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Temas de Direito III

Universidade Federal do Piauí

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Temas de Direito IIIDIREITO CONSTITUCIONAL

DIREITOS HUMANOSCIÊNCIA POLÍTICA

DIREITO ELEITORALDIREITO PENAL

Gestão Primavera Ana Beatriz Silva Ferreira

(Organização)

1ª edição

Teresina - Piauí 2017

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Temas de Direito IIIAna Luísa Melo Nogueira

Ana Teresa Ribeiro da Silveira Andreia Marreiro Barbosa

Augusto César Bezerra ChavesCarolina Pereira Madureira

Catarina Vilna Gomes de Oliveira SantosIago Masciel Vanderlei

Liza Tajra Nery Luana Elainy Rocha Magalhães

Lucineide Barros MedeirosLuzia Eduarda Bezerra Valadares

Marcus Vinícius Carvalho da Silva SousaPedro Rhuan Piauilino Lima

Samille Lima AlvesYago Roberto Lopes Correia Lima

1ª edição

Teresina - Piauí 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ

Reitor: Prof. Dr. José Arimatéia Dantas LopesVice-Reitora: Prof.ª Dr.ª Nadir do Nascimento Nogueira

Superintendente de Comunicação Social: Prof.ª Dr.ª Jacqueline Lima Dourado

CONSELHO EDITORIALRicardo Alaggio Ribeiro (presidente)

Acácio Salvador Veras e SilvaAntonio Fonseca dos Santos Neto

Cláudia Simone de Oliveira AndradeSolimar Oliveira Lima

Teresinha de Jesus Mesquita QueirozViriato Campelo

Editora da Universidade Federal do Piauí - EDUFPICampus Universitário Ministro Petrônio Portella

CEP: 64049-550 - Bairro Ininga - Teresina - PI - BrasilTodos os direitos reservados

Organizador: Ana Beatriz Silva Ferreira (Gestão Primavera)Impressão: Gráfica Universitária da UFPI

Capa: Francicleiton CardosoProjeto Gráfico e Diagramação: Joana D’arc Corrêa Cortez Almeida

Banca ExaminadoraProfª Ms. Christianne Matos de Paiva

Profª Dra. Maria Sueli Rodrigues de SousaProfª Ms. Natasha Karenina de Sousa Rego

Prof. Dr. Samuel Pontes do Nascimento

FICHA CATALOGRÁFICAServiço de Processamento Técnico da Universidade Federal do Piauí

Biblioteca Comunitária Jornalista Carlos Castello Branco

T278 Temas de Direito III / Organizadora, Ana Beatriz Silva Ferreira. – Teresina: EDUFPI, 2017. 181 p.

ISBN 978-85-509-0257-9

1. Direito. 2. Pesquisa. 3. Produção Acadêmica. 4. Trabalho Científico. 5. Direitos Humanos. I. Ferreira, Ana Beatriz Silva.

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SUMÁRIO

Prefácio - Andreia Marreiro Barbosa ...................................... 10

Capítulo 1 - A EFICÁCIA DAS AÇÕES AFIRMATIVASDE GÊNERO E SEU IMPACTO NAS CANDIDATURAS FEMININAS PARA A ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DOESTADO DO PIAUÍ - Samille Lima Alves e Lucineide Barros Medeiros .................................................................... 15 Capítulo 2 -

Capítulo 3 - FEMINICÍDIO NO SISTEMA PENAL BRA -SILEIRO: ANÁLISE CRÍTICA ALÉM DA TIPIFICAÇÃO -Carolina Pereira Madureira e Andreia Marreiro Barbosa ...... 67

Capítulo 4 - A RAZÃO COMUNICATIVA E SEU FUNCIONAMENTO – ANÁLISE DO CASO DANIELLAPEREZ - Liza Tajra Nery e Luzia Eduarda Bezerra Valadares ......... 86

Capítulo 5 - UMA ANÁLISE DAS CONTRIBUI -ÇÕES DE “A GAROTA DINAMARQUESA” AO ENSINODO DIREITO COMPROMETIDO COM OS DIREITOS HUMANOS- Iago Masciel Vanderlei e Marcus Vinícius Carvalho da Silva Sousa ............................................................... 101

SENVOLVIMENTISMO: A ATUALIDADE DO COM-PROMISSO SOCIAL DO CONSTITUCIONALISMO LA-TINO-AMERICANO - Ana Teresa Ribeiro da Silveira e Yago Roberto Lopes Correia Lima

DIRIGISMO CONSTITUCIONAL E DE -

.......................................... 46

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Capítulo 6 - SISTEMA PARTIDÁRIO BRASILEIRO E ODESEMPENHO DOS PARTIDOS POLÍTICOS NAS ELEIÇÕES MUNICIPAIS DE 2016 - Pedro Rhuan Piauilino Lima e Samille Lima Alves ............................................................ 118

Capítulo 7 - O DIREITO À TERRA: BREVES NOTAS SOBRE TERRITÓRIO - Luana Elainy Rocha Magalhães ........ 137

Capítulo 8 - FEMINICÍDIO: A LEI 13.104/2015 COMO UM INOVADOR JURÍDICO NA TUTELA DOS DIREITOS DAS MULHERES - Augusto César Bezerra Chaves e Catarina Vilna Gomes de Oliveira Santos .............................. 152

Capítulo 9 - A FEDERAÇÃO É A UNIDADE: JÚLIO DECASTILHOS E A DEFESA DO ULTRAFEDERALISMOTRIBUTÁRIO NA PRIMEIRA CONSTITUINTE REPU-BLICANA - Ana Luísa Melo Nogueira ............................... 165

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Préfacio

Este livro é artesanado com a ousadia e o compromisso de estudantes que assumem as rédeas dos seus processos de educação e se colocam como sujeitas1 capazes de criar, inventar, construir e não apenas reproduzir conhecimento. O protagonismo estudantil e o incentivo à pesquisa, portanto, são marcas dignas de distin-ção desta coletânea, que vocaliza artigos científicos sobre temas fundamentais à comunidade jurídica e à sociedade em geral. Ao lançar o Concurso de Artigos Maria Sueli Rodrigues de Sousa, a Gestão Primavera do Centro Acadêmico de Direito Cromwell de Carvalho (CACC) fez mais: provocou deslocamentos e fissuras na história da educação jurídica na Universidade Federal do Piauí (UFPI). A sala de retratos do Departamento de Ciências Jurídicas (DCJ) ilustra minha afirmação: em suas paredes, não identifica-mos rostos femininos. No curso de Direito da UFPI, como no de tantas outras universidades brasileiras, o lugar das mulheres, es-pecialmente das negras e das filhas da classe trabalhadora, sempre foi a ausência ou exceção. Maria Sueli é exceção. Rara. A lógica do capital lhe destinou o curso técnico, o emprego de operadora de caixa no comércio e secretária, mas com indignação e coragem tor-

1 Transgrido o masculino plural e neutro e escrevo no feminino em busca de coerência e respeito ao testemunhar a existência de Maria Sueli Rodrigues de Sousa.

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nou-se professora, advogada e cientista social. Mulher, negra, pobre, moradora da roça, desafiou o determinismo e, em um país construído em desigualdades, chegou a ser professora do ensino fundamental e médio de escolas particulares em Teresina e depois professora no curso de Direito da Universidade Federal, espaço historicamente destinado às elites piauienses. Rompeu o asfalto e abalou as estruturas de raça, classe e gênero; entretanto, em vez de louvar e acreditar na meritocracia, lutou para que o direito à educação superior e a Constituição de 1988 fossem levados a sério. Professora Sueli nos ensinou que as exceções confirmam as regras de uma sociedade perversa, em que as pessoas negras, sobretudo as mulheres, ainda não são reconhecidas como sujeitas constitucionais, não têm direito à vida digna, muito menos acessos democráticos à educação superior. Em 2017, pela primeira vez, professora Sueli é convidada para ser patronesse de uma turma de formandos, a turma Espe-rança Garcia — no mesmo ano em que a Comissão da Verdade da Escravidão Negra prepara dossiê para solicitar o reconhe-cimento de Esperança Garcia como advogada. Professora Sueli chama atenção para o que Antônio Bispo, doutor da vida, re-conhecido nas Universidades de Brasília e Minas Gerais e seu amigo de tantas lutas, denomina de confluência. A confluência é tamanha que os artigos publicados nesta obra estão implica-dos com os esforços para olhar o Direito a partir das lentes de gênero, raça, etnia, classe, demonstrando um compromisso com horizontes mais democráticos, mais igualitários, mais humanos, mais justos – esforços e compromisso inspirados na rigorosida-de da homenageada. Assim é professora Sueli: possui a rigorosi-dade de quem está engajada com a coisa pública, de quem sabe o valor do suor do povo brasileiro que mantém a estrutura de uma universidade funcionando e, por isso, sabe também da res-ponsabilidade em lutar por uma educação pública de qualidade. Quem foi seu estudante está ciente da lembrança fundamental de que a universidade é erguida e sustentada com verba pública, uma advertência cotidiana da professora: “Leram o texto? Não? Vocês estão jogando fora o dinheiro público”. Presença visceral no mundo, esperança-fortaleza, pro-fessora Sueli é uma provocadora de deslocamentos, uma crítica incansável. É uma sonhadora, é uma fogueira, dessas que quem

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chega perto, pega fogo, como versa Eduardo Galeano. Desde que cheguei na Universidade de Brasília, em 2011, inúmeras vezes, colegas lembravam-se dela, a quem se reportavam com muito respeito e admiração. Ali, na universidade-sonho de Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira, construída com o objetivo de pensar o Brasil, professora Sueli cursou o doutorado em Direito. Ali, pensou os povos da Serra da Capivara, pensou o Piauí, dando seguimento ao trabalho que já tinha iniciado no mestrado, investigando as ruralidades e as questões socioambientais. Estudante disciplinada, resistente, determinada, é uma sujeita singular, que sabe ler os livros e sabe ler o mundo. A curiosidade e a crítica aguçadas em toda a sua trajetória de vida, na universidade e também fora dela, são evidentes em sua atuação como professora na UFPI, nas disciplinas Teoria Geral do Direito (TGD) e Sociologia Jurídica, em que as estudantes são estimuladas e avaliadas pela escrita de trabalhos acadêmicos que, ao longo dos anos, têm rompido a redoma das disciplinas e sido apresentados em eventos científicos. Foi desse compromisso com a docência que nasceram os Seminários de TGD, uma semente que deu vida, posteriormente, aos Encontros Interdisciplinares de Direitos Humanos. Em união com as disciplinas de Direitos Humanos, ministrada por mim, e Biodireito, ministrada pela professora Natasha Karenina, em 2016, e agregando professoras e estudantes da UFPI e outras instituições, em edições seguintes, o evento vem constituindo um importante momento de trocas e reflexões sobre direitos humanos no estado. Professora Sueli é amiga do "sim, e daí?", por isso é não só uma professora exemplar, mas também uma pesquisadora admirável. Na coordenação do Grupo de Pesquisa e Extensão Direitos Humanos e Cidadania (DiHuCi) e do projeto de extensão Cajuína, na UFPI, trabalhou com as comunidades quilombolas e tradicionais Contente e Barro Vermelho e com a comunidade pesqueira Pedra do Sal, ambas impactadas por projetos de desenvolvimentismo. Suas atuações desafiam o epistemicídio e a colonização do saber institucionalizados nas universidades brasileiras e provocam encontros entre o saber científico e o tradicional na luta pela garantia da dignidade

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humana. Neste grupo, coordenou uma pesquisa financiada pelo Projeto Pensando o Direito, do Ministério da Justiça, em 2012 e 2013, sobre a violação dos direitos das comunidades quilombolas gerada pelo Estado nos processos administrativos e judiciais de desapropriação de imóveis rurais em decorrência do projeto Transnordestina. O trabalho, desenvolvido com uma equipe formada majoritariamente por estudantes de graduação, é um exemplo de pesquisa socialmente engajada, por demonstrar as contradições do Estado brasileiro e apontar a crueldade de um judiciário capaz de indenizar com 5 reais um agricultor que perdeu seu pedaço de terra. Diante das limitações acadêmicas, nesta atuação, nasceu em 2014 o Coletivo Antônia Flor (CAF), grupo de advogadas populares que desenvolvem ações de litigância estratégica na defesa de direitos humanos, o que demonstra o fazer-ser da professora Sueli assentado na articulação entre ensino, pesquisa, extensão e movimento. Essas experiências contribuíram para a formação de um grupo de jovens pesquisadoras e professoras. Sou uma de suas aprendizes. Juntas, temos conjugado o verbo esperançar construindo a Comissão da Verdade da Escravidão Negra e a Comissão de Direitos Difusos e Coletivos da Ordem dos Advogados do Piauí (OAB/PI), o Curso de Especialização em Direitos Humanos Esperança Garcia e a Ciranda de Juristas Populares. Temos nos inspirado nesta mulher extraordinária que foi Esperança Garcia, uma negra escravizada que há 247 anos escreveu uma carta ao governador da capitania denunciando as situações de violência por que passava com seus filhos e suas companheiras. Nossas energias têm sido empenhadas em comunicar a voz insurgente por direitos humanos de Esperança Garcia, infelizmente ainda ocultada das histórias oficiais. Compartilho o texto em português atualizado: "Eu sou uma escrava de vossa senhoria da administração do Capitão Antônio Vieira de Couto, casada. Desde que o Capitão lá foi administrar, que me tirou da fazenda dos algodões, aonde vivia com meu marido, para ser cozinheira da sua casa, onde nela passo muito mal. A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho meu sendo uma criança que lhe faz extrair sangue pela boca, em mim não posso explicar que

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sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez de Sobrado abaixo peiada; por misericórdia de deus escapei. A segunda estou eu e minhas parceiras por confessar há três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar. Pelo que peço a Vossa Senhoria pelo amor de Deus e do seu valioso poder que ponha os olhos em mim, como Procurador ordene que o Capitão me mande de volta para a fazenda de onde ele me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha. De V.Sa. sua escrava, Esperança Garcia, 6 de setembro de 1770". Esperança nos uniu. E sua ousadia e coragem têm nos dado forças para pensar e enfrentar os obstáculos de um cotidiano marcado pelo racismo, elitismo e machismo. A intelectual negra Angela Davis disse que "as mulheres negras tiveram que desenvolver uma visão mais ampla da nossa sociedade, mais do que talvez qualquer outro grupo. Elas tiveram de compreender os homens brancos, as mulheres brancas e os homens negros. E elas tiveram de se compreender. Quando uma mulher negra conquista uma vitória é um ganho para praticamente cada segmento da sociedade." Não temos dúvida. Em 2016, imaginávamos que Maria Sueli Rodrigues de Sousa era uma mulher forte. Em 2017, aprendemos que o que ela carrega tem outro nome, que ainda não descobrimos na língua portuguesa. Professora Sueli é artesã negra das vozes-irmãs que sentem, sofrem com os sistemáticos silenciamentos e ocultamentos. Mas, como Esperança Garcia e Conceição Evaristo, professora Sueli pratica a Escrevivência. Fala de si, fala de nós, se insurge para reivindicar direitos de todas aquelas que não são vistas como sujeitas. É infinita fiadeira de sonhos e esperanças.

Com amor,Andreia Marreiro Barbosa

Teresina, maio de 2017.

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A EFICÁCIA DAS AÇÕES AFIRMATIVAS DE GÊNE-RO E SEU IMPACTO NAS CANDIDATURAS FEMINI-NAS PARA A ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTA-

DO DO PIAUÍ

Samille Lima Alves1

Dra. Lucineide Barros Medeiros2

1 Introdução Desde a conquista ao direito de sufrágio, da capacidade civil plena no século passado até a promulgação da Constituição Cidadã de 1988, a mulher brasileira ocupou importantes espaços na esfera pública e privada. Apesar dos avanços, ainda são notó-rios os traços de uma sociedade fundada no patriarcalismo que atribui prerrogativas às mulheres em condições inferiores aos ho-mens, tendo vedado por muito tempo o acesso à educação, a livre manifestação de vontade, a possiblidade de exercer um ofício ou mesmo o direito à sucessão. É visível a desvalorização do trabalho da mulher que ainda recebe remuneração menor que o trabalha-dor do sexo masculino no exercício do mesmo ofício. São maioria

1 Advogada, Bacharela em Direito pela Universidade Estadual do Piauí. E-mail: [email protected] Professora da Universidade Estatual do Piauí. Doutora em Educação pela Universidade do Rio do Sinos. E-mail: [email protected].

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entre o número de analfabetos e as principais responsáveis pela educação dos filhos e trabalhos domésticos, necessitando conci-liar as rotinas profissionais com os cuidados com a família e pos-

suem inexpressiva representação nas instâncias formais de poder.

Muito se tem debatido sobre a função da mulher na atual sociedade e das dificuldades enfrentadas e da importância do sexo feminino preencher cada vez mais os espaços predominantemente masculinos. As ações afirmativas surgiram como possiblidades de inclusão da mulher no meio político formal. Tais medidas foram adotadas ainda na década de 1970 por países europeus e entraram em vigência no Brasil duas décadas depois. Trouxeram consigo debates e posicionamentos antagônicos, dentre os que suscitam a questão do mérito, da inconstitucionalidade, da imperiosidade da adoção das cotas eleitorais para inserir de modo mais incisivo a mulher nos diversos cargos eletivos, uma vez que não se pode considerar como estado democrático aquele no qual uma parcela

significativa da população não pode influir nos rumos da sociedade.

Buscou-se analisar a problemática do distanciamento da mulher brasileira e piauiense do campo político e a impor-tância em assegurar tal participação como forma de se garan-tir a concretização do princípio constitucional da isonomia, da democracia e da cidadania. E, sob a ótica das ações de dis-criminação positiva adotadas no Brasil com a promulgação das leis 9.096/1995, 9.100/1995, 9.504/1997 e 12.034/2009, ve-rificar as mudanças ocorridas ao longo de 20 (vinte) anos, se tais medidas tem sido eficazes e tem cumprido o objetivo para qual foram criadas, qual seja, a inserção feminina na política. Para tanto, comparou-se os candidatos e eleitos em razão do sexo, no período entre 1996 e 2016, para as câmaras legislativas pátrias, com enfoque na Assembleia Legislativa do Piauí. Coleta-ram-se informações sobre ações afirmativas e a representação fe-minina na política em diferentes fontes bibliográficas, com desta-que aos autores Araújo, Miguel, Pinheiro, Varikas, dentre outros. A pesquisa quantitativa de base documental foi realizada no ban-co de dados virtual do Tribunal Superior Eleitoral. Os resultados obtidos foram organizados em tabelas, utilizando-se de técnica de

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percentagem. A escolha desse intervalo temporal foi de extrema importância na análise do impacto e da eficácia das cotas na inser-ção da mulher na política.

2 AS AÇÕES AFIRMATIVAS DE GÊNERO NO SISTE-MA ELEITORAL BRASILEIRO.2.1 A problemática da sub-representação da mulher na política

brasileira.

As mulheres correspondem a 51% da população brasileira segundo o IBGE3, proporção completamente diferente da que se verifica no campo político. O quadro de representação política da mulher brasileira fomentou (e ainda fomenta) debates, proposi-ções e tensões, que culminou com a adoção das cotas de gênero na política no Brasil. Entretanto, o problema persiste, não obstante a

vigência da legislação de cotas desde 1996.

Farah4 discriminou o número mulheres candidatas e o de eleitas no intervalo de 1932 a 1994, observando que, das 492 mu-lheres que disputaram cargos ao Congresso Nacional, apenas 123 foram eleitas em 15 eleições ao longo de 62 anos. O percentual de representatividade feminina nas Assembleias Legislativas foi ainda menor visto que, entre 1946 e 1994, das 1.387 candidatas à deputada estadual, apenas 200 se elegeram. Segundo a Inter-Parliamentary Union5, até 01 de janeiro de 2014, a média mun-dial de participação das mulheres nos parlamentos era de 21,77%, considerando 189 países. Nas Câmaras baixas a participação foi de 22,16%, enquanto nas Câmaras altas de 19,64%. Das nações analisadas, apenas 39 apresentaram percentual superior a 30% de mulheres compondo as câmaras da plebe. O Brasil ocupou a 124º posição no ranking, integrando o grupo de países com o pior

3 IBGE, 2010.4 Citada por MASCHIO, 2003.5 INTER-PARLIAMENTARY UNION, 2014.

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desempenho (apenas 8,6% das mulheres ocupando a Câmara dos Deputados e 16% no Senado Federal. As explicações suscitadas ao problema são diver-sas. Miguel e Biroli6 distinguiram três vertentes explicativas. Na primeira, enfatiza-se o caráter patriarcal subjacente às instituições políticas liberais. Na segunda, os padrões culturais e de socialização que constroem o político como espaço masculino e inibem o surgimento da "ambição política" entre as mulheres. A última versa sobre os constrangimentos estruturais à participação política das mulheres que possuem, em regra, restrito acesso a recursos econômicos e menos tempo livre que os homens. A discussão acerca do patriarcalismo envolve a histórica diferenciação dos papéis de gêneros na sociedade. Competia às mulheres o trato da casa e da família, o cuidado e a educação dos filhos, enquanto aos homens a vida pública, o trabalho externo e a manutenção econômica da família. Quando crianças estavam sob o mando do genitor e após o casamento subordinavam-se aos maridos. O espaço privado continua na maioria dos lares brasileiros sob a responsabilidade da mulher que tem a difícil tarefa de conciliar a vida pública com a vida privada, o que dificulta a ascensão a cargos de decisão e chefia, que ainda percebem rendimentos inferiores aos dos homens no exercício de atividades similares7. Na década de 1930, permitiu-se às mulheres o exercício de um ofício, vedando-se, contudo, o trabalho nas áreas consideradas masculinas. A Constituição indicou que os cargos das áreas de ensino e saúde fossem ocupados necessariamente por mulheres (art. 121, § 1º, d e § 3º da Constituição de 1934)8. Construiu-se uma imagem estereotipada da mulher sempre meiga, dócil, emocional, cuidadosa: a elas estariam reservadas as profissões consideradas femininas, como professora, enfermeira e secretária, não se in-cluindo nesse grupo a política9.

6 MIGUEL E BIROLI, 2010. p. 655-656.7 PINHEIRO, 2007. p. 80; TABAK, 1982. p. 64, PINTO, 2001. p. 103; BLAY, 2001. p. 85.8 BRASIL, 1934.9 SILVA, 2010. p. 129.

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Varikas10 afirma que o sistema político é naturalmente excluden-te, assim a sub-representação feminina é uma constante desde a obtenção do direito de sufrágio. Bellozo11 entende que o problema não se trata exclusão por distanciamento, mas sim que essa política é pouco permeável às mulheres. Outros autores suscitam dificul-dades e até a resistência partidária em inserir a mulher na disputa eleitoral, preferindo investir em seus candidatos, em detrimento de uma candidata com chances de vitória12. Araújo13 pontua que não há um grande universo de mulheres dispostas a concorrer a cargos eletivos, o que ocorre não porque sejam mais apáticas que os homens e sim em razão das trajetórias sociais e a situação estrutural frente às relações de gênero, aliadas às condições em que a política institucional e a competição eleitoral operam no país, não lhes oferecem um cenário favorável ou sequer animador. Alguns estudiosos14 entendem que, em regra, os recursos são destinados aos concorrentes com maior chance de elegibilidade, não se ajustando nesse perfil, a maioria das candidatas. Logo, a falta de capital social dos grupos dominados (ou mais frágeis) é um dos mais evidentes limites à participação na política o que impossibilita uma disputa igualitária e real aos cargos eletivos. Todavia, Araújo15 salienta que a análise da inserção da mulher na política não pode estar centrada na manifestação da chamada resistência masculino-partidária, pois "a ênfase na ideia de resistência ou preconceito tende a gerar certa subestimação dos fatores institucionais relacionados com o sistema político-eleitoral, bem como com a capacidade de avaliação das mulheres". Para a aludida autora, o espaço político foi estruturado com base nas vivências das práticas masculinas. É nesse contexto que permanece e é reproduzido. Contudo, as mulheres também

10 VARIKAS, 1996. p. 66.11 BELLOZO, 2006. p. 53-54.12 PINHEIRO, 2007. p. 83; ABREU, 2010. p. 25; FONSECA, 2012. p. 57.13 ARAÚJO, 2001. p. 238.14 ABREU, 2010. p. 26; PINTO, 2001. p. 102.15 ARAÚJO, 2009. p. 27; 2001. p. 239.

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são agentes desse quadro, pois podem conquistar autonomia e racionalidade para as escolhas. De fato, a questão de gênero não é a única que influencia na baixa representatividade feminina. Não cabe a simples afirmação de que há uma forte intervenção dos partidos e seus dirigentes, esquecendo-se de todo o planejamento partidário, no intuito de lançar o maior número de candidatos que tenham condições de elegibilidade, independentemente do sexo. No presente trabalho, apreciaremos tal problemática sob a ótica do gênero sem desconsiderar a ingerência de questões culturais, econômicas, sociais, dentre outras, que determinam a dinâmica da participação da mulher no cenário do legislativo brasileiro e piauiense.

2.2 Por que as mulheres precisam ocupar espaços nas instâncias

decisórias?

