a disciplina do treinamento e da informação de um filósofo, mas o que ele queria ser antes de tudo era um teólogo Escriturístico. É como Landwehr disse: "Assim como Calvin ex-traiu seus pensamentos da Escri-tura, Bavinck também sempre se inclinou sobre a Escritura para extrair dela as suas idéias, e sem-pre foi guiado cio teológico ele não era o espec-tador imparcial que observava descomprometidamente a reali-dade da religião. Em sua aula inaugural em Amsterdã, Religião e Teologia, ele disse:

Religião, o temor de Deus, deve ser o elemento que inspira e anima a investigação teológica. Isso deve marcara cadência da ciência. O teólogo é uma pessoa que se esforça para falar sobre Deus porque ele fala fora de Deus e por meio de Deus. Professar a teologia é fazer um trabalho san-to. É realizar uma ministração sa-cerdotal na casa do Senhor. Isso é por si mesmo um serviço de cul-to, uma consagração da mente e do coração em honra ao Seu nome.

Foi dessa forma que Bavinck conduziu sua carreira. Seu primei-ro biógrafo,

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Landwehr, registra como ele agia na sala de aula: A lição, ele diz, transformava-se em um sermão, pois o professor fica-va comovido com a verdade. A maioria de seus biógrafos registra as palavras por ele pronunciadas na fase terminal da doença que o matou: "Agora minha erudição de nada me vale, nem minha Dogmática: Só a minha fé pode me salvar". Com essa afirmação ele não estava depreciando toda uma vida de esforço no estudo te-ológico.

Quando o Dr. J. C. Rullmann submeteu seu artigo sobre Bavinck ao Christel i jke Encyclopaedie em 1925, ele percebeu que dificilmente poderia explicar a obra de Bavinck melhor do que fazendo uma citação do colega de Bavinck na Universidade Livre, Dr. W. J. Geesink. Essa citação também será útil para nós. Dr. Geesink disse – ele estava, naturalmente, usando o idioma holandês:

Como professor, Bavinck estaria no lugar mais elevado de qualquer faculdade de qualquer universidade. Sua tremenda erudição e sua vasta leitura tornaram-no ricamente expressivo na sala de aula. Sendo um erudito profundo e entusiasmado, ele tinha o dom de descobrir problemas, e quando ele os descobria, ele os levava ao conhecimento de sua audiência em termos compreensíveis. Se ele tivesse a solução, ele também a dividia com seus ouvintes, nunca de forma apressada, mas pausadamente e com calma. E se ele ainda não tivesse a solução, sua erudição honesta conservava-o distante daquilo que era ilusório, e que faria com que um problema fosse resolvido às custas da criação de outro. E com seu respeito pela lógica e com sua minuciosa disciplina na escola ele sabia muito bem como afastar os perigos do que há problemas que não podem ser resolvidos.

Como teólogo e dogmático por profissão, Bavinck seguiu Calvino em sua teologia Reformada. Fazendo isso, e levando em conta, apesar de não sem crítica e reserva, sua erudição moderna e seu conhecimento, ele ajudou a tirar a teologia Reformada do processo de endurecimento e fossi l ização no qual estava inserida desde cerca de 1750... Assim como Agostinho, que ele coloca na vanguarda de todos os pensadores antes e depois do quarto século, procurou na filosofia da revelação uma resposta para os problemas da vida e do mundo – por uma resposta, deve ser dito, que satisfaça tanto o coração quanto a mente.

Bavinck escreveu um impressionante número de obras substanciais nas áreas de religião e teologia, filosofia e ética prática, e, de forma especial, também psicologia e teoria da educação. A b ib l iograf ia de sua obra publicada, que inclui além de toda a extensão das muitas palestras inaugurais e outras palestras acadêmicas que ele deu, mas que não incluem seu movimentado trabalho jornalístico, ocupam cerca de sessenta itens na tabela de Landwehr. Na área de religião e teologia, as seguintes obras devem ser menc ionadas a lém da

Dogmática Reformada e Os Funda-mentos de Nossa Fé. Em 1888 ele lançou seu eterno clássico sobre o ecumenismo intitulado A Cato- licidade do Cristianismo e a igreja. (De lçatholieiteit van Christendom en Kerk). Em 1894 ele deu uma pales-tra definitiva sobre um tema pri-m e i r a m e n t e d e l i n e a d o p o r Calvin e também

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grandemente d e s e n v o l v i d o p o r A b r a h a m Kuyper, chamado Graça Comum (De Algemeene Genade). Suas boni-tas meditações em O Sacrifício do Louvor (De Offerande des Lofs, 1901) já estavam na sua sexagésima edi-ção na época de sua morte e fo-ram traduzidas para o inglês e publicadas nos Estados Unidos e m 1 9 2 2 . U m t i p o d e l i v r o devocional, A Certeza da Fé (De Zekerheid des Gelocf), foi publica-do no mesmo ano. Importantes também são suas palestras minis-tradas em 1911 intituladas Moder-nismo e Ortodoxia (Modernisme en Orthodoxie), e seu Chamado e Rege-neração (Roepng en Wedergeboorte) de 1903.

Entre seus livros mais filoso-ficamente orientados estão as Conferências Stone de Princeton, proferidas em 1908 e publicadas em inglês no ano seguinte como A Filosofia da Revelação: Ética para Hoje (Hedendaagsche Moraal, 1902), e as duas palestras filosóficas de 1904 intituladas Filosofia Cristã (Ct,lristelijke Wetenschap) e O ( C h r i s t e l i j k e W e r e l d b e s c h o u -

wing ) . Um t ema que ocupou Bavinck por muito tempo e ao qual ele dedicou sua mais madu-ra reflexão foi a interligação entre a religião e o ensino. Nenhuma instituição de educação Cristã ortodoxa de nível superior pode ignorar suas várias publicações sobre esse assunto: Religião e Di-vindade (Gocisdienst en Godgeleer-dheid, 1902), Educação e Teologia (Opleiding en Theokgie, 1896), O Ofício do Doutor ou Professor de Te-ologia (Het Dociorenambt, 1899), A Autoridade da Igreja e a Liberdade da Ciência (Het Recht der Kerken eu de Vrijheid der Wetenschap, 1899), En-sino e Filosofia (Geleerdheid en Wetenschap, 1899), e A Escola Teo-lógica e a Universidade Livre (Theologische School eu Vrije Universiteit, 1899).

Foi durante os últimos anos de sua v ida pro f i ss ional que Bavinck tornou-se expressivo nas duas mais elevadas esferas de vida e pensamento, que são ética aplicada e psicologia aplicada à moral. À primeira categoria de in-teresse pertencem obras como O Papel da Mulher na Sociedade M o d e r n a ( D e V r o u w i n d e Hedendaagsche Maatschapleij, 1918), A Família Cristã, (Het Christelijke Huisgezim, 1908), A Imitação de Cr is to na Vida Moderna (De Navolging van Christus in het Modera Leven, 1918), O Problema da

Oorlog, 1915), e Cristianismo, Guei-rã, e a Liga das Nações (Christendom, Oorlog, Volkenbond, 1920). Esta úl-tima obra nos mostra como Bavinck se interessava pelos pro-blemas do nosso século. Além dis-so, deve ser dito que ele tinha um fino "senso de sua própria época". Isso leva em conta sua pronunci-ada preocupação com Psicologia e os princípios de educação. Em 1975 ele escreveu o tratado Sobre o Si Consciente (Het Onbewuste), em 1897 Os Princípios de Psicologia (Beginselen der Psycologie), e em 1920 a Psicologia Bíblica e Religiosa (Bijbelsche eu Religieuse Psycologie). Sua maior obra sobre a teoria da educação é Princípios Pedagógicos (Paedngogische Beginselen, 1904). Não é de se admirar que essa área de estudos tenha atraído tanto sua atenção. O livro Filosofia Educacio-nal de Hermann Bavinck, escrito pelo Dr. Cornelius Jaarsma (Grand Rapids, 1935) e o livro De Paedagogiek van Bavinck, escrito pelo Dr. L. Van der Zweep (Kampben, sem data) falam sobre isso.

Hermann Bavinck visitou a América duas vezes; a primeira em 1892, quando foi convidado pela Aliança das Igrejas Reforma-das que adotam o Sistema Presbiteriano, para ministrar uma palestra em Toronto sobre o tema: "A Influência da Reforma Protes-tante nas Condições Morais e re-ligiosas

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a segunda foi em 1908, quando ele demonstrou através de suas Con-ferências Stone de Princeton que merecia ser considerado com Kuyper, Warfield, Hodge, e Orr como um destacado teólogo Calvinista moderno. Na vida po- lítica prática ele era menos ativo do que Kuyper, sendo mais incli-nado à filosofia política do que à política. Ele era, contudo, um membro da Casa Alta, represen-tando o sul da Holanda nos Esta-dos Gerais desde o ano de 1911 em diante. Seus melhores serviços nesta área de atuação foram da-dos como consultor e conselheiro na área da educação. A tradução das suas obras para o inglês tem sido intermitente e dispersa. Des-sa forma, desde muito tempo, ape-nas O Sacrifício do Louvor, O Reino de Deus, A Filosofia da Revelação e o pequeno tratado Evolução estão disponíveis em língua inglesa. Os Fundamentos de Nossa Fé é, por isso, um importante incremento. Aí está também uma biografia não definitiva. Três precursores já es-creveram sobre isso. O primeiro foi J. H. Landwehr com seu M Menioriam, de 1921.0 segundo foi o Dr. V. Hepp com o seu Hermann Bavinck, escrito também em 1921 -o prometido segundo volume que dá seqüência ao primeiro nunca foi escrito. O terceiro foi A . B. W. Kok, com seu Hermann Bavinck, de 1945. Uma boa quantidade de analisado as idéias de Bavinck. Neste país [USA] nós temos, além do livro do Dr. jaarma, a não publicada dissertação de doutorado em Princeton, do Dr. Anthony Hockerna da doutrina de Bavinck sobre o Pacto.

Podemos dizer que no conjunto de sua apologia pelo Cristianismo Escriturístico Reformado Bavinck tinha quatro influências opostas em mente, sendo duas delas de fora e duas delas de dentro da então pálida fé Reformada. As duas influências externas eram· moderno liberalismo religioso e· Catolicismo Romano. As duas influências internas eram uma ortodoxia formal moribunda por um lado e o pietismo vazio de outro. Ele falou com freqüência e eloqüência contra todas essas forças. Observe, por exemplo, o sentimento e a perspectiva com que ele defendeu o envolvimento do mundo por um Calvinismo universal, em vez de uma fuga do Mondo por um pietismo sectário:

Nós não podemos ser uma seita. Nós não podemos querer ser uma seita e não podemos ser uma, a não ser que neguemos o caráter absoluto da verdade. Além disso, o reino dos céus não é deste mundo, mas exige que tudo neste mondo o sirva. É exclusivo e ciumento, e se satisfaz quando não há um reino independente ou ria muito mais fácil abandonar essa era aos seus próprios caminhos, e procurar nossa força em um sossegado retiro. Todavia, nem semelhante descanso nos é permitido aqui. Porque toda criatura é boa, e nada deve ser recusado se for recebido com ações de graças, pois todas as coisas são santificadas pela Palavra de Deus e oração; portanto, a rejeição de qualquer criatura é ingratidão para com Deus, um julgamento errado ou uma depreciação de suas bênçãos e de suas dádivas. Nossa guerra deve ser conduzida somente contra o pecado. Nenhum problema que dificulte os relacionamentos entre os crentes em Cristo deve existir. Nenhum problema ou dificuldade virtualmente sem solução, seja de ordem social, política, e especialmente de ordem científica, devem existir, nas quais nossa desconfiança e fraqueza se apoiem orgulhosamente para tirar-nos da luta, talvez até mesmo sob a alegação de motivação Cristã, ou rejeitando a cultura

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de nosso tempo como demoníaca.

Essa é uma das notas que Bavinck gostava de entoar em defesa da fé. Ele ensinava isso em sua palestra intitularia A Catolicidade do Crist ianismo e a Igreja. Essa é uma afirmação representativa. "A fé", ele dizia, "tem a promessa de vitória sobre o mundo". O Dr. Tlepp muito apropriadamente es-

creveu como conclusão da biogra-fia de Bavinck, as seguintes pala-vras:

O que outrora foi dito sobre Calvin serve também para ele: A posteridade "não pode encontrar melhor forma de honrar seu pio-

neiro e mestre do que confessar com o coração e com os lábios: Dele, por Ele e para Ele são todas as coisas. A Ele, pois, seja a glória para sempre".

Agosto de 1955. Henry Zylstra

ÍNDICE

Prefácio à Tradução Brasileira ................................................................05Prefácio à Edição em Inglês......................................................................071. O Maior Bem do Homem..................................................................172. O Conhecimento de Deus..................................................................253. A Revelação Geral..............................................................................334. O Valor da Revelação Geral ............................................................475. A Questão da Revelação Especial....................................................656. O Conteúdo da Revelação Especial.................................................797. As Sagradas Escrituras....................................................................103S. A Escritura e a Confissão...................................................................1279. O Ser de Deus.......................................................................................13910, A Divina Trindade.............................................................................15511. A Criação e a Providência...............................................................17512. A Origem, a Essência e o Propósito do Homem..........................1991 1 O Pecado e a Morte............................................................................24314. O Pacto da Graça..............................................................................28715. O Mediador da Aliança....................................................................30916. A Natureza Divina e a Natureza Humana de Cristo....................33917. A Obra de Cristo em Sua Humilhação 363l& A Obra de Cristo em Sua Exaltação ................................................39119. O Dom do Espírito Santo................................................................42320. A Vocação Cristã ............................................................................44321. A Justificação ..................................................................................48322. A Santificação ..................................................................................51523. A Igreja de Cristo.............................................................................56324. A Vida Eterna ..................................................................................597

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Capítulo 1

O MAIOR BEM DO HOMEM

Deus, e somente Deus, é o maior bem do homem.__ Em um sentido geral po-

d mos dizer que Deus é o maior b,m de todas as Suas criaturas, pois Deus é o Criador e o Sustentados de todas as coisas, a fonte de todo o ser e de toda a vidae a fonte inesgotável da qual flui tudo o que é bom. Todas as criaturas devem sua existência somente àquele que é o Ser único, eterno e onipresente.

Mas a idéia do mais elevado bem, geralmente inclui o pensamento de que este bem é reconhecido e desfrutado como tal pelas próprias criaturas. E claro que esse não é o caso das criaturas inanimadas e não racionais. As criaturas inanimadas possuem apenas o ser, mas não possuem o princípio da vida. Outras criaturas, tais como as plantas, possuem o princípio da vida, mas são

desprovidas de consciência. Os animais, é verdade, possuem, além de sua existência e de sua vida, um certo tipo de consciência, mas essa consciência alcança apenas aquilo que pode ser visto ou sentido ao seu redor. Eles são conscientes das coisas terrenas, mas não das celestiais; eles têm consciência da realidade, do prazer e da utilidade, mas não possuem qualquer noção de verdade, bondade e beleza; eles possuem consciência sensorial e desejo sensorial e, portanto, satisfazem-se com o que é sensorial e não podem penetrar através da ordem espiritual.O caso do homem é diferente. Ele é a criatura que, inicialmente, foi criada à imagem e semelhança de Deus, e essa origem divina e essa marca divina nenhum erro pode destruir. Contudo ele perdeu, por causa do pecado, os gloriosos atributos de conhecimento, justiça e santidade que estavam contidos na imagem de Deus. Todavia, esses atributos ainda estão presentes em "pequenas reservas" remanescentes da sua criação; essas reservas são suficientes não somente para torna-lo culpado, mas também para dar testemunho de sua primeira grandeza e lembrá-lo continuamente de seu chamado divino e de seu destino celestial.

Em todos os seus pensamentos e em todas as suas obras, em toda a vida e atividade do homem, fica claro que ele é uma criatura que não pode ser plenamente satisfeita com o que o mundo físico tem para oferecer. De fato ele é um cidadão de uma ordem física, mas ele também se ergue acima dessa ordem para uma ordem sobrenatural. Com seus pés firmemente plantados no chão ele levanta sua cabeça e lança seu olhar para cima. Ele tem conhecimento de coisas que são visíveis e temporais, mas também tem consciência de coisas que são invisíveis e eternas. Seu desejo vai além do que é terreno, sensorial e transitório e alcança também os bens celestiais, espirituais e eternos.

O homem compartilha sua consciência sensorial com os animais, mas além

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dessas qualidades ele foi dotado de entendimento e razão, que o tornam capaz de pensar e levantar-se acima do mundo de imagens sensoriais para um mundo de pensamentos incorpóreos e para um reino de idéias eternas. O pensamento e o conhecimento do homem, apesar de serem extraídos de seu cérebro, são todavia em sua essência uma atividade inteiramente espiritual, pois transcendem aquilo que ele pode ver e tocar. Através do pensamento ele estabelece uma conexão com um mundo que ele não pode ver nem tocar, mas que é real e que possui mais realidades essenciais do que a corporalidade desta terra. O que ele realmente está procurando não é uma realidade tangível, mas a verdade espiritual, a verdade que é única, eterna e imperecível. Seu entendimento só pode encontrar descanso na absoluta verdade Divina.

Como dissemos, o homem compartilha seu desejo sensorial com os animais. Consequentemente, ele sente necessidade de comida e bebida, luz e ar, trabalho e descanso, e é completamente dependente da terra para sua existência física. Porém, acima desse nível de desejos ele possui a vontade, que, dirigida pela sua razão e pela sua consciência, procura por bens maiores e mais elevados. O prazer e a utilidade, apesar de terem seu valor e seu lugar em seu tempo, não podem satisfazê-lo totalmente; ele quer e

procura um bem que não se torna bom por causa das circunstâncias, mas que é bom em e através de si e para si mesmo, um bem imutável, espiritual e eterno. E novamente essa vontade só pode encontrar descanso nas bênçãos absolutas e elevadas de Deus.

Tanto a razão quanto a vontade possuem, de acordo com o ensino das Sagradas Escrituras, sua raiz no coração do homem. Com relação ao coração o autor de Provérbios diz que deve ser guardado com toda a diligência, pois dele procedem as saídas da vida (Pv 4.23). Assim como o coração no sentido físico é o ponto de origem e de força propulsora da circulação do sangue, assim tam-bém, espiritual e eticamente ele é a fonte da mais elevada vida do homem, a sede de sua auto consciência, de seu relacionamento com Deus, de sua subserviência à Sua lei, enfim, de toda a sua natureza moral e espiritual. Portan-to, toda a sua vida racional e volitiva tem seu ponto de origem no coração e é governada por ele.

Agora nós veremos, em Eclesiastes 3.11, que Deus colocou o mundo no coração do homem'. Deus fez tudo formoso a seu tempo, e fez tudo acontecer no seu exato momento, no momento que Ele tinha fixado para que acontecesse. Essa história no

seu conjunto ou em suas partes se refere ao conselho de Deus e revela a glória desse conselho. E Deus colocou o homem no meio deste mundo e colocou a eternidade no seu coração, de forma que ele não encontrasse descanso nas manifestações visíveis e externas, mas que procurasse conhecer os pensamentos eternos de Deus no curso temporal da natureza e da história.

Esse desideriuni aeternitatis, essa ânsia por uma ordem eterna, que Deus plantou no coração do homem, no mais íntimo esconderijo do seu ser, no centro de sua personalidade, é a causa do fato indiscutível de que nem mesmo tudo que pertence à ordem temporal pode satisfazer o homem. Ele é um ser

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sensorial, terreno, li-m fitado emortal, mas ainda é atraído para a eternidade e destinado a ela. Não há proveito para o homem que possui uma boa esposa, filhos, casas e campos, tesouros e propriedades, ou mesmo o mundo todo, se perder a sua alma (Mt 16.26). Nem mesmo o mundo todo pode ter o mesmo valor de um homem. Ninguém é tão rico que possa por qualquer meio redimir a alma de seu irmão, nem dar a Deus uma razão para que faça isso; a redenção da alma é preciosa demais para que seja alcançada por qualquer

criatura (51 49.7-9)

Como geralmente acontece, muitas pessoas estão plenamente dispostas a admitir isso logo que os prazeres sensoriais e os tesouros terrenos são citados. Elas prontamente reconhecem que essas coisas não podem satisfazer o homem e não correspondem ao seu destino elevado. Mas seu julgamento é mudado logo que os assim chamados valores ideais –ciência, arte, cultura, o exercício da fidelidade, a bondade, a beleza, a dedicação da vida em favor do próximo, e o desejo de servir à humanidade– sãocolocados em cena. Porém, todas essas coisas também pertencem ao mundo do qual as Escrituras dizem que é passageiro (1 Jo 2.17).

A ciência, o conhecimento, e o aprendizado certamente são boas dádivas, que descem do Pai das Luzes, e portanto devem ser levadas em alta estima.

Quando Paulo chama a sabedoria do mundo de loucura diante de Deus (1 Co 3.19), e quando ele em outro lugar nos adverte contra a filosofia (Cl 2.8), ele tem em mente a falsa e inútil suposta sabedoria que não reconhece a sabedoria de Deus em sua revelação geral e em sua revelação especial (1 Co 1.21) e que se tornou nula em seus próprios ra

ciocínios (Rm 1.21). Mas no restante, Paulo e as Sagradas Escrituras, em sua totalidade, colocam o conhecimento e a sabedoria em um plano de grande importância. E não poderia ser de outra forma, pois a Bíblia afirma que Deus é sábio, que Ele tem conhecimento perfeito de Si mesmo e de todas as coisas, que pela Sua sabedoria Ele estabeleceu o mundo, que Ele manifesta a Sua multiforme sabedoria à Igreja, que em Cristo estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento, e que o Espírito é o Espírito da sabedoria e do conhecimento, que p e r s c r u t a a t é m e s m o a s profundezas de Deus (Pv 3.19; Rm 11.33; 1 Co 2.10; Ef 3.10; C12.3). Um livro do qual procedem mensagens como essas não pode subestimar o conhecimento nem pode desprezar a filosofia. Pelo contrário, nele aprendemos que a sabedoria é mais preciosa do que pérolas, e tudo o que podemos desejar não pode ser comparado a ela (Pv 3.15); ela é um dom daquele que é o Deus do conhecimento (Pv 2.6; 1 Sm 2.3).O que a Escritura exige é um conhecimento cuja origem seja o temor do Senhor (Pv 1.7). Quando essa conexão com o temor de Deus é rompida, o nome de conhecimento é mantido, embora sob falsas pretensões, mas ele vai se degenerando gradualmente até se transformar em uma sabedoria mundana, que é loucura diante de Deus. Qualquer ciência, filosofia ou conhecimento que pense poder se manter sobre suas próprias pressuposições e que pode

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tirar Deus de consideração, transforma-se em seu próprio oposto, e qualquer pessoa que construa suas expectativas sobre isso ficará desiludida.

Isso é fácil de ser entendido. Em primeiro lugar, a ciência e a filosofia sempre possuem um caráter especial e podem tornar-se acessíveis a poucas pessoas. Essas pessoas privilegiadas, que podem dedicar toda a sua vida à disciplina do aprendizado, podem conhecer apenas uma pequena parte do todo, permanecendo, assim, estranhos ao restante. Qualquer que seja a satisfação que o conhecimento possa dar, todavia, ele nunca poderá, devido ao seu caráter especial e limitado, satisfazer as necessidades profundas que foram plantadas na natureza humana na criação, e que estão presentes em todas as pessoas.

Em segundo lugar, a filosofia, que depois de um período de decadência entra em período de fortalecimento, sempre cria uma expectativa extraordinária e exagerada. Nessas épocas ela vive a esperança de que através de uma séria investigação ela resolverá o enigma do mundo. Mas sempre depois dessa fervente expectativa

chega a velha desilusão. Em vez de diminuir, os problemas aumentam com os estudos. O que parece estar resolvido vem a ser um novo mistério, e o fim de todo o conhecimento é então novamente a triste e às vezes desesperadora confissão de que o homem caminha sobre a terra em meio a enigmas, e que a vida e o destino são um mistério.

Em terceiro lugar, é bom lembrar que tanto a filosofia quanto a ciência, mesmo que pudessem chegar muito mais longe do que chegam agora, ainda assim não poderiam satisfazer o coração do homem, pois o conheci-mento sem a virtude, sem a base moral, torna-se um instrumento nas mãos do pecado para conceber e executar grandes males, e assim a cabeça que está cheia de conhecimento passa a trabalhar para um coração depravado. Nesse sentido o apóstolo escreve: Ainda que eu tenha o dom de profetizar e conheça todos os mistérios e toda a ciência; e ainda que eu tenha tamanha fé a ponto de transportar montes, se não tiver amor, nada serei (1 Co 13.2).

O mesmo é verdade com relação à arte. A arte também é um dom de Deus. Como o Senhor não é apenas verdade e santidade, mas também glória e expande a beleza de Seu nome sobre todas as Suas obras, então é Ele, também, que, pelo Seu Espírito, equipa os

artistas com sabedoria e entendimento e conhecimento em todo tipo de trabalhos manuais (Ex 31.3; 35.31). A arte é, portanto, em primeiro lugar, uma evidência da habilidade humana para criar. Essa habilidade é de caráter espi-ritual, e dá expressão aos seus profundos anseios, aos seus altos ideais, ao seu insaciável anseio pela harmonia. Além disso, a arte em todas as suas obras e formas projeta um mundo ideal diante de nós, no qual as discórdias de nossa existência na terra são substituídas por uma gratificante harmonia. Desta forma a beleza revela o que neste mundo caído tem sido obscurecido à sabedoria mas está descoberto aos olhos do artista. E por pintar diante de nós um quadro de uma outra e mais elevada realidade, a arte é um conforto para nossa vida, levanta nossa alma da consternação e enche nosso coração de esperança e alegria.

Mas apesar de tudo o que a arte pode realizar, é apenas na imaginação que nós podemos desfrutar da beleza que ela revela. A arte não pode fechar

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o abismo que existe entre o ideal e o real. Ela não pode transformar o aléns de sua visão no aqui de nosso mundo presente. Ela nos mostra a glória de Canaã à distância, mas não nos introduz nesse país nem nos faz cidadãos dele. A arte é muito, mas não é tudo. Ela nãoé, como um homem distinto uma vez a chamou, a coisa mais nobree mais santa, a única religião e a única salvação do homem. A arte não pode perdoar pecados. Ela não pode nos limpar de nossa sujeira. E ela não é capaz de enxugar nossas lágrimas nos fracassos da vida.

Quanto à cultura, civilização, humanitarismo, vida social, ou seja lá como você quiser chamar, também não é o mais elevado bem do homem. Sem dúvida nós podemos falar de um tipo de progresso nas idéias humanitárias, e de um desenvolvimento da filantropia. Quando nós compara-mos como o pobre e o doente, o miserável e o indigente, as viúvaseos órfãos, os loucos e os prisioneiros eram freqüentemente tratados em tempos anteriores e como eles são tratados agora, nós certamente temos motivo de alegria e de gratidão. Um espírito de afetoede misericórdia tem vindo sobre aqueles que procuram os perdidos e demonstram compaixão pelos oprimidos. Mas, ao mesmo tempo em que isso acontece nós presenciamos uma tão medonha suntuosidade de horríveis vícios, de mantoffismo, de prostituição, alcoolismo e abominações semelhantes, que somos constrangidos a perguntar se estamos nos movendo para frente ou para trás. Em um momento nós somos otimistas, mas no momento seguin-

te somos mergulhados novamente em um pessimismo profundo.Seja como for, uma coisa é certa: Se a vida de serviço à humanidade e

de amor ao próximo não for baseada na lei de Deus, ela perde sua força e seu caráter. Além disso, o amor ao próximo não é uma espécie de auto peni-tência que surge espontânea e naturalmente do coração humano. É um sentimento, ou melhor, é uma ação, e um serviço que requer uma tremenda força de vontade e que deve ser sempre sustentado contra as imensas forças da preocupação por si mesmo e da busca dos próprios interesses. Além disso, o amor ao próximo freqüentemente encontra pouco suporte no próximo. As pessoas geralmente não são tão amáveis a ponto de nós podermos, naturalmente, sem esforço e luta, apreciá-las e amá-las como amamos a nós mesmos. Além disso, o amor ao próximo só pode ser sustentado se, por um lado, ele é baseado na lei de Deus e, por outro lado, se Deus nos concede o desejo de vi~ er honradamente de acordo com seus mandamentos.

A conclusão, portanto, é aquela de Agostinho, que disse que o coração do homem foi criado por Deus e que por isso ele não Pode encontrar descanso a não ser

no coração de Deus. Sendo assim, todos os homens estão procurando por Deus, mas eles não o procuram da forma certa nem no lugar certo. Eles procuram aqui embaixo, mas Ele está lá em cima. Eles o procuram na terra, mas Ele está no céu. Eles o procuram longe, mas Ele está perto. Eles o pro-curam no dinheiro, na propriedade, na fama, no poder e na paixão;

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eEle está no alto e santo lugar, e também com o contrito e o abatido de espírito (Is 57.15). Mas elesoprocuram como se, tateando, pudessem encontrá-lo (At 17.27). Eles o procuram e ao mesmo tempo fogem dele. Eles não se interessam em conhecer os seus caminhos, e não podem fazê-lo sem Ele. Eles se sentem atraídos a Deus e ao mesmo tempo repelidos por Ele.

Nisso, como Pascal profundamente observou, consiste a grandeza e a miséria humana. Ele anseia pela verdade e é falso por natureza. Ele anseia por descanso e se lança de uma diversão para outra. Ele suspira por uma felicidade permanente e eterna e se agarra a prazeres momentâneos. Ele procura por Deus e se perde na criatura. Ele é um filho nascido em casa e come as bolotas dos porcos em terra estranha. Ele abandonou a fonte de águas vivas cavou cisternas rotas, que não retêm as águas (Ir 2.13). Ele é um faminto que sonha que está coroendo e quando acorda descobre que sua alma está vazia; e é como um homem sedento que sonhaque está bebendo, e quando acorda descobre que está fraco e que sua alma está desfalecida (Is 29.8). A ciência não pode explicar essa contradição no homem. Ela reconhece apenas sua grandeza enão sua miséria, ou apenas sua miséria e não sua grandeza. Ela o eleva a grandes alturas ou o aperta em um abismo, pois ela não conhece a origem divina do homem nem sua queda. Mas as Escrituras conhecem tanto um quanto o outro, e lançam sua luz sobre o homem e sobre a raça humana; e as contradições são desfeitas, a névoa se esvai e as coisas ocultas são reveladas. O homem é um enigma cuja solução só pode ser encontrada em Deus.

Capítulo 2

O CONHECIMENTO DE DEUS

Deus é o mais elevado bem do homem – esse é o tes t e m u n h o d e t o d a a E s c r i ura.

A Bíblia começa dizendo que Deus criou o homem à sua própria imagem e semelhança para fazer com que ele soubesse que Deus é· seu Criador e o amasse de todo· seu coração e vivesse com Ele em eterna bem-aventurança. E a Bíblia termina com a descrição da nova Jerusalém, cujos habitantes verão Deus face a face e terão Seu nome escrito em sua testa.

Entre esses dois momentos repousa a revelação de Deus em todo o seu comprimento e amplitude. O conteúdo dessa revelação é a grande e única promessa abrangente do pacto da Graça: Eu serei o vosso Deus e vós sereis meu povo. E no centro e no ponto ma is elevado dessa revelação está

o Emanuel, o Deus Conosco. A

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promessa e o seu cumprimento caminham de mãos dadas. A Palavra de Deus é o começo, o princípio, a semente, e é o ato no qual a semente alcança sua plena realização. Assim como no começo, Deus criou todas as coisas pela Sua palavra, assim também pela Sua palavra Ele criará, no curso das eras, novos céus e nova terra, na qual o tabernáculo de Deus estará entre os homens.

É por isso que de Cristo, que é a Palavra que se fez carne, diz-se que é cheio de Graça e de verdade (jo 1.14).

Ele é a Palavra que no começo estava com Deus e Ele mesmo era Deus, e como tal Ele era a vidaea luz dos homens, pois o Pai compartilha Sua vida com Cristo

edá expressão ao Seu pensamento em Cristo, portanto a plenitude do ser de Deus é revelada nEle. Ele não apenas nos apresenta o Paienos revela Seu nome, mas Ele nos mostra o Pai em Si mesmo e nos dá o Pai. Cristo é a expressão de Deus e a dádiva de Deus. Ele é Deus revelando a Si mesmo e Deus compartilhando a Si mesmo,· portanto Ele é cheio de verdade· também cheio de Graça. A palavra da promessa, "Eu serei o vosso Deus", que estava incluída desde o momento em que foi proferida, estará em vigor até o seu cumprimento. Deus se dá a Si mesmo ao Seu povo para fazer com que o Seu povo se entregue a Ele.

Nas Escrituras nós encontramos Deus constantemente repetindo esta declaração: Eu sou o teu Deus.

Desde a promessa-mãe em Gênesis 3.15 em diante, esse rico testemunho, abrangendo todas as bênçãos e a salvação, é repetido várias vezes, seja na vida dos patriarcas, seja na história do povo de Israel, ou na Igreja do Novo Testamento. E em resposta a essa declaração a igreja vem usando uma variedade sem fim de expressões de fé, dizendo em gratidão e louvor: "Tu és o nosso Deus, e nós somos o Teu povo e ovelhas do Teu pastoreio".

Essa declaração de fé por parte da igreja não é uma doutrina científica, nem uma cerimônia de unidade que está sendo repetida, mas a confissão de uma realidade sentida profundamente e de uma convicção da realidade que tem sido experimentada na vida.Os profetas, os apóstolos e os santos que aparecem diante de nós no Velho e no Novo Testamento e posteriormente, na Igreja de Cristo, não se sentaram e filosofaram sobre Cristo em conceitos abstratos, mas disseram o que Deus sig-nifica para eles e que eles dependem de Deus em todas as circunstâncias da vida. Deus não era para eles um conceito frio, que eles pudessem analisar racionalmente, mas era a vida, força pessoal, uma realidade infinitamente mais real do que o mundo que os cercava. Eles levavam em conta em suas vidas, eles moravam em Sua tenda, andavam como se estivessem sempre diante de Sua face, serviam-no em Sua corte, e cultuava m-no em Seu santuário.

A genuinidade e profundidade de sua experiência se expressam na linguagem que eles usaram para explicar o que Deus significava para eles. Eles não tinham que se esforçar para encontrar palavras, pois os seus lábios falavam daquilo de que seu coração estava cheio, e o mundo e a natureza forneceram-lhes figuras de linguagem. Deus era para eles o Rei, o Senhor, o

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Valente, o Cabeça, o Pastor, o Salvador, o Redentor, o Ajudador, o Médico, o Homem e o Pai. Toda a sua felicidade e bem estar, sua verdade e justiça, sua vida e piedade, sua força e poder, sua paz e seu descanso eles encontraram em Deus. Para

eles Deus era o sol e escudo, o protetor, a luz e o fogo, a cascata e a nascente, a rocha e o abrigo, o refúgio e a torre, o prêmio e a sombra, a cidade e o templo. Todos os bens que o mundo tem para oferecer eram considerados por eles como a imagem e semelhança das plenitudes insondáveis da salva-ção, disponíveis em Deus, para o Seu povo. Foi por isso que Davi no Salmo 16.2 disse a Jeová o seguinte: "Tu és o meu Senhor; outro bem não possuo, senão a ti somente". Da mesma forma Asafe também cantou no Salmo 73: "Quem mais tenho eu no céu? Não há out ro em quem eu me compraza na terra. Ainda que a minha carne e o meu coração desfaleçam, Deus é a fortaleza do meu coração e a minha herança para sempre". O santo, coberto com todas essas bênçãos, seria nulo e sem valor se não tivesse Deus; e quando vive em comunhão com Deus ele não se preocupa com o que é terreno, pois o amor de Deus supera todos os outros bens.

Tal é a experiência dos filhos de Deus. Eles tiveram essa experiência porque Deus se apresentou a eles, para alegria deles, na pessoa do Filho de Seu amor. Nesse sentido Cristo disse que a vida eterna, isto é, a totalidade da salvação, consiste no conhecimento do único e verdadeiro Deus e em Jesus Cristo, que foi enviado por Deus.

Cristo disse essas palavras em um momento propício. Ele estava atravessando o ribeiro Cedrom para entrar no jardim do Getsêmani e travar ali a última batalha. Todavia, antes de chegar ao Getsênuani, Ele se prepara como nosso Sumo Sacerdote para Sua paixão e morte e ora ao Pai para que o Pai o glorifique em Seu sofrimento para que depois o Filho glorifique o Pai ao entregar todas as bênçãos que Ele alcançaria pela Sua obediência até a morte. E quando o Filho ora desta forma, Ele nada deseja além de fazer a vontade do Pai. O Pai lhe deu podersome todaa carnepara que o Filho pudesse dar a vida eterna a todos aqueles que o Pai lhe dera. Essa vida eterna consiste em conhecer o único e verdadeiro Deus e Jesus Cristo, que foi enviado para revelá-lo (jo 17.3).

O conhecimento do qual Jesus fala aqui tem seu próprio caráter peculiar. Ele é diferente de qualquer outro conhecimento que possa ser obtido, e essa diferença não é de grau, mas de princípio e de essência. Essa diferença surge, de forma clara, quando nós começamos a comparar os dois tipos de conhecimento. O conhecimento de Deus do qual Jesus falou, difere do conhecimento das coisas criadas com relação a sua origem, seu objeto, sua essência e seus efeitos.

Ele difere, antes de mais nada, em sua origem, pois ele é completamente devido a Cristo. De certa forma podemos dizer que obtemos todo o outro conhecimento pela razão, pelo discerni-mente e julgamento e pelo nosso próprio esforço e estudo. Mas para obter esse conhecimento do único e verdadeiro Deus, nós, como crianças, devemos esperar que Cristo no-lo dê. Esse conhecimento não é encontrado fora de Cristo, nem em escolas ou em filósofos destacados. Só Cristo conhece o Pai. Ele estava com Deus no início, descansou em Seu peito e viu-o face a face. Ele mesmo era Deus, o brilho da glória de Deus e a imagem expressa de Sua pessoa, o próprio Filho amado e

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unigênito do Pai, em quem o Pai tinha prazer (Mt3.17;jo 1.14; Hb 1.3). Nada no ser do Pai está escondido para o Filho, pois o Filho compartilha ela mesma natureza, dos mesmos atributos e do mesmo conhecimento que o Pai. Ninguém conhece o Pai senão o Filho (Mt 11.27).

Esse Filho veio até nós e revelou-nos o

Pai. Ele revelou o nome de Seu Pai aos

homens. Foi para isso que Ele se tez carne

e habitou na terra: para nos dar o

conhecimento do que é verdadeiro (1Jo

5.20). Nós não conhecíamos Deus, nem

tínhamos interesse em conhecer os Seus

caminhos, mas

Cristo motivou-nos a conhecer o Pai. Ele não era um filósofo, nem um erudito, nem um artista. Sua obra era revelar-nos o nome do Pai. Ele o fez, completamente, durante toda a Sua vida. Ele revelou Deus em Suas palavras, em Suas obras, em Sua vida, em Sua morte, em Sua pessoa e em tudo o que Ele foi e fez. Ele nunca fez ou disse qualquer coisa exceto aquilo que viu Seu Pai fazendo. A Sua comida era fazer a vontade de Seu Pai. Quem quer que o tenha visto, viu também o Pai (jo 4.34; 8.26-28; 12.50; 14.9).

A Sua revelação é confiável porque Ele é Jesus Cristo, o que foi enviado. Ele recebeu do próprio Deus o nome de Jesus porque Ele foi enviado para salvar o Seu povo dos seus pecados (Mt 1.21). E Ele é chamado Cristo porque Ele é o Ungido do Pai, escolhido e qualificado para o exercício de todos os Seus ofícios pelo próprio Deus (Is 42.1; Mt 3.16). Ele é o ún ice Enviado porque, ao contrário de muitos falsos profetas, Ele não veio em Seu próprio nome, nem exaltou a Si mesmo, nem procurou Sua própria honra. Mas Deus amou tanto o mundo que deu Seu F i l ho unigênito para que todo aquele que nEle crê não pereça, mas tenha a vida eterna, pois Ele é o enviado de Deus (Jo 3.16).

Aqueles, pois, que o aceitam e crêem nEle recebem o direito e são qualificados para usar o nome

de filhos de Deus (Jo 1.12). Eles nasceram de Deus, partilham de Sua natureza, eles conhecem Deus sob as vistas de Cristo, Seu Filho. Ninguém conhece o Filho senão o Pai, e ninguém conhece o Pai senão o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar (Mt 11.27).

Em segundo lugar, o conhecimento de Deus difere do outro conhecimento com relação ao seu objeto. Quanto ao outro conhecimento, ele pode, especialmente em nosso tempo, ser muito amplo em seu alcance, mas ele ainda gira em torno da criatura, é limitado, temporal e nunca pode alcançar o que é eterno. De fato, há a revela-cão do poder eterno de Deus e as obras de Deus na natureza. Mas o conhecimento

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derivado dessa fonte é fraco, obscuro, contaminado pelo erro, e não tão importante. O homem, conhecendo Deus através da natureza, não o glorificou como Deus, e se tornou nulo em seu próprio raciocínio e mudou a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem da criamra. O mundo é tanto um oculta-mento quanto uma revelação de Deus (Rm 1.20-23).

Mas aqui na oração sacerdo:,ii [To 171, o Único que fica em evijencia é Aquele que nos transmi-, outro conhecimento e que nos desafia a falar sobre o conheconen- - de Deus! Quem pode compreender Deus como objeto do conhe,niento humano? Como o ho

mem pode conhecer Deus, o Infinito e Incompreensível, que não pode ser medido pelo tempo, nem pela eternidade, em cuja presença os anjos cobrem a face com as asas, que vive em luz inacessível, e a quem o homem nunca viu nem pode ver? Como pode alguém assim ser conhecido pelo homem, cujo fôlego está em suas narinas e que é menos que nada e menos que o vácuo? Como poderia ele conhecer Deus, se seu melhor conhecimento é um trapo remendado? Todo o seu conhecimento é sobre, e não de. O que ele sabe sobre a origem, a essência e o propósito das coisas? Ele não está rodeado de mistérios por todos os lados? Ele não está sempre beirando a fronteira do desconhecido? E nós poderíamos supor que um homem pobre, fraco, pecaminoso e carente poderia conhecer Deus, o Sublime, o Santo, o Único e Todo-Poderoso Deus?Ele está fora de nossa compreensão, mas Cristo viu o Pai e O revelou a nós. Nós podemos crer que Seu testemunho é verdadeiro e digno de total aceitação. E se você quer saber quem é Deus, não pergunte ao sábio, nem ao escriba, nem aos debateslores de nossos dias, mas procu re por Cristo e ouça o que Ele diz. Não diga em seu coração: "Quem subiu ao Céu, ou quem desceu ao abismo?". A palavra que Cristo proclama está perto de você. Ele mesmo é a Palavra, a perfeita revelação do Pai – igualmente justo, santo, cheio de Graça e de verdade. Em Sua cruz todo o conteúdo da fé do Velho Testamento foi revelado: "0 Senhor é misericordioso e compassivo; longânimo e assaz benigno. Não repreende perpetuamente, nem conserva para sempre a sua ira. Não nos trata segundo os nossos pecados, nem nos re-tribui consoante as nossas iniqúidades. Pois quanto o céu se alteia acima da terra, assim é grande a sua misericórdia para com os que o temem. Quanto dista o Oriente do Ocidente, assim afasta de nós as nossas transgressões. Como um pai se compadece de seus filhos, assim o Senhor se compadece dos que o temem." (S1103.8-13). E vendo a glória de Deus no espelho de Sua palavra, nós gritamos em êxtase: Nós o conhecemos porque Ele nos conheceu primeiro. "Nós amamos porque Ele nos amou primeiro" (1 Jo 4.19).A origem e o conteúdo de-terminam também a peculiar es-sência do conhecimento de Deus.Nos versículos da oração sa-cerdotal acima referida, Jesus falade um conhecimento que não é

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mera informação, mas um real co-nhecimento. Há uma grande dife-renÇa entre um e outro. Obter in-formação em livros a respeito deplantas, animais, pessoas, paísese povos não significa ter conheci-mento pessoal direto sobre esses

assuntos. Essa informação é simplesmente baseada na descrição que outra pessoa fez sobre algum assunto. Nesse sentido, a informação é apenas uma transmissão de notícias. O conhecimento real inclui um elemento de contato, um envolvimento pessoal e uma atividade do coração.

É verdade que uma descrição pode ser encontrada na Palavra do conhecimento de Deus que Cristo dá, e deste modo é possível ter uma informação sobre Deus que difira essencialmente do real conhecimento de Deus que Cristo transmite. Um tipo de conhecimento da vontade do Senhor desacompanhado, de uma preparação do coração faz com que isso seja possível (Lc 12.47,48). O homem pode clamar "Senhor! Senhor!" e não ter acesso ao Reino dos céus (Mt 7.21). Há a fé, como a dos demônios, que não conduzem ao amor, mas ao temor e ao tremor (Tg 2.19). Há ouvintes da palavra que não querem ser praticantes dela e que portanto serão frustrados (Tg 1.22)

Quando Jesus fala nesse texto sobre o conhecimento de Deus, Ele tem em mente um conhecimento do mesmo tipo do conhecimento que Ele mesmo possui. Ele não era um teólogo, nem um doutor ou professor de divindade. Ele conhecia Deus através de um contato direto e pessoal; Ele via Deus em todos os lugares, na

natureza, em Sua palavra, em Seu serviço; Ele o amou acima de todas as coisas e foi obediente a Ele em todas as coisas, até mesmo na morte de cruz. Seu conhecimento da verdade era completo. O conhecimento e o amor caminham juntos.

Além disso, conhecer Deus não consiste em ter uma grande quantidade de conhecimento sobre Ele, mas em enxergá-lo na pessoa de Cristo, em levá-lo em conta nos caminhos de nossa vida, e em sentir na alma Suas virtudes, Sua justiça, Sua compaixão e Sua Graça.

É por isso que esse conhecimento, em distinção ao outro conhecimento, recebe o nome de conhecimento da fé. Ele não é resultado de estudo científico nem de reflexão, mas de uma fé infantil e simples. Essa fé é, não apenas um conhecimento seguro, mas uma firme certeza de que, não somente para os outros, mas também para mim, a remissão dos pecados, a justiça e a salvação eterna foram dadas por Deus, somente pela Sua Graça, somente em con-sideração aos méritos de Cristo. Somente aqueles que se tornarem como criancinhas poderão entrar no reino dos céus (Mt 18.3). Só os puros de coração podem ver a face de Deus (Mt 5.8). Só aqueles que nasceram da água e do Espírito podem entrar no reino (]o 3.5). Aqueles que conhecem o nome de

Deus confiam nEle (SI 9.10). Deus é conhecido na mesma proporção em que Ele é amado.

Se nós entendemos o conhecimento de Deus dessa forma, não devemos nos

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surpreender com o fato de que sua operação e seu efeito seja nada menos que a vida eterna. De fato, parece existir pouca relação entre o conhecimento e a vida. Não foi o autor de Eclesiastes que disse que na muita sabedoria há muito enfado; e quem aumenta ciência aumenta tristeza; e ainda que não há limite para fazer livros e o muito estudar é enfado da carne (Ec 1.18; 12.12)?

Conhecimento é poder – isso nós podemos entender, pelo menos até um certo limite. Todo conhecimento é um triunfo do espírito sobre um certo assunto, uma sujeição da terra ao senhorio do homem. Mesmo na ordem natu-ral, a profundidade e a riqueza da vida são aumentadas pelo conhecimento. Quanto maior for o conhecimento, maior será a intensidade da vida. As criaturas inanimadas não possuem conhecimento, e elas não vivem. Quando os sentidos dos animais se desenvolvem, sua vida também se desenvolve em satisfação e oportunidade. Entre os homens, a vida mais rica é aquela que mais conhece. Além disso, como a vida do insano, do imbecil, do idiota, do subdesenvolvido? É pobre e limitada quando comparada com a deum pensador e poeta. Mas qualquer diferença que possa ser notada aqui é apenas uma diferença de grau. A própria vida não é mudada por isso. E a vida, seja a do mais distinto erudito ou a do mais simples operário, deve ne-cessariamente terra finar ni morte, pois ela se enche apenas com as fontes limitadas deste mundo.

Mas esse conhecimento de que Cristo fala não se refere a uma criatura, mas ao verdadeiro Deus.

Se o conhecimento das coisas visíveis podem enriquecer a vida, o que o conhecimento de Deus fará com ela? Deus não é um Deus de mortos e nem da morte, mas de vivos e da vida. Todos aqueles que foram recriados à Sua imagem e descansam em Sua companhia são elevados acima do nível da morte e da mortalidade. "Aquele que crê em mim", disse Jesus, "ainda que morra, viverá; e todo o que vive e crê em mim não morrerá eternamente" (Jo 11.25,26). O conhecimento de Deus em Cristo traz consigo a vida eterna, alegria imperturbável, bênçãos celestiais. Esses não são apenas efeitos, pois o conhecimento de Deus é, em si mesmo, uma vida nova, eterna e abençoada.

De acordo com esse ensino das Sagradas Escrituras, a Igreja Cristã determinou o caráter desse

corpo de conhecimentos ou ciência que desde tempos antigos tem sido chamado de Teologia ou Divindade. A Teologia é a ciência que extrai o conhecimento de Deus de Sua revelação, que estuda e pensa sobre ela soba orientação do Espírito Santo, e então tenta descrevê-la de forma a honrar a Deus. E um teólogo, um verdadeiro teólogo, é aquele que fala de Deus, através de Deus, sobre Deus e sempre no intuito de glorificar Seu nome. Entre o estudado e o simples há apenas uma diferença de grau. Ambos possuem um só Senhor, uma só fé, um só batismo, um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, age por meio de todos e está em todos. E a Graça foi concedida a cada um de nós segundo a proporção do dom de Cristo (Ef 4.5-7).

Nesse espírito, Calvino começou o catecismo de Genebra com a questão: Qual é o fim principal do homem? E a resposta vem, clara e retumbante: Conhecer Deus, por quem ele foi criado. Da mesma forma o Catecismo de Westminster começa suas lições com a seguinte pergunta:

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Qual é o fim supremo e principal do homem? A resposta é breve e rica: O fim supremo e principal do homem é glorificar a Deus e gozá-lo plena e eternamente.

Capítulo 3

A REVELAÇÃO GERAL

Se é verdade que o homem

pode ter conhecimento deDeus, então esse fato pressupõe que Deus, de Sua parte,

voluntariamente resolveu, de alguma forma, fazer-se conhecido ao homem.Nós não podemos creditar o conhecimento de Deus a nós mesmos, à

nossa descoberta, investigação ou reflexão. Se esse conhecimento não nos fosse dado por um ato livre e espontâneo de Deus, não haveria qualquer possibilidade de que nós o alcançássemos pelos nossos próprios esforços.

Quando nos referimos ao conhecimento das coisas criadas, a situação é bem diferente. Nós somos totalmente dependentes de Deus até mesmo para adquirir conhecimento sobre as coisas criadas, contudo, no momento da cri-ação Ele encarregou o homem de

subjugar e dominar toda a terra, equipou-o para realizar essa tarefa e deu-lhe interesse para isso. O homem está acima da natureza. Ele pode medir os fenômenos naturais, pode estudá-los e, até certo ponto, pode artisticamente criar objetos. Ele pode, de certa forma, fazer com que a natureza se revele a ele e descobrir seus segredos.

Contudo, esta habilidade também é limitada em todas as formas nas quais está disponível. Na medida em que a ciência penetra mais e mais fundo no fenômeno e se aproxima da essência dele, ela vê que os mistérios aumentam e sente-se encurralada por todos os lados pelo desconhecido. Não são poucos os que estão convencidos das limitações do conhecimento humano a ponto de dizer: "Nós nada sabemos", e, em algumas ocasiões: "Nós nunca

chegaremos a saber".

Se tal limitação do conhecimento humano logo se torna clara no estudo da natureza inanimada, ela se torna ainda mais notável no estudo das criaturas vivas, animadas e racionais.

Isso acontece porque nessa área nós entramos em contato com realidades que não podem ser manuseadas arbitrariamente. Elas ficam diante de nós em sua objetividade e podem ser conhecidas por nós na medida em que correspondem aquilo que encontramos em nós mesmos. A vida, a consciência, o sentimento e a percepção, o entendimento e a razão, o desejo e a vontade, não podem ser desmontadas e remontadas. Não são de natureza mecânica, mas orgânica; temos que considerá-los em si mesmos e respeitá-

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los em sua natureza misteriosa. Desmembrara vida é o mesmo que matá-la.

Isso vale para a maior parte da natureza humana, pois apesar de ser verdade que o homem é um ser físico e que essa dimensão não pode escapar de nossa percepção, é apenas sua manifestação externa que nós podemos perceber. Por trás dessa manifestação está uma vida misteriosa que tem em sua forma externa uma expressão imperfeita e inadequada. Até um certo ponto o homem tema habilidade de ocultar a outras pessoas o mais íntimo de sua natureza. Elepode controlar sua expressão facial de modo que seus músculos faciais não revelem o que está acontecendo dentro dele; ele pode usar uma linguagem que esconda seus pensamentos; ele pode, com suas ações, assumir uma atitude que esteja em conflito com o que ele pensa. E até mesmo quando nós estamos tratando com uma pessoa que despreze essas sutilezas do engano, nosso conhecimento sobre ele dependerá grandemente daquilo que, de sua parte, quiser revelar sobre si mesmo. Aliás, às vezes isso acontece de forma involuntária; o homem não tem controle absoluto sobre si mesmo, e ele freqüentemente se trai sem que tenha a intenção de fazê-lo. Ao mesmo tempo ele pode, através de sua vida, de suas palavras e de seus feitos, com ou sem o seu consentimento, revelar o mistério de sua personalidade, e nós poderemos conhecê-lo um pouco como ele é. O conhecimento de uma pessoa só é possível quando ela, involuntariamente ou consciente e deliberadamente o revela a nós.

Tais considerações nos conduzem a um correto entendimento das condições sob as quais um ser humano pode dizer que tem conhecimento de Deus. Deus é absolutamente independente, perfeitamente soberano. Ele não depende de nos para coisa alguma, mas nós, tanto naturalmentequanto racionalmente e moralmente, somos completamente dependentes dEle. Portanto, nós não temos controle e não temos poder sobre Ele, e por isso não podemos fazê-lo o objeto de nosso estudo e reflexão. A não ser que Ele se permita ser encontrado, nós jamais o encontraremos. A não ser que Ele se dê a nós, nós jamais poderemos recebê-lo. Além do mais, Deus é invisível. Ele mora em luz inacessível e nenhum homem jamais o viu e nem pode ver. Se Ele se mantiver oculto nós não podemos trazê-lo para o alcance de nossa percepção física ou espiritual; e, é claro, sem qualquer tipo de percepção, o conhecimento não é possível. Finalmente, para encerrarmos o assunto, Deus é Todo-Poderoso. Ele tem não apenas Suas criaturas, mas também a Si mes-mo sob total controle. Apesar dos seres humanos estarem sempre se revelando, algumas vezes mais outras menos, seja de forma deliberada ou não, Deus só se revela na medida em Ele deseja fazê-lo, e só porque Ele o quer. Não existe algo como uma manifestação involuntária de Deus, ocorrendo fora da esfera de Sua consciência e de Sua liberdade. Deus tem to-tal, absoluto e perfeito controle sobre Si mesmo, e Ele só se revela na medida em que sente prazer em fazer isso.

Portanto, o conhecimento de Deus só é possível através da re

velação que Ele faz de Si mesmo. O conhecimento de Deus só é acessível ao homem quando, e só quando, Deus livremente deseja revelar-se.

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Essa auto apresentação de Deus é geralmente chamada de revelação. A Escritura usa vários verbos para expressar essa revelação de Deus, tais como aparecer, falar, ordenar, trabalhar, fazer conhecido, e outros semelhantes. Isso mostra que a revelação nem sempre acontece do mesmo modo, mas de várias formas. Na prática, todas as obras de Deus, sejam palavras ou atos, são partes constituintes da única revelação de Deus, grande, abrangente, e sem-pre contínua. A criação, manutenção e o domínio de todas as coisas, o chamado e o destaque de Israel, o envio de Cristo, a descida do Espírito Santo, o registro da Palavra de Deus, o sustento e a propagação da Igreja, são formas pelas quais a revelação de Deus vem até nós. Cada urra dessas formas nos revela algo de Deus. Nesse sentido, tudo o que existe e tudo o que acontece pode conduzir-nos ao conhecimento de Deus.

Essa revelação pode ser geral ou especial, de acordo com as suas características.

Em primeiro lugar, a revelação sempre tem sua origem em

um ato livre da parte de Deus. Nesse ato, como em todas as outras coisas, Ele é absolutamente soberano, e age com perfeita liberdade. De fato, há alguns que repudiam a crença em um Deus pessoal e auto consciente, e ainda assim falam de uma revelação de Deus. Isso dá um significado à palavra que entra em conflito com seu sentido usual. Do ponto de vista daqueles para os quais a divindade é apenas uma força todo-poderosa, impessoal e inconscien-te, é possível falar em uma manifestação involuntária dessa força, mas não de uma revelação real, pois essa é uma idéia que pressupõe a perfeita consciência e liberdade de Deus. Toda revelação digna desse nome procede da idéia de que Deus existe pessoalmente, que Ele é consciente de Si mesmo e que Ele pode fazer-se conhecido às Suas criaturas. Nosso conhecimento humano de Deus tem sua base e sua origem no conhecimento que Deus tem de Si mesmo. A não ser que haja auto consciência e auto conhecimento em Deus, nenhum conhecimento de Deus será possível ao homem. Qualquer pessoa que negue isso chegará à conclusão irracional de que nenhum conhecimento de Deus é possível, ou que Deus alcança auto consciência somente no homem, o que coloca o homem no lugar de Deus.

A Escritura ensina algo mui

to diferente disso. Apesar de ser inacessível, a morada de Deus é luz; Ele conhece a Si mesmo perfeitamente e, portanto, pode revelar-se a nós. Ninguém conhece o Filho senão o Pai; e ninguém conhece o Pai senão o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar (Mt 11.27).

Em segundo lugar, toda revelação que procede de Deus é auto revelação. Deus é a origem e também o conteúdo de Sua revelação. Isso faz com que seja verdadeira a mais elevada revelação, que veio a nós em Cristo, pois o próprio Cristo disse que Ele revelou o nome de Deus ao homem (Jo 17.6). O Filho unigênito, que está no seio do Pai, revelou-nos Deus (Jo 1.18). Mas o mesmo é verdade sobre qualquer revelação que Deus tenha dado ao homem sobre Si mesmo. Todas as obras de Deus, em natureza e em Graça, na criação e na regeneração, no mundo e na história, mostram-nos algo sobre o incompreensível e adorável ser de Deus. Elas não o fazem da mesma forma e nem com o mesmo alcance; há infinitas diferenças entre elas. Uma obra fala de Sua justiça, e outra de Sua Graça; de uma resplandece Seu poder infinito, e de outra Sua divina sabedoria.

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Contudo, todas juntas e cada uma delas em seu próprio alcance, declaram-nos as poderosas obras de Deus, e informam-nos

sobre Suas virtudes e perfeições, sobre Seu ser e Suas auto diferenciações, sobre Seu pensamento e sobre Sua palavra, e sobre Sua vontade e seu prazer.

Nessa conexão nós nunca devemos nos esquecer, é claro, que a revelação de Deus, independentemente da riqueza de seu conteúdo, nunca será idêntica ao auto conhecimento de Deus. Esse auto conhecimento ou auto cons-ciência é tão infinito quanto Seu Ser e Sua natureza, portanto, não está sujeito à apreensão de qualquer criatura. A revelação de Deus em Suas criaturas, tanto objetivamente nas obras de Sua mão quanto subjetivamente na consciência de Suas criaturas racionais, pode mostrar, sempre, apenas uma pequena parte do infinito conheci-incuto que Deus tem de Si mesmo. E não somente nós, seres humanos sobre a terra, mas também os santos e os anjos nos céus, e também o Filho de Deus em Sua natureza humana, possuem um conhecimento de Deus que é diferente em princípio e em essência do auto conhecimento de Deus. Ao mesmo tempo, o conhecimento que Deus tem distribuído em Sua revelação, e que pode ser obtido pelas criaturas racionais a partir dessa revelação, limitado e finito como é e será pelo resto da eternidade, é, contudo, um conhecimento real e completo. Deus se revela em Suas obras exatamente

como Ele é. A partir dessa Sua revelação nós podemos conhecê-lo. Portanto, não há repouso para o homem até que ele se coloque acima e além da criatura e chegue até o próprio Deus. No estudo da revelação nossa preocupação deve ser a de conhecer Deus. O propósito desse estudo não é aprender a usar alguns argumentos e a falar algumas palavras. O objetivo primário desse estudo é conduzir-nos através da criatura até o Criador, e fazer-nos encontrar descanso no coração do Pai.

Em terceiro lugar, a revelação que procede de Deus, e que tem Deus como seu conteúdo, também tem Deus como seu propósito. Essa revelação é dEle, e através dEle e também para Ele; Ele fez todas as coisas para Si mesmo (Rio 11.36; Pv 16.4), Apesar do conhecimento de Deus, que é distribuído em Sua revelação, ser essencialmente diferente de Seu auto conhecimento, ele é tão rico, tão amplo e tão profundo, que nunca pode ser totalmente absorvido pela consciência de qualquer criatura racional. Os anjos excedem o homem em conhecimento, e vêem incessantemente a face do Pai que está nos céus (Mt 18.10), mas eles desejaram perscrutar as coisas que nos foram anunciadas por aqueles que anunciaram o Evangelho (1Pe 1.12). E na medida em que as pessoas pensam a revelação de Deus elas são mais impelidas a clamar como Paulo: "Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juizos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos" (Rm 11.33)! Contudo, a revelação não pode ter o seu propósito final no homem; ela o ultrapassa e se levanta além dele.

É verdade queo homem tem um importante lugar na revelação. Ela é dirigida à raça humana para que o homem possa buscar a Deus, se, porventura, tateando, puder encontrá-lo (At 17.27); e o Evangelho deve ser pregado a todas as criaturas, para que, crendo, tenham vida eterna (Me

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16.15,16; Jo 3.16,36). Mas esse não pode seropropósito final e mais elevado da revelação. Deus não pode descansar no homem. Pelo contrário, o homem deve conhecer e servir a Deus, motivo pelo qual deve, juntamente com as outras criaturas,eà frente delas, dar a Deus a devida honra por todas as Suas obras. Em Sua revelação, quer ela passe além do homem ou ao lado do homem, Deus está preparando Seu próprio louvor, glorificando Seu próprio nome, e manifes-tando diante de Seus próprios olhos, no mundo de Suas criaturas, Suas excelências e perfeições. Pelo fato da revelação ser de Deus· através de Deus, ela tem seu fim· propósito também em Sua glo-rificação.

Toda essa revelação, que é de Deus e através dele, tem seu ponto mais elevado na pessoa de Cristo. Não é o firmamento relampejante, nem a natureza poderosa, nem qualquer príncipe ou gênio da terra, nem qualquer filósofo ou artista o ponto mais alto da revelação de Deus, mas sim o Filho do Homem. Cristo é o Verbo feito carne, que estava no começo com Deus e que era Deus, o Unigênito do Pai, a Imagem de Deus, o brilho de Sua glória e a exata expressão de Sua pessoa; quem o vê também vê o Pai (Jo 14.9). Nessa fé o Cristão permanece de pé. Ele aprendeu a conhecer Deus na pessoa de Jesus Cristo, que foi enviado pelo próprio Deus. Deus, que disse que nas trevas resplandecerá a luz, Ele mesmo resplandeceu em nosso coração, para iluminação do conhecimento da glória de Deus, na face de Cristo (2Co 4.6).

Desse ponto altamente privilegiado o Cristão olha à sua volta, para a frente, para trás e para todos os lados. E se, ao fazer isso, à luz do conhecimento de Deus, que recebe de Cristo, ele se detém na natureza e na história, no céu ou sobre a terra, então ele descobre traços do mesmo Deus que ele aprendeu a conhecer e a

cultuar em Cristo como seu Pai. O Sol da justiça proporciona uma vista maravilhosa que se estende até as extremidades da terra. Através dessa luz ele olha para trás, para as noites de tempos passados, e através dela ele penetra no futuro de todas as coisas. À sua frente e atrás de si o horizonte é claro, apesar do céu estar geralmente encoberto pelas nuvens.

O Cristão, que vê tudo à luz da Palavra de Deus, pode ser qualquer coisa, menos estreito em sua perspectiva. Ele tem amplitude de coração e mente. Ele olha por toda a terra e considera tudo como sendo seu, pois ele é de Cristo e Cristo é de Deus (1Co 3.21-23). Ele não pode desvincular sua crença da revelação de Deus em Cristo, a quem ele deve sua vida e sua salvação, pois essa crença tem um caráter especial. Essa crença não o exclui do mundo, mas coloca-o em condição de seguir a pista da revelação de Deus na natureza e na história, e coloca meios à sua disposição pelos quais ele pode reconhecer a verdade, o bem e a beleza e separá-los das relações falsas e pecaminosas dos homens.

Dessa forma, ele faz distinção entre uma revelação geral e uma revelação

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especial de Deus. Na revelação geral Deus faz uso da ocorrência usual dos fenômenos e do curso usual dos eventos; na revelação especial Ele geralmente emprega meios não usuais,

tais como aparições, profecias e milagres para fazer-se conhecido ao homem. O conteúdo da revelação geral são geralmente Seus atributos de poder, sabedoria e bondade; o conteúdo da revelação especial são especialmente a santidade e a justiça, a compaixão e a Graça. A revelação geral é dirigida a todos os homens e, por meio da graça comum, serve para restringir a proliferação do pecado; a revelação especial é dirigida a todos aqueles que vivem sob o Evangelho e possuem, pela Graça especial, o perdão dos pecados e a renovação de vida.

Apesar desses dois tipos de revelação serem essencialmente distintos, eles estão intimamente ligados um ao outro. Os dois possuem sua origem em Deus, em Sua bondade soberana e em seu favor. A revelação geral é uma dádiva do Verbo que estava com Deus no princípio, que fez todas as coisas, que brilhou como a luz nas trevas e iluminou todos os homens que vieram ao mundo (Jo 1.1-9). A revelação especial é uma dádiva do mesmo Verbo, que foi feito carne em Cristo, e que agora é cheio de Graça e de verdade (Jo 1.14). A Graça é o conteúdo de ambas as revelações, de tal forma que uma seja indispensável à outra.

É a graça comum que torna possível a Graça especial, prepara o caminho para ela, e depois lhe

dá o suporte; e a Graça especial, por sua vez, ergue a graça comum ao seu próprio nível e coloca-a a seu serviço. Ambas as revelações têm como propósito a conservação da raça humana; a primeira sustentando-a e a segunda redimindo-a; e desta forma as duas cumprem a sua finalidade, que é glorificar todas as excelências de Deus.

O conteúdo de ambas as revelações, não apenas o da especial, mas também o da geral, está contido na Sagrada Escritura. A revelação geral, apesar de estar contida na natureza, é, contudo, extraída da Sagrada Escritura, pois, sem ela, nós, seres humanos, por causa da escuridão de nosso entendimento, nunca teríamos sido capazes de encontrá-la na natureza. Sendo assim, a Escritura lança luz sobre nosso caminho através do mundo, e coloca em nossas mãos a verdadeira compreensão da natureza e da história. Ela nos faz ver Deus onde nós de outra forma não o veríamos. Iluminados por ela nós contemplamos as excelências de Deus em toda a expansão das obras de Suas mãos.

A própria criação, ensinada pela Escritura, demonstra a revelação de Deus na natureza, pois ela é em si mesma um ato de re

velação, o início e o primeiro princípio de toda a revelação posterior. Se o mundo tivesse permanecido eternamente sozinho, ou se tivesse sido eternamente desconsiderado por Deus, ele não teria sido uma revelação de Deus. Aliás, tal mundo teria sido um obstáculo a Deus e a Sua revelação de Si

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mesmo. Mas quem quer que o contemple junto com as Escrituras, desde a criação do mundo, crê que Deus se revela em todo o mundo. Toda obra dá testemunho de seu realizador a tal ponto que em um certo sentido pode ser chamada de produto de seu realizador.

Por ser o mundo, em um sentido absoluto, uma obra de Deus, e por dever, tanto sua natureza quanto seu ser, no começo e sempre depois, ao seu Criador, toda criatura manifesta algo das excelências e das perfeições de Deus. Logo que a revelação de Deus na natureza é negada ou limitada somente ao coração ou ao sentimento do homem, surge o perigo de que a criação de Deus não seja reconhecida, que a natureza seja governada por outro poder que aquele que governa o coração humano, e que desta forma, quer seja abertamente, quer seja de forma encoberta, o politeísmo seja introduzido no pensamento humano. A Escritura, ao ensinar a criação, sustenta a revelação de Deus e de de Deus e a unidade do mundo.

Além do mais, a Escritura ensina não apenas que Deus chamou o mundo à existência, mas também que esse mundo é, continuamente, momento após momento, sustentado e governado por esse mesmo Deus. Ele é infi-nitamente exaltado não apenas sobre todo o mundo, mas também mora em todas as Suas criaturas por Seu poder infinito e onipresente. Ele não está longe de quem quer que seja, pois nEle nós vivemos, e nos movemos, e existimos (At 17.27,28). A revelação que vem até nós através do mundo, toda-via, não é apenas um lembrete de Lima obra de Deus que Ele realizou há muito tempo atrás: é um testemunho também daquilo que Deus, em nossos tempos, quer e faz.

Quando levantamos nossos olhos podemos ver não apenas quem criou essas coisas e faz sair o seu exército em grande número, mas também que Ele as chama pelos seus nomes, pela grandeza de Seu poder, porque Ele é forte em poder e por isso nenhuma delas vem a faltar (ls 40.26). Os céus declaram as obras de Deus e o firmamento anuncia as obras das Suas mãos (SI 19.1). Ele se cobre de luz como de um manto e estende os céus como uma cortina. Ele põe nas águas o fundamento da Sua morada e toma as nuvens por

Seu carro e voa nas asas do vento (SI 104.2,3). As montanhas e os vales estão estabelecidos no lugar que Deus tinha para eles preparado e Ele os rega do alto de Sua morada (SI 104.8,13). Ele farta a terra com o fruto de Suas obras, faz crescera relva para os animais e as plantas para o serviço do ho-mem, de forma que da terra tire o seu pão e o vinho, que alegra o coração do homem (S1104.13-15). Cingido de poder Ele, por Sua força, consolida os montes e aplaca o rugir dos mares (S165.6,7). Ele alimenta as aves do céu e veste os lírios do campo (Mt 6.26-30). Ele faz nascer o sol sobre maus e bons e faz vir chuvas sobre justos e injustos (Mt 5.45). Ele fez o homem um pouco menor do que os anjos, e coroou-o com glória e honra, e deu-lhe domínio sobre as obras de Suas mãos (SI 8.5,6).

Além disso Ele cumpre Seu conselho e estabelece Sua obra tanto na natureza quanto na história. Ele de um só fez todas as nações para habitar a terra (At 17.26). Ele destruiu a primeira raça humana no dilúvio e ao mesmo tempo preservou-a na família de Noé (Gn 6.6-9). Na torre de Babel Ele

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confunde a linguagem dos homens e os dispersa sobre a face da terra (Gn 11.7-8). E quando o Altíssimo dividiu entre as nações a sua herança e separou os filhos de Adão, Ele determinou os tempos previamente estabelecidos e

os limites da sua habitação, de acordo com o número de filhos em Israel (Dt 32.8; At 17.26). Apesar de ter escolhido os filhos de Israel para serem os portadores de Sua revelação especial, e permitido que as nações pagãs seguissem seu próprio caminho (At 14.16), Ele não se esqueceu deles nem abandonou-os à sua própria sorte. Pelo contrário, Ele não os deixou sem um testemunho de Si mesmo, fazendo o bem, dando-lhes chuvas do céu e estações frutíferas, enchendo o coração deles de fartura e de alegria (At 14.17). O que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou (Rm 1.19), para que eles busquem a Deus, se porventura, tateando, possam encontrá-lo (At 17.27).

Por meio dessa revelaçãogeral Deus preservou os povos econduziu-os até a dispensaçao daplenitude dos tempos, fazendocom que todas as coisas conver-gissem para Cristo, tanto as do céucomo as da terra (Ef 1.10). De to-das as nações, povos, raças e lín-guas Ele reuniu Sua igreja (Rm11.25; Ef 2.14 e ss.; Ap 7.9), e pre-para o fim do mundo, no qual ossalvos de todas as nações andarãona luz da cidade de Deus, e todosos reis e povos da terra darão suaglória e honra a Ele (Ap 21.24-26).Na ciência da teologia os ho-mens têm tentado organizar todosesses testemunhos da natureza e

da história sobre a existência e o ser de Deus e classificá-los em grupos. Por isso nós às vezes falamos de seis evidências da existência de Deus.

Em primeiro lugar, o mundo, sendo sempre tão poderoso e abrangente, está, contudo, continuamente dando testemunho de que está confinado ao espaço e ao tempo, testemunhando, assim, que é temporal, acidental e de caráter dependente e que requer, portanto, um Ser eterno, essencial e independente como a causa final de todas as coisas. Esse é o argumento cosmológico.

Em segundo lugar, o mundo, em suas leis e ordenanças, em sua unidade e harmonia e na organização de todas as suas criaturas, exibe um propósito cuja explicação seria ridícula na base da casualidade, e que, portanto, aponta para um ser todo abrangente e todo poderoso que com mente infinita estabeleceu esse propósito, e po r seu pode r i n f i n i t o e onipresente age para alcancá-lo. Esse é o argumento teológico.

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Em terceiro lugar, há na consciência de todos os homens alguma noção de um ser supremo, sobre o qual não se pode conceber algo que seja mais elevado, e que é auto existente. Se tal ser não existe, a maior, mais perfeita e mais inevitável idéia seria uma ilusão, e o homem perderia sua confiança na validade de sua cons-

ciência. Esse é o argumento ontológico.O quarto argumento é um corolário do terceiro: o homem não é apenas

um ser racional, ele também é um ser moral. Ele sente em sua consciência que é limitado por uma lei que está acima de si mesmo e que requer obediência incondicional de sua parte. Tal lei pressupõe um santo e justo legislador que pode preservar e destruir. Esse é o argumento moral.

Dois outros argumentos são adicionados a esses quatro, derivados da similaridade ou correspondência de povos e da história da humanidade. É um fenômeno notável que não existam povos ou nações sem religião. Alguns eru-ditos têm argumento que não é bem assim, mas as investigações históricas têm provado mais e mais que eles estão errados. Não Irá tribos nem povos ateus. Esse fenómeno é de grande importância, pois a absoluta universalidade dessa noção de religião coloca diante de nós uma escolha entre duas opções: ou nesse ponto a humanidade está sofrendo sob uma superstição estúpida, ou esse conhecimento e serviço de Deus, que em formas distorcidas aparece entre todos os povos, está baseado na existência de Deus.

Da mesma forma a história da humanidade, quando vista à luz da Escritura, exibe um plano e um padrão que aponta para o

governo de todas as coisas sas por um ser supremo. É verdade que essa idéia encontra todo tipo de objeções e dificuldades tanto na vida de indivíduos quanto na de nações. Todavia é notável que qualquer pessoa que faça um estudo sério da história supõe que a história é algo no qual o planejamento e a ordem são evidentes e que faz de sua tarefa a descoberta e a continuidade desse planejamento e dessa ordem. A história e a filosofia da história estão baseadas na fé, na providência de Deus.Todas essas assim chamadas evidências não são suficientes para fazer com que o homem creia. A ciência e a filosofia têm muito poucas evidências capazes de fazer isso. Pode ser que nas ciências formais, como na matemática e na lógica, isso seja possível, mas no momento em que temos contato com o fenômeno real na natureza, e também na história, nossas argumentações e conclusões, via de regra, são objeto de todo tipo de desconfiança e objeções. Na religião e na ética, na lei e na estética, depende ainda mais da atitude do investigador se ele se submete ou não a essa convicção. O insensato pode, apesar de todo o testemunho contrário, dizer em seu coração que Deus não existe (SI 14.1), e o pagão, mesmo tendo conhecimento de Deus, não o glorificou e nem lhe deu graças (Rm 1.21). os argumentos da existênia de Deus acima mencionados não se dirigem ao homem como uma criatura meramente lógica e capaz de racionar, mas como um ser racional e moral. O apelo desses argumentos não se refere somente à sua mente racional canalítica, mas também ao seu coração e ao seu sentimento, sua razão e sua consciência. Eles têm seu mérito, fortalecendo a fé e estabelecendo o vínculo de ligação entre a revelação de Deus fora do homem e a Sua revelação dentro dobornem.

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Além disso, a revelação de Deus na natureza e

na história não teria efeito sobre o homem se não

houvesse algo no homem que reagisse a ela. A

beleza da natureza e da arte não poderiam dar ao

homem qualquer prazer a não ser que ele tivesse um

sentimento de beleza em seu peito. A lei moral não

encontraria resposta nele se ele não reconhecesse a

voz da consciência dentro de si. Os pensamentos

que Deus, por Sua Palavra, expressou no mundo

seriam incompreensíveis ao homem se ele não fosse

em si mesmo um ser pensante. E da mesma forma a

revelação de Deus em todas as obras das suas mãos

seriam totalmente ininteligíveis ao homem se Deus

não tivesse plantado em sua alma uma inextinguível

noção de Sua

existência e de Seu ser. O fato indisputável, todavia, é que Deus acrescentou a Si mesmo à revelação externa na natureza e à revelação interna no homem. As investigações históricas e psicológicas da religião revelam repetidamente que a religião não pode ser explicaria a não ser sobre a base de uma noção não criada pelo homem. Ao fim de seu estudo os pesquisadores sempre retornam à proposição que eles repudiavam desde o início, a de que o homem é, no fundo, uma criatura religiosa.

A Escritura não deixa qualquer dúvida sobre isso. Depois de Deus ter feito todas as coisas Ele criou o homem, e criou-o à Sua imagem e semelhança (Gn 1.26). O homem é geração de Deus (At 17.28). Embora, como o filho perdido da parábola, o homem tenha fugido de sua casa paternal, mesmo em seus mais distantes afastamentos ele acalenta uma memória de sua origem e finalidade. Em sua mais profunda queda ele ainda conserva certos resquícios da imagem de Deus segundo a qual ele foi feito. Deus se revela fora do homem; Ele se revela também dentro do homem. Ele não deixa o coração e a consciência humana sem testemunho de si mesmo.

Essa revelação de Deus não deve ser considerada como uma segunda revelação, suplementando a primeira. Ela não é uma fonte de conhecimento indepen-dente da primeira. Ela é uma ca-pacidade, uma sensibilidade, uma direção para encontrar Deus em Suas obras e entender Sua revela-ção. É uma consciência do divino em nós que nos torna capazes de ver o divino fora de nós mesmos, assim como o olho nos torna ca-pazes de detectar luz e cor, e o ouvido nos habilita a perceber os sons. Trata-se, como disse Calvin, de um senso de divindade, ou, como Paulo o descreveu, de uma habilidade para ver as coisas invi-síveis de Deus, isto é, Seu eterno poder e domínio, nas coisas visí-veis da criação.

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Quando nós tentamos anali-sar esse senso de divindade não criado pelo homem, descobrimos que ele consiste de dois elementos. Em primeiro lugar, o senso de de-pendência absoluta é característi-co dele. Por baixo de nossa mente e vontade, por baixo de nosso pen-samento e ação, há em nós uma auto consciência que é interde-pendente com nossa própria exis-tência e parece coincidir com ela. Antes de pensarmos, antes de de-sejarmos, nós somos, nós existi-mos. Nós existimos de uma forma definida, e em unidade indissolúvel com essa existência nós temos uma noção de existência e uma noção de existirmos como somos. E o núcleo dessa identificação de auto profundo de nosso ser nós somos, sem auxílio da razão e anterior à razão, conscientes de nós mesmos como seres criados, limitados e de- pendentes. Nós somos dependen-tes de tudo ao nosso redor, de tudo no mundo espiritual e mate-rial. O homem é um dependente do universo. Além disso ele é de-pendente, junto com outras coisas criadas, e de uma forma absoluta, de Deus, que é o único ser eterno e verdadeiro.

Mas esse senso de divinda-de tem mais um elemento consti-tuinte. Se o ser cujo poder causou esse sentimento permanecer total-mente indefinido, então esse seria um sentimento que conduziria o homem a uma revolta impotente ou a uma resignação estóica, pas-siva. Mas esse senso de divinda-de tem em si um senso da nature-za daquele ser de quem o homem se sente dependente. É um senso do mais elevado e absoluto poder, mas não de uma força cega, irra-cional, imperturbável e impassiva, equivalente ao destino ou à necessidade. Mais do que isso, é um senso de uma força suprema, que é também perfeitamente justa, sábia e boa. É um senso de um poder eterno, mas também de domínio, ou seja, absoluta perfei-ção de Deus. Portanto, esse senti-mento de dependência não impli-ca em desânimo e a Deus. Em outras palavras, a dependência da qual o homem é consciente é um tipo muito espe-cial de consciência do ser divino. Ela contém em si o elemento de liberdade. Essa não é a dependên eis de um escravo, mas de um filho, embora seja de um filho perdido. Esse senso de divindade, portanto, como disse Calvino, é a semente da religião.

Capítulo 4

O VALOR DA REVELAÇÃO

GERAL

A o determinarmos o valor d a r e v e l a ç ã o g e r a l c o r r e - m o s o r i s c o t a n t o d e

superestimá-la quanto de

subestimá-la. Quando nós nos

concentramos detidamente sobre

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as riquezas da Graça com a qual

Deus nos deu Sua revelação espe-

cial, nós costumamos ficar tão en-

cantados com ela que a revelação

geral acaba perdendo seu signifi-

cado e mérito para nós. Por outro

lado, quando refletimos sobre a

bondade, a verdade e a beleza que

há na revelação geral de Deus na

natureza e na história da humani-

dade, pode acontecer que a Gra-

ça especial, manifesta a nós na

pessoa e obra de Cristo, perca sua

glória e apelo aos olhos da alma.

Esse perigo de extraviar-se

para a esquerda ou para a direita

sempre existiu na igreja Cristã, e

vez por outra a revelação geral e

a revelação especial são ignoradas

ou negadas. Cada uma por sua vez tem sido negada na teoria e não menos fortemente na prática. No presente a tentação de se fa-zer injustiça à revelação geral não é tão forte quanto foi no passado. Muito mais forte, contudo, é a ten-tação, que se aproxima por todos os lados, de reduzir a revelação especial aos mais estreitos limi-tes, por exemplo, à pessoa de Cristo, ou pior ainda, negar tudo e fazer da pessoa de Cristo uma parte da revelação geral.

Nós temos que estar atentos a essas duas

tendências; e nós se-remos mais prudentes se, à luz

da Sagrada Escritura, considerarmos a história da

humanidade e dei-xarmos que ela nos ensine o que

os povos devem à revelação ge-ral. Isso deixará

claro para nós que, possuindo a luz dessa reve-

lação, os homens têm

hora seu conhecimento e habilidade em outras áreas encontre limites intransponíveis.Quando o primeiro homem e a primeira mulher transgrediram a ordem de Deus no

paraíso sua punição não foi imediata e nem foi aplicada com total intensidade. Eles não

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morreram no mesmo instante em que pecaram, mas permaneceram vivos; eles não foram enviados para o inferno, mas receberam uma missão para cumprir na terra; sua linha-gem não pereceu: eles receberam a promessa da semente da mulher. Em resumo, podemos dizer que com o primeiro pecado houve o surgimento de uma condição que Deus fixou, mas que o homem não era capaz de prever. Essa condição possui um caráter muito especial. É nela que cólera e Graça, punição e bênção, julgamento e longanimidade estão mesclados uns com os outros. Essa é a condição que ainda existe na natureza e entre os homens e que abrange os mais bem delineados contrastes.

Nós vivemos em um mundo estranho, um mundo que nos apresenta tremendos contrastes. O alto e o baixo, o grande e o pequeno, o sublime e o ridículo, o bonito e o feio, o trágico e o cômico, o bem e o mal, a verdade e a mentira; tudo isso é encontrado em um inter-relacionamento insondável. A seriedade e a vaida

de da vida se agarram a nós. Em um momento nós estamos inclinados ao otimismo, e no momento seguinte ao pessimismo. O homem que chora está constantemente dando motivos ao homem que ri. O mundo todo conserva o bom humor, que poderia ser me-lhor descrito como um sorriso entre lágrimas.

A causa mais profunda des-se presente estado do mundo éessa: por causa do pecado do ho-mem Deus está constantementemanifestando Sua ira e, ao mes-mo tempo, movido pelo Seu pró-prio prazer, revelando tambémSua Graça. Nós somos consumi-dos pela Sua ira e saciados com aSua benignidade (SI 90. 7,14). Nãopassa de um momento a Sua ira;o Seu favor dura a vida inteira. Aoanoitecer, pode vir o choro, mas aalegria vem pela manhã (SI 30.5).A maldição e a bênção são tão sin-gularmente interdependentesque às vezes uma parece transfor-mar-se em outra. Trabalhar nosuor do rosto é maldição e tam-bém é bênção. Tanto a maldiçãoquanto a bênção apontam para acruz, que é ao mesmo tempo omais alto julgamento e a Graçamais rica. Isso acontece porque acruz é o centro da história e a re-conciliação de todas as antíteses.Essa condição teve inícioimediatamente depois da quedae, durante o primeiro período,isto é, até a chamada de Abraão,

ela teve uma característica muito especial. Os onze primeiros capí-tulos de

Page 34: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

Gênesis são extremamen-te importantes: Eles constituem o ponto de partida e a fundação de toda a história do mundo.

Devemos atentar imediata-mente para o fato de

que a reve-lação geral e a revelação especial, apesar

de distintas, não ficam iso-ladas uma ao lado da

outra, mas estão em constante inter-relacio-

namento, e que ambas são direcionadas às mesmas

pessoas, isto é, à raça humana. A revelação especial

não foi dada a um peque-no grupo de pessoas nem

restrita a um determinado povo, mas dis-tribuída a

todos os seres huma-nos. A criação do mundo, a for-

mação do homem, a história do paraíso e da queda,

a punição pelo pecado e o primeiro anún-cio da

Graça de Deus (Gn 3.15), tanto quanto o culto

público (Gn 4.26), o início da cultura (Gn 4.17), o

dilúvio, a construção da torre de Babel – tudo isso são

tesouros que a raça humana tem carrega-do ao

longo de sua história como parte de seu equipamento

em sua iornada pelo mundo. Portanto, não é de

estranhar que relatos des-ses eventos, mesmo que

seja em tormas distorcidas, tenham

começo comum, e está edificada sobre uma ampla base comum.

Todavia, apesar dessa uni-dade e desse passado

em comum, uma divisão logo se desenvolveu entre

os homens. A causa dessa divisão foi a religião, o

relaciona-mento entre o homem e Deus. O culto ao

Senhor ainda era muito simples. Não havia

possibilidade de realizar-se um culto público como

nós o conhecemos porque a raça humana consistia

apenas de umas poucas famílias. Contudo o culto a

Page 35: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

Deus existia desde o co-meço sob a forma de

sacrifícios e orações, apresentação de ofertas e a

consagração a Deus do melhor que havia (Gn 4.3,4).

A Escritura não nos fala como esses sacrifíci-os eram

oferecidos, e a interpre-tação dos eruditos sobre a

origem dos sacrifícios é muito diver-sificada em

nossos dias. Mas fica claro que aqueles primeiros

sacri-fícios tiveram origem no senso de dependência

de Deus e de grati-dão a Ele, e que eles eram de ca-

ráter simbólico. Seu objetivo era expressar a

consagração humana e sua entrega a Deus. A

questão não era propriamente a oferta, mas a

disposição do ofertante ex-pressa na oferta. Tanto

quanto à disposição quanto à oferta, Abel trouxe um

sacrifício melhor do que o de Caim (Hb 11.4), e foi

re-compensado com o favor do Se-nhor. Mas desde

o

uma divisão entre o justo e o ímpio, entre o mártir e o carrasco, entre a igreja e o mundo. E, apesar de Caim ter cometido o assassinato, Deus ter tomado conta dele, procurando-o e admoestando-o à conversão e sendo-lhe mais favorável em vez de condená-lo (Gn 4.9-16), a ferida ainda não estava cicatrizada. A divisão se expandiu e culminou com a separação entre os descendentes de Caim e os descendentes de Sete.

No clã dos filhos de Caim a incredulidade e a apostasia aumentavam aos saltos e de geração em geração. É verdade que eles não chegaram ao ponto da idolatria e do culto a imagens; a Escritura não menciona a existência dessas perversões entre os homens antes do dilúvio. Essas formas de falsa religião não são originais, mas o produto de um desenvolvimento posterior, e são uma evidência do senso religioso que os descendentes de Caim abrigavam em seu coração. Os descendentes de Caíra não se entregaram à superstição, mas também não creram. Eles chegaram ao ponto de negar a existência e a revelação de Deus não na teoria, mas na prática. Eles viveram como se Deus não existisse; eles comi-am e bebiam, casavam-se e davam-se em

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casamento, até que

veio o dilúvio e os levou a todos. Assim será a vinda do Filho do Homem (Mt 24.37-39). Alegrando-se em sua longa vida que às vezes durava centenas de anos (Gn 5.3 ss.), possuindo ricas posses e uma força física titânica e ostentando o poder de sua espada (Gn 4.23,24), eles pensavam que a força de seu próprio braço poderia salvá-los.

Nas gerações de Sete, o conhecimento de Deus e o culto a Deus foram preservados de forma pura, por longo tempo. De fato, nós lemos que nos dias de seu filho Enos os homens começaram a invocar o nome do Senhor (Gn 4.26). Isso não significa que o homem começou a cultuar a Deus com sacrifícios e orações nessa época, pois isso era já feito antes. Nós lemos sobre sacrifícios em conexão com Caim e Abel, e apesar de nada ser dito sobre orações, não há dúvida de que elas faziam parte do culto a Deus desde o início, pois sem a oração nenhum culto a Deus é concebível. Além disso, o oferecimento do sacrifício é em si mesmo uma oração materializada, e ele sempre e em todos os lugares foi acompanhado pela oração. A expressão usada em Gênesis 4.26 não significa que o homem começou a chamar Deus de Senhor, pois independente da questão de se o nome de Deus já era conhecido, a natureza de Deus expressa nesse nome só

foi revelada pelo Senhor muito depois, a Moisés (Ex 3.14). O sig-nificado mais provável dessa in-vocação ao nome do Senhor é que nessa época os filhos de Sete se separaram dos filhos de Caim, formando um grupo, organizan-do reuniões públicas para a con-fissão do nome do Senhor, nas quais eles, publicamente e uni-dos, em distinção aos descenden-tes de Caim, davam testemunho de sua lealdade no culto ao Se-nhor. Suas orações e ofertas não foram feitas apenas individual-mente por muito tempo. Elas se tornaram a expressão de um tes-temunho unificado. Na mesma proporção em que os filhos de Caim se entregaram ao culto do mundo e procuraram nele a sua salvação, os filhos de Sete se en-tregaram a Deus e invocaram o Seu nome em oração e gratidão, em pregação e confissão, no meio de uma geração perversa.

Através dessa pregação pú-blica uma chamada ao arrependi-mento era continuamente estendi-da aos filhos de Caim. Todavia os descendentes de Sete começaram a se misturar com o mundo, o que provocou uma decadência religi-osa e moral entre eles. O neto de Enos foi chamado Maalaleel, que significa "o prazer de Deus" (Gn 5.13). Enoque andou com Deus (Gn 5.22).

ria conforto do trabalho penoso de suas mãos, por causa da terra que o Senhor tinha amaldiçoado (Gn 5.29). E finalmente Noé se tornou um pregador da justiça (1Pe 2.5) e pregou aos seus contemporâne-os o Evangelho da justiça através do Espírito de Cristo (1Pe 3.19,20).Mas santos como esses, eram cada vez mais raros. Os des-cendentes de Sete e os descenden-tes de Caim se misturaram atra-vés do casamento e geraram filhos que superaram as gerações ante-riores em destreza física (Gn 6.4). A corrupção da espécie

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humana era implacável, a imaginação do coração dos homens era má des-de a sua mocidade, e a terra en-cheu-se da violência deles (Gn 6.5,12,13; 8.21). Apesar de Deus em Sua longanimidade ter conce-dido o adiamento de cento e vin-te anos (Gn 6.3; lPe 3.20) e apesar da pregação de Noé ter apontado para uma via de escape, a antiga raça humana afastou-se da finali-dade para a qual tinha sido cria-da e pereceu nas águas do dilú-vio.

Depois desse terrível julga-mento, no qual Noé e sua família foram poupados, teve início uma época muito diferente daquela que tinha existido antes

história da humanidade e terá seu paralelo somente na conflagração mundial dos últimos dias (Gn 8.21ss.). Esse dilúvio é como um batismo que condena o mundo e resgata os crentes (1Pe 3.19,20).

A nova dispensação foi introduzida pela conclusão de um pacto. Quando, depois do dilúvio, Noé constrói um altar e oferece sacrifícios a Deus sobre ele, expressando dessa forma a gratidão e o louvor de seu coração, então o Senhor diz a Si mesmo que nunca tomará a enviar um juizo como esse sobre a terra e que introduzirá uma ordem fixa para o curso da natureza. A consideração para essa ocasião é que o desíg-nio íntimo do homem é mau desde a sua mocidade (Gn 8.21). Essas palavras são muito parecidas e ao mesmo tempo muito diferentes daquelas de Gênesis 6.5 onde nós lemos que era continuamente mau todo o desígnio do coração do homem. As palavras usadas em Gênesis 6.5 referem-se àcondenação da terra, e as usadasem Gênesis 8.21 referem-se à suapreservação. No primeiro caso a

ênfase cai sobre os atos maus nos quais a corrupção do coração da antiga raça humana encontrava expressão; no segundo caso a ênfase está sobre a natureza má, que continua no homem, mesmo depois do dilúvio.

Parece, portanto, que o Senhor nessas últimas palavras de

seja dizer que Ele sabe o que esperar de Suas criaturas se Ele as abandonar aos seus próprios defeitos. O coração do homem, que sempre permanece o mesmo, explode em todos os tipos de horríveis pecados, constantemente provocando a ira de Deus e dando-lhe motivo para destruir o mundo outra vez. E isso Ele não quer fazer. Portanto, Ele agora estabelece leis fixas para o homem e para a natureza, prescreve um curso estável para os dois, através dos quais Ele pode limitá-los e cercá-los. Tudo isso acontece no pacto que Deus estabelece com Sua criação depois do dilúvio, e que é por isso chamado de pacto da natureza.

É verdade que, em um sentido amplo, esse pacto nasceu da Graça de

Deus. Ao mesmo tempo ele difere em princípio daquele que é

geralmente chamado de pacto da Graça e é firmado com a Igreja de

Cristo, pois esse pacto da natureza repousa sobre a consideração de

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que o coração do homem é mau e permanece mau desde a sua

mocidade, em diante. Ele tem como seu conteúdo a restauração da

bênção, dada na criação, de multiplicar-se e dominar os animais (Gn

9.1-3,7), e um mandamento contra o assassinato (Gn 9.5,6). Esse pacto

foi firmado com Noé, o ancestral da segunda raça humana, e também

com toda a criação, animada e maniorada (Gn 9.9 ss.). Esse pacto é

selado com uma manifestação natural, o arco-íris (Gn 9.12 ss.) e seu propósito

é evitar um segun-do julgamento como o dilúvio, e garantir a continuidade da

exis-tência da raça humana e do mun-do (Gn 8.21,22; 9.14-16).

Dessa forma a existência do homem e do mundo passa a des-cansar sobre uma

base firme.

Essa base nada mais é que o ato da criação e a lei da criação; esse é mais um

ato do favor e da longanimidade de Deus. Não é pela razão de suas ordenanças

da criação que Deus é obrigado a conceder ao homem sua vida e existência,

mas pelo pacto no qual Ele se obriga a manter a Sua cria-ção a despeito de sua

queda e re-belião. Pelos termos desse pacto Deus se obriga a sustentar o mun-

do e sua vida. Nesse pacto Ele deu Seu nome e Sua honra, Sua verdade e Sua

credibilidade, Sua palavra e Sua promessa às Suas criaturas como penhor da

conti-nuação de sua existência. Os man-damentos que governam o ho-mem e o

mundo são, todavia, fir-memente estabelecidos no pacto de Graça feito com

toda a nature-za,.

Esse pacto da natureza chama à existência uma ordem com-pletamente

diferente de assuntos que não existiam antes do dilú-vio. As tremendas

forças naturais que antigamente operavam e que estiveram em ação

durante o pró-prio dilúvio foram refreadas. Os terríveis monstros que havia

en-tre as demais criaturas antes do dilúvio agora estão mortos. As

tremendas catástrofes que antiga-mente faziam tremer todo o cos-mos

deram lugar a um curso re-gular de eventos. A duração da vida humana foi

encurtada, a for-ça do homem foi reduzida, sua natureza foi suavizada, ele

foi habilitado a cumprir as exigênci-as de uma sociedade e colocado sob

disciplina e governo. Por esse pacto limites e restrições foram impostos ao

homem e à natureza. Leis e ordenanças apareceram em todos os lugares.

Page 39: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

Foram criados barragens e diques para segurar o fluxo de iniqüidades.

Ordem, medida e número passaram a ser características da criação. Deus

refreou o animal selvagem no ho-mem e deu-lhe a oportunidade de

desenvolver suas habilidades e energias na arte e na ciência, no estado e

na sociedade, no traba-lho e na vocação. Dessa forma Deus forneceu as

condições neces-sárias para viabilizar a história.

Mais uma vez, contudo, essa história é interrompida pela intervenção da mão de Deus na confusão de línguas em Babel. Depois do dilúvio a raça humana viveu primeiramente na região de Ararate, nas montanhas da Armênia, e ali Noé tornou-se lavrador (Gn 9.20). Como as pessoas aumentaram em número, uma parte delas se espalhou pelas margens dos rios Tigre e Eufrates, a leste do Ararate, e assim chegou às planícies de Sinear ou Mesopotâmia (Gn 11.2). Ali eles criaram colônias e muito cedo, como cresceram em riqueza e poder, fizeram planos de construir uma grande torre para fazer célebre o seu nome e evitar a dispersão do grupo. Em desobediência à ordem de Deus de multiplicar e dominar toda a terra, eles tentaram criar um grande centro para manter a unidade e reunir toda a humanidade em um reino mundial que encontraria sua sustentação na força e na glorificação do propósito e do esforço humano. Pela primeira vez na história surge a idéia de concentração e organização de toda a humanidade com toda a sua força e sabedoria, com toda a sua arte, ciência e cultura, contra Deus e Seu reino. Essa idéia foi ventilada várias vezes depois dos eventos de Babel, e sua realização tem sido o objetivo de todos os tipos de grandes homens no curso da história.

Isso tornou necessária a intervenção de Deus, fazendo com que todo o esforço para o estabelecimento de um império mundial fosse infrutífero. Deus fez isso pela confusão das línguas, pois nessa época havia apenas uma linguagem. Nós não somos informados sobre como e em que período de tempo essa confusão aconteceu. O que aconteceu foi que pessoas fisiológica e psicologicamente diferentes umas das outras começaram a ver e a dar nome às coisas diferentemente, e em conseqüência eles foram divididos em nações e povos, e se dispersaram em todas as direções sobre toda a terra. Devemos nos lembrar que essa confusão de línguas foi preparada pela separação em tribos e famílias dos descendentes dos filhos de Noé (Gn 10.1 ss.) e pela migração desses descendentes da Armênia para a terra de Sinear (Gn 11.2). Toda a idéia de uma torre de Babel não teria surgido se a ameaça de dispersão não tivesse se apresentado de forma séria por longo tempo.

Dessa forma, a Escritura explica o surgimento de nações e povos, e de línguas e dialetos. De fato, a surpreendente divisão da raça humana é um fato singular e inexplicável. Pessoas que tiveram os mesmos antepassados, o mesmo espírito e a mesma alma, com-partilham a mesma carne e o mesmo sangue, começaram a se tra-tar como estranhos. Eles não en-tendiam uns aos outros e não po-diam comunicar-se uns com os outros. Além disso, a espécie hu-mana é dividida em raças que dis-putam sua existência umas com as outras, estão determinadas a se destruírem umas às outras e vi-vem, entra século e sai século, em fria ou declarada guerra. Instinto racial, senso de nacionalidade, inimizade e ódio, essas são as for-ças da divisão entre os povos. Essa é uma surpreendente punição e um juizo terrível, e não pode ser desfeita por qualquer cosmopo-litismo ou liga de paz, nem por uma língua universal,

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nem por qualquer estado mundial ou cul-tura internacional.

Se algum dia houver nova-mente unidade entre os seres hu-manos, ela não será devida a qual-quer reunião externa e mecânica em torno de uma torre de Babel, mas uma reunião sob um mesmo Cabeça (Ef 1.10), pela criação pa-cífica de todas as pessoas em um novo homem (Ef 2.15), pela rege-neração e renovação através do Espírito Santo (At 2.6), e pelo an-dar de todas as pessoas sob a mesma luz (Ap 21.24).

A unidade da raça humana que só pode ser restaurada por uma operação interna, começan-do de dentro para fora, é, portan-to, uma unidade que na operação interna daquela primeira divisão de línguas era basicamente atrapalhada. A unidade espúria esta-va tão radicalmente organizada que pouco poderia ser feito pela verdadeira unidade. O estado mundial foi destruído quando o reino de Deus foi introduzido na terra. Portanto, desse tempo em diante as nações foram separadas e dispersas pela face da terra. E de todas essas nações Israel foi escolhida para ser a portadora da revelação de Deus. A revelação geral e a especial, inter-relaciona-das até agora, são momentanea-mente separadas para se encontra-rem novamente aos pés da cruz. Israel é separado para andar nos caminhos e mandamentos de Deus, e o Senhor deixa as outras nações seguirem seus próprios caminhos (At 14.16).

É claro que nós não pode-mos interpretar isso de tal forma que pareça Deus

não se importar com todas essas nações e que as tenha abandonado à sua

própria sorte. Tal pensamento é em si mesmo irracional, pois Deus é o Criador,

o Mantenedor e Gover-nador de todas as coisas, e nada existe ou acontece sem

Seu poder infinito e onipresente.

Além disso, a Escritura fala repetidamente de algo completa-mente oposto à negligência de Deus aos outros povos. Quando o Altíssimo distribuía as heranças às nações, quando separava os filhos dos homens uns dos outros, fixou os limites dos povos, segundo o número dos filhos de Israel (Dt 32.8). Na repartição da terra, Deus deu a Israel um território que correspondia ao número de israelitas; mas Ele também deu às outras nações a sua herança e fixou suas fronteiras. Ele de um só fez toda a raça humana para habitar sobre toda a face da terra, pois Ele não a criou para ser um caos, mas para ser habitada (Is 45.18). Conseqüentemente Ele também traçou os tempos que tinham sido previamente fixados para a duração dos vários povos e das fronteiras por eles habitadas. A duração da vida e o lugar da morada das nações foram determinadas pelo Seu conselho e fixadas pela Sua providência (At 17.26).

Embora nos tempos passados Ele tenha permitido que todos os povos andassem em seus próprios caminhos, Ele não os deixou sem testemunho de Si mesmo, fazendo o bem, dando do céu chuvas e estações frutíferas, enchendo o coração deles de fartura e de alegria (At 14.16,17). Ele faz nascer o sol sobre maus e bons, e vir chuvas sobre justos e injustos (Mt 5.45). Através dessa revelação na natureza e na história Ele fez ouvir Sua

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voz no coração e na consciência de todos (SI 19.1). A todos os homens Deus manifestou Seus atributos invisí

veis por meio das coisas que foram criadas, isto é, Seu poder eterno e Sua divindade (Rm 1.19,20). Embora as nações pagãs não tenham recebido a lei como Israel a recebeu, e em um sentido concreto eles não possuam lei, eles demonstram por aquilo que fazem que são dirigidos pela lei de sua natureza moral, servindo de lei para si mesmos, e tendo a lei gravada em seu coração. E isso é confirmado pelo testemunho de sua própria consciência e de seus pensamentos, acusando-se ou defendendo-se (Rm 2.14,15).

Portanto, o senso religioso e moral dos gentios prova que Deus continuou a se importar com eles. Pelo Verbo que estava no começo com Deus e que era Deus, todas as coisas foram feitas, e a vida e a luz dos homens estava no Verbo; o ser, a consciência e o entendimento dos gentios são devidos a esse Verbo, não somente em seu ponto de origem, mas também pelo sustento que recebem do Verbo de Deus, pois Ele é não apenas o Criador de todas as coisas, mas também o Mantenedor e o Governador de tudo o que há no mundo. Assim como Ele deu aos homens a vida, através da consciência, razão e entendimento Ele iluminou todas as pessoas do mundo (Jo 1.3-10).

A história sela o testemunho da Escritura. No clã dos descen-dentes de Cann todos os tipos de invenções e iniciativas vieram a florescer logo depois da queda (Gn 4.17 ss.), e o povo que se diri-giu para as planícies de Sinear logo depois do dilúvio alcançou rapidamente um elevado nível cultural. De acordo com Gênesis 10.8, Ninrode, um filho de Cuxe, filho de Cam, foi o fundador do reino de Babel. A Escritura fala dele como de um caçador pode-roso diante do Senhor, pois com sua força física incomum ele des-truía as feras predatórias, fez da planície de Sinear um local segu-ro para habitação e levou o povo a estabelecer nessa região a sua habitação. Dessa forma ele cons-truiu várias cidades: Babel, Ereque, Acade e Calné, todas na planície de Sinear. E dali ele pe-netrou na terra da Assíria e fun-dou as c idades de Nín ive , Reobote-Ir, Cala e Resém.

De acordo com as Escrituras, portanto, os mais antigos habitan-tes de Sinear não foram os Semitas, mas os Camitas, e a recente ciên-cia da Assiriologia, que se ocupa com os escritos cuneiformes en-contrados na Assíria, confirma essa informação, visto que ensina que Sinear foi ocupada original-mente por uma tribo de Sumérios que não pode ser considerada como uma parte dos Semitas. O que aconteceu foi que essa antiga população de Sinear foi posteri-ormente invadida por uma migra-ção de Semitas. Esses então con-servaram sua própria linguagem, mas assimilaram a cultura dos Sumérios e se misturaram com eles, formando o povo Caldeu. Especificamente o elemento Semita era dominante quando Hamurabi, o rei de Babel, talvez o mesmo Anrafel de Gênesis 14.1, elevou Babel ao status de capital e subjugou toda a planície de Sinear. O capítulo 10 de Gênesis expressa o mesmo pensamento, pois, embora no versículo 11 nós leiamos que Ninrode, o Camita, tenha ido para a terra da Assíria e fundado cidades ali, o versículo 22 nos fala que Assur, isto é, o povo que vivia na Assíria, está relacionado com Arfaxade, Lude e Arã, ou seja, estava entre os po-vos de Sem.

A qualidade da civilização que nós encontramos na terra de

Sinear, tanto em sua ciência e arte, quanto em sua moralidade

e ju-risprudência, em seu comércio e em sua indústria, é tão

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desenvol-vida e avançada que a maioria dos objetos que

encontramos nas es-cavações nos enche de espanto. Nós

não sabemos exatamente como e quando essa civilização

floresceu, mas a idéia geral de que quanto mais antigos, mais

gros-seiros e bárbaros são os povos que encontramos é

totalmente desa-creditada por ela. Na medida emque nos

divertimos com todos os tipos de noções fantásticas sobre os estados

selvagens dos assim chamados povos primitivos e, guiados pela

história, tentamos penetrar através do passado. Confirmamos assim o

relato da Escritura de que o mais antigo período da civilização depois

de Noé, sob a liderança de homens como Nimode, alcançou um

elevado nível cultural.

Além disso, essa civilização não permaneceu confinada à terra de Sinear. Como a espécie humana se espalhou mais e mais depois da confusão das línguas, os povos se instalaram por todas as partes da terra. Dessa forma al-gumas tribos foram se afastando cada vez mais do centro de cultura e civilização, fixando suas residências em terras selvagens e hostis da Europa, Ásia e África. Não é de se admirar que essas tribos e povos, vivendo isoladamente, te-nham cortado todo o comércio com outras nações e, lutando sempre contra uma natureza selvagem e indisciplinada, tenham estagnado seu desenvolvimento cultural ou, em alguns casos, tenham até regredido. Nos estudos históricos nós nos referimos a esses povos como "povos primitivos", mas tal designação é enganosa e incerta, pois entre todos esses povos nós encontramos as características e propriedades que são os elementos básicos da civilização. Todos

eles são seres humanos distintos dos não humanos; todos eles pos-

suem consciência e vontade, razão e entendimento, família e comu-

nidade, ferramentas e ornamentos.

Outro ponto que deve ser considerado é que

não existem muitas diferenças entre essas nações

que nos permitam distingui-tas como civilizadas e

não civilizadas. Há uma diferença marcante entre a

cultura dos aborígenes sul afr icanos, a

população da Polinésia e as raças negróides. In-

dependente disso, todavia, eles possuem um fundo

comum de idéias, tradições – relacionadas ao

dilúvio, por exemplo – memórias e esperanças. Isso

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aponta para uma origem comum.

Isso acontece também com os assim chamados "povos civilizados", como os hindus, os chineses, os fenícios e os egípcios. As fundações do pano de fundo mundial, o Weltanschauung, que nós encontramos entre todos esses povos, são os mesmos que chamaram nossa atenção nas escavações de Sinear. Essa é a origem da cultura, o berço da raça humana. Foi a partir da Ásia central que a espécie humana se espalhou; e foi a partir desse centro cultural que ela adquiriu os elementos culturais que são comuns aos povos civilizados, e que cada um deles independentemente e de sua própria forma procurou

desenvolver. A antiga cultura da Babilônia, com sua escrita, sua astronomia, sua matemática, seu calendário, e coisas semelhantes, é a base sobre a qual nossa cultura foi construída.

Contudo, quando nós revisamos toda a história da civilização de um ponto de vista religio-so-moral, nós observamos um profundo senso de insatisfação e desilusão. O apóstolo Paulo disse que os gentios, conhecendo Deus através de Sua revelação geral, não o glorificaram como Deus e nem lhe deram graças, antes tornaram-se nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-lhes o coração insensato. Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos e mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e répteis (Rm 1.21- 23). Uma investigação histórica imparcial das religiões de vários povos nos conduz à mesma conclusão. É possível que alguém, com a ajuda de uma falsa filosofia, estude as várias formas de religião e encontre a essência nebulosa da religião nos sentimentos do homem, e assim obscureça a seriedade da conclusão do apóstolo Paulo. Mas o fato permanece o mesmo: a espécie humana, ao

longo da história da civilização, não tem glorificado a Deus, nem tem sido grata a Ele.

Até mesmo entre os mais antigos habitantes das planícies de Sinear nós encontramos o culto à criatura e não ao Criador. De acordo com alguns estudiosos, a idé ia da base da re l ig ião babilônica, assim como a base de outras religiões, é a idéia da singularidade de Deus, e não há dúvida de que tal concepção da divindade deve ter existido antes mesmo da divindade ser aplicada às criaturas. A religião da Babilônia consistia na glorificação de todos os tipos de

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criaturas. Elas eram consideradas como deuses. Como ocorreu essa transição da glorificação do único e verdadeiro Deus para a glorifica-ção de criaturas, nós não sabemos devido à falta de dados históricos.

Contudo, sabemos que é improvável e arbitrário dizer que a religião se desenvolveu a partir do polidemonismo (a glorificação de todos os tipos de almas e espíritos: fetichismo, animismo e totemismo) para a forma de politeísmo (a glorificação de todos os tipos de coisas boas) até chegar ao monoteísmo (a glorificação de um único Deus). Em lugar nenhum nós vemos que tal desenvolvimento tenha acontecido. Israel é a única exceção. O que a história nos ensina é que o homem caiu da glorificação de umúnico Deus para a glorificação de vários deuses: nós testemunhamos isso na história de Israel, na história de muitas igrejas cristãs e também na época em que vivemos. Quando a crença em um só Deus é abandonada, todos as espécies de idéias politeístas e práticas supersticiosas logo aparecem.

Além disso, não há meios de se fazer diferença entre a "alta" e a "baixa" religião, entre a religião dos assim chamados povos civilizados e não civilizados, como geralmente se alega. As mesmas idéias e práticas, apenas com a forma modificada, são observadas entre todos os povos pagãos; e essas idéias e práticas existem também nas chamadas nações cristãs. Com a decadência do Cristianismo nos círculos modernos essas mesmas idéias e práticas são agora revividas.

Quais são essas idéias e práticas? Antes de mais nada, há a idolatria e o culto a imagens. Isso existe entre todos os povos. A ido-latria é a colocação de qualquer coisa no lugar que pertence somente ao único e verdadeiro Deus, ou ao lado dEle, e a colocação da confiança nessa coisa. Às vezes os ídolos são criaturas, o firmamento, por exemplo, como o sol, a lua e as estrelas, como na religião babilônica, que é, portanto, apropriadamente chamada de religião astral; às vezes os ídolossão heróis, gênios ou grandes homens, considerados como um tipo de seres intermediários, os mediadores entre os deuses e os homens, como acontece, por exemplo, no culto dos gregos; às vezes eles são ancestrais que, depois de sua morte, passaram para um diferente e mais elevado estado de existência, como na religião chinesa, que glorifica seus patriarcas; algumas vezes esses idólatras substituem Deus por um ou outro animal, como um crocodilo, por exemplo, adorado no Egito; ou–para especificar mais um tipo de idolatria – algumas vezes almas e espíritos são considerados como inquilinos de algumas criaturas animadas ou inanimadas, constituindo, assim, um objeto de culto nas religiões de povos civilizados e não civilizados.

Independente da forma de idolatria considerada, ela sempre

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representa uma adoração à criatura e não ao Criador. A distinção entre Deus e o mundo é perdida. A santidade de Deus, que é Sua distinção, e Sua absoluta transcendência de toda criatura – foi isso que os gentios esqueceram.

Em segundo lugar, todos os tipos de falsas idéias sobre o homem e o mundo acompanham a idolatria. Entre os gentios, a religião não é algo independente, que se mantém por si mesma, mas está intimamente relacionada com toda a vida do adorador, com o

estado e a sociedade, com a arte e a ciência. Em lugar nenhum nós encontramos uma religião que consista meramente de atitudes e estados de espírito. A religião, que é o relacionamento do homem com Deus, governa todas as outras relações, e portanto implica em uma visão definitiva do homem e do mundo, e da origem, essência e propósito das coisas. As idéias religiosas que acompanham a crença nos deuses sempre possui um sentido no passado e no futuro. Há reminiscências do paraíso e expectativas futuras em todas as religiões, e há idéias sobre a origem e o futuro do homem e do mundo. Há noções de uma era dourada que existiu no começo, seguida por épocas de prata, ferro, barro e há noções da imortalidade do homem, da vida depois da morte, e do julgamento que no fim ocorrerá para todos, e de uma diferença de status entre o justo e o injusto, quando isso acontecer. Em muitas religiões essas várias idéias recebem ênfa-ses diferentes. A religião chinesa olha para o passado e cultua seus ancestrais; a religião egípcia olhava para o futuro, preocupada com a morte, e era de fato uma religião da morte. Mas em todas as religiões, em umas mais, em outras menos, esses elementos são encontrados.

Todas essas representações religiosas têm em

comum o fato

de misturarem o componente da verdade com todo tipo de erro e loucura. A linha entre o Criador e a criatura foi apagada, e, portanto, a fronteira entre o mundo e o homem, entre a alma e o corpo, entre o céu e o inferno, em lugar nenhum tem sido posicionada corretamente. O físico e o moral,

o material e o espiritual, o terreno e o celestial, têm sido confundidos e misturados uns aos outros. Na ausência de um senso de santidade de Deus há a ausência correspondente de um senso de pecado. O mundo do paganismo não conhece Deus, não conhece o mundo e o homem, e não conhece o pecado e a miséria.

Em terceiro lugar, todas as religiões das nações

são caracterizadas pelo esforço de se alcançar a

salvação pelo exercício da força humana. A idolatria

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naturalmente conduz a uma religião antropocêntrica.

Quando o culto de um único Deus é abandonado,

enão há uma revelação histórica

eobjetiva à qual recorrer, o homem tenta fazer com que os deuses ou espíritos que ele mesmo inventou se revelem. A idolatria é sempre acompanhada de superstição, predições e magia. Adivinhação é o nome dado ao esforço que alguém faz, por sua própria conta, ou com a ajuda de sacerdotes, adivinhos, oráculos divinos ou coisas semelhantes, e por meio da astrologia, da interpretação de

sonhos, e outras estratégias para conhecer a vontade dos deuses. Magia é o nome dado ao esforço feito por meio de orações formalísticas, sacrifícios voluntários, flagelos e práticas similares para fazer com que a vontade dos deuses seja aplicável a alguém.Naturalmente essas coisas também são manifestas de formas variadas. Contudo elas estão sempre presentes nas religiões e constituem um componente necessário à religião dos gentios. O homem é a figura central e é ele quem procura obter sua salvação. Em nenhuma dessas religiões a real natureza da redenção (reconciliação) e da Graça são compreendidas.

Embora esse esboço sirva para caracterizar as

religiões pagãs de forma geral, em muitas delas têm

ocorrido modificações que merecem nossa atenção e

consideração. Quando por um lado a religião de um

povo perde seu caráter em todos os tipos de formas

de superstição e adivinhação grosseiras, e por outro

lado a cultura ou civilização se desenvolve, um

conflito está prestes a acontecer. E fora dessa

divergência, sem dúvida sob a providência de

Deus, há aqueles homens que lutam por uma

reconciliação e tentam tirara religião de sua profun

da degeneração. Um desses homens foi Zarathustra, que viveu na Pérsia provavelmente no sétimo século antes de Cristo. Outro foi Confúcio, na China, no sexto século antes de Cristo. Outro foi Buda, na índia, no quinto século antes de Cristo e Maomé, na Arábia, no sétimo século depois de Cristo. Existiram muitos outros, nem todos conhecidos pelo nome.

Não pode haver diferença de opinião sobre o fato de que a religião fundada por esses homens é em muitos aspectos muito superior às religiões tribais nas quais eles foram criados. As hipóteses de evolução e de degeneração

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apresentam-se, ambas, na religião e em todas as outras áreas da cultura, muito parciais e inadequadas para prestar contas da plenitude de evidentes manifestações em todas elas, ou pelo menos para prestar contas por meio de qualquer formulação. Períodos de desenvolvimento e de decadência, de avivamento e de recaída são constantes na história de todos os povos e em todas as esferas da vida.

Além disso, não pode ser dito que esses homens foram embusteiros, instrumentos ou agentes de Satanás. Eles foram homens sérios e em sua própria alma lutaram contra os conflitos que surgiram na fé popular ou tribal e em suas próprias consciências ilumi-

nadas. Pela luz que lhes foi conced ida eles lutaram por uma forma melhor pela qual pudessem obter a verdadeira felicidade.

Da mesma forma, embora seu mérito deva ser reconhecido, essas reformas religiosas fizeram diferença somente em grau, e não no tipo de idolatria do povo. De fato, esses homens cortaram os galhos selvagens da árvore da falsa religião. Mas eles não a arrancaram. Zarathustra em sua pregação realçou o contraste entre o bem e o mal, mas admitiu esse contraste como sendo não simplesmente ético, mas primariamente físico em seu caráter. Portanto, ele foi forçado a distinguir entre um bom Deus e um mau Deus, e assim criou o dualismo que se estendeu a todas as coisas no mundo natural, humano e animal, e que tem o efeito prático de mutilar a vida. O confucionismo foi uma religião do Estado, composta de outros elementos religiosos além dos seus próprios e que combinou em si mesmo o culto aos deuses naturais e aos ancestrais. O budismo, em seu início, não foi uma religião, mas uma filosofia que postulava o sofrimento como a fonte do mal e a existência como a fonte do sofrimento e que, portanto, recomendava abstinência, o entorpecimento da consciência, e a aniquilação do ser como forma de salvação. E Maomé, que conhecia o cristianismo e o judaís

mo, e que por meio de sua ardente fé em um julgamento próximo que, como estava convencido, certamente alcançaria seus contem-porâneos materialistas, chegou à confissão de um único Deus, e re-alizou uma reforma religiosa e moral. Mas em sua vida pessoalo pregador da religião foi dando lugar a um estadista e legislador,e a religião que ele fundou não promoveu a união entre Deus e o homem, pois ela não entendia a causa da separação nem a forma de reconciliação. Para Maomé a salvação dos céus consiste em uma total satisfação dos desejos sensuais.

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Quando, portanto, nós passamos os olhos em todo o terreno da revelação geral, descobrimos, por um lado, que ela tem sido de grande valor e que tem produzido ricos frutos e, por outro lado, a espécie humana não encontrou Deus através dela. É graças à revelação geral que algum senso re-ligioso e ético está presente em todos os homens; também, é graças a ela que eles ainda possuem alguma consciência de verdade e mentira, de bem e mal, de justiça

einjustiça, de beleza e de feiura; que eles vivem em relações ma-trimoniais, em família, em comunidade e Estado; que eles estão seguros pelo refreamento da degeneração e da bestialidade; que, dentro de seus limites, eles se ocupam com a produção, distribuição e o prazer de todos os tiposde bens materiais e espirituais. Em resumo, a espécie humana pela revelação geral é preservada em sua existência, mantida em sua unidade e habilitada a continuar e desenvolver sua história. Apesar disso, a verdade, como disse Paulo, é que na sabedoria de Deus, o mundo não o conheceu por sua própria sabedoria (1Co 1.21). À luz da revelação geral o mundo acumulou um tesouro de sabedoria referente às coisas da vida terrena. Essa sabedoria do mundo faz com que ele seja indesculpável, pois ela prova que não carece a raça humana de tais dádivas de Deus, como mente e razão, habilidade racional e moral. A sabedoria do homem demonstra que ele, por causa da escuridão de sua mente e do endurecimento de seu coração não usou corretamente as dádivas que lhe foram dadas.

A luz brilhou nas trevas, mas as trevas não a compreenderam (jo 1.5). O Verbo estava no mundo, mas o mundo não o conheceu (jo 1.10). Em toda a sua sabedoria o mundo não conheceu Deus (1Co 1.21).

Capítulo 5

A QUESTÃO DA REVELAÇÃO

ESPECIAL

Ainadequação da revela- ção geral demonstra a ne- c e s s i d a d e d a r e v e l a ç ã o especial.

Essa necessidade deve ser entendida corretamente. Ela não significa que Deus foi obrigado ou forçado, seja internamente pela razão de Seu ser, seja externamente pelas circunstâncias, a revelar-se de uma forma especial. Toda revelação, especialmente aquela que

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vem a nós em Cristo, através das Escrituras, é um ato da Graça de Deus, um livre uso da Sua vontade, e uma manifestação de Seu imerecido favor. Portanto, nós podemos falar da necessidade ou da indispensabilidade da revelação especial somente no sentido de que tal revelação está indissoluvelmente conectada com o propósito que Deus em Si mesmo designou para Sua criação. Se o prazer de Deus é restaurar a cria-ção devastada pelo pecado e recriar o homem à Sua imagem e fazê-lo viver definitivamente na eterna bem-aventurança dos céus, então uma revelação especial é necessária. Para esse propósito a revelação geral é inadequada.

Contudo, não é esse propósito o grande motivo que faz com que uma revelação especial seja necessária, pois quando nós vemos e reconhecemos a inadequação da revelação geral para esse destino do mundo e do homem, nós vemos também que devemos essa convicção à revelação especial. Pela natureza nós consideramos a nós mesmos e nossas habilidades, o mundo e seus tesouros, suficientes para nossa salvação. As religiões pagãs não fogem a essa regra, pelo contrário, confirmam-na. É verdade que todas elas falam de sacerdo-tes, videntes, oráculos e coisassemelhantes, e apelam a eles como guardiães de uma revelação especial. Esse fato em si mesmo é uma forte evidência para a tese de que a revelação geral é inadequada, e que todos sentem em seu coração a necessidade de uma diferente e mais profunda revelação de Deus do que aquela que a natureza e a história podem dar. Mas essas revelações especiais, às quais o paganismo recorre claramente, demonstram também que o homem, que perdeu a amizade com Deus, não pode entender Sua revelação na natureza e que por isso ele tateia procurando por Deus em seus próprios caminhos. Isso o afasta cada vez mais do conhecimento da verdade e o conduz a uma dura escravidão a serviço da idolatria e da injustiça (Rm 1.20-32).

Conseqüentemente, a revelação especial de Deus é necessária também para um correto entendimento de Sua revelação geral na natureza e na história, no coração e na consciência. Nós precisamos dela para purgar o conteúdo da revelação geral de todo tipo de erro humano e assim dar à revelação geral o seu justo valor. É quando nós nos submetemos à luz das Escrituras que começamos a reconhecer que a revelação geral tem um rico significado para toda a vida humana, e que, todavia, toda essa sua riqueza é insuficiente e inadequada

para alcançar o fim genuíno do homem.Se, portanto, no intuito de facilitar o discernimento, nós falamos

primeiro da revelação geral e de sua insuficiência, e nós agora falaremos da revelação especial, esse modo de tratar o assunto não

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deve nos fazer pensar que enquanto tratávamos da revelação geral deixávamos de lado a revelação especial. Pelo contrário, fomos guiados pela revelação especial também quando tratávamos da revelação geral, e ela derramou sua luz sobre nossa aproximação do problema.

Portanto, nesse estudo da revelação especial que faremos agora, nossa proposta não é conduzir a investigação pelas assim chamadas pressuposições. Nós não devemos, como fazem os cépticos de nossos dias, atravessar uma gama de várias religiões para ver se nelas podemos encontrar a revelação especial de Deus que nosso coração requer. O fato de nós conhecermos as falsas religiões como sendo falsas, e de termos aprendido que a idolatria e o culto a imagens, a feitiçaria e a adivinhação, a incredulidade e a superstição, quer elas se apresentem de forma grosseira ou refinada, como sendo pecaminosas – esse fato é devido à revelação especial que nos é concedida em Cristo. Nós, portanto, estaremos deliberadamente nos desfazendoda luz que nos ilumina, se colocarmos a revelação especial de lado ou se não a levarmos em conta, mesmo que seja temporariamente ou como um recurso metodológico. Fazer isso seria provar que nós amamos mais as trevas do que a luz para que não aconteça que nossos pensamentos e atos sejam manifestos (Jo 3.19-21).

A revelação geral pode, de fato, demonstrar a necessidade de uma revelação especial. Ela pode apresentar alguns fortes motivos que justifiquem essa revelação, pois se alguém não se afasta com o materialismo e o panteísmo negando praticamente toda a revelação, e em vez disso ele realmente crê na existência de um Deus pessoal que fez o mundo, que deu ao homem uma alma imortal e destinou-o à salvação eterna, e que ainda sustenta e domina todas as coisas pela Sua providência, então não há razão fundamental para que exista uma revelação especial. A Criação é revelação, uma revelação muito especial, absolutamente sobrenatural e maravilhosa. Quem quer que seja que aceite a idéia da Criação reconhece, em princípio, a possibilidade de toda a revelação posterior, inclu-sive a da encarnação do Verbo. Mas qualquer revelação geral que possa contribuir para a causa da necessidade e possibilidade de uma revelação especial, nada

pode dizer sobre a realidade dessa revelação especial, pois ela descansa inteiramente na livre vontade de Deus. A realidade da revelação especial pode ser de-monstrada somente através de sua própria existência. É somente através de sua luz que ela pode ser vista e reconhecida.

Essa revelação especial, na qual Deus

nos fala primeiro através dos profetas e

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depois através de Seu Filho (I-fb 1.1,2), e que

nós não aceitamos em conseqüência de

argumentos e evidências, mas com uma fé

infantil, permanece em contínuo

relacionamento com a revelação geral, mas

ao mesmo tempo é essencialmente

diferente dela. Essa diferença já foi men-

cionada anteriormente, mas será tratada com

mais delonga especialmente quanto ao modo

pelo qual ela acontece, ao conteúdo que ela

compreende e ao propósito a que ela visa.

O modo pelo qual a revelação especial é dada não é sempre o mesmo, mas difere em função dos meios que Deus usa para isso. Portanto ela é caracterizada por vários nomes, como aparição, revelação, projeção, fazer-se conhecido, proclamação, ensino e out r o s t e r m o s s e m e l h a n t e s . A especificação dizer é especialmente curiosa. As Escrituras empre-

gam essa palavra para as obras de Deus na criação e na providência. Disse Deus: Haja luz. E houve luz (Gn 1.3). Os céus por Sua Palavra se fizeram e, pelo sopro de Sua boca, o exército deles (SI 33.6). Pois Ele falou e tudo se fez; Ele ordenou, e tudo passou a existir (SI 33.9). Ouve-se a voz do Senhor sobre as águas; troveja o Deus da glória. A voz do senhor quebra os cedros. A voz do Senhor despede chamas de fogo. A voz do Senhor apavora e destrói o inimigo (Si 29.3-9; 104.7; Is 30.31; 60.6).Todas essas obras de Deus na criação e na providência podem ser chamadas de voz ou dizeres porque o Senhor Deus é um ser pessoal, consciente e pensante, que traz todas as coisas à existência pela palavra de Seu poder, e que põe os pensamentos na cabeça do homem, que, sendo Sua imagem e semelhança, pode entendê-los e interpretá-los. Deus certamente tem algo a dizer ao homem em Sua obras.

Há um pequeno desacordo sobre essa voz de Deus nas obras de Suas mãos. Muitos que negam a revelação especial, apesar disso gostam de falar sobre a revelação de Deus na criação. Entre os que fazem isso há uma diferença considerável. Alguns encontram a maior parte dessa revelação na criação, enquanto outros encontram a maior parte dessa revelação na história de homens famo

sos, e outros a encontram na história das religiões e dos líderes de vários segmentos religiosos. Além disso, há aqueles que enfatizam a revelação que vem ao homem pelo lado de fora, seja na natureza ou na história, enquanto outros enfatizam a que é encontrada dentro do

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próprio homem, em seu coração, em sua mente e em sua consciência. Cada vez mais vai ganhando terreno em nossos diaso pensamento de que a revelaçãoea religião estão intimamente relacionados, que ambas possuem o mesmo conteúdo e que são apenas os dois lados de uma mesma moeda. A revelação, dessa forma, é considerada como o elemento divino e a religião como o elemento humano na relação de Deus com o homem. A idéia é que Deus se revela ao homem para que ele tenha uma religião, e o homem possui mais religião na medida em que Deus se revela a ele.

Essa idéia tem sua origem no panteísmo, que identifica Deus

eo homem, e portanto identifica também a revelação e a religião. Aqueles que aderem a esse ponto de vista dificilmente poderão falar de qualquer revelação real de Deus, seja na natureza e na história, ou no mundo e no homem, pois a revelação, quando corretamente compreendida, assume, como mencionamos acima, que Deus é consciente de Si mesmo, que Ele conhece a Si mesmo, eque portanto Ele pode, a Seu bel prazer, partilhar o conhecimento de Si mesmo com Suas criaturas. No panteísmo a auto consciência de Deus e Seu auto conhecimento e cognoscibilidade são negadas. No panteísmo Deus é nada mais que a essência de todas as coisas em todas as coisas. Conseqüentemente, o panteísmo pode falar somente de uma inconsciente e involuntária manifestação ou obra de Deus. Tal manifestação ou obra de Deus não seria e não poderia ser apresentada à mente humana na forma de pensamentos, idéias ou conhecimento de Deus, ela poderia apenas excitar alguns humores, afeições, ou atitudes no coração humano. Caberia aohornerio assimilar essas afeições, em completa independência e liberdade, e de acordo com seu desenvolvimento cultural e educacional, transformá-los em palavras. Praticamente isso faz com que a religião, tanto para toda a espécie humana quanto para o indivíduo, seja um processo pelo qual Deus toma consciência de Si mesmo e adquire conhecimento de Si mesmo. Dessa forma Deus não fala ao homem, nem se revela ao homem. É o homem que re~ ela Deus a Si mesmo, fazendo com que Ele se conheça.

Se essa linha panteísta de pensamento ainda faz uso dos termos revelação, voz de Deus e outros termos semelhantes, ela os empre

ga não por sua própria filosofia, pois nela não há lugar para isso, mas por aquele outro mundo e outro ponto de vista encontrado nas Escrituras. Dessa forma o panteísmo falsifica esses termos. O que a Escritura chama de revelação geral de Deus é um pronunciamento de Deus, pois essa revelação procede da idéia de que Deus realmente tem algo a dizer nessa revelação e Ele de fato o faz. A Escritura

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também ensina que Deus e o homem são seres distintos, e que a religião e a revelação também são distintas. Se Deus tem Seu próprio pensamento e conhece a Si mesmo, e se Ele tem dado expressão a esse pensamento em maior ou menor proporção em Suas obras, então a possibilidade permanece real de que o homem, por causa de sua mente obscurecida, entenda equivocadamente esses pensamentos de Deus e se torne nulo em seu próprio entendimento. Desse modo a religião poderia tanto ser o outro lado da revelação, quanto tornar-se uma culpada e errada interpretação dela.

Ao interpretar a revelação geral do jeito que ela interpreta e ao usar a figura da voz de Deus, a Escritura mantém aberto o caminho para uma posterior e mais essencial pronunciação da parte de Deus em Sua revelação especial. Toda a Escritura nos apresenta Deus como sendo aquele que é consciente de Si mesmo, como um ser que pode pensar e falar. Observe a questão levantada no Salmo 94.9: "O que fez o ouvido, acaso não ouvirá? E o que formou os olhos será que não enxerga?". Essa questão poderia, de acordo com o sentido dado pelo Espírito Santo, ser parafraseada da seguinte forma: "Aquele que se conhece perfeitamente não po-deria transmitir conhecimento de Si mesmo às Suas criaturas?". Quem quer que negue essa possibilidade estará negando não apenas o Deus da regeneração, mas também o Deus da criação e da providência, como a Escritura o revela a nós. Da mesma forma, quem quer que entenda a revelação geral no bom, isto é, no senti-do Escriturístico, perde o direito de levantar objeções à voz de Deus em Sua revelação especial. Deus pode revelar-se a Si mesmo de uma forma especial porque Ele o faz de uma forma geral. Ele pode falar em um sentido literal porque também pode falarem um sentido metafórico. Ele pode ser o Recriados porque Ele é o Cria-dor de todas as coisas.

A grande diferença entre essa pronunciação da parte de

Deus na revelação geral e, aquela na revelação especial é que, na

primeira Deus deixa o homem

encontrar por si mesmo Seus pensamentos nas obras de Suas mãos e na segunda, Ele mesmo dá expressão direta a esses pensamentos e dessa forma os oferece à mente do homem. Em Isaías 28.26 nós lemos que Deus instrui o lavrador, ensinando-o a fazer o seu trabalho. Mas essa instrução não vem ao lavrador por escrito, em algumas palavras, nem na forma de lições escolares; é um ensinamento que está contido e expresso nas leis da natureza, nas características do ar e do solo, do tempo e do lugar, do grão e do cereal. O que o lavrador deve fazer é conscientemente esforçar-se para aprender todas essas leis da natureza, e dessa forma aprender a lição que Deus lhe ensina. Em seu esforço ele está sujeito ao en-gano e ao erro, mas quando ele aprende adequadamente esse en-sino ele deve agradecer a Deus, de quem procedem todas as boas dádivas e que é grande em conselho e realizações.

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Na revelação geral tal ensino é adequado ao seu propósito. O

que Deus quer fazer através dEle é incitar o homem a procura-lo,

senti-lo e encontrá-lo (At 17.27), e, não o encontrando, ser

indesculpável (Rm 1.20). Mas em Sua revelação especial Deus tem

compaixão do homem que está extraviado e que por isso não

pode encontrá-lo. Nessa revelação Deus procura o homem e Ele mes-

mo fala ao homem quem e o que Ele é. Ele não permite que o ho-

mem deduza e infira de um grupo de fatos quem Deus é. Ele mes-

mo fala ao homem nessas pala- vris: "Eu sou Deus". É verdade que

na revelação especial Deus também usa os fatos da natureza e da

história para revelar-se em Suas muitas excelências. E esses fatos,

que muitas vezes são milagres, não são apenas um suplemento ou

um adendo, mas um elemento indispensável na revelação. Porém,

esses não são meros fatos cuja interpretação é deixada por nossa

conta. Em vez disso eles estão rodeados por todos os lados pela

Palavra de Deus. Eles são precedidos por essa Palavra, são

acompanhados por ela e são seguidos por ela. O conteúdo central

da revelação especial é a pessoa e obra de Cristo. Esse Cristo é

anunciado e descrito séculos antes no Velho Testamento, e quando

Ele aparece e completa Sua obra, Ele é novamente interpretado e

explicado nos escritos do Novo Testamento. A revelação especial,

conseqüentemente, segue a linha que nos conduz até Cristo, mas

em paralelo com ela e em conexão com ela, essa revelação nos

conduz às Escrituras, que são a Palavra de Deus.

Por essa razão, a revelação especial pode ser mais propria

mente chamada de fala do que a revelação geral, apesar desta po-der ser também assim designada. O primeiro versículo da epístola aos Hebreus compreende toda a revelação de Deus, tanto no Ve-lho quanto no Novo Testamento, os profetas e o Filho, no seguinte termo: falado. Mas Ele imediatamente acrescenta que essa revela-ção foi dada muitas vezes e de muitas maneiras. A primeira ex-pressão, "moitas vezes", significa que a revelação nos foi dada de forma perfeita e completa em um momento, mas através de muitos eventos sucessivos e percorreu um longo período histórico. A segunda expressão, "de muitas maneiras", significa que as várias re-velações divinas não foram dadas todas da mesma forma, e sim que, acontecendo em várias épocas e lugares, ela aconteceu também em diversos modos e foi dada em diferentes formas.

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Em muitos pontos das Sagradas Escrituras', nós lemos simplesmente que o Senhor apareceu, disse, ordenou, e coisas semelhantes, e não encontramos comentários sobre como isso acon-teceu. Outros textos também lançam, alguma luz sobre a questão da revelação, e neles nós pode-

mos distinguir dois tipos de meios que o Senhor empregou para transmitir Sua revelação.

Ao primeiro tipo de transmissão da revelação especial, per-tencem aqueles meios que possuem um caráter externo e objetivo. Através deles, Deus aparece ao homem e fala com ele. Ele freqüentemente aparecia a Abraão, a Moisés, ao povo de Is-rael no monte Sinai, sobre o tabernáculo e no Santo dos Santos e nas colunas de nuvem e de fogo'. Em outros momentos Ele transmite Sua mensagem através de anjos', especialmente através do Anjo do pacto, que traz Seu nome (Ex 23.21). Posteriormente Ele faz uso de outros meios pedagógicos para revelar-se a Israel (Pv 16.33), o Urim e Tumim (Ex 28.30). Algumas vezes Ele fala com uma voz audível', ou Ele mesmo escreve Sua lei nas tábuas do testemunho (Ex 31.18; 25.16).

Os milagres também fazem parte desse grupo de meios de revelação. Nas Escrituras os milagres ocupam um espaço impor-tante. Em nossos dias eles têm sido atacados por todos os lados. É um esforço inútil tentar defender os milagres da Sagrada Escritura contra aqueles que rejeitaram a perspectiva escriturística da

vida e do mundo. Pois, se Deus não existe – e essa é a tese tanto do ateísmo quanto do materialismo –ouse Ele não tem uma exis-tência própria, pessoal e independente – como afirma o panteísmo – ou se, depois da criação, Ele abandonou o mundo aos seus próprios caminhos – como afirma o deísmo – então é evidente que milagres não acontecem. E se a impossibilidade dos milagres é evi-dente desde o começo, nenhum argumento sobre sua realidade é necessário.

Mas a Escritura tem uma idéia totalmente diferente de Deus e do mundo, e também da relação que existe entre eles. Em primeiro lugar, ela ensina que Deus é um ser consciente e oni-potente, que chamou à existência todo o mundo com todas as suas energias e leis e que, ao fazer isso, fez uso apenas de Seu próprio poder. Ele possui em Si mesmo a plenitude da vida e da força. Nada é maravilhoso demais ou difícil para Ele (Gn 18.14); para Ele todas as coisas são possíveis (Mt 19.26).

Além disso a perspectiva bíblica não considera o mundo como uma unidade cujas muitas partes possuem a mesma natureza e a mesma substância, exibindo diferença apenas nas formas

de sua manifestação. Em vez disso ela considera o mundo como um organismo cujos membros, embora pertençam ao todo, são todos dotados de diferentes propriedades e destinados a diferentes funções. No mundo há lugar para diferentes seres que, apesar de

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serem todos sustentados e govemados pelo mesmo poder divino, diferem uns dos outros em sua natureza. Esse mundo rico contém matéria e espírito, corpo e alma, terra e céus. Ele contém o orgânico e o inorgânico, o animado e o inanimado, o racional e o não-racional, minerais, plantas e animais, seres humanos e anjos. E dentro do ser humano há diferença entre sua cabeça e seu coração, sua razão e sua consciência, seus conceitos e suas afeições. Todas essas esferas contidas no mesmo dependem de diferentes energias e habilidades, e operam de acordo com diferentes leis. De fato, todas as coisas são interdependentes umas das outras, assim como os membros de um corpo. Da mesma forma cada parte tem seu próprio lugar e sua própria função no todo.

Em terceiro lugar, as Escrituras ensinam que Deus e o mundo, apesar de serem diferentes um do outro, nunca estão separados. Deus tem uma única, perfeita e independente existência em Si mesmo, mas Ele não está isolado do mundo; pelo contrário, nele

nós vivemos, e nos movemos e existimos (At 17.28). É claro que Ele é o Criador, que a seu tempo chamou todas as coisas à existência, mas Ele continua sendo o proprietário, o possuidor, o Rei e o Senhor através de quem Seu poder onipotente e onipresente sustenta e rege todas as coisas. Ele é a primeira causa de todas as coisas, não apenas em seu princípio, mas também na sua preservação. As causas secundárias por meio das quais Ele trabalha diferem umas das outras, mas a causa primária de todas as criaturas é e continuará sendo Deus, e somente Deus.

Se nesses conceitos básicos nós concordamos com as Escritu-ras e firmamos nossa posição no terreno firme do teísmo, nós não temos base para lançar dúvidas sobre a possibilidade dos milagres ou para atacar essa possibi-lidade. De acordo com a Escritura, todo fenômeno da natureza e da história é um ato e uma obra de Deus, e nesse sentido é um milagre. Os assim chamados milagres nada mais são que a manifestação especial daquele mesmo poder divino que age em todas as coisas. Esse poder opera de vári-as formas, faz uso de diferentes meios (causas secundárias) de acordo com diferentes leis, e portanto alcança vários resultados. Tem sido dito, e não injustamente, que para a pedra é uma maravilha que a planta possa crescer, para a planta é uma maravilha que o animal possa mover-se, para o animal é uma maravilha que o homem possa pensar, e para o homem é uma maravilha que Deus possa vencer a morte. Se é verdade que Deus, com Seu poder onipotente e onipresente, trabalha através de todas as criaturas usando Seus meios, por que Ele não seria capaz de trabalhar de uma forma diferente com o mesmo poder–uma forma diferente, isto é, diferente daquela que nos é familiar no curso

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normal da natureza e da história? Os milagres não são uma violação das leis naturais, pois essas leis são plenamente reconhecidas na Escritura, muito embora não sejam classificadas e formuladas ali. Dessa forma, por exemplo, de acordo com a Escritura, as leis de toda a natureza são firmemente fixadas pelo pacto da natureza que Deus fez com Noé (Gn 8.22). Mas assim como o homem domina a terra através da sua razão e vontade, e governa e controla a natureza através de sua cultura, da mesma for-ma Deus temo poder de fazer com que esse mundo cumpra suas determinações. O que os milagres provam é que não o mundo, mas o Senhor é Deus.

Nada disso teria sido necessário, se o homem não tivesse ca-

ído. Dessa forma ele teria conhecido Deus através das obras de

Suas mãos. Sem entrar na questão de se teriam existido milagres se

não tivesse existido o pecado, basta-nos dizer que nesse caso, se os

milagres tivessem existido, eles seriam de natureza diferente e te-

riam outro propósito, pois os milagres que aconteceram e, estão

registrados nas Escrituras, possuem seu propósito e seu caráter es-

pecífico.

No Velho Testamento, o julgamento e a redenção caminham

lado a lado como acompanhantes dos milagres. Dessa forma, o di-

lúvio foi um meio de destruir a perversa geração daquela época e

ao mesmo tempo um meio de preservar Noé e sua família dentro

da arca. Os milagres que aconteceram em torno das pessoas de

Moisés e Josué – as pragas do Egito, a travessia do Mar Vermelho,

a entrega da lei no Sinai, a invasão e conquista de Canaã –tiveram

como seu propósito o julgamento dos inimigos de Deus e o

estabelecimento de uma morada segura para Seu povo na terra da

promessa. Os milagres que aconteceram mais tarde, dos quais a

maioria foram realizados por Elias, aconteceram no tempo de

Acabe e Jezabel, uma época em que o paganismo tentava suprimir

totalmente o culto ao Senhor, e

alcançou seu ponto mais alto no Carmelo, onde a luta entre Deus e Baal foi decidida.

Todos os milagres do Velho Testamento têm em

comum o fato de que, negativamente, revelam o

julgamento sobre as nações ímpias, e

positivamente revelam a criação e a preservação de

um lugar entre o povo de Israel para a continuação

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da revelação de Deus. Nisso eles alcançam seu

propósito, pois contra toda idolatria e culto a imagens

o Deus de Israel, o Deus do pacto, é conhecido e

reconhecido como Deus: "Vede, agora, que Eu Sou,

Eu somente, e mais nenhum deus além de mim; eu

mato, e eu faço viver; eu firo e eu saro; e não há

quem possa livrar alguém da minha mão (Dt

32.39; 4.35; Is 45.5,18,22). E quando esse propósito é

alcançado, ele resulta rapidamente na total revelação

na pessoa de Cristo.

Essa pessoa de Cristo é em si mesma, em sua origem, em sua essência, em suas palavras e obras, um milagre. Jesus é o milagre da história do mundo. Conseqüentemente, os milagres que Ele realiza possuem uma natureza muito peculiar. Em primeiro lugar, Ele mesmo, durante Sua vida na terra, fez muitos milagres: milagres nos quais Ele demonstrou Seu poder sobre a natureza (trans-formando a água em vinho, alimentando grandes multidões,

acalmando tempestades, andando sobre as águas, e outros seme-lhantes); milagres nos quais Ele demonstrou Seu poder sobre as conseqüências do pecado, tais como doenças terminais, moléstias contagiosas e sofrimentos da vida; e, finalmente, milagres nos quais Ele demonstrou poder sobre si mesmo, mantendo-se livre da culpa do pecado e da dominação de Satanás (perdoando pecados e expulsando demônios). A unidade da pessoa de Cristo se expressa nesses três tipos de milagres. À exceção da maldição sobre a figueira estéril, todos os milagres de Jesus apontam para Sua obra redentiva. Ele não veio para condenar o mundo, mas para salvá-lo (Jo 3.17). Através de Seus milagres Ele exerce Seus ofícios de profeta, sacerdote e rei e também realiza a obra para a qual o Pai o designou (Jo 4.34; 5.36; 9.4).

Essa pessoa de Cristo é mais claramente manifesta nos milagres que foram feitos não por Ele, mas nEle e com Ele. Nesses milagres nós podemos ver de forma nítida quem e o que Ele é. Sua concepção sobrenatural, Sua vida e Sua morte miraculosas, Sua ressurreição, ascensão e Seu lugar à destra do Pai são os milagres redentivos mais claros. Eles provam, mais marcadamente que os milagres que Ele mesmo realizou, Seu absoluto poder sobre o pecado e sobre suas consequências,

sobre Satanás e sobre toda a dominação satânica. Todos eles ilus-tram, mais claramente do que todas as outras obras, que esse po-der da pessoa de Cristo é um poder redentivo e regenerativo, que obterá a vitória final nos novos céus e na nova terra.

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Os milagres que foram realizados nos tempos apostólicos pelas primeiras testemunhas podem ser caracterizados como obras do Cristo exaltado (At 3.6; 4.10). Seu propósito era mostrar que Jesus, que tinha sido rejeitado pelo mundo, pregado na cruz e entregue à morte - que esse Jesus ainda estava vivo e que tinha todo o poder no céu e sobre a terra. Os milagres do Velho Testa-mento mostraram que Jeová é Deus e que não havia nenhum outro além dEle. Os milagres do Novo Testamento mostram que Jesus Cristo, o Nazareno, que os judeus crucificaram, foi ressusci-tado por Deus e colocado à Sua mão direita, como Príncipe e Sal-vador (At 4.10; 5.30,31). Quando esse fim foi alcançado, quando a Igreja foi plantada no mundo, uma Igreja que crê e confessa essa revelação do Pai no Filho através da comunhão do Espírito Santo, os milagres visíveis e externos cessaram, mas os milagres espiri-tuais da regeneração e da conversão continuam na Igreja até que venha a plenitude dos gentios e Israel seja salvo. No fim das eras,de acordo com as Escrituras, acontecerá o maior dos milagres, a aparição de Cristo, ressuscitado da morte, o julgamento, os novos céus e a nova terra.

O fim e o objeto de toda revelação e dos milagres nessa re-

velação é a restauração da humanidade caída, a recriação do mun-

do, e o reconhecimento de Deus como Deus. Portanto os milagres

não são elementos singulares e estranhos na revelação, nem um

adendo arbitrário a ela. Eles são um componente necessário e in-

dispensável da revelação. Eles são em si mesmo revelação. Deus

se fez conhecido ao homem em todas as Suas excelências e perfei-

ções por meio de palavras e obras.

A esse primeiro tipo de meios, todos de caráter externo e objetivo, um segundo grupo deve ser acrescentado. A esse grupo pertencem todos aqueles meios que são subjetivos, que são realizados dentro do homem, nos quais Deus fala ao homem não por fora, mas por dentro.

O primeiro lugar entre esse tipo de meios pertence à revelação

sem igual que veio a Moisés como o mediador do Velho

Testamento. Ela é descrita como uma revelação na qual o Senhor

fala a Moisés face a face, como um homem fala com o seu amigo (Ex

33.11).

O papel de Moisés no Velho Testamento foi especial. Ele foi colocado acima dos profetas. Deus falou com ele, não por meio de visão, mas por um discurso direto. Moisés viu Deus, não como em

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um sonho, mas diretamente: ele viu Sua similitude, Sua forma, não Seu ser ou Sua face, mas Suas costas quando a glória de Deus pas-sou por ele (Ex 33.18-33).

A esse tipo de meios pertence também o sonho (Nm 12.6; Dt 13.1-6); a visão, isto é, um estado do ser no qual os olhos físicos são fechados para o mundo externo e os olhos da alma são abertos para as realidades divinas (Nm 12.6; Dt 13.1-6); e especialmente a inspira-ção da mente humana pelo Espírito de Deus.' Esses últimos meios de revelação ocorrem freqüentemente no Velho Testamento, onde são sempre representados como uma operação do Espírito

que desce sobre o profeta por um determinado momento. Mas no Novo Testamento, depois da descida do Espírito Santo, a inspiração não apenas tornou-se mais comum como meio de revelação, mas também assumiu um caráter mais orgânico e permanente.

Esses dois tipos de meios de revelação podem ser classificados sob os nomes de manifestação e revelação. Ao fazer isso nós não de-vemos nos esquecer que a manifestação não consiste apenas de atos, mas inclui também pensamentos e palavras. Devemos tam-bém atentar para o fato de que a inspiração a que nos referimos aqui difere tanto da atividade do Espírito que inspirou profetas e apóstolos no registro da revelação em forma escrita (a inspiração das Escrituras) quanto daquela iluminação interna que é a porção de todos os crentes.

Capítulo 6O CONTEÚDO DA

REVELAÇÃO ESPECIAL

Tendo tomado nota das vár i a s f o r m a s n a s q u a i s a reve lação espec ia l ve io ao homem, nós agora vamos consi-derar o seu conteúdo. Assim como no estudo da revelação geral, nes-te também nós faremos uma revisão breve da história da revelação especial. Desta forma seu propósito ficará claro.

A revelação especial não começou com Abraão. Ela começou

imediatamente depois da queda. Portanto é de muita importância

observar que Abraão foi filho de Terá, que foi descendente da oita-

va geração de Sem. E de Sem nós lemos que o Senhor foi seu Deus

(Gn 9.26). Foi na família de Sem, como na de Sete, antes do dilúvio,

que o conhecimento de Deus foi preservado por mais tempo e em

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seu estado mais puro. Portanto, quando o Senhor chama Abraão, Ele não se apresenta como um Deus diferente, mas como o mes-mo Deus que Abraão já conhecia e confessava. Além disso, nós aprendemos em outra passagem da Escritura, a saber, naquela que fala de Melquisedeque (Gn 141820), que o conhecimento do ver-dadeiro Deus não tinha sido inteiramente perdido. Somos informa-dos de que outros gentios também reconheceram e honraram o Deus de Abraão, como foi o caso de Abimeleque, rei de Gerar, os filhos de Hete em Hebrom, e Faraó do Egito.'

Depois da confusão das línguas e da divisão da raça humana, a incredulidade não se desenvolveu entre os homens, mas a

superstição e a idolatria sim. Isso aconteceu no Egito (Ex 18.9-12), em Canaã (Gn 15.16; 18.1 ss.), e na Babilônia. Até mesmo entre os descendentes de Sem a verdadeira religião deu lugar à idolatria. De acordo com Josué 24.2,14,15, os pais de Israel, Terá, pai de Abraão, Naor e Harã serviram a outros deuses quando viviam do outro lado do rio. E de Gênesis 31.19 e 35.2-4 nós aprendemos que Labão tinha deuses familiares e os adorava. Labão era um arameis, um sírio (Gn 31.20; Dt 26.5).

Em vez de evitar que a espécie humana caísse na superstição e na injustiça, o pacto da natureza com Noé foi sendo quebrado, e o propósito de Deus para a raça humana ficou ameaçado. Por isso Deus tomou um novo curso de ação com Abraão. Ele não podia destruir novamente os filhos dos homens em um dilúvio, mas dei-xando que os povos seguissem seus próprios caminhos Ele podia firmar um pacto com uma pessoa, e através dessa pessoa com um povo, e dessa forma o pacto alcançaria seu cumprimento total. E quando o pacto se completasse Ele poderia incluir toda a humanidade em suas bênçãos. A separação temporária de um povo torna-se, assim, o meio para a permanente unificação da raça humana.

Com Abraão um novo estágio tem início na história da reve-

lação. Essa parte da revelação que

foi dada no tempo dos patriarcas é conectada àquela que tinha sido dada anteriormente, mas também é realçada e desenvolvida poste-riormente. Consequentemente, é muito importante que entenda-mos as características dessa nova revelação. Ela é muito importan-te porque a revelação dada a Abraão constituiu a essência da religião de Israel.

Em nossos dias, muitas pessoas têm obstruido o caminho para um correto entendimento da essência da religião de Israel. Em primeiro lugar, eles se recusam a dar ao período dos patriarcas um valor histórico e consideram Abraão, Isaque, Jacó e outros pa-triarcas como semideuses ou heróis, como, por exemplo, aqueles que são celebrados na Ilíada de Homero. Em segundo lugar eles consideram que a religião de Israel teve sua origem em uma for-ma pagã de religião, como o animismo, fetichismo, culto aos ancestrais, policiemunismo, ou politeísmo. E, em terceiro lugar, eles tentam mostrar que a essência da religião de Israel, como veio

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a ser no tempo dos profetas, particularmente no oitavo século an-tes de Cristo, consistiu de uma ética monoteísta, quer dizer, o reco-nhecimento de um Deus que é onipotente mas também é um ser justo e bom.

Essa moderna concepção do Velho Testamento deve ser consi-derada um esforço para explicar toda a religião de Israel e de ou-

tros povos sobre bases puramente naturais, como um pequeno e

gradual desenvolvimento acontecendo sem uma revelação especi-

al. Contudo, toda a Escritura se opõe a esse ponto de vista e pune a

moderna concepção, através do fracasso em seus esforços para

entender, tanto a origem quanto a natureza da religião de Israel.

Não é por esse caminho que a origem da religião de Israel pode

ser encontrada. Não é verdade que os profetas apresentavam a

cada momento um deus diferente. Eles sempre pregaram a pala-

vra em nome do mesmo Deus, que é o Deus de Abraão, Isaque e Jacó, o

Deus de seus pais, o Deus de Israel, e a quem os povos são obri-

gados, por meio dos termos do pacto, a servir e cultuar. Muitos

que sentem o peso dessa consideração voltam dos profetas para

Moisés e referem-se a ele como o real fundador da religião de Isra-

el. Mas Moisés também não apareceu, e não podia aparecer, em

nome de um deus estranho, desconhecido. Se isso tivesse aconte-

cido ele não teria encontrado uma reação favorável por parte do

povo. Em vez disso ele se acomodou ao povo e à sua história e con-

vocou-o para o êxodo do Egito em nome e sob ordens daquele Deus

que era o Deus Fiel, que tinha firmado um pacto com os patriarcas

e que veio cumprir Sua promessa.Nós temos que voltar a esse período se quisermos entender a

essência e a natureza da religião de Israel. Essa essência certamen-te não se encontra na assim chamada ética monoteísta. De fato, a religião de Israel também inclui esse elemento, que sustenta ser Deus onipotente, justo e santo, mas a religião de Israel não é ca-racterizada por isso de forma definitiva. Esse elemento é a sua base, e não seu conteúdo. O coração e o centro da religião de Israel é esse: que Deus, que é um, eterno, justo e santo, obrigou-se, pelo pacto, a ser o Deus de Israel.

Foi assim que Paulo entendeu a religião de Israel. Em Romanos 4 (texto como qual Gálatas 5.5 ss. deve ser comparado), Paulo pergunta qual é a

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dádiva característica que Abraão recebeu de Deus. Baseado em Gênesis 15.6 ele responde a essa pergunta dizendo que a dádiva característica que Abraão recebeu de Deus está não nas obras, mas na justiça da fé ou, em outras palavras, na Graça do perdão de pecados, no imerecido favor de Deus. Davi considerou o perdão de pecados como a maior bênção do pecador.

O apóstolo Paulo também argumenta que essa grande dádi-

va da Graça não foi dada a Abraão quando ele estava sob a circunci-são, mas quando era ainda incircunciso (Gn 15.6), e que a instituição da circuncisão, que aconteceu quatorze anos depois (Gn 17), presumiu a justiça da fé e serviu como um sinal e selo dela. Conseqüentemente o perdão de pecados, e também toda a obra da salvação, é independente da lei e de suas demandas. O mesmo pode ser dito sobre o alcance universal desse favor: ele não é pela lei, mas muito antes da lei e independente da lei a promessa veio a Abraão assegurando que ele seria o pai de muitas nações e que her-daria o mundo.

Todo o argumento do apóstolo Paulo se baseia na própria história do Velho Testamento. O pano de fundo dessa história é esse: não o que Abraão sabe sobre Deus e faz para Deus, mas o que Deus dá a Abraão. Em primeiro lugar, é Deus quem procura Abraão, e o chama, e o envia a Canaã. Segundo, é Deus quem promete que será o Deus de Abraão e de sua descendência. Terceiro, Deus promete a Abraão que, apesar de tudo indicar o con-trário, ele terá uma posteridade, será pai de uma grande nação, e que essa nação terá Canaã como sua herança. Quarto, Deus diz que em sua posteridade Abraão seráuma bênção para todas as nações da terra. E, por último, Deus faz essa promessa no contexto do pacto, sela-a com o sinal da circunci-são e, depois da prova de fé de Abraão, confirma-a com juramen-to'.

Todas essas promessas juntas constituem o conteúdo da re-velação de Deus a Abraão. O núcleo de todas elas é a grande e única promessa: "Eu serei o teu Deus e o Deus da tua descendên-cia". Essas promessas se estendem do povo e da terra de Israel até Cristo, e em Cristo a toda a raça humana e a todo o mundo (Rm 4.11 ss.). Não a lei, mas o Evangelho; não as exigências, mas a pro-messa; esse é o núcleo da revelação. E, pelo lado humano, o cor-respondente da fé é a conduta ou o andar pela fé (Rm 4.16-22; Hb 11.8-21). A promessa não pode ser nossa a não ser pela fé, e a fé se expressa em uma conduta justa (Gn 17.1). Abraão é o exemplo de uma fé que crê, Isaque é o exemplo de uma fé submissa e Jacó, de uma fé que luta.

É na história dos patriarcas que a natureza e o chamado do

povo de Israel nos são apresentados. Enquanto as nações da terra

estão andando em seus próprios caminhos e desenvolvendo o que

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foi dado através da revelação geral, um ato criativo de Deus

Gn 18.10; Dt 32.6; Is 51.1,2) fez um povo nascer de Abraão. Assim como

ele, esse povo também deve viver pela fé, deve reconhecer que

deve a terra de sua herança não à sua própria força, mas à Graça de

Deus. Esse povo só pode alcançar uma influência abençoada sobre

os povos ao seu redor quando, como Isaque, fielmente relembra a

promessa da salvação do Senhor, e apenas quando, como Jacó,

fortemente se atém ao cumprimento da promessa. Nenhum cálculo

ou deliberação humana pode promover o cumprimento dessa

promessa, e muito menos a fraqueza e os pecados humanos po-

dem impedir esse cumprimento, pois Deus é aquele que dá e que

cumpre a promessa. Até mesmo quando Ele pune o pecado Ele

cumpre Seu propósito. E Israel, assim como Jacó, só usufrui dessa

promessa e bênção do Senhor quando, refinado pelo sofrimento,

com sua força quebrada, ele alcança a vitória através da luta de fé e

oração. "Eu não te deixarei ir, se me não abençoares" (Gn 32.26; Os

12.4)

Nessa promessa encontra-se o conteúdo de toda a revelação que lhe sucedeu no Velho Testamento. Ela é elaborada, é claro, e desenvolvida. E essa promessa também contém o núcleo e a es-

sência da religião de Israel. De fato, a conclusão do pacto do Sinai e a dispensação da lei que Deus instituiu então, marca o começo de uma nova época. Mas em vez de entender a natureza da religião de Israel e a economia do Velho Testamento nós devemos ser profun-damente marcados pela convicção de que a promessa, previamente dada a Abraão, não foi destruída pela dispensação da lei.

Aqui novamente recorremos ao ensino do apóstolo Paulo.Em Gaiatas 3.15 ss. Paulo compara a promessa feita a Abraão e à

sua descendência com um contrato, ou melhor, com um testamento que, depois de confirmado, não pode ser anulado. O mesmo acontece com a promessa de Deus a Abraão e com todas as bênçãos nela contidas. A promes-sa é um ato livre de Deus. Ela foi pronunciada e feita por Deus a Abraão e à sua descendência, e portanto deve, em algum momento, em virtude da direção de Deus, ser colocada nas mãos dessa descendência. Nem todos os descendentes de Abraão segundo a carne fazem parte da sua posteridade favorecida pela promessa. Seus descendentes através de Hagar e Quetura (Gn 17.20; 25.2) não estão incluídos nessa promessa, pois a Escritura não fala de "descendências`, isto é, de muitas gerações e povos, mas de apenas uma semente, uma descendência, o povo que nasceria do filho da promessa, de Isaque, e do qual nasceria Cristo, o descendente preeminente.

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Quando Deus estendeu a salvação a Abraão e à sua descendência como promessa na forma de um testamento, essa ação subentende que essa salvação algum dia pertenceu a Cristo, que foi Sua propriedade e possessão, e que seria dada por Ele à Igreja reunida de todas as partes do mundo. Conseqüentemente a promessa dada a Abraão na forma de um testamento, isto é, sem dependência de qualquer condição humana, baseada somente na soberana dispensação de Deus, não pode ser anulada por uma lei suple-mentar posterior. Se isso tivesse acontecido, Deus teria aniquilado Sua promessa, Sua própria dádiva, Seu próprio testamento, e Seu próprio juramento.

Há somente duas possibilidades: Ou nós recebemos os benefícios incluídos na promessa estando dentro da promessa ou recebemos esses benefícios estando dentro da lei, pela Graça ou pelo mérito, pela fé ou pelas obras. É certo que Abraão recebeu a justiça da fé pela promessa, até mesmo antes da circuncisão ser instituída; que os israelitas no tempo dos patriarcas, e no Egito, por centenas de anos receberam os mesmos benefícios somente em virtude da promessa, pois a lei ainda

não tinha sido dada; e que Deus deu a promessa a Abraão e à sua descendência e nela incluiu Cristo, que a estendeu a toda a raça humana, e que Deus, portanto, deu-a como um pacto eterno, confirmado com um precioso juramento (GI 3.17; Hb 6.13 ss.). Se tudo isso é verdade, então é im-possível que a lei, que Deus deu a Israel em uma data posterior, tenha abolido Sua promessa.

Se isso realmente é assim, então, a questão se torna ainda mais importante: Por que Deus deu a lei a Israel? Em outras palavras, qual é o significado e a importância da dispensação do pac-to da Graça que começa com a lei, e qual é a natureza ou essência d a religião de Israel? Essa questão foi importante nos dias de Paulo e não é menos importante em nossos dias.

Havia algumas pessoas no tempo dos apóstolos que procuravam a essência da religião de Israel na lei, e que por isso exigiam que os gentios viessem a Cristo pelo mesmo caminho de Israel, ou seja, pela circuncisão e a observância da lei.

E havia outros que desprezavam a lei, que atribuíam a lei a um deus inferior, e que consideravam-na como representante de uma posição religiosa inferior. Onomismo e o antinomismo representavam posições diametralmente opostas.

Em nossos dias as mesmas atitudes estão

presentes, apesar dos nomes dados e das formas

assumidas serem diferentes. Alguns encontram a

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essência da religião de Israel no monismo ético, ou

seja, no reconhecimento de que Deus é um Deus santo

que exige apenas que nós obedeçamos Suas ordens;

esses encontram a essência do Cristianismo da

mesma forma, e assim a distinção entre Israel e a

Igreja é perdida: os judeus iluminados e os cristãos

iluminados confessam a mesma religião. Outros,

porém, desprezam a responsabilidade da liberdade

espiritual sobre a base estreita e melindrosa do

legalismo judaico; esses não enxergam ideal mais

elevado do que emancipar a raça humana das mãos

dos judeus. Eles seguem a pista de todo o mal até o

judaísmo, e procuram todo o bem na raça indo-

européia. Os espíritos semita e anti-semita se opõem

um ao outro, e, como extremos, geralmente se

encontram no mesmo erro.

Para Paulo, o problema do significado e da

intenção da lei era tão importante, que ele tratou desse

assunto várias vezes, em suas cartas. Sua solução

para esse pro

adicionado à promessa, algo que veio depois

dela e que não estava originalmente ligada a ela. A

lei foi dada muitos anos depois da promessa, e

quando ela foi dada, tinha um caráter temporário e

transitório. Apesar da promessa, ou do pacto da

Graça ser eterno, a lei só teria validade até que o ver-

dadeiro descendente de Abraão, que é Cristo,

aparecesse, pois nEle a promessa foi cumprida e Ele

recebeu o seu conteúdo e o distribuiu (Rm S. 20;

G13.17-19).

Segundo, esse caráter temporário e transitório

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da lei é expresso em sua própria origem. É verdade

que a lei tem sua origem em Deus, mas Ele não a

deu direta e imediatamente ao povo e a cada

indivíduo desse povo. Todos os tipos de dispositivos

de mediação estiveram presentes. Da parte de Deus,

a lei f oi dada por meio de anjos, em meio a trovões e

relâmpagos, em uma nuvem escura, e com a voz de

uma trombeta". E da parte do povo, que estava cheio

de temor, e que tinha que permanecer ao pé da

montanha, Moisés foi chamado para servir como

mediador, para falar com Deus e receber a lei". Com

a promessa não foi assim. A promessa não foi

transmitida por anjos, mas

pelo próprio Filho de Deus. E, de nossa parte, nenhum mediador foi designado para nos representar e aceitar a promessa por nós. Em Cristo todos os crentes vêm pessoalmente usufruir da promessa (Jo 1.17; GI 3.22,26).

Terceiro, visto que a lei vem de Deus, ela é justa, santa, boa e espiritual; Ela não provoca o pecado, apesar de ser usada pelo pecado para despertar a concupiscência. De fato, a lei em si mesma não é desprovida de energia e for-ça, pois é a lei da vida; o que carece de energia e força é o homem, pois ele é carne pecaminosa. Mas mesmo diante dessas considerações não podemos negar que a lei difere da promessa não meramente em grau, mas em espécie. De fato, ela não é oposta à promessa, nem entra em conflito com ela, mas ela não pertence à promessa da fé. Portanto a lei não pode ter sido dada para revogar a promessa. Sendo diferente da promessa em sua natureza, a lei tem um propósito diferente12

Quarto, esse propósito especial que é próprio da lei e pelo qual Deus deu a lei tem um caráter duplo. Em primeiro lugar, ela foi acrescentada à promessa por causa das transgressões (G13.19), isto é, para fazer com que a transgres-são fosse mais grave. De fato, havia pecado antes da entrega da lei

Rm 15. 12,13), mas esse pecado era diferente. Ele não era uma "transgressão" no sentido em que Paulo faz distinção entre ela e o pecado em geral. Porém, como em Adão, que recebeu uma ordem de cuja obediência dependia sua vida (Rm 5.12-14), assim também em Israel, que herdaria a vida ou a morte pela obediência ou pela desobediência, o pecado assume um caráter diferente.

Esse pecado, sendo cometido contra a lei à qual a vida e a morte estão ligadas, torna-se uma "transgressão". Ele assume o caráter de um pacto quebrado, uma colocação de si mesmo fora e contra o peculiar relacionamento que Deus tinha estabelecido em Seu pacto de obras com Adão e em Seu pacto sinaffico com Israel. Onde não há lei também não há transgressão (Rm 4.15). Os pecados dos gentios certamente são pecados, mas eles não são uma quebra do pacto como são para Israel; e não possuindo uma lei semelhante à que Deus deu a Israel, os gentios são condenados também sem lei (Rm 2.12).

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Em Israel, os pecados se tornaram transgressões, exatamente porque o povo recebeu a lei de Deus que estava acompanhada pela promessa de vida ou morte. Portanto, foi a lei que fez com que

isso fosse possível. Dessa forma

Pauto pôde dizer que a lei do Sinai, apesar de ser santa e não provocar o pecado, foi acrescentada à promessa para aumentaras "transgressões", isto é, a força do pecado, e despertar o desejo, e que esse pecado, através do mandamento, se toma uma transgressão, e que sem a lei o pecado está adormecido, e que a lei faz aumentar a ofensa - ofensa, isto é, não no sentido do pecado em geral, mas no sentido daqueles pecados especiais que são da natureza de um erro, queda, ou de rompimento do pacto". Mas tendo em vista que a lei carrega tudo isso em sua esteira, ela também provoca ira, isto é, ela ameaça a punição divina, pronuncia julgamento sobre todos os homens e sobre todas as suas obras, não justifica o pecador e coloca todos os pecadores debaixo de maldição, sujeitando todos à ira de Deus". Portanto, se no Velho Testamento há pessoas que receberam o perdão de pecados e a vida eterna, eles devem isso à promessa, e não à lei.

Contudo, em conexão com esse propósito negativo, o aumento das transgressões e a agravação do julgamento, a lei também possui um sentido positivo, pois, precisamente por dar ao pecado o caráter de transgressão, de quebra do pacto, de incredulidade, preci

samente por fazer do pecado o desejo secreto do coração, e portanto fazer com que o pecador seja merecedor da ira de Deus e da maldição da morte (Rm 3.20; 7.7; 1Co 15.56) - precisamente por fazer isso a lei torna mais clara a necessidade da promessa e prova que se a justificação do pecador é possível, alguma outra justiça além daquela baseada na lei e nas obras da lei tem que ser colocada à sua disposição (G13.11), Em vez de ser oposta à promessa, a lei serve precisamente como um meio nas mãos de Deus para trazer a promessa constantemente para mais perto de seu cumprimento. A lei colocou Israel sob restrições, como um prisioneiro é colocado sob restrições em detrimento de sua liberdade de movimento. Como um pedagogo, a lei tomou Israel pela mão acompanhando-o sempre e em todo lugar e nunca nem por um momento perdeu-o de vista. Como um guardião e como um torcedor a lei manteve uma vigilância rigorosa sobre Israel para que aprendesse a conhecer e a amar a promessa e sua necessidade e em sua glória. Podemos dizer que, sem a lei, a promessa e seu cumprimento não teriam utilidade. Israel rapidamente teria voltado ao paganismo e teria perdido tanto a revelação de Deusquanto Sua promessa, tanto sua religião quanto seu lugar entre as nações. Mas a lei cercou Israel, separou-o, conservou-o isolado, guardou-o contra a dissolução, e assim criou uma área, uma esfera definida na qual Deus pôde preservar Sua promessa, dar-lhe um alcance mais amplo, desenvolvê-la, aumentá-la e trazê-la sempre cada vez mais para perto de seu cumprimento. A lei foi útil ao cumprimento da promessa. Ela colocou todos sob a ira de Deus e sob a sentença de morte, ela colocou todos dentro dos domínios do pecado, para que a promessa, dada a Abraão e cumprida em Cristo, fosse dada a todos os crentes e que todos eles entrassem em sua herança

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como crianças (GI 3.21; 4.7).

Quando nós olhamos pela perspectiva do

apóstolo Paulo nós obtemos um panorama maravi-

lhoso da revelação de Deus no Velho Testamento,

da religião de Israel, do significado da lei, de história e

de profecia, dos salmos e dos livros de sabedoria.

C o m o s u r g i m e n t o d e Moisés a revelação de Deus e a história de Israel entram em um novo período. Mas assim como a revelação dada a Abraão não revogou as comunicações anteriores de Deus, mas deu continuidade aelas, assim também a dispensação da Graça de Deus sob a lei dá con-tinuidade à dispensação da Graça de Deus antes da lei. A lei, que foi acrescentada à promessa, não a inutiliza nem a destrói, mas dá-lhe o necessário impulso para que se desenvolva e alcance seu cumpri-mento. A promessa é principal; a lei é subordinada. A primeira é o objetivo; a segunda é o meio. O núcleo da revelação de Deus e da religião de Deus não está na lei, mas na promessa. E por essa pro-messa ser uma promessa de Deus, ela não é um som surdo, mas uma palavra cheia de poder, que é a expressão de uma vontade inclinada a realizar todos os prazeres de Deus (SI 33.9; Is 55.11). Portanto essa promessa é a mola mestra da história de Israel até alcançar seu cumprimento em Cristo.De acordo com Isaías 29.22, Abraão foi redimido da terra dos caldeus pelo chamado de Deus, e depois que, pela livre dispensação de Deus ele recebeu a promessa do pacto, Israel foi enviado por Deus ao Egito e ali tornou-se escravo de Faraó para depois disso ser redimido de sua miséria e como um povo ingressar no pacto de Deus no monte Sinai. Esses três eventos, a escravidão no Egito, a libertação dessa escravidão pela mão forte e pelo braço estendido de Deus, e a conclusão do pacto no Sinai são a fundação da história de Israel e os pilares se-

bre os quais repousa sua religião e sua ética. Esses são eventos vivos na memória de Israel de geração a geração, são constantemente mencionados nas histórias, na salmódia e na profecia, e não pode, nem mesmo pelo mais radical criticismo, ser negada a sua historicidade.

Além disso esses eventos significativos fornecem provas de que a lei não foi dada, e não podia ter sido dada, para anular a promessa. Pelo contrário, quando Deus aparece a Moisés na sarça ardente, chamando-o para o seu ofício, não é um Deus estranho e desconhecido que aparece, mas o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó, o Deus que tem visto a opressão de Seu povo, e ouvido seu clamor e que, por ser o Senhor, o Fiel, agora dispõe-se a cumprir Sua promessa e a resgatar Seu povo da miséria da escravidão (Ex 3.6 ss.). Israel não se tornou o povo de Deus nas proximidades do Horebe, nem foi aceito como Seu povo com base na lei. Israel, na época de sua

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libertação do Egito, já era o povo de Deus em virtude de Sua promessa, e em virtude dessa mesma promessa Israel foi redimido de sua miséria. Miséria e redenção precedem a entrega da lei no Sinai. E assim como Abraão foi redimido em seu chamado e recebeu a promessa de Deus em uma fé inocente, e em termos dessa promessa levou uma

vida santa diante da face de Deus (Gn 17.1), assim também Israel, tendo sido liberto da escravidão pelo braço forte de Deus, é admoestado e limitado por Deus no Sinai a uma nova obediência. A lei que veio ao povo por meio de Moisés era uma lei de gratidão; ela veio na esteira da redenção e assumiu e restaurou a promessa. Em Sua força Deus guiou Seu povo à santa habitação de sua glória (Ex 15.13). Ele levou Seu povo sobre asas de águia , trazendo-o a Si (Ex 19.4; Dt 32.11,12). Por isso a lei foi introduzida com o preâmbulo: "Eu sou o Senhor, teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão (Ex 20.2; Dt 5.6).

Mas esse relacionamento pactuai agora exige uma ordem mais específica de obediência.No período patriarcal, quando umas poucas famílias viviam na bênção da promessa de Abraão, não havia necessidade de uma regulamentação mais específica; e no Egito, quando o povo estava sob o domínio egípcio, não havia oportunidade para isso. Mas agora Israel era redimido; tornou-se um povo livre e independente vivendo em sua própria terra. Se nessas circunstancias ele permanecesse como um povo, uma nação de Deus, o pacto da Graça teria que ser estabelecido na forma de um pacto nacional, e a promessa, em vez de se manter e de se desenvolver sozinha, teria

que fazer uso do auxílio da lei.

Isso era ainda mais necessário porque Israel – como Paulo diz –era ainda uma criança. Israel tinha tido um aprendizado difícil no Egito, e tinha adquirido, pela sua experiência de escravidão, um profundo senso de dependência, uma profunda consciência de necessidade de ajuda e suporte. Mas Israel não estava imediatamente pronto para a independência. Toda a sabedoria e mansidão de Moisés era necessária (Nm 12.3) para providenciar a liderança indispensável para um povo nessas condições, tanto na saída do Egito quanto na peregrinação pelo deserto. Várias vezes esse povo é chamado de povo de dura cerviz porque não cumpria as ordens de Deus (Ex 32.9; 33.3; 34.9; Dt 9.6). No deserto e, posteriormente, em Cancã, Israel constantemente mostrou sua natureza infantil. Esse não era um povo racional e razoável; ele precisava adquirir consciência de si mesmo, espírito investigativo, mente filosófica e o poder do pensamento abstrato. Conseqüentemente, esse era um povo de sentimento e emoção.Conseqüentemente Israel era um povo muito receptivo a todos os tipos de influencias, suscetível aos sentimentos do mundo, e, portanto, muito inclinado a influências terrenas e celestiais; para isso eles foram formados pelo próprio Deus para serem os guardiães de Sua revelação. Esse lado do caráter israelita nos confronta nas Escrituras em todos aqueles homens e mulheres de Deus que, honrados com a chamada do Senhor, têm apenas uma humilde e sincera resposta: "Aqui estou eu, fala, Senhor, pois teu servo, tua criatura, ouve – seja feito conforme a tua palavra!" Eles aceitavam a palavra do Senhor e conservavam-na em seu coração. Pelo outro lado, Israel era, como

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vemos em Ex 32.8, "disposto a voltar rapidamente pelo caminho", inclinado a extraviar-se, instável, caprichoso, temperamental, teimoso, facilmente desviado por alguma pessoa ou incidente, passional, capaz de alimentar um ódio ardente e de amar com um amor profundo, suave, semelhante ao amor materno; em um momento sofrendo com a morte e no momento seguinte saltando aos céus de alegria; nunca tendo a calma ocidental, mas sempre ardendo com a paixão oriental: gosta de comidas temperadas com alho e cebola (Nm 11.5), de lentilhas (Gn 25.34) e carne (Gn 27.14 ss.), gosta de cores brilhantes, lindas roupas, perfumes e pedras preciosas (Js 7.21; Is 3.18 ss.), e de tudo que brilha sob o sol. Da Costa e Heine são filhos de Israel.

