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A CIDADE DE DEUS: Tempo e Histria

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JORNADAS FILOSFICAS(20-22 setembro de 2000)A CIDADE DE DEUS: Tempo e Histria(P. Andr Chimwemwe Mpanda)

S. Agostinho escreveu A Cidade de Deus (De Civitate Dei) entre os anos 413 e 426 (fruto de bem 13 anos de meditao e reflexo!). uma obra que tem at hoje uma forte incidncia na histria da literatura crist. A Cidade de Deus , por si, uma reflexo mais teolgica do que filosfica. Mas a reflexo teolgica que S. Agostinho tenta realar nesta sua grande obra oferece um profundo ensinamento ao pensamento humano, coerente e compatvel, seja no campo teolgico, seja no campo filosfico. Os princpios teolgicos tratados por S. Agostinho na Cidade de Deus so tambm grandes questes que o esprito humano, na sua racionalidade, deve enfrentar enquanto se apresentam como princpios filosficos. O Tempo e a Histria, que so os dois temas ou conceitos que nos interessam neste momento da nossa reflexo, ocupam um lugar de cruzamento dos dois caminhos, nomeadamente, o caminho da teologia e o caminho da filosofia. Isto somente para salientar que os dois no so caminhos paralelos. No se trata, de facto, de um concordismo artificial, que procuraria fazer corresponder dimenses de nveis de realidade completamente diferentes, mas trata-se de dar uma viso fundamental e global s questes existenciais do homem, este homem inserido no tempo-histrico. Portanto, A Cidade de Deus uma leitura teolgico-filosfica do mundo, ou melhor, da histria luz da F Crist.A tica Agostiniana tem um aspecto que podemos chamar tipicamente grego, um carcter eudemonstico (doutrina filosfica segundo a qual a moralidade consiste na procura da felicidade; gr. Eudaimonisms, felicidade). Uma tica que promete a felicidade como finalidade do bem agir humano; mas, para S. Agostinho, esta felicidade encontra-se somente em Deus. S. Agostinho diz que o homem, a criatura racional, foi feito de uma maneira que no pode ser ele mesmo o bem que lhe d a sua prpria felicidade. O ser humano mutvel e insuficiente em si, e pode encontrar a felicidade somente na posse do que maior do que ele mesmo, na posse do imutvel, Deus. Nem a virtude, diz S. Agostinho, pode ser a finalidade que pode dar uma felicidade verdadeira. A procura de Deus , portanto, o desejo da beatitude; por outras palavras, o alcance de Deus beatitude em si (naturalmente, aqui, beatitude deve ser entendida como felicidade). S. Agostinho era muito consciente, a partir da sua prpria experincia e apoiando-se na filosofia de Plotino, do facto que a procura da beatitude a procura de uma amizade duradoura com Deus. Quando Agostinho diz que a felicidade se encontra na posse do eterno e imutvel Deus, ele no fala de uma pura contemplao filosfica de Deus, mas sim de uma comunho amorosa com Deus, um empenho que, para um cristo, se torna possvel s com a graa do mesmo Deus. Portanto, a tica de S. Agostinho essencialmente uma tica fundada no Amor. E, logicamente, procurar a beatitude ou a felicidade significa viver moralmente bem, e viver moralmente bem, para S. Agostinho, quer dizer nada mais do que amar a Deus com todo o teu corao, com toda a tua alma e com toda o tua mente (De moribus ecclesiae Catholicae et de moribus Manichaeorum, 1, 25, 46).A vontade humana, todavia, livre, e esta livre vontade sujeita obrigao moral. Os filsofos gregos tinham uma concepo da felicidade como finalidade da conduta humana, e no podemos afirmar que eles no tinham nenhuma noo de obrigao; mas S. Agostinho, com a sua concepo teolgica mais clara de Deus e do prprio homem, conseguiu dar obrigao moral uma base mais estvel com fundamentos metafsicos, uma coisa que os filsofos gregos no conseguiram fazer.A base necessria da obrigao moral para S. Agostinho a liberdade. A vontade humana livre de virar as suas costas ao imutvel Bem e de aderir aos bens mutveis deste mundo, procurando-os sem nenhuma referncia a Deus. Portanto, a vontade humana livre de aceitar ou recusar Deus. Se a perfeio moral consiste em amar a Deus, em orientar a vontade e todas as outras foras humanas para Deus, o mal, ento, segundo S. Agostinho, consiste em orientar a vontade humana para longe de Deus.O mal, portanto, diz S. Agostinho, no podia ser criado por Deus porque uma negao do prprio Deus. Por outras palavras, o mal no causado pelo Livre Criador mas pelo livre criado. O mal no pode ser chamado uma coisa, porque falar duma coisa quer dizer uma realidade positiva. Ento o que o mal? O mal, segundo S. Agostinho, tudo o que tende a sair da essncia para o no ser..., o mal tende a fazer com que aquilo que passe a no ser. (De moribus eccl., 2, 2,2.).A doutrina do mal como privao do ser no foi uma doutrina formulada por S. Agostinho mas foi uma doutrina de Plotino e nela S. Agostinho encontrou a sua resposta contra a doutrina Maniquesta da existncia do mal. Se o mal uma privao e deficincia e no uma realidade positiva, ento no existe uma opo de atribuir a existncia do mal moral ao Bom Criador ou inventar um princpio metafsico que pode ser responsvel pelo mal. Esta doutrina filosfica encontra os seus aderentes at na poca moderna, como foi, por exemplo, o caso de Leibniz.