A discussão sobre a sub-representação feminina na política leva-nos a refletir sobre o distanciamento das mulheres do poder. Muitos consideram que esse quadro deve ser modificado, por não condizer com e até ferir a democracia, uma vez que as mulheres devem estar presentes nos parlamentos, nos tribunais, nos gabinetes do Executivo, na direção dos partidos políticos e nos mais altos postos de chefias de empresas. Diante desse po-sicionamento, uma questão imperiosa se apresenta: por que as mulheres devem ocupar espaços nas instâncias decisórias? Miguel16 aponta três vertentes que procuram justificar a necessidade de se assegurar a participação da mulher na políti-ca. A primeira diz respeito à representação descritiva em que as mulheres precisam ocupar mais espaços na política formal por uma questão de justiça intuitiva, por não ser correto um grupo tão numeroso ser extremamente sub-representado no âmbito político. A segunda trata da política do desvelo, segundo a qual

16 MIGUEL, 2000. p. 92.

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as mulheres, por saberem como cuidar, devem adentrar na esfera política, trazendo um abrandamento para esse meio essencialmente masculino; a terceira vertente é a política de presença, em que as mulheres são legitimadas para proteger os interesses que lhes concernem. Para o autor17, a descrição representativa é problemática, pois quando se analisa a indispensabilidade de representação política por grupo, faz-se necessária a determinação de quais categorias de pessoas devem ser levadas em conta, tarefa que é fruto de lutas e pressões políticas. Sob essa ótica, entende-se como prejudicial a distância da mulher das esferas políticas e, de tal monta, o distanciamento dos demais grupos minoritários. Porém, como se fatiar o parlamento por grupos? Como delimitar quais categorias devem imprescindivelmente ter participação garantida? No sistema democrático representativo, a participação política possibilita em tese, que qualquer do povo tenha seus interesses defendidos e garantidos pelos representantes. Todavia, a ideia de democracia como garantia de participação de todos os cidadãos em igualdade perdeu-se na prática ao longo dos anos, tornando-se cenário de disputas de interesse de grupos, em especial os da minoria dominante. Questiona-se se a modificação do significado fático do sistema democrático não legitimaria a fragmentação do parlamento. Araújo18 entende como questão de reparação e justiça a equidade de presença entre homens e mulheres, sendo prejudicial a ausência feminina na política, uma vez que as decisões tomadas afetam diretamente as mulheres e o efeito pode não ser positivo. Varikas19 aduz que o reconhecimento da dimensão de gênero consiste em integrar nas assembleias representativas as mulheres, enquanto mulheres, e os homens enquanto homens, contudo, isso é estranho e ameaça a visão

17 MIGUEL, 2000, p. 95.18 ARAÚJO, 2011. p. 93-94.19 VARIKAS, 1996. p. 73.

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de indivíduo abstrato no sistema político, que é substrato de base da democracia representativa e é desprovido de qualquer atributo particular. Quanto à política do desvelo, Miguel20 expõe que esse posicionamento é prejudicial, por restringir a área de atuação das parlamentares aos temas sociais, afastando-as do que ele denominou de hard politics, que engloba os temas de administração pública, política econômica e relações internacionais. O autor considera ainda que

O discurso da "política maternal" insula as mulheres neste nicho (o social) e desta forma, mantém a divisão do trabalho político, uma divisão que mais uma vez destina aos homens as tarefas socialmente mais valorizadas. Ao mesmo tempo, torna impossível que se cobre dos homens a sua parcela de responsabilidade na educação das crianças ou, em termos mais gerais, para com as futuras gerações. Trata-se de uma perspectiva essencialista, que apresenta um "eterno feminino" (associado às tarefas de cuidar dos outros) e, assim, naturaliza a atribuição dos papéis sexuais.

A política de presença considera que as mulheres são as melhores advogadas de si mesmas devendo apresentar e defender seus anseios presencialmente nos parlamentos. As críticas a esse posicionamento devem-se à divisão do parlamento como um retrato exato da sociedade o que não é possível nem plausível visto que, os representantes políticos possuem obrigações com seus representados, devendo defender seus interesses de forma geral. Por sua vez, os defensores da política de presença entendem que esperar por uma ação generalizada dos agentes políticos do parlamento é um posicionamento ilusório, dado que, independente de exercer um mandato que sirva à população em geral, o parlamentar defenderá interesses dos grupos que lhe aprouver. Tal justificativa, da mesma forma que a política de desvelo, restringe a atuação política da mulher,

20 MIGUEL, 2000. p. 92-93.

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desconsiderando que as parlamentares estão ligadas aos partidos seus posicionamentos políticos e que sustentam outros interesses, desvinculados das questões de gênero. Varikas21 discorda da visão de que apenas alguém de um grupo pode falar por este e considera ingênua a ideia das parlamentares defenderem somente interesses relacionados ao gênero, deixando de agir segundo suas posições políticas. Araújo22 sintetiza a questão afirmando que:

Primeiro, porque há a crença de que política importa. Segundo, porque se promove um link entre uma cidadania ativa e participatória e demandas por direitos e igualdade política e civil. Por fim, o foco na agência das mulheres aponta para a importância das suas atividades como mães, trabalhadoras e ativistas e para a interconexão das diferentes arenas do estado, do mercado e da sociedade civil.

Sobre o tema, algumas indagações pertinentes são levantadas por Varikas23: a presença de um número considerável de mulheres eleitas nas assembleias é capaz de neutralizar imagens bem mais marcantes presentes no cotidiano de mulheres (e homens) e que retratam uma realidade na qual prevalecem a segregação, a dependência, a hierarquia, a desvalorização, a heteronomia que se abatem sobre um dos sexos? Outrossim, essa presença é capaz por si mesma de suscitar uma dinâmica de mobilização e resistência por parte de outras mulheres? Pode constituir-se num ponto de partida para a transformação substantiva das condições materiais e simbólicas que fazem das mulheres cidadãs de segunda classe? Tais indagações não serão detalhadamente analisadas no presente trabalho, mas são importantes quando tratamos sobre a relevância da atuação não apenas das mulheres, mas da população em geral no contexto da política brasileira.

21 VARIKAS, 1996. p. 74.22 ARAÚJO, 2012. p. 157.23 VARIKAS, 1996. p. 89.

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3 UMA ANÁLISE DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA DE AÇÕES AFIRMATIVAS DE GÊNERO NA POLÍTICA

O Brasil instituiu as cotas eleitorais de gênero em 1995. Desde então, o legislador pátrio consolidou as ações afirma-tivas de gênero na legislação eleitoral subsequente, com des-taque para a Lei nº 9.100/1995, a Lei nº 9.504/1997 e a Lei nº 12.034/2009. A Lei nº 9.100/1995 foi pioneira no Brasil no estabelecimento de reserva de vagas para mulheres nas listas eleitorais dos partidos. O legislador adotou expressamente cotas com reserva de vagas, garantindo às mulheres 20% nas listas partidárias (art. 11, § 3º). Ainda foi permitido o aumento do número de candidatos por partido/coligação (art. 11, §§ 1º e 2º). O que na prática, reduziu o percentual real das cotas que configurou o aumento de candidatos concorrendo no mesmo pleito24. A medida não era obrigatória nem acarretava qualquer sanção ou penalidade por parte da Justiça Eleitoral ao partido que a descumprisse, o que frustrou as expectativas de progresso na representação política feminina. A lei não previu qualquer outra medida que contribuísse juntamente com a cota para a inserção política da mulher. A despeito das deficiências apontadas, essa norma jurídica foi importante, pois trouxe à tona a questão da sub-representação política da mulher brasileira, reconhecendo-a como problema e levantando a necessidade de modificá-lo. A Lei nº 9.504/1997, denominada de lei das eleições, regulou as eleições gerais no país desde 1998 e foi alterada pelas leis 9.840/1999, 10.408/2002, 10.740/2003, 11.300/2006, 12.034/2009, 12.350/2010 e 12.875/2013. O termo "mulheres", utilizado na primeira norma, não foi reproduzido nessa lei, que

24 BELLOZO, 2006; ARAÚJO, 2001.

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ainda dispôs sobre a reserva mínima e máxima de cotas por sexo:

Art. 10. Cada partido poderá registrar candidatos para a Câmara dos Deputados, Câmara Legislativa, Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais, até cento e cinquenta por cento do número de lugares a preencher.(...)§ 3º Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação deverá reservar o mínimo de trinta por cento e o máximo de setenta por cento para candidaturas de cada sexo25.

A reserva de 30% novamente foi mitigada com o aumento em 150% do número de vagas que cada partido/coligação poderia dispor. Também não foi prevista qualquer punição aos partidos que descumprissem o dispositivo legal. Para Bellozo26, a inexistência de ônus legal para o partido facilitava o lançamento de candidaturas fictícias o que diminuía o impacto das medias afirmativas. A simples inserção de mulheres nas listas eleitorais não garante que as concorrentes estejam aptas para a disputa. A inclusão de candidatos de diversos segmentos sociais não importa dizer que o partido deseja ver a classe representada. O abarcamento desses grupos implica em visibilidade ao partido, o que pode ser convertido em mais votos e na possibilidade de eleger mais representantes e intensifica o chamado "efeito contágio", influenciando os partidos a adotarem medidas que favoreçam a inclusão feminina27. A Lei nº 12.034/2009 promoveu mudanças substanciais no sistema brasileiro de cotas de gênero, modificando a lei dos partidos e a lei das eleições. Outros tipos de ações afirmativas foram adotados e a inovação ficou por conta da previsão de punição aos partidos que descumprissem as determinações legais. Ao art. 44 da Lei nº 9.096/1995 foi acrescido o inciso V, que previu a destinação obrigatória do mínimo de 5% do fundo partidário para criação e manutenção de programas de incentivo à participação das

25 BRASIL, 1997.26 BELLOZO, 2006. p. 73.27 ARAÚJO, 2005. p. 195; WRIGTH, 2009. p. 91; PINTO, 2001. p. 102.

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mulheres. A penalidade em caso de descumprimento consiste na impossibilidade do partido utilizar o fundo para outra finalidade, além de ter acrescido ao valor mínimo legal o percentual de 2,5% (art. 44, § 5º). Incluiu-se o inciso IV ao art. 45 da Lei nº 9.096/1995, que determinou aos partidos políticos o desenvolvimento de formas de difusão e promoção da participação feminina na propaganda partidária. Para tanto, devem dedicar ao menos 10% do tempo destinado à propaganda eleitoral partidária para tal finalidade. Em caso de descumprimento, a Justiça Eleitoral aplicará as seguintes penalidades:

Art. 45. (...)§ 2º O partido que contrariar o disposto neste artigo será punido:I - quando a infração ocorrer nas transmissões em bloco, com a cassação do direito de transmissão no semestre seguinte;II - quando a infração ocorrer nas transmissões em inserções, com a cassação de tempo equivalente a 5 (cinco) vezes ao da inserção ilícita, no semestre seguinte28.

O percentual de reserva de vagas nas listas eleitorais previsto no § 3º do art. 10 da Lei nº 9.504/1997 foi mantido em 30%. A modificação trazida pela Lei nº 12.034/2009 ficou por conta da troca da expressão "deverá reservar" por "preencherá": "Art. 10, § 3º Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo29". Segundo entendimento do Tribunal Superior Eleitoral, o termo preencherá tornou aquele dispositivo em uma norma imperativa aos partidos que, se desobedecerem, serão penalizados pela Justiça Eleitoral. Dessa forma, a Lei 12.034/2009 veio ao encontro a parte das críticas proferidas à legislação brasileira de cotas de gênero. Todavia, ainda restringe as ações afirmativas ao sistema proporcional e à reserva de vagas nas listas eleitorais e não ao parlamento como querem os defensores da paridade30.

28 BRASIL, 199529 BRASIL, 1997.30 RICHARTZ, 2007, MIGUEL, 2000, ARAÚJO, 2001, 2009, 2011.

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4 A EFICÁCIA DAS AÇÕES AFIRMATIVAS DE GÊNERO NA POLÍTICA BRASILEIRA

A adoção das medidas de discriminação positiva pelo legislador pátrio foi fruto de intensas e longas discussões travadas por grupos de mulheres, organizações sociais e parlamentares, iniciadas ainda na década de 1970, em todo o mundo, tendo como marco as Convenções promovidas pela Organização das Nações Unidas (ONU). Analisando-se o teor das Leis nº 9.100/1995, 9.096/1995, 9.504/1997 e 12.034/2009, percebeu-se que as medidas tiveram por alvo direto os partidos políticos, dirigindo-lhes comandos imperativos a fim de incrementar o quadro de mulheres na política formal.

4.1 O impacto das medidas afirmativas de gênero na representa-

tividade feminina nos partidos políticos brasileiros

Não obstante a obrigatoriedade de difusão e promoção da participação feminina, a atuação dos partidos nesse sentido ainda não é consistente e eficaz no Brasil. Analisando-se a situação concreta, até outubro de 2016, dos 35 partidos registrados no Tribunal Superior Eleitoral, 19 previam expressamente nos estatutos órgãos ou departamentos para mulheres31, enquanto os demais, com exceção do NOVO e do PMB, organizaram departamento destinado às mulheres não mencionado nos estatutos. As ações afirmativas para mulheres estiveram presentes nos estatutos de 18 partidos, que trataram da reserva de vagas para mulheres nos órgãos partidários, nas listas de candidaturas para mandatos eletivos e na destinação de percentual mínimo do fundo partidário para promoção de programas de incentivo à participação da mulher na política, conforme teor do art. 44, V,

31 Os dezenove partidos são: PTB, PDT, PT, DEM, PSB, PSDB, PRP, PPS, PV, PP, PRTB, PSDC, PSOL, PR, PSD, PPL, PEN, PROS e SD.

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da Lei nº 9096/95. A reserva de vagas foi a medida adotada pelos seguintes partidos: PDT, PSB, PPS, PP e REDE. Enquanto PMDB, PTB, PT do B, PHS, PSL, PRB, PR, PROS, SD e NOVO dispuseram apenas sobre a aplicação do fundo partidário. As duas medidas foram adotadas simultaneamente pelo PT, PSDB e PV. Dos 17 partidos que não previram qualquer tipo de ação afirmativa de gênero, dez alteraram seus estatutos após a publicação da Lei nº 12.034/2009, não se adequando à lei, a saber, PSTU, PC do B, PSOL, PPL, PTC, PRP, PSD, PEN, PSDC e PMB (Apêndice A - Quadro 1). A maioria dos partidos ou coligações não preenche as vagas nas listas eleitorais com o percentual mínimo, seja ainda pela ausência de mulheres dispostas a concorrer ou por influência do comando partidário. Nos casos de inobservância da norma eleitoral da cota mínima por gênero, a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) é pacífica quanto à forma de penalizar os partidos que não preencherem ao menos 30% de candidatos por sexo em suas listas eleitorais. No julgamento do RESPE 78432 PA/201032, o TSE esclareceu que o cálculo desse percentual deve ser feito com base no número de candidatos efetivamente lançados pelo partido ou coligação. Caso não seja atendido, o TRE local deverá convocar o partido para proceder ao ajuste e regularização na forma da lei. O TSE entendeu também que se o percentual mínimo não for atingido, será defeso ao partido ou coligação preencher com um sexo as vagas destinadas ao outro. Tal conduta, nos dizeres do Ministro Arnaldo Versiani Leite Soares, tornaria inócua a previsão legal de reforço da participação feminina nas eleições, com reiterado descumprimento da lei. Caso não seja possível o preenchimento do percentual mínimo, o partido ou coligação deverá reduzir o número de candidatos masculinos para adequar os respectivos percentuais cuja providência, caso não atendida, ensejará o indeferimento do demonstrativo de regularidade dos atos partidários (RESPE 2939 PE/2012)33.

32 BRASIL, 2010.33 BRASIL, 2012.

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Ademais, o preenchimento do percentual mínimo deve ser observado no momento do registro da candidatura e em eventual preenchimento de vagas remanescentes ou na substituição de candidatos (RESPE 21498 TRE-RS/2013)34. Quanto ao repasse obrigatório do mínimo de 5% (cinco por cento) do fundo partidário, os Tribunais Regionais Eleitorais do Pará e da Paraíba decidiram que há possibilidade de compensação no exercício seguinte quanto à do percentual mínimo de recursos do fundo partidário (PC 3784 TRE-PB/2013)35 e que o partido que descumpriu o disposto no artigo 44, V, § 5º da Lei nº 9.096/1995 será penalizado com o acréscimo de 2,5% ao percentual mínimo de 5% (PC 6142, TRE-PA/2013)36. Em relação às irregularidades na propaganda eleitoral, os Tribunais Eleitorais de São Paulo e do Espírito Santo entenderam que o art. 45 da Lei nº 9.096/95 é cumprido quando difunde ideias que promovam a participação política da mulher ou quando demonstre a efetiva atuação e o desempenho das mulheres filiadas a um determinado partido, não bastando a simples narrativa por pessoa do sexo feminino que não seja filiada ou não esteja identificada (REP 30416 TRE-SP/2013)37. O descumprimento foi considerado uma infração e ensejou a cassação do tempo de propaganda de partido no equivalente a cinco vezes o que deixou de reservar para as mulheres (REP 26956 TRE SP/2013; REP 29202 TRE SP/2013)38 e no percentual de 10% do tempo total das inserções veiculadas39. Sem dúvidas, a atuação dos órgãos da Justiça Eleitoral é imprescindível para que as ações afirmativas de gênero sejam cumpridas em sua inteireza pelos partidos e coligações. As penalidades, em seu caráter educativo, minimizam a discricionariedade da direção partidária quanto à elaboração das listas e na aplicação das demais medidas.

34 BRASIL, 2013.35 PARAÍBA, 2013.36 PARÁ, 2013.37 SÃO PAULO, 2013b.38 SÃO PAULO, 2013c; SÃO PAULO, 2013a.39 ESPÍRITO SANTO, 2014.

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30

4.2 A representatividade política da mulher brasileira e piauien-

se e a influência das cotas de gênero.

Desde a adoção das ações afirmativas de gênero, o número de mulheres candidatas ao cargo de vereador só aumentou passando de 33.279, em 1996, para 142.732, em 2016, o que, em relação aos candidatos do sexo masculina, representou um salto de 17,32% para 32,46%. Entretanto, o mesmo não ocorreu quanto às eleitas, que alcançaram o maior índice em 2016, com 13,52%, enquanto em 1996 foram 11,07%. Logo, quando comparados os eleitos de cada sexo, verificou-se que permanece baixa a representação política da mulher nas câmaras municipais (Tabela 1).

Tabela 1 – Eleições para as Câmaras Municipais: candidatos e eleitos por gênero de 1996 a 2016.

Fonte: Elaborado pelas autoras com base nos dados do Tribunal Superior Eleitoral.

Para a Câmara Federal, entre 1998 e 2014, houve considerável aumento na quantidade de mulheres candidatas (397,17%). Quanto aos eleitos, a bancada feminina na Câmara Federal que se mantinha na proporção de 8% desde 2002, com pouca variação em 2006 (8,58%) e em 2010 (8,77%), saltou para 9,94% em 2014. Em termos absolutos, o número de Deputadas Federais passou de 29, em 1998, para 51 em 2014. Quanto às Assembleias Legislativas, o cenário é bem similar ao descrito acima. O número de candidatas aumentou 235,12% de 1998 a 2014,

Anode

eleiçãoTotal Total

1996

2000

2004

2008

2012

2016

Total

192.157

367.692

346.349

330.630

420.404

439.765

2.096.997

33.279

70.395

76.684

72.476

134.113

142.732

529.679

4.347

6.987

6.548

6.504

7.653

7.768

32.039

17,32

19,15

22,14

21,92

31,90

32,46

23,35

11,07

11,60

12,64

12,53

13,33

13,52

12,29

82,68

80,85

77,86

78,08

68,10

67,54

76,65

88,93

88,40

87,36

87,47

86,67

86,48

87,71

39.278

60.222

51.804

51.903

57.393

57.592

260.600

158.878

297.297

269.665

258.154

286.291

297.033

1.567.318

34.931

53.235

45.256

45.399

49.740

49.806

228,561

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31

enquanto o número de eleitas subiu 12,75% no período avaliado. Porém, o número de eleitas caiu na última eleição, pois em 2010 foram eleitas 134 deputadas estaduais (12,95%), enquanto em 2014 esse número foi de 115 (11,11%). Em relação à Assembleia do Distrito Federal, o aumento das candidaturas femininas foi de 143,22% também entre 1998 e 2014. Das 24 (vinte e quatro) vagas disputadas a cada pleito, as mulheres ocuparam em média 4 (quatro) cadeiras por legislatura, totalizando 21 deputadas distritais no período. Em 2014, as mulheres representaram 20,83% dos parlamentares distritais. O número de homens candidatos cresceu no período em questão, para os três cargos, mas em proporção menor (39,20%, 19,09% e 35,86%, respectivamente). Curiosamente, o número de eleitos decaiu também nos três cargos (-4,55%, -1,39% e -5,00%, respectivamente). Entretanto, os homens ainda são maioria considerável das casas legislativas no Brasil, representando 90,06% dos deputados federais, 88,89% dos deputados estaduais e 79,17% dos deputados distritais (Tabela 2).

Tabela 2 - Eleições para as Câmaras Federal, Estadual e Distrital: candidatos e eleitos por gênero de 1998 a 2014.

Fonte: Elaborado pelas autoras com base nos dados do Tribunal Superior Eleitoral.

Cargo

Dep

utad

o (a

) Fe

dera

lD

eput

ado

(a)

Esta

dual

Dep

utad

o (a

) D

istr

ital

Candidatos

e eleitos

por sexo1998 2002 2006 2010 2014

353

3064

29

484

1270

8781

102

933

118

502

4

20

10,33

89,67

5,65

94,35

12,64

87,36

9,86

90,14

19,03

80,97

16,67

83,33

490

3806

42

471

1638

9700

129

906

129

500

5

19

11,41

88,59

8,19

91,81

14,45

85,55

12,46

87,54

20,51

79,49

20,83

79,17

628

4328

44

469

1602

9888

119

916

134

512

3

21

12,67

87,33

8,58

91,42

13,94

86,06

11,5

88,5

20,74

79,26

12,5

87,5

933

3954

45

468

2439

9367

134

901

201

597

4

20

19,09

80,91

8,77

91,23

20,66

79,34

12,95

87,05

25,19

74,81

16,67

83,33

287

682

5

19

1755

4265

51

462

4256

10457

115

920

29,15

70,85

9,94

90,06

28,93

71,07

11,11

88,89

29,62

70,38

20,83

79,17

Mulherescandidatas

Homenscandidatos

Mulheres eleitas

Homenseleitos

Mulherescandidatas

Homenscandidatos

Mulheres eleitas

Homenseleitos

Mulherescandidatas

Homenscandidatos

Mulheres eleitas

Homenseleitos

% % % % %

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32

No Piauí, no período de 1945 a 1994, 1.534 mulheres concorreram aos cargos de deputadas federal e estadual, vereadoras, prefeitas e vice-prefeitas, das quais 419 foram eleitas, representando um êxito de 27,31%. A participação da mulher piauiense no parlamento federal e no estadual foi bastante irrisória até 1994. Apenas uma deputada federal foi eleita, em 1986, dentre as 12 que se candidataram e uma exerceu mandato na Assembleia Legislativa do Piauí, no ano de 1970, dentre as 31 que concorreram. Até 1994, nenhuma mulher no estado candidatou-se ao Senado ou ao Governo do Estado e nas eleições de 1950, 1954, 1956, 1962, 1978 e 1982 nenhuma candidatura feminina foi registrada (Tabela 3).

Tabela 3 - Número de mulheres candidatas e eleitas no Piauí por cargo entre 1945 e 1994.

Fonte: Elaborada pelas autoras com base nos dados do Tribunal Regional Eleitoral do Piauí.Legenda: x – dado não informado.

Vereadora

Ano/Cargo

194519471948195019541958196219661970197219741976198219861988199019921994Total

-

-

1

17

19

15

18

23

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Quanto às eleições para as Câmaras Municipais piauienses, entre 1996 e 2016, os números são pouco diferenciados. As 10.881 mulheres candidatas no período representaram 24,15% do total de concorrentes e apenas 14,37% foram eleitas. O melhor desempenho ocorreu em 2012, enquanto o pior ocorreu nas eleições de 2000 (Tabela 4).

Tabela 4 - Assembleia Legislativa do Piauí: candidatos e eleitos por sexo de 1998 a 2014.

Fonte: Elaborado pelas autoras com base nos dados do TSE, Eleições anteriores.

Na disputa ao Congresso Nacional e à Assembleia Legislativa do Piauí, o número de candidatas entre 1998 e 2014 aumentou em 186,96%, passando de 23 concorrentes em 1998 para 66 em 2014. Em relação aos candidatos do sexo masculino, o maior percentual de candidaturas femininas ocorreu no último pleito, na razão de 30,14%. Quanto às eleitas, a representação aumentou em 100%, de 2 deputadas em 1998 para 4 em 2014. Porém, se comparada a eleição de 2010, a representatividade feminina no parlamento estadual caiu consideravelmente, de 7 para 4 deputadas, um decréscimo de 42,86%. Em 2014 as mulheres eleitas representaram 13,33% do parlamento, enquanto em 2010 correspondiam a 23,33% (Tabela 5).

Candidato (a)Feminino FemininoMasculino Masculino% %% %

Ano da Eleição

Eleito (a)

19982002200620102014

Total

2316224666

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18,33

13,228,5612,2225,0030,14

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6,676,6710,0023,3313,33

12,00

93,3393,3390,0076,6786,67

88,00

23374

18

2828272326

132

151171158138153

771

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Tabela 5 – Candidatos e eleitos para vereador no estado do Piauí entre 1996 e 2016.

Fonte: Elaborado pelas autoras com base nos dados do TSE, Eleições 2016.