Tal povo tinha que ser colocado sob a guarda e a disciplina da lei se quisesse conservar seu chamado através da promessapara ser uma bênção a todas as gerações da terra. E a natureza da lei corresponde à necessidade de Israel.

Em primeiro lugar, a lei não teve sua origem na promessa ou na fé, mas foi acrescentada à promessa, e serve não para anular a promessa, mas para pavimentar o caminho para o seu cumprimento. Nos tempos modernos há muitos que tentam reverter os papéis da lei e da promessa. Eles falam não da lei e dos profetas, mas dos profetas e da lei, e dizem que a lei nos livros de Moisés só veio séculos depois dele e estendeu-se até depois do exílio. Nessa interpretação pode-se reconhecer muito de bom que estava acrescentado na lei, que era a coisa principal da revelação de Deus e na religião de Israel. A promessa precedeu a lei, ocupou o lugar mais elevado, e a lei foi o meio usado para que isso fosse possível. Portanto, é bem possível que a lei de Moisés tenha sido revisada posteriormente por editores secundários ou terciários, e que tenha sido dessa forma e n r i q u e c i d a p o r m e i o d e interpolações ou adendos inseridos por causa das circunstâncias de seu tempo. A lei tinha em sua totalidade um caráter temporal e transitório. Já no livro de Deuteronômio Moisés tinha modificado vários pontos. Contudo, o ponto de vista sugerido acima, de que os profetas precederam a

lei, corre contra todos os fatos, contra a natureza da lei, contra a natureza e função da profecia, e também contra a voz da razão. Certamente, não pode haver disputa sobre o fato de que Israel tinha seu templo, sacerdotes, sacri-fícios e coisas semelhantes muito tempo antes do oitavo século antes de Cristo, e que por causa disso muitas leis e regulamentações para a vida social e política eram necessárias. Uma religião sem culto e sem ritual e regulamentação é inconcebível em qualquer lugar, particularmente na antigüidade e em Israel. Além disso, a objeção de que não há lugar para uma lei escrita com um conteúdo tão rico, como está registrado de Êxodo a Deuteronômio, no tempo de Moisés, perdeu toda a sua força com a descoberta da lei de Hamurabi, um homem que viveu 2.250 anos antes de Cristo e que reinou sobre Babel durante emquenta e cinco anos.

Em segundo lugar, o conteúdo da lei está em pleno acordo com o propósito que Deus lhe deu. Em vez de determinar seu mérito, nós vamos compará-la com as leis que estão em vigor em estados cristãos hoje, pois mesmo que a lei de Moisés, especialmente em seus princípios, continue sendo importante ainda hoje, nós sabemos que Deus concebeu-a como uma constituição temporária, e que na plenitude do tempo, quan-

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do a promessa alcançou seu cumprimento, a lei foi colocada de lado por causa de sua fraqueza e inutilidade.Da mesma forma, a comparação da lei de Israel com a lei dos povos antigos, de Babel, por exemplo, não pode servir como critério de julgamento. É claro que tal comparação tem sua utilidade, chama nossa atenção para todos os tipos de pontos de similaridade e diferença, e assim pode ajudar-nos a entender melhor a lei mosaica e algumas circunstâncias. Mas Israel era um povo particular, separado por Deus, e tinha seu próprio destino, que era o de ser guardião da promessa. Portanto, Israel tinha que viver seu próprio tipo de vida e também tinha que ter uma perspectiva de seu propósito.Olhando para a lei do Senhor dada a Israel desse ponto de vista, nós podemos distinguir as seguintes características:Primeira: É uma lei completamente religiosa. Não apenas em algumas partes, como naquelas que regulam o culto público, por exemplo, mas em sua totalidade, ou seja, em suas prescrições éticas, cívicas, sociais e políticas, ela também é religiosa. Acima de toda a lei estão as palavras: "Eu sou o Senhor, teu Deus, que te tirei da terra da escravidão". A lei não está baseada em um monoteísmo abstrato, mas sobre um relaciona-mento histórico entre Deus e Seu povo, um relacionamento criado pelo próprio Deus. Essa é uma lei pactuai e regula a vida de Israel de acordo com as exigências da promessa. Deus é o legislador de todos esses mandamentos, e por isso todos eles devem ser cumpridos. Toda a lei é permeada pelo pensamento: Deus primeiro amou você, procurou por você, redimiu você, inseriu você em seu pacto; portanto você agora deve amar o Senhor, seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma, e de toda a sua força (Dt 6.5; 10.12). Esse é o primeiro grande mandamento (Mt 22.37,38).

Segunda: É uma lei completamente moral. Geralmente se fala de três partes distintas na lei: a lei moral, a lei civil e a lei cerimonial. Essa é uma boa classificação. Mas ao fazer essa distinção nós não podemos nos esquecer de que toda a lei é inspirada e sustentada por princípios morais. A aplicação desses princípios morais a casos particulares costuma ser diferente da aplicação que nós faríamos hoje. O próprio Jesus disse que Moisés permitiu aos homens lavrar carta de divórcio para suas esposas por causa da dureza do coração deles (Mt 19.8). Mas o espírito que permeia a lei mosaica é o espírito de amor. Amarás o teu próximo como a ti mesmo (Lv 19.18). Esse é o segundo mandamento, semelhante ao primeiro

Mt 22.39) e o cumprimento de toda a lei". Esse amor deve ser expresso ao fraco e oprimido, ao pobre, ao estrangeiro, às viúvas, aos órfãos, aos servos, aos prisioneiros, aos surdos, aos cegos, aos idosos e outras pessoas semelhan-tes. Nenhuma outra lei que a antigüidade apresenta é assim. Tem sido corretamente dito que o código moral de Israel foi escrito do ponto de vista do oprimido. Israel nunca se esqueceu de que tinha sido estrangeiro e escravo no Egito.Terceira: A lei de Israel é uma lei santa, e essa característica não é restrita àquela parte da lei que é especificamente chamada de lei de santidade (Lv 17-26). Não há lei na antigüidade que trate o pecado tão profundamente como pecado. Esse pecado recebe vários nomes. Ele é chamado de ofensa, culpa, desvio, rebelião e, em última análise, é sempre considerado como sendo cometido

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contra Deus, contra o Deus do pacto. Portanto o pecado sempre tem o caráter de transgressão, de quebra do pacto. Todavia há perdão para todos esses pecados, mas não no sentido de que Israel possa alcançar esse perdão por suas boas obras ou por seus sacrifícios. O perdão vem pela promessa; ele é um benefício não da lei, mas do Evangelho; elenão é obtido através dos sacrifícios, mas recebido em humildade pela fé".

Mas os mesmos textos que declaram tão poderosamente a livre Graça de Deus são notáveis por acrescentar imediatamente que Deus não passará por alto a culpa, mas que visitará a iniqüidade dos pais nos filhos até a ter-ceira e quarta geração. Uma afirmação não entra em conflito com outra. Precisamente porque Deus perdoa os pecados de Seu povo pela Sua Graça através da promessa, Ele deseja que esse povo, tendo recebido tão grande Graça, ande no caminho do pacto. E se Israel não anda nesse caminho, Deus, de acordo com a natureza do pecado cometido, impetra uma das três maldições. Em alguns momentos a lei, através dos sacrifícios, abre a possibilidade de reconciliação. Isso acontece quando a ofensa não tem conseqüências civis. Quando a ofensa tem conseqüências civis a lei determina a imposição de uma penalidade civil que, em alguns casos, pode chegar à morte. E em um grande número de casos Deus retém Seu juizo por algum tempo e depois vem ao povo com Seu julgamento através de pestilência, exílio e coisas semelhantes. E esses três tipos de punição que Deus reserva para

Seu povo no caso de alguma transgressão não anulam a promessa, mas são apenas meios pelos quais Deus cumpre Sua promessa e evita que o povo se entregue à incredulidade mesmo em dias de apostasia e ofensa.

De todas as gerações da terra, o Senhor escolheu apenas Israel; todavia Ele pune todas as iniqüidades de Seu povo.

Quarta: Finalmente, a lei mosaica é também uma lei de liberdade. Ela tanto assume quanto garante uma larga margem de liberdade. Isso se toma aparente imediatamente quando o povo, de sua parte, voluntariamente aceita o pacto de Deus e voluntariamente se submete à Sua lei. Deus não impõe a Si mesmo e ao Seu pacto sobre Seu povo, Ele o convida a uma aceitação voluntária 17. Além disso, a lei não interfere em direitos e relações já existentes, ela apenas os assume e os reconhece. Antes da entrega da lei no Sinai e depois dela, Israel já estava mais ou menos organizado. Ele estava, por exemplo, genealogicamente dividido em casas, famílias (grupo de casas), gerações e tribos e estava organizado de forma patriarcal. Cada uma dessas quatro subdivisões do povo tinha seu líder representativo. E todos esses líderes representativos, chamados

anciãos ou príncipes, constituíam a assembléia de Israel ffs 7.14). Algumas assembléias desses anciãos tinham existido também no Egito (Ex 3.16 ss.; 4.9), e eles foram freqüentemente reunidos depois do êxodo para ouvir as palavras do Senhor (Ex 19.7), ou para apresentar propostas a Moisés (Dt 1.22,23). Além dessas assembléias de anciãos o povo de Israel tinha ainda dois tipos de oficiais: primeiro, os oficiais que tratavam de questões pertinentes à ordem civil, e que já estavam em atividade no Egito"; e, segundo, os Juizes que Moisés instituiu para ajudá-lo nas questões legais". Tanto esses juizes quanto esses oficiais tinham que ser designados em todas

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as cidades pelos anciãos.

Nessa organização do povo a casa constituía o ponto de partida e a base. Ainda hoje a casa continua ocupando a posição de ma ior honra entre os judeus. E pelo fato da casa ocupar um lugar tão importante em Israel a esposa é mais honrada em Israel do que entre outros povos antigos. A questão central nesse caso - como tem sido corretamente observado - é se o homem era considerado em Israel primariamente como um membro da família, seja marido, pai ou filho, ou primariamente como um cidadão ou guerrei-

ro. A última hipótese era verdade tanto na Grécia quanto em Roma, e o resultado disso é que a mulher foi colocada de lado e considerada como inferior. Mas em Israel o homem era considerado antes de tudo como um membro da família, e sua tarefa era antes de tudo cuidar da família. Dessa forma ele não era colocado contra ou acima da esposa, mas ao lado dela. Tanto ela quanto ele dedicavam respeito e amor aos filhos (Ex 20.2) e ela tinha o direito de merecer o louvor do marido (Pv 12.4; 31.10 ss.).

Toda essa forma de governo patriarcal-aristocrática existia em Israel antes mesmo de seu reconhecimento e confirmação pela lei. Um bom número de leis se refere ao matrimônio e serve para manter a santidade desse estado de vida e proteger a casa. Outras regulamentações protegem a forma de governo patriarcal tanto do sacerdócio quanto do reinado. Os anciãos, os oficiais e os juizes são diferenciados dos sacerdotes e dos levitas. Era apenas na mais alta corte de justiça que os sacerdotes também tinham que se sentar20, visto que uma boa explanação da lei - uma tarefa designada aos sacerdotes" - era muito importante para o peso das decisões tomadas nesse nível.

Em toda a sua vida política Israel tinha uma rígida hierarquia. Dessa forma, não havia lugar para despotismo depois da lei. Posteriormente, quando Israel desejou ter um rei e Deus lhe deu um (1Sm 8.7), esse rei não poderia reinar como os reis de outros povos; ele era limitado pela lei de Deus e ti-nha que executar Sua vontade (Dt 17.14-20). Em uma análise final, Deus era o Rei, assim como Ele também era o Legislador e o Juiz de Israe12 . Isso é expresso no fato de que, como regra geral, Ele pro-nunciava a sentença por meio dos Juízes, que tinham

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que ser estritamente imparciais em seus julga-mentos, não podiam ter consideração especial por certas pessoas, e tinham que fazer seus julgamentos somente de acordo com a norma da lei. Isso encontra expressão também no fato de que em casos especiais Ele fez Sua vontade conhecida através do Urim e Turnim, e através dos profetas. E isso encontra expressão mais fortemente ainda no fato de que no caso de muitas transgressões Ele retinha o direito de impor a punição por si mesmo. Um grande número de prescrições da lei não eram regras no sentido de que cada uma delas

assegurava uma penalidade específica no caso de violação, mas simplesmente fortes admoestações e advertências. Elas eram dirigidas à consciência e portanto davam um alto grau de liberdade a Israel. Os tipos de punições também eram limitados, consistindo principalmente de censuras físicas e, no caso de violações pesadas (blasfêmia, idolatria, feitiçaria, maldição de pais, assassinato e adultério), morte por apedrejamento. Não se menciona inquisição, incineração na estaca, detenção, exílio, confisco de propriedade, morte por enforcamento, e coisas semelhantes. Se Israel andasse no caminho do pacto, receberia as bênçãos do Senhor; mas se não obedecesse Sua voz, seria visitado com Sua maldição e receberia todos os tipos de calamidade (Dt 28.29).O propósito de Deus ao dar a lei a Israel torna-se evidente a partir dessas características da lei. O Senhor define esse propósito quando, na conclusão do pacto do Sinai, Ele diz a Moisés para falar ao povo de Israel que se o povo ouvir Sua voz e conservar o pacto, ele será propriedade peculiar de Deus dentre todos os povos, um reino de sacerdotes e nação santa (Ex 19.5,6). Por ser a nação escolhida por Deus dentre todos os povos da terra Israel deve firmar-se no caminho do pacto. Israel não foi escolhido por seus

méritos, mas pelo soberano amor de Deus e Seu juramento aos seus pais (Dt 7.6-8). E Israel não recebeu esse gracioso privilégio para desprezar as outras nações e se exaltar sobre elas, mas para ser um reino de sacerdotes, cuja tarefa sacerdotal se estende às nações para trazê-las ao conhecimento e serviço de Deus, e somente dessa forma reinar sobre elas. Israel só poderá cumprir esse chamado se for uma nação santa, se for um povo inteiramente consagrado ao Senhor, ouvir Sua voz e andar no caminho do pacto.

Essa santidade para a qual Israel foi chamado não alcancou seu cumprimento total no sentido profundo que a santidade recebe no Novo Testamento. Ela compreende não apenas a santidade moral, mas torna-se especialmente claro da lei de santidade em Levítico 17.26 que ela inclui também a santidade cerimonial. O que nós devemos observar é que as partes moral e cerimonial da lei não estão colocadas uma contra a outra. Elas são os dois lados da mesma moeda. Israel é um povo santo quando, tanto interna quanto

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externamente, em fé e conduta, vive de acordo com a lei moral, social e cerimonial entregue ao povo no Sinai. E se esse povo -como o Senhor sabe - por causa de sua incredulidade não puder cumprir esse chamado, e no decorrer de sua história tornar-se culpado de desobediência e afastar-se do pacto, o Senhor certamente visitará o povo com punições mais pesadas do que qualquer outra nação do mundo rece-beria. Somente ao fim dessas punições o Senhor se voltaria para Seu povo e teria compaixão dele, circuncidaria seus corações e os corações de seus filhos para que amassem o Senhor seu Deus com todo o seu coração e com toda a sua alma (Dt 4.29-31; 30.1 ss.). Ele não pode deixar que Seu povo siga seus próprios caminhos porque Ele zela pelo Seu próprio nome e por Sua honra contra Seus inimigos (Dt 32.26 ss.). A despeito da incredulidade de Israel e apesar dela o Senhor deve estabelecer Sua própria credulidade, a integridade de Sua palavra, a imutabilidade de Seu conselho, e a estabilidade de Seu pacto. Ele deve demonstra r que é Deus e que não há outro Deus além dEle (Dt 32.39). Dessa forma a lei termina na promessa, assim como começou nela. Ela retorna ao seu ponto de partida.

Do ponto de vista da Escritura o pacto abrange toda a história de Israel. O propósito da Escritura nos livros históricos do Velho Testamento não é apresentar um exaustivo e unificado re

gistro de todos os acontecimentos em Israel, nem traçar a conexão entre esses eventos. O que a Escritura descreve nesses livros é o progresso do reino de Deus. Aquilo que tem pouca ou nenhuma importância para esse fim é mencionado brevemente ou totalmente ignorado. Da mesma forma ela se demora sobre aquilo que tem importância para esse reino. No relato da história de Israel a Escritura quer nos ensinar quem e o que Deus é para Seu povo. É com certa propriedade, portanto, que os escritos históricos de Israel na Escritura têm sido chamados de diário ou agenda de Deus. Como em um diário, Deus faz um registro a cada dia para mostrar o que têm sido Seus cuidados e Suas experiências para Israel.

Anteriormente, quando o povo ainda vivia sob o impacto das poderosas obras de Deus, ele permanecia crendo em Sua lei. Por tais atos o Senhor havia provado de forma incontestável que Ele é

· único Deus (Ex 6.6; 18.18) e que· povo nem devia pensar em outros deuses. Quando o povo ouvia a palavra do Senhor no monte através de Moisés, todo o povo respondia a uma só voz: `Tudo o que o Senhor disser nós faremos"". Mais tarde, quando Israel recebeu a terra de Canaã por herança e foi confrontado por Josué

com a escolha de quem ele queria servir, Israel deu a mesma resposta: "Deus proibiu que nós abandonássemos o Senhor para servir outros deuses (Js 24.16 ss.; Jz 2.7).

Mas quando Josué e os anciãos do povo que tinham testemunhado os poderosos feitos de Deus morreram e levantou-se outra geração, que não

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conhecia o Senhor nem os feitos que tinha realizado em favor de Israel, o povo se afastou do Senhor, o Deus de seus pais, que os tirou do Egito, e seguiu outros deuses, os deuses das nações vizinhas & 2.6-13). De fato, Israel não produziu idolatria. Israel não criou sua própria falsa religião, apenas tomou para si os deuses pagãos ou começou a servir o Senhor na forma de imagens semelhantes às que os pagãos usavam. No Egito e no deserto o povo praticou o culto egípcio aos ídolos," Mais tarde, já na Palestina, o povo tomou-se culpado por adorar os deuses cananitas, fenícios (Baal, Astarote, Ashera), e Assírios (o fogo e as estrelas). Continuamente Israel violava o primeiro e o segundo mandamentos, e assim violava os fundamentos do pacto.

Logo no começo dos dias dos juízes, esses heróis do povo da lei, a história de Israel foi uma mistura de apostasia, punição e conseqüente temor, de um lado, e

de resgate e bênção de outro (Jz 2.11-23). Esse foi um período de confusão, durante o qual as tribos de Israel perderam a visão de na-cionalidade, cada uma se engajou em sua própria política, e todo homem fazia o que achava certo aos seus próprios olhos (Jz 17.6; 21.25). Essa situação só chegou ao fim com Samuel e a instituição do re ino . Con tudo depo i s de Salomão a unidade nacional foi totalmente quebrada e dez tribos se separaram da casa real de Davi. Jeroboão transformou essa divisão política em uma divisão religiosa ao construir um santuário em Dá, introduzindo o culto de imagens e abolindo o sacerdócio legítimo. Assim ele se tornou o rei que "fez pecar a Israel". A história do reino de Efrann durante dois séculos e meio transformou-se numa história de afastamento progres-sivo de Deus. A profecia em vão levantou sua voz, e o fim dessa história foi o cativeiro das dez tribos. Judá, de fato, foi muito mais privilegiado do que Israel, pois foi continuamente governado pela casa real de Davi, continuou com o sacerdócio legítimo e com o templo legítimo. Apesar de tudo isso e das muitas reformas realizadas por reis piedosos, a apostasia e a idolatria se espalharam também em Judá e o juízo de Deus se fez sentir. Aproximadamente 140

anos depois de Israel, Judá também foi levado cativo.

A apostasia do povo de Israel não deve nos impedir de enxergar o fato de que Deus, através dos séculos, preservou um remanescente entre eles de acordo com a eleição da Graça. Houve um grupo em Israel que permaneceu fiel ao pacto de Deus. Mesmo nos dias difíceis de Elias houve sete mil que não dobraram seus joelhos a Baal. Esses eram os piedosos, os justos, os crentes, e, como aqueles que foram mencionados nos Salmos, continuaram colocando sua confiança no Deus de Jacó e não se portaram de forma inadequada com o pacto. Eles suspiravam por Deus assim como a corsa suspira pelas correntes das águas; eles preferiram o templo de Deus a qualquer outro lugar; eles meditaram na lei de Deus e se apegaram às Suas promessas. Para

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eles a lei não era um fardo, mas um prazer; eles se alegravam nela todos os dias. Eles repetiam as palavras de Moisés e diziam que a guarda dessa lei provaria ser sabedoria e entendimento aos olhos das nações. Quando o povo ouviu as ordenanças da lei, clamou: "Verdadeiramente este é um povo sábio e entendido, pois que nação é tão grande que tenha estatutos e juizos tão justos como toda esta lei que nós hoje recebemos (Dt 4.6-8)?

À medida em que os tempos

ficavam mais carregados, mais firmemente eles se apegavam à pro-messa. Deus não abandonaria a obra de Suas mãos. Em consideração ao Seu nome e à Sua fama Ele não podia quebrar o pacto que tinha estabelecido com os ancestrais do povo de Israel. De dentro desse remanescente fiel, Deus chamou homens que, como os profetas, os salmistas e os sábios, declararam a palavra de Deus e desdobraram o significado da promessa de forma esclarecedora. Eles colocaram sua cabeça para fora das profundidades de suas calamidades. Pela luz do Espírito do Senhor eles viram o futuro e pro-fetizaram um novo dia, o dia do Senhor, do Filho de Davi, do renovo de Jessé, do Emanuel, do Carvalho de Justiça, do Servo do Senhor, do Anjo do Pacto, e da descida do Espírito Santo. O Velho Testamento começa, depois da queda, com a promessa do descendente da mulher (Gn 3.15) e termina com o anúncio da vinda do Anjo do Pacto (M13.1).

Depois do cativeiro também houve um remanescente fiel em Israel (MI 3.16). Através do cativeiro o povo, como povo, foi purgado, permanentemente limpo da idolatria e do culto a imagens, e foi colocado sob a firme disciplina da lei por Esdras e Neemias.

Isso trouxe novos perigos em sua esteira. Eles desenvolveram um escolasticismo escriturístico que perscrutava a letra da lei mas que cegava os olhos para toda a essência e espírito do velho pacto. Surgiram seitas como a dos fariseus, dos caduceus e dos essênios, que por um tratamento arbitrário da revelação divina substituíram o ensino espiritual por um ensino terreno. Todavia, também nos quatrocentos anos que decorreram entre Malaquias e João Batista, Deus continuou conduzindo Seu povo. Depois do exílio Israel nunca mais teve independência política plena. Israel passou de um domínio a outro e tomou-se sucessivamente sujeito a Pérsia e Média, Macedônia, Egito, Síria e Roma. Israel tornou-se um servo em sua própria terra (Ne 9.36,37).

Contudo essa sujeição política trouxe benefícios. Israel passou a refletir cada vez mais sobre seu próprio caráter e chamado, criou novamente orgulho de sua possessão espiritual da revelação divina e encarou-a como seu privilégio peculiar, e tomou o maior cuidado possível com a coleção e preservação dessa revelação. Essa consciência de seus privilégios espirituais

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se tornou tão real em Israel que não apenas seu caráter foi formado por ela, mas também através dela, Israel foi capaz de manter sua identidade nacional mesmo sob pesada perseguição.

Israel sofreu e foi oprimido como nenhum outro povo do mundo.

Tanto na Palestina quanto fora dela Israel continuou existindo. Em seu Velho Testamento Israel tinha um tesouro mais valioso do que toda a sabedoria dos gentios. Israel formou uma comunidade cosmopolita tendo Jerusalém como sua capital. Em suas sinagogas os israelitas ofereceram às nações idólatras um espetáculo de uma religião sem uma imagem sequer, e sem altar, sem sacrifício e sem sacerdócio. Eles pregaram em todos os lugares a unidade e a integridade do Deus de Israel e também carregaram em seu peito a inacreditável esperança de um futuro glorioso no qual Israel seria bênção para todas as nações. Dessa forma eles pavimentaram o caminho do Cristianismo entre os povos pagãos. E em Israel, pela Graça de Deus, muitos crentes foram preservados, que, como Simeão e Ana, e muitos outros, esperavam a redenção de Israel em total expectativa. Maria, a mãe do Senhor, é o mais glorioso exemplo desses santos. Nela Israel alcançou seu destino, ou seja, recebeu a mais alta revelação de Deus em humilde fé, e conservou-a. "Aqui está a serva do Senhor; que se cumpra em mim conforme a tua palavra" (Lc 1.38).

Como podemos ver, toda a revelação de Deus no Velho Testamento converge para Cristo, não para uma nova lei, ou doutrina, ou instituição, mas para a pessoa de Cristo. Essa pessoa é a completa revelação de Deus; o Filho do Homem é o próprio e unigênito Filho de Deus. A relação entre o Velho e o Novo Testamento não é como a da lei e do Evangelho. É como a da promessa e seu cumprimento (At 13.12; Rm 1.2), da sombra e do objeto (Cl 2.17), da imagem e da realidade (FIE 10.1), das coisas abaladas e das coisas que não se abalam (Hb 12.27), da escravidão e da liberdade (Rm 8.15; GI 4). Já que Cristo é o conteúdo real da revelação do Velho Testamento (Jo 5.39; IPe 1.11; Ap 19.10), Ele é a coroa da dispensação do novo pacto. Ele é o cumprimento da lei, de toda Justiça (Mt 3.15;5.17), de todas as promessas, o sim e o amém (2Co 1.20). O povo de Israel, com sua história, com seus oficies e instituições, com seu templo e seu altar, com seus sacrifícios e cerimônias, com sua profecia, com sua salmódia e com seu ensino sábio alcançou seu objetivo e seu propósito em Cristo. Cristo é o cumprimento de tudo, primeiro em Sua pessoa e surgimento, e também em Suas palavras e obras, em Seu nascimento e em Sua vida, em Sua morte e em Sua ressurreição, em Sua ascensão e em Sua posição à

direita de Deus.Portanto, se Ele apareceu e terminou Sua obra, a revelação de Deus não pode ser

ampliada ou aumentada. Pode ser apenas explicada pelo testemunho dos apóstolos, e ser pregada a todas as nações. Como a revelação está completa, é chegado o momento no qual seu conteúdo é feito propriedade da raça humana. Da mesma forma que tudo no Velho Testamento aponta para Cristo, tudo no Novo Testamento é derivado dEle. Cristo é o ponto central de todas as épocas. A promessa feita a Abraão agora chega a todas as nações. A Jerusalém que era de baixo dá lugar à Jerusalém que é de cima, a qual é nossa mãe (G14.26). Israel é suplantado pela Igreja em todas as línguas e povos. Essa é a dispensação da plenitude dos tempos, na qual a parede do meio foi derrubada, na qual

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judeus e gentios são feitos novas criaturas e na qual tudo é reunido sob a mesma Cabeça, a saber, Cristo (Ef 1.10; 2.14,15).

Essa dispensação continuará até que a medida dos gentios se complete e Israel seja salvo. Quando Cristo tiver reunido Sua Igreja, preparado Sua noiva, levado a cabo a expansão de Seu reino, Ele o dará ao Pai para que Deus seja tudo em todos (1Co 15.28). "Eu serei teu Deus, e tu serás meu povo". Esse é o conteúdo da promessa. Essa promessa ai-

cançará seu cumprimento pleno que era, o que é, e o que há de vir na nova Jerusalém em Cristo, o (Ap 1.4).

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Capítulo 7

AS SAGRADAS ESCRITURAS

vNosso conhecimento da revelação, tanto da geral a 'Z quanto da especial, vem a nós através das Escrituras.

É importante entender a relação entre a revelação e a Escritura. Por um lado, há uma diferença importante entre elas. A revelação, por exemplo, precedeu o seu registro em alguns casos por um longo tempo. Dessa forma, embora certamente houvesse revelação antes de Moisés, ainda não havia Escritura. Além disso, a revelação continha muito mais do que foi posteriormente registrado. Os livros dos profetas, como por exemplo, o do profeta Amos, são geralmente um resumo do que ele falou pessoalmente aos seus contemporâneos. Alguns profetas do Velho Testamento e alguns profetas do Novo Testamento – e eles eram canais da re~ elição especial – não deixaram

registros escritos. E nós somos até mesmo informados de que Jesus realizou muitos outros sinais, tão numerosos que se cada um deles fosse escrito o mundo não poderia conter os livros (jo 20.30; 21.25). E por outro lado Deus pode ter revelado algo aos Seus profetas e apóstolos que eles não sabiam até o momento em que começaram a escrever, e portanto, algo sobre o que eles ainda não tinham pregado. Isso é verdade, pelo menos em parte, sobre a revelação que João teve em Patmos com relação ao futuro.

Portanto, a Escritura não é a revelação em si, mas a descrição, o registro que pode ser conhecido da revelação. Todavia, quando se diz que a Escritura é o registro da revelação, nós devemos evitar cair em outro erro. Há aqueles que não apenas distinguem entre a revelação e a Escritura,mas também separam as duas. Eles reconhecem que Deus estava agindo de forma especial na revelação que precede a Escritura, mas crêem que o registro da revelação foi totalmente deixado por conta das pessoas que a escreveram, e que isso aconteceu totalmente fora dos limites da providência especial. De acordo com esse ponto de vista a Escritura continua sendo um registro da revelação especial, mas um registro incidental e sujeito ao erro. O resultado disso é que nós devemos, a custo de grande dificuldade, examinar as Escrituras para ver quais das suas partes pertencem e quais não pertencem à revelação especial. Nessa base uma grande distinção é feita entre a Palavra de Deus e as Sagradas Escrituras. Esse ponto de vista afirma que a Escritura não é a Palavra de Deus, mas contém a Palavra de Deus.

Tal ponto de vista da questão não é verdadeiro, pois além de interpretar a relação entre a palavra e a Escritura muito mecanicamente, ele também se esquece do fato de que, quando Deus quis dar uma revelação especial que, na descendência de Abraão era apontada para toda a raça humana em Cristo, Deus também tomou providências para preservá-la em seu estado puro e fazer com que a revelação seja sem-

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pre confiável. A palavra escrita

difere da palavra falada pelo fato de que ela não se perde no ar, mas é preservada; ela não é como as tradições orais, sujeitas a falsificação; e seu alcance não é limitado a umas poucas pessoas que podem ouvi-Ia, pelo contrário, a palavra escrita pode se espalhar por todos os povos e em todas as terras. A escrita dá um caráter de permanência à palavra falada, protege-a contra a falsificação e aumenta seu alcance.

Todavia nós não temos necessidade de nos demorarmos nessa argumentação humana. O fato de que a revelação especial procede de Deus e que a Escritura veio à existência sem receber um cuidado especial da parte de Deus é diretamente contrário ao próprio testemunho da Escritura. Ela repetida e enfaticamente declara que a Escritura é a Palavra de Deus. De fato a Escritura deve ser diferenciada da revelação que a precede, mas não pode ser separada da revelação. A Escritura não é um suplemento humano, incidental, arbitrário e sujeito a erro feito à revelação, mas um componente da revelação. A Escritura é o cumprimento e a pedra angular da revelação.

Vejamos agora as claras afirmações que a Escritura faz sobre si mesma.

Primeiro, Deus freqúentemente envia Seus profetas não meramente para proclamar a revelação pela palavra de seus lábios, mas também para escrevê-la. Em Êxodo 17.14 Moisés recebe ordem do Senhor para escrever o registro da luta e da vitória contra Amaleque – uma batalha que foi de grande importância para Israel – como memorial no livro dos atos redentivos de Deus. Em Êxodo 24.3,4,7 e 34.27 Moisés é incumbido de escrever as leis e os estatutos de acordo com os quais Deus firmou Seu pacto com Israel. E quando Israel chegou ao fim de sua jornada pelo deserto e chegou novamente a jericó nos campos de Moabe, nós somos expressamente informados de que Moisés relatou as jornadas dos filhos de Israel de acordo com o mandado do Senhor (Nm 33.2). Além disso, é dito especificamente sobre o cântico de Moisés registrado em Deuteronômio 32 que ele deveria ser escrito e ensinado aos filhos de Israel para que em dias de apostasia ele servisse de testemunha contra Israel (Dt 31.19,22). Ordens semelhantes para registrar a revelação recebida foram dadas aos profetas em seu tempo". Embora tais ordens se refiram somente a uma pequena parte da Escritura, elas mos

tram que Deus proíbe que o homem acrescente ou diminua algo de suas palavras (Dt 4.2; 12.32; Pv 30.6) e tem dedicado um cuidado especial ao registro escrito de Sua revelação.

Em segundo lugar, Moisés e os profetas são perfeitamente conscientes do fato de que eles estão proclamando a mensagem de Deus não apenas de forma oral, mas também de forma escrita. Moisés é chamado para sua tarefa especial, isto é, é chamado para ser o líder do povo de Israel (Ex 3). Mas o Senhor também fala com ele face a face, como um homem fala ao seu amigo (Ex 33.11), e coloca-o a par de todos os Seus estatutos e ordenanças. Repetidas vezes, e como um preâmbulo para cada lei específica, são mencionadas as palavras: "E o Senhor disse", "e o Senhor falou", e outras semelhantes (Ex 6.1,10,13). Tanto nos livros de Moisés como em toda a Escritura, toda a entrega da lei e atribuída ao Senhor. Ele mostrou Sua palavra a Jacó, Seus estatutos e Seus juízos a Israel. Não fez assim a nenhuma outra nação, e para seu julgamento, outras nações não

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o conheceram (SI 147.19,20; 103.7). Os profetas também são conscientes da fonte de sua profecia. Eles sabem que o Senhor os clíaMOU26, e que rece-

beram dele a Sua revelação". O que Amos diz era a convicção de todos eles: "Certamente o Senhor não fará coisa alguma sem primeiro revelar o seu segredo aos seus servos, os profetas" (Am 3.7. Compare com Gn 18.17). Mas eles também sabiam que quando escreviam estavam proclamando a palavra do Senhor, e não a sua própria palavra. Assim como fez Moisés ao registrar as leis, assim também os profetas introduziam suas profecias com as fórmulas: "Assim diz o Senhor", "a palavra do Senhor veio a mim", ou "a visão", "a palavra", ou "a mensagem" do Senhora.

Em terceiro lugar há o testemunho do Novo Testamento. Jesus e os apóstolos repetidamente faziam citações do Velho Testamento sob o nome de Moisés, Isaías, Davi e Daniel (Mt 8.4; 15.7; 22.43; 24.15). Com a mesma freqüência eles faziam uso das seguintes frases introdutórias: "Está escrito" (Mt 4.4), ou "como diz a Escritura" Uo 7.38), ou "assim diz o Espírito Santo" (Hb 3.7), e outras frases semelhantes. Por esse método de referência eles indicam claramente que a Escriturado Velho Testamento, apesar de ter sido composta de várias partes e escrita por vários autores, é um conjunto orgânico também em

sua forma escrita, e seu autor é Deus. Nem Jesus nem Seus apóstolos mencionam a Escritura de forma indireta. Eles fazem citações diretas com as mesmas palavras usadas pelo escritor. Jesus declara que a Escritura não pode ser quebrada—isto é, não pode ser destituída de sua autoridade (Jo 10.35), e declara também que Ele pessoalmente não veio para anular a lei ou os profetas, mas para cumpri-los (Mt 5.17; Lc 6.27). O apóstolo Pedro escreve que a palavra da profecia é verdade e digna de aceitação, e é uma luz que brilha em lugar tenebroso. Isso acontece porque a Escritura contida no Velho Testamento não repousa sobre uma pregação pessoal e uma interpretação pessoal sobre o futuro, pois a profecia da Escritura não provém de particular elucidação; porque nunca jamais qualquer profecia foi dada por vontade humana; entretanto, homens [santos] falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo (2 Pe 1.19-21; 1 Pe 1.10-12). No mesmo sentido Paulo testifica que as Sagradas Escrituras podem fazer-nos sábios para a salvação, se nós as lemos e pesquisamos pela fé que está em Cristo Jesus, pois elas nos são dadas pela inspiração de Deus, e por isso são úteis para o ensino, para a repreensão, para a correção na justiça (2 Tm 3.16).

Em quarto lugar, sobre as Escrituras do Novo Testamento, podemos dizer

que embora Jesus não tenha deixado um documento escrito sobre Si mesmo,

Ele escolheu, chamou e qualificou Seus apóstolos para sair pelo mundo,

particularmente depois de Sua partida, para serem Suas testemunhas". Ele os

equipou para a realização dessa tarefa dando-lhes graças e poderes

especiais", e mais especificamente dotou-os com o Espírito Santo, que

traria todas as coisas que Jesus tinha feito à sua lembrança (Jo 14.26) e que os

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guiaria a toda a verdade, inclusive à verdade sobre coisas que ainda estavam

por vir (Jo 15.26,27; Jo 16.13). Assim como o Filho veio para glorificar o Pai, o

Espírito Santo veio para glorificar o Filho e, para alcançar esse objetivo, o

Espírito recebe do Filho tudo o que Ele fala e faz (Jo 16.14).

Os apóstolos deram seu testemunho de Cristo não apenas aos seus contemporâneos e aos seus compatriotas, que viviam em Jerusalém, Judéia e Samaria, mas também a todas as criaturas e até aos confins da terra". Nesse mandato de ir por todo o mundo estava contida a ordem de dar testemunho de Jesus também em forma escrita, apesar dos apóstolos não terem recebido sua missão nesses termos específicos. Mas se a promessa dada a Abraão também alcançaria toda a raça humana em Cristo, ela não poderia cumprir seu propósito a menos que fosse registrada por escrito e desta forma fosse preservada por todas as épocas e distribuída a todos os povos. Os apóstolos foram guiados em sua missão pelo Espírito Santo, que eles naturalmente proclamavam através de sua pena e através das epístolas pelas quais eles davam testemunho da plenitude da Graça e da verdade que existia em Cristo Jesus. Não apenas em sua pregação oral, mas também em seus escritos, eles demonstravam ter claramente percebido o propósito divino de que eles revelassem a verdade que Deus tinha revelado em Cristo e que através de Seu Espírito tinha tornado conhecida a eles.Mateus escreve o livro da geração, isto é, da história de Jesus Cristo, o Filho de Davi (Mt 1.1). Marcos fala como o Evangelho começou com Jesus Cristo, o Filho de Deus, e teve seu ponto de origem nEle (Me 1.1). Lucas quer, por meio de uma cuidadosa investigação e de um registro organizado, dar segurança a Teófilo a respeito das coisas que eram verdadeiramente cridas entre os santos com base nos testemunhos dos apóstolos (Lc 1.1-4). João escreve seu Evangelho para que nós creiamos que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhamos vida em Seu nome (jo 20.31); e em sua primeira carta ele também declara o que tinha visto e ouvido, e o que os seus olhos tinham contemplado, e o que suas mãos tinham apalpado, com relação ao Verbo da Vida (1 Jo 1.1-3). Paulo está persuadido de que foi chamado não apenas para ser um apóstolo pelo próprio Cristo (GI 1.1), e que recebeu seu Evangelho do próprio Cristo através de uma revelação32, mas também que pela palavra de seus lábios e de sua pena ele está proclamando a Palavra de Deus". Ele chega até mesmo a dizer que se alguém pregar outro Evangelho é maldito (GI 1.8). E, c o m o t o d o s o s a p ó s t o l o s conectaram a vida eterna ou a morte eterna com a aceitação ou com a rejeição da mensagem que pregavam, o apóstolo João, no último capítulo do Apocalipse diz que todos aqueles que acrescentarem ou tirarem qualquer coisa desse livro receberão pesadas punições (Ap 22.18,19).

A atividade especial do Espírito Santo por meio da qual foi feito o registro da revelação geral-mente recebe o nome de inspiração (2Tm 3.16). Alguma luz é lançada sobre a natureza da ins-piração através de comparações emprestadas da natureza e através de explanações específicas nas

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Sagradas Escrituras. De forma geral é verdade que o ser humano é capaz de assimilar em sua mente

o pensamento de outras pessoasede ser influenciado por outros em seu pensamento. Toda instrução e educação é baseada nessa habilidade, assim como a ciência

eo conhecimento. Tal comunicação de pensamentos entre duas pessoas geralmente acontece mediante o emprego de meios, que podem ser sinais ou gestos, palavras faladas ou escritas. Dessa forma, quando nós somos influenciados pelos pensamentos de outra pessoa, nós geralmente os estudamos deliberada e intencionalmente, e geralmente à custa de considerável esforço. Dessa forma nós tentamos fazer com que os pensamentos e idéias de outras pessoas passem a fazer parte de nossa vida espiritual. Mas os fe-nômenos de hipnotismo, sugestão e outros semelhantes provam que sem uma atividade consciente de nossa parte pensamentos e

idéias de outras pessoas podem ser introduzidos em nossa consciência, podem ser impostos a nós· podem comandar nosso desejo· ação. Dessa forma as pessoas podem ser transformadas em instrumentos passivos que simplesmente carregam o desejo do hipnotizados. Tanto a Escritura quanto a experiência nos ensinam que desta forma o ser humano é suscetível a influências e poderes de maus espíritos; em tais casos as pessoas não falam e agem por si mesmas, mas são governadas pelo mau espírito em seu pensamento e em sua conduta. Em Marcos 1.24, por exemplo, é o espírito impuro que fala através do homem possesso e reconhece Jesus como sendo o Santo de Deus.

Outro fenômeno que pode servir para lançar luz sobre a natureza da inspiração do Espírito Santo é a assim chamada inspiração dos artistas. Todos os grandes pensadores e poetas aprenderam pela experiência que devem a melhor e mais bonita parte de sua produção não ao seu próprio esforço, mas a repentinos flashes de discernimento. Naturalmente uma experiência não exclui a in-vestigação preliminar e a reflexão. O gênio não faz esforço e empreendimentos desnecessários.

Apesar de, em tais casos o

estudo ser uma regra geral, a indispensável experiência inspiracional e o discernimento que dela resulta não são conseqüências lógicas ou frutos maduros do estudo. Nos homens de gênio sempre há um poder secreto que não é suscetível a elaborações lógicas. Ao escrever para sua irmã, Nietzsche disse a respeito desse poder secreto: "Você não imagina como são poderosas essas inspirações; elas enchem a pessoa com um apaixonado êxtase mental, que ela se sente transportada e totalmente além de si mesma, nada ouve e nada vê – simplesmente aceita. O pensamento vem como uma luz. Tudo acontece involuntariamente, como se a pessoa estivesse sob uma tempestade de liberdade, independência, poder e divindade. Essa é a minha experiência de inspiração".

Certamente, que se manifestações desse tipo

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acontecem na vida normal das pessoas e dos artistas, não pode haver base para se atacar a influência de Deus sobre a vontade e o pensamento de Suas criaturas. Através de Seu Espírito, Deus opera em Suas criaturas e está presente nelas". E dessas criaturas é mais particularmente o homem que foi feito pelo sopro do Todo Poderoso e pelo Espírito de Deus". Em Deus nós

vivemos, e nos movemos e existimos (At 17.28). Nosso pensamento, vontade e execução, mesmo sob a maldição do pecado, acontece sob o domínio de Deus, e nada acontece fora do conselho de Sua vontade (Ef 1.11). Como ribeiros de águas, assim é o coração do rei nas mãos do Senhor; este, segundo o seu querer, o inclina (Pv 21.1). Os caminhos do homem estão perante o Senhor, e ele considera todas as suas veredas (Pv 5.21; 16.9; 19.21; 21.2). E, de uma forma totalmente diferente e muito mais íntima, Deus, pelo Seu Espírito, mora no coração dos Seus filhos. Por esse Espírito, Ele os traz à confissão de Cristo como seu Senhor (1Jo 4.3), faz com que eles conheçam as coisas que lhes são dadas por Deus (1Co 2.12; 1Jo 2.20; 3.24; 4.6-13), concede-lhes as bênçãos da sabedoria e do conhecimento (1Co 12.8) e efetua neles tanto o querer quanto o realizar segundo a Sua boa vontade (Fp 2.13).

Obviamente todas essas influências de Deus sobre o mundo e sobre a Igreja não são idênticas à inspiração que veio sobre os profetas e apóstolos, mas servem ao mesmo tempo como esclarecimento e explanação. Se é verdade que realmente há algo como uma morada e operação do Espírito de Deus em todas as criaturas, e se o mesmo Espírito, de uma forma diferente e especial,

mora nos filhos de Deus, então não há motivo para que se pense que uma atividade especial chamada inspiração seja impossível ou improvável. Contudo, ao mesmo tempo é necessário fazer a distinção entre a operação do Espírito de Deus no mundo e na Igreja, por um lado, e nos profetas e apóstolos, por outro. Essa distinção começa a tornar-se aparente quando comparamos Romanos 8.14 com 2Pedro 1.21. No primeiro texto Paulo diz que todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus; mas, no segundo, Pedro declara que homens santos de Deus foram movidos pelo Espírito Santo, e assim foi dada a profecia. A direção do Espírito é a porção de todos os crentes e consiste em uma iluminação da mente e de um governo e direção da vontade e das inclinações; em razão dessa influência a mente recebe o conhecimento e o poder e o desejo que agradam a Deus. Mas a "moção" do Espírito Santo foi concedida somente aos profetas e aos apóstolos e consistiu de uma excitação e de uma provocação para fazer com que a revelação da vontade de Deus fosse conhecida por eles.

O caráter especial dessa revelação é indicado na forma pela qual o Novo Testamento se refere ao Velho, dizendo que aquilo que foi dito no Velho Testamento foi falado pelo Senhor através dos

profetas (Mt 1.22; 2.15,17, 23; 3.3; 4.14). O texto grego usa uma expressão para essa forma que designa Deus como a fonte ou origem daquilo que foi dito, e que designa os profetas como meios ou agentes daquilo que foi dito. A distinção é destacada de modo mais evidente quando nós lemos que Deus falou pela boca de Seus profetas31 . A verdade que a Escritura ensina é, portanto, a seguinte: que Deus, ou Seu Espírito, é quem

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realmente fala Sua palavra, mas para dar expressão a ela Ele faz uso dos profetas e apóstolos como Seus agentes.

Contudo nós entenderemos a Escritura de forma

equivocada se inferirmos dessas indicações que os

profetas e os apóstolos foram agentes meramente

passivos, mental e volitivamente inativos, e que

serviram ao Espírito Santo meramente como um

megafone, pois é verdade não apenas que Deus

honra Sua própria obra e nunca trata Suas criaturas

racionais como se elas fossem irracionais, mas

também que a ação do Espírito Santo é contrária a

qualquer idéia mecânica de inspiração. Apesar dos

profetas terem

sido movidos ou dirigidos pelo Espírito Santo, eles

mesmos também falaram (2 Pe 1.21). As palavras que

eles escreveram são várias vezes chamadas de suas

palavras 17. Em várias passagens nós vemos que eles

foram preparados para seu ofício, separados e

equipados para ele (jr 13; At 7.22; G11.15). E assim

como aconteceu ao receber a palavra, também ao

escrever a revelação eles permaneceram

conscientes de seus atos; sua própria atividade não é

suprimida pelo mover do Espírito. Mas é

aperfeiçoada e purificada por Ele. Eles mesmos

fizeram diligentes investigações (Lc 1.3), refletiram

sobre a revelação que tinham recebido em data

anterior 31, fizeram uso de fontes históricas', e alguns

deles, os salmistas, por exemplo, encontraram o

material para suas músicas em sua própria experiên-

cia, e, em todos os escritos dos quais a Bíblia é

composta, a disposição do escritor, a qualidade

especial de seu caráter, seu desenvolvimento pessoal

e sua educação, sua própria linguagem e seu estilo –

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tudo isso é expresso através de cada um dos vários

escritores. O estudo da Escritura nos ensina não

apenas a unidade da Palavra de Deus; ele nos faz

conhecer as diferentes pessoas que

a escreveram. Quanta diferença existe entre os livros de Reis e Crônicas, entre Isaías e Jeremias, entre Mateus e Lucas, entre João, Pedro e Paulo!

Tal concepção de inspiração como essa que foi

aqui sugerida permite-nos fazer plena justiça ao lado

humano das Sagradas Escrituras. A Bíblia não chegou

até nós, completa e totalmente, em apenas um

momento. Ela se desenvolveu gradativamente. O

Velho Testamento como nós o conhecemos é

composto por trinta e nove livros: cinco deles falam

sobre a lei, doze são históricos (de Josué a Ester),

cinco são poéticos (de Jó aos Cânticos de Salomão), e

dezessete são proféticos. Essa ordem, naturalmente,

não é cronológica, pois muitos livros históricos, como

por exemplo os de Esdras, Neemias e Ester são de

uma data muito posterior a muitos dos livros poéti-

cos e proféticos, e entre os livros proféticos muitos

dos menores, tais como Joel, Obadias, Amos e

Oséias são mais antigos que os livros maiores de

Isaías, Jeremias, Ezequiel e Daniel. A ordem é ba-

seada na natureza do conteúdo, não na cronologia. E

o registro de todos esses livros aconteceu gra-

dualmente, durante muitos séculos, em

circunstâncias muito diferentes e através do labor de

ho

meus diferentes.

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Na ciência da teologia há uma área que se

ocupa especialmente com a investigação das cir-

cunstâncias sob as quais um determinado livro da

Bíblia veio a existir, por quem ele foi escrito, a quem

foi endereçado, e coisas semelhantes. Devido aos

abusos que ocorreram nessa área de estudos, ela

recebeu um nome ruim. Nós ouvimos de vez em

quando que a "alta crítica" tem sistematicamente

arrancado página por página da Bíblia. Mas o

abuso com que um objeto é usado não faz com que

seu correto uso seja mau. Se nós queremos

entender as Escrituras em sua totalidade e em suas

partes é necessário conhecer exatamente como a

Bíblia foi gradualmente sendo escrita e sob quais

circunstâncias cada livro foi escrito. A longo prazo

esse conhecimento pode apenas beneficiar a

interpretação da Palavra de Deus. Nós aprendemos

com isso que a inspiração do Espírito de Deus

entrou profunda e amplamente na vida dos santos

homens de Deus.

Por séculos, isto é, até o tempo de Moisés, não

havia Escritura, não havia um registro escrito da

Palavra de Deus. Pelo menos nós não temos

conhecimento da existência de tal registro. É claro

que isso não significa que seja impossível que algo

como um registro escrito de alguma palavra

ou evento tenha sido feito antes do tempo de Moisés, alguma palavra ou evento que tenha sido muito importante para a história da revelação e que por isso tenha sido posteriormente preservado nos livros de Moisés.

Não faz muito tempo que o fato dessa possibilidade ser admitida seria chamada de loucura, pois supunha-se que a arte da escrita não era conhecida no tempo de Moisés. Mas em razão de descobertas feitas na Babilônia e no Egito nós agora estamos melhor informados e sabemos não somente que a arte da escrita era conhecida muito antes do tempo de Moisés, mas que também era muito usada. Nós temos conhecimento deeventos e de leis dessa época que foram escritos. A escrita era conhecida

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vários séculos antes de Moisés. Portanto não é totalmente irrazoável supor que Moisés,antes de seus registros históricos e da entrega da lei, tenha feito uso de fontes mais antigas. O registro de Gênesis 14, por exemplo, pode muito bem ser um desses casos. Mas nós não podemos ter certeza disso e em geral nós podemos dizer que antes de Moisés não há registro da Palavra de Deus. É claro que havia a Palavra de Deus, pois a revelação especial começou logo depois da que-da e, portanto, havia também nesse sentido algo que poderia ser chamado de cânon, isto é, uma regra de fé e vida. A raça humana jamais ficou totalmente desprovida da Palavra de Deus. Sempre, desde sua origem, o homem tem possuído não apenas a revelação geral de Deus em sua consciência, mas também a revelação especial de Deus na palavra e na história. Mas essa palavra de Deus não foi escrita imediatamente; ela foi transmitida oralmente por famílias e gerações, sendo passada dos pais aos filhos. Naqueles tempos antigos em que a população da terra era bem pequena, quando as pessoas ainda desfrutavam da bênção de uma longa vida, quando o relacionamento familiar, o senso de família e o respeito ao passado representavam muito mais do que em nosso tempo, essa forma de continuidade era suficiente para a preservação pura e a expansão da Palavra de Deus.

Posteriormente, contudo, quando as pessoas começaram a se espalhar pela face da terra, e quando caíram em todo tipo de idolatria e superstição, a tradição oral deixou de ser suficiente. E por isso Moisés começou a registrar a Palavra de Deus. Pode ser que existissem registros que ele tenha resolvido incluir em seus escritos. Como foi dito, nós não temos certeza, mas a probabilidade de que isso tenha acontecido aumenta quando em apenas umas poucas passagens menciona-se nos assim chamados cinco livros de Moisés que ela tenha s i do esc r i t a pe lo p róp r i o Moisés'". Portanto é perfeitamente possível que várias porções dos cinco livros de Moisés tenham existido antes de seu tempo, e também que eles tenham sido revisados por Moisés ou mesmo depois de sua morte, por alguém que tenha editado a sua obra e acrescentado essas porções. Essa última possibilidade tem sido bem aceita em períodos recentes com relação ao registro da morte de Moisés (Dt 34), mas pode ser ampliada para incluir também os adendos e as tais porções, como aquelas encontradas em Gênesis 12.6b; 13.7; 36.31b, e outras semelhantes. Isso em nada diminui a autoridade divina da Palavra, e essa possibilidade em nada contradiz a expressão usada na Escritura: a lei, o livro de Moisés". Os cinco livros de Moisés continuam sendo os livros de Moisés, embora algumas partes tenham sido citadas de outras fontes, mesmo que tenham sido inseridas por seus auxiliares ou por um editor posterior. Paulo também não escreveu pessoalmente suas cartas, mas usou outra mão para escrevê-

Ias (1 Co 16.21). E o livro de Salmos é considerado, às vezes, to-talmente da autoria de Davi porque e le fo i o fundador da salmódia, e isso é feito apesar de um, bom número de salmos não terem sido escritos por Davi, mas por outros autores.

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Sobre a base da lei mosaica,isto é, sobre a base do pacto deDeus, que Deus firmou com ospatriarcas, que Deus confirmoucom Israel no Sinai, e que orde-nou na lei de Moisés, desenvol-veram-se, na história posterior deIsrael, sob a direção do EspíritoSanto, três tipos de literatura: asalmódia, a profecia, e a literatu-ra de sabedoria. Essas dádivasespeciais do Espírito Santo foramconjugadas com as dádivas natu-rais que são peculiares à raçasemita, e particularmente ao povode Israel, mas ao mesmo tempotranscenderam essas dádivas na-turais e receberam um chamadopara o uso no serviço de Deus epara o benefício da humanidade.A profecia começou comAbraão", passou por Ia C013,

Moisés" e Míriam", mas tornou-se mais específica em Samuel e

depois dele, acompanhando a história de Israel até depois do cativeiro. Os livros dos profetas são divididos no Velho Testamento Hebraico em dois grandes grupos, a saber, o grupo dos prole-tas anteriores e o grupo dos pro-fetas posteriores. O primeiro grupo compreende os livros de Josué, Juizes, Samuel e Reis. A razão pela qual esses livros são denominados anteriores é que eles foram escritos por profetas que precederam os profetas posteriores das Escrituras.

Em outras palavras, havia muito mais profetas em Israel do que os quatro maiores e os doze menores, cujos livros foram preservados na Bíblia. Os livros históricos mencionados acima estão cheios de nomes de profetas e em alguns casos incluem extensas descrições de suas atividades. Eles falam de Débora, Samuel, Gade, Natan, Aias, Semías, Azarias, Hanani, leu, filho de Hanani, Elias, Eliseu, Hulda, e Zacarias, o primeiro mártir entre os profetas do reino de Judá, e muitos outros, alguns dos quais não são citados pelo nome (2 Cr 25). Nada escrito por esses profetas chegou às nossas mãos em forma escrita. Algumas vezes nós lemos até mesmo sobre escola de profetas", nas quais muitos filhos

e discípulos de profetas se dedicavam a exercícios espirituais e deveres teocráticos. Muito provavelmente os escritos proféticos foram feitos nessas escolas e, é claro, nos livros de Josué, juizes e outros semelhantes. Especial-mente nos livros de Crônicas há várias referências aos escritos dos profetaS97.

Os profetas, cujas atividades são descritas nos livros históricos, são

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geralmente descritos nos nossos dias como profetas de atos, em distinção aos profetas posteriores, que são chamados de profetas de palavra. Essa distinção só pode ser feita se nós nos lembrarmos de que todos os profetas, tanto os posteriores quanto os anteriores, foram profetas de palavra. Todos eles falam e dão seu testemunho; o original hebraico provavelmente aponta para isso (Ex 4.16; 7.1), e as características fundamentais do ensino profético estão contidas no testemunho dos profetas mais antigos. Mas há dois pontos nos quais os profetas anteriores são distintos dos profetas posteriores. Em primeiro lugar, os profetas anteriores limitam suas visões às exigências in-ternas do povo de Israel, e não incluem nela outros povos nos limites de sua perspectiva; e em segundo lugar, eles prestam maior

atenção ao presente do que ao futuro. Sua palavra de admoestação

e ameaça tem, em sua maior parte, um propósito imediato e prático. Esse é o período no qual, durante o reinado de Davi e de Salomão e muito tempo depois deles, ainda há esperança de que Israel mantenha o pacto de Deuse ande em Seus caminhos.

Mas quando, no nono século antes de Cristo, Israel gradativamente vai se envolvendo na política externa com seus vizinhos, e a despeito de seu destino e de sua vocação, vai se deixando envolver, então os profetas incluem os povos vizinhos em suas profecias. Eles não esperam

o cumprimento perfeito das promessas de Deus no presente apóstata. Em vez disso eles olham para o futuro messiânico, um futuro que o próprio Deus trará. permanecendo em suas torres de vigia esses profetas posteriores olham por toda a extensão e profundidade da terra, e apontam os sinais dos tempos não como eles mesmos entendem, mas de acordo com a luz do Espírito Santo48. Eles medem as situações em Israel, sejam éticas, religiosas, políticas ou sociais, tanto quanto as relações de Israel com outros povos, tais como Edom, Moabe, Assur, Caldéia, e Egito que con-

trariam os preceitos do pacto que Deus firmou com Seu povo. Todos eles, cada um de acordo com sua própria natureza, em seu próprio tempo e de sua própria forma, prega essencialmente a mesma palavra de Deus: a proclamação dos pecados de Israel e a punição que eles acarretam; confor-tam o povo do Senhor com a imutabilidade de Seu pacto, com a promessa de seu cumprimento e com o perdão para todas as injustiças; e dirigem todos os olhos para o futuro, no qual Deus, através de um rei da casa de Davi expandirá seu domínio sobre Israel e sobre todos os povos.

Dessa forma, a palavra que eles pregavam em nome de Deus, assume um significado que vai além do tempo em que eles pregaram. Essa palavra não tem seu limite e seu propósito no Israel antigo; em vez disso ela tem um conteúdo que se estende aos confins da terra, e só pode alcançar seu cumprimento em toda a raça humana. E agora a palavra da profecia está pronta para ser escrita. Do nono século antes de Cristo em diante, ou seja, a,

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desde os tempo de Joel e Obadias, os profetas começaram a colocar o conteúdo de suas profecias em forma escrita, algumas vezes por ordem ex-pressa de Deus". Eles fizeram

isso com o propósito claro de que sua palavra permanecesse até o último dia, até a eternidade (Is 30.8) e até que sua autenticidade pudesse ser reconhecida pelas gerações posteriores (Is 34.16).

A salmódia tomou um curso paralelo ao da profecia. Ela também tem origem em uma época remota. A música era muito amada em Israe150. Canções sobre vários assuntos foram preservadas nos livros históricos. Há a canção da espada (Gn 4.23,24), a canção do bem (Nm 21.17,18), a canção da conquista de Hesbom (Nm 21.27-30), a canção da travessia do Mar Vermelho (Ex 15), a canção de Moisés (Dt 32), o cântico de Débora & 5), o cântico da Ana (1 Sra 2), o lamento de Davi pela morte de Saul e Jênatas (2 Sm 1) e seu lamento por Abner (2 Sm 3.33,34), e o Livro dos Justos (Js 10.13; 2 Sm 1.18), que parece ter contido muitos cânticos. Muitos cânticos são registrados nos livros dos profetas. Por exemplo, o cântico da vinha em Isaías 5, o hino triunfal sobre a queda de Babilônia em Isaías 14, o cântico de Ezequias em Isaías 38, a oração de Jonas em Jonas 2, o cântico de louvor de Habacuque, e muitos outros. Muitos desses cânticos estão re

lacionados bem de perto com os Salmos. A transição de um para o outro é dificilmente perceptível. Há também um estreito relacionamento entre a salmódia e a profecia. Isso é aparente até mesmo na forma. Ambas tiveram sua origem em uma inspiração poderosa do Espírito Santo, ambas incluíram em sua perspectiva todo o mundo da natureza e da história, ambas puseram todas as coisas sob a luz da Palavra de Deus, ambas tinham como tema de sua proclamação o Reino do Messias, e ambas fizeram uso de linguagem e forma poética. Quando o poeta dos Salmos é levado aos mistérios da vontade e do conselho de Deus ele se torna um vidente, e quando a alma do profeta é refrescada pelas promessas de Deus sua profecia é colocada no plano da poesia (1 Cr 25.1-3). Asafe é chamado de vidente (2 Cr 29.30)e Davi é chamado de profeta (At 2.30).

Mas é claro que há diferenças entre os dois. A poesia dos salmos já existia no cântico de Míriam, no cântico de Moisés (Dt 32) e no salmo de Moisés (SI 90), mas alcançou seu apogeu depois do reavivamento do serviço de Deus realizado por

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Samuel, nos salmos de Davi, o suave cantor de Israel (2 Sm 23.1). A salmódia davídica compreende as formas

fundamentais que a salmódia posterior de Salomão, Jeosafá, Ezequias e que o período durante e depois do cativeiro colocou em uso. No final do salmo 72 os salmos de Davi são chamados de orações. Essa característica é peculiar a todos os salmos. Eles são muito diferentes uns dos outros. Alguns deles são canções de louvor e de ações de graças, alguns são lamentos e súplicas. Alguns são hinos, outros são poemas melancólicos, e outros são do tipo profético-didático. Há salmos que celebram as obras de Deus na natureza e salmos que celebram as obras de Deus na história. Eles falam do passado, do presente e, em alguns casos, do futuro. Mas está sempre presente neles a estrutura básica de oração. Essa é a característica de todos eles. Se no caso da profecia o Espírito Santo se apodera do profeta, controlando-o e movendo-o, no caso da salmódia Ele dirige o poeta às profundidades de sua vida espi-ritual. Um estado pessoal espiritual é sempre a ocasião para sua canção. Mas tal estado de alma tem sido sempre formado e moldado pelo Espírito do Senhor.

Davi não teria sido o suave cantor de Israel se não tivesse sido o homem de caráter firme e de ri-cas experiências de vida que ele sempre foi. E esse era seu estado de mente, ou estado de alma, em todas as suas variações de desgos

to e ansiedade, tentação e direção, perseguição e resgate, e experiências semelhantes, que são as cordas sobre as quais são tocadas as melodias das palavras e atos objetivos de Deus na natureza e na história, nas instituicões e na pregação, no julgamento e na redenção. É a harmonia da revelação objetiva de Deus e sua direção subjetiva que é cantada no cântico, e que é cantada na presença de Deus, dedicada à Sua honra, que chama todas as criaturas para se alegrarem em Seu louvor, que continua cantando até que os céus e a terra se levantem em seus acordes e que é, portanto, para todas as épocas e para todas as gerações, a mais rica expressão das mais profundas experiências que a alma humana pode sentir. Os Salmos nos ensinam a dizer o que acontece em nosso coração em conexão com a revelação de Deus em Cristo através do Espírito. Por causa de sua importância esses Salmos não ficaram restritos somente aos salmistas, mas foram colocados nos lábios da igreja de todas as épocas.

À profecia e à salmódia devem ser acrescentados os chokma, isto é, os provérbios ou a literatura de sabedoria. Isso também tem origem nas dotações naturais, como se torna claro na fábula de

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Jotão (Jz 9.7 ss.), no enigma de Sansão (Jz 14.14), na parábola de Natan (2Sm 12), na conduta da mulher de Tecoa (2 Sm 14), e em outros casos. Mas essa literatura de sabedoria é dedicada especialmente a Salomão" e teve continuidade nos provérbios do homem sábio (Pv 22.17 ss.) e nos livros de jó, Eclesiastes e Cânticos de Salomão, e continuou até depois do cativeiro. A profecia revela a vontade de Deus para a história de Israel e de outros povos; a salmódia dá expressão ao que a vontade de Deus realiza na alma dos Seus santos; e os provérbios da literatura de sabedoria relatam a vontade de Deus para a vida prática e para a conduta. Essa literatura de sabedoria também re-pousa sobre o fundamento da revelação divina; seu ponto de partida é que o temor do Senhor é o princípio da sabedoria (Pv 1.7). Esse tipo de literatura não relata a revelação da história dos povos, nem a experiência subjetiva da alma, porém, faz suas aplicações à vida diária, à vida do homem e da mulher, pais e filhos, amigos e sociedade, negócios e profissão. Ela não age no plano elevado da profecia, e nem enxerga tão longe. Ela não explora a alma tão pro-fundamente como a salmódia, mas concentra sua atenção em todas as vicissitudes da vida – ex-

periências sob as quais o povo tende a sucumbir – e levanta o povo novamente ao nível dessas experiências. Ela faz isso através da fé na justiça da providência de Deus. Dessa forma a literatura de provérbios tem um significado humano geral, e, sob a direção do Espírito Santo, foi preservada por todas as épocas.

A revelação, a lei, a vontade de Deus, principalmente a partir dos livros de Moisés, completa-se nos dias do Velho Testamento na pregação dos profetas, nas canções dos cantores, e nas máximas dos sábios. O profeta é a cabeça, o cantor é o coração, e o sábio é a mão.

Os ofícios profético, sacerdotal e real completaram dessa forma seu chamado na Velha Dispensação. E em Cristo esse tesouro inavaliável de literatura sagrada tornou-se propriedade comum do mundo.

Assim como a promessa culmina em seu cumprimento, assim também a Escritura do Velho Testamento culmina na Escritura do Novo Testamento. Um é incompleto sem o outro. É somente no Novo Testamento que o Velho é revelado, e o Novo está em essencial contido no Velho. A revelação entre os dois é como a do pedestal e a estátua, entre a fechadura e a chave, a sombra e o objeto. As designações Velho Testamento e Novo Testamento faziam referência às duas dispensações do pacto da Graça que Deus deu ao Seu povo antes e depois de Cristo". Posteriormente os termos foram transferidos aos dois corpos de escritos que constituem a descrição e a interpretação dessas duas dispensações do pacto. Em Êxodo 24.7, a lei, que era o pronunciamento ou declaração do pacto de Deus com Israel, é chamada o livro do pacto (compare com 2 Rs 23.2), e em 2 Coríntios 3.14 Paulo fala de uma leitura do Velho Testamento - uma referência naturalmente aos livros que compõem esse Testamento. De acordo com esses exemplos a palavra testamento foi gradualmente sendo usada para designar os livros ou escritos contidos na Bíblia e que dão uma interpretação da velha e da nova dispensação da Graça.

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Assim como o Velho, o Novo Testamento também é composto por vários livros. Ele compreende cinco livros históricos (os quatro Evangelhos e Atos dos apóstolos), vinte e um livros doutrinários (as epístolas ou cartas dos apóstolos) e um livro profético (Apocalipse). E apesar dos trin

ta e nove livros do Velho Testamento terem sido compostos durante um período de mais de mil anos, os vinte e sete livros do Novo Testamento foram todos escritos na segunda metade do primeiro século da era cristã.

Os Evangelhos vêm primeiro no Novo

Testamento. Novamente a ordem não é cronológi-

ca, mas material. Muito embora várias das cartas

dos apóstolos tenham sido escritas antes do

Evangelhos, os Evangelhos vêm primeiro porque

tratam da pessoa e obra de Cristo que constituem a

base de todo o esforço apostólico. A palavra

Evangelho tinha um sentido geral de mensagem

agradável, mensagem boa. Nos dias do Novo

Testamento ela passou a designar as boas notícias

proclamadas por Jesus Cristo (Me 1.1). Só mais tarde

os escritores eclesiásticos como Inácio, Justino e ou-

tros usaram-na para designar os livros ou registros

escritos que contêm a boa mensagem de Cristo.

Há quatro Evangelhos no Novo Testamento. É claro que eles não contêm quatro Evangelhos diferentes, mas apenas um Evangelho, o Evangelho do Senhor Jesus Cristo (Me 1.1; GI 1.6-8). Mas um Evangelho, uma boa nova de salvação, é pregada de diferentes formas, por diferentes pessoas, de

quatro diferentes pontos de vista. Essa idéia é bem expressa nos quatro livros de nossas Bíblias: o Evangelho segundo Mateus, segundo Marcos e assim por diante. O pensamento é que nos quatro Evangelhos o único Evangelho, a única imagem da pessoa e obra de Cristo, é apresentado de pontos de vista diferentes. Por isso na igreja antiga os quatro evangelistas foram comparados aos quatro querubins de Apocalipse 4.7: Mateus foi comparado ao homem, Marcos ao leão, Lucas ao novilho e João à águia. Isso aconteceu porque o primeiro evangelista descreveu Cristo como Ele era em Sua manifestação humana, o segundo, como Ele era em Sua manifestação profética, o terceiro como Ele era em Sua manifestação sacerdotal, e o quarto como Ele era em Sua natureza divina.

Mateus, que era o publicano chamado Levi, escolhido para o ofício de apóstolo (Mt 9.9; Me 2.14; Le 5.27), originalmente escreveu seu Evangelho, segundo Irineu, em linguagem aramaica, na Palestina, por volta do ano 62, e especialmente para os judeus e cristãos judeus da Palestina

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para mostrar-lhes que J esus realmente era o Cristo e que todas as profecias do Velho Testamento se cumpriram nEle (Mt 1.1).

Marcos era o filho de Maria (At 12.12), que muito provavel

mente tinha sua própria casa em Jerusalém (At 1.13; 2.2). Marcos primeiramente trabalhou com Paulo e depois com Pedro (1 Pe 5.13), e, de acordo com a tradição, foi convidado pelos cristãos de Roma para registrar o começo do Evangelho de Jesus Cristo (Me 1.1). O convite foi feito porque, tendo estado em Jerusalém e sido discípulo de Pedro, estava muito bem informado sobre o assunto. Ele respondeu ao convite dos romanos, presumivelmente, entre os anos 64 e 67.

Lucas, o médico amado, como Paulo o chama (CI 4.14), pode ter vindo de Antioquia. Ele pertenceu à igreja dessa localidade por volta do ano 40. Ele era um companheiro de viagem e colega de trabalho de Paulo, e manteve sua lealdade a ele até o fim (2 Tm 4.11). Ele escreveu um livro de história, não somente da pessoa e obra de Cristo (em seu Evangelho), mas também da expansão inicial do Evangelho na Palestina, Ásia Menor, Grécia e Roma (em Atos dos apóstolos). Ele escreveu o segundo desses livros aproxi-madamente entre os anos 70-75 e endereçou-o a um certo Teófilo, uma pessoa de algum status, que tinha interesse no Evangelho.

Esses três Evangelhos estão intimamente relacionados um ao outro. Eles estão baseados na tradição que havia a respeito dos ensinos e da vida de Jesus no cír-

culo de Seus discípulos. O quarto Evangelho é diferente dos demais. João, o discípulo amado, permaneceu em Jerusalém depois da ascensão de Jesus e, juntamente com Tiago e Pedro, foi um dos três pilares da igreja (G12.9). Mais tarde ele saiu de Jerusalém e perto do fim de sua vida foi para Éfeso trabalhar como sucessor de Paulo. De Éfeso, sob o domínio de Domiciano, ele foi banido para a ilha de Patmos por volta do ano 95 ou 96, e morreu no ano 100 como mártir. João não teve uma participação muito importante na expansão missionária. Ele não foi o fundador de novas igrejas, mas dedicou seus esforços à preservação das igrejas que já existiam, pregando o puro conhecimento da verdade. Uma situação diferente foi se desenvolvendo gradativamente na Igreja no final do primeiro século. A luta entre a relação da Igreja Cristã com Israel, a lei e a circuncisão, estava de volta. A Igreja estava se tomando independente em relação aos judeus e estava penetrando cada vez mais no mundo greco-romano. Ela fez contato com outras correntes espirituais, particularmente com o gnosticismo. E dessa forma o propósito de João foi dirigir a Igreja seguramente por causa desses per igos do mundo anticristão e da tendência de negar a encarnação do Verbo (1Jo 2.22; 4.3). Contra essa tendência

aríticrista, João, em seus escritos, todos datados entre os anos 80 e 95, afirma que Cristo é o Verbo feito carne. Em seu Evangelho João indica que Cristo é o Verbo encarnado. Em sua estada na terra e em suas cartas ele

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indica que Cristo é o Verbo Encarnado da Igreja. E no Apocalipse ele indica que Cristo no futuro também será o Verbo Encarnado.

Todos os escritos do Novo Testamento aos quais nos referimos, sob a direção do Espírito Santo, vieram à luz através de ocasiões históricas. Isso também é verdade com relação aos escritos de Paulo e Pedro, de Tiago e Judas. Depois da ascensão de Jesus e depois da perseguição da Igreja em Jerusalém os apóstolos começaram a pregar o Evangelho a judeus e gentios; eles também permaneceram nas congregações que foram sendo fundadas, mantendo a amizade e vivendo com elas. Eles receberam informações orais ou escritas a respeito da condição espiritual dessas igrejas, interessaram-se pelo seu desen-volvimento, e preocuparam-se com elas (2Co 11.28). Por esse motivo eles foram chamados a, se possível, visitar pessoalmente as igrejas e, se não fosse possível, por meio de epístolas ou cartas admoestar e consolar as igrejas de acordo com suas necessidades, preveni-Ias e encorajá-las, e por todos esses meios dirigi-Ias, mais

profundamente, na verdade para a salvação.

Assim como seu esforço apostólico de forma geral, seu esforço escriturístico, que constituiu uma parte histórica, orgânica e essencial do trabalho apostólico, foi básico e fundamental para a Igreja cristã. Os Evangelhos e as cartas dos apóstolos são, assim como os livros dos profetas, escritos originados em ocasiões específicas. Mas ao mesmo tempo eles se estendem além do tempo e do local das igrejas daqueles dias, sendo dirigidos às igrejas de todas as épocas.

Toda a Escritura, apesar de seu arrojo histórico, é, como disse Agostinho, uma carta de Deus dos céus para Sua Igreja na terra. E, longe de pensar que a investigação histórica da origem dos livros da Bíblia-evitando-se o abuso que pode ser feito nesse estudo - faz violência ao caráter divino da Escritura, nós podemos ver que tal estudo é especialmente adequado para nos mostrar o modo maravilhoso pelo qual Deus trouxe Sua obra à existência.

Esse relance da origem dos livros da Bíblia certamente não exaure o estudo da Bíblia. Ele é apenas o seu início. Gradualmente um complexo grupo de ciências tem se desenvolvido a partir da

Bíblia. O objetivo de todos eles é melhor entender o significado das Escrituras. Deve ser suficiente aqui dizer apenas umas poucas coisas sobre esses estudos.

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Em primeiro lugar nós sabemos que cada livro, tendo tido uma origem individual, eventualmente ocupou seu lugar no conjunto ou cânon, isto é, uma lista ou grupo de escritos que constituem uma regra de fé e vida. Uma coleção semelhante já tinha acontecido dentro dos limites de um livro: os Salmos e os Provérbios foram escritos por várias pessoas e foram aos poucos sendo reunidos em um corpo de escritos. Mais tarde os vários livros foram reunidos em um único livro, que recebeu o nome de Bíblia. Contudo nós não devemos supor que a Igreja tenha feito esse cânon ou que tenha concedido autoridade canônica aos escritos dos profetas e dos apóstolos. Pelo contrário, esses escritos, desde o momento em que foram escritos foram autoritativos para a Igreja e foram usados como regra de fé e vida. A Palavra de Deus, não escrita antes e escrita mais tarde, não deriva sua autoridade do homem, nem mesmo dos crentes, mas de Deus, que zela por ela e faz com que seja reconhecida.

Quando o número de livros proféticos e apostólicos cresceu e quando outros escritos começaram a se desenvolver paralela-

mente a eles, não tendo sido escritos por profetas e apóstolos, mas que alegadamente tinham sido escritos por eles ou foram aceitos como tais, em alguns círculos, então tornou-se necessário que a Igreja distinguisse os ver-dadeiros livros canónicos dos livros falsos, alegados, apócrifos ou pseudo-epígrafes, e fizesse uma lista com os verdadeiros. Isso foi feito com os livros do Velho Testamento antes de Cristo, e com os livros do Novo Testamento no quarto século depois de Cristo. Há uma ciência que trabalha para investigar essa questão e lançar luz sobre a canonicidade da Bíblia.Em segundo lugar, deve ser mencionado o fato de que os manuscritos originais escritos pelos profetas e pelos apóstolos foram, sem exceção, perdidos. Nós te-mos apenas cópias deles. A mais antiga dessas cópias do Velho Testamento data do nono ou décimo século, e a mais antiga cópia do Novo Testamento data do quinto século depois de Cristos'. Em outras palavras, séculos separam os manuscritos originais das cópias que possuímos. Durante esse período o texto foi submetido a maiores ou menores mudanças. Por exemplo - só para mencionar um aspecto dessa questão tão complexa - não havia vogaisnem pontuação nos manuscritos hebraicos originais, e tanto umas como outras foram introduzidas nas cópias séculos mais tarde. A divisão em capítulos como a que conhecemos hoje, surgiu no começo do terceiro século, e a divisão em versículos data do sexto século. Por isso uma ciência especial era necessária para, fazendo uso de todos os meios, estabelecer o texto original e apresentá-lo como base para a exegese.

Em terceiro lugar, devemos observar que o Velho Testamento foi escrito em hebraico e o Novo Testamento foi escrito em grego. Portanto, no momento em que a Bíblia foi distribuída entre todos os povos que não entendi-am essas línguas, a tradução tornou-se necessária. No terceiro século antes de Cristo foi dado o primeiro passo, com a tradução do Velho Testamento para o grego. E depois a tradução do Velho Testamento e do Novo em mui-tas línguas antigas e - ainda hoje - em muitas línguas modernas continua sendo feita. Depois do reavivamento de missões ssoes aos povos pagãos ocorrido

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no século dezenove esse trabalho de tradução foi mais energicamente im-pulsionado e hoje partes da Escritura ou a Escritura inteira sac, encontradas em mais de quatrocentos idiomas. O estudo dessas traduções, especialmente as mais antigas, é muito importante para o entendimento adequado da Sagrada Escritura, pois cada tradução é um tipo de interpretação.

Em quarto lugar, finalmente, um tremendo amontoado de cuidado e esforço tem sido dedi-cado à interpretação da Sagrada Escritura. Isso começou nos dias dos antigos judeus, e atravessou os séculos, e agora existem em

nosso tempo. E embora seja verdade que cada exegeta tem sua própria inclinação, e que boa parte da interpretação tem sido parcial, a história da interpretação da Escritura tem tido um progresso; um progresso que cada século tem contribuído para aumentar. Em uma análise final é o próprio Deus que, apesar do erro humano, mantém Sua Palavra e faz com que Seus pensamentos triunfem sobre a sabedoria do mundo.

Capítulo 8

A ESCRITURA E A

CONFISSÃO

Não havia na época dos apóstolos e logo depois dela, escassez de diferenças sobre a essência do Cristianismo e sobre o relacionamento do Cristianismo com judeus e gentios. Todavia, é notável a unanimidade com que a Escritura tem sido aceita como Palavra de Deus em toda a Igreja Cristã.

Isso é verdade em primeiro lugar com relação ao Velho Testamento. No ensino de Jesus e dos apóstolos isso é constantemente mencionado. O Velho Testamento foi mencionado várias vezes. De forma totalmente imperceptí-vel, e como a coisa mais natural do mundo, a autoridade do Velho Testamento dos judeus foi inserida, através do ensino de Jesus e dos apóstolos, na Igreja Cristã. O Evangelho depende do Velho Testamento e não pode ser reconhecido sem ele. O Evange

lho é o cumprimento das promessas do Velho Testamento. Sem ele o Evangelho fica suspenso no ar. O Velho Testamento é o pedestal sobre o qual o Evangelho repousa, e a raiz da qual ele brota. Onde quer que o Evangelho encontre guarida, as Escrituras do Velho Testamento já tinham sido aceitas como Palavra de Deus. Em outra palavras, não existe algo como

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uma igreja do Novo Testamento sem a Bíblia, pois desde o começo a Igreja possuía a lei, os Salmos e os profetas.

Os escritos apostólicos foram adicionados ao Velho Testamento. Em parte esses escritos eram, assim como o Evangelho e as epístolas gerais, destinados a toda a Igreja. Em parte, algumas das epístolas foram endereçadas a igrejas específicas – a de Roma, de Corinto, de Colossos e de outros lugares.

É bastante natural que todos esses escritos, tendo vindo dos apóstolos e de pessoas a eles relacionadas, que gozavam de elevada reputação no início das igrejas cristãs, tenham sido lidos nas reuniões e que tenham até sido enviados para outras igrejas para que fossem lidos. Dessa forma, por exemplo, o apóstolo Paulo pediu que a carta que enviou à igreja de Colossos fosse lida na de Laodicéia, e que a de Laodicéia fosse lida em Colossos (Cl 4.16). E em 2Pedro 3. 15,16, Pedro faz menção não apenas de uma carta que seus leitores tinham recentemente recebido de Paulo, mas também fala de outras cartas de Paulo que ensinavam a mesma doutrina que Pedro também ensinava, mas que às vezes eram difíceis de entender e suscetíveis de serem distorcidas pelas pessoas instáveis. Nós não temos o direito de inferir que nessa época houvesse uma "coleção" das cartas de Paulo. O que nós podemos inferir é que os escritos de Paulo eram conhecidos em um círculo muito mais amplo do que o das igrejas locais às quais cada carta foi destinada. Naturalmente o conhecimento do Evangelho da maior parte das igrejas do primeiro período, veio através dos apóstolos e de seus discípulos.

Mas quando eles morreram e sua pregação não pôde mais ser ouvida, os escritos dos apóstolos

se tornaram, naturalmente, cada vez mais e mais valiosos. Do testemunho que chegou até nós de meados do segundo século nós sabemos que os Evangelhos e posteriormente também as epístolas ou cartas eram regularmente lidos na assembléia dos crentes, eram usados como evidência da verdade, e eram colocados na mesma linha de autenticidade dos livros do Velho Testamento. A partir do fim do segundo século os escritos do Novo Testamento junto com os do Velho Testamen-to eram considerados "toda a Escritura", como "a fundação e pilar da fé", como a Santa Escritura, e eram regularmente lidos nos serviços religiosos (Irineu, Clemente de Alexandria e Tertuliano). É verdade que com relação a alguns escritos (Hebreus, Tiago, Judas, 2 Pedro, 2 João, 3 João, Apocalipse e os livros posteriormente julgados apócrifos) perma-neceu, por longo tempo, uma diferença de opinião sobre se eles deveriam ou não ser aceitos como Sagrada Escritura. Mas essa questão foi gradualmente ganhando unanimidade. Os escritos geralmente reconhecidos eram reunidos e recebiam o nome de cânon (significando regra de

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verdade e fé), e foram registrados e estabelecidos como tais no Sínodo de Laodicéia no ano 360, em Hippo Regius na Numídia no ano 396 e em Cartago no ano 397.

Essas Escrituras do Velho e do Novo Testamento, constituem a fundação dos profetas e dos apóstolos sobre a qual todas as igrejas cristãs, em comunhão umas com as outras, constroem sua estrutura. Em suas confissões oficiais todas as igrejas reconhecem a autoridade divina dessas Escrituras e se apropriam dela como regra de fé e vida. Não tem havido diferença ou conflito sobre esse ponto do dogma entre as igrejas cristãs. Formalmente o ataque contra a Escritura como Palavra de Deus vem pelo lado de fora, dos filósofos pagãos como Celso e Porfirio no segundo século; de dentro da cristandade não aparece um ataque desse tipo desde o século dezoito.

A Igreja não recebeu essa Escritura de Deus para simplesmente repousar sobre ela, muito menos para enterrar esse tesouro na terra. Pelo contrário, a Igreja é chamada para preservar essa Palavra de Deus, explaná-la, prega-Ia, aplicá-la, traduzi-Ia, difundi-la no estrangeiro, recomendá-la e defendê-la – em uma palavra, fazer com que os pensamentos de Deus, revelados na Escritura, tri-unfem em todos os lugares e em todas as épocas sobre os pensamentos do homem. Toda a obra que a Igreja é chamada a fazer é ade ministrar a Palavra de Deus. A Igreja ministra a Palavra de Deus quando ela é pregada na assem-bléia dos crentes, é interpretada e aplicada, quando é compartilhada nos sinais do pacto e quando a disciplina é mantida. Em um sentido mais amplo, o serviço da Palavra é muito mais abrangente. Em nossos corações e vidas, em nossa profissão e negócios, em casa, no campo e no escritório, na ciência e na arte, no estado e na comunidade, em obras de misericórdia e missões, e em todas as esferas e caminhos da vida, essa Palavra deve ser aplicada, elaborada e aceita como regra. A Igreja deve ser o pilar e o terreno da verdade (1Tm 3.15), ou seja, deve ser um pedestal e uma fundação so-bre a qual a verdade seja apresentada, mantida e estabelecida contra o mundo. Quando a Igreja ne-gligencia e se esquece do seu dever com relação à Escritura ela se torna remissa em seu dever e mina sua própria existência.

Logo que a Igreja se torna frouxa no cumprimento de seu dever ela desenvolve uma diferença de opiniões a respeito da Palavra de Deus. Muito embora o Espírito Santo tenha sido prometido à Igreja e tenha sido dado

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como Guia para conduzi-Ia a toda verdade, isso não significa que a Igreja tenha sido, inteiramente, ou em suas partes, agraciada com o dom da infalibilidade. Até mesmo nas igrejas do período apostólico surgiram várias heresias que tinham seu ponto de partida no paganismo ou no judaísmo. Através da sucessão das eras esses são dois recifes nos quais a Igreja continuamente ameaça esbarrar, e eles devem, com muita vigilância e cuidado, ser evitados.

Contra tais heresias, tanto pela direita quanto pela esquerda, a Igreja é obrigada a falar resoluta e claramente afirmando qual é a verdade revelada por Deus em Sua Palavra. A Igreja faz isso nas menores e nas maiores assembléias (sínodos), nas quais estabelece, de acordo com suas convicções, o que deve ser aceito como verdade divina e dessa forma um ensino da Igreja sobre um determinado ponto em particular, ou outro. Dessa forma a Igreja se coloca sob a direção das Escrituras por parte daqueles que crêem e abraçam uma confissão, um credo. A confissão é a obrigação de todos os crentes, e é também um ditado deles aos seus próprios corações; a pessoa que realmente crê, com todo o seu coração e com toda a sua alma, não pode fazer outra coisa senão confessar, isto é, dar testemunho da verdade que a libertou e da esperança que foi plantada em seu coração por essaverdadea. Dessa forma todo crente e toda igreja – se o testemunho do Espírito Santo tem estado presente ali – confessa que a Palavra de Deus é a verdade. E como os erros e as heresias se desenvolvem sut i lmente, a Igre ja é impelida a fazer um cuidadoso registro da verdade que confessa e a estabelecer seu credo em termos bem definidos e precisos. Naturalmente, a confissão oral, por força das circunstâncias, torna-se uma confissão escrita.

Nós sabemos da existência daqueles que se levantam contra a formulação e manutenção de tais tipos de confissão eclesiástica . Os Remonstrantes" da Holanda, por exemplo, diziam que a confissão violava a autoridade exclusiva da Escritura, e a liberdade de consciência, e que impedia o desenvolvimento do conhecimento. Todavia, essas objeções são baseadas em equívocos. A função das confissões ou credos não é puxar a Escritura para trás, mas mantê-la e protege-la contra caprichos individuais. Longe de violar a liberdade da consciência, elas dão suporte a essa liberdade contra todo tipo de espíritos heréticos que procuram fazer com que almas fracas e desinformadas se extraviem. E,

finalmente, as confissões não impedem o desenvolvimento do co-nhecimento, mas conservam-no no curso correto do mesmo, e são elas mesmas checadas e revisadas à luz das Sagradas Escrituras, que são a única regra de fé. Tal exame e revisão podem acontecer a qualquer tempo, apesar de terem que ser feitos de forma segura e legítima.

O Credo Apostólico (os doze artigos) é o mais antigo dos credos. Ele não foi formulado pelos apóstolos, mas veio à existência no começo do segundo século. Ele foi desenvolvido a partir do comando batismal de Mateus 28.19. Originalmente ele era um pouco mais curto do que é agora, mas basicamente ele era o mesmo. Ele era um curto resumo dos fatos sobre os quais o cristianismo repousa, e como tal ele continua sendo um terreno comum e um vínculo

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inquebrável da unidade de toda a cristandade. A esse Credo Apostólico quatro confissões têm sido acrescentadas, todas de caráter ecumênico (isto é, geral), e todas elas são aceitas por muitas igrejas. São elas: o credo do Concílio de Nicéia em 325; o credo que no artigo IX da Confissão de Fé Reformada é chamado de credo niceno, mas que apesar de ter absorvido o credo de Nicéia, é na verdade, uma expansão desse credo e veio à existência bem mais tarde; o credo do Concílio de

Calcedônia em 451; e, finalmente, o credo equivocadamente chamado de credo de Atanásio.

Em todas essas confissões a doutrina

concernente a Cristo e à Trindade é afirmada. Esses

eram os pontos de litígio durante os primeiros

séculos. O que você pensa de Cristo? - essa era a

questão mais importante que, baseada na Palavra de

Deus, a Igreja tinha que responder para si mesma e

sustentar contra o mundo todo.

Para o lado judeu da questão foram todos aqueles que re-conheciam Jesus como um homem, um homem enviado por Deus, um homem dotado com habilidades especiais, animado pelo espírito profético, poderoso em palavras e obras, mas apenas um homem. E para o lado pagão foram todos aqueles que reconheciam Jesus como um filho dos deuses, uma divindade que veio dos céus e que, como os anjos do Velho Testamento, manifestou-se durante algum tempo sobre a terra em um corpo etéreo. Esses foram incapazes de confessá-lo como o Unigênito do Pai que se fez carne. Contra essas duas heresias, a Igreja, seguindo a linha da Escritura, tem que manter, por um lado, que Cristo é o unigênito Filho de Deus, e por outro lado que ele veio em carne. E essa foi a confissão de fé que a Igreja fez em seus credos depois de um longo debate. Ela rejeitou, juntamentecom o apóstolo João, todos os ensinos anticristiãos que negavam que o Filho de Deus veio em carne (1Jo 2.18,22; 4.2,3). Dessa forma a Igreja cristã, pela formulação e afirmação de tais credos, manteve a essência, o coração e o caráter peculiar da religião cristã. E é por isso que os concílios e sínodos nos quais essas confissões foram elaboradas são de tão grande e fundamental importância para toda a cristandade. Nos fatos do cristianismo, que a confissão apostólica resume, e na doutrina da pessoa de Cristo e do triúno ser de Deus, há um acordo nas igrejas cristãs que encaixa-as todas juntas como uma unidade contra o judaísmo e contra o paganismo. Essa é uma unidade que não pode, por causa das divisões que as separam, ser ignorada.

Fora dessa base comum desenvolveram-se todos os tipos de diferenças e divisões. O exercício da disciplina levou à separação dos Montanistas na segunda metade do segundo século, dos

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Novacianos na metade do terceiro século e dos Donafistas no quarto século. Muito mais sérios foram os cismas que gradativamente se desenvolveram entre as Igrejas do Ocidente e do Oriente. Muitas causas contribuíram para isso. Antes de mais nada foi a aversão entre gregos e latinos, a contínua tensão entre Constantinopla e Roma, a luta

pela supremacia entre os patriarcas e o papa. A essas foram sendo acrescentadas muitas diferenças menores sobre a doutrina e o culto. A mais importante delas foi a confissão da Igreja grega de que no ser de Deus o Espírito Santo não procedeu do Pai e do Filho, como a Igreja do Ocidente dizia, mas somente do Pai. A separação, que tinha acontecido periodicamente durante breves intervalos, tornou-se permanente em 1054. A Igreja do Oriente, que preferiu pensar de si mesma que era a Igreja Ortodoxa, pois supunha que tinha permanecido mais leal ao ensino da Igreja primitiva, sofreu grandes perdas com a formação de seitas (os Cristãos Armênios, Nestorianos na Síria, os Jacobitas na Síria, os Coptas no Egito, os Maronitas no Líbano) e também por causa dos muçulmanos, que em 1453 conquistaram Constantinopla. Ao mesmo tempo, a Igreja do Oriente, deu um passo im-portante com a conversão dos Eslavos e continua a existir como Igreja Ortodoxa na Grécia, Turquia, Rússia, Bulgária, Iugoslávia e Romênia.

A Igreja Católica do Ocidente, sob a liderança dos bispos de Roma, desdobrou-se cada vez mais no curso dos séculos. Um período de descanso, privilégio e

prestígio seguiu-se à conversão do Imperador Constantino, depois de um longo período de perseguição e ódio. E apesar da secularização ter tomado terreno, a Igreja desde o tempo da conversão de Constantino até o tempo da Reforma realizou muito. Durante os primeiros séculos a Igreja resistiu e conquistou o paganismo, trabalhou duro pela conversão das nações e pela civilização da Europa, manteve as grandes verdades do Cristianismo e a independência da Igreja com louvável firmeza, e cooperou efetivamente para o desenvolvimento da arte e da ciência cristã. Todavia, a despeito desses grandes méritos, não pode ser negado que em sua expansão e ascendência ao poder a Igreja moveu-se na direção que não era apontada pelo cristianis-mo apostólico. Isso tornou-se claro, especialmente, de três formas.

Em primeiro lugar a Igreja Católica elevou cada vez mais a tradição, dando-lhe o status de uma regra de fé independente, mantendo-a próxima e, algumas vezes, contra as Escrituras. Uma grande quantidade de doutrinas e usos da Igreja Católica, tais como a missa, o celibato para os religiosos, a canonização de santos, a concepção imaculada de Maria, e outros semelhantes não podem ser provados por qualquer texto da Escritura. Contudo tais doutrinas e práticas sãomantidas sobre a base da tradição. Com relação a essa tradição, é alegado que ela pode compreender apenas aquilo que "tem sido crido sempre e em todos os lugares, e por todas as pessoas% mas na análise final é o papa que deter-

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mina se algo pertence ou não à tradição.Dessa forma todo o relacionamento entre a Escritura e a Igreja tem sido mudado por Roma. A Escritura não é indispensável, mas meramente útil para a Igreja, mas a Igreja é indispensável para a Escritura, pois a Escritura não tem autoridade, a não ser que a Igreja lhe dê essa autoridade declarando-a merecedora de fé. Dessa forma a Escritura é obscura e necessita da ação da Igreja para que seja esclarecida; ela não precede e nem constitui o fundamento da Igreja; a Igreja tem precedência sobre ela e constitui a base so-bre a qual ela repousa. Embora os profetas e apóstolos tenham recebido o dom da inspiração, o papa também, quando f a l a "ex cathedra" em seu ofício papal, recebe o suporte especial do Espírito e assim torna-se infalível. A Igreja é suficiente em si mesma, e poderia, se assim o desejasse, existir sem a Escritura, e é a única, verdadeira e perfeita mediadora da salvação. A Igreja é também a possuidora e distribuidora dos benefícios da Graça contida nos sacramentos. A Igreja é o meio de

Graça, o estado e o reino de Deus na terra.Em segundo lugar, a Igreja Católica, se não perdeu o coração do Evangelho, isto é, a livre Graça de Deus, a justificação dos pecadores somente pela fé, pelo menos misturou-a com componentes impuros e assim confundiu a distinção entre a lei e o Evangelho. Essa distorção do Evangelho original aconteceu já nos seu primórdios, mas depois desenvolveu-se livremente e ganhou aprovação oficial. Na luta entre Agostinho e Pelágio, luta que ainda continua, a Igreja Romana, par-ticularmente depois da Reforma, tem se alinhado cada vez mais a Pelágio, dizendo que, de fato, Deus concedeu habilidade ao homem que ouve o Evangelho de abandonar os seus pecados e voltar-se para Deus e perseverar em sua conversão. Mas a disposição e a perseverança são contribuições do próprio homem. Por meio de boas obras, portanto, ele deve obter entrada no reino de Deus sobre a terra.

Essas boas obras são classificadas de duas formas pela Igreja Católica: as obras de obediência aos mandamentos regulares como se aplicam a todas as pessoas, e as obras destinadas à satisfação dos conselhos que Cristo acrescentou à lei (celibato, miséria e obediência). O primeiro caminho é um bom caminho, mas o

segundo é melhor e mais difícil, apesar de ser mais curto e mais seguro. O primeiro caminho é destinado às pessoas leigas, e o segundo aos religiosos – padres e freiras. Seja quem for que ande nesse caminho de boas obras receberá da Igreja, através dos sa-cramentos, sempre muito mais Graça do que tem merecido. Fi-nalmente, se perseverar até o fim, chegará – não ao tempo de sua conversão ou de sua morte, mas só depois de anos de sofrimento no purgatório – ao reino dos céus.

Em terceiro lugar, a Igreja Católica começou a fazer distinção entre o clero e o laicato. Não são os crentes em geral, mas os clérigos, que

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são apropriadamente os sacerdotes. E nesse status clerical várias classificações têm sido feitas.

No Novo Testamento os nomes presbítero e bispo são designações intercambiáveis para os mesmos ofícios. Mas logo no segundo século essa unidade foi omitida: o bispo foi elevado a um nível superior ao dos diáconos e presbíteros e gradualmente começaram a ser considerados sucessores dos apóstolos e preservadores da tradição. Esses bispos tinham cônegos, sacerdotes e capelães como seus inferiores e arcebispos, patriarcas e finalmente o papa como seus superiores. Essa hierarquia culminava no papa, que no Concílio Vaticano

de Roma, em 1870, foi oficialmente declarado infalível. Ele é o "pai" (papa significa pai) de toda a Igreja, o sumo sacerdote", o sucessor de Pedro, o vice-gerente de Cristo, a maior autoridade judicial e legislativa e aquele que, com a ajuda de um amplo colegiado de oficiais (cardeais, prelados, procuradores, notários, e outros ofícios semelhantes), governa toda a Igreja.

Esses erros, que têm seu ponto de partida em fracos desvios do curso correto, desenvolveram-se mais e mais no decorrer dos anos. Eles se desenvolveram e continuam a se desenvolver numa direção em que a velha igreja católica cristã está cada vez mais se tornando a Igreja Ultramontanista, Romana (isto é, inseparavelmente sujeita à igreja em Roma), e Papal, na qual Maria, a mãe de Jesus, e o papa como substituto de Cristo empurram a pessoa e obra de Cristo cada vez mais para trás.

As três heresias ou erros mencionadas acima representam uma redução dos ofícios profético, sacerdotal e real de Cristo, e uma violação deles.

Essa corrupção da Igreja não se desenvolveu sem enérgicos e constantemente renovados esforços para contê-la. Especialmente na Idade Média não havia escassez de pessoas e tendências que visassem introduzir melhoras. Mas todos esses movimentos tinham pouco sucesso nessa época. Alguns deles tinham muito pouco efeito prático. Outros foram suprimidos com sangue. Contra a Reforma do século dezesseis esses meios de repressão e ani-quilamento foram utilizados, mas nessa ocasião eles não tiveram sucesso. A época estava pronta para uma reforma. A Igreja chegou a um nível espiritual e ético tão baixo que não conseguia mais ganhar a confiança nem mesmo de seu próprio povo. Havia um senso comum em todos os lugares de que esse tipo de coisa não podia continuar acontecendo, e havia também o desejo de se fazer alguma coisa para mudar essa situação; e um bom número de pessoas, na Itália, por exemplo, caiu em zombaria e completa incredulidade. O que teria acontecido à Igreja sem a Reforma é difícil de imaginar. Ela foi uma bênção também para a Igreja Católica, e continua sendo ainda hoje.

A Reforma não foi apenas o único tremendo movimento exigido pelos novos tempos. Ela foi precedida, acompanhada e seguida por outros movimentos, e cada um deles teve sua importância na esfera da Reforma. A descoberta da

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arte da impressão e a descoberta da pólvora, a ascensão da classe média, a descoberta da América, o renascimento da literatura e da arte, a nova ciência e filosofia natural - todos esses importantes movimentos e eventos do despertar da auto consciênciae da transição da Idade Média para um novo tempo.

E a Reforma, apesar de ter procedido de seus próprios princípios e ter se dirigido aos seus próprios objetivos, deu origem e serviu de suporte para todos esses movimentos.

Além disso - e essa não é a consideração menos importante - A Reforma em oposição à Igreja Romana lançou-se à raiz do problema. Ela não se satisfazia com a melhoria das formas externas, mas insistia em que a causa da corrupção tinha que ser removida. Para isso ela precisava de um firme ponto de partida, uma norma ou critério confiável e um princípio positivo. Em contraste com a Igreja Romana, a Reforma encontrou essa norma não na tradição, mas na Palavra de Cristo, necessária para que a Reforma fosse merecedora de consideraçãoerespeito, necessária para a vidaebem estar da Igreja e também, totalmente suficiente e clara. A Reforma afirmou, contra as boas obras que a Igreja Romana tinha anexado à salvação do homem, a Palavra de Cristo, que é perfeitaeque não precisa de complementação humana. E, finalmente,

a Reforma afirmou, contra o papa, que se apresentava como o infalível representante de Cristo, que o Espírito de Cristo purifica a Igreja e conduz os filhos de Deus a toda verdade.A Reforma não encontrou seu princípio positivo através de investigações científicas e reflexão, mas através da experiência do coração culpado e oprimido, que encontrou reconciliação e perdão somente na livre Graça de Deus. A Reforma não foi um movimento filosófico nem científico. Ela teve um caráter religioso e moral. Como sempre acontece em casos de cisma e separação, muitos se identificaram com os cismáticos movidos por motivos impuros. Mas aqueles que estavam no coração e no centro da Reforma eram os cansados e sobrecarregados que estavam enfraquecidos sob o jugo da Igreja Romana e que agora tinham encontrado descanso para suas almas aos pés do Salvador.Essa experiência de perdão de pecados foi suficiente para Lutem. Foi suficiente para ele ter encontrado "um Deus gracioso". De fato, foi desse novo ponto de vista que ele começou a olhar e considerar o mundo mais livremente do que tinha feito na Igreja Romana, que sempre dá ao natural a qualidade de profano. Descansando inteiramente na justificação, que ele tinha obtido se-

mente pela fé, ele deixou que tudo que fosse secular - arte e ciência, estado e sociedade - seguisse seu própr io curso . A Reforma Luterana limitou-se à restauração do ofício da pregação. Quando ela encontrou na Escritura a resposta para a pergunta: "Como o homem é salvo?", ela desistiu de fazer esforço em qualquer outro sentido.

Para Zwínglio e Calvino, que fizeram a Reforma na Suíça, a obra começava no ponto em que tinha sido abandonada por Lutem. Eles também chegaram ao ponto da Reforma não através de argumentos racionais, mas através da experiência de pecado e Graça, culpa e

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reconciliação. Essa experiência foi seu ponto de partida, mas não foi seu luga r de descanso, nem o fim de sua jornada. Eles penetraram mais fundo, tanto para a frente quanto para trás. Atrás da Graça de Deus, que se expressa no perdão da culpa, está a soberania de Deus, o infinito e glorioso ser de Deus em todas as Suas excelências e perfeições. Eles viram que, assim como Deus era soberano na obra de salvação, Ele era soberano sempre em todos os lugares - tanto na criação quanto na recriação. Se Ele tinha se tornado Rei no coração do homem, Ele tinha se tornado Rei também em sua cabeça e em sua mão, em sua casa, e em seu trabalho, no estado e na

na ciência. Responder à questão: "Como o homem é salvo?" não era suficiente. Ela remeteu-se a outra questão, maior, mais profunda, e mais abrangente: "Como Deus é glorificado?". Portanto, para Zwínglio e também para Calvino, a obra de Reforma tinha apenas começado quando eles encontraram paz de coração no sangue derramado na cruz. Todo o mundo estava aberto diante deles, não para ser abandonado em seus próprios negócios, mas para ser penetrado e santificado pela Palavra de Deus e pela oração. Eles começaram seu envolvimento imediato dirigindo-se à igreja das cidades onde viviam. Eles restauraram não apenas o ofício da pregação, mas também o culto e a disciplina da igreja; eles reformaram não apenas a vida religiosa de domingo, mas também a vida social e cívica dos dias da semana; eles reformaram não apenas a vida privada do cidadão, mas também a vida pública do estado. A partir desse ponto sua Reforma se espalhou para outras terras e lugares. A Reforma Luterana limitou-se principalmente à Alemanha, Dinamarca, Suécia e Noruega, mas a Reforma de Calvino alcançou a Itália e a Espanha, a Hungria e a Polônia, a Suíça e a França, a Bélgica e a Holanda, a Inglaterra e a Escócia, os Estados Unidos e o Canadá. Se ela não tivesse sido neutralizada

e destruída pela Contra-Reforma dos Jesuítas em muitos países, ela teria colocado um fim ao domínio Romano.

Tal conquista, contudo, não seria permitida. A Reforma foi atacada pela Igreja Romana por todos os lados. No Concílio de Trento, Roma, deliberada e conscientemente, entrincheirou-se contra a Reforma e moveu-se na direção oposta a que a Reforma tinha tomado. Além disso a Reforma enfraqueceu-se por causa de divisões internas e disputas sem fim. Paralelamente a ela, ainda no século dezesseis, surgiram o anabatismo e o socianismo. Ambos procediam da mesma idéia básica, a saber, o incompatível conflito entre a natureza e a Graça. Essa mesma oposição entre a criação e a recriação, o humano e o divino, a razão e

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a revelação, o céu e a terra, a humanidade e a cristandade, continuou em atividade muito depois disso, e continua em atividade em nossos dias. As separações e cismas do século dezesseis não foram os únicos. A cada século esse número aumenta. O século dezessete viu nascer o Remonstrantismo na Holanda,

o lndependentismo na Inglaterra e o Pietismo na Alemanha. O século dezoito deu origem ao Herrnhutismo, Metodismo e Swedenborgianismo, e no mesmo século todas as igrejas foram atingidas pelo Deísmo. Depois da Revolução Francesa até o começo do século dezenove um poderoso reavivamento religioso ocorreu tanto nas igrejas romanas quanto nas protestantes. Mas a separação continuou. O Darbyismo, o Irvingismo, o Mormonismo, o Es-piritismo e todos os outros tipos de seitas surgiram de muitos fragmentos de igrejas que foram enfraquecidas e consumidas por um espírito interno de dúvida e indiferença. E, do lado de fora das igrejas, o poder do monismo, seja de tipo materialista ou panteísta, organizou suas forças para um assalto final e mortal contra toda a religião cristã.

Parece, portanto, que toda a esperança de unidade e universalidade da Igreja de Cristo está perdida. Contudo, há um conforto - Cristo reunirá Sua própria Igreja de todas as nações, povos, raças e línguas. Ele trará todas as suas ovelhas e elas ouvirão Sua voz. E então haverá um só rebanho e um só Pastor.

Capítulo 9

O SER DE DEUS

Até aqui nós discutimos a n a t u r e z a d a r e v e l a ç ã o que Deus nos deu em Sua Graça, fizemos algumas considerações sobre como a revelação veio à existência, e como, sob a normativa direção dos credos e das confissões, nós a temos conhecido. Também vimos o conteúdo da revelação e mostramos como essa revelação age na mente e no coração, no entendimento e na vida. Se nós estivemos olhando o edifício da revelação pelo lado de fora e tivemos alguma noção de sua arquitetura, nós vamos agora entrar no santuário para contemplar todo o tesouro de sabedoria e conhecimento contido nele e vamos deleitar nossos olhos nesse banquete.

Não é necessário afirmar que nós podemos desenvolver o rico conteúdo dessa revelação de várias formas, e podemos colocar

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diante de nós seus vários modelos. Nós não vamos discutir cada uma dessas formas e modelos. Nós vamos limitar a discussão a dois métodos nos quais o conteúdo da doutrina cristã pode ser tratado, e freqüentemente é.

Em primeiro lugar, nós podemos ir direto ao cristão que, com

a verdadeira fé em seu coração, que aceita o conteúdo da

revelação, e então perguntar a ele de que forma ele chegou

ao conhecimento da verdade, de quais pontos esse

conhecimento consiste, e que fruto esse conhecimento tem

produzido em seu pensa mento e em sua vida. Esse é o ponto

de vista assumido pelo nosso Catecismo de Heidelberg. O

narrador desse catecismo é o cristão. Ele dá um abrangente e

claro registro daquilo que na vida e na morte é seu único

conforto e dos vários pontos que é necessário conhecer se

quiser viver e morrer abençoadamente nesse conforto. Esse é um

bonito método de tratamento. Ele relata a verdade imediatamente a

toda a vida cristã, resguarda-a contra todos os argumentos aca-

dêmicos e especulações inúteis, e em sua aproximação de toda dou-

trina aponta diretamente para o que é de valor para a mente e para

o coração. Que benefício e conforto você recebe por crer em tudo

isso? Que eu sou justificado diante de Deus em Cristo e um her-

deiro da vida eterna.

Mas há também outra forma pela qual as verdades da fé po-

dem ser consideradas. Nós não estamos limitados ao método de

voltar ao cristão e perguntar-lhe em que ele crê. Nós podemos

também nos colocarmos na posição do cristão e assim tentar dar a

nós mesmos e aos outros um registro baseado na Escritura do

conteúdo de nossa fé. Dessa forma nós não vamos deixar que o

desenvolvimento de nossa confissão seja determinado pelas ques-

tões que nos são dirigidas sobre ela.

De acordo com esse segundo método nós mesmos vamos

expor positivamente o conteúdo de nossa fé. Em vez disso nós ten-

tamos traçar que ordem está objetivamente presente nas verda-

des da fé, como estão elas relacionadas umas às outras e qual é o

princípio governante de todas

elas. Essa é a ordem seguida na Confissão de Fé Reformada. Nessa

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Confissão o cristão também é o narrador, mas ele não espera que as perguntas lhe sejam impostas. Em vez disso ele mesmo explica o conteúdo de sua fé. Ele crê com seu coração e confessa com sua boca que Deus fala às igrejas em Sua Palavra através de Seu Espí-rito.

Esses dois métodos de tra-tamento, evidentemente, não sãoopostos um ao outro. Eles se com-pletam entre si e são ambos degrande valor. Para as igrejas Re-formadas e também para as Esco-las Cristãs Reformadas, é um pri-vilégio inavaliável que nós pos-suamos a Confissão de Fé parale-lamente ao Catecismo, e o Cate-cismo paralelamente à Confissãode Fé. 0 que os dois juntos nosdão é o objetivo e o subjetivo, oteológico e o antropológico. Elesestão mesclados e o coração e amente são reconciliados atravésdeles. Dessa forma a verdade deDeus se torna uma bênção tantopara a mente quanto para a vida.Que esses dois métodos deorganização do conteúdo da reve-lação não são opostos, mas com-plementares e se equilibram umao outro, é fartamente provadopelo fato de que, não apenas noCatecismo, mas também na Con-fissão de Fé, é o cristão quem fala.Em ambos o cristão não está iso-lado, mas é um companheiro de

todos os seus irmãos e irmãs. É a Igreja, o corpo dos crentes, que se

expressa nele. Todos nós cremos com o coração e confessamos com

a boca – tais são as palavras de abertura da Confissão e assim ela

continua, e assim ela termina. É uma verdadeira confissão cristã

contendo o sumário da doutrina de Deus e da eterna salvação das

almas.

A doutrina de Deus e a dou-trina da eterna salvação das almasnão são duas doutrinas indepen-dentes que nada têm a ver umacom a outra. Pelo contrário, elasestão inseparavelmente relaciona-

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das uma com a outra. A doutrinade Deus é ao mesmo tempo adoutrina da eterna salvação dasalmas, e a segunda está incluídana primeira. 0 conhecimento deDeus na face de Jesus Cristo, SeuFilho, essa é a vida eterna (Jo 17.3).Esse conhecimento de Deusé diferente em tipo, mas não emgrau daquele que nós obtemos navida diária ou na escola. É umtipo peculiar de conhecimento.Ele difere em princípio, objeto eefeito de todo tipo de conheci-mento, como já mostramos no ca-pítulo 2. Esse conhecimento estáligado à mente e também ao cora-ção. Ele não nos toma mais "estu-dados", mas ele nos torna maissábios, melhores e mais felizes.Ele nos torna abençoados e nos dáa vida eterna, no porvir e aqui eagora. As três coisas que é neces-

sário que nós conheçamos não terminam aqui. Nós devemos ser abençoados também na morte. Esse é o nosso fim, e nós devemos, também na vida, ser abençoados.

Aquele que crê no Filho tem a vida (jo 3.16). Abençoados são os puros de coração, pois possu-em a promessa de que verão a Deus (Mt 5.8), pois foram salvos na esperança (Rm 8.24).

Uma vez que tenhamos recebido o princípio da vida eterna em nossos corações, nós não podemos fazer outra coisa senão conhecer mais sobre Aquele que nos concede essa vida. Mais e mais nós olhamos para Aquele que é a fonte de nossa salvação. Do conforto que nós desfrutamos em nossos corações, e do benefício e do fruto que o conhecimento de Deus produz em nós mesmos e em nossas vidas, nós sempre voltamos ao culto do Ser Eterno. E então, nós descobrimos que Deus não existe para nós, mas nós existimos para Ele. Nós não estamos ignorando nossa salvação, estamos apenas afirmando que essa salvação é um meio para que Ele seja glorificado. 0 conhecimento de Deus nos deu vida, e a vida que foi dada nos

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conduz de volta ao conhecimento de Deus. Em Deus nós encontramos todo o nosso bem estar e toda a nossa

glória. Ele se torna o objeto de nosso culto, o tema de nossa can-

ção, a força de nossa vida. De Deus, através de Deus e para Deus são

todas as coisas - essa se torna a escolha de nosso coração e o tema

de nosso trabalho. Nós mesmos e todas as criaturas ao nosso redor

nos tornamos meios para que Ele seja glorificado. A verdade é que

nós amamos primeiramente porque Ele nos deu vida, e depois

disso Ele se tornou cada vez mais e mais querido a nós, por causa de

Si mesmo, por causa do que Ele nos revela a respeito do Seu Ser

Eterno. Toda a doutrina de fé, no todo ou em partes, torna-se uma

proclamação de louvor a Deus, uma exibição de Suas excelências,

uma glorificação de Seu nome. 0 Catecismo nos conduz à Confissão

de Fé.

Quando nós tentamos refletir sobre o significado do fato de

nós, criaturas pobres, fracas e pecadoras, termos conhecimento do

Deus Infinito e Eterno, uma profunda reverência e uma timidez

santa apertam nossos sentimentos. Será verdade que na mente

escurecida de um ser humano culpado, alguma luz pode cair

daquele que nenhum homem pode ver, que mora em luz ina-

cessível (ITm 6.16), que é pura luz e em quem não há escuridão (ljo

1.5)?

Há muitas pessoas e ainda haverá muitas outras, que dão

uma resposta negativa a essa questão. Mas a negação da cognoscibilidade de Deus pode ter sua origem em dois tipos de atitudes mentais. Hoje em dia esse temperamento cético é o re-sultado de argumentos científicos puramente abstratos e racio-nalistas.

Os céticos dizem que o conhecimento que está disponível à

mente humana é limitado aos f enômenos empiricamente obser-

váveis, eles argumentam que é uma contradição afirmar, por um

lado, que Deus tem personalidade, mente e vontade, e, por outro

lado, afirmar que Ele é infinito, eterno e absolutamente indepen-

dente.

A esses céticos nós prontamente replicamos que de fato não

pode haver conhecimento de Deus na mente do homem, a

menos que Deus, de uma forma geral na natureza e na história,

Page 115: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

ou de uma forma especial em Seu Filho, revele-se a Si mesmo.

Portanto, se Deus revelou-se a Si mesmo, segue-se que Ele pode ser

conhecido na medida em que se revelou. Mas se alguém afirmar

que de nenhuma forma e por nenhum meio Ele se revelou, a im-

plicação é que o mondo tem existido eternamente paralelo i Deus

e independente dele, e que Deus não poderia revelar-se nele ou

através dele. E essa implicação considerada em toda a sua pro-

fundidade seria que nós nunca poderíamos falar sobre Deus, pois

essa palavra seria apenas um som vazio, que não possui fundo ou

base na realidade. 0 assim chamado agnosticismo (a doutrina da

incognoscibilidade de Deus) tomar-se-ia, na prática, idêntica ao

ateísmo (a negação da existência de Deus).

Mas essa negação da cognoscibilidade de Deus, também

pode surgir de um profundo senso de pequenez e nulidade

combinado com a infinita grandeza e a majestade esmagadora de

Deus. Nesse sentido, o reconhecimento de que nós nada sabemos e

de que o conhecimento de Deus é maravilhoso demais para nós,

tem sido a confissão de todos os santos. Nos pais e mestres da Igre-

ja a afirmação geralmente é que, refletindo sobre Deus, o homem

poderia na análise final dizer melhor o que Deus não é do que o

que Deus é. Calvino em algum lugar admoesta seus leitores anão

tentar, por sua própria força, descobrir os segredos de Deus, pois

esses mistérios transcendem nossa frágil capacidade de conheci-

mento.

Apesar dessa humilde confissão da sublime majestade de Deus e da pequenez do homem, poder, em um certo sentido, ser chamada de negação da cognoscibilidade de Deus, parece que, a fim de evitarmos um entendimen

to equivocado, e de acordo com o ensino da Palavra de Deus, nós

devemos fazer distinção entre a cognoscibilidade de Deus e a Sua

insonclabilidade. Certamente não há livro no mundo que, na mes-

ma extensão e da mesma forma que a Sagrada Escritura, sustente a

absoluta transcendência de Deus sobre todas as criaturas e ao mes-

mo tempo sustente o íntimo relacionamento entre a criatura e seu

Criador.

Page 116: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

Logo na primeira página da Bíblia, a absoluta transcendência de Deus sobre todas as Suas cria-turas chama nossa atenção. Sem esforço ou fadiga Ele chama o mundo à existência somente através de Sua palavra. Os céus por Sua palavra se fizeram, e, pelo sopro de Sua boca, o exército de-les (SI 33.6). Pois Ele falou, e tudo se fez; Ele ordenou, e tudo passou a existir (SI 33.9). Segundo a Sua vontade Ele opera com o exército do céu e os moradores da terra; não há quem possa lhe deter a mão e dizer: Que fazes? (Drí 4.35). Eis que as nações são consideradas por Ele como um pingo que cai de um balde, e como um grão de pó na balança; as ilhas são como pó fino que se levanta. Nem todo o Líbano basta para queimar, nem todos os seus animais, para um holocausto. Todas as nações

são perante Ele como coisa que não é nada; Ele as considera me-

nos do que nada, como um vácuo. Com que comparareis a Deus? Ou

que coisa semelhante confrontareis com Ele? (Is 40.15-181 Pois

quem nos céus é comparável ao Senhor? Entre os seres celestiais,

quem é semelhante ao Senhor? (SI 89.6). Não há nome pelo qual Ele

verdadeiramente possa ser chamado: Seu nome é maravilhoso".

Quando Deus fala a Já de dentro de um redemoinho e coloca a

magnitude de Suas obras diante dele, lb humildemente curva sua

cabeça e diz: Sou indigno; que te responderia eu? Ponho a mão na

minha boca (Já 40.4). Deus é grande, e nós não podemos

compreendê-lo (Já 36.26). Tal conhecimento é maravilhoso de-

mais para mi= é sobremodo elevado, não o posso atingir (SI

139.6).

Contudo, esse mesmo Deus exaltado e sublime mantém um

íntimo relacionamento com todas as Suas criaturas, até mesmo com a

menor e mais miserável. 0 que as Escrituras nos dão não é um

conceito abstrato de Deus, como o que os filósofos nos dão, A Es-

critura coloca diante de nós o Deus vivo e deixa que nós o vejamos

pelas obras de Suas mãos. Nós temos que levantar nossos olhos e

ver que Ele fez todas as

coisas. Todas as coisas foram feitas pela sua mão, criadas por Sua

vontade e por Seu ato. E todas elas são sustentadas pelo Seu po-

der. Portanto todas as coisas apresentam o selo de Suas excelênci-

as e a marca de Sua bondade, sabedoria, e poder. E dentre todas

Page 117: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

as criaturas somente o homem foi criado à Sua imagem e semelhan-

ça. Somente o homem é chamado de geração de Deus (At 17.28).

Por causa desse relacionamento íntimo, Deus pode ser

chamado em termos de Suas criaturas, e podemos falar dele

antropornorticamente. A mesma Escritura que fala de modo mais

exaltado da incomparável grandeza e majestade de Deus, ao mes-

mo tempo fala dele em figuras e imagens refulgentes. Ela fala de

Seus olhos e ouvidos, de suas mãos e pés, de Sua boca e de Seus

lábios, de Seu coração e de Suas entranhas. Ela descreve todos os

tipos de atributos de Deus - de sabedoria e conhecimento, vontade

e poder, justiça e misericórdia, e descreve também Suas emo-

ções, tais como, alegria e pena, ira, zelo e ciúme, arrependimento,

ódio e raiva. A Escritura fala de Deus pensando e observando, ou-

vindo e vendo, lembrando-se e esquecendo-se, cheirando e pro-

vando, sentando-se e levantando-se, visitando e abandonando,

abençoando e castigando. A Escritura compara Deus com o sol e

com a luz, com uma fonte e com uma nascente, com uma rocha e

com um refúgio, com uma espada e com um escudo, com um leão

ecom um juiz, com um marido e com um pastor, com um homem*com um pai. Em resumo, tudo*que pode ser encontrado em todo o mundo na forma de suporte, e abrigo e socorro é original e abundantemente encontrado em Deus. De Deus toda a família, tanto no céu como sobre a terra, temionome (Ef 3.15). Ele é o Sol e todas as criaturas são Seus raios.

É importante, portanto, na questão do conhecimento de

Deus, manter esses dois tipos de afirmações concernentes ao Ser

divino e fazer justiça tanto a um quanto ao outro, pois se nós sa-

crificamos a absoluta transcendência de Deus sobre todas as Suas

criaturas, nós caímos no politeísmo (a religião pagã de muitos

deuses) ou no panteísmo (a religião na qual tudo é Deus), duas

religiões que, de acordo com a lição da história, estão intimamente

relacionados um com o outro e facilmente pode-se passar de um

para o outro.

E se nós sacrificamos o íntimo relacionamento de Deus com

Suas criaturas nós caímos na esteira do Deísmo (crença em Deus

sem auxílio de uma revelação) ou no ateísmo (a negação da existên

cia de Deus), duas religiões que, assim como as outras duas, pos-

Page 118: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

suem muitas características em comum uma com a outra.

A Escritura apega-se aos dois grupos de características

(transcendência e relacionamento), e a teologia cristã tem seguido

essa norma. Deus realmente não tem um nome de acordo com o

qual nós possamos conhecê-lo verdadeiramente, e Ele se chama e

nos deixa chamá-lo por muitos, muitos nomes. Ele é o infinita-

mente exaltado, e ao mesmo tempo é aquele que vive com todas

as Suas criaturas. Em certo sentido nenhum dos Seus atributos

pode ser compartilhado, e em outro sentido eles podem ser com-

partilhados. Nós não podemos sondar esses atributos com nossa

mente. Não existe algo como um conceito adequado de Deus. Nin-

guém pode dar uma definição, uma delimitação de Deus que seja

adequada ao Seu Ser. 0 nome que expresse plenamente o que Ele é

não pode ser encontrado. Mas um grupo de características como as

que foram dadas acima não entra em conflito com o que Ele é. Pre-

cisamente porque Deus é o Alto e Exaltado, e vive na eternidade,

Ele também mora com aqueles que são contritos e abatidos de

espírito (Is 57.15). Nós sabemos que Deus não se revela para que

nós formulemos um conceito filosófico de Deus a partir de sua re-

velação, mas para que nós aceitemos o Deus vivo e verdadeiro como nosso Deus, e que o reco-nheçamos e o confessemos. Essas coisas são escondidas dos sábios e entendidos, mas são reveladas aos pequeninos (Mt 11.25).

0 conhecimento que nós obtemos de Deus através de Sua

revelação é, portanto, um conhecimento de fé. Ele não é adequa-

do, no sentido de que não é equivalente ao Ser de Deus, pois Deus é

infinitamente exaltado acima de todas as Suas criaturas. Tal conhe-

cimento não é puramente simbólico – ou seja, formulado em ex-

pressões arbitrariamente formadas e que não correspondem à

realidade; em vez disso esse conhecimento é ectípco (ectípco:

uma impressão) ou analógico (analogia: correspondência ou si-

milaridade em forma) porque é baseado na semelhança e no rela-

cionamento que, não obstante a absoluta majestade de Deus, exis-

te entre Deus e todas as obras de Suas mãos. 0 conhecimento que

Deus dá de si mesmo na natureza e na Escritura é limitado, finito,

fragmentário, mas é verdadeiro e puro. Assim é Deus, e Ele se re-

Page 119: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

velou em sua Palavra e especificamente em e através de Cristo; e

só Ele preenche as necessidades de nosso coração.

0 esforço de se levar em conta todos os dados das Sagra-

das Escrituras quanto sua doutrina a Deus e manter tanto Sua

transcendência quanto Seu relacionamento com Suas criaturas, le-

varam a Igreja Cristã a fazer distinção entre dois grupos de atri-

butos do Ser divino. Esses dois grupos receberam vários nomes

desde os tempos da Igreja primitiva. A Igreja Romana ainda pre-

fere falar em atributos negativos e positivos, os luteranos falam em

atributos inativos e operativos e a Igreja Reformada fala em atribu-

tos incomunicáveis e atributos comunicáveis. Todavia, no fundo,

essa divisão é equivalente em todas essas igrejas. 0 objetivo de

cada uma delas é insistir na transcendência, de Deus (Sua distinção

e Sua elevação sobre todo o mundo) e em Sua imanência (Seu

contato e Sua habitação no mundo). Os nomes Reformados de

atributos incomunicáveis e atributos comunicáveis fazem mais

justiça ao seu propósito do que os nomes dados pelos católicos e

pelos luteranos. A insistência sobre o primeiro grupo de atributos

livra-os do politeísmo e do panteísmo; e a insistência sobre o

segundo grupo protege-os contra o deísmo e o ateísmo.

Apesar de todas as nossas designações para esses atributos serem inadequadas, não há objeções convincentes para que deixe-

mos de usar os termos Reformados. 0 que nós devemos fazer é

nos lembrarmos que os dois grupos de atributos, incomunicáveis e

comunicáveis, não ficam um ao lado do outro em total separação. A

força da distinção não deve ser perdida, e a verdade dessa distin-

ção é que Deus possui todos os Seus atributos incomunicáveis em

um sentido absoluto e infinito e, portanto, incomunicável grau. É

verdade que o conhecimento de Deus, Sua sabedoria, Sua bonda-

de, Sua justiça e outros atributos do mesmo tipo, possuem certas

características em comum com aquelas mesmas virtudes que

existem em suas criaturas, mas elas são peculiares a Deus de uma

forma independente, imutável, eterna, onipresente, simples – ou,

em uma palavra, em uma forma absolutamente divina.

Nós, como seres humanos, podemos fazer distinção entre o ser e

os atributos de pessoas. Um ser humano pode perder seu braço ou

Page 120: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

sua perna, ou, em um estado de sono ou doença, perder a

consciência, sem deixar de ser humano. Mas em Deus isso é impos-

sível. Seus atributos coincidem com Seu Ser. Todo atributo é Seu

Ser. Ele é sabedoria, verdade, santidade, justiça e misericórdia. Por-

tanto Ele é, também, a fonte de todos os atributos do homem. Ele é

tudo o que Ele possui e é a fonte de tudo o que Suas criaturas

possuem. Ele é a abundante fonte de todos os bens.

Os atributos incomunicáveis de Deus são aquelas virtudes ou excelências que demonstram que tudo o que existe em Deus, existe em uma forma absolutamente divina, e, portanto, não pode ser compartilhada com Suas criaturas. Esse grupo de atributos afirma a absoluta exaltação e incomparabilidade de Deus, e tem sua expressão máxima no nome Eloffim, ou Deus. De fato o nome deus é também aplicado às criaturas na Bíblia. As Escrituras mencionam não apenas os ídolos dos pagãos como deuses, como por exemplo quando nos proíbe de ter qualquer outro deus diante do Deus vivo (Ex 20.3). Elas também designam Moisés como deus para Aarão (Ex 4.16) e para Faraó (Ex 7.1), e falam dos juizes como deuses entre os homens (SI 82.1,6); e Cristo apela a essa designação dos Salmos em Sua própria defesa (Jo 10.33-35).

Contudo esse uso da linguagem é derivado, imitativo. 0 nome de deus original e essencialmente pertence somente a Deus. É com esse nome que nós sempre associamos a idéia de um ser pessoal, mas que também é poderoso acima de todas as Suas criaturas e de tipo eterno.

O mesmo acontece com os atributos incomunicáveis que Ele possui. Eles são peculiares e próprios somente dEle, não são encontrados nas criaturas, e não podem ser compartilhados com elas, pois todas as criaturas são dependentes, mutáveis, compostas e sujeitas ao tempo e ao espaço.

Mas Deus é independente no senti-

do de que Ele não é determinado por nada e tudo é por Ele deter-minado (At 17.20; Rm 11.36). Ele é imutável, pois Ele permanece o mesmo para sempre, enquanto que todos os tipos de variações e mudanças são próprios das criaturas e do relacionamento que elas mantêm com Deus (Tg 1.17). Ele é simples, não composto, com-

Page 121: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

pletamente livre de toda composição de espírito e matéria, pen-samento e extensão, ser e propriedades, razão o vontade, compo-nentes de qualquer espécie e tudo * que Ele tem é pura verdade, vida * luz". Ele é eterno, pois transcende o tempo e penetra todos os momentos do tempo com Sua eternidade (SI 90.2). E Ele éonipresente, pois transcende todoo espaço e ainda preenche todos os pontos do espaço com Seu

poder e com Sua força sempre presente".

Nos tempos modernos há poucos observadores que negam todo o

mérito religioso desses atributos incomunicáveis e nada vêem

neles, além de abstrações metafísicas. Mas o oposto é provado

pelo fato de que qualquer sacrifício dessas distinções, ime-

diatamente abre a porta para o panteísmo ou o politeísmo.

Se Deus não é independente e imutável, eterno e onipresente, simples e livre de composição, então Ele é puxado para o nível da criatura e identificado com o mundo em sua totalidade ou com =a de suas forças. 0 número está sempre aumentando daqueles que trocam o Deus da revelação por uma imanente força mundial ou daqueles que confessam o politeísmo em vez de um único e verdadeiro Deus. Está claro que

a unidade e a indivisibilidade de

Deus estão diretamente relacionadas com os Seus atributos inco-municáveis". Deus é o único Deus somente se ninguém e nada puder ser o que Ele é paralelamente a Ele ou sobre Ele. E somente se Ele for independente, imutável, eterno e onipresente Ele pode ser o Deus de nossa fé incondicional, de nossa absoluta confiança, e de nossa perfeita salvação.

Entretanto, nós precisamos de algo mais do que esses atri-

butos incomunicáveis. Que bem nos faria saber que Deus é inde-

pendente e imutável, eterno e onipresente, se nós não soubés-

semos que Ele é compassivo, gracioso e muito misericordioso? É

verdade que os atributos incomunicáveis nos falam da forma pela

qual tudo o que está em Deus existe nEle; mas eles nos deixam

nas trevas a respeito do conteúdo do Ser divino. Isso não acontece

com os atributos comunicáveis. Eles nos mostram que esse Deus

que é tão infinitamente exaltado e sublime também mora com

Suas criaturas, e possui todas as virtudes que em uma forma

derivada e limitada também são próprias das Suas criaturas. Ele

não é apenas um Deus de longe, mas também de perto. Ele não é

Page 122: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

apenas independente e imutável, eterno e onipresente, mas

também sábio e poderoso, justo e santo, gracioso e miseri-

cordioso. Ele é não apenas Elobim, mas também Jeová.

Assim como os atributos incomunicáveis são bem expressos no nome Elohim, assim também os atributos comunicáveis são bem expressos no nome Jeová. A derivação e o significado original desse nome não são do nosso conhecimento. Muito provavelmente ele existiu por algum tempo antes de Moisés - como parece ser

sugerido pelo nome próprio Joquebede, mas nesse tempo Deus

ainda não tinha ainda se feito conhecido por esse nome ao Seu

povo. Ele se revela a Abraão como El Shadai, o Deus todo po-

deroso (Gn 171; Ex 6.2), que domina todas as forças da natureza

e faz com que elas sirvam à Sua Graça. Mas agora que centenas de anos se passaram e Deus parece ter se esquecido de Seu pacto com os patriarcas e Sua promessa a eles, então Ele se faz conhecido a Moisés como Jeová, ou seja, comoo Deus que é o mesmo que apareceu aos patriarcas, que é fiel ao Seu pacto, que cumpre Sua promessa, e que, através dos séculos, se mantém sempre ao lado de Seu povo. 0 significado de Jeová, então, é: Eu sou o que sou (Eu sereio que serei) e esse nome revela a fidelidade imutável de Deus em Seu relacionamento com Israel. Jeová é o Deus do pacto que, de acordo com Seu amor soberano, escolheu Seu povo e fez dele propriedade Sua. Dessa forma, enquanto o nome Elohim, Deus, aponta para o Ser eterno, em Sua soberana elevação sobre o mundo, o nome feová, Senhor, afirma que esse mesmo Deus tem voluntariamente se revelado ao Seu povo como um Deus de santidade, Graça e fidelidade.

Toda a questão religiosa de Israel, desde os tempos antigos até os nossos dias, está relaciona-

da, em sua essência, com a questão de quem é Deus. Os pagãos e muitos filósofos antigos e modernos dizem que Jeová é apenas o Deus de Israel – um Deus, limitado, nacional e pequeno. Mas Moisés e Elias e todos os profetas, Cristo e todos os Seus discí-pulos, tomam a posição oposta e dizem que só o Senhor, que fir-mou um pacto com os patriarcas

ecom o povo de Israel, é o único, eterno e verdadeiro Deus, e que não há outro além dEle (Is 43.10- 15; 44.6). Portanto Jeová de fato éoverdadeiro e característico nome de Deus (Is 42.8; 48.12). 0 Deus do pacto que de forma tão condescendente veio para o Seu povo e que mora com aqueles que são contritos e humildes de espírito é, ao mesmo tempo, o Alto e Sublime (Is 57.15).

Como podemos ver, esses dois tipos de atributos não entram em conflito um com o outro. Nós podemos dizer que cada atributo ilumina e reforça os outros. Considere, por exemplo, o amor de Deus. Nós não poderíamos falar sobre ele se o

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atributo que o homem chama de amor não fosse, em um certo sentido, uma impressão, imagem, ou semelhança do amor que existe em Deus. Há

uma certa correspondência entreoamor divino e o amor humano, ou então tudo o que nós estamos falando sobre o amor de Deus é um som vazio. Contudo essa si-

milaridade não significa identidade. 0 mais puro e mais forte amor entre os homens é apenas um fraco reflexo do amor que existe em Deus. Podemos aplicar aqui o que aprendemos sobre os atributos incomunicáveis de Deus. Com eles nós aprendemos que o amor de Deus transcende o amor de Suas criaturas, pois o amor de Deus é independente, imutável, simples, eterno e onipresente. Ele não depende de nós, nem é despertado por nós, mas flui, livre e puro, das profundezas; do Ser divino. Ele não conhece variação, não aumenta nem diminui, não aparece nem desaparece, e não há nem mesmo sombra de mudança nEle. Ele não é meramente uma propriedade do Ser divino isolada de outras propriedades ou atributos, e nunca entra em conflito com eles, mas coincide com o Ser divino. Deus é amor, completa e perfeitamente, e com todo o Seu Ser, Deus é amor. Esse amor não é sujeito ao tempo e ao espa-ço, mas está acima tanto de um quanto de outro, e vem da eterni-dade para o coração dos filhos de Deus. Tal amor é absolutamente digno de confiança. Nossa alma pode descansar nele em qualquer necessidade, inclusive na morte, e se tal Deus de amor é por nós, quem será contra nós? E o mesmo pode ser dito de todos os atri-butos comunicáveis. Há nas criaturas de Deus uma vaga seme-

lhança do conhecimento e da sabedoria, da bondade e da Graça,

da justiça e da santidade, da vontade e do poder que são próprios

de Deus. Tudo o que é transitório é uma imagem. 0 visível veio a

existir das coisas que não parecem (Hb 11.3). Todos esses atributos

estão presentes em Deus de forma original, independente,

imutável, simples e infinita. Sabei que o Senhor é Deus; foi Ele quem

nos fez, e dEle somos, somos o Seu povo e rebanho do Seu pastoreio

(SI 100.3).

Os atributos comunicáveis são tão numerosos que é impos-

sível enumerá-los e descrevê-los aqui. Se nós quiséssemos tratar

deles adequadamente nós teríamos que fazer uso de todos os

nomes, imagens e comparações que as Sagradas Escrituras usam

para nos dar uma idéia de quem e de que Deus é para Suas criatu-

ras e, especificamente, para Seu povo. As Escrituras, como nós in-

dicamos de passagem, mencionam os órgãos do corpo de Deus,

tais como olhos e ouvidos, mãos e pés. Ela transfere para Deus ca-

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racterísticas humanas, tais como emoções, paixões, decisões e

ações. Ela se refere a Ele com os nomes de ofícios e vocações como

as que são encontradas entre os seres humanos, chamando-o de

rei, legislador e juiz, guerreiro e herói, marido e pastor, homem e

pai. A Escritura usa todo o mun

do orgânico e inorgânico para fazer com que Deus seja real para

nós, e compara-o com um leão, urna águia, um sol, um fogo, uma

fonte, um escudo, e assim por diante. E todas essas formas de ex-

pressão constituem forma de ajudar-nos a conhecer Deus e dar-nos

uma profunda impressão da auto suficiência de Seu Ser. Nós, seres

humanos, precisamos de todo o mundo ao nosso redor para nossa

existência física e espiritual, pois nós somos pobres e fracos em nós

mesmos e nada possuímos. Mas tudo isso de que nós precisamos,

tanto para alma quanto para o corpo, tanto para o tempo quanto

para a eternidade, está, sem exceção, disponível para nós -

original, perfeito e infinito - em Deus. Ele é o mais alto bem e a

fonte de todos os bens.

A primeira coisa que a Si-grada Escritura quer nos dar, ao fazer uso de todas aquelas descrições e nomes do Ser divino, é uma noção inerradicâvel do fato de que Jeová, o Deus que se revelou * Israel e em Cristo, é o Deus vivo * verdadeiro. Os ídolos dos pa-gãos e os ídolos dos filósofos (panteísmo, politeísmo, deísmo e ateísmo) são obras das mãos dos homens: eles não podem falar, nem ver, não podem ouvir nem provar, nem andar. Mas o Deus de Israel está no céu e faz tudo o que deseja. Ele é o único Deus (Dt 6.4), o único Deus verdadeiro

jo 17.3), o Deus vivo". As pessoas querem tratar Deus como se Ele fosse um Deus morto, pois assim poderiam fazer com Ele o que bem quisessem. Mas a mensagem da Escritura revela que isso é errado. Deus existe. Ele é o verdadeiro Deus que está vivo, agora e por toda a eternidade. E horrível coisa é cair nas mãos do Deus vivo (Hb 10.31).

Sendo o Deus vivo, que é a pura vida e a fonte de toda vida (S136.9; Ir 2.13), Ele é também Espírito (jo 4.24), sem corpo, muito embora todos os tipos de órgãos sejam atribuídos a Ele (Dt 4.12,16). Portanto nenhuma imagem, semelhança ou similitude pode ser feita dEle (Dt 4.15-19). Ele é invisível". Como Espírito Ele tem consciência, perfeito conhecimento de Si mesmo (Mt 11.27; ICo 2.10), e em Si mesmo Ele também tem conhecimento de tudo o que exis-

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te e acontece no tempo, e nada pode ser escondido dEle, por menor que seja". Por ser Espírito Ele tem vontade, e por meio dela Ele faz tudo o que lhe agrada (vontade secreta ou conselho)", e determina qual deve ser a norma

que governará Sua conduta (vontade revelada ou mandamento)'4. E, finalmente, como Espírito Ele tem poder, por meio do qual, apesar de toda e qualquer oposição, Ele executa o que tinha planejado e por isso nada é impossível para Ele".

Mas esse conhecimento ou consciência, essa vontade e poder, não são arbitrários. Eles são eticamente determinados em todas as suas partes. Isso se expressa na sabedoria que nas Sagradas Escrituras é atribuída a Deus", e por meio da qual Ele organiza e dirige todas as coisas de acordo com o propósito que Ele determinou para elas na criação e na recriação". Essa realidade moral encontra sua maior expressão, por um lado, na bondade e na Graça, e, por outro lado, na santidade e na justiça que são atribuídas a Deus. Ele não é apenas o todo sábio e o todo poderoso; Ele é também o todo bom e o único bom (Mt 5.45), Ele é perfeito e a fonte de tudo o que é bom em Suas criaturas

(S1145.9). Essa bondade de Deus se espalha por todo o mundo (51 145.9; Mt 5.45), mas varia

de acordo com os objetos aos quais é dirigida, assumindo várias

formas. Ela é chamada longanimidade ou paciência quando é

manifestada ao culpado (Rm 3.25), Graça quando é manifestada

àqueles que recebem o perdão de pecados (Ef 2.8) e amor quando

Deus, movido por Sua Graça em direção às Suas criaturas, dá-se

por elas (Jo 3.16; lJo 4.18). Ela é chamada misericórdia quando essa

bondade de Deus é manifesta àqueles que desfrutam de Seu fa-

vor", e agrado ou bem querer quando a ênfase recai sobre o fato de

que a bondade e todos os seus benefícios são dádivas".

A santidade e a justiça de Deus caminham de mãos dadas com a Sua bondade e com a Sua Graça. Deus é chamado o Santo não apenas porque Ele é exaltado sobre todas as Suas criaturas, mas especialmente porque Ele é separado de tudo o que é pecaminoso e impuro no

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mundo. Portanto, Ele exige que Seu povo, que pela Sua livre Graça Ele escolheu para que fosse Seu, seja santo", e Ele se santifica a Si mesmo nesse povo através de Cr isto (Ef 5.26,27), pois apesar de Cristo ter

santificado a Si mesmo por Seu povo e em lugar dele, esse povo

pode ser santificado na verdade (Jo 17.19). E a retidão e justiça de

Deus estão intimamente relacionadas com a Sua santidade, pois,

sendo o Santo, Ele não pode ser amigo do pecado. Ele abomina o

pecado (S145.7; Já 34.10), levanta-se contra ele (Rm 1.18), é zeloso

de Sua honra (Ex 20.5) e, portanto, não pode inocentar o culpado

(Ex 253,7). Sua natureza santa requer também que, fora de Si mes-

mo, no mundo de Suas criaturas, Ele mantenha a justiça e, de for-

ma imparcial, retribua a cada um segundo as Suas obras (Rm 2.2-11;

2Co 5.10). Hoje em dia há aqueles que tentam fazer com que outras

pessoas acreditem que Deus não se importa com os pensamentos

e atos pecaminosos do homem. Mas o Deus vivo e verdadeiro que

as Escrituras nos apresentam pensa muito diferente sobre isso. Sua

ira contra o pecado é terrível, e Ele pune o pecador tanto temporal-

mente quanto eternamente por meio de um justo julgamento (Dt

27.26; GI 3.10).

Mas Ele não apenas pune os incrédulos de acordo com Sua justiça. É um ensino notável das Es-crituras que de acordo com essa mesma justiça Ele conceda salva-

ção aos santos. De fato, esses santos são pecadores também, e em nada são melhores do que os outros. Mas enquanto o incrédulo oculta os seus pecados ou os encobre, os santos os reconhecem e confessam. Essa é a distinção entre eles. Apesar de serem pessoalmente culpados e impuros, eles estão do lado de Deus e contra o mundo. Eles podem, portanto, apelar à promessa do pacto da Graça, à verdade da Palavra de Deus, à justiça que Deus realizou em Cristo.

Em termos dessa justiça nós podemos dizer, corajosa e reve-

rentemente, que Deus é obrigado * perdoar os pecados de Seu povo

* dar-lhe vida eterna". E se Deus deixa que Seu povo espere por Ele

e prova sua fé por um longo tem-

po, segue-se que em sua perfeita redenção a integridade e a fideli-dade de Deus são demonstradas mais gloriosamente".

0 Senhor aperfeiçoará aqueles que pertencem a Seu povo, pois

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Sua misericórdia dura para sempre (51 138.8). 0 Senhor é mi-sericordioso e gracioso, longânimo e abundante em bondade e verdade".

Uns confiam em carros, outros, em cavalos; nós, porém, nos gloriaremos em o nome do Senhor, nosso Deus". Esse Deus é o nosso Deus para todo o sempre; Ele será o nosso guia até à morte (S I 48.14) . E le é um Deus abençoador e glorioso (Um 6.15; Ef 1.17). E feliz é o povo cujo Deus é o Senhor (S133.12).

Capítulo 10

A DIVINA TRINDADE

OSer Eterno se revela em Sua ex i s tênc ia t ruma a té mesmo de modo mais r ico e indispensável do que em Seus atributos. É nessa Trindade santa que cada atributo do Seu Ser al-cança, digamos, o seu conteúdo pleno e o seu significado mais profundo. Somente quando nós contemplamos essa Trindade é que nós descobrimos quem e o que Deus é. Só assim nós pode-mos descobrir quem e o que Ele é para essa humanidade perdida. Nós só podemos descobrir isso quando nós o conhecemos e con-fessamos como o Deus Truino do Pacto, como o Pai, o Filho e o Es-pírito Santo.

Ao considerarmos essa parte da nossa confissão é particular-mente necessário que um tom de reverência santa e um temor ingê-nuo caracterizem nossa aproximação e atitude. Para Moisés foi um

momento terrível e inesquecível aquele em que Deus lhe apareceu no deserto em uma sarça ardente. Quando Moisés olhou para a sar-ça ardente, que ardia e não se consumia, a certa distância, e quis aproximar-se, o Senhor o advertiu, dizendo: "Não te chegues para cá; tira as sandálias dos pés, porque o lugar onde estás é terra san-ta". Ao ouvir essas palavras Moisés temeu muito e escondeu seu rosto, pois temia olhar para Deus (Ex 3.1-6).

Tal respeito santo convém também a nós como testemunhas da revelação que Deus faz de si mesmo em Sua Palavra como o Deus Trimio, pois nós devemos sempre nos lembrar que, quando nós estudamos esse fato nós não estamos tratando de uma doutrina sobre Deus, ou de um conceito abstrato, ou de uma proposição científica a respeito da Divindade. Nós não estamos lidando com uma construção humana na qual nós mesmos ou outras pessoas tenham arrumado os fatos, e que nós agora vamos tentar analisar logicamente e desmembrar. Nós estamos tratando da Trindade, estamos lidando com o próprio Deus, com o único e verdadeiro Deus, que revelou-se como tal em Sua Palavra. Isso foi o que Ele disse a Moisés: "Eu sou o Deus de

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Abraão, de Isaque e de Jacó" (Ex 3.6). Assim também Ele se revela a nós em Sua Palavra e se manifesta a nós como o Pai, o Filho e o Espírito.

E é assim que a Igreja Cristã sempre tem confessado a revelação de Deus como o Deus Tricino, e como tal o tem aceitado. Nós encontramos essa confissão nos doze artigos do Credo apostólico. 0 cristão não está nesse credo dizendo o que ele pensa sobre Deus. Ele não está dando ao leitor uma noção de Deus, nem dizendo que Deus tem tais e tais atributos e que Ele existe dessa ou daquela forma. Ele simplesmente confessa: "Creio em Deus Pai, e em Jesus Cristo, seu único filho, e no Espírito Santo, ou seja, eu creio no Deus Tricno". Ao fazer essa confissão o cristão expressa o fato de que Deus é o Deus vivo e verdadeiro, que é o Deus Pai, Filho e Espírito, o Deus de sua confiança, a quem ele tem se rendido inteiramente, e em quem ele descansa com todo o seu coração. Deus é o Deus de sua vida e de sua salvação. Como Pai, Filho e Espírito, Deus o criou, redimiu-o, santificou-o e glorificou-o. 0 cristão deve tudo a Ele. É sua alegria e prazer que ele possa crer nesse Deus, confiar nEle e esperar tudo dEle.

0 que o cristão confessa sobre Deus não é resumido por ele em um número de termos abstratos, mas é descrito como uma série de atos feitos por Deus no passado, no presente e que serão feitos no futuro. São os atos, os milagres; de Deus que constituem a confissão do cristão. 0 que o cristão confessa em seu credo é urna longa, abrangente e elevada história. É uma história que compreende todo o mundo em sua largura e profundidade, em seu início, processo e fim, em sua origem, desenvolvimento e destino, do ponto da criação até a plenitude dos tempos. A confissão da Igreja é a declaração dos poderosos feitos de Deus.

Esses feitos são numerosos e são caracterizados por unia grande diversidade. Mas eles também constituem uma rigorosa unidade. Eles estão relacionados uns aos outros, preparados uns para os outros e interdependentes. Há ordem e padrão, desenvolvimento e progresso nos feitos de Deus. Eles começam lia criação e vão até a redenção, santificação e

glorificação. 0 fim volta ao começo e é ao mesmo tempo o ápice que é exaltado acima de sua ori-gem. Os feitos de Deus formam um círculo que se desenvolve na forma de um espiral; eles repre-sentam a harmonia entre a linha horizontal e a vertical; eles se movem ao mesmo tempo para frente e para trás.

Deus é o arquiteto e o construtor de todos os Seus feitos, a fonte e o final deles. Dele, através dEle e para Ele são todas as coisas. Ele é o Fabricante, o Restaurad ore o PIenificador. A unidade e a diversidade das obras de Deus se originam da unidade e diversi dade que existem no Ser divino. Esse Ser é um Ser, singular e simples. Ao mesmo tempo Ele é tripartido em Sua pessoa, em Sua revelação e em Sua influência. Toda a obra de Deus é compacta e indivisível, mas ao mesmo tempo compreende a mais rica varie-dade. A confissão da Igreja compreende toda a história do mundo. Nessa confissão estão incluídos os momentos de criação e de queda, de reconciliação e perdão, de renovação e restauração. É Lima confissão que procede do Deus Tritum e que volta para Ele.

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0 artigo sobre a santa Trindade é o coração e o núcleo de nossa confissão, a marca registrada de nossa religião, o prazer e o conforto de todos aqueles que verdadeiramente crêem em Cristo.

Essa confissão foi a âncora na guerra de tendências através dos séculos. A confissão da santa Trindade é a pérola preciosa que foi confiada à custódia da Igreja Cristã.

Se essa confissão da Trindade de Deus assume a posição central na fé cristã, então é importante conhecer sobre qual pano de fundo ela é projetada e de qual fonte ela tem fluído para a Igreja. Não são poucos os que em nossos dias afirmam que essa doutrina é fruto do argumento humano e de estudo acadêmico e que, por isso, essa doutrina não tem qualquer valor para a vida religiosa. Para essas pessoas o Evangelho original, como foi pregado por Jesus, nada sabia sobre qualquer tipo de doutrina da Trindade de Deus - isto é, nada sobre o termo em si e nada sobre a realidade que o termo expressa. 0 argumento continua dizendo que o original e simples Evangelho de Jesus foi mesclado com a filosofia grega e foi falsificado. Dessa forma a Igreja Cristã absorveu a pessoa de Cristo na natureza divina e eventualmente absorveu também o Espírito Santo no Ser divino. E foi assim que a Igreja começou a confessar três pessoas no Ser divino.

Mas a Igreja cristã sempre teve um pensamento totalmente

diferente sobre isso. Ela não viu na doutrina da Trindade uma descoberta de teólogos sutis, nem um produto da mistura do Evangelho com a filosofia grega, mas uma confissão que foi materialmente concluída no Evangelho e em toda a Palavra de Deus - em resumo, uma doutrina que a fé cristã extraiu da revelação de Deus. Em resposta à questão: "Desde que há apenas um Ser divino, por que você fala de Pai, Filho e Espírito Santo?", o Catecismo de Heidelberg dá uma resposta curta e conclusiva: "Porque Deus assim revelou em Sua Palavra" (pergunta 25).A revelação de Deus é o firme terreno sobre o qual essa confissão da Igreja repousa, A revelação de Deus é a fonte da qual essa doutrina de uma Igreja Cristã única, santa e universal tem se desenvolvido. Deus revelou-se dessa forma. E Ele se revelou dessa forma, isto é, como um Deus Tricino, porque Ele existe dessa forma; e Ele existe dessa forma porque Ele se revelou assim.A Trindade na revelação de Deus aponta para a Trindade em sua existência.Essa revelação não aconteceu em um só momento. Ela não foi apresentada e aperfeiçoada em um só ponto no tempo. Pelo contrário, essa revelação tem uma longa história, desenvolvida no decorrer dos séculos. Ela começou na criação, continuou depois

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da queda, na promessa e nos feitos da Graça que foram feitos em Israel e alcançou seu ápice na pessoa e obra de Cristo, na descida do Espírito Santo e no estabelecimento da Igreja. Ela se mantém agora através dos séculos, apesar de toda a oposição, baseada no testemunho da Escritura e na rocha firme da confissão da Igreja. Como a revelação tem tido essa longa história, há progresso e desenvolvimento também na confissão da existência trimia de Deus. Deus não muda. Ele permanece sempre o mesmo. Mas no pro-gresso da revelação Ele sempre se faz mais claro e mais glorioso às pessoas e aos anjos. Na medida em que Sua revelação progride, nosso conhecimento se desenvolve.

Quando, nos dias do Velho Pacto, Deus começa a se revelar, o que permanece como pano de fundo dessa revelação é a unidade, a unicidade de Deus.

Devido ao pecado do homem o puro conhecimento de Deus tinha sido perdido; a verdade, como Paulo profundamente afirma, foi transformada em injustiça. Até mesmo o que de Deus pode ser conhecido através das Suas obras foi inutilizado pela imaginação dos homens e foi obscurecido pela vaidade de seus

corações. Em uma de suas mãos a raça humana carregava a idolatria, e, em outra, o culto às imagens (Rm 1.18-23).

Portanto, foi necessário que a revelação começasse com uma ênfase sobre a unidade de Deus. A Escritura parece clamar à raça humana: "Os deuses diante dos quais vocês se ajoelham não são deuses verdadeiros. Há somente um Deus verdadeiro, a saber, o Deus que no começo fez os céus e a terra (Gn 1. 1; 2. 1), o Deus que se fez conhecido a Abraão como Deus Todo-Poderoso (Gn 17. 1; Ex 6.3), o Deus que apareceu a Moisés como jeová, como o Eu sou o que Sou (Ex 3.14), e o Deus que, em Sua soberania, escolheu o povo de Israel, e chamou-o e aceitou-o em Seu pacto (Ex 19.4 ss.)". Antes de tudo, portanto, a revelação tinha como seu conteúdo a mensagem de que só jeová é Elohim, só o Senhor é Deus, e não há outro Deus além dEle".

Também para o povo de Israel a revelação da unidade de Deus era desesperadamente necessária. Israel estava rodeado por todos os lados por pagãos que em todas as épocas tentaram levá-lo à apostasia e à incredulidade; além disso, na época imediatamente antes do cativeiro, uma grande parte do povo de Israel sentia-se atraída à idolatria pagã

ao culto às imagens, e várias vezes adotaram essas práticas pagãs apesar da proscrição da lei e das advertências dos profetas. Diante dessa situação o próprio Deus colocou ênfase no fato de que Ele, o Senhor, que tinha apa-recido a Moisés e que queria redimir Seu povo por intermédio de Moisés, era o mesmo Deus que se fez conhecido a Abraão, Isaque e Jacó como o Deus TodoPoderoso (Ex 16,15). Quando Ele deu Sua lei a Israel ele escreveu em seu preâmbulo: "Eu sou o Senhor, teu Deus, que te tirei da terra do Egito". E nos dois primeiros mandamentos Ele proíbe toda idolatria e culto a imagens (Ex 20.2-5). Porque o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor, Israel

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deve amá-lo com todo o seu coração, com toda a sua alma e com toda a sua força (Dt 6.4,5). Só o Senhor é o Deus de Israel e portanto, Israel deve servir somente a Ele.

Contudo, apesar do fato da unidade de Deus ser tão enfatizada e de constituir o primeiro artigo da lei básica de Israel, as distinções dentro dessa unidade vieram à luz também nessa revelação, na medida em que ela progredia. 0 nome que é geralmente usado para designar Deus, no hebraico original, tem um certo significado aqui. Esse nome, Elohim, é uma forma plural e, portanto, apesar de não designar as três pessoas do Ser divino, em seu caráter plural ele aponta para a plenitude de vida e de poder que existe em Deus. Isso, sem dúvida, em conexão como fato de que Deus, às vezes, ao falar de Si mesmo, usa o plural, e dessa forma faz distinções, dentro de Si mesmo, que apresentam um caráter pessoal (Gri 1.26,27,122; Is 6.8).

De grande importância é o ensino do Velho Testamento de que Deus traz tudo à existência em Sua criação e em sua providência através de Sua Palavra e de Seu Espírito. Ele não é um ser humano, que, a custo de grande dificuldade e esforço consegue fazer algo a partir do material que tem em suas mãos. Ele simplesmente, pela Sua Palavra, do nada, chama todas as coisas à existência.

No primeiro capítulo do Gênesis nós somos informados dessa verdade pelo modo mais sublime possível e nos Salmos essa verdade é expressa mais gloriosamente em palavra e em canção. Ele falou, e tudo se fez; ele ordenou, e tudo passou a existir (S133.9). Ele manda a sua palavra e derrete o gelo (51147.18). A voz do Senhor está sobre as águas, a voz do Senhor faz tremer os desertos, a voz do Senhor faz com que os montes saltem como bois selvagens e desnuda os bosques (S129.3-10).

Duas verdades estão contidas nesse registro exaltado das obras de Deus: A primeira é que Deus é Todo-Poderoso, que pela Sua palavra traz todas as coisas à existência, cuja palavra é lei (SI 33.9) e cuja voz é poder (S129.4); e a segunda é que Deus age deliberadamente, não sem previdência e executa todas as Suas obras com a mais elevada sabedoria. A palavra que Deus fala é poder, mas também é um veículo de pensamento. Ele fez a terra pelo Seu poder, Ele estabeleceu o mundo pela Sua sabedoria e com a Sua inteligência estendeu os céus ar 10.12; 51.15). Ele fez todas as Suas obras com sabedoria; a terra está cheia das Suas riquezas (SI 104.24). Essa sabedoria de Deus não teve sua origem fora dEle, mas estava nEle desde o princípio. 0 Senhor a possuía no princípio de Suas obras, antes de Suas obras mais antigas. Quando Ele preparou os céus, quando traçava o horizonte sobre a face do abismo, quando firmava as nuvens de cima, quando estabelecia as fontes do abismo, a sabedoria já estava com Ele, era sua arquiteta, dia após dia era as Suas delícias e alegrava-se diante dEle em todo o tempo (Pv 8.22-31; Já 20.20- 28). Deus se alegrava na sabedoria com a qual Ele criou o mundo.

Paralelamente a essa palavra e a essa sabedoria o Espírito

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de Deus surge como o Mediador da criação. Exatamente da mesma forma que Deus ao mesmo tempo é e possui a sabedoria, e assim Ele pode dividi-Ia e exibi-Ia em Suas obras, dessa mesma forma Ele é Espírito em Seu Ser (Dt 4.12,15) e possui o Espírito, o Espírito pelo qual Ele mora no mundo e está sempre presente nele em todos os lugares (SI 139.7). Sem que alguém tenha sido Seu conselheiro, o Senhor, por Seu espírito, chamou todas as coisas à existência (Is 40.13 ss.). No princípio o Espírito se movia sobre a face das águas (Gn 1.2), e Ele permaneceu em atividade enquanto todas as coisas eram criadas. Por esse Espírito o Senhor enfeitou os céus (jó 26.13), renova a face da terra (SI 104.30), dá vida ao homem (Jó 33.4), mantém o fôlego nas narinas dos homens (Jó 27.3), dá-lhe entendimento e sabedoria (fó 32.8), faz secar a erva e cair a flor (Is 40.7). Em resumo, os céus por Sua palavra se fizeram, e, pelo sopro de Sua boca, o exército deles (SI 33.6).

E essa diversidade encontrada em Deus fica ainda mais clara nas obras de recriação, pois nelas não é Elohim, o Deus "geral", mas é jeová, o Senhor, o Deus do pac

to que se revela e que se faz conhecido em Suas maravilhas de redenção e salvação. Como Senhor Ele redime e conduz Seu povo não apenas através de Sua palavra, mas também através do Anjo dopacto (oAnjo doSenhor). Esse Anjo aparece já na história dos patriarcas: a Hagar (Gn 16.6), a Abraão (Gn 18 ss.) e a Jacó (Gn 28.13 ss.). Esse Anjo revela Sua Graça e poder especialmente na libertação de Israel de sua escravidão no Egito". Esse Anjo do Senhor não possui o mesmo nível de importância dos anjos criados; Ele é uma revelação e uma manifestação especial de Deus. Por um lado, Ele é claramente distinto de Deus, que fala dele como Seu Anjo, e, por outro lado, Ele é um com Deus em poder, em redenção e bênção, em glória e honra. Ele é chamado Deus em Gênesis 16.13, o Deus de Betel em Gênesis 31.13, troca de lugar com Deus, o Senhor (Gn 18.30,32; Ex 3.4) e leva em si o nome de Deus (Ex 23.21). Ele redime de todo o mal (Gn 48.16), resgata Israel das mãos dos egípcios (Ex 3.8), abre as águas do mar (Ex 14.19-21), preserva o povo de Deus em sua jornada, conduze-o em segurança para Cansia e faz com que ele vença os seus inimigos (Ex 3.8; 23.20) e deve ser obedecido em tudo, como se fosse o próprio Deus (Ex 23.20), e sempre

acampa-se ao redor daqueles que temem ao Senhor (SI 34.7; 35.5).

Assim como em sua obra de recriação Jeová realiza Suas atividades redentivas através do Anjo do pacto, da mesma forma Ele, pelo Seu Espírito, dá ao Seu povo todos os tipos de energias e dádivas. No Velho Testamento o Espírito do Senhor é a fonte de toda a vida, bem estar e habilidade. Ele concede coragem e força aos juizes, a Omiel (Jz 3.10), Gideão (jz 6.34), jefté (jz 11.29) e Saiasão (jz 14.6; 15.14). Ele concede percepção artística aos construtores do tabernáculo e de seus utensílios, também aos construtores do templo” e dá sabedoria e entendimento aos juizes que foram escolhidos para auxiliar Moisés (Nin 11.17,25). Ele dá o espírito de profecia aos

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profetas" e renova, santifica e orienta todos os filhos de Deus; (SI 51.12,13; 143.10).

Em resumo, a palavra, a promessa, o pacto que o Senhor deu a Israel no êxodo do Egito existiu através dos tempos e continuou de pé mesmo depois do cativeiro, nos dias de Zorobabel, e por isso o povo não precisava temer (Ag 2.4,5). Quando o Senhor tirou Israel do Egito Ele se tornou o Salvador de Israel. E essa simpatia de Deus em favor de Seu povo expressou-se no fato de que em

toda a opressão do povo Ele foi oprimido (Ele considerou a aflição de Seu povo como Sua própria aflição) e portanto, enviou Seu Anjo para preservar Seu povo. Ele redimiu Israel por Seu amor e Graça e aceitou-o como Sua propriedade especial durante todos os dias da antiguidade. Ele enviou a Israel o Espírito de Sua santidade para conduzi-lo nos cami-nhos do Senhor (Is 619,12). Nos dias do Velho Pacto, o Senhor, através do sumo sacerdote, aben-çoou Seu povo com Sua bênção tríplice: a bênção da vigilância sobre o povo, a bênção da Graça e a bênção da paz (Nm 6.24-26).

Desse modo, gradualmente, mas de forma inequívoca, a tríplice distinção dentro do ser divino se expressa na história de Israel. Todavia o Velho Testamento inclui promessas de que no futuro haveria =a revelação mais elevada e mais rica. Mas Israel repudiou a Palavra do Senhor e irritou Seu Espírito Santo (Is 63.10; 51106). A revelação de Deus através do Anjo do Pacto e do Espírito do Senhor provou ser inadequada. Se Deus quisesse confirmar Seu pacto e cumprir Sua promessa, outra revelação, mais elevada, seria necessária.Tal revelação foi anunciada pelos profetas. No futuro, nos úl-

times dias, o Senhor chamará do meio do povo de Israel um profeta semelhante a Moisés, e o Senhor colocará Suas palavras na boca desse profeta (Dt 18.18). Ele será um sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque (SI 110.4); Ele será um rei da casa de Davi (2Sm 7.12-16), o renovo de Jessé (Is 11. 1), um rei que julga e busca o juizo (Is 16.5). Ele será um ser humano, um homem, filho de uma mulher (Is 7.14), sem formosura e sem beleza (Is 53.2 ss.); Ele será o Emanuel (Is 7.14), o Senhor de justiça (Jr 23.6), o Anjo do Pacto (MI 3. 1), a aparição do próprio Senhor ao Seu povo (Os 1.7; MI 3.1). E o Seu nome será Maravilhoso, Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz (Is 9.6).

Essa manifestação do Servo do Senhor será seguida por uma rica dispensação do Espírito Santo. Como o Espírito de sabedoria e entendimento, de conselho e de força, de conhecimento e de temor do Senhor, esse Espírito estará sobre o Messias (Is 11.2; 42.1; 61.1). Ele será derramado sobre toda a carne, sobre filhos e filhas, idosos e jovens, servos e senhoreS71, e lhes dará um novo coração e um novo espírito e Seu povo andará em Seus estatutos e obedecerá os Seus mandarnentosw.Dessa forma o Velho Testamento nos mostra que a completa revelação de Deus será a revelação de Seu Tritino Ser.

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Essa promessa e o anúncio de seu cumprimento no Velho Testamento são muito satisfatórios. Com relação a isso a unidade ou unicidade de Deus é o ponto de partida de toda revelação". Mas a diferença dentro dessa unicidade se torna muito mais clara no Novo Testamento. Ela acontece primeiramente nos grandes eventos redentivos da encamação, satisfação e derramamento do Espírito e acontece também na instrução de Jesus aos Seus apóstolos. A palavra de salvação é urn todo, =a obra de Deus com começo e fim. Contudo podemos ver nela três grandes momentos, que são a eleição, o perdão e a renovação e esses três momentos apontam para uma causa tríplice no Ser divino. Essa causa é o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

0 envio de Cristo já nos mostra a atividade tríplice de Deus, pois enquanto o Pai dá o Filho ao mondo (Jo 3.16), o Filho é gerado em Maria pelo Espírito

Santo (Mt 1.20; Lc 1.35). Em Seu batismo Jesus é ungido pelo Espírito Santo e é publicamente declarado o Filho amado do Pai, o Filho no qual o Pai tem prazer (Mt 3.16,17). As obras que Jesus realizou foram mostradas pelo Pai (Jo 5.19; 8.38) e realizadas no poder do Espírito Santo (Mt 12.28). Em Sua morte Ele se ofereceu a Deus pelo Espírito Eterno (Hb 9.14). A ressurreição foi um ato do Pai (At 2.24) e ao mesmo tempo um ato do próprio Jesus, pelo qual Ele prova ser o Filho de Deus segundo o Espírito de Santidade (Rm 1.4). E depois de Sua ressurreição, Ele, no quadragésimo dia, ascendeu aos mais altos céus e sujeitou a Si mesmo os anjos, as autoridades e os poderes.

0 ensino de Jesus aos apóstolos concorda plenamente com a lição desses eventos.

Jesus veio à terra para proclamar o Pai e fazer Seu nome conhecido entre os homens (Jo 1.18; 17.6). 0 nome de Pai aplicado a Deus como criador de todas as coisas também foi usado pelos pagãos. Esse sentido do termo recebe apoio das Escrituras em vários lugares". Além disso, o Velho Testamento várias vezes usa a designação de Pai para referir-se ao relacionamento tecierático de Deus com Israel, porque

em Sua maravilhosa habilidade Ele criou e mantém esse relacionamento (Dt 32.6; Is 63.16). No Novo Testamento uma nova luz é gloriosamente lançada sobre esse nome de Pai, aplicado a Deus. Jesus sempre indica uma diferença essencial entre o relacionamento que Ele mesmo mantém com Deus e o relacionamento que outras pessoas, tanto os judeus quanto os discípulos, mantêm com Ele. Quando, por exemplo, Ele ensina aos discípulos a oração dominical, Ele diz expressamente: "Vós orareis assim: Pai nosso". E quando, depois da ressurreição, Ele anuncia a Maria a Sua ascensão, Ele diz: "Subo para meu Pai e vosso Pai, para meu Deus e vosso Deus" (Jo 20.17). Em outras palavras, Deus é Seu próprio Pai (Jo 5.18). 0 Pai conhece o Filho e o ama de tal forma que, reciprocamente, na mesma extensão, só o Filho pode conhecer e amar o Pai". Entre os apóstolos, Deus é constantemente chamado de Pai de nosso Senhor Jesus Cristo (Ef 1.3). Esse relacionamento entre o Pai e

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o Filho não se desenvolveu no tempo, mas existe desde a eternidade (Jo 1.1,14; 17.24). Portanto, Deus é Pai, em primeiro lugar, porque em um sentido especial Ele é o Pai do Filho. Essa é Sua característica original,

especial e pessoal.

Em um sentido derivado Deus é chamado de Pai de todas as Suas criaturas porque Ele é seu criador e Sustentador (ICo 8.6). Ele é chamado Pai de Israel porque Israel é Seu povo em virtude de eleição e chamado (Dt 32.6; Is 64.8), é o Pai da Igreja e de todos os crentes porque o amor do Pai pelo filho os alcança (Jo 16.27; 17.24) e porque eles foram aceitos como Seus filhos e nasceram dEle através do Espírito Go 1.12; Rm 8.15).

Portanto, o Pai é sempre o Pai, a primeira pessoa, de quem, no Ser de Deus e no conselho de Deus, procede a iniciativa nas obras de criação e providência, redenção e sarítificação. Ele concedeu ao Filho ter a vida em Si mesmo (lo 5.26) e enviou o Espírito (jo 15.26). Sua é a eleição e o beneplácito (MI: 11.26; Ef 1.4,9,11). Dele procedem a criação, a providência, a redenção e a renovação (SI 316; Jo 3.16). A Ele, de forma especial, pertence o poder, o rei-no e a glória (MI: 6.13). Ele particularmente recebe o nome de Deus em distinção ao Senhor Jesus Cristo e ao Espírito Santo. Além disso, Cristo, como Mediador, não o chama apenas de Pai, mas também de Deus (MI: 27.46; Jo 20.17)eo próprio Cristo é chamado de Cristo de Deus'''. Em =a palavra, * primeira pessoa do Ser divino é*Pai porque "dEle são todas as coisas" (1 Co 8.6).Se Deus é o Pai, logicamente há também um Filho que recebeu vida dEle e que compartilha de Seu amor. No Velho Testamento

onome de filho de Deus foi usado por anjos", pelo povo de IsraeP' e particularmente também para o rei teocrático desse povo". Mas, no Novo Testamento esse nome ganha um significado mais profundo, pois Cristo é o Filho de Deus em um sentido especial; Ele é exaltado sobre todos os anjos e profetas (MI: 13.32; 21.17; 22.2), e Ele mesmo diz que ninguém conhece o Pai senão o Filho, o ninguém conhece o Filho senão o Pai (Mt 11.27). De forma distinta de homens e anjos, Deus é o Pai do Filho (Rm 8.32), o Filho amado em quem o Pai se compraz (Mt 3.17),· Filho unigênito (Jo 1.18), a quem· Pai concedeu ter vida em Si mesmo (Jo 5.26).Esse relacionamento único e especial entre o Pai e o Filho não se desenvolveu no tempo através de uma concepção sobrenatural do Espírito Santo ou da unção no batismo, ou da ressurreição, ou da ascensão - apesar de muitos pen-

sarem assim - mas é um relacionamento que existe desde a eternidade. 0 Filho que em Cristo assumiu a natureza humana estava no princípio com Deus como o Verbo (Jo 1.1) e subsistia em forma de Deus (Fp 2.6), era coberto de glória (lo 173,24), era o resplendor da glória e a expressão exata de Deus (Hb 1.3) e precisamente por isso Ele podia, na plenitude dos tempos, ser enviado, dado, trazido ao mundo". Portanto, a criação (Jo 13; C11.16), a pro-vidência (FIb 1.3) e a realização de toda a obra de salvação (lCo 1.30) são atribuídas a Ele. Ele não é criado, como o são as Suas criaturas; Ele é o unigênito delas, ou seja, Ele é o Filho que tem a primazia e os direitos de filho mais velho sobre todas as criaturas (Cl 1.15). Dessa forma Ele é o

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primogénito dos mortos e o primogénito entre todos os irmãos e, portanto, entre todos e em todos Ele é o primeiro (Rm 8.29; Cl 1.18). E, muito embora, na plenitude dos tempos Ele tenha assumido a forma de servo, Ele subsistia na forma de Deus. Ele era em todas as coisas como Deus, o Pai (Fp 2.6): na vida (Jo 5.26), no conhecimento (Mt 11.27), na força (Jo 13; 5.21,26), em honra (Jo 5.23). Ele é Deus e deve ser louvado por toda a eternidade". Assim como todas as coisas pertencem ao Pai, elas pertencem também ao Filho (lCo 8.6).

Tanto o Pai quanto Filho, juntos e unidos no Espírito Santo e por meio do Espírito, moram em todas as criaturas. Deus, em Sua natureza, é Espírito (Jo 4.24) e Ele é santo (Is 9.3); mas o Espírito Santo é claramente distinto de Deus como Espírito. Para fazer uma comparação podemos dizer que o homem é um espírito em sua natureza invisível, e também possui um espírito por meio do qual Ele é consciente de si mesmo. Assim também Deus é um Espírito por natureza e também possui um Espírito, Espírito esse que sonda as profundezas do Ser de Deus (ICo 2.11). Como tal esse Espírito é chamado de Espírito de Deus ou Espírito Santo (SI 51.12; Is 63. 10,11). Dessa forma é feita uma distinção entre esse Espírito e o espírito de um anjo ou o espírito de um ser humano ou de qualquer outra criatura. Mas apesar de ser distinto de Deus, do Pai e do Filho, Ele mantém o mais íntimo relacionamento com ambos. Ele é chamado de sopro do Todo-Po-deroso (Jó 33.4), o sopro da boca do Senhor (S133.6), é enviado pelo Pai e pelo Filho (Jo 14.26; 15.26) e

procede de ambos, não somente do Pai (jo 15.26), mas também do Filho, pois Ele é chamado tanto de Espírito de Cristo, quanto de Espírito do Pai (Rrn 8.9).Embora o Espírito Santo seja dado, enviado ou derramado pelo Pai e pelo Filho, Ele geralmente aparece como um poder ou um dom que qualifica os homens para cumprir Seu chamado ou Seu ofício. Dessa fome, por exemplo, o Espírito Santo é mencionado em Atos em conexão com o dom da profecia (Aí 8.15; 10.44; 11.15; 15.8; 19.2). Mas não é correto inferir desse fato, como muitos fazem, que o Espírito Santo nada mais é que um outro dom ou um poder de Deus. Em outros textos Ele aparece como uma pessoa, como alguém que tem nomes pessoais, características pessoais e realiza obras pessoais. Em João 1526 e 16.13,14 (apesar da palavra grega usada para designar o Espírito ter o gênero neutro), Cristo usa o masculino: Ele dará teste-munho de mim e me glorificará. Da mesma forma Cristo o chama de Consolador, usando o mesmo nome que é usado para Cristo em ljoao 2.1, um nome traduzido como Advogado em algumas versões.

Além desses nomes pessoais, todos os tipos de características pessoais são

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atribuídas ao Espírito Santo: por exemplo, capacidade de escolha (At 13.2), opi

mão própria (At 15.28), auto determinação ou vontade (ICo 12.11). Além disso, todos os tipos de atividades pessoais são atribuídos a Ele, tais como: conhecimen to (lCo 2.11), audição (jo 16.13), fala (Ap 2.17), capacidade de ensinar (lo 14.26), de interceder (Rm 8.27), e assim por diante. E tudo isso mostra de forma clara e sublime que Ele está no mesmo nível do Pai e do Filho (Mt 28.19; 2Col3.14).0 último ponto é o mais importante e indica o fato de que o Espírito Santo não é meramente uma pessoa, mas é Deus. As Escrituras nos dão todos os dados de que necessitamos para fazer essa confissão. Nós temos apenas que observar, com respeito à distinção entre Deus e Seu Espírito mencionada acima, que os dois trocam de lugar frequentemente na Escritura, de forma que não há diferença se é Deus ou Seu Espírito quem fala ou faz alguma coi-sa. Em Atos 53,4 a mentira ao Espírito Santo é chamada de uma mentira a Deus. Em ICoríntios 3.16 os crentes são chamados templo de Deus porque o Espírito mora neles. A esses fatos devemos acrescentar os vários atributos di-vinos do Espírito, tais como: eternidade (Hb 9.14), onipresença (SI 139.7), onisciência (ICo 2.11), onipotência (ICo 12. 4-6) e várias obras divinas, como a criação (SI 33.6), a providência (SI 104. 30), a

redenção (jo 3.3), são atribuídas ao Espírito Santo, tanto quanto ao Pai

e ao Filho. Conseqüentemente, Ele desfruta da mesma glória queo Pai e o Filho. Ele tem Seu lugar junto ao Pai e ao Filho como causa da salvação (2Co 13.14; Ap 1.4). E foi também em Seu nome que nós fomos batizados (Mt 28.19) e abençoados (2Co 13.14). Além disso, a blasfêmia contra o Espírito Santo é o pecado imperdoável (Mt 12.31,32). Em outras palavras, assim como todas as coisas são do Pai e através do Filho, todas elas existem e repousam no Espírito Santo.

Todos esses elementos da doutrina da Trindade espalhados pelas Escrituras foram reunidos por Jesus em Sua ordem batismal

e pelos apóstolos em suas bênçãos. Depois de Sua ressurreição e antes de Sua ascensão Cristo enviou Seus apóstolos para irem fazer discípulos de todas as nações, batizando-os em um único nome, no qual três pessoas diferentes são revelados. 0 Pai, o Filho e o Espírito Santo são em Sua unicidade e em Suas distinções a plenitude da revelação de Deus. E de acordo com o ensino

dos apóstolos, todo o bem e a salvação do homem estão contidos no amor do Pai, na Graça do Filho e na comunhão do Espírito Santo". 0 beneplácito, o conhecimento, o

poder, o amor, o reino e a força são do Pai. A Mediação, a reconciliação, a Graça, e a redenção são do Filho. A regeneração, a renovação, a santificação e a redenção são do Espírito. 0 relacionamento que Cristo mantém com o Pai corresponde exatamente ao relacionamento que o Espírito mantém com Cristo. Assim como o Filho nada fala e nada faz além daquilo que recebe do Pai (jo 5.26; 16.15), assim também o Espírito tudo recebe de Cristo (to 16. 13,14). Assim como o Filho dá testemunho do Pai e glorifica o Pai (Jo 1.18), assim também o Espírito dá testemunho do Filho e glorifica o Filho (jo

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15.26; 16.14). Assim como ninguém vem ao Pai se não for trazido pelo Filho (jo 14.6), ninguém pode dizer que Jesus é o Senhor se não for através do Espírito (ICo 12.3). Através do Espírito nós temos comunhão com o Pai e com o Filho. É no Espírito Santo que Deus, através de Cristo, mora em nossos corações. E se tudo isso é assim, então o Espírito Santo é, juntamente com o Pai e o Filho, o único e verdadeiro Deus, e deve ser eternamente adorado como tal.