Agora, depois de ter feito esta breve introduo, vamos a ver o que S. Agostinho entende quando fala da Cidade de Deus. Portanto, se o princpio fundamental da moral o amor a Deus e a essncia do mal o rejeitar a Deus, segue logicamente que a humanidade pode ser dividida em dois grandes grupos; os que amam Deus e optam para Ele em vez de optarem por si mesmos e os que se preferem a si mesmos negando a Deus. Os dois grupos so fruto duma escolha livre de cada homem. S. Agostinho v a histria da humanidade como uma histria de dialctica entre estes dois princpios; um que constri a Cidade de Jerusalm, Cidade de Deus, e o outro grupo que constri a Cidade de Babilnia. S. Agostinho diz que cada um deve perguntar-se sobre aquilo que ele ama; e da sua resposta ele vai saber de qual cidade cidado (Enarrationes in Psalmos, 64, 2). Existem dois tipos de amor, continua S. Agostinho, e estes dois tipos de amor distinguem as duas cidades estabelecidas dentro da raa humana (De Genesi ad litteram, 11, 15, 20). So duas cidades atravs das quais a histria se encaminha.Para o cristo, diz S. Agostinho, a histria tem una grande importncia porque na historia que o homem foi criado, e dentro da mesma histria que ele caiu no pecado e ainda na histria ele salvo. O conhecimento dos factos histricos do mundo pode ser um conhecimento natural mas os princpios pelos quais estes factos so interpretados devem ser orientados pela luz do Eterno.Toda a perspectiva contempornea da evoluo progressiva da histria e de um devir criador no , de facto, uma renovao ou uma mudana na tradio do pensamento cristo, que, infelizmente, no poucas vezes, foi acusado de um certo imobilismo. Mas, ao contrrio, a prpria ideia de um verdadeiro progresso duma historia orientada, quer dizer uma histria no casual mas com uma finalidade, fundamentalmente ligada Revelao judeo-crist. A partir da histria de Israel, a histria de amor entre Deus e o seu povo; uma histria com o seu incio e com o seu cumprimento, esta histria que deve inspirar todas as reflexes ulteriores sobre o sentido do devir histrico. Esta concepo da histria radicalmente contraria concepo greco-clssica do devir-histrico que era considerado pelos gregos como meramente uma iluso. Para eles, a histria desenvolvia-se no tempo cclico e o Eterno Retorno impunha-se como a nica lei sobre qualquer mudana deste mundo (La destine humaine... cfr. Bibliografia). Assim, a f crist, com a ajuda das categorias gregas que serviram para descrever um mundo eterno, fundamentalmente imutvel, esclareceu a questo do devir como histria que tem a sua origem (arch) e a sua finalidade (tlos). Portanto, a admirvel sntese entre a cultura grega antiga e a f crist surge no Ocidente, particularmente nesta grande obra de S. Agostinho, A Cidade de Deus, embora a queda da cidade de Roma em 410 fosse atribuda responsabilidade da fraqueza poltica do Deus dos cristos (Intr., Cidade de Deus, p. 17). Agora, somente no fim da histria que as duas cidades sero perfeitamente separadas, porque a histria emprica resulta como um entrecho inextricvel das duas (cidades). De facto, as duas cidades so, neste sculo, misturadas e embrulhadas uma na outra, at ao dia em que a justia as vai separr. (Cidade de Deus, 1, XXXV).Agora, a este ponto, oportuno introduzir a noo do Tempo no pensamento de S. Agostinho, sempre com uma referncia obrigatria sua obra, Cidade de Deus. O que o Tempo para S. Agostinho?S. Agostinho comea o seu tratado sobre o tempo com a clebre passagem nas suas Confisses. Ele diz: O que , por conseguinte, o tempo? Se ningum mo pergunta, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, j no sei. Porm, atrevo-me a declarar, sem receio de contestao, que se nada sobrevivesse, no haveria tempo futuro, e se agora nada houvesse, no existiria o tempo presente. De que modo, ento, existem aqueles dois tempos - o passado e o futuro -, se o passado j no existe e o futuro ainda no veio? Quanto ao presente, se fosse sempre presente, e no passasse para o pretrito (passado), j no seria tempo mas eternidade (Conf. X1, 14). Isto quer dizer