Segundo ensinamento de Diniz40, eficácia é a qualidade da norma vigente de produzir, no seio da coletividade, efeitos jurídicos concretos, considerando não só a questão de sua condição técnica de aplicação, observância ou não pelas pessoas a quem se dirige, mas também a de sua adequação em face da realidade social por ela disciplinada e dos valores vigentes na sociedade, o que conduziria ao seu sucesso. A eficácia diz respeito a saber se os destinatários da norma ajustam ou não seu comportamento em maior ou menor grau, às prescrições normativas. Sendo o objetivo das ações afirmativas em promover a isonomia de gênero na política, tanto em relação ao incremento das mulheres filiadas nas listas partidárias quanto ao aumento da quantidade de mulheres ocupando cargos políticos no Poder Legislativo, constatou-se que não ocorreram grandes mudanças após a adoção das cotas de reservas de vagas partidárias por gênero, fato corroborado em outros trabalhos41. Araújo42 considera como desafio a mudança de foco da discussão em torno da representação política da mulher, que não deve ser apenas quanto a ter ou não cotas, pois

40 DINIZ, 2005, p. 319.41 ARAÚJO, 2001; FREIRE, 2008. p. 75; MIGUEL, 2000. p. 98.42 ARAÚJO, 2010. p. 119.

Anode

eleiçãoTotal Total

1996

2000

2004

2008

2012

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Total

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1.021

1.200

1.437

1.405

2.938

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269

265

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17,20

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12,69

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16,73

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82,80

80,45

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66,94

66,97

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83,27

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1.830

1.835

1.759

1.749

1.776

1.777

10.741

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"as cotas como um recurso válido dependem de outros aspectos relacionados com a democratização da representação. Há várias outras estratégias importantes para ampliar e facilitar a participação política das mulheres". Essa questão deve ser analisada pelo legislador, face à ineficácia das cotas por reserva de assentos, adotada há duas décadas. Já não caberia a substituição dessa medida por outra com efeito mais promissor? Muito se discute se a mudança no tipo de lista eleitoral ou mesmo do próprio sistema eleitoral podem alterar o quadro de sub-representação feminina na política. Levando-se em conta a natureza temporária da ação afirmativa, o que se vê é um certo comodismo do legislador em adotar o mesmo método reiteradamente, esquecendo-se que a problemática é mais ampla, indo além do campo político. Há de se discutir também o legado do patriarcado, o papel da mulher na sociedade, na família e no mercado de trabalho e sobre a importância de se garantir acesso aos espaços decisórios aos cidadãos. Nos dizeres de Wright43, as cotas não removem as barreiras culturais e as dificuldades das mulheres combinarem vida familiar, trabalho e política. Há que se promover o empoderamento feminino, que implica a alteração radical dos processos e das estruturas que reproduzem a posição da mulher como submissa44.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As ações afirmativas surgiram com o propósito de mudar o quadro da baixa participação da mulher na política. Após a adoção das cotas de reserva de vagas em listas eleitorais, em 1995, aumentou o número de mulheres candidatas e eleitas em relação às eleições anteriores. Porém, esse crescimento não pode ser considerado significativo, uma vez que o número de candidaturas femininas não ultrapassou a marca de 26% e o número de eleitas não foi superior a 17%, sendo que na Câmara Federal, o maior percentual alcançado

43 WRIGHT, 2009. p. 115.44 LISBOA, 2008.

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foi de 8,77%, em 2010. No Piauí, o número das candidaturas femininas e de eleitas cresceu consideravelmente entre 1998 e 2010, passando de, respectivamente, 13,22% a 25%, e 6,67% a 23,33%, e entre 1996 e 2016, de 17,14% para 33,03% e de 12,73% para 16,73%. Todavia, há muito o que evoluir ainda. As ações afirmativas cumprem sua função de suscitar o debate mas não tem sido o instrumento mais eficaz de promoção do princípio constitucional da isonomia. As mulheres, como outros segmentos sociais, continuam a não exercer plenamente a capacidade de contribuir para as questões que afetam a sociedade, ou seja, não exercem o poder de forma plena45. Há muito tem-se afirmado a ineficácia do sistema de cotas eleitorais no Brasil e levantado a necessidade de que outras medidas sejam postas em prática, como a adoção de cotas de reserva de vagas no parlamento as mudanças no sistema eleitoral no tocante a adoção de lista fechada ou flexível, com a alternância de candidatos por sexo na lista. É sabido que tais medidas por si só, não podem incrementar a representação política da mulher e que a problemática não pode ser analisada apenas por esta ótica. As cotas eleitorais são medidas essencialmente temporárias, intervenções de natureza "cirúrgica" que visam sanar determinado problema que se revela urgente e que cedo ou tarde devem ser retiradas do ordenamento jurídico. Deve ser consolidada em nossa sociedade a noção de empoderamento feminino, pois as mulheres podem sim ocupar espaços de decisão, em qualquer âmbito, quer público ou privado devendo ser tratada de forma isonômica ampliando-se o acesso à educação, à profissionalização, o combate à violência doméstica, de forma a superar os traços do patriarcado. Há que se discutir o papel da mulher na sociedade, que foram inseridas intensamente no mercado de trabalho no decorrer do século XX, mas ainda estão fortemente associadas ao âmbito familiar, sendo grande ainda a desigualdade entre homens e mulheres.

45 ARAÚJO, 2011.

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42

APENDICE A

Quadro 1 – Estatuto dos partidos políticos segundo a presença de órgão para mulheres e a adoção de ações afirmativas de gênero

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Fonte: Elaborado pelas autoras com base nos estatutos dos partidos disponíveis no sítio eletrônico do TSE

Legenda: AA1: Ação afirmativa 1 - Reserva de vagas para mulheres em órgãos, na diretoria ou nas listas partidárias; AA2: Ação afirmativa 2 - Destinação de 5% do fundo partidário para o programa de promoção da participação política da mulher;

Sem AA: não há previsão de ação afirmativa no estatuto do partido.

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46

DIRIGISMO CONSTITUCIONAL E DESENVOLVI-MENTISMO: A ATUALIDADE DO COMPROMISSO

SOCIAL DO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO

Yago Roberto Lopes Correia Lima1

Ana Teresa Ribeiro Da Silveira2

Introdução O problema instaurado pelo constitucionalismo dirigen-te não é novo e já foi profusamente discutido no exterior, através da matriz teórica Canotilho-Lerche-Crisafulli, e no Brasil, atra-vés de Streck-Faria-Grau-Bercovici-Comparato. Vale referir, o constitucionalismo compromissório assumiu vasta importância em solo latino-americano, ou no chamado capitalismo periféri-co, e inspirou a promulgação de várias Cartas Constitucionais com missões interventivas, sociais e redistributivas, sobretudo após a erosão das ditaduras militares.1 Graduando em Direito pelo Instituto Camillo Filho. Graduando em Filosofia pela Univer-sidade Federal do Piauí. Membro do Centro de Estudos em Filosofia Americana (CEFA-SP). Estagiário do Ministério Público do Estado do Piauí – Fazenda Pública.2 Graduada em Bacharelado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (2001). Mes-tre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2006). Doutora em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2011). Professora adjunta do Instituto Camillo Filho e Assessora jurídica do Tribunal de Contas do Estado do Piauí.

II

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Diante disso, a questão que se coloca é: transcorrido quase três décadas de vigência da Constituição, a tese de uma Constituição dirigente ainda é sustentável? Tomando, portanto, como pano de fundo a matriz teórica legada a partir do dirigismo constitucional, o objetivo do trabalho é apresentar a atualidade do projeto social e compromissório do constitucionalismo latino-a-mericano em épocas de volatilidade econômica e de rediscussão do pacto constitucional diretivo na América Latina, diante do flo-rescimento da Constituição dirigente invertida.

1 O DISCURSO JURÍDICO EMANCIPATÓRIO REVELADO PELO CONSTITUCIONALISMO CON-TEMPORÂNEO.

Em 1909, Lima Barreto, inesquecível literato brasileiro, escreveu o primeiro e um de seus romances mais importantes, in-titulado Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Nele, descreveu de forma primorosa as fissuras da jovem república brasileira, atra-vés da dura trajetória vivida por Isaías Caminha, prodígio rapaz nascido no interior, que viu, no Rio de Janeiro do alvorecer do sé-culo XX, genuínas esperanças de ascender socialmente e realizar seus sonhos3.

Nesse contexto, pode-se dizer que o constitucionalismo

produzido após a Segunda Guerra Mundial, isto é, no interior do

qual Eric Hobsbawn denominou de Era dos Extremos4, projetou

algumas consequências importantes para o debate contemporâ-

3 Cf. CAMATTA, Nelson; PAULA, Rodrigo Francisco de. Lima Barreto: Subcidadania, Negação do Estado de Direito e Constitucionalismo Dirigente no Brasil, Direito, Arte e Literatura. XXI Congresso do CONPEDI, Niterói-RJ, Brasil, 31. Out - 03 Nov., 2012. Ver, também, CORREIA LIMA, Yago Roberto; MAGALHÃES, Virgínia Maria. A necessidade de um dirigismo consti-tucional brasileiro através do retrato socioeconômico vislumbrado na obra Recordações do Escrivão Isaías Caminha. V Colóquio Internacional de Direito e Literatura, Uberaba-MG, Bra-sil, 26-28 out. 2016.4 Cf. HOBSBAWNS, Eric. A Era dos Extremos. Trad. Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Com-panhia das Letras, 1995.

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neo em torno da cautonomia do discurso jurídico, da garantia dos direitos fundamentais e sociais e do compromisso social assumido pelas constituições democráticas, diante das volatilidades da eco-nomia e da política em épocas de crise. Com efeito, este capítulo pretende realizar um estudo em torno do discurso jurídico (dominante) no constitucionalismo contemporâneo5, que, por sua vez, permite defender a existência de três pontos de partida essenciais para a discussão travada en-tre "volatilidade econômica" versus "autonomia do estatuto jurí-dico-constitucional". Assim, tal perspectiva direciona a discussão para: (a) a constatação de uma autonomia jurídica conquistada por intermédio do reconhecimento da normatividade e da supe-rioridade hierárquica da Constituição; (b) a constatação de uma expansão do papel da jurisdição constitucional na concretização dos direitos fundamentais e sociais; (c) a constatação de uma vin-culatividade do compromisso social e interventivo assumido pelo conceito de objetivos fundamentais, frequentemente acoplado ao conteúdo do dirigismo constitucional. Nesse sentido, pode-se dizer que um ponto indiscutivel-mente útil para a defesa da autonomia de um estatuto jurídico mínimo em face das volatilidades econômicas reside no reconhe-cimento da força normativa e da superioridade hierárquica das disposições constitucionais. Isso porque, tal constatação possibi-lita que o debate em torno da autonomia do discurso jurídico seja enfrentado no plano da evolução do constitucionalismo e do Esta-do, que evidenciam a formação de um paradigma jurídico-consti-tucional incompatível com a (mera) sujeição do estatuto jurídico ao estatuto econômico; discussão que, por seu turno, aponta para a própria incompatibilidade existente entre o constitucionalismo contemporâneo e o constitucionalismo liberal6. Interpretando o atual o estado de coisas do constitucio-

5 Cf. STRECK, Lenio L. Lições de Crítica Hermenêutica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.6 Cf. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 32 ed. São Paulo: Sa-raiva, 2013, p.199 e Cf. Do Estado Liberal ao Estado Social. 7 ed. São Paulo: Malheiros, 2001.

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nalismo contemporâneo, v.g, Pietro Sanchís7 expõe que o neo-constitucionalismo não constitui uma postura pronta e acabada (isto é, "pacificamente compartilhada entre os publicistas"). As-sim, segundo sua concepção, conquanto não possa ser definido por completo, tal fenômeno pode ser concebido a partir de quatro acepções: (a) de um Estado de Direito; (b) de uma teoria do direito; (c) de uma ideologia de filosofia política; (d) ou de uma filosofia jurídica. Para efeito deste estudo, suficiente o exame do aspecto (a), que trata do Estado de Direito. Segundo Pietro Sanchís8, a concepção de um Estado de Di-reito Constitucional, justifica-se pela nova forma de organização política e institucional concebida pelo novo constitucionalismo. Em outras palavras, é que, para Sanchís, o neoconstitucionalis-mo teve o condão de reunir tradições constitucionais "distintas", porquanto albergou tanto o modelo norte-americano (na propor-ção que acolheu o sentido de superioridade constitucional e de constituição como "procedimento") quanto o modelo francês (na proporção que aderiu a uma tradição constitucional destinada a criar um projeto de transformação social e política), com o intuito de perfazer uma solução institucional para os novos problemas do século XX. Como salienta Lenio Streck9, o constitucionalismo con-temporâneo constitui, verdadeiramente, a continuação do projeto do État Providence com um adendo especial: o plus normativo. Em resumo, equivale a dizer que "a Constituição não configura, ape-nas a expressão de um ser, mas também de um dever ser"10. Por esse motivo, como lembra Guastini11, a superioridade hierárquica e a normatividade constitucional produzem consequências rele-7 SANCHÍS, Pietro. Justicia constitucional y derechos fundamentales. 2 ed. Madrid: Editora Trotta, 2009.8 Id., Ibid., passim.9 STRECK, Lenio L. Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.10 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Segio Antonio Fabris, 1991.11 GUASTINI, Ricardo. La Constitucionalización del ordenamiento jurídico: el caso italiano. In: CARBONELL, Miguel (org.) Neoconstitucionalismo (s). Madrid: Trotta, 2003.

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vantes do novo constitucionalismo; quer dizer, na medida em que há uma aproximação entre "a noção" de constitucionalismo e de teoria das fontes12. Para Guastini, tal aproximação se verifica em dois mo-mentos. No primeiro, observa-se com a visão de que a consti-tuição é, realmente, uma "fonte diferenciada", caracterizada pela distinção do procedimento e/ou das exigências criadas para sua própria elaboração (que pode defluir desde uma concepção outor-gada ou promulgada). No segundo, verifica-se com a visão de que a constituição apresenta, também, um procedimento de "reforma agravado", impediente de ab-rogação, derrogação ou modificação por lei de envergadura jurídica positivamente inferior13. Por outro lado, Guastini também defende que do pró-prio ponto de vista do sentido das fontes jurídicas, a constituição pode ser vista a partir de três perspectivas. A primeira, relativa à circunstância de ela conter mandamentos normativos disci-plinadores e organizativos das relações entre o Poder Público e os particulares, e entre estes e o Estado (lato sensu). A segunda, consistente na idoneidade de a constituição conter instrumentos para invalidar normas anteriores de nível subconstitucional mate-rialmente incompatíveis com seu texto ou para invalidar normas posteriores de nível subconstitucional (formal e materialmente) em desacordo com seus preceitos14 . Por fim, Guastini destaca o terceiro sentido de "fontes ju-rídicas", ligado à ideia de que a constituição não submete aos seus rigores apenas a disciplina entre o cidadão e o Estado (perspecti-va vertical do direito público), mas também entre os particulares (perspectiva horizontal). Portanto, para o autor italiano, é possí-vel encarar o particular como sujeito passível de "aplicação" por parte dos juízes constitucionais15. Ora, este último ponto destacado por Guastini diz exata-mente respeito à ampliação do papel endereçado à justiça cons-

12 Id., Ibid.13 Id., Ibid.14 Id., Ibid.15 GUASTINI, Ricardo, op.cit.

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titucional no Direito pós-Auschwitz16. Indubitavelmente, como lembra Luigi Ferrajoli17 – inclusive quando propõe uma revisão terminológica do neoconstitucionalismo para constitucionalismo jurídico ou Estado Judicial de Direito – o Estado Democrático de Direito – ou, mais amplamente, social e ambiental, como quer Ingo Sarlet18 – fornece importantíssimos poderes hermenêuticos19 para os juízes na concretização da Constituição. Isso indica que, respeitado "o esquema organizatório-funcional constitucionalmente estabelecido", como afirma Canotilho20, a missão institucional incumbida à justiça constitucional liga-se, frequentemente, à realizabilidade e à efetivação dos direitos fundamentais e dos direitos sociais. Para a maioria dos autores, esse fenômeno se verifica com aumento das atribuições das Cortes Constitucionais, que podem ser mais ou menos sumarizadas do seguinte modo:

1)Tutela dei diritti e delle libertà fondamentali (sponsor et defensor iurum et libertatum; Grundrechtschutz); 2) garanzia della pace interna e dell’unità politica (sponsor et defensor pacis et unitatis; Staatsgerichtsbarkeit – Kompetenzgerischtsbarkeit): in tale veste l’organo di giustizia costituzzionale agisce quale arbitro e mediatore in sede di risoluzione dei conflitti interorganici e dei conflitti intersoggettivi, nonché quale garante del sistema di articolazione delle competenze; 3) tutela della comunità statale (defensor rei publicae, censor civitatis – Staatsschutz): in tale veste l’organo di giustizia costituzionale giudica, in sede di giurusdizione penale, sulle acuse formulate contro il capo dello stato, ministri ecc (...); funge da organo di verifica della legittimità costituzionale dei partiti politici; è l’instanza che dichiara la perdita dei diritti fondamentali in caso di abusi da parte del titolare; 4) garanzia della democracia: l’organo di giustizia costituzionale si configura quale custode di un correto procedimento elettorale; 5) verifica

16 Cf. LOSANO, Mario G. Sistema e Estrutura no Direito. Volume 2: O Século XX. São Paulo: Martins Fontes, 2010.17 FERRAJOLI, Luigi. Constitucionalismo garantista e constitucionalismo principialista. Tra-dução de André Karam Trindade. In: FERRAJOLI, L; STRECK, L.L; TRINDADE, Andre Karam (orgs). Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.18 SARLET, Ingo; MARINONI, Luiz G.; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. Revista dos Tribunais, 2012.19 Cf. STRECK, Lenio L. O que é isto – decido conforme minha consciência? In: Coleção O Que é Isto? v.1. 4 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.20 CANOTILHO, J.J. GOMES. Direito constitucional e teoria da constituição. 3 ed. Coimbra: Almedina, 1999, p.1224.

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in via preventiva della illegitimià costituzionale di progretti di legge ed emanazione di pareri in mérito (funzione consultiva); 6) funzioni di instanza giurisdizion ale di grado supremo; 7) funzione nomofilatica di guardiano della legge, custode della Constituzione, garante dell’ordinamento costituzionale oggettivo e del sistema gerarchico delle fonti adottato dal medesimo. (apud defensor et sponsor iuris in senso lato21

De conseguinte, cumpre salientar o último aspecto des-ta seção, relativo ao discurso dirigista, profusamente difundido entre franceses e portugueses22, e no plano da doutrina euro-peia, por autores como J.J.Canotilho23, Vezio Crisafulli24 e Peter Lerche25. Como se verá adiante, o constitucionalismo latino-a-mericano aderiu amplamente ao conceito de diretividade esta-tal e econômica via constituição social e normativa, incluindo o Brasil, que acoplou positivamente o discurso compromissório e dirigista ao preceito definidor dos objetivos fundamentais da República na Constituição de 1988 (art.3º).

2 Constitucionalismo latino-americano e Estado social no capitalismo periférico

No direito brasileiro, constitui lugar-comum o conceito de Constituição simbólica desenvolvido por Marcelo Neves26. A partir da matriz teórica Luhmaniana, o publicista denuncia a desidratação normativa e a perda de autonomia jurídica da

21 Marcic, R. Verfassung und Verfassungsgericht, Springer, Wien, 1963, p.90 ss apud MEZ-ZETTI, L. et al. La Giustizia Costituzionale. CEDAM: Padova, 2007, p.7-8.22 VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua reserva de justiça: um ensaio sobre os limites materiais ao poder de reforma. São Paulo: Malheiros, 1999, p.130-131 23 CANOTILHO, J.J. Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador – contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra: Coimbra Ed., 1982.24 CRISAFULLI, Vezio. La Constituzione e le sue disposizioni di principio. Milano: Giuffrè, 1952.25 LERCHE, Peter. Übermass und Verfassungsrecht: zur Bildung des Gezetzgebers an die Grundsätze der Verhältnismässgkeit und der Erforderlichkeit. 2 ed. Goldbach: Keip, 1999.26 NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

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constituição em face da voracidade dos sistemas econômicos e políticos. Tal circunstância, segundo o autor, evidencia uma ameaça direta à concretização da ideologia constitucional e do caráter normativo e compromissório assumido pela constitui-ção em países periféricos27. Concomitantemente, pode-se dizer que o constitucio-nalismo latino-americano projeta um constitucionalismo de contornos particulares, destinado, em último termo, a arquite-tar um estatuto econômico, político e jurídico decididamente compromissório28. Por consequência, inevitável assinalar, quer pela injunção dos acontecimentos históricos, ou pelas caracte-rísticas de cada constitucionalismo, não haver confusão entre neoconstitucionalismo e constitucionalismo latino-americano29. Ora, como lembra Marcelo Neves30, o constitucionalis-mo latino-americano é historicamente marcado "por uma rela-ção pendular entre autocracia e democratização na forma". Por isso, "a retórica política expressa-se mediante o manuseio das fórmulas ‘restauração da ordem’31 e ‘restauração da democra-cia’32, daí por que se avulta "o conflito ou tensão entre realismo idealismo constitucional"33. Por essas razões, justifica-se o núcleo básico do consti-

27 LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la constitución. Trad. Alfredo Gallego Anbiatarte. Barce-lona: Ed. Ariel, 1986 apud NEVES, Marcelo, op.cit., 2007, p.219.28 RODRIGUES, Vicente; VIEIRA, José Ribas. Refundar o Estado: o novo constitucionalismo latino-americano. 2009. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/24243799/UFRJ-Novo--Constitucionalismo-Latino-Americano> Acesso em: 18 nov. 2016.29 BARCELLOS, Renato de Abreu. Revolução ou reforma? Uma reflexão sobre o novo constitucionalismo latino-americano. (In): Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica – RHIJ, Belo Horizonte, ano 10, n.11, p. 257-276, jan/jun, 2012.30 NEVES, Marcelo. Estado Democrático de Direito e Constitucionalismo na América do Sul. P.203-222 (In): BOGDANDY, Armin von; PIOVESAN, Flavia; ANTONIAZZI, Mariela Moraes (Coords.). Direitos Humanos, Democracia e Integração jurídica da América do Sul. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.31 Id., op. cit., p.208. 32 Id.,Ibid., loc. Cit33 Id., Ibid., p. 209.

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tucionalismo latino-americano ser a orfandade e a necessidade34 Isso porque, além de ter uma vida política recente (praticamen-te após o surgimento da Revolução Industrial)35, e de ter tido largos períodos de ausência de democracia efetiva36, outra face-ta da América Latina (mesmo tendo evoluído desde o fim do século XIX)37, é o subdesenvolvimento. Precisamente em decorrência disto, "a orfandade" re-vela que o novo constitucionalismo latino-americano é "[…]um constitucionalismo eminentemente caracterizado por uma radicalização da questão da legitimidade nos processos constituintes"38. Como ressalta Renato de Abreu Barcellos, esse novo constitucionalismo latino-americano é um consti-tucionalismo sem país39, pois, "ninguen, tirando o pobo, pode sentirse proxenitor da Constituicion, pola xenuína dinâmi-ca participativa e lexitimadora que acompanha os processos constitucionales"40. Lembra a propósito Renato Barcellos, mencionando Dalmau e Pastor, que o novo constitucionalismo latino-ame-ricano pode ser entendido como constitucionalismo de neces-sidade, "na medida em que os contextos sociais em que surgiu eram caracterizados pela instabilidade político-institucional, de conflito social, onde a Constituição era incapaz de fazer valer sua força normativa, principalmente os direitos funda-

34 BARCELLOS, Renato de Abreu, op.cit.35 FURTADO, Celso. A economia latino-americana: formação histórica e problemas con-temporâneos. 4 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.2536 STRECK, Lenio L. A jurisdição constitucional e as Possibilidades Hermenêuticas de Efetivação da Constituição: Um Balanço Crítico. Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional, Curitina/PR, v.3, p.367-404, 2003.37 FURTADO, Celso, op.cit, loc.cit.38 BARCELLOS, Renato Abreu de, op.cit.39 BARCELLOS, Renato Abreu de, op.cit.40 MARTÍNEZ, DALMAU, Rubén. Asembleas constituintes e novo constitucionalismo em América Latina. Tempo Exterior, Baiona, n. 17, p.5-15, jul/dez. 2008, p-6.