À essa instrução do Espírito Santo a Igreja

Cristã tem dito sim

e amém. A Igreja não chegou a essa rica e gloriosa confissão sem antes passar por uma dura e longa luta de tendências. Séculos da mais profunda experiência de vida espiritual dos filhos de Deus e dos mais agudos intelectos dos pais e dos mestres da Igreja, foram necessários para que esse ponto da revelação da Escritura fosse entendido e reproduzido com fidelidade na confissão da Igreja. Sem dúvida, a Igreja não teria obtido sucesso nesse esforço de firmar seus fundamentos se não tivesse sido conduzida pelo Espírito a toda a verdade e se Tertuliano e Irmeu, Atanásio e os três santos da Capadócia, Agostinho e Hilário e muitos outros além desses, não tivessem sido homens especialmente dotados e capacitados de sabedoria para nos mostrar o caminho correto.

Nada menos que a essência peculiar do Cristianismo estavam em jogo nessa luta de opiniões. Durante dois séculos a Igreja correu o risco de ser arrastada de suas fundações sobre as quais estava edificada e assim ser engolida pelo mundo.

Por um lado, havia a ameaça do Arianismo, assim chamado por causa do presbítero Alexandrino chamado Ário, que morreu no ano 336. Ário afirmava que somente o Pai é o Deus eterno e verdadeiro, visto que somente Ele, no sentido pleno da palavra, não foigerado. A respeito do Filho, o Fogos, que em Cristo se tornou carne, ele pensava que, por esse Cristo ter sido gerado, Ele não podia ser Deus, tinha que ser uma criatura – uma criatura, é verdade, que tinha sido criada antes das outras criaturas, mas que, como todas as outras, foi criada pela vontade de Deus. E, da mesma forma, Ário afirmava que o Espírito Santo era uma criatura, ou mais uma qualidade ou atributo de Deus.Por outro lado o partido do Sabeliarrismo, assim chamado por causa de um certo Sabélio que viveu em Roma no começo do terceiro século, estava em plena atividade. Sabélio afirmava que o Pai, o Filho e o Espírito Santo eram três nomes usados para designar o mesmo Deus – um Deus que tinha se feito conhecido, à medida em que Sua revelação progredia, por diversas formas e manifestações. Na forma do Pai, Deus foi o Criador e o Legislador; na forma do Filho Ele foi o Redentor; e Ele agora age na forma do Espírito Santo na recriação da Igreja.

Enquanto o Arianismo tenta manter a unicidade de Deus colocando o Filho e o Espírito Santo do lado de fora do Ser divino e reduzindo-os ao nível de

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criatu^ rãs, o Sabelianismo tenta chegar ao mesmo resultado roubando a independência das três pessoas da Trindade. Ele faz isso transfor-mando as pessoas da Trindade em três formas sucessivas de revelação do mesmo Ser divino. No Arianismo o modo de pensar racionalista e deísta dos judeus encontra sua expressão característica, e no Sabeliarrismo está a idéia pagã de panteísmo e misticismo. No momento em que a Igreja começou a criar um claro registro da verdade que foi depois apresentado na confissão da Trindade de Deus, casas duas outras tendências colocaram-se à sua esquerda e à sua direita e acompanharam a confissão da Igreja até os nossos dias. A Igreja, e cada um de seus membros, deve estar sempre em guarda para não fazer injustiça, por um lado, à unicidade de Deus, e, por outro lado, às três Pessoas que compõem esse Ser único. A unicidade não pode ser sacrificada em benefício da diver-sidade, nem a diversidade em benefício da unicidade. Manter as duas em sua inseparável conexão e em seu puro relacionamento, não apenas teoricamente, mas também na vida prática, é o chamado de todos os crentes.

Para satisfazer a essa exigência a Igreja Cristã e a teologia cristã primitiva fizeram uso de várias palavras e expressões que não podem ser encontradas literalmente nas Sagradas Escrituras. A Igreja começou a falar da essência de Deus e de três pessoas nessa

essência do Ser divino. Ela falava de característ icas tr i l inas e trinitárias, ou essenciais e pessoais, da eterna geração do Filho e da procedência do Espírito Santo do Pai e do Filho, e outros termos semelhantes.

Não há razão pela qual a Igreja Cristã e a teologia cristã não devam usar esses termos e expressões, pois as Sagradas Escrituras não foram dadas por Deus à Igreja para serem desconsiderada-mente repetidas, mas para serem entendidas em toda a sua plenitude e riqueza e para serem reafirmadas em sua própria linguagem para que dessa forma possam proclamar os poderosos feitos de Deus. Além disso, tais termos e expressões são necessários para manter a verdade da Escritura contra seus oponentes e colocá-la em segurança contra equívocos e erros humanos. E a história, tem mostrado através dos séculos, que a despreocupação com esses nomes e a rejeição deles conduz a vários afastamentos da confissão.

Ao mesmo tempo nós devemos, no uso desses termos, nos lembrar que eles são de origem humana e, portanto, limitados, sujeitos a erro e falíveis. Os pais da Igreja sempre reconheceram isso. Por exemplo, eles afirmavam que o termo pessoas, que foi usado para designar as três formas de existência no Ser divino não fazem justiça à verdade, mas servem deajuda para manter a verdade e eliminar o erro. A palavra foi escolhida, não

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porque fosse a mais precisa, mas porque nenhuma outra melhor foi encontrada. Nesse caso a palavra está atrás da idéia, e a idéia está atrás da realidade. Apesar de não poder preservar a realidade a não ser dessa forma, nós nunca devemos nos esquecer de que é a realidade que conta, e não a palavra. Certamente, na glória, outras e melhores palavras e expressões serão colocadas em nossos lábios.

A realidade a que se refere a confissão da Santa Trindade é da maior importância, tanto para a mente, quanto para o coração.

É através dessa confissão que a Igreja mantém, em primeiro lugar, tanto a unicidade quanto a diversidade do Ser divino. 0 Ser divino é um. Há apenas um Ser que é Deus e pode ser chamado de Deus. Na criação e na re-denção, na natureza e na Graça, na Igreja e no mundo, no estado e na sociedade, sempre e em todo lugar nós estamos relacionados a apenas um Deus vivo e verdadeiro. A unidade do mondo, da raça humana, da verdade, da virtude, da justiça, e da beleza dependem da unidade de Deus. No momento em que a unidade de Deus é negada, a porta é aberta aopoliteísmo.

Mas essa un idade ou unicidade de Deus é, de acordo com a Escritura e com a confissão da Igreja, não uma =idade vazia, nem solitária, mas cheia de vida e força. Ela envolve diferença, ou distinção, ou diversidade. É essa diversidade que se expressa nas três pessoas do Ser de Deus. Essas três pessoas não são meramente três modos de revelação. Elas são modos de ser. Pai, Filho e Espírito Santo compartilham da mesma e única natureza divina e de suas características. Eles são um Ser. Todavia cada um tem Seu nome e Sua característica particular, pela qual é diferenciado dos outros. Somente o Pai tem a paternidade, somente o Filho tem a geração e somente o Espírito possui a qualidade de proceder do Pai e do Filho.

A essa ordem de existência no Ser divino corresponde a or~ dern das três pessoas nas obras divinas. 0 Pai é de quem, o Filho é através de quem e o Espírito Santo é em quem todas as coisas existem. Todas as coisas na criação, na redenção e na recriação procedem do Pai, através do Filho e do Espírito. E no Espírito e através do Filho elas voltam para o Pai. Nós devemos ao Pai o Seu amor, manifesto na eleição; devemos ao Filho a Sua Graça redentora; devemos ao Espírito Sua ação regeneradora e renovadora.

Em segundo lugar, a Igreja, ao manter essa confissão, assume uma forte posição contra as heresias do deísmo (crença em Deus sem uma revelação) panteísmo (politeísmo), judaísmo e paganismo. Sempre há essa dupla tendên-cia no coração humano: a tendência de pensar em Deus como estando distante e alheio ao mundo em si mesmo, como independente de Deus, e a tendência de mesclar Deus com o mundo, identificando-o com o mundo e assim deificar tanto a si mesmo, quanto o mondo ao seu redor. Quando a primeira tendência prevalece nós chegamos ao ponto de pensar que podemos viver sem Deus na natureza, em nosso chamado, em nossos negócios, em nossa ciência, em nossa arte e também na obra de nossa redenção. Quando

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a segunda tendência prevalece nós mudamos a glória de Deus à imagem da criatura, deificamos o mundo, o sol, a lua, as estrelas, a ciência ou o estado, e, na criatura, geralmente concebida à nossa imagem, nós cultuamos nossa própria grandeza. No primeiro caso Deus está apenas distante; no segundo caso Ele está apenas perto. No primeiro raso Ele está fora do mundo, sobre o mundo e livre do mundo; no segundo caso ele está dentro do mundo e confunde-se com ele.

Mas a Igreja confessa os dois lados da moeda: Deus está acimado mundo, é essencialmente diferente do mundo e ao mesmo tempo está com todo o Seu Ser presente no mundo e nunca esteve separado dele. Ele tanto está distante, quanto está perto. Ele tanto é exaltado acima de todas as criaturas, quanto profundamente condescendente com elas. Ele é nosso Criador, que nos trouxe à existência por Sua vontade como criaturas distintas dEle em espécie. Ele é nosso Redentor que nos salva, não por causa de nossas obras, mas pelas riquezas de Sua Graça. Ele é nosso Santificador, que mora em nós como em Seu templo. Sendo o Deus Trámo, Ele é um Deus e está acima de nós e dentro de nós.Finalmente, em terceiro lugar, a confissão da Igreja é também da maior importância para a vida espiritual. Muito injustificadamente, algumas pessoas dizem que a doutrina da Trindade é meramente um dogma abstrato filosófico e que não possui qualquer valor para a religião e para a vida. A Confissão de Fé Reformada tem um ponto de vista totalmente diferente desse. No artigo IX dessa Confissão a Igreja afirma que Deus é um em essência e três em pessoas. Isso nós sabemos pelo testemunho da Escritura e pelas atividades das três pessoas, especialmente aquelas que sentimos dentro de nós. De fato, nós não baseamos nossa fé na Trinda-

de em sentimentos e experiências, mas quando nós cremos nela, nós notamos que a doutrina mantém íntimo relacionamento com a experiencia espiritual dos filhos de Deus.Os crentes conhecem as obras do Pai, o Criador de todas as coisas, que lhes; deu vida, fôlego e tudo o mais. Eles aprendem a conhecê lo como o Legislador que lhes deu Seus santos mandamentos para que eles andassem em Seus caminhos. Eles aprend em a conhecê-lo como o Juiz que é provocado a uma terrível ira pelas injustiças dos homens e que em nenhum sentido inocenta o culpado. E eles aprendem a conhecê-lo, finalmente, como o Pai que por causa de Cristo é seu Deus e Pai, em quem eles confiam que suprirá todas as suas necessidades, do corpo e da alma e que converterá em bem todo o mal que os ameaça neste vale de lágrimas. Eles sabem que Ele pode fazer isso por ser o Deus Todo-Poderoso e que Ele quer fazer isso por ser o Pai Fiel. Portanto eles confessam: Eu creio em Deus, o Pai, o Todo-Poderoso, Criador dos céus e da terra.

Da mesma forma eles aprendem a conhecer em si mesmos as obras do Filho, que é o unigênito do Pai, gerado em Maria pelo Espírito Santo. Eles aprendem a conhecê-lo como seu maior Profeta e Mestre, que lhes; revela per

feitamente o secreto conselho e vontade de Deus com relação à Sua redenção. Eles aprendem a conhecê-lo como seu único Sumo Sacerdote, que os reclimiu pelo único sacrifício de Seu corpo e que constantemente ainda

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intercede por eles junto ao Pai. Eles aprendem a conhecê-lo como seu Rei eterno, que os governa com Sua Palavra e com Seu Espírito e que os protege e preserva pela realização de Sua redenção. Portanto eles confessam: Eu creio em Jesus Cristo, o Unigênito Filho de Deus, nosso Senhor.E eles também aprendem a reconhecer em si mesmos as obras do Espírito Santo, que os regenera e os conduz à verdade. Eles aprendem a conhecê-lo como o operador de sua fé, que através da fé faz com que eles compartilhem em Cristo de todos os Seus benefícios. Eles aprendem a conhecêlo como o Consolador, que intercede por eles com gemidos inexpririnveis e que dá testemunho ao espírito deles de que eles são filhos de Deus. Eles aprendem a conhecê-lo como o penhor de sua herança eterna, que os preserva até o dia

de sua redenção. Portanto eles confessam: Eu creio no Espírito Santo.

Dessa forma a confissão da Trindade é o resumo da religião cristã. Sem ela, nem a criação, nem a redenção, nem a santificação podem ser sustentadas.

Todo afastamento dessa confissão conduz ao erro em outros pontos doutrinários, exatamente como uma representação errada dos artigos de fé que têm sua origem em urna concepção errada da doutrina da Trindade. Nós só podemos proclamar verdadeiramente as poderosas obras

de Deus quando as reconhecemos e confessamos como uma grande obra do Pai, do Filho e do Espírito.No amor do Pai, na Graça do Filho e na comunhão do Espírito Santo está contida toda a salvação do homem.

Capítulo 11

ACRIAÇÃO E A PROVIDÊNCIA0 significado prático da d o u t r i n a d a T r i n d a d e pa ra a v ida do c r i s tão se evidencia pelo fato de que as Sagradas Escrituras não querem nos mostrar um conceito abstrato da divindade, mas querem nos colocar em contato pessoal com o Deus vivo e verdadeiro. A Escritura elimina nossas noções e conceitos e nos conduz de volta para Deus. Portanto, a Escritura não argumenta sobre Deus, ela o apresenta a nós e revela-o em todas as obras de Suas mãos. A Escritura parece nos dizer: "Levante seus olhos e contemple aquele que fez todas essas coisas". Os atributos invisíveis de Deus, assim o Seu eterno poder, como também a Sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Nós não aprendemos a co nhecer e a glorificar Deus independente de Suas obras, mas através de Suas obras, na natureza e na Graça.

É por isso que as Sagradas Escrituras nos apontam com tanta frequência os poderosos feitos de Deus. A Escritura é ao mesmo tempo uma descrição deles e um cântico de louvor por eles. Exatamente porque ela quer fazer-nos conhecer o Deus vivo e verdadeiro, ela fala em todas as suas páginas sobre os Seus poderosos feitos. Sendo o Deus vivo, Ele é também o Deus operativo. Ele

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não pode fazer outra coisa além de trabalhar. Ele trabalha sempre (jo 5.17). Toda a eterna vida de Deus é poder, energia, atividade. Tal é o Criador, tal é Sua criação. Sendo Deus o Realizador, o Criador de todas as coisas, Suas obras são grandes e maravilhosas (SI 925; 139.14), são verdade e fidelidade juntas (Si 33.4; 111.7), e justiça e misericórdia (SI 145.17; Dn 9.14). Incluídas nessas obras, certamente, estão a criação e a manutenção de todas as coisas, céu e terra, a espécie humana e miríades de pessoas, as maravilhas feitas em Israel e para Israel, e as obras que Ele realiza através de Seus servos". E todas essas obras o louvam (SI 145.10). Ele é a Rocha cuias obras são perfeitas (DI: 32.4).

Além disso, todas essas obras de Deus são trazidas à existência não com indiferença, nem por obrigação, mas deliberada e livremente. Esse fato torna evidente que Ele faz, sustenta e rege todas as coisas pela Sua palavra. É pela Sua palavra, pelo seu comando, que Ele chama todas as coisas à existência (SI 33.9). Sem a Palavra que no começo estava com Deus e que era Deus, nada do que foi feito se fez (Jo 1.3). Em Jó 28.20 ss. A verdade é apresentada como se Deus, antes de criar o mundo, tivesse consultado a sabedoria, consultando e pes-quisando todas as coisas com ela (SI 104.24; Ir 10.12). As Sagradas Escrituras também expressam essa questão de uma forma dife

rente. Elas dizem que Deus traz todas as coisas à existência de acordo com Sua vontade ou conselho. Em outras palavras, todas as obras de Deus, tanto na criação quanto na redenção, são produto não apenas de Seu pensamento, mas também de Sua vontade. Humanamente falando nós podemos dizer que toda obra de Deus é precedida por uma deliberação da mente e uma decisão da vontade. Em alguns lugares da Escritura a palavra usada é conselho", em outros lugares é estabelecimento, determinação ou decreto", em outros lugares é propósito", em outros é ordenação" e em outros é o favor ou beneplácito de Deus%. Paulo fala do prazer e do conselho da vontade de Deus (Ef 1.5,11).

Com relação ao conselho de Deus, a Escritura ensina que ele é excelente e maravilhoso (Is 28.29; jr 32.19), independente (Mt 11.26), imutável (Hb 6.17), indestrutível (Is 46.10) e que Deus é soberano sobre todas as coisas, inclusive sobre a transgressão dos injustos ao entregar Jesus à cruz e â morte (Aí 2.23; 4.28). 0 fato de coisas e eventos, inclusive os pensamen-

tos e atos pecaminosos dos homens, terem sido eternamente conhecidos e fixados nesse conselho de Deus, não subtrai deles o seu próprio caráter, mas estabelece e garante todos eles, cada um com seu próprio tipo e natureza, em seu próprio contexto e circunstâncias. Incluídos nesse conselho de Deus estão o pecado e a punição, mas também a liberdade e a res-ponsabilidade, o senso de culpa e a consciência, a justiça e a lei. Nesse conselho de Deus tudo o que acontece está exatamente no mesmo contexto que está quando acontece diante dos nossos olhos. As condições são definidas

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nele, assim como as conseqüências, os meios e os fins, as formas e os re-sultados, as orações e as respostas às orações, a fé e a justificação, a santificação, e a glorificação. De acordo com os termos do conselho, Deus deu Seu Filho unigênito para que todo aquele que nEle crê tenha vida eterna.

Entendo que dessa forma, no sentido da Escritura, de acordo com o Espírito, que a confissão do sábio conselho de Deus é uma fonte de rico conforto. Dessa forma nós aprendemos que não é uma casualidade cega, nem um destino obscuro, nem uma vontade irracional ou maligna, nem qualquer força natural que governa a raça humana e o mundo, e que o governo de todas as coisas está nas mãos do Deus Todo-Po

deroso e do Pai misericordioso. Certamente a fé é necessária para que se entenda isso. É a fé que nos mantém constantes na luta da vida, é por causa dela que nós avançamos para o futuro com esperança e confiança. 0 conselho do Senhor permanece para sempre.

0 começo da execução desse conselho do Senhor foi a criação do mundo. Assim como somente as Sagradas Escrituras podem nos dar a conhecer o conselho de Deus, da mesma forma só elas podem nos mostrar a origem de todas as coisas, falando-nos da onipotência criativa de Deus. A questão da origem do homem, dos animais, das plantas, é muito antiga, mas é sempre atual. A ciência não pode fornecer resposta para ela. A própria ciência é uma criação e um produto do tempo. Ela assume sua posição na base das coisas que foram feitas e assume a existência das coisas que investiga; portanto, pela sua própria natureza, a ciência não pôde voltar no tempo, antes que tudo viesse a existir. A ciência não pôde penetrar no momento em que tudo se tomou real.

Por isso a experiência, a investigação empírica, nada podem nos dizer sobre a origem das coisas. A reflexão da filosofia também tem, através dos séculos, procurado uma explicação para o mondo. Cansados de pensar os ti-

lósofos geralmente procuram descanso dizendo que o mundo não teve origem, que ele existiu eternamente e que vai continuar existindo. Essa é uma conclusão que diferentes filósofos desenvolveram em diferentes direções. Poucos deles fizeram a suposição clara de que esse mundo como nós o conhecemos é eterno, ou que continuaria existindo eternamente. Poucos disseram isso, mas essa afirmação encontrou tantas dificuldades que hoje em dia eles são geralmente repudiados. Ao mesmo tempo a idéia da evolução tem ganho terreno. De acordo com essa idéia, nada é e tudo se torna, 0 que o universo inteiro apresenta, portanto, é o espetáculo de algo que nunca começou e que nunca cessará – um processo contínuo.

A evolução é, sem dúvida, algo maravilhoso, mas sempre se deve assumir que há algo envolvido no processo que carrega o gérmen do desenvolvimento. Naturalmente a evolução não é e não pode ser uma força criativa, uma força que traz todas as coisas à existência; ela é uma expressão do processo através do qual algo se desenvolve quando já existe. A teoria da evolução, conseqüentemente, carece de potencial de explicação para a origem das coisas. Ela implicitamente procede da idéia de que essas coisas, em seu estado não desenvolvido, existiam eternamente. A teoria da evo-

lução começa com uma pressuposição que é totalmente indemonstrável, e por isso ela também assume uma posição de fé. Nisso ela é semelhante à teoria da criação de todas as coisas pela mão de Deus.

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Mas fazer essa pressuposição implícita não garante a teoria da evolução. Ela pode alegar que todas as coisas sempre existiram em um estado não desenvolvido. Sendo assim, ela deve dar algum tipo de registro da condição original na qual essas coisas existiram e na qual o nosso mundo se formou. Quanto a isso, duas respostas podem ser dadas, dependendo de qual das duas correntes é a preferida. No inundo nos geralmente temos notícia de dois tipos de fenômenos ou manifestações. Nós geralmente os chamamos de espírito e matéria, alma e corpo, coisas invisíveis e coisas visíveis, fenômenos psíquicos quiccis e físicos. Mas esse clualistro, não é satisfatório. Hoje em dia as pessoas querem reduzir tudo a um princípio. É por isso que os teóricos da evolução podem escolher uma das duas direções à procura da natureza original das coisas.

Em primeiro lugar eles podem dizer que a matéria é primária, eterna, e sempre teve energia potencial. Essa é a direção do materialismo. Ela sustenta que a matéria é o constituinte eterno e originalmente imutável do mun-

do, e a partir daí tentam explicar a energia em termos da matéria, a alma em termos do corpo, o psíquico em termos do físico. Mas existe também a outra posição, a posição que diz que a energia é primária, que ela é o pano de fundo de tudo o que existe, que a matéria é =a expressão ou ma-nifestação dessa energia e que o corpo não cria a alma, mas a alma cria o corpo. Essa é a direção do panteísmo. Ela sustenta que a energia é o princípio básico e eterno de todas as coisas, e tenta traçar a derivação do mundo a partir de uma energia elementar. Essa energia original penetrou através do mundo e criou todos os tipos de seres, seja espírito, mente, alma, ou seja lá o que for. Ao usar esses nomes o panteísmo tem algo mais em mente do que usualmente é denotado por esses termos. Ele não está pensando em um Deus que tem razão e sabedoria, entendimento e vontade. Ele está pensando em uma força inconsciente, irracional e desprovida de vontade, uma força que se torna consciente, racional e volitiva somente no homem, no curso do processo evolutivo. Essa energia eterna não é um espírito, mas é chamada de espírito porque em seu desenvolvimento ela se tornou um.

Em ambas as hipóteses, tanto a do materialismo quanto a do panteísmo, um princípio é assu

mido como o começo da evolução do mundo, um princípio que um diz que é predominantemente material e o outro diz que é predominantemente espiritual, e do qual nenhuma idéia clara pode ser formada. Ele é algo mais negativo do que positivo. Nada é definitivo; esse princípio meramente tem o potencial de se tornar tudo. É uma potencialidade absoluta (uma possibilidade infinita), um pensamento abstrato deificado. No fundo é a imaginação de algo, na ausência do Deus verdadeiro, no qual o homem ci-entífico coloca sua esperança de explicar o mundo, mas que não é mais merecedor de confiança do que os deuses das nações.

As Sagradas Escrituras assumem uma posição diferente. 0 que elas nos dizem sobre a origem das coisas não nos é oferecido como resultado de uma investigação científica, nem de uma explicação filosófica do mundo, mas para que, através do que ela tem a nos dizer, nós conheçamos o único e verdadeiro Deus e coloquemos nEle toda a nossa confiança. Essa é uma explicação que não procede do mundo, mas de Deus. Ela não diz que o mundo é eterno, mas que Deus é eterno. Antes que os montes nascessem e se formassem a terra e o mundo, de eternidade a eternidade, Ele é Deus (SI 90.2). Ele é Jeová, o que era, o que é, e o que há de vir, que

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está além da riqueza de todas as palavras, um Ser completamente imutável. Diferentemente dEle, o mundo veio a existir e está sempre em mutação. A coisa contra a qual a Escritura primeiramente nos previne é a confusão de Deus com a Sua criação. A Escritura corta pela raiz toda descrença, falsa crença e superstição. Deus e o mondo são essencialmente diferentes um do outro. Eles se diferenciam como Criador e criatura.

Sendo uma criatura, todo o mundo tem sua origem em Deus. Não há algo como uma matéria ou um espírito existindo paralelamente a Deus. 0 céu, a terra e todas as coisas foram criadas por Ele. Essa é a força da palavra traduzida como criou na Bíblia. Em um sentido geral a Escritura usa essa palavra também para as obras de conservação da criação (51 104.30; Is 45.7). Mas em um sentido mais estrito a Escritura usa essa palavra para dizer que Deus criou todas as coisas do nada. De fato, a expressão de que Deus criou todas as coisas do nada não ocorre nas Escrituras. Ela só ocorre no segundo livro de Macabeus; (7.28). Além disso, esse termo, do nada, pode causar enganos. 0 que é nada não existe e não pode ser o princípio ou origem a partir do qual alguma coisa passe a existir. Além disso, nada pode vir do nada. 0 que a Escritura diz é que o mundo foi criado por Deus (Ap

4.11) e que as coisas que são vis- tas foram feitas das coisas que não aparecem (Hb 11.3). Da mesma forma a expressão do nada pode ser usada em um sentido útil e pode prestar excelente serviço contra todos os tipos de heresia, pois ela nega que o mundo possa ter sido feito a partir de alguma matéria ou energia que coexistiu eternamente com Deus. De acordo com a Escritura, Deus não sementejormou o mundo. Ele criou o mundo. Humanamente falando, nós podemos dizer que Deus existia sozinho quando o mondo foi criado por Seu conselho e por Sua vontade. Um absoluto não-ser precedeu o ser do mundo, e nesse sentido nós podemos dizer que Deus fez o mundo do nada.

Esse certamente é o ensino da Escritura: que Deus existe desde a eternidade (SI 90.2), mas que o mundo teve um começo (Gn 1.1). Várias vezes nós lemos que Deus fez uma coisa ou outra - predestinou, disse, ou amou - desde antes da fundação do mundo (jo 17.24; Ef 1.4). Ele é tão po-deroso que, ao falar, as coisas passam a existir (Si 33.9), e chama à existência as coisas que não existem (Riu 4.17). Ele criou o mundo pela Sua própria vontade (Ap 4.11). Ele fez todas as coisas, o céu, a terra e tudo o que neles há (Ex 20.11; Ne 9.6). Dele e por Ele e para Ele são todas as coisas (Ruí 11.36). Portanto Ele é também o

Todo-Poderoso Possuidor do céueda terra (Gn 14. 19,22), que faz todas as coisas como lhe agrada,ecujo poder não conhece limites, de quem todas as criaturas possuem um absoluto senso de dependência (SI 115.3; Dn 4.35). A Escritura nada sabe sobre uma matéria eterna não criada paralela a Deus. Ele é a causa única e absoluta de tudo o que existe e acontece. 0 visível não foi feito pelo visível, mas pela palavra de Deus (Hb 11.3).

Se Deus, que é o Ser eterno, criou o mondo pela Sua vontade, naturalmente surge uma questão: Por que e para que fim Ele fez isso? Para encontrar uma

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resposta para essa questão, a ciência e a filosofia têm tentado fazer do mundo uma necessidade e a partir daí deduzir a resposta do Ser de Deus. Novamente duas possibilidades são oferecidas. Alguns dizem que Deus era tão pleno e tão rico que não conseguiu controlar a situação, que Deus careceu de poder sobre Seu próprio Ser e que o mundo conseqüentemente fluiu dele como um riacho flui da fonte, como a água flui do vaso que está transbordando. Outros assumem a posição oposta, dizendo que Deus em Si mesmo era pobre

e vazio, que Ele possuía um desejo famigerado, e que por isso

trouxe o mundo à existência, para encher-se e suprir Suas necessidades. De acordo com esses dois pontos de vista, o mondo era uma necessidade de Deus, seja para aliviá-lo de Sua superfluidez ou para compensar Sua necessidade.

Ambas as interpretações são incompatíveis com a Escritura. A Escritura assume uma posição diametralmente oposta a essas duas interpretações. De acordo com essas duas posições, o centro de gravidade foi transferido de Deus para o mundo, e Deus existe para o mundo. Deus é o ser menor e o mundo é o ser maior, pois o mundo serve para redimir e salvar Deus, que está infeliz em razão de superabundância ou de insuficiência. Embora esse pensamento ainda esteja em moda entre os pensadores de nosso tempo, ele é uma blasfêmia. A Escritura, que é a Palavra de Deus, e que do início ao fim revela o ponto de vista de Deus, declara plena, poderosa e sonoramente que Deus não existe em função do mundo, mas o mundo existe em função de Deus, por causa dEle e para glória dEle.

Deus é em Si mesmo auto suficiente. Ele não precisa do mundo, nem de qualquer criatura seja de que forma for, para sua própria perfeição. Pode, porventura, o homem ser de algum proveito para Deus? Tem o Todo-Poderoso interesse em que

sejas justo ou algum lucro em que faças perfeitos os teus caminhos (Jó 22.2,3)? A justiça do homem não é vantagem para Deus, e a transgressão do homem não o empobrece. Ele não é servido por mãos humanas, como se de alguma coisa precisasse; pois Ele mesmo é quem a todos dá vida, res-piração e tudo o mais (At 17.25). Por isso é que a Escritura enfatiza tão fortemente que Deus causou todas as coisas por um ato de Sua vontade. Não havia algo como uma força ou uma necessidade no Ser de Deus que pudesse constrangê-lo a criar o mundo. A criação é em sua totalidade um ato livre de Deus. Ela não pode ser explicada como a conseqüência inevitável da justiça de Deus, apesar de Sua justiça também ser manifesta nela, pois a quem Deus

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poderia ficar devendo alguma coisa? A criação também não pode ser deduzida de Sua bondade e amor, apesar de tanto uma quanto o outro serem manifestos no mundo, pois a vida em amor do Deus Trimio não exigia um objeto de amor além de si mesmo. A causa da criação é simples e somente o livre poder de Deus, Seu eterno beneplácito, Sua absoluta soberania (Ap 4.11).

É c l a ro q u e i s s o n ã o eqüivale a dizer que a criação do

mundo foi um ato irracional, algo feito arbitrariamente. Nisso, e em todas as outras coisas, nós devemos descansar na soberania e no beneplácito de Deus como o fim de toda contradição, e nós seremos exercitados nisso por uma total confiança e obediência. Da mesma forma Deus tem Suas razões santas e sábias para o ato de criação.

A Escritura nos prova isso em primeiro lugar ao representar a criação como um ato do Deus Triiino. Ao fazer o homem, Deus primeiro tomou conselho consigo mesmo e disse: "Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança" (Gn 1.26). Da mesma forma, todas as obras di-vinas repousam sobre uma deliberação de Deus. Antes da criação Ele consultou a sabedoria (Jó 28.20 ss.; Pv 8.22 ss.). E a Seu tempo Deus criou todas as coisas através do Verbo que estava com Deus e que era Deus (jo 1.1-3)11 e criou-as rio Espírito que perscruta todas as profundezas de Deus, dá vida às Suas criaturas, e enfeita os céus". Por isso o salmista proclama: "Que variedade, Senhor, nas tuas obras! Todas com sabedoria as fizeste; cheia está a terra das tuas riquezas" (S1104.24).

Além disso, a Escritura nos ensina que Deus criou todas as coisas, e sustenta-as, e rege-as para a Sua própria honra. 0 propósito pelo qual a criação foi feita não está na própria criação, pois o estabelecimento do propósito precede o uso dos meios. A Escritura ensina que, assim como tudo é de Deus, tudo também é por Ele e para Ele (Rm 11.36). E a Escritura desenvolve esse ensino mais particularmente quando registra que os céus proclamam a glória de Deus (SI 19.1), que Deus se glorifica em Faraó (Ex 14.17) e no cego de nascença (Jo 9.3), que Ele concede todos os favores de Sua Graça em consideração ao Seu próprio nome (Is 43.25; Ef 1.6), que Cristo veio para glorificar o Pai (Jo 17.4) e que chegará o dia em que todo joelho se dobrará e toda língua confessará Sua glória (Fp 2.10). É do agrado de Deus fazer com que as excelências de Seu Ser Triúno se manifestem em Suas criaturas, e assim preparar honra e glória para Si mesmo nessas criaturas. Para essa glorificação de Si mesmo Deus não precisa do mundo, pois não é a criatura que independente e suficientemente exalta a honra de Deus; pelo contrário, é Ele que, por meio de Suas criaturas ou sem elas, glorifica Seu próprio nome e revela-se a Si mesmo. Deus, portanto, nunca procura a criatura para encontrar algo de que esteja precisando. Todo o mundo, em sua largura e profundidade, é

para Ele um espelho, no qual Ele vê refletidas as Suas excelências. Ele sempre repousa em Si mesmo como o mais elevado bem, e permanece eternamente abençoado por Suas próprias bênçãos.

A Escritura nos diz não somente que Deus chamou o mundo à existência do nada, mas tam-bém nos diz algo sobre a forma pela qual a criação

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foi feita.

Ela começa com o registro de que no começo Deus criou os céus e a terra (Gn 1.1). Esse começo aponta para o momento no qual essas coisas começaram a existir. 0 próprio Deus não tem início, nem pode ter. Nem o Verbo que estava com Deus e que era Deus, pois Ele também existe desde a eternidade. Esse começo marca o momento em que as coisas criadas vieram à existência. Portanto, o tempo e o espaço também tiveram seu início. De fato, nem um nem outro são criaturas indepen-dentes, chamados à existência por um ato poderoso e especial de Deus. Nós nada lemos sobre isso no registro da criação. Contudo, o tempo e o espaço são formas de existência indispensáveis para seres criados. Somente Deus é eterno e onipresente. As criaturas, por serem criaturas, estão sujeitas ao tempo e ao espaço. 0 tempo torna possível que algo continue

existindo em uma sucessão de momentos, pois uma coisa existe depois da outra. 0 espaço toma possível que um corpo se expanda por todos os lados, pois um corpo existe próximo ao outro. 0 tempo e o espaço, portanto, começam a existir no mesmo tempo em que as demais criaturas, e como formas de existência indispensáveis para elas. Elas não existiam antes como formas vazias para serem enchidas pelas criaturas, pois quando nada existe, não existe tempo, nem espaço. Eles não foram feitos independentemente, paralelamente às criaturas, como acompanhamentos, como anexos. Eles foram criados em e com as criaturas como formas nas quais essas criaturas devem necessariamente existir como criaturas limitadas e finitas. Agostinho estava certo quando disse que Deus não fez o mundo no tempo, como se ele tivesse sido criado em uma forma ou condição previamente existente, mas foi criado com o tempo, e o tempo foi criado com o mundo.

0 primeiro versículo de Gênesis diz que no começo Deus criou os céus e a terra. Como céus e terra, a Escritura aqui quer dizer tudo o mais (Gn 2.1,4; Ex 20.11), ou seja, todo o mundo, todo o universo, que de acordo com a vontade de Deus desde o

início foi dividido em duas par-tes. Essas partes são a terra, comtudo o que está sobre e dentrodela, e os céus, que compreen-dem tudo o que está fora e sobrea terra. Aos céus, nesse sentido,pertencem o firmamento, e o ar, eas nuvens (Cn 1.8,20), as estrelas,que constituem o exército doscéus (Dt 4.19: SI 8.3), e também oterceiro céu, ou o céu dos céus,

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que é a morada de Deus e dosanjos". E quando o primeiroversículo de Gênesis registra queDeus criou os céus e a terra nocomeço, nós não entendemos, porum lado, que isso seja apenas umresumo de tudo que se seguiu,nem, por outro lado, que estejaindicando que o ato de Deus des-crito em Gênesis 1.1 imediatamen-te chamou à existência os céus e aterra em sua completa condição.A primeira interpretação érefutada pelo fato de que o segun-do versículo começa com a con-junção e: "15 a terra era sem formae vazia". Um segundo fato é, por-tanto, acrescentado em uma sériecontínua ao fato registrado noversículo um. E a segunda inter-pretação não pode ser aceita por-que o céu como firmamento nãoexistiu até Gênesis 1.8, e porqueo céu e a terra só foram denomi-nados acabados, em Gênesis 2.1.Apesar de nós não poder-mos falar sobre esse ponto com

absoluta certeza, nós podemos considerar que os céus dos céus, a morada de Deus, foram criados pelo primeiro ato criativo de Deus registrado em Gênesis 1.1 e que nessa ocasião os anjos também foram criados. Repare que, em Já 38.4-7 o Senhor responde a J6 de dentro do redemoinho, que ne-nhum homem estava presente quando Ele lançou os fundamentos da terra e quando assentou sua pedra angular, mas que Ele completou essa obra com o cântico das estrelas da alva e o júbilo dos filhos de Deus. Esses filhos de Deus são os anjos. Os anjos, portanto, estavam presentes quando a criação da terra e do homem foi concluída.

Além disso, pouco é falado sobre a criação dos céus dos céus e dos anjos. Depois de mencionálos brevemente no primeiro versículo, o registro de Gênesis faz no segundo versículo um registro mais amplo do acabamen-to da terra. Tal acabamento ou arranjo foi necessário, pois, apesar da terra já ter sido feita, ela existia em um estado selvagem e deserto e estava coberta pelas trevas. Nós não lemos que a terra tornou-se selvagem, isto é, sem forma. Alguns sustentam que foi isso o que aconteceu, e ao assumir essa posição eles mencionam um julgamento que teria acontecido de

pois da queda dos anjos, quando a terra já estava pronta. Mas Gênesis 1.2 menciona somente que a terra estava sem forma, isto é, que ela existia em um estado sem forma definida, na qual a luz e as trevas, os corpos e a água, a terra seca e o mar, não podiam ser diferenciados. Foram as obras de Deus, descritas em Gênesis 13-10, que puseram fim à falta de forma da terra. Por isso é que está registrado que a terra original era vazia. Ela carecia dos

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enfeites de plantas e árvores e ainda não era habitada por seres vivos. As obras de Deus, resumidas em Gênesis 1.11 ss., colocam um fim nessa vacuidade da terra, pois Deus não criou a terra para que ela fosse vazia, mas para que o homem vivesse nela (Is 45.18). Claramente as obras de Deus no arranjo ou acabamento da terra sem forma e vazia são divididas em dois gru-pos. 0 primeiro grupo de obras ou atos é introduzido com a criação da luz. Ele traz à existência a diferenciação e a distinção de formas, tons e cores. 0 segundo grupo começa com a formação dos luzeiros, o sol, a lua e as estrelas e serve para encher a terra com os seus habitantes – pássaros, pei-xes, animais e o homem.

Toda a obra da criação, de acordo com os repetidos registros da Escrituram, completou-se em

seis dias. Tem havido muitas diferenças de opinião e liberdade de especulação sobre esses seis dias. Ninguém menos que Agostinho julgou que Deus tinha feito tudo perfeito e completo e que os seis dias não foram seis períodos sucessivos de tempo, mas apenas alguns pontos dos quais a posi-ção e a ordem das criaturas devem ser observados. Por outro lado, há muitos que sustentam que os dias da criação devem ser considerados como períodos de tempo muito mais longos do que unidades de vinte e quatro horas.

A Escritura definitivamente fala de dias que são reconhecidos pela sucessão de dias e noites e que formam a base da distribuição dos dias da semana em Israel * no calendário festivo. Contudo * Escritura contém dados que nos obrigam a pensar que esses dias de Gênesis; são diferentes dos nos-sos dias ordinários como determinados pela rotação da terra.

Em primeiro lugar nós não podemos ter certeza de que o que nos é falado em Gênesis 1.1,2 precede o primeiro dia ou está incluído no primeiro dia. Em favor da primeira suposição está o fato que de acordo com o versículo 5 o primeiro dia começa com o criação da luz e que depois da tarde e da noite, segue-se a manhã. Mas, apesar de poder-se reconhecer os eventos de Gênesis 11,2 como o primeiro dia, pode-se levantar a

questão do dia atípico que consistiu de trevas e também o fato de que a duração das trevas, que precederam a criação da luz, não é mencionada.

Em segundo lugar, os primeiros três dias (Gn 13-13) devem ter sido muito diferentes dos que conhecemos, pois nossos dias de vinte e quatro horas são causados pelas revoluções da terra sobre seu eixo e pela correspondente diferença referente ao sol que acompanha essas revoluções. Mas esses primeiros três dias não podem ter sido constituídos dessa forma. É verdade que a distinção entre eles foi marcada pelo surgimento e desaparecimento da luz, mas o próprio l ivro de Gênesis nos diz que o sol, a lua e as estrelas só foram formados no quarto dia.

Em terceiro lugar, é certa-mente possível que a segundasérie de três dias tenha constituí-do a forma usual, mas se nós le-varmos em conta que a queda dosanjos e dos homens e também odilúvio que ocorreu mais tardecausaram todo tipo de mudanças

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no cosmos, e se, além disso, nósobservarmos que todas as esferasdo período inicial diferem noto-riamente do desenvolvimentonormal, então não parece impro-vável que a segunda série de trêsdias, também seja diferente denossos dias, em muitos aspectos.Finalmente, merece conside-

ração o fato de que tudo o que de acordo com Gênesis 1 e 2 aconteceu no sexto dia, dificilmente pode ter acontecido nos limites de um dia tal como nós o conhecemos, pois, de acordo com a Escritura, naquele dia ocorreu a criação dos animais (Gn 1.24,25), a criação de Adão (Gn 1.26;2.7), o plantio do jardim (Gn 2.8-14), a proclamação da ordem proibitiva (Gn 2.18-20), o sono de Adão e a criação de Eva (Cn 2.21-23).

Apesar de tudo isso os seis dias continuam sendo a semana da criação, dentro da qual os céus e a terra e tudo o que neles há foram feitos. Esses dias indicam a ordem temporal na qual as criaturas foram sucessivamente cria-das, mas ao mesmo tempo eles contêm uma sugestão de um re-lacionamento de categorias, no qual essas criaturas ficam umas sobre as outras. Nenhuma investigação científica pode derrubar esse relacionamento. Os sem forma precedem os formados em categoria e ordem, os inorgânicos precedem os orgânicos, as plantas precedem os animais, e os animais precedem o homem. 0 homem é a coroa da criação. A execução e a preparação da terra culminam nele e convergem para ele. Repare que a Escritura nos fala pouco sobre a criação dos céus e dos anjos, limitando-se pri

mariamente à terra. Em um sentido astronômico a terra pode ser pequena e insignificante. Em matéria de massa e peso ela pode ser excedida por centenas de planetas, sóis e estrelas. Mas em um sentido religioso e moral ela é o centro do universo. A terra e somente a terra foi escolhida para ser a morada do homem. Ela foi escolhida para ser a arena na qual a grande luta será travada contra as forças do mal. Ela foi escolhida para ser o lugar do estabelecimento do reino dos céus.

Tudo o que foi criado é resumido na Escritura sob o nome de céus e terra e o seu exército (Gn2.1) ou sob o termo mundo. As palavras originais traduzidas; simplesmente por mundo, em nossas Bíblias, algumas vezes designam o globo físico da terra (15m 2.8; Pv 8.31), às vezes designam a terra como morada do homem e habitada pelo homem (Mt 24.14: Lc 2.1). Em outras ocasiões ela designa o mundo em sua natureza temporal, mutável e transitórialo', e em outros casos ela significa a unificação e a totalidade das criaturas (Jo 1.10; At 17.24). Esses dois últimos significados possuem um rico conteúdo. Em outras palavras, nós podemos sempre olhar para o mundo de dois pontos de vista diferentes: de sua largura e de seu comprimento.

Em primeiro lugar, o mundo é uma unidade, um todo coerente, no qual sua unidade exibe uma inequívoca e rica diferenciação. Desde o começo, quando foi criado, o mundo compreende os céus e a terra, o visível e o invisível, anjos e homens, plantas e animais, seres animados e inanimados, espirituais e não espirituais. Todas essas criaturas são de novo e infinitamente diferenciadas. Entre os anjos há os tronos e poderes, principados e

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potestades. Entre a raça humana existem homens e mulheres, pais e filhos, soberanos e servos, povos e nações, idiomas e dialetos. E da mesma forma as plantas, os animais e até os minerais são subdivididos em classes e grupos, famílias e espécies, variedades e tipos. Dentro dos limites de todas essas criaturas há uma natureza peculiar que elas receberam de Deus (Gn 1.11, 21 ss.), e dessa forma elas estão sujeitas às suas próprias leis. Elas existem uma depois da outra não somente no sentido em que foram criadas, mas tam-bém existem próximas umas das outras e esse é o motivo pelo qual elas continuam existindo até os nossos dias. 0 caráter da criação não é uniforme, mas multiforme, e contém, tanto em sua inteireza quanto em suas partes, as mais ricas e bonitas variedades.

Ao mesmo tempo o mundo continua sua existência no tempo.0 fato de que tudo o que Deus fez era muito bom (Gn 1.31), não significa que tudo já era como deve-ria ser. Assim como o homem, apesar de ter sido criado à imagem e semelhança de Deus, ter recebido um chamado e um destino que ele tinha que alcançar por meio de suas obras, da mesma forma o mundo, quando foi criado, estava em seu começo, não em seu fim. Ele ainda teria uma longa história pela frente, na qual manifestaria mais rica e claramente as excelências de Deus. Portanto, a criação e o desenvolvimento não se excluem. Deus criou um mundo de variadas e ricas dife-renciações,no qual osvários tipos de criaturas possuem suas próprias naturezas, e no qual cada natureza tem suas propriedades e leis e somente por isso a evolução é possível. Toda essa evolução tem seu ponto de partida e também sua direção e seu propósito, na criação. Embora o pecado tenha provocado distúrbios e destruição nessa evolução ou desenvolvimento, Deus cumpriu Seu conselho, sustentou o mundo e o conduz ao seu destino.

Quando a Escritura fala dessa forma sobre o mundo, ela implicitamente pressupõe que há apenas um mundo. Na tese dos filósofos esse assunto é apresentado de forma bem diferente. Não apenas havia muitos – e ainda há – que afirmavam que vários mun-

dos coexistiram paralelamente uns aos outros, e que não apenas a terra, mas também vários outros planetas eram habitados por criaturas vivas e racionais, mas também afirmavam que vários mundos se sucederam no decorrer do tempo. Portanto, o nosso mundo não é o único, mas foi precedido por inu-meráveis mundos e será sucedido por tantos outros. Alguns anexaram a essa afirmação a idéias de que tudo o que existe já existiu em um mundo antigo e voltará a existir em um mundo futuro. Em resumo, existe um processo contínuo; tudo está sujeito à lei eterna do aparecimento e desaparecimento, emergência e sulamergência, elevação e rebaixamento.

A Escritura ignora completamente essas imaginações. Ela nos diz que no começo Deus criou esse mundo, que ele percorrerá uma história com séculos de duração e que depois desse processo histórico, o eterno Sabbath terá início

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para o povo de Deus. A Escritura nada sabe sobre a habitabilidade de outros planetas. De fato, ela nos ensina que o mundo é infinito em variedade, que existem não apenas homens, mas anjos também e que além da terra há o céu. Além disso, ela afirma que somente o homem foi criado à imagem de Deus, que o Filho de Deus não assumiu a natureza de anjos, mas de homens, e que o reino dos céus se espalha

nessa terra.

Dessa forma a Escritura nos diz que o mundo éfinito. Isso significa, em primeiro lugar, que o mundo teve um começo e que foi criado junto com o tempo. A questão de há quanto tempo o mundo existe nada acrescenta e nada subtrai à sua finitude. Mesmo que o mundo exista há milhares ou milhões de anos, isso não faz com que ele seja eterno, no sentido em que Deus é eterno. 0 mundo continua sendo limitado, temporal e coexistente com o tempo. É importante observar que a Escritura, que nos ensina que o mundo teve um começo, também nos ensina que ele não terá fim. É claro que ele terá um fim em sua presente forma, pois a forma desse mundo é passageira, mas não sua substância e essência. Mas apesar do mundo, os homens e os anjos continuarem existindo no futuro, eles continuarão sendo criaturas e nunca compartilharão da eternidade que Deus possui. 0 mondo existe no tempo e continuará existindo nele, embora em outra dispensação seja utilizado um padrão de medidas inteiramente diferente desse que conhecemos. E da mesma forma que o mundo é limitado pelo tempo, ele também é limitado pelo espaço. De fato, a ciência tem expandido seu raio de ação de forma fantástica; o mundo tem se tornado um lugar imponentemente maior do que foi para nossos avós; nós ficamos tontos ao ouvirmos o número e a magnitude das estrelas, cada uma das quais é um mundo, e a distância que as separa do nosso mundo vai além de qualquer imaginação, mas apesar disso o mundo não pode ser considerado eterno como Deus é eterno. A diferença entre o eterno e o duradouro é de tipo, não de grau. Nós não podemos imaginar um tempo e espaço além do mundo. Nós não podemos imaginar que, algum dia, poderemos tocar a fronteira do universo e sermos capazes de olhar fixamente para o vazio. 0 tempo e o espaço possuem a mesma extensão do mundo, indo tão longe quanto o mundo pode ir e estando cheios de coisas criadas. Mas todos juntos - espaço, tempo e mundo - são finitos. A associação de partes fintas, não importa quão grandes sejam essas partes, nunca resultará algo infinito. Só Deus é eterno, infinito e onipresente.

Finalmente, as Escrituras nos ensinam que o mundo é bom. É preciso muita coragem para dizer isso em nossos dias. 0 tom do século dezoito foi muito otimista; os homens daquela época viam tudo por um lado brilhante. Eles pensavam que Deus tinha criado o melhor de todos os mundos possíveis. Mas nos séculos dezenove e vinte a vida, o mundo e a sociedade são vistos de um

ponto de vista diferente. Poetas, filósofos e artistas de nosso tempo dizem que tudo é miséria no mundo, que o mundo é tão mal quanto pode ser, e que se ele descesse mais um degrau ele deixaria de existir. Tudo o que existe, de acordo com o pensamento dessas pessoas, merece apenas a aniquilação. E apesar de alguns ainda terem vontade de se divertir e aproveitar toda migalha de prazer que o mundo possa oferecer (comamos e bebamos, que amanhã morreremos), outros se rendem ao desencorajamento ou ao cansaço ou a sonhos visionários de esperança por um futuro, uma utopia socialista, uma felicidade além da sepultura, um

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nirvana - algo que o presente não possa dar.

A Escritura tem um ponto de vista diferente sobre esse assunto. Ela nos diz que o mundo é bom, muito bom, na forma em que foi feito pelas mãos de Deus (Gn 1.31). Ela nos diz também que, por causa do pecado, a terra foi amaldiçoada e o homem está sujeito à corrupção e à morte, e toda a criação está sujeita à vaidade. Em lugar nenhum a fragilidade e a transitoriedade da vida, a insignificância e a pequenez de tudo o que existe, a profundidade e a dor do sofrimento são mencionados tão forte e vivamente como nas Sagradas Escrituras. Mas elas não param nesse ponto. Elas vão além e explicam que apesar dessa que-

da, da culpa e da vaidade desse mundo, o beneplácito de Deus está sendo cumprido. Elas ensinam que por causa desse destino ao qual o mundo está sendo conduzido, esse mundo pode novamente ser chamado bom; e elas ensinam que, apesar do pecado, c, mondo é e continuará sendo um meio pelo qual Deus glorifica Seus atributos, e um instrumento que Ele usa para honrar Seu nome. E, finalmente, as Escrituras concluem sua instrução a respei-to do mundo dando a gloriosa promessa de que esse mundo, com todo o seu sofrimento e opressão, se tornará novamente bom para nós quando sujeitamos nossa vontade à honra de Deus e nos dedicarmos à Sua glória. To-elas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus (Rm 8.28). Nós aprendemos a Iloriarmo-nos até mesmo nas tribulações (Rm 5.3). Nossa fé é a vitória que vence o mondo (ljo 5.4).

Todas essas considerações natural e diretamente, conduzem-nos da criação para a providência. Desde o momento em que o mundo em seu todo ou cada um de seus habitantes foi chamado à existência pelo ato criativo de Deus, eles imediatamente ficaram sob a vigilância da providência de Deus. Aqui não há transição gra

dual, nem qualquer tipo de abismo ou brecha. Pois exatamente como as criaturas, por serem criaturas, não podem nascer de si mesmas, da mesma forma elas não podem, por um minuto sequer, existir por si mesmas. A pro-vidência caminha de mãos dadas com a criação. Elas são companheiras.

Portanto, uma íntima conexão e um relacionamento estreito existe entre elas. E é da maior importância manter, contra toda ameaça deísta, essa inseparável conexão entre a criação e a providência. 0 deísmo aceita a idéia de uma criação original, mas crê que Deus, depois de ter criado o mundo, abandonou-a à sua própria sorte. Nesse caso a noção de criação serve apenas para dar ao mundo sua existência independente, e nesse sentido é uma idéia que foi aceita até mesmo por Kant e Darwin. Mas a idéia é que, ao criar o mundo, Deus dotou-o com total independência e equipou-o com energias e dádivas suficientes para que pudesse por si mesmo existir

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perfeitamente bem e pudesse também, sob todas as circunstâncias, salvar-se. 0 mundo, de acordo com uma figura familiar, é como um relógio, que, depois de acionado, funciona por si mesmo. Naturalmente essa foi uma idéia que conduziu a um pensamento posterior de que o mundo não tem necessidade de

revelação, pois ele alcançará a verdade por suas próprias forças e pelos recursos de que dispõe. Como podemos ver, o deísmo traz o racionalismo em seu bojo - ou seja, o movimento que afirma que a razão pode chegar a toda verdade apenas pelo uso de seus próprios recursos. Da mesma forma o deísmo dá asas ao pelagianismo - ou seja, a doutrina de acordo com a qual o desejo do homem pode fazer com que ele alcance sua salvação. De acordo com o deísmo, o desejo do homem, assim como sua razão, foi criado para ser independente, e foi equipado com dons e energias permanentes, que fazem com que a obra de qualquer Mediador da salvação seja supérflua.

É necessário, então, em vista da alternativa deísta, aderirmos à relação existente entre a criação e a providência. A Escritura faz isso. Ela chama a obra da providência de dádiva da vida e atividade preservadora (Já 33.4; Ne 9.6), renovação (51104.30), fala (SI 33.9), vontade (Ap 4.11), trabalho (Jo 5.17), o sustento de todas as coisas pela palavra de Seu poder (Hb 1.3), cuidado (lPe 5.7) e também de criação (Si 104.30; Is 45.7). 0 que está implicado em todas essas expressões é que depois da criação do mundo Deus não o abandonou, nem desprezou-o .

Deus não empurrou o mundo para o lado ou para trás depois de tê-lo criado. A palavra providência significa que Deus supre o mundo em todas as suas necessidadesa'. Esse não é um ato só da mente de Deus, mas também de Sua vontade, em decorrência de Seu conselho. É uma atividade pela qual, de momento em momento, Ele conserva o mundo em sua existência.

A manutenção, que é geralmente vista como a primeira atividade da providência, não é uma supervisão passiva. 0 ponto não é que Ele leva o mundo a existir, mas que Ele faz com que o mundo exista. Isso é manutenção no sentido verdadeiro da palavra. Muito lindamente o Catecismo de Heidelberg descreve essa providência como "o poder Todo Po-deroso e sempre presente de Deus, pelo qual Ele sustenta o céu, a terra e todas as Suas criaturas". Virtude, força e poder procedem de Deus, saem dele, fazendo com que o mundo continue a existir, da mesma forma que fez com que ele fosse criado. Sem receber essa força nenhuma Criatura pode existir nem sequer por um momento. No momento em que Deus removesse Sua mão e suspendesse o envio de Sua força, a criatura seria reduzida a nada. Nada vem à existência, nem

permanece existindo sem que Deus envie Sua Palavra e Seu Espírito (SI 104.30; 107.25). Somente Deus fala, age e quer por Si mesmo,

A força de Deus não vem de longe, mas de perto; ela é uma força onipresente. Deus está pre-sente com todas as Suas excelências e com todo o Seu Ser em todo

omundo e em todas as Suas criaturas. Nele nós vivemos, nos movemos e existimos (At 17.28). Ele não está longe de quem quer que seja (At 17.27). Ele é um Deus próximo, não um Deus distante. Ninguém pode se esconder em

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lugares tão secretos que Deus não possa encontrá-lo. Ele enche os céusea terra (Jr 23.23,24). Quem poderia fugir de Seu Espírito, ou sair de Sua presença? Ele está no céueno reino dos mortos, nas partes mais profundas do mar e nas mais densas trevas (SI 139.7 ss.). Sua manutenção, Seu poder sustentador, estende-se a todas as criaturas: aos lírios do campo (Mt 6.28), às aves no céu (Mt 6.26), e até aos fios de cabelo da cabeça (Mt 10.30). Toda criatura existe de acordo com sua natureza - como ela existe e qual a duração de sua existência - através do poder de Deus. Da mesma forma que tudo procede dEle, tudo procede através dEle (Rm 11.36). 0 Filho, através de quem Deus fez o mundo, continua a sustentar todas as coisas pela Palavra de Seu poder (Flb

1.2,3). Ele é antes de todas as coisas, e nEle tudo subsiste (Cl 1.17) e todas as coisas são criadas e renovadas pelo Seu Espírito (SI 104.30).

Por causa desse estreito relacionamento entre a criação e a providência, a providência é, às vezes, chamada de continuação da criação ou criação progressiva. Essa designação pode ser entendida em um sentido positivo; contudo, nós devemos nos prevenir contra o erro. Com a mesma seriedade com que nós insistimos em manter a conexão e a relação entre a criação e a providência nós devemos também manter a distin-ção entre as duas. Se ao negar essa conexão nós seríamos envolvidos em um deísmo (crença em Deus sem a revelação), ao negar essa distinção nós seríamos envolvidos em uma espécie de panteísmo. 0 panteísmo mantém a posição de que a diferença em espécie entre Deus e o mundo foi apagada e os dois são considerados idênticos um ao outro, ou melhor, dois lados de um mesmo ser. Dessa forma Deus é considerado a essência do mundo e o mundo é considerado a manifestação de Deus. A relação entre Deus e o mundo é como a do oceano e as ondas, a realidade e as formas da realidade, os lados visível e invi-

sível do mesmo universo.

A Escritura evita essa heresia muito cuidadosamente, como faz com o deísmo. É evidente o fato de que Deus está presente não meramente como um artesão no começo da criação, mas também como um lapidador da obra da criaç ão113 . Na criação a obra é realizada e completa. Como foi demonstrado acima, o descanso de Deus não é um abandono de toda a obra, pois a providência também é uma obra (jo 5.17). Mas é o abandono de um tipo específico de obra destinada à criação. E se a criação e a providência po-dem ser pensadas como estando próximas uma da outra no relacionamento de trabalho e descamo, então não pode haver dúvida de que, apesar de

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estarem intimamente relacionadas, elas são distintas. A criação é a chamada de algo à existência e a manutenção é a causa pela qual o que foi criado permanece existindo. Portanto, a criação não faz com que o mundo seja independente, pois uma criatura independente é uma contradição de termos, mas faz com que o mundo seja uma essência distinta da essência de Deus. Não é meramente em nome e em forma que Deus e o mundo são distintos um do outro, mas em essência, em ser. Eles diferem como o tempo difere da etemida

de, como o infinito difere do finito, como o Criador difere da criatura.É da mais alta importância que nos apeguemos a essa diferença em

essência entre Deus e o mundo. Quem quer que deprecie ou negue essa distinção está falsificando a religião, puxando Deus para o nível da criatura e em princípio torna-se culpado do mesmo pecado que Paulo atribui aos pagãos quando diz que eles, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças (Rm 1.21). Mas há uma consideração que faz com que essa distinção seja necessária.

Se Deus for idêntico ao mundo, e, portanto, também indistinto da raça humana, então todo pensamento e ato do homem teria que ser direta e imediatamente transferido para a responsabilidade de Deus. Dessa forma o pecado também seria da responsabilidade de Deus - em resumo, não haveria algo como o pecado. É verdade que a Escritura, por um lado, forçosamente afirma que o homem, com todos os seus pensamentos e atos e também com todos os seus pecados, está sob o domínio de Deus. 0 homem nunca é independente de Deus. 0 Senhor olha dos céus; vê todos os filhos dos homens (Si 33.13). Ele forma o coração de todos eles e

contempla todas as suas obras (SI 33.15). Ele determina o lugar da sua morada (Dt 32.8; At 17.26). Ele pondera todas as veredas dos homens (Pv 5.21; Ir 10.23). Ele age de acordo com a Sua vontade com os exércitos dos céus e entre os habitantes da terra (Dn 4.35). Nós estamos em Suas mãos como um vaso de barro, e Ele faz conosco o que quiser'". Quando o homem se torna um pecador ele não se emancipa de Deus. Sua dependência de Deus simplesmente muda de caráter. Ele perde sua natureza moral e racional e se torna uma criatura caída. 0 homem que se toma um escravo do pecado, se desvaloriza e se toma um instrumento em suas mãos. Portanto, é possível que a Escritura diga que Deus endurece o coração dos homens", que Ele põe um espírito de mentira na boca dos profetas (2 Sm 24.1; lCr 21.1), que Ele manda que Simei amaldiçoe Davi (2 Sm 16.10), que Ele entrega os homens à imundície de seus pecados (Ruí 1.24), que Ele manda aos homens a operação do erro, para que eles se entreguem à mentira (2 Ts 2.11), e que Ele envia Cristo para a ruína de muitos (U 2.34).

Contudo, independente do fato de que a providência de Deus vigia também o pecado, a Escri

tura também firme e resolutamente afirma que a causa dos pecados não está em Deus e que deve ser creditada não a Deus, mas ao homem. 0 Senhor é justo e santo e está distante de toda iniquidade (Dt 32.4; Já 34.10). Ele é a luz que dissipa as trevas (ljo 1.5). Ele não tenta o homem (Tg 1.13). Ele é a fonte transbordante de todo o bem e de toda a pureza (5136.10; Tg 1.17). Ele proíbe o pecado em Sua lei (Ex 20) e na consciência do homem (Rm 2.14,15), aborrece os que andam na iniqüidade (SI 5.5) e se revela dos céus contra toda a impiedade e perversão dos homens (Rm 1.18) e aplica punições temporais e eternas (Ruí 2.8).

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Essas duas linhas das Sagradas Escrituras, de acordo com as quais; o pecado, do começo ao fim, está debaixo do governo de Deus e ao mesmo tempo deve ser lançado na conta do homem, só podem ser conciliadas se Deus e o mundo, por um lado, não forem separados um do outro e, por outro lado, forem essencialmente distintos um do outro. A teologia se encarrega de fazer isso quando, com relação à providência de Deus, ela fala não apenas de manutenção, mas também de cooperação. Com esse termo a teologia faz justiça ao fato de que Deus é a primeira causa de tudo o que acoutece, mas que sob Ele e através dEle as criaturas são ativas como causas secundárias, cooperando com a primeira. Nós podemos falar de tais causas secundárias até mesmo com referência às criaturas inanimadas, pois apesar de ser verdade que Deus faz nascer o sol sobre maus e bons e faz vir a chuva sobre justos e injustos (Mt 5.45), também é verdade que Ele faz uso do sol e das nuvens em certas ocasiões. Mas a distinção feita aqui, diz muito mais respeito às criaturas racionais, pois essas criaturas receberam das mãos de Deus uma razão e uma vontade e devem usá-las para guiar-see orientar-se. É verdade que nessas criaturas racionais toda a existência e toda a vida, todo o talento e toda a força, são derivados de Deus, e que, independente de como esses talentos e essa força são usados, eles permanecem sobo governo da providência de Deus. Da mesma forma, há uma distinção a ser feita entre a primeira e a segunda causa, entre Deuse o homem. Exatamente como ao fazer o bem é Deus que, de acordo com seu beneplácito, age e realiza Sua vontade, o homem também tem vontades e age. Deus concede a vida e a energia para isso também, mas é o homem, e somente o homem, que comete o pecado e que é culpado por ele. Nós, simplesmente não podemos resolver o enigma que nos é apre-

sentado na providência de Deus nessa vida, mas a confissão de que Deus e o mundo nunca podem ser separados mas devem ser diferenciados, aponta a direção na qual a solução deve ser procurada e evita que nós nos desviemos para a esquerda ou para a direita em nossa pesquisa.

Entendida dessa forma, a doutrina da criação e da providência é rica em encorajamento e conforto. Há muitas situações na vida que são opressivas e que nos roubam a força para pensar e agir. Há as adversidades e os desapontamentos que nós encontramos pelos caminhos da vida. Há aquelas terríveis calamidades e desastres que fazem com que centenas e milhares de vidas se percam em um sofrimento anônimo. Mas a vida em seu curso ordinário, também pode levantar dúvidas em nossa mente sobre a providência de Deus. Não é um mistério o quinhão de toda a humanidade? 0 verme da inquietação e do medo corrói toda a existência. Não é verdade que Deus tem uma rixa

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com Suas criaturas e que nós perecemos em Sua ira e somos aterrorizados pela Sua cólera? Não, não são apenas os incrédulos e os frívolos, mas também os filhos de Deus, e esses mais profundamente que os outros, que sofrem sob

a terrível seriedade da realidade. E em algumas ocasiões a questão força passagem do coração para os lábios: Pode ser verdade que Deus criou o homem e a terra para nada?

Mas nesse ponto, o cristão desapontado pela fé na criação e na providência de Deus novamente levanta sua cabeça. Não o diabo, mas Deus, o Todo-Poderoso, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, criou o mundo. 0 mondo é em sua inteireza e em suas partes uma obra das mãos de Deus e somente das mãos de Deus. Depois de criar o mundo, Deus não o abandonou. Ele o sustenta com Seu poder infinito e onipresente. Ele governa e rege todas as coisas de tal forma que todas elas cooperam e convergem para o cumprimento do propósito que Ele mesmo estabeleceu. A providên-cia de Deus inclui, juntamente com a manutenção e a cooperação, UM terceiro aspecto, chamado go: ,erno. Ele é o Rei dos reis e Senhor dos senhores (1 Tm 6.15; Ap 19.6) e Seu reino dura por toda a eternidade (ITm 1.17). Não é um acidente, nem uma necessidade, nem uma arbitrariedade, nem uma força, nem um mero capricho, nem um destino de ferro que controla o mundo e sua história e a vida e toda a humanidade. Atrás das causas secundárias esconde--e e age o desejo todo poderoso do Deus Todo-Poderoso e do Pai.

É claro que ninguém pode crer realmente nisso com seu coração e confessar com sua boca, a não ser que a pessoa seja um filho de Deus. A fé na providência tem um relacionamento muito próximo e muito profundo com a fé, na redenção.

De fato, a providência de Deus pertence àquelas verdades que em certa medida podem ser discernidas pela revelação geral na natureza e na história. Alguns pagãos têm expressado e descrito a providência de um modo muito bonito. Um deles disse que os deuses vêem e ouvem tudo, que eles são onipresentes e que cuidam de todas as coisas. Um outro disse que a ordem e o arranjo do universo são mantidos por Deus e em consideração a Si mesmo. Mas nenhum deles sabia, a confissão do cristão, de que esse Deus que mantém e governa todas as coisas é o seu Deus e seu Pai por causa da obra de Cristo. A fé na providência de Deus foi conseqüentemente abalada pela dúvida no mundo pagão e provou ser inadequada em virtude das vicissitudes da vida. 0 século dezoito foi muito otimista e afirmou que Deus criou o melhor de todos os mundos possíveis. Mas quando no ano de 1755 a cidade de Lisboa foi destruída por um terrível terremoto, muitos começaram a blasfemar contra a existência de Deus e a negar Sua

existência. Mas o cristão, que experimentou o amor de Deus no perdão de pecados e na redenção de sua alma, está seguro e afirma com o apóstolo Paulo que nem tribulação, nem angústia, nem perseguição, nem fome, nem nudez, nem perigo, nem espada pode separá-lo do amor de Cristo (Rm 8.35). Se Deus é por nós, quem será contra nós? (Rm 8.31). Ainda que a figueira não floresça, nem haja fruto na vide; o pro-

duto da oliveira minta, e os campos não produzam mantimento; as ovelhas sejam arrebatadas do aprisco, e nos currais não haja gado, todavia, eu me alegro no Senhor, exulto no Deus da minha salvação (Hc 3.17,18).

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Com tal alegria de coração, o cristão convida toda a terra a louvar o Senhor: Reina o Senhor. Regozije-se a terra, alegrem-se as muitas ilhas (Si 97.1).

Capítulo 12

AORIGEM, AEssÊNCIA E 0

PROPÓSITO DO HOMEM

0 registro da origem do céu e da terra no pr imei ro ca p í tu lo de Gênes is converge para a criação do homem. A criação das outras criaturas, do céu e da terra, do sol, da lua e das estrelas, das plantas e dos animais, é registrada em breves palavras e não se faz menção de toda· criação dos anjos. Mas quando· Escritura menciona a criação do hornem, ela o faz demoradamente, descrevendo não apenas o fato, mas também i maneira pela qual ele foi criado e volta ao assunto para maiores considerações, no segundo capítulo.

Essa especial atenção dedicada à origem do homem serve como evidência de que o homem é o propósito e o fim, a cabeça e a coroa de toda a obra de criação. Há vários detalhes materiais que

também iluminam a categoria superior e o valor do homem entre as demais criaturas.

Em primeiro lugar há o especial conselho de Deus que precede a criação do homem. Ao chamar à existência as outras criaturas, nós lemos simplesmente que Deus falou e essa fala de Deus trouxe-as à existência. Mas quando Deus está prestes a criar o homem Ele primeiro conferencia consigo mesmo e decide fazer o homem à Sua imagem e semelhança. Isso indica que especial-mente a criação do homem repousa sobre a deliberação, sobre a sabedoria, bondade e onipotência de Deus. Nenhuma maldição veio à existência por acaso. 0 conselho e a decisão de Deus são mais claramente manifestos na criação do homem do que na criação de to-

das as outras criaturas.Além disso, nesse conselho particular de Deus a ênfase especial é

colocada no fato de que o homem é criado segundo a imagem e semelhança de Deus e, portanto, possui um relacionamento com Deus totalmente diferente daquele que as demais criaturas possuem. Sobre nenhuma outra criatura é

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dito, nem sobre os anjos, que eles foram criados à imagem de Deus e que exibem essa imagem. Eles podem possuir alguns vestígios e indicações de um ou de alguns atributos de Deus, mas somente sobre o homem se diz que foi criado à imagem e semelhança de Deus.

A Escritura enfatiza que Deus criou não um homem, mas os homens, à Sua imagem e semelhança. Na conclusão de Gênesis 1.27 eles são designados como macho e fêmea. Não foi apenas o homem, nem apenas a mulher, mas os dois, em sua interdependência, que foram criados à imagem de Deus. E, de acordo com a bênção que foi pronunciada sobre eles no versículo 28, eles são portadores dessa imagem não somente em, e para si mesmos. Eles são portadores dessa imagem também em sua posteridade. A raça humana, em cada uma de suas partes e em seu conjunto, é organicamente criada à imagem e semelhança de Deus.

Finalmente, a Escritura ex

pressamente menciona que essa criação do homem à imagem de Deus deve expressar-se especialmente em seu domínio sobre todos os seres vivos e na sujeição ao Senhor de toda a terra. 0 homem é o rei da terra porque ele é o filho ou a geração de Deus. Ser filhos de Deus e herdeiros do mondo são duas coisas estreitamente relacionadas uma com a outra e inseparavelmente unidas na criação.

0 registro da criação do homem no primeiro capítulo de Gênesis é elaborado e ampliado no segundo capítulo (Gn 2.4b-25). Esse segundo capítulo de Gênesis é, às vezes, equivocadamente de-signado a segunda história da criação. Isso é errado porque a criação do céu e da terra é pressuposta nesse capítulo e é mencionada no versículo 4b para introduzir a maneira pela qual Deus formou o homem do pó da terra. Toda a ênfase nesse segundo capítulo cai sobre a criação do homem e sobre a forma pela qual ela aconteceu. A grande diferença entre o primeiro e o segundo capítulo de Gênesis está nos detalhes mencionados no segundo capítulo referentes à formação do homem.

0 primeiro capítulo fala da criação do céu e da terra e depois se dirige para a criação do ho-

mera. Nesse capítulo o homem é a última criatura chamada à existência pela onipotência de Deus. Ele está no fim da série de criaturas, como o senhor da natureza, o rei da terra. Mas o segundo capítulo, de Gênesis 2.4b em diante, começa com o homem, procede dele como ponto de partida, coloca-o como o centro da criação e então relata o que aconteceu na criação do homem, como ele recebeu essa posição de destaque, qual morada foi designada para ele, que vocação lhe foi confiada e qual era o seu destino e propósito. 0 primeiro capítulo apresenta o homem como o fim ou propósito da criação; o segundo apresenta-o como o começo da história. 0 conteúdo do primeiro capítulo pode ser resumido na palavra criação, e o segundo capítulo

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pode ser resumido na palavra paraíso.Há três aspectos particulares que são mencionados nesse segundo

capítulo referentes à origem do homem e que servem como elaboração de tudo o que está contido no capítulo um.

Em primeiro lugar há um tratamento consideravelmente longo sobre a primeira morada do homem. 0 primeiro capítulo simplesmente afirma em termos gerais que o homem foi criado à imagem de Deus e que foi nomeado senhor de toda a terra, mas não dá pistas do lugar na face do

globo em que o homem viu a luz da vida e onde ele viveu. Mas nós somos informados sobre isso no segundo capítulo. Quando Deus fez os céus e a terra e quando Ele criou o sol, a lua, as estrelas, as plantas e as aves, os animais da terra e os animais das águas, nenhum lugar específico tinha sido separado para ser a morada do homem. Portanto Deus dá um intervalo antes de criar o homem e prepara para ele um jardim ou paraíso no Éden, a leste da Palestina. Esse jardim é organizado de uma forma especial. Deus planta todos os tipos de árvores nesse jardim – árvores agradáveis à vista e de bons frutos. Duas dessas árvores são chamadas pelo nome, a árvore da vida, plantada no meio do jardim e também a árvore do conhecimento do bem e do mal. Ojardim foi preparado de tal forma que um rio que tinha sua nascente no próprio jardim fluía através dele e dividia-se em quatro braços, a saber, Pisem, Giorn, Tigre e Eufrates.

Um grande esforço tem sido realizado através dos séculos para se tentar determinar a localização do jardim do Éden. Várias representações têm sido apresentadas sobre o rio que nascia no Éden e fluía através do jardim, sobre os outros quatro rios que eram formados por ele, sobre o nome do território do Éden e sobre o jardim dentro desse territIS-

rio. Mas todas essas representações são apenas conjecturas. Ninguém conseguiu apresentar uma prova concreta. Todavia, há duas representações que parecem merecer a nossa preferência. A primeira é a representação segundo a qual o Éden estava localizado ao norte da Armênia. A segunda diz que a localização correta do Éden é bem mais ao sul da Armênia, na Babilônia. É difícil decidir entre essas duas. Os detalhes fornecidos pela Escritura não são suficientes para determinar exatamente onde ficava o Éden. Contudo, quando nós observamos que o povo que descendeu de Adão e Eva, depois que eles foram banidos do paraíso, permaneceu nas proximidades do Éden (Gn 4.16) e que a arca de Noé, depois do dilúvio, ficou encalhada no cume do monte Ararate (Gn 8.4) e que a humanidade depois do dilúvio espalhou-se pela terra, a partir de Babel (Gn 11.8,9), dificilmente pode haver dúvida de que o berço da humanidade ficava na área compreendida entre a Armênia, ao norte, e Sinear, ao sul. Nos tempos modernos os eruditos começaram a reforçar esse ensino da Escritura. No passado a investigação histórica fez todo tipo de suposições sobre o lar original da humanidade, procurando-o por todas as partes da terra, mas sempre voltando pelas suas própr ias pegadas . A

Etnologia, a história da civilização e a filologia apontam a Ásia como o continente que serviu de berço para a humanidade.

Um segundo fato que atrai nossa atenção, em Gênesis 2 é a ordem probatória dada ao homem. Originariamente o primeiro homem foi chamado simplesmente de o homem (ha-adam) porque ele estava sozinho e ninguém havia que fosse semelhante a ele. É somente em Gênesis 4.25 que o nome Adão aparece sem o artigo definido. 0 nome geral tinha se tornado um nome pessoal. Isso indica claramente que o primeiro homem, que até então

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era o único ser humano, foi a origem de toda a raça humana. Como tal ele recebeu uma tarefa dupla para realizar: primeiro, a de cultivar e preservar o jardim do Éden, e, segundo, comer livremente de todas as árvores do jardim, exceto da árvore do conhecimento do bem e do mal.

A primeira tarefa define seu relacionamento com a terra, enquanto a segunda define seu relacionamento com o céu. Adão tinha que subjugar a terra e dominá-la, e isso devia ser feito em um sentido duplo: ele tinha que cultivá-la, e assim extrair dela todos os tesouros que Deus tinha reservado para o uso humano; e ele tinha que vigiar a terra, protegê-la contra todo o mal que pudesse ameaçá-la, protegê-la

contra toda a corrupção em que a criação agora geme.Mas o homem só poderia cumprir sua missão com relação à terra se ele

não tivesse quebrado a conexão que o unia ao céu, ou seja, somente se ele continuasse a obedecer a Deus. Essa tarefa dupla, como podemos observar, é essencialmente =a só tarefa. Adão deveria dominar toda a terra, não ociosa e passivamente, mas através do trabalho de sua mente, de seu coração e de suas mãos.

E para que isso fosse possível, ele deveria servir: Ele deveria servir a Deus, que é seu Criador e Legislador. Trabalho e descanso, domínio e serviço, vocação terrena e celestial, civilização e religião, cultura e culto, esses pares caminham juntos desde o princípio. Eles pertencem e estão contidos na vocação do grande, santo e glorioso propósito do homem. Toda cultura, isto é, todo trabalho que ele realiza para subjugar a terra, seja através da agri-cultura, da pecuária, do comércio, da indústria, da ciência, ou de qualquer outra forma, é o cumprimento de um mandato divino. Mas para que o homem realmente cumpra esse mandato divino ele tem que depender e obedecer 'i Palavra de Deus. A religião deve ser o princípio que anima toda a \ ida e que a santifica a serviço de Deus.

Um terceiro detalhe desse capítulo 2 de Gênesis, é a entrega da mulher ao homem e a instituição do casamento. Adão tinha recebido muito. Apesar de ter sido formado do pó da terra, o homem é um portador da imagem de Deus. Ele foi colocado no jardim amorosamente feito por Deus e que foi suprido com tudo o que era bom para ser contemplado e comido. Ele foi incumbido de realizar a prazerosa tarefa de vestir o jardim e subjugar a terra, e para isso ele tinha apenas que obedecer a ordem do Senhor, que era comer livremente de toda árvore do jardim, menos da árvore do conhecimento do bem e do mal. Mas apesar de ter sido grandemente favorecido e estar muito agradecido por isso, o primeiro homem não estava satisfeito, não estava completo. A causa dessa insatisfação lhe é indicada pelo próprio Deus. Essa causa era a sua necessidade. Não é bom para o homem ficar só. Ele não foi constituído para isso e não foi criado dessa forma. Sua natureza é inclinada para a sociabilidade - ele precisa de companhia. Ele deve ser capaz de expressar-se, revelar-se e dar-se. Ele deve ter oportunidade de despejar seu coração, dar forma aos seus sentimentos. Ele deve poder dividir sua experiência de vida com outro ser que possa entendê-lo e possa sentir e vi-ver ao seu lado. A solicitude é miséria, abandono, degradação e perda.

E aquele que criou o homem dessa forma, com esse tipo de necessidade de expressão e extensão só pode decidir-se por suprir essa necessidade na grandeza e na Graça de Seu poder. 0 Criador só pode criar para ele uma auxi-

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liadora que lhe seja idônea, que se relacione com ele e que forme um conjunto com ele, como sua companheira. 0 texto nos diz nos versículos 19 a 21, que Deus fez todas as feras do campo e todas as aves dos céus e trouxe-as a Adão para ver se dentre todas essas criaturas haveria algum ser que pudesse servir como companhia e auxílio para ele. 0 propósito desses versículos não é indicar a ordem cronológica na qual os animais e os homens foram feitos, mas indicar a ordem material, a categoria, os graus de relaci-onamento no qual os dois tipos de criaturas estão um em relação ao outro. Esse relacionamento entre as categorias é indicado claramente no fato de Adão ter dado nome aos animais.

Adão, portanto, entendeu todas as criaturas, penetrou em sua natureza e assim pôde classificá-las e subdividi-Ias, e fixar para cada uma delas o lugar

em todo o Éden que seria habitado por elas. Se ele não descobriu um ser entre todas as criaturas que pudesse relacionar-se consi

go isso não foi conseqüência de ignorância, nem de arrogância ou orgulho; isso se deve ao fato de que há uma diferença em espécie entre Adão e todas as outras criaturas, ou seja, uma diferença não meramente de grau, mas de essência. De fato, existem várias correspondências entre o animal e o homem: ambos são seres físicos, ambos possuem todos os tipos de necessidade e desejo de comida e bebida, ambos geram descendência, ambos possuem os cinco sentidos (olfato, tato, paladar, visão e audição) e ambos compartilham das atividades de cognição, experiência, e percepção. Todavia o homem é diferente do animal. 0 homem possui razão, entendi-mento e vontade, e conseqüentemente possui religião, moralidade, linguagem, lei, ciência e arte. Ele foi formado do pó da terra, mas recebeu de Deus o fôlego da vida. Ele é um ser físico, mas também é um ser espiritual, racional, e moral. E foi por isso que Adão não encontrou uma cri-atura sequer entre todas as criaturas de Deus que pudesse relacionar-se consigo e fazer-lhe companhia. Ele deu nome a todas as criaturas, mas nenhuma delas mereceu o exaltado e real nome de ser humano.

0 homem não encontrou o que procurava, e totalmente independente do engenho e do desejo de Adão e sem qualquer esfor-

ço contributivo por parte dele, Deus lhe deu o que por si mesmo ele não pôde obter. As melhores coisas que recebemos são dádivas de Deus. Elas caem em nosso colo sem labor e sem preço. Nós não as conquistamos nem as alcançamos: nós as obtemos do nada. A mais rica e mais preciosa dádiva que pode ser concedida ao homem nessa terra, é a mulher. E essa dádiva ele recebe em um sono profundo, quando está inconsciente e sem qualquer esforço ou trabalho de suas mãos. De rato, a procura e o senso de necessidade precederam essa dádiva, e isso levou-o a orar. Deus concedeu-lhe essa dádiva de forma soberana, sem a ajuda humana. Deus conduziu a mulher até o homem pelas Suas próprias mãos.

A primeira emoção, logo após Adão abrir os olhos e ver a mulher a sua frente, foi de espanto e gratidão. Ele não se sentiu um estranho diante dela, mas reconheceu-a imediatamente como um ser que possui a mesma natureza que ele mesmo. Ele a reconheceu como aquilo de que tinha falta e necessidade, mas que ele mesmo não podia suprir. E seu espanto se expressa no primeiro hino de casamento que foi cantado sobre a face da terra:

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"Esta é osso dos meus ossos e carne da minha carne; chamar-se-á varoa, porquanto do varão foi tomada". Adão continuou sendo a fonte e

cabeça da raça humana. A mulher não foi meramente criada ao lado de Adão, mas foi criada a partir do homem (lCo 11.8). Assim como o material utilizado para a criação de Adão foi tirado da terra, da mesma forma a costela de Adão foi a base para a vida de Eva. Assim como do pó da terra o primeiro homem tornou-se um ser vivo ao receber de Deus o fôlego da vida, da mesma forma, da costela de Adão a primeira mulher tornou-se um ser vivo pela onipotência criativa de Deus. Eva foi feita a partir de Adão e tornou-se um ser vivo independente de Adão. Ela relacionava-se com ele e ao mesmo tempo era diferente dele. Ela pertence à mesma espécie, mas dentro dessa espécie ela ocupa o seu próprio lugar. Ela é dependente e ao mesmo tempo é livre. Ela veio depois de Adão e foi feita a partir de Adão, mas deve sua existência exclusivamente a Deus. E dessa forma ela ajuda o homem· cumprir sua vocação de sujeitar· terra. Ela é uma ajudadora, não uma amante ou muito menos uma escrava, mas um ser livre, independente e individual, que recebeu sua existência não do homem, mas de Deus, que deve prestar contas a Deus e que foi concedi-da ao homem como uma dádiva gratuita e imerecida.

Assim a Escritura registra a origem do homem, tanto do macho quanto da fêmea. Esse é seu ensino sobre a instituição do casamento e o começo da raça humana. Em nossos dias uma forte rejeição é feita a esse ensino, e essa rejeição é feita em nome da ciência e alegadamente com a autoridade da ciência. E como essa rejeição tem penetrado cada vez mais na massa popular, é necessário que prestemos atenção a ela por alguns momentos, com o fim de destruir as bases sobre as quais ela repousa.

Se uma pessoa repudia o registro bíblico sobre a origem da raça humana, é claro que torna-se necessário que essa pessoa apresente algum outro registro para essa origem. 0 homem existe e ninguém pode deixar de dar sua resposta à questão da sua própria origem. Se ele não deve sua origem à onipotência criativa de Deus, ele deve essa existência a alguma outra coisa. E então não resta outra opção a não ser dizer que o homem gradualmente se desenvolveu a partir de antigos seres inferiores e evoluiu até a sua presente condição elevada entre os demais seres. A evolução é, portanto, a palavra mágica que em nossos dias deve de alguma forma resolver todos os problemas sobre a origem e a essência de todas as criaturas. Naturalmente, a partir do momento em que o en

sino da criação é repudiado, os evolucionistas são forçados a aceitar que alguma coisa existiu no começo de tudo, pois o nada só pode gerar o nada. Os evolucionistas, diante desse fato, elaboraram uma suposição çao com-pletamente arbitrária e impossível de que a matéria, a energia e o movimento existiam eternamente. A isso eles acrescentam que, antes que o nosso sistema solar viesse à existência, o mundo consistia somente de =a caótica massa gasosa. Esse foi o ponto de partida que gradualmente resultou em nosso presente mondo e em todas as suas criaturas. Foi através da evolução que o sistema solar e o mundo vieram à existência. Através da evolução os seres animados surgiram a partir de seres inanimados, em um processo que durou séries sem fim de anos. Pela evolução, plantas, animais e homens passaram a existir. E dentro dos limites humanos, foi também através da evolução que a diferenciação sexual, o casamento, a família, a sociedade, o estado, a linguagem, a religião, a moralidade, a lei, a ciência, a arte e todos os outros valores da civilização passaram a existir. Se alguém acredita nessa

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suposição de que a matéria e a energia e o movimento existiam eternamente, logicamente não há necessidade da existência de Deus. 0 mundo torna-se auto explicativo. A ciên-

cia, segundo se crê, faz com que Deus seja totalmente desnecessário.A teoria da evolução desenvolveu essa idéia da origem do homem da

seguinte forma: Quando a terra era gelada ela se tornou adequada para o surgimento de criaturas vivas, e a vida se descri-volveu, sob circunstâncias muito peculiares, possivelmente de tal forma que as primeiras combinações de proteínas albuminóides se formaram e, afetadas por várias influências, desenvolveram várias propriedades, e essas proteínas através da combinação e mistura umas com as outras deram origem ao protoplasma, o primeiro gérmen da vida. A partir daí começou o desenvolvimento biogenético, o desenvolvimento dos seres vivos. Esse processo pode ter levado centenas de milhões de anos.

Esse protoplasma formado pelo núcleo das proteínas albuminóides é agora reconhecido como o constituinte básico de todos os seres vivos, seja das plantas, dos animais ou do homem. Isso significa que os protozoários unicelulares são os mais antigos organismos vivos. Esses protozoários, tanto os móveis quanto os imóveis, desenvolveram-se em plantas ou em animais. Entre os animais, a infusoria permaneceu em baixa escala, mas fora deles desenvolveu-se gradualmente,

através de vários estágios intermediários e transicionais, até formar os mais elevados tipos de animais, conhecidos como animais vertebrados, invertebrados e moluscos. Os animais vertebrados foram novamente divididos em quatro classes: peixes, anfíbios, aves e mamíferos. Os mamífe-ros foram divididos em outros três subgrupos: os onitorrincos (mamíferos aquáticos e ovíparos), os marsupiais, e os animais providos de placenta; e esses últimos novamente foram subdivididos em roedores, quadrúpedes, as feras predadoras e os primatas. Os primatas são classificados em semi-símios, símios e antropóides.

Quando nós comparamos o organismo físico do homem com o desses vários animais nós descobrimos, de acordo com os evolucionistas, que o homem, por semelhança, está mais próximo dos vertebrados, dos mamíferos, dos animais providos de placenta e dos primatas, e que, dentre os primatas, ele se assemelha mais aos antropóides, representados pelo orangotango e o gibão na Ásia e pelo gorila e o chimpanzé na África. Portanto, esses animais devem ser considerados os mais próximos parentes do homem. De fato, eles diferem do homem em tamanho, em formato e coisas desse tipo, mas eles se parecem muito com o homem em

sua estrutura física básica. Ao mesmo tempo o homem não veio de um desses tipos de símios que agora existem, mas de antropóides há muito tempo extintos. De acordo com essa teoria da evolução, os símios e os homens são parentes de sangue, pertencem à mesma raça, mas apesar disso devem ser considerados sobrinhos e sobrinhas e não irmãos e irmãs.

Essa é a idéia da teoria da evolução. De acordo com essa teoria, esse foi o curso dos acontecimentos. Mas os evolucionistas também dizem algo sobre a forma como isso aconteceu. É bastante fácil dizer que plantas e ani-mais e homens formam uma contínua e ascendente série de seres. Mas os evoluciortistas sentiram ser necessário fazer algo para demonstrar que esse desenvolvimento foi realmente possível, e que um símio, por exemplo, foi gradualmente transformando-se em um homem. Charles Da~ em 1859 tentou fazer essa demonstração. Ele afirmou que plantas e animais – rosas e pombas, por exemplo–podiam ser artificialmente ajudadas a, pela seleção

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natural, exibir significativas modificações. Dessa forma ele formulou a idéia de que, na natureza, tal seleção natural também deve ter estado em atividade, =a seleção não controlada pela intervenção humana, mas inconscien

te, arbitrária e natural. Com esse pensamento uma luz brilhou sobre ele. Ao aceitar essa teoria da seleção natural, ele julgou poder explicar, como plantas e animais, gradualmente foram sofrendo mutações, como os seres vivos podem superar defeitos em sua organização e dessa forma alcançar vantagens, e que dessa forma os seres vivos constantemente se equipam cada vez melhor para a ininterrupta competição com outros seres vivos na luta pela existência. De acordo com Darwin, a vida é sempre e em todo lugar apenas urna luta pela sobrevivência. Ao observarmos superficialmente, pode parecer que há paz na natureza, mas isso não passa de uma aparência. Há uma luta constante pela vida, pois a terra é pequena demais e escassa demais para suprir e alimentar todos os seres. Portanto, milhões de organismos perecem por causa de necessidade; apenas os mais fortes sobrevivem. Esses mais fortes, que são superiores aos outros por causa de algumas propriedades que eles desenvolveram, gradualmente transferem essas propriedades vantajosas à sua posteridade.

Portanto, sempre há progresso e desenvolvimento. A seleção natural, a luta pela sobrevivência e a transferencia das velhas e novas características explicam, de acordo com Darwin, o surgi-

mente de novas espécies e também a transição do animal para o homem.

Ao avaliarmos essa teoria da evolução, é necessário acima de tudo, fazer uma clara distinção entre os fatos aos quais; ela recorre e a visão filosófica que os leva em consideração. Os fatos são: que o homem compartilha todos os tipos de características com outros seres vivos, mais particularmente com os animais mais elevados, e, entre esses, especialmente com os símios. Naturalmente, esses fatos foram, em sua maior parte, conhecidos também por Darwin, pois a correspondência na estrutura física, nos vários órgãos do corpo e em suas atividades, nos cinco sentidos, nas percepções e na consciência, e em coisas semelhantes, é algo que qualquer pessoa pode ver e simplesmente não pode ser negado. Mas as ciências da anatomia, biologia, fisiologia e psicologia têm recentemente investigado essas características semelhantes com muito mais dedi-cação do que no passado. As características de semelhança têm crescido em número e em impor-tância. Há outras ciências que dão sua contribuição para confirmar e estender essas similaridades entre o homem e o animal. A ciência da embriologia, por

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exemplo, inclicou que o ser humano em seu desenvolvimento uterino assemelha-se

a um peixe, a um anfíbio e a um mamífero inferior. A paleontologia, que se ocupa com o estudo das condições e das circunstâncias dos tempos antigos, descobriu indícios humanos – esqueletos, ossos, crânios, ferramentas, ornamentos – que apontam para o fato de que séculos atrás alguns povos em algumas partes da terra viviam de uma forma bem simples. E a etnologia diz que havia tribos e povos que estavam muito distantes, tanto espiritual quanto fisicamente, das nações civilizadas.

Quando esses fatos, trazidos de várias partes, tornam-se conhecidos, a filosofia logo se ocupa em combiná-los em uma hipótese, a hipótese da evolução gradual de todas as coisas e especifi-camente, também do homem. Essa hipótese não surgiu depois que os fatos surgiram e nem por causa deles, mas já existia há muito tempo atrás, foi promovida por vários filósofos e foi agora aplicada aos fatos, alguns dos quais foram descobertos há muito pouco tempo. A velha hipótese, a velha teo-ria, agora repousa, como se supõe, firmemente sobre os fatos. Um tipo de grito de alegria se le-vanta devido ao fato de que agora todos os mistérios do mundo, exceto aquela questão da matéria e da energia, foram resolvidos e

todos os segredos foram descobertos. Mas dificilmente esse vaidoso edifício da filosofia evolucionista teria sido construido quando o ataque sobre ela começou e ele começou a desmoronar. 0 Darwinismo, diz um distinto filósofo, surgiu em 1860, teve seu ápice em 1870, foi questionado por alguns em 1890 e desde a virada do século tem sido atacado por muitos.

0 primeiro e mais afiado ataque foi lançado contra a matéria na qual, de acordo com Darsvin, as várias espécies vieram à existência. A luta pela existência e a seleção natural não são suficientes para explicá-las. De fato, há uma luta feroz tanto no mundo vegetal quanto no mundo animal, e essa luta tem uma grande influência sobre sua natureza e existência. Mas não se pode provar que essa luta pela sobrevivência faça surgir novas espécies. A luta pela sobrevivência pode contribuir para o fortalecimento de tendências e habilidades, de órgãos e de potencialidades, através de exercício e esforço. Ela pode desenvolver o que já existe, mas não pode fazer existir o que não existe. Além disso, é um exagero, como qualquer pessoa sabe por experiência própria, dizer que sempre e em todo lugar nada existe senão luta.

Há mais do que ódio e animosidade no mundo. Há também

amor, cooperação e ajuda. A doutrina que diz que nada há em qualquer lugar além de guerra de todos contra todos é apenas um contraponto à parcial e idílica visão do século dezoito, de que tudo na natureza vive em paz. Há lugar para muitos na grande mesa da natureza, e a terra que Deus deu para ser a morada do homem é inesgotavelmente rica. Conseqüentemente, há muitos fatos e manifestações que nada têm a ver com uma luta pela existência. Ninguém, por exemplo, pode dizer o que as cores e figuras da pele do caramujo, a cor negra do ventre de vários animais vertebrados, o branqueamento dos cabelos com o aumento da idade, ou a queda das folhas no outono têm a ver com a luta pela existência. Também

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não é verdade que nessa luta os tipos mais fortes sempre e exclusivamente obtêm a vitória, e que os mais fracos são sempre derrotados. Uma assim chamada coincidência, uma circunstância fortunada ou afortunada, frequentemente ridiculariza todos os nossos cálculos. Às vezes uma pessoa forte é diminuída na força de seus anos, enquanto homens e mulheres fisicamente fracos alcançam uma idade bem avançada.

Tais considerações levaram um erudito holandês a substituir a teoria da seleção natural de Darwin pela teoria da mutação, de

acordo com a qual a mudança das espécies não acontece regular e gradualmente, mas repentinamente e através de saltos e sobressaltos. Mas dessa, a forma a questão é se essas mudanças realmente representam novas espécies ou simplesmente modificações nas espécies que já existem. E a resposta a essa questão depende daquilo que se entende por espécies.

Não apenas a luta pela existência, a seleção natural e a sobrevivência dos mais capazes têm perdido status em nosso século, mas também a idéia de transferência de características adquiridas. A transferência de características naturais dos pais aos filhos depende daquilo que o Darwinismo entende por espécies. Durante séculos e séculos os homens são homens e nada mais. A respeito da transferência de características distintas das que foram herdadas há agora tanta diferença de opinião que nada pode ser dito sobre isso com certeza absoluta. Todavia é certo que características adquiridas não são transferidas dos pais aos filhos. A circuncisão, por exemplo, foi praticada por alguns; povos durante séculos e até hoje não surgiu uma criança sequer que herdasse essa característica adquirida. A transferência por herança só acontece dentro de certos limites e não causa qualquer mudança de tipo ou espécie. Se a

modificação for produzida por meios artificiais, ela deve ser também artificialmente mantida ou será novamente perdida. 0 Darwinismo, em resumo, não pode explicar a hereditariedade ou mudança. Ambos são fatos que existem e não podem ser negados, mas a conexão entre eles e o seu relacionamento estão além das fronteiras do nosso conhecimento.

Cada vez mais o Darwinismo propriamente dito, isto é, o Darwinismo em seu sentido mais estrito, a saber, o esforço de se explicar a mudança das espécies em termos de luta pela existência, seleção natural e transferência de características adquiridas, tem sido abandonado pelos homens da ciência. A predição de um dos primeiros e mais eminentes dos oponentes da teoria de Darwin está sendo literalmente cumprida, a saber, que essa teoria para explicar os mistérios da vida não passaria do final do século dezenove. Porém, mais importante do isso é o fato de que o criticismo não tem sido dirigido somente contra a teoria de Darwin, mas também contra a teoria da evolução. Naturalmente, fatos são fatos e não podem ser ignorados. Mas a teoria é algo mais que isso, é algo construido sobre os fatos, pelo pensamento. E o que se torna cada vez mais evidente é que a teoria da evolução

não se enquadra nos fatos, pelo contrário, está sempre em conflito com eles.

A geologia, por exemplo, revelou que os tipos inferiores e superiores de animais não seguem uns; aos outros em sequência, mas existiram juntos por um longo período. A paleontologia não fornece uma única peça sequer de evidência conclusiva da existência de tipos transicionais entre os vários tipos de seres orgânicos. E, ainda, de acordo com a teoria de Darwin da evolução extremamente gradual por meio de mudanças extremamente pe-

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quenas, esses tipos não estariam presentes em quantidade. Apesar da pesquisa apaixonada e da perseguição enérgica, um tipo intermediário entre o homem e o macaco não foi descoberto. A embriologia, de fato, aponta para certas semelhanças entre os vários estágios do desenvolvimento do embrião humano e do embrião de outros animais. Mas essa similaridade é externa pela simples razão de que um ser humano nunca nasceu do embrião de um animal e um animal nunca nasceu de um embrião humano. Em outras palavras, o homem e o animal seguem caminhos diferentes a partir da concepção, mesmo que nesse momento as diferenças internas não possam ser percebidas. A biologia, até agora tem oferecido pouco suporte para a pres

suposição de que a vida pode ser gerada por si mesma, a ponto de muitos, hoje, aceitarem a impossibilidade de que isso aconteça e retomarem à idéia de uma força viva especial ou energia. A física e a química, na medida em que têm participado dessas investigações, têm encontrado mais e mais segredos e maravilhas no mundo microscópico, o que tem feito com que muitos voltem ao pensamento de que os constituintes básicos do mundo material não são entidades materiais, e sim forças. E – para não mencionar mais evidências – todos os esforços que têm sido feitos para explicar a consciência, a liberdade da vontade, a razão, a linguagem, a religião, a moralidade, e outras manifestações semelhantes, como sendo apenas o produto da evolução não têm sido coroados de sucesso. A origem dessas manifestações e também de todas as outras coisas, permanece perdida para a ciência.

Por isso é importante notar finalmente que quando o homem faz sua aparição na história ele já é um homem com corpo e alma e já possui, em todos os lugares e em todas as épocas, todas essas características e atividadesfutunanas cujas origens a ciência tenta descobrir. Em lugar nenhum podem ser encontrados seres humanos que não possuam razão e vontade, racionalidade e consciência,

pensamento e linguagem, religião e moralidade, as instituições do casamento e da família e assim por diante. Se tais características e manifestações se desenvolveram Íraclativamente, tal evolução deve ter acontecido em tempos --,ré históricos'", a respeito dos quais nós nada sabemos diretamente, e sobre os quais nós conjeturamos somente sobre a base de uns poucos fatos identificados em datas posteriores. Qualquer ciência, portanto, que queira pe,,etrar nesses tempos pré históricos

para descobrir as origens dascoisas deve, pela natureza dofazer uso de suposições,conjecturas e pressuposições. Não,á possibilidade de evidência ou-,rova no sentido estrito. A dou-trina da evolução, de forma gerala doutrina de que o homem des-cende dos animais, em particular,não recebem qualquer suporte

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:elos fatos que a história nos for-nece. De todos os elementos so-me os quais tais teorias estãoedificados, nada permanece alémÀe um ponto de vista filosófico--,LIC pretende explicar todas as_r)isas e manifestações em termos_íc si mesmas, deixando Deus deUm dos proponentes do-conto de vista evolucionista ad-mitiu cegamente: a escolha é en--e a descendência evolutiva ou o

milagre; já que o milagre é totalmente impossível, nós somos impelidos a assumir a primeira posição. E tal admissão demonstra que a teoria da origem do homem a partir de formas animais inferiores não repousa sobre uma investigação científica cuidadosa, mas sobre o postulado de uma fi-losofia materialista ou panteísta.

A idéia da origem do ho-mem está relacionada muito deperto com a idéia da essência dohomem. Muitos em nossos diasdizem que o homem e o mundo,independente de qual tenha sidosua origem e seu desenvolvimen-to no passado, são o que são econtinuarão sendo sempre assim.Essa posição é inteiramentecorreta: a realidade permanece amesma, independente se nós for-mamos uma idéia verdadeira oufalsa sobre ela. E o mesmo podeser dito sobre a origem de todasas coisas. Mesmo que nós imagi-nemos que o mundo e a raça hu-mana vieram à existência de algu-ma forma particular - gradual-mente, durante o curso dos sécu-los, por meio de todos os tipos deinfinitesimais mudanças, atravésda geração espontânea - tal supo-sição, é claro, não muda a origem

real. 0 mundo surgiu da forma que surgiu, e não da forma que nós gostaríamos que ele tivesse surgido ou da forma que nós supomos que ele tenha surgido. E a idéia que nós temos a respeito da origem de todas as coisas está diretamente relacionada com a idéia que nós temos a respeito da essência de todas as coisas.

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Se a primeira estiver errada, a segunda não pode estar correta. Se nós pensamos que a terra e todos os reinos da natureza, que todas as criaturas e particularmente os seres humanos, vieram à existência sem Deus, somente através da evolução de energias cujos resíduos permanecem no mundo, tal idéia deve ter, necessariamente, a mais importante influência sobre nossa concepção da essência do mundo e do homem.

De fato, o mundo e o homem permanecerão os mesmos independente de nossa interpretação; mas para nós tanto o mundo quanto o homem se tornam diferentes, aumentando ou diminuindo em valor e importância de acordo com o que nós pensamos sobre sua origem e como eles passaram a existir.

Isso é tão evidente que nem requer iluminação ou confirmação mais ampla. Mas por causa da noção de que nós podemos pensar o que quisermos sobre a origem de todas as coisas, visto que o que nós pensamos sobre sua

essência não é afetado pelo que pensamos sobre a origem, é uma noção sempre presente - por exemplo, na doutrina da Escritura, na religião de Israel, na pessoa de Cr i s to , na re l ig ião , na moralidade - pode ser útil ou não, dependendo daquilo que entendemos como sendo a essência do homem, para indicar a falsidade dessa noção ainda mais. Não é difícil fazer isso, pois se o homem tem se desenvolvido por si mesmo, sem Deus e somente através de forças operativas cegas, então segue-se que o homem não pode diferir essencialmente dos animais, e que, mesmo em seu maior desenvolvimento, ele sempre continuará sendo um animal. Nesse caso não há lugar para uma alma distinta do corpo, nem para uma liberdade moral e imortalidade pessoal. E a religião, a verdade, a moralidade, e a beleza perdem seu caráter próprio.

Essas Conseqüências não são algo que nós impomos sobre os proponentes da teoria da evolução, mas algo que eles mesmos deduzem dela. Darwin, por exemplo, disse que nossas mulheres solteiras, se fossem educadas sob as mesmas condições que as abelhas, pensariam ser um dever sagrado matar seus irmãos como as abelhas fazem e as mães tentariam assassinar suas filhas férteis sem qualquer consideração por elas. De acordo com Darwin, por-

tanto, toda lei moral é um produto das circunstâncias, e, portanto, muda quando as circunstâncias mudam. 0 bem e o mal, embora sendo realidades antagônicas, são temos relativos e seu significado e valor são, como a moda, sujeitos às mudanças de tempo e lugar. Da mesma forma, de acordo com os evolucionistas, a religião é apenas uma ajuda temporária, algo de que o homem, na sua luta contra a natureza, faz uso, e que agora pode servir como um ópio para o povo, mas algo que, com o passar do tempo, acabará morren-do ou simplesmente desaparecendo, na medida em que o homem tomar consciência de sua plena liberdade. 0 pecado e a transgressão, o crime e o assassinato, não constituem culpa, mas são efeitos de um estado não ci-vilizado no qual o homem originariamente viveu e diminuirão na mesma proporção em que ele se desenvolver e a sociedade progredir. De acordo com essa posição, os criminosos devem ser considerados como crianças, animais ou pessoas insanas e deveriam ser tratados de acordo com isso. As prisões deveriam dar lugar aos reformatórios. Em resumo, se o homem não tem uma origem divina, mas uma origem animal e gradualmente tem se desenvolvi- do, ele deve tudo a si mesmo, é seu próprio legislador, mestre e senhor. Todas essas inferências da

teoria (materialista ou panteísta) da evolução encontram expressão

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muito claramente na ciência contemporânea e também na literatura, arte e prática política contemporâneas.

A realidade, todavia, tem nos ensinado algo totalmente diferente. 0 homem pode crer, se quiser, que tem feito tudo por si mesmo e que não tem limites ao redor de si, mas em todos os sen-tidos ele continua sendo uma criatura dependente. Ele não pode fazer o que quiser. Em sua existência física ele permanece limitado a leis como a respiração, a circulação do sangue, a digestão e a procriação. E se ele tenta contrariar essas leis e não presta atenção a elas, ele prejudica sua saúde e mina sua própria vida. 0 mesmo acontece com seu espírito. 0 homem não pode pensar o que quiser, mas está sujeito a leis que estão implícitas no ato de pensar e se expressam nele. Se ele não segue essas leis do pensamento ele se precipita no erro. 0 homem também não pode desejar e agir como mais lhe agrada. Sua liberdade está sob a disciplina da razão e da consciência; se ele desconsidera essa disciplina e reduz sua vontade ao nível de arbitrariedade e capricho, ele será auto reprovado e se tornará objeto de remorso, que é o câncer da consciência.

A vida da alma, portanto,

não menos que a vida do corpo, está edificada sobre algo diferente de capricho e acidente. Ela não se origina de uma condição anárquica, mas se origina de todos os lados e em todas as suas atividades determinada por leis. Ela está sujeita a leis de verdade e de bondade e de beleza e assim ela de-monstra que não teve sua origem em si mesma. Em resumo, o homem tem desde seu início sua própria natureza e sua própria essência e não pode violá-las. A natureza dessa questão é tão forte que até mesmo aqueles que ade-rem à teoria da evolução admitem a existência de uma natureza humana, de atributos humanos imutáveis, de leis de pensamento e ética prescritos para o homem e de um senso religioso nato. Dessa forma a idéia da essência do homem entra em conflito com a idéia de sua origem.

Na Escritura, contudo, há uma perfeita concordância entre essas duas idéias. A essência do homem corresponde à sua origem. Apesar do homem ter sido formado do pó da terra, ele recebeu o sopro da vida, e foi criado pelo próprio Deus, portanto, ele é um ser único que possui sua própria natureza. A essência de seu ser é a imagem e semelhança de Deus.

A imagem de Deus distingue o homem tanto dos animais quanto dos anjos. Ele possui traços em comum tanto com os animais quanto com os anjos, mas ao mesmo tempo ele é diferente dos dois porque possui sua própria natureza.

É claro que os animais também foram criados por Deus. Eles não passaram a existir por si mesmos. Eles foram chamados à existência por uma específica palavra do poder de Deus. Além disso eles foram criados em várias espécies, assim como as plantas. Todos os homens são descendentes de um único casal e por isso constituem uma raça. Isso não acontece com os animais. Eles possuem vários ancestrais. Portanto, não é de se admirar

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que até hoje a zoologia não tenha tido sucesso ao tentar traçar a linhagem de todos os animais até um só casal de ancestrais. Ela consegue apenas designar alguns grupos majoritários ou tipos básicos de animais.

Presumivelmente é verdade que a maioria dos tipos de animais não estão distribuídos sobre toda a terra, mas vivem em áreas específicas. Os peixes vivem na água, os pássaros vivem no ar e os animais terrestres, em sua maior parte, vivem em territórios específicos. 0 urso polar, por exemplo, só é encontrado em regiões muito frias e o ornitorrinco só é

encontrado na Austrália. E no livro de Gênesis é afirmado espe-cificamente que Deus criou as plantas (1.11) e também os animais segundo a sua espécie – isto é, de acordo com seus tipos. Naturalmente isso não significa que os tipos que foram originalmente criados eram os mesmos nos quais a ciência hoje classifica todos os animais, pois nossas clas-sificações são sempre sujeitas ao erro porque nossa zoologia também é limitada e inclinada a considerar variantes como tipos e vice-versa. 0 conceito científico, artificial, de um animal é muito difícil de se estabelecer, e é sempre muito diferente do conceito natural de tipo que nós conside-ramos. No curso dos séculos um grande número de animais tem morrido ou sido destruido. É evidente que vários tipos de animais, como o mamute, por exemplo, que deixou de existir há muito tempo, existiram em grande quantidade. Além disso deve ser levado em consideração que como resultado de várias influências, grandes modificações e mudanças têm acontecido no mundo animal e essas modificações impossibilitam, ou pelo menos tornam extremamente difícil que a zoologia trace a árvore genealó-gica de todos os animais a um só tipo original.

Além disso deve ser observado que tanto na criação dos ani

mais quanto na criação das plantas nós somos informados de que eles foram criados por um ato específico do poder de Deus, mas que nesse ato não só os seres, mas também a natureza específica de cada um deles foi criada. "Produza a terra relva ...... nós lemos em Gênesis 1.11, "A terra pois produziu relva, ervas que davam semente segundo a sua espécie e árvores que davam fruto..." (verso 12). 0 registro é o mesmo em Gênesis 1.20: "Povoem-se as águas de enxames de seres viventes; e voem as aves sobre a terra, sob o firmamento dos céus". E novamente no verso 24: "Produza a terra seres viventes, conforme a sua espécie: animais domésticos, répteis e animais selváticos, segundo a sua espécie". Em cada passo a natureza é usada como um instrumento de Deus. É a terra que, naturalmente condicionada e equipada por Deus para isso, traz todas essas criaturas em suas mais diversas diferenciações.

Essa específica origem dos animais lança alguma luz, também sobre sua natureza. Essa origem nos mostra que os animais são muito mais relacionados à terra e à natureza do que o homem. De fato, os animais são seres vivos, e como tais, eles são diferentes dos seres inorgânicos e das criaturas inanimadas. Por se tratar de seres viventes eles são chamados de almas viventes (Gn 1.20,21,24)"'. No sentido geral de princípio da vida os animais também possuem alma"". Mas esse princípio vivo da alma no animal é ainda tão estreitamente relacionado à natureza que não pode alcançar qualquer independência ou liberdade e não pode existir sem o metabolismo natural dos animais. Portanto, quando os animais morrem, sua alma morre também. Disso segue-se que os animais, pelo menos os animais mais elevados, possuem os mesmos sensos orgânicos do homem e podem perceber a realidade (audição, olfato, visão, tato e paladar). Eles podem formar imagens ou quadros e relatar essas imagens uns aos outros. Mas os

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animais não possuem razão, não podem separar a imagem da realidade particular, individual e concreta. Eles não podem transformar as imagens e nem criar conceitos. Não podem relacionar esses conceitos entre si e dessa forma criar julgamentos, não podem fazer inferência dos julgamentos, não podem tomar decisões e não podem realizar essas decisões por um ato da vontade. Os animais possuem sensações, imagens e combinações de imagens; eles possuem instintos, desejos, paixões. Mas eles não possuem as mais elevadas formas de desejo e

conhecimento que são peculiares ao homem; eles não possuem razão e não possuem vontade. Essa realidade encontra expressão no fato de que os animais não possuem linguagem, religião, moralidade e noção de beleza; eles não possuem idéias de Deus, não possuem noção de realidades invisíveis, de verdade, de bondade e de harmonia.

Dessa forma, o homem se coloca acima do plano animal. Entre os dois não há uma transição gradual, mas um imenso abismo. Aquilo que constitui a natureza do homem, sua essência peculiar, sua razão e sua vontade, seu pensamento e sua linguagem, sua religião e sua moralidade, é completamente ausente nos animais. Portanto, o animal não pode entender o homem, apesar do homem poder entender o animal. Em nossos dias a psicologia tenta explicar a alma do homem em termos da alma dos animais, mas a ordem correta é o contrário. A alma do homem é a chave para a conquista da alma dos animais. Os animais não possuem o que o homem possui, mas o homem possui tudo aquilo que os animais possuem.

Naturalmente, isso não significa que o homem conheça a natureza dos animais de forma

perfeita. Todo o mundo é para o homem um problema por cuja solução ele procura, e os animais são para o homem um mistério vivo. A importância do animal não está no fato dele ser útil ao homem como fonte de alimentação, meio de proteção, vestuário e ornamento. Muito mais está contido no domínio que o homem, com cobiça e egoísmo, livremente exerce a seu favor. 0 mundo animal tem importância também para nossa ciência e arte, para nossa religião e moralidade. Deus tem algo a nos dizer através do mundo animal. Seus pensamentos e obras nos são comunicados em todo o mundo, inclusive através das plantas e dos animais. Quando a botânica e a zoologia desco-brem esses pensamentos, essas ciências e as ciências naturais de uma forma geral, exibem verdades que nenhum homem, certamente nenhum cristão, pode desprezar. Além disso, como o mundo animal é rico em importância moral para o homem! 0 animal é a fronteira inferior, acima da qual o homem deve se levantar e o nível ao qual ele nunca deve descer. 0 homem pode se tornar um animal e até menos que um animal se perder a luz da razão, perder seu contato com o céu e tentar

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satisfazer todos os seus desejos sobre a terra. Os animais são símbolos tanto de nossas virtudes quanto de nossos vícios: o cão é

um símbolo da lealdade, a serpente simboliza a sagacidade, o leão simboliza a coragem, a ovelha simboliza a inocência, a pomba simboliza a integridade e a corsa é o símbolo da alma que suspira por Deus; da mesma forma a raposa simboliza a astúcia, os vermes simbolizam a podridão, o tigre simboliza a crueldade, o porco simboliza a canalhice, a cobra simboliza a engenhosidade diabólica e o gorila, que é o animal que possui o formato que mais se parece com o corpo humano, é uma demonstração clara de uma impressionante forma física que carece de um espírito, o espírito de cima. No gorila o homem vê sua própria caricatura.

Assim como, devido à imagem de Deus, o homem se diferencia dos animais, da mesma forma pela imagem de Deus ele é diferenciado dos anjos. A existência de seres como os anjos não pode, sem a Escritura, ser provada por argumentos científicos. A ciência nada sabe sobre eles, não pode demonstrar que eles existem e não pode demonstrar que eles não existem. Contudo, é no-tável que a crença na existência de seres que estão acima do homem ocorre entre todos os povos e em todas as religiões e até mesmo o

homem que rejeita o testemunho da Escritura referente à existência dos anjos, através de todos os tipos de formas supersticiosas vem a crer na existência de seres sobrenaturais. Nossa presente geração é um rico testemunho disso. Anjos e demônios têm caído em descrédito e em seu lugar tem surgido em muitos círculos uma crença em forças latentes, poderes naturais misteriosos, fantasmas, aparições, visitações dos mortos, estrelas vivas, planetas inabitados, marcianos, átomos vivos e coisas semelhantes. Em conexão com todas essas antigas e novas manifestações está a posição com a qual a Escritura tem confrontado todas elas. Sem levar em consideração a falsidade ou a verdade contida nessas crenças, a Escritura proíbe a aclivinhação101, feitiçaria"', astrologia"', necromanciaol, encantamento ou consulta a oráculos"', magia"' e coisas semelhantes, fazendo com que a superstição seja semelhante à incredulidade. 0 Cristianismo e a superstição são forças opostas. Não há ciência, iluminação ou civilização que possa nos proteger da superstição. Somente a Palavra de Deus pode

fazer isso. A Escritura faz com que o homem seja mais profundamente dependente de Deus, e precisamente dessa forma ela o diferencia das demais criaturas. Ela coloca o homem em um correto relacionamento com a natureza e assim faz com que uma verdadeira ciência natural seja possível.

A Escritura ensina a existência de anjos, não as criações místicas da imaginação humana, nem a personificação de forças misteriosas, nem mortos que alcançaram um nível superior, mas seres espirituais, criados por Deus, sujeitos à Sua

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vontade e chamados para o Seu serviço. Portanto, há seres dos quais, à luz da Escritura, nós podemos ter uma idéia definida e eles nada têm em comum com os seres místicos das religiões pagãs. Em conhecimento eles estão acima do homem"',

etambém em poder', mas eles foram feitos pelo mesmo Deus e pelo mesmo Verbo (Jo 13; C11.16)epossuem a mesma razão e a mesma natureza moral, e por isso é dito sobre os bons anjos que eles obedecem a voz de Deus e fazemo que lhe agrada (SI 103.20,21) e sobre os maus anjos é dito que

eles não permaneceram na verdade (lo 8.44) e que se extraviaram e cometeram pecado (2Pe 2.4).

Mas apesar dessa grande correspondência, existe uma grande diferença entre os anjos e os homens. Essa diferença consiste, em primeiro lugar, no fato dos anjos não possuírem corpo nem ,alma, pois são espíritos puros (Hib I.14). De fato, no momento em que ,e revelavam ao homem, eles geralmente apareciam em forma humana, mas as muitas formas nas quais eles apareciam"' apontam para o fato de que essa forma de manifestação era temporária e que essas formas mudavam de acordo com a natureza da missão que eles deveriam cumprir. Os anjos nunca são chamados de almas ou de seres viventes, como acontece com os animais e com o homem. A alma e o espírito diferem um do outro pelo fato de que a alma, mesmo possuindo uma natureza espiritual, imaterial, invisível e sendo no homem uma entidade espiritualmente indenendente, é sempre uma força esciritual ou uma entidade espiritual que é orientada a um corpo, nabita em um corpo e sem um corpo é incompleta e imperfeita. A alma é um espírito destinado para uma vida física. A alma, portanto, é peculiar ao homem e aos

animais. Quando o homem perde seu corpo na morte ele continua a existir, mas em uma condição empobrecida, e por isso a ressurreição do último dia é uma restauração que suprirá todas as carências. Os anjos, porém, não são almas. Eles nunca ansiaram por uma vida física e a morada que lhes foi dada não foi a terra, mas o céu. Eles são espíritos puros. Isso dá a eles grandes vantagens sobre o homem, pois os anjos são superiores aos homens em conhecimento e em poder e possuem uma relação muito mais livre de tempo e espaço do que o homem, podem mover-se mais livremente e são excepcionalmente bem adaptados para cumprir as ordens de Deus na terra.

Mas –e essa é a segunda distinção entre os homens e os anjos – essas vantagens possuem seu lado oposto. Por serem espíritos puros, todos os anjos possuem um relacionamento relativamente fraco com referência uns aos outros. Todos eles foram originariamente criados juntos e todos eles continuam vivendo juntos uns com os outros. Porém, eles não formam um conjunto orgânico, uma raça ou uma geração. De fato, há uma ordem natural entre eles. De acordo com a Escritura, há miríades de anjos"' e eles estão divididos nas seguintes classes: querubins (Cn 3.24), serafins (Is 6.), e tronos, domínios, potestades e poderes (Ef 1.21; Cl 1.16;2.10). E há uma outra distin-ção ou classificação dentro dos grupos: Miguel e Gabriel possuem um lugar especial entre eles"'. Contudo, eles não constituem uma raça, não são parentes de sangue, não estão ligados organicamente uns aos outros. É possível falarmos sobre uma raça humana, mas não é possível falarmos sobre uma raça angelical. Quando Cristo assumiu a natureza humana Ele foi imediatamente relacionado ao homem, ligado ao homem por laços de sangue e tornou-se irmão dos homens de acordo com a carne. Mas os anjos

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vivem próximos uns aos outros, cada um presta contas de si mesmo e por isso uma parte deles poderia cair, enquanto a outra permanecia fiel a Deus.

A terceira distinção entre os homens e os anjos está relacionada com a segunda. Por serem os anjos espíritos e não estarem relacionados com a terra, por não estarem eles relacionados uns com os outros por laços de sangue e não conhecerem distinções como pai e mãe, pais e filhos, irmãos e irmãs, há um mondo inteiro de relacionamentos e conexões, idéias e emoções, desejos e

preocupações sobre o qual os anjos nada sabem. Eles podem ser mais poderosos que os homens, mas não são tão versáteis. Eles possuem relacionamentos muito mais pobres e as riquezas e a profundidade da vida emocional humana é muito superior à dos anjos. De fato, Jesus diz em Mateus 22.30 que o casamento terminará nessa dispensação, mas as rela-ções sexuais sobre a terra possuem um significado que se estende aos tesouros espirituais da raça humana e esses tesouros não serão perdidos, serão preservados por toda a eternidade.

Se a tudo isso nós acrescentarmos o fato de que a mais rica revelação que Deus nos deu é dada através do nome do Pai e no nome do Filho – que se tornou como um de nós e é nosso profeta, sacerdote e rei – e no nome do Espírito Santo, que foi derramado sobre a Igreja e é o Deus que habita em nós, nós veremos com facilidade que os homens, e não os anjos, foram criados à imagem de Deus. Os anjos experimentam o poder, a sabedoria e a bondade de Deus, mas os homens desfrutam de Suas bênçãos eternas. Deus é o Senhor dos anjos, mas não é o seu Pai; Cristo é o Cabeça dos anjos, mas não é seu Reconciliador e Salvador; o Espírito Santo é quem envia e guia os anjos, mas

não testifica aos espírito deles de que eles são filhos e herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo. Portanto os olhos dos anjos estão sobre a terra porque nela as mais ricas graças de Deus são manifestas, nela a luta entre o céu e a terra é levada a efeito, nela a Igreja passa a fazer parte do Corpo do Filho e nela o golpe final algum dia será dado e o triunfo final de Deus será alcançado. Portanto eles desejam conhecer os mistérios da salvação que são revelados na terra e desejam aprender a conhecer, pela Igreja, a multiforme sabedoria de Deus (Ef 3.10; IPe 1.12).

Os anjos mantêm numerosos relacionamentos conosco, e nos mantemos um relacionamento multifacetado com eles. Crer na existência e na atividade dos anjos não é o mesmo que crer em Deus e amá-lo, temê-lo e honrá-lo com todo o coração. Nós não podemos colocar nossa confiança em uma criatura, mesmo que seja um anjo; nós não podemos cultuar os anjos, seja de que forma for e não podemos dar-lhes honras religiosas'". De fato, não lia na Escritura uma palavra sequer sobre um anjo da guarda, de-signado para servir cada ser humano em particular, nem sobre qualquer tipo de intercessão feita por um anjo em nosso favor. Mas

isso não significa que crer nos anjos seja algo indiferente ou um esforço inútil. Pelo contrário, quando a revelação veio à existência eles desempenharam um papel muito importante. Na vida de Cristo eles apareceram em todos os pontos importantes de sua carreira, e chegará o dia em que eles serão manifestos com Cristo entre as nuvens do céu. E eles são espíritos enviados para ministrar àqueles que herdarão a salvação (Hb 1.14). Eles se regozijam quando um pecador se arrepende (Lc 15.10). Eles livram aqueles que são tementes a Deus (SI 34.7; 91.11), protegem os pequeninos (Mt 18.10), acompanham a Igreja em sua jornada através da

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história (Ef 3.10) e conduzem os filhos de Deus até o seio de Abraão (Le 16.22).

Portanto, nós devemos considerá-los com respeito e falar deles com honra. Devemos alegrá-los com o nosso arrependimento. Devemos seguir o exemplo deles no serviço de Deus e na obediência à Sua Palavra. Devemos mostrar-lhes em nosso coração, em nossa vida e em toda a Igreja a multiforme sabedoria de Deus. Devemos ser amigos deles e juntamente com eles declarar os poderosos feitos de Deus. Dessa forma há diferenças entre homens e anjos, mas não há conflito; há diferenças, mas também há unidade; há distinção, mas também há amizade. Quando nós chegarmos ao Monte Sião, à cidade do Deus vivo, à Jerusalém celestial, nós encontraremos miríades de anjos

e reataremos o elo de unidade e amor que tinha sido quebrado pelo pecado (Hb 12.22). Tanto eles, quanto nós temos nosso próprio lugar e nossa própria função na rica criação de Deus. Os anjos são os filhos, os poderosos heróis,o poderoso exército de Deus. Os homens foram criados à imagem e semelhança de Deus e são geração de Deus. Os anjos são a raça de Deus.

Se a imagem de Deus é o distintivo do homem, nós devemos obter uma idéia mais clara sobre ela.

Nós lemos, em Gênesis 1.26, que Deus criou o homem à Sua imagem e conforme a Sua seme-lhança para que o homem tivesse domínio sobre todas as criaturas, particularmente sobre as criaturas vivas. Três coisas merecem consideração aqui. Em primeiro lugar, a correspondência entre Deus

e o homem é expressa em duas palavras: imagem e semelhança. Essas duas palavras não são, como muitas pessoas supõem, materialmente diferentes, diferentes em conteúdo, mas servem para am-

plificar e dar suporte uma à outra. juntas elas servem para afirmar que o homem não é um retrato mal feito ou algo semelhante, mas corresponde perfeita e totalmente à imagem de Deus. 0 homem é a miniatura e Deus é o Ser em tamanho real, infinitamente maior que o homem. 0 homem está infinitamente abaixo de Deus e contudo mantém relações com Ele. Como criatura o homem é totalmente dependente de Deus, e como homem ele é um ser livre e independente. Limitação e liberdade, dependência e indepen-dência, imensurável distância e íntimo relacionamento com Deus, tudo isso tem sido combinado de uma forma incompreensível no ser humano. Como uma criatura pode ser ao mesmo tempo a imagem de Deus. Isto é algo que vai além de nossa compreensão.

Em segundo lugar, nós somos informados em Gênesis 1.26 que Deus criou homens (o termo

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original está no plural) à Sua imagem e conforme à Sua semelhança. Desde o princípio a intenção de Deus não foi criar um homem apenas, mas homens, à Sua imagem. Portanto, Ele imediatamente criou o homem como homem e mulher, não separadamente, mas em relação e amizade um com o outro (Gri1.27). Não apenas no homem, nem apenas na mulher, mas rios dois juntos e em cada um de forma especial, a imagem de

Deus é expressa.

0 contrário é às vezes afirmado com base no texto de lCorínfios 112, onde o apóstolo Paulo diz que o homem é a imagem e a glória de Deus e que a mulher é a glória do homem. Esse texto é frequentemente usado de forma errada para que seja negada à mulher a imagem de Deus e .issim ela seja colocada em um nível inferior ao do homem. Mas Paulo aqui não fala do homem e Ja mulher considerados separaJamente, mas sobre seu relacio-namento no matrimônio. E então ele diz que é o homem, e não a mulher, o cabeça do lar. E ele deduz isso do fato de que o homem não teve sua origem na mulher, mas a mulher teve sua origem no homem. 0 homem foi criado primeiro, foi feito primeiro à ima,em de Deus e a ele Deus primei,o revelou Sua glória. E se a muher desfruta de tudo isso, ela o raz de forma mediata, através do nomem. Ela recebeu a imagem de Deus, mas depois do homem e nela mediação do homem. Portan:o, o homem é a imagem e a gló-ia de Deus direta e originariamente; a mulher é a imagem e a ,lória de Deus de forma deriva.Ia, na qual ela é a glória do homem. 0 que nós lemos sobre esse assunto em Gênesis 2 deve ser .icrescentado ao que lemos em Gênesis 1. A forma pela qual a mulher foi criada em Gênesis 2 é

a forma pela qual ela recebeu a mesma imagem de Deus que o homem (Gn 1.27). Nisso está contida a verdade de que a imagem de Deus repousa sobre untinúmero de pessoas, com diferenciação de raça, talentos e forças – em resumo, na espécie humana – e que essa humanidade alcançará sua expressão máxima na nova humanidade, que é a Igreja de Cristo.

Em terceiro lugar, Gênesis 1.26 nos ensina que Deus tem um propósito ao criar o homem à Sua imagem, a saber, que o homem tenha domínio sobre todas as criaturas vivas e que ele se multiplique e se espalhe por todo o mundo, dominando-o. Se agora nós compreendemos a força desse domínio sob o termo cultura, nós podemos dizer que a cultura, em um sentido amplo, é o propósito para o qual Deus criou o homem conforme a sua imagem. É tão pequena a diferença entre culto e cultura, religião e civilização, Cristianismo e humanidade, que seria verdadeiro dizer que a imagem de Deus foi dada ao homem para que, pelo seu domínio sobre toda a terra, ele pudesse trazer à existência todas essas manifestações. E esse domínio sobre a terra inclui não somente as mais antigas vocações do homem, tais como a caça e a pesca, a agricultura e a estocagem, mas

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também a indústria e o comércio, as finanças e o crédito, a exploração de

minas e montanhas, a ciência e a arte. Tal cultura não tem seu fim no homem, mas pela imagem de Deus, estampada e impressa no espírito humano e sobre tudo o que ele faz, ela retoma para Deus, que é o Primeiro e o último.

0 conteúdo ou significado da imagem de Deus foi desenvolvido em revelação posterior. Por isso, depois da Queda, o homem continua sendo chamado de imagem de Deus.

Em Gênesis 51-3 nós somos mais =a vez lembrados de que Deus criou o homem, homem e mulher juntos, à Sua imagem e que os abençoou e que Adão gerou um filho à sua imagem, conforme a sua semelhança. Em Gênesis 9.6 o derramamento do sangue do homem é proibido pela razão de que o homem foi feito à imagem de Deus. 0 poeta que escreveu o belo Salmo oito canta a glória e a majestade do Senhor que se revela no céu e sobre a terra, e, de forma ainda mais esplêndida, revela-se no homem, a quem o Senhor deu domínio sobre todas as obras das Suas mãos. Quando Paulo fala aos atenienses no areópago, ele cita um de seus poetas, dizendo que nós somos geração de Deus (Aí 17.28). Em Tiago 19, o apóstolo, para demonstrar o mal que a lín

gua pode provocar, usa o seguinte contraste: "Com a língua ben-dizemos ao Senhor e Pai; também, com ela, amaldiçoamos os homens, feitos à semelhança de Deus". E a Escritura não apenas chama o homem caído de imagem de Deus, mas também diz que as características dessa imagem foram mantidas. Ela constantemente apresenta o homem como um ser racional e moral, que é responsável diante de Deus por todos os seus pensamentos, palavras e obras e é obrigado a fazer o serviço de Deus.

Junto com essa representação, contudo, nós encontramos a idéia de que devido ao pecado o homem perdeu a imagem de Deus. De fato, nós não recebemos essa informação diretamente, em algumas palavras. Porém, isso pode ser claramente deduzido de todo o ensino da Escritura concernente à pecaminosidade do homem. Além disso, o pecado – como nós vamos considerar especificamente mais adiante – roubou a inocência, a justiça e a santidade do homem, corrompeu seu coração, obscureceu seu entendi-mento, inclinou sua vontade para o mal, lançou essas inclinações em seu rosto, e colocou seu corpo e todos os seus membros a serviço da injustiça. Por isso o homem deve ser mudado, regenerado, justificado, purificado e santificado. Ele pode desfrutar de todos

esses benefícios somente através de Cristo, que é a perfeita Imagem de Deus (2Co 4.4; C11.15) e à cuja Imagem ele deve ser moldado (Rm 8.29). 0 novo homem, que é colocado em comunhão com Cristo através da fé, é

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criado de acordo com a vontade de Deus em verdadeira justiça e santidade (Ef 4.24) e é constantemente renovado em conhecimento conforme a Imagem daquele que o criou (CI 3.101 0 conhecimento, a justiça e a santidade que o crente obtém através da comunhão com Cristo tem sua origem, exemplo e propósito final em Deus e faz com que o homem novamente compartilhe da natureza de Deus (2Pe 1.4).

É sobre esse ensino da Escritura que se baseia a distinção entre a imagem de Deus, em um sentido amplo e em um sentido estreito, usualmente feita na Teologia Reformada. Se, por um lado, depois da queda e da desobedi-ência, o homem continua a ser chamado de imagem e geração de Deus, e, por outro lado, essas virtudes pelas quais ele especialmente se parece com Deus foram perdidas por causa do pecado e só podem ser restauradas novamente através da comunhão com Cristo, então essas duas posições são compatíveis uma com a outra somente se a imagem de Deus compreender algo mais que as virtudes de conhecimento, justi

ça e santidade. Os teólogos Reformados reconhecem isso, e sustentam essa posição contra os teólogos luteranos e católicos.

Os luteranos não fazem distinção entre a imagem de Deus, em um sentido amplo e em um sentido estrito. Ou, se eles fazem essa distinção, eles não atribuem a ela muita importância e não compreendem seu significado. Para eles, a imagem de Deus é nada mais nada menos que a justiça original, isto é, as virtudes de conhecimento, justiça e santidade. Eles reconhecem a imagem de Deus somente em um sentido estrito e não compreendem a necessidade de se relacionar essa imagem de Deus a toda a natureza humana. Dessa forma, a vida religiosa-moral do homem está destinada a ser uma área especial e isolada de sua vida. Ela não está relacionada e não exerce qualquer influência sobre a obra à qual o homem é chamado no estado e na sociedade, na arte e na ciência. 0 cristão luterano desfruta do perdão de pecados e da comunhão com Deus através da fé, e isso é tudo. Ele repousa sobre isso, alegra-se por isso, mas não consegue relacionar sua vida espiritual, por um lado, ao conselho e eleição de Deus, e a todo o chamado terreno do homem, por outro.

A partir daí, em outra direção, segue-se que o homem, quando por causa do pecado perdeu a

justiça original, perdeu toda a imagem de Deus. Nenhum resquício dela permaneceu no homem, nem mesmo um cisco. E dessa forma a sua natureza moral e racional, que ainda permanece nele, é subestimada e vista com maus olhos.

Os católicos romanos, pelo contrário, fazem uma distinção entre uma imagem de Deus em um sentido amplo e em um sentido estrito, apesar de geralmente não empregarem essas palavras. E eles também se dedicam a encontrar uma relação entre essas distinções. Mas para eles essa relação é externa, não interna; é artificial, não real; é mecânica, não orgânica. Os católicos apresentam o assunto como se o homem tivesse sido concebido sem as virtudes de conhecimento, justiça e santidade (a imagem de Deus em um sentido estrito) e pudesse ter existido dessa forma. Nessa condição o homem

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teria alguma vida religiosa e moral, mas somente de um tipo e de um grau que pudesse ser advindo da religião natural e da moralidade natural. Seria uma religião e uma moralidade que permaneceria limitada a esta terra, e nunca poderia abrir caminho para as bem-aventuranças do céu e para a imediata visão de Deus. Ainda que seja possível,

falando de forma abstrata, que uma pessoa possa, sem possuir a imagem de Deus em um sentido estrito, cumprir os deveres da religião natural e da lei moral natural, isso é uma realidade improvável, pois o homem é um ser material, físico e sensua 1121 . A natureza sensual do homem é sempre caracterizada pelo desejo. Esse desejo, em si mesmo, pode não ser pecado, mas certamente dá ocasião ao pecado. Isso acontece porque esse caráter sensual da natureza humana, sendo físico, é oposto ao espírito e sempre constitui uma tentação. 0 perigo é que essa razão e essa vontade superem o poder da carne.

Por essas duas razões, segundo o pensamento católico, Deus, em Seu favor soberano, acrescentou a imagem de Deus em um sentido estrito ao homem. Mas por ter previsto que o homem cairia muito facilmente como escravo dos desejos da carne e também, porque Ele queria colocar o homem no mais elevado estado de bem-aventurança aqui sobre a terra, isto é, coloca-lo na glória celestial e na imediata presença de Deus, Deus acrescentou a justiça original ao homem natural e assim tirou-o de seu estado natural e conduziu-o a um estado mais elevado e se-

menatural. Dessa forma um duplo propósito foi alcançado. Em primeiro lugar, com a ajuda desse acréscimo sobrenatural, o homem passou a poder controlar facilmente os desejos herdados da carne; e, em segundo lugar, ao cumprir os deveres sobrenaturais prescritos para ele pela justiça original (a imagem de Deus em um sentido estrito), o homem pode agora alcançar uma salvação sobrenatural que corresponde ao leu desenvolvimento. Dessa for-

ma o adilendion sobrenatural da

iustiça original serve para dois propósitos, segundo a teologia católica: serve para restringir a carne e para abrir caminho para o céu através dos méritos.

Os teólogos Reformados possuem seu próprio ponto de ~ ista entre as posições luterana e católica. De acordo com a Escritura, a imagem de Deus é maior e niais inclusiva do que a justiça original, pois apesar da justiça original ter sido perdida por cau,a do pecado, o homem continua -i ser chamado, na Escritura, de imagem de Deus e geração de Deus. Permanecem nele alguns poucos traços da imagem de Deus de acordo com a qual ele foi criado. Essa justiça original, portanto , n ã o p o d e r i a s e r u m a capacitação isolada e independente e sem qualquer relação com a natureza humana. Não é verdaJ e que o homem primeiro existiu,

seja somente em pensamento, seja em realidade concreta, como um ser puramente natural, ao qual a justiça original foi posteriormente acrescentada. Em vez disso, tanto em pensamento quanto em criação o homem foi formado com essa justiça original. A idéia do homem inclui a

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idéia dessa justiça. Sem ela o homem não poderia ser concebido e não poderia existir. A imagem de Deus, em um sentido estrito, está integral-mente relacionada com a imagem de Deus em um sentido amplo. Não é correto dizer que o homem simplesmente carrega a imagem de Deus; o homem é a imagem de Deus. A imagem de Deus é idêntica ao homem, faz parte da luimanidade do homem. Até certo ponto, mesmo no estado de pecado, o homem continua sendo homem, até certo ponto ele conserva resquícios da imagem de Deus; e na medida em que ele perdeu a imagem de Deus, ele deixou de ser um verdadeiro e perfeito homem.

Além disso, a imagem de Deus em um sentido estrito é nada mais nada menos que a totalidade espiritual do homem. Quando um ser humano se torna doente no corpo ou na alma, mesmo que ele fique louco ele continua sendo um ser humano. Contudo, nesse estado ele perde algo que pertence à harmonia do homem e recebe algo que entra em conflito

com essa harmonia. Da mesma forma, quando por causa do pecado o homem perdeu a justiça original, ele continuou a ser um ser humano, mas perdeu algo que é inseparável da idéia de homem

* recebeu algo que não pertence*essa idéia. Portanto, o homem, quando perdeu a imagem de Deus, não se tornou algo diferente de um ser humano, pois ele preservou sua natureza moral e racional. 0 que ele perdeu foi algo que pertencia à sua natureza, e o que ele recebeu foi algo que corrompeu toda a sua natureza. Assim como a justiça original era toda a vida e toda a saúde espiritual do homem, o pecado é a sua doença e a sua morte. 0 pecado é corrupção moral, morte espiritual, morte em delitos e pecados como a Escritura o descreve.

Tal concepção da imagem de Deus abrange todo o ensino da Escritura sobre esse assunto. Essa concepção mantém o relacionamento e também a distinção entre a natureza e a Graça, entre a criação e a redenção. Graciosa e eloqüentemente essa concepção reconhece a Graça de Deus que, depois da queda, permitiu que o homem continuasse sendo homem e continuasse sendo um ser racional, moral e responsável. E ao mesmo tempo ela reconhece que o homem, tendo perdido a imagem de Deus, está totalmente

corrompido e inclinado a fazer o mal. A vida e a história confirmam esse ensino. Apesar da mais baixa e mais profunda queda, a natureza humana continua sendo a natureza humana. E não importa

· grau de desenvolvimento que· homem possa alcançar, ele continuará sendo pequeno, fraco, culpado e impuro. Somente a imagem de Deus faz com que o homem seja verdadeira e perfeitamente humano.

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Se, agora, nós tentarmos brevemente dar uma olhada panorâmica no conteúdo da imagem de Deus, a primeira coisa que nos chamará a atenção é a natureza espiritual do homem. 0 homem é um ser físico, mas também é um ser espiritual. Ele tem uma alma que, em essência, é um espírito. Isso se torna evidente pelo fato de que a Escritura nos fala a respeito da origem, da essência e da duração da alma humana. A respeito da origem, nós lemos que Adão, de forma diferente dos animais, recebeu de Deus o fôlego da vida (Gn 2.7), e em um certo sentido isso é válido para todos os homens. É Deus quem dá a cada homem o seu espírito (Ec 12.7), que forma o espírito do homem dentro dele (Zc 12.1), e que, portanto, em distinção aos pais da carne, pode ser chamado de Pai

dos espíritos (Hb 12.9). Essa origem especial da alma humana determina também sua essência. De fato, a Escritura algumas vezes atribui a alma também aos animais (Gn 2.19; 9.4) mas nesses casos a referência, como algumas traduções indicam, é ao princípio da vida em um sentido geral. 0 homem possui uma alma diferente e mais elevada, uma alma que em sua essência é espiritual. Isso se toma evidente pelo fato de que a Escritura atribui um espírito particular ao homem, mas não o atribui aos animais. Os animais possuem um espírito no mesmo sentido em que o possuem as; cri-aturas que são criadas e sustentadas pelo Espírito de Deus (SI 104.30), mas eles não possuem seu próprio espírito independente. 0 homem, sim, possui um espírito indepenciente.1n. Devido à sua natureza espiritual, a alma humana é imortal. Ela não é como a dos animais, que morre quando eles morrem, mas retoma a Deus, que é quem dá o espírito (Ec 12.7) Ela não é como o corpo, que pode ser morto pelo homem (Mt 10.28). Como espírito ela continua a existir (Hb 12.9; IPe 3.19).

Essa espiritualidade da alma coloca o homem em um níN el superior ao do animal e dá a ele um ponto de semelhança com os anjos. De fato, o homem per

tence ao mundo dos sentidos, é terreno, mas em virtude de seu espírito ele transcende a terra e caminha com liberdade real na realidade dos espíritos. Por sua natureza espiritual o homem pode se relacionar com Deus, que é Espírito (Jo 4.24) e pode morar na eternidade (Is 57.15).

Em segundo lugar, a imagem de Deus é revelada nas habilidades e poderes com os quais o espírito humano foi dotado. É verdade que os animais mais elevados podem, através dos sentidos, formar imagens e relatar essas imagens uns aos outros, mas eles não podem fazer mais do que isso. 0 homem, pelo contrário, coloca-se acima do nível das imagens e entra na realidade de conceitos e idéias. Através do pensamente, que não pode ser entendido como um movimento do cérebro, mas deve ser relacionado como uma atividade espiritual, o homem deduz o geral do particular, levanta-se acima do que é visível e contempla o que é invisível, forma idéias de verdade, de bondade, de beleza e aprende a conhecer o eterno

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poder de Deus e o domínio de Deus sobre todas as criaturas. Através de sua vontade, que deve ser vista em distinção de seus desejos pecaminosos, o homem se emancipa do mundo material e se enriquece

com realidades invisíveis e sobrenaturais. Suas emoções não devem ser apenas consideradas úteis e agradáveis manifestações do mundo material, mas como realidades elevadas e estimuladas por ideais e bens espirituais, cujo cálculo aritmético é totalmente impossível. Todas essas habilidades e atividades possuem seu ponto de partida e seu centro na auto consciência pela qual o homem conhece a si mesmo e pela qual o homem carrega dentro de si uma inerradicável noção de sua própria existência e da peculiaridade de sua natureza racional e moral. Além disso, todas essas habilidades particulares se expressam através da linguagem e da religião, da moralidade e da lei, da ciência e da arte – todas elas, é claro e muitas outras, são peculiares ao homem e não são encontradas no mundo animal.

Todas essas habilidades e atividades são características da imagem de Deus. Deus, de acordo com a Sua revelação na natureza e na Escritura, não é uma força inconsciente e cega, mas um Ser pessoal, auto consciente, volitivo e ativo. Embora as emoções, disposições e paixões, tais como a ira, o ciúme, a compaixão, a misericórdia, o amor e coisas semelhantes, sejam inquestionavelmente atribuídas a Deus nas Escrituras, elas não são emoções sentidas de forma passiva, mas

atividades de Seu Todo-Poderoso, Santo e Amoroso Ser. A Escritura não poderia falar dessa forma humana sobre Deus se em todas as suas habilidades e atividades o homem não tivesse sido criado à imagem de Deus.

0 mesmo é verdade, em terceiro lugar, sobre o corpo humano. Nem mesmo o corpo foi excluído da imagem de Deus. De fato, a Escritura diz expressamente que Deus é Espírito (Jo 4.24) e não atribui corpo a Deus. Contudo, Deus é o Criador também do corpo e do mundo dos sentidos. Todas as coisas, inclusive as materiais, possuem sua origem e sua existência no Verbo que estava com Deus (jo 13; Cl 1.15). 0 corpo, embora não seja a causa das atividades espirituais, é o instrumento pelo qual essas atividades são realizadas. Não é o ouvido que ouve, mas o espírito humano é que ouve através do ouvido.

Portanto, todas as atividades que são realizadas pelo corpo e até mesmo os órgãos físicos que são utilizados para realizar essas atividades podem ser atribuídos a Deus. A Escritura fala de Suas mãos e pés, de Seus olhos e ouvidos e de vários outros órgãos e membros para indicar que tudo o que o homem pode alcançar através do corpo é, de uma forma original e perfeita, devido a Deus. "0 que fez o ouvido, acaso não ouvirá? E o que formou os olhos

era que não enxerga?" (5194.9). Portanto, na medida em que o ,orpo serve como um instrurnen:o do espírito, ele exibe uma certa semelhança e

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dá uma certa noção da forma pela qual Deus age no mundo.

Tudo isso pertence à ímãgem de Deus em um sentido amPlo. Mas a semelhança de Deus no ,tomem se torna muito mais forte ria justiça original com a qual o primeiro homem foi dotado e que e chamada de imagem de Deus, em um sentido estrito. Quando a Escritura enfatiza a justiça origi-nal, ela declara que o que mais nos interessa na imagem de Deus não é propriamente o fato de que ela existe, mas o que ela é. 0 fato principal não é que nós pensamos, odiamos, amamos e desejamos. A =elhança entre o homem e Deus recebe o seu significado claquito que pensamos e desejamos, daquilo que é o objeto de nosso amor ou ódio. As forças da razão e da vontade, da inclinação e da áversão, foram dadas ao homem precisantente para esse propósito, para que sejam usadas da for-ma correta – ou seja, de acordo = a vontade de Deus e para Sua gloria. Os demônios também pos-,riem capacidade de pensamento e de vontade, mas eles colocam essa capacidade somente a servi

ço de seu ódio e de sua inimizade contra Deus. Embora a crença na pessoa de Deus, que é em si mesma uma coisa boa, ela nada concede aos demônios além de temor e tremor de Seu julgamento (Tg 2.19). Com relação aos judeus, que foram chamados filhos de Abraão e chamaram Deus de seu Pai, Jesus disse que eles deveriam fazer as mesmas obras que Abraão, e crer naquele que lhes foi enviado. Mas, como eles estavam fazendo precisamente o oposto e queriam matar Jesus, eles provaram que são realmente filhos do diabo e que queriam fazer a vontade de seu pai (Jo 8.39- 44). Os desejos que os judeus tiveram e as obras que eles realiza-ram foram usados pelo diabo. Dessa forma, podemos observar que a semelhança do homem com Deus não está, precisamente, no fato do ser humano possuir razão e entendimento, coração e vontade. Ela se expressa, principalmente, no puro conhecimento e na perfeita justiça e santidade, que juntas constituem a imagem de Deus em um sentido estrito, e com a qual o homem foi privilegiado e adornado em sua criação.

0 conhecimento que foi dado ao primeiro homem não consistiu no fato de que ele conhecia tudo e nada mais tinha a aprender sobre Deus, sobre si mesmo e sobre o mundo. Até mesmo o co-nhecimento dos anjos e dos san-

tos é suscetível de desenvolvimento. Assim era o conhecimento de Cristo sobre a terra até o fim de seus dias entre nós. Esse conhecimento

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original do primeiro homem, implica que Adão recebeu um conhecimento adequado para as circunstâncias de seu chamado e pua o cumprimento de sua missão, e que esse conhecimento era um conhecimento puro. Ele amou a verdade com toda a sua alma. A mentira, com todas as calamitosas conseqüências do erro, da dúvida, da incredulidade e da incerteza ainda não tinham encontrado morada em seu coração. Enquanto permaneceu na verdade ele viu e apreciou todas as coisas como realmente são elas.

0 fruto desse conhecimento da verdade era justiça e santidade. A santidade significa que o primeiro homem foi criado livre de toda e qualquer mancha causada pelo pecado. Sua natureza era polida e brilhante. Nenhum pensamento, deliberação ou desejo mal fluía de seu coração. Ele não era o que podemos chamar de ingênuo ou bobo, mas ele conhecia Deus e ele sabia que a lei de Deus estava escrita em seu coração e ele amou essa lei com toda a sua alma. Enquanto permaneceu na verdade ele permaneceu também no amor. A justiça significa que o homem, que conhecia a verdade em sua mente, e que era

santo em sua vontade e em seus desejos, também correspondia completamente à lei de Deus, satisfazia completamente as exigências de sua justiça e permanecia diante de Sua face sem qualquer culpa. A verdade e o amor trouxeram a paz em sua esteira, paz com Deus e consigo mesmo e com o mundo todo. 0 homem que permanece no lugar correto, o lugar que lhe pertence, também permanece em um correto relacionamento com Deus e com suas criaturas.

Desse estado e da circunstância na qual o homem foi criado nós não podemos formar uma idéia muito precisa. A cabeça e o coração, a mente e a vontade, tudo puro e sem pecado – isso é algo que está muito além do âmbito de nossas experiências. Quando nós paramos para refletir como o pecado tem se insinuado em nosso pensamento e em nossas palavras, em nossas escolhas e em nossas ações, quando a dúvida se levanta em nosso coração, nenhum estado de verdade, amor e paz é possível ao homem. A Sagrada Escritura, contudo, nos dá a vitória e vence toda dúvida. Em primeiro lugar ela nos mostra, não apenas no começo, mas também no decorrer da história, que a figura de um homem que pudesse cumprir toda a justiça coloca a questão aos seus oponentes: "Quem de vocês me convence de

pecado?" (jo 8.46). Cristo era homem, um homem perfeito. Ele não pecou, nem dolo algum se achouernSuaboca (IPe2.22). Em segundo lugar a Escritura nos ensina que o primeiro casal humano foi criado à imagem de Deus em justiça e santidade e como re5ultado disso ele conheceu a verdade. Dessa forma a Escritura afirma que o pecado não faz parte da natureza humana, e que, portanto, ele pode ser removido e separado da natureza humana.

Se o pecado fizesse parte da natureza humana desde sua ori- ,em então pela natureza do caso

,

nenhuma redenção seria possível. A redenção do pecado seria, nes,e caso, uma aniquilação da natureza humana. Mas como o pecado não faz parte da natureza humana, o ser humano não apenas pode existir

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hipoteticamente sem o pecado, mas tal ser humano santo já existiu na realidade. E quando ele pecou e tornou-se culpado e corrompido, outro homem, o segundo Adão, levantouse sem pecado, para fazer com que o homem caído ficasse livre 3e sua culpa e fosse limpo de ,oda e qualquer mancha. A criação do homem, segundo a imaÍem de Deus e a possibilidade da queda incluem a possibilidade da redenção e da recriação. Mas, aquele que nega o primeiro, não pode concordar com o segundo; a negação da queda tem como

efeito colateral a desconfortável pregação da impossibilidade da redenção do homem. Para que pudesse cair, o homem teve primeiro que permanecer de pé. Para que pudesse perder a imagem de Deus, ele teve primeiro que possuí-la.

A criação do homem, segoudo a imagem de Deus - conforme nós lemos em Gênesis 1.26 e 28 - teve o propósito imediato de capacitar o homem a encher a terra e dominá-la. Tal domínio não é um elemento constituinte da imagem de Deus. Também não constitui todo o conteúdo dessa ima-gem, como alguns têm afirmado. A imagem de Deus não é um adendo arbitrário e acidental. Pelo contrário, a ênfase que é colocada sobre o domínio está relacionada bem de perto com a cria-ção à imagem de Deus e indica conclusivamente que a imagem se expressa no domínio e através dele, mas deve desenvolver-se cada vez mais. Além disso, na descrição desse domínio, é clara-mente afirmado que em uma certa medida ele foi imediatamente dado ao homem como uma dota-ção, mas que em um sentido muito mais elevado esse domínio seria alcançado no futuro. Deus não apenas diz que fará "homens" à Sua imagem e semelhança (Gn

1.26), mas quando fez o primeiro casal, o homem e a mulher, ele os abençoou e disse: "Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a;..." (Gri 1.28), e posteriormente Ele deu a Adão a missão de cultivar e guardar o jardim (Gn 2.15).

Tudo isso nos mostra claramente que o homem não foi criado para a ociosidade, mas para o trabalho. Ele não foi autorizado a descansar sobre o trabalho alheio, mas tinha que empreender esforços para subjugar o mundo à sua palavra e vontade. Ele recebeu essa grande, vasta e rica missão sobre a terra. Ele recebeu uma missão que lhe custaria séculos de esforço para que fosse cumprida. Ele foi colocado em uma direção cujo caminho era incalculavelmente longo, e a cujo fim ele teria que chegar. Em resumo, há

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uma grande diferença entre a condição na qual o primeiro homem foi criado e o destino ao qual ele foi chamado. De fato, essa destinação está intimamente relacionada com a sua natureza e também com sua origem, mas ao mesmo tempo é diferente tanto de uma quanto de outra. A natureza do homem, a essência de seu ser - a imagem de Deus segundo a qual ele foi criado - deveria desdobrar-se constantanternente em formas mais ricas e mais completas de seu conteúdo através de seu esf o r ç o p a r a c u m p r i r s u a

destinação. Podemos dizer que a imagem de Deus tinha que espalhar-se pelos confins da terra e tinha que ser impressa sobre todas as obras das

mãos do homem. o homem tinha que cultivar a terra e cada vez mais tomar-se uma revelação dos atributos de Deus.

0 domínio da terra, portanto, era o mais próximo, mas não era o único propósito para o qual o homem foi chamado. A natureza do caso nos aponta para esse fato. 0 trabalho que é realmente um trabalho não pode ter seu fim e seu propósito final em si mesmo, mas sempre tem como seu objetivo primordial trazer algo à existência. Ele cessa quando seu objetivo é alcançado. Trabalhar, simplesmente trabalhar, sem deliberação, plano ou propósito é trabalhar sem esperança e sem mérito. Um desenvolvimento que continua indefinidamente não é um desenvolvimento. 0 desen-volvimento implica intenção, curso de ação, propósito final, destinação. Se, então, o homem em sua criação foi chamado para trabalhar, isso implica que ele e as pessoas que dele descenderiam entrariam em um descanso depois desse trabalho.

A instituição da semana de sete dias confirma e reforça essa convicção. Em sua obra de criação Deus descansou no sétimo dia. 0 homem, feito à imagem de Deus, imediatamente em sua criação

ganha o direito e o privilégio de seguir o exemplo divino também com relação a esse descanso. A obra que lhe é confiada, a saber, dominar a terra, é uma fraca imitação da atividade criativa de Deus. 0 trabalho do homem é um trabalho que está inteiramente sujeito à deliberarão, segue um definido curso de ação, e procura atingir um objetivo específico. 0 homem não é uma máquina que se move inconscientemente; em seu trabalho o homem é homem, a imagem de Deus, um ser pensante, volitivo e ativo que procura criar algo, e que, por fim, olha para o trabalho de suas mãos com aprovação. Como faz o próprio Deus, o homem trabalha, ter-mina seu trabalho, descansa e alema-se.A semana de seis dias co- roada pelo sábado dignifica o trabalho do homem, coloca-o acima de movimentos monótonos de natureza mecânica e sela-o com o selo da vocação divina. No dia de sábado Deus entrou em Seu descanso de acordo com Seu propósito e o homem descansa de suas obras da mesma forma que Deus descansa das Suas (Hb 4.10). Isso é verdade com relação ao indivíduo e também com relação à Igreja e de forma geral. 0 mundo também tem sua obra para realizar, uma obra que é seguida e conclui-ida pelo sábado. Cada dia de sã-nado é um exemplo, uma prova, urna profecia e uma garantia do

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descanso (Hb 4.9).

É por isso, que o Catecismo de Heidelberg, corretamente diz que Deus criou o homem bom e segundo Sua própria imagem, para que ele pudesse corretamente conhecer Deus, seu Criador, amá-lo e viver com Ele em eterna bem-aventurança para louvá-lo e glorificá-lo. 0 propósito final do homem está na eterna bem-aventurança, na glorificação de Deus no céu e na terra. Mas para que esse fim seja alcançado é necessário que o homem cumpra sua missão. Para entrar no descanso de Deus o homem deve primeiro realizar o trabalho de Deus. 0 caminho para o céu passa pela terra e sobre a terra. A entrada para o sábado é aberta por seis dias de trabalho.

Esse ensino do propósito do homem repousa inteiramente sobre pensamentos que foram expressos em Gênesis 1.26-3.3. Mas o segundo capítulo tem outro importante elemento constituinte que deve ser acrescentado. Quando Deus coloca o homem no paraíso, Ele lhe dá o direito de comer livremente de todas as árvores do jardim, exceto de uma. A árvore do conhecimento do bem e do mal é colocada por Deus como uma exceção. 0 homem é avisado de que ele não pode comer do fruto dessa árvore e que no dia em que ele comer certamente morrerá (Gn 2.16,17). Esse mandamento é uma proibição. Os mandamentos foram conhecidos por Adão parcialmente através de seu próprio coração e a outra parte foi falada por Deus. Adão não os inventou. Deus criou-os nele e comunicou-os a ele. 0 homem não é religiosa e moralmente autônomo. Ele não é seu próprio le-gislador e não pode fazer tudo como lhe agrada. Somente Deus é o Legislador e o juiz do homem (Is 33.22). Todos os mandamentos que Adão recebeu foram dados para que, aquele que foi criado à imagem de Deus, em todos os seus pensamentos e obras, em sua vida e trabalho, continuasse sendo a imagem de Deus. 0 homem tinha que manter sua personalidade em sua própria vida, em seu matrimônio, em sua família, em seus seis dias semanais de trabalho, em seu descanso no sétimo dia, em seu cultivo da terra e em sua multiplicação, em seu domínio sobre a terra e em sua guarda do jardim. Adão não podia seguir seu próprio caminho, mas devia seguir o caminho que Deus tinha apontado para ele.

Mas todos esses mandamentos, que davam a Adão ampla liberdade de movimento e toda a terra como seu campo de operação, são limitados por uma proibição. Essa proibição, de comer o

fruto do conhecimento do bem e do mal, não pertence à imagem de Deus e não é um elemento constituinte dela, aliás, pelo contrário, essa proibição fixa o limite da imagem de Deus. Se Adão transgredisse essa proibição ele perderia a imagem de Deus, perderia a comunhão com Deus e morreria. Por essa proibição a obediência do homem foi testada. Esse

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mandamento provaria se o homem seguiria o caminho de Deus ou seu próprio caminho, provaria se ele se manteria na trilha correta ou se ele se desviaria, provaria se ele se manteria como um filho na casa do Pai ou se preferiria tomar a porção que lhe cabe e partir para um país distante. Por causa disso esse mandamento geralmente é chamado de comando probativo. Ele possui, em um certo sentido, um conteúdo arbitrário. Adão e Eva não poderiam encontrar razão pela qual o fruto dessa árvore tinha sido proibido. Em outras palavras, eles tinham que obedecer o mandamento de Deus não porque entendessem que esse era um mandamento sensato, mas porque tinha sido dado por Deus, com base em Sua autoridade, para testar sua obediência. Esse é o motivo pelo qual a árvore cujo fruto eles não podiam comer é chamada de árvore do conhecimento do bem e do mal. Era essa árvore que demonstraria tanto se o homem ar-

bitrária e auto suficientemente queria determinar o que era bem e o que era mal, quanto se nesse assunto ele se permitiria ser totalmente guiado pelo mandamento que Deus tinha dado sobre o que ele deveria fazer.

Ao primeiro homem, portanto, foi dado algo, ou melhor, foi dado muito o que fazer; e também havia algo que ele não poderia fazer. Geralmente a última exigência é a mais difícil de ser cumprida. Há muitas pessoas que estão tentando fazer muito, por exemplo, pela sua saúde, mas

não querem deixar de fazer algo

por ela, mesmo que seja algo bempequeno. Elas acham que a autonegação é uma carga exage-radamente pesada. A proibiçãocria uma nuvem de mistérios. Elalevanta questões tais como porque, o que e como. Ela semeia adúvida e incita a imaginação. 0homem tinha que resistir à tenta-ção que fluiu do mandamentoproibitivo de Deus. Essa era a lutade fé que ele teria que vencer. Naimagem de Deus segundo a qualele fora criado, ele recebeu tam-bém a força pela qual ele poderiater permanecido firme e vencido.Contudo esse mandamentoproibitivo tornou aparente, commais clareza do que a instituiçãoda semana de sete dias, que o fime destino do homem é diferentedo fim e destino de toda a cria-ção. Adão estava apenas no corne-

ço do que ele deveria ser e do que ele se tornaria quando alcançasse o

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fim para o qual fora criado. Ele viveu no paraíso, mas não vivia ainda no céu. Ele ainda tinha um longo caminho para percorrer antes de chegar ao seu próprio destino. Ele tinha que alcançar a vida eterna por sua "comissão" e ,omissão". Em resumo, há uma grande diferença entre o estado de inocência no qual o primeiro homem foi criado e o estado de glória ao qual ele estava destinado. A natureza dessa diferença se torna clara para nós através do restante da revelação.

Adão era dependente da mudança de noite e dia, sono e vigília, mas nós somos informados de que na Jerusalém Celestial não haverá noite (Ap 21.25; 22.5) e que os redimidos pelo sangue do Cordeiro estarão diante do trono de Deus e o servirão de dia e de noite (Ap 7.15). 0 primeiro homem foi limitado à semana de seis dias de trabalho e um dia de descanso, mas para o povo de Deus haverá um descanso eterno, interminável (Hb 4.9; Ap 14.13). No estado de inocência o homem diariamente precisava comer e beber, mas no futuro Deus destruirá tanto o estômago, quanto os alimentos (lCo 6.13). 0 primeiro casal humano consistiu de um homem e de uma mulher e recebeu a seguinte bênção: "Sede fecundos e multiplicai-vos". Mas na

ressurreição os homens não se casam e não se dão em casamento, mas são como os anjos nos céus (Mt 22.30). 0 primeiro liornem, Adão, era da terra, terreno, tinha um corpo natural e era uma alma vivente, mas os crentes na ressurreição, receberão um corpo espiritual e levarão a imagem do homem celestial, a imagem de Cristo, o Senhor do céu (lCo 15.45-49). Adão foi criado de tal forma que ele podia se desviar, podia pecar, podia cair e podia morrer; mas os crentes, mesmo na terra, estão, em princípio, acima dessa possibili-dade. Eles não podem viver pecando, pois aquele que é nascido de Deus não vive na prática do pecado, pois o que permanece nele é a divina semente; ora, esse não pode viver pecando, porque é nascido de Deus (ljo 3.9). Eles não podem cair definitivamente, porque são guardados pelo poder de Deus, mediante a fé, para a salvação preparada para revelar-se no último tempo (IPe 1.5). E eles não podem morrer, pois aqueles que estão em Cristo possuem, já nesta vida, a vida eterna incorruptível; eles não morrerão eter-namente, mesmo que morram nessa vida (Jo 11.25,26).

Ao olharmos para o primeiro homem, portanto, nós devemos evitar os dois extremos. Por um lado nós devemos, com base na Sagrada Escritura, afirmar que ele foi imediatamente criado à ima

gem de Deus em verdadeiro conhecimento, justiça e santidade. Ele não era uma criança pequena e ingênua que deveria se desenvolver até a maturidade, ele não era um ser que, embora maduro quanto ao corpo, era espiritualmente vazio, assumindo uma posição neutra entre a verdade e a falsidade, entre o bem e mal e muito menos era ele um animal, gradualmente desenvolvido e que agora, após grande empenho e esforço, tornou-se um homem. Tal representação está em conflito irreconciliável com a Escritura e com a razão.

Por outro lado, o estado do primeiro homem não deve ser exageradamente glorificado como às vezes se faz na doutrina cristã e na pregação. Apesar do homem ter sido colocado por Deus em um lugar de destaque, ele ainda não tinha alcançado o nível mais alto possível. Ele era

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capaz de não pecar, mas não era incapaz de pecar. Ele ainda não possuía a vida eterna que não pode ser corrompida e não pode morrer, mas recebeu uma imortalidade preliminar cuja existência e duração dependiam do cumprimento de uma condição. Ele foi imediatamente criado à imagem de Deus, mas ele ainda podia perder essa imagem e toda a glória nela contida. Ele viveu no paraíso, é verdade, mas o paraíso não era o céu. Uma coisa estava faltando em to-

das as riquezas, tanto espirituais quanto físicas, que Adão possuiu: certeza absoluta. Se nós não possuímos certeza absoluta nosso descanso e nosso prazer não são perfeitos. De fato, o mundo contemporâneo com seus muitos esforços para segurar tudo o que o homem possui é uma satisfatória evidência dessa verdade. Os crentes estão seguros nesta vida e na próxima, pois Cristo é quem os guarda e não permitirá que eles sejam arrebatados de sua mão (Jo 10.28). 0 verdadeiro amor lança fora o medo (Ijo 4.18) e nos persuade de que nada nos separará do amor de Deus, que está em

Cristo Jesus nosso Senhor (Riu 8.38-39). Mas essa certeza absoluta estava ausente no paraíso. Adão não estava, apesar de sua criação à imagem de Deus, permanentemente estabilizado no bem. Independente de quanto ele possuía, ele podia perder tudo, não somente ele mesmo, mas também sua posteridade. Sua origem era divina; sua natureza estava re-lacionada à natureza divina; seu des t ino e ra a e te rna bem-aventurança na presença imediata de Deus. Mas para alcançar seu destino ele foi feito dependente de sua própria escolha e de sua própria vontade.

Capítulo 13

0 PECADO E A MORTE

Oterceiro capítulo de Gênes i s nos f a l a sob re a desobed iênc ia e a queda do homem. Presurnivelmente, não foi muito tempo depois da sua criação que o homem se fez culpado por transgredir o mandamento divino. A criação e a queda não são coexistentes e não devem ser confundidas urna com a outra. Elas diferem uma da outra em natureza e em essência, mas cronologicamente elas são muito próximas.

As circunstâncias nas quais o homem vivia no paraíso eram muito parecidas com as circunstàncias dos anjos. A Sagrada Escritura não nos dá um registro detalhado sobre a criação e queda dos anjos; ela nos diz somente o que nós precisamos saber para que tenhamos um correto enten-dimento do homem e de sua qued a, Ela não faz considerações pos

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teriores e não faz qualquer esforço no sentido de satisfazer nossa curiosidade. ',ias nós sabemos que os aujos existem, que um grande número deles caiu e que essa queda aconteceu no começo do mundo. É verdade que alguns estudiosos situam o tempo da criação dos anjos muito antes de Gênesis 11, mas a Escritura não nos dá base para isso.

0 começo de toda a obra de cr iação está registrado em Gênesis 1.1 e em Gênesis 1.31 é dito que toda a obra de criação, e não apenas a criação da terra, foi vista por Deus e foi declarada como sendo muito boa. Isso me faz pensar que a rebelião e a desobediência dos anjos tenham acontecido depois do sexto dia da criação.

Por outro lado, a Escritura nos ensina que a queda dos anjos precedeu a queda do homem. O pecado não surgiu pela primeira vez na terra, mas no céu, na presença imediata de Deus, junto ao Seu trono. 0 pensamento, o desejo, a vontade de resistir a Deus surgiu primeiramente no coração dos anjos. É provável que o orgulho tenha sido o primeiro pecado e o princípio da queda dos anjos. Em lTimóteo 3.6 Paulo exorta a igreja a não escolher como bispo alguém que tenha sido convertido há pouco tempo, para que ele não sinta orgulho e caia na condenação do diabo. Se esse julgamento ou essa condenação do diabo significa o pecado no qual ele caiu depois de se exaltar contra Deus, então nós temos aqui um indício do fato de que o pecado do diabo começou com a auto-exaltação e orgulho.

Mas pode ser que a queda dos anjos tenha precedido a do homem. Além disso, o homem não transgrediu a lei de Deus exclusivamente por si mesmo, mas foi movido por algo fora de si mesmo. A mulher, enganada e tentada pela serpente, cometeu a transgressão (2Co 11.3; lTrn 2.14). Certamente nós não devemos imaginar que essa serpente seja uma representação simbólica, mas uma serpente real, pois nós somos informados de que a serpente era mais sagaz do que todos os animais selváticos que o Senhor Deus tinha feito (Cri 31; Mt 10.16). A revelação posterior nos dá a en

tender que uma força demoníaca fez uso da serpente para encantar

ohomem e fazer com que ele se desviasse do caminho do Senhor. Em vários pontos do Velho Testamento nós lemos que Satanás é

oacusador e o tentador do homem (Já 1.1; Cr 21.1; Zc 3). 0 terrível poder das trevas foi revelado pela primeira vez quando a divina luz celestial brilhou sobreomundo em Cristo. Então, tornou-se manifesto que há outro mundo ainda mais pecaminoso do que esse aqui na terra. Há uma realidade espiritual do mal, na qual inumeráveis demônios, espíritos impuros e maus, cada um mais iníquo que o outro (Mt 12.45), são os servos e no qual Satanás é o chefe e o cabeça. Esse Satanás recebe vários nomes. Ele não é chamado somente de Satanás, que significa Adversário, mas também de diabo, que significa blasfernador (Mt 13.39), de inimigo (Mt 13.39; Lc: 10.19), de mal ou maligno (MI: 6.13; 13.19), de acusador (Ap 12.10), de tentador (Mt 4.3), de Belial, que significa inútil (2Co 6.15), de Belzebu (Beelzebul ou Beelzebub), o

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nome pelo qualodeus voador de Ecrom era chamado 2Re 1.2; Mt 10.25), o príncipe dos demônios (MI: 9.34), o príncipe da potestade do ar (Ef 2.2), o príncipe deste mundo (Jo 12.31),odeus desta era ou o deus deste mundo (2Co4.4), o grande dragão

oa antiga serpente (Ap 12.9),

Essa realidade das trevas não existe desde o começo da criação, ela passou a existir somente depois da queda de Satanás e de seus anjos. Pedro diz de forma genérica que os anjos pecaram e foram punidos por Deus (2Pe 2.4), mas Judas, no sexto versículo de sua carta, explica com mais precisão a natureza do pecado dos anjos, dizendo que eles não guardaram seu estado original, isto é, o estado no qual foram criados por Deus e abandonar= sua habitação no céu. Eles não estavam satisfeitos com o estado que Deus lhes tinha dado e desejaram algo mais. Essa rebelião aconteceu no princípio, pois o diabo peca desde o princípio (ljo 3.8) e desde o começo ela foi dedicada à corrupção do homem. Jesus afirma expressamente que Satanás era assassino desde o começo e que jamais se firmou na verdade porque é mentiroso (Jo 8.44).

Desse Satanás veio a tentação ao homem. Ela veio na forma de um ataque ao mandamento que Deus tinha dado de não comer da árvore do conhecimento do bem e do mal. 0 apóstolo Tiago afirma que Deus está acima da tentação, e que Ele não pode tentar o homem. Naturalmente o significado dessa afirmação não é que Deus não prove o homem ou não coloque o homem à prova. A Escritura registra vários casos em

que Ele faz exatamente isso, seja com Abraão, Moisés, Jó, Cristo, ou imediatamente com o primeiro homem, Adão. Mas quando alguém é reprovado nessa prova, essa pessoa é imediatamente inclinada a colocar o peso da culpa pela sua queda sobre Deus, dizendo que Deus queria fazer-lhe mal, ou que queria submetê-lo a uma prova na qual essa pessoa certa-mente seria reprovada.

Nós podemos observar que, depois da queda, Adão imediatamente faz isso. Agir assim é a secreta inclinação de todo homem. Tiago reage a essa tendência e afirma definitiva e firmemente que Deus está acima do nível da tentação e que Ele mesmo a ninguém tenta. Ele nunca tenta uma pessoa com a intenção de fazê-la cair e Ele nunca submete alguém a uma prova que essa pessoa não tenha capacidade de suportar (lCo 10.13). 0 mandamento probativo dado a Adão tinha o objetivo de fazer com que a obediência se tornasse manifesta e isso significa que ela não estava além de suas forças. Humanamente falando, o homem poderia facilmente ter cumprido esse mandamento, pois, esse mandamento era luz, e o seu peso não pode ser comparado com todos os outros mandamentos que foram dados depois dele.

Mas da mesma forma como Deus faz o bem, Satanás faz o mal.

Satanás exagerou o mandamento probativo e transformou-o em uma tentação, um ataque secreto à obediência do primeiro homem e através dessa tentação sua intenção era claramente fazer com que o homem pecasse. Primeiro, o mandamento que Deus tinha dado, é representado como um

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fardo arbitrariamente colocado sobre o homem, como uma limitação infundada da liberdade humana. Dessa forma Satanás lança na alma de Eva a dúvida sobre a justiça desse mandamento e sobre a sua origem divina. Depois, a dúvida se desenvolve em incredulidade, por meio do pensamento de que Deus deu esse mandamento para impedir que o homem se tornasse como Ele, conhecedor do bem e do mal. Essa incredulidade é colocada a serviço da imaginação e faz com que a transgressão pareça ser, não um caminho para a morte, mas um caminho para a vida, para a igualdade com Deus. A imaginação, dessa forma, faz sua obra na inclinação e no esforço do homem e a árvore proibida passa a ter outra aparência. Ela se toma agradável aos olhos e desejável ao coração. 0 desejo, sendo concebido dessa forma, expulsa a vontade e carrega consigo o ato pecaminoso. Eva toma o fruto e come e o dá também ao seu marido, e ele também come (Gn 3.1-6).

Dessa forma simples, mas profundamente psicológica, a Escritura

relata a história da queda e a origem do pecado. Dessa mesma

forma o pecado continua a ser praticado. Ele começa com o

obscurecimento do entendimento, continua através da excitação

da imaginação, estimula o desejo no coração e culmina em um ato

da vontade. Contudo, há uma grande diferença entre o primeiro

pecado e todos os pecados posteriores. Os pecados posteriores

pressupõem uma natureza pecaminosa no homem e fazem dessa

natureza seu ponto de contato. Tal natureza não existia em Adão e

Eva, pois eles foram criados à imagem de Deus. Mas nós fazemos

bem em nos lembrarmos que mesmo em toda a sua perfeição eles

foram criados de tal forma que eles pudessem cair e em virtude

dessa natureza seu pecado tem um caráter de insensatez. Quando

uma pessoa peca ela sempre tenta se desculpar ou se justificar,

mas nunca tem sucesso. Nunca há uma base sensata para o pecado.

Sua existência é e continuará sendo uma transgressão da lei. Há

algumas pessoas em nossos dias que tentam sustentar que o

pecador é conduzido a um ato pecaminoso pelas circunstâncias ou

pela sua disposição, mas nem racionalmente, nem psicolo-

gicamente o pecado pode ter sua origem em =a disposição ou ação que tenha qualquer razão para existir.

Isso e particularmente verdade a respeito do primeiro pecado que foi cometido, o primeiro pecado do homem no paraíso. Em nossos dias nós vivemos em circunstâncias diferentes. Essas circunstâncias não justificam opecado, mas limitam a medida da culpa. Mas no pecado do primeiro casal humano não havia uma circunstância sequer que pudesse diminuir ou modificar o fator da culpa. De fato, tudo o que pode ser designado como

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contexto desse evento – como a revelação especial que revelou-lhes o mandamento probativo, o conteúdo do mandamento probativo, que exigia apenas uma pequena auto negação, a seriedade da ameaça de penalidade relacionada com a transgressão, o horror das consequências, a santidade de sua natureza – tudo isso agrava a extensão da culpa.

Nós podemos lançar alguma luz sobre a possibilidade da queda, mas a transição da possibilidadepam a realidade permanece oculta nas trevas. A Escritura não faz qualquer esforço para fazer com que essa transição seja inteligível. Portanto, a Escritura também sustenta o pecado inalterado em seu caráter. 0 pecado existe, mas ele é ilegítimo. Ele está e permanecerápara sempre em conflito com a lei de Deus e com o testemunho de nossa consciência.

Ao relatar esses dois fatos, isto é, ao dar, por um lado, um registro psicológico do surgi-mérito do pecado, um relato do que cada um sente em sua própria vida e ao deixar o pecado, por outro lado, nu e cru em sua natureza insensata e injustificável, o registro da queda em Gênesis 3 coloca-se imensuravelmente acima de tudo o que a sabedoria humana no curso dos séculos tem sido capaz de produzir sobre a questão da origem do pecado. Que existe o pecado e a miséria é algo que todos nós sabemos, não apenas por causa do registro da Escritura; isso é algo que nos é ensinado diariamente e em todos os momentos por uma natureza que geme com gemidos inexprimíveis. Todo o mundo está marcado pela queda. E se o mondo ao nosso redor não nos proclamasse essa verdade, mesmo assim nós seríamos a todo momento lembrados disso pela voz de nossa cons-ciência, que continuamente nos acusa e pela miséria do coração, que dá testemunho de uma tristeza inominável.

É por isso, que em todas as épocas e em todos os lugares, a humanidade sempre perguntou: Por que o mal? Por que o mal do pecado e o mal da miséria? Essa é a questão que, mais do que a

questão da origem do homem, tem ocupado o pensamento do homem e tem pressionado seu coração e sua mente dia após dia. Mas agora compare as soluções que a sabedoria humana tem dado a essa questão com a sim-ples resposta das Escrituras.

Naturalmente as soluções humanas não são semelhantes. Contudo, elas exibem uma certa relação entre si e é com base nessa relação que elas podem ser classificadas. A solução mais comumente freqüente é aquela segundo a qual o pecado não está dentro do homem, mas fora dele e ataca-o pelo lado de fora. Segundo essa idéia, a natureza humana é boa e seu coração é limpo. 0 pecado está nas circunstâncias, no meio ambiente, na sociedade na qual o homem está inserido. Elimine essas circunstâncias e reforme a sociedade - introduza, por exemplo, uma distribuição igualitária de rendas e bens entre todos os homens - e o homem naturalmente será bom. Ele não terá mais razões para fazer o mal.