que a realidade do tempo depende da realidade das suas partes. Mas, como S. Agostinho acaba de dizer, o passado no real porque no existe mais, o futuro no real porque ainda no existe: o presente, que s de algum modo real, mas s existe na medida em que tende a no existir. O presente alm disso, um instante indivisvel, que no tem extenso, no pode ser medido, portanto, no pode constituir a realidade do tempo. Por conseguinte, o tempo no real, a no ser, na medida em que existe na alma a lembrana do passado, na conscincia do presente e na esperana do futuro. Nada mais o tempo se no uma distenso da alma, entre o passado que j no real, mas existe na memria e o futuro que ainda no real, mas existe na espera, atravs do presente que carece de extenso na realidade, mas fica na conscincia. Na realidade, o tempo fora da alma no existe se no, mediante o instante indivisvel do presente. O devir , ou ainda mais propriamente, o devir contnuo, isto , o movimento sobre o qual se funda o tempo. Ento, podemos dizer que o tempo real no enquanto , mas enquanto devir. O tempo real, to real quanto o devir. S. Agostinho reconhece a dificuldade de conceber o tempo enquanto presente porque o tempo deve passar necessariamente para o passado para que no seja eternidade; e a causa da sua existncia a mesma causa pela qual deixa de existir. Mas, de facto, a dialctica das duas cidades que crescem juntamente dentro da histria encontra a sua ressonncia nesta ambivalncia do tempo. O tempo ambivalente porque ele (o tempo) contemporaneamente o tempo da Cidade terrestre, a Cidade de Babilnia, condenada morte, mas tambm o tempo dado para a edificao da Cidade de Deus, enquanto esta Cidade de Deus continua a peregrinar neste mundo, dentro da histria. Tempo da construo e tempo da degradao so, portanto, indissociveis na histria emprica. O apelativo mais comum cidade terrena ou cidade deste mundo, no deve enganar: no se trata, de facto, de uma cidade visvel, emprica, que resulta do entrecho das duas cidades, mas trata-se de tudo o que, nela (nesta cidade terrena), se deixa submisso da lei natural da corrupo; esta lei est escrita no corao do orgulho.No antagonismo das duas cidades, percebe-se logo a relao fundamental que une o tempo com a eternidade. Aqui o tempo no de modo algum a eterna repetio de si mesmo; mas, ao contrario, o tempo um devir irreversvel que tem a seu arch e o seu tlos (Le hasard et la ncessit...cfr. Bibliografia). um tempo real (e no uma iluso, como diziam os gregos), uma histria real, feita de progresso e de regresso, de construo e de degradao, de graa e de pecado. Mas nada predestinado nesta histria, ao contrrio, a liberdade joga em qualquer modo um papel primrio. Em cada momento desta histria, existe a possibilidade de abrir-se ou fechar-se aco criadora de Deus. Uma histria que se constri para a eternidade ou colabora com a sua prpria destruio. Este tempo, este devir ou esta histria no pode se fundar em si mesmo, o que precisamente a ambio orgulhosa da Babilnia, condenada sua runa desde a sua origem. Mas ao contrrio, o tempo ou a histria, na sua mltipla manifestao, deve-se fundar na simples Eternidade que o seu princpio e o seu fim. A origem do Tempo e da Histria (arch), a sua manifestao (hods) e seu fim (tlos) residem na Eternidade do Absoluto, neste Deus que se fez um tempo presente na histria de S. Agostinho.

BIBLIOGRAFIA

- AGOSTINHO, A Cidade de Deus: (contra os pagos), parte 1 e 2; Vozes,So Paulo; Federao Agostiniana Brasileira, 1990, (coleco Pensamento Humano)

- ID., Confisses de Santo Agostinho, 12 edio, traduo do original latino por J. Oliveira Santos e A. Ambrsio de Pina; Tilgrfica - Braga, editorial, A.I.- Braga, 1990.

- COPLESTON, F. A History of Philosophy, Image Book, Double day(Book 1, vol. II), London 1985

- FINANCE de, J. , An Ethical Enquiry, P. U. G. , Roma 1991.

-LECREC, M. La destine humaine. Pour un discernement philosophique, Namur, Culture e Vrit, 1993

-MONOD, J. , Le hasard et la ncessit. Essai sur la philosophie naturelle de la biologie moderne. Paris, Seuil, 1970 (213 p.).