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mentais nela encartados"41. Por consequência, segundo sua concepção, o novo constitucionalismo latino-americano veio a substituir o velho considerado "fraco, adaptado e retórico"42. No caso brasileiro, "a Constituição de 1988 não se limita a organizar o sistema político e a garantir direitos, mas regula largos setores da economia e também da esfera social"43, encar-tado, positivamente, em "um longo documento, com 245 arti-gos e mais 70 artigos no Atos de Disposições Constitucionais Transitórias, com enorme pretensão normativa"44. Com isso, conquanto Renato Barcellos considere vanguardistas do novo constitucionalismo latino-americano a constituição colombia-na, a venezuelana, a boliviana e a equatoriana45, vale lembrar que os países estão ligados por circunstâncias históricas, políticas e econômicas inquestionavelmente semelhantes, sobretudo em face da recente redemocratização ou reconstitucionalização46. Nesse sentido, Renato Barcellos organiza uma espécie de "planta" do constitucionalismo latino-americano. Para tanto, define como características formais: a originariedade, a amplitude, a complexidade e a rigidez; e materiais: a relação umbilical entre povo e governo, a profusão de direitos e a intervenção do Estado na economia47 Para Barcellos, tais características demonstram que o constitucionalismo latino-americano não abandonou a forma liberal de constituição, considerada "[…] positiva, escrita, articulada e racionalizada"48; 41 BARCELLOS, Renato Abreu de, op.cit, p.264-265. 42 Id., ibid., p.208.43 VIEIRA, Oscar Vilhena, op. cit, 1999, p.130.44 Id., Ibid., loc. cit.45 BARCELLOS, Renato Abreu de, op. cit., p.268.46 Cf. BONAVIDES, Paulo. Constitucionalismo Comparativo: Peculiaridades em la Forma-ción Constitucional del Brasil. In: ROIG, Francisco Javier Ansuátegui. El Derecho en Red: Estudios em Homenaje al professor Mario G. Losano. Lisboa: Editorial Dyckinson, S.L, 2006.47 BARCELLOS, Renato Abreu de, op.cit, passim.48 BARCELLOS, Renato Abreu de, op.cit, p. 265.

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em verdade, o constitucionalismo latino-americano procurou novos arranjos a fim de dar conta da realidade circundante; por isto, pode ser considerado experimental49. Outro ponto destacado por Barcellos acerca do constitucionalismo latino-americano é "a amplitude" dos documentos normativos. Por exemplo, em um simples exame constata-se que: "[…] a Constituição colombiana de 1991 tem 380 artigos; a Constituição venezuelana de 1999, 350 artigos; a Constituição equatoriana de 2008, impressionantes 444 artigos; e a Constituição boliviana de 2009, 411 artigos"; a brasileira, de 1988, tem 250 artigos50. Para Martínez Dalmau, isso significa que o constituinte quis apenas expressar claramente sua vontade nos textos normativos. Por fim, outro ponto destacado por Renato Barcellos e Martínez Dalmau refere-se à complexidade e à releitura da rigidez institucional. Para eles, a complexidade institucional indica que essas constituições latinas buscam soluções para melhor se adaptar[em] à realidade, já a releitura da rigidez, indica a previsão de um procedimento dificultoso para a alteração de seus textos, visando à proteção da identidade constitucional do(s) poder(es) derivado(s)51. Há outros pontos do constitucionalismo latino-americano salientados por Renato Barcellos, como as novas formas de participação política e de intervenção econômica52. Com efeito, o trajeto político e econômico que define a América Latina permite que ainda possamos identificar a (vetusta) distinção entre capitalismo dependente e capitalismo de centro. Isso porque, "[…] o modo como os países se desenvolveram, isto é, o modo como atravessaram processos de colonização, modernização, industrialização, inovação, inserção internacional, democratização, positivação e implementação de

49 Id., Ibid., p.266. 50 Ib., Ibid., loc. cit.51 Id., Ibid., p.267-268.52 Id., Ibid., p.268.

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direitos"53, pode ser um elemento explicativo dos níveis de desigualdade observados na América Latina. Como conclui Gilberto Bercovici:

Afinal, não podemos esquecer que o subdesenvolvimento, em suas raízes, é um fenômeno de dominação. O subdesenvolvimento é um processo histórico autônomo, não uma etapa pela qual, necessariamente, os países desenvolvidos passaram. Segundo Celso Furtado, ele é a manifestação de complexas relações de dominação entre os povos e que tende a perpetuar-se. Deste modo, é fundamental ter consciência da dimensão política do subdesenvolvimento. O que houve nos países periféricos foi a modernização, sem nenhuma ruptura com as estruturas socioeconômicas, mantendo-se a reprodução do subdesenvolvimento. Não existe uma tendência à passagem automática da periferia para o centro do sistema econômico capitalista. Pelo contrário, a única tendência visível é a da continuidade do subdesenvolvimento dos países periféricos. Portanto, o esforço para superar o subdesenvolvimento requer um projeto político apoiado por vários setores sociais, pois se trata da superação de um impasse histórico54.

Como lembra Mário Martinelli, "na década de 1990, os Estados latino-americanos, sob pressão dos credores internacionais e dos agentes financeiros multilaterais, seguiram o padrão neoliberal de reformas estatais" 55, a exemplo da "desarticulação dos sistemas nacionais de regulação econômica em Estado cujas dívidas já haviam sido alimentadas nas décadas de 1970 e 1980 pela crise do petróleo e dos juros" 56. No caso brasileiro, conforme acentua Gilberto Bercovici, adveio com a chamada "Reforma do Estado", "especialmente por meio de emendas à Constituição de 1988 e da criação de 53 COUTINHO, Diogo R. Direito, Desigualdade e Desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2013, p.57.54 BERCOVICI, Gilberto. A crise e a atualidade do Estado Social para a periferia do capita-lismo, n.13, 2013, Estudos do Século XX, Estado Providencia, p. 129-144, Separatas, p.143.55 MARTINELLI, Mario Eduardo. A determinação dos direitos de igualdade material no neoliberalismo. Campinas: Millennium Editora, 2009, p.222. Cf: SILVEIRA, Ana Teresa Ri-beiro da. As organizações sociais e o exercício das competências públicas. 2011. 229f. Tese (Doutorado em Direito) Faculdade de Direito da PUCSP. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, p.22-50. 56 Id. Ibid., p.219.

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novos órgãos públicos, chamados de agências, imitando a estrutura administrativa norte-americana"57. Por isso, conclui Martinelli que:

O subdesenvolvimento verificado nos Estados periféricos não consiste apenas na insuficiência de poupança interna para a realização dos investimentos necessários em modernização tecnológica e infraestrutura. O subdesenvolvimento também não corresponde apenas ao pequeno crescimento do produto nacional bruto e ao grau insuficiente de industrialização, avanço tecnológico e modernização. O subdesenvolvimento das economias periféricas implica a existência de fontes de privação maciça da liberdade humana, como a pobreza, carência de oportunidades econômicas e negligência dos serviços públicos. A pobreza, aliás, não significa somente baixo nível de renda. A renda é apenas um índice de avaliação de pobreza. A pobreza refere-se ainda a uma série de outras privações relacionadas a outras variáveis como desemprego, doença, baixo nível de instrução e exclusão social. A pobreza exprime, portanto, uma privação de vários direitos fundamentais integrados, interelacionados e indissociáveis. Persistem nas economias periféricas extensos segmentos populacionais excluídos dos benefícios da sociedade orientada pelo e para o mercado. São milhões de homens supérfluos, privados dos direitos de igualdade material e para os quais as liberdades individuais são direitos completamente ocos58. Talvez um dos maiores desafios das economias periféricas do capitalismo mundial ‘consista na necessidade de liberdade os trabalhadores de um cativeiro explícito ou implícito que nega o acesso ao mercado de trabalho aberto’59.

Dessa forma, observa-se que o novo

constitucionalismo latino-americano nasceu com um

nítido compromisso emancipatório, visando a proteger

as liberdades fundamentais e os direitos sociais de

forma ampla, originária e complexa, e visando também a

superar as raízes do próprio subdesenvolvimento. Com o

objetivo, portanto, de lançar um alerta sobre um suposto

f lorescimento de uma Constituição Dirigente Invertida,

57 BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e Desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2005, p.7458 MARTINELLI, Mario Eduardo, op.cit, 2009, p.225.59 SEM, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Trad. Laura Teixeira Motta. São Pau-lo: Companhia das Letras, 2000, p.131 apud Id., op.cit, loc.cit.

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passamos ao último capítulo deste estudo.

3 A atualidade do compromisso social assumido pelo constitucionalismo latino-americano

Recentemente, Regina Cláudia Gondim Bezerra Fa-rias, publicou estudo relevante intitulado Estado mínimo, para quem? : uma reflexão sobre Estado, política, privatizações e demo-cracia no Brasil e na Argentina60, em que compara "A reforma do Estado" ocorrida no Brasil e na Argentina na década de 1990. No estudo, Farias demonstra que o projeto de desestatização dos serviços públicos e de ajuste fiscal proposto pelo governo argentino não logrou êxito, visto que não alavancou o desen-volvimento do país e não recuperou os investimentos no setor privado. Ao contrário, institucionalizou desigualdades entre os cidadãos e alimentou indicadores sociais recalcitrantes. Vale lembrar, além da crise do capitalismo global in-ternacional em curso61, o continente latino-americano atravessa um momento de grande conservadorismo, devido ao desgas-te de governos sociais e assistencialistas de cunho demagógi-co e autocrático (populistas), que, segunda indica o Índice de Percepção de Corrupção de 201662, deve ter impacto sobre o aumento de desconfiança nas democracias. Isto, com efeito, já se constatou nas recentes eleições presidenciais do Peru (2016) e da Argentina (2015), e, no limite, deve evidenciar uma distor-

60 FARIAS, Regina Cláudia Gondim Bezerra. Estado mínimo, para quem?: uma reflexão sobre Estado, política, privatizações e democracia no Brasil e na Argentina. XIII Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Buenos Aires, Argentina, 4-7 nov. 2008. Disponível: <<portaltcu.gov.br/biblioteca-digital/estado-mí-nimo-para-quem-uma-reflexão-sobre-estado-política-privatizações-e-democracia-no-bra-sil-e-na-argentina.htm>> Acesso em: 18 nov. 2016.61 CASTELLS, M.; CARDOSO, G.; CARAÇA, João (orgs). A crise e seus efeitos: as culturas eco-nômicas da mudança. Tradução de Alexandra Figuereido, Liliana Pacheco e Túlia Marques. São Paulo: Paz e Terra, 2013.62 BARBOSA, Vanessa. Estes são os 40 países mais corruptos do mundo. Exame Abril. São Paulo, 27 jan. 20016. Mundo. Disponível em: <<exame.abril.com.br/mundo/estes-são-os--40-países-mais-corruptos-do-mundo/>> Acesso em: 18 nov. 2016.

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ção do papel erigido pelo constitucionalismo latino-americano. Ou, de forma mais direta:

Por outras palavras: a constituição dirigente das políticas públicas e dos direitos sociais é entendida como prejudicial aos interesses do país, causadora última das crises econômicas, do déficit público e da "ingovernabilidade"; a constituição dirigente invertida, isto é, a constituição dirigente das políticas neoliberais de ajuste fiscal é vista como algo positivo para a credibilidade e confiança do país junto ao sistema financeiro internacional. Esta, a constituição dirigente invertida, é a verdadeira constituição dirigente, que vincula toda a política do Estado brasileiro à tutela estatal da renda financeira do capital, à garantia da acumulação de riqueza privada.63

Com afirma Gilberto Bercovici, "[...] a crítica feita à constituição dirigente diz respeito, entre outros aspectos, ao fato de a constituição dirigente ‘amarrar’ a política, substituin-do o processo de decisão política pelas imposições constitucio-nais"64. Isso, bem se vê, não se compatibiliza com aquilo que Lenio Streck denomina de "Teoria da Constituição Dirigente Adequada a Países de Modernidade Tardia"65 que aponta para a superação do triângulo dialético de Canotilho66. Ao contrário, a materialidade presente nos textos consti-tucionais latino-americanos demonstra que o constitucionalismo está destinado a superar as promessas incumpridas da moderni-dade, a superar o subdesenvolvimento, a criar condições dignas de existência para "homens supérfluos", à medida que se preserva a autonomia do direito como fundamento normativo, não como fundamentum inconcussum absolutum veritatis — mas hermenêu-tico67. Neste ponto reside o compromisso assumido pelo Estado

63 BERCOVICI, G.; Massonetto, L.F. A Constituição Dirigente Invertida: A Blindagem da Cons-tituição Financeira e a Agonia da Constituição Econômica. Boletim de Ciências Econômicas, v.XLIX. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2006.64 BERCOVICI, G.; MASSONETTO, L.F., op.cit, p.73.65 STRECK, Lenio L., op.cit. 66 STRECK, Lenio L., op. cit., p.139.67 STRECK, Lenio L.; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. A "secura" a "ira" e as condições para que os fenômenos possam vir à fala: aportes literários para pensar o estado, a economia e a au-tonomia do direito em tempos de crise. In: STRECK, Lenio L.; TRINDADE, Andre Karam (orgs). Direito e Literatura: da realidade da ficção à ficção da realidade. São Paulo: Atlas, 2013.

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Social (Welfare State)68, o que não implica permitir que o conceito de constitucionalismo dirigente ocasione a desubstancialização69, por via oblíqua, do próprio constitucionalismo latino-americano.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nas últimas décadas, proliferou no mundo ocidental o conceito de constitucionalismo dirigente, a vicejar nas democracias constitucionais após a Segunda Guerra Mundial. No caso da América Latina, o constitucionalismo social e dirigente assumiu contornos ainda mais especiais, evidenciado, primeiramente, com o surgimento de uma vinculatividade constitucional simbólica e de uma desjuridicação das imposições constitucionais. Em um segundo momento, verificou-se que o consti-tucionalismo latino-americano criou algumas inovações que o permite inserir em um novo contexto do constitucionalismo, de feição interventiva, social, complexa, prolixa e concretista. Todavia, a crise do capitalismo global internacional legou para o mundo uma crise sem precedentes. No caso latino-americano, a referida crise econômica foi agravada pelo aumento da cor-rupção nos governos populistas latino-americanos, e repercutiu no aumento da desconfiança popular e dos mercados. Dessarte, tais desconfianças revelam os desafios a serem enfrentados pelo constitucionalismo latino-americano. Revela, sem dúvida, a atualidade do constitucionalismo compromissó-rio nas economias dependentes, e a missão dessas constituições na realização das promessas não cumpridas na modernidade. Por último, revela também os perigos existentes na própria "de-substancialização" dessas constituições.

68 Cf. HABERMAS, Jürgen. A nova intransparência: a crise do Estado de bem-estar social e o esgotamento das energias utópicas. Tradução de Carlos Alberto Marques Novaes. Revista Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.18, p.103-114, set. 1987.69 Cf. BERCOVICI, G. Constituição e Política: Uma Relação Difícil. Lua Nova, São Paulo – SP, v.61, p.5-24, 2004. Disponível em: <<www.scielo.br/scielo,php?script=sci_arttext&pi-d=S102-64452004000100002&Ing=pt&nrm=iso&tlng=pt>>. Acesso em: 19 nov. 2016.

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FEMINICÍDIO NO SISTEMA PENAL BRASILEIRO: ANÁLISE CRÍTICA ALÉM DA TIPIFICAÇÃO1

Carolina Pereira Madureira2

Andreia Marreiro Barbosa3

Introdução Aindaé invisívelabibliografiaque tratadegênero, so-bretudo de feminicídio – especialmente nos cursos jurídicos, oqueésintomático.Entenderaproduçãoacadêmicacomolocaldefalacompoucasmulheresécompreenderquetambémnasnossasuniversidades o regime de vida “gênero” segrega e exclui, poiscontinua a dicotomia rua-casa,naqual àmulher é destinadooespaço doméstico e não o acadêmico. A dominação masculina, 1 O presente artigo foi elaborado como trabalho de conclusão da disciplina Direitos Hu-manos, ministrada pela Profa. Ma. Andreia Marreiro Barbosa, durante o primeiro semestre

de 2016.2 Estudante de graduação do curso de Direito na Universidade Federal do Piauí (UFPI).3 Mestra em Direitos Humanos e Cidadania pela Universidade de Brasília. Bacharela em Direito pela Universidade Estadual do Piauí. Coordenadora de Pesquisa, Pós-Graduação e Extensão da Faculdade Adelmar Rosado. Coordenadora do Curso de Especialização em Direitos Humanos Esperança Garcia e Co-coordenadora do Núcleo de Estudo, Pesquisa e Extensão Lélia González na mesma instituição. Professora substituta do Curso de Direito da Universidade Estadual do Piauí. Vice-Presidenta da Comissão da Verdade da Escravidão Negra da OAB/PI e membra da Comissão de Direitos Difusos e Coletivos.

III

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livrodePierreBourdieu(2002,p.20),atentaparaessarealidadedenegaçãodoespaçopúblicoàsmulheres:

cabeaoshomens,situadosdoladoexterior,dooficial,dopúblico,do direito, do seco, do alto, do descontínuo, realizar todos osatos aomesmo tempobreves, perigosos e espetaculares, comomataroboi, a lavouraoua colheita, sem falardohomicídioedaguerra,quemarcamrupturasnocursoordináriodavida.Asmulheres, pelo contrário, estando situadas do lado úmido, dobaixo, do curvo e do contínuo, vêem ser-lhes atribuídos todosostrabalhosdomésticos,ouseja,privadoseescondidos,ouatémesmo invisíveis e vergonhosos […]. Pelo fato de o mundolimitado [a] que elas estão confinadas, o espaço do vilarejo, acasa, a linguagem, os utensílios, guardaremosmesmos apelosà ordem silenciosa, asmulheres não podem senão tornar-se oqueelassãosegundoarazãomítica,confirmandoassim,eantesdemaisnadaaseusprópriosolhos,queelasestãonaturalmente

condenadasaobaixo,aotorto,aopequeno.

Recordemos aqui do Massacre da Escola Poli-técnica da Universidade de Montreal, ocasião em queMarc Lepine, estudante de 25 anos, invadiu a esco-la e atirou em 28 pessoas enquanto perguntava “vocêssão todas feministas?” O massacre resultou na mortede 14 mulheres por um estudante que não aceitava suarejeição na universidade em detrimento da aceitaçãodessas mulheres brutalmente assassinadas. A ocupaçãode espaços socialmente destinados ao gêneromasculino,talqualaEscolaPolitécnicadaUniversidadedeMontreal,exemplifica uma prática cotidiana: a mulher devecorresponder às expectativas geradas pelo patriarcado.Quando essas expectativas são frustradas, os homenssentem-senodireitodepuniracondutacomviolência,sejaelapsicológicaoufísica–istoé,decometer"feminicídio". AdenominadaLeidoFeminicídio foipromulgadaem2015comointuitodeaumentarasfontesdeanálisedapráticade violência de gênero, que, embora cotidiana, não é conta-bilizada. Segundo essa lei, constitui feminicídio o crime queevidenciamenosprezooudiscriminaçãoàcondiçãodemulher.Nessediapasão,anovatipificaçãoincidedemodoqueosbo-letinsdeocorrência eos inquéritospoliciais sejam fontesde

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qualificaçãoequantificaçãodosabusos,dandovezevozàlutadasmulherescontraaviolênciadegênero. SegundoMarcelaLagardeydelosRíos(2008),feminicídioéogenocídiodemulhereseocorrequandoascondiçõeshistóricasgerampráticassociais,permitindoatentadoscontraaintegridade,asaúde,asliberdadeseavidademeninasemulheres.Opresentetrabalho problematiza a criação da qualificadora penal a partirda compreensão do gênero como construção sociológica quese intersecciona com outros marcadores, como raça e classe,importantesparaentenderoassassinatodemulheresporseremmulheres. Para isso, realizou-se uma pesquisa bibliográfica edocumental a partir dos estudos feministas e da CriminologiaCrítica,comvistasaentenderofeminicídiocomocrimediversodohomicídio.Visou-se,também,compreenderatipificaçãoeseusefeitosparademonstrarporqueoinstitutogenérico"homicídio"éineficazparaevitarasmortesporcrimesdegêneroe,aomesmotempo,pensaraslimitaçõesdatipificaçãopenal. NosdizeresdeSinaraGumieri(2013),acríticaàestruturafundamentalmente androcêntrica do direito como gênero e dodireito penal emparticular lança dúvidas sobre sua efetividadecomomeiodetransformaçõesemfavordaemancipaçãofeminista.A saída, nesse contexto, se situa em transformar o direito, deinstrumentodedominação,emmeiodelegitimaçãodedemandasfeministas.

1 A NOMEAÇÃO E OS LIMITES DO DIREITO PENAL COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO ÀS MULHE-RES

Feminicídioéaviolaçãodosdireitosdasmulheresatravésdaviolênciadecorrenteunicamentedoregimedegênero.Nesseprisma, gênero éuma construção sociológicada qual se vale opatriarcado como marco de poder (Diniz, 2015). A tipificaçãodo feminicídio abrange, então, a matança dos corpos sexados

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dasmulheres,amaculaçãodeseusdireitoshumanos.O intuitodo presente ensaio, no entanto, não é o de vitimizar amulher,masdereforçaraexpressivaconcentraçãodeviolênciasobreoscorposfemininoseargumentarqueasrelaçõesviolentasexistemporqueasrelaçõesassimétricasdepoderpermeiamarotinadasbrasileiras. Assim,feminicídiocompreendeoassassinatodeumamu-lhercometidoporrazõesdacondiçãodesexofeminino,noster-mosdaLei13.104/2015:“violênciadomésticaefamiliare/oume-nosprezooudiscriminaçãoàcondiçãodemulher”(Brasil,2015).Osparâmetrosquedefinemaviolênciadomésticacontraamu-lherestãoestabelecidospelaLeiMariadaPenha:açãoouomissãobaseadanogêneroquelhecausemorte,lesão,sofrimentofísico,sexualoupsicológicoedanomoraloupatrimonial,noâmbitodaunidadedoméstica,dafamíliaouemqualquerrelaçãoíntimadeafeto,independentementedeorientaçãosexual. Nessesentido,aviolênciadegêneronaintimidadeamo-rosarevelaaexistênciadocontrolesocialsobreoscorpos,ase-xualidadeeasmentesfemininas.Evidencia,aomesmotempo,ainserçãodiferenciadadehomensemulheresnaestruturafamiliaresocial,assimcomoamanutençãodasestruturasdepoderedo-minaçãodisseminadasnaordempatriarcal.EmBourdieu(2002),entendemosoEstadoeaescolacomomacroestruturasdedomi-naçãomasculina,aopassoqueaviolênciadomésticarepresentaumamicroestrutura.Aviolênciafísicaesexualperpetua-se,nes-tesespaços,comoformadecontrole,jáqueseancoranaviolênciasimbólica.Épapeldo feminismoa lutapolítica contra todasasformasdedominação,bemcomooempoderamentofeminino.Oprocessoinverso,dereconhecimentodosprivilégiospelodomi-nador,parecemenosprovável,jáqueessesprivilégiosforamhis-toricamenteconstruídos. ParaBourdieu(2002),amobilizaçãocoletivaderesistên-ciafemininaporreformasjurídicasepolíticastemocondãodedes-historicizar a violência simbólica. A dominação masculinaseria,nessa lógica,umaformaparticulardeviolênciasimbólica

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naqualopoderimpõesignificaçõescomolegítimasparadissimu-larasrelaçõesquefuncionamcomobaseparaamanutençãodaprópriaforça.Adominaçãodohomemsobreamulheréexercidapormeiodeumaviolênciasimbólica,compartilhadainconscien-tementeentredominadoredominado.Aesserespeito,oautoréenfático:

o efeito da dominação simbólica (seja ela de etnia, de gênero,de cultura, de língua etc) se exerce não na lógica pura dasconsciências cognoscentes, mas através dos esquemas depercepção, de avaliação e de ação que são constitutivos dos‘habitus’equefundamentam,aquémdasdecisõesdaconsciênciae dos controles da vontade, uma relação de conhecimentoprofundamenteobscuraaelamesma(Bourdieu,2002,p.49).

Quandosediscuteaviolênciadegênero,osensocomumlevaapensarnasviolaçõesaosdireitosdasmulheresocorridasnoOriente.Essepensamentodecorredoimperialismomoralti-picamente ocidental, que demoniza as práticas de cerceamentodedireitoshumanosnoOriente,esquecendo-sedasviolaçõesoci-dentaisdiuturnas.ÉfatoqueexisteviolênciacontraamulhernoOriente,comoemtodasassociedades,masnomundointeiroaviolênciaatreladaaogênerogeravítimas. Exemplo disso é a exposição de Mariza Corrêa (2001),pioneiranoestudodecrimesdehonra–crimesintimamentere-lacionadosaoregimedevida“gênero”.Paraaautora,aquestãoémulticultural:tantoempaísesdetradiçãocatólicacomoempaísesdetradiçãomuçulmanaaquestãodahonraencobreoutrasques-tões,sendoobjetodeusospolíticos.Adiferençamarcanteéque,naAméricaLatina,sãooscompanheirosquematam,aopassoqueempaísesislâmicosaquestãodahonraévinculadaàfamíliadeorigem.Se,emumcaso,trata-sedejustificaroorgulhoferidodomarido,nooutro, trata-sede reconstituiras relaçõesda famíliadeorigemdamulher.Emsuma,seoEstadodeDireitoforfraco,emqualquerlatitude,vaiimperaraleidomais“forte”(commaiorlegitimaçãosocial). LourdesBandeira (2014) constata ainda que escolher ousodacategoria“violênciadegênero”significaentenderqueasaçõesviolentassãoproduzidasemcontextoseespaçosrelacio-

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naise,portanto,interpessoais,comcenáriossociaisehistóricosnãouniformes.Acentralidadedasaçõesviolentasincidesobreamulher,sejamestasviolênciasfísicas,sexuais,psicológicas,pa-trimoniaisoumorais,tantonoâmbitoprivado-familiarcomonosespaçosdetrabalhoepúblicos. À luz da ideia de gênero, compreendemos como a al-teridade deve se fazer presente no estudo da violência contraamulher quando comparada com outras violências.Motivadopelogênero,oserviolentonãoatuaparaaniquilarooutrocomopessoaconsideradaigualoudetentoradasmesmascondiçõesdeexistênciaevalor.Aocontrário,aviolênciadegênerotemcunhodedominaçãodohomemesubsequentesubmissãofeminina. A antropólogaRita Laura Segato (2006) afirma em seutrabalho“Queésunfeminicidio:notasparaundebateemergen-te”queaviolaçãodocorpodamulherenquantoterritóriocarac-terizadordesuaidentidadelevaàcompressãodequeaviolaçãodoscorpos(queconversacomnossaculturadoestupro)eacon-quistaterritorialmasculinatêmandadoladoalado.Oscrimesdopatriarcado,compreendidoscomofeminicídio,têmduplafunção:amanutençãoeareproduçãodopoder. OMapadaViolência2015–focadonasquestõesdegê-nero e fundamentado emdados levantadospelaONUMulhe-res:EntidadedasNaçõesUnidasparaaIgualdadedeGêneroeoEmpoderamentodasMulheres–repisaqueasestatísticassobrefeminicídio no país são praticamente inexistentes. Na mesmapesquisa,diz-sequeoBrasiléoquintopaísdomundoondemaissematammulheres.AtrásapenasdeRússia,Guatemala,Colôm-biaeElSalvador,nossanaçãopossuiumataxade4,8mortespor100.000mulheres. Em conformidade comoMapadaViolência2012,aagressividadefatalatingiumaisde50milmulheresentre2000e2010(Waiselfisz,2012,2015). Ora, ressaltar que não se possui ummapeamento dedadosacercadaviolênciadegêneroemumpaísondemulheressãomortasdiariamenteporhomenslegitimadoséescancararoóbvio:oEstadonãosepreocupaemcontabilizaraviolênciaeaviolaçãodedireitosdasmulheresporcrimesdegênero.