Esse pensamento sobre a origem e a essência do mal tem tido muitos adeptos porque o homem é sempre inclinado a transferir sua culpa para as circunstâncias. Mas esse ponto de vista foi especialmente favorecido quando, a partir do século dezoito, os olhos foram abertos para a corrupção

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política e social euma mudança radical do estado e da sociedade passou a ser vista como a solução para os nossos males. Mas sobre essa questão da bondade natural do homem o século dezenove trouxe de volta uma certa desilusão.

Por causa disso outra explicação sobre a origem do pecado na natureza sensorial do homem entrou em moda. 0 homem tem uma alma, contudo ele também possui um corpo; ele é espírito, mas ele também é corpo. A carne em si mesma sempre tem certas tendências e inclinações pecami-nosas, desejos mais ou menos impuros, paixões e dessa forma ela naturalmente se opõe ao espírito com suas imagens, idéias e ideais. Visto como o homem, quando, nasce, continua por alguns anos a viver um tipo de vida botânica e animal e como criança vive em termos de imagens con-cretas, torna-se evidente que a carne pode, por anos e anos, ser o elemento dominante, mantendo o espírito em sujeição. De acordo com esse ponto de vista, apenas gradualmente o espírito se emancipa do poder da carne. Mas, mesmo que seja gradualmente, o desenvolvimento da carnalidade para a espiritualidade é contínuo na raça humana e no indivíduo.

De alguma forma, pensadores e filósofos têm repetidamente falado sobre a origem do pecado. Mas em tempos recentes, eles têmrecebido forte apoio da teoria que diz que o homem é um descendente do animal, e em seu coração ele ainda é um animal.

Alguns chegam a afirmar que o homem continuará sendo um animal para sempre. Mas alguns mantêm a esperança de que, visto como o homem tem se desenvolvido tão gloriosamente em comparação com seus antepassados, ele se desenvolverá ainda mais no futuro e talvez até chegue a se tomar um anjo. Portanto pode ser que a descendência humana a partir dos animais possa nos fornecer uma solução para o problema do pecado. Se o homem traçar sua descendência a partir da vida animal, então é perfeitamente natural, e não deve causar qualquer espanto que o velho animal continue em ação dentro dele controlando suas ações.

Portanto, de acordo com esses pensadores, o pecado nada mais é do que um vestígio da antiga condição animal do homem. Sensualidade, roubo, assassinato e coisas semelhantes são práticas que eram comuns entre os povos primitivos e essas práticas estão presentes, em nossos dias, entre os assim chamados criminosos. Mas essas pessoas, que voltam a práticas primitivas e originais, não devem ser consideradas propriamente como criminosos, mas como pessoas retrógradas, fracas, doentes e insanas e não devem serpunidas em prisões, mas tratadas em hospitais. 0 que o ferimento é para o corpo, o criminoso é para a sociedade. 0 pecado é uma doença que o homem herdou de sua preexistência animal e que aos poucos vai sendo subjugada.

Se nós levarmos essa linha de raciocínio à sua conclusão lógica e procurarmos a origem do pecado nos sentidos, na carne, na origem animal, nós chegaremos naturalmente à doutrina, geralmente ensinada no passado, de que o pecado tem seu ponto de partida na matéria, ou, para falarmos de modo mais preciso, na existência finita de todas as criaturas. Na antigüidade essa era a opinião predominante sobre a origem do pecado.

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De acordo com esse ponto de vista, o espírito e a matéria são opostos um ao outro, como a luz e as trevas. A oposição é eterna, e os dois nunca podem chegar a uma verdadeira e completa comunhão um com o outro. A matéria, então, não seria algo que tivesse sido criada. 0 Deus de luz não poderia criar a realidade das trevas. Ela deve ter existido eternamente paralela-mente a Deus, sem forma, escura, sem qualquer tipo de vida ou de luz. Até mesmo quando ela foi modelada por Deus e usada para fazer o mundo, ela continuou sendo incapaz de assumir a idéia espiritual. As trevas absolutas não admitiriam a luz.

Para alguns pensadores essa matéria escura possui uma origem divina. Nesse caso haveria dois deuses, que coexistiram desde a eternidade, um deus de luz e um deus das trevas, um deus bom e um deus mau. Outros tentam traçar os dois eternos princípios do bem e do mal a um único deus e dessa forma fazem de deus um ser duplo. Há em Deus uma inconsciência, uma escuridão, uma base secreta fora da qual a consciência, clareza e luminosidade se expressam. A primeira é a origem básica da escuridão e do mal no mundo, e a segunda é a fonte de toda luz e vida.

Se nós dermos um passo mais adiante, nós chegaremos nos dias modernos à doutrina de alguns filósofos segundo a qual Deus em si mesmo nada mais é do que uma natureza escura, uma força cega, uma fome eterna, um desejo arbitrário, que se torna consciente e se transforma em luz somente na raça humana. Esse, certamente, é o ponto de vista diametralmente oposto ao ensino das Escrituras. AEscritura nos diz que Deus é luz e que nEle não há trevas e que todas as coisas foram feitas pela Sua Palavra. Mas a filosofia de nossos dias nos diz que Deus é escuridão, abismo, e que a luz brilha para Ele somente no mundo e na raça humana. Portanto, não é o homem que precisa ser

salvo por Deus, mas é Deus que carece de salvação e deve procurar no homem a sua redenção.

É claro, que essa última conclusão não é totalmente, nem tão fortemente afirmada por aqueles que apreciam essa teoria, nem é apresentada de forma tão crua e sem rodeios, mas chega ao mesmo lugar da rota seguida por aqueles que aderem às teorias sobre a origem do pecado apresentadas acima. Essas teorias podem diferir umas das outras, mas todas elas têm em comum o fato de procurarem a origem do pecado não no desejo da criatura, mas na estrutura e na natureza das coisas, e, portanto, no Criador, que é a causa tanto da estrutura quanto da natureza de tudo o que existe. Se o pecado se esconde nas circunstâncias, na sociedade, nos sentidos, na carne, na matéria, então a responsabilidade por isso deve ser colocada sobre o Criador e Sustentador de todas as coisas. E dessa forma o homem fica isen-to de culpa. Dessa forma o pecado não tem sua origem na queda, mas na criação. Nesse caso a criação e a queda são idênticas. Então a existência, o ser em si mesmo, é pecado. A imperfeição moral é o mesmo que a finitude e a redenção é absolutamente impossível, ou culmina na aniquilação do real, no nirvana.

A sabedoria de Deus é exaltada acima da especulação huma-na. A especulação humana coloca a responsabilidade pelo pecado em Deus

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e inocenta o homem; a sabedoria de Deus justifica Deus

ecoloca o peso da culpa sobre o homem. A Escritura é o livro que do começo ao fim inocenta Deusecondena o homem. A Escritura é uma grande e poderosa teodicéia, uma justificação de Deus, de todos os Seus atributosede todas as Suas obras e nisso ela é apoiada pelo testemunho da consciência de todas as pessoas. De fato, o pecado não é algo que esteja fora dos limites da providência de Deus; a queda não aconteceu fora do escopo de Seu conhecimento, de Seu conselho e de Sua vontade. Todo o desenvolvimento e toda a história do pecado é guiada por Ele e isso faz com que a direção do pecado seja sempre orientada. 0 pecado não é falta de planejamento, nem falta de poder de Deus; contra o pecado Deus continua sendo Deus, perfeito em sabedoria, bondade e poder.

De fato, Deus é tão bondoso

* tão poderoso que pode extrair*bem do mal e pode fazer o mal agir contra sua própria naturezaecooperar na glorificação de Seu nome e no estabelecimento de Seu reino. Mas o pecado continua possuindo seu caráter pecaminoso. Se em um sentido específico nós podemos dizer que Deus quis o pecado, visto que sem Sua vontade

e fora dela nada pode vir à existência, deve ser sempre lembrado que foi como pecado que Ele o desejou, algo anormal e ilegítimo, portanto, algo que está em conflito com seu mandamento.

Ao inocentar Deus, a Escritura mantém a natureza do pecado. Se o pecado não tem sua ori-gem no desejo do Criador, mas na essência ou ser que precede a vontade, ele imediatamente perde seu caráter moral, torna-se físico e natural, um mal inseparável da existência e da natureza das coisas. Dessa forma o pecado seria uma realidade independente, um princípio original, um tipo de mal material como uma doença. Mas a Escritura nos ensina que o pecado não é e não pode ser isso, pois Deus é o Criador de todas as coisas e também da matéria, e quando a obra de criação foi terminada Deus viu tudo o que tinha sido feito e disse que tudo era muito bom.

Portanto, o pecado não pertence à natureza das coisas. Ele é uma manifestação de caráter mo-ral que atua na esfera ética e consiste de um afastamento da norma ética que Deus, por Sua vontade, estabeleceu para o homem. 0 primeiro pecado consistiu na transgressão do mandamento probativo e, dessa forma, na transgressão de toda a lei moral, que, juntamente com o mandamento probativo, possui autoridade di-

vina. Os muitos nomes que a Escritura usa para designar o pecado -

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transgressão, desobediência, injustiça, impiedade, inimizade contra Deus e outros semelhantes, apontam para a mesma direção. Paulo diz que pela lei veio o conhecimento do pecado (Rm 3.20)

e João declara que todo pecado, tanto os menores quanto os maiores, são injustiça e transgressão da lei (ljo 3.4).

Se transgressão é o caráter do pecado, então esse caráter não pode estar presente na natureza ou essência das coisas, pois tudo

o que existe deve sua existência e sua essência somente a Deus, que é a fonte de todo o bem. 0 mal, portanto, só pode vir depois do bem, pode existir somente através do bem e sobre o bem e pode realmente consistir da corrupção do bem. Até mesmo os anjos caídos, apesar do pecado ter corrompido sua natureza, como criaturas são

e permanecem bons. Além disso, o bem, na medida em que pertence à essência das coisas, não é aniquilado pelo pecado, embora seja desviado para outra direção. 0 homem não perdeu seu ser, sua natureza humana, apesar do pecado. Ele ainda possui uma almae um corpo, razão e vontade, e todos os tipos de emoções e interesses.

De acordo com a ciência contemporânea, a doença não é uma substância específica da matéria,

mas uma permanência em circunstâncias transformadas, de forma que as leis da vida agem sobre ela da mesma forma que agem sobre um corpo saudável, mas os órgãos e funções do corpo doente estão com suas funções normais prejudicadas. Até mesmo em um corpo morto o funcionamento continua em atividade, mas essa atividade se torna destrutiva e desintegradora. Da mesma forma, o pecado não é uma substância independente, mas um distúrbio de todas as dádivas e energias dadas ao homem que faz com que elas funcionem em uma direção diferente, não no sentido de conduzir a Deus, mas no sentido de afastar-se dele. A razão, a vontade, o interesse, as emoções, as paixões, as habilidades psicológicas e físicas - tudo isso são armas da justiça, mas que foram, pela misteriosa ação do pecado, convertidos em armas da injustiça. A imagem de Deus que o homem recebeu na criação não era uma substância, mas era tão propriamente real em sua natureza que, ao perdê-la, o homem tornou-se completamente infeliz e deformado.

Se alguém pudesse ver o homem como ele é, interna e externamente, essa pessoa descobriria traços que se parecem mais com Satanás do que com Deus (Jo 8.44). A doença e a morte espiritual tomaram o lugar da saúde es-

piritual. Tanto a doença e a morte quanto a saúde, são elementos constituintes de seu ser. Quando ,a Escritura insiste sobre a natureza moral do pecado ela igualmente mantém a redentibilidade do homem.

0 pecado não pertence à essência do mundo, mas é algo que foi introduzido no mundo pelo homem. É por isso que ele pode ser novamente removido do como-do pelo poder da Graça de Deus que é mais forte que qualquer criatura.

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0 primeiro pecado que o homem cometeu não ficou sozinho por muito tempo. Ele não era um tipo de ação que, tendo sido praticada, poderia ser limpa novamente. Depois do pecado o homem não podia mais pensar no que tinha acontecido. No momen.o exato em que o homem cometeu o pecado em seu pensamento e imaginação, em seu desejo e em bua vontade, nesse momento uma tremenda mudança ocorreu nele. Isso se torna evidente pelo fato de que, imediatamente depois do pecado, Adão e Eva tentaram esconder-se de Deus e um do outro. Os olhos de ambos se abriram e eles ,perceberam que estavam nus (Gn U). Repentinamente, em um instante, eles estavam mantendo um relacionamento diferente do que

vinham mantendo até então. Eles se viram como nunca tinham se visto antes. Eles não se atreveram e não puderam, sem reservas, olhar um para o outro. Eles se sentiram culpados e impuros, e coseram folhas de figueira para ocultarem-se um ao outro. Eles compartilharam dessa situação e sentiram medo e a necessidade de se esconderem da face de Deus no meio da árvores do jardim.

As folhas de figueira serviram para esconder parcialmente sua vergonha e desgraça, mas eram inadequadas para aconfronração face a face com Deus, e por isso eles fugiram, fugiram para as densas profundezas; da folhagem do jardim. A vergonha e o temor tinham se apoderado deles, pois eles tinham perdido a imagem de Deus e sentiam-se culpados e impuros em Sua presença.

Essa é sempre a conseqüência do pecado. Com relação a Deus, com relação a nós mesmos e com relação aos demais seres humanos é perdida a espontaneidade espiritual e a liberdade interna, pois essas são realidades que somente a consciência isenta de culpa pode excitar em nosso coração. Mas a gravidade do primeiro pecado é exibida com mais vivacidade no fato de que sua influência se espalha do primeiro casal para toda a humanidade. 0 primeiro passo na direção errada foi tomado e todos os descenden-rés de Adão e Eva seguiram suas pegadas. A universalidade do pecado é um fato presente na consciência de todas as pessoas. A universalidade do pecado é um fato indisputadamente estabelecido tanto pelas evidências da experiência quanto pelas Sagradas Escrituras.

Não seria difícil obter testemunhos da universalidade do pecado em todos os tempos e lugares. A pessoa mais simples e a mais culta concordam com isso. Ninguém, eles diriam, nasce sem pecado. Todos possuem suas fraquezas e defeitos. 0 obscureci-mérito do entendimento toma seu lugar entre as doenças mortais do homem e através dele tomam seu lugar também, não apenas a inevitabilidade do erro, mas também o amor ao erro. Ninguém é livre em sua consciência. A consciência é a acusadora de todos nós (Jo 8.9). A carga mais pesada da humanidade é a carga da culpa. Esses são os sons que vêm aos nossos ouvidos por todos os lados na história da humanidade. Embora o princípio fundamental seguido pela nossa pessoa simples e pela pessoa culta seja a bondade natural do homem, eles serão

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levados, ao fim de sua investigação, a reconhecer que as sementes de todos os pecados e delitos estão escondidas no coração de todos os homens. Os filósofos têm registrado a queixa de que

todos os homens são maus por natureza.

As Sagradas Escrituras confirmam o julgamento que a humanidade tem declarado contra si mesma. Quando no terceiro capítulo de Gênesis é dado o registro da queda, a Escritura passa a traçar, nos capítulos seguintes, como o pecado se espalhou pela raça humana e aumentou e como ele alcançou um clímax tão elevado que o julgamento do dilúvio tornou-se uma necessidade. Com relação à geração que precedeu o dilúvio, é dito que a maldade do homem cresceu muito, e que to-dos os pensamentos do coração do homem eram continuamente maus e que toda carne tinha cor-rompido seu caminho na terra e era corrupta diante de Deus (Gr16.5,11,12). Mas o grande dilúvio não trouxe mudança ao coração do homem. Depois do dilúvio Deus diz que a nova humani-dade, representada em Noé e em sua família, continuava tendo maus desígnios desde a sua mo-cidade (Gri 8.21).

Todos os santos do Velho Testamento deram testemunho desse fato. Ninguém – esse é o lamento de Jó – da imundície pode tirar coisa pura (Já 14.4). Salomão, em sua oração de dedicação do templo, confessa que não

há homem que não peque (IRe 8.46). Nós lemos nos salmos 14 e 53 que quando o Senhor olha desde o céu para os filhos dos homens para ver se há alguém que entenda e busque a Deus, Ele nada vê além de sujeira e iniqüi-dade. Todos se desviaram e à uma se fizeram inúteis. Não há quem busque a Deus, nem sequer um. Ninguém pode permanecer diante da face de Deus, pois à Sua vista nenhum ser vivente é justificado (SI 143.2). Quem pode dizer: Purifiquei meu coração, limpo estou do meu pecado? (Pv 20.9). Em resumo, não há homem justo sobre a terra, que faça o bem e não peque (Ec 7.20).

Todas essas afirmações são de âmbito tão geral e tão universal, que não permitem qualquer exceção. Elas não procedem de lábios de ímpios e malvados, que geralmente não mencionam seus próprios pecados nem os de outras pessoas, mas procedem do coração de pessoas piedosas que aprenderam a conhecer a si mesmas como pecadores, na presença de Deus. E eles não fazem julgamento sobre pessoas que vivem em pecado manifesto como pagãos que não possuem conhecimento de Deus. Eles falam sobre si mesmos e sobre seu próprio povo.

A Escritura não nos descreve os santos como pessoas que viveram sobre a terra em perfeição de santidade. Ela os apresenta como pecadores

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que se fizeram culpados de muitas e severas transgressões. São precisamente os santos que, apesar de possuírem consciência da justiça, sentem-se profundamente culpados e comparecem diante de Deus com uma humilde confissãool. Mesmo quando eles se levantam para testemunhar contra o povo e convencê-lo de sua apostasia e de sua incredulidade elas acabam por incluir a si mesmas nesse povo como um dos que deram voz à seguinte confissão: Nós permanecemos em nossa vergonha e a desgraça nos cobre. Pecamos, com nossos pais; cometemos pecado, procedemos mal'24.

0 Novo Testamento também não permite a menor dúvida sobre esse estado pecaminoso de toda a raça humana. Toda a pregação do Evangelho é feita sobre essa pressuposição. Quando João prega a proximidade do reino dos céus ele exige que os homens se arrependam e sejam batizados, pois a circuncisão, os sacrifícios e a obediência à lei não são capazes de obter justiça para o povo de Israel apesar dele precisar entrar no reino de Deus. Por isso sa-

iam a ter com ele Jerusalém, toda a Judéia e toda a circunvizinhança do Jordão; e eram por e le batizados no rio Jordão, confessando os seus pecados (Mt 33,6). Cristo pregou essa mesma mensagem sobre o reino de Deus e Ele também testificou que somente a regeneração, a fé e o arrependi-mento podem abrir caminho para o remo121.

É verdade que em Mateus 9.12 e 13, Jesus diz que não são todos que têm necessidade de médico e que Ele veio chamar pecadores, e não justos, ao arrependimento. Mas o contexto indica que Jesus está pensando nos fariseus; ao falar sobre a justiça, pois eles se recusavam a sentar-se com publicanos e pecadores, exaltavam-se acima deles, alardeavam justiça, e não necessidade de seguir o amor de Jesus.

No verso 13, Jesus afirma expressamente que se os fariseus; entenderam que Deus, em Sua lei, não quer sacrifícios externos, mas piedade espiritual, eles teriam que chegar à conclusão de que, assim como os publicanos e pecadores, eram necessitados e impuros e precisavam arrepender-se em nome de Jesus. Ele mesmo limita Seu labor dirigindo-se às ovelhas perdidas da casa de Israel (Mt 15.24), mas depois de Suaressurreição Ele dá aos Seus discípulos a ordem de ir por todo o mundo e pregar o Evangelho a toda criatura, pois a salvação é para todo aquele que crê em Seu nome (Me 16.15,16).

De acordo com isso, o apóstolo Paulo começa sua carta aos Romanos, com um abrangente argumento de que todo o mundo é culpado diante de Deus e que, portanto, ninguém pode ser justificado pelas obras da lei (Rm 3.19,20). Não somente os pagãos precisam conhecer e glorificar a Deus (Rm 1.18-32), mas também os judeus, que se orgulham em suas vantagens, mas que no fundo se fazem culpados dos mesmos pecados (Rín 2.1-3.20) – todos cometeram pecados (Rm 3.9; 11.32; GI 3.22). E isso é para que toda boca se feche e somente a miser icórd ia de Deus se ja glorificada na salvação.

Além disso, a pecaminosidade universal é tão fundamental na pregação do Evangelho, no Novo Testamento, que a palavra mundo toma uma conotação negativa, por causa dela. 0 mundo e tudo o que nele há foi

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criado por Deus', mas o pecado provocou uma corrupção tão profunda nele que ele se tomou uma força antagônica a Deus. Ele não conhece o Verbo ao qual deve sua existên-ia (Jo 1.10). Todo o mundo renousa na maldade (lio 5.19) e está sob o governo de Satanás, que é o príncipe deste mundo (Jo 14.30; 16.11) e falece em toda a sua luxúria e necessidade (Tg 4.4). Por :sso quem ama o mundo prova que não possui o amor do Pai (ljo 115) e aquele que quer ser amigo do mundo torna-se um inimigo de Deus (Tg 4.4).

Esse terrível estado no quala humanidade e o mundo exis-=, naturalmente levanta a ques-qão de qual é a origem ou a causadisso. De onde veio não somenteo primeiro pecado, mas de ondeveio a pecaminosidade universal,de onde veio a culpa e a corrup-jão de toda a raça humana à qualmdos - exceto Cristo - estão su-eitos desde o nascimento? Há al-guma conexão entre o primeiro,2ecado cometido no paraíso e odilúvio de iniquidade que tem,nundado omundo? E,schouver,qual é a natureza dessa conexão?Há aqueles que, juntamente.ora Pelágio, negam totalmente aexistência dessa conexão. De acor-do com essas pessoas cada atonecaminoso é um ato que existenor si mesmo, que não provocaqualquer mudança na naturezaqumana e que por isso pode, nomomento seguinte, ser sucedido-or um ato excepcionalmente

bom. Depois que Adão transgrediu o mandamento do Senhor ele permaneceu, tanto em sua natureza interna quanto em sua disposição e vontade, exatamente o mesmo. Da mesma forma todos os filhos que descenderam desse primeiro casal nasceram totalmente isentos de culpa, assim como Adão foi originalmente criado.

Não há - de acordo com esse argumento - algo como uma natureza pecaminosa, ou disposição ou hábito pecaminoso, pois toda natureza foi criada por Deus e permanece sendo boa. Há somente atos pecaminosos e esses atos não formam uma série interminável, mas são tais que podem ser cons-tantemente intercalados com bons atos e podem ser

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praticados através de uma escolha perfeitamente livre da vontade. A única influência que passa dos atos ou ações pecaminosas para a pessoa que os pratica ou para outras que estiverem ao seu redor é o mal exemplo. Quando nós praticamos um ato pecaminoso nós somos incentivados a pratica-lo novamente e nossos circunstantes são incenti-vados a seguir nosso exemplo. A pecaminosidade universal da raça humana pode ser explicada dessa forma, ou seja, em termos de imitação. Não há algo como uma herança pecaminosa. Todos nascem inocentes, mas o mal exemplo que as pessoas geralmente dão tem uma influência negativa sobre os contemporâneos e seus descendentes. Incitados pelo costume e pelo hábito, todos seguem o mesmo curso pecaminoso, embora não seja impossível nem improvável que aqui e ali algumas pessoas se levantem contra a força do costume e trilhem seu próprio caminho, vivendo de forma santa sobre a terra.

Esse esforço para explicar a pecaminosidade universal da humanidade está, portanto, não somente em conflito com a Sagrada Escritura em muitos pontos, mas também é tão superficial e inadequado que raramente, pelo menos na teoria, pode ser apoiado por alguém. Ele é refutado por fatos de nossa própria experiência e de nossa própria vida. Todos nós sabemos, pela experiência, que um ato pecaminoso não é algo externo a nós, como uma peça de roupa suja que pode ser tirada. Pelo contrário, o ato pecaminoso está intimamente ligado à nossa natureza e provoca traços inerradicáveis nela. Depois de cada ato pecaminoso nós não somos mais como éramos antes dele. 0 pecado nos faz culpados e impuros; ele rouba a paz de nossa mente e de nosso coração, é seguido por pesar e remorso, confirma nossa in-clinação para o mal e deixa-nos em uma condição na qual, finalmente, nós não podemos oferecer resistência ao poder do pecado e sucumbimos a leves tentações.

Além disso, também contraria nossa experiência a afirmação de que o pecado é uma ameaça que vem exclusivamente de fora. De fato maus exemplos podem exercer uma influência poderosa. Podemos observar que as crianças que possuem pais maus crescem em um meio ambiente moral inadequado. E, por outro lado, as crianças que possuem pais piedosos e são inseridas em unia comunidade religiosa e moral recebem uma bênção que não pode ser suficientemente apreciada. Mas esse é apenas um lado da questão. Esse meio ambiente mau poderia não ter tido uma influência tão negativa sobre a criança se a própria criança não tivesse uma disposição para o mal em seu coração; da mesma forma, um bom meio ambiente não teria tantas dificuldades para influenciar a criança se essa criança tivesse em seu nascimento recebido um coração puro e suscetível a todo o bem.

0 meio ambiente é simplesmente a ocasião na qual o pecado se desenvolve em nós. As raizes do pecado são profundas e se escondem em nosso coração. Do coração do homem, disse Jesus, procedem os maus

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pensamentos, os adultérios, a fornicação, o assassinato, o roubo e todos os tipos de injustiça (Me 7.21). Essa afirmação é confirmada pela experiência de todos nós. Quase

sem o nosso desejo e conhecimento, pensamentos e imagens impuras vêm à nossa consciência. Em algumas ocasiões, quando nós encontramos adversidade e oposição, a maldade que está profundamente oculta acaba por revelar-se. Algumas vezes nós nos assustamos conosco mesmos e tenta-mos fugir de nós mesmos. Enganoso é o coração mais do que todas as coisas, e desesperadamente corrupto. Quem o conhecerá? (Jr 17.9).

Finalmente, se a imitação de maus exemplos fosse a única causa de pecados da humanidade, a absoluta universalidade do pecado não poderia ser explicada. De acordo com o pensamento de Pelágio, há aqui e ali pessoas que, presumivelmente, vivem sem pecar. Mas essas exceções apenas lançam mais luz sobre a insustentabilidade da posição de Pelágio, pois à exceção de Cristo, nunca houve uma pessoa sobre a terra que estivesse livre de todo e qualquer pecado.

Não é necessário que nós conheçamos todas as pessoas, uma a uma, para fazer nosso julgamento. A Escritura fala claramente sobre isso. Toda a história da humanidade pode provar isso. Além disso, o nosso próprio coração é a chave para o entendimento do coração de outras pessoas. Nós todos constituímos não apenas uma unidade natural, mas

também uma unidade moral. Há uma natureza humana que é comum a todos os homens e essa natureza é culpada e impura. A árvore má não veio de maus frutos, mas os maus frutos vêm da árvore má e devem ser considerados em função dela.

Há aqueles que têm reconhecido a justiça dessas considerações e por isso introduzido certas modificações no pensamento de Pelágio. Essas pessoas admitem que a absoluta universalidade do pecado não pode resultar meramente da imitação de maus exemplos, e que o mal moral não vem ao homem simplesmente pelo lado de fora, e eles se vêem impelidos a confessar que o pecado mora dentro do homem desde o momento de sua concepção e nascimento, e que a pessoa herda a natureza corrompida de seus pais. Mas eles continuam afirmando que essa corrupção moral, que está no homem através de sua natureza e não propriamente por causa do pecado, não tem a qualidade de culpa e portanto também não merece ser punida. A corrupção moral inata se toma pecado, culpa e culpabilidade somente quando o homem chega à maturidade, concorda com ela, aceita a responsabilidade por ela e através de sua livre vontade, transfor-ma-a em atos pecaminosos.

Esse ponto de vista semi pelagiano faz urna importante concessão, mas, quando submetido a reflexão, mostra-se inadequado, pois, o pecado é sempre uma ilegalidade, uma ilegitimidade, uma transgressão e um desvio da lei que Deus deu às Suas criaturas racionais e morais. Tal desvio da lei se manifesta nos atos realizados pelo homem, mas também encontra expressão em suas disposições e inclinações, ou seja, em sua natureza, desde sua concepção e nascimento. 0 semipelagianismo reconhece esse fato e fala de uma corrupção moral que antecede as escolhas e ações do homem. Mas quem leva esse en-sino a sério não pode escapar da conclusão de que a corrupção moral que

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agora faz parte da natureza humana também é pecado e culpa, e, portanto, merece punição. Há somente essas duas possibilidades. A natureza humana está em harmonia com a lei de Deus e é o que deveria ser. Nesse caso ela não é moralmente corrupta. Por outro lado, se a natureza humana é moralmente corrupta, ela não corresponde à lei de Deus e, portanto, é injustificável e consequentemente faz com que o homem seja culpado.

Pouca coisa pode ser dita contra essa argumentação, mas há muitos que tentam escapar dela descrevendo a corrupção moral que o homem traz dentro de si

pelo temo ambíguo luxúria. Naturalmente o uso dessa palavra não é errado em si mesmo. A Es-critura também faz uso dela. Mas, sob a influência da tendência ascética, que gradualmente se le-vanta na Igreja Cristã, a teologia tem feito uso dessa palavra em um sentido muito limitado. Ela tem pensado sobre esse termo somente com relação à paixão procriativa, que é própria do ho-mem, e desta forma tem levantado a idéia de que essa paixão, apesar de ter sido dada ao homem na criação, e, portanto, não ser pecaminosa em si mesma, constitui a ocasião para o pecado.

Foi Calvino quem combateu essa noção de luxúria. Ele não levantou objeções a que se chamasse de luxúria a corrupção moral com a qual o homem nasce, mas ele quis que a palavra fosse entendida propriamente. Uma distinção que ele achou necessária foi a distinção entre desejo e luxúria. Os desejos não são pecaminosos em si mesmos. Cada um deles foi dado ao homem em sua criação. Por ser o homem uma criatura limitada, finita e dependente, ele tem inumeráveis necessidades e, conseqüentemente, tem inumeráveis desejos. Quando ele está com fome, deseja comida; quando está com sede, descia água; quando está cansado, deseja descansar. 0 mesmo é verdade com relação ao seu espírito. A mente do homem

foi criada de tal forma que deseja a verdade, e a vontade do homem, graças à sua natureza criada por Deus, deseja o bem. 0 desejo de justiça é sempre bom, como nós lemos em Provérbios 11.28. Quando Salomão não desejou riquezas, mas sabedoria, isso foi bom aos olhos do Senhor (lRe 15-14). E quando o poeta do salmo 42 suspirou pelas correntes das águas, esse foi um desejo precioso.

Portanto os desejos não são Pecaminosos em si mesmos, mas eles, assim como a mente e a vontade, foram corrompidos pelo necado e por isso entram em conflito com a lei de Deus. Não os Jesejos estritamente naturais, mas os desejos danificados pelo necado e, portanto, desregulados, .me são pecaminosos.

E a isso, em segundo lugar, deve ser acrescentado o fato de _uc os pecados não são restritos .1 natureza física e sensual da natureza humana. Eles pertencem _.MIbém à sua natureza espiritual necaminosa. A paixão sexual não -i o único desejo natural; ela é apenas um dentre muitos. Essa paixão também não é pecaminosa em i mesma, pois ela foi dada ao ,ornem no momento de sua criação. E não foi somente a paixão -.ue foi corrompida pelo pecado, -ois todos os desejos, naturais e espirituais, tornaram-se selva-cens e

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indisciplinados, por causa

do pecado. Os bons desejos do homem foram transformados em maus desejos.

Se a corrupção moral do homem é nesse sentido chamada de desejo ou luxúria, seu caráter pecaminoso e sua culpa estão claramente corretos. Essa luxúria foi especialmente proibida por Deus através de um mandamento (Ex 20.17). E Paulo diz que ele não teria conhecido o pecado se a lei não tivesse dito que ele não deveria cobiçar (Rm 7.7).Quando Paulo tornou-se conhecedor de si mesmo e mediu não apenas os seus atos, mas também as suas inclinações pelo padrão da lei de Deus, tornou-se claro para ele que essas inclinações também eram corruptas e impuras, e que elas eram limitadas pela proibição. Para Paulo a lei de Deus é a única fonte de conhecimento do pecado. Ninguém consegue descobrir o que é o pecado pela sua imaginação, mas somente pela lei de Deus, que determina como e o que o homem deve ser diante de Deus em sua vida interna e em sua vida externa, no corpo e no espírito, em palavras e atos, em pensamentos e inclinações. Medida pelo critério da lei de Deus, não há dúvida de que a natureza humana é corrupta e que sua cobiça é pecaminosa. Não somente o que o homem pensa e faz é pecaminoso: ele é pecaminoso desde o mo-mento de sua concepção.

Além disso, seria uma posição psicologicamente insustentável dizer que o desejo em si não é pecaminoso, mas que ele se torna pecaminoso através da vontade. Abraçar essa posição seria aceitar o urazoável pensamento de que a vontade do homem permanece neutra e externa ao desejo, não é corrompida pelo pecado e, portanto, pode decidir se concorda ou não com o desejo. É verdade que, de acordo com a experiência, é perfeitamente possível que em muitos casos uma pessoa, com base em todos os tipos de consi-derações, como a moda, a respeitabilidade social, e coisas semelhantes pode conter seus impulsos pecaminosos através da razão e da vontade e evitar que esses impulsos se transformem em atos pecaminosos. No homem natural também há uma luta entre o impulso e a realização, entre o desejo e a consciência, entre a cobiça e a razão.

Mas essa luta, é diferente em princípio, da luta que acontece no homem regenerado entre o corpo e o espírito, entre o velho homem e o novo homem. Essa é uma luta externa contra a explosão da cobiça. Essa luta não invade os íntimos recônditos do coração, nem ataca o mal em sua raiz. Esse é um conflito que pode servir para restringir o mal e limitá-lo, mas não pode limpar internamente nem renovar o homem. 0 caráter pe

cammoso da cobiça não é mudado por causa dessa luta. Embora através da vontade e da razão o homem possa em alguns casos suprimir o desejo e a cobiça, tanto a razão quanto a vontade são frequentemente colocados a serviço da cobiça. A razão e a vontade não são opostas à cobiça em princípio, e pela sua natureza elas se comprazem nisso: em alimentá-la e fomentá-la, em justificá-la e vingá-la. A razão e a vontade não podem sequer impedir que a cobiça chegue ao ponto de roubar ao homem toda a sua independência e torná-lo um

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escravo de suas paixões. Os maus pensamentos e os maus desejos entram no coração, escurecem o entendimento e poluem a vontade. 0 coração é de tal forma dominado que pode enganar até mesmo a razão.

Todos os esforços para explicar a pecaminosidade universal do homem erram por procurar a sua causa na queda individual de cada pessoa. De acordo com o pelagianismo cada homem cai de forma independente dos demais. Essa queda acontece porque ele livremente escolhe seguir os maus exemplos dos outros. De acordo com o semi-pelagianismo cada homem cai por si mesmo e sozinho por causa de sua própria escolha de aplicar seu inerente,

porém não pecaminoso, desejo à -sua vontade, transformando-o em um ato pecaminoso. Tanto uma posição quanto a outra fazem iniustiça às realidades morais que estão presentes na consciência de todas as pessoas, e nenhuma das duas posições consegue explicar como a absoluta universalidade do pecado da raça humana pode ariginar-se milhões de vezes em milhões de decisões da vontade humana.

Contudo, esses esforços, em tempos recentes, por uma nova e diferente forma, encontraram numerosos simpatizantes. Primeiramente os simpatizantes dessas duas posições eram aqueles que mam na preexistência do homem. Porém, a influência budista tem dado nos últimos anos um gran-de ânimo a essa crença. A suposição de que os homens vivem eterâamente, ou pelo menos durante séculos antes de seu surgimento -ia terra, ou de uma outra forma - e essa é uma forma mais filosófica dessa teoria - sustentam que a vida sensual do homem sobre a :erra deve ser diferenciada de sua _orma de existência que é totalmente conceptível, embora não anssa ser vista.

À essa última idéia é então ,rescentado que a pessoa, em --ia real ou imaginária preexisencia, sente todos os seus deseas, cada um deles individual-iente e que como punição por

eles deve viver aqui sobre a terra nesse corpo material e grosseiro e assim deve preparar-se para outra vida, na qual ele novamente receberá de acordo com as suas obras. Há, assim, somente uma lei que governa toda a vida humana antes, durante e depois de sua vida sobre a terra e essa é a lei da recompensa: todos receberam, recebem e receberão o que suas obras merecem. Todos colhem o que plantam.

Essa idéia filosófica hindu énotável por essa razão: ela tacita-mente procede da pressuposiçãode que nessa vida terrena a que-da de cada pessoa individual-mente é inconcebível. Mas quan-

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to ao resto ela não dá uma expli-cação sobre a universalidade dopecado semelhante à que é dadapela teoria pelagiana. Ela sim-plesmente empurra a dificuldadepara trás ao vincular essa vidasobre a terra a uma vida preexis-tente, vida essa da qual ninguémpossui recordação e da qual nadaexiste, e que por isso é pura fan-tasia. Além disso, o ensino de quetodos serão recompensados deacordo com seu desempenho éuma doutrina dura para os po-bres e doentes, os miseráveis edestituídos. Não há compaixãonessa doutrina. Ela está em clarocontraste com os raios da Graçadivina dos quais a Escritura fala.Mas - e isso deve ser obser-vado especialmente na presente

conexão - essa filosofia hindu concorda em muitos pontos com a doutrina pelagiana. Ambas procuram a origem da universalidade do pecado na queda individual de cada pessoa. Ambos concordam em que a humanidade consiste de uma arbitrária agregação de almas que viveram eternamente ou pelo menos durante séculos próximas umas das outras, que não possuem relação umas com as outras, quanto à sua origem e essência e que cada uma delas deve buscar seu próprio destino. Cada uma delas sente somente por si mesma, recebe seu próprio e justo salário e tenta salvar a si mesma. A única coisa que une umas às outras é amiséria na qual todas elas existem, e, portanto, a piedade e a simpatia são as mais elevadas virtudes. Mas essa teoria tem sua implicação óbvia, ou seja, que aqueles que vivem uma vida afortunada na terra podem apelar à lei da recompensa, gloriar-se em suas virtudes e olhar com desdém para os desafortunados, que de acordo com essa lei também receberam o que lhes competia.

Nós teremos uma vista mais clara, dessas coisas, se apreciarmos a Escritura e lançarmos luz sobre o problema da universalidade do pecado humano. A Escri

tura não nos contenta com fantasias ou imaginações, mas reconhece e respeita os fatos estabelecidos pela consciência. A Escritura não projeta a fantasia de uma preexistência de almas antes de sua entrada na terra e nada sabe de uma queda que acontece, seja antes ou durante a vida na terra, em cada pessoa individualmente. Em lugar da representação indi-vidualista e atumista do budismo e do pelagianismo, a Escritura apresenta uma visão orgânica da humanidade.

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A humanidade não consiste de uma agregação de almas individuais que incidentalmente se uniram de todos os lados, em um dado lugar, e que, para melhor ou para pior, deve agora, de alguma forma, por causa de seus muitos contatos, viver juntos da melhor forma. A raça humana é uma uni-dade, ou melhor, um corpo, com muitos membros, uma árvore com muitos galhos, um reino com muitos cidadãos. A humanidade não se transformou nessa =idade através de alguma combinação externa. Ela é uma unidade desde o princípio e continuará sendo uma unidade, a despeito de todas as separações e cismas, pois ela é uma em sua origem e em sua natureza. Fisicamente a humanidade é uma porque procede do mesmo sangue. Jurídica e eticamente a humanidade é uma porque, sobre a base da unidade na-tural, ela foi colocada sob uma e a mesma lei divina, a lei da Aliança das obras.

De tudo isso a Sagrada Escritura nos ensina que a humanidade permanece sendo uma em sua queda. É assim que a Escritura apresenta a raça humana desde a primeira até a última página. Se há qualquer distinção entre os homens, em categoria, status, ofício, honra, talentos e coisas semelhantes, ou se Israel, em distinção às outras nações, foi escolhido para receber a herança do Senhor, então isso se deve somente à Graça de Deus. É somente essa Graça que faz distinções entre os homens (lCo 4.17). Mas em si mesmos todos os homens são semelhantes diante de Deus, pois todos eles são pecadores, compartilham da mesma culpa, mancharam a mesma pureza, sujeitam-se à mesma morte e carecem da mesma redenção. Deus incluiu-os todos sob a mesma desobediência para que usasse de misericórdia com todos (Rm 11.32). Ninguém tem o direito de ser arrogante e ninguém tem o direito de entregar-se ao desespero.

Que esse é o ponto de vista da Escritura sobre a raça humana é um fato que dispensa confirmação. Isso é evidente a partir de todo o que foi dito acima sobre a universalidade do pecado. Mas essa unidade orgânica da raça

humana com relação à lei e à moralidade recebe um especial e profundo tratamento do apóstolo Paulo.

Quando em sua carta aos Romanos ele afirma o fato de que todo o mundo é condenável à vista de Deus (Rrn 1.18-3.20) e quando ele explica como toda a justiça e perdão de pecados, toda reconciliação e toda vida foram realizadas por Cristo e colocadas à disposição por Ele aos que crêem (Rm 3.21-5.11), ele conclui no capítulo 5, versos de 12-21 (antes de descrever, no capítulo 6, os frutos morais da justiça pela fé), sumariando que nós devemos todo o conteúdo da salvação a Cristo e contrasta essa salvação em um contexto da história do mundo com toda a culpa e miséria que nós devemos a Adão.

Por um homem, ele diz, entrou o pecado no mundo, e junto com o pecado, a morte sobreveio a todos os homens. Pois esse pecado, que o

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primeiro homem cometeu, foi totalmente diferente, em caráter, de todos os outros pecados. Ele é chamado transgressão, é um tipo diferente de todos os outros pecados que os homens cometeram entre Adão e Moisés (Rrn 5.14), é uma ofensa (Rm 5.15 ss.), uma desobediência (Rm 5.19) e como tal ela firma um notável contraste com a absoluta obediência de Cristo (Rm 5.19).

Portanto, o pecado que

Adão cometeu não ficou restrito somente à sua pessoa. Ele continuou a operar em e através de toda a raça humana. Nós não lemos que por um homem entrou o pecado em uma pessoa, mas no mundo (Rm 5.12), e também a morte sobreveio a todos os homens por causa do pecado desse homem.

Esse é o pensamento de Paulo, e isso pode ser provado pelo fato de que ele deriva da transgressão de Adão, conforme Romanos 5.12 e lCorintios 15.22.

Nesse texto nós lemos que todos os homens morrem, não em si mesmos, nem em seus pais, mas em Adão. Isso significa que os homens estão sujeitos à morte não porque eles mesmos ou seus ancestrais tornaram-se pessoal-mente culpados, mas porque todos morreram em Adão. Foi determinado pelo pecado e pela morte de Adão que todos eles morreriam. 0 ponto não é que em Adão todos os homens se tomaram mortais, mas que em um sentido objetivo todos os homens já morreram em Adão. A sentença de morte já foi pronunciada, embora sua execução tenha sido determinada para mais tarde. Paulo não reconhece nenhuma outra morte além daquela que é resultante do pecado (Rtri 6.23). Se todos os homens morreram em Adão, então todos os homens também pecaram nele. Pela trans

gressão de Adão o pecado e a morte puderam entrar no mundo e atingir todos os homens porque essa transgressão teve um caráter especial. Essa foi a transgressão de uma lei específica e foi realizada não somente por Adão, mas por Adão como cabeça de toda a raça humana.Somente se o ensino de Paulo em Romanos 5.12-14 for entendido dessa forma será feita plena justiça ao que é dito nesses versículos sobre as conseqüências do pecado de Adão. Esse é todo o desenvolvimento de uma idéia simplesmente básica. Pela transgressão de um homem (Adão) muitos (seus descendentes) morreram (v.15). A culpa, (isto é, o julgamento ou sentença que Deus pronuncia como Juiz), por esse homem que pecou, torna-se um julgamento que abrange toda a raça humana (v.16). Pela ofensa desse homem a morte reinou no mundo sobre todos os homens (v.17). Pela ofensa de um, o julgamento veio sobre todos os homens para condenação (v.18). E, para um resumo geral, pela desobediência de um, os muitos (os descendentes de Adão) tornaram-se pecadores. Por causa dessa desobediência todos eles imediatamente se tornaram, diante de Deus, pessoas pecadoras (v.19).

0 selo é colocado sobre a interpretação de Paulo pela comparação que ele faz entre Adão e

Cristo. Em Romanos 5, Paulo não trata da origem do pecado de Adão, mas da completa salvação conquistada por Cristo. Para exibir essa salvação em toda a sua glória ele comparara e contrasta-a com o pecado e a morte que se espalharam por toda a raça humana a partir de Adão. Em outras palavras, Adão está servindo nesse contexto como exemplo e tipo daquele que

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haveria de vir (v.14).

Em Adão e através de sua :ransgressão a raça humana foi condenada, e em Jesus Cristo essa raça, por um veredicto judicial de Deus, foi declarada l ivre e ,ustificada. Por um homem o pecado entrou no mundo como a torça ou poder que subjugou todos os homens; da mesma forma uor um homem foi instaurado o governo da Graça divina sobre a humanidade. Por um homem a morte veio ao mundo como evidência do domínio do pecado; por um homem, a saber, Jesus Cristo, nosso Senhor, a Graça começou a reinar através da justiça que conduz à vida eterna. A comparação entre Adão e Cristo tem -muitas aplicações. Há somente uma única diferença: o pecado é forte e poderoso, mas a Graça é -muito superior em riquezas e abundância.

A teologia cristã compreende esses ensinos da Sagrada Es,riturana doutrina do pecado ori,,,mal. Alguém pode argumentar

contra essa doutrina, ou negá-la, ou ridicularizá-la. Mas não pode fazer parar o testemunho da Escritura nem desconsiderar os fatos sobre os quais essa doutrina se baseia. Toda a história do mondo é uma prova do fato de que a raça humana, tanto em seu conjunto, quanto em seus membros individuais, é culpada diante da face de Deus, tem uma natureza moralmente corrompida, e está sempre sujeita à decadência e à morte. 0 pecado original inclui, antes de tudo, o fato da culpa original. No primeiro homem os muitos que descenderam dele, através da desobediência desse primeiro homem, por um justo julgamento de Deus, foram constituídos pecadores (Rm 5.18).

Em segundo lugar, o pecado original inclui poluição original. Todos os homens são concebidos em pecado e nascem em injustiça (S151.7,8) e são maus desde a sua mocidade (Gn 63; SI 25.7), pois ninguém da imundície pode tirar coisa pura (Já 14.4; Jo 3.6). Essa mancha ou poluição não somente se espalha sobre toda a raça humana, mas também satura todo o ser individual. Ela ataca o coração, que é mais corrupto do que todas as coisas, doente até a morte e astuto (Ir 17.9), e é também a fonte dos caminhos da vida (Pv 4.23) e a fonte de toda injustiça (Me 7.21,22). Tendo o coração como centro, a poluição obscurece o

entendimento (Rm 1.21), inclina a vontade para o mal e torna-a fraca para fazer o bem (Jo 8.34; Rm 8.7), mancha a consciência (Tt 1.15) e transforma o corpo, com todos os seus membros, seus olhos e ouvidos, suas mãos e pés, sua boca e língua, em uma arma da injustiça (Rm 3.13-17; 6.13). Esse pecado é tal que todos, não por seus próprios "pecados de comissão", mas desde o momento de sua concepção, estão sujeitos à morte e à corrupção (Rrn 5.14). Todos os homens já morreram em Adão (1 Co 15.22).

Duro como esse pecado original pode agora parecer, ele repousa sobre a lei que governa toda a vida humana, cuja existência ninguém será bem sucedido ao negar, e sobre a qual ninguém registra qualquer objeção contan-to que trabalhe a seu favor.

Quando os pais adquirem propriedades em benefício dos filhos, esses filhos nunca se recusam a se apropriar dessa propriedade deixada para eles depois da morte de seus pais. Eles não se recusam a obter a herança, mes-mo que eles não a tenham merecido, mesmo que através de seu comportamento escandaloso eles tenham se mostrado indignos dela. Se

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não há filhos, os familiares mais remotos, tais como os filhos dos sobrinhos e os primos de segundo grau surgem sem qualquer escrúpulo de consciência

para compartilhar da herança que desconhecidos e negligenciados membros da família deixaram para trás. Isso diz respeito a bens materiais. Mas há bens espirituais, os valores de categoria e status, de honra e de bom nome, de ciência e de arte, que os filhos herdam de seus pais e que não ti-veram como merecer e dos quais eles, contudo, se apropriam sem protesto. Podemos dizer, portanto, que a lei da herança é geralmente operativa em famílias, gerações, povos, no estado e na sociedade, na ciência e na arte e em toda a raça humana. A nova geração vive sobre os bens que a geração precedente ajuntou; a posteridade, usufrui em todas as esferas da vida de trabalho que os seus ancestrais realizaram. E ninguém há que, se essa herança lhe for rendosa, registre um protesto contra esse gracioso arranjo de Deus.

Entretanto tudo muda quando essa mesma lei de herança trabalha em desvantagem de alguém. Quando os filhos são requisitados para dar suporte aos pais pobres, eles imediatamente cortam as relações com esses pais e apontam o caminho do fundo da igreja reservado para o atendimento a pessoas carentes. Quando parentes de sangue se sentem injuriados por algum dos membros da família que tenha se casa- do com alguém de uma categoria

inferior, ou tenha feito alguma coisa vergonhosa, eles imediatamente o deixam em apuros e mostram seu desfavor. Em alguma extensão, maior ou menor, essa tendência está presente em tudo que traz vantagens, mas é rejeitada quando corresponde a obrigações. Essa tendência é em si mesma uma poderosa prova de que entre as pessoas há uma comunidade de privilégios e de encargos. Há uma unidade, uma solidariedade, uma comunidade cuja existência e operação ninguém pode negar.

Nós, de fato, não sabemos exatamente como essa solidariedade opera e exerce influência ,obre as pessoas. As leis de herança, por exemplo, de acordo com as quais os bens materiais e espirituais dos pais são transferidos para os filhos, são ainda desconhecidas por nós. Nós não entendemos o mistério: como uma pessoa, nascida em uma comunidade e mantida por ela, chega a um status de independência e liberdade e então exerce sobre essa comunidade uma posição pode-osa e influente. Nós não pode mos apontar exatamente para o ponto em que a comunidade e a solidariedade cessam e a independência pessoal e a responsabilidade pessoal começam. Mas tudo isso não nega a existência da solidariedade e as pessoas, seja _= pequenas ou em grandes co-

munidades de inter-relacionamento, estão unidas umas às outras em relação de solidariedade. Há indivíduos, mas também há uma fronteira invisível que une famílias, gerações e povos em uma poderosa unidade. Há uma alma individual, mas há também, mesmo que seja em um sentido metafórico, uma

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"alma" popular ou nacional. Há características pessoais, mas há também características sociais peculiares a um dado círculo de pessoas. Há pecados particulares, individuais, mas há também pecados gerais e sociais. E dessa forma também há culpa individual e culpa comum ou social.

Essa solidariedade que se expressa em centenas de formas nos relacionamentos entre as pessoas, carrega em si e de forma bas-tante natural, a idéia de representação de muitos por poucos. Nós não podemos estar presentes em tudo, nem podemos fazer tudo pessoalmente. As pessoas estão espalhadas sobre toda a terra e vivem a grandes distâncias umas das outras. Elas não vivem todas ao mesmo tempo, mas sucedem-se umas às outras em sucessivas gerações. Além disso, elas não possuem as mesmas habilidades e a mesma sabedoria. Elas diferente infinitamente em talentos e habilidades. Portanto, a cada momento uns poucos são chamados para pensar e falar, decidir e agir no nome e em lugar de muitos. De fato, nenhuma comunidade é possível sem que haja diferenças de dons e vocações, representação e substituição. Não é possível haver corpo sem que haja numerosos membros diferenciados, e se todos esses membros não forem governados por uma cabeça que pensa por eles todos e que toma decisões em nome de todos eles. 0 pai tem esse mesmo tipo de regra para a família, o gerente para sua organização, o conselho de diretores para sua sociedade, o general para o seu exército, o congresso ou parlamento para o seu eleitorado e o rei para o seu reino. E os subordinados compartilham das consequências que se seguem na esteira de suas ações representativas.

Tudo isso, contudo, refere-se somente a uma pequena e li-mitada parcela da raça humana. Em tal parcela um homem pode, em alguma extensão, não apenas abençoar, mas também amaldiçoar muitos, mas a sua influência é limitada a uma esfera restrita. Até mesmo um homem de poder como Napoleão, apesar de sua jurisdição e influência serem muitos amplas, assume apenas um pequeno lugar na história do mundo. Mas a Escritura nos fala de duas pessoas que ocuparam uma posição inteiramente peculiares, que foram a cabeça de nada mais nada menos que da humanidade inteira, cuja força ou influência se estende não apenas a uma

nação ou família de nações, não apenas a um país ou a um conti-

nente, não somente a um século ou a uma combinação de séculos,

mas a toda a humanidade, aos confins da terra e a toda a etenti-

dade. Essas duas pessoas são Adão e Cristo. A primeira está no

começo, a segunda, no centro da história. A primeira é a cabeça da

velha humanidade e a segunda é a cabeça da nova humanidade.

Um é a origem do pecado e da morte no mundo e o outro é a fonte

da justiça e da vida.

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Em virtude das posições absolutamente únicas que essas duas

pessoas ocupam na cabeça da humanidade, eles são comparados

um ao outro. Existem analogias ou correspondências de lugar,

significado e influência entre eles em todas as formas de so-

lidariedade que são manifestas entre os homens em famílias, tri-

bos e nações. E todas essas analogias podem e devem servir como

exposição iluminadora da influência exercida por Adão e por Cristo

sobre toda a raça humana. Eles podem, em uma certa extensão,

nos reconciliar com a lei da herança, operando até mesmo em

nossa vida mais elevada, isto é, em nossa vida religiosa e moral,

visto que essa lei não se mantém isoladamente, mas é geralmente

relevante e é parte da existência

orgânica da humanidade. Ao mesmo tempo Adão e Cristo ocupam um lugar completamente único. Eles possuem um significado para a raça humana que ninguém, nenhum conquistador mundial, nenhum gênio de primeira categoria poderia ter alcançado. 0 le-gado pelo qual Adão nos envolveu em sua transgressão torna possível que nós sejamos reconciliados com Deus em Cristo.

Isto é, a mesma lei que nos condena no primeiro homem nos absolve no segundo. Se, sem o nosso conhecimento, nós não tivéssemos recebido a condenação em Adão, não teria sido possível para nós ter recebido a Graça em Cristo. Se nós não temos objeção ao receber vantagens que nós não merecemos mas que vêm a nós como uma dádiva ou como uma herança, nós não temos o direito de brigar por causa do legado que nos trás o mal. "...temos recebido o bem de Deus e não receberíamos também o mal?" (Já 2.10). Nós recebemos a culpa de Adão, mas damos graças a Cristo que nos amou tão excessivamente. Não olhamos para trás, para o paraíso, mas para a frente, para a cruz. Atrás dessa cruz está a coroa que nunca perderá o brilho.

0 pecado original no qual o homem nasceu e foi concebido

não é uma qualidade passiva e inativa, mas uma raiz da qual nas-cem todos os tipos de pecado, uma fonte profana da qual o pe-cado flui continuamente, uma força que está sempre impelindo o coração do homem na direção errada – para longe de Deus e da comunhão com ele ena direção da corrupção e da decadência.

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Devemos distinguir do pecado original os pecados chamados reais, que são as transgressões da lei divina que alguém comete pessoalmente, seja mais ou menos vontade deliberada. Todos os pecados possuem uma origem comum: eles se originam do coração do homem (Me 7.23). 0 coração humano é o mesmo para todas as pessoas em todos os lugares e em todas as épocas – ele não é trocado pela regeneração ou renovação. Uma natureza humana é comum a todos os descendentes de Adão, e ela é, em todos os homens, culpada e manchada. Não há razão para que uma pessoa se separe das outras e diga: "Aparte-se de mim; eu sou mais santo que você". 0 orgulho da auto justificação, o orgulho da nobreza, a auto-exaltação do saber são, do ponto de vista da natureza humana que todos compartilham, totalmente injustificáveis. Dos milhares de pecados que existem, ninguém há que possa dizer que não os conhece e que nada tem a ver com eles. As sementes de todas as

iniqüidades, até mesmo as mais abomináveis, estão no coração que carregamos no peito. Os transgressores e criminosos não são uma raça especial, são membros da sociedade da qual todos nós fazemos parte. Eles simplesmente exibem o que está em contínua agitação e turbulência no centro secreto de todo homem.

Visto como todos os pecados surgem da mesma raiz, todos eles na vida de cada pessoa individualmente, e dessa forma tam-bém na vida de uma família, geração, raça, povo, sociedade e de toda a humanidade, eles estão organicamente relacionados uns aos outros. Os pecados são inumeráveis em quantidade, e há algumas tentativas de classificá-los em grupos. Alguns falam em sete peca-dos capitais ou primários (orgulho, avareza, imoralidade, ira, intemperança, luxúria, inveja e preguiça). Outros os classificam de acordo com os instrumentos com os quais eles são cometidos, como pecados de pensamento, palavra e ação, ou como pecados veniais e espirituais. Algumas vezes eles são agrupados de acordo com os mandamentos que violam, tais como pecados contra a pri-meira ou segunda tábua, contra Deus ou contra o próximo e nós mesmos. Alguns os classificam de acordo com a forma pela qual eles se expressam, como pecados de omissão ou de comissão. E hádistinções de grau, como pecados secretos e públicos, humanos e di-abólicos.Os pecados podem diferir uns dos outros, mas eles nunca são entidades completamente arbitrárias, isoladas; eles estão sempre interrelacionados, um sempre influencia o outro. Assim como na doença os órgãos e membros do corpo continuam em operação, embora operem de uma forma inadequada, assim também o ca-ráter orgânico da vida do homem se expressa no pecado. Ele se expressa de tal forma que a vida se desenvolve em uma direção diametralmente contrária àquela que deveria tomar.0 pecado é um terreno escorregadio, e nós não podemos

atravessá-lo, e por isso, em um ponto arbitrariamente escolhido,

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voltamos e revertemos nosso curso. Um grande poeta falou profun-

da e lindamente do curso das más ações ao dizer que ele continua-

mente gera o mal. A Escritura lança luz sobre essa questão. Em

Tiago 1.14,15 ela explica como os atos pecaminosos do homem as-

sumem uma forma orgânica. Quando alguém é tentado ao mal, a

causa dessa tentação não está ern Deus, mas em sua pr~ própria co-

biça. Essa cobiça é a mãe do pecado. Essa cobiça, no entanto, não é

suficiente para levar o pecado adiante (isto é, o ato pecaminoso,

seja em atos, palavras ou pensa-

mentos). Ela deve primeiro conceber e gerar o pecado. Isso acon-tece quando a razão e a vontade estão unidas com a cobiça. Só en-tão, quando a cobiça foi fecunda-Lia pela vontade, ela gera o ato pecaminoso. E quando esse pecado se desenvolve e alcança sua maturidade, ela traz a morte.

Isso acontece em cada pecado particular, mas é dessa forma que os vários pecados estão relacionados uns aos outros. 0 mesmo apóstolo aponta para esse fato quando, no capítulo 2.10, ele diz que aquele que guarda toda a lei mas tropeça em um só ponto se toma culpado de todos. Isso acontece porque o mesmo Legislador que prescreveu o mandamento particular, prescreveu todos. Em um mandamento particular o transgressor ataca o Legislador de todos os outros e dessa forma subtrai toda autoridade e poder. Em virtude tanto de sua origem, quanto de sua natureza ou essência a lei é única. Ela é um corpo orgânico que, violado em um de seus membros, torna-se deformada por inteiro. Ela é uma corrente que quando tem um de seus elos partidos torna-se totalmente danificada. A pessoa que transgride um dos mandamentos coloca todos os outros mandamentos à parte, e assim vai de mal à pior. Ela se torna, como Jesus disse, uma serva ou escrava do pecado (to 8.34), ou, como diz Paulo, um

escravo vendido ao domínio do pecado, de tal forma que ela não é mais independente do pecado, mas uma escrava dele (Rrn 7.14).Essa vista orgânica é aplicável também aos pecados que se manifestam em áreas particulares da vida humana. Há pecados pes-soais e individuais, mas há também pecados comuns ou sociais, que são os pecados de famílias, nações, e assim por diante. Toda classe e status; na sociedade, toda vocação e profissão, todo ofício e ocupação traz consigo seus próprios perigos peculiares e seus próprios pecados peculiares. Os pecados dos habitantes da cidade diferem dos pecados dos habitantes do campo, os pecados dos fazendeiros são diferentes dos pecados dos mercadores, os peca-dos dos estudantes são diferentes dos pecados dos iletrados, os pe-cados dos ricos são diferentes dos pecados dos pobres e os pecados das crianças são diferentes dos pecados dos adultos. Isso nos mostra que todos os pecados em cada uma dessas esferas são

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interdependentes uns dos outros. As estatísticas confirmam essa afirmação quando nos mostram, que determinados erros são mais comuns em determinados grupos, estações, gerações, classes, e círculos, e ocorrem com uma regularidade rítmica. Como geral-mente acontece, nós só temos conhecimento de uma pequena porção dos pecados cometidos em nosso limitado grupo, e mesmo esse conhecimento parcial é superficial. Mas se nós pudéssemos penetrar na essência das aparências e traçar a raiz dos pecados no coração das pessoas, nós muito provavelmente chegaríamos à conclusão de que no pecado existe unidade, conjunto – em uma palavra, que no pecado existe um sistema.

A Escritura revela um mistério quando relaciona o pecado, tanto em sua origem quanto em seu desenvolvimento, ao reino de Satanás. Desde que Satanás tentou o homem e ocasionou sua queda (Jo 8.44), em um sentido moral ele se tornou o príncipe desse mundo e o deus desse século (Jo 16.11; 2Co 4.4). Apesar de ter sido condenado e lançado fora por Cristo (Jo 12.31; 16.11), e dessa forma operado principalmente no mundo pagão (At 26.18; Ef 2.2), ele continua a atacar a Igreja. Essa Igreja, portanto, deve com todo ardor engajar-se na luta contra ele (Ef 6.11). Enquanto isso ele organiza todas as suas forças para o seu final e decisivo ataque contra Cristo e Seu reino (Ap 12 ss.). Não é quando nós fixamos nossa atenção sobre um só pecado, ou sobre os pecados de uma só pessoa ou de um só povo, mas quando nós contemplamos todo o reino do pecado, na raça humana, partindo da luz lançada sobre esse

reino pela Escritura, que nós podemos realmente entender qual é a verdadeira natureza ou intenção do pecado. Em princípio ou es-sência, ele nada mais é do que inimizade contra Deus, e no mundo, ele possui nada menos que um domínio soberano. E todo pecado, até mesmo o menor deles, sendo uma transgressão da lei de Deus, serve ao seu grande objetivo em conexão com todo o seu sistema. A história do mundo não é a operação cega de um processo evolucionário, mas um terrível drama, uma luta espiritual com séculos de duração entre Cristo e o anticristo, entre Deus e Satanás.

Todavia, apesar dessa visão do pecado merecer grande consideração, nós não devemos sucumbir à tentação de manter uma vista unilateral nem obliterar a distinção existente entre os vários pecados. É verdade que os pecados, assim como as virtudes, são únicos e indivisíveis, e onde quer que se cometa um deles, todos os outros foram

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cometidos em princípio (Tg 2.10). Mas isso não significa que todos os pecados sejam iguais em tipo e em grau. Há diferença entre pecados de erro ou ignorância e pecados de presunção (Nua 15.27,30), entre os pecados cometidos contra a pri-meira e contra a segunda tábua

Mt 22.37,38), entre os pecados sensuais e espirituais, humanos e diabólicos, e assim por diante. Devido ao fato de todos os man-damentos da lei diferirem uns dos outros, e as transgressões desses mandamentos acontecerem em circunstâncias muito diferentes e com mais ou menos aprovação da vontade, nem todos os pecados são igualmente graves e nem todos eles merecem a mesma puni-ção. Os pecados cometidos contra a lei moral são mais graves do que aqueles cometidos contra a lei cerimonial, pois a obediência é melhor que o sacrifício (ISm 15.22). A pessoa que rouba para saciar a fome é menos culpável que a pessoa que rouba por cobi-ça (Pv 6.30). Há graduações de ira (Mt 5.22). E, embora lançar olhar impuro sobre uma mulher casada já seja adultério, a pessoa que não luta contra esse desejo, mas sucumbe a ele e comete adultério através de atos, é mais culpável.

Se nós fizermos injustiça a essa distinção entre os pecados nós estaremos entrando em conflito tanto com a Escritura quanto com a realidade. É verdade que em um sentido moral as pessoas nascem iguais. Desde o começo todas elas carregam a mesma cul-pa e estão sujas com a mesma mancha. Mas quando crescem elas passam a diferir umas das outras e essa diferença é grande. Os crentes às vezes caem em gra

ves; pecados, mas eles estão constantemente lutando contra o velho homem em sua natureza, e podem nessa terra alcançar um pe-queno começo da obediência perfeita. E entre aqueles que não co-nhecem Cristo ou não crêem nEle há os que explodem em iniqüida-des e que bebem pecados como água. Mas também há muitos en-tre eles que se destacam por uma vida cívica e eticamente respeitável e que podem servir como modelo de virtude até mesmo para os cristãos. De fato, as sementes do mal estão plantadas no coração do homem, e quanto mais nós nos conhecemos, mais nós reconhecemos a verdade de que pela natureza nós estamos prontos para odiar Deus e o nosso próximo, somos incapazes de qualquer bem e somos inclinados para o mal. Mas essa inclinação má não está presente em todas as pessoas na mesma extensão. Nem todos os que caminham pelo caminho largo andam igualmente rápido ou fazem o mesmo progresso.

A causa dessa diferença não está no homem, mas na restritiva Graça de Deus. 0 coração é o mesmo em todas as pessoas. Sempre e em todo lugar e em todas as pessoas os mesmos maus pensamento e maus desejos aparecem. Os pensamentos do coração são maus desde a mocidade. Se Deus abandonasse a humanidade ao sabor dos desejos de seu coração,

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a terra seria um inferno e nenhuma sociedade humana ou história humana seria possível. Mas exatamente como o fogo dentro da terra é mantido sob controle pela dura crosta terrestre, e somente em certas ocasiões e em certos lugares esse fogo explode em erupções vulcânicas, assim também os maus pensamentos e a cobiça do homem são suprimidos e restringidos por todos os lados pela vida da sociedade. Deus não deu ao homem liberdade total, mas colocou o animal que existe dentro dele em uma jaula para que Ele possa manter Seu conselho para a raça humana e possa executá-lo. Ele mantém em operação no homem um amor natural, uma carência de companhia, uma noção de religião e de moralidade, consciência e noção da lei, razão e vontade. E Ele in-sere o homem em uma família, uma comunidade, um estado, sendo que todas essas instituições são usadas para dar-lhe opinião pública, noções de decência, disposição para o trabalho, disciplina, punição e coisas semelhantes, restringindo-o e educando-o para uma vida civicamente respeitável.

Através de todas essas várias e poderosas influências o ho-

mem continua sendo incapaz de alcançar o bem. Quando o Cate-

cismo de Heidelberg diz que o homem é totalmente incapaz de

realizar qualquer bem e inclina-

do a todo o mal, por esse bem, c o m o o s A r t i g o s c o n t r a o s Remonstrantes, claramente afirmam, nós devemos entender bem salvílico.

De tal bem salvífico o homem, por sua natureza, é totalmente incapaz. Ele não pode praticar o bem que é eterno, espiritual, perfeito e puro aos olhos de Deus, que sonda os corações, que esteja em total harmonia tanto com o sentido espiritual quanto com o sentido literal da lei e que, portanto, esteja em harmonia com a promessa dessa lei, de que aquele que cumprisse a lei de forma perfeita seria merecedor da vida eterna. Mas isso não significa que o homem não esteja em posição de realizar o bem temporal pela Graça comum de Deus. Em sua vida pessoal ele pode através de sua razão e vontade restringir os maus pensamentos e cobiça e aplicar-se à virtude. Em sua vida comunitária e social ele pode ho-nestamente cumprir suas obrigações e promover a cultura, a ciên-cia e a arte. Em uma palavra, pelo uso de todos os meios que Deus coloca à disposição do homem natural ele é capaz de ter uma vida humana aqui na terra.

Mas todas essas forças, não são suficientes para renovar o homem

por dentro e geralmente são inadequadas até mesmo para manter

a injustiça dentro de certos limites. Nós aqui não estamos

falando somente do mundo crime, que é encontrado em toda a sociedade e que tem sua própria vida, mas também das conquistas, colonizações, guerras religiosas e raciais, revoluções populares, re-

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voltas nacionais e coisas semelhantes, que são terríveis expres-sões da injustiça presente no coração humano. 0 refinamento da cultura não subjuga a injustiça, apenas fomenta o acanhamento ao pratica-la. 0 aparentemente mais nobre dos atos prova, depois de um minucioso exame, ter sido motivado por todos os tipos de motivações pecaminosas de auto promoção e ambição. Quem quer que entenda algo da maldade e da sutileza do coração humano não ficará surpreso com o mal que existe no mundo. Pelo contrário, ficará maravilhado com o bem que ainda pode ser encontrado nele. "As misericórdias do Senhor são a causa de não sermos consu-midos, porque as Suas misericórdias não têm fim;..." (Lm 3.22). Há uma luta contínua entre o pecado do homem e a Graça de Deus, que faz com que os pensamentos e as ações do homem sejam úteis ao Seu conselho e ao Seu plano.

Essa Graça de Deus pode humilhar o homem, como aconte

ceu no caso de Acabe (IRe 21.29) e dos habitantes de Nínive (In 3.5 ss.). Mas o homem, pode por um longo tempo, opor-se a essa Gra-ça. Nesse caso a iníqua manifestação que na Escritura é chamada de endurecimento do coração está presente. Faraó é o típico exemplo disso. Há outros casos registrados na Escritura, mas a natureza e o progresso do endurecimento são mais claramente revelados em Faraó. Ele era um, príncipe poderoso, o líder de um grande reino, orgulhoso e relutante a curvar-se diante dos sinais do poder de Deus. Esses sinais seguiram-se uns aos outros, em uma ordem regu-lar e aumentavam cada vez mais em poder miraculoso e força destrutiva. Mas, na medida em que os sinais iam se sucedendo, Faraó ficava mais obstinado. Sua resistência em ceder e curvar-se diante desse poder miraculoso perdia cada vez mais o caráter de integridade. Finalmente, com seus olhos totalmente abertos para os fatos, caminhou a passos largos diretamente para o seu destino.

É uma tremenda batalha espiritual que nós, temos diante de nossos olhos, nesse drama de Faraó, um drama que pode ser visto tanto do lado de Deus quanto do lado do homem. É dito que o Senhor endureceu o coração de Fara ó127 , e é dito também que

Faraó endureceu seu coração' e que seu coração estava endureci-do". Há, nesse fenômeno de endurecimento, uma operação divina e uma operação humana. Há uma operação da Graça divina que cada vez mais vai se transformando em julgamento, e uma operação da resistência humana que cada vez mais assume o cará-ter de consciente e determinada inimizade contra Deus. E a Escri-tura descreve esse endurecimento, da mesma forma, em outros textos. Em Deuteronômio 2.30, Josué 11.20 e Isaías 63.17 o Senhor

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endurece; em outros textos" é o povo que endurece seu próprio coração. Há =a interação aqui, uma luta entre os dois que não pode ser separada da revelação da Graça de Deus. Essa interação está relacionada com a Graça geral, mas é particularmente a Graça especial que tem a característica de trazer julgamento, e um cisma e separação entre as pessoas (Jo 13; 3.19; 9.39). Cristo está destinado tanto para a ruína quanto para o levantamento de muitos (Lc 2.34). Ele é a rocha de salvação e é a rocha de escândalo e ofensa (Mt 21.44; Rm 9.32). 0 Evangelho é para a morte e para a vida (2 Co 2.16). Ele está escondido para os sábios e entendidos e revelado para os pequeninos

Mt 11.25).E em tudo isso o Conselho e o beneplácito de Deus e

também a lei religiosa e moral são evidentes.

0 pecado do endurecimento alcança sua expressão máxima na blasfêmia contra o Espírito Santo. Jesus fala sobre isso em um contexto de séria desavença com os fariseus. Quando Ele curou um homem que era cego e mudo e que estava possuído por um demônio, as multidões ficaram tão maravilhadas que clamaram: "Esse não é o Filho de Davi, o Messias, prometido por Deus aos nossos pais?".

Mas essa honra dada a Cristo levantou ódio e inimizade entre os fariseus e eles declararam o contrário, disseram que Cristo e x p u l s a v a d e m ô n i o s p o r Beelzebub, o príncipe dos demônios. Dessa forma eles assumiram uma posição diametralmente oposta a Cristo. Em vez de reconhecê-lo como o Filho de Deus, o Messias, que expulsa os demônios pelo Espírito de Deus e que estabelece o reino de Deus na terra, eles disseram que Cristo é um cúmplice de Satanás e que Sua obra é diabólica. Contra essa terrível blasfêmia Jesus preserva sua dignidade refutando a afirmação dos fariseus e mostrando sua insensatez e ao final de Sua répli-

ca Ele acrescenta essa grave admoestação: "todo pecado e blas-fêmia serão perdoados aos homens; mas a blasfêmia contra o Espírito não será perdoada. Se alguém proferir alguma palavra contra o Filho do homem, ser-lhe- a isso perdoado; mas, se alguém falar contra o Espírito Santo, não lhe será isso perdoado, nem neste mundo nem no porvir" (Mt 12.31,32).As próprias palavras e o contexto no qual elas aparecem claramente indicam que a blasfêmia contra o Espírito Santo não acontece no começo nem no meio do caminho do pecado, mas no fim. Ela não consiste de uma dúvida ou de incredulidade a respeito do que Deus revelou, nem de uma resistência ou de uma

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murmuração contra o Espírito Santo, pois esses pecados podem ser cometidos também pelos crentes. Mas a blasfêmia contra o Espírito Santo acontece somente quando Ele se apresenta à consciência humana com uma rica revelação de Deus e com uma poderosa iluminação espiritual que o homem fica completamente con-vencido em seu coração e em sua consciência da verdade da divina revelação"'.

0 pecado consiste em que essa pessoa, apesar de toda a re-

velação objetiva e da iluminação

subjetiva, a despeito do fato de que ela tem conhecido e provado a verdade como verdade, de forma consciente e com intento deliberado diz que a verdade é mentira e castiga Cristo como instru-mento de Satanás. Nesse pecado o humano se toma diabólico. Não, isso não consiste de dúvida e incredulidade, mas de um rompimento total da possibilidade de arrependimento (ljo 5.16). Esse pecado vai muito além da dúvida, da incredulidade e do arrependimento. Apesar do fato de que o Espírito Santo é reconhecido como sendo o Espírito do Pai e do Filho, Ele é, em um testemu-nho diabólico, blasfemado. Nesse ápice o pecado se torna tão descaradamente demoníaco que lança fora todo vestígio de vergonha, desfaz-se de toda vestimenta e se apresenta nu e cru, despreza to-das as aparentes razões, manifesta todo o seu prazer no mal e se levanta contra a vontade e a Graça de Deus. É, portanto, uma grave admoestação essa que Jesus dá em Seu ensino sobre a blasfêmia contra o Espírito Santo. Mas nós não devemos nos esquecer do conforto que está contido nesse ensino, pois se esse pecado é o único pecado imperdoável, até mesmo os maiores e os mais se-veros podem ser perdoados. Eles podem ser perdoados não através de exercícios penitenciais humanos, mas pelas riquezas da Graça de Deus.

Se o pecado pode ser perdoado e lavado somente através da Graça, a implicação é que em si e por si mesmo ele merece punição. A Escritura procede desse pré-requisito quando ameaça o pecado com a punição da morte antes mesmo do pecado entrar no mundo (Gri 2.17). Além disso ela constantemente proclama o julgamento de Deus contra o pecado, sendo que esse julgamento pode ser executado já nesta vida (Ex 20.5) ou no grande

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dia do julgamento (Rin 23-10). Deus é o justo e o Santo, que odeia toda maldad e132, que não inocenta o culpado"' e que visita a iniqüidade (Rm 1.18), amaldiçoa o ímpio (Dt 27.26; GI 3.10) e lhes revela Sua ira (Na 1.2; lTs 4.6), e que recompensará todos os homens conforme as suas obraS114. A consciência dá testemunho dessa realidade a todas as pessoas quando ela julga o indivíduo por causa de seus maus pensamentos, palavras e obras, e quando ela o persegue com um senso de culpa e remorso e de medo do julgamento. Entre todos os povos a administração da jus-tiça é baseada sobre essa idéia de culpabilidade do pecado.

0 coração humano entra em conflito com esse severo julgamento porque se sente condenado por ele. A ciência e a psicologia têm entrado a serviço do coração e têm tentado apresentar as mais atrativas razoes para se desvincular a obra e a recompensa, o mal e a punição. Assim como a arte deve ser praticada em consideração a si mesma, de acordo com essa representação o bem deve ser praticado em consideração a si mesmo, e não pela esperança de recompensa; e, da mesma forma, o mal deve ser evitado pelo que é, e não por causa da penalidade a ele vinculada. Não há algo como recompensa para a virtude e punição para o pecado. A única penalidade vinculada ao pecado é o resultado que sua própria natureza, em virtude da lei natural, inevitavelmente traz consigo. Assim como o homem virtuoso tem paz de coração, o pecador, com sua consciência de culpa, ansiedade e temor é atormentado, ou, se seus pecados são de bebedeira ou sensualidade, é visitado pela deficiência da saúde.

Em tempos modernos essa filosofia do coração pecaminoso e errante tem encontrado suporte na teoria da evolução, de acordo

com a qual o homem descende do animal e que deve, inevitável e determinadamente fazer e ser o que faz e é. 0 homem não é um ser livre, racional em moral; ele não é responsável pelos seus atos; seus atos não podem ser apresentados contra ele para manifestar sua culpa; ele simplesmente é o que tem que ser. Assim como há flores que exalam uma deliciosa fragrância e há flores que exalam mau cheiro, e assim como há animais domésticos e feras selva-gens, há também pessoas que são úteis à sociedade e pessoas que são prejudiciais a ela. De fato, a sociedade, no interesse de sua auto preservação, tem o direito de isolar esses indivíduos ameaçado-

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res e até de prendê-los, mas isso não é punição. Nenhum homem tem o direito de julgar outro homem e condená-lo. Os criminosos não são tão malvados quanto insanos. Eles sofrem de unia fra-queza herdada ou de um defeito realçado pela sociedade. Tais pes-soas, de acordo com essa teoria, não merecem a cadeia, mas um hospital ou um sanatório e podem exigir um tratamento humano, médico e educacional.

Para fazer justiça aos fatos deve ser dito que essa nova teoria criminal é uma reação a outro extremo que existiu no passado. Em nossos dias os criminosos são considerados como doentes mentais, e todos os outros tipos de de-

safortumados são considerados como criminosos, e as pessoas abrem seu entendimento para conceber danos que podem causar as mais terríveis dores em pessoas que são consideradas culpadas e merecedoras de punição. Mas até mesmo isso de alguma forma motiva essa nova teoria, que é exatamente o contrário da antiga. Ela faz injustiça à gravidade do pecado, rouba ao homem sua liberdade moral, rebaixa-o ao nível da máquina, audaciosamente desafia a natureza moral do homem com sua consciência e senso de culpa, e em princípio mina toda a base da autoridade, bem como a administração da lei.

A despeito de todos os esforços que a ciência pode em-preender para provar a inevitabilidade do pecado, qualquer pessoa cuja consciência ainda não tenha se tornado insensível sente-se obrigada a fazer obern e responsável quando faz o mal. Cer-tamente a esperança de recompensa não é a única e nem o mais importante motivo para se fazer o bem, e certamente o temor da punição pode não ser a única coisa que obrigue o homem a refrear o mal. Mas, mesmo que seja através desses motivos secundários, fazer o bem e refrear o mal, mesmo que seja em um sentido exter-no, é ainda uma situação melhor do que aquela em que, despre-zando essas motivações, a pessoa

vive de acordo com seus impulsos. Além disso, a virtude e a for-tuna e o pecado e a punição estão inseparavelmente conectados um ao outro não meramente em função de um reconhecimento exter-no, mas estão presentes também na consciência moral do indiví-duo. 0 verdadeiro e real amor ao bem, isto é, a plena comunhão com Deus, significa que o homem está inteiramente, tanto externa quanto internamente, inserido nessa comunhão. E o pecado, com a mesma amplitude, corrompe tanto a alma quanto o corpo do homem.

A punição que Deus impõe ao pecado é a morte (Gn 2.17), mas essa morte corporal e temporal não é a única punição do pecado. Ela é precedida e seguida por muitas outras penalidades.

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Logo que o homem pecou seus olhos foram abertos, ele se envergonhou de sua nudez e escondeu-se com medo da face de Deus (Gn 37,8). No homem a vergonha e o medo são inseparáveis do pecado porque ele imediatamente se sente culpado e amea-çado pelo seu pecado.A culpa, que está relacionada com a punição, e a mancha, que é a corrupção moral, são as consequências que se seguiram imediatamente à queda. Mas aessas penalidades naturais Deus acrescenta punições mais defini-das. A mulher é punida como mulher e também como mãe: Ela deve dar à luz com dores e o seu desejo deve ser sempre para o seu marido (Gn 3.16). E o homem é punido com um chamado específico para ele, a saber, o cultivo da terra com o trabalho de suas mãos (Gn 3.17-19). A morte não acontece logo depois da transgressão; ela é adiada por centenas de anos, pois Deus não abandona Seus intentos referentes à raça humana. Mas a vida que é agora concedida ao homem se torna uma vida de sofrimento, cheia de luta e fracasso, uma preparação para a morte, uma morte contínua. 0 homem não se tornou mortal por causa do pecado: ele começou a morrer. Ele morre constantemente desde o berço até a cova. Sua vida é apenas uma curta e inútil batalha contra a morte.

Esse fato se expressa nas muitas formas pelas quais são

apresentadas na Escritura a fragilidade, a transitoriedade e a vai-

dade da vida humana. 0 homem era pó, mesmo antes da queda. 0

seu corpo foi feito do pó da terra e assim, formado da terra, ele foi

feito alma vivente (ICo 15.45,47), Mas a vida do primeiro homem

foi planejada para ser espiritualizada e glorificada, governada pelo

Espírito na forma de obediência à lei divina. Agora, toda-

via, como resultado da transgressão, a lei está em ação: do pó fos-te formado, e ao pó voltarás (Gn 3.19).Em vez de se tornar espírito, o homem se tornou carne através do

pecado. Agora sua vida é sombra, um sonho, um intervalo, um

passo, uma onda do mar que se levanta, quebra-se e desaparece,

um raio de luz que brilha e se vai, uma flor que desabrocha e seca.

Ela de fato não merece o pleno e glorioso nome de vida. Ela é morte

constante no pecado (To 8.21,24), uma morte em delitos e pecados

(Ef 2.1).

Essa vida, vista pelo lado de dentro, é inteiramente corrupta, refugada e dissolvida pelo pecado. E pelo lado de fora ela é constantemente ameaçada por todos os lados. Imediatamente depois da transgressão o homem foi expulso da paraíso. Ele não teve o direito de voltar para lá, pois ele foi forçado a trabalhar para viver, e no paraíso o descanso e a paz são doces demais para o homem caído. Ele tinha que se esforçar para ganhar o seu pão

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com o suor de seu rosto e dessa forma cumprir seu chamado. 0 homem antes da queda estava em casa, no paraíso, mas o ho-mem pecador, sujeito à redenção, está na terra como um peregrino - numa terra que compartilha sua queda, que por sua causa foi amaldiçoada e que, juntamente

com ele, está sujeita à vaidade (Rm 8.20).Dessa forma o interno e o externo concordam: há harmonia entre o homem e seu meio ambiente. A terra na qual nós vivemos não é o céu, mas também não é o inferno. Ela está entre os dois e possui algo das qualidades de cada um. Nós não podemos apontar exatamente qual é a relação entre os pecados do homem e as calamidades da vida. 0 próprio Jesus nos previne para que não façamos isso. Ele diz que os galileus, cujo sangue Pilatos misturou aos seus sacrifícios não eram mais culpados que os outros (Lc 13.1-3), e o filho que nasceu cego não foi punido por causa do pecado de seus pais, mas foi afligido para que as obras de Deus se revelassem nele (jo 9.3). Nós, portanto, não podemos inferir do fato de que calamidades acontecem com uma pessoa, que sua culpa pessoal seja a causa disso. Os amigos de Jó argumentaram dessa forma e estavam errados.

Contudo, não há dúvida de que de acordo com o ensino de toda a Escritura existe uma conexão entre o homem caído, por um lado, e a terra caída, por outro lado. Eles foram criados em harmonia um com o outro, e juntos foram condenados à vaidade, ambos serão em princípio redimidos por Cristo e algum dia serão exaltados e glorificados. 0presente mundo não é o melhor possível, mas também não é o pior, mas é um bom mundo para o homem caído. Por si mesmo ele produz cardos e espinhos e compele o homem a trabalhar, preservá-lo da decadência e, no fundo de seu coração, alimentar a esperança inextinguível de que haverá algum dia um bem durável e uma felicidade eterna. Essa esperança faz com que ele viva, mesmo que seja uma vida de curta duração e cheia de tormentos.

Toda vida humana, por natureza está sujeita à decadência e à morte. Se uma pessoa for suficientemente forte ela poderá resistir a essa luta durante setenta ou oitenta anos, mas a vida geralmente se esvai mais cedo, na força dos anos, na flor da mocidade ou até mesmo antes do nascimento. A Escritura diz que essa morte é um julgamento de Deus, um pagamento ou punição pelo pecado, e essa verdade é sentida no coração de todas as pessoas. Até mesmo os assim chamados povos primitivos sabiam que em essência o homem é mortal, e que não é a imortalidade que deve ser provada, mas a morte que deve ser explicada. Contudo há muitos que em tempos antigos e em tempos mais recentes têm afirmado que a morte, não como algo externo que vem violentamente de fora, mas internamente, como um processo de dissolução, é um fenômenonatural e inevitável. Em si mesma, de acordo com esse ponto de vista, a morte não é terrível; ela simplesmente parece terrível ao

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homem porque o instinto da vida luta contra ela. Na medida em que a ciência progride a morte vai se tornando cada vez mais natural. Chegará o dia em que o homem morrerá tão pacificamente e tão calmamente como uma planta que se seca ou como um animal cujas forças se exauriram.

Mas, embora haja alguns que falem dessa forma, há outros que assumem uma posição totalmente diferente. Os homens da ciência não encontram meios para concordar sobre as causas e a na-tureza da morte. Contra esses que vêem na morte um fim natural e necessário da vida há muitos que encontram na morte um enigma maior que a vida, e que declaram que não há uma só razão pela qual seres vivos devam morrer. Eles chegam a dizer que, originalmen-te, o universo era um imensurável ser vivo, que a morte surgiu pos-teriormente, e que ainda há alguns animais que não morrem. E tal linguagem é facilmente absorvida em nossos dias por aqueles que crêem na preexistência das almas e que se referem à morte como uma mudança de forma que o homem sofre para evoluir para uma vida mais elevada – como a lagarta que se transforma em uma borboleta.

Essa diferença de pontos de isca é, em si mesma, uma evidência de que a ciência não pode penetrar na causa mais profunda e 'irial das coisas e não pode explicar a morte mais do que a vida. Tanto a morte quanto a vida continuam sendo um mistério para a ciência. No momento em que a ciência se arrisca a dar uma explicação ela corre o perigo de come-:cr injustiças tanto com relação à realidade da morte quanto com relação à realidade da vida. A ciencia diz que a vida era, originalmente, eterna, mas nesse caso ela deve responder à questão de como a morte surgiu; a ciência responde dizendo que a morte é apenas uma mudança de forma, 2orém, por outro lado ela tenta entender a morte como sendo na:iiral. Nesse caso a ciência não sabe o que fazer e a vida é forçada a negar a imortalidade. Em ambos os casos é apagada a linha entre a vida e a morte e entre o Pecado e a santidade.

A confissão de que a morte

UM pagamento pelo pecado, ,,pesar de não ser provada pela

_iência, também não é refutada por ela. Essa confissão simples-

mente se mantém fora dos limi:es da investigação científica e

além de seu alcance. Além disso essa confissão não necessita

de .onfirmação da ciência. Ela está ,aseada sobre o testemunho

divi:, o e é confirmada a todo instante

pelo medo da morte à cuja escravidão os homens estão sujeitos durante toda a sua vida (Hb 2.15). Outra coisa que pode ser dita como evidência

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dessa necessidade ou em defesa de sua legitimidade é que a morte não é natural. Ela não é natural porque não se encaixa na essência e no destino do homem, nem em sua criação à imagem de Deus, pois a comunhão com Deus é incompatível com a morte. Deus não é um Deus de mortos, mas de vivos (Mt 22.32). Por outro lado, a morte é natural ao homem caído, pois o pecado, quando consumado, gera a morte (Tg 1.15). Além disso, de acordo com a Sagrada Escritura, a morte não é uma aniquilação. A vida é prazer, bênção, superabundância, e a morte é miséria, pobreza, fome, sede de paz e falta de bênção. A morte é dissolução, separação daquilo que estava junto. 0 homem, criado à imagem de Deus, possui comunhão com Deus. Ele vive de forma plena, eterna e abençoada. Mas quando ele rompe essa comunhão ele morre. Sua vida passa a ser carente de prazer, paz e bênção, e ele se torna morto em seus pecados. Essa morte espiritual, essa separação entre Deus e o homem, continua no corpo e culmina na morte eterna, pois a existência humana não chega ao fim depois da separação entre a alma e o corpo. Aos homens está ordenado morrer uma só vez, vindo depois disto o juizo (H-b 9.27). E quem pode resistir a esse julgamento?

Capítulo 14

O PACTO DA GRAÇA

AA essa questão a humani- d a d e t e m , e m t o d o s o s

t empos e l uga res , dado a resposta de que o homem não

pode subsistir diante de Deus e nem morar em Sua presença. Nin-

guém há que possa dizer: "Purifiquei o meu coração, limpo estou

do meu pecado?" (Pv 20.9). Todos sentem-se culpados e sujos, e to-

dos reconhecem, se não nos outros, pelo menos em si mesmos,

que não são como deveriam ser. 0 pecador endurecido tem mo-

mentos nos quais é dominado pela agitação e pela falta de descanso,

e o sentimento de auto justiça continua, no mais íntimo de seu ser,

esperando que Deus passe por alto sua carência e aceite a inten-

ção de boas obras.

De fato há muitos que tentira banir esses pensamentos de sua mente orientar sua vida pelo pensamento de que não existeDeus, nem mandamento. Eles enganam a si mesmos dizendo que não há Deus (S114.1), que Ele não se importa com os pecados do homem e que até mesmo o mal é bom aos Seus olhos (M12.17), que Ele não se lembra do mal e nem pode vê-lo (S110.11; 94.7), ou ain-

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da que, sendo Amor perfeito, Deus não punirá o erro (S110.14). Mas onde quer que haja a exigência da lei moral e o ideal ético mau-tenha sua nobreza, mio pode haver dúvidas de que Deus punirá o mal. Deus é amor, mas essa gloriosa confissão só é feita com a devida propriedade quando o amor divino é entendido como sendo um amor santo e em perfeita harmonia com Sua justiça. Só há lugar para a Graça de Deus onde Sua justiça estiver plenamente estabelecida.

Toda a história do mundo nos dá um irrefutável testemunho

dessa justiça de Deus. Nós não podemos especular fora do mundo a revelação especial em Cristo que nos fala do amor de Deus, pois se nós fizermos isso essa revelação especial estará perdida para nós. E se nós, mesmo que seja só por um momento, deixarmos de lado a revelação de Deus em Cristo, não restará muito apoio para a crença de um Deus de amor. Se a história do mundo claramente nos ensina algo, é que Deus tem uma desavença com Suas criaturas. Há discordância, separação, conflito entre Deus e o mundo. Deus não concorda com o homem e o homem não concor-da com Deus. Cada um segue seu próprio caminho e cada um tem seus próprios pensamentos sobre as coisas. Os pensamentos de Deus não são os nossos pensamentos e os caminhos de Deus não são os nossos caminhos (Is 55.8).

Portanto, a história do mundo é também um julgamento do mundo. Não, não é, como o poeta disse, o julgamento do mundo, pois esse julgamento só acontecerá no último dia, e o testemunho de que esse julgamento não chegou é que a terra ainda está cheia das riquezas de Deus (SI 104.24). Ao mesmo tempo a história do mundo é um julgamento, uma história cheia de julgamentos, cheia de lutas e guerras, de sangue e de lágrimas, calamidades e aflições. Sobre isso estão escritas as pala-

vras que Moisés disse quando viu os israelitas sendo mortos diante

de seus olhos: "Somos consumidos pela Tua ira, e pelo Teu furor,

conturbados" (51 90.7).

Esse testemunho que a história dá sobre a justiça de Deus é confirmado pelo fato de que o homem tem sempre procurado por um paraíso perdido, por uma felicidade perene, e por uma re-denção de todo o mal que o oprime. Há em todos os homens uma necessidade e uma procura pela redenção. É exatamente essa ne-cessidade e essa busca que se expressam na religião. A palavra re-denção pode ser usada em um sentido tão amplo que inclua todo o labor do homem sobre a terra, pois quando o homem pelo trabalho de suas mãos tenta suprir as necessidades de sua vida, quando ele tenta defender-se de todos os tipos de forças antagônicas na natureza e entre os homens, e quando na ciência e na arte ele se esforça por dominar todo o mundo, tudo isso tem o propósito de livrá-lo do mal e promover o bem.

Contudo, o conceito de redenção nunca é aplicado a esse tipo de

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labor humano. Não importa quanto esforço possa fazer com que a

vida do homem seja mais prazerosa e mais rica, há na hu-

manidade um senso de que todo esse progresso e civilização não

satisfazem as mais profundas necessidades humanas e nem podem

resgata-lo de suas piores angústias. A redenção é um conceito reli-gioso e só é aplicado corretamente na esfera religiosa. A religião precedeu toda a cultura e civilização, e até hoje a religião continua i ocupar o seu próprio lugar ao lado da ciência, da arte e da tecnologia. Ela não pode ser suplantada, nem compensada, nem mesmo pelos mais importantes resultados do esforço humano. A religião supre uma única necessidade no homem, e sua tendência depois da queda é sempre resgata-lo de suas angústias.Portanto, a idéia de redenção está presente em todas as religiões.É verdade que às vezes as religiões são classificadas como

naturais, éticas e redentivas. Quando isso é feito a religião

redentiva é diferenciada das outras duas como um tipo especial

ale religião. Mas tal classificação é objeto de muita disputa. Em um

sentido geral a noção de redenção é própria a todas as religiões. To-

das as religiões de todos os povos Pretendem ser religiões reden-

tivas. Há diferenças sobre a natureza do mal do qual a redenção é

almejada, sobre a forma pela qual ela pode ser obtida, e sobre omais

elevado bem que o homem pode esforçar-se por alcançar. Contudo,

todas as religiões apontam para a redenção do mal e para a obtenJo

do mais elevado bem. Na reli-

gião a grande questão é sempre a seguinte: "0 que eu preciso fazer para ser salvo?". Precisamente o que não pode ser obtido pela cul-tura, nem pela civilização, nem mesmo pelo domínio sobre a terra, precisamente esse é o objeto da religião: felicidade perene, paz eterna, bênção perfeita. Na religião o homem está sempre relaci-onado com Deus. De fato, em sua condição pecaminosa o homem representa Deus de forma errada, de forma diferente daquilo que Ele é, procura-o com uma motivação errada e da forma errada e no lugar errado, mas procura por Deus como se, tateando, pudesse encontrá-lo (Aí 17.27).Essa necessidade de redenção, que é comum a toda a humanidade

e que procura satisfazer os adeptos das muitas auto denominadas

religiões dos povos é, em si mesma e para o Cristianismo, de

grande importância. Essa necessidade surge continuamente no co-

ração das pessoas e é mantida ali por Deus. Ela ilustra o fato de que

Deus não abandonou a raça humana aos seus próprios caminhos. Ela é

uma esperança inerradicável e capacita o homem em sua longa e

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atribulada jornada pelo mundo a manter-se vivo e trabalhando. E ela

serve como uma garantia e como =a profecia do fato de que essa

redenção existe, e que, enquanto os homens procuram em vão ela é

graciosamente dada por Deus.

Para entender corretamente e apreciar o melhor dessa grande redenção que a Graça de Deus preparou em Cristo, será útil parar por um momento ou dois, diante dos esforços empreendidos pelo homem, alheios à revelação especial, para livrar-se do mal e adquirir o mais elevado bem. Nós veremos a grande diferença e, ao mesmo tempo, a grande uniformidade que caracteriza todos esses esforços.

A grande diferença é o grande número de religiões que têm existido ao longo dos séculos. 0 número de religiões é maior do que o número de nações e de línguas. Assim como a terra produz cardos e espinhos, as religiões se desenvolvem a partir da natureza humana. Elas se desenvolvem. Elas são tão numerosas e tão dife-rentes que dificilmente podem ser vistas de forma panorâmica e não são suscetíveis e não satisfazem a qualquer classificação. Visto como a religião ocupa uma posição central, ela assume um caráter dife-rente de acordo com a maneira pela qual ela vê a relação entre Deus e o mundo, entre a natureza e o espírito, entre a liberdade e a necessidade, entre o destino e a culpa, entre a história e a cultura. De acordo com a forma pela qual o mal é visto, se ele é positivo ou negativo, uma identidade permanente ou um momento passageiro na história da civilização, na-

tural ou moral, sensitivo ou espiritual em seu caráter, a idéia de

redenção muda, e muda também a forma pela qual o homem deve

buscá-la e obtê-la.

Quando nós tentamos perscrutar a essência dessas religiões, todas

elas parecem possuir todos os tipos de traços de similaridade e de

relacionamento. Em primeiro lugar toda religião tenta com-

preender todas as idéias sobre Deus e sobre o mundo, sobre os

espíritos e sobre o homem, sobre a alma e sobre o corpo, e sobre a

origem, a essência e o propósito das coisas. Toda religião traz con-

sigo uma doutrina, uma visão do mundo e da vida, um dogma. Em

segundo lugar, nenhuma religião se satisfaz com a mera apreensão

racional dessas idéias, mas impele os homens, por meio dessas

idéias e com sua assistência, a penetrar através do mundo sobrena-

Page 237: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

tural de Deus e dos espíritos e a unir-se com eles. A religião nunca

é apenas um dogma ou uma doutrina. Ela envolve também a

afeição dos sentimentos, a atitude do coração e a bênção do favor

divino. Mas os homens, em todos os tempos e em todos os lugares,

sempre souberam que esse favor divino não lhes pertencia por na-

tureza. Por um lado os homens têm uma noção de que devem ter

esse favor se quiserem obter a fe^

licidade eterna e a salvação de suas almas; e, por outro lado, eles sentem o quanto necessitam desse favor e que por causa de seus pecados eles não possuem comunhão com Deus. Portanto, toda religião possui um terceiro elemento constituinte, ou seja, o es-forço para que, de uma forma ou outra o homem possa obter o fa-vor de Deus e ter comunhão com Ele para que, dessa forma, assegu-re sua existência no futuro. Toda religião possui um grupo de idéias relacionadas entre si, tenta fomentar afetos e sentimentos espe-cíficos e prescreve uma série de práticas.

Essas práticas religiosas são divididas em dois tipos. À primeira categoria pertencem aquelas práticas que podem ser entendidas sob o termo culto e que consistem principalmente de reuniões religiosas, sacrifícios, orações e cânticos. Mas a religião nunca se limita a essas práticas. Por ocupar a posição central na vida humana, ela preenche toda a vida e tenta alinhar-se com a vida. Toda religião apresenta idéias éticas e proclama uma lei moral segundo a qual a pessoa, em sua vida doméstica, pessoal, cívica e social deve conduzir-se. Em toda religiãohá idéias, sentimentos eações que são em parte relevantes para o culto e em parte relevantes para a vida moral, e que podem, portanto, ser chamados de cúlticos e

éticos.Não há uma só religião na qual qualquer desses elementos não esteja presente. Mas há uma grande diferença quanto ao conteúdo presente em cada um deles, sobre a relação que eles possuem uns com os outros e sobre a ênfase que cada um deles recebe. Paulo diz que a essência do paganismo dos gentios é que eles mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e répteis. De acordo com a extensão em que Deus é identificado com o universo, com a natureza, com o homem ou com os animais os conceitos religiosos vão mudando, e da mesma forma mudam as emoções e ações religiosas.

Três tipos principais devem ser distinguidos. Quando o divino é

identificado com as misteriosas forças da natureza a religião se

transforma numa grosseira superstição e magia. Os feiticeiros e os

magos servem para prover para o homem poder sobre as arbitra-

riedades dos seres divinos invisíveis. Se o divino for visto como um

Page 238: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

ser humano, a religião assume um caráter mais humano, mas ao mes-

mo tempo cai em um culto ritualista de formas ou em um

profundo moralismo. E quando o divino é concebido como a idéia,

a alma ou a substância do mundo, a religião retrata da aparência

das coisas ao misticismo do coração, e tenta alcançar comunhão com Deus por meio do ascetismo (abstinência) e êxtase (elevação espiritual). Nas várias religiões uma ou outra dessas três formas principais é expressa, mas nunca ao ponto de mutuamente se excluírem. A redenção é sempre vista como um entendimento ou conhecimento, como vontade e ação e como coração e emoções.

A filosofia dá suporte a tudo isso. A filosofia também se ocupa com a idéia de redenção e busca =a cosmovisão que satisfaça tatu-to a mente quanto os sentimentos. A filosofia nasce fora da religião, periodicamente insere elementos da religião em seu sistema e para muitos serve como um tipo de religião. A filosofia deduz um princípio para a conduta da vida a partir de sua própria cosmovisão, tenta abrir um caminho para a redenção através do conhecimento, dos atos morais e da vontade, e da experiência do coração. Sem a revelação especial a religião dos homens e a filosofia dos pensadores não possuem um correto conhecimento de Deus e, portanto, não possuem um correto conhecimento do homem e do mundo, e do pecado e da redenção. Ambos procuram por Deus como se, tateando, pudessem encontrá-lo, mas eles não podem.

Portanto a revelação especial é acrescentada à revelação ge-

ral. Nela Deus, de Sua própria parte, expõe Seus segredos e se faz

conhecido ao homem, e prepara para Si mesmo uma morada no

homem. Entre as religiões auto concebidas e a religião baseada na

revelação especial dada a Israel e em Cristo há, consequentemente,

uma diferença de princípio. Na primeira é sempre o homem que

tenta encontrar Deus, mas que possui uma idéia falsa dEle e que,

portanto, nunca consegue ter um discernimento verdadeiro sobre a

natureza do pecado e a forma de redenção; mas na segunda, na

religião da Sagrada Escritura, é sempre Deus quem procura o

homem, que se revela ao homem culpado e impuro, e que se faz

conhecido como verdadeiramente é em Sua G r a ç a e

c o m p a i x ã o . D a s profundezas do coração humano nasce uma

anseio: que Deus abra os céus e desça. No cristianismo os céus se

abrem e Deus desce à terra. Em outras religiões é o homem que

nós vemos agir, tentando, pelo aumento do conhecimento, cumprir

todos os tipos de regras, ou pela abstinência do mundo e o sigilo de

Page 239: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

sua própria vida interior, obter a redenção de todo o mal e a

comunhão com Deus. Na religião cristã a obra do homem é nada, e é

o próprio Deus que age, que intervém na história, abre o caminho

da redenção em Cristo e

pela Sua Graça traz o homem â redenção e faz com que ele viva nela. A revelação especial é a resposta que Deus dá em palavras e atos às questões que, por Sua própria direção, nascem no coração humano.

Imediatamente depois da queda Deus veio ao homem. 0 homem tinha pecado e estava coberto de vergonha e temor. Ele foge de seu Criador e se esconde por entre a densa folhagem do jar-dim. Mas Deus não se esquece dele. Ele não o abandona, mas tem misericórdia dele, vai ao seu encontro, fala com ele e chama-o de volta para ter comunhão com Ele (Gn 17-15).

E o que aconteceu imediata-mente depois da queda continuaacontecendo na história de gera-ção em geração. Nós vemos a mes-ma coisa acontecendo sempre. Emtoda a obra de redenção é Deus esomente Deus que se manifestacomo aquele que procura e cha-ma, como aquele que fala e age. ÉEle quem coloca Sete no lugar deAbel (Cn 4.25), que concede SuaGraça a Noé (Gn 6.8) e que o pre-serva do julgamento do dilúvio, Gn 6.12 ss.), que chama Abraão eque estabelece uma Aliança comele (GTT 12.1; 17.1), que, somentepela Sua Graça, escolhe o povo deIsrael como Seu herdeiro (Dt 4.20;que na plenitude dos tem-pos envia Seu Filho unigênito aomundo (G14.4) e que agora, nessa

dispensação de toda a raça humana reúne uma Igreja que Ele ele-geu para a vida eterna e que a preserva para a herança celestial (Ef 1.10; lPe 1.5). Assim como na obra da criação e na obra da providência, também na obra de redenção, e recriação, Deus é o Alfa e o Ôrnega, o princípio e o fim (Is 44.6; Ap 22.13). Ele não pode mesmo ser outra coisa, pois Ele é Deus. Dele, por Ele e para Ele são todas as coisas (Rm 11.36).Que Deus é o primeiro na obra de salvação é evidente pelo fato de que a revelação especial procede completamente dEle, mas também pelo fato de que toda a obra redentora depende de Seu conselho eterno. Nós afirmamos previamente que toda a criação e providência de Deus nasceram desse conselho. Mas na Escritura,

Page 240: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

nós somos informados em linguagem clara e em frases fortes que esse eterno e imutável conselho também é a base de toda a obra de redenção, de recriação.

Fala-se em vários pontos da Escritura sobre um conselho que precedeu todas as coisas (1s46.10), que faz todas as coisas (Ef 1.11), e cujo conteúdo é especialmente a obra de redenção (Lc 7.30; At 20.27). Esse conselho não é um conselho somente da mente de Deus, mas também de Seu poder e de Sua vontade (Ef 1.5,11), é irrevogável (Is 14.27; 26.10), imutável (Hb 6.17), e permanecerá

para sempre (SI 33.11; Pv 19.21). Outros nomes também são usados para designar esse conselho, e lançam mais luz sobre o assunto. Além de conselho, nós lemos sobre um beneplácito que Deus manifes-tou ao homem em Cristo (Le 2.14), e que se agrada em aceitá-los como Seus filhos (Ef 13,9). Nós lemos sobre um propósito que é cumprido pela obra de eleição (Rm 9.11; Ef 1.9), e que se mani-festa em Cristo Jesus (Ef 3.11), e que se realiza ao chamar aqueles que amam a Deus (Rm 8.28). Nós lemos sobre uma eleição e um preconhecirriento que nascem da Graça (Rm 11.5) e que têm Cristo como centro (Ef 1.4), pessoas específicas como seu objeto (Rm 8.29), e a salvação dessas pessoas como seu propósito (Ef 1.4). E, fi-nalmente, nós lemos sobre uma ordenação ou preordenação que através da proclamação da sabedoria de Deus (lCo 2.7) culmina na adoção de filhos por Jesus Cristo para Deus e na vida eterna"'.

Quando nós remimos todos esses dados das Sagradas Escrituras toma-se claro que o conselho de Deus tem especialmente três assuntos, como seu conteúdo.

0 primeiro é a eleição, que cumpre o gracioso propósito de

Deus segundo o qual Ele ordenou que aqueles que de antemão co-

nheceu em amor fossem feitos à

imagem de Cristo (Ruí 8.29). É possível também falar de uma

eleição de povos ou nações, pois nos dias do Velho Testamento so-

mente Israel dentre todas as nações foi escolhido para receber a

herança do Senhor; e no Novo Testamento um povo recebe o

Evangelho antes dos outros. Mas essa aceitação de nações não é

todo o ensino da Bíblia sobre a eleição. Dentro da humanidade, a

eleição se estende a nações, e, dentro das nações, ela se estende a

indivíduos. Um Esaú é rejeitado e um Jacó é aceito (Rm 9.13). E aque-

les a quem Deus conheceu, também chamou, e aos que chamou,

também justificou, e aos que justificou, também glorificou (Rrn

8.30).

Embora a eleição tenha indivíduos como seu objeto, esses in-

divíduos não são a base da eleição. Essa base é somente a Graça

Page 241: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

de Deus. 0 Senhor tem misericórdia de quem lhe apraz ter miseri-

córdia e se compadece de quem lhe apraz ter compaixão. Assim,

pois, não depende de quem quer ou de quem corre, mas de usar

Deus a Sua misericórdia (Rm 9.15,16). A fé também não é a base da

eleição, visto que ela é o resultado ou fruto da eleição. A fé é dom

de Deus (Ef 2.8), Os crentes são eleitos em Cristo desde antes da

fundação do mundo para que,

a seu tempo, cheguem à fé e pela fé sejam santos e inculpáveis di-

ante de Deus (Ef 1.4). Conseqüentemente todos os que crêem são

ordenados para a vida eterna (At 13.48). A vontade de Deus é o

firme fundamento de tudo o que existe e acontece, e da mesma

forma seu beneplácito é a mais profunda causa pela qual a

distinção no destino eterno do homem pode ser traçada.

Em segundo lugar está contida no conselho de redenção a

realização de toda a salvação que Deus quer conceder aos Seus

eleitos. No plano de redenção não somente as pessoas que

herdarão a salvação eterna são indicadas, mas o Mediador que

preparará essa salvação também é indicado. Nesse sentido Cristo

pode ser chamado de objeto da eleição de Deus. Naturalmente

Ele pode ser chamado dessa forma não no sentido de que Ele, como

os membros de Sua Igreja, seja escolhido de uma condição de

pecado e miséria para um estado de redenção e salvação. Mas Ele

pode ser chamado dessa forma em outro sentido, no sentido de que

Ele foi o Mediador da criação e também da recriação e realizou

Sua obra mediatória na eleição através de Sua paixão e morte. É

por isso que Ele é chamado de Servo do Se

nhor, o eleito de Deus (Is 42 ss.; Mt 12.18). Como Mediador Ele subordinou-se ao Pai e prestou-lhe obediência136 . Ele tem uma missão e uma obra para realizar que lhe foram dadas pelo Pai117. E como recompensa pelo cumprimento de Sua obra Ele recebeu a glória que tinha junto ao Pai antes da criação do mundo, a salva-ção de Seu povo e o mais elevado poder no céu e na terra"'.0 conselho da redenção, portanto, não vai a lugar algum sem o

Filho. Nós lemos que o eterno propósito de Deus foi estabelecido

em Cristo (ES 3.11), e que aqueles que chegam à fé foram

escolhidos em Cristo antes da fundação do mundo (Ef 1.4). Isso não

significa que Cristo seja a causa ou o fundamento da eleição, pois Ele

mesmo é o objeto da escolha do Pai no sentido já indicado acima,

Page 242: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

e não pode servir como o fundamento e causa da salvação mais do

que serve como fundamento da criação e da providência. Assim

como a criação e a providência, ambas consideradas como conse-

lho e como realidade, procedem do Pai através do Filho, e dessa

forma passam a existir, da mesma forma o plano de salvação é

feito pelo Pai e com o Filho. Em Seu conselho com o Pai o Filho se

dispõe a ser o Mediador da redenção

eo Cabeça de Sua Igreja. E disso nós podemos inferir que a eleição, embora tenha indivíduos como seu objeto, exclui toda a possibilidade de escolha arbitrária ou acidental, pois o propósito da eleição não é escolher algumas pessoas ao acaso, trazendo-as à salvação. Em Sua eleição Deus visa nada menos do que Cristo como Mediador e Cabeça de Sua Igreja, e molda a Igreja como Corpo de Cristo'". Em um sentido orgânico a humanidade é salva na Igreja, e no novo céu e na nova terra o mundo será restaurado.

Portanto, em terceiro lugar, a obra e aplicação da salvação consumada por Cristo também está incluída no conselho de Deus. 0 plano de redenção é estabelecido pelo Pai em Cristo, mas também é estabelecido na comunhão do Espírito. Certamente, assim como a criação e a providência vieram à existência tendo sua origem no Pai

eatravés do Filho e do Espírito, assim também a redenção ou recriação acontece somente através da atividade aplicativa do Espírito Santo. É o Espírito, prometidoeenviado por Cristo (Jo 16.7, At 2.4,17), que dá testemunho de Cristo e tudo recebe de Cristo (Jo 15.26; 16.13,14), e que agora aplica a regeneração à Igreja (Jo 3.3), que concede a fé (1 Co 12.3), a adoção (Rm 8.15), a renovação (Tt 3.5),

esela os crentes para o dia da redenção (Ef 1.13; 4.30). E tudo iŠsooEspírito pode fazer e trazer à existência porque, junto com o Pai e com o Filho, Ele é o único e verdadeiro Deus que vive e reina eternamente. 0 amor do Pai, a Graça do Filho e a comunhão do Espírito Santo são o fundamento do povo do Senhor no eterno e imutável conselho de Deus.

Esse conselho de Deus, conseqüentemente, é também maravilhosamente rico em conforto. Ele geralmente é apresentado de forma totalmente diferente – isto é, como causa de desencurajamento e desespero. É dito contra esse conselho que se tudo está determinado desde a eternidade, o homem é um mero brinquedo nas mãos dos caprichos divinos. Que vantagem leva uma pessoa que se esforça para ter uma vida virtuosa? Se ela for reprovada, rejeitada, ela

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continuará perdida, de qualquer forma. E – o argumento continua – qual é o prejuízo de uma pessoa que vive no pecado e cercada da mais gros-seira imoralidade? Se essa pessoa for escolhida ela será salva, de qualquer maneira. Tal conselho de Deus não deixa qualquer espaço para a liberdade e para a respon-

sabilidade do homem. Ele pode viver de acordo com os ditames de seu coração e pode pecar para que a Graça aumente cada vez mais.É verdade que a confissão do conselho de Deus tem sofrido muitos abusos, mas não tem sido por Agostinho e Calvino que esses abusos estão sendo praticados. Isso acontecia já no tempo de Jesus e dos apóstolos. É por isso que a Escritura diz que os escribas e fariseus que rejeitaram o desígnio de Deus tornaram aparente essa rejeição ao rejeitarem o batismo de João, e aquilo que seria o instrumento de sua salvação tornou-se o instrumento de sua condenação (Lc 7.30). 0 apóstolo Paulo chama de calúnia (blasfêmia) o ato de praticar o mal para receber o bem (Rm 3.8), e põe a mão na boca daqueles que pensam ter encontrado falta em Deus (Rm 9.19,20). 0 conselho de Deus não somente determina os resultados, mas também governa os meios. Ele inclui não apenas as consequências, mas também as causas. Portanto, o conselho de Deus não aniquila a natureza racional e moral do homem.

0 abuso que é feito dessa confissão é mais sério porque o conselho de Deus é revelado e proclamado na Sagrada Escritura, não para que nós neguemos a sua realidade e nos endureçamos con-tra ela, mas para que, sentindo

nossa culpa e nosso desespero, dependamos desse conselho de Deus com uma fé infantil, e em toda angústia e necessidade colo-quemos toda a confiança de nosso coração somente nele. Se a sal-vação em uma maior ou menor medida dependesse do homem, de sua fé e de suas boas obras, a salvação estaria eternamente perdida para ele. Mas o conselho de Deus nos ensina que a obra de salvação desde o começo até o fim é uma obra de Deus, ou seja, que essa é uma obra exclusivamente divina. A redenção, assim como a criação e a providência, é uma obra exclusiva de Deus. Ninguém foi conselheiro de Deus e nem lhe deu algo para que depois lhe fosse restituído (Rm 11.34,35). 0 Pai, o Filho e o Espírito Santo juntos planejaram e determinaram toda a obra de redenção, e Eles são os únicos que podem levá-la a efeito. 0 homem nada faz em sua redenção. Tudo é de Deus, por Deus e para Deus. Portanto, nossa alma pode descansar tranqüilamente no conselho de Deus. E da vontade de Deus, a vontade eterna, independente e imutável de Deus, que, representada na Igreja, a humanidade seja restaurada e salva.

Nós ficamos ainda mais convencidos do conforto proporcionado pela eleição quando nos lembramos que o conselho de Deus não é uma obra apenas de sua mente, mas também de Sua vontade, e não pertence

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somente ao reino da eternidade, mas a um poder que se manifesta já no pre-sente. Assim acontece com as excelências e perfeições de Deus: elas não são atributos passivos, mas poderes infinitos, plenos de vida e de ação. Cada um de Seus atributos é Seu Ser. Quando Deus é chamado de Justo e Santo, isso significa que Ele se revela como tal, e que Ele imprime essa justiça no mundo e na consciência dos homens e faz com que ela permaneça ali. Quando Ele é chamado de amor, isso não quer dizer simplesmente que Ele olha para nós em Cristo com aprovação, mas também que Ele manifesta esse amor e purifica nosso coração através do Espírito Santo. Quando Ele se apresenta como nosso Pai Ele quer dizer que nos regenera, que nos adota como Filhos e pelo Seu Espírito testifica com o nosso espírito que somos Seus filhos. Quando Ele se faz conhecido como o Deus Gracioso e Mise-ricordioso, Ele não apenas diz, mas também demonstra que de fato perdoa nossos pecados e nos conforta em todas as nossas aflições. Da mesma forma, quando a Escritura nos fala sobre o conselho de Deus, ela nos ensina que o próprio Deus executa e cumpre cabalmente esse conselho. 0 conselho de redenção é uma obra de Deus na eternidade, e como tal ele é também o princípio, a força

motora e a garantia de que a obra redentora será realizada no tempo. Portanto, independente do que pode acontecer com o mundo, com a raça humana ou mesmo conosco, o infinitamente sábio conselho de Deus permanecerá para sempre. Nada pode mudar o conselho de Deus: ele permanecerá de geração a geração. Não há motivo para desencorajamento ou desespero. Tudo certamente acontecerá como Deus, em Sua sabedoria e amor, determinou que aconteça. Sua vontade poderosa e graciosa é a garantia da redenção da raça humana e do resgate do mundo. Portanto, mesmo nas maiores aflições, nosso coração encontra paz no Senhor.

Logo que o homem caiu o conselho de redenção começou a atuar. Por Sua própria e livre iniciativa Deus desceu, procurou pelo homem e chamou-o de volta para Si. É verdade que nesse episódio houve um interrogatório, uma declaração de culpa e um anúncio da penalidade, mas a punição pronunciada sobre a serpente, sobre a mulher e sobre o homem é ao mesmo tempo uma bênção e um meio de preservação. Além disso, na promessa-mãe (Cn 3.14,15) o fato não é so-mente que a serpente será esmagada, e o poder do mal que

fez uso dela é condenado, mas também que desde então haveria inimizade entre a semente da mulher e a semente da serpente, e que é o próprio Deus quem coloca essa inimizade entre as duas sementes. 0 ápice dessa inimizade acontecerá quando a semente da serpente ferir o calcanhar da semente da mulher e a semente da mulher esmagar a cabeça da semente da serpente.

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Nessa promessa-mãe está contido nada menos que o anúncio e a instituição da Aliança da Graça. De fato a palavra Aliança (ou Pacto) não é mencionada nesse texto. Essa palavra só foi usada bem mais tarde, em conexão com Noé, Abraão e outros, quando o homem, em suas várias relações com a natureza, com os animais e pela experiência prática da vida veio a conhecer a necessidade e a utilidade de contratos e alianças. Contudo, em princípio e em essência estão presentes na promessa-mãe todos os elementos constituintes da Aliança da Graça. Por sua transgressão - e esse é o sentido - o homem foi afastado da obediência a Deus, perdeu a comunhão com Ele, tornou-se um aliado de Satanás e firmou uma Aliança com ele. E agora Deus, em Sua Graça, vem quebrar essa relação pactuai entre o homem e Satanás e colocar inimizade em vez de amizade entre um e outro. Por um ato todo poderoso de Sua von

tade graciosa Deus traz a semente da mulher, que a mesma tinha entregue a satanás, de volta para o Seu lado. A isso Ele acrescenta que a semente da mulher, apesar de sofrer muitos tipos de adversidade e opressão, obteria vitória total sobre a semente da serpente. Não há qualquer tipo de condição ou incerteza quanto a isso. 0 próprio Deus vem ao homem, Ele mesmo coloca a inimizade, Ele mesmo inicia a guerra, e Ele mesmo promete a vitória. 0 homem não tem qualquer participação em tudo isso, excetc, ouvir e aceitar tudo em obediente fé. Promessa e fé formam o conteúdo da Aliança da Graça que agora é firmada com o homem, que abre caminho da criatura caída até a casa do Pai, que dá acesso à salvação eterna.

Há grande diferença entre a forma pela qual o homem antes da queda desfrutava de sua vida eterna e a única forma pela qual, depois da queda, ele pode obter a vida eterna. Antes da queda a regra era: "Obedeça e será salvo". Através de uma perfeita obediência ao mandamento de Deus o homem receberia a vida eterna. 0 homem tinha um bom caminho para trilhar e, se permanecesse nesse caminho até o fim de sua jornada receberia a salvação celestial. E, de Sua parte, Deus não descumpriu a regra. Se houvesse um homem que pudesse cumprir perfeitamente a lei, ele receberia

a vida eterna como recompensa 141.

0 homem, contudo, fez com que a salvação se tornasse impossível para ele. Ele não pode cumprir a lei porque quebrou sua comunhão com Deus e não mais ama, porém, odeia a lei do Senhor (Rm 8.7). E agora a Aliança da Graça abre para ele um caminho diferente e mais seguro. De acordo com esse novo caminho o homem não precisa mais fazer algo para entrar na vida. Nesse novo caminho o homem imediatamente no começo recebe a vida eterna, aceita-a pela fé, e com essa fé começa a realizar boas obras. A ordem é invertida. Antes da queda a regra era: "Através das obras, para a vida eterna". Agora, depois da queda, na Aliança da Graça, a vida eterna vem primeiro, e as boas obras a acompanham, como fruto da fé. Antes o homem tinha que escalar a montanha até Deus para ter comunhão com Ele; agora, depois da queda, Deus desce ao homem e faz morada em seu coração. Antes da queda os dias de trabalho precediam o Sabbath; agora o Sabbath dá

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início à semana.

Esse caminho para o santuário celestial para o homem caído, um novo e vivo caminho, um caminho absolutamente certo (Hb 10.20), é devido somente à Graça de Deus e ao Seu conselho de re

denção. 0 conselho de redenção, estabelecido na eternidade e a Aliança da Graça, com a qual o homem foi abençoado imediatamente depois da queda, estão intimamente relacionados entre si. Estão intimamente tão relacionados que um fica de pé ou cai com o outro. É verdade que há muitos que pensam de forma diferente. Eles se firmam na Aliança da Graça e dessa posição negam e atacam o conselho de redenção. Em nome da pureza do Evangelho eles rejeitam a confissão da eleição. Agindo assim eles destroem a Aliança da Graça e convertem o Evangelho em lei.

Além disso, quando a Aliança da Graça é separada da eleição, ela deixa de ser uma Aliança da Graça e se transforma novamente na Aliança das Obras. A eleição significa que Deus concede ao homem, graciosa e livremente, a salvação a que o homem não possui direito e que nunca poderá alcançar por sua própria força. Mas se essa salvação não for inteiramente uma dádiva da Graça e de alguma forma depender da condu-ta do homem, então a Aliança da Graça é convertida em uma aliança das Obras, e o homem deve, então, satisfazer alguma condição para herdar a vida eterna. Ora, a Graça e as obras são dois pólos opostos um ao outro e são mutu-

amente excludentes. Se a salvação é pela Graça, ela não pode ser pelas obras, ou então a Graça não é mais Graça. E se a salvação é pela obras, ela não pode ser pela Graça, ou então as obras não são obras (Rm 11.6). A religião cristã tem essa característica exclusiva, pois ela é a religião da redenção e da Graça. Mas ela pode ser reconhecida e mantida como tal somente se a Graça for uma livre dádiva nascida exclusivamente no conselho de Deus. A eleição é a base e a garantia, o coração é o núcleo da Aliança da Graça. A eleição é tão indispensavelmente importante para um íntimo relacionamento com Deus que enfraquecer ou negar esse ensino não apenas rouba o verdadeiro discernimento do alcance e da aplicação da salvação, mas também rouba ao crente o seu único e verdadeiro conforto na prática de sua vida espiritual.

Uma luz mais intensa é lançada sobre esse relacionamento quando a Aliança da Graça é vista não apenas no contexto da eleição, mas de todo o conselho de redenção. A eleição não é todo o conselho de redenção, ela é apenas uma parte dele, a parte principal. Também está incluída nesse conselho a forma pela qual a eleição é realizada – isto é, todo o desenvolvimento e aplicação da redenção. Nós sabemos que a eleição foi planejada em Cristo, e que o conselho de Deus não é uma

obra realizada apenas pelo Pai, mas também pelo Filho e pelo Espírito. 0 conselho de redenção é uma obra divina realizada pela Trindade. Em outras palavras, o conselho de redenção, em si mesmo, é uma Aliança – uma

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Aliança na qual cada uma das três Pessoas da Trindade recebe Sua própria obra e Sua própria missão. A Aliança da Graça que é realizada no tempo e perpetuada de geração a geração nada mais é que a execução da aliança estabelecida desde a eternidade no Ser Eterno. Como no conselho de Deus, também na história cada uma das Pessoas da Trindade aparece. 0 Pai é a fonte, o Filho é o Realizador e o Espírito Santo é o Aplicador de nossa sal-vação. Portanto, todos imediatamente e na mesma medida fazem injustiça à obra do Pai, do Filho e do Espírito quando removem o fundamento da Aliança da Graça da eternidade para o tempo, fazendo com que a história perca sua firmeza na vontade soberana e graciosa de Deus.

Ao mesmo tempo, apesar do tempo não poder existir sem a eternidade, e apesar da história conservar seu íntimo relacionamento com o pensamento de Deus, os dois não são a mesma coisa. Há essa grande diferença entre eles, a saber, que na história

do tempo a idéia eterna de Deus é revelada e realizada. 0 conselho de redenção e a Aliança da Graça não devem e não podem ser separados, contudo eles diferem um do outro nesse ponto: a Aliança da Graça é a realização do conselho de redenção. 0 plano de redenção não é suficiente em si mesmo. Ele precisa ser executado. Como uma decisão, ele carrega toda a sua força na sua realização. Ele perderia seu caráter de conselho e de decisão se não fosse realizado e manifesto. Imediatamente depois da queda a Aliança da Graça tornou-se conhecida ao homem e foi aplicada a ele, e dessa forma ela continua na história de geração a geração. Aquilo que foi decidido, foi também aplicado e desenvolvido no curso dos séculos.

Quando nós prestamos a devida atenção a esse desenvolvimento da Aliança da Graça nós detectamos três características marcantes dessa Aliança.

Em primeiro lugar, a Aliança da Graça é, em todos os tempos e em todos os lugares, essencialmente única, embora se manifeste em diversas formas e em diferentes disperesações. Essencial e materialmente ela permanece sendo uma, seja antes, sob ou depois da lei. Ela é sempre uma Aliança da Graça. Ela recebe esse nome porque se origina na Graça de Deus, tem a Graça como seu conteúdo, e tem como seu propósito

a glorificação da Graça de Deus.

Assim como era ela no momento de sua primeira proclamação, que estabeleceu a inimizade, deu início à luta e prometeu a vitória, Deus fez com que ela fosse mantida desde a primeira até a última das dispensações; da Aliança da Graça, seja na dispensação de Noé, de Abraão, de Israel ou da Igreja do Novo Testamento. A promessa, a dádiva e a Graça continuam sendo o conteúdo da Aliança da Graça. No curso do tempo só o que foi mudado foi a intensificação das suas manifestações. Contudo, em princípio,

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a Aliança já estava contida na promessa-mãe. A única, promessa grande e abrangente da Aliança é: "Eu serei vosso Deus, e vós sereis meu povo". Essa promessa é abrangente e inclui tudo: toda a obra de execução e aplicação da salvação, Cristo e Seus benefícios, o Espírito Santo e todos os Seus dons. Uma linha de ouro sai de Gn 3.15 e vai até a bênção apostólica de 2Coríntios 13.13. No amor do Pai, na Graça do Filho e na comunhão do Espírito Santo está contida toda a salvação do pecador.

Cumpre-nos observar que essa promessa não é condicional, mas é positiva e certa. Deus não diz que Ele será o nosso Deus se nós fizermos alguma coisa. Mas Ele diz que porá inimizade, que será o nosso Deus e que em Cristo Ele concederá todas as coisas. A

Aliança da Graça só pode permanecer a mesma durante o curso dos séculos porque ela depende inteiramente de Deus e porque Deus é imutável e fiel. A Aliança das Obras que foi firmada com o homem antes da queda era violável e foi violada, pois ela dependia da obediência de um homem mutável. Mas a Aliança da Graça está fixada e estabelecida somente na compaixão de Deus. As pessoas podem tomar-se incrédulas, mas Deus não esquece Sua promessa. Ele não pode quebrar essa Aliança; Ele prometeu por si mesmo manter essa Aliança através de um livre e gracioso juramento: Seu nome, Sua honra e Sua reputação dependem disso. É em consideração a Si mesmo que Ele perdoa as transgressões de Seu povo e não se lembra mais de seus pecad OS141. Portanto, as montanhas podem se retirar, os outeiros podem se remover, mas a misericórdia de Deus não se apartará de nós (Is 54.10).

Apesar de ser imutável em sua essência, a Aliança da Graça varia em suas formas nas várias dispensações. No período anterior ao grande dilúvio uma separação tinha acontecido entre os descendentes de Sete e os descendentes de Caim, mas a promessa não ficou confinada a uma pessoa ou a uma raça. Ela foi difundida por

todos os homens. Uma separação formal ainda não tinha acontecido; a revelação geral e a revelação especial ainda andavam de mãos dadas. Mas quando sob essas circunstâncias a promessa correu o risco de se perder, o dilúvio tornou-se necessário e Noé levou a promessa consigo, na arca. A pro-messa, por um longo tempo, continuou a ser geral. Mas quando, depois do dilúvio, um novo perigo surgiu colocando em risco o progresso da Aliança da Graça, Deus decidiu não mais extirpar o homem, mas fez com que os po-vos seguissem seu próprio caminho e separou Abraão para ser o portador da promessa. A Aliança da Graça, portanto, encontrou sua realização na família dos patriarcas. Essas famílias foram separadas das nações pela circuncisão como um selo de justiça, e pela fé como um sinal da circuncisão do coração.

No Sinai a Aliança da Graça foi estabelecida com Israel como a descendência de Abraão. Mas, como Israel nessa época já era uma nação e devia viver diante de Deus como uma nação, a Aliança da Graça assume um caráter nacional. Ela passa a fazer uso da lei, não somente da lei moral, mas também da lei cerimonial e da lei cívica, de forma que o povo, pela lei, fosse conduzido a Cristo. A

promessa era mais antiga que a lei, e a lei não veio para substituir a

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promessa, mas para desenvolvê-la e prepará-la para o seu cumprimento na plenitude dos tempos. Em Cristo a promessa alcançou seu cumprimento, a sombra alcançou seu objeto, a letra alcançou o espírito, e a servidão alcançou a liberdade. Dessa forma a promessa se libertou de todas as fronteiras nacionais e externas, e, como no começo, espalhou-se por toda a raça humana.

Apesar dessa variedade de formas, a Aliança da Graça sempre teve o mesmo conteúdo. Ela é sempre o mesmo Evangelho (Rm 1.2; GI 3.8), o mesmo Cristo (Jo 14.6; At 4.12), a mesma fé (At 15.11; Rm 4.11), e sempre confere os mesmos benefícios de perdão e vida eterna (At 10.43; Rm 4.3). A luz pela qual os crentes iluminam seu caminho é diferente, mas seu caminho é sempre o mesmo.

A segunda peculiaridade da Aliança da Graça é que em todas as suas dispensações ela possui um caráter orgânico.

A eleição fixa atenção sobre indivíduos que foram de antemão conhecidos por Deus e no tempo foram chamados, justificados e glorificados, mas não indica, por si mesma, a relação entre essas pessoas. Contudo a Escritura nos diz que a eleição acontece em Cristo (Ef 1.4; 3.11), e, portanto, foi executada de tal forma que Cristo

pudesse ser o Cabeça de Sua Igreja e a Igreja pudesse ser o Corpo de Cristo. Dessa forma os eleitos não são indivíduos isolados, eles são um em Cristo. Assim como nos dias do Velho Testamento o povo de Israel era o povo santo de Deus, assim também a Igreja do Novo Testamento é a geração escolhida de Deus, um sacerdócio real, uma nação santa, um povo de propriedade exclusiva de Deus (lPe 2.9). Cristo é o Noivo e a Igreja é a noiva; Ele é a videira, nós somos os ramos, Ele é a pedra angular e nós somos pedras vivas do edifício de Deus; Ele é o Rei e nós somos os súditos. Essa é a união que existe entre Cristo e Sua Igreja. Paulo diz: "Assim como o corpo é um e tem muitos membros, e todos os membros, sendo muitos, constituem um só corpo, assim também com respeito a Cristo" (lCo 12.12). Há uma comunhão, portanto, esforcem-se diligentemente por preservar a unidade do Espírito no vínculo da paz; há somente um corpo e um Espírito, como também fostes chamados em uma só esperança da vossa vocação; há um só Senhor, uma só fé, um só batismo; um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, age por meio de todos e está em todos (Ef 43-6).

Uma eleição desse tipo não pode ser um ato acidental ou arbitrário. Se ela é governada pelo propósito de constituir Cristo

como Cabeça e a Igreja como corpo, então ela tem um caráter orgânico e inclui a idéia de uma Aliança.

Mas no testemunho de que a eleição foi realizada em Cristo, algo mais é indicado. A =idade orgânica da raça humana sob uma cabeça se torna aparente pela primeira vez não em Cristo, mas em Adão. Paulo expressamente aponta Adão como exemplo daquele que haveria de vir (Rui 5.14) e chama Cristo de último Adão (lCo 15.45). A Aliança da Graça parece possuir as idéias e traços básicos da Aliança das Obras; a Aliança da Graça não é a aniquilação da Aliança das Obras, mas o seu cumprimento, assim

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como a fé não anula a lei, pelo contrário, confirma-a (Ruí 3.21). Por um lado, como foi indicado acima, a Aliança das Obras e a aliança da Graça possuem seu terreno muito bem demarcado e devem ser diferenciadas uma da outra. Por outro lado elas estão intimamente relacionadas. A grande diferença consiste nisso: que Adão perdeu seu lugar como cabeça da raça humana e foi suplantado por Cristo. Cristo, contudo, cumpriu não somente aquilo que o primeiro homem fez de errado, mas também aquilo que ele deveria ter feito e não fez. Cristo satisfez por nós as exigências feitas na lei moral, e Ele agora reúne em uma unidade toda a Sua Igreja na forma de uma Im

manidade renovada sujeita a Si m e s m o c o m o C a b e ç a . N a dispensação da plenitude dos tempos Deus reúne tudo novamente em Cristo – todas as coisas no céu e sobre a terra (Ef 1.10).

Tal reunião só pode acontecer de uma forma orgânica. Se a Aliança da Graça éapresentada de forma orgânica em Cristo, então ela deve ser organicamente estabelecida e executada. Nós observamos que na história a Aliança nunca é feita de forma abstrata, mas sempre de forma objetiva, com um homem e com sua família ou descendência, com Adão, Noé, Abraão, Israel, e com a Igreja e sua semente. A promessa num-ca se refere a uma só pessoa, mas a =a pessoa e a toda a sua família. Deus não realiza a aliança da Graça "pescando" algumas pessoas dentre toda a humanidade e ao acaso, reunindo essas pessoas em algum tipo de quebra-cabeça. Ele leva sua Aliança para a humanidade, faz com que ela se torne uma parte do mundo e cuida para que, no mundo, ela seja preservada do mal. Como Redentor e Recriador, Deus segue a mesma linha seguida como Criador, Sustentador e Regente de todas as coisas. A Graça é mais elevada que a natureza, e nunca se junta à natureza nem a destrói, mas restaura-a. A Graça não é um legado transferido de pai para filho, mas corre pelo mesmo leito que tem

sido cavado nos relacionamentos naturais da raça humana. A Aliança da Graça não caminha ao acaso, mas se perpetua, histórica e organicamente, em famílias, gerações e nações.

Uma terceira e última característica da Aliança da Graça caminha lado a lado com a segunda, isto é, realiza-se de tal forma que honre completamente a natureza moral e racional do homem. Ela está baseada no conselho de Deus e nada pode ser subtraído desse fato. Por trás da Aliança da Graça está a soberana e onipotente vontade de Deus, que é penetrada pela energia divina e, portanto, garante o triunfo do reino de Deus sobre todo o poder do pecado.

Mas essa vontade não é uma necessidade, um destino, que se impõe sobre o homem, mas a vontade do Criador do céu e da terra, que não pode repudiar Sua própria obra de criação e de providência e que não pode ameaçar o ser humano que Ele mesmo criou. Além disso, essa vontade é a vontade misericordiosa do Pai, que nunca força as coisas de forma brutal, mas que sempre vence nossa resistência pelo poder espiritual do amor. A vontade de Deus não é uma força cega, irracional: é urna vontade sábia, graciosa, amorosa, e ao mesmo tempo livre e onipotente. Portanto, Deus trabalha em conflito com nosso enteri

dimento obscurecido e nossa vontade pecaminosa, de modo que Paulo

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pode dizer sobre o Evangelho que ele não é segundo o homem, não corresponde aos tolos discernimentos e ao desejo errante do homem caído (G11.11). Mas sim da forma que a vontade de Deus deve agir, precisamente porque Ele quer nos livrar de todo erro e pecado e restaurar nossa natureza moral e racional.

Isso acontece pelo fato de que a Aliança da Graça, que realmente não faz exigências e não repousa sobre certas condições, contudo, vem até nós na forma de um mandamento, admoestando-nos à fé e ao arrependimento (Me 1.15). Considerada em si mesma, a Aliança da Graça é pura Graça, e, portanto, exclui todas as obras. Ela dá o que exige e preenche o que prescreve. 0 Evangelho é boas novas, não exige, mas promete, não culpa, mas dá. Mas para que, como promessa e dádiva ele possa ser realizado em nós, ele assume o caráter de admoestação moral de acordo com nossa natu-reza. Ele não quer nos forçar, mas quer que nós, livremente, aceitemos por fé, o que Deus quer nos dar. A vontade de Deus se realiza através de nossa razão e de nossa vontade. É por isso que se diz que uma pessoa, recebida por Deus pela Graça, crê e se converte do pecado para Deus.

Visto como a Aliança da

Graça entra na raça humana de forma histórica e orgânica, ela não pode se apresentar aqui, na terra, de forma que corresponda plenamente à sua essência. Há muitas pessoas que estão entre os verdadeiros crentes e se opõem diametralmente a uma vida harmoniosa com a exigência da Aliança: "Anda na minha presença e sê perfeito; Sede santos como eu sou santo". Também há pessoas que ingressam na Aliança da Graça, como se manifesta ela diante dos nossos olhos e que, contudo, com relação à sua incredulidade e coração duro, são totalmente desprovidos dos benefícios da Aliança. Nos dias do Velho Testamento, nem todos os que eram de Israel eram, de fato, israelitas (Rm 9.6), pois não são os filhos da carne, mas os filhos da promessa que são considerados como descendentes de Abraão (Rm 9.8; 2.29). E na igreja do Novo Testamento há joio entre o trigo, videiras bravas na vinha e utensílios de barro e de ouro'. Há pessoas que apresentam forma de piedade, entretanto, negam a Deus o poder (2Tm 3.5).

Na base desse conflito entre i essência e a aparência alguns têm tentado fazer uma distinção e separação entre uma Aliança interna, que foi feita exclusivamente com os verdadeiros crentes, e

uma Aliança externa, que compreende aqueles que fazem uma confissão apenas externa. Mas tal separação e diferença não pode ser considerada à luz do ensino da Escritura. 0 que Deus ajuntou, o homem não pode separar. Ninguém pode desviar-se da exigência de que a essência deve corresponder à aparência, nem da exigência de o que se confessa com a boca deve corresponder ao que se crê com o coração (Rm 10.9) Mas apesar de não haver duas Alianças, pode ser dito que há dois lados de uma só Aliança da Graça. Um desses lados é visível a nós; o outro é perfeitamente visível a Deus, e somente a Ele. Nós temos que manter a regra de que não podemos julgar o coração, somente a conduta externa, e mesmo assim de forma imperfeita. Aqueles que, como os olhos humanos os vêem, estão andando no caminho da Aliança devem, de acordo com o julgamento de amor, ser

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considerados e tratados como nossos irmãos na Graça. Mas, na análise final, não é o nosso julgamento, mas o julgamento de Deus, que determina se eles são ou não nossos irmãos na Graça. Deus é o Conhecedor dos corações. Com Ele não há acepção de pessoas. 0 homem olha a aparência, mas Deus olha o coração (lSm 16.7).

"Examinai-vos a vós mesmos se realmente estais na fé; provai-vos a vós mesmos. Ou não reconheceis que Jesus Cristo estáem vós? Se não é que já estais reprovados" (2Co 13.5).

Capítulo 15

O MEDIADOR DA

ALIANÇA

0 conselho de redenção não é uma in i c i a t i va humana c u j a e x e c u ç ã o d e p e n d e

de todo tipo de circunstânciasimprevisíveis e, portanto, alta-mente incerto. Ele é um conselhoque é cumprido com absoluta cer-teza porque é uma decisão da von-tade graciosa e toda poderosa deDeus. Ele foi estabelecido na eter-nidade e é cumprido no tempo.Tudo sobre o que a doutrina dafé tem que tratar, portanto, é a for-ma na qual o imutável conselhodo Senhor referente à salvação daraça humana é executado e apli-cado. E como esse conselho se re-fere principalmente a três grandestemas, isto é, o Mediador, porquem a salvação foi obtida, o Es-pírito Santo, por quem a salvaçãoé aplicada e as pessoas às quais asalvação é dada, nosso roteirotambém seguirá esses três temas.Primeiro nós devemos tratar

da pessoa de Cristo, que, por Sua paixão e morte obteve a salvação. Depois, na seqüência, nós trataremos do Espírito Santo, que faz com que os

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eleitos compartilhem dos benefícios oriundos da morte de Cristo. E em terceiro lugar daremos alguma atenção às pessoas que desfrutam da salvação obtida por Cristo, e devemos tratar também da Igreja como Corpo de Cristo.

Finalmente, nosso roteiro naturalmente culminará na plenitude da salvação que está reservada para os crentes. Todo o desenvolvimento de nosso roteiro mostrará que o conselho de redenção em todas as suas partes é bem organizado e seguro. A inexplicável Graça, a sabedoria multiforme e o poder infinito de Deus se manifestam nele.

Na pessoa de Cristo todas essas excelências e atributos se

tomam manifestos. É verdade que crer em um Mediador não é uma exclusividade da Cristandade. Todos os homens e todas as nações possuem um senso não somente do fato de que eles não desfrutam da salvação, mas eles também possuem a convicção em seu coração que essa salvação deve ser indicada e dada a eles de alguma forma através de pessoas específicas. 0 pensamento geralmente difundido é que o homem não pode se aproximar de Deus, nem subsistir em Sua presença; ele precisa de um intermediário para abrir-lhe o caminho para a Divindade. Portanto, em todas as religiões são encontrados mediadores que, por um lado, fazem com que as revelações divinas sejam conhecidas ao homem, e, por outro, conduzem as orações e as oferendas dos homens à Divindade.

Em alguns casos deuses inferiores ou espíritos servem como mediadores, mas na maioria dos casos são homens dotados com conhecimento e poder sobrenatural, possuidores de uma aura especial de santidade, que fazem a mediação entre os deuses e o homem. Na vida religiosa das nações eles assumem um papel importante, e em todas as ocasiões importantes na vida pública e na vida privada, tais como calamida-des, guerras, pestes, e coisas semelhantes, eles são consultados.

Seja como adivinhos ou mágicos, como santos ou sacerdotes, eles indicam o caminho que, como eles supõem, os homens devem tomar para desfrutar do favor da Divindade, mas eles mesmos não são esse caminho. As religiões das nações são independentes das pessoas dos mediadores. Isso é verdade até mesmo com relação às religiões fundadas por pessoas específicas. Buda e Confiácio, Zaratítustra e Maomé, são os pio-neiros das religiões fundadas por eles, mas eles mesmos não são o conteúdo dessas religiões. Sua conexão com elas é feita em um sentido externo. As religiões fundadas por eles permanecerá a mesma, mesmo que seus nomes sejam esquecidos ou suas pessoas sejam suplantadas por outras.

No Cristianismo, porém, tudo isso é muito diferente. De fato, às vezes tem sido expressa a idéia de que Cristo nunca quis ser o único Mediador, e que Ele prontamente deixaria de lado Seu próprio nome se somente Seu princípio e Espírito vivessem na Igreja. Mas outros, que romperam totalmente toda conexão que possuíam com o Cristianismo, atacam e rejeitam totalmente a idéia de um Mediador. 0 Cristianismo man-

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tém com a pessoa de Cristo um relacionamento muito diferente daquele que as demais religiões mantêm com as pessoas que as fundaram. Jesus não foi o primei-

ro confessor da religião que passou a levar o Seu nome. Ele não foi o primeiro e mais importante cristão. Ele ocupa um lugar completamente único no Cristianismo. Ele não o foi fundador do Cristianismo em um sentido usual, Ele é o Cristo, o que foi enviado pelo Pai e que fundou Seu reino sobre a terra e agora expande-o e preserva-o até o fim dos tempos. Cristo é o próprio Cristianismo. Ele não está fora, Ele está dentro do Cristianismo. Sem Seu nome, pessoa e obra, não há Cristianismo. Em outras palavras, Cristo não é aquele que aponta o caminho para o Cristianismo, Ele mesmo é o caminho. Ele é o único, verdadeiro e perfeito Mediador entre Deus e os homens. 0 que as várias religiões em sua crença em um mediador têm con-jeturado e esperado, é real e perfeitamente cumprido em Cristo.

Para apreciar completamente esse sentido único de Cristo, nós devemos partir da idéia da Escritura de que Cristo começou a existir, diferentemente de nós, não em sua concepção e nascimento, mas séculos antes – de fato, desde a eternidade Ele é o unigênito Filho do Pai. No Velho Testamento o Messias é designa

do como o Pai da Eternidade, que é o Pai eterno de Seu povo (Is 9.6), e como aquele cujas origens são desde os tempos antigos, desde os dias da eternidade (Mq 5.2). 0 Novo Testamento preserva essa idéia, mas dá uma expressão mais exata da eternidade de Cristo. Ela está presente em todas aquelas passagens nas quais a obra terrena de Cristo é apresentada como o cumprimento de uma obra que lhe foi confiada por Deus. De fato, é dito sobre João Batista, que ele tinha que vir e veio como o segundo Elias (Me 9.11-13; jo 1.7). Mas a ênfase colocada no fato de que Cristo veio ao mundo para cumprir Sua obra e, o número de vezes em que isso é dito, aponta para o fato de que essa expressão é usada em um sentido especial.

Nós não lemos, em um sentido geral, que Ele apenas foi enviado pelo Pai para pregar (Me 1.38), que Ele veio para chamar pecadores ao arrependimento e para dar Sua alma em resgate por muitos (Me 2.17; 10.45). Algo mais é dito sobre Ele. É dito também, que Ele foi enviado expressamente para a pregação do Evangelho (Lc 4.43), que foi o Pai que o enviou (Mt 10.40; Jo 5.24 ss.), que Ele procede do Pai e veio em Seu nome (Jo 5.43; 8.42), que Ele desceu do céu e veio ao rnundo'41. Dessa forma Jesus é o Filho

unigênito que foi amado pelo Pai

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eque foi enviado à vinha depois de todos os servos (Me 12.6). Ele é o filho de Davi e o Senhor de Davi (Me 12.37), existia antes de Abraão (jo 8.58) e tinha glória comoPai antes que o mundo existisse (jo 175,24).

Essa auto consciência de Jesus com relação à Sua existência eterna é mais especificamente re-velada no testemunho apostólico. Em Cristo o Verbo eterno que estava com Deus e que era Deus tornou-se carne (Jo 1.1,14). Ele é o brilho da glória do Pai, a imagem exata de Sua pessoa e que não somente é mais elevado do que todos os anjos, mas pode inclusive exigir que eles o cultuem, é o Deus eterno e o Rei eterno, é sempre o mesmo e os seus anos não podem ser contados (Hb 13-13). Ele é rico (2Co 8.9), subsistia em forma de Deus e era semelhante ao Pai não somente em essência, mas também em forma, status e glória. Ele considerava essa igualdade com Deus não como algo que Ele devesse manter e usar por Si mesmo (Fp 2.6), colocou tudo isso de lado e assumiu a forma de homem, a forma de um servo (Fp 17,8), e dessa forma foi exaltado ao Senhor, que era do céu e que fez um contraste com Adão, o homem da terra (lCo 15.47). Em uma palavra, Cristo, assim como o Pai, é o Alfa e o Ôrnega, o primeiro e

oúltimo, o princípio e o fim (Ap

1.11-17; 22.13).

Portanto, a atividade desse Filho encarnado de Deus não com e ç o u s o m e n t e c o m S e u surgimento sobre a terra, mas antecede a própria criação. Pelo Verbo, todas as coisas, sem exceção, foram feitas (jo 13; Hb 1.2,10). Ele é o primogénito, a cabeça, o começo de toda criatura (C11.15; Ap 3.14). Ele é antes de todas as coisas (Cl 1.17). As criaturas não somente foram feitas através dEle, mas subsistem nEle (Cl 1.17) e a todo momento dependem da palavra de Seu poder (Hb 1.3). E além disso elas são criadas por Ele (CI 1.16), pois Deus o constituiu como o herdeiro de todas as coi-sas (Hb 1.2; Rm 8.17). Portanto, desde o começo há uma estreita relação entre o Filho e o mundo, e uma relação ainda mais estreita entre o Filho e o homem, pois no Filho estava a vida, a plena, rica e inexaurível vida, a fonte de toda a vida no mundo, e essa luz brilhou para os homens que foram criados à imagem de Deus, e os homens, de posse

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de sua natureza moral e racional, viram a fonte da divina verdade ao 1.14). É verdade que o homem, por causa do pecado, ficou em trevas, mas a luz do Verbo brilhou nessas trevas (jo 1.5) e iluminou todo homem (jo 1.9), pois o Verbo estava e permaneceu no mundo, e continua agindo no mundo, apesar do mundo não o conhecer (Jo 1.10).

O Cristo que aparece sobre a terra na plenitude dos tempos é, portanto, de acordo com o relato que a Escritura faz sobre Ele, não um homem como outro qualquer, não o fundador de uma religião e o pregador de uma nova lei moral. Sua posição é única. Ele é desde a eternidade o unigênito do Pa i . E le é o Cr iador , o Sustentador e o Governador de todas as coisas. NEle está a vida e a luz dos homens. Quando Ele aparece no mundo Ele não é um estranho, mas o Senhor. A redenção ou recriação está relacionada com a criação, a Graça à natureza, a obra do Filho à obra do Pai. A redenção é um edifício construido sobre as bases da criação.

A importância de Cristo se torna mais clara para nós se nós estudarmos o Seu relacionamento com Israel. Havia uma certa ação interna do Verbo (o Logos) em todo o mundo e em todos os homens. Mas embora a luz tenha brilhado nas trevas, as trevas não a compreenderam, e apesar do Verbo estar no mundo, o mundo não o conheceu (Jo 13,10). Mas o Verbo manteve uma estreita relação com Israel, pois de todas as nações, Israel é a que foi aceita como Sua herança, e, portanto, Israel pode, em João 1.11, ser chamada de propriedade do Verbo

que estava com Deus desde o começo e que era Deus. Israel era Sua propriedade, e Ele estava entre Israel não da mesma forma que estaria entre outros povos. Ele veio para Israel deliberadamente e depois de séculos de preparação. Segundo a carne Cristo procede dos patriarcas (Rm 9.5). E é verdade que Ele foi rejeitado pelos que eram seus – sobre o mundo nós lemos que não o conheceu, mas sobre os judeus nós lemos que não o receberam, desprezaram-no e rejeitaram-no – mas apesar disso Sua vinda não foi em vão, pois a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus (Jo 1.12).

Quando em João 1.11 nós lemos que o Verbo veio para os que eram seus, a referência é, sem dúvida, à encarnação, à vinda de Cristo em carne. Mas a afirmação implica que a relação de propriedade existente entre o Verbo e Israel não passou a existir no momento da encarnação, mas já exis-tia muito antes. Israel era Sua propriedade e, portanto, na plenitude dos tempos, Ele veio para os que eram seus. No mesmo momento em que Jeová aceitou Israel como Sua propriedade esse povo entrou em um relaciona-mento especial com o Verbo (o Logos). Ele era o Senhor que Israel

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esperava, o Anjo da Aliança que inesperadamente viria ao Seu templo (MI 3.1), e que vivia e tra-

balhava em Israel desde a antigüidade. Em muitos lugares do Velho Testamento nós lemos sobre o Anjo da Aliança ou Anjo do Senhor. Como foi destacado em conexão com a doutrina da Trindade, é através do Anjo que o Senhor se revela ao Seu povo, de uma forma especial. Apesar de ser distinto do Senhor, esse Anjo é um com Ele, e os mesmos nomes, características, obras e honra podem ser dados a Ele como são dados ao próprio Deus. Esse Anjo é o Deus de Betel (Grí 31.13), o Deus dos patriarcas (Grí 48.15,16), o Anjo que prometeu a Hagar multiplicar sua descendência (Gn 16.10; 21.18), que guiou os patriarcas (Grí 48.15,16), que resgatou o povo de Israel do Egito e seguramente conduziu-os a Canaãu`. 0 Anjo da Aliança dá a Israel a certeza de que o próprio Senhor está no meio do povo como o Deus da redenção e da salvação (Is 63.9). A revelação do Anjo da Aliança foi uma preparação para a perfeita auto revelação de Deus que aconteceu na plenitude dos tempos através da encarnação de Cristo. Toda a dispensa ção do Velho Testamento era uma aproximação cada vez maior entre Deus e Seu povo. Essa dispensação termina na vinda de Cristo e em Sua habitação eterna entre Seu povo (Ex 29.43-46).

Esse ensino da natureza e atividade do Verbo antes de Cristo vir em carne é da mais alta importância para uma correta interpretação da história da raça humana e para um verdadeiro entendimento do povo e da religião de Israel. Dessa forma é possível reconhecer toda a verdade, todo o bem e toda a beleza que ainda pode ser encontrada no mundo pagão, e ao mesmo tempo reconhecer a revelação especial que foi dada ao povo de Israel. Enquanto o Verbo e a sabedoria de Deus estavam operando em todo o mundo, o Filho manifestou-se em Israel como o Anjo da Aliança, como a manifestação do nome do Senhor. No Velho e no Novo Testamento a Aliança da Graça é única. Os crentes do Velho Testamento são salvos da mesma forma que nós. É a mesma crença na promessa, a mesma confiança na Graça de Deus que garante a salvação tanto a eles quanto a nós. E os mesmos benefícios de perdão e regeneração, de renovação e de vida eterna foram dados a eles e são dados a nós. Todos trilham o mesmo caminho, embora a luz que ilu-minou os crentes do Velho Testamento e a que nos ilumina hoje sejam diferentes em brilho.

Outro importante detalhe caminha junto com esse. Paulo diz sobre os Efésios, quando eles am-

da eram pagãos, que eles estavam sem Cristo, alienados da promessa da Aliança, sem esperança e sem Deus no mundo (Ef 2.11,12). Em outra palavras, eles viviam em uma condição muito diferente daquela que os judeus viviam antes da vinda de Cristo, pois eles não tinham a promessa de Deus à qual pudessem agarrar-se. Eles viviam sem esperança no mundo, e eles não tinham Deus em seu coração para que pudessem conhecê-lo e

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servi-lo. Naturalmente o apóstolo não quer dizer com isso que eles não criam em seus deuses, pois ele diz em outros lugares, aos atenienses, por exemplo, que eles eram extremamente religiosos, e ele fala da revelação que Deus permitiu que eles tivessem (At 17.24 ss.; Rm 1.19 ss.). Mas, tendo conhecimento de Deus, os pagãos não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes tornaram-se nulos em seu próprio entendimento e em seu pensamento serviram a deuses que por natureza não eram deuses (Rm 1.21 ss.; G14.8). E dessa forma o apóstolo não nega que os pagãos tenham todo tipo de expectativas referentes ao futuro, mas expressa o pensamento de que todas essas expectativas, tanto quanto os deuses aos quais eles serviam, são nulos em razão da promessa de Deus em Cristo, não ser a base deles.

Isso era diferente em Israel.

A esse povo Deus confiou Seus oráculos (Rm 3.2). Ele os adotou como filhos, viveu com Sua glória entre eles, deu-lhes sucessivas dispensações da Aliança na forma de lei, de culto, e, particularmente, naquelas promessas que apontavam para a vinda do Messias e apontavam para Ele como proce-dendo de Israel segundo a carne (Rm 9.4,5). Mas embora Cristo, na medida em que a carne o permita, tenha procedido dos patriarcas, Ele é mais que um homem. Ele é Deus e Ele existia e agia também nos tempos do Velho Testamento. Os cristãos em Éfeso, quando eram pagãos, viviam sem Cristo, mas os israelitas dos tempos antigos, por outro lado, estavam relacionados com Cristo, isto é, ao Cristo prometido, que como Mediador existia e agia entre eles. Ele agia na dispensação de Seus benefícios, mas agia também pela palavra, profecia e história, preparando Sua própria vinda em carne e lançando sua sombra sobre o povo de Israel. Ele mostrava a Israel as bênçãos espirituais que Ele mesmo alcançaria para o Seu povo na plenitude dos tempos.

0 apóstolo Pedro, fala claramente dessa mesma forma, no primeiro capítulo de sua primeira carta. Quando ele fala sobre a grande salvação que em princípio os crentes já desfrutam e que al-cançará sua plenitude no futuro,

ele demonstra a glória dessa salvação ao frisar especificamente que os profetas do Velho Testamento fizeram dessa salvação seu objeto de estudo e reflexão. Além disso, todos os profetas tinham em comum o fato de que eles profetizavam sobre a Graça que agora nos dias do Novo Testamento está sendo distribuída aos crentes. Eles recebiam conhecimento dessa Graça pela revelação, mas essa revelação não os tornava passivos. Pelo contrário, ela os colocava para trabalhar. A revelação os estimulava a estudar e investigar zelosamente, não à maneira dos filósofos, que por sua própria razão tentavam entender os mistérios da criação, mas como homens santos de Deus, que fizeram da revelação especial e da futura salvação em Cristo o objeto de sua pesquisa. Em tal estudo eles eram guiados não por seus próprios pensamentos, mas guiados pelo Espírito Santo. 0 assunto ao qual eles se dedicavam e sobre o qual eles fizeram suas pesquisas era sobre a ocasião ou as circunstâncias oportunas indicadas pelo Espírito de Cristo, que

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neles estava, ao dar de antemão testemunho sobre os sofrimentos referentes a Cristo e sobre as glórias que os seguiriam (lPe 1.10,11). Foi o próprio Cristo que, no Velho Testamento, deu Seu Espírito aos profetas e assim anunciou, através desse Espírito, Sua vinda e obra.

0 testemunho de Jesus no coração daqueles que lhe pertencem é evidente pelo fato de que eles possuem o Espírito de profecia (Ap 19.10).

Pelo testemunho desse Espírito, Israel

alcançou essas ricas e gloriosas esperanças que

estão resumidas sob o nome de expectativas

messiânicas.

Essas esperanças ou expectativas messiânicas; são geralmente classificadas em dois grupos. Ao primeiro grupo pertencem aquelas expectativas que, em geral, possuem uma indicação sobre o futuro reino de Deus. Essas esperanças são de grande importância e estão intimamente relaciona-das àAhança da Graça. Certamente essa promessa implica que Deus será o Deus de Seu povo e de Sua semente. Ela é relevante, portanto, não somente para o passado e para o presente, mas também para o futuro. É verdade que essas pessoas repetidamente se fizeram culpadas de deslealdade, caíram e romperam a Aliança do Senhor. Mas precisamente porque essa é uma Aliança da Graça, a deslealdade e a infidelidade das pessoas não pode invalidar a fidelidade de Deus. A Aliança da Graça é uma Aliança eterna que se reproduz de geração em geração. Portanto, quando as pessoas não

andam no caminho da Aliança, Deus pode por algum tempo abandoná-las, sujeitá-las a castigos, julgamento ou cativeiro, mas Ele nunca viola Sua Aliança, pois essa é uma Aliança da Graça, que não depende da conduta do homem, mas repousa somente na compaixão de Deus. Ele não pode destruir a Aliança, pois Seu nome, glória e honra estão envolvidos nela. Depois da demonstração de ira, Sua bondade invariavelmente brilha, e depois do julgamento vem a misericórdia, depois do sofrimento vem a glória.

Em tudo isso Israel no curso dos séculos foi instruído pela profecia. Através da profecia Israel obteve discernimento sobre a essência e propósito da história como não se vê em qualquer outro povo. 0 Velho Testamento torna claro para nós que Cristo, ao vir para os que eram seus realizando a vontade de Deus, aponta para o fato de que o reino de Deus é o conteúdo, o curso e o fim da história. É Seu conselho, Seu conselho de favor

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e redenção, que existe desde a eternidade e que vencerá toda resistência. Além do sofrimento está a glória, além da cruz está a coroa. Deus triunfará sobre todos os Seus inimigos e fará com que Seu povo desfrute do cumprimento de todas as Suas promessas. Um reino de justiça e paz é vindo, de espiritual e material bem-aventurança. E Israel des

frutará da glória desse reino, mas as outras nações também desfrutarão dele, pois a unidade de Deus preserva a unidade da raça humana e da história. Então a terra se encherá do conhecimento do Senhor e a promessa da Aliança alcançará seu pleno cumprimento: Eu serei vosso Deus e vós sereis meus filhos e filhas.

As profecias e os salmos estão cheios dessas esperanças. Mas isso não é tudo. Eles vão além e falam da forma pela qual o reino de Deus no futuro será estabelecido e cumprido. Então, essas esperanças se tomam expectativas messiânicas propriamente ditas, e nos dizem como o domínio de Deus sobre a terra no futuro será determinado por uma só pessoa, pelo Messias, e será consumado por Ele. É verdade que algumas pessoas em nosso tempo têm tentado separar todas essas expectativas messiânicas da religião original de Israel e transferi-Ias para o tempo do cativeiro. Mas essa posição é satisfatoriamente atacada e refutada por outras pessoas. Todas as esperanças messiânicas se moviam em tomo de duas idéias: o dia do Senhor, que seria um dia de julgamento para os povos e para Israel; e o Messias que traria a redenção. E ambas essas idéias não são idéias primeiramente acalentadas pelos profetas do oitavo século, mas existiam muito antes desse tempo e foram mais

especificamente trabalhadas pelos profetas cujos livros foram preservados até os nossos dias.

A Escritura traça as expectativas do futuro aos tempos mais antigos. Naturalmente elas possuíam um caráter geral, mas esse fato serve apenas para provar sua antigüidade, e o gradual desenvolvimento que se seguiu e que pode ser distinto nessas expectativas serve como uma evidência poderosa. Na promessa-mãe de Gênesis 3.15 a inimizade é colocada entre a semente da serpente e a semente da mulher, e é feita a promessa de que o descendente da mulher esmagará a cabeça da descendência da serpente. Por essa semente da mulher nós entendemos, assim como Calvino, toda a raça humana, que, voltando para o lado de Deus através da Aliança da Graça, deve esforçar-se por atacar os poderes antagônicos a Deus, e em Cristo recebe sua Cabeça e Senhor. A história demonstra que essa raça humana que está conduzindo uma guerra contra a semente da serpente de forma nenhuma compreende todos os povos, e está se tornando cada vez mais e mais limitada. A promessa se mantém de pé somente para a linhagem de Sete.

Quando a primeira raça humana foi destruída no dilúvio, logo aconteceu uma separação familiar entre Cam e Jafé por um lado e Sem do outro. E a premes-

sa é agora particularizada de tal forma que Jeová se torna o Deus de Sem, Jafé virá a habitar as tendas de Sem, e Cam será seu servo (Gn 9.26,27). Mais tarde, quando o verdadeiro conhecimento e culto a Deus mais uma vez

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correu o risco de se perder, Abraão foi escolhido dentre a geração de Sem e a promessa foi dada a ele, a promessa de que ele seria abençoado pelo Senhor e seria =a bênção para todas as nações, que todas as nações da terra desejariam grandemente e procurariam pela bênção que foi dada a Abraão e à sua semente (Grt 12.2,3). Dentre os filhos de Jacó e as tribos de Israel, Judá é designado como aquele que receberia status sobre todos os seus irmãos. De acordo com seu nome ele se tornou louvor ao Senhor (Gn 29.35) e poderoso entre seus irmãos (ICr 5.2). Seus irmãos o louvaram e sua mão sujeitou todos os seus inimigos. 0 domínio de Judá permanecerá até que venha Silo, e a ele obedecerão todos os povos (Gn 49.8-10). 0 nome Siló no verso 10 de Gênesis 49 é difícil de se entender e de interpretação variada, mas a idéia de uma bênção dada a Judá é bem clara. judá tem o primeiro lugar entre as tribos de Israel; ele tem preeminência sobre seus irmãos, e dele sairá o futuro governante de todas as nações.

Essa promessa foi cumprida de forma incipiente em Davi e a

partir dele passou a um novo estágio de desenvolvimento. Quando Davi descansou de todas as suas guerras, veio à sua mente a idéia de edificar uma casa ao Senhor. Mas o Senhor informou, através de Nata, que em vez de Davi fazer uma casa para Deus, Deus é que faria uma casa para Davi, através da qual manteria a linhagem real. Depois da morte de Davi o Senhor elevou Salomão ao trono e foi um Pai para ele, e ele finalmente estabeleceu sua casa e o trono de Davi para sempre. 0 trono de Davi seria estabelecido para sempre (2Srn 79-16; S118.38). Desde esse tempo as santas esperanças de Israel estão firmadas sobre a casa de Davi, e algumas profecias simplesmente param nesse ponto141.

Mas a história ensinou que um rei na casa de Davi não satisfaria todas essas expectativas. E em conexão com essa história a profecia apontava mais claramente para o futuro, quando o verda-deiro filho de Davi apareceria e se sentaria para sempre no trono de Seu Pai. Gradualmente esse fi-lho de Davi começou a ser desig

nado pelo nome de Messias. Originalmente e por um longo tempo o nome Messias tinha um uso geral e designava todo aquele que em Israel era escolhido e ungido para um determinado ofício. A unção com óleo era uma prática comum entre os povos orientais e servia para amaciar a pele queimada pelo sol e restaurar ao corpo o seu frescor (SI 104.15; Mt 6.17). A unção era um sinal de alegria (Pv 27.9) e não era concedida em tempo de luto (2Sm 14.2; Dn 10.3); a unção servia para demonstrar hospitalidade e amizade 141, era aplicada como um remédio para alguns tipos de doenças"' e era um sinal de respeito aos mortoS148. A unção também era usada no culto, e nesse caso recebia um significado religioso. Jacó ungiu a pedra sobre a qual ele repousou sua cabeça em Berseba para que ela servisse como um monumento, e a unção foi um sinal de dedicação ao Senhor que tinha apare-cido a ele'". Posteriormente, de acordo com a lei dada a Moisés, o tabernáculo, todo o seu equipamento e seu altar foram ungidos para

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santificá-los; e consagrá-los ao serviço do Senhor. A mesma unção era ministrada às pessoas que eram chamadas para um serviço

especial.

Algumas vezes nós lemos sobre a unção de profetas. Elias ungiu Elisett (lRe 19.16) e no Salmo 105.15 a palavra ungidos é usada como sinônimo de profetas. Além disso, os sacerdotes, inclusive o sumo sacerdote, eram un-gidos (Lv 8.12,30; SI 133.2). Por isso o sumo sacerdote era chamado de sacerdote ungido (Lv 4.3,5; 6.22). E nós lemos também sobre a unção de reis: Saul (ISm 10.1), Davi ( lSm 16.13; 2Sm 2.4), Salomão (IRe 1.34), e outros foram ungidos. Isso acontecia porque os reis eram chamados e un-gidos pelo Senhor (lSm 26.11; si 2.2). Desse ponto em diante o uso da unção serviu a muitos propósitos. Algumas vezes na Escritura o termo ungido é usado para designar aquelas pessoas que foram escolhidas e capacitadas pelo Senhor para o Seu serviço, mesmo que uma unção no sentido literal não tenha ocorrido. No Salmo 105.15 os patriarcas são designados pelas palavras ungidos e profetas. Em outros lugares o povo de Israel ou o seu rei são chamados de ungidos"'. Em Isaías 45.1 o termo é aplicado a Ciro. Deve ser enfatizado que a unção com óleo é um sinal que, por um lado, indica a dedicação ao serviço do Senhor e, por outro lado, a eleição, o chamado e a preparação para o serviço do Senhor. Quando Davi foi ungido por Samuel o Espírito do Senhor veio sobre ele daquele dia em diante (lSm 16.13).

Nesse sentido o nome Messias, isto é, ungido, tomou-se particularmente apropriado para o futuro rei da casa de Davi. Ele é, de forma especial, o Ungido, pois Ele foi enviado pelo próprio Deus e foi ungido não meramente com um pouco de óleo, mas com o Espírito do Senhor (SI 2.2,6; Is 61.1). Exatamente quando o nome Messias (Ungido) começou a ser usado como um nome sem o artigo é algo que não pode ser dito com certeza, mas em Daniel 9.25 o nome parece já figurar nessa forma, e no tempo do ministério terreno de Jesus o nome Messias era comumente usado dessa forma. Em João 4.25 a mulher samaritana diz a Jesus: "Eu sei que há de vir o Messias". Nessa frase o artigo está ausente. Apesar do termo tingido originalmente ter tido um uso geral e ter podido designar várias pessoas, ele tornou-se gradualmente um nome aplicado somente ao futuro rei que viria da casa de Davi. Esse Rei é o Messias, o Ungido. Só Ele é o Messias.

A imagem do Messias foi

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desenvolvida e trabalhada na profecia do Velho Testamento de várias formas. De forma geral, o contexto em que esse termo é desenvolvido sempre dá a idéia do reinado do Messias. Ele é chamado de Ungido porque foi ungido como Rei (SI 2.2,6). Na base da promessa que lhe foi dada, o próprio Davi espera que de sua casa venha o Rei de justiça. Deus estabeleceu com Davi uma Aliança eterna em tudo bem definida e segura (2Srn 23.3-5). E tal é a expectativa de todos os profetas e salmistas. A salvação de Israel no futuro está inseparavelmente ligada à casa de Davi, e o futuro rei dessa casa é também o Rei do Reino de Deus. 0 Reino de Deus não é uma figura poética nem um conceito filosófico. 0 Reino de Deus é uma realidade, um elemento componente da história. Ele vem de cima, é espiritual, ideal, e vem à existência sob um rei da casa de Davi. Esse é um reino de Deus, embora seja profundamente humano, terreno e histórico. Portanto o futuro reino de Deus é pintado para nós nas profecias com tintas e cores extraídas das circunstâncias que não podem ser tomadas em um sentido literal, mas que dão uma profunda impressão da realidade desse reino. Esse reino não é a imagem de

um sonho. Ele é realizado aqui na terra, na história, sob um Rei da casa de Davi.

Mas embora esse reino do Messias sobre a terra seja uma realidade tangível, ele difere muito dos reinos que nós conhecemos. Apesar do fato de que ele sempre vem à existência em uma luta contra os seus inimigos"' esse é um reino de perfeita justiça e paz152, cuja justiça consiste especialmente no fato de que os necessitados serão acudidos e os indigentes serão redimidos (72.12-14). Esse reino se lança sobre todos os seus inimigos até as extremidades da terra e permanece para sempre.

No domínio do reino há um príncipe que é um homem mas que ao

mesmo tempo transcende todos os homens em méritos e honra.

Ele é um homem, nascido da linhagem de Davi, é um filho de Davi,

e é chamado de filho do homeml". Mas ao mesmo tempo Ele é

mais que um homem. Ele está sentado no lugar de honra à direita

de Deus (SI 110.1), é Senhor de Davi (SI110.1),eéoFilho de Deus

em um sentido todo es- pecial (SI 2.7). Ele é o Emanuel, o Deus

conosco (Is 7.14), o Senhor de nossa justiça (jr23.6; 33.16), em quem

o próprio Senhor em Graça vem ao Seu povo e habita com ele. A

profecia tanto diz que o Senhor reina sobre Seu povo, quanto que o

Messias reina sobre Seu povo. Algumas vezes se diz que o Senhor

aparecerá para julgar as nações e Israel, e outras vezes é o

Messias que fará isso. Assim, por exemplo, em Isaías 40.10, 11, nós

lemos que o Senhor Deus virá com poder e o Seu braço dominará e

que como pastor Ele apascentará o Seu rebanho e entre os Seus bra-

ços recolherá os carneirinhos. E em Ezequiel 34.23 nós lemos que o

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Senhor designará um pastor para Suas ovelhas e esse pastor será o

Seu servo Davi. Sobre a nova Jerusalém o profeta Ezequiel diz que

seu nome será: 0 Senhor Está Ali (Ez 48.35), e Isaías apresenta o

mesmo fato ao dizer que através do Messias o Senhor estará

conosco (Is 7.14). Ezequiel combina esses dois pensamentos ao di-

zer: "Eu, o Senhor, lhes serei por Deus, e o meu servo Davi será

príncipe no meio delas;..." (Ez 34.24), e Miquéias diz que o Messias

se manterá firme e apascentará o povo na força do Senhor, na

majestade do Senhor, seu Deus (Mq 5.4). Essa é a razão pela qual

no Novo Testamento essas duas séries de textos podem ser inter-

pretadas de modo messiânico. Através do Messias o próprio

Deus vem ao Seu povo; Ele é mais que homem, Ele é a perfeita reve-

lação e por isso recebe os nomes divinos. Ele é chamado Maravi-

lhoso, Conselheiro, Deus Forte,

Pai da Eternidade, Príncipe da Paz (Is 9.6).

A despeito de quão grandes os méritos e o poder do Messias possam ser, a profecia apresenta um traço que é marcante. Ele nascerá, está registrado, em um tempo muito perigoso e em circunstâncias muito humildes. Pode ser que esse pensamento já esteja implicado na afirmação de Isaías de que uma virgem conceberá e terá um filho, e que esse filho compartilhará da paixão de Seu povo, e que comerá manteiga e mel, os produtos principais de um país que foi devastado e que não consegue se reerguer (Is 7.14,15). Mas de qualquer forma sua humildade está claramente expressa em Isaías 11.1 (compare com Isaías 53.2). Ali o profeta diz que um rebento sairá do tronco de jessé e que um renovo sairá de suas raizes. Em outras palavras, no tempo do nascimento do Messias a casa real de Davi ainda existirá, mas sem um, trono, será como um tronco quebrado, mas que ainda pode vo l ta r a c resce r . Miquéias dá expressão ao mesmo pensamento em diferentes palavras quando diz que a casa de Efrata, que é a casa real de Davi, assim chamada porque Efrata era a área na qual Belém, a terra natal de Davi, estava localizada, seria

menor entre as milhares de Judá, * dela sairia aquele que há de reinar

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até as extremidades da terra (Mq 5.2). Portanto, em Jeremias 23.5

e 33.15, em Zacarias 3.8 e 6.12, o Messias é também designado

Renovo. Quando Israel estiver destruido e Judá estiver em estado

de calamidade, quando virtualmente toda a esperança se for e toda

a expectativa estiver extinta, então o Senhor levantará um Renovo

da casa real de Davi que edificará o templo do Senhor e

estabelecerá Seu reino na terra. Apesar de muitos esperarem que

o Messias apareça em poder e glória, Ele aparecerá em humildade,

montado não em um cavalo de guerra, mas, como um sinal de

paz, em um jumento (Zc 9.9). Ele será Rei mas também será Sacer-

dote. Ambos os ofícios serão comb i n a d o s n E l e c o m o e m

Melquisedeque, e haverá perfeita união entre ambos os ofícios (SI

110.4; Ze 6.13).

Essa idéia da humildade do Messias serve como uma idéia transacional àquela idéia segundo a qual Isaías apresenta aquele que há de vir como o Servo Sofredor do Senhor. 0 povo de Israel tinha que ser um reino de sacerdotes (Ex 19.6). Ele tinha que servir a Deus como sacerdote e dominar a terra, assim como o homem originalmente foi criado à

imagem de Deus e recebeu domínio sobre toda a terra. Repetida-

mente nós lemos nas profecias e nos salmos que Deus fará justiça

através de Seu povo e lhe dará vitória sobre seus inimigos. Em

alguns casos essa vitória é descrita em termos muito fortes: Deus

se levantará, Seus inimigos serão destruidos e aqueles que o odei-

am fugirão de sua face; Ele os dissipará como fumaça; como cera

derretida no fogo eles desaparecerão de diante da face de Deus;

Ele esmagará a cabeça de Seus inimigos; Ele trará Seu povo das

profundezas do mar, para que ele pise o sangue de seus inimigos, e

a língua de Seus cães se farte com ele'''. Todas essas maldições não

são uma expressão de vingança pessoal, mas descrições, na lin-

guagem do Velho Testamento, da ira de Deus sobre os inimigos de

Seu povo. Mas o mesmo Deus que de forma tão rigorosa pune os

maus, dará justiça, paz e alegria a todo o Seu povo e esse povo o

servirá em total unanimidade. Através da opressão e do

sofrimento Seu povo alcançará um estado de glória no qual o

Senhor fará uma nova Aliança, escreverá Sua lei nele, lhe dará

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novo coração e novo espírito, para que ele ande em Seus estatutos

e cumpra Seus desígnios (Ez 36.25).

Essas duas características doquadro futuro de Israel sãoencontradas também no Messias. Ele

será um Rei que quebrará Seus inimigos em pedaços, com uma

roda de ferro e os despedaçará como um vaso de oleiro (SI 2.9;

1103,6). Não há uma descrição mais realista da vitória do Messias

sobre Seus inimigos do que a que é apresentada em Isaías 63.1- 6.

Ali nós lemos como o Senhor vem com vestes de vivas cores,

glorioso em Sua vestidura, marchando na plenitude de Sua força,

falando em justiça e poderoso para salvar. E em resposta à per-

gunta do profeta: "Por que está vermelho o traje, e as tuas vestes,

como as daquele que pisa uvas no lagar?", o Senhor responde: "0

lagar, eu o pisei sozinho, e dos povos nenhum homem se achava

comigo; pisei as uvas na minha ira; no meu furor, as esmaguei, e o

seu sangue me salpicou as vestes e me manchou o traje todo.

Porque o dia da vingança me estava no coração, e o ano dos meus

redimidos é chegado". Em Apocalipse 9.13-15 certos traços dessa

descrição são aplicados a Cristo, quando nos últimos dias Ele

retomar e derrotar todos os Seus inimigos. E isso acontecerá com

toda certeza, pois Ele é Salvador e juiz, Cordeiro e Leão ao mesmo

tempo.

0 Messias é também o Redentor e o Salvador. Assim como o Senhor é justo e misericordioso, assim como Seu dia é um dia de ira e de redenção, assim como

Israel dominará em autoridade real sobre seus inimigos e servirá a

Deus como um sacerdote, assim também o Messias é simultanea-

mente o Rei tingido de Deus e o Servo Sofredor de Deus. Em Isaías

Ele se manifesta especialmente dessa última forma. Nessa cone-

xão o profeta pensa primeiro no povo de Israel, que está vivendo

em um estado de escravidão, e que precisamente por essa forma

tem um chamado a cumprir contra os pagãos. Como essa profecia

se desenvolve em Isaías, essa figura sofredora assume gradual-

mente o caráter de uma pessoa, que, como um sacerdote, propi-

cia pelos pecados de Seu povo, que como um profeta proclama

essa salvação até os confins da terra e que como um rei, com os po-

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derosos repartirá o Seu despojo (Is 52.13-53.12).