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Os cadáveres das vítimas de abuso, crimes sexuais, en-treoutrosvárioscrimescometidosemdecorrênciadegênero,so-mam-seàcifradaviolênciasui generis.Oscriminosossãopuni-dos,masnadaéesclarecidosobreoporquêdessasmulheresteremsuavidausurpada.NosdizeresdeDeboraDiniz,énesseencontroentrecadáveresesquecidosematadorespunidosqueseatualizamossentidosdoconceitodefeminicídiopropostoporDianaRusselem1970. Nãoapenasamulherévítimasobretudoderelaçõesdepoder historicamente construídas, mas também seus direitosnão são postos, e sim conquistados através de lutas. É nesseprismaqueoestudodaatuaçãodamilitância feministaedasreivindicaçõesdosmovimentossociaisdemonstraogradualre-conhecimentodagravidadedaquestão,conferindonovoscon-tornosàspolíticaspúblicas,quepassaramdodescasoaoreco-nhecimentocomapromulgaçãodaLeidoFeminicídio.ComoaduzCorrêa(2001),acriaçãodegruposdecombateàviolênciaedeatendimentoàsmulheres,aexemplodoSOSCorpo,deRe-cife(1978)edeSãoPaulo,CampinaseBeloHorizonte(décadade1980),éexemplodessamudançadeagirpolítico. AnecessidadederesistênciafemininaelutapordireitostemraízesnaomissãodoEstadoemtratardoscrimesdegêneroemesmonademoraaconceberoestudodeumacriminologiavoltadaàsmulheres.Nessesentido,olivroCriminologia e femi-nismo retrataoparadigmadaciênciamoderna,queasseguraeescondeadominaçãomasculina.Nacriminologia,oestudodamulhercomovítimaouautoradecrimeseranegligenciadoatéoiníciodosanos1970(Baratta,1999). ODireito temcaráterandrocêntricoporque sede-senvolveu em conceitos masculinos, excluindo critériosdeaçãoextraíveisdosfemininos.ParaAlessandroBaratta(1999), o sistema de justiça criminal integra o sistema decontrole social informal, já que este se volta às intérpre-tes de papéis femininos namedida em que possuam umarelevânciatalqueosimpeçadeseremcontroladosapenaspelopatriarcadoprivado. Interessaaopatriarcadoquees-sasmulheressejamcontroladastambémnaesferapública.

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ParaLeilaLinharesBarsted(2011),aexistênciadeorga-nizaçõesemovimentosdemulherespossibilitouaconstituiçãode um sujeito coletivo que alargou o campo democrático noBrasil.A luta legislativapor igualdade, inclusivenas relaçõesfamiliares, rompia gradualmente com a lógica patriarcal dasubordinação feminina.A conquista de direitos formais, cujoexemploéaprópriaLeiMariadaPenha,éprocessopolíticoeresultadodelutas.Omesmosedizdatipificaçãodofeminicídio.Muitoemborasejarelevantecompreenderdeondevemalei,alutafeministanãoseesgotanoreconhecimentoformaldedirei-tos,especialmenteporqueadeclaraçãodedireitosnãotrazdeimediatoseuusufrutoouaampliaçãodopoderdedecisãodasmulheressobresuasvidas. Destarte,aLeiMariadaPenha–Lei11.340/2006–,paraalémdeseusefeitoslegais,representaoresultadodeumabem--sucedidaaçãodeadvocacyfeministavoltadaparaoenfrenta-mentodaviolênciadomésticaefamiliarcontraasmulheres.AleiacompanhaaposiçãodasNaçõesUnidasedeorganismoseinstituiçõesdedireitoshumanosaoampliaroconceitodesegu-rançapormeiodoadjetivo“humana”.Sobreotema,enfatizaaautoraLeilaLinharesBarsted(2011,p.17):

em resumo, a ação de advocacy feminista para a elaboraçãoda Lei Maria da Penha, na sua tramitação, promulgação e namobilizaçãoparasua implementação, teveporbaseocontextopolítico democrático, o avanço da legislação internacional deproteçãoaosdireitoshumanoscomaperspectivadegêneroe,especialmente,aexistênciadeorganizaçõesfeministasatuantes.

AdespeitodasinúmerascríticasquepodemsertecidasàLei11.340/2006,sãoinegáveisosavançosqueelatrouxeparacoibiraviolênciadomésticaetambémparadesmarginalizaradiscussãosobreviolênciadegêneronoâmbitointerfamiliar.So-breotema,discorreWâniaPasinato(2010,p.219):

aLei 11.340/2006,LeiMariadaPenha, entrouemvigorem22de setembro de 2006. Trata-se de uma legislação especial cujoobjetivoé"criarmecanismosparacoibirepreveniraviolênciadomésticaefamiliarcontraamulher[…]"(artigo1º).AlegislaçãoestáadequadaàConvençãoInteramericanaparaPrevenir,Punir

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eErradicar aViolência contra aMulher (ConvençãodeBelémdePará,OEA,1994),aConvençãosobreaEliminaçãodeTodasasFormasdeDiscriminaçãocontraasMulheres(CEDAW,ONU,de 1979) e a Constituição Federal (Brasil, 1988). Pode-se dizerque a nova legislação tem como paradigma o reconhecimentodaviolênciacontraasmulherescomoumaviolaçãodosdireitoshumanos(artigo6ºdaLei11.340/2006).

Em consonância com a supracitada lei, os crimes deviolêncianoâmbitofamiliardevemserapuradosatravésdein-quéritopolicial,remetidosaoMinistérioPúblicoejulgadosnosJuizadosEspecializadosdeViolênciaDoméstica contra aMu-lherounasVarasCriminais,quandoosJuizadosEspecializadosinexistirem.NoroldealteraçõestrazidaspelaLei11.340/2006estáaampliaçãodapenadeumparaatétrêsanosdeprisãoeoencaminhamentodasmulheresemsituaçãodeviolênciabemcomo seus dependentes para programas de assistência social,alémdaproibiçãodepenaspecuniáriasaoscriminosos,comocondãodedesestimularaviolênciaintrafamiliar. Oscrimesdeviolênciadoméstica,abordadosnamídiacomo “crimes passionais”, sãomotivados pela necessidade depoder e controle do dominador-homem, legitimado peloma-chismo escancaradona sociedade.Utilizar essa nomenclaturapara tipificarcrimesmovidospeloódioàsmulhereséocultarumsistemadedominaçãopatriarcal.Nomesmosentido,Segato(2006,p.4)sugereque,“dentrodelateoríadelfeminicidio,elimpulsodeodioconrelaciónalamujerseexplicócomoconse-cuenciadelainfracciónfemeninaalasdosleyesdelpatriarca-do:lanormadelcontroloposesiónsobreelcuerpofemeninoylanormadelasuperioridadmasculina”. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)relata que, apesar dos esforços, a vigência da Lei Maria daPenha não dirimiu os casos de violência: os crimes contramulheres aumentaram 11,6% entre 2004 e 2014 no país. Deacordo com oMapa da Violência (Waiselfisz, 2012), 41% dasmortesfemininasocorreramnacasadavítimae,noquadrodemulheresatendidasemsituaçãodeviolência,essaporcentagemaumentapara68,8%.Estatísticasmaisrecentescomprovamque

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aviolênciacontraamulherassumeosmoldesdeumaguerracivilpermanente:segundooMapadaViolência2015,oBrasilestáentreospaísescommaioríndicedehomicídiosfemininos(Waiselfisz,2015). NoveanosdepoisdapromulgaçãodaLeiMariadaPe-nha (Brasil, 2006), sancionou-se a Lei 13.104/2015, alterandoo artigo 121 doCódigoPenal (Decreto-Lei nº 2.848/1940) e oartigo 1o da Lei 8.072, de 25 de julho de 1990, para incluir ofeminicídiono roldoscrimeshediondoseprevê-locomocir-cunstânciaqualificadorado crimedehomicídio.Nessediapa-são, a qualificadora não incide sobre um aspectomeramentebiológico,masconstituicrimedegênero:regimedevidadopa-triarcadoeconstruçãosociológica. Segundo a nova lei, a comprovação da violênciade gênero prescinde prova inequívoca. Comprovada essacircunstância, não se pode mais invocar o motivo torpe. Oregime inicial de cumprimento da pena do feminicídio é ofechado,eotempodereclusão,de12a30anos.Aleiestabeleceque, quando o homicídio demulher acontece por "razões decondiçãodesexofeminino",ocrimeseráhediondoemerecerá,portanto,maiorreprovaçãoporpartedoEstado.Sãoprevistasaindaagravantesquandoocrimeenvolversituaçõesespecíficasde vulnerabilidade, como a gravidez, por exemplo. Segue adisposiçãodosagravantesnaLeidoFeminicídio:

§7oApenadofeminicídioéaumentadade1/3(umterço)atéametadeseocrimeforpraticado:I-duranteagestaçãoounos3(três)mesesposterioresaoparto;II - contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60(sessenta)anosoucomdeficiência;III-napresençadedescendenteoudeascendentedavítima.

Conforme pesquisa realizada pelo Núcleo de EstudossobreoCrimeeaPenadaEscoladeDireitodaFundaçãoGetulioVargas (Machado, 2015), 14 outros países da América Latinapossuem leis tipificando o crime de feminicídio: Argentina(2012),Bolívia(2013),Chile(2010),Colômbia(2008),CostaRica

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(2007),Equador,ElSalvador(2012),Guatemala(2008),Honduras(2013),México (2012), Nicarágua (2012), Panamá (2011), Peru(2011)eVenezuela(2014).Aadoçãodeleiespecialrepresentaumavanço,nessecontexto,pelamaiorriquezadepossibilidadesregulatórias: tanto de sanções para reprimir o feminicídioquanto de normas jurídicas de conteúdo não punitivo com ointuitodeconscientizaçãoepromoçãodepolíticaspúblicas. O estudo realizado pelo Núcleo de Estudos da FGVutilizou-se, além da legislação comparada, de uma análisequalitativa de processos judiciais relacionados aos crimes dehomi¬cídio tentado e consumado de mulheres por meio daescolha de regiões com altas taxas de homicídio em razão dogênero. Observou-se que o autor do feminicídio é motivadopelas manifestações de autonomia ou liberdade em oposiçãoà tradicional submissão feminina (Machado,2015).A intençãodeprovocarafliçãosuplementaranterioràmorteeodesejodeaniquilarfisica¬menteamulhersãooutrostraçosidentificadosna pesquisa sobre violência doméstica, revelando como amatançadasmulheresporregimedegênerotemforteconteúdodepuniçãosocialerepúdioaocorposexadodemulher. Aanálisedosprocessospermitiudelinearduasfigurassocialmentepreocupantes:vítimastornam-se,àluzdajustiça,agres¬sorasouprovocadorasenquantoabuscapeloestereótipodohomemtrabalhadorepaidefamíliaimpedequeoscrimesdefeminicídiosejamquantificados.Éareprodução,nojudiciário,do regimedevidagêneroque concentra a violência sobreoscorposfemininos. Discutida a tipificação e identificada a mulher comopotencialvítima,temosquecompreenderaexistênciadeoutrosregimesdevidaparaalémdogênero.Nessecontexto,éerrôneaa categorização damulher em um único grupo, pois diversassãoaspautasdentrodofeminismoedadefesadosdireitosdasmulheres. Em "Nomear feminicídio: conhecer, simbolizar epunir",Dinizexplanaque[…]opatriarcadoéummarcodepoder,com diferentes regimes de governo pela subalternização, pelavigilânciaepelocastigo.Ogêneroésóumdeles;acolonialidade,aclasseouacorsãooutros"(2015,p.2).

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Tanto issoéverdadeque,emestudo feitopelaautorana capital federal, com base em dados colhidos nos arquivosdoInstitutodeMedicinaLegal,doMinistérioPúblicoedaPolí-ciaCiviledoJudiciárioentre2006e2011sobrehomicídiosdemulheresporviolênciadomésticaefamiliar,aprobabilidadedeumamulhernegrasermortapelofeminicídioétrêsvezesmaiordoqueasdeumamulherbranca,sobretudoemáreasdesubal-ternização (Diniz, 2015). A conclusão é de que o patriarcadoatuacomoutrosmecanismosdesubalternizaçãoevigilânciaeminterseção,comoacorouageografia.Corrêa(2001)sugerequeestaéarazãodaevidênciadosestudossobreocorponaagendadosestudosdegênero:énocorpoqueessasmarcasclassifica-tóriassãoimpressas. Nesseínterim,oprópriopatriarcadodeveserentendidocomomúltiplo,paraqueageneralizaçãodossujeitosdapráticanãoimpeçaaobservaçãodarealidade.Emmesmoentendimentose posiciona a socióloga Heleieth I.B. Saffioti, segundo aqualaviolênciadegênerose insereemumquadrocomplexocom fenômenos de divergentes naturezas e capacidades dedeterminação.Homogeneizarumarealidadecomplexasignificareduzi-la.ExplanaSaffiotti:"seéverdadequeaordempatriarcalde gênero não opera sozinha, é também verdade que elaconstitui o caldode culturanoqual tem lugar a violência degênero,aargamassaqueedificadesigualdadesvárias,inclusiveentrehomensemulheres"(2001,p.133). Isto posto, cabe advertir à leitora que a sociedadepatriarcal constitui estrutura complexa graças à intercalaçãode três categorias: gênero, etnia e classe. Entendemos, comSaffiotti (2001), que o patriarcado é poderoso justamente porutilizar diferentes asseclas garantidoras de seus privilégios emantenedoresdaordemdegênero.Paraaautora,oconceitodedominação-exploraçãoouexploração-dominaçãoimplicaduasdimensões,adadominaçãoeadaexploração,emumarealidadeuna–umúnicoprocessocomduasdimensõescomplementares.Como vimos, a força da ordem masculina para Bourdieu

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(2002) situa-seno fatodenãonecessitar justificar-se.Avisãoandrocêntricaseimpõecomoneutraenãotemnecessidadedese enunciar para se legitimar.A ordem social funciona comouma imensa máquina simbólica, ratificando a dominaçãomasculina na qual se funda: é a divisão social do trabalho, adistribuiçãomuitorestritadasatividadesatribuídasacadasexo.Assim,deve-seassimilarqueadominaçãoconstituipersiumaviolência:aviolênciasimbólicaatuapormeiodaadesãoqueodominadocedeaodominadordiaapósdia. Dessa forma, o poderio masculino atravessa todas asrelaçõessociaisetorna-seobjetivo,traduzindo-seemestruturashierarquizadas, em senso comum. É bem verdade que há luzno fim desse túnel: nem todo conhecimento é determinadopelaslentesdogênero.Mulherespodemoferecerresistênciaaoprocessodeexploração-dominaçãonasrelaçõesdegênero,mastambématingindoasdominaçõesétnicaseasdeclasse. Digno de nota também é o posicionamento daantropólogaedeputadaMarcelaLagardeydeLosRíos(2008),quediferencioufemicídiodefeminicídio.Enquantooprimeiro,homólogodehomicídio,éneutro,"feminicídio"seriaovocábulomaisadequado,denunciandooEstadoomissoenomeandoasdiversas violações dos direitos das mulheres unicamente emrazãodogênero.Deacordocomaautora,

la traducción de femicide es femicidio. Sin embargo, tradujefemicidecomo feminicidioyasí lahedifundido.Encastellanofemicidio es una voz homóloga a homicidio y sólo significahomicidiodemujeres.Poreso,paradiferenciarlo,preferílavozfeminicidio y denominar así al conjunto de violaciones a losderechoshumanosdelasmujeresquecontienenloscrímenesylasdesaparicionesdemujeresyque,estos fuesen identificadoscomocrímenesdelesahumanidad(2008,p.215-216).

Emverdade, ovocábulo "feminicídio" é recente e temsuasraízesnasdenúnciasdeassassinatosdemulheresnacidadedeJuárez,noMéxico,pelaprópriaMarcelaLagardeydelosRíos(2008).Ofeminicídiotemtranscendidoasfronteirasmexicanas,jáqueasorganizaçõesvinculadasaoprocessode justiçaeao

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movimento recorreram aos organismos internacionais civis einstitucionais. NoestudorealizadoporDiniz (2015),a tipificaçãodocrime de feminicídio possui três efeitos esperados: nomear,simbolizarepunir.Nomear,enquantoatopolítico,temoviésde tornar pública a morte evitável demulheres pelo regimedegênero.Nomearpara simbolizar,por suavez, corroboraoentendimentode queo tipopenal genéricohomicídio ocultaa matança de mulheres e, portanto, tipificar significariadesnaturalizar a matança. Em aspectos práticos, inexistemevidências de conexão entre esse jogo performativo deenunciaçãoesimbolizaçãoeaalteraçãoefetivadoregimedogênero.NosdizeresdeDiniz,noentanto,"feminicídio,emvezde homicídio, permitiria que o horror da matança ganhassetexto,envergonhasseosmatadoresealterasseoregimepolíticoqueosustenta"(2015,p.3). Como último efeito, tipificar para punir possui duascorrentes (Diniz, 2015). A primeira sustenta ser o regime dogêneroummoduladorparaotipogenéricodohomicídio,oqueexigiria aumentodepena.Nessa corrente,nomear significariapunir.Asegundapressupõeserohomicídioumtipogenériconeutroqueencobreamatançademulheres.Comisso,tipificarofeminicídioseriapunircomefetividade.Oefeitodanomeaçãocomo punição encontra terreno sobretudo em autoras queentendemseroEstadolenienteemrelaçãoaoscrimesdegênero. VeraReginaPereiradeAndrade(1999),nojácitadolivroCriminologia e feminismo,defendequeodebatedecriminologiaefeminismonoBrasil(pautaqueincluiaviolênciadegênero)deve situar-se fora do sistema penal. Isso porque nosso paíssofreumacrisedelegitimidadedessesistema,quenãocumpriuas promessas feitas à modernidade – promessas de proteçãodos bens jurídicos, de uma aplicação igualitária das penas edecombateàcriminalidade.Segundoaautora,acrisedo(sub)sistema penal confunde-se com a crise do próprio monismojurídico, que mistura Estado e lei. Esse paradigma abordado

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por Andrade conversa com a conclusão de Diniz (2015) – a"nomeação de feminicídio para apreender" –, na medida emque,paraambas,nãoéoencarceramentoasoluçãoparadirimiraviolênciadegênero. Foi comesse intuitode iralémdapuniçãoqueSinaraGumieri (2013), em trabalho orientado por Diniz, analisou35 processos judiciais com trânsito em julgado relativos ahomicídios de mulheres em situação de violência domésticae familiar no Distrito Federal entre 2006 (após a sanção daLeiMariadaPenha) e 2011.O focoda suapesquisanão foi aviolência doméstica homicida como realidade complexa demuitasmulheres,massimsuasversõesjudiciais.Nessesentido,Gumieriressaltaqueosestereótiposdegênerotendemaapagarcaracterísticas individuais das pessoas, negando direitos ereforçandohierarquiasdegênero:

embora[…]nãosetenhaobservadoumcontextodeimpunidadenos casos analisados, o uso de argumentos que buscamculpabilizarasvítimase legitimaraviolênciasofridamostrou-se muito expressivo. A principal evidência está nas teses dedefesa: em mais da metade dos casos (18 processos – 52%),a defesa dos réus baseou-se na confissão da prática delitivaseguidadaapresentaçãodeoutrascircunstânciasatenuantesdapena (conforme Código Penal, art. 65, III). Tais circunstâncias(notadamenteviolentaemoçãoapósinjustaprovocaçãodavítimaedefesaderelevantevalormoral)diziamrespeitoaestereótiposde gênero que, uma vez desafiados pelo comportamento dasvítimas,justificariamouminimizariamaaçãoviolentadosréus(2013,p.12).

É importante ressaltar que, em muitos dos trabalhosutilizados como referência para esta pesquisa, o termo"feminicídio"ocupa-seapenasdetipificaramortedemulherespor violência de gênero. Concordamos, no entanto, com oposicionamentodeDiniz,segundoaqualofeminicídionãosereduziriaahomicídio:équalquermortequedecorradogênero,sejanaviolênciadoméstica, sejanaviolênciasexualanônima,no aborto clandestino, na mutilação genital, na mortalidadematerna,notráficodemulheres.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para Diniz (2015), o patriarcado nos antecede e nosacompanha. Doloroso é observar o quão espinhosos sãoos meandros da violência de gênero, da morte de mulheresunicamentepelo fatodeseremmulheres:aúltimaetapadeumcontinuumdeviolênciaque(nos)levaàmorte.Tipificarocrime,muitoemboranecessário,éumpassopequenonocombatediárioquedevesertravado. Nomear para apreender, nos dizeres deDiniz, deve serentendidocomomedidaurgenteemumpaísondesequertemoscifrasparaescancararaviolênciadegênero.Tipificarfeminicídiopermite tornar inteligível a morte de mulheres ocasionadaspor essa violência. Sabemos quemmorre e quemmata,mas asmotivações são mascaradas: o triste encontro entre cadáveresesquecidosematadoresimpunesquetornaoEstadocúmplicedamatançadoscorpossexadospelopatriarcado. Dessemodo, tipificar feminicídio torna visível amortedecorrentedoregimedegênero:nomearoproblemacompreendedesenraizar práticas socialmente construídas e denunciar opatriarcadocomomarcodepoder.Nessesentido,éimprescindívelconheceravítimaeamotivaçãodocrime,demodoqueaatuaçãoestatalpossasermenosinerteecomplacente.ComonolemadoDossiêFeminicídio(Prado;Sanemtsu,2017),daAgênciaPatríciaGalvão,invisibilidademata.

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A RAZÃO COMUNICATIVA E SEU FUNCIONAMEN-TO – ANÁLISE DO CASO DANIELLA PEREZ

Liza Tajra Nery1

Luzia Eduarda Bezerra Valadares2

Introdução Em dezembro de 1992, o assassinato de Daniella Perez chocou o Brasil, não apenas pela forma bárbara do crime, como – e talvez principalmente – pelo fato de serem, a vítima e o réu, figuras públicas. Na época com 22 anos, Perez era atriz e trabalhava na no-vela De Corpo e Alma, escrita por sua mãe, Glória Perez, e trans-mitida no chamado “horário nobre” da Rede Globo de Televisão. Percebe-se, portanto, o amplo alcance da figura de Daniella. De acordo com o então promotor a frente do caso, José Muiños Piñei-ro, em entrevista ao jornal O Globo (2012),

era a primeira vez que não era necessário explicar aos jurados quem era a vítima, [...] Daniella Perez estava todos os dias na novela das oito, era como se fosse a irmã ou a filha de todos os brasileiros

1 Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Piauí2 Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Piauí

IV

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O réu, Guilherme de Pádua, também era ator e, na época, contracenava com Daniella. O réu, Guilherme de Pádua, também era ator e, na época, contracenava com Daniella. Pádua cometeu o crime com o auxílio de sua esposa, Paula Thomaz. Daniella foi vítima de uma emboscada planejada pelo casal e morreu apunhalada 18 vezes com uma tesoura. Contudo, apesar da comoção ocasionada pelo crime, os réus só foram julga-dos cinco anos após a ocorrência, em 1997. Explica-se que em 1990, o então presidente Fernando Collor havia sancionado a lei nº 8.072 que classificava alguns cri-mes como hediondos, de forma que esses eram inafiançáveis e não permitiam o benefício de progressão da pena. Todavia, o assassi-nato não estava incluso nessa lei, facilitando a postergação de um julgamento por esse crime. Por esse motivo, a mãe da vítima, que também é uma fi-gura pública, passou a questionar o monopólio jurídico do Estado. Segundo relatos próprios feitos em seu site, Glória Perez aliou-se a outras mães em situação semelhante e juntas começaram uma campanha para recolher assinaturas apoiando uma emenda legal que tornava o homicídio qualificado também um crime hediondo. Aproximadamente 1,3 milhões de pessoas, em um período de três meses, assinaram a proposta, que foi levada à votação no Con-gresso pelo senador Humberto Lucena. As ações de Perez encontram suporte na Constituição Fe-deral de 1988, que prevê em parágrafo único de seu art. 1º que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de represen-tantes eleitos ou diretamente, nos termos dessa Constituição” (BRASIL apud OLIVEIRA, 2012, p. 21). E continua, em seu art. 14:

Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei mediante:

(...)