No Rei Ungido o Senhor revela Sua glória, Sua força, a ma-

jestadee a santidade de Seu nome (Mq 5.3); no Servo Sofredor Ele

revela Sua Graça e as riquezas de Sua misericórdia (Is 53.11). A pro-

fecia em Israel contém essas duas figuras e essa profecia tem raizes

históricas. Israel, como povo, é um filho de Deus (Os 11.1), um

reino de sacerdotes (Ex 19.6), vestido com a glória do Senhor (Ez

16.14), mas ao mesmo tempo também é o servo do Senhor (Is 41.8,9),

recebe a ira que os inimigos do Senhor dedicam a Ele (S189.51,52),

e por amor a Deus é entregue à morte continuamente, é considerado como ovelha para o matadouro (SI 44.22). Tanto a glória quanto o sofrimento de Israel, de Israel de forma geral, como um povo e de servos tais como Davi, Já e outros em particular, possuem um caráter profético. A glóriae o sofrimento de Israel apontam para Cristo. Todo o Velho Testamento, com suas leis e instituições, seus ofícios e ministrações, seus fatos e suas promessas, é uma prefiguração do sofrimento que viria sobre Cristo, e da glória que o seguiria (lPe 1.11). Assim como a Igreja nos dias do Novo Testamento tornou-se morta parao pecado e viva para Deus em Cristo Jesus (Rm 6.11), e assim como seu corpo preenche o que resta das aflições de Cristo (Cl 1.24), e também à imagem de Cristo é transformada de glória em glória (2Co 3.18), assim também a Igreja do Velho Testamento, em todo o seu sofrimento e glória, era uma preparação e uma prefiguração da humilhação e exaltação do Sacerdote-Rei que, a Seu tempo, fundaria o reino de Deus na terra.

Não pode haver dúvidas de que o Novo Testamento olha para si mesmo à luz do Velho, e dessa forma mantém estreito relacionamento com ele. Jesus diz que as

Escrituras testificam, a seu respeito (Jo 5.39; Lc 24.27), e esse é um

pensamento que é encontrado na base de todo o Novo Testamento

e é várias vezes afirmado com clareza. Os primeiros discípulos de

Jesus reconheceram-no como o Cristo porque encontraram nEle

aqueles de quem Moisés e os profetas tinham falado (Jo 1.45). Paulo

testifica que Cristo morreu, foi sepultado e ressuscitou conforme as

Escrituras (ICo 153,4). Pedro escreve que o Espírito de Cristo nos

profetas, de antemão testemunhou sobre os sofrimentos referentes

a Cristo e sobre as glórias que o seguiriam (11`e 1.11). E todos os

livros do Novo Testamento indicam, seja diretamente, seja

indiretamente, que todo o Velho Testamento encontrou sua pleni-

tude em Cristo. A lei com suas prescrições éticas, cerimoniais e

cívicas, com seu templo e seu altar, com seu sacerdócio e seus sa-

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crifícios, e a profecia com sua promessa de um Rei ungido da casa

de Davi e com o Servo Sofredor, apontam para Cristo como seu

cumprimento. Todo o reino de Deus, prenunciado no reino e na

história de Israel, delineado em formas nacionais pela lei e procla-

mado na linguagem do Velho Testamento pelos profetas, apro-

ximam-se de Cristo e nEle e em Sua Igreja descem dos céus à ter-

ra.

Essa íntima relação entre o

Velho e o Novo Testamento é da mais alta importância para a vali-

dade e legitimidade da fé cristã, pois a confissão de que Jesus é o

Cristo, o Messias prometido a Israel, forma o coração da religião

cristã e diferencia-a de todas as outras religiões. Portanto, essa

relação é seriamente atacada pelos judeus, pelos muçulmanos e

por todos os outros povos pagãos e em nossos dias é atacada tam-

bém por muitos daqueles que recebem o nome de cristãos. Esses

grupos tentam provar que Jesus nunca pensou em Si mesmo como o

Messias nem se apresentou como tal, ou, mais ainda, que Ele

formulou Sua consciência religiosa interna e Sua elevada moral de

forma circunstancial, e que dessa forma não tem significado para

nós hoje. Mas o testemunho do Novo Testamento é tão numeroso e

tão forte que não permite que essa afirmação vá muito longe.

Simplesmente não pode ser negado que Jesus afirmou ser o

Messias e demonstrou possuir todos os tipos de características e

habilidades sobrenaturais. Mas em vez de curvar-se a esse fato e

aceitar Jesus como Ele mesmo disse que era, eles afirmam que Jesus

era um ser humano sujeito a ilusões, excesso de entusiasmo e

todos os tipos de aberrações. De fato, o ataque vai tão longe que

muitos chegam a atribuir a Jesus todos os tipos de doenças de alma

e de corpo, e assim explicam a exaltada concepção que Ele tinha de Si mesmo. Essa disputa sobre a pessoa de Jesus, que nos dias atuais tem assumido um caráter cada vez mais sério, prova que a questão "C) que você pensa de Cristo?" como aconteceu em pe-ríodos remotos da era cristã, novamente ocupa e divide a mente dos homens. Assim como os judeus formaram várias idéias sobre Jesus, e alguns chegaram a pensar que Ele fosse João Batista, outros Elias, outros Jeremias, ou algum dos profetas (Mt 16.13,14), e assim como alguns pensaram que Ele fosse alguém possuído pelos demônios (Me 3.21,22), assim tem sido através dos séculos e

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assim continuará sendo. Mesmo que nós coloquemos de lado aqueles que dizem que Cristo era um ilusionista e entusiasta, have-rá ainda milhares que, apesar de reconhecê-lo como um profeta, não o confessam como o Cristo de Deus.

E ainda que Cristo preencha os requisitos da designação de profeta, Ele não se satisfaz somente com a confissão de que Ele é o Cristo. Ele é um homem e é descrito como tal em todas as páginas do Novo Testamento. Ele, apesar de ser o Verbo eterno, nasceu no tempo (Jo 1.14 Fp 2.7). Ele compartilha de nossa carne e de nosso sangue, e em todas as coisas é semelhante aos irmãos (Hb

2.14,17). Segundo a carne Ele procede dos patriarcas (Rm 9.5). Ele é um descendente de Abraão (Gl 3.16), Ele procedeu de Judá (Hb 7.14; Ap 5.5), é descendente de Davi (Rm 1.3), e é nascido de uma mulher (GI 4.4). Ele é um ser hu-mano no sentido pleno e verdadeiro, possui um corpo (Mt26.26), uma alma (Mt 26.38), e um espírito (Lc 23.46), uma mente humana (Le 2.52), uma vontade humana (TA: 22.42), os sentimentos huma-nos de alegria e tristeza, ira e misericórdia (Lc 10.21; Me 3.5), e as necessidades humanas de descanso e relaxamento, alimento e bebida (lo 4.6,7). Sempre, e em todos os lugares, Jesus se manifesta no Novo Testamento como um ser humano a quem nada que é humano é estranho. Ele foi, como nós somos, tentado em todas as coisas, mas não cometeu pecado (Hb 4.15). Nos dias de Sua carne Ele elevou orações e súplicas com forte clamor e aprendeu a obediência pelas coisas que sofreu (Hb 5.7,8).

Seus contemporâneos, nem por um só momento duvidaram de sua real natureza humana. Usualmente ele é designado no Evangelho pelo nome simples de Jesus. De fato, esse nome lhe foi dado por =a ordem expressa do

anjo e esse nome significa que Ele é o Salvador de Seu povo (Mt 1.21). Mas esse nome era conhecido em Israel há muito tempo e muitas pessoas se chamavam assim. 0 nome Jesus é a forma grega do nome hebraico jehoshua ou Josué e é derivado de um verbo que significa resgatar ou salvar. 0 sucessor de Moisés se chamava Oséias, mas Moisés passou a chamá-lo jehoshua ou Josué (Nm 13.16). Esse Josué é chamado de Jesus em Atos 7.45 e Hebreus 4.8'55. E nós lemos no Novo Tes-tamento a respeito de outras pessoas que

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receberam esse nome (Lc 3.29; Cl 4.1 1)116. Portanto, somente o nome não era suficiente para que os judeus pensassem que o filho de Maria fosse o Cristo.

Usualmente os judeus falam de Cristo como o homem chamado Jesus (jo 9.11), o filho de José, o carpinteiro, cujas irmãs e irmãos eles conheciam (Mt 13.55; Jo 6.42), o filho de José de Nazaré (jo 1.45), Jesus, o nazareno151, Jesus, o galileu (Mt 26.69), e o profeta de Nazaré da Galiléia (Mt 21.11). E o título usual aplicado a Jesus é o de Rabi ou Raboni, que significa professor, mestre, ou meu mestre (Jo 1.38; 20.16), o nome que naquele tempo os escribas e fariseus recebiam (Mt 23.8), e Ele não ape-

nas se apropria desse título, mas também lhe dá um sentido único (Mt 218-10). Essas designações e títulos não implicam, é claro, que as pessoas o reconheciam como o Cristo. Esse também não era ne-cessariamente o caso quando elas o chamavam pelo termo geral Se-nhor (Me 7.28), pelo termo filho de Davi (Me 10.47), ou quando cha-mavam-no de profeta (Me 6.15; 8.28).

Mas apesar de ser verdadeiro homem, Jesus estava consciente desde o começo que Ele era mais que um homem e Ele se apresentou como tal, de forma gradativa, aos Seus discípulos. E isso não acontece somente, como geralmente se alega, no Evangelho de João e nas cartas dos apóstolos, mas acontece também com clareza nos Evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas. Além disso, o contraste que os homens estão tentando fazer nos tempos modernos, entre o Jesus histórico e o Cristo da Igreja é totalmente insustentável. Eles afirmam que Jesus não era e não queria ser mais do que um israelita piedoso, um gênio religioso, um exaltado mestre da juventude e um profeta como os muitos que anteriormente tinham aparecido em Israel. E tudo o que é posteriormente confessado pela Igreja com relação ao

Jesus histórico - Seu nascimento sobrenatural, Seu ofício mes-

siânico, Sua morte expiatória, Sua ressurreição e Sua ascensão ao

céu – é um produto da imaginação humana e deve ter sido acres-

centado ao quadro original do Mestre, pelos discípulos.

Mas contra essa objeção há tantas e tão sérias objeções que ela

não pode se manter de pé. Além disso, se todos esses fatos menci-

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onados acima não são reais, mas foram criados e inseridos na len-

da de Jesus, deve haver algum tipo de explicação de como os dis-

cípulos conseguiram fazer a dramatização de todos eles e de qual

fonte eles extraíram o material dessas supostas fábulas. A

impressão causada pela personalidade incormam, de Jesus não se

prestaria a esse tipo de fantasia. Tal impressão, mesmo que seja a

de uma pessoa altamente exaltada, não possuiria um só elemento

do Cristo que a Igreja confessa. E esses elementos componentes

devem ser procurados entre as seitas judaicas daquele tempo, ou

entre as religiões gregas, persas, hindus, egípcias ou babilônicas,

e dessa forma o Cristianismo é roubado de sua independência e

de sua unicidade e é misturado às heresias pagãs e judaicas.

Mas os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas foram

escritos por homens que tinham a firme convicção de que Jesus era

Cristo. Eles foram escritos quando a Igreja existia já há algum

tempo, quando a pregação dos apóstolos já tinha alcançado todo o

mundo conhecido e quando Paulo já tinha escrito várias de suas

cartas. Contudo esses Evangelhos foram geralmente aceitos e

reconhecidos como tais. Nada se sabe sobre um conflito entre os

apóstolos e seus auxiliares a respeito da pessoa de Cristo. Todos

eles criam que Jesus é o Cristo, que os judeus crucificaram, Se-

nhor e Cristo e em Seu nome pregaram o arrependimento e o per-

dão de pecados (AI 2.22-38).

Essa fé existe desde o começo da fundação da Igreja cristã. Paulo afirma no capítulo quinze de sua carta aos Cofinfios, que o Cristo das Escrituras, o Cristo que morreu, foi sepultado e ressusci-tou, era o conteúdo da pregação apostólica e da fé cristã e que sem esses dois fatos a pregação e fé se tornariam vãs e a salvação daqueles que morreram em Cristo seria uma ilusão. Não há outra escolha: ou os apóstolos eram falsas testemunhas de Deus ou eles testificaram e proclamaram aquilo que desde o começo eles viram e ouviram, e que suas mãos tocaram com respeito ao Verbo da vida. Da mesma forma, ou Jesus é um falso profeta ou Ele é a testemunha fiel, o primogénito dentre os mortos e o príncipe dos reis da terra, Aquele que nos ama, e nos lavou dos nossos pecados, e nos constituiu reino, sacerdotes para o Seu Deus e Pai (Ap 13,6). Não há conflito entre o Jesus histórico e o Cristo da Igreja. 0 testemunho dos profetas é a revelação e interpretação, dada sob a direção do Espírito Santo, do auto testemunho de Cristo. A estrutura da Igreja repousa sobre os apóstolos e profetas,

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dos quais Cristo é a pedra angular (Ef 2.20). E ninguém pode lançar outro fundamento além do que foi posto, o qual é Jesus Cristo (lCo 3.11).

Por mais atrativa que seja, não há oportunidade agora para que seja dado um completo registro do testemunho que Cristo deu sobre Si mesmo e que os apóstolos deram sobre seu Mestre e Senhor. Contudo dirigiremos nossa atenção por alguns instantes, para certos detalhes.

Assim como João Batista,Jesus também veio com a pregação

de que o reino de Deus estava próximo e a cidadania desse

reino só podia ser obtida através de arrependimento e fé (Me

1.15). Mas Jesus se coloca em um relacionamento com esse

reino muito diferente do que tinha João ou qualquer outro dos

profetas. Todos os profetas profetizaram sobre esse reino (Mt

11.11-13), mas Jesus é o único que o possui. De fato, Ele o

recebeu do Pai, que o confiou a Ele em Seu conselho eterno (Lc

22.29). Portanto, esse é precisamente o Seu reino, no qual Ele

governa todas as coisas em favor de Seus discípulos. Foi o Pai que

celebrou as bodas de Seu Filho (Mt 22.2), mas o Filho é que era o

noivo (Me 2.19; Jo 3.29), que celebrará Seu próprio casamento (Mt

25.1). 0 Pai é o dono da vinha e o Filho é o herdeiro (Mt 21.33, 38).

Dessa forma Jesus chama o reino de Deus de Seu próprio reino, e

fala de Sua Igreja como estando edificada sobre a rocha da

confissão, em Si mesmo (Mt 16.18). Ele é maior que lonas e

Salomão (Mt 12.39,42). Por Sua causa tudo, pai, mãe, irmãs, ir-

mãos, casas, campos e até mesmo a própria vida devem ser renun-

ciados e negados. Aquele que ama seu pai ou sua mãe mais do

que a Ele não é digno dEle. Aquele que o nega ou que o confessa

diante dos homens será correspondentemente negado ou con-

fessado por Ele diante do Seu Pai que está nos céus.

A esse elevado lugar que Jesus atribui a Si mesmo no reino dos céus correspondem todas as Suas palavras e obras. Elas correspondem perfeitamente ao desejo de Seu Pai. Jesus é absolu-tamente isento de pecado. Ele é consciente de nunca ter transgredido a vontade do Pai e nunca confessa ter cometido um só erro

ou pecado. Ele até se permite ser batizado por João, mas não com o

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objetivo de receber perdão pelos pecados (Mt 3.6). 0 próprio João, tendo em vista que seu batismo era um batismo de arrependimen-to e perdão de pecados, protestou ao ver que Jesus queria ser bati-zado. Jesus reconhece essa objeção e remove-a, dizendo que Ele não está se oferecendo para ser batizado para que receba o per-dão de pecados, mas para que cumpra toda a justiça (Mt 3.14,15). Jesus declina o tratamento que lhe fora conferido pelo jovem rico, que chamou-o de bom mestre (Mc 10.18), mas ao fazer isso Ele não nega Sua perfeição moral. 0 jovem rico veio a Jesus da forma como naqueles dias uma pessoa deveria apresentar-se aos escribas e fariseus, com todos os tipos de saudações e tratamentos (Mt 23.7). Ele queria lisonjear Jesus e ganhar o Seu favor ao chamá-lo de bom mestre. Jesus não aceita esse tipo de lisonjas. Ele não quer ser sau-dado e honrado da mesma forma que os escribas o são. Bom, no sentido absoluto de ser a fonte de todos os benefícios e bênçãos, somente Deus. Dessa forma Jesus não nega Sua perfeição moral, mas as lisonjas do jovem rico. 0 mesmo aconteceu no Getsêmani. Sua natureza humana viu o sofrimento que o aguardava, tornar-se cada vez maior, e prova sua realidade ao orar pedindo que esse

cálice seja passado, mas ao mesmo tempo demonstra Sua perfei-ta submissão e obediência ao acrescentar o pedido para que o Pai faça a Sua própria vontade (Mt 11.27).

Mas nem mesmo nesse momento, no Getsêmani ou no Gólgota, nem uma só confissão de pecados flui de Seus lábios. Pelo contrário, tudo o que Ele é, e diz, * faz, está em perfeito acordo com * vontade santa de Deus. Todas as coisas que Ele revela em Suas palavras e atos com relação a Deus e Seu reino lhe são dadas pelo Pai (Mt 11.27).

Ele ensinava, não como os escribas, de forma escolástica, mas como quem tem autoridade, como quem recebeu plena auto-ridade profética do próprio Deus (Mt 7.29), e cuja autoridade se tor-nou manifesta em Seus atos. Ele expulsou os demônios pelo Espí-rito de Deus (Mt 12.28) e com o dedo de Deus (Lc 11.20), tem po-der para perdoar pecados (Mt 9.6), e poder também para entregar Sua própria vida e para reavê-la fio 10.18). Todo esse poder Ele re-cebeu do Pai. Jesus relaciona todas as Suas palavras e obras à or-dem de Seu Pai'". Fazer a vontade de Seu Pai é a Sua comida (jo 4.34),de forma que, ao final de Sua vida Ele pôde dizer que glorifi-cou Seu Pai, manifestou Seu

nome e cumpriu Sua missão fio 17.4,6). Essa relação existente en-

tre Jesus, Sua pessoa, Suas palavras e Suas obras, por um lado, e o

reino, de outro lado, é expressa em Seu caráter messiânico. Há,

agora, e haverá por muito tempo, uma séria investigação para defi-

nir se Jesus se considerava o Messias prometido e como Ele teria

tomado consciência disso.

Com relação à primeira questão, não pode haver dúvida de

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que qualquer pessoa que faça uma leitura imparcial dos Evan-

gelhos – não somente o Evangelho de João, mas também os de

Mateus, Marcos e Lucas – de que Jesus tinha plena consciência de

que era o Messias prometido. Para chegar a essa conclusão bas-

ta que se observe uns poucos fatos: Na sinagoga de Nazaré Cristo

declarou que a profecia de Isaías tinha se cumprido naquele dia

(Lc 4.17 ss.). Diante da pergunta de João Batista sobre se Jesus era

ou não o Messias, Cristo responde afirmativamente ao apontar

Suas obras como evidência (Mt 11.4 ss.). Ele aceita a declaração de

Pedro, que disse que Ele era o Cristo, o Filho do Deus vivo, e

afirma que Pedro pôde compreender esse fato por causa de uma

revelação do Pai (Mt 16.16,17). A oração da esposa de Zebedeu é

feita em um contexto de crença de

que Ele é o Messias, e Jesus a aceitou assim (Mt 20.20). Sua explica-

ção sobre o salmo 110 (Mt 22.42), Sua entrada triunfal em Jerusalém

(Mt 21.2 ss.), Sua ação no templo (Mt 21.12 ss.), Sua instituição da

Santa Ceia (MI: 26.26 ss.) – tudo isso repousa sobre a pressuposi-

ção de que Ele é o Messias, filho e Senhor de Davi, e que Ele pode

suplantar a velha Aliança por uma nova. E o que é absolutamente

conclusivo é o fato de que foi nada menos que a confissão de que

Ele era o Cristo, o Filho de Deus, que fez com que Ele fosse

condenado à morte (Me 14.62). A epígrafe da cruz: Jesus de Nazaré,

o Rei dos judeus, é o selo de tudo o que foi dito até aqui sobre a

consciência que Jesus tinha de que Ele era o Cristo prometido.

Como ou de que forma Jesus tomou consciência de que Ele era

o Messias prometido, é outra questão. A idéia comum, geralmente

aceita sobre essa questão, é a de que, a princípio, Jesus nada sabia

sobre isso, e que somente depois de Seu batismo ou até mesmo

mais tarde, depois da confissão de Pedro, foi que Ele tomou

consciência de que era o Messias. A suposição, então, é a de que Ele

aceitou essa conscienfização sob pressão, ou pelo menos como um

modo menos apropriado, porém, inevitável, de Seu chamado reli-

gioso. Todas essas pressuposições, contudo, são diametral-

mente opostas ao claro ensino da Escritura e à essência da persona-

lidade de Jesus. Não há dúvida de que houve um desenvolvimento

da consciência humana de Cristo, pois, nós lemos na Escritura que

Page 275: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

Ele crescia em sabedoria, estatura e Graça, diante de Deus e dos

homens (Lc 2.52). Seu discerni-mente humano sobre Sua própria

pessoa, sobre a obra que o Pai lhe tinha dado e sobre a natureza do

Reino que ele veio fundar foi gradualmente iluminada e aprofun-

dada no seio de Sua família em Nazaré, sob a orientação de sua

mãe, com a ajuda das Escrituras do Velho Testamento.

Essa iluminação e esse aprofundamento ocorreram de tal

forma, que aos doze anos, quando visitava o templo, Jesus já sabia

que devia ocupar-se com os negócios do Pai (Lc 2.49). E antes de

ser batizado por João Ele sabia que não tinha necessidade de

receber o batismo para remissão de pecados, mas que Ele tinha que

submeter-se ao batismo que em todas as coisas fosse obediente à

vontade de Deus. Esse batismo não representou para Jesus a que-

bra de um passado pecaminoso, pois Ele não possuía um passado

dessa natureza. Seu batismo foi, de Sua parte, uma total entrega e

dedicação à obra que o Pai lhe tinha dado e, da parte de Deus, foi

uma total capacitação para o desempenho dessa obra. João inic-

diatamente o reconheceu como Messias e, no dia seguinte, os dis-cípulos que Ele escolhera também o reconheceram como tal.

Mas podemos dizer que, de certa forma, essa confissão de que Jesus era o Messias prometido foi apenas uma confissão preliminar. Essa confissão estava emparelhada com todos os tipos de erros referentes à natureza da obra messiânica. Os discípulos, embora pensassem que Jesus fosse o Messias, eles pensavam que Ele fosse um Messias tal como os judeus daquele tempo geralmente o pintavam: um rei que se engajaria em uma batalha contra as nações pagãs e colocaria Israel como dominador de todas essas nações. Quando, depois de Sua aparição pública, Jesus não corresponde a essa expectativa, até mesmo João Batista fica em dúvida (Mt 11.2 ss.). E os discípulos tinham que ser constantemente corrigidos por Jesus e instruídos sobre essa questão. A expectativa messiânica judaica estava tão arraigada na alma deles que até mesmo depois da ressurreição de Jesus eles perguntaram se seria aquela a ocasião propícia em que o Senhor restauraria o reino a Israel

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(Aí 1.6).Essas concepções equivocadas que eram

geralmente aceitas, inclusive no círculo dos discípu-los, fizeram com que fosse necessário que Jesus, em Sua pregação, seguisse uma linha de interpretação específica e pedagógica. É bem sabido que Jesus, na primeira parte de Seu ministério, nunca diz claramente que Ele é o Cristo. 0 conteúdo de Sua pregação é o reino dos céus, e Ele explica a na-tureza, a origem, o processo e a plenitude do reino especialmente por meio de parábolas. E Suas obras são obras de misericórdia, através das quais Ele cura todo tipo de doença entre o povo. Essas obras dão testemunho dele, e a partir delas Seus discípulos, inclusive João Batista, vão elaborando em sua mente quem é o Messias e qual é o seu caráter. Isso pode ser apresentado de maneira mais forte: é mais ou menos como se a obra messiânica de Jesus fosse secreta e ainda não pudesse tornar-se pública. Quanto mais Sua obra messiânica vai se tornando evidente, mais Ele vai advertindo às pessoas que sejam discretas sobre isso"'. De fato, mesmo quando, já perto do fim de Seu ministério, os discípulos passaram a conhecê-lo melhor e, pela boca de Pedro, no caminho para Cesaréia de Filipe, confessam que Ele é o Cristo, o Filho do Deus

vivo, mesmo nessa ocasião Ele ordena que os discípulos não di-

vulguem essa notícia (Mt 16.20; Me 8.30). Jesus era o Cristo, mas

não o Cristo esperado pelos judeus. Ele não podia e não queria ser

visto como o Messias de acordo com as expectativas populares.

Quando o povo desconfiava que Ele era o Messias, os populares

tentavam pegá-lo à força para fazê-lo rei (jo 6.14,15). Ele era o

Messias e queria ser o Messias, mas em harmonia não com a von-

tade e o agrado do povo, mas com a vontade e o conselho do Pai, e

com a profecia do Velho Testamento.

Foi por isso que Ele escolheu, como um nome para ser usado em

relação a Si mesmo, o peculiar nome de Filho do homem. Esse

nome é mencionado por Ele repetidas vezes nos Evangelhos. Não

há dúvida de que esse nome é derivado de Daniel 7.13, onde os

reinos do mondo são apresentados como animais, mas o domínio

de Deus é feito através do Filho do Homem. Essa passagem, em

alguns círculos judaicos, era construída em um sentido messiânico

e esse nome era conhecido como uma designação do Messias (Jo

Page 277: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

12.34). Ao mesmo tempo esse termo parece não ter sido um nome

comum, e parece não ter tido um significado fixo. Nenhuma das

expectativas judaicas poderia ser conectada a esse

nome como eram conectadas aos nomes Filho de Davi e Rei de Israel. Portanto, esse nome era mais conveniente para Jesus pois expres-sava, por um lado, a idéia de que Ele era o Messias prometido na profecia, e, por outro, a idéia de que Ele não era o Messias espera-do pelo povo.

Isso pode ser provado pelo uso que Jesus faz desse nome. Ele usa esse título em referência a Si mesmo em duas séries de textos, a saber, na série em que Ele fala de Sua miséria, sofrimento e hu-milhação e na série em que Ele fala de Seu poder, majestade e exaltação. Ele diz, por exemplo, com relação à primeira série: " ... o Filho do homem, que não velo para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos" (Mt 20.28). Com relação à segunda série Ele diz, por exemplo: "... eu vos declaro que, desde agora, vereis o Filho do homem assentado à direita do Todo-poderoso e vindo sobre as nuvens do céu" (Mt 26.64). 0 mesmo tipo de pensamentos é encontrado em Mateus 8.20; 11.19; 12.40; 17.12; 18.11; 20.18, com relação à primeira série e em Mateus 9.6; 10.23; 12.8; 13.41; 16.27; 17.9; 19.28; 24.27, 25.13. Jesus se caracteriza por esse nome em Seu pleno caráter messiânico, em Sua humilhação, em Sua exaltação, em Sua Graça e em Seu poder, como Salvador e como juiz.

Nesse nome Ele engloba toda a profecia do Velho Testamento referente ao Messias. Como nós já indicamos, a expectativa messiânica se desenvolveu em duas direções, ou seja, na direção do Rei ungido da casa de Davi e na direção do Servo Sofredor do Senhor. Essas duas linhas correm paralelamente através do Velho Testamento e se encontram em Daniel. 0 Reino de Deus será, em um sentido pleno, um domínio, mas esse domínio será um domínio humano, o domínio do Filho do homem. E dessa forma Jesus é um Rei, o Rei de Israel, 0 Rei prometido e ungido de Deus. Contudo Ele é um Rei diferente daquele que os judeus esperavam. Ele é um Rei que cavalga sobre um jumento, cria de um animal de carga, um Rei de justiça e paz, um Rei que também é Sacerdote, um Rei que também é

*Salvador. Poder e amor, justiça*Graça, exaltação e humildade, Deus e homem estão conjugados nEle.

Ele é o perfeito cumprimento de toda a profecia e de toda a lei do Velho Testamento, de todo

o sofrimento e de toda a glória que serviram de preparação eprenúncio em

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Israel, Ele é a realidade tipificada pelos reis e sacerdotes de Israel, a realidade tipificada

pelo próprio povo de Israel, que tinha que ser um reino de sacer-

dotes e um sacerdócio real. Ele é

· Rei-Sacerdote e o Sacerdote-Rei,· Emanuel, o Deus Conosco. Portanto o Reino que Ele veio pregareestabelecer é ao mesmo tempo interno e externo, invisível e visível, espiritual e físico, presente e futuro, particular e universal, de cima e de baixo, vem do céu e já existe na terra. E Jesus voltará. Ele veio preservar o mundo, salvá-lo. Ele virá para julgá-lo.

Um outro aspecto ainda deve ser acrescentado a esse quadro de Jesus que os Evangelhos nos apresentam. Esse aspecto é que Ele tem consciência de ser o Filho de Deus em um sentido especial.

No Velho Testamento, o nome Filho de Deus também é usado para designar os anjos (J6 38.7), o povo de Israel"', os juizes do povo (SI 82.6) e os reis"'. No Novo Testamento Adão é chamado de filho de Deus (LI: 3.38), os membros da Aliança também recebem esse nome (2Co 6.18), e esse nome é usado de forma especial com relação a Cristo. De vários lados e por várias pessoas Ele é chamado por esse nome: por

João Batista e Natanael (lo 1.34, 49), por Satanás e pelos demôni- os"', pelo sumo sacerdote, pela multidão dos judeus, e pelo centurião (Mt 26,63; 27.40,54), pelos discípulos (Mt 14.33; 16.16), e pelos evangelistas (Me 1.1; Jo 20.31). É verdade que Jesus não atribui esse nome a Si mesmo com freqüência, mas Ele aceita essa confissão de Sua divina Filiação sem qualquer protesto, e em algumas ocasiões afirma ser o Filho de DeUS113.

Não pode haver dúvida de que nem todas as várias pessoas

que usaram esse nome para se referir a Jesus o fizeram em seu

sentido mais profundo. Esse nome não tem o mesmo significa-

do nos lábios do centurião (Mt 27.54), do sumo sacerdote (Mt

26.63), e de Pedro (Mt 16.16). 0 centurião era um pagão e não cha-

mou Jesus de Filho de Deus, mas de filho de Deus. 0 sumo sacer-

dote estava pensando especialmente na identidade messiânica,

pois ele perguntou se Jesus era o Cristo, o Filho de Deus. Mas quando

Pedro, que era una companheiro de Jesus, enfaticamente confessa

que Ele é o Cristo, o Filho do Deus vivo, que tem as palavras da vida

Page 279: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

eterna, sem dúvida esse nome assume um significado muito

mais profundo que os ou-

tros, um significado que os discípulos, mais tarde, depois da res-surreição, foram gradualmente entendendo mais plena e ricamente.

De fato em um sentido teocrático veterotestamentário Jesus

também pode ser designado por esse nome. Como Rei ungido de

Deus Ele pode ser chamado de Filho de Deus. Ele é o Filho do

Altíssimo, a quem o Senhor Deus dará o trono de Seu pai Davi (Le

1.32). Ele é a semente santa que nasceu de Maria (Lc 1.35), o Santo

de Deus, como o demônio lhe chamou (Me 1.24). Ele é o Filho do

Deus Bendito, como o sumo sacerdote perguntou para especificar

mais claramente o Messias (Me 14.61). Mas essa significação

teocráfica tem em Jesus um sentido mais profundo que os outros, e

nele ela expressa um relacionamento específico entre Jesus e o

Pai. Ele não se tornou Deus por ter nascido de Maria (Lc 1.35), nem

porque no batismo Ele recebeu o Espírito Santo, sem medida (Mt

3.16). E também não foi em virtude de Sua ressurreição que Ele foi

feito Senhor e Cristo, por Deus (At 2.36). De fato, em todas essas

ocasiões Ele foi reconhecido pelo Pai como sendo o Filho, mas Seu

mérito messiânico não teve origem nessas ocasiões. Ele teve

origem

muito antes. A Escritura não nosensina que Jesus é chamado deFilho de Deus porque Ele é o Reiungido de Israel, o Messias, maso contrário, que Ele foi feito Reiporque Ele é, em um sentido in-teiramente único, o Filho de Deus.'Está além de qualquer dú-vida que, onde quer que a Escri-tura apresente esse assunto, ele éapresentado exatamente dessaforma. Em Miquéias 5.2 nós lemosque as origens daquele que há dereinar em Israel remontam aostempos antigos, à eternidade. EmHebreus 13; 5.5 e Salmo 2.7 é ex-plicado que desde a eternidadeCristo, o Filho, o brilho da glóriade Deus e a exata expressão deSeu Ser é gerado pelo Pai. E emRomanos 1.4 o apóstolo declara

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que Cristo foi designado Filho deDeus em poder, pela ressurreiçãodos mortos. Ele é o Filho de Deusem um sentido especial desde aeternidadel", mas em Sua concep-ção sobrenatural, em Seu batismoe em Sua ressurreição, essaFiliação se tornou mais evidente.Esse mesmo ensino nós en-contramos nos Evangelhos deMateus, Marcos e Lucas. Jesustem plena consciência de manteruma relação com o Pai de formaessencialmente diferente de todasas outras pessoas. Desde cedo Elesabia que tinha que se ocupar comos negócios de Seu Pai (Lc: 2.49).

Em Seu batismo e, posteriormente, no monte da transfiguração, Deus declara abertamente, através de uma voz do céu, que Ele é o Seu Filho amado, em quem Ele se compraz (Mt 3.17; 17.5).

Ele fala de Si mesmo como o Filho que é exaltado acima de todos os anjos (Mt 24.36; Me 13.32). Outros homens que foram enviados por Deus são servos, mas ele é o Filho, o Filho amado do Pai e Seu herdeiro (Mc 12.6,7). 0 reino no qual Ele reina lhe foi confiado pelo Pai (Lc 22.29). Ele envia sobre Seus discípulos a promessa de Seu Pai (Lc 24.49). E algum dia ele voltará na glória de Seu Pai (Mc: 8.38). Ele nunca se refere a Deus como nosso Pai, mas sempre como Seu Pai, exceto quando ensina os discípulos a orar (Mt 6.9). Em =a palavra, Ele é o Filho (Me 13.32), enquanto todos os Seus discípulos são filhos de seu Pai (Mt 5.45). Tudo lhe foi entregue por Seu Pai e ninguém conhece o Filho senão o Pai e ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar (Mt 11.27). E depois da ressurreição Ele dá aos Seus discípulos a ordem de ensinar todas as nações, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinado-os a observar tudo o que Ele lhes tinha ordenado (Mt 28.19).

0 Evangelho de João, no

qual não é apenas o evangelista, mas também o apóstolo que está falando, nada acrescenta de essencialmente novo em tudo o que foi dito, mas trabalha com todas essas informações de forma bem mais profunda e mais ampla. Em seu Evangelho o nome Filho de Deus também possui, em alguns casos, um sentido teocráticol", mas geralmente esse nome é

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usado em um sentido mais profundo. Não somente Jesus é chamado de Filho de Deus por outras pessoas (1.34,50, 6.69), mas Ele mesmo se apresenta dessa forma"'. E em algumas ocasiões Ele fala sobre Si mesmo como o Filho, sem acrescentar qualquer outra designação. Dessa forma Ele atribui a Si mesmo o poder de realizar milagres (9.35; 11.4), de ressuscitar mortos, espiritualmente e fisicamente, trazendo-os à vida (5.20 ss.), e como os próprios judeus entenderam, se faz igual a Deus (5.18; 10.33 ss.). Ele fala do Pai e de Si mesmo como o Filho de uma forma tão íntima, que só faz sentido se Deus for o Seu Pai (5.18). Tudo o que ele atribui ao Pai, atribui também a Si mesmo.

0 Pai lhe deu poder sobre toda carne (17.2), de for= que o destino de todos os homens depende do relacionamento que possuem com Ele (jo 3.17; 6.40). Assim como o Pai ressuscita e vivifica os mortos, assim também o Filho vivifica aqueles a quem quer (5.21), executa julgamento sobre todos (5.27), faz tudo de forma semelhante ao Seu Pai (5.19), e recebeu do Pai o poder de ter a vida em Si mesmo (5.26). Ele e o Pai são um (10.30). Ele está no Pai e o Pai está nEle (10.38), e ver o Pai é ver o Filho (14.9). De fato, o Pai é maior que ele porque o Pai o enviou, como Jesus repetidamente declara (14.28; 5.24,30, 37). Mas isso não anula o fato de que Ele estava na glória de Deus antes da encarnação e retomará para ela (17.5). Sua Filiação não está baseada em sua missão, mas Sua missão está baseada em sua filiação"'. Portanto ele é o Filho, o Filho unigêniton`1, o primogénito do Pai (1.14), o Verbo que no começo estava com Deus e que era Deus (1.1), o Salvador do mundo (4.42), que Tomé confessou como seu Senhor e seu Deus (20.28).

Capítulo 16

A NATUREZA DIVINA E A

NATUREZA HUMANA DE

CRISTO

O testemunho que, segundo a Escritura, Cristo deu d e s i m e s m o é

d e s e n v o l vido e confirmado pela pregação dos apóstolos. A confissão de

que um homem, chamado Jesus, é o Cristo, o Unigênito do Pai, está em um

conflito tão direto com nossa experiência e com nosso pensamento e em

especial com todas as inclinações de nosso coração, que ninguém pode

Page 282: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

completamente e com toda a sua alma crer nisso sem a atividade persu-

asiva do Espírito Santo. Pela natureza tudo está em inimizade com essa

confissão, pois essa não é uma confissão natural para o homem. Ninguém

pode confessar que Jesus Cristo é o Senhor, a não ser através do Espírito

Santo, e ninguém que fala pelo Espírito de Deus pode dizer: "Anátema,

Jesus!", mas deve reconhecê-lo como seu Salvador e Rei (ICo 12.3).

Portanto, quando Cristo aparece na terra e se apresenta como o Filho de Deus, ele não permite que esse ensino se perca, mas tem o cuidado, e continua tendo o cuidado, de fazer com que esse ensino entre no mundo e seja crido pela Igreja. Ele chamou Seus apóstolos e os instruiu, e fez com que eles se tornassem testemunhas de Suas palavras e de Seus atos, de Sua morte e de Sua ressurreição. çao. Ele lhes deu o Espírito Santo, que os levou pessoalmente à confissão de que Ele era o Cristo, o Filho do Deus vivo (Mt 16.16), e que mais tarde, desde o dia de Pentecostes, transformou-os em ministros e pregadores de tudo o que seus olhos viram e suas mãos tocaram com relação ao Verbo da vida (1Jo 1.1). Os apóstolos não eram as reais testemunhas. O Espírito da verdade, que procede do Pai, é a original, infalível e poderosa testemunha de Cristo, e os apóstolos são testemunhas nEle e através dEle (Jo 15.26; At 5.32). E é o mesmo Espírito da verdade que, através dos tempos, traz a Igreja a essa confissão e conserva-a nela: "Senhor, para quem iremos? Tu tens as palavras da vida eterna; e nós temos crido e conhecido que tu és o Santo de Deus" (Jo 6.68,69).

Quando os quatro evangelistas em ordem regular registram os eventos da vida de Jesus, eles geralmente se referem a Ele simplesmente pelo nome de Jesus, sem qualquer qualificação ou adendo particular. Eles nos dizem que Jesus nasceu em Belém, que Jesus foi levado ao deserto, que Jesus viu a multidão e subiu ao monte, e assim por diante. Jesus, a pessoa histórica que viveu e morreu na Palestina, é o objeto da crônica dos evangelistas. E da mesma forma nós encontramos algumas vezes nas cartas dos apóstolos, Jesus sendo designado simplesmente pelo Seu nome histórico. Paulo diz, por exemplo, que ninguém pode dizer que Jesus é o Senhor, a não ser pelo Espírito Santo (1Co 12.3). João dá testemunho de que aquele que crê que Jesus é o Cristo é nascido de Deus (1Jo 1.5; compare 2.22 com 4.20).

E no livro de Apocalipse nós lemos sobre a fé em Jesus e o testemunho de Jesus.

O uso desse nome sem qualificação nas cartas dos apóstolos é raro. Usualmente o nome é citado em conexão com o Senhor, Cristo, o Filho de Deus, e designações semelhantes, e o nome completo citado com mais fre-qüência é Jesus Cristo nosso Senhor. Mas, independente do fato do nome de Jesus ser citado sozinho ou ligado a outros nomes, a sua conexão com a pessoa histórica que nasceu em Belém e morreu na cruz está sempre presente.

Todo o Novo Testamento, tanto as cartas dos apóstolos quanto os Evangelhos, repousa sobre o fundamento de fatos históricos. A figura de Cristo não é uma idéia nem um ideal criado pela mente humana, como muitos pensavam no passado, e como alguns em nosso tempo ainda pen-sam, mas uma figura real que se manifestou em um período específico e em

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uma pessoa específica, um homem chamado Jesus.De fato, os vários eventos da vida de Jesus formam o pano de fundo das

cartas. Essas cartas têm um propósito diferente dos Evangelhos. Elas não são uma crônica da história da vida de Jesus, mas um registro da importância que essa vida tem para a redenção do homem. Contudo todos os apóstolos estão familiarizados com a

vida de Jesus, conhecem muito bem Suas palavras e atos, e nos

mostram que esse Jesus é o Cristo, exaltado por Deus à Sua mão

direita, a fim de conceder o arrependimento e a remissão de pecados

(At 2.36; 5.31).

Portanto, é comum as cartas dos apóstolos mencionarem eventos da vida de Jesus. Eles o pintam diante dos olhos de seus ouvintes e leitores (GI 3.1). Eles dão ênfase ao fato de que João Batista foi Seu arauto e precursor (At 13.25; 19.4), que Ele procede da família de Judá e do tronco de Davi (Rrá 1.3; Ap 5.5; 22.16), que Ele nasceu de uma mulher (G14.4), foi circuncidado ao oitavo dia (Rm 15.8), que Ele veio de Nazaré (At 2.22; 3.6), e que ele tinha irmãos (1 Co 9.5; G11.19). Eles nos dizem que Ele era perfeitamente santo e sem pecadol69, que Ele se ofereceu para ser nosso exemplo (1Co 11.1; 1Pe 2.21), e que Ele falou palavras que têm autoridade para nós (At 20.35; 1Co 7.10-12). Mas é especialmente Sua morte que é importante para nós. A cruz está no ponto central da pregação apostólica. Traído por um dos doze apóstolos que Ele tinha escolhido (1Co 11.23; 1Co 15.5), e não reconhecido pelos príncipes

deste mundo como o Senhor da glória (1Co 2.8), Ele foi entregue à morte pelos judeus (At 4.10; 5.30; lTs 2.15), e morreu sobre o maldito madeiro da cruz170. Mas embora tenha sofrido muito no Getsêmani e no Gólgota 1", pelo derramamento de Seu sangue Ele alcançou a reconciliação e a justiça eterna"', E portanto Deus o ele-

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vou, exaltou-o à Sua mão direita, e fez dEle Senhor e Cristo, Príncipe e Salvador para todas as na-

ções 173.

Esses poucos dados são suficientes

para colocar em evidência que os

apóstolos não negavam, não ignoravam

e não negligenciavam os fatos do

Cristianismo, pelo contrário, eles honraram

plenamente esses fatos e apresentaram

seu sentido espiritual. Não é encontrado

nos apóstolos um traço sequer de qualquer

tipo de separação ou conflito entre o

evento redentivo e a palavra redentiva, no

entanto, muitos homens do passado

tentaram defender a existência desse

conflito. O evento redentivo é a realização

da palavra redentiva; no evento redentivo

a palavra redentiva as-

surre sua real e verdadeira forma, bem como sua iluminação e inter-pretação.

Page 285: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

Se ainda permanecer alguma dúvida, ela será totalmente eliminada pela batalha que os apóstolos, já em seus dias, tiveram que travar. Não foi somente no segundo, terceiro e quarto séculos, mas também no período apostólico certos homens surgiram que consideravam os fatos do Cristianismo como sendo de pouca ou de transitória importância, e até mesmo ignoravam esses fatos, afirmando que a idéia é a coi-sa principal, ou, pelo menos, é suficiente. Que diferença faz, eles perguntavam, se Cristo ressuscitou com corpo físico ou não? Se Ele vive, mesmo que seja somente em espírito, nossa salvação está suficientemente assegurada! Mas o apóstolo Paulo pensa de forma muito diferente sobre isso e, em lCoríntios 15, apresenta a realidade e a importância da ressurreição do modo mais claro possível. Ele prega Cristo segundo as Escrituras, o Cristo que, de acordo com o conselho do Pai, morreu, foi sepultado, e ressuscitou, que depois de Sua ressurreição foi visto por muitos discípulos, e cuja ressurreição é o fundamento e a garantia da salvação. E, na medida do possível, João coloca ainda mais

ênfase sobre esse fato ao declarar o que viu com seus olhos e apal-

pou com suas mãos com respeito ao Verbo da vida (1Jo 1.1-3). O

princípio do anticristo é que ele nega a encarnação do Verbo; e a

confissão cristã, ao contrário, consiste na crença de que o Verbo se

fez carne, que o Filho de Deus veio por meio de água e sangue

(jo 1.14; Ijo 3.2,3; 5.6). Toda a pregação apostólica nas cartas e nos

Evangelhos, portanto, todo o Novo Testamento prega que Jesus,

nascido de Maria e crucificado, é o Cristo, o Filho de Deus"".

Agora merece atenção o fato de que, em conexão com o conteúdo e o propósito

Page 286: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

da pregação apostólica, o uso do nome Jesus sem qualquer qualificação, é raro nas cartas. Usualmente os apóstolos falam de Jesus Cristo ou de Cristo Jesus, ou até mesmo o nosso Senhor Jesus Cristo. Até mesmo os evangelistas, que em sua crônica usam freqüentemente o nome Jesus, usam, seja no começo ou em algum ponto importante de seu Evangelho, o nome com-

pleto Jesus Cristo. 171 . Eles fazem

isso para indicar quem é a pessoa sobre a qual eles escrevem em seu Evangelho. Em Atos e nas cartas esse uso se torna uma prática regular. Os apóstolos falam de um ser humano cujo nome era Je-

sus, mas, ao acrescentar o termo Cristo ou Senhor eles expressam sua idéia sobre quem esse homem é. Eles foram pregadores do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus que apareceu sobre a terra.

Dessa forma eles gradualmente, durante seu

convívio com Ele, aprenderam a conhecê-lo. E

especialmente depois desse importante momento em

Cesaréia de Filipe uma luz brilhou sobre eles a

respeito da pessoa de Jesus, e todos eles, com

Pedro, confessaram que Ele é o Cristo, o Filho do

Deus vivo (Mt 16.16). Dessa forma Jesus se revelou

a eles, mais ou menos oculto sob o nome Filho do

homem, mas de forma cada vez mais clara na

medida em que o fim de Sua vida se aproximava. Em

Sua oração sacerdotal Ele se apresenta como Jesus

Cristo, enviado pelo Pai (Jo 17.3). Precisamente

porque Ele se dispôs a ser o Cristo, o Filho de Deus,

Ele foi condenado pelo Sinédrio por blasfêmia e

condenado à morte (Mt 26.63). E a epígrafe sobre Sua

cruz era: Jesus de Nazaré, o Rei dos Judeus (Mt

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27.37; Jo 19.19).

É verdade que os discípulos não conseguiam conciliar essas reivindicações messiânicas de Jesus com a aproximação de Sua paixão e morte. Mas através da ressurreição e depois dela, eles aprenderam a conhecer também a necessidade e o significado da

cruz. Depois da ressurreição eles aprenderam que Deus tinha feito esse Jesus, que os judeus destruíram, Senhor e Cristo, e que o tinha exaltado como Príncipe e Salvador (At 2.36; 5.31). Isso não quer dizer que antes de Sua ressurreição Cristo não fosse Senhor e Cristo, e que somente depois da ressurreição Ele se tomou Senhor e Cristo, pois Cristo tinha se apresentado como o Cristo antes disso, e tinha sido reconhecido e confessado como tal pelos Seus discípulos (Mt 16.16). Mas antes da ressurreição Ele era o Messias na forma de servo, em uma forma que Sua dignidade como Filho de Deus estava escondida aos olhos dos homens. Na ressurreição e depois dela, Ele colocou de lado a forma de servo. Ele reassumiu a glória que tinha com o Pai antes que o mundo existisse Uo 17.5), e foi designado Filho de Deus em poder, segundo o Espírito de san-tidade pela ressurreição dos mortos (Rm 1.4).

É por isso que Paulo pôde dizer, depois que Deus se agradou em revelar Seu Filho a ele, que não conhecia Cristo segundo a carne (2Co 5.16). Antes de seu arrependimento ele conhecia Cristo somente segundo a carne, julgava-o somente por Sua aparência externa, segundo a forma de servo de acordo com a qual Ele andava sobre a terra. Nessa época ele não podia crer que esse Je-

sus, que não possuía qualquer glória, que foi pregado numa cruz para

que morresse, fosse o Cristo. Mas através de sua conversão tudo

isso mudou. Agora ele conhece e julga Cristo não de acordo com a

aparência, não segundo formas servis, temporais e externas, mas

segundo o Espírito que estava em Cristo, de acordo com o que Ele

era realmente internamente, e na ressurreição externamente provou

ser.

E o mesmo pode ser dito sobre todos os apóstolos. É verdade que antes da paixão e morte de Cristo eles tinham sido trazidos à confissão de Sua realidade messiânica, mas em sua mente essa realidade continuava sendo irreconciliável

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com Sua paixão e morte. Só a ressurreição reconciliou esses dois lados da questão. Ele era agora para eles o mesmo Cristo que desceu às partes inferiores da terra e ascendeu acima de todos os céus, para que pudesse cumprir todas as coisas (Ef 4.9). Ao falar sobre Cristo os apóstolos pensavam naquele Cristo que fora humilhado e exaltado, no Cristo crucificado e glorificado. Eles conectaram seu Evangelho não somente com o Jesus histórico, que viveu alguns anos na Palestina e morreu ali, mas também ao Jesus que é exaltado e está assentado à direita de Deus em poder.

Eles estão no ponto em que se encontra a linha horizontal, que está vinculada ao passado, à história, e a linha vertical, que faz a conexão entre eles e o Senhor que vive no céu. Portanto, o Cristianismo é uma religião histórica, mas ao mesmo tempo é uma religião que vive na eternidade. Os discípulos de Cristo não são, segundo seu nome histórico, jesuítas, mas, segundo o nome de Seu ofício, cristãos.

Essa posição específica que os

apóstolos assumiram em sua pregação

depois da ressurreição é a razão pela qual

eles não se referiam a Jesus somente pelo

Seu nome histórico, mas virtualmente

falavam dele como Jesus Cristo, Cristo

Jesus, ou Senhor Jesus Cristo, e outras

formas semelhantes. O nome de Cristo

logo perdeu seu significado oficial no cír-

culo dos discípulos e eles começaram a

usar um outro nome. A convicção de que

Jesus era o Cristo era tão forte que Ele

podia simplesmente ser chamado

Page 289: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

Cristo, mesmo sem o artigo que o

precede. Isso ocorre até mesmo nos

Evangelhos"'. Mas com os apóstolos,

especialmente com Paulo, essa se torna

a regra. Os dois nomes, Jesus Cristo,

chegam

a ser invertidos, especialmente por Paulo, para que a

realidade messiânica de Cristo ficasse ainda mais

acentuada, e o nome passou a ser Cristo Jesus. Essa

designação, Jesus Cristo ou Cristo Jesus, era o

nome mais destacado nas igrejas apostólicas. O uso

e significado do nome Messias no Velho Testamento

é transferido para o nome Cristo no Novo Tes-

tamento. O Nome do Senhor, ou somente o Nome

era, no Velho Testamento, a denominação dada à

glória revelada de Deus. Nos dias do Novo

Testamento essa glória foi revelada em Cristo, e

por isso agora a força da Igreja está em Seu nome.

Nesse nome os apóstolos batizam (At 2.38), falam e

ensinam (At 4.18), curam o coxo (At 3.6), e perdoam

pecados (At 10.43). Há muita resistência e muitos

ataques a esse nome (At 26.9). A confissão desse

nome traz sofrimento (At 5.41). Esse nome é temido

(At 22.8) e engrandecido (At 19.17). Nesse sentido o

nome de Jesus Cristo é um tipo de compêndio da

confissão da Igreja, é a força de sua fé e a âncora de

sua esperança. Assim como Israel nos tempos do

Velho Testamento glorificava o nome de Jeová, assim

a Igreja do Novo Testamento encontra sua força no

nome de Jesus Cristo. Nesse nome o nome de

Jeová encontra sua plena revelação.O nome Senhor, que no Novo Testamento

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é constantemente conectado ao nome Jesus Cristo,

aponta na mesma direção. Nos Evangelhos Jesus é

chamado de Senhor várias vezes e por várias

pessoas além de Seus discípulos, que vão até Ele

pedindo socorro. Em tais casos o nome não carrega

sobre si mais força do que Rabi ou Mestre. Mas esse

nome também é mencionado várias vezes pelos

discípulos117 . Nos Evangelhos de João e de Lucas o

nome Jesus Cristo é freqüentemente trocado pelo

nome Senhor'7'. E, finalmente, o próprio Jesus faz

uso desse nome e se apresenta como Senhor'".

Na boca do próprio Jesus e na de Seus discípulos esse nome de Senhor

recebe um significado mais profundo do que aquele contido no nome Rabi ou

Mestre. Não podemos dizer exatamente o que todos aqueles que vão à

procura de Jesus para lhe pedir socorro têm em mente quando pronunciam

esse nome, mas Jesus era em Sua própria consciência o Mestre, o Senhor

preeminente, e Ele atribui uma autoridade a Si mesmo que vai muito além da

autoridade dos estribas. É evidente que em passagens como Mateus 23.1- 11

e Marcos 1.22,27 Jesus se coloca como único Mestre, acima de todos

os outros. Mas isso é destacado e colocado acima de qualquer dúvida

quando Ele afirma ser o Senhor do sábado (MT 12.8) e o Filho de Davi

e Senhor de Davi (Mt 22.43-45). A implicação dessas afirmações é que

Ele é o Messias, que está assentado à direita do Pai, compartilha de

Seu poder e julga os vivos e os mortosno.

Esse profundo significado

que está ligado ao nome Senhor é,

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em parte, devido ao fato de que os nomes de Jeová e Adonai do Velho Testamento foram traduzi-

dos pelo termo grego Kurios, que

significa Senhor, isto é, pela mesma palavra que era aplicada a

Cristo. Como Cristo vai se revelando cada vez mais e os discípulos

vão entendendo cada vez melhor a revelação de Deus em Cris-

to, o nome Senhor ganhou um sig-

nificado cada vez mais rico. Textos do Velho Testamento nos

quais Deus falou são aplicados a Cristo no Novo Testamento sem

hesitação. Dessa forma em Marcos 1.3 os texto de Isaías: "Voz do que

clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas

veredas", é aplicado à preparação feita por João Batista. Em Cristo o

próprio Deus, o Senhor, veio ao Seu povo. E os discípulos, ao

confessarem Jesus como

Senhor, expressam cada vez mais e mais claramente que Deus se

revelou e se deu a eles na pessoa de Cristo. Tomé atinge o clímax

dessa confissão durante a jornada de Jesus na terra quando se

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joga aos pés do Cristo ressuscitado e lhe diz: "Senhor meu e Deus

meu!" Uo 20.28).

Depois da ressurreição o

nome Senhor se torna o nomecomumente usado para designar Jesus no círculo de Seus discípulos.

Nós encontramos esse nome sendo continuamente usado em Atos e

nas cartas, especialmente nas cartas de Paulo. Algumas ve-

zes o nome Senhor é usado sozi-

nho, mas usualmente ele é combinado com outras designações: O

Senhor Jesus, ou o Senhor Jesus Cristo, ou nosso Senhor Jesus Cristo,

ou nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, e assim por diante. Ao usar

esse nome os crentes expressam o fato de que Aquele que foi

humilhado ao ponto de morrer na cruz, foi, em razão de Sua perfeita

obediência, elevado a Senhor e Príncipe (At 2.35; 5.31), está assentado

à mão direita de Deus (At 2.34), é Senhor sobre todos (At 10.36),

primeiro sobre a Igreja que Ele comprou com Seu sangue (At 20.28),

e também de toda a criação, que Ele um dia julgará como Juiz de

vivos e mortos (At 10.42; 17.31).

Portanto, todo aquele que invocar o nome de Jesus como Cristo e Senhor será salvo (At 2.21; 1Co 1.2). Ser cristão é confessar com a boca e crer com o coração que Deus o ressuscitou dos mortos"'. O conteúdo da pregação é: Cristo Jesus, o Senhor (2Co 4.5). A

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essência do Cristianismo está tão concentrada nessa confissão que nos escritos de Paulo é usado o nome de Senhor como um nome aplicado a Cristo em distinção ao Pai e ao Espírito. Como cristãos nós temos um Deus, o Pai, de quem são todas as coisas, e um Senhor Jesus Cristo, por quem são todas as coisas, e um Espírito, que distribui a cada um conforme a Sua vontade (1Co 8.6; 12.11). Assim como o nome de Deus nos escritos de Paulo se torna o nome doméstico do Pai, da mesma forma o nome Senhor se torna o nome doméstico de Cristo.

A bênção apostólica diz que a Igreja deve ter a Graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus, e a comunhão do Espírito Santo (2Co 13.13). O único Deus se interpreta em três pessoas: o Pai, o Filho e o Espírito (Mt 28.19).

Se Cristo, de acordo com o

testemunho dos apóstolos, ocupa um lugar tão elevado, não é de se maravilhar que todos os tipos de atributos e obras divinas sejam atribuídos a Ele, e que até mesmo a natureza divina seja reco-nhecida nEle.

A figura que nós encontramos na pessoa de Cristo através das páginas das Escrituras é uma figura única. Por um lado Ele é homem. Ele se tomou carne e veio em carne (Jo 1.14; 1Jo 4.2,3). Ele nasceu em semelhança de carne pecaminosa (Rm 8.3). Ele descende dos patriarcas, segundo a carne (Rm 9.5), da descendência de Abraão (G13.16), da linhagem de Judá (Hb 7.14), e da geração de Davi (Rm 1.3). Ele nasceu de uma mulher (GI 4.4), compartilha de nossa carne e sangue (Hb 2.14), possui um espírito (Mt 27.50), uma alma (Mt 26.38), e um corpo (1 Pe 2.24), e era humano no sentido mais pleno. Como uma criança Ele cresceu, desenvolveu um forte espírito, e aumentou em estatura, sabedoria e Graça, diante de Deus e dos homens (Lc 2.52). Ele teve fome e sede, tristeza e alegria, foi movido por emoções e tomado de raiva 182. Ele se submeteu à lei e foi obediente até a morte 113. Ele sofreu, morreu na cruz e foi sepultado em um lar-

dim. Ele não tinha aparência nem formosura; olhamo-lo, mas ne-

nhuma beleza havia que nos agradasse. Era desprezado e o mais re-

jeitado entre todos os homens; homem de dores e que sabe o que é

padecer (Is 53.2,3).

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Contudo esse mesmo homem foi distinto de todos os homens e elevou-se acima deles. Ele não foi concebido pelo Espírito somente no que se refere à Sua natureza humana; Ele não apenas foi isento, em toda a Sua vida, do pecado; e Ele, não somente foi ressuscitado e elevado ao céu. A mesma pessoa, o mesmo Eu que se humilhou tão profundamente, que assumiu a forma de servo e foi obediente até a morte na cruz, já existia em uma forma diferente de existência, antes mesmo de Sua encarnação e humilhação. Ele existia na forma de Deus, e apesar disso não teve por usurpação o ser igual a Deus (Fp 2.6). Em Sua ressurreição e ascensão Ele simplesmente recebeu novamente a glória que tinha com o Pai antes que o mundo existisse (jo 17.5). Ele é eterno como o próprio Deus, e estava com Ele no começo (Jo 1.1; 1Jo 1.1). Ele é o Alfa e o Ômega, o primeiro e o último, o princípio e o fim (Ap 22.13). Ele é onipresente, apesar de ter anda-

do sobre a face da terra (Jo 1.18; 3.13); e depois de Sua glorificação

Ele permanece com a Igreja e cum-

pre tudo em tod OS114 ; Ele é imu-

tável e fiel e é o mesmo ontem, hoje e o será para sempre (Hb

13.8); Ele é onisciente e ouve nossas oraçoesu". Ele é aquele que

conhece o coração do homem (At 1.24); Ele é onipotente, e todas as

coisas estão sujeitas a Ele e todo poder lhe foi dado no céu116 e na

terra, e Ele é o chefe de todos os reis.

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Na medida em que possui os atributos divinos Cristo participa da realização das obras divinas. Juntamente com o Pai e com o Espírito Ele é o Criador de todas as coisas (Jo 1.3; Cl 1.5). Ele é o Unigênito, o começo, e o Cabeça de todas as criaturas (Cl 1.15; Ap 3.14). Ele sustenta todas as coisas pela palavra de Seu poder, de forma que elas não são apenas dEle, mas também nEle e através dEle (Hb 1.3; CI 1.17). E, acima de tudo, Ele preserva, reconcilia e restaura todas as coisas e as reúne abaixo de Si mesmo, sendo-lhes por Cabeça. Como tal Ele recebe especialmente o nome de Salvador do mundo. No Velho Testamento o nome de Salvador ou Redentor era dado a Deus' 87,

mas no Novo Testamento tanto o

Filho quanto o Pai recebem esse nome. Em alguns lugares esse nome é dado a Deus"', e em alguns lugares ele é atribuído a Cristo"'. Em alguns casos não fica muito claro se esse nome se refere a Deus ou a Cristo (Tt 2.13; 2Pe 1.1), mas é em Cristo e através dEle que toda a obra salvadora é executada.

Tudo isso aponta para uma unidade entre o Pai e o Filho, entre Deus e Cristo, tal como existe entre o Criador e Sua criatura. Embora Cristo tenha assumido uma natureza humana finita e ]imitada e que começou a existir no tempo como pessoa, Cristo não é apresentado na Escritura como estando do lado da criatura, mas do lado de Deus. Ele compartilha das virtudes e das obras de Deus; Ele possui a mesma natureza de Deus. Esse último ponto é esclarecido especialmente através de três nomes que são dados a Cristo: Imagem de Deus, Verbo e Filho de Deus.

Cristo é a Imagem de Deus, o brilho da glória de Deus e a expressão exata de Sua pessoa10. Em Cristo o Deus invisível se torna visível. Quem vê Cristo vê o Pai (Jo 14.9). Quem quiser saber quem e o que Deus é, deve contemplar Cristo. Como Cristo é,

assim é o Pai. Cristo é o Verbo de Deus (Jo 1.1; Ap 19.13). Em Cristo o Pai expressa perfeitamente: Sua sabedoria, Sua vontade, Suas excelências, enfim, todo o Seu Ser. O Pai concedeu a Cristo ter vida em Si mesmo (Jo 5.26). Quem quiser conhecer o pensamento de Deus, o conselho de Deus e a vontade de Deus para o homem e para o mundo deve ouvir o que Cristo tema dizer (Mt 17.5). Finalmente, Cristo é o Filho de Deus, o Filho,

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como diz João, geralmente sem qualquer qualificação (ljo 2.22; Hb 1.1,8), o Unigênito, o Filho amado, em quem o Pai se compraz111. Quem quer que seja um filho de Deus, deve aceitá-lo, pois todo aquele que o aceita recebe o poder de ser feito filho de Deus (Jo 1.12).

Tomé confessou-o como Senhor e Deus pouco tempo antes de Sua ascensão (jo 20.28). João dá testemunho de que Cristo era o Verbo que estava com Deus no princípio e que era Deus. Paulo declara que Cristo descende dos patriarcas, segundo a carne, mas segundo Sua essência Ele é Deus, o qual é sobre todos, Deus bendito para sempre (Rm 9.5). A carta aos Hebreus afirma que ele é exaltado acima dos anjos e é pelo pró-prio Deus chamado de Deus (Filo

1.8,9). Paulo fala de Jesus como nosso Deus e Salvador Jesus Cristo

(2Pe 1.1). No mandato batismal de Jesus como registrado em Mateus

28.19 e nas bênçãos dos apóstol0s112, Cristo está em pé de igualdade

com o Pai e com o Espírito. O nome e a essência, os atributos e as

obras de Deus são reconhecidos no Filho (e no Espírito) tanto quanto

no Pai.

Jesus, o Cristo, o Filho do Deus vivo – sobre essa pedra a Igreja está edificada. Desde o princípio o completo significado de Cristo estava claro para os crentes. Ele era confessado por todos eles como o Senhor que por Seu ensino e por Sua vida con-quistou a salvação, o perdão de pecados e a imortalidade, que foi elevado à mão direita do Pai e que logo retomará como Juiz para julgar os vivos e os mortos. Os mesmos nomes que lhe são dados nas cartas dos apóstolos, são encontrados também nos mais antigos escritos cristãos. Por esses mesmos nomes Ele é identificado nas antigas orações e cânticos. Todos estavam convencidos de que há um Deus, de que eles são Seus filhos, um Senhor, que lhes assegurou o amor do Pai e um Espírito, que faz com que todos eles andem em novidade de vida. O mandato batismal de Mateus 28.19, que se tornou comum no final do pe

ríodo apostólico, é a evidência dessa unanimidade de convicção.

Mas no momento em que os cristãos começam a refletir sobre o conteúdo dessa confissão, todos os tipos de diferença de opinião começam a surgir. Os membros da

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igreja que foram previamente instruídos no judaísmo ou no paganismo e que passaram a maior parte de suas vidas entre os indoutos do país não estavam em uma posição adequada para receber o ensino apostólico. Eles viviam em uma sociedade na qual todos os tipos de idéias e correntes de pensamento estavam entrelaçadas, e por isso eles estavam constantemente sujeitos à tentação e ao erro. Até mesmo durante a vida dos apóstolos vários mestres heréticos forçaram caminho rumo à Igreja e tentaram abalar sua crença. Em Colossos, por exemplo, havia membros que faziam injustiça à pessoa e obra de Cristo e transformavam o Evangelho em lei (Cl 2.3 ss., 16 ss.). Em Corinto havia certos libertinos que, abusando da liberdade cristã, queriam viver sem qualquer tipo de regra (1Co 6.12; 8.1). O apóstolo João, em sua primeira carta, argumenta contra certos falsos profetas que negavam a vinda de Cristo em carne e assim faziam violéricia contra a germinidade de Sua natureza hu-

mana (1Jo 2.18 ss.; 4.1 ss.; 5.5 ss.).

O mesmo aconteceu no período pós-apostólico. Os erros e as heresias cresceram em variedade, força, e distribuição a partir do segundo século. Havia aqueles que criam na real natureza humana de Cristo, em Seu nascimento sobrenatural, em Sua ressurreição e ascensão, mas nada reconheciam de divino nEle, a não ser uma dose extremamente grande de dons e poderes do Espírito, que teriam sido dados a Ele por ocasião de Seu batismo para equipa-lo para o total cumprimento de Sua missão religiosa e moral. Os seguidores desse movimento viviam sob a influência da idéia ju-daica e deísta sobre o relacionamento entre Deus e o mundo. Eles simplesmente não podiam conceber um relacionamento mais íntimo entre Deus e o homem do que aquele que consiste de uma distribuição de dons e habilidades. Eles criam que Jesus era uma pessoa que tinha recebido maravilhosos dons espirituais, em gênio religioso, mas que continuava sendo somente um homem.

Mas outros, de origem pagã, f o r a m a t r a í d o s p e l a i d é i a politeísta. Eles pensavam que Cristo, de acordo com sua natureza interna, deveria ser apenas um dentre muitos, ou talvez até fosse o mais elevado de todos os seres divinos. Contudo, eles não conseguiam crer que um Ser pu

ramente divino pudesse ter assumido =a natureza material e carnal. E dessa forma eles sacrificavam a real natureza humana de Cristo e diziam que Ele viveu sobre a terra apenas temporária e aparentemente, como aconteceu com os anjos no Velho Testamento. Essas duas correntes de pensamento, esses dois movimentos, continuam vivos em nossos dias. Em um momento a divindade de Cristo é sacrificada em benefício de Sua humanidade; em outro momento a Sua humanidade que é sacrificada em benefício de Sua divindade. Sempre há extremos que sacrificam a idéia em favor do fato, e o fato em favor da idéia. Eles não compreendem a unidade e a harmonia dos dois.

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Mas a Igreja cristã, desde o princípio,

se firmou em bases diferentes das que

foram apresentadas pelos falsos mestres e

na pessoa de Cristo confessou a mais

íntima, mais profunda e, portanto, a

única comunhão entre Deus e o homem.

Suas representações no primeiro período

às vezes se expressavam de forma um

tanto desajeitada. Eles tinham que lutar,

primeiro para formar uma noção clara da

realidade, e depois para dar expressão a

essa idéia em uma linguagem clara. A

Igreja evitou os extremos e aderiu ao en-

sino dos apóstolos com respeito à pessoa de Cristo.Contudo, quando uma só pessoa possui a natureza humana e a natureza divina,

segue-se que um esforço deve ser feito para que se possa entender como essa pessoa está relacionada ao mesmo tempo com Deus e com o mundo, e quando esse esforço foi feito, uma linha de erro e de heresia se definiu tanto para a esquerda quanto para a direita.

Em outras palavras, quando a unidade de Deus – que é a verdade fundamental do Cristianismo – foi entendida de tal forma que o Ser de Deus foi perfeitamente coincidente com a pessoa do Pai, não houve mais lugar para a divindade de Cristo. Cristo então foi empurrado para fora da divindade e colocado lado a lado com o homem, pois entre Criador e criatura não há transição gradual. Nesse caso podia-se dizer, com Ário, que no tempo Cristo transcendeu todo o mundo, que Ele foi a primeira de todas as criaturas, e que Ele era superior a todas elas em posição e em honra. Mas Cristo continuaria sendo uma criatura. Houve um tempo em que Ele não existiu e houve um tempo em que Ele, assim como qualquer outra criatura, foi trazido à existência por Deus.

Na tentativa de manter a unidade de Deus e ao mesmo tempo manter a pessoa de Cristo

no lugar de honra que lhe é próprio, é fácil cair em outro erro, o erro que passou a ser chamado pelo nome de seu proponente, a saber, Sabélio. Enquanto Ário identificou o Ser de Deus com a pessoa do Pai, Sabélio sacrificou todas as três pessoas da Divindade. De acordo com seu ensino, as três pessoas, Pai, Filho e Espírito, não são realidades eternas contidas no Ser de Deus, mas são formas e manifestações nas quais s o único Ser divino se manifesta sucessivamente no curso dos séculos, ou seja, no Velho Testamento, no ministério terreno de Cristo e depois do Pentecostes . Ambas as heresias atravessaram os séculos e encontraram muitos adeptos. Os assim chamados teólogos de Croffingen, por exemplo, renovaram essencialmente a doutrina de Ário, e a Moderna Teologia anda nos passos de Sabélio.É necessária muita oração e muita luta para que a Igreja tome o

Page 299: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

caminho certo entre todas essas heresias, principalmente porque

cada uma delas foi modificada e mesclada com todos os tipos de

variações. Mas sob a liderança de grandes homens, eminentes por

sua razão, por sua piedade e por sua força de pensamento, e, por-

tanto, justamente chamados de pais da igreja, a Igreja continuou

fiel ao ensino dos apóstolos. No Sínodo de Nicéia, em 325, a Igreja

confessou sua fé no único Deus, o Pai, o Todo-Poderoso, Criador de

todas as coisas visíveis e invisíveis e no único Senhor Jesus Cristo, o

Filho de Deus, gerado p e l o P a i c o m o S e u F i l h o Unigênito, isto

é, gerado, e não feito, Deus de Deus, Luz de Luz, verdadeiro Deus de

verdadeiro Deus, sendo de uma só substância com o Pai, por quem

todas as coisas no céu e na terra foram feitas, e no Espírito Santo.

Por mais importante que essa confissão de Nicéia tenha sido, ela não colocou um ponto final nas disputas teológicas. Pelo contrário, a confissão de Nicéia d e u o p o r t u n i d a d e p a r a o surgimento de novas questões e de diferentes respostas. Apesar do relacionamento de Cristo com o Ser de Deus e com o mundo dos homens ter sido determinado no sentido de que em Sua pessoa Ele compartilha tanto de um quanto de outro, e que Ele é em uma só pessoa tanto Deus quanto homem, ainda não tinha sido explicado como é a natureza do relacionamento entre essas duas naturezas em uma só pessoa. Na resposta a essa questão vários caminhos foram tomados.

Nestório concluiu que, se há duas naturezas em Cristo, tem que haver também duas pessoas, dois seres, que possam ser unidos em um só ser por algum tipo de vínculo moral, como o que se obtém no casamento de um homem

e de uma mulher. E Êutico, partindo de uma identificação entre a

pessoa e a natureza, chegou à conclusão de que, se em Cristo há

somente uma pessoa, então as duas naturezas devem estar de tal

forma entrelaçadas que uma só natureza divino-humana emergiria

dessa união. Em Nestório, a dist inção das naturezas foi mantida

em detrimento da unidade da pessoa; em Êutico, a unidade da

pessoa foi mantida em detrimento da dualidade das naturezas.

Page 300: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

Depois de uma longa e acirrada disputa, contudo, a Igreja superou esses conflitos. No Concílio de Calcedônia, em 451, foi afirmado que a pessoa única de Cristo consistia de duas naturezas, que não podem ser alteradas nem misturadas (contra Êutico), e nem separadas ou divididas (contra Nestório) e que essas naturezas existem uma ao lado da outra, sendo unidas em uma só pessoa. Com essa decisão que, mais tarde, no Sínodo de Constantinopla em 680, foi ampliada e completada sobre um único ponto, uma disputa secular sobre a pessoa de Cristo chegou ao fim. Nessas disputas a Igreja preservou a essência do Cristianismo, o caráter absoluto da religião cristã e sua própria independência.

Logicamente essas decisões de Nicéia e Calcedônia não são infalíveis. Os termos de que a Igreja e a teologia fazem uso, tais como pessoa, natureza, unidade e substância e outros semelhantes não são encontrados na Escritura, são produto da reflexão que o Cristianismo gradualmente tem dedicado ao mistério da salvação. A Igreja foi impelida a essa reflexão pelas heresias que surgiam de todos os lados, tanto dentro da Igreja quanto fora dela. Todas essas expressões e afirmações que são empregadas na confissão da Igreja e na linguagem da teologia não são designadas para explicar o mistério que se propõem a enfrentar, mas para manter pura e inviolável a confissão cristã contra todos aqueles que procuram enfraquecê-la ou negá-la. A encarnação do Verbo não é um problema que nós devamos resolver, mas um fato maravilhoso que nós agradecidamente confessamos, exatamente da forma que Deus nô-lo apresenta em Sua Palavra.

Entendida dessa forma a confissão que a Igreja estabeleceu em Nicéia e Calcedônia é de grande valor. Tem havido muitos, e haverá muitos outros, que despre-zam a doutrina das duas naturezas e tentam substituí-Ia por outras palavras e frases. Que diferença faz, dizem eles, se nós concordamos ou não com essa doutrina?

O que importa é que nós possuímos a pessoa de Cristo e Ele é

exaltado acima dessa confissão desajeitada. Mas logo essas pessoas

começam a introduzir palavras e termos para descrever a pessoa de

Cristo que elas aceitam. Ninguém pode escapar dessa situação, pois

nós não podemos afirmar possuir aquilo que não conhecemos. Se nós

cremos que temos o Cristo, que temos comunhão com Ele, que somos

propriedade dEle, tal crença deve ser confessada com a boca e

expressa em palavras, termos, expressões e descrições de um tipo

ou outro. E a história tem nos mostrado que os termos usados por

aqueles que depreciam a doutrina das duas naturezas são bem

mais pobres em mérito e em força, e que, além disso, geralmente

deixam de fazer justiça à encarnação como a Escritura nos ensina.

Page 301: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

Nos tempos modernos, por exemplo, há muitos que pensam na doutrina das duas naturezas como sendo absolutamente desprovida de nacionalidade e, em sua mente, formulam um quadro muito diferente da pessoa de Cristo. Eles não podem negar que há algo em Cristo que o diferencia de todos os outros homens e coloca-o acima de todos eles. Mas esse elemento divino que eles reconhecem em Cristo não é visto como uma participação na natureza divina, mas como uma capacitação

ou uma força concedida a Cristo em um grau particularmente alto. Eles dizem que há dois lados em Cristo, a saber, um lado divino e um lado humano; ou que Ele pode ser visto de dois pontos de vista diferentes; ou que Ele viveu em dois estados sucessivos, o de humilhação e o de exaltação; ou que Ele, apesar de ser humano, por Sua pregação da Palavra de Deus e pelo estabelecimento de Seu reino, foi o extraordinário e perfeito veículo da revelação de Deus e assim Ele obteve para nós o favor de Deus. Mas qualquer leitor imparcial perceberá que essas representações não são simplesmente algumas modificações na linguagem da Igreja, mas uma mudança da confissão que a Igreja em todos os tempos tem feito com base no testemunho dos apóstolos.

Além disso, dons e poderes divinos são, em certa medida, dados a todas as pessoas, pois todo bem e toda dádiva perfeita vem do Pai das luzes. E até mesmo os dons menos comuns, como os que foram concedidos aos profetas, por exemplo, não colocam esses profetas acima do plano dos seres humanos. Os profetas e os apóstolos foram homens sujeitos às mesmas paixões que nós. Se Cristo simplesmente recebeu dons e poderes extraordinários, Ele continua sendo um ser humano, e, portanto, não pode ser algo

como uma encarnação do Verbo. Dessa forma Ele não pode, em virtude de Sua ressurreição e ascensão, ser elevado ao mesmo nível de Deus, nem pode obter o mérito de Deus por nós. A separação entre Deus e o homem não é uma diferença gradual, mas um profundo abismo. É uma relação entre Criador e criatura, e a criatura, pela natureza de seu ser, nunca se tornará o Criador, nem terá para nós, seres humanos, mérito do Criador, de quem somos totalmente dependentes.

É notável que nos tempos modernos, depois de ter comparado todas essas novas representações referentes à pessoa de Cristo com o ensino da Igreja e da Escritura, muitas pessoas honestas têm chegado à conclusão de que, em última análise, a doutrina da Igreja faz muito mais justiça à doutrina da Escritura. O ensino de que Cristo é Deus e homem em uma só pessoa não é um produto da filosofia pagã, mas um ensino baseado no testemunho apostólico.

Esse certamente é o mistério da salvação, que Aquele que estava no princípio com Deus e que era Deus (Jo 1. 1), que subsistia em forma de Deus mas não teve por usurpação o ser igual a Deus (Fp 2.6), que era o brilho da glória de Deus e a expressão exata de Seu Ser (Hb 1.3), na plenitude do tempo se fez carne ao 1,14), nasceu de

uma mulher (G14.4), esvaziou-se, assumindo a forma de servo, e se

Page 302: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

tornou em semelhança de homem (Fp 2.7).

Cristo era Deus, é Deus e para

sempre continuará sendo Deus. Ele não

era o Pai nem o Esp í r i to , mas era o

F i lho , o unigênito e amado Filho do Pai.

E não foi o Ser divino, nem o Pai, nem o

Espírito que se tomou homem na plenitude

do tempo, mas o Filho. E quando Ele se

tornou homem e como homem viveu na

terra, até mesmo quando agonizava no

Getsêmani e era pregado na cruz Ele

continuava sendo o Filho Unigênito de

Deus, em quem o Pai se compraz. É

verdade que, como diz o apóstolo Paulo,

Cristo, subsistindo em forma de Deus, não

teve por usurpação o ser igual a Deus (Fp

2.6,7), mas é um erro pensar que

Cristo, em Sua encarnação, no estado

de humilhação, tenha sido privado com-

pleta ou parcialmente de Sua divindade,

tenha colocado de lado Seus atributos

divinos e, em Seu estado de exaltação,

tenha reassurrudo gradualmente tanto

Sua divindade quanto Seus atributos

divinos. Como isso poderia ter

acontecido se Deus não pode negar a

Si mesmo (2Tm 2.13)? E como o Imutável

Page 303: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

mudaria Seu Ser? Até mesmo quando

Ele se tomou o que não era, Ele continuou sendo o que era, a saber,

o Filho Unigênito do Pai. Nós podemos expressar a encarnação de

Cristo humana e simplesmente da seguinte forma: antes de Sua

encarnação Cristo era igual ao Pai não somente em essência e atribu-

tos, mas também em Sua forma. Ele era semelhante a Deus, era o

brilho de Sua glória e a expressão exata de Sua pessoa. Qualquer

pessoa que tivesse sido capaz de vê-lo, imediatamente reconheceria

Deus. Mas isso mudou na encarnação. Em Sua encarnação Cristo

assumiu a forma de um ser humano, a forma de servo. Qualquer

pessoa que olhasse para ele não poder ia reconhecer o

unigênito Filho de Deus, a não ser pela fé. Ele abriu mão de Sua forma

e brilho divinos. Ele escondeu Sua natureza divina atrás de Sua forma

de servo. Na terra Ele era um de nós e se parecia conosco.

A encarnação implica, em segundo lugar, que Aquele que continuou sendo o que era passou a ser o que não era. Ele se tornou o que não era no momento exato da história em que o Espírito Santo veio sobre Maria e o poder do Altíssimo a envolveu (Le 1.35). Mas ao mesmo tempo essa encarnação foi preparada durante séculos.

Se nós quisermos entender corretamente a encarnação, nós podemos dizer que a geração do

Filho e a criação do mundo foram uma preparação para a encarnação do Verbo. Não é suficiente dizer que a geração e a criação já continham a encarnação, pois a Escritura sempre relaciona a encarnação do Filho à redenção do pecado e ao cumprimento da salvação"'. Mas a geração e a criação, especialmente a criação do homem à imagem de Deus, nos ensinam que Deus é comunicável, tanto em um sentido absoluto entre as pessoas da Trindade, quanto em um sentido relativo, fora do Ser de Deus. Se esse não fosse o caso não haveria qualquer possi-bilidade de uma encarnação de Deus. Quem quer que pense que a encarnação seja impossível, em princípio, também nega a criação do mundo e a geração do Filho. E quem quer que aceite a criação e a geração não pode ter qualquer objeção, em princípio, à encarnação de Deus na natureza humana.

Page 304: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

Mais diretamente a encarnação do Verbo foi preparada pela revelação que começou logo depois da queda, continuou na história de Israel e alcançou seu clímax na bênção de Maria. O Velho Testamento é uma constante aproximação de Deus ao homem com vistas a, na pleni tude do tempo, fazer nele uma morada perpétua.

Como o Filho de Deus, que através de

Maria assumiu a natureza humana, existia

antes do tempo e desde a eternidade, Sua

concepção no ventre de Maria não aconteceu

através da vontade da carne, nem da

vontade do homem, mas pelo envolvimento

do Espír i to Santo . É verdade que a

encarnação está relacionada com toda a

revelação anterior e é o seu complemento,

mas ela não é um produto da natureza, nem

da humanidade. Ela é uma obra de

Deus, uma revelação, a mais elevada

revelação. Assim como foi o Pai que enviou

o Filho ao mundo e o Espírito Santo

envolveu Maria, o Filho voluntariamente

assumiu nossa carne e sangue (Hb

2.14). A encarnação foi uma obra do Filho.

Ele não foi passivo nela. Pelo contrário, Ele

se fez carne por Sua própria vontade e por

Seu próprio ato. Dessa forma Ele elimina a

vontade da carne e a vontade do homem

e prepara uma natureza humana para Si,

no vent r e d e M a r i a , a t r a v é s d o

envolvimento do Espírito Santo.

Essa natureza humana não existia. Ela não foi trazida do céu e colocada em Maria de fora para dentro. Os anabatistas ensinam isso para defender a natureza não pecaminosa de Cristo, mas agindo assim eles estão seguindo o antigo gnosticismo, ao partir daidéia de que a carne e a matéria são pecaminosas em si mesmas.

Mas também na encarnação a Escritura sustenta a bondade da cri-

ação e a origem divina da matéria.

Page 305: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

Cristo assumiu Sua natureza humana em Maria'". Com relação à carne, Cristo descende de Davi e dos patriarcas'". Portanto Sua natureza é uma natureza verdadeira e perfeitamente humana, semelhante à nossa natureza em todas as coisas, exceto no que diz respeito ao pecado"'. Nada que fosse humano era estranho a Cristo. A negação de que Cristo veio e m c a r n e é o p r i n c í p i o d o anticristo (1Jo 2.22).

Assim como a natureza humana de Cristo não existia antes de Sua concepção em Maria, assim também ela não existiu separada de Cristo depois de Seu nascimento. Maria concebeu e deu à luz um filho, mas esse filho não cresceu como um homem para que posteriormente fosse assumido por Cristo e unido a Ele. Essa heresia também foi elaborada há muito tempo, mas a Escritura nada sabe sobre ela. O filho santo que foi gerado em Maria era, desde o princípio, o Filho de Deus, e desde o princípio recebeu esse nome (Lc 1.35). O Verbo não se uniu a um ser humano. O Verbo

se fez carne (Jo 1.14). E, portanto, a Igreja cristã em sua confissão não

diz que o Filho assumiu uma pessoa humana, mas uma natureza

humana. Somente dessa forma a dualidade das naturezas e a uni-

dade da pessoa pode ser mantida.

Pois - esse é o terceiro ponto que merece nossa atenção sobre esse assunto - embora a Escritura afirme que seja possível que Cristo fosse o Verbo e tenha se tomado carne, que segundo a carne Ele descende dos patriarcas e segundo Sua essência Ele é Deus acima de todos, bendito para sempre, esse Cristo é sempre uma pessoa. É sempre o mesmo ser que fala e age em Cristo. O menino que nasceu recebeu o nome de Deus Forte e Pai da Eternidade (Is 9.6). O filho de Davi é ao mesmo tempo o Senhor de Davi. Aquele que desceu é o mesmo que subiu acima de todos os céus (Ef 4.10). Aquele que segundo a carne descende dos patriarcas é o mesmo que, segundo Sua essência, é Deus sobre todos, bendito para sempre (Rm 9.5). Apesar de ter vivido na terra Ele continuava no céu, no seio do Pai (Jo 1.18; 3.13). Embora tenha nascido e vivido no tempo, Ele existia antes de Abraão Go 8.58). A plenitude da divindade habita corporalmente nEle (Cl 2.9).

Em resumo, na mesma pessoa há atributos e obras divinos e humanos, eternidade e tempo, onipresença e limitação, onipotência criadora e fraqueza própria da criatura. No entanto a união dessas duas naturezas em Cristo não corresponde à união de duas pessoas. Duas pessoas podem, pelo amor, ficar muito intimamente ligadas uma à outra, mas nunca poderão tornar-se uma só pessoa, um só ser. O amor une duas pessoas somente em um sentido mís-tico e ético. Se a união do Filho de Deus com a natureza humana tivesse esse caráter ela poderia ser distinta em grau, mas não em qualidade, daquela que existe entre Deus e todas as Suas criaturas, especificamente com Seus filhos. Mas Cristo ocupa uma posição única. Ele não se uniu ao ho-mem em um sentido moral e não absorveu a vida de um ser humano, mas preparou uma natureza humana para si mesmo no ventre de Maria e se tornou

um ser humano e um servo. Assim como um ser humano pode ir de um

Page 306: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

estado de vida para outro e pode viver ao mesmo tempo ou sucessi-vamente em duas esferas de vida, assim, por analogia, Cristo, que existia na forma de Deus, veio à terra e assumiu a forma de servo. A união que foi realizada em Sua encarnação não foi uma união moral entre duas pessoas, mas a união de duas naturezas em uma

só pessoa. Não importa o quanto homem e mulher possam unir-se através do amor, eles continuam sendo duas pessoas distintas. Deus e o homem, embora unidos pelo mais íntimo amor, continuam sendo essencialmente diferentes. Mas em Cristo o homem é um só com o Verbo que estava no princípio com Deus e que era Deus. Essa é uma única, incom-parável e incompreensível união de Deus com o homem. E o começo e o fim de toda sabedoria é esse: "E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de Graça e de verdade, e vimos a Sua glória, glória como do unigênito do Pai" (Jo 1.14).

Nessa união Cristo controla todos os atributos e poderes que são

próprios de ambas as naturezas. Alguns têm tentado demonstrar uma união

ainda mais forte e mais próxima das duas naturezas ensinando que essas

naturezas, no momento exato da encarnação, foram soldadas, formando

uma natureza divino-humana, ou que a natureza divina se privou de suas

características e condescendeu à limitação da natureza humana, ou que a

natureza humana perdeu suas propriedades e recebeu as propriedades da

natureza divina (seja todas elas ou somente algumas delas, como

onipresença, onipotência e onisciência). Mas a confissão Reformada sempre

repudiou e atacou esse tipo de união das duas naturezas

e a comunicação das propriedades de uma à outra. O resultado desse ensino é a mesclagem e a confusão das duas naturezas e uma conseqüente negação panteísta da diferença em essências entre Deus e o homem, entreo Criador e a criatura.

De fato, há um íntimo relacionamento entre essas duas naturezas e entre suas propriedades

e poderes. Mas esse relacionamento vem à existência na unidade da pessoa. Uma união mais forte, mais profunda e mais íntima é inconcebível. Assim como -fazendo uma comparação, e não igualando as duas - alma e corpo estão unidos em uma pessoa e permanecem sendo distintos um do outro em essência e em propriedadá, assim também em Cristo a mesma pessoa é o sujeito de ambas as naturezas. A diferença entre alma e corpo é a condição de interna união dos dois em um só ser humano, e da mesma forma a diferença entre a natureza divina e a natureza humana é a condição e a base de sua união com Cristo. A mesclagem das duas naturezas em uma e a comunicação das propriedades de uma à outra não estabelecem um relacionamento mais íntimo, mas fazem uma fusão

dessas duas naturezas, empobrecendo a plenitu - de que está em Cristo. Essa fusão diminui tanto a natureza divina quanto

a natureza humana, enfraquecendo a palavra da Escritura que diz que nEle, isto é, em Cristo, habita corporalmente a plenitude da divindade (Cl 2.9; 1.9). Essa plenitude só é mantida se ambas as naturezas conservarem suas

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propriedades, mantendo-se distintas uma da outra, não comunicando suas propriedades e atributos uma à outra, mas colocando-as a serviço de uma pessoa. Dessa forma é sempre o mesmo Cristo que em Sua humilhação e em Sua exaltação comanda as propriedades e poderes de ambas as naturezas e que precisamente por isso pode realizar as obras do Mediador, que por um lado são diferentes das obras de Deus e, por outro lado, são diferentes das obras do homem e que assumem um lugar único na história do mundo.

Nessa doutrina das duas naturezas tudo o que a Escritura diz sobre a pessoa de Cristo e tudo o que ela atribui a Ele está em perfeita harmonia. Por um lado Ele é o eterno Filho de Deus, que com o Pai e o Espírito fez todas as coisas, sustenta-as e governaaS19' e que, portanto, é o objeto de nosso culto. Ele já era o objeto de culto no tempo dos apóstolos"', e tanto naquela época quanto ago-

ra, Ele é o objeto de fé e de confiança de todos os Seus discípulos"'. Mas Ele não pode ser ambas essas coisas a menos que seja verdadeiro Deus, pois está escrito: "Ao Senhor, teu Deus, adorarás, e só a Ele darás culto" (Mt 4.10). A base para o culto religioso de Cristo só pode ser Sua natureza divina, e quem quer que negue essa natureza e mantenha o culto a E le torna-se cu lpado de deificação da criatura e de idolatria. A divindade de Cristo não é uma doutrina abstrata, mas uma doutrina da mais alta importância para a vida da Igreja.

Por outro lado Cristo tornou-se homem e verdadeiramente homem, semelhante a nós em todas as coisas, exceto no pecado. Ele foi um bebê, uma criança, um jovem e um adulto, e cresceu em sabedoria e Graça diante de Deus e dos homens (Le 2.52). Tudo isso não foi apenas uma ilusão ou uma aparência, como dizem aqueles que afirmam que as propriedades divinas pertencem à natureza hu-mana, mas foi perfeitamente real. Houve em Cristo um desenvolvi

mento gradual, um progressivo desenvolvimento no corpo, na alma e em Graça diante de Deus e dos homens. Os dons do Espírito não lhe foram dados de uma só vez, mas de forma sucessiva e em medida cada vez maior. Houve coisas que Ele teve que aprender, e que Ele não sabia (Me 13.32; At 1.7). Embora Ele não fosse capaz de pecar, estava presente nEle, devido à fraqueza da natureza humana, a possibilidade de ser tentado, sofrer e morrer. Durante todo o tempo em que esteve na terra Ele não estava segundo sua natureza humana no céu, e portanto Ele não viveu pelo que via, mas por fé. Ele lutou e sofreu, e em tudo isso Ele apegou-se fir-memente à Palavra e à promessa de Deus. Dessa forma Ele aprendeu a obediência em todas as coisas que sofreu, continuamente firmou-se na obediência e se santificou'0". E ao mesmo tempo Ele nos deixou o exemplo e tornou-se o autor da salvação eterna para todos os que lhe obedecem (Hb 5.9).

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Capítulo 17A OBRA DE CRISTO

EM SUA HUMILHAÇÃO

Aencarnação é o começo e a i n t r o d u ç ã o d a o b r a d e Cr i s to na te r ra , mas esse não é todo o seu significado, nem o mais importante significado des- sa obra. E bom tentar um verda- deiro entendimento e uma idéia correta sobre isso, pois há aqueles que pensam que, ao assumir a na- tureza humana, Cristo completou Sua obra de reconciliação e união de Deus com o homem. Partindo da idéia de que a religião é um tipo de comunhão entre Deus e o ho- mem, e que ambos precisam um do outro e se completam, eles afir- mam que essa comunhão, corrom- pida pelo pecado, ou não acessí- vel ao homem em um nível car- nal, foi expressa e realizada na his- tória por Cristo. Dessa forma a sin- gularidade do Cristianismo con- siste no fato de que a idéia de reli-

gião que está plantada na nature- za humana alcança seu cumpri- mento na pessoa de Cristo.

Não há dúvida de que foi uma grande

honra para a humanidade que o Filho

unigênito de Deus, que subsistia na forma de

Deus no seio do Pai, tenha assumido a forma

humana. Ao assumir a forma humana Cristo

relacionou-se com todos os homens. Ele se

tornou participante da carne e do sangue do

homem, e também de sua alma e corpo,

cabeça e coração, mente e vontade, idéias e

sentimentos. Cristo, nesse sentido natural, é

irmão de todos nós, carne de nossa carne e

osso dos nossos ossos. Mas essa semelhança

natural e física, embora seja importante, não

pode ser confundida nem identificada com a

comunhão moral e espiritual. Entre as

pessoas, nós devemos nos lembrar, é possível que membros da mesma família e parentes de sangue estejam, em um sentido espiritual, separados um dos outros por um longo caminho, ou até mesmo diametralmente opostos um ao outro. O próprio Jesus disse que veio à terra para trazer divisão entre o homem e seu pai, entre a filha e sua mãe, e entre a nora e a sogra, de forma que os inimigos do homem sejam os de sua própria casa (Mt 10.35,36). Portanto a descendência natural nada tem a ver com o relacionamento

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espiritual. A comunicação do sangue e a comunhão espiritual geralmente são pólos distintos.

Portanto, se Jesus não tivesse feito mais do que assumir a natureza humana e assim expressar a unidade de Deus e homem, está além de toda compreensão como nós poderíamos entrar em relacionamento com Ele e sermos reconciliados com Deus. Assim Ele teria, ao assumir uma natureza hu-mana sem pecado e ao viver em Lima imperturbável comunhão com Deus, introduzido mais divisão entre nós e nos lançado em um senso ainda mais profundo de nossa desesperança, visto que nós, criaturas fracas e pecaminosas, nunca poderíamos segui-lo em S e u e l e v a d o e x e m p l o . A encarnação do Filho de Deus, portanto, sem uma obra que a complemente, não pode ser um

ato reconciliados e redentivo. Ela é o começo desse ato, a preparação para ele e a introdução dele, mas não é o ato em si mesmo.

Se a encamação tivesse realizado a

reconciliação entre Deus e o homem, não haveria

lugar para uma vida, nem especialmente para uma

morte do Senhor Jesus. Teria sido suficiente para Ele,

seja através da concepção e do nascimento, seja

através de qualquer outra forma, ter assumido uma

natureza humana, ter vindo sobre a terra por algum

tempo e ter retornado ao céu. Não teria havido

necessidade de uma total e profunda humilhação de

Cristo.

Mas a Escritura nos ensina algo muito diferente. Ela nos diz que o Filho de Deus não somente se tornou homem, semelhante a nós em todas as coisas exceto no pecado, mas também que Ele assumiu a forma de servo, humilhou-se e tomou-se obediente até a morte, e morte de cruz (Fp 2.7,8). Ele cumpriu toda a justiça (Mt 3.15) e santificou-se pelo sofrimento (Hb 2.10). Estava escrito que o Cristo deveria padecer e ressuscitar ao terceiro dia (Lc 24.46; 1Co 15.3-5). O Pai o enviou para que Ele realizasse toda a Sua obra sobre a terra (Jo 4.34), e lhe deu um mandato para entregar a Sua vida e também para reavê-la (Jo 10.18).Tudo o que Cristo fez, portanto, foi o cumprimento daquilo que a mão e o conselho de Deus

tinham determinado que fosse feito (At 2.23; 4.28). Na cruz, pela

primeira vez, Cristo pôde dizer que tudo estava consumado e que

Ele tinha realizado toda a obra que o Pai lhe tinha confiado Uo 17.4;

19.30). Apesar do registro da vida de Cristo nos Evangelhos ser muito

resumido, Sua paixão e morte é abundantemente registrada. Da

Page 310: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

mesma forma a pregação apostólica raramente menciona a concep-

ção e o nascimento de Jesus, mas coloca toda a ênfase sobre a cruz,

a morte e o sangue de Cristo. Não foi pelo nascimento, mas pela Sua

morte que nós fomos reconciliados com Deus (Riu 5.10).

Da forma como é apresentada na Escritura, toda a vida de Cristo assume um significado único para nós, um significado extremamente valioso. Ela é a obra perfeita que o Pai lhe incumbiu de realizar. Ela pode ser considerada de vários pontos de vista e abordada por muitos lados, e nós devemos considerá-la e abordá-la de forma que tenhamos uma visão panorâmica de seu conteúdo. Nós nunca devemos nos esquecer que trata-se de uma obra. Ela compreende e ocupa toda a vida de Cristo, desde Sua concepção até Sua morte na cruz. Assim como a pessoa de Cristo é uma em distinção de Suas naturezas, assim Sua obra também é única. Ela é, prementemente, a obra de Deus sobre a terra. Essa é uma obra cuja

origem está relacionada ao conselho e ao pré-conhecimento com sua revelação em Israel e sua orientação para as nações, e tem con-tinuidade, de forma modificada, na obra que Cristo agora realiza em Seu estado de exaltação. Essa obra tem seu ponto central no tempo sobre essa terra, mas que tem sua origem na eternidade, está arraigada na eternidade e se estende até a eternidade.

Desde tempos antigos essa obra de

Cristo tem sido compreendida na doutrina

dos três ofícios, e é graças a Calvino que

esse método de abordagem da obra de

Cristo encontrou aceitação na doutrina da

salvação. Contudo, várias objeções têm

sido levanta-das contra isso, e

especialmente quanto a doutrina dos três

ofícios tem sido dito que esses ofícios na

Page 311: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

vida de Cristo não devem ser di-

ferenciados, e que suas atividades fluem

de um para outro. Essa objeção pode ser

levantada contra um entendimento

errado a respeito dos três ofícios, mas não

contra a classificação em si mesma.

Se a idéia for a de que Jesus executou os ofícios de profeta, sacerdote e rei de forma independente um do outro ou que Ele cumpriu cada ofício separada e sucessivamente, essa classificação da obra de Cristo estará errada,

pois apesar de todos esses ofícios serem bem definidos, Jesus em

todos os momentos e em todos os lugares ocupou-se simultanea-

mente do exercício desses três ofícios. Quando falava Ele proclamava

a Palavra de Deus como um profeta, mas ao falar Ele exercia

também Sua misericórdia sacerdotal e Seu poder real, pois através

de Sua palavra Ele curava os enfermos, perdoava pecados e

acalmava a tempestade. Ele era o Rei da verdade. Seus milagres

eram sinais de Sua missão divina e da verdade de Sua palavra, mas

eram ao mesmo tempo uma revelação de Sua compaixão sobre to-

dos os aflitos, de seu domínio sobre a doença e a morte e sobre o

poder de Satanás. Em resumo, toda a Sua manifestação, palavra e

obra têm um caráter simultaneamente profético, sacerdotal e real.

Mas colocando essa verdade como pano de fundo, nós devemos continuar olhando para a figura de Jesus Cristo do ponto de vista de Seus ofícios. Há vantagens nesse método que serão perdidas se nós adotarmos outro.

Em primeiro lugar essa abordagem deixa claro que a vinda, e também toda a vida de Cristo sobre a terra, é o exercício de um ofício que lhe foi dado pelo Pai. Com relação a Jesus nós não podemos falar de um negócio, de um

empreendimento e nem mesmo de uma vocação moral que Ele

mesmo tenha escolhido. De acordo com a Sagrada Escritura foi-lhe

confiado um ofício. Essa é a diferença entre um oficio e uma pro-

Page 312: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

fissão: não se pode escolher o ofício, pode-se apenas recebê-lo por

indicação de uma autoridade que está acima de nós. É verdade que

Cristo é distinto de Moisés pelo fato de que ele, não como um servo,

mas como o Filho de Sua própria casa, foi fiel ao Pai em todas as

coisas (Hb 3.5,6), mas ao mesmo tempo Ele foi fiel ao Pai, que o

constituiu Apóstolo e Sumo Sacerdote de nossa confissão (Hb 3.1).

Não foi Ele mesmo que tomou a honra de ser Sumo Sacerdote, mas o

glorificou Aquele que lhe disse: "Tu és meu Filho, eu hoje te gerei"

(Hb 5.5). Por isso Jesus constantemente coloca toda a ênfase no

fato de que o Pai o enviou, que é Sua comida fazer a vontade do Pai,

que Ele recebeu do Pai um mandato sobre o que ele deveria fazer e

dizer, que Ele cumpriu a ordem do Pai e outras afirmações

semelhantes201.

Essa designação para o ofício obviamente aconteceu antes do tempo em que Cristo se tornou homem, pois a Escritura nos ensina não somente que Cristo estava no princípio com Deus e que Ele era Deus, mas também afirma ex-

pressamente em Hebreus 10.5-7 que Ele, vindo ao mundo, disse: "Sacrifício e oferta não quiseste; antes, um corpo me formaste; não te deleitaste com holocaustos e ofertas pelo pecado. Então, eu disse: Eis aqui estou (no rolo do livro está escrito a meu respeito), para fazer, ó Deus, a tua vontade". Portanto, a vinda ao mundo, a encarnação, já fazia parte da obra que o Pai lhe tinha confiado. O comissionamento precedeu a encarnação, e ele não aconteceu no tempo, mas na eternidade.

Por isso se diz que Cristo foi conhecido antes da fundação do mundo (1Pe 1.20), que a eleição foi feita e a Graça nos foi dada em Cristo antes que o mundo existisse (Ef 1.4; 2Tm 1.9), e que o livro da vida que está aberto diante de Deus desde a fundação do mundo pertence ao Cordeiro que foi morto (Ap 13.8; 17.8). Entender a obra de Cristo como o exercício de um ofício é o mesmo que relacionar essa obra ao eterno conselho de Deus. Cristo recebe o nome de Messias, Cristo, o Ungido, porque foi designado desde a eternidade e no tempo foi ungido por Deus com o Espírito Santo.

Em segundo lugar, os três ofícios com os quais Cristo foi comissionado são uma referência ao chamado e ao propósito original do homem. Não foi por acaso ou por uma arbitrariedade que Cristo

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foi designado precisamen

te para cumprir os ofícios de profeta, sacerdote e rei, e nenhum outro ofício além desses. Isso está baseado no propósito de Deus para a raça humana. Adão foi criado à imagem de Deus, em verdadeiro conhecimento, justiça e santidade, para que, como profeta, proclamasse as palavras de Deus, como rei dominasse de forma justa sobre todas as outras criaturas, e como sacerdote dedicasse a si mesmo e tudo quanto possuía a Deus como um sacrifício de louvor. Ele recebeu uma mente para conhecer, a mão para dominar e um coração para amar. O propósito e o destino do homem estão no desdobramento da imagem de Deus, no desenvolvimento harmonioso de todos os seus dons e poderes, no exercício dos ofícios de profeta, sacerdote e rei. Mas o homem violou essa vocação, e o motivo pelo qual Cristo veio à terra é mostrar novamente a verdadeira imagem ao homem e trazer seu destino à perfeita rea-lização. A doutrina dos três ofícios está edificada sobre uma firme conexão entre a natureza e a Graça, entre a criação e a redenção, entre Adão e Cristo. O primeiro Adão é um tipo, um arauto e uma profecia do segundo Adão, e o segundo Adão é a contraparte e o cumprimento do primeiro.

Em terceiro lugar a doutrina dos três ofícios está vinculada diretamente com a revelação do

Velho Testamento. Quando a raça humana, caída em Adão, tornou-

se cada vez mais corrupta, Deus escolheu um povo específico para

que fosse Sua propriedade. Em conexão com esse chamado Israel

recebeu também, como um povo, uma missão profética, sacerdotal

e real. Israel seria um reino de sacerdotes e uma nação santa ao Se-

nhor (Ex 19.6). Mas em um sentido especial essa missão foi confiada

aos homens que foram chamados por Deus para servir em Israel

como profetas, sacerdotes e reis. Embora em sua totalidade, como

nação, Israel possa ser chamado de Ungido do Senhor, esse nome

era especialmente usado para designar os profetas, sacerdotes e

reis. Mas todos esses homens eram pecadores, e, portanto, não

podiam cumprir verdadeiramente seus ofícios. Assim como o povo

como um todo, eles apontavam para outro, que seria profeta, sa-

cerdote e rei ao mesmo tempo, e que seria chamado de Ungido do

Senhor em um sentido único (Is 6.1). Cristo é o cumprimento de toda

a revelação do Velho Testamento. Ele é a contraparte de todo o povo

de Israel e de todos os Seus profetas, sacerdotes e reis. De fato, é

Cristo que através do testemunho dos profetas, sacerdotes e reis de

Page 314: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

Israel dá testemunho de si mesmo e prepara a Sua vinda (1Pe 1.11).

Finalmente, a obra de Cristo só se revela em termos dos três

ofícios. Sempre tem havido tendências parciais na Igreja cristã que vêem em Cristo somente o profeta, como os racionalistas, ou que se ocupam somente com Sua paixão sacerdotal, como os místicos, ou que só o aceitam como um rei, como os quiliastas. Mas nós precisamos de um Cristo que seja os três ao mesmo tempo. Nós pre-cisamos de um profeta que nos pregue a Palavra de Deus, de um sacerdote que nos reconcilie com Deus e de um rei que, em nome de Deus, nos governe e proteja. Toda a imagem de Deus deve ser restaurada no homem – conhecimento, justiça e santidade. O homem por inteiro deve ser salvo, alma e corpo, cabeça, mão e coração. Nós precisamos de um Salvador que nos redima perfeita e completamente e que realize plenamente em nós Seu propósito original. Cristo faz isso. Sendo Ele mesmo profeta, sacerdote e rei, Ele faz com que nós também sejamos profetas, sacerdotes e reis para Seu Deus e Pai (Ap 1.6).

Apesar de ter sido ungido desde a

eternidade, e apesar de já estar em

atividade de forma preparatória nos

tempos do Velho Testamento como

Mediador da Aliança da Graça, Cristo

realizou plenamente os ofícios de profeta,

sacerdote e rei quando veio ao

mundo e disse: "Eis aqui estou, 6 Deus, para fazer a tua vontade". Ele tinha que ser homem para revelar o nome de Deus aos homens, para ser capaz de sofrer e morrer na cruz, e para, como rei da verda-

Page 315: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

de, dar testemunho da verdade.Seu Ser concebido pelo Espírito Santo foi uma preparação preliminar da natureza

humana de Cristo para a obra que Ele deveria realizar. Todos os tipos de objeções têm sido levantados nos tempos modernos contra a confissão de que Cristo foi concebido pelo Espírito Santo e nasceu da virgem Maria, e muitos esforços têm sido feitos para explicar os registros de Mateus e Lucas como uma interpolação judaica ou pagã nos Evangelhos originais. Mas o resultado tem sido que a verdade dessa história tem sido confirmada e estabelecida melhor do que era antes. O registro do nascimen-to de Cristo não pode ter derivado dos judeus, nem dos pagãos. Essa história repousa, como fica evidente a partir da linguagem usada, sobre o testemunho dos próprios José e Maria. Naturalmente houve um tempo em que essa concepção miraculosa era conhecida somente por José e Maria e talvez por alguns confidentes. Pela natureza do caso, é natural que esse fato não fosse de conhecimento público.

Somente mais tarde, quando as obras e as palavras e especialmente a ressurreição de Cristo tornaram claro quem e o que Ele era, Maria ousou revelar ao pequeno círculo dos discípulos a secreta concepção de Jesus. Nem mesmo a partir desse momento essa concepção de Jesus pelo Espírito esteve presente na pregação dos apóstolos. Essa concepção é provavelmente pressuposta em alguns lugares"', mas somente em Mateus e Lucas ela é expressamente afirmada. Ao mesmo tempo ela é um componente essencial do Evangelho e está plenamente de acordo com a doutrina da pessoa de Cristo ensinada nas Escrituras. Cristo é, como já foi dito, o Filho unigênito, que estava ativo em Sua própria concepção, e através da atividade do Espírito preparou para si uma natureza humana no ventre de Maria (Fp 2.6,7). Na profecia de Isaías 7.14 e 9.6; comparada com Mt 1.25, e a virgem conceberia e daria à luz um filho cujo nome seria Emanuel, e que também seria chamado de Maravilhoso, Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade e Príncipe da Paz foi cumprida no nasci-mento de Jesus.

Pela Sua concepção através da ação do Espírito Santo essa natureza humana de Cristo foi desde o princípio isenta de todo pe-

cado humano. Como o Filho de Deus como pessoa já existia antes

mesmo de Sua concepção, e como essa pessoa não se uniu a um ser

humano que já existia, mas através da ação do Espírito Santo pre-

parou para Si uma natureza humana no ventre de Maria, Ele não

estava incluído na Aliança das obras, não estava sujeito à culpa

original, e não podia ser contaminado pelo pecado. O ensino de

Roma de que Maria era pura em sua concepção e que viveu de for-

ma santificada não tem fundamento e entra em conflito com aquilo

que a Escritura diz a respeito de Maria`ol. Maria foi agraciada com

uma grande honra, uma honra mais elevada até mesmo que a

dos profetas e apóstolos . E l a é a abençoada , a favorecida

entre as mulheres, a mãe do Senhor (Lc 1.42,43). Mas ela era como

todas as outras pessoas, como todos os homens, e o filho santo que

por ela foi concebido (Lc 1.35) nada tema ver com a pureza de sua

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natureza, mas com a criativa a santificadora, ação do Espírito Santo

em seu ventre.

Embora a natureza humana que Cristo recebeu de Maria fosse santa, ela era fraca, como qualquer natureza humana. Isso é expresso na Escritura pela afirmação de que Ele se tomou não somente homem, mas carne Go 1.14), que Ele foi en

viado em semelhança de carne pecaminosa (Rm 8.3), que Ele assu-

miu a forma de servo (Fp 2.7), e que Ele se tomou semelhante a nós em

todas as coisas, exceto no pecado (Hb 2.17; 4.15). Cristo teve que as-

sumir essa natureza humana sujeita a fraquezas para que fosse ten-

tado, para aprendera obediência através do sofrimento, para ser ca-

paz de esforçar-se para santificar-se, para compartilhar conosco de

nossa fraqueza e ser um sumo sacerdote compassivo. Em resumo,

Cristo assumiu essa natureza humana sujeita a fraquezas para que

fosse capaz de sofrer e morrer. Apesar de ser semelhante a Adão

antes da queda no que diz respeito ao pecado, Ele estava em um

caminho muito diferente daquele que foi trilhado por Adão, pois Adão

foi criado adulto, mas Cristo foi concebido no ventre de Maria e nasceu

como um bebê. Quando Adão foi criado tudo estava pronto para ele,

mas quando Cristo nasceu ninguém contava com Sua vinda, não havia

lugar para Ele na hospedaria. Adão veio para dominar e sujeitar toda

a terra ao seu domínio. Cristo não veio para ser servido, mas para

servir e dar a Sua vida em resgate por muitos.

A encarnação do Filho de Deus, portanto, não foi apenas um ato de bondade condescendente, tal como é em Seu estado de

exaltação, mas foi também um ato de profunda humilhação. A humi-

lhação teve início com a própria concepção, e continuou através de

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Sua vida até Sua morte e sepultamento. Cristo não é um herói hu-

mano cujo lema é Excelso, que supera todos os obstáculos e final-

mente alcança o pináculo da fama. Pelo contrário, Ele desceu sempre

mais baixo e mais profundo e mais intimamente. O caminho para

dentro dessas profundezas foi marcado por passos: concepção,

nascimento, a vida humilde em Nazaré, batismo e tentação, opo-

sição, desprezo e perseguição, agonia no Getsêmani, condenação

diante de Caifás e Pilatos, crucificação, morte e sepultamento. O

caminho por Ele percorrido começa em Sua casa, com o Pai, e vai se

aproximando cada vez mais de nós em nosso pecado e morte, até que,

no mais profundo de Seu sofrimento Ele expressa Sua angústia por ter

sido desamparado pelo Pai. Depois disso Ele finalmente expressa Sua

vitória: "Está consumado".

A essa humilhação pertencem, em adição à Sua concepção e nascimento, as próprias circunstâncias em que Cristo nasceu no estábulo de Belém, a perseguição imposta por Herodes, a fuga para o Egito e também a humilde vida de Jesus em Sua infância, em Nazaré. Muito pouco é registrado sobre isso nos Evangelhos, pois os Evangelhos não foram escritos

com o objetivo de dar um relato completo sobre a vida de Jesus, mas

para que nós saibamos que Cristo é o Filho de Deus, o Salvador do

mundo, e o Filho unigênito do Pai. Em conexão com esse propósito, o

pouco que sabemos sobre a infância e juventude de Jesus é

suficiente.

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Mateus nos diz que Jesus,depois de retornar do Egito, viveucom Seus pais em Nazaré daGaliléia (Mt 2.23). Sua mãe vivianessa cidade antes de Seu nasci-mento (Lc 1.26), e nessa cidade Je-sus viveu até o começo de Seu mi-nistério público em Israel (Lc2.39,51; Mc 1.9). Somente depoisde ser expulso da sinagoga e re-jeitado pelos Seus conterrâneos foique Ele se dirigiu para Cafar-naum, onde fixou residência (Lc4.28 ss.; Mt 4.13). Mas Ele semprecontinuou sendo um nazareno.Mateus viu nesse fato o cumpri-mento de uma profecia do VelhoTestamento (Mt 2.23), não de umaafirmação específica, pois os ter-mos Nazaré e nazareno não sãomencionados no Velho Testamen-to, mas a profecia como um todoé encontrada em todos os profe-tas, e diz que Cristo teria uma ori-gem modesta (Is 11.1), e que a luzbrilharia sobre as trevas daGaliléia dos gentios (Is 8.22; 9.2).Nós sabemos que Jesus, navida retirada que levou por vári-os anos em Nazaré foi uma crian-ça obediente aos Seus pais (Lc2.51). Como criança Ele cresceu fisicamente e se desenvolveu es-piritualmente, além de crescer em Graça diante de Deus e dos homens (Lc 2.40,52). Aos doze anos de idade Ele foi com Seus pais, não se sabe ao certo se pela primeira vez, a Jerusalém para celebrar a Páscoa (Le 2.41 ss.), e lá Ele exibiu Sua sabedoria por meio de per-guntas e respostas aos escribas judaicos, e revelou aos Seus pais que possuía consciência de Sua missão: como Filho Ele devia ocupar-se com as coisas da casa de Seu Pai (Lc 2.49). No dia de sábado Ele foi, como era Seu costume, à sinagoga (Lc 4.16), e durante os dias da semana Ele, presumivelmente, auxiliava Seu pai em

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seu exercício profissional. Ele chega até mesmo a ser chamado de carpinteiro (Mc 6.3). Sua vida adulta lança muita luz sobre os anos de Sua juventude: Nós sabemos que Ele sabia ler e escrever, tinha muita familiaridade com o Velho Testamento, conhecia o partido dos fariseus e dos saduceus, conhecia a vida moral de Seu povo, era bem informado sobre a vida cívica e política de sua época, e amava a natureza e frequentemente se retirava para ter comunhão com Deus. Esses dados são escassos, mas todos eles apontam para o fato de que Jesus, durante Sua ju-ventude, estava se preparando para a missão que o esperava. Ficava cada vez mais claro para Ele,

como homem, o que Ele era o e o que tinha que fazer. Sua Filiação e

Seu Messianismo, com tudo que estava conectado a eles e procedia

deles, se tornavam cada vez mais claros aos olhos de Sua mente. E,

finalmente, aos trinta anos, chegou o tempo em que Ele tinha que

manifestar-se a Israel (Jo 1.31).

A ocasião para essa manifestação foi a pregação que João Batista tinha começado a fazer no sul, no deserto da Judéia. Enviado para falar a Israel que, apesar de ser descendente de Abraão, apesar de sua circuncisão e de seu senso de justiça própria, o povo era culpado e corrompido e, portanto, necessitava do batismo de arrependimento para remissão de pecados, esse mensageiro de Deus através de seu apelo à penitência causou um grande movimento entre os judeus e preparou o caminho para a vinda do Messias. Muitos iam até Ele, vindos de Je-rusalém e da Judéia, como também de toda a circunvizinhança do Jordão,

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para que fossem batizados por Ele, confessando seus pecados. Apesar de João Batista ter protestado ao batizar Je-sus, por ter reconhecido ser Ele o Messias, aquele que batizaria com o Espírito Santo e com fogo, e que pessoalmente não necessitava do batismo, Jesus insistiu em ser batizado e disse que tinha que submeter-se ao batismo porque Ele veio para cumprir toda a

justiça (Mt 3.15).

Jesus não disse que tinha que ser batizado porque precisava de arrependimento e perdão. Ao contrário dos outros que procuravam João Batista, Ele não confessou Seus pecados. Mas Ele viu em João um profeta, e muito mais do que profeta, Seu próprio arauto (Mt

11.7-14) e viu em Seu batismo não

uma cerimonia arbitrária criada pelo próprio João, mas um encargo,

uma missão, que Ele tinha re-

cebido do Pai (Me 11.30). Portan-

to o batismo de João repousava sobre a vontade de Deus e era uma

parte da justiça que Jesus tinha que cumprir. Quando Jesus se

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submete ao batismo Ele se sujeita, por um lado, à vontade do Pai e,

por outro, coloca-se no mais íntimo dos relacionamentos com o povo

que nesse batismo recebia arrependimento e perdão de pecados. O

batismo de João é para Jesus a majestosa rendição a toda a vontade

de Deus, a pública entrada em comunhão com todo o Seu povo, a

entrada real na arena Messiânica.

Portanto o batismo tinha para Jesus um significado diferente do que tinha para as outras pessoas. Ele não recebeu pessoalmente o sinal e o selo de Seu arrependimento e perdão, mas foi batiza-do com o Espírito Santo e com fogo, como só o Espírito pode batizar. Posteriormente algumas seitas pensaram que no, momento de

Seu batismo, pela primeira vez a natureza divina ou o poder de

Cristo se uniram com o homem Jesus. Esse pensamento é uma he-

resia, pois faz violência à encarnação do Verbo na concepção. Mas

uma coisa é certa: O batismo de Jesus foi Sua plena preparação para

o cumprimento de Seu ofício, pois quando Ele saiu das águas os céus

se abriram e o Espírito de Deus desceu sobre Ele e do céu se ouviu

uma voz que dizia: "Este é o meu Filho amado, em quem me

comprazo" (Mt 3.16,17). Apesar

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desse fato ser entendido por poucos, o dia do batismo de Jesus foi o dia de Sua revelação a Israel e o dia do começo de Seu ministério como o Messias.

Antes de dar início ao Seu ministério Ele passou alguns dias sozinho no deserto. Ele não encontrou um ser humano sequer, estava rodeado somente pela natureza e por animais selvagens, dedicado ao jejum, à meditação e à oração. Qual era a natureza dessa meditação é algo que logo fica claro para nós através do registro da tentação. A tentação de satanás, que aconteceu ao fim de quarenta dias, e da qual um registro detalhado nos é apresentado por Mateus, formou um clímax na batalha que Jesus travou, mas essa não foi a única. Lucas afirma que durante esses quarenta dias Ele foi tentado pelo diabo (4.2), e que o diabo, depois de ter terminado

todas as suas tentações, apartou-se dEle até o momento oportuno

(4.13). Jesus foi tentado em tudo, assim como nós, mas sem pecado

(I-W 4.15).

Mas a tentação no deserto estava de acordo com o plano de Seu ministério. Depois do batismo Ele ficou cheio do Espírito Santo (Lc 4.1), e foi o Espírito que o levou ao deserto para ser tentado pelo diabo (Mt 4.1). Jesus estava agora completa e claramente consciente do fato de que Ele era o Filho de Deus, o Messias, e que estava no comando dos poderes di-vinos. Mas que tipo de uso Ele agora faria desses poderes? Será que Ele os utilizaria

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para satisfazer Suas próprias necessidades, ou dobraria Seus joelhos diante de um poder terreno para adquirir um reino terreno ou tentaria con-vencer as pessoas através de uma demonstração dramática de sinais e maravilhas? O tentador tenta-o nesses três pontos. Mas Jesus permanece firme. Ele se apega fortemente à Palavra de Deus e pela Palavra Ele vence todas as tentações. Ele se sujeita à vontade e ao caminho do Pai, se estabelece na obediência e se santifica como um sacrifício a Deus. Portanto, Ele sabe por experiência própria o que é ser tentado, e também pode ter compaixão de nós em nossas fraquezas, e por não ter sucumbido à tentação Ele pode também socorrer aqueles que são tentados

Hb 2.18; 4.15).

Dessa forma Jesus foi preparado para

o público ministério de Seus ofícios e deu

início ao seu exercício. Desses três, no

primeiro período o ofício profético foi o

mais enfatizado. De fato, logo que

começou a exercer Seu ministério público

Ele foi reconhecido pelo povo não somente

como um professor isto é, um mestre, um

rabi, mas também como um profeta.

Depois de ter ressuscitado o jovem em

Naim a multidão clamou: "Grande profeta

se levantou entre nós, e Deus visitou o

Seu povo" (Lc 7.16). E isso aconteceu até o

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fim de Sua vida, porque Suas palavras e

Suas obras projetavam-no como um

profeta, mesmo nos casos em que o povo

não tinha conhecimento de Seus ofícios

sacerdotal e real, ou até mesmo quando o

povo rejeitava esses dois ofícios. Além

disso, como um profeta, isto é, como uma

pessoa mais habilitada que as outras para

transmitir ensinos sobre Deus e as

realidades divinas, Ele é honrado até os

nossos dias por todos aqueles que res-

peitam qualquer valor de qualquer

religião. Mas esse mesmo povo rejeita a

idéia de que Cristo é um sacerdote e um

rei. É como um profeta que Ele é exaltado.

Até mesmo Mohamed no Corão lhe

confere essa dignidade.

Mas Jesus queria ser profeta em um sentido diferente do usual. Quando, depois de ter sido batizado por João e tentado no deserto, Jesus voltou à Galiléia, Ele logo se dirigiu à sinagoga de Nazaré e aplicou a profecia de Isaías 11.1 a Si mesmo. O Espírito do Senhor estava sobre Ele para evangelizar os pobres e pôr em liberdade os oprimidos (Lc 4.18). Ele não se apresenta como um profeta semelhante aos demais, mas como um profeta que está acima de todos os outros. Os profetas que vieram antes dEle tinham sido servos, mas Ele era o Filho (Mt 21.37). Ele é o único Mestre (Mt 23.8,10; Jo 13.13,14). É verdade que Ele tinha em comum com os outros profetas os dons da vocação e unção, de revelação e de pregação da Palavra de Deus, de predição e poderes miraculosos. No entanto Ele transcende todos os outros e é exaltado sobre todos eles. Seu chamado e Sua unção datam da eternidade; Sua separação e preparação começaram logo que Ele foi concebido pelo Espírito Santo; em Seu batismo Ele recebe o Espírito Santo sem medida e uma voz do céu anuncia que Ele é o Filho amado, em quem o Pai se compraz; Ele não recebe revelações de tempos em tempos, Ele é a revelação, a plena revelação de Deus, o Verbo que estava com Deus, era Deus e tornou-se carne; Ele estava e estará para sempre no

seio do Pai, e em toda a Sua vida Ele falou e fez somente o que o Pai

queria que Ele falasse e fizesse; conseqüentemente, Ele não nos deu

uma revelação parcial que poderia ser ampliada posteriormente por

outras pessoas, pois Ele é a perfeita revelação de Deus, que cumpre e

Page 325: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

conclui todas as outras profecias. Deus, de muitas vezes e de muitas

maneiras falou aos nossos pais pelos profetas, mas nestes últimos

dias nos falou pelo Filho (Hb 1.1). Além disso, a profecia que no

Velho Testamento nos foi dada pelos pais falava sobre Cristo. Foi o

Espírito de Cristo que deu testemunho aos profetas (1Pe 1.11), e o

conteúdo desse testemunho era Cristo (Ap 19.10).

A pregação de Cristo foi, portanto, no sentido mais profundo, uma revelação de Si mesmo. Ela foi uma proclamação de Sua própria pessoa e de Sua obra. Quando Ele se manifestou publicamente, Ele tomou João Batista e os profetas do Velho Testamento como ponto de partida: "Arrependei-vos, porque está próximo o reino dos céus" (Mt 3.2; 4.17). Os profetas anteriores e João Batista eram arautos e viram o reino de Deus no futuro (Mt 11.10,11). Todavia agora o tempo se cumpriu e na pessoa de Cristo o Reino de Deus veio à terra. Deus é o Rei e o Pai desse Reino (Mt 5.16,35,45), mas o Pai se agradou em que Cristo desse esse Reino aos Seus

diSCípUJOS114.

Em Sua pregação Cristo fala sobre a origem e a natureza desse reino, a forma pela qual se tem acesso a ele, os benefícios que ele oferece, seu desenvolvimento gradual e sua plenitude final. Ele não faz isso através de argumentações filosóficas ou de discursos teológicos, mas através de provérbios e parábolas. Ele retira Suas figuras de linguagem dos fenômenos naturais ou dos eventos diários, da vida prática, e fala às multidões sempre usando uma linguagem viva e clara, de forma que aqueles que o ouviam pudessem entendê-lo (Me 4.33). Contudo, quando Seus ouvintes não entendiam Suas palavras, isso era uma evidência da dureza de seus corações e, também, do prazer do Pai em esconder essas coisas aos sábios e en-tendidos e revelá-las aos pequeninos (Mt 11.25; 13.13-15). Mas em si mesmas essas palavras sempre eram compreensíveis, até mesmo quando elas se referiam aos

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mistérios mais profundos do Reino de Deus, pois na pessoa de Seu Filho e herdeiro, o próprio Deus é o revelador e intérprete dessas palavras. Em Seu nascimento, em Sua mensagem e em Seus atos Jesus nos apresentou o Pai (Jo 1.18). Quem quer que veja o Filho, vê também o Pai Uo 14.9).

A mensagem anunciada por Jesus era essencialmente a mesma que fora anunciada nos tempos do Velho Testamento. Ela incluía tanto a lei quanto o Evangelho, mas Jesus não veio para ser um novo legislador com o intuito de ampliar a lei do Velho Testamento. E o Evangelho anunciado por Cristo é o mesmo que Deus vinha revelando desde o paraíso. Jesus não veio para destruir a lei ou os profetas, mas para cumpri-Ia (Mt 5.17). Ele cumpriu a lei ao purificá-la de todas as interpretações falsas e de todas as adições humanas, e ao trazê-la à sua plena realização em Sua própria pessoa e em Seu ministério. Portanto, Cristo tem uma relação com a lei diferente da que tinha Moisés, e uma relação com o Evangelho diferente da que tinham os profetas. É verdade que a lei foi dada por Moisés e o Evangelho foi anunciado pelos profetas, mas a Graça e a verdade se encontram somente em Jesus Cristo (Jo 1.17). Moisés carregou a lei em suas mãos na forma de duas tábuas de pedra, e em sua obra ele podia ser superado por outros. Da mesma forma os profetas anunciaram o Evangelho, mas eles mesmos não eram o Evangelho. Mas Cristo cumpriu a lei em seu sentido mais pleno e mais pro-fundo, realizando perfeitamente a vontade do Pai, e foi não apenas o pregador do Evangelho, mas tam-

bem seu conteúdo, o mais sublime dom que Deus deu ao mundo. A Graça e a verdade se encontraram nEle e estão ligadas de forma inseparável em Sua pessoa.

Page 327: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

As palavras de Jesus foram

acompanhadas e confirmadas por Seus

atos. Esses atos também pertenciam ao

Seu ofício, ao cumprimento da vontade do

Pai (Jo 4.34). Esses atos não foram

realizados por Sua própria iniciativa, mas

o Pai deu todas as coisas em Suas mãos

(Mt 11.27); Jo 3.35), e o Filho nada fez de Si

mesmo, senão somente aquilo que viu o

Pai fazendo (Jo 5.19). Foi o próprio Pai, que

permanecia no Filho, que realizou essas

obras (Jo 14.10). Assim como essas obras

tinham uma origem divina, elas possuíam

também um caráter divino, não somente

por serem milagres e estarem separadas

do curso ordinário da natureza, mas

também porque elas não podiam ser

realizadas por outras pessoas, pois

enquanto as pessoas seguiam sua

própria vontade, Jesus nunca procurou

Seus próprios interesses ou Seu prazer

(Rm 15.3). Em vez disso Ele negou a Si

mesmo e cumpriu a vontade do Pai.

Entre as obras realizadas por Jesus, os

milagres ocupam um lu

gar especial. Por um lado eles eram sinais e evidências da missão e do

poder divino de Cristo"', e por outro lado eles eram atos de Jesus

que tinham a finalidade de suprir as necessidades físicas e espirituais

das pessoas. Todos os milagres de Jesus são milagres de redenção e

cura, e como tais eles pertencem ao Seu ofício sacerdotal.

Page 328: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

Isso se torna evidente a partir das limitações que Jesus impõe à realização de Seus milagres. No deserto Ele resistiu à tentação de satanás para que aplicasse Seu poder divino em benefício próprio. O que Ele disse no jardim do Getsêrnani, isto é, que Ele poderia orar ao Pai e o Pai lhe mandaria mais de doze legiões de anjos (Mt 26.53) é aplicável a todo o Seu ministério. Em várias ocasiões Ele se recusou a realizar Seus milagres para satisfazer a curiosidade do povo"', e não raramente Ele limitava Sua revelação à incredulidade que encontrava (Mt 13.58). Em várias ocasiões as pessoas que recebiam milagres eram exortadas a não falar sobre isso a outras pessoas (Me 1.34,44; 3.12). Jesus não queria alimentar idéias erradas a respeito do Messias através de Suas obras.

As obras realizadas por Jesus pertenciam ao Seu ofício sacerdotal, e por isso elas também

eram manifestações de Sua compaixão. Nós lemos sobre Sua com-

paixão em vários lugares 2e7 , e o evangelista Mateus vê nas curas

realizadas por Jesus um cumprimento da profecia de Isaías que diz

que Ele tomou sobre Si as nossas enfermidades e as nossas dores

levou sobre Si (Mt 8.17). Em outro lugar essa profecia é aplicada à

morte de Cristo, na qual Ele levou sobre Si os nossos pecados (Jo

1.29; lPe 2.24). Mas o pecado e a enfermidade caminham juntos.

Como nosso compassivo Sumo Sacerdote, Cristo não somente re-

moveu nosso pecado, mas também a causa de nossa miséria. E nos

vários milagres por Ele realizados, na expulsão de demônios, na cura

de cegos e surdos, aleijados e mutilados, na ressurreição de mortos

e no controle das forças da natureza, Ele dá evidências

conclusivas de que pode nos redimir de toda a nossa miséria e

sofrimento. Não há culpa tão grande, nem pecado tão profundo

que não possam ser removidos por essa compaixão sacerdotal e por

esse poder real de Cristo.

Naturalmente Sua atividade sacerdotal se expressa especialmente em Sua paixão e morte, na entrega de Sua alma em resgate por muitos e no cumprimento da obra que ele veio realizar, e que Ele realizou ao longo de toda a Sua

vida (Mt 20.28). Como Cordeiro de Deus Ele constantemente tira o

pecado do mundo. Sua humilha ção começou em Sua encarnação,

Page 329: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

continuou através de Sua vida de obediência pelo sofrimento, e ter-

minou na morte na cruz (Fp 2.8; Hb 5.8). Foi o Pai que designou Cristo

como sacerdote e como profeta. E assim como Cristo cumpriu Seu

ofício profético, da mesma forma Ele cumpriu cabalmente Seu

ofício sacerdotal.

É notável que no Novo Testamento, Cristo só receba o nome d e s a c e r d o t e , n a c a r t a a o s Hebreus. É verdade que Sua vida e morte são apresentadas como sacrifício, mas o termo profeta só é usado em Hebreus. Há uma boa razão para isso. Certamente Cristo é um sacerdote, mas Ele é um sacerdote muito diferente dos que existiam no tempo do Velho Testamento soba lei de Moisés. Os sacerdotes do Velho Testamento eram da linhagem de Aarão e da tribo de Levi. Eles eram apenas sa-cerdotes, eles não eram profetas e reis. Eles viviam e serviam por algum tempo e eram substituídos por outros. Eles faziam sacrifícios de bodes e novilhos, que não podiam perdoar pecados. Mas nada disso acontece com Cristo. Ele procedeu da tribo de Judá e por isso não podia reivindicar o sacerdócio (Hb 7.14).

De acordo com a carta aos Hebreus, Cristo não era um sacerdote segundo a linhagem de Aarão, mas segundo a linhagem de Melquisedeque. Já tinha sido isso anunciado no Salmo 110: o Messias será um sacerdote que combinará a dignidade real com o ofício sacerdotal. A carta aos Hebreus desenvolve esse pensamento e afirma que Cristo é um sacerdote não segundo a ordem de Aarão, mas segundo a ordem de Melquisedeque, porque Ele é ao mesmo tempo um rei perfeitamente justo e sem pecado - um rei de justiça, que será sacerdote para sempre, que nunca será substituído porque traz uma oferta de Seu próprio corpo e de Seu próprio sangue, e não de bodes e novilhos, e que por intermédio de Seu sacrifício alcança perfeita salvação para Seu povo e lhe dá paz eterna, pois é o rei da paz (Hb 7.20 ss.). A admoestação prática que os judeus cristãos - que estavam ameaçados de apostaria - deduziram de tudo isso é que eles não tinham uma razão sequer para voltar atrás, mas para seguir adiante (6.1). Os sacerdotes do Velho Testamento, suas orações intercessoras e seus sacrifícios serviram como tipos e símbolos para que o povo tivesse acesso a Deus, e o sacerdócio deles foi perfeita e eternamente cumprido em Cristo. Ele abriu um novo e vivo caminho para a vida eterna, e por esse ca

nimbo os cristãos podem, com confiança e certeza de fé, comparecer diante do trono da Graça (4.16; 10.19 ss.).

Assim como o ofício sacerdotal está

Page 330: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

relacionado ao ofício profético, o ofício real

de Cristo também está relacionado ao Seu

ofício sacerdotal de uma forma ainda mais

íntima. Uma das peculiaridades do ofício

sacerdotal de Cristo é sua conexão com

Sua dignidade real (SI 110.4; Hb 7.17). Além

disso, Israel foi chamado para ser um

reino de sacerdotes (Ex 19.6). E, embora

os ofícios em Israel sejam distintos, há a

profecia de que o Messias, o renovo que

brotaria em Seu próprio lugar e edificaria o

templo do Senhor, seria revestido de glória

(a majestade real) e se assentaria sobre

Seu trono e exerceria domínio e seria

sacerdote sobre Seu trono. O Messias, que

uniria as funções reais e sacerdotais,

através dessa união traria a perfeita paz

de que Seu povo necessita (Zc 6.12,13).

Essa conexão com o ofício sacerdotal dá ao reinado de Cristo um caráter muito especial. Ele procede da casa de Davi (2Sm 7.16), mas em tempo no qual a casa de Davi tinha entrado em decadência (Mq 5.1). Ele seria um rei justo e equipado com a salvação de Deus, mas também seria humilde, e em Sua humildade cavalgaria em um jumento – um jumentinho, uma cria de jumenta (Zc 9.9). E assim como o Messias não exibiria glória e poder terrenos, da mesma forma Seu reino não seria estabelecido através de armas e violência. De fato, nesse dia Ele destruiria os carros de Efraim e os cavalos de Jerusalém, e o arco de guerra seria destruido, e o Messias anunciaria paz às nações e Seus domínios se estenderiam de mar a mar e desde o Eufrates até às extremidades da terra (Zc 9.10. Compare com S172).

Essa profecia referente à vinda do Messias foi perfeitamente cumprida em Cristo. O Novo Testamento constante e enfaticamente afirma que Ele pertence à casa de Davi e que em virtude das leis do reino de Israel Ele tem direito a o t r o n o . A s d u a s l i s t a s genealógicas (Mt 1 e Lc 3) apresentam-no como filho de Davi. O anjo anuncia a Maria que o Senhor lhe dará um filho, que será chamado de Filho do Altíssimo, que Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai, e que Ele reinará para sempre sobre a casa de Jacó, e o Seu reinado não terá fim (Lc 1.32,33). Ele é geralmente reconhecido como Filho de Davi'". A essa descendência de Davi está

Page 331: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

ligado o fato de que Ele é um rei e tem direito ao reino (Lc 23.42).

Todavia Ele é rei em um sentido diferente daquele que os judeus esperavam como o Messias. Ele nunca fez uso de Seu direito real ao trono de Davi, nem diante dos governadores do povo judeu, nem diante do rei Herodes, nem diante do César Romano. Ele resistiu à tentação de dominar o mundo através de poderes mundiais (Mt 4.8-10). Quando a multidão, depois de ser alimentada milagrosamente quis fazê-lo rei Ele se esquivou e foi orar no monte Oo 6.15; Mt 14.23). De fato, Ele frequentemente mostrava Seu poder real, mas não dando demonstrações vazias de autoridade, como faziam os governadores das nações, e sim servindo e entregando sua alma em resgate por muitos (Mt 20.25-28). Seu ofício real encontra expressão na força com a qual Ele falava, com a qual Ele proclamava Suas leis para o reino dos céus, sujeitava a Si mesmo as forças da natureza, subjugava as doenças e a morte, e até mesmo na cruz, onde Ele entregou Sua vida para reavê-la novamente, e Ele um dia, como rei e como juiz julgará os vivos e os mortos.

Mas esse significado espiritual que Cristo, em harmonia com a profecia do Velho Testamento, dá ao Seu reinado, não deve nos fazer pensar que Ele não seja verdadeiramente um rei e que so-

mente em um sentido figurado Ele receba essa designação. Ele é sa-

cerdote segundo a linhagem de Melquisedeque, e não segundo a

linhagem de Aarão, e por essa razão Ele é um sacerdote melhor

que os sacerdotes do Velho Testamento, e, da mesma forma, por

ser um rei diferente daqueles que governam as nações, Ele é

um rei melhor do que eles. Ele é o verdadeiro rei, e os reis da terra

são reis somente à Sua imagem e semelhança. Ele é o Rei dos

reis, o príncipe dos reis da terra, o rei que governa, interna e

externamente, espiritual e fisicamente, no céu e na terra, até as

extremidades da terra e por toda a eternidade.

Ele nunca, nem por Deus nem pelo homem, abre mão de Seus legítimos direitos a esse reinado eterno e perfeito. Durante Sua jornada pela terra Ele nunca abriu mão de qualquer um de Seus direitos divinos ou humanos. Ele não tentou obter esses direitos pela violência, mas alcançou-os única e exclusivamente através de Sua obediência a Deus. Em Sua humilhação Ele provou ser o Filho de Deus e o herdeiro de todas as

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coisas.

Para demonstrar que realmente era um rei, Ele faz Sua entrada triunfal em Jerusalém no domingo que abre a semana da paixão. Não havia qualquer perigo de que a natureza de Seu reinado não fosse bem compreendi-

da. Toda uma vida marcada pela obediência, que por palavras e

atos tinha rejeitado todo poder terreno, agora estava atrás

dEle. A inimizade entre Cristo e o povo tinha alcançado seu ponto

mais elevado, e ainda no decorrer dessa semana Ele seria

entregue à morte. Apesar de ter evitado todos os esforços

populares no sentido de coroá-lo rei, Ele agora toma a

iniciativa de fazer Sua entrada triunfal em Jerusalém (Mt 22.1).

Antes de Sua morte Ele deve se fazer conhecido de forma clara e

inequívoca como o Messias, enviado por Deus, da linhagem de

Davi. Ele faz essa revelação em harmonia com a profecia de um

futuro rei que seria humilde e cavalgaria sobre um jumento. Foi

por ser o Messias, o Filho de Deus, o Rei da casa de Davi, que Ele foi

condenado pelo Sinédrio e por Pilatos (Mt 27.11). A inscrição no

alto da cruz, colocada contra a vontade dos judeus, mais uma

vez dá testemunho desse fato (Jo 19.19-22).

Toda a vida de Cristo com Suas

atividades proféticas, sacerdotais e reais,

culminou em Sua morte. A morte é o

cumprimento da vida. Jesus veio para

morrer. Ele mesmo estava claramente

consciente disso. Logo em Sua primeira

aparição pública, na sinago-

ga de Nazaré, Ele aplicou a profecia referente ao Servo Sofredor a Si mesmo (Lc 4.16 ss.), e, portanto, estava perfeitamente consciente de que seria levado como um cordeiro para o matadouro. Ele era o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo Uo 1.29). O templo de Seu corpo seria

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destruido, mas depois de três dias seria novamente edificado (Jo 2.19). Assim como Moisés levantou a serpente no deserto, assim também, segundo o conselho de Deus, o Filho do homem seria levantado na cruz Go 3.14. Compare com 12.32,33). Ele era o grão de trigo, que tinha que morrer para que desse muito fruto (Jo 12.24).

Dessa forma Jesus, desde o começo de Seu ministério, descreve através de imagens e parábolas que tipo de morte Ele receberia. Na medida em que o fim se aproximava, Ele dava expressão a esse fato de maneira mais clara e mais objetiva. Especialmente depois que Pedro, em nome de todos os apóstolos, no momento decisivo em Cesaréia de Filipos, confessou que Jesus era o Cristo, o Filho do Deus vivo, Ele começou a mostrar-lhes que Ele tinha queira Jerusalém e sofrer muitas coisas nas mãos dos anciãos, do sumo sacerdote e dos escribas, morrer, e ressuscitar ao terceiro dia (Mt 16.21). Os discípulos não entendiam isso e não queriam aceitar esse fato. Pedro foi tão lon

ge que chegou a chamá-lo confidencialmente e dizer-lhe: "Tem compaixão de ti, Senhor; isso de modo algum te acontecerá". Mas nessas palavras Jesus viu uma tentação e prontamente retrucou: "Arreda, Satanás! Tu és para mim pedra de tropeço, porque não cogitas das coisas de Deus, mas das dos homens" (Mt 16.22,23). Essa firmeza de Cristo em entregar-se à morte obteve a aprovação de Deus poucos dias depois, no monte da transfiguração. Ele foi a Jerusalém em harmonia com o significado da lei e dos profetas (Moisés e Elias) e com a vontade do Pai. Ele continuou sendo o Filho amado, em quem o Pai se compraz, e os discípulos não deviam censurá-lo, mas submeter-se a Ele e ouvi-lo (Mt 17.1-8).

Apesar de não perder de vista Sua própria morte, Jesus não desafia os fariseus e os escribas a que o prendessem. Apesar de saber que Sua hora se aproximava ao 12.23; 17.1), é Judas quem voluntariamente o vende e o trai, e são os servos do sumo sacerdote e dos fariseus que o levam cativo, e são os membros do Sinédrio e Pôncio Pilatos que o condenam à morte. O conselho de Deus não exclui as circunstâncias históricas e não passa por alto a culpa do homem. Pelo contrário, através do determinado conselho de Deus Ele foi condenado, mas de tal forma que os judeus injustamente o

A morte de Cristo desde o começo é o ponto central da pregação apostólica', e não está presente apenas no testemunho de Paulo, mas no testemunho de todos os apóstolos. Foi somente depois da ressurreição de Cristo que, sob a instrução do Espírito santo, a necessidade e a importância do sofrimento de Cristo foi compreendida. Nessa ocasião ficou claro para os apóstolos que a paixão e a morte de Cristo também eram um cumprimento de Sua atividade profética, uma prova da verdade de Seu ensino e um selo de toda Sua vida. Sob Pôncio Pilatos Ele fez a boa confissão (lTm 6.13) e em Seu paciente sofrimento Ele nos deu o exemplo, para que nós pudéssemos seguir Seus passos (lPe 2.21). Ele é a testemunha fiei (Ap 15; 3.14), que como apóstolo e sumo sacerdote é o conteúdo de nossa confissão (Hb 3.1) e que é o Autor e Consurnador da nossa fé (Hb 12.2). Assim a morte de Cristo é uma revelação de Seu poder real, pois Sua morte não foi um ato do destino, mas uma realização que Ele mesmo, por Sua própria vontade, executou (jo 10.17,18). Sua morte na cruz foi Sua exaltação sobre toda a terra e Sua vitória sobre todos os Seus inimigos",

Contado, de acordo com o ensino apostólico, nós não descansamos sobre a morte de Cristo. Em Sua morte Jesus foi não somente uma

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testemunha e um guia, um mártir e um herói, um profeta e um rei. Acima de tudo isso Ele foi um sacerdote. É Sua função sacerdotal que ganha preeminência em Sua morte. De acordo com o ensino de toda a Escritura Sua morte foi um sacrifício, que Ele livremente ofereceu ao Pai.

Quando o Novo Testamento nos apresenta a morte de Cristo sob esse nome, ele a vincula diretamente ao Velho Testamento. Os sacrifícios existiam desde os tempos mais remotos. Nós lemos que Caim e Abel já ofereciam seus sacrifícios, que Noé e os patriarcas também os ofereciam, e nós os encontramos entre todas as nações e em todas as religiões. Geralmente pode ser dito que o propósito do sacrifício é fazer uma oferta material, consistindo de animais vivos ou mortos que são destruídos de uma forma específica segundo uma cerimônia definida, com o objetivo de obter o favor e o agrado da divindade ou para readquiri-lo. Deus incluiu na lei esses sacrifícios para o povo de Israel. Mas em Israel eles seguiam

uma regra diferente e tinham um significado diferente.Em primeiro lugar, em Israel os

sacrifícios foram limitados à oferta de animais (bois, ovelhas, cordeiros, bodes, novilhos e pombos) e aos produtos da terra (flores, óleo, vinho e aromas) e só podiam ser oferecidos a Jeová, o Deus de Israel. 0 oferecimento de seres humanos, o sorvimento do sangue e a mutilação do corpo eram proibiclosu. Além disso, todas as ofertas aos ídolos, aos mortos ou aos animais "santos" eram violações da vontade de Deus" Em segundo lugar, os sacrifícios em Israel eram muito menos im-portantes que a lei moral. A obediência é melhor que sacrifícios, e o ouvir é melhor do que a gordura de carneiros. 0 Senhor quer misericórdia, e não sacrifícios, e o conhecimento de Deus vale mais do que ofertas queimadas"'. Em terceiro lugar, os sacrifícios em Israel assim como o sacerdócio, o templo, o altar, e toda a regulamentação cerimonial estavam a serviço da promessa. Eles não levavam a efeito a Aliança da Graça, pois essa Aliança repousa somente sobre a graciosa eleição de Deus. Eles serviram apenas para estabelecer a Aliança e mante-la

firme em Israel.

Assim como todo o povo de Israel, em virtude de seu chamado e de sua eleição, era um reino de sacerdotes (Ex 19.6), e o sacerdócio era uma instituição subor-

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dinada e temporária, assim também os sacrifícios (especificamente as ofertas queimadas, as ofertas pelo pecado e as ofertas pela culpa) eram a forma pela qual os pecados que os israelitas cometiam no âmbito da Aliança podiam ser perdoados". Os pecados mais graves, que quebravam a Aliança e provocavam a ira de Deus, ape-sar de serem geralmente punidos civicamente, eram submetidos à misericórdia de Deus, que os perdoava, apesar de algumas vezes ser necessária a intervenção de pessoas como Abraão (Gn 18.23- 33), Moisés", Finéias (Nm 25.11), ou Amos (Am 7.4-6; Compare com

jr 15 1)116.

Através de todo esse serviço cerimonial Deus instruiu Seu povo, em primeiro lugar, no sentido de que toda a Aliança da Graça, com todos os seus benefícios, deve-se somente à misericórdia de Deus. Ela tem sua origem e sua base na ilimitada compaixão de Deus: "Terei misericórdia de quem me aprouver ter misericór-

dia e me compadecerei de quem me aprouver ter compaixão" (Ex 33.19). Também por meio dessas instiuições cerimoniais o Senhor fez com que Israel compreendesse que Ele só concederia o perdão de pecados mediante expiação. 0 pecado, em outras palavras, sempre provoca a ira de Deus e faz com que o homem se torne culpado e corrompido. Portanto, um sacrifício é necessário para que a ira de Deus seja satisfeita, para que * homem seja limpo de sua culpa * de sua impureza, e para que ele alcance mais uma vez o favor e a comunhão com Deus. Havia pecados para os quais a lei não es-pecificava um sacrifício particular para que houvesse expiação. Podemos dizer que a expiação ação era deixada por conta de Deus. É o próprio Deus quem, nesses casos, expia o pecado e o perdoa. 0 perdão pressupõe a expiação217 . Até mesmo com relação aos pecados cometidos por ignorância, e para os quais um sacrifício específico era prescrito na lei, em última aná-lise era Deus que, por meio da oferta, do sacerdote, do altar, cobria os pecados e os removia (Lv 17.11; Nm 8.19). Todo o serviço expiatório procede de Deus e foi prescrito por Ele.

0 meio pelo qual a expiação ou reconciliação era obtida era o derramamento do sangue do ani

mal sacrificado. 0 sangue é a sede da alma, a sede do princípio da vida, e foi por isso que Deus o colocou sobre o altar como o elemento expiatório da alma (Lv 17.11). Mas para que servisse como agente expiatório esse sangue - que o pecador trazia ao templo e sobreo qual ele impunha suas mãos - tinha que ser purificado pela morte e depois tinha que ser aspergido pelo sacerdote sobre o altar (Ex 29.15 ss.). A

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imposição de mãos, a morte da vítima e a aspersão do sangue sobre o altar indicavam o fato de que o sangue como sede da alma se tornava o elemento da expiação. E quando dessa formao sangue expiava os pecados, cobria-os e removia-os, a culpa era perdoada, a corrupção era extirpada, e a comunhão da Aliança com Deus era restaurada. 0 sacerdócio e o povo, o templo e o altar,e todos os utensílios eram consagrados pelo sangue ao Senhor; todos eram santificados para que Deus pudesse morar no meio dos filhos de Israel e ser o seu Deus (Ex 29.43-46).

Mas todo esse serviço sacrificial foi preliminar e possuía somente a sombra dos bens vindouros (Hb 10.1). 0 tabernáculo no deserto era apenas uma imagem do verdadeiro santuário (Hb 8.5). Os sacerdotes eram pecadores, e tinham que fazer expiação não

somente pelos pecados do povo, mas também pelos seus próprios pecados (Hb 7.27; 9.7), e pela morte eram impedidos de dar continuidade ao seu sacerdócio (Hb 7.23). 0 sangue de bodes e de touros não podia remover pecados nem purificar a consciência (Hb 9.9,13; 10.4). Portanto, esses ani-mais tinham que ser trazidos continuamente (10.1). Em uma palavra, tudo isso era externo, fraco inútil e defeituoso (Hb 7.18; 8.7), e apontava para um futuro melhor. Os israelitas piedosos aprenderam a conhecer esse futuro melhor no decorrer dos séculos, aguardando o dia em que o Senhor estabeleceria =a nova Aliança, na qual Ele mesmo faria a verdadeira expia-ção, e faria com que Seu povo desfrutasse das bênçãos de perdão e renovação'". Particularmente em Isaías essa expectativa alcança sua mais bela expressão. Seu livro de conforto começa com o anúncio a Jerusalém de que já é findo o tempo da sua milícia, que a sua iniqüidade está perdoada e que já recebeu em dobro das mãos do Senhor por todos os seus pecados (Is; 40.2). Depois disso ele desenvolve a profecia do Servo do Senhor, que toma sobre si as nossas enfermidades e as nossas dores, nossas transgressões e nossa punição, e nos dá cura e paz (Is 53.2 ss.).

Em total harmonia com o Velho Testamento, o Novo Testamento vê na morte de Cristo um sacrifício pelos nossos pecados. Jesus não disse somente que ele veio para cumprir a lei e os profetas e toda a justiça (Mt 3.15; 5.17), mas que também veio aplicar a Si mesmo a profecia de Isaías a respeito do Servo do Senhor, que foi ungido pelo Espírito do Senhor e que tinha que pregar o Evangelho aos pobres (Lc 4.17 ss.). Ele veio para que, em harmonia com o mandato do Pai, pudesse entregar Sua vida e reavê-la, para que desse sua vida pelas Suas ovelhas, e pudesse dar Sua carne e Seu sangue como comida e bebida que permanecesse para a vida eterna2". Sua morte é o verdadeiro sacrifício e o cumprimento de todos os sacrifícios que nos dias do Velho Testamento foram oferecidos de acordo com as prescrições da lei.

Além disso, a morte de Cristo é a mais perfeita das rendições à vontade do Pai, uma evidência de que Cristo não veio para ser servido, mas para servir. Dessa forma Sua morte é um resgate pago para a libertação de muitos do poder do pecado ao qual eles estavam presos (Mt20.28). Amor-te de Cristo é o cumprimento da

oferta pactuai feita no preâmbulo do Velho Testamento (Ex 24.7), e é a base

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da nova Aliança (Mt 26.28; Hb 9.15-22). Ela é chamada de sacrifício e oferta (Ef 5.2; Hb 9.14,26), e realiza a idéia do sacrifício pascala", das ofertas pelo pecado e das ofertas pela culpa221, e do sacrifício feito no grande dia da expiaçãon1.

Não somente os sacrifícios do Velho Testamento foram cumpridos em Cristo, mas também todas as suas exigências e as ações que os acompanhavam. 0 sacerdote que fazia a oferta tinha que ser um homem sem qualquer defeito (Lv 21.17 ss.), e esse sacerdote é Cristo, santo, inculpável, sem mácula, separado dos pecadores (TIL, 7.26). 0 animal que era sacrificado tinha que ser totalmente sem defeito (Lv 22.20 ss.), e Cristo é o Cordeiro sem mácula e sem mancha (lPe 1.19). Assim como o animal do sacrifício tinha que ser morto pelas mãos do sacerdote (Ex 29.11), Cristo foi morto como um cordeiro e com Seu sangue Ele nos comprou para Deus (Ap 5.6- 9). Nenhum osso do cordeiro pascal podia ser quebrado (Ex 12.46), e Cristo morreu sem que sequer um de Seus ossos fosse quebrado (jo 19.36). No caso de uma oferta pelo pecado, o sacer

dote, depois de imolar o animal, aspergia o seu sangue no lugar santo (Lv 16.15; Nm 19.4) e, no caso de =a oferta da Aliança, o sangue do animal era aspergido sobre o povo (Ex 24.8); e exatamente dessa forma Cristo, pelo Seu sangue, entrou no santo lugar (Hb 9.12) e aspergiu Seu sangue sobre Seu povo (lPe 1.2; Hb 12.24). Quando a oferta pelo pecado era feita, o sangue do animal era trazido até o lugar santo, mas o corpo era queimado fora do arraial (Lv 16.27). Da mesma forma Cristo, para que pudesse santificar Seu povo com o Seu sangue, sofreu fora da porta (Hb 13.12). Assim como no culto do Velho Testamento o sangue, como sede da vida, através de sua purificação na morte e de sua aspersão sobre o altar se tomava o elemento próprio para a expiação, assim também na nova Aliança o sangue de Cristo é a causa efetiva da expiação, perdão e eliminação do nosso pecadonl.

Portanto, quando o Novo Testamento fala que Cristo sofreu e morreu como um sacrifício, ele faz uso de uma figura de linguagem, e empresta seus termos do culto sacrificial do Velho Testamento. Mas nós não devemos inferir desse fato que essa represen-

tação seja acidental, irreal, e arbitrária. Pelo contrário, a Escritura parte precisamente do fato de que os sacrifícios dos dias do Velho Testamento eram a imagem e a sombra, e que receberam seu cumprimento no sacrifício de Cristo. Assim como Cristo era verdadeiramente profeta, sacerdote e rei, e não somente uma comparação, da mesma forma Sua entrega na morte não

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foi um sacrifício no sentido figurativo, mas no mais essencial e verdadeiro sentido da palavra. Nós não podemos negar que a morte de Cristo tenha sido um sacrifício. Negar a palavra é negar também a realidade que ela representa. E essa realidade é a mais importante de todas as realidades para nós: é a fonte de nossa salvação.

Além disso, quando a morte de Cristo é chamada de sacrifício, a implicação é que Ele se entregou para ser uma oferta e um sacrifício a Deus em aroma suave (Ef 5.2). De fato, Cristo foi uma dádiva e uma evidência do amor de Deus (Jo 3.16). Deus provou Seu amor por nós pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores (Rm 5.8). Aquele que não poupou Seu próprio Filho também nos dará graciosamente com Ele todas as coisas (Rm 8.32). 0 nascimento, a vida, e também o sofrimento e a morte de Cristo demonstram e nos asseguram oamor de Deus. Mas esse amor de Deus não coloca a justiça de lado. Pelo contrário, a justiça está incluída no amor, pois o amor de Deus não rouba ao pecado o seu caráter pecaminoso, ele simplesmente o perdoa através da expiação. Foi de acordo com o mandato do Pai que Cristo teve que morrer111, e através de Sua morte Ele satisfez a justiça de Deus"'. Na morte de Cristo Deus, perdoando os pecados de Seu povo, perfeitamente manteve Sua justiça e ao mesmo tempo abriu o caminho pelo qual, enquanto preserva Sua justiça, também justifica todos aqueles que, pela fé, pertencem a Jesus.

Em segundo lugar, o sacrifício de Cristo é uma demonstração tanto de Sua obediência "passiva" quanto de Sua obediência "ativa". Em tempos antigos a obediência passiva era colocada em um terreno tão distante da obediência ativa que virtualmente desaparecia atrás dela. Mas posteriormente tanta ênfase foi colocada sobre a obediência ativa que a primeira teve seu justo valor obscurecido . Contudo, de acordo com a Escri-tura, ambas caminham juntas, e devem ser vistas como os dois lados da mesma questão. Cristo, em todos os tempos, de Sua concepção e nascimento em diante, obedeceu ao Pai. Toda a Sua vida deve ser vista como um cumpri-mento da justiça de Deus, de Sua justiça e de Seu mandato. Ao vir ao mundo Ele disse: "Eis aqui estou para fazer ó Deus, a tua vontade" (1-11110.5-9). Essa obediência foi perfeitamente demonstrada em Sua morte, mais especificamente em Sua morte na cruz (Fp 2.8). 0 Novo Testamento afirma abundantemente que através do sofrimento e da morte de Cristo, pela primeira vez o pecado foi expiado, perdoado e removido. Não somente o cumprimento da lei, mas também a retirada da culpa pertence à vontade de Deus que Cristo realizou de forma plena.

Portanto, em terceiro lugar, o sacrifício de Cristo está relacionado aos nossos pecados. Já no Velho Testamento nós lemos que Abraão ofereceu uma oferta queimada em lugar de seu filho (Gn 22.13), que pela imposição de mãos o israelita fazia com que um animal sacrificial tomasse seu lugar (Lv 16.1), e que o Servo do Senhor foi ferido por nossas trans-gressões e moído pelas nossas iniquidades; (Ts 53.5). Da mesma forma o Novo Testamento estabelece uma íntima relação entre o sacrifício de Cristo e nossos pecados. 0 Filho do homem veio ao mundo para dar a Sua vida em resgate por muitos (Mt 20.27; lTrn 2.6). Ele foi entregue por, ou em conside

ração aos nossos pecados (RUI 4.25), Sua morte estava relacionada com os

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nossos pecados', OU, como geralmente se diz, Ele morreu pelos nossos pecados'".

A comunhão que Cristo, segundo as Escrituras, passou a ter conosco é tão íntima e tão profunda que nós não podemos sequer formar uma idéia sobre ela. 0 termo sofrimento substitutivo expressa apenas de uma forma fraca e defectiva o que essa comunhão significa, pois a realidade transcende nossa imaginação e nosso pensamento. É verdade que algumas analogias podem ser feitas para explicar essa comunhão. Nós sabemos da existência de pais que sofreram em e com seus filhos, de heróis que deram sua própria vida em benefício de seu país, de homens e mulheres nobres que semearam o que outros posteriormente colheram. Em todos os lu-gares, nós vemos em operação, a lei de que poucos trabalham e se esforçam para que outros desfrutem de seu labor e dos benefícios que ele traz. A morte de um homem é a sobrevivência de outro. 0 grão de trigo deve morrer para que dê fonte. Em dores a mãe da à luz o seu filho. Mas nenhuma dessas comparações é adequada para expressar a comunhão que Cristo passou a ter conosco. "Dificilmen-

te, alguém morreria por um justo; pois poderá ser que pelo bom alguém se anime a morrer. Mas Deus prova o Seu próprio amor para conosco pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores" (Rm 5.7,8).

Não havia comunhão entre nós e Cristo, havia apenas separação e oposição, pois Ele era o Filho unigênito do Pai, em que o Pai se compraz, e nós éramos como filhos perdidos. Ele era justo, santo e não tinha qualquer pecado, e nós éramos pecadores, culpados diante de Deus, e impuros da cabeça aos pés. Contudo Cristo colocou-se em comunhão conosco, não meramente em um sentido físico (natural), ao assumir nossa natureza, nossa carne e nosso sangue, mas também em um sentido judicial (legal), e em um sentido ético (moral), ao entrar em contato com nosso pecado e com nossa morte. Ele está em nosso lugar; Ele se coloca no mesmo relacionamento com a lei de Deus que nós também mantemos; Ele assume nossa culpa, nossa enfermidade, nossa punição sobre Si mesmo; Aquele que não conheceu pecado foi feito pecado por nós, para que, nEle, fôssemos feitos justiça de Deus (2Co 5.21). Ele se tornou maldição em nosso lugar, para que pudesse nos redimir da maldição da lei (G13.13). Ele morreu por todos, para que os que vivem não vivam mais para si mes

mos, mas para Aquele que por eles morreu e ressuscitou (2Co 5.15).Esse é o mistério da salvação, o mistério do amor divino. Nós não

entendemos o sofrimento substitutivo de Cristo, porque nós, sendo hostis a Deus e uns aos outros, não podemos imaginar o que o amor é capaz de fazer, e o que o amor eterno e infinito de Deus pode realizar. Mas nós não temos que entender esse mistério. Nós precisamos apenas crer agradeci-damente nEle, descansar nEle, e nos gloriarmos e nos alegrarmos nEle. "Ele foi traspassado pelas nossas transgressões e moído pelas nossas iniqüidades. 0 castigo que nos traz a paz estava sobre E le , e pe las Suas pisaduras fomos sarados. Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas; cada um de nós se desviava pelo caminho, mas o Senhor fez cair sobre Ele a iniqüidade de nós todos" (Is 533,6).

"Que diremos, pois, à vista destas cousas? Se Deus é por nós, quem será contra nós? Aquele que não poupou Seu próprio Filho, antes , por nós o ent regou, porventura, não nos dará graciosamente com Ele todas

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as cousas? Quem intentará acusação contra os eleitos de Deus? É Deus quem os justifica. Quem os condenará? É Cristo Jesus quem morreu ou, antes, quem ressuscitou, o qual está à direita de Deus e também intercede por nós" (Rm 8.31-34).

Capítulo 18

AOBRA DE CRISTO EM

SUA EXALTAÇÃO

0 s benefícios que Cristo n o s c o n c e d e u p o r S e u g rande amor são tão r i cos que seu valor simplesmente não pode ser calculado nem estimado. Eles compreendem nada menos que toda a perfeita obra de salvação. Eles consistem na redenção do maior de todos os males, a saber, o pecado com todas as suas conseqüências de miséria e morte, e a obtenção do maior de todos os bens, a saber, a comunhão com Deus e todas as bênçãos dela decorrentes. Mais adiante teremos oportunidade de discutir todos esses benefícios de forma detalhada, mas eles devem ser mencionados, de passagem, aqui para que nós possamos entender a obra de Cristo em seu mais profundo significado.

Dentre todos os benefícios que nós devemos à profunda humilhação de Cristo, a expiação é

o principal. Ela é expressa no Novo Testamento por duas palavras do original grego que foram traduzidas em português como propiciação, reconciliação ou expiação. A primeira dessas palavras - ou, para ser mais preciso, várias palavras com o mesmo sentido - é encontrada em Romanos 3.25, Hebreus 2.17, lio 2.2; 4.10, e originalmente significa cobrir e serve para designar a expiação efetuada pelo sacrifício. A idéia é que o sacrifício, ou melhor, o sangue do sacrifício - pois o sangue é a sede da vida, e quando ele é derramado e aspergido ele se torna o elemento próprio da expiação - cobre o pecado (culpa, corrupção) da pessoa que traz a oferta diante de Deus e, em conseqüência disso, ele remove a provocação da ira de Deus. Devido ao derramamento e à aspersão do sangue, no qual a vida, a alma de

um animal inocente e sem mácula é utilizada, Deus coloca de lado Sua ira, muda Sua atitude com relação ao pecador, perdoa sua transgressão, e admite-o novamente à Sua presença e à Sua comunhão. 0 perdão que se segue à expiação é tão perfeito que podemos dizer que os pecados foram apagados ou desfeitos (Is 43.25; 44.22), foram lançados para trás (Is 38.17), ou lançados no fundo do mar (Mq 7.19). A expiação perdoa tão completamente o pecado que é como se ele não tivesse sido cometido. Ela desfaz a ira de Deus e faz com que Sua face brilhe sobre Seu povo em aprovação paternal e boa vontade.

No Velho Testamento tudo isso

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apontava para o sacrifício de Cristo no futuro. Ele é o sumo sacerdote que por Seu sangue sacrificial cobre nossos pecados da face de Deus, desvia Sua ira e faz com que nós desfrutemos de Sua Graça e de Sua aprovação. 0 sacrifício do Velho Testamento era o meio de expiação (Rm 3.25). Cristo é a expiação (ljo 2.2; 4.10). Como sumo sacerdote Cristo é ativo em nossa reconciliação com Deus, expiando os pecados do povo (Efh 2.17). Há muitos que rejeitam essa reconciliação entre nós e Deus através de Cristo. Essas pessoas dizem que Deus é amor, que Ele não exige reconci

fiação, e que a idéia de uma expiação é própria somente da idéia legalista e primitiva de Deus apresentada no Velho Testamento, e que essa idéia é colocada de lado e combatida no Novo Testamento. Mas essas pessoas se esquecem que o pecado, devido ao seu caráter profano e culpado provoca a ira de Deus e merece punição não somente sob a lei de Moisés, mas também fora dela e acima dela, no Novo Testamen^ to111. Eles se esquecem que Cristo é não apenas uma dádiva e uma revelação do amor de Deus, mas também de Sua justiça (At 4.28; Rm 3.25), e que o perdão amoroso de Deus não exclui a expiação, mas pressupõe a expiação e confirma-a. 0 perdão é sempre um ato perfeitamente voluntário e gracioso de Deus. Ele pressupõe que Deus tem o direito de punir, e consiste, dessa forma, em um tipo de absolvição que é compatível com a manutenção da justiça de Deus. Aquele que nega a Deus o direito de punir não somente faz injustiça ao caráter profano e culpado do pecado, mas também recusa o gracioso e perdoador amor de Deus. Nesse caso a expiação deixa de ser um ato gracioso, voluntário e pessoal para tornar-se um processo natural. A Escritura, contudo, nos ensina que Sião é redimida pela

justiça, e que Cristo, através de Seu sacrifício, satisfez essa justiça, e desviou a ira de Deus, que tinha sido provocada pelo peca-

d 0229.

Essa expiação ou reconciliação que Cristo alcançou para nós com Deus tem outro significado, motivo pelo qual outra palavra é usada para distingui-lo. Essa pa-lavra é usada em Romanos 5.10,11e 2Coríntios 20, e tem o sentidooriginal de troca, compensação.Ela aponta para a nova disposi-ção da Graça que Deus dirige aomundo devido ao sacrifício reali-zado por Cristo. Tendo Cristo,

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através de Sua morte, coberto nos-sos pecados e desviado a ira deDeus, Deus muda Sua atitudecom relação ao mundo para umaatitude de reconciliação, e nosfala em Seu Evangelho, que é cha-mado de palavra de reconciliação.Essa reconciliação também éobjetiva. Ela não vem à existênciaem virtude de nossa fé e arrepen-dimento, mas repousa sobre a ex-piação (satisfação) realizada porCristo, e consiste de uma reconci-liação do gracioso relacionamen-to de Deus conosco, e nós a rece-bemos e aceitamos pela fé (Rm5.11). Devido ao fato de Deus tercolocado de lado Sua disposiçãohostil em relação a nós por causada morte de Cristo, nós somosorientados a, de nossa parte, aban-donar nossa hostilidade em relação a Deus e nos deixarmos ser reconciliados com Deus, entrando, assim, em um novo relacionamento com Ele, um relacionamento reconciliado, no qual Deus vem até nós. Tudo está consumado. Nada foi deixado para que nós fizéssemos. Nós podemos com toda a nossa alma e em todo o tempo descansar na perfeita obra de redenção que Cristo realizou. Nós podemos aceitar pela fé o fato de que Deus colocou de lado sua ira e que em Cristo nós fomos reconciliados com Deus, que tem uma atitude de Pai em relação a pecadores culpados e maculados.

Quem quer que sinceramente creia nesse Evangelho de reconciliação recebe imediatamente todos os outros benefícios que for= alcançados por Cristo, pois na atitude de paz que Deus assume para com o mundo através de Cristo estão incluídos todos os outros benefícios da Aliança da Graça. Cristo é um, e não pode ser dividido nem aceito em partes. A corrente de salvação não pode ser quebrada. E aqueles a quem Deus predestinou, a esses também chamou, e

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aos que chamou, a esses também justificou, e aos que justificou, a esses também glorificou (Rm 8.30). Portanto todos aqueles que são reconciliados com Deus através da morte de Cristo rece-

bem o perdão de pecados, a adoção de

filhos, a paz com Deus, o direito à vida

eterna e a herança celestialm. Eles

permanecem em um status de comunhão

com Cristo, são crucificados, sepultados e

ressuscitados com Ele, e estabelecidos no

céu, e cada vez mais e mais são moldados

à Sua imagem"'. Eles recebem o Espírito,

que os renova, conduze-os à verdade, dá

testemunho de sua adoção como filhos, e

os acompanha até o dia da redenção"'.

Nessa comunhão com o Pai, o Filho e o

Espírito Santo, os crentes são livres da

lei113, são elevados acima de todo poder

do mundo e da morte, do inferno e de

Satanás'. Deus é por eles; quem será

contra eles? (Rm 8.31).

0 perfeito sacrifício que Cristo

realizou na cruz é de infinito poder e

mérito, e plenamente suficiente para a

expiação dos pecados de todo o mondo. A

Sagrada Escritura sempre relaciona a todo

o mundo a obra de redenção e recriação. 0

mundo é o objeto do amor de Deus (Jo

3.16). Cristo não veio ao mundo para

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condená-lo, mas para salvá-lom. Em Cristo Deus reconciliou o mundo, todas as coisas, no céu e na terra, a Si mesmo. Cristo é uma propiciação não apenas para aqueles que em um dado momento crêem nEle, mas também para todo o mundo (lfo 2.2). Assim como o mundo foi criado pelo Filho, assim também o mundo está destinado a pertencer a Ele como o Filho e herdeiro (Jo 1.29; 2Co 5.9; Cl 1.20). É o beneplácito do Pai na dispensação da plenitude dos tempos que remiu todos em um, cujo Cabeça é Cristo, tudo, isto é, no céu e na terra (Ef 1.10). Aproxima-se o tempo da res-tauração de todas as coisas. Pela promessa de Deus nós esperamos por um novo céu e por uma nova terra, na qual habitará a justiça (At 3.21; Ap 21.1).

Devido à plena suficiência do sacrifício de Cristo para todo o mundo, o Evangelho da reconciliação deve ser pregado a todas as criaturas. A promessa do Evangelho é que quem quer que creia no Cristo crucificado não perecerá, mas terá vida eterna, e esse Evangelho deve ser proclamado e apresentado sem distinção a todas as nações e povos aos quais

Deus, segundo o Seu beneplácito, envia o Seu Evangelho. Ele deve ser acompanhado pelo imperativo arrependimento e pela fé. A Escritura não nos deixa a menor dúvida sobre isso. No Velho Testamento já foi dito que o Se-nhor não tem prazer na morte do ímpio, mas no seu arrependimento e na sua vida (Ez 18.23; 33.11). Também é dito que todas as nações algum dia desfrutariam da bênção de Israel" ' . A idéia missionária já está presente na promessa da Aliança da Graça apresentada no Velho Testamen-to, mas ela é expressa com total clareza quando Cristo vem ao mundo e realiza Sua obra. Ele é a luz do mundo, o Salvador que dá a Sua vida pelo mundo211, que tem outras ovelhas que não pertencem ao aprisco de Israel e que devem ser conduzidas até Ele (Jo 10.16), e por isso Ele prediz e or-dena que o Evangelho seja pregado em todo o mundo"'.

Quando, depois do Pentecostes, os apóstolos levaram esse Evangelho aos judeus e aos gentios e fundaram igrejas em todos os lugares, quase pode ser dito que sua mensagem se espalhou por todo o mundo, e suas palavras foram ouvidas até nos confins da terra (Riu 10.18), e que a Graça salvadora de Deus se ma

nifestou a todos os homens (TI 2.11). De fato, a intercessão por todos os homens e particularmente pelos reis e por todos aqueles que estão em posição de autoridade é uma atitude boa e agradável a Deus, pois Ele quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade (ITm 2.4). A demora do retorno de Cristo é a evidência da longanimidade de Deus, pois Sua vontade é que nenhum se perca, mas que todos cheguem ao

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arrependimento (2Pe 3.9).

A universalidade da pregação do Evangelho tem suas vantagens para o mondo em sua inteireza, até mesmo para aqueles que nunca crerão em Cristo como seu Salvador. Em Sua encarnação Cristo honrou toda a raça humana, e tornou-se irmão de todos os homens segundo a carne. A luz brilha nas trevas e, pela Sua vinda ao mundo, ilumina todo homem. 0 mundo foi feito por Ele, apesar do mundo não o conhecer (Jo 1.3-5). Pelo chamamento à fé e ao arrependimento que Cristo dá a todo aquele que vive sob o Evangelho, Ele dá muitas bênçãos externas no lar e na sociedade, na Igreja e no Estado, e isso alegra também aqueles que em seu coração não ouvem o Evangelho. Eles se encontram sob o domínio

do Verbo, são protegidos de terríveis pecados, e, em distinção das nações pagãs, desfrutam de muitos privilégios. Além disso, nós não podemos nos esquecer que Cristo, por Sua paixão e morte, promoveu a libertação da criatura dos poderes da maldade, a renovação do céu e da terra, a res-tauração e a reconciliação de todas as coisas, tanto de anjos quanto de homens. Em Cristo, o organismo da raça humana e o mundo como criação de Deus, são restaurados (Ef 1.10; C11.20).

Todavia, nós não devemos deduzir dessa absoluta universalidade da pregação do Evangelho e da oferta da Graça que os benefícios de Cristo sejam destinados a todas as pessoas individualmente. Isso é negado de forma conclusiva pelo fato de que nos dias do Velho Testamento Deus deixou que os pagãos seguissem seus próprios caminhos e escolheu so-mente o povo de Israel como Sua propriedade. Isso é negado também pelo fato de que, na plenitude dos tempos, não obstante a universalidade da pregação do Evangelho, Ele limitou as promessas de Sua Graça através dos séculos a uma pequena parcela da humanidade.

As afirmações gerais que são encontradas aqui e ali na Escritura não podem ser tomadas em um

sentido absoluto por quem quer que seja, mas devem ser consideradas em um sentido relativo. Todas elas foram escritas sob a profunda impressão da distinção entre a dispensação do Velho e do Novo Testamento. Dificilmente nós podemos perceber isso, mas os apóstolos, que cresceram no particularíssimo do judaísmo, sentiram profundamente a tremenda mudança que Cristo introduziu no relacionamento das nações. Eles constantemente se referem a isso como um grande mistério que tem se mantido através dos séculos, mas que foi revelado aos apóstolos e profetas pelo Espírito. Eles viam um grande mistério no fato de que os pagãos seriam co-herdeiros do mesmo corpo e que compartilhariam da promessa de Cristo. 0 muro de separação fora quebrado. 0 sangue da cruz promoveu a paz. Em Cristo não há judeu nem grego, nem bárbaro nem cita. Todas as limitações de nação e língua, de descendência e de cor, de idade e de família, de tempo e de lugar foram eliminadas. Todos os que estão em Cristo são novas criaturas. A Igreja é constituída de todas as raças e línguas, povos e nações"'.

Mas no momento em que a Escritura entra na questão de para quem Cristo alcançou Seus bene-

fícios, a quem Ele os garantiu e aplicou, e quem de fato desfrutará deles, ela sempre relaciona Sua obra à Igreja. Assim como no Velho Testamento havia um povo especial escolhido por Deus para ser Seu herdeiro, assim também, o Novo Testamento, menciona um povo especial escolhido por Deus. 0 povo escolhido apresentado no Novo Testamento não é limitado aos

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descendentes de Abraão segundo acame. Pelocontrário, ele é constituído tanto por judeus quanto por gentios, e por todas as nações e grupos de pes-soas. Mas essa Igreja do Novo Testamento é exatamente a reunião do povo de Deus (Mt 16.18; 18.20), ela é o Israel do Novo Testamento (2Co 6.16; G16.16), a verdadeira descendência de Abraão (Rui 9.8; GI 4.29). Por esse povo Cristo derramou Seu sangue e obteve a salvação. Ele veio para salvar esse povo (Mt 1.21), para dar Sua vida por Suas ovelhas (Jo 10.11), para reunir todos os filhos de Deus em um corpo (jo 11.52), e garantir vida a todos aqueles que lhe foram dados pelo Pai e ressuscitá-los; no último dia (Jo 6.39; 17.2), para comprar a Igreja de Deus com o Seu sangue e santificá-la e purificá-la com a lavagem de água pela palavra (At 20.28; Ef 5.25,26). Como sumo sacerdote Cristo ora não pelo num-

do, mas por aqueles que o Pai lhe deu e que pela palavra dos apóstolos crerão nEle (Jo 17.9,20).

Há, portanto, a mais perfeita harmonia entre a obra do Pai, do Filho e do Espírito santo, Todos aqueles que são escolhidos pelo Pai são comprados pelo Filho e, através da obra do Espírito, são regenerados e renovados. As Escrituras nos falam que muitos foram comprados". A Escritura não nos ensina isso para que nos sintamos desanimados diante de uma norma arbitrária e de um número definido, mas para que, em meio à luta e à apostasia nós fiquemos perfeitamente seguros de que a salvação do começo ao fim é uma obra de Deus, e que, portanto, essa obra irá adiante independente de qualquer oposição. A vontade do Senhor prosperará nas mãos do Servo Sofredor (Is 53.10).Como a obra de salvação é uma obra de Deus e somente de Deus, os benefícios de Cristo nunca nos alcançariam se nós não tivéssemos sido levantados da morte e firmados em exaltação à mão direita de Deus. Um Jesus morto seria o suficiente para nós se o Cristianismo fosse apenas uma doutrina abstrata ou uma prescrição moral e um exemplo a ser seguido, e nada mais. Mas a religião cristã é algo muito diferente e muito mais que isso. É a perfeita redenção do homem como um todo, de todo o organismo da humanidade e de todo o mundo. Cristo veio à terra para, nesse sentido pleno, salvar o inundo. Ele não veio para abrir a possibilidade de salvação para todos, e a partir daí deixar ao nosso livre arbítrio a aceitação ou a rejeição dessa possibilidade. Em vez disso Ele se humilhou e se tornou obediente até à morte na cruz para que realmente, perfeitamente e eternamente pudesse nos salvar.

Portanto Sua obra não terminou em Sua morte e em Seu sepultamento. De fato, em Sua oração sacerdotal Ele disse que tinha consumado a obra que o Pai lhe tinha confiado (Jo 17.4)e, cravado na cruz, Ele disse que tudo esta-va consumado (Jo 19.30). Mas essas afirmações se referiam à obra de Jesus aqui na terra. Elas se referiam à Sua obra de humilhação, à realização de nossa salvação. Essa obra de fato já foi realizada. Ela está completa e é perfeita. Através de Sua vida e de Sua morte a salvação foi realizada de for-ma tão perfeita que nenhuma criatura precisa fazer qualquer tipo de acréscimo a ela, e nem seria capaz de fazê-lo. Mas a realização da salvação deve ser diferenciada de sua aplicação ou distribuição. A aplicação da salvação é tão necessária quanto a sua realiza

ção. Que benefícios esses tesouros nos trariam se permanecessem sempre além de nosso alcance e nós nunca pudéssemos possuí-los? Que bem Cristo nos faria se tivesse morrido pelos nossos pecados mas nunca tivesse ressuscitado para a nossa justificação? Qual seria a vantagem de um Senhor morto, que não tivesse sido exaltado à destra de Deus?

Como cristãos, todavia, nós confessamos e nos alegramos em um

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Senhor crucificado que é, ao mesmo tempo, o Senhor ressurreto, em um Salvador humilhado, mas também exaltado, em um rei que é o primeiro, mas também é o último, que morreu, mas vive eternamente, e que tem as chaves do inferno e da morte (Ap 1.18). Depois de Sua morte Cristo res-surgiu, para que pudesse dominar sobre os vivos e os mortos (Rm 14.9). Em Sua exaltação Ele completa a construção cujos alicerces Ele tinha lançado por ocasião de Sua morte. Ele ressuscitou acima de todo principado, e poder, e potestade, e domínio, para ser o Cabeça da Igreja, que é plenitude daquele que tudo enche em todas as coisas (Ef 1.20-23). Em virtude de Sua ressurreição Ele foi feito Senhor e Cristo, Príncipe e Salvador, para que Ele possa dar a Israel arrependimento e perdão de pecados, e colocar todos os Seus inimigos sob Seus pés'41. Deus o

exaltou e lhe deu um nome acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, tanto no céu quanto na terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai (Fp 2.9-11).

A exaltação de Cristo, portanto, não é um apêndice acidental nem um adendo arbitrário que Ele sofreu nos dias de Sua carne. Mas, assim como a humilhação, esse é um componente indispensável da obra de redenção que Cristo realizou. Na exaltação de Cristo Sua humilhação recebe Seu selo e coroa. 0 mesmo Cristo que desceu às partes inferiores da terra ascendeu acima de todos os céus (Ef 4.9,10). Assim como a obra de humilhação lhe foi confiada, a obra de exaltação também o foi. Ele tinha que realizá-la. Ela era Sua obra, ninguém mais poderia realizá-la. 0 Pai o exaltou precisamente porque Cristo se humilhou tão profundamente (Fp 1.9). 0 Pai a ninguém julga, mas ao Filho confiou todo julgamento ao 5.22). 0 Filho foi exaltado, e em Seu estado de exaltação Ele continua Sua obra para provar que Ele é o verdadeiro, perfeito e poderoso Salvador. Ele não descansará até que tenha entregue o reino, perfeito e completo, ao Pai, e possa apresentar Sua noiva, a Igreja, ao Pai, sem mancha nem mácula (lCo 15.24; Ef 5.25). A honra de Cristo depende do cumpri-

mente total de sua obra de salvação. Ele exalta aqueles que lhe pertencem e os traz para que fiquem onde Ele está e vejam a Sua glória (Jo 17.24). E no fim dos tempos Ele retornará para ser glorificado em Seus santos e ser admirado em todos os que creram (2Ts 1.10).

De acordo com a confissão Reformada,

a exaltação de Cristo começa em Sua

ressurreição, mas de acordo com muitas

outras confissões ela começa bem antes,

isto é, em Sua descida ao inferno. Essa

descida é interpretada de forma muito

variada. A igreja grega entende que o

significado dessa descida é que Cristo, com

Sua natureza divina e com Sua alma hu-

mana foi ao mundo inferior para libertar as

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almas dos santos antepassados e conduzi-

Ias, juntamente com a alma do ladrão da

cruz, ao paraíso.

De acordo com a igreja Católica romana Cristo realmente desceu ao mundo inferior com Sua alma e permaneceu lá por algum tempo para libertar as almas dos santos, que permaneceram lá sem qualquer sofrimento até que a salvação tivesse sido alcançada. Do estado de morte Cristo conduziu-os ao céu, e fez com que eles desfrutassem da abençoada contemplação de Deus. A igrejaLuterana faz uma distinção entre a real ressurreição de Cristo e Sua ressurreição ou manifestação física depois de sepultado, e ensina que no curto intervalo entre esses dois acontecimentos Cristo, com Sua alma e com Seu corpo, desceu ao inferno para anunciar Sua vitória aos demônios e aos condenados. E muitos teólogos, especialmente nos tempos modernos, afirmam que Cristo, antes de Sua ressurreição, seja em corpo seja em alma, foi ao mundo inferior para pregar o Evangelho àqueles que morreram em seus pecados, e dar-lhes oportunidade de arrependimento e fé.

A grande diferença de opiniões sobre esse assunto prova que o sentido original da expressão desceu ao inferno foi perdido. Nós não sabemos de onde veio essa cláusula do credo, nem o que ela queria dizer. A Escritura nada diz sobre uma descida real, literal e espacial de Cristo ao inferno. Em Atos 2.27 Pedro aplica as palavras do Salmo 16 a Cristo: "Não deixarás a minha alma na morte, nem permitirás que o teu santo veja corrupção". Mas é evidente que nesse caso a palavra morte deve ser entendida como sepultura241. Apesar de em Sua alma Cristo estar no paraíso, Seu corpo estava na sepultura, e dessa forma no intervalo entre Suamorte e Sua ressurreição Ele estava na morte. Em Efésios 4.9 Paulo diz que aquele que subiu também desceu às regiões inferiores da terra, mas isso não é uma referência a uma descida ao inferno, mas uma referência à encarnação, na qual Cristo desceu à terra ou à morte, na qual Ele desceu à sepultura. E em lPedro 3.19-21 Pedro não está falando sobre o que Cristo fez entre sua morte e Sua ressurreição, ele está falando do que Cristo fez antes de Sua encarnação, através do Espírito Santo, nos dias de Noé, ou do que Ele fez depois de Sua ressurreição quando Ele já estava novamente vivo. Não há na Escritura o menor sinal de uma descida espacial de Cristo ao inferno.

A igreja Reformada abandonou essa interpretação do credo apostólico e interpretou-a em referência às aflições infernais e às agonias que Cristo sofreu antes de Sua morte, tanto no Gólgota quanto no Getsêmani, ou relaciona-a ao estado de morte no qual Cristo esteve enquanto Seu corpo estava na sepultura. Ambas as interpretações se encaixam na idéia da Escritura de que a hora em que Jesus se entregou à morte foi a hora e o poder das trevas (Lc 22.53). Cristo sabia que essa hora tinha chegado, e Ele voluntariamente se entregou a ela"'. Nessahora na qual Ele expôs o mais elevado poder de Seu amor e obediência (Jo 10.17,18) Ele parecia estar inteiramente desesperado. Os inimigos estavam fazendo com Ele o que bem queriam. As trevas triunfavam sobre Ele. De fato, não em um sentido espacial, mas em um sentido espiritual, Ele desceu ao inferno.

Mas o poder das trevas não era próprio das trevas. Ele foi dado pelo Pai (Jo 19.11). Os inimigos de Jesus não entendiam que eles eram apenas meramente agentes ou instrumentos, e que sem Seu

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conhecimento e sem Sua vontade eles estavam cumprindo o conselho que o Senhor tinha estabelecido (At 2.23; 4.28). Em Sua humilhação Cristo era o poderoso, que entregava Sua vida e dava Sua alma em resgate por muitos (Jo 7.30; 8.20). Em Sua morte Ele venceu a morte pelo poder de Seu amor, pela Sua perfeita negação de Si mesmo, pela Sua absoluta obediência à vontade do Pai. Portanto, era impossível que Ele, o santo, pudesse ser retido ou dominado pela morte ou fosse abandonado por Deus e entregue à corrupção (AI: 2.25-27). Pelo contrário, o Pai o eXaltOU114 e Cristo ressurgiu por Sua própria forçOI. Os grilhões da morte eram os sofrimentos que deram origem a

uma nova vida (At 2.24). Cristo é o primogénito dos mortos (Cl 1.18).

Essa ressurreição consistiu no retomo de Seu corpo morto, à vida e em Seu levantamento do sepulcro. Os oponentes da ressurreição encontram sérias dificuldades nesse fato. Primeiro eles tentaram explicar que Jesus morreu somente em aparência, ou que Seu corpo foi roubado pelos dis-cípulos, ou que os discípulos tiveram uma ilusão e simplesmente imaginaram tê-lo visto. Mas todas essas explicações foram abandonadas, uma após a outra. Atualmente muitos recorrem ao espiritismo e encontram nele uma explicação para a ressurreição de Jesus. Eles dizem que algo muito objetivo aconteceu ali. Os discípulos viram algo. Eles viram uma manifestação do Cristo que tinha morrido no corpo, mas continuava vivo em espírito. 0 espírito de Cristo apareceu a eles e se revelou a eles. Alguns até mesmo dão um toque de piedade a tudo isso e dizem que foi o próprio Deus que fez com que o espírito de Cristo aparecesse aos discípulos para aliviar a dor que eles estavam sentindo e para confirmar-lhes a vitória sobre a morte e a indestrutibilidade da vida. Em outras palavras, as aparições do

Cristo ressurreto foram "telegramas do céu", que traziam uma mensagem divina sobre o poder espiritual de Cristo.

Mas todo esse relato espiritualista é estranho à Bíblia e diametralmente oposto ao testemunho que ela dá a respeito da ressurreição de Cristo. De acordo com todos os escritores dos Evangelhos, o sepulcro ficou vazio no terceiro dia 246. Sem apresentar =a ordem regular e sem dar um sumário completo dos fatos ocorridos, Paulo e os evangelistas nos dizem que Jesus apareceu às mulheres, particularmente a Maria Madalena, a Pedro, aos discípulos quando Tomé estava ausente e aos discípulos quando Tomé estava presente, e a muitos outros, inclusive a mais de quinhentos irmãos de uma só vez. As primeiras manifestações aconteceram nas proximidades de Jerusalém, e as últimas aconteceram na Galiléia para onde Ele, como nos diz Marcos, foi adiante dos discípulos (Me 16.7). E tudo indica que Cristo ressurgiu com o mesmo corpo que tinha sido sepultado. Era um corpo de carne e ossos, e não um ser etéreo (Lc 24.39). Esse corpo podia ser tocado (Jo 20.27), e podia alimentar-se (Lc 24.41; Jo 21.10).

Cristo deixou sobre o povo, depois de Sua ressurreição, uma

impressão muito diferente da que tinha deixado antes dela. Aqueles que o viram ficaram assustados e temerosos, e lançavam-se aos Seus pés e o adoravam (Mt 28.9; Lc 24.37). Ele apareceu em uma forma diferente daquela em que Ele tinha aparecido antes (Mc 16.12), e houve casos em que Ele não foi reconhecido imediatamente (Lc 24.16,31). Há uma grande diferença entre a ressurreição de Lázaro e a de Jesus. Lázaro retornou da morte para reassumir sua primeira e terrena esfera de vida, mas Jesus não voltou. Ele foi para frente, seguindo o caminho da ascensão. Quando Maria pensa ter recebido novamente Seu Mestre e

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Senhor e se alegra na Sua presença, Ele a adverte com as seguintes palavras: "Não me detenhas; porque ainda não subi para meu Pai, mas vai ter corri os meus irmãos e dize-lhes: Subo para meu Pai e vosso Pai, para meu Deus e vosso Deus" (jo 20.17). Depois da ressurreição Cristo não pertencia mais à terra, mas ao céu. Essa é a razão pela qual Sua forma foi mudada, embora Ele continuasse com o mesmo corpo que fora colocado no sepulcro. Paulo apresenta a questão dizendo que, ao morrer, um corpo natural é semeado, mas que na ressurreição (tanto na de Cristo quanto na dos crentes) um cor-

po espiritual é ressuscitado (lCo 15.44). Em ambos os casos o corpo é o mesmo, pois aqui o espiritual não é oposto ao físico, mas ao natural. Isso acontece porque no corpo físico há uma grande parte de vida que se encontra no âmbito do espírito e existe mais ou menos de forma independente. E no corpo espiritual tanto "os alimentos quanto o estômago" serão destruidos (lCo 6.13) e o que é material ficará em sujeição ao espírito.

A ressurreição física de Cristo não é

um fato histórico isolado. Ela é

inexaurivelmente rica em significado

para Cristo, para a Igreja e para todo o

mundo. Em geral ela significa a vitória

de Cristo sobre a morte. Por um homem a

morte veio ao mundo. A transgressão da

lei de Deus abriu o caminho da morte para

a humanidade, pois a morte é o salário

do pecado247. Portanto a conquista da

morte havia que ser feita por

um homem. Um homem tinha que

ressuscitar da morte. Mesmo que um anjo, mesmo que o próprio Filho de Deus tivesse descido ao reino dos mortos e retornado ao céu, isso de nada nos aproveitaria. Mas Cristo era não somente o Unigênito do Pai, mas também

era perfeito e verdadeiro homem. Ele era Deus e era também o Filho do homem. Como homem Ele sofreu, morreu e foi sepultado e como homem Ele ressurgiu do reino dos mortos. Na ressurreição de Cristo foi provado que houve um homem que não pôde ser contido pela morte, não pôde ser do-minado por Satanás, pelo poder da corrupção, um homem que foi mais forte que o sepulcro, mais forte que a morte e mais forte que o inferno. Portanto, em princípio, Satanás não tem mais poder sobre a morte. Cristo, através de Sua morte, venceu a morte (Hb 2.14). Embora somente Cristo tenha ressuscitado e embora ninguém mais possa levantar-se do sepulcro, a

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ressurreição de Cristo demonstra que há um homem mais forte do que ele. As portas do reino da morte que tinham se fechado sobre Ele tiveram que abrir-se novamente ao Seu comando. 0 príncipe deste mundo nada tem em Cristo (jo 14.30).

Se isso realmente é assim, então é evidente que o que aconteceu na ressurreição de Cristo foi precisamente a ressurreição física. Uma ressurreição espiritual não seria o suficiente e seria apenas uma vitória parcial. Nesse caso o homem como um todo, o homem como homem, como ele é em seu corpo e em sua alma, não

teria sido removido do domínio da morte, e satanás; ainda teria o controle de uma grande área. De qualquer modo uma ressurreição espiritual, isto é, regeneração e renovação, poderia ter acontecido em Cristo, pois Ele é santo, livre de toda culpa, e isento de pecado. Para demonstrar Seu poder sobre o pecado Ele teria que retomar fisicamente do reino dos mortos, e assim revelar Seu poder espiritual sobre a morte. Através de Sua ressurreição física ficou estabelecido que por meio de Sua obediência até a cruz e ao sepulcro Ele perfeitamente venceu o pecado e todas as conseqüências que ele traz, inclusive a morte que, podemos dizer, foi expulsa e substituída por uma nova vida de incorruptibilidade. Portanto, a morte pode ter entrado no mundo através de um homem, mas a ressurreição dos mortos também veio através de um homem (lCo 15.21). Cristo é a ressurreição e a vida (jo 11.25).

0 que até aqui foi visto é o suficiente para demonstrar a importância da ressurreição de Cristo, mas essa importância também pode ser apresentada em maiores detalhes –inclusive sua importância para Cristo. Se a morte na cruz tivesse sido o fim da vida de Jesus e não tivesse sido seguida por uma ressurreição, os judeus teriam sido vingados ao condená-lo. Em Deuteronômio 21.23 nós le

mos que aquele que é pendurado no madeiro é maldito de Deus. 0 argumento aqui é que o corpo de um criminoso, depois da morte, não deve ser mantido sobre o madeiro durante a noite, mas deve ser removido e sepultado no mesmo dia. Se esse corpo permanecesse sobre o madeiro ele profanaria a terra que o Senhor tinha dado ao Seu povo. A lei mosaica não previa a crucificação, mas quando Jesus foi enviado aos gen-tios (Mt 20.19) e por suas mãos foi crucificado (Aí 2.23), Ele foi, não somente depois de Sua morte, mas também antes dela, um exemplo da severidade proibida pela lei e foi amaldiçoado por Deus. Para os judeus, que conheciam a lei, a morte não era apenas uma punição dolorosa e desgraçada, mas também uma evidência de que o crucificado estava com-pletamente cheio da ira e da maldição de Deus. Jesus, pregado sobre a cruz, foi aos olhos dos judeus uma ofensa e uma maldição (lCo 1.23; 12.3).

Contudo, a ressurreição reverteu todo esse julgamento. Aquele que se tornou maldito por nossa causa é Aquele que foi abençoado pelo Pai. Aquele que foi pregado na cruz é o Filho no qual o Pai se compraz. 0 rejeitado da terra é o coroado do céu. A ressurreição é uma evidência da Filiação de Cristo. Aquele que, segundo a carne, era um descen-

dente de Davi, na ressurreição é apresentado como Filho de Deus em poder,

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segundo o Espírito de santidade que nEle está (Rm 13,4). Cristo falou a verdade e fez a boa confissão diante de Caifás e de Pôncio Pilatos quando deu testemunho de que era o Filho de Deus. Não foram os judeus e os romanos que em Seu julgamento provaram estar certos, mas Cristo. Ele é o justo que foi pregado na cruz e entregue à morte. A ressurreição é a inversão divina da sentença que o mundo impôs a Jesus.

Essa evidência da Filiação e do Messianismo de Cristo expressa na ressurreição não exaure seu significado para Cristo. Ela também foi para Ele o ingresso em um estado de vida totalmente novo, o início de uma exaltação progressiva. Não apenas na eternidade " 1.5), não apenas para se tornar sumo sacerdote (111, 5.5), mas também em Sua ressurreição (At 13.33), Deus lhe disse: "Tu és o meu Filho amado, eu hoje te gerei". A ressurreição é o dia da coroação de Cristo. Antes de Sua encarnação Ele era o Filho e o Messias. Ele continuou sendo o filho e o Messias em Sua humilha-ção. Mas nessa ocasião Seu Ser estava escondido sob a forma de servo. Todavia Deus agora pro

clama e o declara Senhor e Cristo, Príncipe e Salvador28. Agora Cristo reassume a glória que possuía com o Pai antes que o mundo existisse (jo 17.5). Depois disso Ele assume "outra forma", outra figura, uma forma diferente de existência. Aquele que estava morto reviveu, vive eternamente e tem as chaves do céu e do inferno (Ap 1.18). Ele é o Príncipe da vida, a fonte da salvação, Aquele que foi designado por Deus para julgar os vivos e os mortos"9.

Além disso, a ressurreição de Cristo é uma fonte de benefícios para Sua Igreja e para todo o mundo. Ela é o amém do Pai sobre a obra do Filho. Cristo foi entregue pelos nossos pecados e ressuscitou para nossa justificação (Riu 4.25). Assim como os nossos pecados e a morte de Cristo estão estreitamente relacionados, assim também há uma íntima relação entre a Sua ressurreição e a nossa justificação. Ele não alcançou nossa justificação pela Sua ressurreição, mas pela Sua morte (5.9,19), pois essa morte foi o sacrifício que expiou completamente os pecados e que nos trouxe completa justiça. Mas por ter alcançado a perfeita reconciliação e o perdão para todos os nossos pecados, através de Sua paixão e morte, Ele ressuscitou e tinha que

ressuscitar. Na ressurreição Ele, e nós juntamente com Ele, somos justificados. Sua ressurreição foi uma declaração pública de nossa absolvição. E isso não é tudo. Cristo ressuscitou para nossa justificação no sentido de que, através dela, Ele se apropriou pessoalmente de nossa absolvição. Mas para que Ele ressuscitasse, a reconciliação forjada através de Sua morte não poderia ter surtido efeito e sido aplicada. Mas agora, Cristo é exaltado à posição de Senhor, Príncipe e Salvador, e Ele pode, através da fé, fazer com que nós desfrutemos dessa reconciliação por Ele obtida. Sua ressurreição é a evidência e a fonte de nossa justificação.

Mas quando Cristo nos imputa pessoalmente a reconciliação e o perdão que Ele conquistou, nós passamos a desfrutar dos benefícios de Sua obra. Assim como não há perdão sem uma reconciliação que o preceda, da mesma forma não há perdão sem uma santificação e uma glorificação que o suceda. 0 fundamento objetivo para essa conexão inseparável entre a justificação e a santificação é o próprio Cristo. Ele não somente morreu, mas também ressuscitou. Quanto a ter morrido uma vez para sempre morreu pelo pecado (isto é, para fazer propiciação pelo pecado e efetuar a sua extirpação), mas, quanto a viver, vive para Deus

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(Rm 6.10). Sua vida não mais lhe pertence, agora que Ele morreu e rompeu definitivamente os grilhões do pecado, ela pertence somente a Deus. Portanto, agora, quando Cristo imputa a uma pessoa, através da fé, os frutos de Sua morte, a saber, arrependimento e perdão de pecados, Ele, ao mes-mo tempo, também dá a essa pessoa uma nova vida. Ele não pode se dividir e também não pode separar Sua morte, de Sua ressurreição. De fato, Ele só pode aplicar os frutos de Sua morte porque Ele ressuscitou. Sendo o Príncipe da vida, só Ele tem controle sobre os benefícios oriundos de Sua morte. Assim, como Ele mesmo morreu para o pecado e vive somente para Deus, da mesma forma, Ele morreu por todos em Sua morte para que todos vivam (em virtude de terem morrido e ressuscitado com Cristo) não para si mesmos, mas para Aquele que morreu e ressuscitou por eles (2Co 5.15; G12.20).

Da mesma forma, há um vínculo inseparável entre o perdão de pecados e a renovação da vida, vista, agora, pelo lado subjetivo, pois quem quer que aceite o perdão de pecados com um coração sincero, nesse mesmo momento, rompe todos os vínculos com o pecado. Ele diz adeus ao pecado, pois o pecado é perdoado e o perdão é aceito pela fé, e diante des-sa situação, o pecado só pode ser

rejeitado. Uma pessoa nessa situação, como Paulo coloca, está morta para o pecado (Riu 6.2) e, portanto, não pode mais viver nele. Pela fé, e pelo batismo como sinal e selo da fé, ela entrou em comunhão com Cr i s to , fo i crucificada, morta e sepultada com Ele para que, desse momento em diante, possa andar em novidade de vida (Rm 6.3).

A glorificação está conectada a essa santificação. Pela ressurreição os crentes são regenerados em uma viva esperança (lPe 1.3). Através dela, eles obtêm a imperturbável convicção de que a obra de salvação, não apenas foi iniciada e continuada, mas também foi plenamente acabada. No céu, o incorruptível e inefável legado está preservado para eles, e na terra eles são preservados pelo poder de Deus, em fé, para a salvação que no último dia lhes será revelada. Como poderia ser de outra maneira? Deus provou Seu amor para conosco pelo fato de Cristo ter morrido por nós, sendo nós ainda pecadores. Sendo justificados pelo sangue de Cristo nós seremos preservados por Deus de Sua ira, especialmente da ira que será manifesta no julgamento final.

Para aqueles que estão em Cristo não há ira nem condenação, há somente paz com Deus e a es-

perança de Sua glória. Anteriormente, quando nós ainda éramos inimigos de Deus e sujeitos à Sua ira, Ele reconciliou-se conosco, através da morte de Seu Filho. Agora que Deus colocou de lado Sua ira com relação a nós, deu-nos paz e amor, Ele nos preservará através da vida que Cristo tem, em virtude de Sua ressurreição e na qual, como nosso intercessor, intercede por nós junto ao Pai (Rm 6.8-10). Dessa forma a ressurreição de Cristo se estende por toda a eternidade. A Seu tempo, Ele ressuscitará os crentes e efetuará neles a completa regeneração, dando-lhes vitória sobre o céu e a ter-ra250.Somente quando nós entendemos esse significado rico e eterno da ressurreição de Cristo é que nós podemos apreciar o motivo pelo qual os apóstolos, de forma especial Paulo, coloca tanta ênfase sobre o caráter histórico da ressurreição. Todos os apóstolos são testemunhas da ressurreição (At 1.21; 2.32). Paulo afirma que, sem a ressurreição, a pregação dos apóstolos é inútil e falsa. 0 perdão dos pecados, que repousa sobre a reconciliação e é aceito pela fé, não aconteceria, e não

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haveria qualquer fundamento para a ressurreição dos crentes. A divina Filiação e a identidade Messiânica de Cristo não existiria, e Ele seria nada mais que um grande mestre. Mas se a ressurreição de fato aconteceu, então Cristo foi declarado e coroado o Reconciliador e o Príncipe da vida, e o Salvador do mundo.

A ressurreição é o começo da exaltação

de Jesus, e ela foi seguida, depois de

quarenta dias, pela ascensão. Esse evento

é registrado muito brevemente"'. Esse

evento foi predito por Cristo'''. Ele é um

componente da pregação dos

apóstolos'". Os apóstolos partem do

ponto de que Cristo, com Sua natureza

humana, com corpo e alma, está no céu.

Além disso, os quarenta dias que Cristo

passou na terra depois de Sua

ressurreição, foram uma preparação para a

ascensão e uma transição para ela. Tudo o

que Ele fez, nesses quarenta dias, foi mos-

trar que Ele não pertencia mais à terra.

Sua forma era diferente daquela que Ele

possuía antes de Sua morte. Ele aparecia

e desaparecia de maneira misteriosa. Os

discípulos, sentiram que a relação que eles

passaram a manter com Cristo, era

diferente daquela que eles mantinham

antes de Sua morte. Sua vida não

pertencia mais à

terra, mas ao céu.

Na ascensão, Ele se tornou invisível, não por um processo de espiritualização ou de uma adequação à deidade. 0 que aconteceu foi uma mudança de lugar.

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Ele estava na terra e foi para o céu. Sua ascensão ocorreu em um lugar específico, o monte das Oliveiras, que fica a menos de uma milha de distância de Jerusalém, em direção a Betânia (Lc 24.50; At 1.12). Ele se separou de Seus discípulos e os abençoou. Em uma atitude de bênção Ele saiu da ter-ra e foi para o céu. Da forma pela qual Ele veio, assim Ele viveu e assim Ele se foi. Ele é o conteúdo de todas as bênçãos de Deus, o realizador, o possuidor e o distribuidor de todas elas (Ef 1.3).

A ascensão foi um ato do próprio Cristo. Ele tinha direito a ela e, tinha o poder de realizá-la. Ele subiu aos céus por Sua própria força"'. Sua ascensão é um triunfo, em um sentido mais forte, que a ressurreição. Em Sua ascensão ele triunfa sobre toda a terra, sobre as leis da natureza, sobre a própria lei da gravidade. E mais ainda, Sua ascensão é um triunfo sobre toda a hostilidade diabólica e sobre as forças humanas, que foram despojadas de sua armadura na cruz de Cristo e foram

publicamente expostas ao desprezo e submetidas à vitória de Cristo (Cl 2.15). Quando Ele subiu às alturas, levou cativo o cativeiro (Ef 4.8). 0 mesmo pensamento é expresso por Pedro, de uma forma diferente. Ele diz que Cristo, tendo sido conduzido pelo Espírito até o céu (pois as palavras "foi" de lPe 3.19 e "ir" de lPe 3.22 são a mesma palavra no texto grego original, de forma que o complemento "para o céu", encontrado no verso 22, simplesmente diz para onde Ele foi, e está ligado às duas palavras), e que em Sua ascensão Ele pregou, aos espíritos em prisão, a Sua vitória, e assumiu Seu lugar à destra de Deus e os anjos, os principados e as potestades se sujeitaram a Ele.

A ascensão, que é um ato de Cristo, é também um ato do próprio Deus"'. Tendo Cristo cumprido cabalmente a missão que lhe fora confiada pelo Pai, Ele não apenas foi assunto ao céu pelo Pai, mas também foi admitido, imediatamente à Sua presença. Os céus foram abertos para Ele, os anjos foram ao Seu encontro e con-duziram-no para lá (At 1.10). Ele, contudo, foi além do céu, foi para os céus dos céus (Hb 4.14, Ef 4.10), para assentar-se à direita de Deus, no trono de Sua Majestade. 0 lu-gar principal pertence a Cristo.

Assim como a ressurreição foi uma preparação para a ascensão, a

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ascensão foi uma preparação para a ocupação de Seu lugar, à direita de Deus. No Velho Testamento esse lugar já tinha sido prometido ao Messias (SI 110. 1). Jesus disse mais de uma vez que Ele se assentaria no trono de Sua Majestadeas1, e depois de sua ascensão Ele fez o que tinha dito (Me 16.19). E na pregação apostólica essa posição que Ele ocupa, à direita de Deus, é geralmente mencionada em um contexto de autoridade e poder"'.

Nas expressões que a Escritura usa para registrar esse passo da exaltação uma certa variação pode ser detectada. Algumas vezes, é dito que Cristo assentou-se ou está assentado (Hb 13; 8.1), E nós lemos também, que o Pai lhe disse: "Assenta-te à minha direita" (At 2.34; HII 1.13), ou que o Pai o fez sentar-se à Sua direita (Ef 1.20). Algumas vezes, a ênfase cai sobre o ato de sentar-se (Me 16.19), em outras ocasiões, ela cai sobre a condição ou o estado de estar sentado (Mt 26.64; Cl 3.1). 0 lugar em que Cristo está assentado é designado pelas palavras: à direita do Todo-Poderoso (Mt 26.64), à direita do Todo-Poderoso Deus (Le 22.69), à direita da Majestade, nas alturas (Hb 1.3), à

destra do trono da Majestade nos céus (Hb 8.1), ou à destra do trono de Deus (Hb 12.2). Geralmente a Escritura diz que Cristo está assentado, mas algumas vezes a expressão é que Jesus está lá (Rm 8.34), ou que Ele está de pé à direita de Deus (At 7.55,56), ou que Ele anda por entre os sete castiçais de ouro (Ap 2.1). Mas, o pensamento é sempre o mesmo: depois de Sua ressurreição e ascensão, Cristo tem o mais elevado lugar em todo o universo, ao lado de Deus.

Esse pensamento é expresso na forma de uma figura derivada dos relacionamentos humanos. Nós só podemos falar sobre as realidades celestiais empregando a linguagem humana, através de comparações. Assim como Salomão honrou sua mãe, ao colocá-la em uma cadeira ao lado direito de seu tron0211, assim também o Pai glorifica o Filho, compartilhando Seu trono com Ele (Ap 3.21). 0 significado é que Cristo, por causa de Sua perfeita obediência, foi exaltado à mais elevada soberania, majestade, dignidade, honra e glória. Ele não apenas recebeu de volta a glória que possuía com o Pai, antes que o mundo existisse (Jo 17.5), mas também foi coroado com honra e glória segundo Sua natureza humana (Hia 2.9; Fp 2.9-11). Ele

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sujeitou todas as coisas debaixo deSeus pés. E, quando diz que todas as coisas lhe estão sujeitas, certamente, exclui Aquele que tudo lhe subordinou (lCo 15.27). E embora nós agora, não vejamos que todas as coisas lhe estão subordinadas, nós sabemos que Ele reinará como Rei, até que todos os Seus inimigos sejam colocados debaixo dos Seus pés (Hb 2.8; ICo 15.25). Isso acontecerá em Seu retorno, quando Ele vier como juiz, para julgar os vivos e os mortos. Sua exaltação alcançará seu ponto mais alto, quando Ele retornar para realizar Seu julgamento (Mt 25.31,32).

Nesse estado de exaltação, Cristo

continua a obra que Ele começou na terra.

De fato, há uma grande diferença entre a

obra que Cristo realizou em Sua humilha-

ção e, a que Ele realizou em Sua exaltação.

Da mesma forma como Ele, em Sua

exaltação, aparece em uma forma

diferente, Sua obra, também assume uma

forma diferente. Depois de Sua

ressurreição Ele não é mais um servo, mas

um Senhor e Príncipe. Desse modo, Sua

obra agora não é mais um sacrifício de

obediência, tal como foi em Sua morte na

cruz. A obra mediatória de Cristo se realiza

agora, de outra forma. Em Sua

ascensão Ele não entrou em um descanso improdutivo – o Filho trabalha sempre, assim como o Pai (jo 5.17) – em vez disso, Ele agora está aplicando a plenitude da obra de salvação que Ele já realizou em Sua Igreja. Assim como Cristo, através de Sua paixão e morte foi, na ressurreição e na ascensão, exaltado como Cabeça da Igreja, também essa Igreja, agora, deve ser moldada como corpo de Cristo e estar cheia, da plenitude de Deus. A obra do Mediador é a grande e poderosa obra divina, que teve início na eternidade e será realizada eternamente. Contudo, no momento da ressurreição, essa obra foi dividida em duas partes. Até a ressurreição Cristo era humilhado; depois da ressurreição Ele passa a ser exaltado. Tanto a humilhação quanto a exaltação de Cristo são indispensáveis para nossa salvação.

Cristo continua agindo no estado de exaltação como profeta, sacerdote e rei. Ele foi ungido desde a eternidade para exercer todos esses ofícios. Ele exerceu esses ofícios em Seu estado de humilhação e continua exercendo-os em Seu estado de exaltação.

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Seu exercício profético depois da ressurreição se torna evidente pela Sua pregação. Ele continuou pregando aos Seus discípulos até o momento de Sua ascensão. Os quarenta dias que Jesus passou na terra depois de Sua

ressurreição, constituem uma parte importante de Sua vida e ensino. Nós, geralmente não damos a esse fato a atenção devida, mas quando observamos atentamente o que Jesus disse e fez durante esses quarenta dias, percebemos que eles lançam uma luz totalmente nova sobre Sua pessoa e Sua obra. Naturalmente, nós não podemos compreender o sentido daquilo que Jesus fez e ensinou nesses quarenta dias, com a mesma profundidade que os apóstolos entenderam, pois nós vivemos depois deles e temos a bênção de ter acesso ao Seu ensino, mas os discípulos que tinham convivido com Jesus e tinham perdido a esperança, no momento de Sua morte, tornaram-se pessoas muito diferentes nesses quarenta dias e aprenderam a conhecer a pessoa e a obra de Jesus como eles nunca tinham sido capazes de entender antes.

A ressurreição lança uma luz surpreendente sobre a morte de Jesus e sobre toda a Sua vida. Mas, esse evento recientivo não permanece isolado. Assim como ele tinha sido precedido por um ato redentivo (a morte de Jesus), ele é também sucedido por um ato redentivo. Os anjos que estavam no sepulcro, anunciaram às mulheres que foram a procura de Jesus, que Ele não estava mais ali, como havia dito (Mt 283,6). E o próprio Jesus, explicou aos discípu-

los que iam para Eminís, que o Cristo tinha que padecer e entrar na Sua glória e mostrou-lhes tudo o que tinha sido dito nas Escrituras a Seu respeito (Le 24.26,27; compare com Lc 24.44-47).

Os discípulos, aprenderam a conhecê-lo de uma forma diferente daquela, na qual Ele primeiramente se revelou. Ele não era mais o humilde Filho do homem que veio para servir e não para ser servido e para dar a Sua alma em resgate de muitos. Ele colocou de lado a Sua forma de Servo e ago-ra se revelou em Sua glória. Ele agora pertence a outro mundo. Ele vai para Seu pai e, os Seus discípulos permanecerão na terra, porque eles têm uma missão a cumprir. 0 antigo companheirismo confidencial não mais existe. É verdade que haverá um relacionamento diferente e muito mais íntimo entre Jesus e Seus discípulos, assim que eles compreenderem que é para o próprio bem que Jesus tem que ir. Esse relacionamento será uma comunhão espiritual, muito diferente daquela que eles tinham tido, até então. Agora, depois da ressurreição, Jesus se revela em tal glória, em tal sabedoria aos Seus discípulos, que Tome chega a fazer a confissão que nenhum deles tinha feito até aquele momento: "Senhor meu e Deus meu!" (Jo 20.28).

Durante esses quarenta dias Jesus lançou mais luz sobre Sua

pessoa e obra, mas Ele também deu uma explicação mais clara sobre a missão que Seus discípulos deveriam cumprir. Quando Jesus foi sepultado e tudo parecia ter se acabado, os discípulos poderiam muito bem ter formulado um plano secreto para voltar à Galiléia. Contudo, no terceiro dia, eles ouviram sobre as manifestações que tinham ocorrido com Maria Madalena e com a outra Maria (Mt 28.1,9; fo 20.14 ss.), com Pedro (Lc 24.34; ICo 15.5), com os discípulos que iam para Ernatis (Lc 24.13 ss.), e resolveram permanecerem Jerusalém. Ao cair da tarde, daquele mesmo dia os discípulos, com exceção de Tome, receberam a visita de Jesus; oito dias depois Ele apareceu novamente, e dessa vez Tome estava presente. Então seguiram Jesus, que foi adiante deles para a Galiléia (Mt 28.10) e várias aparições ocorreram ali (Le 24.44 ss.; Jo 21). Ao mesmo tempo, Ele

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lhes deu a tarefa de retornarem a Jerusalém para que fossem testemunhas de Sua ascensão.

Em cada uma de Suas aparições, Jesus falou aos discípulos sobre a missão que deveriam cumprir. Eles não deveriam retomar às funções que desempenhavam antes de serem chamados para o apostolado, mas como Suas testemunhas tinham que pregar o arrependimento e o perdão de pecados a todas as nações, co-

meçando em Jerusalém"'. Os apóstolos receberam todos os tipos de instruções (At 1.2). Eles foram ensinados a respeito de todas as coisas concernentes ao reino de Deus (At 1.3). Seu poder foi definido e a pregação do Evangelho a todas as criaturas foi colocada sobre seus corações. Agora eles sabiam o que deviam fazer. Eles tinham que permanecer em Jerusalém até que recebessem poder do céu (Lc 24.49; At 1.4,5,8). Quando recebessem esse poder, eles deveriam ser testemunhas tanto em Jerusalém, quanto em toda a Judéia e Samaria e até os confins da terra (AI 1.8).

Todo o conteúdo de Seu ensino durante esses quarenta dias, foi resumido nas palavras finais que Ele disse aos Seus discípulos (Mt 28.18-20). Primeiro Ele disse que todo o poder lhe foi dado no céu e na terra. Ele já tinha recebido esse poder (Mt 11.27), mas agora Ele o possuía com base em Seus méritos, e passou a usá-lo com o objetivo de garantir à Igreja osbe-neficios que alcançou com o derramamento de Seu sangue. Em nome dessa perfeição de poder Ele deu aos Seus discípulos o mandato de fazer discípulos em todas as nações, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo e ensinando-os a guardar todas as coisas que Ele lhes;

tinha ordenado. Por ter recebido todo o poder no céu e na terra, Jesus ordena que seja feito o discipulado em todas as nações. Ele ordena também a Seus discípulos, que pelo batismo, passem a ter comunhão com Deus, que se revelou de forma perfeita como Pai, Filho e Espírito Santo, e que continuem a observar Suas ordens. E a fim de encorajá-los, Jesus finalmente diz que estaria com eles para sempre, até a consumação dos séculos. Fisicamente Ele os deixou, mas espiritualmente Ele permanece com eles, de forma que não são eles, mas Cristo, que reúne Sua Igreja, governa-a e protege-a.

Mesmo depois de Sua ascensão, Cristo continua a exercer o ofício profético. A pregação dos apóstolos, seja oralmente seja através das cartas que eles escreveram, está vinculada aos ensinos de Jesus, não somente aos que eles receberam antes de Sua morte, mas também aos que eles re-ceberam durante os quarenta dias, entre Sua ressurreição e Sua ascensão.

Nós não devemos omitir esse último fato. Só isso pode explicar o motivo pelo qual os apóstolos estavam convictos, desde o começo, que Cristo tinha não apenas morrido, mas também tinha ressuscitado e estava assentado à

mão direita de Deus como Senhor * Cristo, Príncipe e Salvador, que * salvação dos pecadores estava contida no amor do Pai, na Graça do Filho e na comunhão do Espírito Santo.

A pregação dos apóstolos estava vinculada não apenas à pregação de Jesus. Ela era a explicação e a elaboração da pregação de Jesus. Jesus, através do Espíri-to santo, continuou a exercer Seu ofício

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profético no coração de Seus discípulos. Pelo Espírito da verdade Ele os guiou a toda verdade, pois esse Espírito não dá testemunho de Si mesmo, mas de Cristo, fazendo com que os apóstolos se lembrem e reflitam sobre o que Jesus lhes; tinha dito e anunciem as coisas que hão de aconte-cer (jo 14.26; 15.26; 16.13). Dessa forma, os apóstolos foram capacitados a trazer à existência a Escritura do Novo Testamento, que, juntamente com a Escritura do Velho Testamento, é uma luz que ilumina o caminho da Igreja. Foi o próprio Cristo quem deu essa Palavra à Sua Igreja e que, por meio dela, progressivamente de-senvolve Seu ofício profético. Ele preserva e distribui, explica e interpreta Sua Palavra. Ela é o instrumento pelo qual Ele faz discípulos de todas as nações, os quais Ele insere na comunhão com o Deus tritmo e faz com que eles obedeçam Seus mandamentos. Através de Sua Palavra e de Seu

Espír i to Cristo está sempre conosco, até a consumação dos séculos.

0 que é válido para o ofício profético de

Cristo é válido também com relação ao Seu

oficio sacerdotal. Esse não é um ofício tem-

porário. Ele é exercido durante toda a

eternidade. No Velho Testamento, o

caráter eterno do sacerdócio foi

prenunciado na separação da casa de

Amão e da tribo de Levi, para o serviço ço

do tabernáculo. É verdade que as pessoas

que ministraram nesse serviço morreram,

mas foram imediatamente substituídas por

outras. 0 sacerdócio permaneceu. Todavia,

o Messias vindouro não seria um sacerdote

ordinário, que exerceria Seu sacerdócio

Page 361: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

por um certo tempo e depois seria subs-

tituído por outro, pois Ele não seria um

sacerdote segundo a ordem de Aarão, mas

segundo a ordem de Melquisedeque (SI

110.4). Em distinção dos descendentes de

Aarão e Levi, que foram impedidos pela

morte, de exercer seu sacerdócio

continuamente (FIE, 7.14), Melquisedeque

em sua figura misteriosa nos deu uma

imagem da duração eterna do sacerdócio

de Cristo. Ele é um rei de justiça e paz e,

ao mesmo tempo, é o único, em toda a

história da revelação, sobre o qual não se

menciona sua linhagem, seu nascimento e sua morte. Em um sentido típico ele foi dessa forma semelhante ao Filho de Deus e permanece sacerdote para sempre (Hb 7.3).

Mas, aquilo que Melquisedeque foi somente como exemplo, Cristo foi em realidade. Cristo podia em um sentido pleno ser o eterno sumo sacerdote porque Ele era o Filho de Deus que existe desde a eternidade (Hb 1.2,3). Ele se ofereceu como sacrifício na terra e no tempo, mas Ele veio de cima, em Sua essência pertencia à eternidade, e, portanto, podia oferecer-se a Si mesmo no tempo, através do Espírito Santo (Hb 9.14). Assim como Cristo foi preparado desde a eternidade para vir ao mundo e cumprir cabalmente a vontade de Deus (Hlo 10.5-9), Ele é também sacerdote desde a eternidade. Com uma visão do cumprimento dessa vontade de Deus nos dias da Sua carne, pode-se dizer que o sacerdócio de Cristo começou na terra26". E esse sacerdócio terreno foi um meio para que Cristo, através de sua ressurreição e ascensão, se tornasse sumo sacerdote no reino celestial e permanecesse como tal durante toda a eternidade. É uma idéia interessante, desenvolvida na carta aos Hebreus, a de que a

vida e a obra de Cristo na terra, não devem ser consideradas como final, mas como uma preparação para Seu eterno serviço sacerdotal, no céu.

Alguns deduziram disso que, segundo a carta aos Hebreus, Cristo não exerceu Seu ofício sacerdotal na terra mas, que passou a exercê-lo quando ascendeu ao céu e entrou no Santo dos Santos. Eles fundamentam essa idéia especialmente no fato de que os sacerdotes da terra procedem da tribo de Levi, e que Jesus não procedeu de Levi, mas de Judá e que Ele nunca fez ofertas no templo de Jerusalém, como os sacerdotes faziam (1-lb 7.14; 8.4). Dessa forma, se Cristo era um sacerdote, Ele deveria ter exercido Seu sacerdócio no céu e teria que ter algo para oferecer (Hb 8.3). E dessa forma, eles afirmam que o que Jesus ofereceu foi Seu próprio sangue com o qual Ele entrou no celestial Santo dos Santos (Hb 9.11,12).

Mas essa conclusão é claramente incorreta. Assim como todos os outros escritos apostólicos, a carta

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aos Hebreus coloca forte ênfase no fato de que Cristo de uma vez por todas, isto é, na cruz, ofereceu-se como sacrifício e nos trouxe eterna salvação161. 0 perdão de pecados - esse grande benefício do Novo testamento – foi plenamente alcançado por esse único sacrifício e o Novo Testamento, que foi estabelecido com Seu sangue, põe um fim no Velho Testamento112. 0 pecado, a morte e o diabo foram destruidos pelo Seu sacrifício"' e pelo Seu sangue Ele santificou e aperfei-çoou todos aqueles que foram obedientes a Ele (Hb 10.10,14; 13.12). Precisamente pelo fato de Cristo ter realizado esse perfeito sacrifício na cruz Ele pode, como sumo sacerdote, tomar Seu lugar à mão direita de Deus (Hb 8.1). Ele não sofre e não morre mais, mas Ele está assentado em Seu trono como um conquistador'". E a ên-fase apostólica é que nós temos um Sumo Sacerdote que está assentado à direita da Majestade nas alturas (Hb 8.1). Não há qualquer possibilidade de que aconteça no céu um sacrifício de Cristo como o que aconteceu na terra.

Cristo é e continua sendo sumo sacerdote no céu. Como tal Ele está assentado à direita de Deus. Sim, em um certo sentido pode ser dito que ao longo da carta aos Hebreus, no céu Ele se torna sumo sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque e assume Seu sacerdócio eternou". Toda aSua vida sobre a terra foi uma preparação, para que agora, no céu, como sumo sacerdote Ele possa ocupar-se em nosso favor. Ele é o Filho, e Ele tinha que ser capaz de se tornar o nosso sumo sacerdo-te", mas isso não era o suficiente. Embora Ele fosse o Filho, Ele tinha que aprender a obediência, pelo sofrimento (Hb 5.8). A obediência que Ele possuía como Fi-lho (Elb 10.5-7), Ele tinha que exibir como ser humano em Seu sofrimento, para tornar-se nosso sumo sacerdote". Todo o sofrimento que sobreveio a Cristo, todas as tentações às quais Ele foi exposto, a morte à qual Ele se sujeitou – tudo isso serviu

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como um instrumento nas mãos de Deus para aperfeiçoar e santificar Cristo para o serviço sacerdotal que, Ele deve agora completar no céu, diante da face de Deus. Naturalmente essa santificação e esse aperfeiçoamento de Cristo não devem ser entendidos em um sentido moral, como se Ele tivesse se tornado obediente gradualmente e com muita dificuldade. 0 apóstolo está pensando na santificação em um sentido positivo e oficiaF". Cristo, tinha que manter Sua obediência como Filho, contra e

sobre todas as tentações e assim preparar-se para ser o sumo sacerdote eterno.

Através de Sua obediência, Cristo obteve esse ofício de sumo sacerdote, à mão direita de Deus, em Seu trono de Majestade. Com fundamento em Seu sofrimento e morte, com fundamento em Seu sacrifício perfeito, Ele está agora assentado à mão direita da Majestade nos altos céus. Foi através de Seu sangue e não com ele, que Cristo entrou de uma vez por todas no Santo dos Santos (FIL, 9.12) e está lá agora, no verdadeiro tabernáculo, construido pelo próprio Deus. Ele é o ministro desse tabernáculo (Hb 8.2). Agora, pela primeira vez, Ele é plena e eternamente o sumo sacerdote segou-do a ordem de Melquisedeque (Ffb 5.10; 6.20). Assim como no Velho Testamento no grande dia da expiação, o sumo sacerdote entrava uma vez por ano no Santo dos Santos com o sangue do bode morto por ele mesmo e pelo povo, para aspergi-lo por cima e ao redor do altar, assim também Cristo, pelo sangue de Seu sacrifício na cruz, abriu caminho para o verdadeiro santuário nos céus (Hb 9.12). Ele não faz uso do sangue derramado no Gólgota em um sentido literal e não oferece nem asperge esse sangue em um sentido literal, mas através de Seu próprio sangue Ele entra no tabernáculo. Ele retornou ao céu

como o Cristo que morreu e ressuscitou, que foi morto mas que agora vive eternamente (Ap 1.18). Ele está no meio do trono como o Cordeiro que foi morto (Ap 5.6). Em Sua pessoa Ele é o meio de expiação. Ele é a propiciação pelos nossos pecados e pelos do mundo todo (110 2.2).

Seu serviço sacerdotal no céu consiste em Sua intercessão diante de Deus a nosso favor (Hb 9.12). Ao fazer tudo o que é necessário para a propiciação dos pecados de Seu povo Ele se torna o misericordioso e fiel sumo sacerdote (Hb 2.17). Ele vem em socorro daqueles que são tentados (Tio 2.18; 4.15), e conduz muitos filhos à glória (Hb 2.10). Através de Sua obediência Ele se tornou um Capitão para todos aqueles que vão até Deus através dEle. Ele é o Capitão e o Guia, em fé, pois Ele mesmo exerceu fé, e por isso pode trazer outros à fé e preservá-los nela até o fim (Hb 12.2). Ele é o Autor da vida porque Ele mereceu essa vida pela Sua morte e pode, portanto, agora, dá-Ia a outros. Ele é o autor da salvação (Hb 2.10) porque Ele mesmo abriu o caminho para a salvação e andou por ele e pode, portanto, guiar outros através dele e trazê-los ao santuário (Hb 10.20).

Sempre, e em todas as coisas, Cristo é o nosso intercessor diante do Pai. Assim como na terra Ele orou por Seus discípulos e

também por Seus inimigos (Lc 23.34), e na oração sacerdotal Ele recomendou toda a Igreja ao Pai (Jo 17), assim também no céu Ele continua a interceder por nós. Nós não devemos entender isso como se Cristo estivesse prostrado diante do Pai, suplicando-lhe e implorando-lhe que conceda Sua misericórdia, pois o próprio Pai nos

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ama e nos dá Seu Filho como uma evidência de Seu amor. A intercessão de Cristo significa que esse amor do Pai nunca é concedido a nós a não ser através do Filho, que se tornou obediente até a morte na cruz. A intercessão de Cristo não é, portanto, uma súplica pela Graça, mas a expressão de Sua poderosa vontade (Jo 17.24), a solicitação do Filho de que os pagãos lhe sejam dados como Sua herança e as extremidades da ter-ra como Sua possessão (Sl 2.8). É o Cristo crucificado e glorificado, é o próprio Filho do Pai, que foi obediente, mas que também foi exaltado no trono de Sua Majestade. Foi o misericordioso e fiel Sumo Sacerdote que santificou e aperfeiçoou esse serviço nos céus, e que agora intercede por nós diante do Pai.

Contra todos os obstáculos que a lei, Satanás e nossos próprios corações levantam contra nós, Ele sai em nossa defesa (Hb 7.25; lJo 2.2). Ele vem em nosso auxí

lio em todas as tentações. Ele tem compaixão de todas as nossas fraquezas. Ele purifica nossa consciência. Ele perfeitamente santifica e salva todos aqueles que, através dele, vão a Deus. Ele nos prepara um lugar na casa do Pai, na qual há muitas moradas (Jo 14.2,3) e nos reserva uma herança incorruptível e sem mácula (lPe 1.4). Portanto, os crentes não têm o que temer. Eles podem achegar-se confiadamente ao trono da Graça (Hb 4.16; 10.22) e receber de Cristo o Espírito de adoção, através do qual eles clamam: "Aba, Pai", e pelo qual o amor de Deus é derramado em seus corações (Rm 5.5; 8.15). Assim como Cristo é o intercessor dos crentes diante do Pai, no céu, o Espírito é o intercessor do Pai nos corações dos crentes'. Portanto, um importante princípio de nossa Confissão cristã é que nós temos um Sumo Sacerdote que está assentado à direita do Pai, nos céus (Hb 8.1). Portanto, nós não precisamos de sacerdote, nem de sacrifício, nem de altar, nem de templo terreno, onde quer que seja.

Cristo continua a exercer Seu ofício

real também depois de Sua ressurreição.

Com relação à isto tem havido menos

diferença

de opinião pelo fato de que através de Sua ressurreição e ascensão, Cristo foi exaltado pelo Pai como Senhor e Cristo, Príncipe e Salvador, e está assentado à direita do trono, e recebeu um nome acima de todo nome'. 0 reinado de Cristo aparece com mais destaque em Sua exaltação do que em Sua humilhação.

Dentro do âmbito desse reinado a Escritura faz uma distinção. Há um reinado de Cristo sobre Sião, sobre Seu povo, sobre a Igreja'71 e há também o reinado que Ele exerce sobre Seus inimi- g05272. 0 primeiro é um reinado de Graça e o segundo é um reinado de poder.

Em relação à Igreja, o nome de Rei, geralmente é usado no Novo Testamento como sinônimo de Cabeça. Cristo mantém um relacionamento tão íntimo com a Igreja, que Ele comprou com Seu sangue, que um só nome não é suficiente para dar uma idéia de seu conteúdo. É por isso que a Escritura apresenta todos os tipos de figuras de linguagem, a fim de tornar claro o que Cristo significa para sua Igreja. Ele é o que o

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noivo é para a noiva (Jo 3.29; Ap 21.2), o que o homem é para a mulher (Ef 5.25; Ap 21.9), o que o primogénito é para os seus irmãos (Rm 8.29; Hb 2.11), o que a pedra

angular é para o edifício (Mt 21.42; At 4.11; lPe 2.4-8), o que a videira é para os ramos (Jo 15.1,2) e o que a cabeça é para o corpo. Cristo é para a Igreja tudo isso e muito mais.

Essa última figura é especialmente mencionada várias vezes. 0 próprio Jesus diz em Mateus; 21.42, que a afirmação do salmo 118.22 foi cumprida nEle: a pedra que os construtores recusaram veio a ser a pedra de esquina. Assim como a pedra angular serve para unir e firmar as paredes de um edifício, da mesma forma Cristo, apesar de ter sido rejeitado pelos judeus, foi escolhido por Deus para servir como uma pedra de esquina para que a teocracia, o reino de Deus sobre Seu povo, alcançasse Sua realização nEle. 0 apóstolo Pedro menciona essa idéia em Atos 4.11 e desenvolvea mais especificamente, em sua primeira carta. Ele se refere não somente ao Salmo 118.22, mas também a Isaías 28.16. Ele apresenta Cristo como a pedra viva, colocada por Deus em Sião e à qual os crentes, como pedras vivas, são unidos (IPe 2.4-6). E Paulo, desenvolve a idéia de que a Igreja é edificada sobre a fundação colocada pelos apóstolos e pelos profetas, em sua pregação do Evangelho, e que Cristo é a

pedra angular do edifício da Igreja, sobre a qual foi colocado o fundamento dos apóstolos e profetas (Ef 2.20). Cristo é chamado de fundamento da Igreja (ICo 3.10). As-sim como o edifício, tem firmeza em sua pedra angular, assim também a Igreja tem sua existência somente na pedra viva, que é Cristo.

Mas a figura do edifício, apesar de apresentar Cristo como pedra de esquina, ainda não é adequada para apresentar o íntimo relacionamento que Cristo mantém com a Igreja. A conexão existente entre a pedra angular e o edifício é uma relação artificial, mas a unidade de Cristo com sua Igreja é uma relação vital. Jesus falou de Si mesmo não apenas como uma pedra escolhida por Deus para ser a pedra angular, mas também como a videira que alimenta seus ramos (Jo 151,2). Pedro falou de pedras vivas e Paulo, falou não apenas sobre wn edifício que é construido e de um corpo que é edificado (Ef 2.21; 4.12), mas também apresenta Cristo como a Cabeça cujo corpo é a Igreja. Toda igreja local é um corpo de Cristo e membro do grande corpo de Cristo.

Toda igreja local é um corpo de Cristo, e os membros da igreja estão relacionados a outros

membros, do mesmo corpo, que precisam e servem uns aos outros (Rm 12.4,5; lCo 12.12-27). Mas também, toda a Igreja de Cristo é Seu corpo. Em virtude de Sua res-surreição e ascensão Ele foi feito Cabeça da Igreja". Como tal, Ele é o princípio de vida da Igreja. Ele concede vida à Igreja, e também a alimenta, cuida dela, preserva-a e protege-a. Ele faz com que a Igreja viceje e prospere, faz com que seus membros alcancem plena maturidade e também unifica-a e faz com que todos trabalhem em benefício uns dos outros. Em outras palavras, Cristo enche a Igreja com a plenitude de Deus.

Nos dias do apóstolo Paulo, havia mestres heréticos, que diziam que das profundezas do Ser divino todos os tipos de seres emanavam em uma escala des-cendente, e que todos esses seres juntos formavam a plenitude de Deus. Contra essa heresia Paulo apresenta o fato de que toda a plenitude de Deus reside exclusivamente em Cristo, e que essa plenitude reside nEle corporalmente27' e que Cristo faz com que essa plenitude esteja presente na Igreja, que é o Seu corpo e que em tudo é preenchida por Ele (Ef 1.23). Na Igreja nada há, nem dom, nem poder, nem ofício,

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nem ministério, nem fé, nem esperança,

nem amor, nem salvação que não proceda de Cristo. E Cristo aperfeiçoará a Igreja até que ela, no todo e em partes, esteja cheia da plenitude de Deus'". Quando isso acontecer, Deus será tudo em todos (lCo 15.28).

Mas Cristo, também recebe o nome de Cabeça em outro sentido. Em lCo 11.3 Paulo diz que Cristo é o cabeça de todo homem. Em Colossenses 2.10 Paulo diz que ele é o cabeça de todo principado e potestade, isto é, dos anjos, porque Ele é o primogénito de toda a criação (CI 1.15). E em Efésios 1.10 ele fala do propósito de Deus, na plenitude dos tempos, de fazer convergir em Cristo, todas as coisas (a palavra gre,a significa remir todas as coisas sob uma cabeça), tanto no céu quanto na terra. Todavia, é claro que o nome cabeça tem um significado diferente nesses textos e naqueles em que Ele é chamado de Cabeça da Igreja. Quando Paulo diz que Cristo é o Cabeça da Igreja, ele está pensando em uma relação orgânica entre Cristo e sua Igreja. Mas quando Cristo é chamado de cabeça do homem, dos anjos, ou do mundo, a figura apresentada é a de Sua soberania sobre todas as coisas. Todas as criaturas, sem exceção, estão subordinadas a Cristo, embora Ele mes

mo, como Mediador, esteja sujeito ao Pai (lCo 11.3). Enquanto Ele exerce um governo da Graça sobre a Igreja e, é constantemente chamado de Cabeça da Igreja, Ele é também, o soberano sobre todas as criaturas. E nesse sentido Ele é chamado de Cabeça, Rei e Senhor. Ele é o Rei dos reis e o Senhor dos senhores, o Príncipe dos reis de toda a terra e como Rei reinará, até que todos os Seus inimigos sejam colocados debaixo dos Seus

PéS276

Esse reinado de poder não pode ser identificado com a absoluta soberania que Cristo, segundo Sua natureza divina, tem em comum com o Pai e com o Espírito. A onipotência que pertence ao Filho desde a eternidade, deve ser diferenciada do poder que Cristo menciona em Mateus 28.18 e que lhe é dado especificamente como Mediador em ambas as Suas naturezas. Como Mediador Cristo tem Sua Igreja para reunir, governar e proteger e para fazer com que ela seja mais poderosa do que

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todos os Seus inimigos e do que os inimigos da Igreja. Mas essa, certamente, não é a única razão pela qual o reinado de poder foi concedido a Cristo. Há ainda outra razão, a saber, que como Mediador Ele deve triunfar sobre todos os Seus inimigos. Ele não

os encontrará em um campo de batalha para derrotá-los com sua onipotência, mas lhes; mostrará o poder que, como Mediador, recebeu através de Seu sofrimento e morte. 0 conflito entre Deus e Suas criaturas é um conflito de justiça e retidão. Assim como a Igreja é redimida através de Sua justiça, assim também, os inimigos de Deus um dia serão condenados por meio dessa mesma justiça. Contra eles Deus não fará uso de Sua onipotência, pois já triunfou definitivamente sobre eles na cruz (Cl 2.15). Se Deus fosse punir Seus inimigos com Sua onipotência, nem por um momento sequer eles poderiam existir. Mas Ele permite que eles nasçam e vivam, geração após geração, século após século e concede-lhes todas as bênçãos que possuem no corpo e na alma, e que eles, por

sua parte, utilizam contra Deus. Deus pode fazer isso e de fato o faz, porque Cristo é o Mediador. Embora, agora, nem todas as coisas lhe estejam sujeitas, Ele é co-roado com honra e glória, e reinará como Rei até que todos os Seus inimigos lhe sejam totalmente sujeitos. Finalmente, no fim dos tempos, quando toda a história do mundo e toda a história de cada indivíduo chegar ao fim, querendo ou não, todo joelho se dobrará e toda língua confessará que Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai (Fp 2.10,11). E nesse dia, como o Filho do homem, Cristo pronunciará o julgamento final sobre toda criatura. E Ele condenará todos aqueles que, em sua própria consciência, convencidos pelo Espírito, já foram condenados Uo 3.18; 16.8-11).

Capítulo 19

ODOM Do EsPIRITO

SANTO

Aprimeira obra que Cristo r e a l i z o u d e p o i s d e S u a e x a l t a ç ã o , à m ã o d i r e i t a

do Pai, foi o envio do EspíritoSanto. Em Sua exaltação, Ele mes-mo recebeu do Pai o Espírito San-to prometido no Velho Testamen-to e, portanto, Ele pode agora,como tinha prometido, concedê-lo aos Seus discípulos (At 2.33).0 Espírito que Ele concede pro-cede do Pai foi concedido a Cris-

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to pelo Pai, e é concedido porCristo à Igreja (Lc 24.49; Jo 14.26).0 envio do Espírito Santo,ocorrido no dia de Pentecostes, éum evento único na história daIgreja de Cristo. Assim como a cri-ação e a encarnação, o envio doEspírito Santo, também aconteceuuma vez por todas. Ele não foiprecedido por qualquer conces-são do Espírito, em igual impor-tância e jamais será seguido poruma concessão semelhante. Assim

como Cristo em Sua concepção assumiu a natureza humana e nunca colocou-a de lado, assim também o Espírito Santo, no dia de Pentecostes, passou a usar a Igreja como Sua morada, como Seu santuário e nunca se separará dela. A Escritura claramente indica o significado ímpar desse evento, ocorrido no dia de Pentecostes, ao referir-se a ele como descida ou derramamento do Espírito Santo.

Logicamente isso não significa que não houve menção da atividade do Espírito Santo antes do dia de Pentecostes. Nós já vimos que o Espírito, juntamente com o Pai e o Filho é o criador de todas as coisas, e que na esfera de redenção Ele é o Aplicador da vida e da salvação, de todo dom e habilidade. Há uma diferença entre a atividade do Espírito Santo nos dias do Velho Testamento e Sua

atividade nos dias do Novo Testamento. A diferença é notável e essencial. Essa diferença se torna aparente, em primeiro lugar, pelo fato de que a Velha Dispensação sempre olhava para a frente, para o dia em que surgiria o Servo do Senhor, sobre quem o Espírito repousaria em toda a Sua plenitude como o Espírito de sabedoria e de entendimento, o Espírito de conselho e de fortaleza, o Espírito de conhecimento e de temor do Senhor (Is 11.2). Em segundo lugar, o Velho Testamento prediz que, embora houvesse já naquele tempo uma certa operação do Espírito Santo, que esse Espírito se-ria derramado sobre toda a carne, sobre filhos e filhas, sobre velhos e jovens, sobre servos e senhores, até o último dia 217.

Essas duas promessas foram cumpridas nos dias do Novo Testamento. Jesus é o Cristo, o Ungido de Deus. Ele não apenas foi concebido pelo Espírito, no ventre de Maria e não somente foi ungido sem medida, pelo Espírito, por ocasião de Seu batismo, mas Ele continuamente viveu e agiu através do Espírito. Pelo Espírito, Ele foi enviado ao deserto (Tc 4.1) e pelo Espíri to Ele retomou à Galiléia (Lc 4.14), pregou o Evangelho, curou os enfermos, expulsou demônios"', ofe

receu-se sem mácula para que fosse morto (Hb 9.14), ressuscitou e foi revelado em poder (Rm 1.4). No período de quarenta dias, entre Sua ressurreição e Sua ascensão, Ele deu mandamentos aos Seus discípulos através do Espírito271. E em Sua ascensão, através da qual Ele sujeitou todos os Seus inimigos e subordinou os anjos, principados e potestades a Si mesmo (Ef 4.8; lPe 3.22), Ele plenamente recebeu o Espírito Santo e todos os Seus poderes. Quando Ele subiu às alturas, levou cativo o cativeiro,

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concedeu dons aos homens, e foi exaltado acima de todos os céus, para encher todas as coisas (Ef 4.8,10).

Jesus recebeu o Espírito de tal maneira e em tal medida que o apóstolo Paulo pode dizer, em 2Coríntios 3.17, que o Senhor (isto é, Cristo, como o Senhor exaltado), é o Espírito. Naturalmente, através dessa afirmação Paulo não quer obliterar a distinção que existe entre os dois, pois no verso seguinte ele imediatamente fala sobre o Espírito do Senhor. 0 que Paulo quer dizer é que o Espírito se tornou uma propriedade de Cristo, e podemos dizer que Ele foi absorvido por Cristo ou assi-milado por Ele. Através da ressurreição, Cristo foi feito Espírito vivificante (ICo 15.45). Cristo age-

ra possui os sete Espíritos (isto é,

o Espírito em sua plenitude), assim como possui as sete estrelas (Ap 3.1). 0 Espírito do Pai se tornou o Espírito do Filho, o Espírito de Cristo, o Espírito que, não somente no divino Ser, mas também em harmonia com Ele, procede do Pai e do Filho, e é enviado pelo Filho, assim como é enviado pelo Pai (jo 14.26; 16.7).

Com base em sua perfeita obediência, Cristo obteve o pleno

e livre comando sobre o Espírito Santo e sobre todos os dons e poderes desse Espírito. Ele agora pode compartilhar esse Espírito com quem Ele quiser, na medida em que Ele quiser, em harmonia com a vontade do Pai e do próprio Espírito, pois o Filho envia o Espírito da parte do Pai (Jo 15.26)e o Pai envia o Espírito no nome do Filho (Jo 14.26). E o Espírito não fala de si mesmo, mas diz tudo o que ouviu. Assim como Cristo em Seu ministério terreno sempre glorificou o Pai, da mesma forma o Espírito, por Sua vez, glorifica Cristo, recebe tudo de Cristo e anuncia Cristo aos Seus discípulos (Jo 16.13,14). Dessa forma o Espírito, livremente, colocase a serviço de Cristo, e no Espírito e através do Espírito, Cristo dá a Si mesmo e os Seus benefícios, à Igreja.

Não é por força nem por violência, que Cristo reina no reino que lhe foi dado pelo Pai. Ele não

agiu assim em sua flumilhação e não agirá assim em Sua exaltação. Ele continua a exercer Seus ofícios profético, sacerdotal e real de forma espiritual, em Seu trono celestial. Ele luta somente com armas espirituais. Ele é o Rei de Graça e de poder, e comanda Seu exército através do Espírito, que faz uso da Palavra como meio de Graça. Através do Espírito Cristo instrui, conforta e governa Sua Igreja, e mora nela. E através do mesmo Espírito Ele convence o mundo do pecado, da justiça e do juizo (Jo 16.8-11). A vitória total que Cristo imporá sobre Seus inimigos, será uma vitória do Espírito Santo.

Depois que Cristo foi exaltado à mão

direita do Pai, a segunda promessa do

Velho Testamento foi cumprida. Ela fala

sobre o derramamento do Espírito sobre

toda carne. Primeiro Ele tinha que merecer

e se apropriar desse Espírito para que

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depois pudesse clá-lo à Sua Igreja. Antes

disso, isto é, antes de Sua ascensão, o

Espírito ainda não tinha sido derramado,

porque Cristo ainda não tinha sido

glorificado (Jo 7.39). Naturalmente, isso

não quer dizer que antes da glorificação de

Cristo o Espírito não existisse, pois, não

apenas o Velho Testamento faz referência

ao Espírito, mas

também os Evangelhos registram que João Batista era cheio do Espírito Santo (Lc 1.15), que Simeão recebeu uma revelação do Espírito Santo (Lc 2.26,27), que Jesus foi concebido por Ele, ungido por Ele e assim por diante. 0 sentido também não pode ser de que os discípulos não soubessem que o Espírito Santo existia, pois eles tinham sido instruídos no Velho Testamento, pelo próprio Cristo. Nem mesmo os discípulos de João que disseram a Paulo, em Efeso, que não tinham recebido o Espírito Santo e que nunca sequer tinham ouvido falar na existência desse Espírito (Aí 19.2), ignoravam a existência do Espírito. 0 que eles disseram foi que não tinham conhecimento de uma operação não usual do Espírito Sim-to, isto é, do Pentecostes, afinal, eles sabiam que João Batista era um profeta enviado por Deus e capacitado pelo Espírito. A grande questão é que eles tinham permanecido como discípulos de João, não tinham se juntado a Jesus e aos Seus discípulos e por isso viviam fora do âmbito da Igreja, que no dia de Pentecostes, recebeu o Espírito Santo. Até aquele dia nunca tinha ocorrido um derramamento do Espírito, como o de Pentecostes.

0 Velho Testamento já tinharegistrado essa promessa, e Jesus também a mencionou repetidamente em Seu

ensino. João Batista já tinha anunciado que depois dele viria o Messias, que não ba-tizaria com água, mas com o Espírito Santo e com fogo (isto é, com o derramamento e com o fogo consumidor do Espírito santo)"'. E em harmonia com essa promessa Jesus afirmou aos Seus discípulos que depois de Sua exaltação Ele enviaria, da parte do Pai, o Espírito Santo, que os conduziria a toda verdade. Dessa forma, Cristo claramente fez uma distinção entre as duas atividades do Espírito Santo. Através do primeiro tipo de atividades o Espírito Santo, tendo sido derramado sobre o coração dos discípulos, conforta-os, conduze-os à verdade e permanece com eles etemamente211 Mas esse Espírito de conforto e orientação é dado somente aos discípulos de Jesus. 0 mondo não pode receber esse Espírito, pois não o vê nem o conhece (Jo 14.17). Por outro lado, no mundo o Espírito realiza uma atividade muito diferente daquela que realiza na Igreja. Vivendo na Igreja e, portanto, exercendo Sua influência no mundo, o Espírito convence o mondo do pecado, da justiça e do juizo e condena-o nesses três quesitos (Jo 16.8-11).

Jesus cumpre Sua promessa aos Seus discípulos em seu sentido estrito, isto é antes de Sua ascensão. Quando, na tarde do dia da ressurreição, Ele apareceu aos Seus discípulos pela primeira vez, Ele os inseriu de forma digna em sua missão apostólica, soprou o Espírito sobre eles e disse que se de alguém eles perdoassem os pecados, os pecados dessa pessoa seriam perdoados e que se eles retivessem os pecados de alguém, esses pecados seriam de fato retidos (jo 20.22,23). Isso aconteceu

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porque o exercício do ofício apostólico que eles tinham acabado de receber, exigia um dom e um poder específico do Espírito. Esse dom e esse poder lhes foram dados por Cristo, antes de Sua ascensão, pois eram distintos do dom e do poder que no dia de Pentecostes, todos os crentes receberiam.

0 derramamento do Espírito aconteceu quarenta dias depois da ressurreição. Nessa ocasião os judeus estavam celebrando sua festa de Pentecostes, na qual eles se regozijavam pela colheita e pela entrega da lei, no Sinai. Os discípulos estavam em Jerusalém, aguardando o cumprimento da promessa de Jesus, e estavam constantemente no templo, orando e bendizendo ao Senhor (Lc 24.49,53). Agora eles não estavam sozinhos. Eles perseveravam unânimes em orações e súplicas,

com Maria, mãe de Jesus, os irmãos dEle e muitos outros. E o seu número chegava a cento e vinte pessoas (At 1.14,15; 2.1). E, estando eles reunidos, repentina-mente veio urn som do céu, como de um vento impetuoso, e encheu todo o lugar onde os discípulos estavam reunidos. E apareceram entre eles línguas, como de fogo, que foram distribuídas entre todos os que estavam ali reunidos, e permaneceu sobre eles. Acompanhando por esses sinais, que significavam a descida e a atividade iluminadora do Espírito Santo, ocorreu o derramamento. Todos os presentes ficaram cheios do Espírito Santo (At 2.4).

Essa mesma expressão já tinha ocorrido antes (Ex 313; Mq 3.8; Lc 1.41). Mas, a diferença está na superfície. Antes do Pentecostes, o Espírito Santo vinha sobre umas poucas pessoas e permanecia sobre elas durante o tempo necessário para a realização de uma obra específica. No Pentecostes Ele desceu sobre toda a Igreja e sobre todos os Seus membros, e permanecerá morando e trabalhando permanentemente nela. Assim como o Filho de Deus apareceu várias vezes nos tempos do Velho Testamento mas, só assumiu uma natureza humana como Sua morada permanente na concepção, no ventre de Maria, da mesma forma, nos tempos do Velho Testamento havia todas as for-

mas de atividades do Espírito Santo, mas somente no dia de Pentecostes Ele passou a habitar na Igreja, como Seu templo, que Ele constantemente santifica, edifica e da qual Ele nunca se esquece. A morada que o Espírito Santo faz na Igreja dá, à Igreja de Cristo, uma existência independente. Essa Igreja não é mais restrita à nação de Israel, nem às fronteiras da Palestina, mas vive agora de forma independente, através do Espírito que nela habita e se espalha por toda a terra. Fora do templo de Sião Deus passa a morar no corpo da Igreja de Cristo, e assim, no dia de Pentecostes nasce uma Igreja missionária e mundial. A ascensão de Cristo teve sua conseqüência necessária e a prova de sua realidade, na descida do Espírito Santo. Assim como o Espírito santificou Cristo através do sofrimento, aperfeiçoou e conduz iu-o à mais e levada exaltação, assim também Ele age para formar o corpo de Cristo até que esse corpo alcance a maturidade e sua plenitude, o pléroma, daquele que é tudo em todos.

Esse derramamento do Espírito Santo

foi acompanhado, no primeiro período,

pela realização de todos os tipos de sinais,

pelos discípulos de Cristo. Logo que eles

foram cheios do Espírito San-

to, no dia de Pentecostes, eles começaram a falar em outras línguas, na

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medida em que o Espírito concedia que falassem (At 24). De acordo com a descrição de Lucas, esse milagre consistia na fala ou na linguagem e não na forma pela qual os discípulos ouviam. Lucas era um amigo e um auxiliar de Paulo e conhecia muito bem o fenômeno de línguas estranhas, como por exemplo o que acontecia em Corinto. Ele fala de si mesmo, em Atos 10.46,47 e 19.6, falando em línguas. Não há dúvida de que o fenômeno de Pentecostes estava relacionado às línguas. As línguas servem de parâmetro para Pedro dizer que, Cornélio e aqueles que com ele estavam tinham recebido o Espírito Santo, assim como Pedro e os outros apóstolos tinham recebido (At 1046,47; 11.17;15.8). Contudo, há uma diferença. Em lCorínfios 14, Atos 10.46 e 19.6 a fala em línguas não é modificada pelo adjetivo estranhas, Mas, Atos 2.4 menciona expressamente outras línguas. Quando os membros da igreja de Corinto falavam em línguas, eles não eram compreendidos menos que houvesse um intérprete (lCo 14.2 ss.). Mas, em Jerusalém, falaram em outras línguas e foram entendidos pela multidão. Um milagre na audição está, portanto, totalmente fora de questão (Aí 2.4). Quando a multidão ouvia os discípulos, entendia

perfeitamente, pois ela os ouvia em sua própria língua e modo de falar (Aí 2.6,8). As outras línguas das quais o verso 4 fala são, sem sombra de dúvida, as mesmas lín-guas que o verso 6 chama de língua dos ouvintes, e que no verso 8, são mais especificamente designadas como a língua materna de cada um dos presentes. Essas línguas, portanto, não eram sons incompreensíveis, mas outras línguas, novas línguas, como Marcos diz no capítulo 16.17 de seu Evangelho e que não se esperava encontrar nos lábios de um galileu (Aí 2.7). Em todas essas línguas eles proclamaram os maravilhosos feitos de Deus, particularmente aqueles que tinham acontecido recentemente, a saber, a ressurreição e a exaltação de Cristo (At 2.4,14 ss.).

Não devemos pensar, devido ao registro feito por Lucas, que os discípulos de Cristo soubessem falar todas as línguas de todos os povos da terra. 0 registro também não diz, que todos os discípulos falaram em todas as outras línguas. 0 propósito desse milagre não foi para que os discípulos pregassem o Evangelho aos estrangeiros em sua própria língua, pela razão de que, de outra forma não seriam entendidos. Os quinze nomes relacionados nos versos 9-11, não representam o mesmo número de línguas diferentes. Esses nomes são desig

nação dos países dos quais os estrangeiros vieram a Jerusalém por ocasião do Pentecostes. Porém, todos esses estrangeiros entendiam o aramaico ou o grego, de for-ma que a capacitação sobrenatural para que os discípulos falassem em outras línguas, não seria necessária para que a mensagem fosse entendida. Nós não encon-tramos qualquer menção posterior no Novo Testamento, desse dom de línguas estranhas. Paulo, o apóstolo dos gentios, que certamente teria recebido esse dom, nunca falou sobre ele. Ele podia comunicar-se muito bem em aramaico e grego, no mundo de sua época.

0 fenômeno da fala em línguas estranhas, no dia de Pentecostes, foi um evento único. De fato ele está relacionado ao fenômeno de línguas geralmente conhecido e referido em outros lugares, mas ele foi um fenômeno particular e mais elevado. Paulo considerou o fenômeno comum e conhecido de línguas como sendo de valor menor que a profecia. Mas, o que ocorreu em Jerusalém foi uma combinação de dom de línguas e de profecia. A operação do Espírito Santo, que tinha acabado de ser derramado, foi tão poderosa que dominou toda a consciência dos presentes e se manifestou na pronúncia de sons articulados, que foram reconhecidos pelos ouvintes como sua lin-

gua materna. 0 propósito, portanto, desse milagre, não foi equipar os discípulos para que conhecessem línguas estranhas, mas causar em todos os presentes uma

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forte impressão do grande evento que tinha acabado de ocorrer. E como isso poderia ter sido feito, de forma melhor do que fazendo com que a pequena e recente-mente estabelecida igreja mundial, proclamasse, em muitas línguas, os poderosos feitos de Deus? Na criação, as estrelas cantaram juntas e todos os filhos de Deus se alegraram. No nascimento de Cristo, a multidão de hostes celestiais exultou de júbilo. No aniversário da Igreja, essa Igreja canta as maravilhosas obra de Deus em várias línguas.

Embora as línguas ocupem um lugar

importante no Pentecostes, devemos nos

lembrar que o derramamento do Espírito

nesse primeiro período, tornou-se ma-

nifesto através de muitos fenômenos não

usuais. 0 dom do Espírito era geralmente

dado depois que uma pessoa manifestava

sua fé, geralmente no momento do batismo

(At 2.28), ou na imposição das mãos

antes do batismo (At 8.17; 9.17; 19.6).

Usualmente, o

dom do Espírito consistia de um poder não usual. Dessa forma, nós lemos que através do Espírito os discípulos receberam autoridade para pregar a Palavra (At 4.8,31), uma fé particularmente forte (At 6.5;11.24), conforto e alegria (At 9.31; 13.52), sabedoria (At 63,10), línguas (At 10.46; 15.8; 19.6), profecia (At 11.28; 20.23; 21.11), manifestações e revelaçõe5112, operações de rruilagreS253 e coisas semelhantes. Assim como as obras que Jesus realizou, esses poderes incomuns também causaram grande perturbação e temor". Por um lado eles provocaram oposição, levaram o cora-ção dos inimigos ao ódio e à perseguição; mas, por outro lado, eles também prepararam o terreno para a semente do Evangelho. Nesse primeiro período eles foram necessários para introduzir a confissão cristã no mundo.

Esses dons incomuns do Espírito continuaram sendo exercidos durante todo o período apostólico. Nós ternos acesso a esses dons, especialmente através dos escritos do apóstolo Paulo. Ele mesmo, em sua própria pessoa, recebeu abundantemente esses dons especiais do Espírito. De uma forma incomum, a saber, através de urna revelação do pró-prio Cristo, ele se converteu no

caminho de Damasco, foi chamado para ser apóstolo (At 9.3 ss.) e, mais tarde, ele passou a receber revelações periodicamente"'. Ele sabia que possuía os dons de co-nhecimento, de profecia, de doutrina e de línguas (lCo 14.6,18). Ele realizava sinais,

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maravilhas e obras que evidenciavam o seu apostolado (2Co 12.12). 0 próprio Cristo quis trazer os gentios à obediência, por palavras e por obras, por força de sinais e prodígios, pelo poder do Espírito Santo (Rm 15.18,19).

Apesar de Paulo estar plenamente consciente de seu ofício apostólico e de sua dignidade e de afirmá-las sempre que possível, ele sabia que os dons do Espírito não tinham sido dados somente a ele, mas a todos os crentes. Em lCoríntios 12.8-10 (compare com Romanos 6.8) Paulo cita alguns desses dons, e diz que eles foram distribuídos pelo Espírito em proporções variadas, de acordo com a vontade do Espírito. 0 apóstolo tem todos esses dons em estima muito elevada. Eles não pertencem aos próprios crentes, pois eles nada possuem que não tenham recebido e, portanto, não têm motivo algum para se exaltarem, colocando-se acima uns dos outros (lCo 4.6,7). Todos esses dons e poderes são concedidos

pelo mesmo Espírito. Eles são um cumprimento da profecia feita no Velho Testamento (GI 3.14) e devem ser considerados como primícias e como penhor de nossa futura herança celestia1181.

Contudo, Paulo faz =a avaliação de todos esses dons e esta difere significativamente da que foi feita por muitos dos membros da Igreja. Havia pessoas em Corinto, que se exaltavam por causa dos dons que tinham recebido do Espírito e que olhavam com desdém para aqueles que tinham recebido menos dons ou até mesmo nenhum. Essas pessoas não aplicavam seus dons em benefício dos demais, mas ostentavam-nos. E elas davam uma importância a mais para o dom de línguas. Paulo aponta o erro dessas pessoas (ICo 12-14). Em primeiro lugar ele aponta para a norma, segundo a qual todos os dons devem ser medidos. Essa norma é a confissão de que Jesus é o Senhor. Quem quer que fale da parte do Espírito do Senhor não pode amaldiçoar Jesus. Somente aquele que confessa Jesus como Senhor demonstra que fala da parte do Espírito. A marca registrada do Espírito e de todos os Seus dons e operações é a obrigação de confessar Jesus como Senhor (ICo 12.3).

Em segundo lugar Paulo aponta para o fato de que os dons do Espírito, apesar de corresponderem a essa norma, são muito variados, e que eles são distribuídos não segundo o mérito ou o esforço de cada um, mas segundo a vontade soberana do Espírito (ICo 12.4-11), Portanto, eles não podem servir de ocasião ou de motivo para a auto-exaltação nem para o desprezo ou a desconsideração dos outros. Em vez disso, todos eles devem ser aplicados em benefício do próximo, pois todos os crentes são membros de um só corpo e precisam uns dos outros (ICo 12.12-30). Mas, se os dons são usados para esse fim, se eles são aplicados à aquilo que é proveitoso (ICo 12.7), isto é, benéfico aos outros, à edificação da Igreja, para o que foram designados (lCo 14.12), então, as graduações entre os dons passam a ficar evidentes, pois , um é mais benéf ico à edificação da Igreja que outro, e por isso nós podemos falar em dons, melhores dons e o melhor dom. É por isso que Paulo exorta os crentes, em 1 Coríntios 12.31, a procurar com zelo os melhores dons.

Nessa enérgica aspiração aos melhores dons, o amor é o caminho por excelência. Sem ele o maior dos dons é vazio e sem vida (ICo 13.1-3). 0 amor trans-cende todos os outros dons em

virtude (ICo 13.4-7). 0 amor transcende todos os outros dons em duração, pois todos os dons um dia cessarão, mas o amor é eterno. Entre as virtudes de fé, espe-rança e amor, o amor é a de maior mérito (lCo 13.8-13). Por tudo isso o amor deve ser

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seguido com zelo em todas as coisas (ICo 14.1). Mas nessa busca a atenção deve se con-centrar naqueles dons que servem para edificar a Igreja e, dessa forma, exercitar o amor. Visto por esse ângulo, o dom de profecia é muito superior ao de línguas, pois aqueles que falam em línguas não são entendidos, falam em mistérios que são incompreensíveis aos seus ouvintes, falam ao ar, não trazem pessoas à crença ou à fé, mas deixam a impressão de ser doentes mentais. Se há membros da igreja que possuem esse dom, eles devem fazer uso restrito dele e, preferivelmente, devem ser acompanhados pelo dom de interpretação. Se nenhuma interpretação puder ser dada, aqueles que possuem esse dom devem calar-se na igreja. Por outro lado há aqueles que profetizam, que através da revelação do Espírito proclamam a Palavra de Deus, promovem a edificação, a admoestação e a consolação dos homens. Eles edificam a Igreja e conquistam os incrédulos. Portanto, independente do dom que a pessoa tenha recebido, o padrão que afere sua genuinidade é a con-

fissão de que Jesus Cristo é o Senhor, e o seu uso com o propósito de edificar a Igreja. Deus não é Deus de confusão, mas de paz.

Essa bonita abordagem sobre os dons espirituais deu fruto não somente na igreja de Corinto, mas tem frutificado em toda a Igreja e em todas as épocas, pois sempre há pessoas que se apegam mais às manifestações maravilhosas, às revelações e milagres do que à operação do Espírito na regeneração, na conversão e na renovação da vida. 0 anormal e o incomum, sempre atrai atenção, e o normal e usual passam despercebidos. Muitas pessoas possuem revelações, aparições, arrebatamentos e extrtavagâncias teatrais, e ao mesmo tempo possuem os olhos fechados para o gradual amadurecimento do reino de Deus. Paulo pensava diferente dessas pessoas, e por isso ele admoestou os irmãos de Corinto: "Irmãos, não sejais meninos no juizo; na malícia, sim, sede crianças; quanto ao juizo, sede homens amadurecidos" (ICo 14.20).

Dessa forma, o apóstolo muda o centro de gravidade das revelações temporais e transitórias do Espírito, para a obra religiosa e moral que ele continuamente realiza na Igreja. Essa idéia sobre a obra do Espírito já estava presente no Velho Testamento.

No Velho Testamento todos os tipos de dons e poderes extraordinários são atribuídos ao Espírito, mas como os p ro f e ta s e o s salmistas entraram na profundidade da apostasia do povo de Israel e na miséria e corrupção do coração humano, eles declaram com maior clareza e maior força que somente uma renovação realizada pelo Espírito Santo poderia transformar o povo de Israel em povo de Deus em um sentido verdadeiro. "Pode, acaso, o efiope mudar sua pele ou o leopardo as suas manchas? Então, poderícis fazer o bem, estando acostumados a fazer o mal" (Ir 13.23). Deus, por Seu Espírito, pode mudar o coração das pessoas, se elas andarem em Seus caminhos e observarem Suas ordenanças e Seus estatutos. Somente o Espírito do Senhor pode implantar a verdadeira vida moral e espiritual'8'.

A pregação de Jesus no Evangelho de João, confirma tudo isso. Em Sua conversa com Nicodemos Jesus explica que não liá acesso ao reino de Deus, nem qualquer forma de se desfrutar dele, a não ser através da regeneração, e que essa regeneração só pode acontecer através do espírito santo (jo 3.3-5). E em sua despedida Ele desenvolve a idéia de que o Espírito que Ele enviaria da parte do Pai depois de sua glorificação, tomaria Seu lugar entre os discípulos. Portanto, a partida de Jesus foi benéfica para os discípulos. De outra forma o Consolador não teria vindo para eles. Mas, quando Ele foi para o Pai Ele pôde e de fato enviou o Espírito. A ida de Jesus para o Pai é a evidência de que Ele realizou na terra tudo aquilo que deveria ter re-alizado. No céu Ele pôde tomar Seu lugar à mão direita de Deus Pai e pôde assumir Suas funções sacerdotais, intercedendo pela Igreja na terra. Em outras palavras, ao ir para o Pai, Jesus pôde orar a Ele pelo Espírito Santo em toda a Sua plenitude e

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pôde enviar Seu Espírito aos Seus discípulos. E nesse Espírito Jesus continua entre Seus discípulos. 0 Espírito é o Consolador, Guia, Intercessor e Advogado dos dis-cípulos.

Nesse sentido os discípulos não sentiram a perda de Jesus. Quando Jesus estava com os discípulos Ele entrava e saía com eles, mas mesmo assim havia entre eles muitas dúvidas e muitos equívocos. Mas, o Espírito que viria não permaneceria fora deles, nem junto a eles, mas habitaria dentro deles. Cristo permaneceu com eles na terra durante algum tempo, mas o Espírito que Ele enviou nunca os deixaria, mas permaneceria com eles até a eternidade. Além disso, o próprio Cristo voltaria novamente na pes

soa do Espírito. Ele não deixaria órfãos os Seus discípulos, mas voltaria para eles e se alegraria com eles no Espírito, de uma forma, que antes nunca tinha sido possível. Eles o veriam novamente. Eles viveriam como Ele vive. Eles reconheceriam que Cristo estaria no Pai e que eles estão em Cristo e que Cristo estaria neles. Em Cristo, o Pai viria até os discípulos. Através do Espírito, o Pai e o Filho viriam aos discípulos. 0 Pai e o Filho viriam até os discípulos e fariam morada neles, através do Espírito. Isso, então, era o que o Espírito desejava, em primeiro lugar, realizar: uma comunhão entre o Pai e o filho, por um lado, e entre os discípulos, por outro. Essa era uma comunhão como nunca tinha existido antes.

E quando os discípulos desfrutam dessa comunhão e vivem por ela, quando eles são unidos a Cristo como os ramos são unidos à videira, quando eles não são servos, mas amigos, então o mesmo Espírito que fez com que eles desfrutassem dessa comunhão, sendo o Espírito da verdade, os conduzirá a toda verdade. Ele não os abandonará para que reflitam por si mesmos sobre o que Cristo pessoalmente falou e ensinou, mas continuamente lhes dará testemunho de Cristo. Ele dirá o que ouviu de Cristo e o que recebeu dEle, e também lhes; declarará o que há de acontecer. Os discípu-

Ios não somente terão comunhão com o Pai e com Cristo, mas também terão consciência dessa comunhão. 0 Espírito Santo os iluminará com relação a Cristo, Sua unidade com o Pai e com relação ao relacionamento dos discípulos com o Pai e com o Filho. 0 propósito final é que todos os crentes sejam um – assim Cristo diz em suas próprias palavras – como tu, o Pai, és em mim e eu em ti, que eles sejam um em nós, para que o mondo creia que tu me enviaste (Jo 17.21).

Quando no dia de Pentecostes o espírito foi derramado, as extraordinárias manifestações pelas quais esse derramamento foi revelado atraíram a atenção. Mas, nem por isso nós podemos fechar nossos olhos para um fato muito mais importante, a saber, o fato de que os discípulos foram unidos de maneira mais íntima a uma Igreja santa e independente. Cristo é o Senhor e Salvador dessa Igreja, e todos os crentes perseveram na doutrina dos apóstolos, na comunhão, no partir do pão e nas orações (Aí 2.42). A unidade so-bre a qual Cristo tinha falado foi realizada na igreja de Jerusalém. Quando o entusiasmo do primeiro amor deu lugar à

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quietude do coração e da mente, quando as igrejas foram estabelecidas em outros lugares e entre outros po

vos, quando, mais tarde, todos os tipos de cisma e de separação começaram a ocorrer na Igreja cristã, a unidade que une todos os crentes assumiu uma forma dife-rente, tornou-se menos vital e menos profunda, e algumas vezes é tão fraca que nem mesmo pode ser sentida por todos. Mas nós não podemos nos esquecer que no meio de tantas diferenças a Igreja permanece unida até os nossos dias. No futuro, essa unidade se tornará ainda mais claramente manifesta do que na igreja de Jerusalém.

De todos os apóstolos é o, apóstolo

Paulo quem mais defende a unidade da

Igreja diante de todas as divisões que

ele, já em seu tempo, pôde testemunhar.

A Igreja é um corpo, e todos os seus

membros precisam uns dos outros e

devem servir uns aos outros (Rm 12.4;

ICo 12.12 ss.). Tal unidade se deve ao fato

da Igreja ser o corpo de Cristoz". A unida-

de da Igreja está fundamentada na

comunhão com Cristo e é derivada dela.

Cristo é a Cabeça de todo crente, de toda

congregação local e também da Igreja

como um todo. Todos os crentes são

novas criaturas, que Deus criou em

Cristo para as boas obras, as

quais Deus de antemão preparou para que os crentes andassem nelas (2Co 5.17; EI 2.10). Cristo vive e mora nos crentes, e os crentes vivem, movem-se e existem em Cristo: Cristo é a vida deles. A combinação em Cristo (no Senhor), ocorre mais de cento e cinquenta, vezes no Novo Testamento. Ela indica que Cristo é a fonte constante não apenas da vida espiritual, mas que também como tal Ele imediata e diretamente mora nos crentes. A unidade entre Cristo es; os crentes é como a da pedra angular e o templo, entre o homem e a mulher, entre a cabeça e o corpo, entre a videira e os ramos. Os crentes estão em Cristo da mesma forma que todas as coisas, em virtude da criação e da providência, estão em Deus. Eles vivem em Cristo como os peixes vivem na água, os pássaros vivem nos ares, o homem em sua vocação, o erudito em seu estudo. Jun-tamente com Cristo os crentes foram crucificados, mortos e sepultados, e juntamente com Ele, eles ressuscitaram e estão assentados à mão direita de Deus e glorificados`. Os crentes assumem a forma de Cristo e mostram em seu corpo tanto o sofrimento

Page 378: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

quanto a vida de Cristo e são aperfeiçoados (completados) nEle. Em resu-

mo, Cristo é tudo em toclos211.

Essa íntima relação entre Cristo e os crentes é possível, porque Cristo é compartilhado com os crentes através do Espírito. Em virtude de Sua paixão e morte Cristo recebeu tão perfeitamente o Espírito e todos os Seus dons e poderes que Ele pode ser chamado de Espírito (2Co 3.17), e Cristo recebeu também o direito de conceder o Espírito a quem Ele quiser. 0 Espírito de Deus é também o Espírito de Cristo, o Espírito do Filho, o Espírito do Senhor'". Dizer que alguém recebeu o Espírito é o mesmo que dizer que essa pessoa recebeu Cristo, pois, quem quer que não possua o Espírito de Cristo, também não possui Cristo e não pertence a Ele (Em 8,9,10). Assim como Deus dá o Filho ao mundo, assim também o Filho se dá à Igreja através do Espírito. Os crentes são um só espírito com Cristo (lCo 6.17). Eles são templos do Espírito Santo, através dos quais Deus mora neles (lCo 3.16,17; 6.19). Eles existem, andam

confessam, oram e se regozijam no Espíritos".Eles são seres espirituais, que entendem e julgam as coisas do Espírito (Rm 8.2; lCo 2.14). Eles são continuamente conduzidos pelo Espírito e são acompanhados por Ele até, o dia

da redenç ão113 . Através do Espírito eles têm acesso ao Pai e são juntamente edificados sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas para a habitação de Deus (Ef 2.18,22).

Em temos como esses, que foram aqui utilizados, a Escritura registra a maravilhosa unidade que existe entre Cristo e Sua Igreja e que veio a ser chamada de

união mística. Nós não podemos

compreender essa união em toda a sua profundidade. Ela vai muito além de nosso entendimento. Ela deve ser diferenciada, em natureza e em espécie, da unidade que existe entre as três pessoas da Trindade, pois todas essas três pessoas são um e o mesmo Ser divino, e é precisamente em essência que Cristo e os crentes continuam sendo distintos entre si. De fato, a unidade existente entre Cristo e a Igreja é mais de uma vez comparada com a união que existe entre Cristo e o PaP". Mas quando diz isso, Cristo não está falando de Si mesmo como o Filho, o Unigênito, mas como o Mediador,

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que seria exaltado à mão direita de Deus e através de quem o Pai realizaria Seu propó-sito. Assim como o Pai escolheu Seu próprio Filho, antes da fundação do mondo (Ef 1.4) para louvor da glória de Sua Graça que

Ele nos concedeu gratuitamente no Amado (Ef 1.6,7; At 20.28), assim também Ele reúne todos os crentes em Cristo (Ef 1.10). 0 Pai mora em Cristo como o Mediador e assim dá Suas bênçãos e a Si mesmo, à Igreja.

0 relacionamento entre Cristo e os crentes é tão íntimo e inseparável quanto o relacionamento entre o Pai e o Mediador. Esse relacionamento supera toda união que possa existir entre as criaturas e até mesmo a união que existe entre Deus e o mundo por Ele criado. Essa união é diferente, por um lado, de uma mescla panteísta e, por outro lado, de toda justaposição deísta e de todo relacionamento contratual. A Escritura nos ensina algo sobre a natureza dessa união ao compará-la com a união que existe entre a videira e os ramos, entre a cabeça de um corpo e seus membros, entre um homem e uma mulher. Esse é um relacionamento que completa e eternamente une Cristo à Sua Igreja na profundidade do ser e na essência da personalidade dos crentes. Esse relaciona-mento teve início na eternidade, quando o Filho de Deus se declarou pronto para fazer a mediação entre Deus e o homem. Esse relacionamento alcançou sua existência objetiva na plenitude dos tempos, quando Cristo assumiu a natureza humana, entrou em comunhão com Seu povo e entregou-se à morte em favor dos que são Seus. Esse relacionamento é realizado pessoalmente quando o Espírito Santo entra nele, incorpora-o a Cristo e quando o crente, por sua vez, reconhece e exerce essa unidade com Cristo.

Essa comunhão com a pessoa de Cristo traz consigo todas as bênçãos ebenefícios. Uma pessoa não pode desfrutar das bênçãos e dos benefícios de Cristo, a menos que desfrute de Sua pessoa, pois os benefícios não são separados da pessoa. Isso em certo sentido seria concebível se os be-nefícios que Cristo concede fossem bens materiais, pois um homem pode nos dar seu dinheiro e suas propriedades sem dar-se a si mesmo. Mas os benefícios que Cristo nos dá são de natureza espiritual. Eles consistem acima de tudo em Sua aprovação, Sua misericórdia, Seu amor e todas es-sas bênçãos que são pessoais e que não podem ser separadas da pessoa de Cristo. 0 tesouro das bênçãos não é depositado na terra, nas mãos do papa ou dos sacerdotes, nem na igreja ou nos sacramentos. Ele pode ser encontrado apenas no próprio Cristo. Ele é esse tesouro. Nele, o Pai, em Cristo, volta Sua face para nós de

forma amigável e graciosa, e isso é a nossa salvação.Da mesma forma, não há comunhão com a pessoa de Cristo sem que

haja o compartilhar de Suas bênçãos e benefícios. Novamente, o relacionamento entre o Pai e Cristo é o exemplo do relacionamento entre Cristo e sua Igreja. 0 Pai se dá ao Filho, especificamente ao Filho como Mediador entre Deus e o homem. 0 Pai nada retém de Si mesmo, mas dá todas as coisas ao Filho. Todas as coisas foram confiadas ao Filho pelo Pai (Mt 11.27; Jo 3.35). Tudo o que o Pai tem é do Filho (Jo 16.15; 17.10). 0 Pai e Cristo são um; o Pai está no Filho, e o Filho está no Pai (Jo 10.38; 17.21-23). E Cristo, por Sua vez, se dá juntamente com todos os Seus benefícios à Igreja, através do Espírito Santo (lo 16.13-15). Ele nada retém para Si mesmo. Assim como a plenitude de Deus mora corporalmente em Cristo (C11.19; 2.9), assim também Ele aperfeiçoa a Igreja à medida da estatura de Sua plenitude, até que os crentes fiquem cheios da plenitude de Deus291. Ele é tudo em todos (Ci 3.11).

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É a plenitude que nós recebemos em Cristo, a plenitude de Deus, a plenitude de Graça e de verdade (Jo 1. 14,16). Essa plenitude reside no próprio Cristo, em

Sua pessoa, em Sua natureza humana e em Sua natureza divina,

em Seu estado de humilhação e em Seu estado de exaltação. Há

uma plenitude de Graça em Sua encarnação, pois nós conhecemos

a Graça de nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico, se fez po-

bre por amor de nós, para que, pela Sua pobreza, nós nos

tomássemos ricos (2Co 8.9). Há =a plenitude de Graça em Sua

vida e morte, pois nos dias de Sua carne Ele aprendeu a

obediência em todas as coisas que sofreu, e, tendo sido

aperfeiçoado, tornou-se o autor da salvação eterna para todos os

que lhe obedecem (Hb 5.7- 9). Há uma plenitude de Graça em Sua

ressurreição, pois, através dela Ele foi revelado como o Filho de

Deus em poder e se tomou a nossa viva esperança (Rm 1.4; lPe

1.3). Há uma plenitude de Graça em Sua ascensão, pois, através

dela Ele levou cativo o cativeiro e concedeu dons aos homens

(Ef 4.8). Há uma plenitude de Graça em Sua intercessão, pois,

através dela Ele pode salvar perfeitamente todos aqueles que,

através dele, vão até Deus (Hb 7.25). Há também uma

plenitude de Graça no perdão de pecados, na regeneração, na

renovação, no consolo, na preservação, na orientação, na

santificação e na glorificação. Tudo isso é uma longa e profunda

sequência de Graça e conduz os crentes, do começo ao

fim, à eternidade. É uma plenitude que dá Graça sobre Graça, Gra-ça em lugar de Graça, que imediatamente suplanta uma Graça por outra, substitui uma por outra. Não há intervalo entre uma e outra. É somente a Graça e nada além da Graça, que a Igreja recebe de Cristo.

Os benefícios que Cristo nos concede

em virtude de nossa comunhão com Ele

podem muito bem ser compreendidos sob

o termo Graça. Esse nome engloba uma

plenitude, uma riqueza de bênçãos, que

não pode ser contemplada em sua

amplitude. Do primeiro ao último capítulo

Page 381: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

fizemos menção da reconciliação que

Cristo realizou entre o Pai e os homens

através de Seu sacrifício expiatório. Em

Cristo Deus coloca de lado Sua ira e se

coloca em uma atitude de Graça em

relação ao mundo (2Co 5.19). E para a

pessoa que aceita essa reconciliação com

um coração crente flui uma série de

beneficies, além da própria salvação. A

Escritura menciona muitos deles - vocação,

regeneração, fé, justificação, perdão de

pecados, adoção como filhos, liberdade da

lei, liberdade espiritual, esperança, amor,

paz, alegria, consolo, santificação, pre-

servação, perseverança, glorificação e

muitos outros. Um resumo

completo é totalmente impossível, pois esses benefícios incluem

tudo aquilo que a Igreja como um todo e cada crente em

particular, através de todas as eras e em todas as circunstâncias,

em prosperidade e em adversidade, na vida e na morte, aqui e na

eternidade, recebeu e receberá da plenitude de Cristo.

Por causa dessa quantidade e riqueza de benefícios, é impossível falar sobre todas elas. E extremamente difícil dar uma visão panorâmica de todos eles. E ainda há algum risco em tratar cada um deles em uma ordem regular colocando cada benefício em seu lugar, em relação ao todo. A clas-sificação desses benefícios difere grandemente entre os teólogos. Contudo, de forma geral três grupos principais de benefícios podem ser identificados. Em primeiro lugar há o grupo de benefícios que preparam o homem para in-gressar na Aliança da Graça, inserem-o nela e capacitam-no para, com o coração desejoso, receber as bênçãos dessa Aliança e aceita-la. Esses são os benefícios de vocação, regeneração (em um sentido estrito), fé e arrependimento. Um segundo grupo compreende as bênçãos que mudam o status do homem, libertam-no da culpa e renovam sua mente. Esses são os benefícios da justificação, perdão de pecados, adoção como filhos, o testemunho do Espírito

Santo ao nosso espírito, liberdade da lei, liberdade espiritual,

paz e alegria. E, em último lugar, há um terceiro grupo de

benefícios, que são os que provocam uma mudança na condição

Page 382: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

do homem, limpam-no das manchas do pecado e renovam-no

conforme a imagem de Deus. A esse grupo pertencem

especialmente a regeneração (em um sentido amplo), a morte

e a ressurreição com Cristo, a conversão contínua, o caminhar no

Espírito e a perseverança até o fim. Todos esses benefícios são

aperfeiçoados e completados na glória celestial e na salvação que

Deus prepara para aqueles que são Seus. Um capítulo separado

será dedicado a esse assunto no fim dessa instrução sobre a

religião cristã.

Antes de dar uma atenção específica a cada um desses grupos nós devemos observar que todos eles, até mesmo a pessoa de Cristo, só podem ser recebidos através do Espírito Santo. Nós afirmamos acima que o Pai está em Cristo, que somente em Cristo Ele volta Sua face graciosamente para nós, e que somente nEle o Pai faz Sua morada em nós. Mas, da mesma forma Cristo está no Espírito Santo e Ele pode vir a nós e quer vir a nós somente através desse Espírito. Pelo Espírito, Cristo se dá a nós e dá Seus benefícios a nós. 0 Espírito é chamado de Espírito Santo precisamente por-

que mantém um relacionamento especial com o Pai e com o Filho,

e porque Ele nos coloca em um relacionamento especial com o

Pai e com o Filho. Portanto, nós não podemos supor que possa-

mos entrar em relacionamento com o Pai e com Cristo sem que

tenhamos comunhão com o Espírito. Aparte-se da injustiça aque-

le que professa o nome do Senhor (2Tm 2.19).

De acordo com a Escritura o Espírito Santo é o Realizador da regeneração e da fé (Jo 3.5; lCo 12.4). Ele nos justifica e nos dá testemunho de nossa adoção como filhos2". Ele derrama o amor de Deus em nossos corações, dá-nos paz e alegria e livra-nos da lei, da carne e do poder da mortes". Ele é o Consolador e o Advogado que defende nossa causa, protege-nos e sustenta-nos, e que não nos abandona, mas permanece sem-

pre conosco, consolando-nos e intercedendo sempre por nós'. A

vida espiritual não somente é concedida por Ele, mas também é

c o n t i n u a m e n t e m a n t i d a e conduzida por Ele. Ele é a lei e a

regra da vida espiritual (Ren 8.2,14; CI 5.18). Ele renova e

santifica essa vida, faz com que ela dê frutos e agrade a Deu09.

Toda a vida do cristão consiste em andar no Espírito (Rm 8.4 ss.;

G1 5.16,25). Ele reúne todos os crentes em um corpo e os edifica

Page 383: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

em um templo, uma morada para Deus (Ef 2.18-22; 43,4). Ele

garante a herança celestiais", e um dia realizara a ressurreição e a

glorificação de todos eles (Rm 8.11; lCo15.44).

Em resumo, Cristo e todos os Seus benefícios, o amor do Pai, a Graça do Filho, são recebidos por nós somente mediante a comunhão do Espírito.

Capítulo 20

A VOCAÇÃO CRISTÃ

Para nos incluir na comu- n h ã o c o m S u a p e s s o a e n o s

f a z e r d e s f r u t a r d e Seus benefícios Cristo faz uso não

somente do Espírito que Ele enviou para Sua Igreja, mas também

da Palavra que foi dada à Igreja, para sua instrução e direção.

Cristo estabeleceu =a relação tão forte entre a Palavra e o Espírito

que os dois são igualmente úteis ao exercício de Seu ofício

profético, sacerdotal e real. Não é fácil estabelecer uma idéia

desse relacionamento entre Palavra e Espírito e também não é

fácil definir claramente esse relacionamento. Sempre existiram

muitos pontos de vista diferentes a respeito dessa relação e essas

representações diferentes têm se perpetuado, umas ao lado

das outras, até os nossos dias.

Por um lado, há aqueles que consideram a pregação da Pala-

vra adequada em si mesma e que fazem injustiça ao Espírito

Santo. Esses são os seguidores de Pelágio, que em tempos

remotos e em tempos recentes têm sustentado sua heresia. Eles

consideram o Cristianismo simplesmente como uma doutrina,

vêem em Jesus apenas um bom exemplo a ser seguido e fazem do

Evangelho meramente uma nova lei. Eles afirmam que o pecado

provocou a fraqueza do homem, mas não sua morte espiritual.

Eles afirmam que o pecado restringe a liberdade da vontade e

que a pregação do Evangelho é suficiente, se através dela o

Page 384: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

homem for levado a seguir o exemplo deixado por Jesus em Suas

obras e em Suas palavras. A influência regeneradora do Espírito

Santo não é necessária. A personalidade e a divindade do Espírito

são negadas e atacadas. Na melhor das hipóteses, o Espí-

rito Santo é considerado como uma força que procede de Deus ou, mais especificamente, da pessoa de Jesus e que alimenta um tipo de disposição moral e um propósito ideal na Igreja.

Há outros que seguem um curso de pensamento bem diferente. Eles são chamados de zelotes, antinornianos, entusiastas ou místicos, falam muito do Espírito e subestimam a utilidade da Palavra na conversão do homem. Eles vêem a Palavra, a Sagrada Escritura, a pregação do Evange-lho, não como uma realidade espiritual em si mesma, mas somente como um símbolo de uma realidade espiritual. Em si mesma a Palavra é apenas uma letra morta que não pode penetrar o coração do homem, nem implantar ali o princípio da nova vida. Na melhor das hipóteses, a Palavra pode apenas lançar uma influência iluminadora na mente. Contudo ela não tem poder para mudar e converter o coração. Isso só pode acontecer e só acontece através da ação do Espírito Santo, que penetra imediata e diretamente nas profundezas do ser humano e implanta nele a realidade da qual a Palavra é apenas um símbolo. 0 homem espiritual, portanto, é di-retamente nascido de Deus. Ele entende a Escritura, indo além da letra morta e alcançando seu sentido essencial. Esse homem espiritual por algum tempo faz uso da

Palavra como uma norma e um princípio orientador, mas não

como a fonte de seu conhecimento religioso, pois esse conheci-

mento é subjetivamente ensinado pelo Espírito de Deus e gradual-

mente se desenvolve além das Escrituras.

Como a influência do Espírito Santo gradualmente emancipa o coração do homem cada vez mais das Escrituras, o coração humano fica também cada vez mais e mais independente da pessoa de Cristo e do Cristianismo histórico. Dessa forma o misticismo, em seu estado mais desenvolvido, volta ao racionalismo, pois quando a operação interna do Espírito Santo é separada da Escritura ela perde seu caráter especial e não pode mais ser diferenciada da operação comum do Espírito de Deus na razão e na consciência do homem. Deus, por natureza, habita com Seu Espírito em todos os homens, de acordo com esse ponto de vista, e desde o seu nascimento o homem tem a palavra interna escrita em seu coração. A isso Cristo somente dá alguma inflexão. Algo é verdade não porque está escrito na Bíblia, mas simplesmente porque é verdade. 0 Cristianismo é a religião natural original. Ele é tão velho quanto o mundo e em sua essência está a base de todas as religiões históricas. 0 misticismo é sempre dirig i d o a o r a c i o n a l i s m o e o

racionalismo periodicamente volta ao misticismo. Os extremos se

tocam e se cumprimentam.

A Igreja cristã sempre tem tentado evitar essas heresias fazendo justiça ao relacionamento existente entre a Palavra e o Espírito. Mas, ao fazer isso, muitas confissões seguem caminhos variados. A igreja Romana, por exemplo, vê nas Sagradas Escrituras e na tradição eclesiástica não um,

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real meio de Graça, mas apenas uma fonte de verdade. A apreensão racional dessa verdade recebe o nome de fé. Mas como essa fé é apenas uma aprovação, ela é inadequada para a salvação e conseqüentemente tem somente uma utilidade preparatória para esse f im. A real Graça salvadora é apresentada, em primeiro lugar, nos sacramentos, e dessa forma Roma reconhece a obra do Espírito Santo acima de todas as coisas na fundação e na manutenção da Igreja em seus ofícios de ensino, orientação e mmistração no altar, e aproxima-se dessa Graça sobrenatural, dessas virtudes e dons dados aos fiéis através dos sacramentos.

Contra essa tentativa de separar a operação salvadora do Espírito Santo da Palavra e relacioná-la aos sacramentos, a Reforma apresentou suas armas. Ela não apenas restaurou a Escritura à sua posição de única, clara e adequada fonte da verdade, in

clusive da tradição, mas também honrou-a como meio de Graça e

restaurou a Palavra ao seu lugar de preeminência em relação

aos sacramentos. A Reforma sentiu-se impelida a refletir mais

claramente a relação existente entre a Palavra e o Espírito. Ela foi

impelida a fazer isso porque de todos os lados as velhas heresias

eram reavivadas e encontravam poderosos defensores. Enquanto

os socinianos retornavam aos ensinos de Ário e de Pelágio,

reconhecendo o Evangelho como uma nova lei e não vendo a

necessidade de uma operação especial do Espírito Santo na

regeneração, os anabatistas tomavam o caminho do misticismo,

glorificando a palavra interna e falando da Escritura como uma

letra morta e como um símbolo vazio.

Foi necessário um grande esforço para reencontrar o caminho correto. As igrejas Luterana e Reformada tomaram caminhos diferentes. Os luteranos uniram a Palavra e o Espírito tão completamente que correram o risco de identificá-los, perdendo a distinção existente entre eles. Eles che-garam ao ponto de confinar a Graça salvadora do Espírito à Palavra, permitindo que Ele a colocasse no coração do homem somente através da Palavra. Como a Escritura veio à existência através do Espírito Santo, esse Espírito deixou um poder residual de con-

versão na Palavra, depositando-o ali como em um vaso. Assim

como o pão tem um poder nutritivo interno, assim também a Es-

critura recebeu do Espírito um poder interno espiritual capaz de

salvar o homem. A Escritura, portanto, não é apenas um poder

para iluminar a mente e moralmente influenciar a vontade, mas

pela influência do Espírito Santo que nela reside, é também um

poder interno, salvador e renovador do coração. E o Espírito sem-

pre age através da Palavra.

As igrejas Reformadas simplesmente não podiam concordar com essa opinião, pois elas partem do princípio de que o finito nunca pode absorver o infinito. A Palavra e o Espírito, portanto, podem estar intimamente relaci-

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onados, mas continuam sendo distintos. 0 Espírito pode agir, e às vezes age, sem a Palavra. Quando o Espírito se une à Palavra, Ele o faz por Sua própria escolha. De acordo com Sua boa vontade, Ele usualmente age em conexão com a Palavra e onde a Palavra é apresentada e pregada, isto é, na esfera da Aliança da Graça, na comunhão da Igreja. Mas, nesse caso, ele vive, não como dizem os luteranos na Sagrada Escritura ou na pregação da Palavra, mas na Igreja como corpo vivo de Cristo. 0 Espírito não age através da Palavra como se ela fosse um veículo de Seu poder. Enquanto com-

bina sua ação com a da Palavra, Ele pessoalmente penetra no co-ração do homem e renova-o para a vida eterna.

Se nós quisermos obter um

conhecimento correto a respeito da

relação entre a Palavra e o Espírito,

devemos partir do fato de que, não

somente no oferecimento de Cristo e de

todos os Seus benefícios, mas também em

todas as Suas obras no mundo, Deus faz

uso da Palavra como um meio de Graça.

Na Sagrada Escritura, a palavra nunca é

um som vazio ou um sinal sem significado,

mas sempre =a realidade de poder e

de vida. Ela tem em si mesma, algo da

personalidade, da alma dAquele que fala

através dela e, portanto, nunca volta vazia,

mas sempre realiza aquilo para o que foi

designada.

Quando Deus fala, tudo se faz (S133.9). Sua palavra não volta vazia, mas faz o que lhe apraz e cumpre tudo para o que foi designada (Is 55.11). Pela Sua palavra, Ele trouxe à existência todas as coisas a partir do nada (Gn 1.3 ss.; SI 33.6), e pela palavra de Seu poder Ele mantém todas as coisas (Hb 1.3). Essa palavra tem poder criativo e sustentador porque Deus fala no Filho (Jo 1.3; Cl 1.15) e através do Espírito (S133.6; SI 104.30). Há uma voz de Deus

em todas as criaturas; todas elas repousam sobre Suas palavras.

Todas elas devem sua existência à palavra de Deus.

Mas os pensamentos de Deus, personificados em Sua palavra, não são entendidos por todas as Suas criaturas, apenas pelas Suas criaturas racionais, somente pelo homem. Por ter sido criado à imagem de Deus, o

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homem também pode pensar e falar, pode tomar conhecimento dos pensamentos de Deus expressos em Sua criação e pode usá-los como sua propriedade espiritual. Quando ele foi criado perfeito pelas mãos do Criador, ele podia entender a linguagem de Deus, que vinha até ele, internamente, na lei moral escrita em seu coração e, externamente, através do comando probatório que foi acrescentado à lei moral. Nesse tempo Deus se relacionava com o homem de uma forma totalmente diferente daquela pela qual Ele se relacionava com Suas outras criaturas. Deus entrou em Aliança com ele, entrou em comunhão com ele e exigiu que ele andasse nos Seus caminhos. A lei moral era o conteúdo da proclamação, a regra e a norma do original relacionamento pactuai entre Deus e o homem.

Mas o homem, através de sua deliberada desobediência, quebrou essa Aliança e privou-se do poder espiritual de cumprir a

lei de Deus e assim alcançar a vida eterna. Mas Deus, por Sua

vez, não se afastou de Sua criação, nem abandonou a raça

humana. Embora possa ser dito dos pagãos, os gentios, que, em

distinção a Israel, Deus os abandonou aos seus próprios

caminhos, Ele continua a revelar-se a eles em Seu poder e não

permite que cesse entre eles o testemunho e determina seu

tempo e os limites de sua habitação, para que eles encontrem o

Senhor se, tateando, puderem encontrá-lo. Há, portanto, uma

linguagem de Deus que continua a ser dirigida a cada um. Os

confessores da fé Reformada sempre reconheceram esse fato ao

falar de uma "chamada material", que pode ser encontrada

fora do âmbito do mundo cristão, e que é um privilégio de todos

os homens e de todas as nações. Os gentios não desfrutam da

vocação através da palavra do Evangelho, mas isso não significa

que eles não recebam qualquer tipo de vocação. Deus fala a eles

também, na natureza (Rm 1.20), na história (At 17.26), na razão

(Jo 1.9) e através da consciência (Rm 2.14,15). De fato, essa

vocação é inadequada para a salvação, pois ela não fala de Cristo,

que é o único caminho para o Pai e o único nome debaixo dos

céus pelo qual importa que sejamos salvos (Jo 14.6; At 4.12),

mas ela é de grande valor e sua importância não pode ser

desconsiderada.Além disso, essa vocação que Deus faz a todos os homens em Sua

Graça comum, não pode ser uma proclamação do Evangelho, mas é certamente uma pregação da lei. Apesar de o homem, devido à escuridão de seu entendimento, equivocadamente interpretar e aplicar a lei, essa lei é a mesma lei moral, material e essencialmente, dada por Deus ao homem e escrita em seu coração. Essa vocação, portanto, apesar de agora estar corrompida, ainda contém a exigência de que o homem deve amar a Deus

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sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. De fato, os gentios não possuem a lei no sentido em que ela foi dada a Israel, mas eles fazem o que a lei exige. Em todos os seus pensamentos e atos eles são guiados pelas regras da lei moral e assim eles provam que as exigências da lei foram escritas em seu coração, e que eles se sentem limitados por ela em sua consciência (Rm 2.14,15).

0 compromisso entre Deus e o homem, portanto, a despeito do pecado, não foi inteiramente desfeito. Deus não abandonou o homem a si mesmo e o homem não pode escapar de Deus. Em vez disso ele permanece dentro do âmbito da revelação de Deus e sob as exigências de Sua lei. Deus continua a falar ao homem, na natureza e na história, na razão e

na consciência, em bênçãos e em julgamento, na condução da vida e nas experiências da alma. Através dessa rica e poderosa linguagem, Deus mantém no homem a consciência de sua responsabili-dade. Ele faz com que o homem se esforce para ter uma vida moral e religiosa e acusa-o e condena-o, através de sua própria consciência, depois de sua transgressão. Não é uma coação externa, mas uma obrigação moral interna que une o homem a Deus e a Sua revelação. É o testemunho do Espírito de Deus no homem caído que ainda pode ser ouvido em uma admoestação ao bem. Na medida em que há uma voz geral de Deus e uma iluminação geral pelo Verbo (Logos) no homem, existe também nele uma operação do Espírito de Deus. Através desse Espírito, Deus habita em todas as criaturas e através dele nós vivemos, e nos movemos e existimos (At 17.28). A vocação material geral não é somente externa e objetiva através da história e da natureza, razão e consciência e proclama a revelação de Deus e especificamente Sua lei ao ho-mem, mas possui também um lado interno e subjetivo no qual ela moralmente obriga cada pessoa a essa revelação, e em sua própria convicção faz com que a pessoa se preocupe em obedecer à lei de Deus.

É verdade que Deus não re-

nova e não salva o homem através da proclamação da lei, pois a lei está enferma pela carne (Roa 8.3). Mas através dela Deus refreia o pecado, restringe as paixões e a nuvem de iniquidade. A sociedade humana e a justiça cívica só são possíveis através dela,

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e ela abre caminho para uma civilização mais elevada, uma cultura mais rica e um florescimento das artes e da ciência. De fato, a terra está cheia da bondade de Deus. 0 Senhor é bom para com todos e as Suas misericórdias estão sobre todas as Suas obras. Ele faz com que o sol brilhe sobre maus e bons e faz com que a chuva caia sobre justos e injustos. Ele não se deixou ficar sem testemunho de si mesmo, fazendo o bem, dando do céu chuvas e estações frutíferas, enchendo o coração dos homens de fartura e de alegria"'.

Essa vocação geral, proveniente desse

testemunho geral ou linguagem de Deus

que vem até nós na natureza e na

consciência, deve ser diferenciada

daquela que está contida na proclamação

do Evangelho e que é dirigida a todos

aqueles que vivem fora dos limites da

Cristandade. Contudo, a vocação geral não

é substituída nem obliterada pela voca

ção especial, mas é absorvida e fortalecida por ela. Isso é prova-

do pelo fato de que a Sagrada Escritura reconhece a revelação ge-

ral na natureza e na história, confirma-a e purifica-a de toda con-

taminação. Os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento

anuncia as obras das Suas mãos (S119.1). Os atributos invisíveis de

Deus, assim como o Seu eterno poder e também a Sua própria di-

vindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mun-

do, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas

(Rm 1.20), e a norma da lei está gravada no coração dos

homens " 2.15) - tudo isso é entendido muito melhor pelo

cristão, que é ensinado pela Escritura, do que por aqueles que se

deixam guiar somente pela luz da razão.

A mais forte evidência da relevância da revelação geral é o fato de que a lei moral, que era conhecida pelos gentios somente de forma imperfeita e impura, foi pura e perfeitamente proclamada por Deus no Sinai e foi dada ao Seu povo, Israel, como uma norma de vida. Quando Cristo veio à terra, Ele não descartou essa lei, mas

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cumpriu-a (Mt 5.17), antes de tudo em sua pessoa e em sua vida, e posteriormente também na vida de todos aqueles que seguem os Seus passos e andam no

Espírito"'. Seguindo esse exemplo, a Igreja cristã, em sua confis-

são, pregação e ensino dá lugar à lei, assim como o dá ao Evange-

lho. A Lei e o Evangelho são as duas partes que compõem a Pa-

lavra de Deus. Os dois são diferentes um do outro, mas nunca

são separados um do outro. Eles caminham juntos através

cíaEscritura, desde o começo até o fim da revelação. A diferença

entre a Lei e o Evangelho não é a mesma que há entre o Velho e o

Novo Testamento. A diferença entre a Lei e o Evangelho é

identificada com a diferença entre o Velho e o Novo Testamento

por todos aqueles que vêem na Lei um Evangelho imperfeito e

vêem no Evangelho um aperfeiçoamento da Lei. Porém, essas

duas distinções diferem muito uma da outra e essa diferença

deve ser mantida com muito cuidado. Velho e Novo Testamento

são os dois nomes dados às duas dispensações da mesma Aliança

da Graça e, portanto, de dois grupos de livros da Bíblia que

correspondem a essas dispensações. Mas a distinção entre a

Lei e o Evangelho está em um plano muito diferente. Esses termos

designam, não duas disperísações; da mesma Aliança, mas

alianças inteiramente diferentes. A Lei pertence à assim chamada

Aliança das Obras, que foi

firmada com o primeiro homeme que prometia a vida eterna mediante a perfeita obediência. Maso Evangelho é a proclamação da Aliança da Graça, que foi apresentada pela primeira vez depois da queda do homem, e que promete vida eterna pela Graça, através da fé em Cristo.

Contudo, a Aliança da Graça não é a substituição nem a aniquilação da Aliança das Obras, mas o seu cumprimento. A prin-cipal diferença entre as duas é que, em vez de nós, é Cristo quem cumpre as exigências que Deus, em razão da Aliança das Obras, colocou sobre nós. Portanto, a Aliança da Graça, apesar de em si mesma ser pura Graça, pode desde o princípio

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colocar a Lei da Aliança das Obras a seu serviço, unir-se a essa Lei, e, pelo Espírito de Cristo, cumpri-Ia nos crentes. A Lei tem seu lugar na Aliança da Graça, não para que, através da Lei, os crentes tentem entrar na vida eterna, pois a Lei não pode dar acesso à vida eterna devido à fraqueza da carne, mas para que, em primeiro lugar, através dela, nós possamos conhecer nosso pecado, nossa culpa, nossa miséria

e nossa desespero, e, movidos pela nossa consciência de culpa, procuremos refúgio na Graça de Deus em Cristo (Rm 7.7, G13.24), e, em segundo lugar, para que

nós, tendo morrido e ressuscitado com Cristo, andemos em no-

vidade de vida e assim cumpramos a justiça da Lei (Rrn 6.4; 8.4).

Dessa forma, não há lugar no Cristianismo para o antinomismo, não há lugar para o desprezo, nem para a violação da Lei. Assim como nas Escrituras, a Lei e o Evangelho devem caminhar juntos também na pregação, na doutrina e na vida. Ambos são constituintes reais e indispensáveis da completa obra de Deus. Identificar esses dois elementos é tão prejudicial quanto separá-los. 0 nomismo, que faz do Evangelho uma nova lei, não erra menos que o antinomismo. A Lei e o Evangelho diferem entre si não em grau, mas em espécie. Eles diferem como a exigência e a dádiva, como o mandamento e a promessa. É verdade que tanto a Lei quanto o Evangelho compreendem a vontade de Deus que é santa, sábia, boa e espiritual101, mas a Lei tornou-se impotente em razão do pecado, e por isso não pode justificar, mas agravar o pecado, provocando ira, ruína e morte'". E contra tudo isso está o Evangelho, que tem Cristo como seu conteúdo (Rrn 13; Ef 3.6) e que traz Graça, reconciliação, perdão, paz e vida eterna35. 0 que a Lei exige de nós, nos é dado gra

tuitamente no Evangelho.

Se a Lei e o Evangelho são distintos, dessa forma,

segue-se que a vocação geral, que na natureza e na

consciência vem até o homem, e a vocação especial,

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que alcança todos aqueles que vivem dentro dos

limites da Cristandade, não diferem em grau, mas em

espécie. A diferença não consiste no fato de que o

Cristianismo nos oferece uma lei melhor e mais perfeita

do que aquela que é conhecida pelo gentios, mas que

proclama algo novo, a saber, o Evangelho, e que esse

Evangelho nos apresenta Cristo. Não somente na lei,

mas especialmente no Evangelho da Graça de Deus

está a distinção entre o paganismo e o cristianismo,

entre a revelação geral e a revelação especial, entre a

vocação que vem a todos os homens e a vocação que é

desfrutada somente pelos cristãos. A vocação geral,

que é dirigida a todos os homens, não é apresentada

na forma de uma literal, clara e inconfundível Palavra

de Deus, mas está contida, de uma forma um tanto

confusa, na revelação que Deus dá também aos

gentios, nas obras de Suas mãos e na própria razão e

consciência deles, e é algo que deve ser deduzido de tudo

isso através de investigação e reflexão. Mas, no momento em que

os gentios tentam investigar e refletir, eles caem em erro, tanto

no campo da religião, quanto no da moralidade. Fora do âmbito da

revelação especial, os homens, apesar de terem conhecimento de

Deus, não o glorificam como Deus, nem lhe dão graças, antes,

tornam-se nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-lhes

o coração insensato e caem em todos os tipos de idolatria e de

imoralidade (Rm 1.21 ss.).

Portanto, a revelação na natureza e a vocação na razão e na consciência provaram ser inadequadas. Por outro lado, na revelação especial, Deus não nos fala através da natureza das criaturas, mas faz uso de uma Palavra única e literal, que é usada pelo homem como a mais elevada e a melhor expressão dos pensamentos de Deus. Esse uso da Palavra na revelação especial foi necessário também por um outro motivo. A natureza, seja dentro ou fora do homem, permanece sempre a mesma. Os céus continuam proclamando a glória de Deus, assim como o fizeram há centenas ou milhares de anos. E a despeito de toda a sua civilização e desenvolvimento, o homem, em sua essência e em sua natureza, em seu

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coração e em sua consciência, é exatamente semelhante aos seus an^

cestrais mais remotos.Mas, a revelação especial não está incluída na ordem da natureza. Ela

veio à existência através de um processo histórico que durou vários séculos e tem seu ponto central na pessoa histórica de Cristo. A natureza não pode nos salvar; somente uma pessoa pode nos salvar. Mas, de acordo com o plano de Deus, nós nunca poderíamos esperar o que quer que fosse a respeito de eventos e pessoas, que, como nós sabemos, não são permanentes como a natureza, mas vêm e vão, aparecem e desaparecem, a não ser através da palavra, seja a palavra falada ou a palavra escrita, seja através do registro de letras ou de quaisquer outros sinais. A partir desse caráter particular e histórico da revelação, segue-se que deve ser feito uso da palavra para que ela seja conhecida de geração a geração, de lugar a lugar. A vocação geral vem até nós através da natureza e a vocação especial vem até nós através da palavra. A vocação geral tem a lei como seu conteúdo e a vocação especial tem o Evangelho como seu conteúdo.

0 Evangelho começa seu curso ainda no paraíso. Deus pri-meiramente revelou-o ali, e depois proclamou-o aos patriarcas e aos profetas e representou-o pelos sacrifícios e outras cerimônias da lei, e finalmente cumpriu-

o através de Seu Filho unigênito. Mas isso não é tudo. Deus tam-bém deu a palavra do Evangelho escrituralmente registrada nos li-vros do Velho e do Novo Testamento, e mais tarde confiou-a à Igreja para que esse registro fosse preservado, proclamado, interpretado, defendido e disseminado, para que se tornasse conhecido por todas as criaturas.

No mesmo dia em que a Igreja de Cristo recebeu sua missão e começou a executá-la, o Espírito Santo foi derramado. E no mesmo dia em que o Espírito Santo fez da Igreja a Sua morada, a Igreja, como uma comunidade independente de crentes, e como a portadora da palavra do Evangelho, e como o pilar da verdade, teve seu começo. Apesar de a Pa-lavra e o Espírito terem sido unidos antes disso de uma forma preparatória, no dia de Pentecoste eles foram plena e definitivamente unidos. Eles trabalham juntos a serviço de Cristo, que é o Rei da Igreja e o Senhor do Espírito, e que é retratado para nós na Palavra, e que nos é dado como nossa porção através do Espírito. A Verdade e a Graça caminham juntas porque Cristo é o cumprimento de ambas ao 1.14).

A vocação feita através da Palavra

transcende muito a voca

ção feita através da natureza, pois, enquanto a segunda permite

que o homem ouça apenas a voz da lei e coloca diante dele a

exigência: "Faça isso e viverá", a vocação através da Palavra

procede de Cristo, tem a Graça de Deus como seu conteúdo, e

oferece gratuitamente ao homem o mais desejável de todos os

benefícios, a saber, o perdão de pecados e a vida eterna através

da fé e do arrependimento. Se alguém atentar somente para o

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conteúdo dessa revelação, essa pessoa pode, por um momento,

alimentar a esperança de que todos os homens, ao ouvi-Ia,

imediatamente a receberiam com alegria de coração, pois, que

objeção um ser humano pecador e corrupto pode levantar ao

Evangelho que lhe assegura a Graça de Deus e que quer dar-lhe

perfeita salvação sem qualquer esforço de sua parte, exceto

aceitá-la com fé infantil?

No entanto, a realidade nos ensina algo muito diferente. Através dos séculos tem existido uma separação entre aqueles que servem ao Senhor e aqueles que não o servem. Na família de Adão, Abel e Cami tomaram caminhos opostos. A raça humana, antes do dilúvio, era dividida entre a li -nhagem de Sete e a linhagem de Caim. Depois do dilúvio essa separação continuou existindo entre a linhagem de Sem e a de seus irmãos. As famílias dos patriarcas

viram essa separação perpetuar-se em Isaque e Ismael, em Jacó

e Esaú, e posteriormente em Israel e nas outras nações. Até

mesmo o povo da Aliança não eram todos aqueles que fisicamente

descendiam de Abraão, mas os filhos da promessa (Rm 9.6-8). E

nos dias do Novo Testamento nós somos confrontados pelo

mesmo fato. Muitos são chamados, mas poucos são escolhidos

(Mt 22.14). Não somente há um claro contraste entre a Igreja e o

mundo, mas na própria Igreja lia muitos que ouvem a Palavra mas

não a colocam em prática (Tg 1.22). Há e continuará havendo o

bem e o mal, o justo e o injusto. Há uma diferença em categoria e

em status, em dons e em força, em riqueza e em honra, mas há

também uma diferença mais profunda, uma diferença de caráter

religioso e moral.

Esse fato é tão manifesto e tem um caráter tão sério que deveria ser reconhecido por todos. Mas sempre tem havido aqueles que têm tentado explicar essa diferença moral da mesma forma que têm tentado explicar outras diferenças entre os homens, ou seja, com base no livre arbítrio. Eles afirmam que a vontade do homem, a despeito do pecado, continua sendo livre e é capaz de realizar o que é bom. Ou então eles afirmam que a vontade humana, embora tenha sido um pouco enfraquecida pelo pecado, atra-

vês da iluminação geral do Verbo (o Logos – jo 1.19) ou através

da Graça do Espírito Santo, concedida antes do batismo ou mesmo

no próprio momento do batismo, é suficientemente fortalecida

para responder à chamada do Evangelho.

Essa explicação é absolutamente inaceitável, pois, não se encaixa no ensino da Escritura. De acordo com essas pessoas, não é Deus quem faz

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distinção entre uma pessoa e outra, mas as próprias pessoas fazem essa diferença. Mas Deus é Deus e Seu conselho governa todas as Suas criaturas, Ele é o Criador dos céus e da terra e por Sua providência Ele sustenta todas as Suas criaturas. É irrazoável supor que Ele pudesse governar todas as criaturas, todos os pequenos detalhes de todas as coisas e que tenha excluído de Seu conselho o maior de todos os eventos e tivesse deixado a cargo do homem a decisão sobre sua vida eterna. Onde quer que esse pensamento seja defendido, a idéia de um conselho e de uma providência de Deus são destruidos, toda a história do mundo é afastada das mãos de Deus e o futuro é transformado em algo totalmente imprevisível, pois fica desprovido de seu fim e de seu propósito. Além disso, é atribuída a Deus uma atitude passiva e inativa, que entra em conflito tanto com Seu Ser quanto com

Suas obras.Essa distinção espiritual entre os homens, embora seja a mais

importante, não é a única. Há todos os tipos de diferenças e variedades entre as criaturas, especialmente entre as que são dotadas de razão. Os homens diferem entre si em categoria e status, em sexo e em idade, em capacitação mental e em força física. Eles também diferem porque nos nascem dentro dos limites da cristandade, enquanto outros nascem fora desses limites, e diferem também porque uns podem ouvir a voz do Evangelho e outros não. Essas diferenças não podem ser explicadas com base nas decisões ou atitudes dos homens, pois, elas precedem tais decisões e disposições e em maior ou menor grau influenciam ou afetam as decisões humanas. Contudo, se alguém não concorda que a vontade de Deus seja a força determinativa dessas diferenças e procura pela solução para essa questão nas diferentes atitudes dos homens, essa pessoa deve procurar refúgio em pressuposições insustentáveis. Os luteranos, por exemplo, não querem reconhecer a disposição soberana de Deus no fato de que uma pessoa nasce sob a luz do Evangelho e outra não e afirmam que a vocação da Palavra veio a todos os homens no tempo de Adão, de Noé e dos apóstolos (eles recorrem especialmente a

Romanos 10.18 e Colossenses 1.23), e que essa vocação foi

perdida somente por causa de nossa própria falta. Desse mesmo

tipo é o pensamento de Orígenes, segundo o qual

originalmente todas as almas foram criadas semelhantes umas

às outras e ao mesmo tempo, e que, de acordo com a conduta

variável de cada uma delas em sua preexistência elas receberam

diferentes corpos como sua porção na terra.

Todas essas pressuposições aumentam a dificuldade do problema e ernnada contribuem para sua solução. Também com respeito a esse assunto, não há descanso para o homem até que ele aprenda a descansar no coração paterno de Deus e reconheça as grandes desigualdades existentes entre as criaturas como tendo sua origem no soberano e insondável conselho de Deus. As diferentes dispensações das vocações geral e especial não estão fundamentadas na superioridade que uma pessoa tem sobre outra, nem em um melhor ou pior uso da natu-reza, mas no soberano beneplácito e no imerecido amor de Deus (Cânones de Dort, III.iv.7). E o mesmo vale para a desigualdade espiritual existente entre aqueles que ouvem a voz do Evangelho com um coração crente e

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aqueles que desprezam o Evangelho e procuram seguir seu próprio ca-minho. Não é o homem, mas

Deus, quem faz essa distinção. Até mesmo a vocação que Ele faz a um e a outro é diferente. E na vocação pela palavra a Escritura faz a diferença entre uma vocação externa e uma vocação interna.

Mas, antes de mostrar o fundamento

no qual essas distinções estão baseadas,

nós devemos reforçar o fato de que não é

possível compreender corretamente

esse fundamento se nós privarmos a

assim chamada vocação externa de sua

força e de seu mérito.

Em primeiro lugar deve ser declarado

que essa vocação, da parte de Deus, é

séria e bem intencionada. Todos os que

são chamados pelo Evangelho são cha-

mados com seriedade. Deus sincera e

seriamente diz em Sua Palavra que se

agrada quando os chamados vão até Ele. E

Ele seriamente promete que aqueles que

vão até Ele encontrarão descanso para sua

alma (Cânones de Dort, III.iv.8). Aqueles

que aceitam a distinção entre a vocação

externa e a vocação interna atribuem à pri-

meira o mesmo poder e importância que,

de acordo com os oponentes dessa

distinção, estão acumulados em toda a

vocação. Através dessa distinção eles não

colocam a raça humana em uma condição

menos favorável do que aquela

Page 397: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

em que, segundo seus oponentes, a humanidade está inserida,

pois, a palavra do Evangelho, pela qual a vocação externa vem até

eles, não é letra morta, mas o poder de Deus para a salvação

de todo aquele que crê (Rm 1.16), e é viva

e eficaz, mais cortante do que espada de dois gumes (Hb 4.12), eo meio de regeneração (IPe 1.23). Essa é a mesma palavra da qual Deus faz uso na vocação interna,e em si mesma ela não está isolada da influência do Espírito Santo, pois o Espírito Santo não apenas testifica no coração dos crentes que eles são filhos de Deus (Rm 8.16), mas também penetra na consciência deles e convence-os do pecado, da justiça e do juizo. Calvino estava certo quando falou de uma operação interior do Espírito em relação com a vocação externa.

Em segundo lugar, a rejeição da vocação externa nunca fica impune. Aqueles que desprezam o Evangelho não podem justificar sua atitude apelando para sua fraqueza, pois, eles não rejeitam o Evangelho por serem fracos ou incapazes. Se eles realmente se sentissem fracos e incapazes, apelariam à Graça de Deus para que fossem salvos. Mas eles rejeitam

o Evangelho porque se sentem fortes, e acham que podem, por si mesmos, alcançar a salvação e querem ser salvos sem depender da Graça de Deus. Esses ouvem a

chamada do Evangelho e não se arrependem, não por causa de al-

gum defeito do Evangelho, nem do Cristo que lhes; é oferecido no

Evangelho, nem do Deus que os chama através do Evangelho e que

concede muitas bênçãos àqueles aos quais Ele chama. 0 defeito

está naqueles que foram chamados, que, sendo indiferentes ao

Evangelho, não aceitam a palavra da vida. Outros chegam até a

aceitá-la, mas não na maior profundidade de seu coração e, por-

tanto, depois de desfrutar de uma fé temporária, caem

novamente. Outros sufocam a palavra com os espinhos dos

cuidados e dos prazeres do mundo e por isso não frutificam. Esse é

o ensino do Salvador na parábola do semeador (Cânones; de Dort,

IlLiv.9).

Em terceiro lugar, essa vocação externa não é infrutífera. Em geral, pode ser dito que Deus alcança Seu propósito através dela, pois, a palavra de Sua vocação externa não volta vazia, mas faz o que lhe apraz e prospera naquilo para o que foi designada (Is 55.11). Através dela Ele afirma Seu direito sobre toda criatura e honra Seu próprio nome. Entre os pagãos há uma grande diferença entre as formas pelas quais eles reagem à vocação da natureza. Sócrates e Platão não podem ser mencionados como pessoas que tenham reagido de forma semelhante a Calígula e Nero. Mas não é isso o

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que acontece quando o Evangelho é ridicularizado e blasfemado,

por um lado, ou aceito com uma fé histórica, temporária, por

outro. De fato, entre esses dois tipos de fé e a fé salvadora do

coração há uma diferença essencial. Mas esses dois tipos de

crença não são iguais a uma descrença total. Pelo contrário, eles

são frutos da Graça comum e carregam consigo muitas bênçãos

temporais. Elas conservam os homens sob a obrigação à

verdade, impedem que eles cometam muitos pecados terríveis,

faz com que eles tenham uma vida modesta e respeitável e

contribuem ricamente para a formação de uma sociedade cristã

que para a vida da humanidade e para a influência da Igreja, é

de grande importância.

Além disso, deve ser observado que essa vocação externa geralmente serve, nas mãos de Deus, como um meio para a preparação da obra da Graça no coração daqueles que lhe pertencem. Não há uma Graça prevemente no sentido de que a vocação externa gradualmente se transforme na vocação interna, ou no sentido de que o homem natural se desenvolva até se transformar em um filho de Deus. Assim como na natureza, na Graça não ocorre uma transição gradual da morte para a vida, ou das trevas para a luz. Mas háuma Craçapreparatória ou preveniente no sen-

tido de que Deus, que é o Realizador de toda Graça, é também o Criador da natureza e fixa um limite de conexão entre elas e sem-pre conserva esse limite. No cumprimento do conselho de redenção, Ele segue a linha que Ele mesmo traçou na obra de criação e de providência. Assim como em Zaqueu Ele colocou o desejo de ver Jesus (Lc 19.3) e assim como Ele trouxe sensibilidade à multidão para que ela ouvisse Pedro (At 2.37), assim também Ele cuida e governa aqueles que lhe pertencem, de tal forma, que eles são preparados para a hora na qual Ele glorificará Sua Graça neles, e Ele mesmo os conduz através de Sua mão poderosa para esse momento.

Todavia, independente do real poder e mérito dessa

vocação externa, ela não é suficiente para mudar o

coração do homem e efetivamente movê-lo à aceitação

do Evangelho. Essa insuficiência da vocação externa

deve ser entendida adequadamente. 0 Evangelho que

essa vocação proclama não é um Evangelho

inadequado, pois, ele contém todo o conselho de re-

denção, exibe Cristo diante dos nossos olhos e em todos

os Seus benefícios, e não requer qualquer tipo de

Page 399: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

amplificação de seu conteúdo. Esse Evangelho também não é

letra morta que deva ser avivada pelo Espírito, nem um som

vazio ou um símbolo inútil que não possui qualquer ponto de

contato com a realidade. Observe que, apesar de Paulo dizer que

o servo é nada (ICo 3.7) porque ele pode ser substituído por outro,

ou pode ser simplesmente ignorado, ele não diz isso a respeito do

Evangelho. Pelo contrário, ele diz que o Evangelho é o poder de

Deus para a salvação (Rm 1.16; lCo 15.2), não é palavra de ho-

mens, mas palavra de Deus, viva e poderosa", e em certo sentido

sempre realiza sua obra, pois ela é aroma de vida para a vida

e cheiro de morte para amorte (2Co 2.16). Cristo, que é o

conteúdo do Evangelho, não nos deixa em um estado neutro: Ele

traz uma crise, um julgamento, uma divisão no mundo (Jo 3.19;

9.39), e por Sua palavra, que penetra o mais íntimo do ser

humano, Ele revela as inclinações e pensamentos do coração (Lc

2.35; Hb 4.12). Ele se torna uma rocha de ofensa para aqueles

que o desprezam corno rocha de refúgio, torna-se tolice para

aqueles que o rejeitam corno sabedoria, e condena à morte

aqueles dos quais Ele não é a ressurreição"'.

Essa dupla operação da pa-lavra do Evangelho prova somente que a diferença existente entre

aqueles que aceitam e aqueles que rejeitam o Evangelho

não pode ser considerada em termos somente da palavra, e,

portanto, em termos da vocação externa. De fato a palavra do

Evangelho, independente de por quem e a quem ela é

levada, é sempre a palavra viva e poderosa de Deus.

Mas a expressão Palavra de Deusnão tem sempre o mesmo significado nas Escrituras. Algumas ve-

zes, ela significa o poder de Deus pelo qual Ele cria e mantém o

mundo'. Em outras ocasiões, ela é o nome da revelação especial,

através da qual Deus se fez conhecido aos profetas (jr 1.2,4; 2.1).

Essa expressão é usada várias vezes para designar o conteúdo

ou o significado da revelação, sem levar em conta se a referência

é à lei ou ao Evangelho (Ex 201; Lc 5.1). Nesse último caso, a

palavra continua sendo a palavra de Deus, mas não a palavra

direta e imediatamente falada por Deus, como é o caso da

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palavra da criação. Essa palavra recebe uma roupagem de

palavra humana, pode ser falada e escrita pelos seres humanos, e

tem, portanto, existência independente. Nesse sentido ela

continua sendo, em termos de seu conteúdo, uma palavra viva e

poderosa, mas também possui as

características das palavras humanas e, como tal, pode exercer

somente uma influência moral. Essa influência moral não deve ser

subestimada. Ela é muito mais forte que uma simples instrução

racional, pois a palavra do Evangelho não é apenas a fonte do

nosso conhecimento sobre Deus e sobre os assuntos divinos, mas

é também um meio de Graça.

Mas essa operação racional e religiosa-moral do Evangelho não é o bastante. Ela seria o bastante se o homem não tivesse caído ou, se na queda, ele não tivesse perdido sua liberdade espiritual. Mas a Escritura nos ensina, e a vida nos dá testemunho a cada dia, que a mente do homem está obscurecida (Ef 4.18; 5.8), que sua vontade é escrava do pecado (Jo 8.34; Rm 6.20) e que ele está morto em seus delitos e pecados (Ef 2.1,2). Portanto, ele não pode ver o reino de Deus (Jo 3.3), não pode compreender nem aceitar as coisas do Espírito de Deus (ICo 2.14), não pode cumprir a lei de Deus (Rm 8.7) e, por si mesmo não pode querer nem realizar o que é bom (Jo 153; 2Co 3.5). 0 Evangelho é destinado ao homem, mas não segundo o homem, isto é, não segundo seus desejos e pensamentos (CI 1.11). Isso acontece porque o homem, quando é deixado aos seus próprios caminhos, rejeita e

se opõe ao Evangelho.Mas nisso consiste a riqueza da Graça de Deus, pois Ele, in-

dependente de tudo isso, acrescenta a operação do Espírito à vocação da palavra e dessa forma alcança todos aqueles que Ele escolheu para a vida eterna. No Velho Testamento, o Espirito já agia como o Realizador e o Orientador da vida espiritual (SI 51.12; 143.10). Mas Ele é especialmente prometido como Aquele que, nos dias do Novo Testamento, ensinaria todos os homens, que lhes; daria um novo coração e que es-creveria a lei do Senhor sobre eless". Para esse fim ele foi derramado no dia de Pentecostes. Junto com os apóstolos e através deles, Ele deu testemunho de Cristo e passou a morar na Igreja para regenerá-la (Jo 3.5), para trazê-la à confissão de que Jesus Cristo é o Senhor (lCo 12.3), para

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conforta-Ia e conduzi-Ia e para permanecer com ela eternamente"". E, agindo na Igreja, o Espírito penetrou no mundo e convenceu-o do pecado, da justiça e do juizo (lo 16.8-11).

Não apenas objetivamente, mas também subjetivamente, a obra de redenção é uma obra de Deus, e somente de Deus. Não depende de quem quer, nem de quem corre, mas de usar Deus a

Sua misericórdia (Rm 9.16). Há =a vocação externa que vem a

muitos (Mt 22.14), mas há uma efetiva vocação interna que é de-

corrente da eleição (Rra 8.28-30). Deus não somente dá o

Evangelho, mas Ele também prega esse Evangelho no poder do

Espírito Santo (ICo 2.4; lTs 13,6) e Ele mesmo dá o crescimento

(lCo 16- 9). Ele abre o coração (Aí 16.14), ilumina a mente (Ef

1.18; Cl 19- 11), inclina a vontade (Aí 9.6) e executa em nós tanto

o querer quanto o realizar, segundo a Sua boa vontade (Fp 2.13).

0 fato de que aqueles que são assim chamados também vêm a Cristo e são convertidos não deve ser creditado ao mérito humano, como pensam aqueles que crêem que, por sua livre vontade, seriam capazes de diferenciar-se dos demais. Essa obra deve ser inteiramente atribuída a Deus, que elegeu aqueles que são Seus em Cristo desde a eternidade, e que no tempo, poderosa e eficazmente, chamou-os, deu-lhes a fé e o arrependimento, e, tendo-os libertado do poder das trevas, conduze-os para o reino de Seu Filho, para que eles declarem as virtudes daquele que os chamou das trevas para a Sua maravilhosa luz, e para que eles se gloriem, não em si mesmos, mas no Se-

nhor, como os escritos apostólicos c o n s t a n t e m e n t e e n s i n a m (Cânones de Dort, III.iv.10).

A natureza dessa vocação interna nos

é indicada de várias formas nas Escrituras.

É verdade que esse termo não é

encontrado nelas, mas a realidade que ele

expressa é encontrada muitas vezes. Até

mesmo a natureza nos dá =a pista do que

está acontecendo na esfera da Graça. A

criação lança luz sobre a redenção, assim

como a redenção lança luz sobre a criação.

Jesus explicou a natureza, as

características e as leis do reino dos céus

em parábolas baseadas na natureza e na

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vida cotidiana. Especialmente na parábola

do semeador, Ele demonstrou os diferentes

efeitos da palavra do Evangelho no coração

dos homens.

Na esfera natural é válida a lei,

segundo a qual diz que, para que

tenhamos consciência ou conhecimento a

respeito de alguma coisa, é necessário que

haja um relacionamento definido entre o

homem e o objeto que ele quer vir a

conhecer. Nesse relacionamento é

necessário que a pessoa disponha do seu

objeto de estudo, que tenha os olhos

abertos e que haja luz. Se essa pessoa

quiser ouvir o seu objeto, ela necessita

também das ondas sonoras e dos sons e

deve estar atenta para ou-

vir esses sons. E se uma pessoa quiser entender os objetos com seus órgãos sensoriais, ela necessita de um coração. Nós devemos nos relacionar com aquilo que vemos para que possamos absorvê-lo e nos apropriarmos dele como nossa propriedade espiritual. 0 cego não pode ver e o surdo não pode ouvir e por isso são indiferentes ao entendimento que se pode alcançar através da visão e da audição. Uma pessoa musicalmente insensível não pode compreender o mundo dos tons, e uma pessoa esteticamente insensível não pode se deliciar com uma poesia ou com uma pin-tura. Uma relação tem que estar presente, um vínculo de harmonia entre o homem e o mondo tem que ser estabelecido se nós quisermos

obter algum conhecimento sobre ele.

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Na esfera natural esse relacionamento tem, falando de forma geral, se mantido em força. De fato, o pecado tem deixado sua marca também nessa área, de forma que o cego, o surdo, os insanos e outros desafortunados possuem uma relação muito limitada com o mundo e todas as pessoas possuem essa relação mais ou menos enfraquecida ou desvirtuada. Mas em geral, pode ser dito que na esfera natural Deus tem permitido que esse relacionamento continue. 0 homem ainda pode ver e ouvir, perceber e pensar, apren-

der e conhecer.Mas, na esfera espiritual, esse relacionamento foi completamente

rompido pelo pecado. Os pensamentos do coração humano são maus desde a sua mocidade (Gn 8.21). 0 boi conhece o seu possuidor e o jumento, o dono da sua manjedoura, mas Israel não tem conhecimento, o meu povo não entende (Is 1.3). A geração dos homens é semelhante a meninos que, sentados nas praças, gritam aos seus companheiros: Nós vos tocamos flautas e não dançastes, entoamos lamentações e não pranteastes (Mt 11.16,17). Esse povo não tem olhos para ver, nem ouvidos para ouvir, nem coração para compreender (Is 6.9; Mt 13.14,15). Nem mesmo quando Deus se revelou a eles na natureza eles puderam entendê-lo e dar-lhe graças (Rm 1.21), e quando Deus se revelou a eles no Evangelho, eles não entenderam as realidades do Espírito de Deus, ofenderam-se com a cruz e repudiaram-na veementemente 311

Pela natureza, o homem está morto para Deus, para Sua

revelação, enfim, para todas as realidades espirituais e celestiais.

Ele é indiferente a elas, não se interessa por elas, pensa somente

nas coisas que são aqui de baixo e não sente prazer em conhecer

os caminhos do Senhor. A relação entre Deus e

o homem foi rompida. Não há mais comunhão espiritual nem

unidade entre eles.

Portanto, a vocação interna consiste geralmente no fato de que ela restaura o vínculo de relacionamento entre Deus e o homem, de forma que o homem possa ouvir a palavra de Deus e entendê-la. A Escritura chama essa influência do Espírito Santo na vocação interna pelo nome de re-velação. Quando Pedro, em Cesaréia de Filipos, confessa Jesus como o Cristo, o Filho do Deus vivo, o Salvador lhe diz: "Bem aventurado és, Simão Barjonas, porque não foi carne e sangue que to revelaram, mas meu Pai, que está nos céus" (Mt 16.17), e da mesma forma o apóstolo Paulo diz que, em sua conversão, aprouve a Deus revelar Seu Filho nele (G11.16). Essa revelação não se refere à aparição objetiva de Cristo, pois, quando Pedro confessou-o como o Cristo, o Salvador já tinha vivido e trabalhado na terra por vários anos, já tinha mais de uma vez se apresentado como o Messias (Mt 11.5ss.) e tinha sido reconhecido como tal

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por outras pessoas (Mt 8.29; 14.33). Mas Jesus nunca tinha sido tão cla-ramente confessado como sendo o Messias, o Filho de Deus, e portanto Ele diz que uma revelação subjetiva no coração e na mente

de Pedro era a única coisa que poderia conduzi-lo a uma confissão

como essa. Deus iluminou o apóstolo internamente, de tal forma,

que agora ele viu em Cristo o que antes ele nunca tinha visto de

forma tão clara.

A revelação a que esse contexto se refere consiste, em outras palavras, de uma iluminação interna. Na esfera natural, nossos olhos são iluminados pela luz do sol, e por sua vez eles iluminam todo o corpo, assim como a candeia ilumina a casa (Mt 6.23). A mente e a razão do homem são iluminadas pelo Verbo que estava com Deus, que fez todas as coisas e que era a luz dos homens, e que ainda ilumina todo homem que vem ao mundo (Jo 1.1-9). E por causa dessa iluminação da mente, o homem pode tomar consciência do mundo, investiga-lo e conhecê-lo. Da mesma forma existe uma iluminação na esfera espiritual. 0 salmista, já nos dias do Velho Testamento, orou: "Desvenda os meus olhos, para que eu contemple as maravilhas da tua lei" (SI 119.18). E no Novo Testamento Paulo fala de uma revelação (G11.16) e de uma iluminação da qual ele desfrutava. Deus, que é o Criador da luz, também brilhou em seu coração para que, como apóstolo, ele pudesse fazer com que essa luz brilhasse para outras pessoas, e assim pudesse conduzi-Ias ao conhecimento de

Deus (2 Co 4.6; Ef 3.9).Em outro lugar, essa atividade do Espírito Santo na vocação interna é

descrita como uma abertura do coração pelo Senhor Jesus Cristo (At 16.14), ou como uma abertura do entendimento (Lc 24.45) para que a Palavra de Deus possa ser entendida e recebida de forma correta. Essa atividade é representada como um incremento ou como um desenvolvimento que Deus dá à palavra pregada pelos apóstolos (lCo 33- 9). Os apóstolos são servos, colaboradores de Deus, instrumentos em Suas mãos, de forma que não é deles o labor, mas da Graça de Deus que está com eles (ICo 15.10). Além disso, eles realmente nada são, mas Deus é tudo, pois Ele dá crescimento à semente da Palavra e a Igreja é poema de Deus e edifício de Deus. Certamente tal poder, necessário para dar vida ao pecador morto, está além da habilidade de qualquer criatura, anjo ou apóstolo. Nada menos que o poder divino e onipotente é necessário para isso, o mesmo poder que ressuscitou Cristo.

Nós sabemos que, para os crentes de Éfeso, o apóstolo Paulo prega que no futuro Deus pode dar-lhes o Espírito de sabedoria e de revelação, para que eles possam conhecê-lo e Ele possa iluminá-los. Dessa forma, eles podem vir a conhecer, primeiro,

que maravilhosa esperança e expectativa Deus concede àqueles

que Ele chamou; segundo, quais as riquezas da glória da herança

que os aguarda no futuro; e, terceiro, qual é a medida da grande-

za transbordante de Seu poder que ele exibe aos crentes

desde o começo de sua vocação, através de sua vida, e até a

glória final. Eles podem formar alguma idéia da grandeza desse

poder ao considerar a realização de Deus na ressurreição de

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Cristo, e na Sua posição de autoridade à direita do Pai, acima de

todos os principados e potestades. Na vocação, regeneração,

preservação e glorificação dos crentes o mesmo poder de Deus é

manifesto como o foi na ressurreição, ascensão e exaltação de

Cristo.

Totalmente de acordo com as Sagradas Escrituras, a Igreja Reformada confessa que, quando Deus executa Seu beneplácito nos eleitos e realiza o verdadeiro arrependimento neles, e não apenas poderosamente ilumina as suas mente com o Seu Santo Espírito para que possam corretamente compreender e discernir as coisas do Espírito de Deus, Ele também penetra no mais íntimo do ser humano com a operação poderosa desse mesmo Espírito Regenerador. E essa operação, nas palavras dessa mesma confissão, é inteiramente sobrenatural, muito poderosa e ao mesmo tempo mui-

to doce, maravilhosa, misteriosa e inexplicável, e, de acordo com o testemunho da Escritura (que foi dado, como nós devemos nos lembrar, pelo autor dessa mesma obra ou influência) não tem menos poder do que aquele que foi revelado na Criação ou na ressurreição dos mortos (Cânones de Dort,I]Liv.12).

A mudança que é realizada no homem

através dessa operação do Espírito Santo

recebe o nome de regeneração. Essa

palavra não ocorre somente na Escritura,

nem foi usada primeiramente nas Es-

crituras, mas desde tempos antigos foi

utilizada na religião dos hindus para

indicar a mudança que a alma sofre na

morte. De acordo com a religião hindu, a

alma depois da morte não vive em uma

condição de separação, mas segue

imediatamente para outro corpo, que

pode pertencer a uma pessoa, a um

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animal ou até mesmo a uma planta,

dependendo de sua conduta na vida

anterior. Todo nascimento conduz à morte,

mas toda morte conduz a um novo

nascimento; todo ser humano está sujeito

a uma contínua série de "regenerações",

isto é, a novas encarnações da mesma

alma. E há redenção dessa terrível lei e

de todos os sofrimentos do mundo, de

acordo com o bu-

dismo, somente quando o homem aprende a controlar o desejo e,

quando, através de todos os tipos de abstinência e isolamentos

ele alcança sua própria aniquilação, ou pelo menos a

neutralização de sua consciência. Essa doutrina dos

"renascimentos" chegou à Europa na antigüidade e foi revigora-

da no século passado. E até mesmo hoje há alguns que vêem nes-

se ensino o resumo de toda a sabedoria.

Mas a Escritura fala da regeneração do homem de uma forma totalmente diferente. Ela usa esse temo em dois lugares, a saber, em Mateus 19.28, onde Jesus fala sobre a renovação do mundo que precederá o reino de glória, e em Tito 33, onde Paulo diz que Deus nos salvou não por obras de justiça que nós tenhamos realizado, mas segundo a sua misericórdia, pelo lavar regenerador e renovador do Espírito Santo. É difícil dizer se a intenção de Paulo nesse texto é falar sobre o batismo como sinal e selo da regeneração ou se está comparando os benefícios da regeneração e da renovação do Espírito Santo com um banho no qual os crentes são lava-dos. Seja como for, o adendo renovador do Espírito Santo nos mostra que, ao pensar na regeneração nós devemos pensar em uma mudança espiritual e moral que acontece nos crentes mediante sua conversão. 0 contexto confirma

essa interpretação, pois, ele nos diz que os crentes outrora

eram néscios, desobedientes, desgarrados, escravos de toda sorte

de paixões e prazeres, viviam em malícia e inveja, eram odiosos e

odiavam-se uns aos outros (Tt 3.3), mas que eles agora foram

salvos, regenerados, renovados e feitos herdeiros segundo a

esperança da vida eterna (versos 4-7). E eles são admoestados a

serem solícitos em boas obras (verso 8), pois, precisamente

mediante a regeneração e renovação eles se tornaram capazes

de realizá-las.

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Todavia, embora o termo regeneração apareça apenas duas vezes na Escritura, a realidade que ele representa é mencionada várias vezes através de diferentes palavras e imagens. 0 Velho Testamento previne o povo de Israel a não se gloriar no sinal externo da circuncisão, e adverte-os a circuncidar o coração e a não endurecer a cerviz (Dt 10.16). E o Velho Testamento também promete que o Senhor Deus circuncidará o coração do Seu povo e o de seus descendentes para que amem o Senhor com todo o seu coração e com toda a sua alma (Dt 30.6). Essa promessa foi cumprida na vida dos santos da história de Israel (SI 51.12), mas recebeu um cumpri-mento muito mais pleno quando Deus firmou uma nova Aliança com Seu povo, derramou Seu Espírito, deu-lhes um coração de

carne em lugar de um coração de pedra e escreveu Sua lei sobre os seus corações 112.

Quando esse futuro se aproximou e o reino dos céus chegou às portas, João Batista começou a pregar o arrependimento como condição de ingresso nesse reino. Além disso, o povo de Israel, a despeito de seus muitos privilé-gios externos, corrompeu-se mais e mais. Além de sua circuncisão, era necessário o batismo, o batismo de arrependimento para perdão dos pecados, um batismo no qual o homem fosse realmente batizado para que o novo homem surgisse para =a nova vida (Mt 3.2 ss.). E Jesus realiza a mesma pregação de arrependimento e fé com Seus próprios lábios. Ele mesmo se submete ao batismo e ministra-o a todos aqueles que desejam ser Seus discípulos (Me 1.14,15; Jo 41,2). Quem quer que entre nesse reino deve abrir mão de toda a sua vida regressa, deve perder a sua vida (Mt 10.39), deve renunciar a tudo quanto tem (te: 14.33), deve tomar sua cruz e seguir Jesus (Me 10.38), deve tornar-se como uma criança (Mt 18.3), deve retornar ao Pai com =a confissão de pecados (Le 15.18) e deve entrar na vida eterna através do caminho estreito e da porta estreita (Mt 7.14). Quem quer que faça isso é provado por Deus, pois

os homens são maus (Mt 7.11). Do coração do homem só procede a

injustiça (Mt 15.19). Um fruto bom não pode proceder de uma

árvore má (Mt 7.17). Para que haja bons frutos a árvore tem

que ser tornada boa, e só Deus pode fazer isso (Mt 19.26).

Aqueles que, como uma planta, são plantados pelo Pai celestial,

são filhos de Deus e cidadãos do reino dos céus (Mt 15.13) e é a

eles que o Filho de Deus revela o Pai, e o Pai revela o Filho (Mt

11.27; 16.17). Apesar deles terem sido mortos espiritualmente,

agora desfrutam da verdadeira vida e esperam a vida eterna (Mt

8.22; Le 15.24; 18.30).

Em todo esse ensino de Cristo, como o primeiro Evangelho

nos apresenta, o termo regeneração não ocorre, mas a realidade

que ele expressa está claramente presente. Dessa forma, quando

Jesus, em Sua conversa com Nicodernos, diz que ninguém

pode ver nem entrar no reino de Deus a não ser que nasça nova-

mente (nasça de cima) da água e do Espírito (Jo 3.3-8), Seu

testemunho não entra em conflito com o ensino dos demais

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Evangelhos. Pelo contrário, Ele apresenta a Nicodemos um breve

resumo daquilo que em outras passagens é elaborado em maiores

detalhes. Nós sabemos que Nicodernos era uma pessoa

importante, um mestre em Israel, um membro do Sinédrio. Ele

tinha ouvido falar dos milagres de Jesus e por isso entendeu que

Ele era um Mestre enviado por Deus. Mas ele não estava

plenamente convicto disso, ele ainda tinha suas dúvidas, e por

isso ele foi à noite –para não excitar a suspeita e a inimizade dos

judeus – encontrar-se com Jesus para descobrir se ele era real-

mente o Messias. Nicodemos começa a conversa com o reconhe-

cimento de que crê que Jesus seja um Mestre enviado por Deus

e que tenha sido qualificado por Deus para realizar as obras que

realiza. Com isso, ele aparentemente quer abordar a questão de

como uma pessoa pode entrar no reino dos céus. Contudo,

Jesus não lhe dá oportunidade para apresentar essa questão e

imediatamente afirma: "Em verdade, em verdade te digo

que, se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de

Deus". E assim Ele elimina em Nicodernos toda consideração pelo

mérito humano e a observância farisaica da lei como meio de

salvação.

Portanto, Jesus não fala de um ser nascido outra vez (nascido novamente, uma segunda vez), mas de um ser nascido de cima. A ênfase não cai sobre o fato de que para entrar no reino é necessário um segundo nascimento,

apesar da regeneração poder ser entendida dessa forma. Jesus

quer que Nicodemos entenda que somente aquele que é

nascido de cima (verso 3)3'3, da água e do Espírito (verso 5), do

Espírito (verso 8) tem caminho livre para o reino dos céus. Esse

nascimento é contrastado com o nascimento da carne, pois o que

é nascido da carne é carne (verso 6). Esse não é um nascimento

do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem

(Jo 1.13). Portanto sua origem é tão incompreensível quanto a do

vento, mas apesar de incompreensível ela é possível pela ação

do Espírito (verso 8). Depois que Jesus diz de forma geral que

esse é um nascimento da água e do Espírito (no original ambos

os termos estão sem artigo - verso 5), Ele fala especificamente,

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nos versos 7 e 8, do Espírito (dessa vez com artigo) para indicar

que esse Espírito, sendo o Espírito de Deus, pode realizar essa

grande obra de regeneração. Ao falar da água (verso 5), Jesus não

está pensando em primeiro lugar no batismo, Ele está

descrevendo a natureza daqueles que são nascidos de cima. Esse

é um nascimento que tem a propriedade de renovar e purificar.

A água é a imagem disso (Ez 36.25; compare com a imagem do

Espírito e o fogo em Mateus 3.11).

E esse é um nascimento que traz à existência uma nova vida espiritual. Esse nascimento pode ser realizado porque tem sua origem no Espírito de Deus (verso 6-8).

Outras passagens do Novo Testamento desenvolvem esse ensino básico de Cristo. A regeneração é uma obra de Deus. É dEle que nascem os crentes (jo 1.13; IJo3.9;5.18). Ele os vocaciona eficazmente (Rm 8.30). Ele lhes; dá vida (Ef 2.1), gera-os (Tg 1.18) e regenera-os (lPe 1.2). Mas Ele só concede esses benefícios àqueles que estão em comunhão com Cristo, àqueles que lhe foram dados (Jo 6.37,39), àqueles que foram enviados a Cristo pelo Pai (jo 6.44), àqueles que vivem com Cristo (Rm 6.4; Ef 2.1; G1 2.20). Ele faz isso através do Espírito Santo, que penetra no coração do homem e que é o princípio da nova vida"'. Em virtude de terem nascido de Deus, os crentes são Sua feitura, criados em Cristo (Ef 2.10), lavoura e edifício de Deus (ICo 3.9), novas criaturas (2Co 5.17). A regeneração não é uma obra da força humana, também não é o produto de um longo e gradual desenvolvimento da vida natural, mas um rompimento com o antigo modo de existência e a criação de uma nova vida espiritual. É a morte do velho homem e o nascimento do novo (Rm 6.3 ss.).

Por outro lado, a regeneração não é uma segunda criação que nada tem a ver com a primeira, mas uma recriação do homem que recebeu de seus pais sua primeira vida. Na regeneração, ele continua sendo essencialmente a mesma pessoa, o mesmo eu, a mesma personalidade. Paulo diz de si mesmo que ele foi crucificado com Cristo e que ele mesmo não mais vive, mas Cristo vive nele. Mas tendo dito isso ele acrescenta: "Esse viver que, agora, tenho na carne, vivo pela fé no Filho de Deus" (G12.20). Ele tinha morrido e sido sepultado com Cristo, mas ele imediatamente também ressuscitou com Cristo. Ele não foi aniquilado nem substituído por outro, mas foi regenerado e renovado. Dessa forma ele também diz a respeito de certos crentes de Corinto que eles eram impuros, idólatras, adúlteros, efeminados e coisas semelhantes, mas que foram lavados, santificados e justificados no nome do Senhor Jesus e no Espírito do nosso Deus (ICo 6.941). A continuidade, =idade e solidariedade não são quebradas, pela regeneração. Em vez disso, uma tremenda mudança é realizada nelas.

Essa mudança tem caráter espiritual. Quem quer que seja nascido do Espírito é espírito (jo 3.6). Ele vive pelo Espírito e anda

segundo o Espírito. A regeneração injeta um princípio de nova

vida no homem, um princípio que o Espírito Santo traz à exis-

Page 410: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

tência em conexão com a ressurreição de Cristo, de quem Ele re-

cebe todas as coisas (IPe 1.3). Ele planta uma semente no coração

(lPe 1.23) a partir da qual nasce uma pessoa inteiramente nova. De

uma forma bem misteriosa e secreta, a regeneração tem seu co-

meço e seu centro no núcleo da personalidade humana, em sua

individualidade (G12.20) e a partir daí ela se espalha para todas

as habilidades da pessoa, atingindo sua mente (Riu 12.2; lCo 2.12;

Ef 4.23), seu coração (Hb 8.10; 10.16; lPe 3.4), sua vontade (Em

7.15-21), seus desejos e inclinações (Rm 7.22), e seu espírito,

alma e corpo (lTs 5.23; Rm 6.19). A regeneração dá origem a um

homem perfeito que, apesar de ainda não estar maduro e de ter

que lutar contra todos os tipos de pecados da carne (GI 5.17),

deseja viver em novidade de Espírito (Em 6.4; 7.8).

No modelo desse novo homem, os crentes são recriados à imagem de Cristo em verdadeira justiça e santidade"'. Eles não carregam mais a imagem do primeiro homem, do primeiro Adão, e sim a imagem do segundo Adão, o Senhor dos céus (lCo 15.48,49).

Eles foram crucificados para o mundo, e não vivem mais em si

mesmos, mas naquele que morreu e ressuscitou por eles

(2Co 5.15; G12.20; 6.14). Eles receberam um novo referencial para

todo o seu pensamento e ação, pois eles têm sua vida, movimento

e existência em Cristo, vestiram-no em seu batismo como se veste

uma roupa, exibem Sua forma e são sempre transformados

mais e mais segundo a Sua imagem, de glória em glória, como

pelo Espírito do Senhor'". E nessa comunhão com Cristo eles são

feitos filhos do Pai celestial, que amam Deus e os seus irmãos, e

algum dia serão como Deus, pois eles o verão como Ele é filo 12;

5.2). Dessa forma rica e gloriosa a Escritura descreve a

regeneração, e ela faz isso não para que em primeiro lugar nós

tenhamos condições de discriminar essa doutrina como tal, mas

para que nós possamos desfrutar desse grande benefício da Graça

de Deus e possamos aprender a viver como filhos de Deus nesse

mondo mau. Que poder viria sobre a Igreja se ela não se limitasse

a escrever a imagem de Cristo em sua confissão, mas se

também mostrasse essa imagem na vida prática de todos

Page 411: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

aqueles que a compõem!

Uma coisa é certa: pelos frutos a árvore se torna conhecida. Uma boa árvore produz bons frutos, e um bom homem tira boas coisas do bom tesouro de seu coração (Mt 7.17; 12.33,35). Se a regeneração coloca um novo princípio de vida no coração, esse princípio deve tornar-se e certa-mente se tornará evidente nas obras que procedem dessa nova vida espiritual. Essas obras são basicamente duas: a fé, pelo lado da mente; e o arrependimento, pelo lado da vontade.

Como geralmente se diz, a fé é a aceitação de um testemunho. Nós cremos em algo, não quando nós vemos ou nos tornamos conscientes de alguma coisa, mas quando temos certeza daquilo que uma pessoa idônea, seja de forma oral, seja de forma escrita, seja no passado, seja no presente, fala conosco. Esse significado básico da palavra é conservado quando é transferido para a esfera religiosa, e tem que ser conservado, pois nós não conhecemos outro conteúdo do Evangelho, da pessoa e obra de Cristo, do que aquele que conhecemos pelo testemunho dos apóstolos. Somente através da palavra deles nós podemos crer em Cristo (jo 17.20). Através da comunhão com os apóstolos nós chegamos à comunhão com o Pai e com Seu Filho Jesus Cristo (ljo 1.3).

Contudo, a palavra fé, quando é usada na esfera religiosa e é especialmente designada nas Sagradas Escrituras como o caminho para o reino dos céus, sofre uma modificação muito significativa no seu sentido. Uma pessoa pode aceitar o Evangelho como aceita o testemunho sobre alguma pessoa ou evento histórico, mas isso não significa receber o Evangelho como Evangelho, e nesse caso a fé pela qual essa pessoa aceita esse testemunho não é a verdadeira fé. A experiência de todos os profetas, pregadores, apóstolos e servos da palavra na Igreja e no mundo pagão – sim, e a experiência do próprio Jesus – sempre tem sido a de que a palavra não encontra aceitação entre muitas pessoas. Quem creu em nossa pregação, e a quem foi re-velado o braço do Senhor? As pessoas que ouvem o Evangelho assumem diferentes atitudes e tomam diferentes posições çoes com relação a ele.

Jesus descreveu essas várias atitudes e posições na parábola do semeador, na qual algumas sementes de fé caíram à beira do caminho e foram comidas pelas aves. Esses são os indiferentes, os insensíveis, os imperturbáveis, que ouvem a palavra, mas ouvem-na como se ela falasse sobre um compromisso que não lhes diz respeito. Eles não se interessam pessoalmente por ela e supõem que ela não foi feita para

eles. A palavra não cai no campo do seu coração, mas ao longo

Page 412: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

dele, no caminho duro e batido. Geralmente eles nem sequer se

lembram dela. A palavra entra-lhes; por um ouvido e sai por ou-

tro. Depois de alguns momentos parece que eles nada ouviram. As

aves, todos os tipos de idéias de contradição, depreciação, incre-

dulidade e blasfêmia, são usadas como instrumentos do maligno,

dirigindo a palavra para fora da mente dos ouvintes. Eles ouvem,

mas não sabem o que significa (Mt 114,9).

Para outros, a semente da palavra cai em solo pedregoso, que não é muito profundo. Ela se desenvolve rapidamente, mesmo porque a terra não tem muita profundidade, mas quando o sol vem sobre ela, ela seca porque não possui raiz suficientemente profunda. Essas são as pessoas superficiais. Elas não apenas ouvem a palavra, mas também logo a aceitam com alegria. 0 Evangelho é facilmente acolhido por elas porque ele é bonito, nobre, sim-ples e amável e isso lhes causa uma forte impressão. Elas são movidas e comovidas por isso, percebem nisso um tipo de poder, e em consequência formam todos os tipos de resoluções. Mas elas não permitem que a verdade provoque uma profunda impressão sobre elas e lance raízes profundas em seu coração. Elas lhe dão

um lugar em sua memória, em sua imaginação, em sua razão e

entendimento, mas não lhe abrem as profundezas de seu ser.

Há uma fina camada de solo sobre a superfície onde a palavra cai,

mas sob essa camada tudo é frio, inerte e duro como uma rocha.

Portanto, elas não podem suportar a tentação e a opressão que

lhes sobrevêm, nem a perseguição e as provações. Quando elas

surgem essas pessoas se sentem ofendidas e vão embora. Sua fé

é temporária (MI: 133,6,20,21).

Há aqueles para os quais a semente cai entre os espinhos, estes ao crescerem com ela (Lc 8.7) sufocam-na, de forma que ela não pode frutificar. Esses são os ouvintes que se orientam pelo mundo, cujo coração está cheio de espinhos, cheio de cuidados deste mundo e das tentações das riquezas, aqueles que estão totalmente tomados pelas tentações e pelos cuidados do mundo. Eles ouvem a palavra e aceitam-na. De vez em quando ela penetra através de todos os problemas e prazeres do mundo e alcança o coração. De vez em quando lhes vem o pensamento de que deve ser melhor romper com o mundo e buscar o reino de Deus. De vez em quando eles temem o julgamento que cairá sobre eles. Mas, exatamente no momento em que a semente da palavra está a ponto de germinar, os espinhos, os cuidados e a co-

biça do mundo, sufocam o nascimento da nova vida. Essas pessoas nunca alcançam o ponto de renunciar tudo, tomar sua cruz e seguir Jesus. 0 poder do mundo é forte demais para eles (Mt 117,22).