III – Iniciativa popular.(BRASIL apud OLIVEIRA, 2012, p. 28).

Porém, mesmo com a aprovação da emenda, essa não po-deria ser aplicada ao caso Daniella, tendo em vista que a lei não

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retroage para punir. Assim, Pádua só foi apenado em 25 de janeiro de 1997, quando se iniciou no Tribunal do Júri do Rio de Janeiro o julgamento que o consideraria culpado. A sentença proferida pelo juiz esteve em harmonia com o que se reivindicava socialmente, tendo a condenação sido aplau-dida pelos presentes. Nesse sentido, vale destacar o apoio geral destinado à causa, mas também é importante observar a singu-laridade desse fato. Como exposto anteriormente, Glória Perez juntou-se a outras mães com o mesmo clamor, visibilizando seus anseios. Questiona-se se tais mulheres teriam qualquer poder dis-cursivo não fosse à condição de Perez como novelista da maior rede televisiva do país. Portanto, o presente artigo discute o poder da ação co-municativa associado às conquistas sociais, sem esquecer-se da relativização desse poder e discutindo centralmente suas implica-ções na divisão do trabalho jurídico. Analisar-se-á o caso e seus efeitos, segundo teorias de Beck (1995), Bourdieu (1989) e Haber-mas (1997), fomentando uma argumentação que reflete a ação co-municativa como instrumento essencial para o desenvolvimento do Direito, já que ela possibilita maneiras de infiltrar-se no campo jurídico sem, contudo, afetar a autonomia deste.

1 A FORMAÇÃO DO MONOPÓLIO JURÍDICO

É necessário perceber o papel da linguagem no de-senvolvimento do Direito para que haja melhor compreen-são do poder fundamentado na comunicação. Deve-se notar, contudo, que, por paradoxal que seja em primeiro momento, a linguagem atua ora amplificando, ora limitando vozes. Explica-se que a linguagem jurídica é fundamental para a delimitação do campo jurídico, tornando-o de difícil acesso a leigos e distanciando-o de sua construção social. Para tanto, atribuem-se às palavras de uso vulgar significa-dos exclusivos quando usadas em contexto legal, salientando a “dualidade dos espaços mentais, solidários de espaços sociais diferentes, que os sustentam” (BOURDIEU, 1989, p. 227).

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Além disso, a retórica do Direito está organizada para neutralizar e universalizar as regras, criando um locutor suposta-mente imparcial e partindo de um pressuposto consenso ético. Ao passo que a neutralidade e a universalidade são necessárias para a oficialização da resolução de conflitos, essas também contribuem para o desvio entre a visão popular e a especialista sobre os prin-cípios legais instituídos pelo Estado. Deve-se explicitar que a distância entre leigos e doutos é importante para a manutenção de um poderio estatal simbólico. Explica-se, segundo Bourdieu, que “o poder simbólico é, com efei-to, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumpli-cidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem” (1989, p. 7). Dessa forma, a ordem jurídica traduz em dispositivo ofi-cial relações de força preexistentes, perpetuando uma definição do mundo social conforme interesses legitimados na figura do Estado, mas muitas vezes distante da realidade social dos com-ponentes desse mesmo. Portanto, os locutores imparciais e os consensos éticos supracitados não se mostram de fato neutros ou universais. Por isso, Glória Perez sentiu a necessidade de questionar a lei nº 8.072 (lei de crimes hediondos), adentrando o campo ju-rídico com reivindicações pessoais, mas também populares, apro-ximando-o de uma realidade social que, muitas vezes, é excluída da formulação legal. Aqui, o desenvolvimento do Direito ocorreu em um sentido de confrontação entre texto e realidade. Bourdieu comenta que

paradoxalmente, [...] a autonomização passa, não por um reforço do fechar-se em si de um corpo exclusivamente devotado à leitura dos textos sagrados, mas sim por uma intensificação da confrontação dos textos e procedimentos com as realidades sociais de que tais procedimentos são tidos por expressão e regulação (1989, p. 253). paradoxalmente, [...] a autonomização passa, não por um reforço do fechar-se em si de um corpo exclusivamente devotado à leitura dos textos sagrados, mas sim por uma intensificação da confrontação dos textos e procedimentos com

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as realidades sociais de que tais procedimentos são tidos por expressão e regulação (1989, p. 253).

Contudo, deve-se perceber que o alcance dos clamores de Glória se deu devido a seu status social, ao lugar que ocupa na sociedade, já que não é de qualquer espaço que emergem as re-gras que são submetidas à formalização e à generalização. (BOUR-DIEU, 1989). Segundo Farabulini (2004), antes da emenda popular, a criação da lei nº 8.072 foi propiciada pelos altos índices de vio-lência brasileiros. A população demandava uma resposta penal a questão, porém

a pretensão da sociedade tornou-se frustrada quando os constituintes disseram ‘não’ à pena de morte e à prisão perpétua, que realmente impediriam o avanço dos crimes de altíssima

potencialidade (FARABULINI, 2004).

Há, portanto, a percepção de um caráter vingativo da sociedade brasileira, que se distancia de concepções humanísticas para aproximar-se do estado penal, cerceando Direitos em troca de uma suposta proteção contra a violência. Questiona-se o verdadeiro resultado disso. É nesse sentido que a ação de Glória Perez pode ser descrita como paradoxal, pois visibiliza as reivindicações populares, em uma clara demonstração de representatividade, porém, também coíbe direitos, ao resultar em maior privação de liberdades. Por conta disso, entende-se que é fundamental para o Direito uma aliança entre leigos e especialistas, como maneira de atender as demandas populares por meio da teoria jurídica.

2 MECANISMOS DE PARTICIPAÇÃO

No caso Daniella, a iniciativa de Glória, somada ao apoio de outra grande parcela da sociedade, conseguiu conferir mudan-ças no âmbito jurídico. Isso demonstra que agentes externos ao sistema político também podem aparecer no cenário do planeja-

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mento social (BECK, 1995). Assim, observa-se a presença de pon-tos indispensáveis para a compreensão desse fato na obra do soci-ólogo alemão Ülrich Beck, destacando-se dentre eles a subpolítica, a mesa redonda e a reforma da racionalidade. O primeiro aspecto observado no caso dialoga com o conceito de subpolítica. Ressalta-se que “subpolítica [...] significa moldar a sociedade de baixo para cima” (BECK, 1995, p. 35), sendo importante frisar que “no despertar da subpolitização há oportu-nidades crescentes de se ter uma voz e uma participação” (BECK, 1995, p. 35). Nesse sentido, o espaço aberto à população ordinária para interferir na estrutura judicial revela o aspecto subpolítico da participação social no caso em questão. Portanto, cabe apontar que o caso Daniella não foi o úni-co em que houve o elo entre clamor social e mudanças jurídicas (e políticas). À exemplo desse, foram conquistadas outras emendas populares, como a lei complementar 135/2010 (lei da Ficha Lim-pa), que proíbe

assumir cargos públicos aqueles que estão em situação de inelegibilidade em razão de condenação ou punição de qualquer natureza, na forma da Lei da Ficha Limpa. [...] O prazo dessa

inelegibilidade é de oito anos (JORNAL DO SENADO, 2013).

Outro exemplo que remete, inclusive, ao mesmo período do caso trabalhado, foi o movimento dos “caras-pintadas”, que ti-nha como objetivo o impeachment do presidente Fernando Collor, o que culminou na renúncia deste, no dia 29 de dezembro de 1992, um dia após o assassinato de Daniella. Esses acontecimentos revelam que a moldura do Direito, bem como de outras instituições da sociedade civil, é também construída através de iniciativas populares, e, se assim não o fosse, essas instituições se tornariam ilegítimas, ou ainda, improváveis. Beck, ao tratar da sociedade de risco (1995), anuncia o problema da ambivalência, relativo à incapacidade dos grupos de especialistas de lidarem com toda a estrutura social, decor-rendo disso, que muitas vezes, ainda que busquem melhorias, os

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especialistas ocasionam prejuízos; os benefícios e malefícios não conseguem ser distribuídos equitativamente, sendo necessária a intervenção da técnica da mesa redonda, responsável por demo-cratizar a participação nas tomadas de decisão, criando um siste-ma legítimo onde a população leiga tem progressivamente mais participação. Destaca-se a importância do código comunicativo para o alcance desse aspecto, já que é ele o responsável por produzir “o centro do qual se originam os projetos de realidade e as oportuni-dades para a realidade dos subsistemas” (BECK, 1995, p. 46), que inicia um processo de reforma da racionalidade que se contrapõe aos sistemas de monopólio especialista. Como adiantado, a subpolítica insere oportunidade de expressão no âmbito político aos agentes externos a essa esfe-ra. Todavia, não é possível discutir satisfatoriamente esse assunto sem levantar o problema dos discursos ignorados, ou que tiveram pouco alcance social, e debater quais as causas do insucesso des-ses discursos. Essa é uma discussão de um segundo momento, mas cabe adiantar que a relatividade do poder discursivo se associa a valores morais, portanto, valores sociais. A partir da importância atribuída à participação social nas diversas instituições e dispositivos jurídicos, e às críticas des-tinadas aos sistemas que excluem membros da sociedade dessa participação, apreende-se que o Direito regulado pela voluntas populi, parece o melhor e mais evoluído dos Direitos. Contudo, esse pensamento, que é lugar comum para boa parte da população brasileira, configura-se muito perigoso, não apenas pela insegurança jurídica, mas também pela reposição de um direito repressivo vingativo3 , já que um controle jurídico ad-vindo da própria sociedade cai em vias de um julgamento moral e intensamente subjetivo. Relacionando esse aspecto ao caso citado, vê-se que a po-pulação pôde intervir no Direito, criando uma emenda popular.

3 (DURKHEIM, 1984) O direito repressivo tem seu ápice na solidariedade mecânica, carac-terística de sociedades com uma atrofiada divisão social do trabalho, onde os membros da sociedade partilham de uma consciência comum e o Direito é instrumento para vingança.

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Todavia, enquanto que para alguns essa situação configura-se em uma ampliação dos direitos, cabe identificar que houve, na verda-de, uma limitação dos mesmos, visto que a lei dos crimes hedion-dos deu mais severidade ao tratamento do homicídio qualificado. Dessa forma, entende-se que a participação popular é de grande importância, já que "em uma sociedade sem consenso, desprovida de um cerne legitimador, é evidente que até mesmo uma simples rajada de vento, causada pelo grito por liberdade, pode derrubar todo o castelo de cartas do poder" (BECK, 1995, p. 31). Entretanto, existirá sempre uma conjunção adversativa para desfazer a pretensa perfeição de dispositivos sociais, visto que a complexidade e a contingência4 são qualidades intrínsecas à sociedade. Compreendeu-se, portanto, que deve haver um cuidado no entendimento do que representa o poder popular, atentando para a significação moral desse poder.

3 A LINGUAGEM E O PODER DO DISCURSO3.1 Comunicação

Enquanto a linguagem jurídica proposta por Bourdieu age para demarcar o campo jurídico e limitar o acesso a ele, de acordo com a teoria de Jürgen Habermas (1997), a linguagem é imprescindível para mudanças sociais, inclusive no Direito. A razão comunicativa de Habermas é uma superação da razão prática de Kant. Isso acontece não por meio de uma negação das ideias kantianas, mas pela adaptação de sua proposta à contemporaneidade, já que, a partir do século XIX, as sociedades tornaram-se extremamente complexas e o pluralismo que surgia não permitia mais o conceito de razão prática como faculdade subjetiva. Deve-se explicar que a razão prática, advinda do paradigma da modernidade, servia como leis práticas que guiavam a vontade humana, válidas para qualquer ser racional (ZATTI, 2007). Porém, necessitava de homogeneidade para alcançar sua universalidade,

4 (LUHMANN, 1983)

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falhando em lidar com o caráter heterogêneo da sociedade. Nesse sentido, a razão comunicativa surge como ruptura desse paradigma, e insere uma racionalidade encontrada, não nos sujeitos, mas na própria linguagem, o que prova que a razão comunicativa se encaixa no problema das sociedades complexas, visto que é capaz de lidar com os fenômenos que ultrapassam os controles dos indivíduos e das coletividades. Habermas passa a considerar o egoísmo característico do homem contemporâneo ao tratar da comunicação, assim, é pressuposto que os sujeitos 1) buscam fins ilocucionários, 2) reconhecem pretensões de validade criticável, 3) aceitam obrigatoriedades relevantes às consequências da interação e resultantes de um consenso (HABERMAS, 1997). Seguindo a razão comunicativa, a sociedade deixa de ter normas práticas inquestionáveis e passa a buscar o entendimento através da linguagem. Completa-se ainda que "os pressupostos idealizadores sobrecarregam, sem dúvida, a prática comunicativa cotidiana; porém, sem essa transcendência intramundana, não pode haver processos de aprendizagem" (HABERMAS, 1997, p. 21). Portanto, fica claro que quem domina a linguagem e/ou a comunicação, tem maior controle sobre a racionalidade. Dessa forma, entende-se o poder de alcance da proposta de Glória Perez, que contava não apenas consigo mesma enquanto escritora, mas com a emissora de televisão que ainda a emprega. Perez tinha por duas vezes domínio da comunicação, de modo a exercer ampla influência sobre o público. Destaca-se ainda que quem não detém mecanismos para construir e difundir um discurso dificilmente terá reivindicações aceitas ou até mesmo consideradas socialmente.

3.2 ACESSO AO E DIFUSÃO DO DISCURSO

O impacto que teve o caso Daniella Perez reflete a popularidade de sua figura, somada à de sua mãe, Gloria Perez, e à de seu assassino, Guilherme de Pádua. O assassinato teve grande significância para telespectadores brasileiros,

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despertando indignação e até tristeza. A emenda popular aprovada não deixa de refletir os sentimentos de grande parcela da população na época, dado o status da violência no Brasil, e, a partir de então, orientar dispositivos para supostamente reduzir esse problema. Entretanto, é evidente que nem todos os homicídios são tratados da mesma forma. Exemplifica-se usando o contraste entre o caso em questão, que tem como vítima Daniella, mulher branca e famosa, e o caso de Victor Pinto, índio do povo Kaingang de apenas dois anos de idade morto violentamente no dia 30 de dezembro de 2015. Não se discute o teor hediondo de ambos os casos, mas a visibilidade de um e a invisibilidade de outro. Há uma simbologia construída no meio social, através dos costumes e da moral, mas que se concretiza, finalmente, como um valor atribuído a diferentes seres humanos de acordo com seus privilégios ou a falta deles. Devido a tais valores sociais, existe uma relativização de discursos, ordenados segundo uma importância subjetiva. Mesmo que isso limite o acesso ao discurso jurídico, não impede que minorias sejam de fato ouvidas. Percebe-se ainda que figuras públicas per si não têm garantia de um poderio discursivo, pois esse está vinculado principalmente a mídia. Dessa forma, constata-se que, ainda que a razão comunicativa esteja disponível a população, seu poder de utilidade está limitado ao valor que se atribui a cada enunciador do discurso. Por esse motivo, muitas vezes, é preciso encontrar alguém que represente seu ponto de vista. Glória Perez não era apenas mais uma mãe desconhecida vivendo seu luto, ela pôde difundir sua ideia, seu discurso, conseguindo amplificar a voz de outras um milhão e trezentas mil pessoas. Entende-se que:

com muita frequência o Direito confere aparência de legitimidade ao poder ilegítimo. À primeira vista, ele não denota se as realizações de integração jurídica estão apoiadas no assentimento dos cidadãos associados, ou se resultam de mera autoprogramação do Estado e do poder estrutural da sociedade;

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tampouco revela se elas, apoiadas nesse substrato material, produzem por si mesmas a necessária lealdade das massas (HABERMAS, 1997, p. 62).

3.3 O PAPEL DO DIREITO

Ainda na obra de Habermas (1997), supera-se a dialética marxista com a proposta de que o desenvolvimento social ocorra por meio dos consensos resultantes de conflitos resolvidos pela ação comunicativa, já que "o agir comunicativo permite liberar o potencial de racionalidade da linguagem e mobilizá-lo para funções de integração social" (1997, p. 65). É nesse sentido que o Direito assume o papel de conciliar a tensão entre validade e facticidade. O autor propõe que essa tensão é não apenas verificada com a criação da norma, mas também reproduzida sempre que há sua aplicação. No primeiro aspecto, essa tensão é verificada entre o fato social e a norma proposta, no segundo, entre o caso específico e se a norma cabe a ele. Nota-se que o caso de Daniella e seus efeitos provocam questionamentos em ambas as vertentes tensionadas: aplicação e criação. Já que ao perceber uma suposta incompletude da lei de crimes hediondos, Glória Perez passou a questionar a legitimidade de sua produção.

Assim,

é necessário que o direito continue insistindo que os sistemas dirigidos pelo dinheiro e pelo poder administrativo não fujam inteiramente a uma integração social mediada por uma consciência que leva em conta a sociedade como um todo

(HABERMAS, 1997, p. 65).

Nessa linha, visualiza-se a esfera pública, uma representação não somente espacial e de natureza inconfundível com o Estado. Essa categoria é, na realidade, a mediadora

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entre Estado e sociedade, visto que os debates, frutos do agir comunicativo racional, que contam com a interferência dos indivíduos, desenvolvem-se nessa esfera. É ela a responsável por criar discussões a respeito do poder político e, dessa forma, representar a busca pela democratização.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A razão comunicativa conduz a uma mudança no paradigma da estrutura jurídica. Estabelecer a visibilidade daqueles que são os sujeitos do Direito, garante uma democracia, firmando uma relação que começa a ser satisfatória entre dispositivos jurídicos, justiça e sociedade. Por isso, ainda que complexo e, de certa forma, reservado a alguns, o poder da ação comunicativa, é fundamental para assegurar um Direito desmonopolizado. Observa-se ainda que a discursividade só é substancial pelo fato do campo jurídico ser poroso, isto é, permitir que simbologias da sociedade façam parte da sua formação. Nesse seguimento, o conceito de poder simbólico é imprescindível para a compreensão da razão comunicativa, não apenas no caso de Daniella Perez, como também em toda a estrutura do campo jurídico. Mesmo que as simbologias sejam responsáveis por favorecer o poder do discurso, elas também podem determinar julgamentos morais precipitados. Por esse motivo, a construção do Direito não se faz mediante apenas a população leiga, mas também perante especialistas, o que exige um diálogo entre esses dois vieses. Dessa forma, a mesa redonda de Beck elucida a necessidade desse comportamento e os passos para alcançá-lo. As categorias do autor anunciam problemáticas e dispositivos elementares para a construção de uma sociedade destituída de monopólios e preenchida por participações plurais.

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Assim, confunde-se essa intervenção com o fim da autonomia jurídica. Porém, como assegura Bourdieu, existe "um universo social relativamente independente em relação às pressões externas, no interior do qual se produz e se exerce a autoridade jurídica" (1989, p.221). Portanto, conclui-se que a razão comunicativa é essencial para entender como funciona a participação popular no meio jurídico. Por meio do caso trabalhado, nota-se a tarefa dos três autores propostos de elucidar como se organiza o campo jurídico, verificar qual a necessidade e de que forma se dá a interferência no monopólio do Direito e entender como a ferramenta fundamental para essa interferência, o discurso, varia de acordo com o status social de seu enunciador.

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REFERÊNCIAS

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UMA ANÁLISE DAS CONTRIBUIÇÕES DE "A GA-ROTA DINAMARQUESA" AO ENSINO DO DIREITO COMPROMETIDO COM OS DIREITOS HUMANOS

Iago Masciel Vanderlei1

Marcus Vinícius Carvalho da Silva Sousa2

Introdução A modernidade ludibriou a sociedade fazendo com que ela acreditasse que poderia produzir discursos uníssonos, determinados e tivesse medo das suas divisões e conflitos. O modelo hegemônico de ensino jurídico, influenciado pelo mito da neutralidade da ciência moderna e do saber absoluto, tem formado juristas insensíveis e desencantadas3, que são incapazes de enfrentar novos conflitos sociais e de contribuir para a geração de uma sociedade democrática na concretude das vivências

1 Graduando em Direito pela Universidade Federal do Piauí.2 Bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Piauí (2015) e especialista em Direitos Humanos pela Faculdade Adelmar Rosado – Curso de especialização em Direitos Humanos “Esperança Garcia” (2017).3 Por entender que a dissociação entre sintaxe e ideologia é uma falsificação, o presente trabalho, ao usar como elemento de análise um filme que retrata a vida de uma mulher transgênera, realizou-se a escolha política do uso do feminismo universal; o que não significa que este trabalho não seja destinado à leitura dos homens (DINIZ, 2015; FREIRE, 2001).

V

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cotidianas. Na busca de práticas capazes de superar esse arquétipo, pretende-se, então, por meio da análise do filme A Garota Dinamarquesa e de uma revisão bibliográfica, a partir dos marcos teóricos do ensino jurídico, da educação e dos direitos humanos, compreender como a arte, em especial, o cinema, pode contribuir para a retomada da sensibilidade no ensino jurídico e para a for-mação de profissionais capazes de estabelecer novas formas de relação com as instituições e o outro (WARAT, 1992). A escolha da obra a ser analisada seu deu em razão de sua difusão no circuito global de cinema, o que garantiu sua exi-bição em um número maior de salas, e atingir uma multiplicida-de de públicos, que a maioria dos filmes que retratam a temática da transgeneridade costumam alcançar. O filme foi indicado em quatro categorias na 88ª premiação da Academy Awards (Oscar 2016)4, vencido o prêmio de Melhor Atriz Coadjuvante, e a três no Golden Globe Award no mesmo ano5. Trata-se, então, de produção de repercussão mundial e, portanto, com grande capacidade de influenciar no imaginário instituído. Nesse sentido, questiona-se: como o filme A Garota Di-namarquesa pode contribuir para a recuperação da dimensão política do ensino jurídico e a construção de uma sociedade que comporte as subjetividades de todas? Durante o estudo, o ponto central que se apresenta é o do potencial da arte, através da sen-sibilidade, como método de abalo ao senso comum teórico dos juristas, reconstruir o ensino do direito como prática política dos direitos humanos (WARAT, 1997; 2004b; 2010b).

1 EDUCAÇÃO JURÍDICA: EM BUSCA DE UMA PEDAGOGIA DA DIGNIDADE E DA SOLIDARIEDADE SOCIAL

4 Disponível em: <http://oscar.go.com/news/winners/oscar-winners-2016-see-the-com-plete-list>.5 Disponível em: <http://www.goldenglobes.com/winners-nominees>.

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Os cursos jurídicos no Brasil se caracterizam por uma relação de exterioridade entre suas docentes e discentes com o mundo, fazendo-os não se reconhecer enquanto partícipes da construção da sociedade. São, por essa razão, terras férteis para a despolitização do direito e o desprezo ao diálogo sincero e à plu-ralidade, ou seja, à pedagogia da indiferença. Baseado em saberes monodisciplinares, seu ensino dissocia a teoria da prática, a razão da sensibilidade, desestimula o pensar criativo, e resiste a uma re-novação pedagógica (AGUIAR, 2004). Desse modelo resulta uma formação deficiente para as estudantes que não são capacitadas para atender a novas demandas da sociedade (AGUIAR, 2004), porque não compreendem a si e ao mundo em que vivem. Essa exterioridade não contribui com a formação das estudantes, pelo contrário. A presença de seres humanos no mundo leva-as a pensarem a si mesmas, se saberem presença, intervirem, transformarem, sonharem, constatarem e compararem (FREIRE, 2015), o que as permite entenderem a si, aos outros e ao mundo, habilidades essenciais à prática e à ciência jurídica. Sem isso, não é possível encontrar pontos comuns de discussão e respeitar a intimidade do outro (WARAT, 2010a), e a existência do diferente. A busca pelo diálogo e pela aliança entre diferentes, sem os uniformizá-los, revela-se um elemento substancial à retomada da dimensão política do ensino do direito para a superação da pedagogia da indiferença, regra nas Faculdades de Direito. Entende Warat (1992, p. 1) que "política ficaria caracterizada como o lugar de interpretação e interrogação do modo pelo qual a sociedade se institui" e, assim, retomar sua dimensão consiste em permitir o questionamento das certezas do imaginário social do direito6, e que as formas de discriminação do verdadeiro e do falso, do normal e do patológico, do justo e do injusto, do que é lícito ou proibido sejam interrogadas (WARAT, 1992). Essas arguições, contudo, não são unilaterais; elas devem

6 A ideia de imaginário social do direito dialoga com a discussão de imaginário como "cria-ção incessante e essencialmente indeterminada (social-histórica e psíquica) de figuras/for-mas/imagens, a partir das quais somente é possível falar-se de ‘alguma coisa’" (CASTORIA-DIS, 1982, p. 13). Assim, haveria um imaginário sobre o direito e suas práticas, localizado entre o simbólico e o real, que influi como as pessoas (em especial, os juristas) percebem e agem no mundo.

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ocorrer a partir do espaço público (WARAT, 1992; 1997), isto é, de um lugar de que toda a sociedade participe, em sua diversidade, construindo a democracia. São, então, reflexões que extrapolam os limites das Faculdades de Direito e buscam sua integração com o todo. Para se pensar a construção de um imaginário democrá-tico, faz-se necessário construí-lo com base n'a autonomia e na busca da emancipação social; nesse processo, os direitos humanos precisam ser constitutivos desse espaço público. Há, contudo, de se encarar os direitos humanos para além do seu universalismo normativo, que sustentam as diversas decla-rações historicamente proclamadas, e compreendê-los enquanto forma de construção da dignidade, com participação plural das pessoas, que levam suas lutas e reivindicações do que consideram dignidade humana. Essa perspectiva reconhece o caráter político dos direitos humanos edificada na pluralidade, sem desconsiderar sua discursividade, expressividade e normatividade; isto é, sem abandonar os enunciados normativos, mas os querendo como fru-to da coletividade, a partir das lutas sociais (HERRERA FLORES, 2002; 2009). Para Warat (1997) esses direitos humanos consistem em lutas contra todos os modos e formas de exclusão social, para par-ticipar do espaço público e pertencer à sociedade política; rein-vindicações de ter direitos, do reconhecimento das diferenças e de produzir autonomamente os caminhos de sua existência7. Nessa ideia, há um caráter de indeterminação como essencial à constru-ção de um imaginário democrático e à preservação da existência plena.

Nesta perspectiva é que surge o sentido do ensino do direito como prática política dos direitos humanos. Ele é concebido como um espaço político de debates ilimitados e indeterminados; como um espaço do devir sem fronteiras; como a matriz de uma dinâmica que ultrapassa os internos de impor limites pelo saber e suas idealizações perfeitas e fracassadas. Porque se aprende o direito entregando suas certezas à morte (WARAT, 1997, p. 53).

A reconstrução do ensino do direito enquanto prática

7 As pessoas, no pensamento de Warat (2010b), existem na medida em que possuem a capacidade de reconhecerem a existência do outro, que irá compor sua própria existência.

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política dos direitos humanos consiste na solidificação do seu comprometimento com o que é produzido no espaço público e com o um imaginário democrático fundado na diferença. Isso implica no fim do autoritarismo na relação docente-discente; na reformulação pedagógica dos cursos de direito, para que se tornarem espaços de criatividade e singularidade; na composição paritária e diversificada das instâncias universitárias; na reforma dos projetos pedagógicos dos cursos, que deixariam de se organizar apenas com base na legislação, e abordariam temáticas pertinentes à sociedade. Interferindo diretamente no imaginário do direito, essa reconstrução produzirá, na prática judiciária, a implicação do juiz e dos demais sujeitos com os conflitos, superando a imparcialidade moderna, e adotando a perspectiva de sensibilidade (WARAT, 2010b); e, como consequência, o aumento da legitimidade social das decisões judiciais, mais atentas ao contexto social em que serão inseridas. Nesse caminho, práticas de abalo (WARAT, 1997) ao senso comum teórico dos juristas (SCTJ) – entendido como versões de um saber como as únicas aceitáveis, com a pretensão de estabelecê-las como desenhos naturais do mundo; são discursos, ritos e padrões forjados na práxis jurídica que ratificam um imaginário do direito construído a partir de crenças em verdades reveladas e valores banalizados (WARAT, 1997; 2004b; 2010a) – são fundamentais à recuperação da dimensão política da educação jurídica e à reconstrução do ensino do direito como prática política dos direitos humanos.

Aprendemos sempre afastando-nos do estabelecido, descobrindo o novo. Não se aprende acumulando simplesmente um cabedal de informações. Aprende-se denunciando as faltas do saber acumulado, desligando seus signos de seus efeitos, fazendo uma passagem emancipatória e facilitadora do novo (WARAT, 1997,

p. 64).

A estratégia do abalo busca, então, quebrar o totalitarismo presente no imaginário do direito através da libertação criativa dos sujeitos do processo educacional, e fissurar a ordemsimbólica ao exibir os estereótipos, as anomalias

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e as razões insensatas que saturam os espaços político e social. Ela só se realiza com a reinvindicação de uma intervenção terna nas relações discursivas à procura da diferença, da singularidade e do desejo reprimidos do espaço público (WARAT, 1997). Com esse propósito, a arte pode ser utilizada como prática de abalo, por ser uma forma de redescoberta da própria sensibilidade, esta como uma forma de compreensão além do pensamento, que entende que o corpo compreende e se comunica com outros corpos. Para atender as demandas sociais que surgem todos os dias, as estudantes de direito necessitam manter um espírito sensível às reivindicações das excluídas (WARAT, 2010a). Durante sua formação, as estudantes possuem pouco contato com outras formas de conhecimentos, especialmente os artísticos, que lhes possibilite uma percepção mais sensível do mundo (AGUIAR, 2004). As artes, e em especial, o cinema, são capazes de estabelecer um "entre-nós" (WARAT, 2010b), e despertar alteridade nos interlocutores. Essa comunicação, ao trabalhar a realidade, ao deslocar o olhar do espectador, ao fazê-lo observar a condição de vida daqueles que estão em permanente estado de exclusão, é capaz de sensibilizar e de levar ao reconhecimento dos direitos dos outros. Através da utilização cinematografia como prática de abalo, as discentes podem aprender com as produções, usufruir mais intensamente da emoção que elas provocam, interpretar suas imagens, refletir a partir delas, reconhecer valores diferentes e questionar os seus próprios (DUARTE, 2009). Assim, o cinema é capaz de proporcionar a abertura do ensino à dimensão política, possibilitando um aprendizado mais autônomo e a superação do senso comum teórico dos juristas. O cinema atua densamente na construção do imaginário social, na aceitação ou repressão de concepções presentes no espaço político. Possui o potencial de reafirmar ou transgredir8 padrões, verdades, ritos e discursos a partir das relações entre 8 "Transgredir é corroer por dentro, é riscar lentamente os pilares estruturantes até que

sua reparação não mais seja possível" (ROCHA; FAZIO, 2011, p. 14).

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produção-espectadores e espectadores-espectadores, utilizando-se de elementos como roteiro, fotografia, figurino, trilha sonora, direção e atuação. "O mundo do cinema é um espaço privilegiado de produção de relações de sociabilidade" (DUARTE, 2009, p. 16). Consiste, o cinema, em um dos elementos que ainda mantém a ternura necessária para executar as tarefas de conceber os espaços da família e do trabalho como lugar de interação política (SANTOS, 1989) e de sensibilizar a sociedade para reconhecimento de diretos das excluídas, propiciando condições de sua reinserção social e sua participação no espaço público (WARAT, 1992; 2010a). Não se trata meramente de uma tutela de direito por parte do Estado, mas do reconhecimento dos direitos pela sociedade (WARAT, 2010a) e da concretização dos direitos humanos na vida cotidiana das pessoas, na busca de suas dignidades. Para isso, é preciso que os juristas se reconheçam como dignos e solidários, pois somente assim eles conseguirão romper com a indiferença e o autoritarismo do imaginário instituído. Dignidade e solidariedade são componentes da matriz simbólica dos direitos humanos e dimensões éticas fundamentais na geração de uma sociedade plural que respeite às diferenças. A solidariedade representa o reconhecimento da existência do outro como diferente e, somente a partir dela, é que se torna possível a recuperação da dignidade, ou seja, a libertação da opressão (WARAT, 1997). O ensino jurídico, para responder à formação de uma pedagogia da dignidade e da solidariedade social, precisa estar comprometido com os direitos humanos e entender que somente a racionalidade não é capaz de formar profissionais comprometidos com a geração de um outro modelo de sociedade. As Faculdades de Direito precisam formar estudantes sensível, pois é com a sensibilidade que elas serão capazes de entender o sentido da dignidade, quando sentirem a necessidade de cuidar da dignidade, da sua e da do outro. A utilização da arte dentro do ensino jurídico cumpre o papel de diminuir a distância ilusória que a modernidade criou entre a racionalidade e a sensibilidade (WARAT, 1997; 2004a). Em A Garota Dinamarquesa, conhece-se a história de Lili

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Elbe que, em 1931, tornou-se a primeira mulher a se submeter à cirurgia de redesignação sexual. Assim, analisar-se-á se a obra, ao contar a história daquela que transgridiu a cisnormatividade, contrapôs o ensino jurídico tradicional, em seu paradigma liberal-conservador, de modo a retomar da sensibilidade e formar profissionais capazes de estabelecer novas formas de relação com as instituições e o outro, e de questionar o direito posto. E, mais especificamente, se foi capaz de envolver as espectadoras na luta das pessoas que não possuem o direito de desenvolver livremente sua subjetividade, levando-as a superarem o seu contexto existencial e inserirem-se nessa realidade, experimentada por meio do filme (FAZIO; ROCHA, 2011).

2 UMA ANÁLISE DE CASO DA ARTE COMO PRÁTICA DE ABALO: AS CONSTRIBUIÇÕES DE A GAROTA DINAMARQUESA PARA O ENSINO DO DIREITO

O desenvolvimento do longa-metragem A Garota Di-namarquesa gravita em torno da sensibilidade, encontrada na fotografia, na atuação da dupla de atores principiais, na trilha sonora, na direção de Tom Hooper e, até mesmo, no deficiente roteiro de Lucinda Coxon. Durante seu desenrolar, mostra-se evidente a tentativa do diretor de criar uma empatia entre o es-pectador e as personagens da trama e sua dificuldade em retra-tar os diversos tons identitários de suas personagens principais. A narrativa tem início quando a personagem ainda se identificava como Einar Wegener, interpretado por Eddie Redmayne, um pintor dinamarquês, casado com Gerda, per-sonagem interpretada por Alicia Vikander. São as emoções e os medos de Gerda que constroem o desenrolar da história. Começando com a dificuldade de sair da sombra do marido como pintora, e evoluindo para o drama de uma possível trai-ção, de estar "perdendo" seu marido e seu casamento, de amar alguém que "nunca existiu", de ver seu marido ser torturado pelos meios de "tratamento" à trangeneridade, de não conse-

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guir se envolver com outro homem e, por fim, de presenciar o difícil processo da cirurgia de redesignação sexual de Lili Elbe. A união entre a capacidade do cinema de sensibilizar, a habilidade do ator em transmitir as emoções de Lili e a qualidade da fotografia, em momentos cruciais à construção da identidade da personagem, salienta a aptidão do filme em emocionar e em levar a sua espectadora a desenvolver a alteridade. O corpo de Lili Elbe é capaz de comunicar ao público uma profusão de sentimentos. A Garota Dinamarquesa desafia a insensibilidade que é regra da modernidade. E, ao aliar a atuação de Eddie, a fotografia e a trilha sonora, Tom Hooper constrói cenas que se constituem em verdadeiros manifestos de reivindicação da arte como forma legítima de pensamento para compreender o mundo (WARAT, 2010a) e para traçar o caminho de abertura a novos paradigmas sobre a transgeneridade. O filme retrata diversos procedimentos aos quais Elbe foi submetida e, através de um discurso de direitos humanos a partir da dor (WARAT, 1997), cria uma sensibilização com osofrimento do outro, mas com potencial limitado de transgressão da indiferença e do autoritarismo presente no imaginário instituído. Assim, por mais que o filme leve o espectador a sentir aversão às restrições de direitos a que ela foi sujeitada, não necessariamente o leva a superar a dor para se gerar práticas e discursos de preservação do amor (WARAT, 1997). É preciso criar uma dimensão simbólica democrática que institua outro imaginário, permeado pela autonomia, pela ternura e pelo respeito às diferenças para que as pessoas se permitam vislumbrar a criação de uma nova ordem de sociedade (WARAT, 1992; 1997) em que as situações que suscitam discursos de direitos humanos a partir da dor sequer aconteçam. A obra mostra a realidade europeia, mas o Brasil9, como mostra Green (2000), em nenhum momento se

9 O Relatório Sobre a Violência Homofóbica no Brasil de 2012, da Secretaria de Direitos Humanos, e o relatório anual de assassinatos de homossexuais no Brasil relativo a 2015 do Grupo Gay da Bahia, apontam que foram registradas pelo poder público, em 2012, 3.084 denúncias e 9.982 violações relacionadas à população LGBT (BRASIL, 2013) além da docu-mentação de 318 mortes de LGBT no Brasil, ou seja, um assassinato a cada 27 horas (BAHIA, 2016).

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encontrou distanciado das tendências mundiais quanto aos procedimentos médico-legais executados em quem transgredia a cisnormatividade e a heteronormatividade. Na década de 1930, o país importou as teorias sobre a origem da homossexualidade10 vindas da Europa. O modo como esses procedimentos são retratados abala o imaginário instituído, desloca o olhar do público e o faz observar que, infelizmente, a situação de subcidadania ainda é a regra para as pessoas transgêneras. Hooper produziu um filme apto a sensibilizar as pessoas; ao vê-lo, é possível perceber o grito, que denunciam a tentativa de desconsideração das diferenças e as subjetividades de minorias excluídas do espaço público (WARAT, 1992; 2010a; 2010b). O cinema mostrou sua capacidade de ecoar os gritos da rua e auxiliar na trivialização dos direitos humanos (SANTOS, 1989), sem considerá-los autoevidentes11 (HUNT, 2009). Entretanto, A Garota Dinamarquesa é um exemplo também da importância de refletir sobre como se constrói a sensibilidade dentro da cinematografia. Carol Grant (2015), nesse sentido, critica, principalmente, as falhas da obra ao desenvolver a narrativa sobre identidade de gênero, que foi retratada a partir da sedimentação de padrões de gênero, isto é, um conjunto de comportamentos associados à masculinidade e à feminilidade que hierarquizam homens e mulheres, e divide os papeis sociais entre aqueles que podem ser exercido por homens - os de poder - e aqueles que devem ser exercido por mulheres - os de submissão.

A desigualdade entre mulheres e homens, e a opressão de gênero têm se apoiado em mitos e ideologias dogmáticas que afirmam que a diversidade entre mulheres e homens constitui em si mesma a desigualdade, e que esta última, é natural, ahistórica e, consequentemente, irremediável. (LACARDE, 1996, p. 5,

tradução livre).12

10 O termo transexualidade somente passou a ser utilizado em 1949.11 A importância da trivialização dos direitos humanos consiste na expansão da concepção limitada ao direito estatal criada pela modernidade (SOUSA, 1989), pois eles só tornam-se significativos quando ganham conteúdo político (HUNT, 2009). O "carimbo" de autoevidên-cia desestimula a reflexão e a participação daqueles que os detêm (HUNT, 2009), possibili-tando o aprisionamento do seu potencial de inclusão de novas reinvindicações.12 La desigualdad entre mujeres y hombres, y la opresión de género se han apoyado en mi-

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Há, em relação aos padrões de gênero das personagens femininas do filme, o estabelecimento de arcos completamente distintos para as mulheres cisgêneras e transgêneras. As primeiras, nas figuras Gerda Wegener e Oola Paulson, desafiam os padrões de gênero impostos às mulheres, seus arcos são desenvolvidos a partir de sua representação como pessoas de personalidade forte e independente. Entretanto, a construção do arco da Lili é realizada a partir de uma caricatura de uma "feminilidade".

O Einar, personagem de Redmaynes, observa movimentos exagerados de uma stripper cisgênera e imita-os com perfeição, como se aprende como sensivelmente passar o dorso de sua mãe no rosto fosse fazê-lo ser uma "verdadeira mulher". Sua feminilidade é reduzida a caricatura (GRANT, 2015, tradução livre)13.

Essa hiperbolização da feminilidade nunca está presente em Gerda, personagem de Alicia Vikader, ou em qualquer outra personagem cisgênera. Somente em Lili. Intencionalmente ou não, a câmera inoportuna de Hooper não transmite empatia, mas apenas outras formas de Lili (GRANT, 2015, tradução livre)14.

Através do cinema, utilizando-se das relações construídas entre espectadores e filmes, é possível transgredir ou mesmo reforçar o patriarcalismo do imaginário social. A Garota Dinamarquesa, embora se construa com base em uma sensibilidade capaz de criar uma "predisposição a se deixar devorar pelo outro, a se deixar contagiar, roubar" (WARAT, 2010) e criar empatia, esbarrou na dificuldade de não estigmatizar o "ser mulher" transgênera. Apesar disso, o filme conduz a espectadora a se tos e ideologías dogmáticas que afirman que la diversidad entre mujeres y hombres encierra en sí misma la desigualdad, y que ésta última, es natural, ahistórica y, en consecuencia, irremediable. (LACARDE, 1996, p. 5).13 Redmayne's Einar examines a cisgender stripper's exaggerated body motions and then mimics them perfectly, as if learning how to sensually caress the back of your hand against your cheek will teach him how to be a "real woman". His femininity is reduced to caricature. (GRANT, 2015).14 This hyperbolizing of femininity is never given to Alicia Vikander's Gerda, or any of the other cisgender characters. It is only for Lili. Intentionally or otherwise, Hooper's intrusive camera doesn't invite empathy, but only further otherizes Lili. (GRANT, 2015).

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sensibilizar com a história de Lili e, ao possibilitar ampliar o "quem somos nós", "nosso tipo de gente", "gente como nós" (ROCHA; FAZIO, 2011, p. 19-20), condiciona sentimentalmente o público a, mutualmente, respeitarem suas diferenças (WARAT, 1992). Assim, o espectador sensível constata as incoerências da concepção sobre o direito do paradigma liberal-conservador. O contraste inicial entre a realidade apresentada no filme e a igualdade jurídica formal pode ser o início da ruína das verdades do senso comum teórico dos juristas; a luta por novos direitos tenciona para a transgressão dos limites do instituído como jurídico (WARAT, 1992). É possível sentir, através da linha narrativa do filme, que usurpar das pessoas transgêneras o direito ao livre desenvolvimento da personalidade nega a elas a própria dignidade e, portanto, os próprios direitos humanos. Neste sentido, tem-se uma proteção direta do sentimento de ser humano, ou seja, da sua subjetividade. É possível aprender, através da emoção e da sensibilidade trazidas pelo filme, que todas as pessoas são diferentes e há a necessidade de que os sujeitos autônomos estabeleçam entre si relações onde se reconhecem reciprocamente como diferentes (WARAT, 1992). O atual modelo de produção científica, asfixiado em seus mitos, não é conciliável com um imaginário democrático instituído por uma sociedade na qual pessoas autônomas se reconhecem como diferentes e que mutualmente respeitam suas diferenças. Os diagnósticos de esquizofrenia, homossexualidade e distúrbio hormonal, impostos a Lili por médicos distintos, são exemplos da incapacidade do atual modelo de educação e científico de atender as demandas de pessoas transgêneras. Essa inaptidão e a insensibilidade para lidar com as questões ligadas ao gênero não foram superadas. Nas ciências da saúde, os acadêmicos saem das faculdades sem entender o caráter fragmentado das identidades na pós-modernidade (HALL, 2011) e tornam-se profissionais com poder de realizar "restrições normativas e interdições para o acesso aos procedimentos que incidem sobre transformações corporais de caracteres sexuais, intermediando de forma" (LIONÇO,

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2008), mesmo sem as habilidades humanas necessárias para isso. Nas ciências jurídicas, os estudantes de direito tornar-se profissionais incapazes de escutar sentimentos, mas com poderes de restringir ou de efetivar os direitos subjetivos das pessoas transgêneras. Em A Garota Dinamarquesa, o cinema contribui, enquanto prática de abalo, porque é capaz de criar fissuras ao imaginário instituído utilizando-se da sensibilidade, para a integração das pessoas transgêneras como integrantes de uma comunidade em que todas se reconhecem reciprocamente como autônomas e diferentes na concretude de suas vivências cotidianas, permitindo o desenvolvimento das singularidades humanas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Garota Dinamarquesa é um dos poucos filmes sobre a temática LGBTQ distribuídos dentro do circuito global, o que garantiu sua exibição em um maior número de salas ao redor do mundo do que os filmes sobre o tema costumam obter. A sen-sibilização para as demandas das pessoas trangêneras por parte dos espectadores o filme advém da capacidade de abalar o ima-ginário instituído das pessoas que se permitiram estar abertas a serem levadas "a superarem o seu contexto existencial e inseri-rem-se em novas realidades" (ROCHA; FAZIO, 2011, p. 19). Essa sensibilização, maculada pelos vícios decorren-tes do imaginário instituído, foi incapaz de transgredir, pois, para fazer isso, com a temática de identidade de gênero, era imprescindível o deslocamento dos olhares da cisnormativida-de e do patriarcalismo. É preciso que existam pessoas, como Carol Grant, para provocar abalos e deslocar os olhares dentro do mundo cinematográfico e, assim, preservar o potencial de transformação social da arte. Em tempo, a indústria cinematográfica, para produzir o novo, precisa se abrir para a participação de LGBTQs nas pro-

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duções de seus filmes; os excluídos precisam ser incluídos no espaço público e exercer seu direito de contar sua própria histó-ria. O conhecimento novo, ao ser produzido, supera o outro que antes foi novo e agora se tornou velho e está aberto a ser ultra-passado, a qualquer momento, por outro conhecimento (FREI-RE, 2015). A Garota Dinamarquesa contribui para a produção de um saber novo dentro do circuito de cinema industrial, mas que já se faz velho em relação à real demanda de representatividade da comunidade LGBTTQ. Nesse sentido, sua utilização no ensino do direito pode representar abalos aos discursos, hábitos e ritos do senso co-mum teórico dos juristas em relação às questões de gênero, mesmo que com ressalvas. A inserção do ensino jurídico na realidade da transgeneridade fornecerá ao estudante uma for-mação mais plural, comprometidas com as dimensões éticas da dignidade e da solidariedade social e, uma habilidade de ques-tionar suas verdades. A sensibilidade do filme, em sua capacidade de promo-ver o reconhecimento do outro enquanto diferente e a recipro-cidade do respeito às diferenças, colabora para a inclusão das pessoas transgêneras no espaço público, que poderão participar da produção da política, interrogando as normas cotidianas da sociedade, e reivindicar suas dignidades, culminando na cons-trução de direitos humanos comprometido com todas. Assim, é por meio da inserção de sua abordagem que transgride a cisnor-matividade e, em parte, o questionamento do padrão de gênero, no ensino jurídico que A Garota Dinamarquesa contribui para a recuperação da sua dimensão política.

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SISTEMA PARTIDÁRIO BRASILEIRO E O DESEM-PENHO DOS PARTIDOS POLÍTICOS NAS ELEIÇÕES

MUNICIPAIS DE 2016

Pedro Rhuan Piauilino Lima1

Samille Lima Alves2

Introdução Observando a complexidade de definição da democracia, ao fazermos sua análise sob a égide procedimental, verifica-se que as eleições e os partidos são elementos fundamentais de sua práxis. Em tese, as eleições trazem consigo a representatividade, na qual os mais variados grupos e ideologias se expressam no Legislativo, e a responsividade, em que o representante do Executivo efetuará, de forma eficiente, as demandas exigidas pela população. Já os partidos políticos são agentes essenciais no processo democrático, pois, ao estarem respaldados pelo voto popular, tornam-se canais de expressão e titularidade de interesses definidos pelos seus estatutos, representando um vínculo, ainda que questionável, entre sociedade e Estado.1 Advogado, Bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Piauí. Mestrando em Sociologia pela Universidade Federal do Piauí. Email: [email protected] Advogada, Bacharela em Direito pela Universidade Estadual do Piauí. Email: [email protected].

VI

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O sistema partidário brasileiro tem como base constitucional o pluralismo político. Este, por sua vez, encontra no pluripartidarismo o substrato que norteia o regime democrático do país. Atualmente, 35 partidos estão registrados no Tribunal Superior Eleitoral, com registros que datam de 1981 até 2015. A maioria dos partidos em funcionamento surgiu na década de 1990, período que foi marcado por uma abertura democrática que refletiu os princípios democráticos estabelecidos pela Constituição Federal de 1988. Esses partidos caracterizam-se por modificar sua dinâmica de atuação e projeção política de acordo com o sistema eleitoral em que estejam disputando, que, no caso do Brasil, são dois: o sistema majoritário e o proporcional. Tanto o sistema partidário quanto o sistema eleitoral brasileiro são alvos dos críticos, que destacam a baixa inteligibilidade no processo eleitoral e a alta volatilidade eleitoral, gerando inúmeros questionamentos sobre a fragilidade da integração do eleitor ao sistema político vigente e a fragilidade ideológica das agremiações partidárias. Tais fragilidades são oriundas de um processo histórico de construção da democracia brasileira que, em poucas décadas, apresenta fissuras e interrupções. Aludindo especialmente a dinâmica dos partidos políticos em relação aos sistemas proporcional e majoritário, buscou-se, neste trabalho, demonstrar e diferenciar o desempenho dos partidos políticos em razão do cargo disputado, da região do país, da quantidade de votos obtidos com e sem e analisará o desempenho dos partidos nas eleições municipais de 2016, no intuito de estabelecer o painel atual da representatividade partidária, sob a ótica das principais críticas ao sistema partidário brasileiro, no que toca à alta fragmentação e à representatividade inexpressiva dos pequenos partidos políticos. Para tanto, utilizamos de bibliográfica em periódicos diversos, com destaque para os trabalhos de Ferreira, Batista e Stabile, Kinzo e Nicolau e Schmitt, bem como de pesquisa descritiva e quantitativa, feita pela compilação e análise dos resultados das eleições de 2016 disponibilizados pelo Tribunal Superior Eleitoral. O agrupamento dos dados foi feito em tabelas, figuras e gráficos, com o uso da técnica estatística de percentagem.

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1 PARTIDOS POLÍTICOS, SISTEMA ELEITORAL E A QUESTÃO DA FRAGMENTAÇÃO DO SISTEMA PARTIDÁRIO BRASILEIRO.