Nesse caso, há uma aprovação e uma aceitação do Evangelho que não correspondem à verdadeira fé. De fato, há aqueles que são soberbos e

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arrogantes, assim como Pilatos, que com um sorriso depreciativo colocam de lado o Evangelho (jo 18.38). Há também aqueles que, como os orgu-lhosos fariseus e os sábios gregos, encontram na cruz somente ofensa e tolice e que se lançam em uma selvagem inimizade e ódio contra o Evangelho"'. E há outros que crêem, mas não chegam ao ponto de fazer uma confissão e que amam mais a glória dos homens do que a glória de Deus Co 12.42,43). Durante toda a sua vida eles sempre continuam sendo ouvintes da palavra, mas nunca se tornam praticantes dela"'. Assim como Simão de Samaria, eles aceitam o Evangelho pelos sinais e grandes milagres que ocorrem através dele (At 8.13 ss.). Assim como Agripa, eles são movidos até certo ponto em suas vidas para se tornarem cristãos (At 26.27,28). Assim como Dimas, eles servem o Evangelho durante algum tempo e depois passam a amar o presente mundo (2Tm 4.10). Há todos esses tipos de fé: fé temporal, fé histórica e fé "miraculosa", isto é, uma fé inclinada a sinais e maravilhas. Todas elas recebem o nome de fé, mas não são a fé verdadeira. Elas exibem forma de piedade, mas negam-lhe o poder (2Tm 3.5).

A verdadeira fé salvadora é diferente de todos esses tipos de fé em três aspectos. Em primeiro lugar, ela tem uma origem diferente. A fé histórica, a fé temporal e a fé miraculosa não são erradas em si mesmas. Elas são melhores que uma total incredulidade e uma inimizade ferrenha. Elas também possuem uma utilidade temporária. Mas elas são apenas dons da Graça comum de Deus e são dadas aos homens naturais. Mas a fé salvadora é um dom de Deus, assim como a própria salvação (Ef 2.8). Ela é um dom da Graça especial de Deus (Fp 1.29), uma conseqüência da eleição (Aí 13.48; Rm 8.30; Ef 1.5). Ela é uma obra do Espírito Santo (lCo 12.3) e um fruto do arrependimento (jo 1.12,13).

Aqueles que desfrutam apenas do nascimento natural pertencem

ao mundo, são de baixo, amam as trevas mais do que a luz e

não entendem a palavra. Mas a regeneração diz porque algumas

pessoas seguem a vocação do Evangelho e aceitam Cristo (lo

1.12,13). Elas são nascidas de Deus , são da verdade, são

conduzidas a Cristo pelo Pai, ouvem Sua voz, entendem Suas pa-

lavras e seguem-no"'. E o Espírito Santo, que as gerou, testifica

com o seu espírito de que elas são filhas de Deus (Rm 8.16) e

coloca em seus lábios a confissão de que Cristo é o Senhor (lCo

12.3).

Em virtude dessa origem, a verdadeira fé salvadora deve ser diferenciada também, em segundo lugar, de outros tipos de fé. Não há dúvida de que essa fé contém um elemento de conhecimento, pois ela está relacionada com um testemunho a respeito de coisas invisíveis e eternas que nós mesmos não vemos e não podemos ver. Essa fé não pode se firmar na verdade fora da vida regenerada, nem fora de uma experiência e de um sentimento religioso subjetivo, pois, apesar de os crentes terem recebido a unção que vem do Espírito Santo e conhecer todas as coisas (ljo 2.20), eles devem esse Espírito precisamente a Cristo, e estão limitados à palavra da verdade que eles ouviram desde o princípio (ljo 2.21-24). E juntamente com toda a Igreja eles edificam sobre o fun

damento dos apóstolos e dos profetas (Ef 2.20).

Page 414: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

Mas, o conhecimento que é peculiar à fé salvadora é um conhecimento especial. Ele não é um conhecimento puramente teórico, absorvido somente pela mente e pela memória, que faz com que o homem seja frio e indiferente. Ele não está no mesmo nível do conhecimento que é obtido pela ciência através de investigação e reflexão e não é simplesmente a aceitação de um registro histórico de um fato ocorrido no passado. 0 conhecimento da fé é um conhecimento prático, um conhecimento mais ligado ao coração do que à cabeça, um conhecimento com um conteúdo pessoal e profundo, pois, pertence a algo que está relacionado com a essência mais íntima do ser, algo que envolve minha existência, minha vida, minha alma, minha salvação. A fé é uma aceitação e uma aprovação e o conhecimento de um testemunho, mas é uma aceitação desse testemunho em sua aplicação pessoal, um recebimento da palavra da pregação de Deus, não uma palavra humana, mas uma palavra de Deus (ITs 2.13). A fé é uma apropriação do Evangelho como uma mensagem que Deus enviou para mim.

Relacionado a isso, em terceiro lugar, está o fato de que a fé

salvadora difere das demais quanto ao seu objeto. A fé

histórica para em um registro histórico e não vai além dele. A fé

temporal vê uma certa beleza nesse registro e se agrada dessa

beleza, mas recusa-se a reconhecer seu conteúdo real e seu

significado. E * fé miraculosa se apega a sinais * maravilhas, mas

é, em sua substância, indiferente Àquele que realiza esses sinais e

essas maravilhas. No entanto, quando nós aceitamos o Evangelho

com coração sincero, como uma palavra que Deus nos dá

pessoalmente, essa fé salvadora não pode nos deixar vazios e

infrutíferos. Assim como alguém que está em viagem e descobre

que sua família está em grande perigo não desejará prosseguir

sua jornada, assim também aquele que realmente crê no

Evangelho e aplica-o a si mesmo e que, portanto, sabe que é

culpado e perdido e que há redenção somente em Jesus Cristo,

não permanecerá frio e indiferente diante disso. Pelo contrário, a

verdadeira fé começa imediatamente a operar naqueles que a

recebem. Ela não lhes dá descanso, ela conduze-os a Cristo. Essa

fé não se contenta com o registro externo, mas alcança a pessoa

de quem esse registro fala.

Já era assim no Velho Testamento. Os santos que aparecem

diante de nós estão sempre ocupados e atarefados com Deus. Al-

gumas vezes isso é chamado de crença1", mas essa crença não é

simplesmente a convicção pessoal de que Deus existe, mas uma

dependência total de Deus e uma vida orientada pela Sua palavra.

Page 415: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

Portanto, a palavra crença ou fé geralmente dá lugar a outros

termos. É dito freqüentemente a respeito dos santos que eles

confiam em Deus, refugiam-se nEle, esperam por Ele, temem-nO,

esperam dEle todas as coisas, apoiam-se nEle, buscam-n0 e coisas

semelhantes. Isso acontece também no Novo Testamento. Os

apóstolos, que o escreveram para nós, não são escritores

históricos no sentido usual do termo, mas testemunhas daquilo

que viram e ouviram e daquilo que suas mãos tocaram com

relação ao Verbo da vida. Eles viveram na comunhão de Cristo e

falaram sobre Ele. Crer é aceitar Cristo, não somente o testemunho

sobre Ele que nos foi dado pelos apóstolos. A fé é uma aceitação

do próprio Cristo (Jo 1.12). Ela envolve um revestimento de

Cristo como uma roupa que nós vestimos (CI 3.27). Ela envolve

morrer com Cristo e ressuscitar com Ele (Rm 6.4), viver em Sua

companhia (G12.20), permanecer ligado a Ele como os ramos per-

manecem ligados à videira e as-

sim por diante. Em e através de Cristo, Deus é o Pai dos santos e

eles são Seus filhos e filhas (2Co 6.18).

Em resumo, a fé salvadora não é somente um certo conhecimento, uma firme certeza, uma certeza inabalável referente ao testemunho profético e apostólico como a Palavra de Deus, mas uma segura confiança de uma pessoa em outra, em Cristo, como a plenitude da Graça e da verdade re-velada por Deus. 0 conhecimento e a confiança se mantêm em uma conexão inquebrável. Sem conhecimento nenhuma confiança é possível, pois, como podemos confiar naquele que não conhecemos? Ao mesmo tempo, se o conhecimento não nos conduz à confiança esse não é um conhecimento correto. Aqueles que conhecem o nome do Senhor colocam sua confiança nEle (SI 9.10). Mas aqueles que não confiam nEle ainda não aprenderam a conhecê-lo em Sua palavra como ele realmente é. Quem quer que procure Cristo fora dos limites de Sua palavra, somente através do Espírito, contraria a norma pela qual os espíritos são testados e eventualmente chegam a identificar o seu próprio espírito com o Espírito de Cristo e quem quer que estude a palavra, sem o Espírito de Cristo, está estudando o retrato e ignorando a pessoa que está representada nele.

É por isso que Cristo nos dá ambos: Sua Palavra e Seu Espírito. E é o Espírito de Cristo que dá * mesmo testemunho na Palavra * no coração dos crentes. Na regeneração, o Espírito planta a Palavra em nossos corações (Tg 1.18- 21; lPe 1.23,25) e conduz a vida espiritual dos crentes, de acordo com Sua natureza, sempre à luz da Palavra, para alimentá-los e fortalecê-los. Aqui na terra nós nunca necessitamos de algo que vá além da Escritura, pois, essa Escritura é o único meio pelo qual nós somos conduzidos à comu-nhão com Cristo, que foi crucificado, mas que agora está assentado à mão direita de Deus. 0 cristianismo é uma religião histórica, mas também é uma religião do presente. Ele tem uma Palavra que nos mostra o retrato de

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Cristo, mas também tem um Espírito através do qual o Cristo vivo mora em nossos corações. É por isso que a fé tanto é conhecimento quanto confiança. Ela é a aceitação de Cristo como as Sagradas Escrituras o apresentam.

Assim como, pelo lado da mente, a fé é

o fruto da regeneração, assim também,

pelo lado da vontade, o arrependimento é

a expressão da nova vida. 0 Velho

Testamento já nos fala disso repe-

tidamente. Depois de sua liberta-

ção, Israel foi conduzido por Deus ao Sinai e foi inserido na Aliança.

Como povo de Deus, Israel tinha que manter a Aliança e obedecer

a voz do Senhor, tinha que ser um reino de sacerdotes e uma

nação santa (Ex 193,6). Mas ainda no deserto, Israel se tornou

culpado de desobediência e incredulidade. Em Canaã essa

apostasia aumentou ainda mais, pois ali Israel viveu entre povos

pagãos. Quando a primeira geração morreu e foi substituída por

=a geração que não conhecia o Senhor, nem as obras que ele

tinha realizado em favor de Israel, os filhos de Israel fizeram o que

era mau aos olhos do Senhor e passaram a servir a Baal (Jz

2.10,11).

Por esse motivo a pregação de arrependimento tomou-se necessária em Israel. Primeiro, o Senhor levantou juizes que libertaram o povo das mãos de seus inimigos e conduziram-no novamente ao serviço do Senhor. Depois, a partir de Samuel, os profetas exortaram Israel a deixar de fazer o mal e a cumprir os mandamentos e os estatutos de Deus, de acordo com a lei que Ele tinha dado aos seus pais (2Re 17.3). Samuel deu início a essa exortação (lSm 7.3) e todos os profetas a repetiram. Todos eles eram pregadores de arrependimento e conversão, mas eram também

proclarnadores do perdão de pecados e da perfeita redenção121.

Em algumas ocasiões, um certo arrependimento podia ser perce-

bido entre o povo. Quando eles eram escravizados e oprimidos

pelos seus inimigos, começavam a clamar ao Senhor (jz 19,15;

4.3). Os reis piedosos, Asa, losafá, Josias e Ezequias trouxeram

uma reforma de maior ou menor proporção na vida rel igiosa

do povo'22. Jonas foi a Nínive e em resposta à sua pregação o

povo daquela cidade creu em Deus, proclamou um jejum,

vestiu-se de pano de saco e se arrependeu do seu mau

Page 417: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

caminho (Jn 33,10). De Acabe se diz que, depois de ter ouvido a

advertência de Elias sobre o juizo, ele rasgou suas vestes, cobriu-

se de pano de saco e jejuou diante da face do Senhor

(1Re21.27,29) e sobre Manassés se diz que, no fim de sua vida,

ele viu a face do Senhor e reconheceu que o Senhor era Deus

(2 Cr 33.12,13).

Embora em alguns casos esse arrependimento tenha sido presumivelmente real e sincero, para o povo em geral ele foi pouco mais que uma mudança externa. Como Jeremias diz, eles não se arrependeram com todo o seu coração, mas fingidamente (Ir 3.10). Portanto, os profetas continuaram a pregar o arrependimen-

to. Eles constantemente afirmavam que o povo como um todo e

cada pessoa individualmente precisava arrepender-se, apartar-

se do mal e voltar-se para o Senhor (Ez 18.23,32; 33.11). E

quando o povo continuava a ignorar essas exortações, os

profetas sabiam que sua pregação teria o efeito de um juízo

sobre o povo (Is 6.10), que Israel não pode se arrepender,

assim como o etíope não pode mudar a sua pele e o leopardo

não pode mudar as suas manchas (Jr 13.23), que é Deus quem

deve dar o arrependimento e um novo coração". E eles olharam

para o futuro, para o dia em que Deus estabeleceria uma nova

Aliança, circuncidaria o coração deles e escreveria Sua lei sobre

ele8314.

0 alvorecer desse dia, de acordo com a pregação de João Batista e de Jesus, começou quando o reino dos céus veio a nós. E ambos pregaram que nenhum es-forço para cumprir a lei e nenhuma justiça própria dos fariseus abriria o caminho para esse reino e que esse caminho só pode ser aberto pelo arrependimento e pela fé (Me 1.4,15). Para indicar esse arrependimento o Novo Testamento faz uso de duas palavras no texto original. A primeira delas significa uma mudança espi

ritual interna31,1 'uma mudança na disposição moral. 0 outro

termo se refere mais à conversão externa, à mudança de direção

da vida, algo que revela a mudança interna. Em Atos 3.19 e

26.20 as duas palavras são combinadas: "Arrependei-vos e

convertei-vos", isto é, mudem sua disposição e sua conduta,

recobrem o juízo e mudem de atitude.

Page 418: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

Quando, nos dias dos apóstolos, o Evangelho foi pregado aos judeus e aos gentios e foi aceito por eles, exigiu-se também =a mudança externa na vida deles. Os judeus tinham que romper com o cumprimento da lei mosaica, especialmente a circuncisão e todo o serviço sacrificial e os gentios tinham que abandonar a idolatria, o culto a imagens e as suas práticas religiosas. Era necessária uma grande dose de auto negação e coragem para abraçar o Cristianismo. Essa auto negação só podia ser alcançada por aqueles que abraçavam o Cristianismo em virtude de uma convicção sincera e verdadeira do coração. Os dois sentidos expressos pelas duas palavras gregas traduzidas por arrependimento e conversão estão relacionados bem de perto. A mudança interna e a externa caminham juntas.

Essa meia volta radical, tan-to externa quanto interna, recebe seu selo no batismo (At 2.38).

Quem quer que se submeta ao batismo rompe com todo o seu

passado, deixa sua parentela, é crucificado para o mundo, morre

com Cristo e com Ele é sepultado no batismo; mas, ao mesmo

tempo, ressuscita com Cristo para uma nova vida, reveste-se

de Cristo como de um manto, como uma nova e diferente

vestimenta com a qual ele se mostra ao mundo, torna-se um

discípulo, um seguidor, um servo e um soldado de Cristo, um

membro de Seu corpo e um templo do Espírito Santos". Quando a

Igreja cristã se espalhou pelo mundo judeu e gentílico, o

arrependimento não era visto meramente como uma mudança

interna, mas também como uma mudança externa, um

abandono do serviço aos ídolos (lCo 12.2; lTs 1.9), dos pobres e

fracos princípios religiosos (G14.3; C12.8,20), das obras mortas (Hb

9.14; lTs 1.9), de pecados e transgressões públicas'', , para servir

ao Deus vivo (Hb 9.14; ITs 1.9) e abraçar o Senhor (ICo 6.15-20).

Mas, quando o período missionário passou e a Igreja se perpetuou através das gerações, a conversão não alterou sua natureza essencial, mas, dependendo das circunstâncias, era colocada

de lado essa específica forma externa pela qual ela anteriormente

Page 419: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

se expressava. As crianças eram admitidas na Aliança desde seu

nascimento, recebiam o santo batismo como sinal e selo desse in-

gresso e dessa forma elas eram incorporadas à Igreja de Cristo,

antes mesmo de manifestar sua aprovação consciente e pessoal.

Naturalmente, em geral, acontecia que alguns membros da

Igreja, que eram batizados na idade adulta ou na infância,

posteriormente caíam em pecados de maior ou de menor

gravidade. Havia seitas, c o m o p o r e x e m p l o a d o s

montanistas e dos novacianos, que afirmavam que pecados

graves não podiam ser perdoados pela Igreja. Mas, a Igreja de

Cristo assumiu uma posição diferente e admitia novamente à

comunhão aqueles que tinham caído se eles retomassem

humildemente, fizessem confissão de seus pecados e se

sujeitassem às penalidades eclesiásticas.

Gradualmente o sacramento da penitência se desenvolveu a partir desse ponto. Segundo esse sacramento os crentes que se tornassem culpados de pecados de uma certa gravidade tinham que confessá-los ao sacerdote, demonstrar um perfeito ou imperfeito remorso (perfeito quando a

pessoa se entristece porque pecou contra Deus, imperfeito

quando ela teme as conseqüências de seu pecado), e por fim

tinha que fazer as orações e as boas obras, prescritas pelo

sacerdote, como penitência. Dessa forma, o arrependimento na

Igreja Romana tornou-se totalmente externalizado. 0 centro da

questão foi transferido da mudança interna para a confissão e

satisfação externas, pois, um arrependimento imperfeito era

suficiente para buscar o perdão de pecados. Além disso, uma

pessoa podia se esquivar das penalidades temporais que lhe

fossem prescritas através da aquisição de indulgências.

Foi exatamente desse ponto que partiu a Reforma iniciada por Lutero. Lendo o Novo Testamento ele descobriu que a conversão, no sentido que lhe é dado pela Escritura, era algo muito diferente das penitências impostas por Roma. Mas, Lutero ainda colocou arrependimento e fé muito distantes um do outro. Ele tinha sentido em sua própria consciência a maldição da lei e encontrou alívio na justificação do pecador somente através da fé. Como ele pensava, a conversão, no sentido de remorso, penalidade, desgosto, vinha através da lei, e a fé vinha através do Evangelho. Mais tarde, Calvino entendeu melhor a natureza desse relacionamento e deu uma formulação diferente

para ele. Assim como as Escrituras, Calvino fez uma distinção

entre a falsa e a verdadeira conversão Ur 3.10), entre o remorso do

Page 420: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

mundo e o arrependimento para a vida (2Co 7.10), entre

desgosto, remorso por um ato pecaminoso e um

arrependimento sincero pela provocação da ira de Deus

através de um ato pecaminoso. 0 remorso por um ato pecaminoso

também pode acontecer entre os filhos do mundo. Quando o

pecado tem uma conseqüência muito diferente daquela que era

esperada, quando ele conduz a vexame e vergonha, o mundo

também sente desgosto. Um Caim (Gn 4.13), um Esaú (FIb 12.17)

e um Judas (Mt 27.3) são evidência disso. Tal remorso não conduz

ao verdadeiro arrependimento, mas conduz à morte e traz consigo

o desespero, amargor e endurecimento do coração.

Mas a verdadeira conversão e arrependimento não consistem de tal remorso que se desgosta com as conseqüências do pecado, mas consistem de um quebrantamento interno do coração (SI 51.19; At 2.37), de uma tristeza causada pelo pecado em si mesmo, por causa de seu conflito com a vontade de Deus e pela provocação da ira de Deus por ele causada, e de um sincero arrependimento e ódio ao pecado. Tal arrependimento não é próprio do velho homem, mas do novo homem.

Ele pressupõe a existência da fé salvadora e é fruto dessa fé. Essa

é a tristeza segundo Deus, que traz arrependimento para a

salvação (2Co 7.10). Quando o filho perdido volta a si e resolve

voltar ao lar, ele diz: "Levantar-me-ei e irei ter com meu pai, e lhe

direi: Pai, pequei contra o céu e diante de ti" (Lc 15.18). Ele se

preocupa com o pai, embora ainda esteja longe dele. Ele se dispõe

a ir ao seu pai e confessar seus pecados porque, nas profundezas

de seu coração, ele crê que o pai realmente é pai. Nós nunca nos

voltaremos para Deus se nós não confiarmos, no mais profundo de

nossas almas, através do Espírito Santo, que o Pai aceitará nossa

confissão de pecados e nos perdoará. 0 verdadeiro

arrependimento está vinculado à verdadeira fé salvadora.

Portanto, o pleno tratamento da conversão do homem não pertence à doutrina da miséria e da redenção, mas à doutrina da gratidão (Catecismo de Heidelberg, Domingo 33). Algumas vezes, a palavra conversão é usada em um sentido amplo e compreende toda a mudança que deve acontecer em uma pessoa que se torna filho de Deus e cidadão do reino. Assim como Jesus, em João 3, fala somente em rege-

neração e em outros lugares, como por exemplo Marcos

16.16 Ele fala somente da fé como caminho para conduzir-nos à

salvação, assim também em Mateus 4.17 Ele menciona apenas

o arrependimento como sendo esse caminho. Isso se explica pelo

Page 421: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

fato de que uma pessoa não pode possuir um dos benefícios de

Cristo sem possuir o outro. A fé e o arrependimento estão, em

princípio, contidos na nova vida de regeneração e se expressam

no tempo devido. Mas, apesar desses benefícios não poderem ser

separados um do outro, eles podem ser diferenciados, de forma

que o arrependimento é fruto da regeneração, que ao mesmo

tempo pressupõe a fé. Dessa forma, o arrependimento e a fé são

um dom e obra de Deus, não somente no seu princípio, mas

também em todo o seu cursou". Ao mesmo tempo, em virtude da

nova vida que lhe foi dada, é um ato human03'9 que não é

limitado a um momento, mas que continua através de toda a

sua vida.

0 arrependimento, embora seja essencialmente o mesmo, difere nas pessoas nas quais ele se manifesta e nas circunstâncias em que ele ocorre. A forma pela qual andam os filhos de Deus é um só, mas eles caminham de forma di-

ferente e possuem experiências diferentes. Quanta diferença há na

forma pela qual Deus conduziu a vida dos diversos patriarcas!

Quanta diferença há na conversão de Manassés, Paulo e Timóteo!

Como são diferentes as experiências de Davi e de Salomão, de

João e de Tiago! E a mesma diferença nós encontramos fora das

páginas da Escritura, na vida dos pais da Igreja, dos

reformadores e de todos os santos. Quando nós tivermos olhos

para ver as riquezas da vida espiritual, abandonaremos a prática

de julgar os outros de acordo com o nosso padrão de

julgamento e de penalidades. Há pessoas que conhecem apenas

um método e que não crêem que uma pessoa esteja arrependida

a não ser que ela tenha as mesmas experiências espirituais que

elas mesmas já tiveram. Mas a Escritura é muito mais rica e mais

ampla que o cubículo no qual nós tentamos confiná-la. Sobre isso

a Escritura diz: "Os dons

são diversos, mas o Espírito é o mesmo. E também há diversida-

de de serviços, mas o Senhor é o mesmo. E há diversidade nas re-

alizações, mas o mesmo Deus é quem opera tudo em todos" (ICo

12.4-6). 0 verdadeiro arrependimento não consiste naquilo que o

homem faz com que ele seja, mas naquilo que Deus diz que ele

é. Na diversidade de realizações e de experiências, ele

Page 422: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

consiste e deve consistir na morte do velho homem e no

nascimento do novo homem.

0 que é a morte do velho homem? E a tristeza que nós devemos sentir por termos, através de nosso pecado, provocado a ira de Deus e é pela tristeza que nós mais e mais odiamos esses pecados e procuramos evitá-los.

E o que é o nascimento do novo homem? É a alegria em Deus, através de Cristo, e o desejo e o amor para viver na prática de boas obras para que assim, possamos agradar a Deus.

Capítulo 21

A JUSTIFICAÇÃO

Aregeneração, que se manif e s t a a t r a v és d e f r u t o s d e f é

e a r repend imento , ab re o caminho para o reino de Deus.

Onde quer que haja um cidadão desse reino, ele desfruta de todos

os benefícios que esse reino contém. Esses benefícios podem ser

resumidos em três: justiça, santidade e bem-aventurança. É o pri-

meiro desses benefícios que nós vamos estudar.

A justiça é usualmente definida como a firme e constante vontade de um ser racional dar a cada um o que lhe é devido. Ela inclui, em primeiro lugar, uma disposição ou atitude espiritual por parte da pessoa a quem ela é creditada, e, em segundo lugar, inclui uma conduta em relação a terceiros, cujos direitos ela reco-nheça. Apesar da Escritura inserir uma única modificação nessa idéia usual de justiça e retribuição,

ela procede do mesmo pensamento básico. A justiça é o

merecimento que uma pessoa possui e a justa ação que ela realiza

em relação aos outros.

Nesse sentido o Velho Testamento atribui a justiça a Deus. Ele é a rocha cujo trabalho é perfeito, porque todos os Seus caminhos são juizo; Deus é fidelidade não há nele injustiça; é justo e reto (Dt 32.4). Essa idéia de justiça apresentada na Escritura não é deduzida de uma

Page 423: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

reflexão sobre o Ser divino, mas é atribuída a Deus com base em sua revelação. Através de sua revelação Deus se fez conhecido ao Seu povo desde o princípio. Ele não falou em segredo, nem nos lugares de trevas da terra; não disse à descendência de Jacó: "Buscai-me em vão". 0 Senhor fala a verdade e proclama o que é direito. Enquanto os pagãos cultuam a deuses que não podem salvá-los, Ele se fez conhecido a Israel como Jeová, além dele não há Deus e ele é um Deus justo e salvador (Is 45.19-21). Como justo Senhor Ele vive no meio de Israel. Manhã após manhã, Ele traz o Seu juizo à luz (Sf 3.5).

Essa justiça de Deus é expressa antes de mais nada, nas leis que Ele deu

ao Seu povo. Para nós a justiça consiste no fato de corresponder à lei de

Deus. Mas nós não podemos falar em justiça de Deus nesse sentido, pois não há

lei acima dEle à qual Ele deva corresponder. Sua justiça consiste no fato de

que Ele se harmoniza perfeitamente consigo mesmo. Todos os direitos e

todas as leis têm sua origem nEle, e todas as suas leis são justas porque Ele

as deu em harmonia com Seu próprio ser e com Sua própria vontade. Que

nação, Moisés certa vez perguntou, tem estatutos e juizos tão justos quanto

toda esta lei que eu hoje vos proponho? (Dt 4.8). E os santos respondem: Os

preceitos do Senhor são retos e alegram o coração; o mandamento do Senhor

é puro e ilumina os olhos. O temor do Senhor é límpido e permanece para

sempre; os juizos do Senhor são verdadeiros e todos igualmente justos. São

mais desejáveis do que o ouro, mais do que muito ouro depurado; e são mais

doces do que o mel, e o destilar

dos favos (SI 198-10; 119).

Mas a justiça de Deus se manifesta também no fato de que Ele mantém

essas leis e exige que Seu povo viva de acordo com elas. Ele deu Seu

mandamento já ao primeiro homem (Gn 2.16). E depois da queda, ninguém

escapa às Suas exigências e a Seus julgamentos, e o grande dilúvio e a confu-

são das línguas são prova disso. Ele faz com que a consciência de todos os

Page 424: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

gentios seja testemunha de Sua lei (Riu 1.20,32; 2.15). Todavia, de forma

particular, Ele deu Sua lei ao povo de Israel, povo que em soberano amor Ele

decidiu aceitar como Seu, e que, portanto, deve observar Sua Aliança, ouvir

Sua voz, e andar em Seus caminhos (Ex 19.5). Dessa forma, o Senhor nada

requer injustificadamente de Seu povo, pois Ele, de Sua parte, fez tudo o que

era necessário para que Sua vinha desse uvas boas e é isso o que Ele espera

dela (Is 5.4). O Senhor declarou ao Seu povo o que é bom e o que Ele requer

desse povo é que ele pratique a justiça, ame a misericórdia e ande

humildemente com Ele 30.

Finalmente, Sua justiça se manifesta no fato de que Ele julga e julgará todos os povos, inclusive Seu próprio povo de Israel, conforme Sua justiça. Deus é o Legislador

e Rei, mas Ele também é o

Juiz (Is 33.22). É verdade que contra as queixas de pessoas que dizem que

Deus condena para que seja justo (Jó 40.2), as Escrituras Sagradas esclarecem,

sem sombra de dúvida, que a absoluta soberania de Deus e de Seus atos é

enfatizada, e o acento recai sobre o fato de que os habitantes da terra são

reputados por nada, que Deus age de acordo com Sua vontade com o

exército do céu e com os habitantes da terra e que ninguém pode deter Sua

mão nem lhe dizer: Que fazes? (Do 4.35). Ele é o Criador de todas as coisas,

com quem nenhuma criatura pode contender (Is 45.9). Ele é o oleiro em

cujas mãos Israel é como um barro (Jr 18.6; Is 10.15). Mas, essas afirmações não

servem para representar Deus como um tirano que age arbitrariamente. Elas

Page 425: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

convidam o homem a humilhar-se e a curvar-se diante da majestade dos

pensamentos de Deus e da incompreensibilidade de Seus caminhos (Is

55.8,9). Ele é grande em majestade e em poder, porém, não perverte o juizo e a

plenitude da

justiça 06 36.5; 37.23).

E isso só é possível porque Ele é onisciente, onipotente e absolutamente justo. No caso dos dominadores terrenos, a realidade em geral é, por completo, diferente; e é por isso que eles são tantas vezes admoestados no Velho Testamento a ser imparciais no julgamento331 , não aceitar presentes", não oprimir o pobre e o es-trangeiro, o órfão e a ViúVa333, proclamar que o justo é justo e que o injusto é

injusto e julgar com justo juizo"'. Aquele que justifica o injusto e condena o justo é abominávelaoSenhor"' 0Senhoréjusto e ama a justiça; os retos lhe contemplarão a faee13' Sua mão está cheia de justiça; justiça e juizo são a habitação de Seu trono117 . Ele é imparcial, não faz acepção de pessoas, não aceita presentes"', e tanto o rico quanto o pobre são obras de Suas mãos"'. Ele não olha para a aparência, mas para o coração~O e prova o mais íntimo do coraçãoml. Um dia Ele julgará o mundo com justiça e administrará os povos com retidão?". Ele será

exaltado em juízo e santificado em justiça"'.

No entanto, se a justiça de Deus consiste no fato

de que Ele age rigorosamente de acordo com a

justiça e julga todos os homens pelo padrão de Sua

santa lei, como pode alguém ser declarado livre de

culpa por Deus e receber dele o direito à vida

eterna?

Certamente não pode haver dúvida de que todo

homem, sem exceção, é culpado de transgredir a lei

Page 426: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

de Deus e merece a punição aplicável a essa

transgressão. Desde a desobediência de Adão uma

esteira de injustiça tem conduzido a humanidade.

Os pensamentos humanos são maus desde a sua

mocidade (Gn 63; 8.21). Todos nascem impuros;

todos se desviaram e não há quem faça o bem,

nem sequer UMI14 . Não há homem que não peque, e

não há quem possa dizer: "Limpo está o meu

coração, estou isento de pecado"ml. Se Deus

observar as iniqüidade quem subsistirá?'". Se essa

é a situação humana, como uma pessoa pode ser

justificada diante

de Deus e por Deus?

Contudo, o mesmo Velho Testamento, que tão

claramente proclama a pecaminosidade e a

injustiça de toda a raça humana, várias vezes

menciona a justiça e a honra no coração e diz que

ambas vivem em um mundo cheio de rancor. Dessa

forma, Noé é chamado de um homem justo e per-

feito em suas gerações (Gn 6.9; 7.1) e Jó recebe de

Deus o testemunho de que ninguém havia como ele

sobre a terra, um homem justo e honrado, temente

a Deus e que se desviava do maI397 . Nos Salmos,

freqüentemente se faz referência a um pequeno

grupo de justos que permanecem fiéis ao Senhor e

que contrastam com os infiéis e sofrem muito em

suas mãos3 8. Os Provérbios apresentam o mesmo

contraste entre os homens141. Da mesma forma, os

profetas fazem distinção entre um pequeno núcleo

de pessoas que permanece fiel ao Senhor e grandes

grupos que se entregam à idolatria e à iniqüidade

Page 427: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

311 Ezequiel, de forma especial, faz uma distinção

muito clara entre os justos e os injustos, e ao fazer

isso ele não está pensando em grupos, mas em

pessoas"'.

Mas não é apenas isso que nos é dito no Velho Testamento. Ainda mais surpreendente é o fato de que esses justos não temem a justiça de Deus e nunca, nem uma única vez, temem ser destruídos pelo juizo de Deus. Para os ímpios, esse juízo será terrível"'. Mas os santos fazem desse juizo a base de sua apelação; eles oram para pedir que Deus execute Seu juízo porque Deus é um Deus de justiça (SI 4.1; 143.1) e esperam que Deus, precisamente por ser o Deus justo que prova os corações, estabeleça os justos (SI 7.9), livre-os (SI 31.2), redima-os (SI 34.22), desperte para fazer justiça (SI 35. 23 ss.), responda-lhes e os vivifique (SI 119.40; 143.1) e tire suas almas da tribulação (SI 143.11).

Esse apelo do justo à justiça de Deus algumas vezes dá um passo a mais e assume a forma, inacreditável para nós, de um pe-dido a Deus para que Ele os trate conforme a justiça deles. Jó não pode admitir que é culpado e está consciente de sua conduta pura (Jó 29.12 ss.; 31.1 ss.) e o Senhor confirma diante dos amigos de Jó que Seu servo é justo (Jó 42.7). Nos Salmos, nós freqüentemente ouvimos a seguinte súplica: "Julga-me, Senhor, segundo a minha justiça

e segundo a minha integridadee "53. Isaías registra que o pensamento do povo era que o seu caminho estava escondido ao Senhor e que Deus não levaria em conta os seus pecados. Mas o profeta foi enviado ao povo precisamente para proclamar, em nome do Senhor, que isso não era verdade. Depois do castigo, da disciplina, seguir-se-ia a redenção. Será findo o tempo da sua milícia e perdoada a sua iniquidade (Is 40.2), o Senhor fará chegar a Sua justiça e a Sua salvação não tardará (Is 46.13). Assim como em Seu caminho redentivo Deus repetidamente intervém na vida dos santos, baixa de Sua presença o julgamento que lhes é devido (SI 17.2) e executa justiça em favor do necessitado e do oprimido354 , assim também Ele defende a causa de SeupoV0311. Ele desnudará Seu braço santo aos olhos de todas as nações, pronunciará uma palavra de justiça e através de Sua justiça Ele estabelecerá Seu povo"'. Ele é um Deus justo e Salvador (Is 45.21). Nele estão a justiça e a força; dEle procede toda a justiça; e no Senhor serão justificados todos os filhos de Israel e nEle todos eles serão glorificadoSI37.

Portanto, o Velho Testamen-

to torna evidente que não apenas há pessoas justas em Israel, mas também

diz que essas pessoas justas procuram sua salvação precisamente na justiça

Page 428: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

de Deus. Isso nos causa uma certa estranheza, pois, nós estamos

acostumados a opor ajustiça de Deus à Sua misericórdia. A forma pela qual

nós estamos inclinados a pensar sobre isso é que nós somos condenados pela

justiça de Deus e salvos por Sua misericórdia. Mas os santos do Velho

Testamento não faziam esse contraste. Eles relacionavam a justiça de Deus

com sua Graça e com sua misericórdia, com Sua bondade e com sua verdade,

com Sua aprovação e com Sua fidelidade"'. Eles diziam que o Senhor é

gracioso e justo (SI 112.4; 116.5) e que os livramentos que Ele realizava em

favor de Seu povo eram evidências de Sua justiça"'. E é por isso que a justiça

de Deus, não menos que a Sua misericórdia, é para os santos motivo de

contínuo louvor311

Mas como isso é possível? Como podem todas essas pessoas pecadoras permanecer na presença de Deus como pessoas justificadas e justas? Como podem elas ter justiça e como podem elas,

de acordo com a justiça de Deus, ser absolvidas de seus pecados e de sua culpa e entrar em comunhão com Deus?

Será que isso é possível porque nos dias do Velho Testamento o povo de Israel possuía o templo e zelosamente trazia diante de Deus seus sacrifícios de cordeiros e novilhos? Havia muitos em Israel que colocavam nesses sacrifícios a sua confiança e que por isso criam que o mal não se aproximaria deles. Mas os profetas que se levantaram em nome do Senhor instruíram o povo de forma bem diferente. Enquanto Israel se orgulhava por seus privilégios exter-nos, os profetas unanimemente declaravam que eles eram indignos de confiança. "Não sois vós para mim,ó filhos de Israel, como os filhos dos etíopes? – diz o Senhor. Não fiz eu subir a Israel da terra do Egito, e de Caftor os filisteus, e de Quir os siros?" (Am 9.7).E àqueles que confiavam no templo do Senhor o profeta Jeremias diz: "farei também a esta casa, que se chama pelo meu nome, na qual confiais, e a este lugar, que vos dei a vós outros e a vossos pais, como fiz a Silo" (Ir 7.14). Os santos de Israel sabiam muito bem que os sacrifícios não podiam satisfazer o Senhor (SI 40.9; 51.6). Através dos lábios dos

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profetas o Senhor disse: "Estou farto dos holocaustos de carneiroseda gordura de animais cevadose não me agrado do sangue de novilhos, nem de cordeiros, nem de bodeS"311

Será então que o fundamento da salvação dos santos do Velho Testamento era sua própria justiça? Será que era por causa de sua própria justiça que eles eram tão otimistas quanto ao seu futuro? Será que eles pensavam que suas boas obras poderiam aplacar o juízo de Deus? Esse pensamento poderia por um momento vir à nossa mente quando nós observa-mos, como na pessoa de Jó, quão fortemente eles estavam convencidos de sua inocência Oó 29.12 ss.; 31.1 ss.), como eles apelam à sua integridade, fidelidade e justiça 112~ como eles constantemente falam de seu direito e sentença"', e, finalmente, como o próprio Senhor os reconhece como justoslfi'. Mas quando nós penetramos mais profundamente nesse pensamento, percebemos que esse fundamento também não é real.

Esse apelo dos santos à sua justiça pelo lado dos santos é acompanhado, ou intercambiavelmente substituído, pela humilde confissão de pecados. Jó não se-

mente fala dos pecados de sua juventude, mas também se abomina e se

arrepende no pó e na cinza & 13.26; 42.6). No Salmo 7.9, Davi fala de sua

integridade, mas também lança fora toda a sua justiça, confessa suas

transgressões diante do Senhor e se gloria somente no perdão de pecados

(SI 32.11). Daniel apela, não à sua própria justiça, mas às doces misericórdi-

as de Deus, que são grandes (Dn 9.18). Em Isaías, um Israel santificado

confessa que todas as suas justiças são como um trapo de imundície, que

todos se extraviaram como ovelhas que não têm pastor, que cada um

seguia pelo seu próprio caminho, mas que o Senhor converteu todos de sua

injustiça ao Seu Servo. No Salmo 130.3,4, o salmista diz que se o Senhor

observar as iniqüidade, ninguém subsistirá em Sua presença, mas que com

Ele está o perdão para que os santos o temam. E todos os santos do Velho

Testamento reconhecem que Deus é justo ao punir Israel; eles e seus pais

pecaram e foram rebeldes contra

DeUS311.

Page 430: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

Quando os santos em Israel fazem menção de sua justiça, é verdade que eles também estão pensando em sua conduta corre-

ta e em sua integridade diante de Deus; eles até mesmo oram ao Senhor, que prova os corações, pedindo que Ele veja se há neles algum caminho mau e que Ele os guie pelo caminho eterno"'. Mas essa justiça e essa integridade a que eles se referem não é uma perfeição moral como aquela que os fariseus posteriormente afirmavam possuir. Em vez disso, eles estão pensando em uma integridade moral que tem seu fundamento e sua fonte em uma integridade religiosa, ou seja, em uma justiça pela fé. Isso se toma claro pelo fato de que os justos são também freqüentemente representados como sendo pobres, necessi-tados, oprimidos, fiéis, humildes e mansos, que temem o Senhor e que não possuem outra esperança além dele. Eles são as mesmas pessoas que Jesus mais tarde chamou de humildes de espírito, aqueles que choram, que têm fome e sede de justiça, os injuriados e perseguidos e os pequeninos (Mt 5.3 ss.; 11.25,28).

Essas pessoas não estavam destinadas a serem livres do pecado, mas no meio da opressão e da perseguição a que estavam sujeitas no mundo, confiaram no Senhor e esperaram sua salvação e suas bênçãos somente dEle. Não havia qualquer livramento neles,

nem por eles, nem em qualquer outra criatura, mas somente no Senhor. E esse Deus, conseqüentemente, é o Deus deles, seu sol e escudo, seu refúgio e sua torre alta, sua rocha e sua força, seu libertador e redentor, sua glória e seu tudo (SI 18.3; 73.25ss.). Eles eram o povo de Deus, rebanho do Seu pastoreio, Seus servos e beneficiários"'. Eles procuram por sua salvação, apegam-se à Sua palavra, alegram-se em Sua lei e esperam todas as coisas somente dEle. Eles não são como os fariseus, que em oposição a Deus insistem em seus direitos e privilégios, mas são pessoas que estão do lado de Deus e em Aliança com Ele e sempre tomam posição contra os inimigos de Deus e os seus próprios inimigos.

Quando tais pessoas, em suas orações e súplicas, apelam à sua justiça e à justiça de Deus, querem dizer que o Senhor, em virtude de Sua Aliança, é obrigado a agir em favor de Seu povo contra Seus inimigos, pois esse povo anda no temor de Seu nome. Deus escolheu Seu povo, não por causa de seu tamanho e de seu número, nem por causa de sua justiça e integridade, mas porque o Senhor voluntariamente o amou e também por causa do juramento que Ele tinha feito aos patriarcas do

povo (Dt 7.7 ss.; 93,6). A Aliança que Deus fez com esse povo está baseada somente no Seu beneplácito, no Seu favor. Mas, em virtude dessa Aliança, não pode ser negado que Ele está, de certa forma, obrigado a manter esse povo, preservá-lo e garantir a ele toda a salvação que Ele lhe prometera quando disse a Abraão: "Estabelecerei a minha Aliança entre mim e ti e a tua descendência no decurso das suas gerações, Aliança perpétua, para ser o teu Deus e o Deus da tua descendência" (Gn 17.7).

Page 431: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

A justiça de Deus, conseqüentemente, à qual os santos de Israel apelam em sua opressão, é um apelo segundo o qual, em virtude de Sua Aliança, Deus é obrigado a livrar Seu povo de todos os seus inimigos. Essa não é uma obrigação que repousa sobre Deus por causa de Seu povo, mas uma obrigação que repousa sobre Deus por causa dEle mesmo. Ele é livre; Ele livremente se relacionou com Seu povo e assim Ele deve, por causa de Si mesmo, por causa de Sua Aliança e de Seu próprio juramento e por causa de Sua palavra e de Sua promessa, continuar sendo o Deus de Seu povo, a despeito da injustiça do povo. É por isso que nós lemos com freqüência que é em consideração ao

nome de Deus, à Sua aliança, à Sua glória, à Sua honra, que Ele dá ao Seu povo os benefícios que lhe tinha prometido"'. Embora as pessoas possam se tornar incrédulas e apóstatas, Ele se lembra da Sua Aliança e as conserva perpetua-mente fiéiS319 . A justiça de Deus, à qual os israelitas piedosos apelam, não forma um contraste com Sua bondade e com a salvação, mas está relacionada com ambas e está em íntima conexão com Sua verdade e fidelidade. Essa justiça faz com que Deus cumpra Sua palavra e Sua promessa e obriga-o, por Sua pura Graça, a salvar Seu povo de toda opressão.

E foi assim que Deus se conduziu, quando Ele repetidas vezes resgatou Israel

de todos os seus inimigos3", Mas Ele ainda faria muito mais do que isso no

futuro, quando estabeleceria Seu reino entre Seu povo. Em virtude de Sua

própria justiça, por ser um Deus de verdade, justiça e fidelidade, Ele faria

uma nova Aliança com Seu povo, perdoaria seus pecados, derramaria o

Espírito Santo sobre ele, e faria com que ele andasse em Seus caminhos (Ir

31.31-34). Mas Ele não faria tudo isso em consideração aos Seus servos, mas

em consideração a Si mesmo, ao Seu grande Nome. "Eu, eu mesmo, sou o

que apago as tuas transgressões por amor de mim, e dos teus pecados não

me lembro" (Is 43.25). Ele mesmo concede a justiça que Israel requeri". Ele

cria novos céus e nova terra, nos quais não há lembrança das coisas passadas,

nem há memória delas (Is 65.17). Nesse dia Judá será salvo e Israel habitará em

segurança; será este o Seu nome, com que será chamado: Senhor, Justiça

Nossas".

Page 432: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

O pensamento de que Deus concede justiça ao Seu povo e dessa forma o justifica é desenvolvido com riqueza de detalhes no Novo Testamento, quando Cristo aparece na terra e em Sua vida e morte cumpre toda a justiça em favor de sua Igreja.

O próprio Jesus anunciou que o tempo estava cumprido e que o reino de

Deus estava próximo (Me 1.15). Com essa pregação Ele queria dizer não

apenas que o reino estava chegando, mas também que, em princípio, em

Sua pessoa e obra esse reino já tinha chegado. Ele é o Messias em quem as

profecias do Velho Testamento a respeito do Servo do Senhor foram

cabalmente cumpridas (Le 4.17-21). Quando Ele cura os enfermos,

ressuscita os mortos, ex

pulsa os demônios, prega o Evangelho aos pobres, perdoa pecados, Ele está dando evidências indisputáveis de que é Aquele que fôra prometido nas profecias e que o reino de Deus está sobre a terra 311. Os tesouros do reino dos céus são expostos nos benefícios que Cristo concede, a saber, a redenção fí-sica e espiritual.

Dentre os tesouros desse reino Jesus menciona especificamente a justiça.

Em Mateus 6.33 essa justiça está mais intimamente relacionada ao reino de

Deus e à Sua justiça. Assim como esse reino é de Deus, assim também a

justiça desse reino é propriedade de Deus e Ele a distribui através de Cristo.

Quem quer que procure e encontre o reino de Deus imediatamente recebe a

justiça que é necessária para que se obtenha a cidadania desse reino.

É por isso que Jesus pode dizer que a posse dessa justiça é uma condição necessária para que se entre no reino de Deus. Ele nos diz que se a nossa justiça não exceder em muito a justiça dos escribas e fariseus nós jamais en-traremos no reino dos céus"'. Essa justiça que Jesus requer de Seus discípulos é uma justiça muito diferente, muito mais profunda e muito mais íntima do que o exter-

Page 433: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

no cumprimento da lei com o qual os judeus se contentavam. Essa justiça é

uma justiça espiritual e perfeita, é uma justiça semelhante à do Pai (Mt

5.20,48). Mas, quando Jesus afirma que essa justiça é necessária para que se

entre no reino dos céus, Ele não quer dizer que a pessoa deva alcançar essa

justiça por sua própria força. Se isso fosse possível, não haveria necessidade

de um Messias e Seu Evangelho não teria sido uma boa nova. O propósito de

Cristo ao afirmar que é necessário que a pessoa possua a justiça de Deus

para entrar no reino dos céus é lançar luz sobre a natureza, o caráter

espiritual e a perfeição do reino de Deus: ninguém pode entrar nesse reino a

não ser que esteja em plena harmonia com a lei de Deus e desfrute de perfeita

justiça.

Mas essa justiça que, por um lado, é a condição e a exigência para se

entrar no reino, é, por outro lado, o dom desse reino. É o próprio Cristo quem

concede todos os benefícios desse reino, e a justiça é um deles. Ele é o reino

de Deus e a justiça é a justiça de Deus (Mt 6.33), mas assim como o Pai confiou

Seu reino ao Filho, assim também o Filho o confiou aos Seus discípulos (Lc

22.29; 12.32), pois, o Pai ama o Filho e entregou todas as coisas em Suas

mãos"'. Mas

o Pai lhe concedeu todas as coisas por que ele é o Filho do homem (Jo 5.27),

isto é, para que por meio da obediência até a morte ele possa alcançá-las por

si mesmo. Ele não veio para ser servido, mas para servir e para dar Sua vida

em resgate por muitos (Mt 20.28). Na morte sobre a cruz Ele permitiu que

Seu corpo fosse ferido e que Seu sangue fosse derramado para que o Novo

Testamento pudesse ser estabelecido e todos os pecados de Seu povo

pudessem ser perdoados (Mt 26.26-28).

Sobre o fundamento dessa entrega de todas as coisas pelo Pai e de Seu

Page 434: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

próprio sacrifício, Ele distribuiu, antes e depois de sua morte, todos os benefícios

do reino aos Seus discípulos. Ele não apenas curou os enfermos, mas

também perdoou os pecados deles e lhes deu vida eterna. Ele não concedeu

esses benefícios aos orgulhosos fariseus, mas aos publicanos e pecadores,

aos cansados e sobrecarregados, aos humildes de espírito, àqueles que têm

fome e sede de justiça. Ele não veio chamar os justos, mas os pecadores ao

arrependimento (Mt 9.13) e buscar e salvar aquele que estava perdido (Lc

19.10). Não a justiça própria, mas a regeneração, a fé e o arrependimento

dão acesso ao reino e a todos os seus benefícios. E essa regeneração e esse

arrependimen-

to são um dom e uma obra do Espírito Santo ao 3.5).

Logo que o Espírito Santo foi derramado no Pentecostes os apóstolos começaram a pregar o Cristo crucificado como o Príncipe e o Salvador exaltado por Deus, para dar a Israel arrependimento e perdão de pecados (At 2.36,38; 5.30,31). Depois do evento redentivo ocorrido na morte de Cristo, o seu significado pôde, à luz da ressurreição e através do envio do Espírito, ser plenamente explicado pelos apóstolos. E nenhum dos apóstolos conseguiu explicar melhor esse evento do que o apóstolo Paulo, que foi cir -cuncidado ao oitavo dia, era da linhagem de Israel, da tribo de Benjamin, hebreu de hebreus, quanto à lei, foi fariseu, quanto ao zelo, perseguidor da Igreja; quanto à justiça que há na lei, irrepreensível, mas que considerou o que para ele era lucro como perda por causa de Cristo (Fp 3.5-7).

De acordo com esse testemunho que dá de si mesmo, o apóstolo Paulo lutou por vários anos e com muito zelo pela justiça que está na lei. E ele fez isso durante um bom tempo. Quanto à justiça que está na lei (Fp 3.6) e que é obtida pela lei (Fp 3.9; Rm 10.5; 9.32), ele foi, humanamente, irrepreensível. Ninguém podia levantar

o que quer que fosse contra ele. Pelo contrário, todos gostavam muito dele.

Ele tinha prestígio e teria se tornado muito famoso entre seu povo se tivesse

continuado nesse caminho. Seu lucro era muito grande (Fp 3.7). Mas quando

aprouve a Deus revelar Seu Filho a ele, devido à excelência do conhecimento

de Cristo, seu Senhor, ele reconheceu toda a sua antiga justiça como perda,

considerou-a como algo a ser repudiado e algo inútil, para que pudesse

ganhar a Cristo, ser encontrado nEle, não tendo a justiça que é pela lei, mas a

que é pela fé em Cristo.

Page 435: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

O apóstolo explica em vários lugares o motivo pelo qual a justiça das

obras da lei é inadequada. A lei é santa, justa, espiritual e boa, mas o homem,

sendo carnal, está rendido ao poder do pecado (Rm 7.12,14); ela não pode

dar vida e não pode apagar o pecado, por causa da fraqueza da carne (Rm

8.3; G13.21). Ela faz exigências, mas não faz concessões, não concede

benefícios. Ela diz apenas que o homem que cumpre a lei viverá por ela

(Rm 10.5; G1 3.10,12). Contudo, ela não pode conceder a vida porque a

carne não se sujeita e não pode sujeitar-se à lei de Deus (Rm 8.7). Em vez de

justificar e dar vida, a lei aumenta a força do pecado (1Co 15.56). Se não

houvesse lei não haveria pecado e não haveria transgressão (Rm 4.15; 7.8).

Mas, na

condição pecaminosa na qual o homem se encontra, a lei fortalece o pecado

e desperta o desejo, ou melhor, o pecado que vive no homem toma ocasião

pelo mandamento para excitar todos os tipos de desejo no coração e

multiplicar-se abundantemente 171. Conseqüentemente, o que a lei pode fazer

é dar conhecimento do pecado (Rm 3.20; 7.7), suscitar a ira (Rm 4.15) e

colocar as pessoas sob maldição (GI 3.10); mas, pelas obras da lei ninguém

pode ser justificado"'. Julgado pela leio mundo todo é culpado diante de Deus

e está sujeito à penalidade (Rm 3.19), pois, a ira de Deus se revela contra

todas as iniqüidades e injustiças dos homens"'.

Mas, se esse é o juizo que a lei de Deus pronuncia sobre todos os homens,

quem pode ser salvo? Paulo responde a essa pergunta da mesma forma que

Jesus também respondeu em Mateus 19.26: Isto é impossível aos homens, mas

para Deus tudo é possível. É possível que Deus justifique os ímpios e contudo

continue sendo perfeitamente justo (Rm 3.26; 4.5). O que Deus mais

estritamente condena em Sua lei, a saber, a justificação do ímpio379, o que Ele

diz que nunca fará (Ex 23.7), isso é o que ele faz, sem, contudo, colocar em

ris

co Sua justiça. Essa é a maravilha do Evangelho.

Page 436: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

Deus proclamou Sua justiça não somente na lei, mas também no

Evangelho. No Evangelho Sua justiça é revelada sem a lei, sem sua

contribuição, totalmente à parte dela e aparentemente em oposição a ela

(Rm 1.17; 3.20). Esse Evangelho já existia no paraíso. A justiça de Deus que foi

revelada no Evangelho, tem o testemunho da lei e dos profetas e de toda a

Escritura do Velho Testamento (Rm 3.21). Abraão foi justificado por ela

quando ainda era incircunciso (Rm 4.1ss.). Davi também declara ser bem-

aventurado o homem a quem Deus atribui justiça, independente das obras da

lei (Rm 4.6) e Habacuque faz uma afirmação geral: "O justo viverá pela fé"

(Rm 1.17; G13.11). Mas agora, no tempo presente (Rm 3.21,26), essa justiça de

Deus tornou-se muito mais obviamente manifesta, pois, Cristo se fez justiça

por nós (1Co 1.30).

A lei que foi dada a Israel estava a serviço dessa plena revelação da

justiça de Deus no Evangelho, pois, ao excitar o pecado e ocasionar o

conhecimento do pecado, ao suscitar a ira e dar lugar à maldição, a lei serviu

como um pedagogo para nos conduzir a

Cristo, para que aqueles que estavam sob sua tutela pudessem, na plenitude

dos tempos, através de Cristo, ser justificados pela fé (CI 3.22-25). Dessa

forma as pessoas foram preparadas pela disciplina da lei para o surgimento

do Evangelho. Mas, da parte de Deus, a lei serviu ao cumprimento da pro-

messa, pois, nos tempos anteriores a Cristo, Deus permitiu que as nações

andassem em seus próprios caminhos e Deus, na Sua tolerância, deixou

impunes os pecados no sentido de que Ele não os puniu como no deserto (Rm

3.25). Foi por isso que se tornou necessário que Ele manifestasse sua justiça de

outra forma, no Evangelho, totalmente à parte da lei (Rm 3.25,26). Através da

lei Ele encerrou todas as coisas debaixo do pecado para que a promessa da

herança pudesse ser dada aos crentes, não pelas obras da lei, mas pela fé em

Jesus Cristo'".

Page 437: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

Conseqüentemente a justiça que Deus revela no Evangelho tem seu próprio caráter. Ela surge sem a lei e ao mesmo tempo se harmoniza com a lei (Rm 3.21). Ela condena e ao mesmo tempo preserva. Ela é uma manifestação da justiça de Deus e ao mesmo tempo é uma manifestação da Sua Graça 3.23,24). Ela deve ser tal que Deus possa justificar o ímpio atra-

vês dela e ao fazer isso continue sendo perfeitamente justo (Rm 3.26; 4.5).

Isso acontece objetivamente na apresentação de Cristo como uma

reconciliação em Seu sangue e subjetivamente no exercício da fé em Cristo

como justiça (Rm 4.4,5; GI 3.6). Em resumo, a justiça que Deus revela no

Evangelho consiste em uma concessão de uma justiça de fé que, como tal, está

em posição diametralmente oposta à justiça das obras da lei, à justiça própria

do homem"'. Essa é a justiça de Deus através da fé em Cristo (Fp 3.9).

Portanto, no ensino da Escritura sobre a justificação dos pecadores a ênfase cai sobre o fato de que essa justificação, em função da qual nós estamos isentos de culpa e de punição, é uma dádiva de Deus. Se nós fossemos justificados pelas obras da lei, pela observância dos mandamentos da lei, en-tão nós poderíamos comparecer diante do julgamento de Deus com nossa justiça própria e auto-suficiente e assim nós, em um certo sentido, glorificaríamos a nós mesmos (Rm 4.2). Mas o ensino da Escritura é diferente. Abraão não tinha em que se gloriar diante de Deus porque ele não foi justifica-

do pelas obras da lei, mas pela sua fé que lhe foi atribuída como justiça e o seu

salário lhe foi concedido não como dívida, mas como Graça (Rm 4.4,5).

A justiça que Deus nos dá em Cristo e com a qual nós podemos entrar

na presença de Deus não é fruto de nosso labor, mas uma dádiva de Deus,

uma dádiva de Sua Graça. Nós somos justificados gratuitamente pela reden-

ção que está em Cristo Jesus (Rm 3.24). A Graça de Deus é o mais profundo

fundamento e a causa final de nossa justificação. Mas essa Graça não deve

ser vista como um contraste com a justiça de Deus, e sim como intimamente

Page 438: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

relacionada com ela. Paulo diz que no Evangelho a justiça de Deus tomou-se

manifesta112 e da mesma forma João, em sua primeira carta (1Jo 1.9), escreve

que Deus é fiel e justo para nos perdoar os pecados se nós os confessarmos e

limpar-nos de toda injustiça. E Pedro, em sua segunda carta (2Pe 1.1), diz que

nós obtivemos a fé através da justiça de Deus e de nosso Salvador Jesus

Cristo.

Nessas afirmações está contida a idéia de que Deus, no Evangelho, criou

outra ordem de justiça, diferente daquela que era obtida sob o regime da lei.

Essa antiga ordem também revela a justiça de Deus, mas, de tal forma, que

Ele dá Sua lei aos homens, obriga os homens a obedecerem a essa lei e

posteriormente pune ou recompensa os homens segundo o julgamento da

conduta que eles tiveram em relação à lei. Todavia, visto como essa lei

tornou-se sem efeito por causa do pecado, Deus, no Evangelho, estabeleceu

outra ordem de justiça. Nessa nova ordem os homens também devem

sujeitar-se (Rm 10.3), mas, essa ordem em si mesma, através da fé, concede a

justiça necessária para que os homens compareçam diante do trono de Deus.

O Evangelho é, de acordo com essa perspectiva, simultaneamente uma

ordem de justiça e uma ordem de Graça. A Graça consiste no fato de que

Deus, que podia conservar-nos sob os termos da lei e condenar-nos por ela,

abriu um novo caminho de justiça e vida em Cristo. E a justiça consiste no

fato de que Deus não nos conduz ao Seu reino sem justiça e santificação, mas

graciosamente nos concede a perfeita justiça que foi realizada no sacrifício

de Cristo. Cristo é uma dádiva do amor de Deus (Jo 3.16; Rm 5.8). E ao

mesmo tempo Cristo é uma manifestação da justiça de Deus (Rm 3.25). Na

cruz do calvário a justiça e a paz se uniram. A justificação é um ato tanto da

justiça quanto da Graça de Deus.

Nós temos que agradecer a Cristo e a todos os Seus benefícios por essa

união entre a justiça e a Graça. A Ele nós devemos também os benefícios de

justiça de que necessitamos para permanecer diante do juízo de Deus. Essa

justiça, que nos é dada pela fé, deve ser cuidadosamente distinguida da

Page 439: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

justiça que é um atributo do Ser divino, e também da justiça das naturezas

humana e divina de Cristo, pois, se a justiça, que é um atributo de Deus ou de

Cristo, fosse o fundamento de nossa justificação, não somente toda a paixão e

morte de Cristo perdem o seu valor, mas também a fronteira entre o Criador

e a criatura é apagada e as naturezas de um e de outro se mesclam em uma

onda panteísta. A justiça que se torna nossa através da fé e que nos justifica

diante de Deus foi alcançada pela paixão e morte de Cristo. Deus enviou

Cristo como uma propiciação através da fé em Seu sangue, isto é, como um

meio de reconciliação que efetuasse a remissão dos pecados através do

poder do derramamento de Seu sangue e por meio da fé (Rm 3.25). Ele foi

feito pecado por nós para que, nEle, nós fossemos feitos justiça de Deus (2Co

5.3; GI 3.13). Há uma troca entre Cristo e aqueles que lhe pertencem. Cristo

toma sobre si os pecados e a maldição de Seu povo e lhes dá Sua justiça.

Cristo se tornou, da parte de Deus,

sabedoria, justiça, santificação e redenção (1Co 1.30).

A justiça de Deus é tão perfeita e adequada que não requer

complementação nem suplementação de nossa parte. De fato ela não pode,

seja de que forma for, ser ampliada ou melhorada por nós, pois, ela é um

todo orgânico. Assim como a lei é um todo, de forma que quem quer que a

observe inteiramente mas transgrida um só de seus preceitos a transgride

toda (Tg 2.10), assim também a justiça que satisfaz as exigências da lei é

um conjunto perfeito, uma unidade semelhante à túnica de Jesus, que era

tecida de alto a baixo (Jo 19.23). Essa justiça não nos é concedida em pedaços

ou fragmentos. Ou você a possui por inteiro ou você não a possui. Nós não

podemos receber uma parte dessa justiça e depois completarmos o que

falta. Aliás, o que nós teríamos que fosse suficientemente bom para

completar essa justiça? Certamente, não as boas obras feitas mediante a fé.

A Escritura nos diz que são maus os desígnios do coração do homem desde

a sua mocidade, que o que é nascido da carne é carne, que a amizade da

carne é inimizade contra Deus, que a carne não pode submeter-se à lei de

Deus e que toda a justiça humana é como um trapo de imundície.

Page 440: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

Se as boas obras pudessem ampliar e completar a justiça queCristo alcançou, as únicas obras que poderiam ser consideradas qualificadas para

esse fim seriam as obras realizadas pelos regenerados através da fé. E verdade que os crentes podem realizar boas obras, assim como a boa árvore pode dar frutos bons, assim como o homem bom do bom tesouro pode tirar boas coisas (Mt 12.35). Renovado pelo Espírito de Deus, o crente tem prazer na lei de Deus no tocante ao homem interior (Rm 7.22). Contudo, todas essas obras que são realizadas pela fé, ainda são muito imperfeitas e são contaminadas pelo pecado. Quando o crente quer fazer o que é bom, freqüentemente encontra a lei de que o mal reside nele (Rm 7.21). Além disso, todas essas boas obras já pressupõem a justiça concedida por Cristo e aceita pela fé. O cristão simplesmente anda em boas obras que Deus, desde a criação, preparou para que ele andasse nelas (Ef 2.10).

Nosso conforto com relação à justificação é que toda a justiça de que necessitamos vem a nós através de Cristo Jesus. Não somos nós que devemos alcançá-la. Deus revela Sua justiça no Evangelho pelo fato de que Ele providencia para nós toda a justiça de que necessitamos através do sacrifício de Cristo. A justiça que nos justifica é a justiça de Deus atra

vês da fé em Cristo. Nem no todo, nem em partes, ela depende das nossas obras, pois, ela é inteiramente perfeita e adequada, uma dádiva de Deus, uma dádiva graciosa de Sua Graça'81. E se é pela Graça, então não pode ser pelas obras, do contrário a Graça não é Graça (Rm 11.6). Em resumo, Cristo é a justiça com a qual nós podemos nos apresentar diante de Deus. Através de Sua paixão e morte, Ele por si mesmo conquistou o direito de entrar na vida eterna e de conduzir para lá aqueles que lhe pertencem, livres de toda culpa e punição e assentou-se à direita de Deus.

A justiça que nos justifica, portanto, não deve ser separada da pessoa de Cristo. Ela não consiste de um dom material ou espiritual que Cristo nos concede fora de Si mesmo, ou que nós podemos aceitar e receber sem que aceitemos e recebamos a pessoa de Cristo. Não há possibilidade de se desfrutar dos benefícios de Cristo sem que haja comunhão com a pessoa de Cristo e a comunhão com Cristo invariavelmente traz consigo os benefícios de Cristo. Para ser aceito diante de Deus, para ser livre de toda culpa e punição e para desfrutar da glória de Deus e da vida eterna, nós temos que ter Cristo, não algo dele, mas o próprio Cristo. Nós temos que pos-

suí-lo na plenitude de Sua Graça e verdade, segundo Suas naturezas divina e

humana, em Sua humilhação e em Sua exaltação. O Cristo crucificado e

glorificado é a justiça que Deus nos concede através de Sua Graça na

justificação. E quando Deus nos concede esse Cristo juntamente com todos os

benefícios de sua livre Graça, sem qualquer mérito de nossa parte, através

da fé, então nós estamos justificados. Ele nos declara livres de toda

culpa e punição e nos dá o direito à vida eterna, à glória celestial, à Sua

abençoada e permanente comunhão. E assim nós podemos permanecer em

Sua presença como se nós não tivéssemos pecado, como se nós mesmos

tivéssemos alcançado a obediência que Cristo alcançou por nós.

Page 441: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

Há, todavia, duas formas pelas quais nós podemos obter um bem. Podemos entrar na posse de bens por uma decisão judicial e podemos, com base em uma decisão legal, mais cedo ou mais tarde, receber bens. Através de um testamento podemos ser designados herdeiros e receber o direito de transferência de bens, mas é possível que, somente anos mais tarde, realmente passemos a desfrutar desses bens. E até mesmo quando o direito legal e a posses-

são real coincidem, ainda há uma grande diferença entre os dois. A

propriedade é a posse real de alguma coisa. Essa é uma distinção que não

existe entre os animais, pelo menos não dessa forma. Um animal possui o

que ele conquista. Mas com o homem é diferente. Criado à imagem de Deus,

ele tem o direito a alguma coisa para possuí-la e utilizá-la. Sua honra, seu

privilégio é que ele não vive pela ação predatória. Pela obra de suas mãos ele

come o seu pão.

Isso tem uma aplicação na esfera espiritual. Nós temos todos os tipos de relacionamentos com Deus. Ele é o nosso Criador e nós somos Suas criaturas. Ele é o oleiro e nós somos o barro. Ele é o Construtor e Arquiteto e nós so-mos Seu templo. Ele é o proprietário e nós somos ramos de Sua videira. Ele é nosso Pai e nós somos Seus filhos. Todos os relacionamentos que existem no mundo entre o noivo e a noiva, o homem e a mulher, pais e filhos, dominadores e subordinados, e assim por diante, são usados pela Escritura para nos ensinar o rico e multiforme relacionamento que as pessoas em geral, e em particular os crentes, mantêm com Deus. E nenhum desses relacionamentos pode ser negligenciado sem que se faça violência de algum tipo à intimidade desse relacionamento. Dessa forma, por exemplo, nós temos a relação de um filho com

Deus. O filho perdido, até mesmo em seu afastamento, continua recebendo o

nome de filho, mas ele é um filho perdido, um filho morto. Porém, ele é

encontrado e se torna vivo novamente só quando ele retorna para o pai e

confessa sua culpa.

Mas, ao mesmo tempo, nós temos um relacionamento legal com Deus.

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Ele é nosso Criador e dessa forma Ele é também nosso Legislador, Rei e Juiz.

A Escritura nos diz isso repetidamente"'. E nosso próprio coração também

nos diz isso. A noção da lei está profundamente arraigada em nossa alma e

ela é, em todas as épocas e lugares, sempre a mesma. Pode haver uma certa

diferença de conteúdo a respeito de leis e normas específicas, mas a noção de

lei é inata, assim como a noção de tempo, espaço, movimento, vida, bem,

mal e coisas semelhantes. A noção de lei é uma das idéias plantadas na

natureza humana e ela se desenvolve gradualmente e se torna

conscientemente articulada. Não há pessoas tão bárbaras e afastadas da

civilização que, em alguns casos, não se sintam ofendidas e tomem armas

para defender seus direitos. E o relacionamento com Deus está incluído

nesse sentido de lei em seu sentido mais amplo. Todo homem se sente

obrigado em sua consciên

cia a servir a Deus e a viver de acordo com Suas leis. E todo homem tem

consciência de que, se não fizer isso, ele é culpado e merece ser punido. A

lei do rompimento da Aliança das obras ainda opera no coração de todos os

homens. E a lei moral, proclamada por Deus no Sinai, simplesmente reforça

o conteúdo desses mandamentos e exige que eles sejam cumpridos.

O relacionamento da lei não é eliminado pelo Evangelho, como muitas pessoas pensam, pelo contrário, ele é restaurado e cumprido. A diferença entre a Lei e o Evangelho não é que na lei Deus se manifesta somente como Juiz e no Evangelho somente como Pai. A diferença entre a lei e o Evangelho também não é a diferença que existe entre o Velho e o Novo Testamento, pois, no Velho Testamento, Deus também revelou o Evangelho de Sua Graça e misericórdia ao povo de Israel; a lei estava a serviço da Aliança da Graça e era subordinada à promessa, e nesse sentido também foi uma dádiva do amor paternal de Deus e de Sua sabedoria pedagógica. E, embora seja verdade que na pessoa de Cristo as profundezas das misericórdias de Deus sejam manifestas muito mais claramente do que no Velho Testamento, o Evan-gelho da Graça não era desconhe-

eido em Israel e a plenitude do Evangelho em Cristo não eliminou, antes cumpriu a lei e os profetas (Mt 5.17; Rm 3.31).

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Portanto, Paulo muito enfaticamente afirma que no Evangelho a justiça

de Deus é revelada (Rm 1.17; 3.21-26). A unidade e a correspondência entre

a lei e o Evangelho fica, evidente, pelo fato de que a justiça de Deus é revela-

da tanto em um quanto em outro. E a diferença entre eles evidencia-se pelo

fato de que, na lei, essa justiça se manifesta segundo a norma que diz que o

homem que cumprir a lei viverá por ela, enquanto no Evangelho essa justiça

é revelada sem a lei e segundo a norma que diz que ao que não trabalha,

porém, crê nAquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é imputada como justiça

(Rm 4.5). Na lei se exige uma perfeita e adequada justiça; no Evangelho, uma

perfeita e adequada justiça é concedida por Deus através de Sua Graça em

Cristo. Visto como o homem não podia e não queria manter a justiça de Deus

como lhe fora apresentada na lei, o próprio Deus, pela dádiva da justiça em

Cristo, restaurou e confirmou Sua justiça. Ele colocou Seu amor e Sua misericór-

dia a serviço de Sua justiça. Ao dar a si mesmo, Ele cumpriu toda a justiça. E

em Sua Graça Ele considera a justiça de Cristo como sendo nossa, e assim nós

podemos cumprir toda a justiça de Sua lei,

podemos receber completa remissão de nossos pecados e entrar confiantemente em Seu reino celestial.

Portanto, a justificação é um ato gracioso de Deus, mas também é um ato forense, uma declaração pela qual Ele, como Juiz, isenta-nos de culpa e punição e dá-nos o direito à vida eterna. Os católicos romanos e todos aqueles que procuram o fundamento de nossa justificação, seja em parte, seja inteiramente, no homem (em sua fé, em suas boas obras, em Cristo neles, no novo princípio de vida, ou onde quer que seja) sempre levantam objeção a essa declaração forense de justiça dizendo que ela não é real e que ela é indigna de Deus. Eles argumentam que, se a base de nossa justificação repousa inteiramente em Cristo e fora de nós mesmos, e que se a fé ou as boas obras ou o que quer que seja não são creditadas por Deus como parte de nossa justiça, então a pessoa que é justificada não é realmente justa, e dessa forma Deus faz um julgamento falso sobre ela, pois o homem não é o que se declara que ele seja.

Contra essa objeção é suficiente observar que a Escritura sempre vê a justificação como um ato forense. Ele a fala repetidamente da justificação do pecador diante

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de Deus e, ao fazer isso ela usa uma palavra que é emprestada do vocabulário

jurídico e sempre tem um sentido judicial. Aos juizes de Israel Deus deu a

ordem de que eles deviam declarar o justo como justo e que deviam condenar

o injusto"'. E Ele mesmo mostra Sua justiça no fato de que Ele não inocenta o

culpado, nem condena o justo"'. Se essa palavra de Deus for aplicada na

esfera espiritual, ela possui um sentido jurídico. Dessa forma Jesus diz que a

sabedoria nEle revelada era justificada, isto é, reconhecida como tal pelos Seus

filhos (Mt 11.19). E em Lucas 7.29 Jesus diz que as pessoas que ouviram João e

os publicanos que foram batizados por ele justificaram Deus, isto é,

reconheceram Deus como sendo justo. O significado moral de justificação está

ausente nessas passagens.

O mesmo acontece quando essa mesma palavra é usada para expressar

a salvação dos pecadores. Paulo não apenas diz que a justiça de Deus foi

revelada no Evangelho (Rm 1.19; 3.20 ss.), mas também declara que Deus

justifica aquele que tem fé, e que ao fazer isso Ele continua sendo justo (Rm

3.26), e que, com relação à pessoa que não trabalha, mas crê naquele que

justifica o ímpio, sua fé lhe é imputada como justiça

(Rm 4.5), e ainda questiona: "Quem intentará acusação contra os eleitos de Deus? É Deus quem os justifica. Quem os condenará?" (Rm 8.33,34). Além disso Paulo usa os termos justificação e imputação de justiça altemadamente, um pelo outro (Rm 4.3,6,11), e também o termo tornar-se justo (Rm 5.19), e em Romanos 5.18 ele diz: "Pois assim como, por uma só ofensa, veio o juízo sobre todos os homens para condenação, assim também, por um só ato de justiça, veio a Graça sobre todos os homens, para a justificação que dá vida". Portanto, a justificação está relacionada com uma ação jurídica e legal, um veredito pronunciado pelo Juiz celestial sobre o pecador que, segundo a norma da lei, é firípio, mas que pela fé aceitou a justiça dada por Deus em Cristo. Julgado pela fé ele é justo.

Além do fato de que a Escritura fala muito claramente sobre a

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justificação como um ato legal ou forense, esse fato deve ser apre-sentado aos oponentes da doutrina da justificação: eles possuem um entendimento errado sobre o que a justificação é. Eles dizem que a absolvição do homem, com base em uma justiça externa a ele mesmo, é indigna do homem e que uma absolvição dessa natureza não muda a realidade da culpa. Mas essa acusação cai sobre a cabeça deles mesmos, pois, se eles justificam uma pessoa com base na justiça que há nela, eles devem certamente admitir que essa justiça humana é muito frágil e imperfeita, e devem, portanto, concluir que Deus justifica uma pessoa com base em uma justiça muito inadequada e assim se faz culpado de um falso julgamento. Por outro lado, uma absolvição baseada na justiça que está em Cristo é perfeitamente justa, pois, foi apresentada perfeitamente por Deus no Filho de Seu amor. Além disso, apesar dessa justificação do pecador, dessa absolvição, estar baseada somente na justiça que está em Cristo, em um determinado momento, através da fé, ela se torna operativa na consciência do homem e efetua uma importante mudança ali. Do mesmo modo com uma pessoa que tenha sido acusada de um crime grave e tenha sido absolvida pelo juiz acontece algo semelhante. A justificação realizada por Deus age na consciência humana livrando o pecador de todo o sentimento de culpa.

Em um certo sentido, a justificação do pecador já aconteceu no conselho de eleição. Ela foi objetivamente pronunciada na ressurreição de Cristo, que foi entregue por nossos pecados e ressuscitou para nossa justificação (Rm 4.25) e no Evangelho que procla

ma a boa nova de que, na morte de Cristo, Deus se reconciliou com o mundo (2Co 5.19). E subjetivamente essa justificação vem ao homem na vocação interna ou eficaz e é aceita pela fé. A justificação é apenas um elo na corrente da salvação. Ela está relacionada, por um lado, com o pré conheci-mento e a vocação, e, por outro lado, com a santificação e a glorificação (Rm 8.30). A justificação no tribunal de Deus se expressa no tempo através da fé na consciência do homem. E ajustiça que Cristo alcançou não é uma justiça externa a Cristo, mas está incluída em Sua pessoa. E Cristo ressuscitou precisamente para esse fim, para que em Seu próprio tempo Ele pudesse distribuir todos os Seus benefícios àqueles que lhe pertencem. Uma vez que o homem tem seus olhos de fé abertos para essa realidade, todo o seu relacionamento com a lei é imediatamente mudado. Aquele que era pobre toma-se rico através das riquezas que há em Cristo Jesus; aquele que era culpado por transgredir todos os mandamentos de Deus repentinamente se vê absolvido de toda culpa e punição; aquele que merecia punição eterna se vê agraciado com o direito à vida eterna e juntamente com Paulo pode gloriar-se: "Quem intentará acusação contra os eleitos de Deus? É Deus quem os justifica. Quem os condenará? É Cristo Je-

sus quem morreu, ou, antes, quem ressuscitou, o qual está à direita de Deus e também intercede por nós" (Rm 8.33,34).

Por fim, a justificação e a santificação não são a mesma coisa e devem ser claramente diferenciadas uma da outra, pois, quem quer que negligencie essa diferença novamente atribui justiça própria ao homem, faz injustiça à plenitude e à adequação da justiça de Deus que foi manifesta em Cristo, transforma o Evangelho em uma nova lei, rouba à alma humana seu único conforto e faz com

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que a salvação dependa de méritos humanos. Na justificação, a fé de-sempenha apenas o papel de agência receptora, semelhante à mão que aceita um presente. Através da fé, a alma coloca sua dependência somente em Cristo e em Sua justiça. De fato, a Sagrada Escritura mais de uma vez faz uso da expressão de que a fé foi imputada ou reconhecida como justiça'17 e a força dessa expressão, presumivelmente, é que a fé toma o lugar da justiça que a lei exige, mas que o pecador não possui. Mas, nessa conexão, a questão levantada é: por que essa fé pode tomar o lugar da justiça exigida pela lei? Será que a fé tem um excepcional valor moral e é tão boa e virtuosa que chega a ser sufici

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ente para cumprir as exigências da lei?

Há muitos que pensam assim e afirmam que a fé, totalmente independente de seu conteúdo e de seu objeto, justifica o pecador por seu caráter intrínseco. Mas certamente esse não é o ensino da Escritura, pois, se a fé justifica em virtude de seu mérito moral, ela se coloca ao lado de obras e méritos, em vez de fazer um claro contraste com eles. E nós sabemos que Paulo afirma que a justificação pelo Evangelho através da fé é diametralmente oposta à justificação pelas obras da lei"'. Além disso, essa apresentação da questão pode ser substituída por outra, segundo a qual a justificação através da fé está relacionada com a justificação através da Graça, e, portanto, exclui todo mérito e toda glória humana (Rm 3.24; 4.4 ss.; Tt 3.5). Em Romanos 4.16 o apóstolo afirma expressamente que a he-rança vem pela fé precisamente porque ela é fruto da Graça, e isso não poderia ser dito dessa forma se a fé justificasse o homem em razão de seu próprio poder e mérito. Além disso, se a fé pudesse ser interpretada por seu valor in-trínseco, Cristo perderia todo o significado na obra dejustificação. Nesse caso, importaria apenas que a pessoa cresse, sem importar em

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que ela crê. A fé justificaria sempre, sem importar se ela fosse colocada em um ídolo, em um poder demoníaco, ou em um falso profeta. E isso tem sido afirmado, por exemplo, quando médicos incrédulos recomendam aos seus pacientes que visitem a cidade de Lourdes ou algum outro lugar equivalente porque afê tem poder de cura.

O testemunho da Escritura é diametralmente oposto a esse ponto de

vista. A Escritura afirma que o que importa é exatamente o conteúdo da fé e o

objeto da fé. A fé pode tomar o lugar da justiça exigida pela lei e pode ser

imputada como justiça porque se trata da fé em Cristo Jesus, que foi apre-

sentado por Deus como a propiciação no Seu sangue (Rm 3.25), que

se fez maldição em nosso lugar (G13.13), que se fez pecado por nós (2Co

5.21), que morreu, ressuscitou e está assentado à direita de Deus como

nosso intercessor (Rm 8.34), que se tornou justiça por nós (1Co 1.30), e em

quem nós somos feitos justiça de Deus (2Co 5.21). Em resumo, a fé justifica

porque em Cristo ela desfruta da justiça, que é tão perfeita e adequada

quanto aquela que é exigida pela lei, e que Deus nos concede em Cristo (Fp

3.9). Ela justifica não por causa de seu mérito moral intrínseco, mas por seu

conteúdo, a saber, a justiça de Cristo.

Ao mesmo tempo, embora seja da maior importância enxergar claramente a distinção entre a justificação e a santificação, esses dois benefícios nunca são separados um do outro, nem mesmo por um só momento. No conselho de Deus eles não são separados, pois a justificação é apenas um elo na corrente da salvação. Àqueles que Deus de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de Seu Filho, a fim de que Ele seja o primogénito entre muitos irmãos. E aos que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou, e aos que justificou, a esses também glorificou (Rm 8.29,30). Eles não são separados, nem na pessoa, nem na obra de Cristo, pois, a justiça não é algo externo a Cristo, que possa ser aceita sem Sua pessoa. O próprio Cristo é nossa justiça e Ele é ao mesmo tempo nossa sabedoria, santificação e redenção (1Co 1.30). Não se pode aceitar um benefício de Cristo sem o outro, pois, todos eles estão contidos em Sua pessoa. Quem quer que aceite Cristo como sua justiça pela fé, ao mesmo tempo o recebe como sua santificação. Cristo não pode ser aceito em partes. Quem quer que possua Cristo o possui em Sua inteireza, e quem quer que recuse Seus benefícios também recusa Sua pessoa. Além disso, também na fé, a justificação e a

santificação estão inseparavelmente unidas uma à outra. De fato, onde quer que haja justificação, a fé existe em seu caráter religioso como uma confiança na Graça de Deus, como uma aceitação de Cristo e da justiça concedida por Deus. Mas, se a fé realmente é

· faz tudo isso, essa é uma fé viva

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· salvadora, uma obra de Deus (Jo 6.29), que manifesta sua realidade e seu poder em boas obras (GI 5.6; Tg 2.20 ss.). Justificar não é o mesmo que reavivar. Contudo, assim como o pecado e morte estão intimamente relacionados um com o outro, assim também acontece com a justiça e a vida. O justo viverá pela fé (Rm 1.17). Assim como, por uma só ofensa, veio o juizo sobre todos os homens para condenação, assim também, por um só ato de justiça, veio a Graça sobre todos os homens, para a justificação que dá vida (Rm 5.18).

Portanto, a justificação inclui dois benefícios: o perdão de pecados e o direito à vida eterna. Esses dois estão relacionados um com o outro e mantêm entre si as mesmas relações que a obediência passiva e ativa na obra de Cristo. Cristo não apenas restaurou o que Adão danificou em sua transgressão, mas também alcançou o

que Adão, por sua observância da lei, deveria ter alcançado, isto é, a vida eterna. Quem quer que creia em Cristo, em virtude dessa fé recebe o perdão de pecados381 e nesse mesmo momento recebe a vida eterna (Jo 3.16,36).

Acontece que a maior parte das pessoas pensa ser banal o perdão de pecados. Elas acham ser perfeitamente natural que Deus perdoe pecados e que passe por cima das falhas humanas. Elas apresentam a questão como se Deus tivesse que perdoar pecados ou tivesse que provar que é um Deus de amor. Mas a experiência de vida deve ser semelhante ao ensino dessas pessoas. Perdoar, perdoar sinceramente, perdoar de tal forma que não haja nenhum resquício de ofensa – isso requer muito de nossa parte e implica em uma vitória sobre nós mesmos que é muito difícil de alcançar. De fato, o sentimento de ter sido ofendido é injustificado em nós. Nós somos afetados por coisas que não deviam nos afetar e deixamos passar outras coisas que deveriam nos ofender profundamente. Nosso sentido de direito e honra não foi perdido, mas foi danificado e segue em uma direção errada. Ao mesmo tempo, pode acontecer de nós termos sido profundamente ofendidos por alguma coisa e sen-tirmos que nossa honra, nosso ca-ráter e nosso nome foram violados. Nesse caso, é muito difícil eliminar até o último vestígio de ira de nosso coração e sinceramente perdoar nosso inimigo de forma tão completa a ponto de esquecermos a ofensa e nunca mais nos lembrarmos dela. O perdão sempre pressupõe a violação de um direito e consiste na absolvição da merecida penalidade.

Tudo isso é verdade com relação ao homem. Mas o pecados e o perdão

assumem proporções gigantescas quando são respectivamente cometidos

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contra Deus e perdoados por Ele. Deus tem o direito de ser, em todos os

tempos, em todos os lugares e em todas as coisas, reconhecido como Deus e

de ser servido e honrado pelo homem. Esse direito é o princípio e o

fundamento de todo o direito, de toda a lei. Quem quer que toque esse

direito, toca em toda a estrutura da lei, em toda a estrutura moral do mundo.

Quem quer que venha a conhecer o pecado dessa forma, quem quer que o

considere à luz da Sagrada Escritura, quem quer que o considere como Deus

o considera, começará a pensar de forma diferente sobre a importância do

perdão de pecados. Essa pessoa dificilmente poderá crer no perdão de

pecados, pois, compreenderá que ele realmente contraria a natureza de to-

das as coisas. Há, em primeiro lugar, seu próprio coração que o

condena e que o declara culpado diante da face de Deus. Depois há a lei, que

pronuncia maldição sobre ele e reconhece-c, como merecedor da morte.

Depois há Satanás, que o acusa e que em sua acusação apela ao julgamento

da lei. E há também as pessoas que o abandonam em sua necessidade e em

seu pecado. E por trás de tudo isso o pecador ouve a voz da justiça de Deus

procurando por ele, perseguindo-o, segurando-o e conduzindo-e, a

julgamento. Quem, refletindo sobre tudo isso e experimentando tudo isso,

pode crer no completo perdão de todos os pecados?

Mas, a Igreja de Cristo se atreve a crer nesse perdão, e pode e deve crer

nele. Em humildade e expectativa de coração ela confes-

sa: Eu creio no perdão de pecados. Eucreio nisso, embora não possa vê-lo. Eu creio nisso, embora minha consciência me acuse de ter pecado gravemente contra todos os mandamentos de Deus, de não ter cumprido nenhum deles e de ainda ser inclinado a todo tipo de mal. E a Igreja permanece sobre um fundamento sólido ao fazer a confissão de sua crença. Quem quer que procure o perdão

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de pecados fora de Cristo pode desejar encontrá-lo e esperar encontrá-lo, mas não pode, sincera e convincentemente, crer nisso. Mas o Evangelho nos informa que Deus perdoa pecados, que Ele pode per-

doar pecados e que Ele de fato os perdoa, porque seu direito foi

completamente reparado por Cristo. A necessidade de satisfação da

santidade de Deus não faz com que o perdão seja impossível, em vez disso ela

pavimenta o caminho para o perdão, garante-o e faz com que nós creiamos

nisso com uma confiança inabalável. O perdão de nossos pecados é tão

perfeito que na Escritura se diz que eles não são mais lembrados, que eles

ficam para trás390. O Senhor não viu iniqüidade em Jacó, nem contemplou

desventura em Israel (Nm 23.21).

Esse perdão está contido no conselho de Deus e é publicamente proclamado para toda a Igreja na ressurreição de Cristo (Rm 4.25). Ele é anunciado no Evangelho (At 5.31) e distribuído a cada um em particular, isto é, a cada crente. Embora o crente desfrute do perdão de todos os seus peca-dos ele deve, sempre, dia após dia, continuar se apropriando dele pela fé para desfrutar da confiança e do conforto que ele proporciona. Seria fácil se nós, com uma atitude de "uma vez convertido sempre convertido', vivêssemos nossa vida ao sabor dos desejos de nosso próprio coração. Aliás, há muitos que vivem com base em uma experiência passada e estão contentes com isso. Mas isso não

é vida cristã. Nem a justiça que está em Cristo Jesus, nem a fé que o Espírito

Santo planta em nós é morta. Nós nos tornamos participantes do perdão de

pecados e a única certeza disso só pode ser obtida através da comunhão com

Cr i s to , no exerc í c io da fé salvadora. Por esse motivo Jesus põe a

oração pelo perdão de pecados nos lábios dos Seus discípulos (Mt 6.12). Uma

humilde confissão de nossos pecados é o caminho através do qual Deus

prova Sua fidelidade e justiça, perdoa nossos pecados e nos purifica de toda

injustiça (1Jo 1.9). E para provocar em nós, sempre e continuamente, um

profundo senso de gratidão pelo perdão de pecados Cristo acrescenta,

depois do pedido de perdão pelos pecados, as palavras: assim como nós temos

perdoado aos nossos devedores. Essa cláusula adicional não é o fundamento sobre o

qual nós devemos ou podemos pedir a Deus que nos livre de nossos

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pecados; essa não é a norma segundo a qual nós devemos pedir a Deus que

nos perdoe, mas é a descrição da disposição que deve estar presente na-

quele que ora para desfrutar e apreciar o benefício do perdão. Somente

então nós percebemos em alguma extensão o que, humanamente falando,

custou a Deus para que Ele nos concedesse o per-

dão de pecados em Cristo. É somente quando nós arrancamos toda raiz de

inimizade de nosso próprio coração e perdoamos sinceramente todos os

nossos devedores que nós podemos apreciar, com propriedade, o que Deus

fez por nós. Portanto, nós podemos orar por esse grande benefício com

plena seriedade de alma quando nós estamos sinceramente dispostos a

perdoar o nosso próximo. De fato o perdão de pecados é realizado definitiva

e perfeitamente em Deus, mas nos é dado e apropriado por nós em nossas

vidas através da fé e do arrependimento. A Santa Ceia é uma evidência

disso, pois, nela nós lembramos que Cristo foi ferido e Seu sangue foi

derramado para que nossos pecados fossem perdoados (Mt 26.28).

O outro lado desse benefício de perdão de pecados é o direito à vida eterna. Quando João fala sobre isso, ele está pensando particularmente na nova vida que é gerada por Deus e aplicada a nós pelo Espírito Santo (Jo 1.13; 3.5). Esse ser filho de Deus de que ele fala procede da regeneração e consiste especialmente de ser transformado à imagem de Deus (Jo 1.13; 1Jo 1.1-3). Mas

Paulo geralmente fala sobre ser filho de Deus em um sentido diferente. Ele usa essa expressão para dizer que Deus, com

base na justiça de Cristo, nos aceita como Seus filhos e herdeiros.

Entre os romanos as famílias eram claramente distintas umas das

outras. Cada família tinha seus próprios privilégios e direitos e tinha também

suas próprias práticas religiosas. Portanto, um filho podia sair de uma família

para outra somente através de uma transação legal e formal, em termos nos

quais o pai natural praticamente vendia seu filho a outro pai que quisesse

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aceitá-lo como filho. No caso do pai natural já ter morrido, a transação só

poderia ser realizada através de uma declaração formal de pessoas de

credibilidade pública. Somente dessa forma um filho poderia ser liberto de

suas obrigações familiares em uma família e sujeitar-se a obrigações

familiares em outra família.

O apóstolo Paulo presumivelmente deriva seu conceito de adoção de

filhos desse contexto e dessa forma ele torna claro o novo relacionamento que

o crente tem com Deus. No Velho Testamento essa adoção era um privilégio

de Israel (Rm 9.4) e por isso Israel era freqüentemente chamado de filho de

Deus"'. Mas essa adoção é uma bênção da nova Aliança, pois, os crentes do

Velho Testamento ainda viviam sob a tutela da lei (GI 3.23; 4.1-3). Cristo

veio na piem-

tude dos tempos e colocou-Se sob a maldição da lei a fim de que aqueles que

estavam sob a lei pudessem ser redimidos e para que nós pudéssemos

receber a adoção de filhos (GI 4.4,5). Cristo comprou nossa liberdade da

escravidão da lei e do pecado com Sua morte e agora nós pertencemos a

outra pessoa, isto é, pertencemos Aquele que ressuscitou dentre os mortos

(Rm 7.1-4) e fomos aceitos por Deus como Seus filhos e herdeiros (G14.7).

Como filhos nós recebemos o Espírito do Filho, o Espírito de adoção. Através

desse Espírito nós tomamos consciência de nossa adoção, recebemos a co-

ragem de falar de Deus como nosso Pai e somos continuamente orientados

(Rm 8.14-16; G14.6). Além disso, da forma como essa adoção tem suas raízes no

eterno plano de Deus (Ef 1.5), da mesma forma ela se projeta para o futuro,

pois, embora os crentes já sejam filhos e já tenham privilégios de herdeiros

(Rm 8.17; G14.7), eles, juntamente com todas as outras criaturas, aguardam a

manifestação dos filhos de Deus, isto é, a redenção do corpo (Rm 8.18-23). É

somente na ressurreição dos mortos, quando o corpo for

completamente redimido, que a adoção será completada.

Page 454: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

O benefício da justificação

pela fé tem em si um rico conforto para o cristão. O perdão de pecados, a

esperança para o futuro, a certeza com relação à salvação eterna não

dependem do grau de santidade alcançado na vida, mas estão firmemente

arraigados na Graça de Deus e na redenção que está em Cristo Jesus. Se a

certeza desses benefícios derivasse das boas obras dos cristãos eles per-

maneceriam sempre, até a morte, totalmente incertos, pois, até mesmo o

mais santo de todos os homens possui somente um pequeno princípio de

perfeita obediência. Nesse caso, os crentes estariam sempre pendendo

entre o temor e a ansiedade, nunca poderiam permanecer na liberdade com

a qual Cristo os libertou e, portanto, para viver sem essa certeza eles teriam

que recorrer à Igreja e ao sacerdote, ao altar e ao sacramento, a ritos e

práticas religiosas. Essa é a condição de milhares de cristãos, dentro e fora da

igreja romana. Eles não entendem a glória e o conforto da justificação pela

Graça.

Mas o crente, cujos olhos foram abertos para as riquezas deste benefício, vê a questão de forma diferente. Ele reconhece humildemente que as boas obras, quer consistam em excitamentos emocionais, ou em experiências da alma, ou em atos externos, sempre são fruto da fé. Sua salvação é estabelecida fora de si mes-

mo, em Cristo Jesus e em Sua justiça, e, portanto, nunca pode ser perdida. Sua casa está edificada sobre a rocha, e por isso ela pode resistir à veemência da chuva, à enchente e à força dos ventos. É claro que essa confissão, assim como qualquer outro artigo de fé, pode ser usada de forma errada. Se a fé que aceita Cristo e Sua justiça é vista como uma aprovação racional de uma verdade histórica, o homem pode permanecer frio, indiferente e morto, e em virtude disso, ele não pratica boas obras que manifestem essa fé e de fato não aceita a pessoa de Cristo. Mas a verdadeira fé, que conduz a Cristo o ser humano atordoado e derrotado pelo sentimento de culpa, essa fé se apegará somente à Graça de Deus, se gloriará no gracioso perdão de pecados, e nesse exato momento já estará realizando uma boa obra.

Além disso, essa fé que repousa somente sobre a Graça de Deus em Cristo está consciente de que o perdão de pecados é o único benefício equivalente às boas obras, pois, na medida em que nós permitimos que o perdão de pecados dependa, inteiramente ou em parte, de excitamemos emocionais e sobre as boas

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obras que nós realizamos, continuamos a viver mais ou menos em temor. Nesse caso nós ainda não somos como crianças, que agem impulsionadas pelo amor, mas somos como es-

cravos e servos, que agem impulsionados pela recompensa. Então nós não realizamos boas obras somente por serem boas, ou seja, em consideração a Deus, mas realizamos boas obras para que tenhamos algum retorno, para al-cançar aprovação através delas e para nos tornarmos atrativos aos olhos de Deus. Tudo isso muda quando, pela fé, nós entendemos que nossa salvação repousa exclusivamente sobre a Graça de Deus e a justiça de Cristo. Então nós deixamos de edificar nossa justiça própria e de trabalhar com vistas à nossa

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salvação, pois, tudo isso foi já realizado por Cristo Jesus. Certos dessa salvação em Cristo nós podemos fixar nossa atenção na realização de boas obras para que com elas glorifiquemos nosso Pai. Nós as realizamos não para nós mesmos, mas em consideração ao nosso Senhor. Nós pertencemos a Cristo, que foi ressuscitado dos mortos para que frutifiquemos para Deus (Rm 7.4). Nós, mediante a própria lei, morremos para a lei, a fim de viver para Deus (G12.19). As verdadeiras boas obras que procedem da fé são feitas de acordo com a von-tade de Deus e são direcionadas à Sua honra.

A liberdade que o cristão passa a desfrutar na justificação consiste no fato dele ser liberto das exigências e da maldição da lei. O crente não é liberto da lei no sen-

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tido de que ele possa viver segundo os desejos de seu coração, segundo as

inclinações de sua natureza pecaminosa. Pelo contrário, o crente é muito

mais firmemente limitado pela lei do que qualquer outra pessoa, pois, a fé

não anula a lei, pelo contrário, ela a estabelece (Rm 3.31). As exigências da

lei são cumpridas naqueles que não andam segundo a carne, mas segundo o

Espírito (Rm 8.4). Como poderiam aqueles que estão mortos para o pecado

viver ainda no pecado (Rm 6.2)? Mas a relação que o crente passa a ter com

a lei é muito diferente daquela que ele mantinha anteriormente. Ele está

vinculado a ela pela lei da gratidão, mas está livre de sua exigência e de sua

maldição.

Nesse aspecto os crentes do Novo Testamento possuem uma grande

vantagem em relação aos crentes do Velho Testamento. No Velho

Testamento a religião é descrita como temor do Senhor e os crentes são

constantemente chamados de servos do Senhor. Eles eram filhos, mas filhos

menores, e, portanto, são como servos que são colocados sob tutela até o

tempo determinado pelo pai (G14.1,2; 3.23,24). Mas quando veio a plenitude

dos tempos, Deus enviou Seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei

(G14.4). Por ter cumprido em nosso lugar toda a justiça (Mt 4.15), por ter se

tornado maldição por nós (GI 3.13) e por

ter se tornado pecado por nós (2 Co 5.21) Cristo libertou-nos da maldição da

lei e de sua exigência, e isso de forma perfeita. Nós não somos mais servos

da lei, pois, pela lei morremos para a lei e nós agora somos servos de Cristo e

vivemos para Deus (Rm 7.1-4; G1 2.19). Nós não estamos mais debaixo da

lei, mas debaixo da Graça (Rm 6.15). Nós somos livres porque Cristo nos

libertou (G15.1). Ninguém mais pode nos dizer: "Faça isso e seja salvo". A

ordem é completamente invertida. Nós vivemos pela fé e agimos de acordo

com a lei porque sentimos prazer nisso segundo o homem interior. Dessa

forma a lei se toma sem efeito contra os crentes. Ela não pode mais acusá-los,

pois, a culpa deles foi tirada por Cristo e as exigências da lei foram satisfeitas

por Ele em favor deles. A lei não pode condená-los, pois, Cristo tomou sobre

a si a maldição e todas as penalidades da lei. Nem mesmo Satanás pode

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recorrer à lei para acusar os filhos de Deus, pois quem intentará acusação

contra os eleitos de Deus? É Deus quem os justifica. Quem os condenará? É

Cristo Jesus quem morreu ou, antes, quem ressuscitou, o qual está à direita de

Deus e também intercede por nós.

Ao mesmo tempo que uma mudança acontece no relacionamento dos

crentes com a lei, com suas exigências e com sua maldi-

ção, uma mudança acontece também em seu relacionamento com todas as coisas e com todo o mundo. Quando nós somos reconciliados com Deus, somos reconciliados com todas as coisas. Quando nós mantemos um correto relaci-onamento com Deus, mantemos também um correto relacionamento com o mundo. A redenção em Cristo é a redenção da culpa e da punição do pecado, mas é também a redenção do mundo, que nos condena e oprime. Nós sabe-mos que o Pai amou o mundo e que Cristo venceu o mundo. Portanto, o mundo pode nos oprimir, mas não pode nos derrotar (Jo 16.33). Como f i lhos do Pai celestial, os crentes não devem andar ansiosos pelo que haverão de comer, nem pelo que haverão de beber, nem com o que haverão de vestir-se, pois, Ele sabe que Seus filhos precisam de todas essas coisas (Mt 6.25 ss.). Eles não ajuntam tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem corroem e onde ladrões escavam e roubam, mas ajuntam tesouros no céu, onde a traça e a ferrugem não corroem e onde ladrões não escavam e roubam (Mt 6.19,20). Como desconhe-

eidos, eles são conhecidos, como mortos, eles vivem, como castigados, eles não morrem, como entristecidos, eles são alegres, nada tendo, possuem tudo (2Co 6.9,10). Eles não se atormentam com uma atitude de "não manuseies isto, não proves aquilo, não toques aquiloutro", mas consideram cada criatura de Deus como boa e aceitam-na com gratidão (Cl 2.20,21; 1Tm 4.4). Eles se mantêm na vocação em que foram chamados e não são escravos de homens, mas servos de Cristo (1Co 7.20-24). Eles vêem nas provações não uma punição, mas uma correção oriunda do amor de Deus (Hb 12 5-8). Eles são livres de todas as criaturas porque nada pode separá-los do amor de Deus que está em Cristo Jesus (Rm 8.35,39). Além disso, todas as coisas são deles porque eles são de Cristo (1Co 3. 21-23) e todas as coisas devem cooperar para o bem daqueles que amam a Deus e foram chamados segundo o Seu propósito (Rm 8.28).

O crente que é justificado em Cristo é a mais livre de todas as

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Capítulo 22

A SANTIFICAÇÃO

Visto que a imagem de D e u s c o n s i s t i a n ã o s e mente de conhec imento e justiça, mas também de santidade, a restauração do homem deve não somente trazê-lo ao correto relacionamento com Deus, mas também renová-lo internamente segundo a exigência de Sua santa lei. O pecado é culpa, mas também é corrupção. A justificação liberta o homem de sua culpa; a santificação liberta-o da corrupção do pecado. Pela justificação a consciência do homem é mudada e pela santificação seu ser é mudado. Pela primeira, o homem passa a ter um correto relacionamento com Deus; pela segunda, ele se torna bom e capaz de realizar o bem.

A palavra santo ocorre virtualmente em cada página das Sagradas Escrituras. Não sabemos

com certeza qual era o sentido natural original da palavra hebraica

traduziria por santo em nossas Bíblias, contudo na Escritura essa palavra

nunca é usada em seu sentido natural original, mas sempre em um sentido

religioso. Porém, nós sabemos que a palavra hebraica usada na Escritura

provavelmente vem de uma

raiz que significa separado ou ser separado. Não é possível dizer de-finitivamente em qual sentido essa palavra foi primeiramente introduzida na discussão religiosa. Há quem diga que pessoas e objetos eram chamados santos porque eram separados de outras pessoas e objetos e eram tirados do uso comum. O oposto da pa-

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lavra santo é profano"". Há outrosque dizem que essa palavra originariamente indicava, no sentido religioso,

aquelas pessoas e

objetos que mantinham um relacionamento especial com Deus e nesse

sentido eram diferentes das outras. Dessa forma pode ser dito, desse ponto de

vista, que pessoas e objetos nunca são santos por natureza, mas que se

tomam santos de acordo com uma ação definida feita em favor deles. Eles não

podem santificar a si mesmos, pois toda santidade e santificação procedem de

Deus. Jehovah é santo e, portanto, Ele quer um povo santo, um sacerdócio

santo e um templo santo"'. É Ele quem designa quem é dEle e quem é santo

(Nm 16.5).

Deus é freqüentemente chamado de Santo no Velho Testamento. É

somente em Daniel 4.8,9; 5.11 que Nabucodonosor fala em deuses santos. A

palavra santo, quando usada em referência ao Ser divino, não se refere a um

atributo específico que ele possui juntamente com os demais, mas para

referir-se à Sua grandeza, sublimidade, majestade e macessibilidade. Não há

santo como o Senhor, porque não há outro além dEle; e Rocha não há, como o

nosso Deus (1Sm 2.2). Ele é Deus, e não homem (Os 11.9). Ninguém pode

ficar perante o Deus santo (1Sm 6.20). Ele é exaltado acima de todos os

deuses, glorioso em santidade, terrível em feitos glo

riosos, que opera maravilhas (Ex 15.11). Ele é tremendo nos Seus santuários (SI 68.35). Seu nome é grande e terrível (SI 99.2,3). Jurar por Sua santidade é jurar pelo próprio Deus (Am 4.2; 6.8). Em resumo, a santidade aponta para Deus em Sua distinção e em Sua exaltação sobre todas as criaturas. Ele é o Santo porque Ele é Deus. Isaías, de forma especial, gosta de usar essa palavra para se referir a Deus'"a.

A santidade de Deus se manifesta em todos os relacionamentos que Ele

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mantém com Seu povo. Toda a legislação de Israel tem seu princípio na santidade de Jehovah e tem seu fim na santificação do povo. Ele é santo em toda a Sua revelação e em tudo o que procede dEle: Seu nome é santo (Lv 20.3); Seu braço é santo (SI 98.1); Sua Aliança é santa (Do 11.28); Sua palavra é santa (S1 105.42); e Seu Espírito é Santo (SI 51.11; Is 63.10,17). Portanto, Ele quer que Seu povo também seja santo"'. E dentre Seu povo Ele quer que especialmente os sacerdotes e os levitas, que ministram no santuário e que são consagrados para o exercício das cerimonias específicas de seu ofício, sejam santos (Ex 29). De fato, tudo o que está relacionado ao serviço de Deus, sejam lugares, tempos,

ofertas, as vestes dos sacerdotes ou o templo, deve ser dedicado ao

Senhor e deve ser santo. Todo o significado da entrega da lei é que Israel

deveria ser um reino de sacerdotes e uma nação santa (Ex 19.6). E o povo de

Israel realmente é santo se em todas as coisas ele corresponde à lei que o

Senhor lhe deu.

Nós devemos nos lembrar que essa lei em Israel compreendia não somente os mandamentos morais, mas também os mandamentos cívicos e cerimoniais. A santidade, portanto, correspondia à perfeição, em total correspondência à lei, mas essa perfeição não era meramente de natureza moral, mas também de natureza civil e cerimonial. Todavia o povo freqüentemente considerava apenas um lado da questão e via a essência da religião na pureza externa. Os profetas, consequente-mente, tinham que protestar contra isso e proclamar que obedecer era melhor do que sacrificar, e o atender, melhor do que a gordura de carneiros (1Sm 15.22); e tinham que dizer também que Deus desejava misericórdia e não sacrifício, e o conhecimento de Deus em vez de ofertas queimadas (Os 6.6). Os profetas tinham que pregar que o Senhor nada exigia do povo, exceto que o povo praticasse a justiça, amasse a misericórdia e andasse humildemente com Deus (Mq 6.8). Eles diziam que a

santidade de Deus consistia especialmente em Sua perfeição moral, em Sua

exaltação e em seu contraste com a pecaminosidade das criaturas (Is 6.3-7).

Quando as pessoas profanam Seu nome e Sua Aliança, Deus se santifica em

justiça (Is 5.16; Ez 28.22). Como Santo Ele pune os inimigos para que eles

saibam que Ele é o Senhor (Jr 50.29; Ez 36.23; 39.7), mas Ele liberta seu povo

ao purificalo de toda injustiça, ao estabelecer uma nova Aliança com ele e

ao fazer com que ele ande em Seus caminhos com um novo coração Gr 31.31-

34; Ez 36.25-29). E Ele faz isso não em consideração a Israel, mas em

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consideração ao Seu próprio grande nome (Is 43.35; Ez 36.22).

Da mesma forma pela qual Deus, no Novo Testamento, justificou Seu povo em Cristo, assim também no Filho de Seu amor Ele dá santidade ao Seu povo. Cristo é nossa sant idade , nossa santificação e da mesma forma é nossa sabedoria e nossa redenção. Nós devemos saber que antes de qualquer coisa Ele era santo, pois, caso contrário, Ele não poderia compartilhar Sua santidade conosco. O que foi concebido no ventre de Maria pelo Espírito Santo é o ente santo que recebeu o nome de Filho de Deus (Lc 1.35).

Posteriormente, em Seu batismo, Ele recebeu o Espírito Santo sem medida e ficou cheio do Espírito (U 3.22; 4.1). Aqueles que estavam possuídos por demônios reconheciam-no como o Santo de Deus (Mc 1.24; Le 4.34) e os discí-pulos, pela boca de Pedro, fizeram a confissão: "Senhor, para quem iremos nós? Tu tens as palavras da vida eterna; e nós temos crido e conhecido que tu és o santo de Deus" (Jo 6.68,69). Em Atos 4.27 (compare com 3.14) o mesmo apóstolo fala de Jesus como o Sant o S e r v o d e D e u s " ' , e e m Apocalipse 3.7 Cristo fala de si mesmo como o Santo e Verdadeiro. Assim como Cristo tinha consciência de que não podia pecar"', assim também todos os Seus apóstolos dão testemunho de que Ele não cometeu pecado, nem dolo algum se achou em Sua boca"8.

Todavia nós devemos fazer uma distinção em Cristo entre a santidade que Ele possui por natureza e a santidade que Ele alcançou por Sua perfeita obediên-cia. Seu Ser foi concebido e nascido santo, antes de tudo, para que Ele pudesse ser nosso Mediador (Catecismo de Heidelberg, pergunta 16), e também para que Ele, sendo nosso Mediador desde o momento de Sua concepção, fos

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se concebido e nascido isento de pecado, em perfeita inocência e santidade diante da face de Deus (Catecismo de Heidelberg, pergunta 36). A santidade na qual Ele nasceu foi imediatamente diferenciada da santidade que Ele, durante toda a sua vida, tinha que alcançar por Sua Igreja. Nós sabemos, por exemplo, que o Pai já o tinha santificado antes mesmo de Sua encarnação, consagrando-o para desempenhar o ofício de Mediador e, precisamente para esse fim, Ele o enviou ao mundo (Jo 10.36). E Cristo se santificou e se entregou à vontade de Seu Pai antes que fosse concebido no ventre de Maria e nascesse dela. Sua encarnação já era um cumprimento da vontade do Pai, um ato de santificação (Hb 10.5-9). Mas não era suficiente que Cristo fosse santo; Ele tinha que santificar-se desde o momento de Sua concepção até a hora de Sua morte.

Como Mediador, Ele estava sujeito às mais severas provações, especialmente depois de ter recebido o batismo, ter sido ungido pelo Espírito Santo e ter começado a cumprir Seu ministério público. A tentação sobre a qual nós lemos nos Evangelhos foi o começo de uma vida inteira de luta. Quando essa tentação chegou ao fim, o diabo se separou dele se-

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mente por algum tempo (Lc 4.13). Nós não sabemos o que eram essas

tentações, mas nós somos expressamente informados de que Ele se tornou

como nós em todas as coisas , e que Ele foi tentado em todas as coisas assim

como nós, mas sem pecado (FIL, 2.17, 4.15); Apesar de nós sucumbirmos à ten-

tação a todo momento, Ele permanece fiel até o fim; Ele foi tentado em

todas as coisas, mas sem pecado; Ele foi obediente até a morte, e morte de

cruz (Fp 2.8). Ele não orou para que fosse dispensado da morte, mas, tendo

oferecido, com forte clamor e lágrimas, orações e súplicas a quem

o podia livrar da morte, Ele foi ouvido (FIL, 5.7).Embora Ele fosse o Filho, Ele tinha que aprender a obediência pelas

coisas que sofreu (Hb 5.8). Ele foi obediente desde o começoe Ele quis ser obediente. A Sua comida consistia em fazer a vontade do Pai (Jo 4.34). Em Sua paixão ele recebeu oportunidade para provar essa obediência. Eme através de Seu sofrimento Ele tinha que transformar Sua disposição e Sua vontade em atos e, dessa forma, demonstrar obediência. Assim Ele foi santificado pelas coisas que sofreu (Hb 2.11; 5.9). Ele não foi santificado no sentido moral, mas, em razão de sua paixão e morte, ele concluiu o que havia começado e foi coroado com glória e honra (Hb 2.9; 12.2). Des-

sa forma Ele foi feito o Autor da salvação dos filhos de Deus e o

Consumados de sua fé (Hb 2.10; 12.2). Ao carregar a cruz e desprezar a

vergonha pela visão da santificação que o aguardava depois de Sua

humilhação, Ele se tornou o iniciador, o pioneiro e o edificador da salvação de

todos os que lhe pertencem e aquele que começou essa obra há de termina-

Ia. Ao aperfeiçoar-se através da obediência, ao procurar a glória à mão direita

do Pai e somente através de Sua humilhação, Ele se tornou o Autor da salvação

eterna de todos aqueles que obedecem-nO (Hb 5.9). Ele se santificou, entre-

gando-se à morte como sacrifício, para que Seus discípulos pudessem ser

santificados na verdade (Jo 17.19). Ele nos foi dado por Deus para a nossa

santificação (1Co 1.30).

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Para que possamos entender com propriedade a santificação dos crentes, temos que ver claramente que Cristo é nossa santificação assim como Ele é nossa justificação. Ele é o perfeito e adequado Salvador; Ele não realiza Sua obra apenas parcialmente, mas real e perfeitamente nos salva; e Ele não abandona sua obra até que tenha feito com que nós desfrutemos plenamente da salvação eterna e das bênçãos celestiais. Através de Sua justiça,

portanto, Ele não apenas nos res-taura ao estado de justos, mas tam-bém faz com que nós sejamos ca-pazes de praticar boas obras e nosconformar à imagem de Deus. Elelevou a culpa e a penalidade denossos pecados, também cum-priu a lei por nós e mereceu a vidaeterna. Sua obediência foi ao mes-mo tempo passiva e ativa.Sua ressurreição foi a evi-

dência disso. Através dela, sabe-mos que Deus não deixou Suaalma no inferno (nessa conexão oinferno não deve ser entendidocomo o lugar para onde vão oscondenados, pois, Cristo, depoisde Sua morte, foi para o paraíso.A palavra inferno aqui deve serentendida como sepultura, o rei-no dos mortos, ao qual Cristo per-tenceu enquanto estava morto) enão permitiu que o Seu Santo vis-se corrupção, mas fez com que Eleconhecesse os caminhos da vidae encheu-o de alegria na Sua pre-sença (At 2.27,28; 13.35-37). Deacordo com o Espírito de santida-de que mora nEle, Ele foi, depoisde ressuscitar dentre os mortos,designado por Deus como SeuFilho em poder (Ria 1.4), para serPríncipe e Salvador, para conce-der arrependimento a Israel e per-doar os seus pecados (At 5.31),para ser um Príncipe de vida, quealcançou a vida eterna e agorapode concedê-la aos que lhe per-tencem (At 3.15).

Essa santificação que Cristoalcançou para Sua Igreja não éalgo que fica fora de nós, mas algode que nós realmente desfruta-mos. Na justificação nós somosdeclarados livres de culpa e pu-nição com base na justiça que está

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fora de nós, em Jesus Cristo, e queatravés da Graça de Deus é atri-buída a nós e de nossa parte é re-cebida pela fé. Todavia, nasantificação a santidade de Cristoé derramada em nós pelo Espíri-to Santo. Quando o catolicismoromano fala de uma Graça que éderramada em nós, não negamosessa afirmação por si mesma. Nós,discordamos apenas do fato deque essa Graça seja consideradacomo uma parte da justiça sobrecujo fundamento nós somos de-clarados livres diante de Deus,pois, se isso fosse verdade, a jus-tificação e a santificação, a liber-tação da culpa e a remoção dacorrupção poderiam ser confun-didas uma com a outra e dessaforma Cristo seria privado da per-feição da justiça por Ele alcançadae a alma crente seria privada deseu conforto. Mas realmente háuma Graça que é derramada;há algo como Cristo em nós,assim como há Cristo por nós;há uma renovação conforme aimagem de Deus, assim como háuma transmissão ao estado dejustiça; há uma mudança emnossa condição moral, assimcomo há uma mudança em nossostatus diante de Deus.De fato, essa santificação

deve ser afirmada com a mesmadeterminação e com a mesma for-ça usadas na afirmação da justifi-cação. Sempre há aqueles que con-sideram o perdão de pecadoscomo o grande benefício de Cris-to e que negam a renovação inter-na do homem segundo a imagemde Deus, ou, pelo menos, que ne-gligenciam e deixam de lado essarenovação. Essas pessoas afir-mam que, se uma pessoa éjustificada e está consciente dissopela fé, nada mais precisa aconte-cer com ela. Eles afirmam que aconsciência do perdão de pecadosé suficiente para transformá-la emuma nova pessoa. Em resumo,

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para tais observadores, justifica-ção e santificação constituem doisnomes de uma mesma coisa.É verdade que o cristão que

com uma fé verdadeira crê quetodos os seus pecados, por causada Graça e em consideração so-mente aos méritos de Cristo, fo-ram perdoados, certamente se tor-nará uma pessoa diferente. Ele sesente isento de toda culpa, e, ten-do sido justificado pela fé, encon-tra paz com Deus; ele permanecena liberdade para a qual Cristo olibertou, e, juntamente com Davi,ele pode se regozijar e dizer:"Bem-aventurado aquele cuja ini-qüidade é perdoada, cujo pecadoé coberto. Bem-aventurado é ohomem a quem o Senhor não atri-bui iniqüidade". Essa mudançapode ser chamada de regenera-ção, renovação da consciência.Mas é um erro supor que a

justificação e a regeneração sãouma e a mesma coisa. Fazer issoé ir de encontro ao testemunho daEscritura. A fé salvadora, queaceita a justiça de Cristo e se tor-na consciente do perdão de peca-dos, não pertence ao homem na-tural, mas é fruto da regeneraçãoe, portanto, já pressupõe umamudança espiritual ocasionadapelo Espírito Santo. E a alegria ea paz que o crente desfruta emrazão da certeza do perdão deseus pecados são próprias do ho-mem espiritual que, em comu-nhão com Cristo, ressuscitou dosmortos.Além disso, deve ser feita

distinção entre o status no qual apessoa está e a condição na qualela se encontra. O status de umapessoa não muda sua condição,nem vice-versa. Isso é verdadetanto na esfera natural quanto naesfera espiritual. O pecado não éapenas culpa, mas tambémcorrupção. Nós somos libertos daculpa através da justificação, esomos libertos da corrupção atra-

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vés da santificação. A salvaçãoperfeita consiste não apenas noconhecimento e na justiça, mastambém na santificação e na re-denção. E Cristo nos dá tanto umaquanto a outra. Ele nos dá o per-dão de pecados e a vida eterna.A Escritura diferencia muito bem a justificação da regeneração. A

promessa do Velho Testamento contém a idéia de que, na nova Aliança, o Senhor perdoaria a iniqüidade de Seu povo, mas ainda contém a idéia de que Ele lhe daria um novo coração e de que nesse coração Ele escreveria Sua lei39. Essa promessa igualmente contém a idéia de que Ele colocaria Seu Espírito dentro de Seus filhos, faria com que eles andassem em Seus estatutos e obedecessem Seus mandamentos (Ez 36.27). Para cumprir essa promessa, Cristo não apenas deu Sua alma em resgate por muitos, mas, depois de Sua exaltação à direita do Pai, Ele enviou o Espírito Santo para morar e trabalhar na Igreja. A realização desse Espírito na Igreja já foi mencionada: em e através do Espírito, Cristo distribui a si mesmo e os Seus benefícios ao Seu povo.

Depois que Paulo, em sua carta aos Romanos, trata do assunto da justificação, ele passa a tratar, no capítulo 6, da santificação. Havia, no tempo dos apóstolos, pessoas que pensavam que a doutrina da justificação gratuita afetaria a vida moral de forma prejudicial. Eles temiam que as pessoas, impulsionadas por essa confissão, multiplicassem seus pecados para que a Graça se tornasse ainda mais abundante (Rm 3.8; 6.1). Paulo refuta esse pensamento e diz que é impossível, para aqueles que morreram para o pecado, continuar vivendo para ele (Rm 6.2).

Ele prova essa afirmação ao demonstrar que os crentes, que pela fé receberam o perdão de pecados e a paz com Deus através de seu batismo, foram sepultados com Cristo em Sua morte e ressuscitaram com Ele para uma nova vida (Rm 6.3-11). Para Paulo, os crentes são sempre pessoas que não somente aceitaram a justiça de Deus em Cristo para o perdão de seus pecados, mas também pessoalmente morreram e foram ressuscitados em comunhão com Cristo e, portanto, estão mortos para o pecado e vivem para D e U S 4 1 1 Em outras palavras, a morte de Cristo tem poder não apenas para justificar, mas também para santificar (2Co 5.13). E a verdadeira fé aceita Cristo não somente como uma justificação, mas também como santificação. De fato, uma é impossível sem a outra, pois, Cristo não pode ser dividido e Seus benefícios são inseparáveis de Sua pessoa. Ele é ao mesmo tempo nossa sabedoria e nossa justiça, nossa santificação e nossa

redenção (1Co 1.30).

Portanto, a santificação que nós devemos desfrutar foi perfeitamente alcançada em Cristo. Há muitos cristãos que, pelo menos em sua vida prática, pensam de forma muito diferente disso. Eles reconhecem que são justificados pela justiça que Cristo alcançou, mas eles afirmam, ou pelo menos agem como se afirmassem, que eles devem ser santificados por uma santidade alcançada por eles mesmos. Se isso fosse verdade, então nós, em clara contradição ao testemunho apostólico"', não viveríamos em liberdade debaixo da Graça, mas sob

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a escravidão da lei. Todavia, a santificação evan-gélica é diferenciada tanto da santificação pelas obras quanto a justiça de Deus, revelada no Evan-gelho, é diferenciada, não em conteúdo, mas em modo, da justiça que é exigida pela lei. A santificação evangélica consiste do fato de que, em Cristo, Deus nos dá a perfeita santificação jun-tamente com a justificação, e que ele nos dá essa santificação como uma possessão interna através da ação regeneradora e renovadora do Espírito Santo.

A santificação, portanto, é uma obra de Deus, uma obra tan

to de Sua justiça, quanto de Sua Graça. Primeiro Ele atribui Cristo· todos os Seus benefícios a nós,depois Ele compartilha conosco toda a plenitude que está em Cristo. É Ele quem circuncida os corações (Dt 31.6), que arranca o coração de pedra e coloca em seu lugar um coração de carne (Ez 12.19), que derrama Seu Espírito sobre nós (jl 2.28), que cria um novo espírito dentro de nós (Ez 11.19; 36.26), que escreve sua lei em nossos corações, que faz com que andemos em Seus caminhos e faz de nós o Seu poVO"2. A questão é apresentada de forma ainda mais forte no Novo Testamento quando nós lemos que os crentes são feitura de Deus, criados em Cristo Jesus (Ef 2.10), são novas criaturas (2Co 5.17; G16.15) e uma obra de Deus (Rm 14.20). No Novo Testamento os crentes são também chamados de edifício de Deus"a e também se diz que tudo provém de Deus (2Co 5.18). Quando os crentes foram sepultados com Cristo e ressuscitaram com Ele, eles foram também lavados e santificad OS4"; e eles continuam a ser santificados depois diSSOM, até que eles sejam totalmente transformados segundo a imagem do Filh 0416 .

A corrente de salvação não pode ser quebrada porque, do começo ao fim, ela é uma obra de Deus. Aqueles que Ele de antemão conheceu, a esses também chamou, justificou e glorificou (Rm 8.30).

Com base nessa obra de santificação que Deus realiza na Igreja, através do Espírito de Cristo, os crentes são frequentemente chamados de santos nas Sagradas Escrituras. Israeljá tinha sido chamado assim nos dias do Velho Testamento (Ex 19.6). Israel foi separado das nações para o Senhor (Lv 20.26), para que andasse nos Seus caminhos (Ex 19.5). E no futuro, quando Deus estabelecesse uma nova Aliança, Ele chamaria com mais propriedade e com mais profundidade Seu povo de Povo Santo, Redimido do Senhor"'. Quando, nos dias do Novo Testamento, o sumo sacerdote se santificava em favor do povo para que o povo também fosse santificado na verdade (Jo 17.19), os crentes também imediatamente receberam o nome de santOS418 . Esse nome não significa que, em um

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sentido moral, eles

fossem livres de todo pecado e estivessem acima do pecado, mas que a Igreja do Novo Testamento substituiu o Israel do Velho Testamento e tomou-se a propriedade do Senhor" 'pois, foi santifi- cada por Cristo e tornou-se templo do Espírito Santo410

Mas, essa santificação que Cristo concedeu à Igreja através do Espírito Santo coloca uma pesada obrigação sobre os crentes. A santificação é uma obra de Deus, mas é uma obra na qual os próprios crentes são ativos no poder do Senhor. No Velho Testamento nós lemos que o Senhor santificou o Seu poVO411 e lemos também que o povo deve se santificaru'. Algumas vezes nós lemos que o Senhor circuncida os corações (Dt 30.6), em outra ocasião nós lemos que Israel é chamado para circuncidar seu próprio coração (Dt 10.36; Jr 4.4). A regeneração é chamada de obra de Deus (Jr 31.18; Lm 5.21) e é também chamada de responsabilida-de da própria pessoa (Jr 3.12,13). Da mesma forma no Novo Testamento a santificação é apresentada como um dom de Deus em Cristo e também como uma obra do Espírito Santo pela qual Os

crentes são santificados'". E os crentes são repetidamente admo-estados a serem perfeitos como é perfeito o seu Pai que está nos céus (Mt 5.48), a fazer boas obras que glorifiquem seu Pai celestial (Mt 5.16; Jo 15.8), a empregar seus membros como servos da justiça

· serviço da santidade (Rm 6.19),· ser santos em todos os seus caminhos e conduta (11`e 1.15; 2Pe 3.11), a exercera santificação no temor do Senhor'", a agir assim porque sem santidade ninguém verá o Senhor (Hb 12.14).

A obra de Deus na santificação não é

incompatível com a responsabilidade do homem,

pois, o esforço dos crentes em progredir em

santificação só é possível pelo fato de que ela é uma

obra de Deus que Ele realiza nos crentes. Certamente

a Graça não substitui a natureza, mas restaura-a.

Visto como o homem, em virtude do pecado, perdeu

o desejo e a habilidade para andar nos caminhos do

Senhor, em virtude da recriação, ele é novamente

inclinado e equipado, pelo menos em princípio,

para obedecer não apenas alguns, mas todos os

mandamentos do Senhor. Quando Deus penetra nas

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partes mais íntimas do ser humano com a

poderosa operação regeneradora do Espírito Santo,

Ele

abre o coração que estava fechado, amolece o que estava endure-cido e circuncida o que era incircunciso. Ele implanta novas potencialidades na vontade e faz com que a vontade que estava morta fique viva novamente, faz com que a vontade que era má se torne boa, faz com que a vontade que não queria obedecer passe a escolher os Seus caminhos, faz com que a vontade rebelde se torne obediente. Ele modifica e fortalece essa vontade de tal forma que, assim como a boa árvore produz bons frutos, ela também produza boas obras.

Conseqüentemente, quando as Igrejas

Reformadas se expressam dessa forma em sua

confissão (Os Cânones de Dort), elas o fazem com

base nas Sagradas Escrituras e encontram um

suporte definitivo nas palavras do apóstolo Paulo:

"Desenvolvei vossa salvação com temor e tremor,

porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer

como o realizar, segundo a Sua boa vontade" (Fp

2.12,13). Assim como na justificação o perdão de

pecados, completamente preparado em Cristo, só

pode ser recebido por nós através de uma fé viva e

operosa, assim também Deus efetua a santificação em

nós através de nós mesmos. Ele não aniquila nossa

personali-

dade, Ele a eleva. Ele não mata nossa razão, nem nossa vontade, nem nossos desejos, pelo contrário, Ele lhes dá vida, pois eles estavam mortos e coloca-os a Seu serviço. Ele faz de nós Seus aliados e colaboradores.

Mas, essa santificação dos crentes deve ser entendida com propriedade. Ela não deve se tornar uma santificação legal, ela é e deve continuar sendo uma santificação evangélica. Ela não consiste do fato de que os crentes santificam a si mesmos, mas que a santidade que eles trazem à existência já existia, e que eles, ao exercê-la, apenas se apropriam dela. A santidade revelada por Deus no Evangelho não é completamente realizada por Cristo, pois ela é aplicada ao nosso coração pelo Seu Espírito. Paulo diz isso de modo muito bonito em Efésios 2. 10; "Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que

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andássemos nelas". Assim como a primeira criação foi trazida à existência pelo Verbo, assim também a recriação se baseia na comunhão com Cristo. Os crentes são crucificados, mortos e sepultados e eles são também ressuscitados para uma nova vida em comunhão com Cristo.

A recriação tem um propósito específico. Ela tem sua finalidade nas boas obras que os crenter realizam. Deus cuida da árvore com vistas aos frutos e nesses frutos Ele é glorificado. Mas, essas boas obras não são realizadas independentemente pelos crentes. Elas foram preparadas para todos eles e para cada um deles individualmente pelo conselho de Deus. Elas foram cumpridas e merecidas para eles em Cristo, que em lugar deles cumpriu toda a justiça e toda a lei; e elas são realizadas nos crentes pelo Espírito Santo, que recebe todas as coi-sas de Cristo e as distribui a cada um de acordo com a vontade de Cristo. Dessa forma, nós podemos falar da santificação em sua totalidade e de todas as boas obras da Igreja, isto é, de todas as obras que os crentes realizam juntamente e individualmente, que elas não vieram à existência através dos crentes, mas que elas já existiam antes disso, no conselho do Pai, na obra do Filho e na aplicação do Espírito Santo. Portanto, toda a glória da parte do homem é também excluída na santificação. Nós devemos saber que Deus de forma nenhuma se torna nosso devedor, e que, portanto, Ele nunca tem que ser grato a nós quando realizamos boas obras; pelo contrário, nós somos devedores a Deus por elas e temos que ser gratos a Ele pelas boas obras que realizamos.

Disso depende todo o sign i f i cado na fé na obra de santificação. Não é somente na justificação, mas também na santificação, que nós somos salvos exclusivamente pela fé, pois, nós podemos aceitar Cristo e Seus benefícios e nos apropriarmos deles somente através da fé. Se a justiça e a santidade fossem produtos da lei, nós teríamos que alcançá-las pela realização de boas obras. Mas no Evangelho elas são um dom de Deus concedido a nós na pessoa de Cristo; nele há plenitude de Graça e de verdade (Jo 1.17), de sabedoria e de conhecimento (Cl 2.3), de justiça e santidade (1Co 1.30). Nele estão contidas todas as bênçãos espirituais (Ef 1.3) e a plenitude da divindade reside nele (C12.9). Esse Cristo se entrega a nós através do Es-pírito Santo e se une a nós intimamente, assim como a videira está unida aos seus ramos (Jo 15.2 ss.), como a cabeça está unida ao corpo (Ef 1.22,23), como o marido está unido à esposa (Ef 5.32) e como Ele mesmo, como Mediador, está unido ao Pai (Jo 14.20; 17.21-23). Os crentes são um espírito com Ele (1Co 6.17) e uma carne (Ef 5.30,31). Cristo vive neles e eles em Cristo (CI 2.20). Cristo é tudo em todos (C13.11).

Se Cristo, dessa forma, é o Autor de nossa santificação, neste caso, de nossa parte, a obra de santificação pode ser realizada

somente através da fé. A santificação é, assim como todos os outros benefícios de Cristo, tão inseparavelmente relacionada com a pessoa de Cristo, que nós não podemos recebê-la se não es-tivermos em comunhão com Cristo. A santificação é, vista de nosso lado, obtida e desfrutada so-mente através da fé. Além disso, é somente através da fé que Cristo mora em nosso coração (Ef 3.17) e que nós vivemos em Cristo (GI 2.20). É

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somente através da fé que nós nos tornamos filhos de Deus (GI 3.27), que nós recebemos a promessa do Espírito (Gl 3.14), que nós recebemos o perdão de pecados (Rm 4.6) e a vida eterna (Jo 3.16). Viver pela fé: isso é simplesmente uma forma diferente de dizer que Cristo vive em nós, é o outro lado da moeda (2Co 13.5; GI 2.20). Toda a vida de Cristo é uma vida de fé. Assim como os santos da Bíblia nos são apresentados em Hebreus 11 como heróis da fé, assim nós também somos admoestados a viver pela fé (2Co 5.7), a deixar que a fé atue pelo amor (G15.6), a apagar os dardos inflamados do maligno com o escudo da fé (Ef 6.16) e a vencer o mundo (ljo 5.4). E todas essas admoestações correspondem plenamente àquelas outras que nos obrigam como crentes a não andar segundo a carne, mas segundo o Espírito (Rm 8.4 ss.), a nos despirmos do velho homem e a

nos revestirmos do novo homem`", a aceitar o

Senhor Jesus Cristo e a andar nele (Cl 2.6; 1Pe 3.16),

a nos revestirmos do Senhor Jesus Cristo e a fazer

todas as coisas em Seu nome (Rm 13.14; Cl 3.17), a

nos tornarmos poderosos no Senhor e na força do

Seu poder (Ef 6.10; 2Tm 2.1) e a crescermos na Graça

e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador (2Pe

3.18). Em resumo, a santificação em um sentido

evangélico é uma atividade constante e um exercício

de fé.

Muitas pessoas apresentam objeções a esse

ensino da Escritura. Elas o consideram parcial e

perigoso à vida moral. Elas estão prontas a conceder

que, na justificação, a lei está fora de questão e

somente a fé é determinativa. Mas, quando falam

sobre a santificação, elas afirmam que a fé é

suficiente, que a lei com todas as suas exigências e

proibições, com todas as suas recompensas e

penalidades, deve também ser levada em conta se

um comportamento santo estiver sendo buscado e se

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houver necessidade de incentivo para a realização

de boas obras. Embora seja verdade que a lei

continua sendo a regra de vida para o cristão, o

Evangelho nunca extrai, dos terrores da lei,

exortações ao viver santo, mas de uma vocação

elevada à qual os

crentes foram chamados. Sejam perfeitos como é

perfeito o seu Pai celestial (Mt 5.48). Jesus é a

videira e Seus discípulos são os ramos; aqueles que

permanecem nEle dão muito fruto e sem Ele eles

nada podem fazer (Jo 15.5). Juntamente com Cristo

os crentes morreram para o pecado, mas, também

em Cristo, eles se tomaram vivos para Deus (Rm

6.11). Eles não estão sob a lei, mas sob a Graça e por

isso o pecado não pode reinar sobre eles (Rm 6.14).

Através da lei eles morreram para a lei e pertencem a

Cristo, para que possam viver com Deus (Rm 7.14;

G1 2.19). Eles não estão na carne, mas no Espírito, e

portanto devem andar no Espírito (Rm 8.5). Vai alta a

noite e vem chegando o dia. Deixemos, pois, as obras

das trevas e revistamo-nos das armas da luz (Rm

13.12). Os corpos dos crentes são membros de

Cristo e templos do Espírito Santo; portanto eles

devem evitar o pecado de adultério (1Co 6.15 ss.).

Eles foram comprados por alto preço e por isso

devem glorificar a Deus em seu corpo e em seu

espírito, pois, eles pertencem a Deus (1Co 6.20). Eles

permanecem em liberdade, a liberdade para a

qual Cristo os libertou, e nesse Cristo nada tem

valor, a não ser a fé que atua pelo amor. Desse Cristo

eles ouviram e aprenderam que de-

vem rejeitar o velho homem e revestir-se do novo homem, criado em Deus em

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verdadeira justiça e santidade (Ef 4.12 ss.). Como filhos amados eles devem ser

seguidores de Deus (Ef 5.6). Eles devem andar em amor assim como Cristo os

amou (Ef 5.2). Eles são luz no Senhor e por isso devem andar como filhos da

luz (Ef 5.8).

Em resumo, temos que registrar todas as exortações do Novo Testamento se nós quisermos resumir todos os imperativos para encorajar os crentes a uma vida santa. Mas, as passagens indicadas são suficientes para indicar que todos esses imperativos são derivados do Evangelho, e não da lei. Independente do fato de se os apóstolos estavam se referindo a homens ou a mulheres, a pais ou a filhos, a senhores ou a servos, a casadas ou a solteiras, a dominadores ou a dominados, ele exorta todos no Senhor"'. O verdadeiro fundamento de Deus permanece firme e recebe este selo: aparte-se da injustiça todo aquele que professa o nome do Senhor (2Tm 2.19).

A fé, então, é a grande obra que o cristão

deve cumprir em sua santificação segundo os

princípios do Evangelho (Jo 6.29). Apesar

dessa fé se apresentar de uma forma diferente e ser vista de um ponto diferente

na santificação em relação à justificação, ela é, em ambos esses benefícios, o

único e suficiente meio pelo qual nós podemos desfrutar deles. O Evangelho

nada exige de nós além da fé, a confiança de coração na Graça de Deus em

Cristo. A fé não apenas =justifica, mas também nos santifica e nos salva. E o

poder santificados da fé se toma claro nas seguintes considerações:

Em primeiro lugar, nós devemos lembrar que a verdadeira fé destrói nossa auto confiança, derruba nosso orgulho de seu pedestal e põe um fim em nossa justiça própria. Se nós não levarmos em consideração aqueles que não se preocupam com Deus e com Seus mandamentos, aqueles que consomem

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pecados como água, aqueles que fazem o bem somente externamente, com medo de punição, ou perda, ou vergonha, ainda restarão aqueles que procuram cumprir as exigências da lei moral por sua própria força. Mas, ao fazer isso, eles nunca encontram a perspectiva correta de abordagem da lei moral, nem o princípio genuíno pelo qual eles devem cumpri-Ia. Eles tomam posição acima ou abaixo da lei e fazem com que ela os sirva ou se tornam servos dela. No pri-meiro caso, eles dizem que o bem deve ser feito para o benefício e proveito que ele possa causar ao indivíduo ou a um grupo. No segundo caso eles colocam a lei acima do homem e assim fazem com que seu cumprimento seja impossível. Dessa forma, o homem natural vacila entre o saduceísmo e o farisaísmo, entre a liberdade e a autoridade. Ele não consegue encontrar o equilíbrio entre a exigência da lei moral e a vontade do homem.

Mas a fé coloca um fim nessa vacilação. Ela nos torna capazes de enxergar que a lei moral está acima de nós, que ela exige obediência incondicional, e que, portanto, ela não pode ser cumprida e não pode nos dar vida eterna. E nessa aparente oposição irreconciliável, ela se rende à Graça de Deus, confia na misericórdia e se gloria na justiça que Ele executa. O verdadeiro crente abandona toda pretensão de ser capaz de cumprir a lei moral. Ele considera o ideal moral em suas exigências sublimes e ao mesmo tempo não tem qualquer esperança de que possa cumpri-Ias por seu próprio esforço. Dessa forma ele deposita toda a sua esperança em Deus que, na lei, mas também no Evangelho, revelou Sua justiça. Essa fé é, consequentemente, a mãe de muitas virtudes. Ela fomenta a humildade no homem, fomenta a dependência e a confiança e faz com que ele perceba toda a importância da vida moral. E assim a prática das boas obras recebe da religião um firme fundamento e uma força imbatível.

Outras virtudes ainda podem ser combinadas com essas. De acordo com a ordem que Deus determinou para a Igreja, as promessas do Evangelho precedem as exigências da lei. Primeiro, Ele nos assegura Seu favor ao perdoar nossos pecados, ao nos conceder herança com os santos e depois Ele nos conduz nos caminhos de Seus testemunhos e de Suas ordenanças. A boa árvore vem antes dos bons frutos. Nós não vivemos através das boas obras, mas vivemos para elas. Nós cumprimos a lei não para que alcancemos a vida eterna, pois essa vida foi plantada em nossos corações pela fé. Somente através dessa ordem é possível uma verdadeira vida moral. Quem quer que queira mudar essa ordem ou queira retirar o conforto que ela produz, ensinando a salvação pelas obras, nunca alcançará seu propósito, será sempre atormentado por dúvidas e viverá em temor todos os dias de sua vida. O caminho de Deus é outro. No Evangelho Ele nos dá tudo por nada: o perdão de pecados, a reconciliação e a eliminação da punição, a salvação e as bênçãos. Ele nos diz que, através da fé em Sua Graça, nós podemos nos apoiar sobre Ele

Ele nos dá a certeza disso através do testemunho do Espírito Santo. A fé, em virtude de sua própria natureza, nos traz conforto, paz, alegria e felicidade, e tudo isso é de valor inestimável para a vida moral. Todos esses são princípios e motivos para uma conduta santa. A purificação da consciência de obras mortas é feita com vistas ao nosso serviço a Deus (Hb 9.14). Aqueles que são confortados por Deus são também fortalecidos por Ele em toda boa palavra e em toda boa obra (2Ts 2.17). A alegria do Senhor é a força de Seu povo (Ne

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8.10).Em segundo lugar, deve ser ressaltado que, tanto uma atividade severa

quanto uma atividade apropriada, tanto um esforço destrutivo quanto um esforço construtivo são comuns à fé salvadora que repousa inteiramente sobre a Graça de Cristo. Ela faz com que o fi lho pródigo retorne de sua vida pecaminosa para a casa do pai. Ela nos coloca em comunhão com o Cristo morto e com Sua ressurreição. Ela nos crucifica e nos levanta para uma nova vida. Quem quer que verdadeiramente creia em Cristo morre para o pecado e arrepende-se por tê-lo cometido, pois, o pecado faz com que a pessoa fique sob a ira de Deus e, por isso, o crente começa a odiá-lo e a livrar-se dele. O crente começa a fazer uma separação entre si mesmo e o peca

do, de forma que ele possa dizer: "Não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero, esse faço" ~ 7.19). E por outro lado, a fé se apropria de Cristo e de Sua justiça; ela faz com que Cristo more no coração do crente e constantemente viva em maior comunhão com Ele. Ela faz com que Cristo se forme em nós e que nos transforme cada vez mais à Sua imagem. Em resumo, o crente pode repetir a afirmação de Paulo: "Posso todas as coisas naquele que me fortalece" (Fp 4.13).

Finalmente, a fé é constantemente comparada, e com propriedade, autua mão. Mas a mão não é apenas o órgão através do qual nós nos apropriamos de alguma coisa. Ela é o instrumento através do qual nós executamos nosso pensamento e nossa vontade. Dessa forma, a mão não é apenas um órgão receptor, mas também uma força ativa. A fé que justifica e salva não é uma fé morta, mas uma fé viva. Em sua própria natureza ela produz frutos de boas obras; ela age pelo amor (G15.6). O homem não é justificado pelo amor, mas a fé que o justifica prova seu princípio ativo de vida através do amor. Sem o amor, a fé não é uma fé salvadora QCo 13.1); e a obra do amor é sempre associada à verdadeira fé (1Ts 1.3), pois, o fim da lei (isto é, o fim de toda a pregação apostólica) é o amor, que procede de um coração puro, e de

consciência boa, e de fé sem hipocrisia (1Tm 1.5). E esse amor, sendo fruto da fé, é um amor perfeito que lança fora o medo (1Jo 4.18) e, ao mesmo tempo, é o perfeito cumprimento da lei"'.

O Evangelho não anula a lei, ele a restaura e a restabelece. É verdade que ele põe um fim na exigência e na maldição da lei, pois, Cristo colocou-se sob a lei, satisfez sua exigência e recebeu sua maldiç ão418. Portanto, nós não somos mais servos, mas andamos na liberdade do Espírito'". E onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade (2Co 3.17; GI 5.18). Mas essa liberdade da fé não remove a lei, pelo contrário, ela cumpre a lei. A justiça que a lei exige em seus mandamentos é cumprida precisamente naqueles que não andam segundo a carne, mas segundo o Espírito (Rm 8.4). Enquanto a carne anula a lei, por-que não quer e não pode sujeitar-se a ela (Rm 8.3,7), é precisamente o Espírito de Cristo que dá vida ao homem (2Co 3.6) e é o Espírito que dá luz para provar qual é a boa e aceitável vontade

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de D CUS420.

E para Jesus e para os apóstolos, essa boa vontade de Deus,a despeito do fato de que a lei no sentido mencionado acima foi descartada, é conhecida desde o Velho Testamento. Jesus não veio destruir a lei e os profetas, ele veio cumpri-los (Mt 5.17). Ele nunca faz menção de abandonar a lei, exceto quando fala sobre a destruição da cidade e do templo, de todo o regime civil e do culto público (Mt 24; Jo 4.21-24), mas Ele purifica-a das doutrinas humanas que lhe foram acrescentadas pelas escolas judaicas (Mt 5.20 ss.). Nesse sentido, Ele retorna dos fariseus para os profetas, penetra no mais íntimo caráter da lei, colocais acima de suas características externas (Mc 7.15), misericórdia acima do sacrifício (Mt 9; 12.7), resume os profetas e a lei no amor a Deus e ao próximo"'. A lei moral conserva sua força.

Todos os apóstolos tomam a mesma atitude com relação à lei e aos profetas. 0 Velho Testamen-to conserva a sua autoridade. Ele foi dado por Deus (2Tm 3.15), foi escrito por homens santos sob a orientação do Espírito Santo (2Pe 1.21) e foi dado para nossa instrução e conforto122. Portanto, várias vezes o Velho Testamento é citado para fazer com que a Igreja

cristã conheça a vontade de Deus: Paulo, por exemplo, em 1 Coríntios 14.34, a fim de indicar a subordinação da esposa ao marido, apela para Gênesis 3.16; em 2 Coríntios 9.9, falando sobre a liberalidade para com os pobres, ele recorre ao Salmo 112.9; e em 1 Coríntios 1.31, para admoestar os crentes a se gloriarem somente no Senhor, ele cita Isaías 9.23. Em outras palavras, a lei é, no que se refere ao seu conteúdo, a mesma, tanto no Velho quanto no Novo Testamento. Ela está contida na única lei do amor"'. De fato, Cristo fala sobre o amor que os discípulos devem exercer uns com os outros como um novo mandamento424. Mas, ao fazer isso, Ele não quer dizer que o mandamento de amar uns aos outros como crentes era totalmente desconhecido antes, Levítico 19.18 claramente ensina a amar o próximo e o Salmo 133 fala que é agradável viverem juntos os irmãos.

Mas, esse amor que deve unir os crentes, assume um novo caráter no Novo Testamento. Nos dias do Velho Testamento, a Igreja e a nação coincidiam e, por isso, a diferença entre o amor aos irmãos e o amor ao próximo não era muito clara. Mas, no Novo Testamento isso mudou: a Igreja foi

separada da história nacional de Israel e tomou-se uma comunidade independente. No Espírito Santo ela recebeu seu próprio princípio de vida. Agora começa a ser feita uma distinção entre o amor ao irmão e o amor ao

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próximo",'. Nesse sentido o amor fraterno pode ser chamado de um novo mandamento. Ele vincula os crentes uns aos outros e os diferencia do mundo. Mas quanto ao mais, existe uma só religião e uma só lei moral no Velho e no Novo Testamento. Há algum esclarecimento, há algum desenvolvimento e aplicação diferentes, mas, nenhum acréscimo externo, nenhuma ampliação mecânica é feita. Cristo não era um novo legislador que estava acima de Moisés, pois, Ele mesmo, em Sua vida e em Sua morte, cumpriu a lei de Moisés e, através de Seu Espírito, Ele cumpre essa lei em todos os Seus discípulos.

Apesar de Cristo e Seus apóstolos regularmente relacionarem a lei moral do Velho Testamento ao amor a Deus e ao próximo, gradualmente se desenvolveu, no ensino moral cristão, o hábito de explicar as virtudes e as

ocupações do homem através dos Dez Mandamentos. Esse método foi muito utilizado pelos Reformadores, pois, eles viam que esses mandamentos tinham sido destinados à realização de boas obras, isto é, eles estavam de acordo com a vontade de Deus. Ao agir dessa forma, eles tomavam posição contrária à Igreja católica, que reconhecia entre as boas obras também aquelas ações que são baseadas nas ordenanças e leis humanas (Catecismo de Heidelberg, pergunta 91).

Roma faz uma distinção entre mandamentos e recomendações e afirma que essas recomendações foram acrescentadas à lei de Moisés por Cristo, como um novo e mais elevado legislador. No período mais remoto da Igreja cristã, essa distinção não era conhecida, mas quando o perío-do de perseguição passou e todos os tipos de pessoas se juntaram à Igreja, muitas das quais buscavam apenas prestígio e distinção, o nível moral caiu e muitas pessoas seriamente se entregaram à solidão. O monasticismo que dessa forma começou a surgir tentou aderir à idéia moral, mas esse método não podia ser seguido pelos crentes comuns, que tinham sua família e sua ocupação profissional. Assim, gradualmente, começou a surgir a diferença entre os religiosos ou o clero e os leigos, uma moralidade mais alta

mais baixa começou a ser discriminada, uma diferença entre mandamentos e recomendações. Em outras palavras, os mandamentos, contidos nos Dez Mandamentos, foram ordenados a todos os cristãos, mas, as recomendações foram deixadas como mandamentos opcionais. Entre essas adições logo foram reconhecidas a assim chamada castidade, ou estado celibatário, com base em Mateus 19.11,12 e 1 Coríntios 7.7ss.; a pobreza, ou a renúncia a todos os bens terrenos, com base em Mateus 19.21 e ICoríntios 9.14; e a absoluta obediência aos superiores aos quais a pessoa está submetida, com

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base em Mateus 16.24 e Lc 14.26,27. Mas, nas ordens monásticas, essas recomendações são substituídas por todos os tipos de abstinência, mortifica-ções e castigos, tudo isso baseado em Mateus 5.29,39,42. É verdade, que ao fazer isso, Roma quer afirmar que o ideal de perfeição moral é o mesmo para todos os crentes e deve ser buscado por todos eles na forma de obediência aos mandamentos. Mas quem quer que adicione as recomenda-ções aos mandamentos segue um caminho mais rápido e mais seguro para se alcançar esse propósito, também recebe um mérito maior e uma recompensa mais rica. Enquanto o crente comum, que cumpre a lei, continua sendo um servo inútil, que faz somente

o que lhe é ordenado (Le 17.10), o outro cristão, que além dos mandamentos segue também as recomendações, é considerado como o servo bom e fiel, que foi fiel no pouco e a quem o muito será confiado (Mt 25.21).

É bastante natural que os Reformadores não tenham aprovado essa distinção. Profundamente convencidos da depravação da natureza humana, eles afirmavam que os regenerados também não podiam cumprir perfei-tamente a lei, que suas melhores obras ainda eram manchadas pelo pecado, e que, portanto, o mais santo de todos os crentes não podia alcançar senão um pequeno começo da perfeita obediência (Catecismo de Heidelberg, per-guntas 62 e 114). O crente, em outras palavras, nunca chegará ao ponto de realizar as recomendações, simplesmente porque ele tem que se esforçar em cumprir os próprios mandamentos. Deus requer em Sua lei que nós o amemos com toda a nossa mente, com toda a nossa força e que amemos o nosso próximo como a nós mesmos (Mt 22.37; Lc 10.27). Como pode algo ser acrescentado a esse mandamento? Se Deus nos quer em nossa totalidade, em todos os tempos e em todos os lugares, a Seu serviço, nada resta que represente uma opção que nós ainda possamos realizar ou ignorar, e que nós possamos, de acordocom nossa livre escolha, dar ou reter.

Conseqüentemente não há base para a afirmação de que Cristo acrescentou algo como um certo tipo de lei de liberdade aos mandamentos revelados na lei mosaica. Apesar de haver casos nos quais a pessoa deva abster-se de casar, deva dispor de seus bens, deva abrir mão de suas ocu-pações ordinárias e de sua profissão, nenhuma recomendação especial lhe é dada para que ela faça ou deixe de fazer tudo isso. A mesma lei exige, em termos da natureza das circunstâncias, uma aplicação específica e essa aplicação é uma obrigação. Ojovem rico não recebeu de Cristo uma opção que ele pudesse aceitar ou rejeitar, mas recebeu, como uma prova de sua integridade e da determinação de seu coração, o mandamento de vender tudo o que tinha e dar o produto da venda aos pobres. Disso ficaria manifes-to se ele estava ou não estava totalmente comprometido com Cristo e Seu reino. Portanto, nós devemos fazer distinção entre a lei e a obrigação. A lei é uma e a mesma para todos, mas a obrigação é a forma particular na qual a lei moral geral deve ser aplicada pelo indivíduo de acordo com sua natureza e circunstâncias.Os Reformadores rejeitaram todas as obras que dependiam das determinações dos homens ou das prescrições da Igreja e retornaram à vontade de Deus como a norma para as boas obras. Eles encontraram essa vontade breve e substancialmente expressa nos Dez Mandamentos. Mas a lei dos Dez

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Mandamentos não se mantém independentemente, por si mesma; ela se encontra no meio de um rico contexto. Seu conteúdo material foi originariamente escrito no coração do homem criado à imagem de Deus. Ela ainda permanece parcialmente ali, visto que as pessoas continuam na-turalmente a fazer o que a lei diz e isso prova que a lei está escrita em seus corações (Rm 2.14,15). Cada ser humano tem a consciência de que em sua existência e em sua conduta ele está limitado a certas leis morais definidas e ele sente que, quando transgride essas leis, sua consciência o acusa. Em Israel, essa lei foi restaurada à sua pureza original através de uma revelação especial e foi útil à Aliança da Graça que, de acordo com suas palavras introdutórias, Deus estabeleceu com Seu povo e foi organizada em um corpo de direitos e ordenanças que tinha que governar toda a vida do povo. Além disso, essa lei foi explicaria, desenvolvida através da história de Israel pelos salmistas, pelos escritores do livro de Provérbios e pelos profe-tas, de forma que Jesus pôde dizer que toda a lei e os profetas se

resumem em dois mandamentos de amor, a Deus e ao próximo (Mt 22.40).Quando Cristo cumpriu as promessas de salvação do Velho Testamento

Ele não descartou a lei, mas cumpriu-a em toda a sua justiça. Por Sua obediência perfeita Ele pavimentou o caminho e no Espírito Santo concedeu poder pelo qual os discípulos podem e querem andar, em princípio, de acordo com os mandamentos da lei. De fato, nós podemos dizer que todo o conteúdo do Evangelho é que a justiça da lei está cumprida naquele que não anda segundo a carne, mas segundo o Espírito. A vida espiritual da rege-neração é útil à restauração da vida moral. A longa série de admoestações com a qual os apóstolos, de forma geral, concluem suas epístolas é uma amplificação e aplicação da santa lei do Senhor e, essas admoestações são feitas para ajudar os crentes a viver em todos os seus relacionamentos e em todas as circunstâncias de acordo com a vontade de Deus e para a glorificação de Seu nome. A lei dos Dez Mandamentos não pode ser separada desse rico contexto de temas. Além disso, o decálogo deve ser visto e explicado à luz de toda a revelação de Deus na natureza e na Escritura.

Entendidos dessa forma, os Dez Mandamentos são um breve sumário da ética cristã e uma nor-

ma permanente para nossa vida. Há também muitas outras leis às quais nós estamos vinculados. Deus também concedeu leis para

o nosso pensamento, para nossa apreciação da beleza, para nossa vida social, para nosso estudo e uso da natureza. Ele concedeu leis para todas as Suas criaturas, parao céu e para a terra, para o sol, para a lua e para as estrelas, parao dia e para a noite, para o verão e para o inverno, para a semeadura e para a colheita"'. Mas a lei moral é melhor do que essas ordenanças, pois, em distinção a todas elas, a lei moral se direciona para a vontade do homem, ou melhor, para o próprio homem como um ser volitivo, e assim se dirige à mais íntima essência de sua existência, ao núcleo de sua personalidade. E a lei moral estabelece a exigência de não ser cumprida somente em palavras e obras, mas também em pensamentos e desejos; a lei é espiritual (Rm 7.14); nós temos

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que ser perfeitos como é perfeito nosso Pai que está nos céus (Mt 5.48); e no décimo mandamento a lei faz uma cova através da raiz do pecado, a saber, à cobiça, e faz com que ela também seja culpada e impura diante da face de Deus.

Além disso, essa lei governa todas as relações

nas quais o homem se encontra, seja com re

lação a Deus, seja com relação ao homem, ou com relação a toda a natureza. Ela governa as relações humanas em suas várias categorias e graduações, em sua vida, em sua profissão e em sua propriedade. Ela governa as relações do homem com a verdade de sua razão e com a integridade de seu coração. E em tudo isso ela governa a relação do homem com toda a natureza, que é o seu meio ambiente, com seu ofício e com sua vocação, com seu trabalho e com sua recreação, com toda a natureza animada e inanimada. E no mais profundo núcleo de seu ser, a lei moral exige do homem que, em tudo o que ele faz, ele dê glória a Deus (lCo 10.31; C13.17).

Quando sentimos a lei em seu sentido espiritual,

profundo, ficamos horrorizados e desesperados por

cumpri-la. Se não conhecermos nenhuma outra

justiça além daquela que a lei exige de nós, não

estaremos em condição de cumpri-la e nem mesmo

teremos vontade de fazê-lo. Nesse caso, nós sempre

tentaremos roubar da lei o seu conteúdo espiritual,

externalizá-la, acomoda-Ia a nossa condição caída e

enganar a nós mesmo crendo que nós podemos,

através de uma vida cívica respeitável, satisfazer

suas altas exigências. O homem natural é ofendido

pelo sentido espi-

ritual da lei, isto é, por sua perfeição; internamente ele resiste à absoluta justiça e santidade que ela exige. Mas, no momento em que passamos a conhecer aquela outra justiça e santidade que Deus nos deu em Cristo e que, através da fé, Ele faz com que sejam nossas, nossa atitude com relação à lei e nossa noção de seu significado mudam completamente. De fato, podemos ainda nos queixar, como Paulo , de que a inda estamos carnalmente sujeitos ao pecado, mas, mesmo assim, temos que manter a lei em sua exal-tada sublimidade em vez de empurrá-la de seu pedestal. Nós continuamos a honrá-la como santa, justa e boa, pois ela é a lei de Deus. Nós a amamos precisamente por causa de seu caráter espiritual. Nós desfrutamos dela se-

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gundo o homem interior. E damos graças a Deus não somente pelo Evangelho, mas também pela Sua lei, por Sua santa, justa e perfeita lei. Essa lei também é uma revelação e uma dádiva de Sua Graça. Como eu amo a tua lei! Ela é a minha meditação todo o dia!

Apesar de os crentes receberem imediatamente, na regeneração, um desejo e um amor interno e assim sentirem-se motivados a viver de acordo com a vontade de Deus em todas as boas obras,

eles não são imediatamente aperfeiçoados e, de fato, eles não alcançam a perfeição nessa vida. A santificação deve ser diferenciada da justificação. A justificação consiste de uma absolvição divina que é totalmente realizada de uma vez por todas. Ela é repetidamente aplicada à consciência, mas ela não é desenvolvida, nem aumentada. Mas a vida de santificação é, como a vida da criatura, vinculada à lei do desenvolvimento. Ela tem sua origem na regeneração, exige nutrição para desenvolver-se vigorosamente e alcançará seu ápice somente quando for revelada com Cristo.

No Velho Testamento já foi dito sobre o Messias que Ele alimentará Seu rebanho como um pastor; entre os Seus braços recolherá os cordeirinhos e os levará no seio; as que amamentam, Ele guiará mansamente (Is 40.11). E em outro lugar somos informados de que o Senhor o ungiu para pregar boas novas aos quebrantados, enviou-o a curar os quebrantados de coração, a proclamar libertação aos cativos e a pôr em liberdade os algemados; a apregoar o ano aceitável do Senhor e o dia da vingança do nosso Deus; a consolar todos os que choram, a pôr sobre os que, em Sião, estão de luto uma coroa em vez de cinzas, óleo de alegria, em vez de pranto, veste de louvor, em vez de espírito angustiado; a fim de que se cha-

coassem carvalhos de justiça, plantados pelo Senhor para a Sua glória (Is 61.1-3; compare com Ez 34.16).

Portanto Cristo, durante o período de Seu ministério sobre a terra, não se dirigiu somente ao Israel maduro, mas ele veio também para os pequeninos e atribui a eles o reino dos céus (Mt 18.1-6; 19.13,14). Ele chama ao arrependimento não apenas os habitantes de Corazim e Betsaida, de Cafarnaum e de Jerusalém, mas também os publicanos e pecadores e Ele convida todos aqueles que estão cansados e sobrecarregados para dar-lhes descanso. Ele chama os herdeiros do reino por vários nomes, falando deles como aqueles que são pobres e aqueles que choram, como aqueles que têm fome e sede, como aqueles que são mansos e pacificadores (Mt 5.3-9), e faz distinção entre aqueles que são menores e aqueles que são maiores, entre

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aqueles que são os primeiros e aqueles que são os últimos no reino (Mt 11.11; 20.16). Ele freqüentemente reclama dos menores na fé, dos tímidos e obtusos entre Seus disCípUJOS421. E a todos Ele demonstra ser o bom pastor, que conduz todas as Suas ovelhas ao aprisco, que lhes dá vida em abundância, que preserva to-

das elas e certifica-se de que nenhuma delas está perdida (Jo 10.130).

Distinções similares são feitas entre os crentes das igrejas apostólicas. Os crentes do Velho Testamento eram ainda menores, pois foram colocados sob tutores e curadores e, nesse sentido, não diferiam dos servos (GI 4.1,2). Comparados com eles, os crentes do Novo Testamento são filhos e filhas livres, aceitos por Deus como Seus filhos e herdeiros e permanecem na liberdade para a qual Cristo os libertou (CI 4.4-7). Contudo, todos os tipos de diferenças estão presentes entre eles. De fato, a fé que é dada aos mem-bros da Igreja é a mesma para todos, mas ela é dada a cada um segundo a sua natureza e em uma medida específica (Rm 12.3); os dons que o Espírito Santo distribui à Igreja são diferentes (Rm 12.6-8; 1Co 12.4-11); o lugar que cada membro da Igreja ocupa é diferente daquele ocupado por outros membros, como acontece com os membros do corpo (Rm 12.4,5; 1Co 12.12 ss.). Mas totalmente à parte dessa distinção de dons e funções, há entre os crentes diferenças também de força e fraqueza411, entre filhos que necessitam de leite (1Co 3.2; 5.12) e os maduros, que se alimentam decarne e que, pelo exercício do discernimento, possuem condição de distinguir entre o bem e o ma1121. Há também uma diferença entre os crentes jovens, que têm vencido o maligno, mas que precisam tomar cuidado para não perder sua vitória, e os anciãos, que possuem uma longa experiência na luta e receberam um conhecimento e um discernimento mais profundo da parte de Deus (1Jo 2.12-14). Além disso, foi feita uma distinção, no período apostólico, entre igrejas e crentes que eram firmes na fé, abundantes no amor, pacientes no sofrimento e aqueles que se permitiam ser induzidos a todos os tipos de erros e sucumbiam diante de todos os tipos de pecados. As cartas dos apóstolos e especialmente as cartas de Cristo às sete igrejas da Ásia (Ap 1-3) nos dão descrições detalhadas dessas várias circunstâncias.

Tudo isso ensina que o homem em sua vida espiritual e natural, nasce como uma criatura pequena, fraca e necessitada e que deve gradualmente se desenvolver na Graça e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo (2Pe 3.18). Se a vida espiritual se desenvolve saudável e normalmente, se ela se alimenta com o alimento espiritual e bebe

a bebida espiritual que está em Cristo (Jo 6.48 ss.; 1Co 10.3,4), ocorre um contínuo desenvolvimento em Graça, um estabelecimento nela e uma progressiva renovação segundo a imagem de Cristo"'. Mas todos os tipos de obstáculos se interpõem no caminho desse desenvolvimento normal. A vida do cristão não é um desenvolvimento tranqüilo, mas uma luta constante, uma luta contra inimigos externos e contra inimigos fintemos, que moram dentro de nosso peito.

Para entendermos propriamente a natureza dessa luta nós devemos, antes de tudo, observar que na vida dos não regenerados a luta está também, geralmente, presente. Mas essa não é uma luta espiritual. É uma luta racional, um conflito entre a razão e a consciência humana, por um, lado, e

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a vontade e o desejo, de outro. Pela sua razão e pela sua consciência, o homem continua vinculado à lei moral, ao mundo de realidades invisíveis e eternas. Em seu coração, ele ainda ouve a ord= você deve. No momento em que ele quer fazer o mal, seu melhor julgamento oferece resistência, ad-verte-o e tenta impedi-lo. Não há um só ser humano que tenha se extraviado para tão longe ou que tenha afundado tão profunda-

mente que não saiba algo da realidade dessa tensão em seu ser. E sob circunstâncias favoráveis o homem pode, em alguns casos vencer, essa luta. Ele pode conter seus apetites e desejos pela razão, pode suprimi-los e silenciá-los. Ao fazer isso, ele se torna um homem bravo, virtuoso e vive uma vida honrada. Mas isso ainda não é a verdadeira moralidade; isso não é a santificação cristã, pois, a luta existente no homem natural é a luta entre a razão e a paixão, entre a obrigação e o desejo, entre a consciência e o apetite. A luta não é empreendida contra todos os pecados, somente contra alguns deles e, na maior parte dos casos, somente contra os pecados públicos e externos. A luta não é empreendida contra o pecado como pecado porque ele excita a ira de Deus, mas contra certos pecados específicos que estão em alta estima no mundo do mal e que são acompanhados por perda ou vergonha. E o ser humano pode, em ocasiões favoráveis, restringir sua inclinação para o mal e refreá-la, mas não pode arranca-Ia, nem causar uma mudança em seu coração.

A luta espiritual que os crentes devem travar dentro de sua alma possui um caráter muito diferente. Não se trata de uma luta entre a razão e a paixão, mas

entre a carne o espírito, entre o velho e o novo homem, entre o pecado que continua a morar nos crentes e o princípio espiritual de vida que foi plantado em seus coraçõe5411. Essas duas forças não estão espacialmente separadas, como duas partes de uma mesma pessoa – como a razão e a paixão, por exemplo. Essas duas forças compartilham todo o ser humano, todas as suas forças e habilidades, de tal forma que qualquer uma delas pode ser chamada de homem – uma é o velho homem e outra é o novo homem.

É dessa forma que Paulo geralmente expressa essa distinção, mas em Romanos 7 ele faz uso de outros nomes. Ali ele designa o novo homem, o homem espiritual, como a vontade que ama o bem e quer realizá-lo, como o homem interior que tem prazer na lei de Deus. E ele chama o velho homem de carne, o pecado que mora nele, a lei em seus membros que luta contra a lei de seu espírito e o aprisiona sob a lei do pecado que está em seus mem-bros. Essa é uma diferença de apresentação, mas o assunto é o mesmo. Nos escritos de Paulo a carne é, geralmente, o nome usado para designar a pecaminosidade que continua a existir no crente e que certamente continua a residir no homem interior, em

sua alma, em seu coração, em seu espírito. As obras da carne são não apenas adultério, fornicação e coisas semelhantes, mas também idolatria, ódio, ira, discórdia e assim por diante (GI 5.19,20). E quando pensa no homem interior, o apóstolo pensa não apenas em algo que está no mais profundo do ser humano, que continua escondido lá e que nunca e de nenhuma forma é expresso externamente, pois, ele claramente afirma que os crentes andam segundo o espírito e transformam seus membros em armas

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de justiça. Mas ele chama o novo homem de homem interior nessa conexão porque, nessa terrível batalha contra a carne, o novo homem muitas vezes fica profundamente escondido e raramente se revela.

A luta entre as duas forças consiste no fato de que o Espírito de Cristo, que mora nos crentes, tenta produzir todos os tipos de bons pensamentos, deliberações, inclinações e orientações (tais como amor, alegria, paz e coisas semelhantes: G15.22) em sua mente, coração e vontade, mas a carne, por outro lado, levanta sua voz e tenta profanar todo o homem com seus maus desejos (GI 5.19,20). E nessa luta a carne aparece com tanto poder que o ho-mem não faz, na forma e medida em que ele desejaria, o que ele gostaria de fazer (GI 5.17). Quando ele quer fazer o bem, o malestá presente com ele (Rm 7.21). O espírito está pronto, mas a carne é fraca (Mt 26.41).

Em outras palavras, o conflito não é entre a razão e a vontade, entre a obrigação e o desejo, mas entre o querer e o realizar, entre a disposição interna e o ato pecaminoso, entre o homem interior e o coração recriado por Deus em verdadeira justiça e santidade, entre o velho homem que, apesar de ter perdido sua posição de centralidade, luta mais ferozmente na proporção em que perde terreno. Essa não é uma luta entre duas faculdades ou duas partes do homem, como seria uma luta da mente contra o coração, da razão contra as paixões, da alma contra o corpo. Essas duas forças estão, armadas e beligerantes, lutando pelo controle de todo o homem. Na mente de uma só pessoa há a luta entre a fé e a incredulidade, entre a verdade e a falsidade; em um só coração há oposição entre inclinações e desejos puros e impuros; em uma só vontade o mau desejo se opõe ao bom e a má disposição se levanta contra a boa. Essa luta é, de fato, uma luta entre dois seres em um mesmo ser.

Psicologicamente isso pode ser explicado de tal forma que, no campo da consciência, dois grupos de idéias assumam posições contrárias e no campo do coração e dos desejos, duas séries de pai-xões se oponham. Nós falamos da existência de um velho e de um novo homem no crente, e assim nós expressamos o fato de que, na nova vida, todo o homem, em princípio, é transformado, e que, apesar disso, o poder do pecado continua a morar em todas as suas faculdades e membros, mas na verdade o que há são dois grupos de interesses, idéias, inclinações e coisas semelhantes, que lutam um contra o outro e em cuja luta nenhuma das duas partes é capaz de obter o controle total de uma sequer das faculdades humanas. Se, de fato, Deus tivesse tomado completamente a consciência do crente, por certo não haveria lugar para o erro e falsidade; e se o amor de Deus tivesse enchido completamente o coração do crente, não haveria lugar para ódio, ira, vingança e coisas semelhantes. Mas, como nós sabemos, esse não é o caso. A Escritura nos diz que não devemos esperar alcançar essa condição perfeita nessa vida. A luta continuará até o fim porque a fé, a esperança, o amor e todas as virtudes cristãs nunca serão perfeitas nessa vida e, portanto, continuará existindo em nossa alma lugar para a incredu-lidade, para a dúvida, para o desencorajamento, para o medo e assim por diante.

Conseqüentemente, em toda deliberação e ato do crente estão

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mesclados o bem e o mal. Amedida e o grau de ambos estão presentes em qualquer pensamento ou ato e diferem muito, mas sempre há algo do velho e algo do novo homem em nossas ações e pensamentos. Conseqüentemente, todas as nossas idéias, palavras e atos estão contaminados pelo pecado. Eles necessitam de reconciliação e purificação. Ao mesmo tempo, eles podem ser chamados de boas obras na medida em que são mesclados com a fé. Por todas essas razões, devemos estar em guarda contra os antinomianos, pois, essa heresia separa o velho homem do novo homem e faz entre eles uma distinção espacial, de forma que essa distinção passa a ser vista como a distinção entre o espírito e a matéria, entre a alma e o corpo.

O resultado desse tipo de erro é a doutrina nociva de que pensamentos e atos pecaminosos devem ser reconhecidos como pertencentes ao velho homem, e não ao novo. A Escritura e a experiência nos ensinam o contrário, elas nos ensinam que o crente não é a combinação externa de dois seres, mas que ele continua sendo um único ser, possuindo uma só consciência, um só coração, uma só vontade e que o velho e o novo homem não são dois seres independentes, mas dois grupos de desejos e disposições conflitantes dentro de uma só pessoa.

A gravidade dessa luta terá prosseguimento durante um longo tempo antes que o novo homem alcance a vitória. Contudo, muitos cristãos acreditam que os crentes alcançam a perfeição já nessa vida e que podem, aqui e agora, subjugar todo ato e toda inclinação pecaminosa. Os pelagianos pensam isso há muito tempo. No Concílio de Trento, Roma assumiu uma posição se-melhante e muitos grupos protestantes assumiram a mesma posição. Essas pessoas querem apelar ao fato de que as Sagradas Escrituras freqüentemente usam palavras gloriosas para descrever a condição cristã, como por exemplo em 1Pedro 2.9,10; 2Pedro 1.4; 1Jo 2.20. Elas apontam para o fato de que Paulo, depois de sua conversão, teve plena segurança de sua salvação e que seu passado pecaminoso está apenas em sua memória. Essas pessoas recorrem também às admoestações bíblicas para que os crentes sejam perfeitos como é perfeito o seu Pai celestial (Mt 5.48), e baseadas nesses textos, elas afirmam a possibilidade de se alcançar a perfeição ainda nesta vida412 e que a Graça de Deus, que pode ser obtida pela oração, se utiliza de to-

das as coisas"". Essas pessoas afirmam que fazem injustiça às riquezas do amor de Deus todos aqueles que consideram a perfeição moral inatingível nesta vida, e que, ao afirmar isso, essas pessoas removem dos crentes um forte incentivo para o exercício de todo o seu poder para alcançar essa perfeição.

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De fato, não há dúvida de que a Escritura fala do privilégio e do status do povo de Deus do modo mais impressionante. Ela se refere ao Israel do Velho Testamento como um reino de sacerdotes que foi escolhido dentre todas as nações da terra para ser propriedade exclusiva de Deus, um objeto de Seu amor, Seu filho, Seu servo, Sua esposa, por ele mesmo adornada e aperfeiçoada pela glória que Ele lhe concedeu"'. E os crentes no Novo Testamento são chamados de salda terra (Mt 5.13), luz do mundo (Mt 5.14), filhos de Deus, nascidos de Deus e aceitos por Ele (Jo 1.13; GI 4.5), eleitos, chamados e santificados (lCo 1.2), geração escolhida e sacerdócio real (1Pe 2.9,10), participantes da natureza divina (2Pe 1.4), ungidos com o Espírito Santo (1Jo 2.20), feitos reis e sacerdotes pelo próprio Cristo (Ap 1.5) e herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo (Rm 8.17). Nem olhos viram, nem

ouvidos ouviram, nem jamais penetrou em coração humano o que Deus tem preparado para aqueles que o amam agora, nos dias do Novo Testamento (1Co 2.9). Quem quer que rejeite o ensino da Escritura sobre o pecado e a Graça pode ver somente grossos exageros em tudo isso. Para essas pessoas uma mudança radical, tal como a que ocorre na justificação e na regeneração, não é necessária, nem possível. Mas, para a Escritura, a mudança que o ser humano sofre pela fé em sua conversão é uma mudança das trevas para a luz, da morte para a vida, da escravidão para a liberdade, da falsidade para a verdade, do pecado para a justiça, da expectativa da ira de Deus para a esperança de sua glória. E os crentes, tanto do Velho quanto do Novo Testamento, conscientes dessa grande mudança, podem apenas glorificar o Deus de sua salvação e alegrar-se em sua companhia. Como estamos distantes deles na alegria da fé!

A Escritura expõe aos crentes o mais alto dos ideais morais. A tendência é passar por cima ma desse fato. É dito que a vida moral que a cristandade deseja é parcial, ultra espiritual, direcionada exclusivamente à vida no céu, totalmente aversa aos assuntos ter-renos, antagônica à cultura. O tipo de coisa que coloca diante dos pobres e oprimidos o paliativo da

vida eterna, mas que é indiferente à melhoria de sua condição de vida aqui na terra, algo que pode ser rico em virtudes passivas e cheio de prescrições sobre sujeição e paciência, mas pobre em vir-tudes ativas que possam conduzir à conquista e à reforma do mundo. Por isso há muitos que aspiram a uma diferente, melhor e mais elevada moralidade, a um ensino ético que possa conduzir a uma dedicação ao serviço da humanidade como sua mais elevada

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obrigação e que limite seu raio de ação à vida sobre a terra.

Uma preocupação com os interesses terrenos está, em si mesma, todavia, em tão pequeno conflito com a moralidade cristã que pode até mesmo ser dito que ela está baseada e fundamentada na criação do homem à imagem de Deus. O homem era, e em um certo sentido ainda é, a imagem de Deus, e por isso ele é chamado para dominar a terra e para ter domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que rastejam sobre a terra (Gn 1.26-28; SI 8). Não há livro que faça mais justiça a toda a natureza do que a Escritura Sagrada. O paganismo sempre vacila entre um abuso arrogante do mundo e uma supersticiosa servidão e temor aos seus poderes misteriosos. Mas Moisés e os profetas, Cristo e os apóstolos, estão perfeitamente livres do

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mundo, pois foram elevados acima dele pela comunhão com Deus. E apesar de ser verdade que a Escritura nos incentiva a procurar, em primeiro lugar, o reino dos céus, e apesar de ser verdade que o grupo de cristãos do primeiro período, pequeníssimo como era, era composto por pessoas oriundas de vários tipos de vida e tinha que se abster de muitas coisas porque, no mundo daquele tempo, virtualmente tudo era permeado pelo espírito do paganismo. O cristianismo, em princípio, incluiu dentro de si mesmo todos os elementos que, não somente davam liberdade para dominar o mundo e exercer domínio sobre a terra, mas também fez desses talentosa preocupação e a vocação do homem.

A ética cristã não é outra senão aquela que é resumida nos Dez Mandamentos e que é iluminada e interpretada em toda a Escritura. Nesses mandamentos o contexto é o amor de Deus, mas o amor ao próximo é o segundo mandamento, semelhante ao primeiro. Nesse amor ao próximo está contido, se nós entendermos corretamente, não em um sentido passivo próprio dos budistas, mas em seu caráter cristão, ativo, a missão de reformar a cultura. Através das missões, as possessões morais e religiosas do cristianismo alcançam todos os povos e todas as nações. Pela reforma,que não se limitou a um momento histórico da Igreja cristã, mas que deve sempre prosseguir, ocorre a progressiva renovação do coração e da vida, da família e da sociedade, de acordo com as exigências da vontade do Senhor; e pela cultura é realizado o domínio da terra, o domínio da matéria pelo espírito, o domínio da natureza pela razão.

O reino dos céus, que deve ser buscado em primeiro lugar, traz consigo todas as coisas (Mt 6.33). A piedade para tudo é proveitosa, porque tem a promessa da vida que agora é e da que há de ser (1Tm 4.8). Nada é impuro de si mesmo, pois toda criatura de Deus é boa, e, recebido com ação de graças, nada é recusável (Rm 14.14; 1Tm 4.4). O cristianismo, que encontra a base de toda cultura na criação do homem conforme a imagem de Deus e sua restauração na ressurreição de Cristo, chama seus confessores fiéis à deliberação de tudo o que é verdadeiro, respeitável, justo, puro, amável, de boa fama, tudo em que haja virtude e tudo o que seja digno de louvor (Fp 4.8).

Nenhuma moralidade superior, nenhuma religião mais elevada é concebível além daquela que nos é apresentada no Evangelho. A época na qual nós vivemos nos dá evidência disso. A moralidade das Escrituras é rejei-tada, mas os acontecimentos estão

continuamente entrando em conflito com as mais simples leis da vida ética.A primeira coisa que acontece quando a moralidade das Escrituras é

rejeitada é que os mandamentos que estão relacionados com o amor a Deus são eliminados da lei moral. Não há mais espaço para o amor a Deus, a Seu nome, a Sua verdade e a Seu serviço; além disso, como as pessoas seriam capazes de amar a Deus quando elas duvidam ou negam que Ele possa ser conhecido, que Ele se revela, ou até mesmo que Ele existe? Mas, ao agir assim, aqueles que negam a relevância da primeira lei minam os mandamentos da segunda tábua, pois, se não há Deus que obrigue o homem a amar seu próximo, que fundamento pode existir para esse amor? Conseqüentemente, os proponentes de um ensino moral independente da religião estão desesperadamente divididos acerca da questão de qual é

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o princípio que está por trás do amor do homem ao seu próximo. Alguns tentam basear esse amor no interesse próprio, outros, na felicidade que ele traz, um terceiro grupo tenta apoiá-lo sobre a virtude da piedade, da compaixão. Um quarto grupo tenta baseá-lo na consciência, mas todos eles juntos provam que, sem a autoridade divina para o dever que obriga a consciência, não há

um imperativo para que o homem ame seu semelhante.Conseqüentemente, os proponentes dessa moralidade independente da religião encontram dificuldade em cada mandamento específico no qual o amor ao próximo é trabalhado e desenvolvido. Geralmente se diz que as pessoas, apesar de diferirem grandemente sobre religião, estão unidas com relação à moralidade. Pode haver alguma verdade nisso, pois, a natureza é mais forte do que a teoria, e porque a lei está escrita no coração de cada pessoa, porém, no mais, a experiência nos ensina algo bem diferente. Não há um só mandamento da segunda tábua que permaneça incontestável em nossos dias. A autoridade do pai e da mãe, bem como a de todos aqueles que estão acima de nós, é abertamente atacada e rejeitada. O assassinato está sendo encarado com menor seriedade na medida em que os anos vão se passando. No caso do suicídio ele é geralmente ignorado e no caso do aborto ele chega até a ser defendido. O casamento é considerado como um contrato assumido durante algum tempo e o adultério tem seus defensores. A propri-edade, para algumas pessoas, chega a ser sinônimo de roubo. A verdade é subserviente à utilidade, é feita dependente de um desenvolvimento evolutivo, e é diferenciada da mentira somente com relação a tempo e lugar, ou forma e grau. E a cobiça celebra sua vitória no espírito consumiste de nossa época.

Contra essa moralidade ilegítima, a Escritura mantém o ideal moral em sua forma original e pura. Ela nunca violenta a santidade de Deus e a santidade de Sua lei, pelo contrário, ela coloca essa santidade em toda a sua majestade, claramente, diante da consciência humana. O que Jesus disse aos Seus discípulos quando os admoestou a ser perfeitos como é perfeito o Pai celestial é repetido, de diferentes formas, por todos os apóstolos em suas admoestações aos crentes. O pecado não tem direito à existência, muito menos naqueles que são chamados pelo nome de Cristo. Nada pode ser subtraído da exigência da lei moral, muito menos por aqueles que morreram com Cristo e com Ele ressuscitaram para uma nova vida. E se, pela providência de Deus, o velho homem gradualmente morre no crente e o novo homem gradualmente se desenvolve, e dessa forma o crente vai se aperfeiçoando, isso aponta para a grande longanimidade de Deus. Ele pode exercer essa longanimidade porque Cristo cobriu os pecados da Igreja com Sua justiça e santidade e garante o aperfeiçoamento

de Seu povo.

Apesar da lei moral, que é a norma de vida para os crentes, poder ser satisfeita somente comoperfeito amor a Deus e ao próximo, é totalmente evidente, de acordo com as Escrituras, que nenhum crente pode alcançar essa perfeição nessa vida. Os santos da Bíblia eram pessoas que geralmente vacilavam ou tropeçavam

ealguns deles, como Davi ou Pedro, cometeram graves pecados, Todavia,

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eles sentiram profundo arrependimento e fizeram confissão de seu pecado. Não importa quem nós possamos escolher para ouvir, nós nunca ouviremos, a afirmação que algumas vezes é feita por cristãos: Eu não cometo mais pecado. Pelo contrário, Abraão (Gn 12.12), Isaque (Gn 26.5), Jacó (Gn 26.35), Moisés (Nm 20.7-12; 51106.33), Daniel (Dn 9.4), Davi (SI 51), Salomão (1Re 8.46), Isaías (Is 6.5), estes e outros como eles, todos confessaram seus pe-cados e reconheceram suas falhas

eerros.

O mesmo é verdade com relação ao apóstolo Paulo. Ele foi crucificado com Cristo e passou a andar em novidade do Espírito. Ele foi justificado e estava plenamente seguro de sua salvação. Ele recebe glória, humanamente falando, por sua obra apostólica e tem consciência da fidelidade com a qual ele cumpre sua vocação135.

Mas, além de atribuir tudo isso à Graça de Deus"', ele confessa que nenhum bem habita em sua carne (Rm 7.18), que a carne milita contra o Espírito (G15.17), que o querer e o fazer estão em constante conflito dentro dele (Rm 7.7-25) e que ele almeja a perfeição, mas que ainda não a alcançou (Fp 3.12).

Moisés e os profetas dão um testemunho semelhante a respei^ to do povo de Israel, Cristo dá o mesmo testemunho com relação aos Seus discípulos e os apóstolos sobre as igrejas que lhes foram confiadas. Jesus chama Seus discípulos à perfeição (Mt 5.48) e, no entanto, ensina-os a orar pedindo perdão pelos seus pecados (Mt 6.12). Os cristãos de Roma tinham ressuscitado com Cristo para viver com ele em novidade de vida (Rm 6.3 ss.) e, no entanto, são admoestados a colocar seus membros a serviço da justiça, para a santificação (Rm 6.19). Os crentes de Corinto foram lavados, santi-ficados, justificados no nome do Senhor Jesus e pelo Espírito de Deus (1Co 6.11) e, no entanto, eram carnais (1Co 3.1-4). Os crentes da Galácia tinham recebido o Espírito pela pregação da fé (GI 3.2) e, no entanto, se permitiam ser tentados a desobedecer à verdade (GI 3.1). A boa obra foi começada nos filipenses, mas ainda não tinha sido completada (Fp

1.6). Em todas as igrejas havia erros e defeitos que não estavam em harmonia com a vida cristã. E todos os apóstolos estavam convencidos de que o pecado continuaria a agarrar-se aos crentes enquanto eles vivessem. Todos nós tropeçamos em muitas coisas (Tg 3.2). Se nós dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos e a verdade não está em nós (1Jo 1.8).

Apesar da perfeição não poder ser alcançada nesta vida, as admoestações e apelos continuam sendo úteis e sérios. Aqueles que defendem a perfeição dos crentes nesta vida levantam objeção a isso dizendo que as admoestações que não podem ser plenamente cumpridas, necessariamente perdem sua força com o passar do tempo. Contudo, essa é uma falsa peça de argumentação. Do fato de que uma pessoa deva fazer algo, não se segue que ela possa fazê-lo. Um homem pode ter que pagar uma certa quantia em dinheiro e não poder efetuar o pagamento. Nesse caso ele continua sendo obrigado a pagar. E da mesma forma, a lei moral nunca perderá seu valor, embora o ser humano, por causa do pecado, não possa cumpri-la. Por outro lado, pode ser afirmado com justiça que a pessoa que ensina a possibilidade de perfei-ção nesta vida sempre abaixa o padrão moral e encara o pecado com menos seriedade.

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Certamente, se ao pensar no pecado não se pensa somente nos atos pecaminosos externos, mas também se leva em conta os pensamentos e as inclinações pecaminosas, dificilmente se poderá afirmar, com seriedade, que nesta vida os crentes poderão ficar completamente livres do pecado. Uma pessoa só pode defender a possibilidade dos santos alcançarem a perfeição nesta vida se ela não considerar com seriedade a natureza pecaminosa do homem, se ela não considerar seus pensa^ mentes e inclinações pecaminosas como pecado e se ela violentar a absoluta santidade da lei. Na forma de celebração da Santa Ceia nas igrejas Reformadas é dito que nós estamos seguros de que nenhum pecado ou iniqüidade que ainda permaneça em nós contra nossa vontadepode nos impedir de sermos recebidos pela Graça de Deus. Tem sido objeto de muita disputa se os regenerados podem cometer pecados de caráter deliberado e que, portanto, devam ser chamados de pecado ou de mal. Contudo, duas coisas são certas: uma é que aqueles que são realmente regenerados em uma nova vida e tiveram sua consciência, sua vontade e sua disposição renovadas, em maior ou menor grau, se opõem a esses pecados;e a outra é que os pecados que nós praticamos contra nossa vontade continuam sendo pecados e estão em conflito com a santidade da lei.

Além disso, as admoestações a um viver santo, longe de serem inúteis e nocivas, vas, são precisamente os meios pelos quais Cristo aplica a justiça e a santidade dadas aos crentes em Cristo e age neles. Cristo, em Sua oração sacerdotal, ora para que o Pai santifique Seus discípulos na verdade, isto é, por meio de Sua palavra, que é a verdade (Jo 17.17; 15.3). A Palavra que Deus nos dá, de fato, é o principal meio para nossa santificação. A bênção que é acrescentada, não somente à pregação pública, mas também à leitura, ao estudo e à meditação nessa Palavra no recolhimento do círculo familiar, é simplesmente fundamental para a nutrição da vida cristã. A essa Palavra, como meio de santificação, é acrescentada a oração no nome de Jesus (Jo 14.13,14; 16.23,24) que nos dá acesso à divina majestade e nos enche de confiança, pois não há no céu, ou sobre a terra, alguém que nos ame mais do que Jesus Cristo. À Palavra e à oração é acrescentado o cântico dos salmos ehinos e cânticos espirituais (Ef 5.19; Cl 3.16), pois, eles exercem uma profunda influência sobre a atitude do coração e a preparação da vontade. E, finalmente, há as vi-

gílias e os jejuns"', práticas que injustamente estão caindo no esquecimento. Todos esses meios de santificação provam que na obra de santificação, Deus não despreza o uso de meios.

Naturalmente Deus é o Todo-Poderoso e Ele poderia, se quisesse, santificar perfeitamente todos os Seus filhos no momento da regeneração. Mas, aparentemente, essa não é a Sua vontade. Toda criatura nasce, desenvolve-se, e só gradualmente vai alcançando a maturidade. Devido ao fato de a vida espiritual ser realmente vida, ela se desenvolve da mesma forma. Deus não injeta a justiça e a santidade de Cristo em nós mecanicamente, nem a derrama em nós como se derrama a água em um vaso. Ele a concede a nós

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de uma forma orgânica. Portanto, um detalhe não entra em conflito com o outro quando a Escritura nos apresenta a questão dizendo que os crentes devem tornar-se aquilo que eles já são. O reino dos céus é um dom de Deus (Lc 12.32) e é um tesouro de grande valor que deve ser buscado em primeiro lugar (Mt 6.33; 13.46). Os crentes são os ramos da videira e, por isso, eles nada podem fazer sem Cristo e eles são orientados em sua Palavra a permanecer nEle, em Sua Palavra e em Seu amor go 15). Eles foram eleitos em

Cristo antes da fundação do mundo e eles devem ser diligentes em confirmar seu chamado e eleição (Ef 1.4; 2Pe 1.10). Eles foram santificados pelo sacrifício de Cristoe devem seguir a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor (Hb 10.10; 12.14). Eles estão completos e, no entanto, necessitam de constante aperfeiçoamento e estabilidade (Cl 2.10; 1Pe 5.10). Eles se revestiram do novo homem e devem constantemente revestir-se dele novamente (Ef 4.24; C13.10). Eles crucificaram a carne com suas paixões e concupiscência, e contudo devem ainda mortificar a sua natureza terrena (GI 5.24; C13.5). È Deus quem efetua neles tanto o querer quanto o realizar segundo a Sua boa vontade e eles devem desenvolver sua salvação com temor e tremor (Fp 2.12,13).

Esses dados não entram em conflito uns com os outros. Um é simplesmente o fundamento e a garantia do outro. Como a santificação e toda a obra de salvação constituem uma obra de Deus, nós somos admoestados, obrigados a uma nova obediência

esomos também qualificados para realizá-la. Ele concede abundante Graça, não para que nós nos tornemos repentinamente santosecontinuemos a repousar sobre essa santidade, mas para que nós

perseveremos nessa luta. Ele ouve nossas orações, mas Ele o faz de acordo com a lei e a ordem que Ele estabeleceu para a vida espiritual. Portanto, tenhamos ânimo, pois, aquele que começou a boa obra em nós há de terminá-la até o dia de Jesus Cristo. Os crentes podem e eles se tornarão perfeitamente santos porque em Cristo eles são santos.

Podem os crentes realmente confessar que são não apenas membros vivos da Igreja de Cristo, mas que também continuarão sendo para sempre membros dessa Igreja? Há muitos que contestam isso. Como regra geral, os proponentes de perfeição terrena dos santos são ao mesmo tempo os proponentes de seu afastamento e apostasia. Uma posição está em íntima relação com a outra;

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ambas procedem da mesma raiz; no fundo ambas as idéias repousam sobre a noção de que a santificação do homem é uma obra do homem e que deve ser realizada conforme a sua vontade. O pensamento é que se o crente, assistido pela Graça, faz bom uso de sua vontade e recorre a todas as suas energias, ele pode, ainda nessa vida, alcançar a perfeição. Por outro lado, se ele relaxa o uso de suas energias, volta atrás e começa novamente a pe

car, ele pode cair do estado de Graça para o estado que ele antes ocupava. Ele pode novamente tornar-se uma pessoa ímpia e perder-se eternamente. E assim como ambas essas idéias nascem da mesma heresia da vontade e da obra do homem na santificação, elas são também acometidas pelo mesmo medo. O pensamento é que quando a perseverança dos santos é ensinada, a vida moral sofre prejuízo, a energia e o exercício moral do crente perdem seu incentivo e que um prêmio é colocado sobre a vida ímpia sob a proposição: unia vez perdido, sempre perdido!

Se, todavia, nós afirmássemos que essa doutrina da perseverança dos santos busca toda a sua força na vontade e na habilidade do homem, perderíamos todo o terreno sob nossos pés e duvidaríamos da estabilidade de todos os crentes. Todos os santos possuem somente um pequeno começo da perfeita obediência. De acordo com o testemunho de sua própria consciência, eles ainda são inclinados a todo mal e cometem faltas diariamente em muitas coisas. A cada momento eles pecam e agridem a Graça que lhes tinha sido concedida. Se toda essa questão dependesse deles mesmos, nem um só crente perseveraria até o fim. Os oponentes da confissão da perseverança dos santos só podem escapar dessas

inferências e conclusões fazendo distinções entre os tipos de pecados. Visto que todos os crentes continuam sendo culpados de todos os tipos de transgressões da lei de Deus, esses oponentes da doutrina da perseverança dos santos realmente ensinam que as falhas dos santos não são apenas possíveis, mas são reais em todos os crentes. No entanto, quando eles afirmam que alguns, muitos, ou até mesmo a maioria dos crentes preserva essa Graça e persevera nela, eles só podem fazer isso se estabelecerem algum tipo de distinção entre os pecados mortais e os pecados perdoáveis e se afirmarem que é somente através do primeiro tipo, e nunca através do segundo tipo, que a Graça pode ser perdida.

Todavia, fazer isso é introduzir uma distinção duvidosa na doutrina do pecado, pois, os vários pecados não estão um diante do outro de forma independente, todos eles derivam de uma só fonte impura; conseqüentemente todos conduzem o pecador à morte e todos eles são, com exceção da blasfêmia contra o Espírito Santo, perdoáveis pela Graça de Deus

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que está em Cristo. Além disso, quem de si mesmo, ou que sacerdote pode determinar se em uma dada circunstância a pessoa se tornou culpada de um assim chamado pecado mortal, ou de um pecado perdoável e, portanto, seperdeu definitivamente a Graça ou se a tem preservado? As transgressões que os seres humanos geralmente consideram como pequenas e insignificantes podem ser grandes aos olhos de Deus, que prova os corações. E os pecados que um mundo ímpio considera terríveis podem ser julgados de forma diferente por Aquele que conhece todas as circunstân-cias e todas as condições. O resultado, portanto, só pode ser que o crente vive em constante temor de que tenha cometido o pecado chamado mortal e conseqüentemente tenha perdido a Graça, ou que em uma falsa segurança ele se torne dependente do julgamento de um sacerdote.

Nós colocamos um fim em todas essas dúvidas e incertezas quando pensamos na perseverança dos santos não como uma realização da vontade humana, mas como uma obra realizada do começo ao fim pelo próprio Deus. Em outras palavras, nós colocamos um fim a todas as dúvidas e incertezas se considerarmos a perseverança dos santos como uma preservação de Deus mediante a qual o ser humano persevera. A Escritura não deixa dúvida sobre isso, pois ela nos mostra, com muitas evidências, que a obra do Pai, do Filho e do Espírito Santo está relacionada com a Aliança da Graça e com todos os seus benefícios.

O Pai escolheu os crentes em Cristo antes

mesmo da fundação do mundo (Ef 1.4), ordenouos à

vida eterna (At 13.48), conformou-os à imagem de

Seu Filho (Rm 8.29); e essa eleição é imutável (Rm

9.11; Hb 6.17) e no seu devido tempo traz consigo o

chamado, a justificação e a glorificação (Rm 8.29).

Cristo, em quem todas as promessas de Deus têm o

sim e o amém (2Co 1.20), morreu por aqueles que

lhe foram dados pelo Pai 0o 17.6,12), para que

pudesse dar-lhes vida eterna e não perdesse nenhum

deles Uo 6.39; 10.28). O Espírito Santo, que os

regenera, permanece eternamente com eles (Jo

14.16) e selaos para o dia da redenção (Ef 4.30).

A Aliança da Graça está segura e confirmada com um

juramento (Hb 6.16-18; 13.20), é indissolúvel como

um casamento (Ef 5.31,32) e tem um testamento (Hb

9.17). E em virtude dessa Aliança, Deus chama Seus

eleitos, escreve Suas leis em seus corações e coloca

neles o temor de Seu nome (Hb 8.10; 10.14 ss.). Ele não

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permite que eles sejam tentados acima das suas

forças (1Co 10.13), estabelece e conclui a boa obra

que começou a realizar neles (1Co 1.9; Fp 1.6) e

preserva-os para fazê-los participantes da herança

celestial juntamente com Cristo (11s 5.23; 1Pe 1.4,5).

Através de Sua intercessão junto ao Pai, Cristo está

sempre agindo na crença

dos eleitos para que sua fé não desfaleça (Lc 22.32), para que eles sejam preservados do mal nesse mundo (Jo 17.11,20), para que eles possam ser salvos (Hb 7.25), recebam o perdão de pecados (1Jo 2.1) e para que um dia todos juntamente vejam Sua glória (Jo 17.24). E, finalmente, os benefícios de Cristo que o Espírito Santo faz com que os crentes desfrutem são irrevogáveis (Rm 11.29) e estão mutuamente e inseparavelmente ligados uns aos outros: aquele que é recebido como filho de Deus é herdeiro da vida eterna (Rm 8.17; GI 4.7); aquele que crê, imediatamente vence a morte (Jo 3.16). E a vida eterna, por ser eterna, não pode ser perdida; essa vida não pode pecar (1Jo 3.9) e não pode morrer (Jo 11.25,26).

Mas, como no caso da santificação, a

preservação dos crentes é aplicada e trabalhada nos

crentes de tal forma que eles mesmos também

perseverem na Graça que lhes foi dada por Deus.

Deus nunca usa força, Ele lida com o homem de

uma forma racional. Na regeneração, Ele insere

novas potencialidades e assim transforma a vontade

que era rebelde para que ela não mais se rebele. E

dessa mesma forma Ele conserva a obra nos crentes

depois da regeneração inicial; Ele não faz com que

os crentes sejam passivos na obra de preservação,

pelo contrário, Ele faz com que

eles andem em boas obras preparadas para eles. O meio pelo qual Ele faz isso é a Sua Palavra.

Ele nunca deixa de admoestá-los a que perseverem até o fim"', a que permaneçam em Cristo, em Sua Palavra e em Seu amor"', a vigiar e serem sóbrios"', a preservar a fé e a permanecer nela até a morte"'. Ele os adverte contra a instabilidade e, em caso de apostasia, trata-os com

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duras punições"',- mas, Ele também acrescenta ricas promessas de recompensa à santificação e à perseverança"'. De fato nas pessoas de Davi e Pedro nós temos exemplos de graves quedas, em Himeneu e Alexandre (1Tm 1.19,20; 2Tm 2.17,18), Demas (2Tm 4.10) e outros (Hb 6.4-8; 2Pe 2.1) nós temos exemplos de total apostasia, que servem para nossa advertência.

Mas, todas essas advertências e admoestações não provam que o santificado possa cair defi-nitivamente da Graça, pois, nesses exemplos citados no parágrafo anterior, a afirmação de João diz que eles saíram do meio da Igreja, mas não eram verdadeiros cristãos (1Jo 2.9). E as pessoas de Davi e Pedro nos mostram claramente que o Senhor não os abandonou em sua queda, pelo contrário, Ele os preservou e conduziu-os à confissão de sua culpa e ao arrependimento. Esses exemplos nos foram dados para nossa admoestação, mas também para nosso conforto, pois se, por causa de nossas fraquezas, nós também cairmos, não precisamos duvidar de que a Graça de Deus não permitirá que permaneçamos no pecado, mas nos fortalecerá com o pensamento de que temos uma eterna Aliança de Graça com Deus. E é através dessa Aliança que Ele nos faz andar em Sua Palavra e em Seu Espírito. Quem quer que ensine a possibilidade de queda total e definitiva dos santos faz injustiça à fidelidade de Deus, faz com que a salvação e a perseverança dependam do esforço humano e, conseqüentemente, sejam instáveis e incertas, e faz violência também à unidade e à maturidade da vida espiritual. Tal pessoa deve tomar a posição de que essa vida pode ser várias vezes destruída e várias vezes reiniciada. Mas, aquele que crê na perseverança dos santos tem seu ponto de partida e seu descanso na Graça de Deus, gloria-se na fi-

delidade de Deus e, ao mesmo tempo, mantém a coerência da vida espiritual e da vida eterna, pois, apesar da vida do crente, enquanto viver o velho homem, continuar a apresentar todo tipo de mudança e vacilação, a nova vida é indestrutível; a semente que Deus plantou permanece para sempre (1Jo 3.9).

Todavia, essa certeza da perseverança está longe de provocar nos crentes um espírito de orgulho, ou de dar-lhes uma segurança carnal; pelo contrário, essa é uma real fonte de humildade, reverência filial, verdadeira piedade, paciência nas tribulações, ferventes orações, constância no so-frimento e na confissão da verdade e de uma sólida alegria em Deus. A consideração desse benefício deve servir como um incentivo à séria e

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constante prática de gratidão e boas obras, como evidência do testemunho da Escritura e do exemplo dos santos.

Se esse fruto precioso é produzido, a preservação dos santos deve ser crida como Deus quer que ela seja crida. Essa é a razão pela qual Deus a revelou em Sua Palavra, isto é, que nós a aceitássemos como uma doutrina. Mas essa não é a única razão, e também não é a razão principal, pois, se nós abraçarmos a perseveran

ça dos santos com verdadeira fé, estaremos confessando que Deus continua a agir dessa forma em Seus filhos. A preservação dos santos não é uma verdade histórica, não é um fato ocorrido em algum lugar no passado; não é uma verdade científica como um cálculo ou um produto de multiplicação; mas é uma verdade eterna, uma verdade à qual Deus se vincula de tempo a tempo, de geração a geração, uma realidade no meio da qual nós vivemos, que Deus traz à existência e conserva na vida de Seus filhos.

Nesse sentido só pode crer na perseverança dos santos aquele que sabe que é um objeto dessa perseverança e que pessoalmente, por sua própria experiência, conhece a sua realidade. Dessa forma, torna-se auto-evidente que qualquer pessoa que creia na preservação –inclusive na sua própria preservação – não pode se aproveitar dessa situação para dar lugar à carne, pois a pessoa que recebeu Cristo por uma verdadeira fé deve produzir frutos de gratid,ão.

Algo mais se segue a partir daí. Se a preservação dos santos é uma obra de Deus que Ele continuamente realiza no coração dos crentes, segue-se que, com o passar do tempo, uma firme certeza dessa realidade se desenvolve no coração dos crentes. Se não há algo como a preservação dos san-

tos, então nenhum crente pode, nem por um momento, ter perfeita certeza de sua salvação, pois ele viverá em constante temor de que, mais dia menos dia, ele perca a Graça de Deus por causa de um grave pecado. Mas, se Deus preserva os que são Seus, então o crente não só pode ter uma firme certeza desse fato em seu coração, mas também deve tê-la, pois, sem essa certeza da salvação a preservação dos santos perderia todo o seu valor para a vida prática dos crentes. Qual seria o valor da doutrina da preservação dos santos para os filhos de Deus, se eles nunca pudessem chegar a saber com certeza que eles são Seus filhos? Portanto, a perseverança dos santos e a certeza da salvação acham-se inseparavelmente conectadas uma à outra; sem a primeira, a segunda não seria possível, e a segunda faz com que a primeira seja um verdadeiro suporte para os crentes e um conforto para o seu coração.

Portanto, todos os crentes, do Velho e do Novo Testamento, participam dessa certeza. Não apenas Abraão (Gn 15.6; Rm 4.18 ss.), nem só Jacó (Gn 49.18), nem só Davi (2Sm 2.22 ss.; Hc 3.17-19), mas todos os crentes, cujas circunstâncias são

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descritas pelos

salmistas, escritores de provérbios e pelos profetas desfrutam dessa certeza. Eles geralmente vivem em profunda miséria, são oprimidos pelos seus inimigos, perseguidos e escarnecidos: "Onde estáo teu Deus? Confiou em Deus, agora que Ele o livre 11"4 . Algumas vezes eles chegam a se desesperar como se Deus tivesse se esquecido deles e Sua ira lhes negasse acesso às Suas misericórdias"'. Eles também reconhecem a justiça do julgamento de Deus e confessam seus pecados"'. Deus é seu Pai e eles são Seus filhos, rebanho de Seu pastoreio447 . Ele não pode se esquecer deles por causa de Seu nome, por causa de Sua Aliança (SI 79.8,9). Não passa de um momento a Sua ira; o Seu favor dura a vida inteira (SI 30.5). Ele não os trata segundo os seus pecados, nem os retribui segundo as suas iniqüidades (51103.10). Ele perdoa as suas iniqüidades e cobre os seus pecados (S132.1). O Senhor é a sua rocha e a sua fortaleza, sua torre alta, seu escudo eo baluarte de sua salvação, sua luz e sua alegria (5118.2; 73.25). O tom no

qual os apóstolos

eos crentes do Novo Testamento falam sobre sua salvação é preciso, seguro e certo. Não há dúvida sobre isso. Eles sabem que Deus

não poupou Seu próprio Filho, antes, por todos eles

o entregou e agora lhes dá também todas as coisas

(Rm 8.32), que eles são justificados pela fé, têm

paz com Deus e que ninguém pode inten^ tar

acusação contra eles (Rm 5.1; 8.33), que eles foram

regenerados para uma viva esperança e passaram

da morte para a vida°48, que eles receberam o

Espírito de adoção como filhos e que esse Espírito

testifica com o seu espírito de que eles são filhos

de Deus (Rm 8.15,16).

Esse conhecimento tem valor não apenas no presente, mas também no futuro, pois aqueles que Deus conheceu, chamou, justificou, a esses Ele também glorificou (Rm 8.30). Se eles são filhos, eles são também herdeiros (Rm 8.17). Pela fé eles já receberam a vida eterna e não podem perdêIa (1Jo 3.9; 5.1). Eles foram regenerados para uma viva esperança e são conservados na salvação pelo poder de Deus (1Pe 1.3-5). A boa obra que foi iniciada neles estará completa até o dia de Cristo Jesus (Fp 1.6). Em resumo, eles foram selados com o Espírito Santo com segurança e garantia até o dia da promessa"9.

Os crentes desfrutariam de mais força e segurança se sempre tivessem a firme certeza de sua fé.

Mas eles, em geral, não são totalmente seguros de

sua própria causa. Como, então, eles podem dar

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um testemunho eloqüente e provocar ciúme no

mundo pelo seu alegre testemunho? Na Igreja Ca-

tólica Romana essa certeza é sempre negada à fé; o

crente pode ficar absolutamente seguro de sua

salvação somente através de uma revelação

especial, o que acontece a uns poucos. Todos os

outros crentes nada possuem além de uma

conjectura, uma esperança, uma possibilidade. E

Roma pensa que esse fato não é uma des-

vantagem, mas uma vantagem, pois, provoca uma

inquietude vantajosa e serve como um incentivo

para a santificação. Portanto, os cristãos de Roma

não dependem do testemunho da Sagrada

Escritura em seu próprio coração, mas do

pronunciamento do sacerdote, da certeza que a

Igreja pode lhe dar de sua própria salvação. E, em

geral, isso lhes dá uma grande confiança.

A Reforma, contudo, tinha uma idéia muito diferente sobre a justificação e a fé e, conseqüentemente, sobre a segurança da salvação. Para Roma, a fé é simplesmente a aprovação dos ensinos da Igreja; a justificação consiste no derramamento de uma Graça sobrenatural e sua função é equi-par o homem uma vez mais para a realização de boas obras e assim fazer com que ele tenha direito à vida eterna. De acordo com sua natureza, portanto, a fé não pode dar a quem quer que seja a certeza de sua salvação; Consideran-do que essa certeza seja possível, ela deve ser derivada do amor e das boas obras e não pode, portanto, ser alcançada com absoluta segurança, mas deve permanecer como uma esperança mais fraca ou mais forte, dependendo do caso. Mas a Reforma reconheceu um sentido independente na justificação, viu nela a restauração do relacionamento entre o homem e Deus, e dessa forma teve que ver na fé algo mais e algo diferente de um simples consentimento com a verdade. Esse algo mais é uma perfeita confiança, de coração, na Graça de Deus em Cristo Jesus.

A fé leva consigo a certeza. M a s o s l u t e r a n o s e o s remonstrantes consideram essa fé relevante somente no presente. O crente pode estar absolutamente certo de que agora, nesse momento, ele é um crente, mas ele não pode estar certo de que ele sempre crerá e, portanto, de que ele realmente está salvo. As igrejas Reformadas, no entanto, incluem também o futuro no âmbito dessa certeza, e esse é o motivo pelo qual a procura pela certeza da salvação ocupa um lugar tão importante na vida dos santos. No pri

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meiro período, quando havia uma vida poderosa de crença, essa procura deliberada não era necessária; os homens viviam e falavam daquilo que enchia seus corações, como está perfeitamente claro em nossas confissões, fórmulas e orações. Mas, quando a fé diminuiu, essa procura tornou-se necessária. E em vez de encontrá-la com segurança, as pessoas se tomaram cada vez mais envolvidas na dúvida. A certeza da fé não pode ser obtida por qualquer processo de raciocínio ou por qualquer dedução. Isso é algo que pertence somente à fé. Portanto, quando a fé definha e se esconde, essa certeza deixa o coração e não pode ser novamente encontrada por meios artificiais.

Os Cânones de Dort falam sobre isso de um modo muito bonito: "O eleito, no seu devido tempo, embora em diferentes graus e em diferentes medidas, alcança a certeza de sua eterna e imutável eleição, não por intro-meter-se inquisitivamente nas secretas e profundas realidades de Deus, mas ao observar dentro de si mesmo com alegria espiritual e santo prazer os infalíveis frutos da eleição indicados na Palavra de Deus – tais como – uma verdadeira fé em Cristo, temor filial, uma bem-aventurada aversão ao pecado, uma fome e sede de justiça, etc".

Isso nós lemos no artigo 12

da primeira parte dos Cânones e nos artigos 9 e 10 da quinta parte, nós lemos o seguinte: "Dessa pre-servação dos eleitos na salvação e de sua perseverança na fé, os verdadeiros crentes podem obter e realmente obtêm segurança segundo a medida de sua fé, pela qual eles verdadeiramente crêem que são e continuarão sendo membros verdadeiros e vivos da Igreja, e que eles possuem o perdão de pecados e a vida eterna. Essa certeza, no entanto, não é produzida por qualquer revela-ção especial contrária ou independente da Palavra de Deus, mas deriva da fé nas promessas de Deus, que foram abundantemente reveladas em Sua Palavra para nosso conforto; do testemunho do Espírito Santo, testemunhando com o nosso espírito que nós somos filhos e herdeiros de Deus e de um, sério e santo desejo de preservar uma boa consci-ência e praticar boas obras".

Conseqüentemente, a certeza da salvação não é algo que seja acrescentado à vida de fé, mas algo que floresce da própria vida de fé. Portanto, a certeza difere "de acordo com a medida da fé". Nessa vida, os crentes devem lutar contra várias dúvidas carnais, são às vezes seriamente tentados e, portanto, eles nem sempre sentem plena certeza de fé e seguran-ça de sua preservação (veja os Cânones de Dort, V,11).

Mas tudo isso não diminui o fato de que a fé salvadora, tal como a Escritura a descreve, foi restaurada pela Reforma em sua natureza interna e em sua certeza, e que essa certeza se torna mais forte na medida em que a fé se tomar mais forte. Essa fé não é oposta ao conhecimento, mas é oposta à dúvida. A dúvida não é natural do novo homem, mas do velho homem; ela não é natural do Espírito, mas da carne. A fé diz sim e amém a todas as promessas de Deus, abraça essas promessas e repousa sobre elas. Na

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medida em que ela age dessa forma, a confiança da fé se toma verdadeira confiança, dá ao crente a liberdade de aplicar todas essas promessas de Deus a si mesmo e a apropriar-se delas; a confiança crescente se torna uma verdadeira confiança de que, não somente aos outros, mas também a mim, o perdão de pecados, a justiça eterna e a salvação foram dados por Deus, por Sua pura Graça e pelos méritos de Cristo.

Tal confiança se estende também, não através de um ato de ra-cionalização, mas segundo sua própria natureza, ao futuro. Seria uma fé muito estranha a que pudesse dizer: "Agora eu sou um filho de Deus, mas eu não sei se serei filho de Deus arnanha". Se a fé é real e poderosa, ela naturalmente se alegra: "O Senhor é o meu pastor: Eu não temerei. Am-da que eu ande pelo vale da sombra da morte, eu não temerei porque Ele está comigo. O Seu bordão e o Seu cajado me consolam". E a fé se alegra e dá esse testemunho, não porque ela esteja fundamentada sobre si própria, mas porque ela está fundamentada sobre as promessas de Deus. Entre essas promessas estão as seguintes: "Eu serei o teu Deus, agora e para sempre; com amor eterno eu te amei, e eu nunca te abandonarei nem te deixarei". Em outras palavras, a fé que não nos dá segurança no presente e no futuro violenta a verdade das promessas de Deus e a fidelidade de Seu amor.

Nesse ponto, em segundo lugar, deve ser acrescentado o testemunho do Espírito Santo. O Espírito Santo é a grande e Todo-Poderosa testemunha de Cristo, que dá testemunho de Cristo em nossos corações, traz-nos à fé em Seu nome e faz com que conheçamos os benefícios que nos foram dados por Deus em CriSto411. Mas esse Espírito de Cristo ao mesmo tempo faz com que nós conheçamos a nós mesmos, não somente em nossa culpa e impureza, mas também em nossa comunhão com Cristo e em nossa porção nele. Depois de, primeiramente, nosconvencer do pecado, justiça e juízo e, como o Espírito de fé (2Co 4.13), colocar a fé em nós, Ele continua Sua obra dando-nos a certeza da fé. Ele se torna o Espírito de adoção de filhos (CI 4.6), um Espírito que é favorável aos filhos e mora neles (Rm 8.15) e que faz com que saibamos que somos filhos.

Ele faz isso por diversas formas. Ele faz isso testificando com o nosso Espírito que nós somos filhos de Deus (Rm 8.16); orientando-nos poderosamente à alegre confissão: Abba, Pai (Rm 8.15); dando-nos paz com Deus e derramando o amor de Deus em nosso coração (Rm 5.1,5); dando-nos uma nova vida, progressivamente conduzindo-nos em nossa vida cristã e enchendo nossas almas com uma alegria que nós antes não conhecíamos"'; e Ele faz tudo isso – sem falar nas outras coisas que Ele realiza – para nos selar para o dia da redenção.

O termo selar, em referência a pessoas ou assuntos (cartas, por exemplo), às vezes significa colocá-los além do alcance de terceiros, preservá-los do dano"'; algumas vezes é usado para tornar pessoas específicas ou teste-munhos válidos e autoritativos e para estabeleCê-IOS413 . Nesse últi-

mo sentido, os crentes foram selados com o Espírito Santo como penhor até o dia da redenção". O Espírito Santo que foi dado aos crentes, que plantou a fé e continuamente a sustenta, que dá tes^ temunho aos crentes e que os con-duz, é o mesmo Espírito que sela sua salvação. Em e através desse selo Ele demonstra ser o penhor e a segurança dos crentes para que eles possam ser preservados até o dia da redenção e possam herdar as bênçãos celestiais.

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Esse Espírito nunca abandonará os crentes, mas permanecerá eternamente com eles ffo 14.16). E aquele que tem o Espírito pertence a Cristo, é propriedade de Cristo (Rm 8.19) e é preservado por Ele para a eternidade (jo 17.24). Cristo no céu e o Espírito Santo na terra são a garantia da salvação dos eleitos e selam essa salvação no coração dos crentes.

Essas duas formas, que gararítern a certeza da salvação aos crentes, não são duas formas distintas que correm paralela uma à outra, mas são uma só forma vista de dois pontos diferentes. O Espírito não dá testemunho, não opera e não sela os crentes ao longo da fé ou fora da fé, mas sempre através dela. E essa fé não é uma fé morta, mas uma fé viva;ela revela sua essência e prova seu poder em boas obras.

Portanto, podemos dizer que essas boas obras reúnem a fé nas promessas de Deus e o testemunho do Espírito Santo e merecem atenção, em terceiro lugar, como o meio pelo qual Deus assegura aos crentes a sua adoção como filhos em Cristo (Catecismo de Heidelberg, pergunta 86; Cânones de Dort, V,10). Mas devemos observar cuidadosamente: que, ao procurar por essa certeza, nós não devemos começar pelas boas obras; que a fé nunca pode firmemente repousar sobre elas; e que muito menos elas podem ser realizadas por nós com vistas a que alcancemos a certeza da sal-vação através delas, pois, todas as boas obras são imperfeitas e são mais ou menos perfeitas na medida em que são realizadas por uma fé mais fraca ou mais forte. Mas, na medida em que essas obras derivem de uma verdadeira fé, elas podem servir como auxílio para nossa segurança. Assim como a fé é provada e ilustrada pelas boas obras, assim também a fé é confirmada e fortalecida por elas. E, por isso, quando os homens vêem nossas boas obras, eles glorificam nosso Pai que está no céu.

Capítulo 23

E A IGREJA DE CRISTO

Cristo beneficia ricamente aos Seus f ié i s na ter ra ; a co roa , e l e s a recebem de pois da morte, mas a sua plenitude lhes é concedida somente após o dia do julgamento. Mas nós ainda não podemos falar sobre esse benefício da glorificação porque, primeiro, nós temos que atentar para a forma pela qual Cristo traz os benefícios de vocação e de regeneração, de fé e de arrependimento, dejustificação e de adoção como filhos, de renovação e de santificação, à existência de Seus filhos sobre a terra, sustenta-os e reforça-os. Já vimos que ele concede todos esses benefícios através de Sua Palavra e de Seu Espírito, mas ainda não vimos que Ele só concede esses benefícios na comunhão que vincula todos os crentes uns aos outros. Ele não distribui esses benefícios a pessoas individuais, nem a um pequeno

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grupo de pessoas, mas a uma grande multidão, a toda a nova humanidade, que foi escolhida nEle pelo Pai antes da fundação do mundo (Ef 1.4).

O crente, portanto, nunca está sozinho. No mundo natural, cada ser humano nasce na comu-nhão com seus pais e, portanto, sem qualquer esforço de sua parte, ele se torna membro de uma família, de um povo e de toda uma humanidade. Isso acontece também na esfera espiritual. O crente nasce de cima, de Deus, mas ele recebe uma nova vida somente na comunhão da Aliança da Graça, da qual Cristo é o Cabeça e também o conteúdo. Se, em virtude dessa regeneração, Deus é o Pai do crente, a Igreja pode, em um certo sentido, ser chamada de sua mãe. No mundo do paganismo não há crente ou grupo de crentes, a não ser através das missões que a Igre-

ja de Cristo envia até eles. Portanto, desde o primeiro momento de sua regeneração, o crente é, independente de sua vontade e de sua própria realização, incorporado a um grande conjunto, em uma rica comunhão; ele se torna membro de uma nova nação e cidadão de um reino espiritual, cujo rei é glorioso na multidão de Seu povo (Pv 14.28).Essa comunhão é um poderoso suporte para cada indivíduo. Nós devemos ser fortes de forma que não duvidemos e não temamos, muito embora estejamos sozinhos, e embora haja, como disse Lutero, mais demônios na cidade do que telhas nos telhados. Se Deus é por nós, quem será contra nós? Se o Senhor está conosco, o que nos poderá fazer o homem4"? Mas, como regra geral, nós não somos iguais em tal independência, isolamento e solidão. Há casos especiais, é verdade, nos quais uma pessoa é chamada a seguir a voz do Senhor, romper totalmente com todo o seu meio ambiente e discordar de toda a sua geração. E quando isso é necessário, Deus concede uma Graça especial e um poder especial como, por exemplo, o que foi dado a Abraão, a Moisés e a Elias. Mas, mesmo nesse caso, a solidão é dura. Elias queixou-se porque somente ele tinha permanecido fiel (1Re 18.22;

19.10), Paulo entristeceu-se quando, no fim de sua vida, viu-se esquecido por todos (2Tm 4.10). O ser humano é uma criatura exigente e não gosta de ficar sozinho.

A eleição compreende uma grande multidão de todas as gerações, línguas, povos e nações. De fato ela também é pessoal e individual, Deus conhece Seus filhos pelo nome, mas ele os escolhe e os combina de tal forma que todos eles juntos formem o templo do Senhor, o corpo e a esposa de Cristo. O propósito da eleição é a criação de um organismo, isto é, a renovação, redenção, renovação e glorificação de uma humanidade regenerada que proclame as excelências de Deus e leve Seu nome sobre sua testa. Quando Deus efetua essa eleição no tempo, Ele o faz somente através da Aliança da Graça; e Ele nunca inclui nessa Aliança quem quer que seja, independentemente dos de-mais, mas Ele inclui cada pessoa em sua família ou geração. Foi assim com Adão, Noé e Abraão e Ele continua fazendo assim com todos aqueles que Ele transfere do serviço ao mundo para a Sua comunhão; Ele estabelece Sua Aliança com o indivíduo e com a sua descendência e confirma-a de geração a geração.

Há uma grande tendência a essa atividade orgânica de Deusno coração de todos os crentes que corresponde a ela. Por um lado, não existe poder nesse mundo que possa dividir esse povo e, por outro lado, não há poder nesse mundo que possa unir esse povo com maior perfeição. Todavia, fora do

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Cristianismo, a comunhão religiosa geralmente coincide com a unidade de uma tribo ou de um povo. Em outras palavras, a religião aparentemente não é bastante forte para seguir seu próprio caminho sem o suporte tribal. Por-tanto, não há no paganismo uma Igreja no sentido próprio da palavra. Mas na cristandade, isso é muito diferente.

É verdade que, em Israel, a nação e a Igreja, consideradas de forma geral, eram coexistentes, mas, desde o começo, a unidade nacional dependeu mais da religião do que vice-versa. O maravilhoso nascimento de Isaque serve como evidência disso. A Aliança da Graça cria um povo particular a partir de Abraão. Nesse patriarca Deus, como o Onipotente, faz com que a natureza se submeta à Graça. Portanto, no Velho Testamento, o Deus da Aliança, o Deus de Israel e a terra de Canaã estão intimamente relacionados. Israel deve sua nacionalidade e unidade ao fato de que Deus o esco

lheu416; e Canaã é a terra do Senhor (Lv 25.23; 1Sm 26.19), dada a Abraão e à sua semente como herança da Graça"". Rute deu expressão a esse fato quando, retornando à terra de Judá com sua sogra, ela disse: "Aonde quer que fores, irei eu e, onde quer que pousares, ali pousarei eu; o teu povo é o meu povo, e o teu Deus é o meu Deus". E também foi por essa razão que, quando o povo mais e mais se afastava e finalmente foi levado em cativeiro e disperso, continuou existindo um remanescente fiel a Deus e a Seu serviço e que, dentre todo o povo, era o verdadeiro Israel, a verdadeira descendência de Abraão'11. E como esses santos se separaram dos ímpios, eles foram mutuamente atraídos uns aos outros e foram fortalecidos pela companhia mútua"'.

Essa separação foi continuada e completada no Novo Testamento. Depois que João Batista, com sua pregação de arrependimento e perdão de pecados, preparou o caminho, o próprio Jesus começou Seu ministério e direcionou-o primeiramente ao povo de Israel. Ele ensinou na Galiléia e na Judéia, em cidades e vilas e saiu pelo país fazendo o bem e libertando todos os que

eram oprimidos por demônios (At 10.38). Mas Ele logo aprendeu, por experiência própria, que o povo, sob a liderança dos escribas e fariseus, não queria saber de Seu messianismo e de Seu reino. Quanto mais Ele pregava, maior oposição Ele encontrava por parte do povo, até que finalmente ele foi entregue para ser crucificado. Quanto mais esse fim se aproximava, mais Jesus falava sobre as cidades de Corazim, Betsaida e Cafarnaum (Mt 11.20 ss.), dos fariseus e escribas (Mt 23.13 ss.), de Jerusalém e de seus filhos ((Mt 23.37), do povo de Israel (Mt 21.19 ss.; Le 23.28 ss.), da cidade e do templo (Mt 24) e contra tudo isso Ele pronunciou Seu terrível juízo. Israel rejeitou seu Messias; portanto, outros tomariam seu lugar.

Primeiramente, foi só o pequeno círculo dos discípulos que confessou Jesus como seu Senhor, mas essa confissão uniu-os em uma comunhão de tal

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forma que, depois que o Mestre os deixou, eles continuaram a perseverar em orações e súplicas (At 1.14). No dia de Pentecoste, eles foram revestidos com poder do alto e receberam do Espírito Santo um princípio independente de vida que os emancipou de todo e qualquer vínculo nacional e organizou-os em uma comunhão especial no mundo, totalmente independente de qualquer povo ou país. O derramamento do Espírito Santo deuà Igreja de Cristo sua existência independente.

A reunião dos crentes que confessam Jesus como seu Senhor foi, desde o começo, designada pelo nome de comunhão ou igreja. O Velho Testamento hebraico já possuía duas palavras para as reuniões do povo de Israel, mas não havia uma distinção real entre essas duas palavras. Os judeus do período posterior, no entanto, parecem fazer distinção entre esses termos de tal forma que o pri-meiro designe a igreja em sua situação real e o segundo designe a igreja em sua situação ideal, isto é, como um grupo de pessoas chamadas por Deus para a salvação. A primeira palavra foi traduzida no grego pela palavra sinagoga e a segunda pela palavra eclesia. A distinção quejá existia entre essas palavras no hebraico contribuiu para que, eventualmente, os cristãos dessem preferência à segunda palavra. A Igreja era a reunião dos crentes que substituiu o velho Israel e que realizou a intenção do amor eletivo de Deus.

Quando os judeus e os cristãos definitivamente separaram seus caminhos, gradualmente se desenvolveu o uso da designação das reuniões dos judeus pelo nome de sinagoga e das reuniões dos cristãos pelo nome de eclesia

(comunidade de crentes ou igreja), e esse uso conservou sua força até os nossos dias. Originalmente, nenhuma diferença de força caracterizava os dois termos. Em Tiago 2.2 (e Hebreus 10.25) a palavra sinagoga é usada com referência à reunião dos cristãos e em Atos 7.38 (e Hebreus 2.12) a palavra eclesia é usada com referência às reuniões do povo de Israel. De fato, em Atos 19.32,39,41 o último termo é usado em referência a um encontro popular geral. Mas a separação entre judeus e cristãos reforçou os diferentes significados desses dois termos.

Os discípulos de Jesus em Jerusalém, depois do Pentecoste, continuaram a encontrar-se no templo ou em =a de suas dependências"°°, com a finalidade de observar as horas de oração do código moral dos judeus e, ao mesmo tempo, pregar o Evangelho ao povo. Essa pregação dos apóstolos no dia de Pentecoste e por muito tempo depois dele, era ricamente abençoada. Milhares de pessoas eram acrescentadas à Igreja e eram salvaS461. Mas, de repente, surgiu uma perseguição que culminou com o apedrejamento de Estevão, fazendo dele o primeiro mártir da Igreja (At 6.87.60) e os discípulos de Jerusalém

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se dispersaram pelas terras daJudéia e Samaria, chegando até a Fenícia, Chipre e Antioquia (At 8.1; 11.19).

Pela pregação dos discípulos, muitosludeus foram ganhos para a fé e muitas igrejas fo-ram formadas; essas igrejas desfrutaram de paz por algum tempo e foram grandemente multiplicadaS412. Fala, por si mesmo, o fato de que esses judeus, que se toma-ram cristãos, continuaram por um longo tempo alimentando a esperança de que todo o povo de Israel se voltaria para o Senhor (At 3.16-26). Mas essa esperança se desvanecia cada vez mais; gradualmente o centro de gravidade moveu-se da igreja judaico-cristã para a igreja gentílico-cristã.Durante o período da vida de Jesus já havia alguns prosélitos gregos que vinham participar das festas e que expressaram o desejo de ver Jesus (Jo 12.20 ss.). Entre os membros da igreja de Jerusalém havia também alguns helenistas (At 6.1) que, muito provavelmente, assim como Estevão, tinham uma idéia mais liberal a respeito do relacionamento dos cristãos com o templo e com a lei (At 6.13,14). Na dispersão, os dis-cípulos de Jerusalém proclamaram o Evangelho também aos samaritanos (At 8.5 ss.), ao eunuco etíope (At 8.26 ss.), ao centurião romano Comélio (At 10) e aos gre-gos de Antioquia (At 11.20).

Todos esses eventos foram uma preparação para a grande obra missionária que Paulo, jun-tamente com Barnabé, depois de serem chamados pelo Espírito Santo e depois que a igreja de Antioquia impôs suas mãos sobre eles, foram enviados para realizar (At 13.2 ss.). Nessa obra missionária Paulo seguiu, como norma geral, o direcionamento da pregação e o apelo primeiramente aos judeuS"3 Mas, quando os judeus desprezavam essa pregação (e eles geralmente se comportavam dessa forma), Paulo direcionava sua pregação aos gentio8414 . Foi um grande fracasso e um contínuo motivo de tristeza para ele que seus irmãos segundo a carne se sentissem ofendidos pela cruz de Cristo e continuassem tentando firmar sua própria justiça (Rm 9.2). Ele nunca deixou de empreender esforços para que alguns deles fossem salvos (Rm 11.14). Mas, havia um remanescente segundo a eleição da Graça e Paulo era uma evidência viva disso (Rm 11.1-5).

Não podia ser negado o fato de que essa cegueira permaneceria sobre Israel até que a plenitude dos gentios fosse salva (Rm 11.25). Os ramos da oliveira ti

nham sido cortados por causa da incredulidade e em seu lugar foram enxertados ramos de oliveira brava (Rm 11.17-24). Há uma diferença entre o Israel segundo a carne e o Israel segundo o Espíritc011. A Igreja de Cristo é agora a verdadeira descendência de Abraão, o povo e o Israel de DeUS411 . Aqueles dentre os judeus que rejeitaram Cristo não são verdadeiros judeus; eles não são da verdadeira circuncisão, mas da falsa circuncisão (Fp

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3.2). Eles são insubordinados, palradores frívolos, enganadores e perseguidores dos crentes (lTs 2.14-16; Tt 1.10,11). Os judeus que molestaram a igreja em Esmirna dizem que são judeus mas não o são, eles são sinagoga de Satanás (Ap 2.9; 3.9). Dessa forma foram definitivamente separados os caminhos de judeus e cristãos. Apesar dos primeiros seguidores de Jesus terem sido considerados como pertencendo à seita dos judeus (At 24.5,14; 28.22), eles receberam seu próprio nome em Antioquia, o nome de cristãos (At 11.26). Uma distinção começou a ser feita entre as reuniões de judeus e as reuniões de cristãos e, linguisticamente, isso fez com que os primeiros passassem a chamar suas reuniões pelo nome de sinagoga, en-

quanto os últimos passaram a chamar suas reuniões pelo nome de edesia.A palavra eclesia foi traduzida em nossas

Bíblias como igreja e foi primeiramente usada pelo

próprio Cristo para indicar a multidão de Seus

seguidores (Mt 16.18; 18.17). Nada há de estranho

nisso se nós nos lembrarmos que a palavra hebraica

empregada por Jesus foi, repetidamente, empre-

gada no Velho Testamento e era de conhecimento

público. A novidade é que Cristo aplicou essa

palavra ao círculo de Seus discípulos e, dessa forma,

declarou que Sua Igreja substituiria o povo de Israel.

Além disso, Jesus não usa

o termo para designar a reunião dos crentes em um lugar específico, mas inclui em seu raio de ação todos aqueles que, pela palavra dos apóstolos, algum dia crerão nEle. Ele usa essa palavra do modo mais abrangente possível. Foi somente mais tarde, na medida em que a Igreja foi se desen-volvendo, que a palavra passou a ter um sentido mais específico.

Em Atos 2.47; 5.11; 8.1; 11.22

onome igreja é aplicado ao local de reuniões dos crentes em Jerusalém. Nesse tempo a igreja de Jerusalém era virtualmente a única. Muito provavelmente havia alguns discípulos vivendo ali e também na Judéia, Samaria e Galiléia,

eque, mais tarde, quando a per-

seguição estourou em Jerusalém e os discípulos foram dispersos, continuaram servindo como um ponto de contato para o trabalho missionário entre os judeus. Mas, uma reunião de crentes, uma igreja, existia primeiramente apenas em Jerusalém. No entanto, quando essas reuniões se espalharam por toda parte através da pregação da Palavra pelos discípulos, o termo igreja passou a ser aplicado também a esses grupos locais. A igreja de Jerusalém não era uma organização que formava ramificações de si mesma onde quer que fosse, mas ao longo dessa igreja desenvolveram-se outras reuniões de crentes que também se chamaram igrejas.

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Dessa forma, por exemplo, faz-se menção à

igreja de Antioquia (At 11.26; 13.1), também às

igrejas de Listra, Derbe e a várias outras igrejas (At

14.23). Paulo continuamente aplica o nome de

igreja a cada uma das reuniões de crentes em Roma,

Corinto, Éfeso, Filipos, Colossos e em outros lu-

gares e também, de acordo com essa prática, fala

no plural de igrejas que estão no território da

Galácia (GI 1.2) e da Judéia (CI 1.22). E isso não é

tudo. Os crentes que viviam em uma determinada

localidade passaram a encontrar-se algumas vezes

diariamente (At 2.46), mas regularmente aos

domingoS417 Mas eles não

possuíam seus próprios edifícios destinados a abrigar essas reurtiões – presumivelmente a palavra assembléia, em Tiago 2.2, seja o primeiro caso de uma referência a um local específico de reuniões no Novo Testamento – e por isso eles compareciam juntos a uma casa de algum irmão ou irmã que fosse útil a esse propósito.

Em Jerusalém eles se reuniram primeiramente no próprio templo"ba, mas, além desse, eles tinham outros encontros (At 1.14; 2.42) nas casas de alguns irmãos (At 2.46; 5.42). Assim aconteceu que, primeiro a casa de Maria, mãe de João Marcos At 12.12) e depois a casa de Tiago (At 21.18) se tomaram o centro da vida eclesiástica de Jerusalém. Como a igreja era grande, ela foi dividida em grupos e cada grupo vinha à mesma casa em horários diferentes, ou em diferentes casas ao mesmo tempo. Essa prática foi seguida também em outros lugares, como em Tessalônica (At 17.11), Trôade (At 20.8), Éfeso (At 20.20), Corinto (1Co 16.19), Colossos (Fm 2), Laodicéia (C14.15) e Roma (Rm 16.5,14,15). É notável que a todas essas igrejas residenciais foi dado definitivamente o nome de igreja"'. Uma não era subordinada àoutra, todas elas eram independentes umas das outras e tinham os mesmos direitos umas em relação às outras.

Contudo todas elas eram únicas. Jesus tinha falado sobre todos os Seus discípulos como sendo a Sua igreja (Mt 16.18;18.17) e os apóstolos falaram da mesma forma sobre o corpo de crentes, especialmente o apóstolo Paulo. A Igreja, considerada como um todo, é o corpo de Cristo e Ele é a Cabeça desse corpo47. A Igreja é a noiva do Cordeiro adornada para o seu noiVO471, a casa e o templo de Deus edificado pelos apóstolos sobre o fundamento de Cristo (1Co 3.10-16), ou, de acordo com outra aplicação da mesma figura, edificada sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, sendo Cristo a pedra angular e, os crentes, pedras viva,471 . A igreja é raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, chamada para proclamar as virtudes dAquele que a chamou das trevas para a Sua maravilhosa luz (1Pe 2.9).

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Com os olhos nas gloriosas virtudes que os apóstolos atribuem à Igreja, alguns observadores quiseram fazer uma distinção entre a Igreja empírica e a Igreja ide-al. Mas essa distinção ocidental é estranha ao Novo Testamento. Quando os apóstolos, seguindo o exemplo de Cristo, falaram tão gloriosamente sobre a Igreja, especialmente em João 14-17, eles não estavam pensando em algo que existe somente em uma abstração ou no pensamento, nem em um ideal que nós tenhamos que seguir e que provavelmente nunca alcançaremos. Eles sempre tinham em mente toda a Igreja e a Igreja real, o corpo do qual as reuniões dos crentes, nas várias localidades e países e nas várias épocas, são revelações específicas. Essas revelações ainda são muito defeituosas -e todos os apóstolos dão testemunho disso em suas cartas - contudo, são revelações de uma realidade que está por trás dela, realizações de um conselho de Deus que se mantém de geração em geração.

Nesse conselho ou decreto, Deus vê toda a Igreja de Cristo diante de Si em perfeição. A Igreja está contida em Cristo, que a comprou com Seu sangue, da mesma forma que o fruto está contido na semente. No Espírito Santo, que recebe todas as coisas de Cristo, está a raiz da existência da Igreja e a garantia de sua plenitude. Portanto, a Igreja não é uma idéia nem tini ideal, mas uma realidade que está se tornando algo e que de fato se tornará algo porque ela já é algo. Dessa forma, a Igreja viveem constante mudança; ela vem sendo reunida desde o começo do mundo e será reunida até o fim do mundo. Diariamente partem da Igreja alguns que já combateram o bom combate, guardaram a fé e receberam a coroa da justiça e que constituem a Igreja triunfante, a Igreja dos primogênitos arrolados no céu, a Igreja dos espíritos dos justos aperfeiçoados (Hb 12.23). E diariamente novos membros são acrescentados à Igreja terrena, à Igreja militante; esses membros -já nasceram na Igreja, isto é, na esfera da Aliança, ou foram trazi-dos para ela através da obra missionária.

Essas duas partes da Igreja caminham juntas. Elas são a vanguarda e a retaguarda do grande exército de Cristo. Aqueles que nos precederam formam, ao nosso redor, uma grande nuvem de testemunhas; durante sua vida eles fizeram sua confissão de fé e assim nos admoestaram à fidelidade e à paciência. Sem nós, eles não seriam aperfeiçoados e, sem eles, nós não seríamos aperfeiçoados (Hb 11.40). Somente todos os santos juntos podem plenamente desfrutar das riquezas do amor de Cristo e serem plenos de Deus (Ef 3.18,19). Portanto, a história continuará até que nós cheguemos à unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus, à perfeita varonilidade, à medida da estatura da plenitude de Cristo (Ef 4,13).

Que os apóstolos, ao atribuírem essas características maravilhosas a toda a Igreja, não tinham em mente uma idéia ou um ideal, mas uma realidade, é indicado mais claramente pelo fato de que eles falam da mesma forma sobre cada igreja local e até mesmo sobre cada crente individual. A igreja local em Corinto, por exemplo, é,

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independente de seus muitos erros e defeitos, chamada de templo de Deus, morada do Espírito e corpo de Cristo (1Co 3.16; 12.27, 1Co 6.19,20). Todas as igrejas locaisjuntas, ou seja, a Igreja em sua totalidade, compartilham dos mesmos benefícios, são participantes do mesmo Cristo, possuem o mesmo Espírito e por esse Espírito são conduzidas a um e ao mesmo Pai471 . Há uma diferença na medida de Graça que Cristo concede a cada um de Seus crentes (Rm 12.6; Ef 4.7); há uma diferença de dons, administração, operação e obras (1Co 12.4-6). Mas essa diferença não é um impedimento à unÁdade dos crentes, pelo contrário, ela fortalece essa unidade.

Se a Igreja é realmente um organismo, um corpo vivo, isso significa que ela consta de vários membros, cada um dos quais recebeseu próprio nome e lugar, sua

própria função e chamado dentro do conjunto. Se todos fossem um só membro, onde estaria o corpo (1Co 12.19)? Assim como o corpo é um e tem muitos membros e todos os membros pertencem a um só corpo, assim também é a Igreja (1Co 12.12). Cada membro da Igreja recebe de Cristo seu próprio dom, por modesto e pequeno que seja e com esse dom ele serve não a si mesmo, mas à Igreja. De acordo com a natureza do dom que cada um recebeu, ele deve ministrar aos irmãos, como um bom despenseiro da Graça de Deus (1Pe 4.10). Ele não recebeu suas habilidades para si mesmo, mas para o proveito de todos (1Co 12.7), para a edificação da Igreja (1Co 14.12), para cuidar dos outros, assim como eles cuidam dele.

Portanto, em suas ricas variações, a Igreja continua sendo uma unidade. Isso não quer dizer simplesmente que ela sempre foi uma só Igreja e sempre continuará sendo uma só Igreja; isso quer dizer também que essa Igreja é sempre e em todos os lugares a mesma Igreja, tem sempre os mesmos benefícios, privilégios e bênçãos. Essa unidade não é adicionada à Igreja de fora para dentro, não é uma unidade imposta pela força, uma unidade criada por um acordo contratual, nem uma unidade originária de uma organiza-

ção temporária contra um inimigo em comum. Ela não é criada nem mesmo pelos instintos sociais ou pela vida religiosa. Essa unidade tem caráter espiritual. Ela depende, tem seu fundamento e exemplo, da unidade que existe entre o Pai e o Filho como Mediador (jo 17.21-23). Essa unidade provém de Cristo, como a videira que dá vigor a todos os ramos e que os alimenta (Jo 15.5), como a cabeça na qual todo o corpo se desenvolve (Ef 4.16). Essa unidade é criada pelo Espírito que nós recebemos do Pai'74. O amor do Pai, a Graça do Filho e a comunhão do Espírito Santo são a porção de todo crente, de cada igreja local e da Igreja em sua totalidade. Nisso consiste sua profunda e imutável totalidade.

Essa unidade é muito defeituosa e imperfeita na Igreja aqui sobre a terra. Assim como a própria Igreja, essa unidade também está em processo de transformação. Essa unidade é apresentada como sendo gradualmente trabalhada e aplicada. Jesus orou por ela (Jo 17.21) e o apóstolo Paulo apresentou-a como algo que seria realizado plenamente só no

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futuro (Ef 4.13). Contudo, essa unidade não é apenas uma imaginação sem qualquer base na realidade. Pelo contrário, ela existe e se expressa com maior ou menor força

na vida da Igreja; ela está presente não apenas na Igreja invisível, mas também se expressa na visível manifestação da Igreja. Na igreja de Jerusalém, por exemplo, todos os irmãos e irmãs, depois de serem admitidos à comunhão da Igreja pelo batismo, perseveravam na doutrina dos apóstolos, na comunhão, no partir do pão e nas orações (At 2.42) e todos os membros tinham um só coração e uma só alma e compartilhavam os seus bens na medida em que alguém tinha necessidade (At 2.44; 4.3235). Quando, mais tarde, as igrejas começaram a ser fundadas em outras localidades, essa unidade entre os crentes foi mantida.

Ao mesmo tempo a Igreja, em razão dos vários contextos e costumes dos cristãos que vinham do judaísmo e dos que vinham do paganismo, encontrou um grande impedimento à sua unidade; geralmente esses dois grupos faziam clara oposição um ao outro nas igrejas que quase sempre, eram mistas, isto é, compostas por judeus e gentios. Às vezes, havia grande conflito entre esses dois grupos. Até mesmo Pedro demonstrou fraqueza em um dado momento, em um conflito dessa natureza, ocorrido em Antioquia e por causa disso recebeu uma severa reprimenda do apóstolo Paulo (G12.11-14). Mas o apóstolo dosgentios, que era hebreu de hebreus e que se fez tudo para com todos, conservou a grande unidade firmemente diante de seus olhos e em toda a Igreja admoestou os crentes ao amor e à paz. Todos eles compunham ape-nas um corpo, ele disse, e tinham um só Espírito, um só Senhor, um só batismo, uma só fé, um só Deus e Pai de todos (Ef 4.4-6). Eles não tinham que ser todos iguais, pois, um corpo tem diferentes membros e cada membro serve ao corpo com suas habilidades específicas (1Co 12.4 ss.), e por isso cada crente deveria honrar a liberdade dos demais (ICo 14). Mas a morte de Cristo derrubou o muro que separava judeus e gentios e esses dois grupos foram reconciliados um com o outro e desses dois grupos foi feito um novo homem (Ef 2.14 ss.). Na confissão de Cristo como Senhor eles eram unidos (1Co 12.3) e todos eles tinham a mesma incumbência, a saber, fazer tudo para a glória de Deus475. E Paulo foi abençoado nessa obra; a oposição entre os dois grupos gradu-almente desapareceu e a unidade da Igreja foi preservada.

Porém, mais tarde, a Igreja de Cristo foi dividida por todos os tipos de heresia e cisma, no decorrer dos séculos. No presente, as suas muitas denominações e seitas apresentam o mais lamentável

espetáculo de desunião. Algo da velha unidade ainda pode ser visto, pois, todas as igrejas cristãs estão separadas do mundo pelo mesmo batismo e pela observância dos Doze Artigos de Fé, elas continuam firmes na doutrina dos apóstolos, mesmo que seja em formas muito diferentes e elas com-partilham do partir do pão e das orações. A Igreja, em sua unidade, é um objeto de fé; embora nós não possamos vê-la, ou pelo menos não possamos vê-la como gostaríamos, ela continua existindo e um dia será aperfeiçoada.

O mesmo é verdade sobre uma outra característica da Igreja, a saber, a santidade. Desde o começo, o único acesso à Igreja é o arrependimento e a fé. Quem quer que se arrependesse era batizado, recebia o perdão de pecados e o dom do Espírito Santo (At 2.38). Apesar do próprio Jesus não batizar (Jo 4.2) e apesar dos apóstolos, como regra geral, também não efetuarem batismos (At 10.48; 1Co 1.14-17), o batismo era ministrado a todos aqueles que queri-

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am pertencer à Igreja. Mas, esse batismo era entendido como um sinal visível de uma realidade invisível e espiritual, como sendo o abandono definitivo da imundície da carne e a indagação de uma boa consciência para com Deus (1Pe 3.21) e dessa forma ele substituiu

a circuncisão, que tinha se tornado inútil. Visto dessa forma, o batismo era uma preservação, assim como a arca, que preservou Noé (1Pe 3.20,21), um morrer e ressus-citar com Cristo (Rm 6.3,4), um lavar dos pecados (At 22.16), o rompimento com o mundo e o ingresso em uma nova comunhão.

Dessa forma o batismo implicava em uma

atitude completamente diferente em relação ao

mundo. Era preciso grande coragem para que a

pessoa se submetesse ao batismo e se unisse à Igreja

de Cristo, pois, essa Igreja não apenas era composta,

em sua maioria, por pessoas simples e comuns (ICEI

1.25-29), mas também freqüentemente sofria desprezo

e opressão. No início, essa inimizade e perseguição

partiram dos judeus, seja das autoridades"', seja do

povo que, como aconteceu mais de uma vez, incitou

os gentios à oposição e ao tUMUIto117 Em alguns casos

os gentios, por sua própria iniciativa, se levantavam

contra os cristãos, mas isso era uma exceção e o

governo, na maioria das vezes, não se indispunha

contra os cri StãOS478.

A perseguição da Igreja pelos romanos

começou sob o co

mando de Nero, no ano 64 d.C. Foi a partir daí que os cristãos começaram a buscar proteção das próprias autoridades romanas que os perseguia M411 , reconheceram o governo e as autoridades romanas como ordenadas por Deus e encorajaram as pessoas a se submeterem e a orar por essas autoridades 48..

Com relação à vida social, os apóstolos advertiram

os crentes para que não abandonassem seus cônjuges

(l Co 7.12; 1Pe 3.1), mas que se casassem no Senhor

(ICEI 7.39; 2Co 6.14). Eles advertiram a que todos,

fossem servos ou fossem senhores, permanecessem

na vocação a que foram chamados (1Co 7.20) e que

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os crentes não se colocassem em jugo desigual com os

incrédulos (2Co 6.14), que os crentes não

aceitassem convites para participar de

banquetes, mas que, por motivo de consciência e

exemplo, evitassem comer carnes oferecidas aos

ídolos (1Co 10.27,28; 8.12; 10.20). Posteriormente os

apóstolos ensinaram que os crentes deveriam viver em

paz e amor com todos os homens, inclusive com os

seus inimigoS,111 e que eles nada considerassem im-

puro em si mesmo, pois, toda cri-

atura de Deus é boa (Rm 14.14; 1Tm 4.4).Esse relacionamento da Igreja com o mundo é um relacionamento de

liberdade, ele é livre de toda abstinência falsa e forçada. Esse relacionamento de liberdade só é legítimo quando a Igreja tem consciência de seu chamado e anda em santidade diante de Deus. A Igreja é santa, é um povo santo e os crentes são pessoas santas (Rm 1.7; 1Co 1.2), pois, cada um deles é um templo do Espírito Santo 1Co 3.16,17; 6.19); por esse Espírito eles foram lavados e san-tificados em Cristo Jesust" e eles devem, portanto, afastar-se e batalhar contra a morte e contra todos os pecados, contra todas as obras da carne e contra todos os desejos mundanos"' e, por outro lado, devem exercitar todas as virtudes e realizar o bem`~. Os crentes devem ter uma vida de amor (Ef 5.2), pois, o amor é a maior de todas as virtudes (1Co 13.13), o vínculo da perfeição (CI 3.14) e o cumprimento da lei (Rm 13.10).

E a disciplina é um meio dado por Cristo à Igreja para que a Igreja possa preservar esse caráter santo. Tal disciplina deve ser exercida não apenas em segredo, por um irmão contra o outro415~

mas, em caso de pecados públicos, a disciplina deve ser aplicada pela Igreja aos seus membroS41° MUi-

to dessa santidade foi perdido ainda no período apostólico, como registram as várias cartas, e em tempos posteriores freqüentemente há profundas decadências morais e religiosas. Mas, depois da decadência, o Espírito de Cristo provoca um reavivamento e uma renovação. Essa santidade da Igreja é também uma característica que Cristo concedeu à Igreja e que Ele executa em e através da própria Igreja.

E, finalmente, há a característica da catolicidade ou universalidade da Igreja. Essa característica é mencionada pela primeira vez em um escrito pós-apostólico, cuja intenção era declarar que, contra todos os tipos de heresias e cismas, a verdadeira Igreja é a única que obedece ao bispo e continua sendo o corpo de Cristo, pois a Igreja católica universal é a única na qual Cristo está presente. Mais tarde, todos os tipos de explicações foram adicionadas ao nome; as pessoas começaram a entender que a Igreja está espalhada por todo o mundo, que desde o princípio até os nossos dias ela

inclui todos os crentes de todas asépocas, e que, desfrutando de toda verdade e Graça, ela é o meio de salvação

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adequado para todas as pessoas. Essas explicações não estão erradas se, ao pensarmos na Igreja, nós não estivermos pensando na organização eclesiástica, na Igreja Católica Romana, por exemplo, mas se entendermos que estamos falando da Igreja cristã, que se revela em todas as igrejas, em diferentes graus de pureza e saúde. Essa é de fato a Igreja católica. No Velho Testamento, a promessa-mãe foi feita a Adão e Eva e, dessa forma, a toda a humanidade. Se, mais tarde, as condições conduziram à formação de um povo específico em Abraão para servir como o portador da revelação, essa revelação continua sendo feita a toda a humanidade. Na descendência de Abraão seriam abençoados todos os povos da terra (Gn 12.2). E a profecia conserva seus olhos fixos nessa destinação geral da redenç ão417.

Quando Cristo iniciou Seu ministério, Ele se dirigiu somente às ovelhas perdidas da casa de Is-rael (Mt 15.24), mas o reino que ele pregou era católico, era totalmente livre de todo tipo de limi-tações nacionais e estava aberto a todos os que cressem e se arrependessem (Me 1.15). Ele disse que, se os judeus rejeitassem Seu Evangelho, os filhos do reino seriam

lançados fora e que muitos viriam do oriente e do ocidente e tomariam lugares à mesa com Abraão, Isaque e Jacó (Mt 8.11,12). Ele mesmo era como um grão de trigo que cai no chão e morre, mas que depois dá muito fruto (Jo 12.24). Ele tem outras ovelhas, que não pertencem ao aprisco de Israel e Ele deve buscá-las, para que haja um só rebanho e um só pastor (Jo 10.16; 11.52). Depois de Sua ressurreição Ele envia Seus discípulos para que preguem a todas as criaturas e façam discípulos de todas as nações (Mt 28.19; Me 16.15). E os apóstolos cumpriram a ordem de Jesus. Eles saíram dan-do testemunho de Cristo por toda a Judéia e Samaria e até os confins da terra (At 1.8).É notável que, apesar de Jesus falar repetidamente sobre o reino dos céus e somente algumas vezes sobre a Igreja, os apóstolos fazem o contrário, mencionando o reino dos céus, comparativamente, com menos frequência e falando detalhadamente sobre aIgreja de Cristo. Todavia, uma explicação pode ser dada sobre isso.O reino dos céus sobre o qual Jesus fala é, em primeiro lugar, não uma reunião de pessoas, uma comunidade de cidadãos, mas um conjunto de bens e bênçãos espirituais, um tesouro (Mt 13.44) uma pérola (Mt 13.45), justiça, paz e alegria no Espírito (Mt 6.33; Rm 14.17). O reino é dos céus e ele veio com Cristo para a terra, pois, neleo Pai distribuiu todas essas bênçãos e todos esses bens (1Co 1.30; Ef 1.3). O Pai confiou o reino ao Filho e este, por Sua vez, confiou-

o aos Seus discípulos (Lc 22.29). Quando o Filho de Deus expulsava os demônios, Ele dava evidências de que o reino tinha chegado (Mt 12.28) e esse reino continua se estabelecendo quando ele espalha todos os seus tesouros através da fé (Lc 17.21). Esse reino se espalha como uma árvore que cresce e, como um pouco de fermento que leveda toda a massa (Mt 13.31-33),e será distribuído em toda a sua plenitude no futuro, por ocasião do retorno de CriSto4"

Esse reino, entendido dessa forma, é, desde a vinda de Cristo até o Seu retorno, dado àquelas pessoas que nasceram da água e do Espírito e que crêem no nome de Cristo (Jo 1.12,13; 3.3-5). É por isso que ele é representado

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pela figura de uma semente que é plantada para que dê muito fruto, ou pela figura de uma rede que, sendo lançada ao mar, recolhe todos os tipos de peixe (Mt 13.24,46). E os apóstolos são os pescadores que recolhem essa rede e reúnem os homens para fazer com que eles desfrutem das bênçãos presentes e futuras do reino (Mt 4.19).

Enquanto Jesus está dessa forma pregando o Evangelho do reino e explicando a natureza, o caráter e o desenvolvimento desse reino, Seus apóstolos foram chamados e qualificados por Ele para reunir a Igreja através desse Evangelho do reino – a Igreja que desfruta dos tesouros do reino e que um dia receberá e desfrutará desses tesouros de forma plena. A palavra do reino fixa nossa atenção especialmente sobre os tesouros, as bênçãos, os bens que o Pai distribui aos crentes em Cristo. Em distinção a isso, a Igreja nos faz pensar na reunião das pessoas que receberam esses bens e que estão caminhando para desfrutar plenamente deles. Em outras palavras, a Igreja tem em Cristo o proprietário, o possuidor, o preservador, o distribuidor e o herdeiro do reino de Deus. Esse é seu tesouro e sua glória; ela não tem outro tesouro. A Igreja pode repetir o que Pedro disse em certa ocasião: "Ouro e prata não tenho, mas o que tenho te dou: em nome de Jesus Cristo, o nazareno, levanta-te e anda" (At 3.6).

Como todos os tesouros do reino que a Igreja possui são espirituais e não consistem de prata e ouro, em poder e força, mas em justiça, paz e alegria no Espírito Santo, a qualidade característica da catolicidade é acrescentada àIgreja. A Igreja não está vinculada a uma terra ou a um povo, a um tempo ou a um lugar, a uma determinada geração, ao dinheiro ou à propriedade; ela é independente de todas as distinções e de todos os contrastes terrenos. Ela leva o Evangelho a todas as criaturas e esse Evangelho é sempre e somente o Evangelho, uma boa nova que é apropriada e necessária para todas as pessoas, em todas as épocas, sob todas as circunstâncias, em todas as condições. O reino de Deus a nada se opõe, exceto ao pecado.

Desde o começo essa Igreja pensou que a reunião dos crentes tinha uma organização específica. Toda organização de seres humanos deve, para evitar confusão e dissolução e para adequar-se ao p ropós i to para o qua l fo i estabelecida, ter regulamentações que governem suas reuniões e atividades. A Igreja de Cristo tam-bém está sujeita a essa norma geral das sociedades humanas. Deus não é Deus de confusão, mas de paz. Ele deu ordenanças a todas as Suas criaturas e é do Seu agrado que nas igrejas tudo seja feito com decência e ordem (1Co 14.33,40). E essas normas são da maior importância na vida da Igreja, pois, Deus quer usá-la para um propósito específico. Além

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disso, a Igreja, desde quando começou a existir sobre a terra, é imperfeita; cada um de seus membros e todos os seus membros juntos devem constantemente lutar contra o pecado e seguir a santidade; em todo tempo essas pessoas precisam de instrução, orientação, direção, fortalecimento, conforto, admoestação e castigo. E não somente isso, mas a Igreja deve reproduzir-se de geração a geração; ela não tem sempre os mesmos membros, pois, ela diariamente perde aqueles que são transferidos para a Igreja triunfante, é constantemente aumentada pelos novos membros inseridos nela e que devem ser introduzidos na vida da Igreja. Além disso, ela recebeu o mandato de Cristo para pregar o Evangelho em todo o mundo e a todas as criaturas. Portanto, dentro e fora de si mesma, ela tem um santo e difícil chamado a cumprir.Quando Cristo dá esse mandado à Igreja, Ele ao mesmo tempo, dá as qualificações e o equipamento necessário para que a Igreja possa cumpri-lo. Ele organiza as coisas de tal forma e dá à Igreja dons, poderes, ministérios tão eficazes, que ela fica totalmente equipada para cumprir esse mandado que foi colocado sobre os seus ombros. Ele deu à Igreja - como diz Paulo - apóstolos, evangelistas, pastores e mestres para que eles cumpram seu ministério na Igreja e assim edifiquem o corpo de Cristo e efetuem o aperfeiçoamento dos santos; e toda essa série de preparativos deve continu-ar em atividade até que o propósito seja alcançado e todos cheguem à unidade da fé e do conhecimento de Deus, à perfeita varonilidade, à medida da estatura da plenitude de Cristo (Ef 4.11-13). Em outras palavras, a Igreja, como reunião dos crentes, com vistas à missão que deve cumprir sobre a terra, recebeu de Cristo uma instituição especial, uma provisão especial de dons e poderes, ofícios e serviços, através dos quais ela pode corresponder à sua vocação. Essa instituição de leis e regulamentações não foi acrescentada à Igreja em tempos posteriores, mas esteve sempre presente, desde o início. Como não podemos discutir sobre tudo ao mesmo tempo, é necessário primeiramente discutir a Igreja como a reunião dos crentes para, mais tarde, falarmos sobre as regulamentações que go^ vemam sua vida e suas atividades. Mas isso não significa que a Igreja tenha sido originariamente a reunião dos crentes e mais tarde tenha se tornado uma instituição e que uma tenha existido sem a outra. Deus estabeleceu a Igreja sobre a terra de tal forma que ela possa cumprir a sua missão.

Apesar de não existir diferença temporal entre a reunião dos crentes e a instituição, há uma

diferença entre elas. Essa diferença se toma clara pelo fato de que a instituição que foi dada à Igreja mudou no decorrer dos tempos. Desde o tempo do paraíso tem existido crentes sobre a terra e eles também, sem dúvida, se encontraram uns com os outros. Nós lemos em Gênesis 4.26 que, nos dias de Enoque, os homens começaram a invocar o nome do Senhor; sem dúvida, essa é uma afirmação de que, nesses dias, os descendentes de Sete se separaram dos filhos de Cairo e começaram a se reunir em torno da confissão do nome do Senhor. Desse tempo em diante sempre houve o culto público. Ele consistia, em sua maior parte, da pregação, do sacrifício e orações. Mas havia ainda muito pouca referência à organização. A Igreja dessa época tinha seu centro na família. No período patriarcal o pai era o rei e também o sacerdote de sua família. Ele realizava a circuncisão (Gn 17.23)

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e fazia os sacrifícios (Gn 22.2; 26.1).

Quando a lei foi dada no Sinai e Deus estabeleceu Sua Aliança com Seu povo, uma grande mudança ocorreu. Nessa ocasião foi instituída a ordem sacerdotal e a ordem levítica. Um lugar definido e um momento definido fo-ram estabelecidos para os sacrifícios. Até mesmo as ofertas foram diferenciadas umas das outras e organizadas em uma ordem definida. E tudo o que se relacionavaa pessoas, tempos, lugares e ações sagradas foi rigorosamente regu-lamentado e prescrito detalhada-mente. A lei era um jugo difícil de se carregar (At 15.10), mas foi necessária nessa época para esclarecer o sentido do pecado, mostrar a necessidade do perdão, lançar luz sobre o significado e a importância dos sacrifícios e, assim, mostrar o caminho que conduz a Cristo.

Contudo desenvolve-se, sob e ao longo dessa prescrição legal oficial, uma outra organização de vida religiosa em Israel. Nós devemos lembrar que o povo vivia espalhado por toda a terra de Cancã e, em certa medida, até do outro lado do rio Jordão. Isso é suficiente para nos mostrar que somente uma parte comparativamente pequena desse povo podia subir a Jerusalém para participar das festas. Além disso, todos eles eram rigorosamente obrigados a guardar o sábado e todos eles o guardavam em suas próprias casas. É bem provável que nesses dias os crentes tivessem encontros religiosos e se reunissem para meditar sobre a lei, cantar e orar. Em Atos 15.21 lemos que Moisés, desde os tempos antigos, tinha em cada cidade aqueles que pregavam e que ele era lido nas sinagogas aos sábados.

A origem dessas sinagogas

nos é desconhecida, mas é certo que ela é bem antiga. Durante e depois do cativeiro, quando os judeus foram dispersos por todas as terras e tiveram que viver longe de sua terra natal e do templo, essas sinagogas ganharam um novo e rico significado. Em todo lugar onde os judeus vivam, uma sinagoga era construída e eles se dirigiam a ela em tempos específicos, aos sábados, nos dias das festas e também nos dias da semana para reunirem-se e expressar sua confissão comum, orar, ouvir a leitura de uma porção da lei e dos profetas, também um discurso independente (Le 4.21) e receber a bênção do sacerdote. A regência da Igreja foi dada a um colegiado de presbíteros aos quais foram delegados os direitos de exercer disciplina e excomunhão, de governar as várias partes do serviço, bem como regular os serviços religioSOS419 . Entre os oficiais estão o tesoureiro, que recebe os donativos de misericórdia e um ministro (Le 4.20), que traz as Sagradas Escrituras e que depois as devolve. Toda essa regulamentação das sinagogas foi de grande importância para a vida religiosa dos judeus e de várias formas ela formou o exemplo de organização da Igreja cristã.

Jesus tinha o hábito de visitar as sinagogas (Le 4.16) e sujei-tava-se à obediência a toda a lei mosaica e, assim, cumpria toda a justiça (Mt 3.15). Ele veio para que, ao observar a lei, pudesse cumpri-la plenamente e assim pudesse colocar sobre os ombros de Seus discípulos um jugo diferente do pesado jugo da lei. Esse jugo é suave e leve e proporciona descanso para a alma (Mt 11.29,30). Ele pregou o Evangelho do reino de Deus, reuniu discípulos que o reconheceram como seu Mestre e foram gradualmente

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crescendo no conhecimento de Sua pessoa e de sua obra.

Cristo, com os olhos nas doze tribos de Israel (Mt 19.28), escolhe doze discípulos aos quais Ele dá o nome de apóstolos (Lc 6.13). A seriedade e a importância dessa escolha se torna clara pelo fato de que ela foi feita depois de Cristo ter passado a noite no monte em oração (Lc 6.12), Humanamente falando, uma boa parte do futuro do reino de Deus dependia dessa escolha. O nome de apóstolo, que Ele deu a cada um desses doze discípulos, significa embaixador, mensageiro ou missionário e era incomum naqueles dias. Entre os judeus, aqueles homens que foram enviados de Jerusalém para coletar o dinheiro para o templo, muito provavelmente receberam o nome de após-tolos. No Novo Testamento, o pró-prio Jesus é chamado de apóstolo (Hb 3.1), também Barnabé (At 14.4,14) e é possível que, aqui ou ali, algum outro servo do Evangelho tenha sido chamado pelo mesmo nome. Mas logo o nome de apóstolo foi limitado aos doze dis-cípulos escolhidos por Jesus e a Paulo, que mais tarde foi particularmente chamado de apóstolo dos gentioS491.

O propósito imediato dessa escolha dos apóstolos era que eles estivessem com Jesus e que mais tarde fossem enviados por Ele para pregar o Evangelho e curar os enfermos (Me 3.14,15). De acordo com Mateus 10.1 ss. (Me 6.7 ss.; Lc 9.1 ss.), Jesus os enviou a várias vilas e cidades da Galiléia. Atra-vés dessa missão Jesus, indubitavelmente, queria levar o Evangelho a pessoas que Ele mesmo não tinha alcançado, mas, ao mesmo tempo, Ele estava preparando Seus apóstolos para sua futura tarefa. E essa futura tarefa que os apóstolos deveriam cumprir não era outra senão que, depois da ascensão de Jesus, eles pudessem dar seu testemunho ao mundo e edificar a Igreja sobre esse testemunho. Ele os equipou para cumprir essa missão de uma forma especial ao entrar e sair com eles, e pelo Seu ensino, ao enviá-los para que fossem testemunhas de Suas palavras e obras, de Sua vida

e de Sua paixão, de Sua morte e, especialmente, de Sua ressurreição"', e ao prometer enviar-lhes o Espírito da verdade, que os conduziria a toda verdade, que os confortaria e permaneceria com eles eternamente 492. Juntamente com essa preparação Ele lhes deu um poder especial, a saber, o po-der para pregar e ensinar e, de uma forma especial, poder para curar todos os tipos de enfermidades do povo, para ministrar o batismo e a Ceia do Senhor, para exercer a disciplina e para abrir e fechar as portas dos céus através do perdão ou da retenção dos pecados"'. Os apóstolos eram servos de Cristo e despenseiros dos mistérios de Deus (1Co 4.1).

Entre os apóstolos, Pedro ocupou o primeiro

lugar. Ele era filho de lonas, um pescador de

Betsaida (jo 1.43,44) e ele já era casado antes de

conhecer Jesus (Mc 1.21,29). Seu nome original-

mente era Simão, mas desde o seu primeiro encontro

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com Jesus, ele passou a ser chamado de Cefas ou

Pedro, que significa pedra (Jo 1.42). Esse nome

foi uma expressão de sua natureza, de sua espon-

taneidade, de sua independência, de sua bondade e

de sua firmeza. Dessa forma nós aprendemos a

conhecê-lo durante a vida de Jesus. Ele foi o

primeiro apóstolo a

ser escolhido (Me 3.13) e foi um representante e um porta-voz do grupo. Sua firmeza passou por uma dura provação durante a paixão de Cristo, chegando a sucumbir em sua terrível negação. Mas ela foi novamente erguida e restaurada por Jesus (U 22.32; Jo 21.15 ss.) e dessa forma ele teve condições de fortalecer seus irmãos (Le 22.32). Logo depois da ascensão de Jesus, ele assumiu a liderança do colégio apostólico e essa liderança pode ser vista na escolha de Matias (At 2.14 ss.), na realização de milagres (At 3.6), na defesa da Igreja diante do Sinédrio (At 4.8 ss.), no juizo pronunciado sobre Ananias e Safira (At 5.4 ss.), em sua visita a Samaria (At 8.14 ss.), na pregação do Evangelho aos pagãos (At 10.1 ss.) e na reunião do sínodo de Jerusalém (At 15.7 ss.).

Os católicos romanos afirmam, baseados nesses

fatos, que Pedro ocupava uma categoria mais

elevada do que os outros apóstolos e que, mais

tarde, em Roma, ele foi o primeiro papa. Mas não

há base para essas afirmações. É verdade que ele

foi o primeiro e o mais destacado dos apóstolos, mas

ele não estava em uma categoria acima deles e não

tinha qualquer poder sobre eles. Os outros onze

apóstolos eram em

tudo semelhantes a ele. O poder da pregação e do ensino, da ministração do batismo e da Ceia do Senhor e da abertura e do fechamento do reino dos céus, não foi dado somente a ele (Mt 16.19), mas também aos outros apósto-loS°14. Aliás, a partir de Atos 15, Pedro passa a fazer parte de um pano de fundo e nós encontramos poucas informações a seu respeito. A partir desse ponto, tudo o que sabemos é que ele foi a Antioquia (G12.11), Babilônia (1Pe 5.13) e que mais tarde ele morreu em Roma como mártir da fé (Jo 21.18,19). A partir de Atos 15 ele dá passagem a Paulo que, por um lado, se considera o

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menor de todos os apóstolos (1Co 15.9), mas que, por outro lado, não queria ser inferior aos demais apóstolos nem em categoria, nem em ofício, em poder ou em obra49' e chegou até a repreender Pedro em Antioquia (G12.11).

Lemos em Mateus 16.18 que Jesus, depois da corajosa e esclarecedora confissão de Pedro sobre o messianismo de Jesus, dirigiu-se a ele da seguinte forma: "Eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja". Ao dizer isso Jesus não tinha em mente a pessoa de Pedro, nem a confissão que Pedro tinha feito sobre Jesus, mas o Pedro con

fessor (isto é, Pedro como confessor, e, mais especificamente, Pedro como confessor de Cristo no nome de todos os Seus apóstolos). E Pedro não estava sozinho em sua confissão. Os outros apóstolos também participaram dessa confissão, de forma que a Igreja não foi edificada somente sobre Pedro, mas sobre todos os apóstolos (Ef 2.20; Ap 21.14). O apostolado é e continuará sendo o fundamento da Igreja. Não há comunhão com Cristo a não ser através da comunhão com os apóstolos e sua palavra (Jo 17.20; 1Jo 1.3).

Esses apóstolos assumiram a liderança da igreja de Jerusalém logo depois da ascensão de Jesus e eles formavam uma espécie de conselho dessa igreja. Todo o poder estava com eles. Eles o rece-beram não da Igreja, mas do próprio Cristo. Mas esse poder, como diz Pedro, foi-lhes confiado para o pastoreio do rebanho de Deus e para o exercício da supervisão sobre ele, não por constrangimento, mas espontaneamente, não por sórdida ganância, mas de boa vontade, não como dominadores, mas como modelo (1Pe 5.2,3). O apostolado está acima da Igreja,

mas ao mesmo tempo está a serviço dela e visa ao seu proveito. O apostolado foi instituído por causa da Igreja (Ef 4.11,12). Isso fica claro na igreja de Jerusalém. Os apóstolos se levantavam nas reuniões dos crentes (At 1.15), pregavam e batizavam (At 2.38), mantinham a pureza da verdade e per-severavam no partir do pão e na comunhão dos irmãos (At 2.42). Eles faziam sinais e maravilhas (At 2.43) e distribuíam donativos entre os irmãos e irmãs pobres (At 4.37; 5.2). Não havia nenhum outro ofício na Igreja a não ser o ofício do apostolado. Eles faziam tudo o que, em nossos dias, é feito pelos professores e pastores, presbíteros e diáconos.

Mas essa condição não podia permanecer por muito tempo. Quando a Igreja se espalhou e, particularmente, quando igrejas começaram a ser estabelecidas fora dos limites de Jerusalém, da Judéia, Samaria e Galiléia e mais tarde no mundo pagão,

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conselho e ajuda tinham que ser dados. Isso aconteceu de duas formas: a todas as igrejas consideradas como uma unidade e a cada igreja em particular.

As várias igrejas que, gradualmente, se estabeleceram fora de Jerusalém, em outras cidades e vilas, não eram subordinadas à igreja de Jerusalém. Elas eram instituições independentes da igreja de Jerusalém. Nós somos justifi

cados ao chamarmos a igreja de Jerusalém de igreja mãe no sentido de que ela foi a primeira igreja e que as outras igrejas vieram à existência através de seu esforço missionário. Mas essa designação é errada se com ela nós quisermos dizer que as outras igrejas mantinham com a igreja de Jerusalém um relacionamento de dependência. Nesse sentido, ela não pode ser considerada a igreja mãe, pois, cada igreja, até mesmo a menor e mais insignificante, deve sua origem e existência somente e diretamente a Cristo e a Seu Espírito, embora Deus faça uso das missões como meio para dar origem a novas igrejas. Toda igreja é uma igreja de Cristo e não uma subdivisão ou um ramo de outra igreja, seja a de Jerusalém, a de Roma ou a de qualquer outro lugar. Todavia, embora as igrejas que, gradualmente, foram se desenvolvendo na Palestina e fora do país fossem igrejas irmãs e não filhas da igreja de Jerusalém, todas elas, sem distinção e no mesmo sentido, continuavam dependentes e sujeitas à autoridade apostólica.

Os apóstolos eram muito mais do que um

conselho local. Eles eram e continuam sendo o

conselho de toda as igrejas, onde quer que elas

estejam estabelecidas. Portanto, no momento em que

Samaria aceitou a palavra do Senhor, os apóstolos

enviaram para essa localidade Pedro e João,

a fim de orar pelos crentes, impor sobre eles as mãos para que eles recebessem o dom do Espírito Santo e também para pregar a palavra de Deus entre eles (At 8.1325). Mais tarde Pedro percorreu o circuito formado pelas novas igrejas da Judéia, Samaria e Galiléia para fortalecê-las e para incentivar a confraternização mútua de todas elas (At 9.31,32). Dessa forma as igrejas não ficaram isoladas umas das outras e não foram abandonadas aos seus próprios caprichos. Pelo contrário, essas igrejas conservaram o fundamento e o centro do apostolado.

Isso trouxe uma série de encontros nos quais o trabalho dos apóstolos se desenvolveu rapidamente. Uma divisão de trabalho e um aumento no número de trabalhadores tomaram-se necessários. A divisão de trabalho aconteceu quando o concílio de Jerusalém aprovou que os apóstolos deviam pregar para

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os judeus de Jerusa^ lém e Paulo deveria ser enviado aos gentios (GI 2.6-9). Naturalmente essa divisão de trabalho não era tão rígida a ponto de Paulo nunca poder dirigir seus apelos aos judeus, ou os apóstolos de Jerusalém nunca poderem trabalhar com os gentios. Paulo continuou a dirigir-se primeiramente às pessoas de sua própria nação eraça, pessoas essas que ele amava fortemente, e Pedro, Tiago e João, de acordo com o conteúdo de suas cartas, trabalhavam também com cristãos vindos do mundo gentílico. Contudo, essa divisão de trabalho deu linhas gerais e deu a ambas as partes algum auxílio e alguma liberdade para trabalhar.

A isso nós devemos, em segundo lugar, acrescentar a consideração de que os apóstolos escolheram colaboradores, pessoas que os ajudavam em suas diversas atividades. Tais pessoas eram Barnabé (At 13.2), Marcos e Lucas (At 12.25; 13.5; Fm 1,24), Timóteo (Rm 16.21; 1Ts 3.2), Tito (2Co 8.23) e Silas (At 15.40)96. Algumas vezes essas pessoas, como Filipe (At 5.8,40; 21.8), eram chamadas de Evangelistas (Ef 4.11; 2Tm 4.5). Além disso, os profetas também recebiam ajuda dos profetas, pessoas que não ajudavam em um oficio específico, mas que recebiam um dom especial de Deus. Essas pessoas eram Ágabo (At 11.28; 21.10) e as filhas de Filipe (At 21.9). Os profetas também contribuíam na iluminação da Igreja e na sua edificação na verdade'97.

Todos esses ofícios–apóstolos, profetas e evangelistas – desapareceram no sentido de que as pessoas que os exerciam morreram e, pela natureza do caso, não

foram substituídas por outras. Eles foram necessários por um certo tempo, enquanto a Igreja estava sendo estabelecida sobre a terra. Mas seu trabalho não foi em vão no Senhor, pois, em primeiro lugar, eles edificaram a Igreja sobre o fundamento de Jesus Cristo (1Co 3.11) e, em segundo lugar, porque seu testemunho vive nos livros, nos Evangelhos e nas epístolas do Novo Testamento e também em toda a Igreja até os nossos dias. Em razão desse testemunho a Igreja, em todos os tempos, foi capaz de perseverar na doutrina dos apóstolos, no partir do pão, na comunhão e nas orações (At 2.42). A palavra dos apóstolos, primeiramente falada e posteriormente escrita, não apenas sustenta e garante a unidade da Igreja, mas também se espalhou por todo o mundo em todas as épocas.

Assim como os apóstolos, em sua obra de governara Igreja como um todo, receberam ajuda dos extraordinários ofícios de profetas e evangelistas, da mesma forma no cuidado de cada igreja local eles foram auxiliados pelo serviço dos presbíteros e diáconos. Nós devemos lembrar que os apóstolos eram, originariamente, responsáveis pela distribuição de donativos de misericórdia (At 4.37, 5.2). Mas, quando a Igreja se tornou consideravelmente maior,eles não podiam mais assumir essa responsabilidade. Na ocasião de uma disputa que surgiu na igreja sobre o serviço diário, os apóstolos propuseram que sete homens, cheios de fé e do Espírito Santo, fossem escolhidos para servir às mesas (At 6.1-6). Sempre tem existido uma considerável diferença de opinião sobre se esse é ou não é um registro sobre a instituição dos diáconos. Não é impossível que o ofício desses sete homens, instituído pelos apóstolos em Atos 6, originariamente compreendesse um serviço maior do que o que passou a ser posteriormente realizado pelos diáconos. Contudo, lemos claramente que os apóstolos reservaram para si mesmos a pregação da

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palavra e as orações (At 6.4) e que esses sete homens foram encarregados de servir às mesas, isto é, de regular tudo o que se referia às refeições em comum e às festas– que geralmente terminavam com a celebração da Santa Ceia – e da distribuição de donativos aos pobres na forma de comida, bebida e dinheiro.

Em outras igrejas o ofício do diaconato também foi instituído. Nós lemos sobre diáconos em Filipos (Fp 1.1) e em Éfeso" I. Em 1Timóteo 3.8 ss. Paulo resume as qualificações que o diácono deve apresentar. Os apóstolos de lera-

salém tinham feito a mesma coisa. Eles foram à

igreja com o propósito de escolher sete homens e

indicaram as habilidades exigidas e a natureza e a

função do oficio do diaconato. Depois disso a igreja os

escolheu. Mas depois dessa escolha, são os apóstolos

que, pela imposição de mãos, delegam a esses

homens o seu ofício.

Além dos diáconos foram instituídos também os

presbíteros. Nós nada sabemos sobre a origem desse

ofício, mas quando nos lembramos que, entre os

judeus, o governo do ancião, seja na vida cívica ou

nas sinagogas, era uma prática comum, não devemos

nos surpreender com o fato de que, dentre os outros

membros da igreja, alguns tenham sido escolhidos

para assumir a responsabilidade pela supervisão e

disciplina. Nós lemos sobre os presbíteros pela

primeira vez na passagem de Atos 11.30, quando eles

recebem os donativos que Barnabé e Paulo tinham

enviado para os irmãos que viviam na Judéia e em

Atos 15.2 ss. eles participam da reunião que foi

realizada para coordenar a obra missionária entre

os judeus e gentios.

Esse ofício de presbítero também foi

rapidamente introduzido em outras igrejas. Paulo e

Barnabé escolhiam presbíteros em

todas as igrejas que foram fundadas em suas viagens

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missionárias

(At 14.23; 21.18). Nós os encontramos em Éfeso (At

20.28) e em

Filipos (Fp 1.1). Nesses casos, eles eram chamados de

bispos. Em 1Coríntios 12.28 nós provavelmente os

encontramos sob o nome de governos e em Efésios 4.11

nós os encontramos como pastores e mestres"'. Em

1Timóteo 3.1 ss. e Tito 1.6-9, Paulo indica suas qua-

lificações e em Tito 1.5 ele exige que Tito nomeie

presbíteros em todas as igrejas. Esses presbíteros

eram encarregados da supervisão da igreja"' e eram,

até mesmo dentro do período apostólico, di-

ferenciados aqueles que governavam e aqueles que,

além de governar, dedicavam-se ao ministério da

palavra e ao ensino da verdade'°'. Pode ser que

Diótrefes que, de acordo com 3 Joao 9, ocupava o

primeiro lugar na igreja, mas que abusava de seu

poder e os sete anjos das sete igrejas (Ap 2.1-8) sejam

também mestres do tipo que, em distinção aos

demais presbíteros, dedicavam-se ao ministério da

palavra e, assim, ocupavam um lugar único e impor-

tante.

Esse era o governo simples que os apóstolos desenvolveram para governar a Igreja. Os ofícios por eles instituídos são numericamente poucos. Na realidade, esses ofícios são apenas dois: o ofício de presbítero e o de diácono, sendo que o primeiro deles é subdividido em presbíteros docentes e presbíteros regentes. Esses oficies foram, de fato, ordenados pelos apóstolos; eles atribuíram as ocupações e as qualificações inerentes a cada um deles, mas, ao selecionar as pessoas, eles reconheceram que essa escolha devia ser feita pela igreja e, uma vez que a pessoa fosse escolhida dessa forma, ela era introduzida em seu ofício pela imposição de mãos. Não havia algo semelhante a um poder dominador. Como somente Cristo é o Cabeça da Igreja (Ef 1.22), seu único Mestre (Mt 23.8-10) e seu único Senhor'R`, não pode se levantar na Igreja qualquer outro poder que coexista com o poder de Cristo ou que se oponha a Ele. Só pode se levantar outro poder na Igreja se esse poder for delegado e limitado por Ele.

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Isso era verdade sobre os extraordinários ofícios de apóstolo, profeta e evangelista no primeiro período, instituídos antes do estabelecimento da Igreja no mundo. Esses oficiais receberam seus poderes e seus ofícios de Cristo, e

não da Igreja, embora eles tivessem que aplicar esse poder que lhes foi dado a serviço da Igreja (Mt 20.25-27; lPe 5.3). O mesmo é verdade, até mesmo em um sentido mais forte, sobre os ofícios ordinários que ainda existem na Igreja. Os pastores e mestres, os presbíteros e diáconos, também devem seu ofício e sua autoridade a Cristo, que instituiu esses ofí-cios e que continuamente os sustenta, que dá às pessoas os seus dons e que os apresenta para o ofício através da Igreja (1Co 12.28; Ef 4.11). Mas esses dons e essa autoridade lhes são dados para que sejam empregados para o benefício da Igreja e para que sejam úteis na preservação dos santos (Ef 4.12). Os ofícios foram instituídos para que, dessa forma, a Igreja pudesse perseverar no ensino dos apóstolos e na comunhão, no partir do pão e nas orações (At 2.42).

Toda essa regulamentação ou governo, simples e bonito como era, foi distorcido e corrompido logo depois do período apostólico. O primeiro a ser distorcido foi o ofício de bispo, o assim chamado episcopado. No Novo Testamento e também em certos escritos pós-apostólicos, os nomes presbítero e supervisor (bispo) eram usados para designar uma e a mesma pessoa. O papel de

supervisor, em especial o de supervisor da disciplina, era a definição da tarefa dada aos presbíteros,'"',

Mas, no começo do segundo século, houve uma distinção em algumas igrejas, de forma que o supervisor ou bispo foi colocado em uma categoria muito superior à dos demais presbíteros e diáconos e foi considerado como o portador de um ofício especial, a saber, o sucessor dos apóstolos, o preservador da pureza doutrinária e a pedra angular da Igreja. Isso foi o ingresso em uma escala hierárquica que, por um lado, fez com que os presbíteros e diáconos perdessem sua independência e fez com que os crentes fossem considerados pessoas imaturas e, por outro lado, colocou os bispos e sacerdotes acima da Igreja e, entre eles, elevou o bispo de Roma ao papel de príncipe de toda a Igreja. Como sucessor de Pedro, esse bispo de Roma era considerado o possuidor das chaves do reino, o vice-regente de Cristo na terra e o papa que, em questões de fé e vida, possuía um poder divino e infalível.

Esse desenvolvimento do sacerdócio encontrou oposição a cada passo que dava. Mas, foi somente no tempo da Reforma que esse conflito alcançou seu ponto alto, pois, a cristandade daqueletempo estava dividida em dois grandes grupos. Alguns, como os anabatistas, afirmavam que toda forma de ofício, autoridade ou poder estava em conflito com a Igreja de Cristo. Outros, como os anglicanos ingleses, romperam o vínculo com o papa de Roma, porém, conservaram a força episcopal. Os luteranos restauraram o ofício da pregação, mas deixaram o governo da Igreja e o cuidado com os pobres inteiramente entregues às autoridades civis. Todos os tipos de proposta para a administração eclesiástica surgiram uma ao lado da outra. E nos nossos dias não há menos diferença de opinião

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sobre a administração nas várias denominações cristãs do que sobre a confissão da lgreia.

Calvino temo mérito de que, enquanto fazia oposição à hierarquia sacerdotal romana, restaurou os ofícios de presbítero e diácono e o ofício da pregação. Através dele a Igreja recebeu seu próprio terreno e sua própria função independente. Ele lutou implacavelmente e durante vários anos pela independência da Igreja, pelo livre exercício de sua disciplina, pela manutenção da pureza na ministrarão da Palavra e dos sacramentos. Ao pensar na Igreja, ele não pensava primeiramente nos ofícios dessa Igreja, na Igreja

como uma instituição; ele pensava na Igreja, acima de tudo, como uma reunião ou comunhão de crentes que, por sua confissão e por sua vida, provavam ser o povo de Deus e na qual todos foram pessoalmente ungidos por Cristo para ser profetas, sacerdotes e reis. A Igreja é a mãe e a comunidade dos crentes. Ela é algo diferente e algo mais do que uma reunião pública em algum lugar aos domingos para ouvir a pregação; ela é uma comunidade ou comunhão que durante a semana faz com que sua influência seja sentida tanto dentro quanto fora de si mesma. O ofício da pregação é apenas um dos ofícios; ao seu lado está o ofício de presbítero que, através da visitação domiciliar, da supervisão e da disciplina, também deve ser exercido; há também o ofício de diácono, que deve mostrar misericórdia aos pobres e aos enfermos; e, finalmente, há o ofício de doutor, cuja função é desenvolver, ensinar e defendera verdade.

Enquanto cada igreja é independente, ela deve

sua fundação e existência, seus dons e poder, seus

ofícios e ministérios somente a Cristo e está

intimamente relacionada a todas as igrejas que

estejam nessa mesma condição. Foi assim no

período apostólico. Cada igreja, fosse grande ou pe

quena, era uma igreja de Cristo, Seu corpo e Seu templo; mas cada igreja era também, desde o começo, uma unidade espiritual com todas as outras igrejas. Todas as igrejas juntas formavam uma só Igreja (Mt 16.18); todas elas estavam sujeitas à autoridade dos apóstolos que, por sua palavra, lançaram o fundamento de toda a Igreja (Ef 2.20). Todas elas possuíam uma só vida e confissão e todas tinham um só

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batismo, uma só fé, um só Espírito, um só Senhor, um só Deus e Pai de todos e que é sobre todos (Ef 4.3-6). Elas mantinham comunhão umas com as outras através de membros que viajavam (por exemplo, Priscila e Áquila )504, através de encontres"' e através do serviço que umas prestavam às outras com os dons de amor 516. Elas também trocavam cartas que lhes eram enviadas pelos apóstolos (Cl 4.16) e começa-ram, em alguns casos difíceis, a deliberar em conjunto e a tomar decisões comuns (At 15).

De todas as formas de ordem eclesiástica, o

sistema presbiteriano, nos moldes em que foi

restaurado por Calvino, corresponde em maior

medida ao sistema do período apostólico.

Todos os ministérios e ofícios que Cristo instituiu em Sua Igreja estão centralizados na Palavra. Ele não deu eloqüência aos Seus discípulos (Mt 20.25-27), nem dominação sacerdotal (1Pe 5.3), pois, eles são pessoas espirituais

(1Co 2.10-16), ungidos pelo Espírito Santo (Elo 2.20) e juntos formam um sacerdócio real (1Pe 2.9). A capacitação e os ofícios possuem a única finalidade de colocar aqueles que os receberam a serviço uns dos outros, através do amor (Rm 13.18; G15.13). As armas de sua batalha são de caráter puramente espiritual (2Co 10.4); elas consistem no cinturão da verdade, na couraça da justiça, nas sandálias da preparação do Evangelho da paz, no escudo da fé, no capacete da salvação e na espada do Espírito (Ef 6.14-17).

Por essa razão, a Palavra é o único meio pelo qual a Igreja pode ser conhecida em sua verdade e em sua pureza. Foi através da Palavra que todos os membros da Igreja foram regenerados e trazidos à fé e ao arrependimento, purificados e santificados, reunidos e estabelecidos; e todos eles, a seu tempo, são chamados a permanecer nessa Palavra (Jo 8.31), a estudá-la (Jo 5.39), a usá-la para

provar os espíritos filo 4.1) e a afastar-se de todos aqueles que não ensinam essa Palavra'". A Palavra de Deus é, como disse Calvino, a alma da Igreja.

Essa Palavra de Deus não foi dada exclusivamente à Igreja como uma instituição, aos oficiais, mas a todos os crentes (Jo 5.39; At 17.11), para que, extraindo dela paciência e conforto, eles tivessem esperança (Rm 15.4) e para que eles mutuamente ensinassem e admoestassem uns aos outross'8. Roma fez violência a tudo isso, mas a Reforma colocou a Bíblia nas mãos de todas as pessoas e fez com que fosse possível que a família e a escola, a ciência e a arte, a sociedade e o estado e cada crente individual, tivessem acesso a essa fonte de ensino e instrução. Além disso, Deus providenciou um serviço oficial da Palavra. Ele deu e continua dando às igrejas pastores e mestres511 para que ministrem a Palavra, em público e nos lares, (At 20.20) e para que dêem leite aos membros imaturos e carne aos membros maduros da igreja""; isso deve ser feito em harmonia com as necessidades de pessoas específicas e

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em momentos específicos, com cada crente e com cada igreja'". Em outras pa-lavras, o serviço da Palavra inclui sua preservação, tradução, interpretação, disseminação, defesa e proclamação a todos os homens; dessa forma, a Igreja continua edificada sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas (Ef 2.20),e é, como realmente deve ser, o pilar e o baluarte da verdade (lTm 3.15).

A Palavra tem sua confirmação nos sacramentos, que são sinal e selo da Aliança da Graça e que, portanto, servem para o for-talecimento da fé. No Velho Testamento, Deus empregou para esse propósito a circuncisão (Gn 17.7) e a Páscoa (Ex 12.7 ss.). Ambos os sinais tinham um significado espiritual, pois, a circuncisão era o selo da justiça da fé (Rm 4.11)

eda circuncisão do coração (Dt 30.6; Rm 2.28,29). E a Páscoa era uma oferta pelo pecado e um sacrifício que apontava para Cristo (C1 2.11; ICEI 5.7) e esses dois sacramentos do Velho Testamento foram substituídos, no Novo Testamento, pelo batismo (Mt 28.19)epela Ceia do Senhor (Mt 26.17). Esses dois sinais, universalmente conhecidos como sacramentos (mistérios – lCo 4.1) são, sem qualquer apoio bíblico, acrescidos de mais cinco sacramentos (confissão, penitência, casamento, co-munhão e extrema-unção) e mais um número sem fim de cerimôni-as e não são considerados como contendo, espacial e materialmente, a Graça de Deus em si mesmos, mas como reminiscências e confirmações da Graça que Deus, através do Espírito Santo, dá aos corações de Seus crentes. Esses dois sacramentos possuem toda a Aliança da Graça e todos os seus benefícios, isto é, possuem o próprio Cristo, como seu conteúdo, e não podem comunicar esses benefícios a não ser através da fé. Eles foram instituídos para os crentes e eles asseguram os crentes de sua porção em Cristo. Eles não prece-dem a Palavra, eles a acompanham. Eles não possuem poder para conceder uma Graça especial que não possa ser dada pela Palavra, ou que não possa ser recebida pela fé; eles estão baseados na instituição da Aliança da Graça por parte de Deus e na confirmação da Aliança por parte do homem.

Especificamente o batismo é um sinal e um selo

do perdão de pecados (At 2.38; 22.16) e da rege-

neração (Tt 3.5), ao ser uma pessoa incorporada à

comunhão com Cristo e à Sua Igreja (Rm 6.4). Por-

tanto, o batismo é ministrado, não somente aos

adultos que foram ganhos para Cristo através da

obra missionária, mas também aos filhos dos crentes,

pois eles, juntamente com seus pais, estão in-

cluídos na Aliança da Graça"',

Page 531: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

pertencem à Igreja (lCo 7.14) e possuem comunhão com o Senhor'''. E quando essas crianças crescem e pessoalmente concordam em participar dessa Aliança, chegam à idade da discrição e podem distinguir o corpo e o sangue do Senhor (1Co 11.28), elas são chamadas , juntamente com toda a Igreja, a proclamar a morte do Senhor até que Ele venha e assim fortalecer sua comunhão com Cristo. Apesar de o batismo e a Ceia do Senhor possuírem a mesma Aliança da Graça como seu conteúdo, e apesar de ambos darem ao crente a certeza do perdão de pecados, a Santa Ceia difere do batismo no sentido de que ela é um sinal e um selo, não da incorporação do crente na Igreja de Cristo, mas de seu amadurecimento e do fortalecimento de sua comunhão com Cristo e com todos os Seus membros (1Co 10.16,17).A essa ministração da Palavra e dos sacramentos devem ser acrescentados o exercício da disciplina e o serviço de misericórdia. A disciplina, que às vezes é também chamada de poder das chaves e que foi primeiramente dada a Pedro (Mt 18.18; Jo 20.20) e a partir daí também a toda a Igreja em sua organização oficia1114, consiste no fato de que a Igreja, através de seus oficiais, diz ao justo que bem lhes irá porque comerão do fruto das suas ações e diz ao perverso que mal lhes irá, porque a sua paga será o que as suas próprias mãos fizeram (Is 3.10,11). A Igreja faz isso de forma geral e pública na ministração da Palavra a todos aqueles que se reúnem com os crentes. A Igreja exercita a disciplina, por outro lado, de forma particular e pessoal, na visitação domiciliar. Nas igrejas Reformadas, a disciplina substitui a confissão auricular da igreja romana e está baseada no exemplo apostólico115. E a Igreja exerce a disciplina, finalmente, em admoestações particulares direcionadas àqueles de dura cerviz que persistem no pecado e na exclusão da comunhão"'.

Mas, enquanto a Igreja, no nome de Cristo, dessa forma ministra os sacramentos do Senhor e exclui os pecadores de sua comunhão, ela também cuida, com grande compaixão, dos pobres e dos enfermos e oferece-lhes o que eles necessitam para sua recuperação e bem-estar. O próprio Cristo fez isso (Mt 11.5), e Seus discípulos devem fazer o mesmo"'. Os

membros da Igreja são instruídos a contribuir para suprir as necessidades dos santos (Rm 12.13) e devem distribuir seus donativos com simplicidade, mostrando misericórdia com liberalidade (Rm 12.8), devem visitar as viúvas e os órfãos em suas aflições (Tg 1.27), devem orar pelos enfermos em nome do Senhor (Tg 5.14) e, de forma geral, devem levar as cargas uns dos outros e assim cumprir a lei de Cristo (Rm 12.15; G1

6.2).

A fé e o amor são a força da Igreja do Senhor; e a essas duas virtudes é acrescentada a esperança. No meio de um mundo que não sabe para onde está indo e que frequentemente por causa de desencorajamento e desespero entra em decadência, a Igreja desfruta de sua boa

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esperança. Eu creio no perdão de pecados, na ressurreição do corpo e na vida eterna.

Capítulo 24

A VIDA ETERNA

0 fim e a consumação de todas as coisas, assim como seu começo e sua existência, são envolvidos em um mistério impenetrável à razão humana. Quem quer que tente alcançar esses mistérios através da luz da ciência, mais cedo ou mais tarde chegará à mesma conclusão a que chegou um erudito dos tempos modernos: Eu não sei e ninguém sabe qual é o fim e o propósito da história.

Contudo, novos empreendimentos são constantemente feitos para dar uma resposta a essa questão, ou até mesmo para eliminar essa questão e desarraigá-la do coração do homem. Há pouco tempo atrás muitos estudiosos assumiram essa posição. O materia-lismo era a moda e proclamava claramente que a morte era o fim de todas as coisas e que crer na imortalidade era uma grande to-

lice. Um de seus defensores declarou abertamente que a crença em uma existência além-túmulo era o último inimigo a ser combatido pela ciência e que, se possível, tinha que ser eliminada. Esse mundo visível e tangível, então, era o único que existia; e ninguém podia falar sobre o começo ou o fim desse mundo, porque isso seria caminhar por um eterno labirinto. A prática resultante dessa doutrina superficial e desconfortável é que todo esforço feito no sentido de se levar em conta a eternidade foi considerado fútil e foi recomendado que os homens aproveitassem ao máximo sua vida sensual. Comamos e bebamos, que amanhã morreremos!

Ainda há muitos que pensam e agem dessa forma, porém, a tendência tem mudado de direção. Após profunda investigação, as questões sobre a eternidade não

parecem ser fúteis e não parecem ser de fácil solução, como antes se pensava. O estudo das religiões de diversos povos trouxe à luz o fato de que a crença na imortalidade é comum a todos os homens e está presente entre todos os povos e tribos, mesmo as mais bárbaras e primitivas. Um estudioso holandês, que conquistou grande reputação nessa área do conhecimento, testemunhou há alguns anos passados que

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nós encontraremos a noção de imortalidade em todos os lugares, entre todos os povos e em todos os níveis de desenvolvimento social, se especulações filosóficas não influenciarem o meio, ou outras causas não suprimirem essa crença. E ele disse que essa noção de imortalidade em todos os lugares está relacionada com a religião. Além disso, todas as tribos e todos os povos agem com a convicção de que o homem, por natureza, é imortal e que a grande questão não é que a imortalidade deva ser provada, mas que a morte deva ser explicada. A morte, em todos os lugares, é vista como algo não natural. De acordo com a crença de muitos povos, ela é obra de espíritos maus. Tudo isso aponta para o fato de que houve um tempo em que a morte não existia e que uma vida pacífica e permanente era a porção de toda a humanidade.

Com relação à condição das almas depois da

morte, o mundo

pagão apresenta muitas representações. Alguns

povos afirmam que as almas permanecem com seus

corpos nas sepulturas, que os mortos continuam a

ter comunhão com os vivos, exercem influência

sobre eles e podem também aparecer para eles.

Outros crêem que todas as almas, depois da morte,

vão para um grande reino dos mortos no qual elas

vivem em uma existência etérea, ou que caem

completamente em um sono inconsciente. Também é

muito difundido o pensamento de que as almas,

depois de terem abandonado seus corpos,

imediatamente encamam em outros corpos e, de-

pendendo do que tenham feito ou de como tenham

vivido na terra, essas almas assumem o corpo de um

vegetal, ou de um animal, de um ser humano ou de

qualquer outra criatura. E, finalmente, a noção de

imortalidade se expressa frequentemente na forma

de o bem e o mal corresponderem a diferentes

destinos depois da morte e continuarem sua existência

em lugares diferentes. Na medida em que as pessoas

Page 534: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

pensam de forma diferente sobre a condição e o

status das almas depois da morte, as cerimônias de

sepultamento e ou cremação dos corpos e as

mirústrações; religiosas também diferem. Em alguns

casos, toda a religião dos povos pagãos assume a

forma de um culto aos ancestrais. Geralmente o

ponto de vis-

ta pagão é limitado à condição das almas depois da morte; mas algumas vezes acontece que essa visão é mais ampla e que o fim do mundo faz parte de sua cosmovisão. E, nesse caso, geralmente reaparece a expectativa de que o bem de alguma forma será vitorioso sobre o mal, a luz sobre as trevas e as forças e poderes celestiais sobre as forças e poderes terrenos e infernais.

Todas essas representações pagãs, que foram subjugadas pelo cristianismo ou purificadas por ele, estão reaparecendo nos tempos modernos e encontrando seguidores aos milhares. Depois de algum tempo, o materialismo podia satisfazer algumas poucas pessoas. O homem continua o mesmo, seu coração não muda e ele não pode viver sem esperança. Que as almas continuam a viver depois da morte, que elas fazem revelações e aparições àqueles que ficaram para trás, que imediatamente depois da morte, dependendo de sua conduta anterior, elas assumem um outro corpo e se desenvolvem nele: tudo isso tem sido recebido hoje em muitos círculos como uma nova sabedoria, aliás, como a mais elevada sabedoria. Em alguns casos, as almas chegam a ser invocadas, cultuadas e temidas; o culto aos espíritos, também chamado de espiritismo, está ocupando o lugar

do culto ao único e verdadeiroDeus.

É particularmente notável o fato de que esse culto aos espíritos está intimamente relacionado com a doutrina da evolução. À primeira vista, alguém pode pensar que essa ligação seja um tanto estranha. Como pode uma pessoa que aceita o desenvolvimento do homem a partir de um animal, crer na contínua existência das almas depois da morte? Contudo, vista com atenção, essa ligação demonstra ser muito simples e natural, pois, se no passado os seres vivos evoluíram a partir de seres inanimados, a alma evoluiu da matéria e os seres humanos evoluíram a partir do animais, por que então seria impossível que, no futuro, o ser humano se desenvolvesse muito mais, não somente na terra, mas também do outro lado da sepultura? Se a vida surgiu a partir da morte, segue-se que a morte pode conduzir também a um nível de vida mais elevado. Se um animal pode tornar-se um homem, o homem pode também tornar-se um anjo. Essa idéia de evolução parece fazer com que tudo seja possível e parece poder dar explicações para todas as coisas.

Mas, no momento em que essa casa de cartas estava sendo cuidadosamente construída e essa esperança estava sendo alimentada, o

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fundamento sobre o qual ela estava sendo edificada veio abaixo.

O fato é que os proponentes da teoria da imortalidade e da evolução não queriam sequer ouvir a doutrina da Escritura referente à morte e à sepultura, referente ao julgamento e à punição. Para eles, a morte não é uma punição pelo pecado, mas um meio de transição para uma vida melhor e mais elevada. Não há julgamento na morte, exceto no sentido de que todos devem sofrer as conseqüências por aquilo que tenham feito. Não há lugar para um inferno, pois, todos estão inseridos em um processo evolutivo e, portanto, mais cedo ou mais tarde, todos alcançarão o ápice do desenvolvimento. Quando são questionados sobre se é possível a existência de uma vida eterna, uma vida ininterruptamente abençoada e gloriosa, esses proponentes são repentinamente condenados ao silêncio. Durante muito tempo eles têm se dedicado a argumentar contra as doutrinas cristãs da morte e da sepultura, do juízo e da punição e durante muito tempo eles têm se alegrado no desaparecimento dessas doutrinas, mas eles se esqueceram de responder se, com a extinção dessas doutrinas, a esperança de uma vida eterna e de uma bem-aventurança eterna também deixariam de existir. No momento em que essa questão é apresentada, toma-se claro que no calor da batalha a esperança de uma vida

eterna foi perdida. Com a mesma faca com que eles tentam cortar do coração do homem todo temor, eles acabam cortando também toda esperança.

Dessa forma, é certo que, se a evolução for uma lei suprema do mundo e da humanidade, do aqui e agora e também do futuro, então a esperança de vida eterna é totalmente destituída de seu fundamento. O pensamento de que no fim tudo será satisfatório é, em si mesmo, uma suposição e uma suposição que não encontra apoio na Escritura, nem na consciência, nem na natureza, nem na história. Mas, admitamos por um momento que essa suposição esteja correta. Nesse caso, essa é uma condição que nunca poderia subsistir, pois, a mesma lei do desenvolvimento que tinha estado em operação antes e que traria essa nova condição, continuaria a operar e faria com que o homem entrasse em uma nova condição. Na teoria da evolução não há um ponto final, não há um fim, nem um propósito; a bênção que, de acordo com a expectativa de muitos, está se aproximando, está sempre em um processo de mudança. Não é possível algo como a vida eterna. Por esse motivo alguns, convencidos da impossibilidade de existência de um ponto final, estão retornando à antiga doutrina pagã do eterno retomo de todas as coisas, e agora apresentam sua dou-

trina como uma solução para o problema do mundo. Se o mundo que agora existe alcançou o ápice de seu desenvolvimento, deve então surgir, a qualquer momento, um colapso e tudo começará novamente. Depois da tempestade vem a bonança e a bonança trará uma nova tempestade; depois do desenvolvimento vem um retrocesso, que novamente trará o desenvolvimento. E isso acontece de forma contínua. Existe o tempo, mas não existe a eternidade. Há movimento, mas não há descanso. Há a criatura, mas não há o Criador que era, que é e que há de ser.

Tudo isso confirma a palavra da Escritura que diz que aqueles que estão sem Cristo, separados da comunidade de Israel e estranhos à Aliança da

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promessa, não possuem esperança, nem Deus no mundo (Ef 2.12). Eles podem fazer suposições e nunca deixam de fazê-las. Mas eles não possuem base sólida para a sua esperança. Eles carecem da certeza da esperança cristã.

Contudo, no momento em que retornamos para Israel nós somos conduzidos a uma menta-lidade muito diferente. O Velho

Testamento nunca fala sobre a assim chamada imortalidade da alma e não apresenta sequer uma só peça de evidência sobre ela. Porém, ele nutre idéias de vida e morte que podem ser encontradas aqui e ali e que colocam o futuro sob uma perspectiva muito diferente daquela apresentada pelos proponentes da evolução.

Na Escritura, a morte nunca é equivalente à aniquilação ou à não-existência. Os termos morrer e estar morto são usados como contraste a toda a vida, rica e plena, que o homem possuía original-mente em sua comunhão com Deus aqui sobre a terra. Portanto, quando o homem morre, não é somente o seu corpo que é afetado, mas também sua alma. O homem todo morre, em corpo e alma, e assim ele passa a existir no estado de morte. Ele não pertence mais à terra, mas passa a ser um habitante do reino dos mortos (Seol), um lugar que se pensa estar nas profundezas da terra, abaixo das águas e da fundação dos montes"'. De fato, os mortos continuam sua existência nesse lugar, mas essa existência não merece ser chamada de vida e é semelhante à não-existência". Nesse lugar os mortos são fracos (5188.5; Is 14.10), vivem em silêncio5R0, na terra da escuridão (jó 10.20,21) e decadên-

cia & 26.6; 28.22). Tudo o que leva o nome de vida deixa de existir ali. Deus e o homem não são vistos nesse lugar (Is 38.11); o Senhor não é lembrado, nem louvado (SI 6.5; 115.17); Suas excelências não são mais proclamadas e Suas maravilhas não são mais vistas (5188.1113). Os mortos não possuem co-nhecimento, nem sabedoria, nem ciência, eles não trabalham, nem desfrutam de tudo aquilo que acontecer debaixo do sol"'. Essa é uma terra de males (SI 88.3). Foi dessa forma que a morte foi vista pelos santos de Israel: como um banimento total do reino dos vivos e da luz. Ao contrário disso, a vida era aceita como a plenitude de existência e de salvação. A vida não era vista de forma abstrata e filosófica, como um tipo de existência nua. Por sua natureza, a vida compreendia uma plenitude de bênçãos: antes de tudo, a comunhão com Deus, mas também a comunhão com Seu povo e a comunhão com a terra que o Senhor tinha dado ao Seu povo. A vida na existência plena e rica do homem na unidade de sua alma e corpo, na unidade com Deus e na

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harmonia com seus vizinhos –tudo isso está incluído na idéia de vida e também bênçãos e glória, virtude e felicidade, paz e alegria. Se o homem tivesse permanecido

obediente ao mandamento de Deus, ele teria experimentado essa vida rica e nunca teria visto a morte (Gn 2.17). Então não teria existido divisão entre seu corpo e sua alma e não teria sido rompido o vínculo que o unia a Deus, à raça humana e à terra. O homem, então, viveria eternamente, na rica comunhão na qual ele foi criado. Como homem, ele seria imortal na unidade e na plenitude de seu ser.

E se, por causa do pecado, a morte entrou no mundo, Deus, em Sua Graça, renova Sua comunhão como homem e estabelece a Aliança com Israel. Nessa Aliança, a plena comunhão entre Deus e o homem é restabelecida em prin-cípio. Essa Aliança, na forma como existia no Velho Testamento, compreendia a comunhão com Deus e, conseqüentemente, compreendia também a comunhão com Seu povo e seu país. A comunhão com Deus é o primeiro e o mais importante benefício da Aliança. Sem ela nós não podemos realmente falar de vida. Deus vinculou-se a Abraão e a sua semente através da Aliança dizendo: "Eu serei teu Deus e o Deus de tua descendência" (Gn 17.7). Ele libertou Israel do Egito e, no Sinai, entrou em Aliança com o povoa'.

Portanto, para o povo de Israel e para cada membro desse

povo, não há alegria fora da comunhão com o Senhor. Os ímpios não entendem isso, quebraram a Aliança e procuraram pela vida por seus próprios caminhos. Eles abandonaram a fonte de águas vivas e cavaram para si cisternas rotas, que não retêm as águas (jr 2.13). Mas os santos sabiam que Deus era a vida e expressavam esse fato em suas orações e em suas músicas. O Senhor era a porção de sua herança, sua rocha e fortaleza, seu escudo e sua torre (SI 16.5;18.2). A Graça de Deus era melhor do que a vida (5163.3). Ele era seu mais elevado bem, além dele não havia outro no céu, nem sobre a terra, em quem eles se alegrassem (SI 73.25). Embora eles pudessem ser abandonados por todos, perseguidos por seus inimigos e subjugados por eles, em Deus eles saltavam de alegria e se regozijavam e exultavam no Deus da sua salvação (Hc 3.18). Nessa comunhão com Deus, eles eram capazes de transcender toda a miséria de sua vida terrena, o temor da morte, das trevas e do Seol. Pode ser que, temporariamente, os ímpios experimentem a prosperidade, mas o seu fim é a morte (SI 73.18-20). O caminho deles os conduz diretamente para a morte (Pv 8.36; 11.19), mas, para os san-

tos, o temor do Senhor é a fonte da vida (Pv 8.35; 14.27). Ele geralmente lhes dá essa vida, mas Ele tem poder também sobre o reino da morte; com Seu Espírito Ele está presente também ali (SI 139.7,8). Nada há que possa ficar escondido dele, nem mesmo dentro do coração dos filhos dos homens"'. O Senhor destrói e o Senhor faz viver; Ele pode descer ao abismo e voltar novamente"'. Ele pode tomar para si Enoque e Elias sem que eles passem pela morte (Gn 5.24; 2Re 2.11) e pode dar vida àqueles que estão mortos"'. De fato, Ele pode destruir a morte e, levantando aqueles que estavam mortos, triunfar completamente sobre ela"'.

Mas, muito embora seja verdade que os crentes

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do Velho Testamento tenham percebido, em maior ou menor grau, que a comunhão com o Senhor não poderia ser destruída, nem mesmo temporariamente rompida pela morte, pela sepultura e pela permanência no estado de morte, eles viviam, de forma geral, em um diferente contexto de idéias. Eles pensavam sobre isso de modo muito diferente do nosso. Quando nós pensamos sobre o futuro, quase exclusivamente pensamos sobre nossa própria morte e em

nossa ida para o céu. Mas os israelitas tinham uma idéia de vida muito mais rica que a nossa. Para eles a consciência da comunhão com Deus estava relacionada com a comunhão com Seu povo e com sua terra. Na verdade, a vida plena era a vitória sobre toda separação; era a restauração e a confir-mação da rica comunhão na qual o homem foi criado. A Aliança tinha sido estabelecida por Deus não com uma pessoa, mas com Seu povo e também com a terra que Ele tinha dado a Seu povo como herança. Portanto, a morte era completamente vencida e a vida era trazida à luz somente quando, no futuro, o Senhor viesse morar entre Seu povo, purifica-lo de toda injustiça, conceder-lhe a vitória sobre todos os seus inimigos e fazer com que ele vivesse seguramente na terra de prosperidade e paz. Portanto, os olhos da fé entre os santos de Israel eram comparativa e raramente direcionados ao fim de sua própria vida pessoal. De forma geral, sua visão alcançava muito mais longe. Ela incluía também o futuro de seu país e de seu povo. O israelita sempre percebeu que faz parte de um todo, de uma família, de uma raça, de uma tribo, de uma nação com a qual Deus estabeleceu Sua Aliança que nunca seria quebrada. E, no futuro desse povo, o

crente israelita encontrou seu próprio futuro assegurado. Sua imortalidade e sua vida eterna estavam garantidas pela teocracia. Pode ser que a ira do Senhor dure por um dia, mas ela será sucedida por uma vida inteira de bem-aventurança. O presente pode sugerir que Deus tenha se esquecido de Seu povo e que seu direito tenha sido ignorado, mas, depois do castigo, Deus reafirma Sua Aliança, que nunca será quebrada. A esperança dos santos de Israel pelo futuro é exercida em toda a extensão de sua alma; o povo de Israel é um povo de esperança; e a promessa do Messias é o núcleo de suas expectativas.

Todas essas expectativas possuem seu

fundamento na Aliança que Deus estabeleceu com

Seu povo. Quando a lei dessa Aliança, que foi

estabelecida com Israel, era quebrada e o povo

seguia seus próprios caminhos, Israel era

severamente punido pelo Senhor e visitado com

todos os tipos de pragas. Precisamente pelo fato de

que os santos de Israel tinham sido escolhidos dentre

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todos os povos da terra, Deus os punia por todas as

suas iniqüidades (Am 3.2). Mas esse castigo era

temporário; depois que esse castigo era executado,

o Senhor tinha novamente compaixão de Seu povo

e fazia com que ele desfrutasse de Sua

salvação521.

O Senhor não pode se esquecer de Sua Aliança (Lv 26.42). Ele castiga Seu povo com moderação e por breve momento o abandona"'. Ele ama Seu povo com amor eterno (Mq 7.19; Jr 31.3,20) e a Ali-ança de Sua paz não será removida (Is 54.10). Ele é obrigado, por Seu próprio nome, por Sua própria glória entre os gentios, a redimir Seu povo ao fim do

odo de castigo e fazercom q ue ele triunfe sobre seus iinimigos'''

O "dia do Senhor' está vindo, um grande e terrível dia"O, no qual o Senhor terá compaixão de Seu povo e executará a vingança sobre os Seus inimigos. O reino que Ele estabelecerá nesse dia não vem à existência através de um desenvolvimento gradual da força moral do povo; ele vem de cima, do céu e é trazido à terra pelo Ungido do Senhor. A promessa de que um Ungido virá está presente na história de Israel e de toda a raça humana desde os tempos mais remotos. Ainda no paraíso foi anunciado o conflito entre a semente da mulher e a semente da serpente e a vitória foi prometida à semente da mulher (Gn 3.15). A Abraão é dito que nele todas as nações da terra serão abençoadas (Gn 13.3; 26.4).

Judá é exaltado acima de seus irmãos, porque dele virá Silo, a quem todas as nações obedecerão. (Gn 49.10).

Mas essa promessa assume uma forma sólida

específica quando Davi é ungido para ser o rei

sobre todo o povo de Israel e é dito que sua casa

permanecerá por toda a eternidade (2Sm 7.6; 23.5).

Depois disso, a profecia desenvolve essa promessa

nos mínimos detalhes. O Governador através do

qual Deus estabelecerá Seu reino nascerá da casa

real de Davi, em Belém. (Mq 5.1,2), como o renovo

de Davi"'. Ele será de origem humilde e crescerá

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em meio à pobreza (Is 7.14-17), será manso e

humilde, cavalgará sobre um jumento (Zc 9.9) e o

Servo Sofredor do Senhor levará sobre si as

iniqüidades de Seu povo (Is 53). E esse filho humilde

de Davi é, ao mesmo tempo, o Senhor de Davi (SI

110.1; MI: 22.43), o Ungido ou Messias, o verdadeiro

rei de Israel, em quem estão unidos os ofícios real,

profético e sacerdotal"'. Ele é o Governante a quem

todas as nações se submeterão (Gn 49.10; S1

2.12) e Ele receberá o nome de Emanuel, o Senhor,

Justiça nossa, Maravilhoso, Conselheiro, Deus

Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da PaZI13.

O reino que esse Messias estabelecerá é um

reino de justiça e paz e trará consigo um tesouro de

bênçãos materiais e espirituais. Os Salmos e os

profetas estão cheios da glória desse reino

messiânico. Através de Seu Ungido, o Senhor fará

com que Seu povo retorne do cativeiro e, juntamente

com esse retorno, lhe dará o verdadeiro ar-

rependimento do coração. De fato, nem todos voltarão

para o Senhor e muitos perecerão sob o juízo que virá

também sobre o povo de Israel"'. Contudo, haverá

um remanescente segundo a eleição da Graça"'. E

esse remanescente será um povo santo ao Senhor, ao

qual Ele será fiel por toda a eternidades" Ele firmará

com esse remanescente uma nova Aliança, perdoará

seus pecados, limpá-lo-á de toda impureza, dar-lhe-á

um novo coração, escreverá Sua lei nesse novo

coração, derramará Seu Espírito sobre ele e Ele

mesmo morará no meio dele"'.

Não somente todos os tipos de bênçãos

espirituais, mas também todos os tipos de bênçãos

materiais virão com esse reino. Não haverá mais

Page 541: Teologia Sistemática - Hermann Bavinck

guerra, as espadas serão transformadas em arados e

todos se sentarão em paz sob

sua vinha e sua figueira. A terra será maravilhosamente produtiva; os animais receberão uma natureza diferente da que tinham anteriormente; os céus e a terra serão renovados; não haverá mais doença, nem tristeza, nem choro e a morte será tragada pela vitória. Os israelitas que tivessem morrido também desfrutariam dessas bênçãos e para isso eles seriam ressuscitados dos mortos (Is 26.19; Dn 12.2), e as nações pagãs finalmente reconheceriam que o Senhor é Deus e lhe dariam glória"'. A nação dos santos receberia o governo sobre todas as nações da terra (Dn 7.14,27) e o rei ungido da casa de Davi reinará de mar a mar e até as extremidades da termal.

O cumprimento de todas essas promessas do

Velho Testamento teve seu início quando Cristo

veio em carne, pois, em Sua pessoa e através de Sua

obra, o reino dos céus foi estabelecido sobre a terra.

Por Seu sangue Ele confirmou a nova e superior Ali-

ança que o Senhor estabeleceria com Seu povo nos

últimos dias; e

no dia de Pentecoste Ele enviou o Espírito de Graça e de louvor à Igreja que Ele conduzirá em toda verdade e perfeição, até o fim. Mas aquilo que a profecia do Velho Testamento mencionava em uma grande figura foi de4manchado em várias partes menores. A profecia do Velho Testamento não foi cumprida em um só dia, mas durante um longo período de tempo e passo a passo. Mais especificamente, nós somos ensinados no Novo Testamento que a vinda do Messias, que foi profetizada no Velho Testamento, deve ser dividida em duas partes, a saber, a primeira e a segunda vindas. De acordo com a profecia, o Messias tinha que vir para cumprir o propósito de redimir e julgar, isto é, para redimir o Seu povo e para julgar Seus inimigos. Mas, quando essa profecia foi cumprida, tornou-se evidente que cada um desses propósitos requer uma vinda específica de Cristo.

Além disso, Jesus, durante Sua permanência na terra, deu expressão ao fato de que Ele tinha vindo buscar e salvar o perdido (Lc 19.10), para servir e dar a Sua alma em resgate por muitos (Mt 20.28), não para condenar o mun-do, mas para salvá-lo~O. Mas, ao mesmo tempo, Ele afirma clara e

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poderosamente que, através da luz que Ele irradia, trouxe julgamento e divisão ao mundo (Jo 3.19; 9.39) e que Ele voltará para julgar os vivos e os mortos (Jo 5.22; 27-29). É verdade que Ele deve ser crucificado e entregue à morte, mas depois disso, Ele ressuscitará e ascenderá aos céus (Mt 16.21; Jo 6.62) para que venha o fim e todos os povos sejam reunidos diante dele e recebam a recompensa por tudo o que tenham feito'.

Há uma grande diferença entre essas duas vindas do Senhor. Primeiro Cristo apareceu na fraqueza da carne, na forma de servo, para sofrer e morrer pelos pecados de Seu povo (Fp 2.6-8) e em Sua segunda vinda Ele se manifestará a todos em grande poder e glória, como um rei conquistador~2. Contudo, as duas vindas do Senhor estão intimamente relacionadas. A primeira pavimenta o caminho para a segunda porque, de acordo com a Sagrada Escritura e a lei básica do reino dos céus, é somente a paixão que pode conduzir à glória, somente a cruz pode conduzir à coroa, somente a humilhação pode conduzir à exaltação (Lc 24.26).

Em Sua primeira vinda Cristo lançou o fundamento e em Sua segunda vinda Ele construirá o

edifício do Senhor, a primeira vinda é o começo e a segunda é a conclusão de Sua obra como Mediador. Porque Cristo é o perfeito Mediador, que traz não somente a possibilidade, mas também a realização da salvação, Ele não pode descansar e não descansará antes que aqueles que são Seus tenham sido alcançados por Seu sangue, renovados pelo Seu Espírito e levados para onde Ele está, antes que eles contemplem e desfrutem de Sua glória (Jo 14.3; 17.24). Ele deve dar a vida eterna a todos aqueles que o Pai lhe deu (Jo 6.39; 10.28), Ele deve apresentar Sua Igreja sem mancha e sem mácula ao Pai (Ef 5.27) e entregar o reino ao Pai depois que tudo tiver sido plenamente cumprido (ICo 15.2328).

Como a primeira e a segunda vindas de Cristo estão intimamente relacionadas uma à outra e como uma, nem por um momento, é concebível sem a outra, as Sagradas Escrituras colocam muito pouca ênfase na duração do tempo que existe entre as duas. Nas Escrituras, a conexão temporal está muito abaixo da conexão material em importância. O tempo existente entre uma e outra vinda é geralmente mencionado como sendo muito curto. Os crentes do Novo Testamento estão vivendo no fim dos tempos

(1Co 10.11), nos últimos dias (1Pe 1.20), no último dia (1jo2.18). Eles têm que sofrer só por um pouco de tempo (1Pe 1.6; 5.10), pois, o dia está se aproximando (FIb 10.25,37), a vinda está próxima (Tg 5.8), o tempo está próximo (Ap 1.3; 22.7,20). Paulo não achou improvável que ele e seus contemporâneos vissem o retorno de Cristo (1Ts 4.15; 1Co 15.51).

Ao dizer essas coisas a Escritura não nos dá qualquer instrução específica sobre a duração desse intervalo, pois, ela nos diz claramente que o dia e a hora estão escondidos dos homens e dos anjos e que o momento do retorno de Cristo foi estabelecido pelo Pai em Seu próprio poder (Mt 24.36; At 1.7). Qualquer esforço para calcular o momento do retorno de Cristo é totalmente infrutífero (At 1.7), pois, o dia do Senhor virá como o ladrão durante a noite, em urna hora que os homens não sabem 543 . Esse dia não chegará até que o Evangelho tenha sido pregado a todos os povos (Mt 24.14), até que o reino dos céus tenha levedado todas as coisas (Mt 13.33) e até que surja o

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homem da iniqüidade (2Ts 2.2 ss.). O Senhor mede o tempo por uma medida diferente da nossa. Um dia é para Ele como mil anos e mil anos como um dia. Sua aparente demora é longanimidade para que nenhum

dos Seus pereça, mas que todos cheguem ao arrependimento (2Pe 3.8,9).

Mas, o que as Escrituras Sagradas querem nos

ensinar através dessas várias declarações a respeito

do intervalo entre as duas vindas de Cristo, é que as

duas estão intimamente ligadas uma à outra. A obra

que o Pai incumbiu Cristo de realizar é unam só obra;

e essa obra se estende a todas as épocas e

compreende toda a história da humanidade. Ela

começou a ser realizada na eternidade, teve sua

continuação no tempo e será concluída na

eternidade. O breve período no qual Cristo viveu

sobre a terra é uma pequena porção dos tempos

sobre os quais Ele foi ungido como Senhor e Rei.

Aquilo que Ele alcançou durante o período de Sua

paixão e morte, Ele aplica à Igreja através de Sua

Palavra e Espírito desde o tempo de Sua ascensão e

essa aplicação será concluída em Sua segunda

vinda. Além disso, Ele ascendeu aos céus para ser o

intercessor daqueles que lhe pertencem, para estar

constantemente em íntima relação com eles e

sempre estar cada vez mais perto deles. O intervalo

existente entre as duas vindas de Cristo é um

constante retorno de Cristo ao mundo.

Assim como nos dias do Velho Testamento Ele teve Sua vinda em carne anunciada por todos os tipos de manifestações e ativi

dades, assim também Ele agora está ocupado, preparando Seu retorno para julgar e dividir – um julgamento e uma divisão que Ele traz à existência por Sua Palavra e por Seu Espírito no mundo dos homens. Esse é um retorno contínuo de Cristo, do qual os crentes do Novo Testamento são testemunhas. Eles vêem o Filho do Homem assentado à direita da majestade de Deus e vindo sobre as nuvens dos céus (Mt 26.64). Eles vêem Sua vinda na pregação de Sua

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Palavra e na operação de Seu Espírito (Jo 14.18-20; 16.16,19 ss.). Não é verdade dizer que Cristo veio uma vez à terra, mas que está continuamente vindo à terra e aqui se estabelecerá (Hb 10.37; Ap 1.4,8).

Por essas razões os crentes do Novo Testamento aguardam pacientemente o retorno de Cristo. Assim como os santos do Velho Testamento, os crentes do Novo Testamento pensam e falam sobre seu fim pessoal na morte. Todas as suas expectativas foram direcionadas para o retorno de Cristo e a plenitude do reino de Deus. Eles estavam plenamente conscientes de que estavam vivendo os últimos dias, o dia do cum-primento, o dia que a profecia do Velho Testamento tinha apresentado como o grande e glorioso dia do Senhor e que se estende da ascensão ao retorno de Cristo. A aproximação de Seu retorno,

como eles entendiam, é uma outra expressão da absoluta certeza com a qual eles o esperavam. Sua forte fé é a raiz de sua esperança inabalável.

Em Sua jornada com Seus discípulos, Jesus falou muito sobre a fé e o amor e pouco sobre a esperança, pois o que mais lhe interessava nessa ocasião era fixar a atenção dos discípulos em Sua pessoa e obra. Porém, Ele fez muitas promessas a respeito de Sua ressurreição e ascensão, o envio do Espírito Santo e Seu retomo em glória. Através da paixão e morte de Cristo os discípulos ficaram por algum tempo abatidos e desapontados em suas expectativas, mas através de Sua ressurreição, eles renasceram para uma viva esperança (1Pe 1.3,21). O próprio Cristo era agora a esperança dos discípulos, o objeto e o conteúdo de suas expectativas (1Tm 1.1), pois quando Ele ressurgiu, Ele cumpriu Suas promessas e concedeu aos Seus confessores a perfeita salvação e a vida eterna. Por isso eles vivem em esperança, aguardam continuamente a bendita esperança e a manifestação da glória do nosso grande Deus e Salvador Cristo Jesus (TI 2.13). E essa expectativa é compartilhada por toda a criação, que geme, sujeita à vaidade; ela espera ser libertada da escravidão do cativeiro da corrupção, para a li-berdade da glória dos filhosde Deus (Riu 8.21).

Embora os crentes do Novo Testamento tenham virtualmente toda a sua atenção fixa no retomo de Cristo, são dados certos detalhes no Novo Testamento que lançam luz sobre o status da morte nesse contexto. De acordo com a Igreja Romana, comparativamente, poucos santos e mártires podem, por suas boas obras realizadas sobre a terra, imediatamente depois de sua morte, entrar no céu. A grande maioria dos crentes, de acordo com esse ponto de vista, deve, depois da morte, passar um tempo mais longo ou mais curto no purgatório para pagar pelas penalidades merecidas por seus pecados e que em sua vida terrena eles não puderam satisfazer.

Portanto, o purgatório não é um lugar de arrependimento, no qual aos incrédulos e aos ímpios ainda é dada a oportunidade de salvação, pois, os incrédulos e os ímpios vão diretamente para o inferno. Esse não é realmente um lugar de purgação e purificação, pois, os crentes que vão para lá não podem alcançar qualquer mérito. Esse é apenas um local de punição, onde os crentes, que por um lado são abençoados e por outro lado são pobres almas, são longamente punidos por fogo material na medida que possa satisfazer

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suas penalidades temporais. Portanto, em adição à Igreja mili-tante sobre a terra e à Igreja triunfante no céu, há, segundo Roma, uma Igreja que sofre passivamente no purgatório. Os crentes que estão no purgatório podem ser ajudados através de orações, boas obras, abstinência e especialmente através do oferecimento de missas. E como aqueles que estão no purgatório estão em um nível mais elevado que aqueles que estão vivos e estão inclusive mais próximos da salvação, eles podem, como os anjos e os santos nos céus, ser invocados para prestar ajuda e assistência.

Como havia muitos que não compreendiam adequadamente essa confissão da Igreja Romana, ela foi extravagantemente usada para defender uma contínua purificação dos crentes depois da morte. Essas pessoas não conseguiam entender que os crentes que morriam eram imperfeitos e inclinados a todos os tipos de mal e que por isso imediatamente depois da morte eram libertos de todo pecado e conduzidos para o céu. E outros foram ainda muito mais longe. Eles aplicaram a noção de evolução à vida além-túmulo e apresentaram a questão dizendo que todas as pessoas, sem distinção, continuam a progredir e a desenvolver do outro lado da sepultura aquilo que tinha sido começado na terra, e talvez até o que tinha sido começado em vi-das anteriores. Dessa forma, amorte não é vista como um rompimento da vida ou como uma punição pelo pecado, mas simplesmente como a transição de um tipo de existência para outro, semelhante à transição que ocorre de uma lagarta para uma borbo-leta. E essa evolução continua até que tudo seja perfeito de novo, ou volte ao caos.

Mas a Escritura nada sabe sobre esses ensinos desconfortáveis. Ela afirma que esse mundo é apenas um local de arrependimento e purificação. Ela nada diz sobre qualquer tipo de pregação do Evangelho do outro lado da sepultura, nem em Mateus 12.32, nem em 1 Pedro 3.18-22, nem em 1 Pedro 4.6. A morte, como a penalidade pelo pecado, representa um rompimento total com a vida terrena e no juizo final o estado intermediário não é levado em consideração. O juízo se refere somente ao que aconteceu no corpo, seja para o bem, seja para o mal (2Co 5.10). Mas para aqueles que crêem em Cristo, tanto a morte quanto o juízo perderam seu terror, pois, na comunhão com Deus, através de nosso Senhor Jesus Cristo, a morte não é mais morte. A Aliança que Deus estabeleceu com Seu povo lhes garante a perfeita salvação e a vida eterna. Deus não é Deus de mortos, mas de vivos (Mt 22.32). Quem quer que viva e creia nele não morrerá eternamente (Jo11.25,26) e não será julgado, pois, passou da morte para a vida (Jo 5.24).

Portanto, as almas dos crentes, depois da morte, são imediatamente conduzidas a Cristo nos céus. Se a justificação e a santificação fossem obras do homem, que ele realiza através de sua própria força ou através da força de uma Graça sobrenatural derramada sobre ele, então isso não poderia ser entendido, isto é, não poderia ser entendido como ele poderia realizar essa grande obra na curta duração dessa vida. É por isso que aqueles que crêem que a justificação e a santificação são obras humanas, crêem também no purgatório, em uma contínua purificação depois dessa vida. Mas Cristo cumpriu todas as coisas em favor de Seu povo. Ele não somente sofreu a penalidade por eles, e não somente conquistou o pleno perdão de pecados

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em favor deles, mas Ele também cumpriu a lei no lugar de Seu povo e deu-lhes; a vida eterna. Aquele que crê é imediatamente liberto da ira de Deus e herda a vida eterna. Nesse exato momento, ele está pronto para o céu. Se ele permanecer na terra, não é porque ele ainda precise se aperfeiçoar e atra-vés das boas obras conquistar a vida eterna, mas para que ande nas boas obras que o Senhor de antemão preparou (Fp 1.24; Ef 2.10). Nem mesmo o sofrimentoque essa pessoa ainda enfrentará sobre a terra pode ser visto como uma punição, mas como um castigo paternal realizado com vistas ao seu próprio proveito (Ub 123- 11). Eu estou preenchendo o que resta das aflições de Cristo, na minha carne, a favor do Seu corpo, que é a Igreja, disse Paulo (C] 1.24).

Portanto, sobre a base da perfeita obra de Cristo, os céus se abrem para os crentes imediatamente depois da morte. Eles não têm que sofrer penalidades por seus pecados em qualquer purgatório, pois, Cristo cumpriu e alcançou tudo por eles. De acordo com a narrativa de Lucas 16 o pobre Lázaro, imediatamente depois de sua morte, foi levado pelos anjos ao seio de Abraão para que lá, na companhia de Abraão, desfrutasse de eterna bem-aventurança. Quando Cristo morreu sobre a cruz, Ele encomendou Seu pró-prio espírito às mãos de Seu Pai e prometeu ao malfeitor que ainda naquele dia ele estaria com Cristo no paraíso (Lc 23.43, 46). Estevão, o primeiro mártir cristão, enquanto estava sendo apedrejado, clamou ao Senhor Jesus e lhe pediu que recebesse seu espírito (At 7.59). Paulo estava certo de que quando ele deixasse seu corpo estaria com Jesus e moraria com o Senhor (2Co 5.8; Fp 1.23). Segundo Apocalipse 6.8 e 79, as almas dos mártires e de todos os salvosnos céus estão presentes diante do trono de Deus e diante do Cordeiro, vestidas com longas vestes brancas e com ramos de palmeiras em suas mãos. Bem-aventurados são os mortos que, desde agora, morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, para que descansem das suas fadigas, pois as suas obras os acompanham (Ap 14.13; Hb 4.9); e eles vivem e reinam com Cristo até que Ele retome (Ap 20.4,6).

Apesar dos crentes depois de sua morte, imediatamente, se tomarem participantes das bên-çãos celestiais, sua condição ainda é, de certa forma, preliminar e imperfeita, pois, seus corpos ainda estão na sepultura e ainda estão sujeitos à corrupção. A alma e o corpo ainda estão separados e não desfrutam das bênçãos celestiais unidos um ao outro. Portanto, considerados em sua totalidade, os crentes, nesse período intermediário, ainda se encontram no estado de morte, assim como aconteceu com Jesus depois de Sua morte e antes de Sua ressurreição, embora Sua alma estivesse no paraíso. Os crentes, nesse estado, são considerados como aqueles que dormem em Cristo

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ou aqueles que morreram em Cristo'" e sua morte é chamada de

sono (Jo 11.11; lCo 11.30) e como corrupção (Aí 13.36). Tudo isso nos mostra que o estado intermediário ainda não é o estado final. Sendo Cristo o perfeito Salvador, Ele não se contenta com a redenção da alma, mas efetua também a redenção do corpo. 0 reino de Deus, portanto, estará completo somente quando Ele subjugar toda autoridade e poder, colocar Seus inimigos sob Seus pés e conquistar o último inimigo, que é a morte (1Co 24-26).

Logo, tanto no céu quanto sobre a terra, há uma espera pelo futuro no qual o último inimigo será vencido e a perfeita vitória será alcançada. As almas dos mártires nos céus clamam em altas vozes: "Até quando, o Soberano Senhor, santo e verdadeiro, não julgas, nem vingas o nosso sangue dos que habitam sobre a terra?" (Ap 6.10), 0 Espírito e a noiva dizem: Vem, Senhor Jesus! (Ap 22.17). E não apenas isso, mas o próprio Cristo se prepara para a Sua vinda. Na casa de Seu Pai Ele prepara um lugar para aqueles que lhe pertencem, e quando esse lugar estiver preparado, Ele voltará e receberá Seu povo, para onde Ele está estejam também aqueles que lhe pertencem (jo 14. 2,3). E sobre a terra Ele reina como um rei, por Sua Graça na Igreja, por Seu poder no mundo, até que

ele tenha reunido todos os eleitose vencido todos os Seus inimigos (1Co 15.25). Ele não descansa, mas trabalha sempre e em Sua obra Ele expressa: Eis que venho sem demora e comigo está o galardão que tenho para retribuir a cada um segundo as suas obras (Ap 22.12,20).

A história do mundo entre a ascensão de Jesus e Sua vinda é um contínuo retorno de Cristo, uma progressiva reunião de Sua Igreja sobre a terra e uma contínua sujeição de Seus inimigos. Geralmente nós não vemos isso, não entendemos essa realidade, mas Cristo é o Senhor do tempo,o rei de todas as épocas; Ele é o Alfa e o Ôrnega, o começo e o fim,

o primeiro e o último (Ap 22.13). 0 Pai amou o Filho e criou o mundo nele, e por isso o Filho escolheu a Igreja, todos aqueles que lhe foram dados, para participar de Sua glória (jo 17.24).

Portanto, a plenitude do reino de Deus não é o resultado de um desenvolvimento gradual da natureza, nem um produto do esforço humano, pois, embora o reino dos céus seja como uma semente de mostarda, como o fermentoecomo um grão de trigo, ele se desenvolve sem o conhecimento e sem a contribuição do homem (Me 4.27). Paulo plantou e Apelo re-

gou, mas o crescimento veio de Deus (lCo 3.6). A Escritura desconhece uma natureza auto-suficiente e uma autonomia no homem; sempre é Deus quem conserva o mundo e faz a história. E quando chegar o momento, Ele intervirá na história de forma extraordinária e pelo retorno de Cristo transferirá a história para a eternidade. Será um terrível evento quando Cristo, enviado pelo

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Pai (At 3.20; 1`Ern 6.15), vier sobre as nuvens do céu. Assim como em Sua ascensão Ele foi elevado às alturas, em Seu retorno Ele virá das alturas para a terra (Fp 3.20). Em Sua ascensão uma nuvem o encobriu da vista de Seus discípulos e sobre as nuvens dos céus ele retornará à terra (Mt 24.30; Ap 1.7). Foi na forma de um servo que Ele veio à terra pela primeira vez, mas na segunda vez Ele virá com grande poder e glória (Mt 24.30), como o Rei dos reis e Senhor do senhores, montado sobre um cavalo branco, uma espada sairá de Sua boca e Ele estará rodeado pelos anjos e pelos santos"'. Ele será anunciado pela voz de um arcanjo e pela trombeta dos anjos'''.

Para nos dar uma noção da majestade e da glória na qual Cristo virá, a Escritura faz uso de imagens e palavras que nós podemos compreender. E geralmenteé difícil para nós fazer =a distinção entre a realidade e a representação que nos é dada sobre ela. Mas uma coisa é certa: Cristo está voltando, o mesmo Cristo que nasceu de Maria, que padeceu sob Poncio Pilatos, que foi morto, se-pultado e que ascendeu aos céus; e que retomará em glória para julgar os vivos e os mortos. Aquele que desceu é o mesmo que subiu acima de todos os céus, para encher todas as coisas (Ef 4.10). Aquele que se esvaziou e se humilhou é o mesmo que foi exaltado sobremaneira por Deus e que recebeu um nome acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai (Fp 2.6-11). Aquele que foi sacrifi-cado para tirar os pecados de muitos, aparecerá segunda vez, sem pecado, aos que o aguardam para a salvação (Hb 9.28). Esse Maranata é o conforto da Igreja. Aquele que amou a Igreja desde a eternidade e se entregou à morte por causa dela, retomará para torná-la para si mesmo e fazer com que ela desfrute de Sua glória para sempre. 0 Salvador e Juiz da Igreja são uma e a mesma pessoa.

Esse conforto dos crentes, porém, é modificado de forma notável pelos assim chamados Quiliastas, que são os proponentes da doutrina pré-milenista. Eles

fazem distinção entre o primeiro

eo segundo retornos de Cristo. No primeiro retorno, Cristo derrotará as forças anticristãs, amarrará Satanás, levantará da morte os crentes, reunirá a Igreja, particularmente a Igreja de um Israel penitente e através dessa Igreja dominará sobre todas as nações. Depois que esse reino existir por algum tempo e Satanás for novamente solto, Cristo voltará novamente para levantar da morte todas as pessoas, pronunciar o juizo sobre elas e estabelecer o perfeito reino de Deus na nova terra.

Por essa distinção entre os dois retornos de Cristo, o fim da história do mundo é adiado por um bom tempo. Quando Cristo retomar sobre as nuvens dos céus,ofim dos tempos ainda não terá chegado. 0 que terá ocorrido é a instalação de um período preliminar do senhorio de Cristo, com suas respectivas bênçãos espirituais e materiais, um período sobreoqual os próprios Quiliastas podem, somente com dificuldade, ter uma idéia definida e com relação a sua duração, há uma grande diferença de opinião entre eles.

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0 erro fundamental pelo qual os Quiliastas se afastam da verdade está em uma concepção errada da relação entre o Velho e o Novo Testamento. A escolha de Abraão e de sua semente não temopropósito de colocar o povo de Israel em algum tempo no futuro,

ou mesmo no reino perfeito dos céus, à frente de todas as nações, mas o de abençoar todas as nações da terra naquele que é o verdadeiro Descendente de Abraão`". Israel não foi escolhido às expensas da humanidade, mas para o benefício da humanidade. Quando Cristo veio ao mundo, todas as promessas do Velho Testamento começaram a ser cumpridas em Sua Igreja. Essas promessas não estão durante toda a dispensação do Novo Testamento simplesmente aguardando estaticamente o seu cumprimento, mas estão sendo constantemente cumpridas desde a primeira vinda de Cristo, até o Seu retomo. Não somente Cristo é, em Sua pessoa, o verdadeiro profeta, sacerdote e rei, o verdadeiro Servo do Senhor e não somente Seu sacrifício é a verdadeira oferta pelo pecado, a verdadeira circuncisão, a verdadeira Pás-coas", mas também Sua Igreja é a verdadeira semente de Abraão, o verdadeiro Israel, o verdadeiro povo de Deus, o verdadeiro templo. Todas as bênçãos de Abraão e todas as promessas do Velho Testamento pertencem à Igreja em Cristo e no decorrer dos séculos lhe são dadass".

Mas, exatamente da mesma forma como a vida de Cristo pode

ser separada em estado de humilhação e estado de exaltação, assim também Sua Igreja, e todo crente em particular, podem entrar no reino dos céus somente através do sofrimento. Não há um sofrimento separado para a Igreja no purgatório, como afirmam os católicos, mas a Igreja sofredora é, ao mesmo tempo, a Igreja militante aqui sobre a terra. 0 Novo Testamento abre, para a Igreja de Cristo, a perspectiva de que ela, ainda nessa dispensação, desfrutará do poder e do senhorio de Cristo. Por outro lado, o discípulo não é maior que seu mestre, nem o servo é maior que seu senhor. Se perseguiram Jesus, perseguirão também Seus seguidores (Jo 15.19,20). No mundo tereis aflições (Jo 16.33). E somente no mundo por vir eles receberão vida eterna (Mc 10.30), pois, aqueles que sofrem com Cristo, serão também glorificados com Ele (Rm 8.17). De fato, o Novo Testamento repetidamente expressa o pensamento de que até o fim dos tempos a maldade aumentará e a apostasia se tornará implacáveis". 0 que precede o dia de Cristo é a grande apostasia, a revelação do homem da iniqüidade, o anticristo (2Ts 2.3 ss.); esse anticristo é verdadeiro e será precedido por muitos falsos profetas e falsos cristos"', mas, no fim, ele mesmo aparecerá e concentrará todo o seu poder em um reino mundial (a besta que emerge do mar ou do abismo em Apocalipse 11.7; 111-10), que recebe suporte da falsa religião (a besta que emerge da terra em Apocalipse 13.11-18), estabelecerá seu trono na Babilônia (Ap, 17 e 18) e a partir desse ponto fará seu último e desesperado ataque contra Cristo e Seu reino.

Mas, por Sua aparição gloriosa, (Ap 19.11-16) Cristo colocará um fim em todo o poder da besta que emerge do mar e da besta que emerge da terra (Ap 19.20) e também derrotará Satanás. Esse últi-mo evento, todavia, tem dois aspectos. Primeiro,

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Satanás será aprisionado (Ap 20.1-3; 12.7-11); depois ele será solto para seduzir as nações que há nos quatro cantos da terra (Ap 20.7-10). Enquanto isso, os crentes que permaneceram, fiéis ao testemunho de Cristo e à Palavra de Deus, embora estejam mortos, viverão novamente e reinarão com Cristo no céu como reis durante mil anos (um período simbolicamente representado como mil anos: Apocalipse 20.3,4,6,7), durante os quais Satanás será tirado das nações entre as quais a Igreja se espalhará e durante os quais Sata

nas estará ocupado organizando um novo poder contra o reino de Cristo no meio dos povos pagãos"'. A primeira ressurreição consiste em viver e reinar com Cristo; os outros mortos, que seguiram a besta e sua imagem, não vivem nem reinam mas os crentes vivem e reinam, e não temem a segunda morte, a punição do inferno; eles já são sacerdotes de Deus e de Cristo (Ap 20.6) e depois da ressurreição e do julgamento do mundo, eles serão ad-mitidos como cidadãos da Nova Jerusalém.

A ressurreição dos mortos acontecerá depois da volta de Cristo. Apesar dessa ressurreição dos mortos ser também de forma geral atribuída a Deus (ICo 6.14; 2Co 1.9), é, contudo, mais especi-ficamente a obra do Filho, a quem o Pai concedeu ter vida em Si mesmo (Jo 5.26). 0 Filho é a ressurreição e a vida (jo 11.25) recebeu a autoridade pela voz de Sua boca para levantar todos os mortos do sepulcro (Jo 5.28,29). Tudo isso claramente ensina, aqui – assim como em outras partes "3, que haverá uma ressurreição de todos os homens, de injustos e justos.

Contudo, há uma grande di-

ferença entre essas duas. A ressurreição dos injustos é uma evidência do poder e da justiça de Jesus Cristo; a ressurreição dos justos é uma evidência de Sua misericórdia e de Sua Graça. A primeira consiste somente em uma nova união entre a alma e o corpo, e acontecerá no juizo (Jo 5.29), mas

· segunda é uma ressurreição para· vida, uma transformação completa do homem, uma renovação da alma e do corpo na comunhão e através de Jesus Cristos". Daí nós não podemos inferir que as duas ressurreições serão realizadas em momentos diferentes, que a ressurreição dos justos precederá, por um longo ou breve tempo, a ressurreição dos ímpios, mas podemos inferir que a natureza e

o caráter de uma diferem grandemente da natureza e do caráter da outra. Somente a primeira é uma ressurreição abençoada e tem sua causa na ressurreição de Cristo; Cristo é as primícias, o primogénito dos mortos; depois os que são de Cristo, na Sua vinda (lCo 15.20-23).

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Nessa ressurreição a unidade da pessoa, com relação à alma

eao corpo, é preservada. Como isso será possível depois de terríveis catástrofes de morte, nós não sabemos. Por isso é que muitos rejeitam a ressurreição do corpo e afirmam que depois da morte a

alma entra em outro corpo, seja de animal seja de ser humano, seja um corpo mais desenvolvido, seja um corpo mais atrasado. Mas, ao fazer isso, as pessoas esquecem que a preservação da unidade da alma , mesmo que seja de uma outra forma, no fundo encontra as mesmas e sérias dificuldades. Por-tanto, muitos ensinam a imortalidade da alma somente no sentido de que o espírito humano continua vivo, mas sem qualquer preservação da unidade de consciência. Mas dessa forma a imortalidade se perde, pois, se a auto cons-ciência e a memória são eliminadas na morte, a pessoa que vive não é mais a mesma que era antes, durante sua vida na terra.

Contudo, essa auto consciência do ser humano inclui tanto a posse de um corpo quanto a posse de uma alma. 0 corpo não é uma prisão do espírito, mas pertence à essência do homem. É por isso que ele é redimido por Cristo juntamente com a alma. Todo o ser humano foi criado à imagem de Deus e todo o ser humano foi corrompido pelo pecado; portanto, o ser humano, em sua totalidade, é redimido do pecado e da morte por Cristo, é recriado conforme a imagem de Deus e é in-troduzido em Seu reino. Mas, o corpo que os crentes recebem na ressurreição corresponde ao cor-

po terreno, não em sua forma externa, em suas características incidentais ou em quantidade material, mas em essência. Esse não é um corpo natural, mas é um corpo físico. Ele está acima da vida sexual (Mt 22.30), acima das ne-cessidades de comida e bebida (ICo 6.13), é imortal, incorruptível, espiritual, glorificado (lCo 15.42-44) e é conformado ao corpo de Cristo depois de Sua ressurreição (Fp 3.21).

A ressurreição é seguida pelo julgamento. Desde o começo, desde que Deus estabeleceu a inimizade, há uma grande divisão entre a semente da mulher e a semente da serpente (Gn 3.15). No Velho Testamento essa divisão pode ser vista entre Sete e Caim, entre Sem e Jafé, Israel e as demais nações e, em Israel, entre os filhos da promessa e os filhos da carne. Quando Cristo veio à terra Ele confirmou e enfatizou essa distinção, embora Sua primeira vinda não tivesse o propósito de conde-nar, mas de salvar o mundo lo 3.17), Por Sua Palavra e por Sua pessoa ele trouxe julgamento e uma separação entre os homens (To 3.19-21). Esse julgamento continua a ser feito no presente e cul-minará no último julgamento. Há, de fato, um

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julgamento que acontece através da história de todos

os povos, gerações, famílias e pessoas. Se os lugares secretos do coração do homem fossem conhecidos por nós, poderíamos ser até mesmo mais profundamente convencidos disso. Contudo, a história do mundo não é o julgamento final. Muita iniqüidade continua sem punição, muita bondade dei-xa de ser recompensada, e nossa consciência não pode ficar satisfeita com a presente dispensação dessa forma. A cabeça e o coração da humanidade, a razão e a consciência, a filosofia e a religião, enfim, toda a história do mundo clama por um último, justo e definitivojulgamento. De acordo com o testemunho da Escritura, é para esse julgamento que nós estamos caminhando. É ordenado ao homem morrer uma vez, vindo depois disso o juizo (Hb 9.27). Apesar de somente Deus ser o Legislador e o juiz de todos os homens"', o juizo final é mais especificamente conduzido por Cristo, a quem o Pai delegou autoridade para efetuá-lo porque ele é o Filho do Hornern"'. 0 julgamento de vivos e mortos é a finalização de Sua obra como Mediador, o último passo em Sua exaltação. Desse julgamento se tornará manifesto que Ele realizou plenamente todas as coisas que o Pai lhe confiou para que Ele as realizas-

se, que Ele colocou todos os Seus inimigos debaixo dos Seus pés e que Ele, perfeita e eternamente, redimiu toda a Sua Igreja.

Mas quando Cristo começar a julgar, nós sabemos que tipo de julgamento será esse: misericórdia e Graça e ao mesmo tempo perfeita justiça. Ele conhece a natureza do homem e tudo o que há nela; Ele conhece os lugares secretos do coração e pode detectar nele todo mal e corrupção, mas Ele vê também o menor começo de fé e de amor que estiver presente ali. Ele não julga de acordo com a aparência, nem de acordo com pessoas, mas de acordo com a verdade e com a justiça. Usando a lei e o Evangelho como norma, Ele julgará as obras do homem (Mt 25.35 ss.), as palavras do homem (Mt 12.36) e os pensamentos do homem (Rm 2.16; lCo 4.5), pois nada permanecerá escondido: tudo será revelado (Mt 6.4; 10.26). Para todo aquele que diz junta-mente com Pedro: "Tu sabes todas as coisas, tu sabes que eu te amo", esse julgamento será uma grande fonte de conforto. Mas todos aqueles que rejeitaram Cristo como seu Rei terão motivo para temer e cobrir-se de pavor.

Esse julgamento traz consigo uma perfeita e eterna separação entre homem e homem. Assim como entre o povo de Israel há aqueles que dizem: "0 Senhor não

pode nos ver, nem atenta para nós o Deus de Jacó" e também "qualquer que faz o mal passa por bom aos olhos do Senhor, e desses é que Ele se agrada; onde está o Deus do juízo?" (MI 2.17), há também aqueles que se regozijam com o pensamento de que não haverá juizo final, que a possibilidade de arrependimento continuará aberta depois dessa vida e depois da conclusão da história do mundo e que, dessa forma, a longo prazo, todos os homens e todos os demônios compartilharão da salvação, ou que os ímpios continuarão a se endurecer eternamente no pecado e por isso serão aniquilados.

Porém, tanto a consciência quanto a Escritura contrariam essas vãs imaginações. Na noite do julgamento, dois homens estarão em uma cama, um será levado e o outro será deixado; duas mulheres estarão juntas

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moendo, uma será levada e a outra será deixada; dois estarão no campo, um será levado e outro será deixado (Le 17.34-36). Os ímpios irão para o castigo eterno, mas os justos irão para a vida eterna (Mt 25.46). Há um, céu de glória, mas também há um Geena, um inferno, onde o verme não morre e o fogo não se apaga (Me 9.44), onde há choro e ranger de dentes (Mt 8.12), onde as trevas, a corrupção e a morte reinarão por toda a eternidade (Mt 7.13; 8.12; Ap 21.8). Esse é o lugar onde a ira de Deus será reveladaem todo o seu terror"'.

Contudo, haverá uma grande diferença entre a punição eterna que virá sobre todos os maus – uma diferença de graduação ou grau. 0 pagão que não conhece a lei mosaica, mas que pecou contra a lei que ele conhecia pela natureza, também estará perdido sem a lei (Rm 2.12). A tolerância será maior para Sodoma e Gomorra no dia do juizo do que para Cafarnaum e Jerusalém (Mt 10.15; 11.22,24). Aqueles que conheciam a vontade do Senhor e não se aprontaram, nem fizeram segundo a Sua vontade, serão açoitados com muitos açoites (Lc 12.47). Até mesmo entre os maus espíritos é feita uma distinção entre os graus de maldade (Mt 12.45). Portanto, todos receberão sua recompensa de acordo com o que tiverem feito"'. 0 julgamento, dessa forma, será perfeitamente justo e ninguém será capaz de criticá-lo nem de censurá-lo. Ele será aprovado pela consciência de todas as pessoas. Assim como Cristo, enquanto estava sobre a terra, lutou apenas com armas espirituais, assim também no dia do julgamento Ele, por Sua Palavra e por Seu juizo, se justificará na consciência de todos os homens.

Nós sabemos que Ele é fiel e verdadeiro, Ele julga e peleja com

justiça; sai da Sua boca uma espada afiada, para com ela ferir as nações (Ap 19.11,15,21). Portanto, no fim dos tempos, querendo ou não, todo joelho se dobrará e toda língua confessará que Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai (Fp 2.11). A punição do mal não é o propósito final, e sim, a glória de Deus, que se manifesta na vitória de Cristo sobre todos os Seus inimigos. Desapareceram da terra os pecadores e já não subsistem os perversos. Bendize, o minha alma, ao Senhor! Aleluia!.

Depois do juízo final e do banimento dos ímpios, segue-se a renovação do mundo. As Sagra-das Escrituras geralmente falam sobre isso em uma linguagem muito forte e nos dizem que o céu e a terra desaparecerão como fumaça, a terra

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envelhecerá como ura vestido e que Deus criará novo céu e nova terra"'. Contudo, nós não devemos pensar em uma nova criação. É verdade que o presente céu e terra em sua forma atu-al passarão (ICo 7.31) e que eles, como a antiga terra que foi destruída pelo dilúvio, serão quei-mados e purificados pelo fogo (2Pe 16,7,10). Mas, assim como o próprio homem é recriado por

Cristo e não aniquilado e criado novamente (2Co5.17), assim também o mundo em sua essência será preservado, embora em sua forma seja realizada uma mudança tão grande que ele possa ser chamado de novo céu e de nova terra. 0 mundo em sua totalidade também caminha para o dia de sua grande regeneração (Mt 19.28).

E nessa nova criação Deus estabelecerá Seu reino, pois, Cristo já terá realizado toda a Sua obra como Mediador, Ele reinará para sempre como o Rei que colocou seus inimigos debaixo de Seus pés e que chamou à vida todos aqueles que lhe foram dados pelo Pai. De fato, mesmo depois disso, durante toda a eternidade, Ele continuará sendo o Cabeça da Igreja, aquele que dá à Igreja a Sua glória e que coloca nela toda a Sua plenitude (Jo 17.24; Ef 1.23). Sua obra de redenção chegou ao fim; Ele estabeleceu definitivamente Seu reino e agora o transfere a Deus Pai para que ele, como Mediador, esteja sujeito Àquele que a si sujeitou todas as coisas, para que Deus possa ser tudo em todos (lCo 15.24,28).

Esse reino compreende o céu e a terra e traz consigo uma grande fartura de bênçãos espirituais e físicas. Não somente o Velho

Testamento, mas também o Novo, ensinam claramente que os santos herdarão a terra (Mt 5.5). Toda a criação um dia será liberta da escravidão da corrupção para a liberdade gloriosa dos filhos de Deus (Rm 8.21). A Jerusalém celestial, a cidade onde Deus mora com Seu povo, retornará à terra (Ap 21.2). E nessa nova Jerusalém, na imediata presença de Deus, não há mais pecado, nem doença, nem morte e glória e incorruptibilidade reinarão também no mundo físicos". Essa também é uma revelação da vida eterna, santa e bem-aventurada, a saber, que todos os cidadãos dessa cidade desfrutarão da comunhão com Deus"'.

Nesse reino também haverá variação e mudança dentro da unidade da comunhão. Lá haverá pequenos e grandes (Ap 22.12), primeiro e último (Mt 20.16). Cada pessoa receberá seu próprio nome e seu próprio lugar (Ap 2.17) de acordo com as obras de fé e amor que tiver feito na terra. Aquele que semeia pouco colhe pouco e o que semeia muito colherá em abundância (2Co 9.6). Haverá recompensa no céu para toda perseguição que os discípulos de Jesus tenham sofrido por causa de Seu nome e para todo ato que tenha sido realizado em Seu nome (Mt 5.12; 6.1,6,18). Na proporção em

que a pessoa tiver sido fiel no uso de seus talentos, ela receberá nesse reino maior ou menor honra (Mt 25.14 ss.). Nem mesmo um copo de água fria que tenha sido dado a um de Seus discípulos não será esquecido no dia do juizo. Ele coroa e recompensa as boas obras que, nEle e através dEle, foram realizadas. Dessa forma todos desfrutarão das mesmas bênçãos, da mesma vida eterna e da mesma comunhão com Deus. Porém, haverá diferença entre os crentes

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com relação a brilho e glória. Na proporção de sua fidelidade e zelo, as igrejas receberão de Seu Senhor e Rei uma diferente coroa (Ap 2-3). Há muitas e muitas mansões na casa do Pai (Jo 14.2).

Por essa diferença de categoria e lugar, a missão e a comunhão dos santos são enriquecidas. Assim como a harmonia de um hinoé realçada pela qualidade das vozes e a beleza da luz é multiplicada na riqueza de suas cores e tons, assim também Cristo nesse dia será glorificado na multidão de Seus santos. Todos os habitantes da Nova Jerusalém contemplarão Sua face e receberão Seu nome sobre suas testas. E todos juntos entoarão o cântico de Moisés diante do trono e o cântico do Cordeiro e cada urn de sua própria forma proclamará as grandes obras de Deus: "Grandes e admiráveis são as tuas obras, Senhor Deus Todo-Poderoso! justos e verdadeiros são os teus caminhos, o Rei das nações! Quem não temerá e não glorificará o teu nome, ó Senhor?" (Ap 153,4).

Dele e por Ele e para Ele são todas as coisas. A Ele, pois, seja a glória para sempre! Amém!