Os partidos políticos são instituições essenciais no siste-ma eleitoral brasileiro, constituindo-se como intermediários entre a representação popular e o exercício do poder estatal. Gomes3 explica que os partidos "detêm o monopólio do sistema eleitoral, chegando a definir o perfil assumido pelo Estado, já que são elas que, concretamente, estabelecem o sentido das ações estatais". Bonavides4 conceitua-o como "uma organização de pessoas que inspiradas por ideias ou movidas por interesses, buscam tomar o poder, normalmente pelo emprego de meios legais, e nele conser-var-se para realização dos fins propugnados". Para Gomes, é:

(...) a entidade formada pela livre associação de pessoas, com organização estável, cujas finalidades são alcançar e/ou manter de maneira legítima o poder político-estatal e assegurar, no interesse do regime democrático de direito, a autenticidade do sistema representativo, o regular funcionamento do governo e das instituições políticas, bem como a implementação dos

direitos humanos fundamentais5

A Constituição de 1988 proclama, em seu art. 1º como um dos seus fundamentos, o pluralismo político e o art. 17 con-sagra o pluripartidarismo como sistema partidário, declarando livre "a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos polí-ticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana". Para os defensores, o sistema multi ou pluripartidário se-ria mais democrático por aglutinar pensamentos diversos e pro-porcionar a representação do interesse das minorias. Para os críti-cos, esse sistema conduz à instabilidade e variações de propósitos

3 GOMES, 2016. p. 114.4 BONAVIDES, 2010. p. 450.5 Ibidem, p. 116

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no governo6, bem como o sectarismo intrapartidário como forma de obtenção de unidade entre filiado7. Segundo Bonavides 8"é o sistema multipartidário acoimado de emprestar aos pequenos partidos influência política desproporcionada e incompatível com a modestíssima força eleitoral de que dispõem, mormente quando surgem eles por fiel de balança nas competições pelo poder". O pluripartidarismo brasileiro tem como traço marcante a fragmentação, que, segundo Kinzo9, seria o reflexo da "acomodação dos mais variados tipos de disputa intra-elites de caráter regional", que teria como vantagem a garantia de representação de uma "ampla gama de grupos políticos organizados em partidos dos mais variados tamanhos e perfis" e como desvantagem a tendência de dificultar a formação de maioria no governo "levando à criação de coalizões muito heterogêneas, com um grande número de partidos para negociar apoio na formulação e aprovação de políticas". Atualmente, 35 (trinta e cinco) partidos estão registrados no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), com registros datados entre 1981 e 2015. A maioria dos partidos em funcionamento surgiram na década de 1990 (16 partidos), seguido pelas décadas de 1980 e 2010, com 8 partidos cada (Gráfico 1).

Gráfico 1 – Registro dos partidos por década no TSE

6 Ibidem, p. 473.7 JEHÁ, 2009. p. 155.8 BONAVIDES, 2010. p. 474.9 KINZO, 2003. p. 16.

Fonte: Elaborado pelos autores com base nos dados do TSE.

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O funcionamento dos partidos políticos relaciona-se diretamente com o sistema eleitoral. No Brasil, adotou-se o sistema proporcional e o sistema majoritário. O primeiro deles aplica-se nas eleições para as Casas Legislativas federal, estadual e municipal (com exceção da disputa para o Senado), sendo regido pelas disposições contidas nos arts. 27, §1º, 29, IV, 32, §3º e 45, caput, da Constituição de 1988. Passou a ser utilizado a partir do Código Eleitoral de 1932, com o fito de desarticular as oligarquias que dominavam o Brasil desde a proclamação da República, mantendo a conhecida política do café com leite10. A eleição de um candidato no sistema proporcional dependerá dos votos recebidos por seu partido ou coligação e do coeficiente eleitoral, que é calculado dividindo-se o número de votos válidos apurados pelo número de lugares a preencher em cada circunscrição eleitoral, enquanto o número de vagas a serem ocupadas será determinado pelo coeficiente partidário (arts. 106 e 107 do Código Eleitoral Brasileiro). Logo, o partido ou coligação só elegerá candidato se atingir o coeficiente. O sistema majoritário funciona nos moldes do art. 77, §§2º e 3º da Constituição brasileira, aplicando-se aos cargos de Presidente da República, Governador, Prefeito e Senador. A maio-ria absoluta é exigida nas eleições para as Chefias do Executivo nacional, estadual e municipal e seus respectivos vices, nos mu-nicípios com mais de 200 mil eleitores, e é denominado sistema majoritário de dois turnos. A maioria simples se aplica nas dis-putas para o Senado Federal, chefias de estados e municípios cujo número de eleitores seja inferior a 200 mil, que é denominado sistema majoritário de um turno11. O sistema eleitoral e a pluralidade de partidos no Brasil têm sido alvo de inúmeras críticas em razão do entendimento de que a alta fragmentação do sistema partidário brasileiro decorre do sistema eleitoral em uso no país12. Essa fragmentação seria um

10 GOMES, 2011, p. 107.11 Segundo os arts. 28, caput, 29, II, 32, § 2º e 46 da Constituição brasileira (BRASIL, 1988).12 NICOLAU e SCHMITT, 1995. p. 129

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problema por que a quantidade exacerbada de partidos políticos em funcionamento desfigura a real função dessas agremiações, por não possuir identidade ideológica consistente, por não representar a realidade diversificada da população brasileira. Uns criticam a mudança de foco na política, pois os eleitores olham as candidaturas e os candidatos sob a ótica pessoal13, esquecendo-se que candidatos são filiados a um partido, cujos posicionamentos devem ser respeitados. Questiona-se, também, se a grande quantidade de partidos não constituiria um problema à consolidação democrática. A fragmentação, segundo Nicolau e Schmitt14 , não decorreria apenas da representação proporcional, mas de diversos outros fatores, como a fórmula, a magnitude e o voto preferencial. Para Kinzo15, não há dúvidas que o sistema brasileiro é um dos mais fragmentados do mundo, o que não se constitui em um real problema, desde que não afete inteligibilidade do sistema eleitoral, que seria a capacidade de produzir opções claras de voto para os eleitores.

Aprendemos sempre afastando-nos do estabelecido, descobrindo o novo. Não se aprende acumulando simplesmente um cabedal de informações. Aprende-se denunciando as faltas do saber acumulado, desligando seus signos de seus efeitos, fazendo uma passagem emancipatória e facilitadora do novo (WARAT, 1997,

p. 64).

Ferreira, Batista e Stabile16, em estudo das eleições de 1982 a 2006, declararam que "apesar da explosão da oferta eleitoral, observada no início do período analisado, o sistema partidário tem se mantido estável a partir dos anos noventa. Além disso, não é tão fragmentado e errático como se imagina à primeira vista". Para os autores, os partidos políticos "têm cumprido a contento uma de principais suas tarefas, qual seja, estruturar a competição política na arena eleitoral".

13 GOMES, 2011. p. 107.14 NICOLAU E SCHMITT, 1995. p. 134-135.15 KINZO, 2004. p. 31.16 FERREIRA, BATISTA E STABILE, 2008. p. 449.

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De forma diversa, Kinzo17 entende que o sistema partidário brasileiro não está consolidado e avançou de forma modesta desde 1985, sendo marcado por "intensa fragmentação, fragilidade partidária, baixa inteligibilidade da disputa eleitoral e elevada volatilidade eleitoral". Para a autora, algumas indagações devem ser suscitadas para uma análise da experiência político-partidária brasileira desde 1985:

Em que medida os partidos brasileiros têm desempenhado um papel relevante na integração dos eleitores ao sistema político, mobilizando-os para participar dos pleitos e para votar em uma das opções apresentadas (partidos e/ou candidatos)? Em que medida eles oferecem opções claras e diferenciadas ao eleitor, ou seja, como têm contribuído para estruturar a escolha eleitoral e criar identidades políticas?18

Levando em consideração as questões e posicionamentos acima apontados, analisaremos os resultados das eleições de 2016, analisando o desempenho dos partidos em razão do cargo disputado, os partidos mais votados em cada região do país, os votos e eleitos obtidos através de coligações.

2 A REPRESENTAÇÃO PARTIDÁRIA NAS ELEIÇÕES MUNICIPAIS DE 2016.

No tocante ao número de candidatos eleitos em 2016, constatou-se que os partidos mais antigos, registrados na dé-cada de 1980, conseguiram eleger, juntos, mais prefeitos e ve-readores que os demais partidos. PMDB, PSDB, PSD, PP, PSB, PDT, PR, DEM, PTB e PT conquistaram, juntos, 85,21% das pre-feituras e 71,69% das cadeiras nas câmaras de vereadores. Os demais elegeram 15,11% dos prefeitos e 28,26% dos vereadores. O PMDB conseguiu, sozinho, o comando de 18,89% das prefei-turas e 13,07% das cadeiras nas câmaras municipais em todo o país, seguido pelo PSDB, PSD, PP e PSB (Tabela 1). Dos partidos registrados na década de 1990, o PP des-

17 KINZO, 2004. p. 35.18 KINZO, 2004. p. 29.

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tacou-se ocupando 9,08% das prefeituras e 8,19% das cadeiras de vereadores. Os demais não ultrapassaram a marca de 3% dos eleitos a ambos os cargos disputados, sendo que PSTU e PCO não elegeram qualquer filiado, enquanto o PCB elegeu um ve-reador. Dos registrados na década de 2000, o PR alcançou re-sultado mais significativo, com 5,40% de prefeitos e 5,21% de vereadores, enquanto o PSD foi o partido registrado na década de 2010 com representação mais elevada (9,79% de prefeitos e 8,02% de vereadores), seguido pelo SD (Tabela 1).

Tabela 1 – Desempenho por cargo dos partidos nas eleições municipais de 2016.

Nas eleições de 2016, mesmo com tantos partidos em disputa, os cargos concentraram-se em apenas dez deles. Os partidos registrados recentemente e que obtiveram ótimo desempenho nas eleições não são necessariamente novos, pois

% %% %Partido Partido

PMDBPSDBPSDPP

PSBPDTPR

DEMPTBPTPPSPRBPVPSC

PC do BSD

PROSPHS

1.036

791

537

498

405

327

296

268

259

255

118

104

99

86

81

60

50

37

7.560

5.364

4.639

4.741

3.630

3.765

3.012

2.898

3.057

2.813

1.671

1.618

1.520

1.523

1.004

1.437

984

873

PSLPTNPMNPRPPTCPEN

PT do BPRTBPSDCPPL

REDEPMBPSOLNOVOPCB

PSTUPCOTotal

878

764

527

615

572

522

490

390

418

111

180

219

56

4

1

0

0

57.856

18,89

14,43

9,79

9,08

7,39

5,96

5,40

4,89

4,72

4,65

2,15

1,90

1,81

1,57

1,48

1,09

0,91

0,67

13,07

9,27

8,02

8,19

6,27

6,51

5,21

5,01

5,28

4,86

2,89

2,80

2,63

2,63

1,74

2,48

1,70

1,51

30

29

27

18

16

13

12

9

8

5

4

3

2

0

0

0

0

5.483

0,55

0,53

0,49

0,33

0,29

0,24

0,22

0,16

0,15

0,09

0,07

0,05

0,04

0,00

0,00

0,00

0,00

100

1,52

1,32

0,91

1,06

0,99

0,90

0,85

0,67

0,72

0,19

0,31

0,38

0,10

0,01

0,002

0,00

0,00

100

Prefeita PrefeitaVereador Vereador

Fonte: Elaborado pelos autores com base nos resultados das eleições 2016 disponível no TSE (2016).

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126

resultam da transformação de partidos outrora existentes. Por exemplo, o PSD foi registrado em 2011 e resulta da união de figuras importantes do Democratas, do PP e do PSDB. Situação similar foi observada por Ferreira, Batista e Stabile19, que observaram que, entre 1982 e 2006, os partidos mais longevos como PMDB, PT, PDT, PTB, PP, PSDB e DEM alcançaram maiores êxitos na competição eleitoral, conquistando a maioria dos votos nas eleições para a Câmara dos Deputados, Assembleias Legislativas, Senado e o Executivo estadual. No tocante à representatividade partidária por região do país, observou-se o predomínio do PMDB e PSDB na maior parte das regiões brasileiras. No Centro-oeste ocorreu o predomínio do PSDB, tanto nas prefeituras (32,47%) quanto nas câmaras de vereadores (14,56%), seguido pelo PMDB, PSD, PR, PSB, PP, PDT e DEM. Os demais 23 partidos, juntos, conquistaram 13,55% das prefeituras e 32,84% das cadeiras nas câmaras municipais. No Nordeste, o PMDB com maior representação (14,65% dos prefeitos e 10,16% dos vereadores), seguido pelo PSD, PSB, PSDB, PP, PDT, PT e PR. Os demais partidos conquistaram 24,27% das prefeituras e 41,23% das câmaras de vereadores (Figura 1). No Norte, o PMDB elegeu 24,94% dos prefeitos e 11,85% dos vereadores, seguido pelo PSDB, PSD, PR, PP, DEM, PSB, PDT e PT. Os demais 22 partidos conquistaram 22,72% das prefeituras e 40,17% das câmaras de vereadores. No Sudeste, o PSDB e PMDB conquistaram, respectivamente, 18,94% e 17,08% das prefeituras e 11,74% e 11,23% das vagas para as câmaras municipais, seguido pelo PSD, PTB, DEM, PSB, PR e PP. Os demais 24 (vinte e quatro) partidos conquistaram 25,50% das prefeituras e 40,44% das câmaras de vereadores. No Sul, o PMDB e PP conquistaram, respectivamente, 25,87% e 17,96% das prefeituras e 21,18% e 16,19% das vagas para as câmaras municipais, seguido pelo PSDB, PDT, PSD, PT e PTB. Os demais 25 partidos conquistaram 18,64% das prefeituras e 24,84% das câmaras de vereadores (Figura 1).

19 FERREIRA, BATISTA E STABILE, 2008. p. 440 e 446

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127

Figura 1 - Desempenho dos partidos nas eleições de 2016 por cargo e por região.

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128

Fonte: Elaborado pelos autores com base nos resultados das eleições 2016 disponível no TSE (2016).

Observou-se uma diversidade de partidos na disputa dos cargos, assim como no êxito eleitoral na maioria dos municípios brasileiros. Essa diversidade foi maior na disputa para as câmaras de vereadores, haja vista a maior quantidade de vagas disponíveis, enquanto na disputa pelas prefeituras foi maior a quantidade de partidos que deixou de concorrer, com destaque para as eleições no Rio de Janeiro, Pernambuco, Bahia, Maranhão, Minas Gerais, Paraná e São Paulo, onde mais de 33 partidos disputaram as eleições, ao passo que o Acre, Rondônia, Mato Grosso e Espírito Santo foram os estados em que mais partidos deixaram de lançar candidato a qualquer dos cargos (Tabela 2).

Figura 1 - Desempenho dos partidos nas eleições de 2016 por cargo e por região (continuação)

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129

Prefeituras

Estado

ACALAMAPBACEESGOMAMGMSMTPAPBPEPIPRRJRNRO

18

31

27

25

33

31

31

30

33

33

28

26

32

29

33

31

32

34

30

25

9

14

12

13

23

22

16

18

21

26

11

15

15

17

17

23

24

20

20

14

6

3

2

2

2

2

4

3

2

0

2

4

3

3

1

2

0

0

3

5

17

4

8

10

2

4

4

5

2

2

7

9

3

6

2

4

3

1

5

10

29

32

33

33

33

33

31

32

33

35

33

31

32

32

34

33

35

35

32

30

22

31

31

29

31

30

30

30

30

32

29

27

31

30

31

31

30

32

31

26

6

3

2

2

2

2

4

3

2

0

2

4

3

3

1

2

0

0

3

5

Partidosque

lançaramcandidato

Partidosque

lançaramcandidato

Partidoscom

candidatoseleitos

Partidoscom

candidatoseleitos

Partidos que não

lançaram candidatos

Partidos que não

lançaram candidatos

Partidos que não lançaram

qualquer candidato

Câmara dos Vereadores

Fonte: Elaborado pelos autores com base nos resultados das eleições 2016 disponível no TSE (2016).

RRRSSCSESPTO

25

27

25

30

33

27

12

13

10

15

23

21

10

8

10

5

2

8

32

35

33

33

35

32

27

23

24

30

32

29

3

0

2

2

0

3

3

0

2

2

0

3

Tabela 2 – Quantidade de partidos por cargo e estado que concorreram e deixaram de concorrer nas eleições de 2016.

Alguns partidos não lançaram candidaturas em diversos estados. O NOVO foi o partido que mais deixou de lançar candi-daturas tanto para as prefeituras como câmaras municipais (21 estados), seguido pelo PCO (17 estados), PCB (12 estados), PSTU

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130

(5 estados) e PPL, PRTB e PMB (1 estado cada). Dessa forma, é de se questionar qual a função de um partido que não lança candi-daturas e não disputa o poder. Ou ainda que concentra suas can-didaturas em determinados estados do país. Certamente que não demonstra ter o caráter nacional necessário para seu registro jun-to ao TSE, nos termos do art. 7º, § 1º da Lei nº 9.096/1995. As regras e fórmulas utilizadas no sistema eleitoral ado-tado no país, como a do quociente eleitoral, a cláusula de barrei-ra, dificultam o êxito de um partido que dispute, sozinho, uma eleição, pois nem sempre a grande quantidade de votos obtidos garantirá cadeiras no parlamento. Isso faz com que a coligação seja a medida a ser adotada por muitos, tanto para potencializar o número de eleitos, concentrando a maioria dos votos recebidos, como para reduzir os custos da campanha. Em 2016, com exceção do NOVO e do PCO, os demais parti-dos se uniram para a última disputa municipal, seja na disputa para a Câmara seja nas Prefeituras. Na disputa para prefeito, alguns parti-dos optaram por lançar apenas candidaturas em coligações (PC do B, PEN, PMB, PPL, PRTB, PSC, PSOL, PT do B e PTN). Os partidos menores que não se utilizaram desse instrumento não obtiveram êxito na disputa. Quanto aos demais, ficou evidente a importância da coligação, pois a maioria esmagadora dos votos recebidos e dos filiados eleitos foi através das uniões partidárias (Tabela 3). As coligações são responsáveis também por promover a fragmentação partidária e a eleição de candidatos com baixa quantidade de votos20, bem como dificultar o processo de escolha pelos eleitores, especialmente naquelas coligações inconsistentes, muitas das quais envolvendo partidos com ideologias totalmente opostas. Para o pleito eleitoral de 2016, partidos com orientações políticas diferentes, que se distanciaram politicamente no cenário nacional após o impedimento de Dilma Rousseff, formaram coligações tanto nas disputas proporcionais quanto majoritárias, como DEM e PT, PC do B, DEM e PSDB, PMDB e PT, PP e PT, PSDB e PT, PSC e PT, DEM e PSOL, entre outros.

20 MELO E SOARES, 2016. p. 699-700

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131

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Part

ido

Part

ido

Pref

eito

DEM

NO

VOPC

BPC

do

BPC

OPD

TPE

NPH

SPM

BPM

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PMN

PP PPL

PPS

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PPR

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PSD

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PSO

LPS

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PTPT

do

BPT

BPT

CPT

NPV

RED

ESD - - - - - - - -

Tota

l

1 0 0 0 0 7 0 3 0 28 1 23 0 6 2 2 2 1 0 4 0 3

5 2 1 0 0 4 0 2 1 0 2 1 6 - - - - - - - - 107

267 0 0 81 0 320

13 34 3

1.00

8

26 475 5 112

294

102

48 17 9 401

86 534

786 6 29 2 0 251

12 257

15 29 97 3 54 - - - - - - - -5.

376

617 0 0 0 0

19.8

24

0

5.11

5

0

69.0

64

2.15

8

88.5

92

0

64.8

01

5.15

6

12.6

08

8.34

7

2.47

6

0

12.4

88

0

10.1

35

23.7

36

8.96

7

4.29

3

0 0

8.13

6

0

7.46

7

1.80

8

0

4.64

6

3.82

3

29.6

78 - - - - - - - -39

3.93

5

3.15

5.99

6

0 0

597.

082

0

2.38

8.96

2

77.4

31

349.

282

84.8

46

6.78

1.01

1

112.

017

2.98

0.83

3

18.9

64

963.

078

1.84

5.86

9

677.

952

247.

579

121.

496

32.3

99

3.50

0.52

3

714.

501

3.60

3.61

0

10.5

49.0

65

48.2

52

142.

851

4.67

5

0

1.70

8.46

3

45.4

83

1.74

9.20

7

103.

847

255.

430

616.

429

47.1

04

369.

060

- - - - - - - -43

.893

.297

268 0 0 81 0 327

13 37 31.

036

27 498 5 118

296

104

50 18 9 405

86 537

791 8 30 2 0 255

12 259

16 29 99 4 60 - - - - - - - -5.

483

0,37 0 0 0 0

2,14 0

8,11 0 2,7

3,7

4,62 0

5,08

0,68

1,92 4

5,56 0

0,99 0

0,56

0,63 25 3,33 0 0

1,57 0

0,77

6,25 0

2,02 25 10 - - - - - - - -

1,95

99,6

3

0 0 100 0

97,8

6

100

91,8

9

100

97,3

96,3

95,3

8

100

94,9

2

99,3

2

98,0

8

96

94,4

4

100

99,0

1

100

99,4

4

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7

75

96,6

7

100 0

98,4

3

100

99,2

3

93,7

5

100

97,9

8

75 90 - - - - - - - -98

,05

Voto

sVo

tos

Voto

sVo

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Tota

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olig

ação

Sem

col

igaç

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m c

olig

ação

Tabela 3 – Distribuição de votos e eleitos por partido, cargo disputado com e sem coligação em 2016.

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132

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Part

ido

Part

ido

Ver

eado

r

DEM

NO

VOPC

BPC

do

BPC

OPD

TPE

NPH

SPM

BPM

DB

PMN

PP PPL

PPS

PR PRB

PRO

SPR

PPR

TB

PSB

PSC

PSD

207 4 1 46 0 291

24 72 11 915

40 428

12 137

204

107

40 55 24 231

132

223

475

52 57 12 0 259

28 203

38 52 163 8 90 - - - - - - - -

4.64

1

2.69

1

0 0 958 0

3.47

4

498

801

208

6.64

5

487

4.31

3

99

1.53

4

2.80

8

1.51

1

944

560

366

3.39

9

1.39

1

4.41

6

4.88

9

366

821

44 0

2.55

4

462

2.85

4

534

712

1.35

7

172

1.34

7

- - - - - - - -53

.215

334.

900

64.6

52

636

65.5

43

0

249.

798

54.8

36

131.

907

31.1

80

938.

148

76.2

09

317.

559

29.3

80

146.

430

180.

080

223.

922

62.0

88

84.2

87

55.1

67

304.

147

306.

748

248.

578

531.

849

112.

080

90.3

31

20.8

54

0

301.

548

54.0

64

350.

681

90.2

84

187.

096

253.

870

10.9

35

98.3

86 - - - - - - - -6.

008.

173

1.68

8.89

3

0 0

678.

502

0

2.16

9.00

9

322.

874

558.

140

178.

038

3.54

8.78

0

318.

818

2.32

3.77

3

71.4

36

993.

895

1.72

4.39

4

1.29

9.84

1

579.

004

438.

723

244.

217

2.18

4.68

6

844.

097

2.64

5.67

5

3290

184

2484

25

4974

62

3422

59

0

1937

066

3036

90

1497

500

3614

78

4322

21

7963

05

1457

15

9524

27

- - - - - - - -33

.617

.527

2.89

84 1

1.00

40

3.76

552

287

321

97.

560

527

4.74

111

11.

671

3.01

21.

618

984

615

390

3.63

01.

523

4.63

9

5.36

441

887

856 0

2.81

349

03.

057

572

764

1.52

018

01.

437

- - - - - - - -57

.856

7,14

100

100

4,58 0

7,73 4,6

8,25

5,02

12,1

7,59

9,03

10,8

1

8,2

6,77

6,61

4,07

8,94

6,15

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8,86

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4

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0

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2

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8,02

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6

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9

91,8

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3

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4

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6

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9

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6

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4

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PSD

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LPS

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PTPT

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BPT

BPT

CPT

NPV

RED

ESD - - - - - - - -

Tota

l

Fonte: Elaborado pelos autores com base no resultado das eleições 2016 disponibilizados pelo TSE, Observação: foi contabilizado apenas os votos válidos dos candidatos eleitos.

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133

A esse respeito, Kinzo21 observou que o discernimento na escolha do candidato é dificultado e, consequentemente, o exercício da cidadania, pela complexidade do sistema eleitoral, pelo excesso de candidatos nas disputas, agravado, ainda, pelas coligações. Os partidos não possuem contornos definidos claramente como organizações distintas, e:

Disso decorre a facilidade com que os candidatos eleitos migram para outro partido sem nenhum constrangimento – o que denota, aliás, a fragilidade dos partidos, no sentido de que não são organizações relevantes o suficiente para manter seus próprios quadros. Evidência mais forte é o fato de os partidos raramente se engajarem nas disputas eleitorais como atores distintos; apresentam-se, ao contrário, em alianças partidárias. Ou seja, os competidores do jogo eleitoral não são os partidos como unidades diferenciadas, mas candidatos e coligações formadas por diversos

partidos, não raro de diferentes orientações ideológicas.

No mesmo sentido, Jehá22 destaca o amorfismo dos partidos políticos, que se caracterizam por não possuírem identidades e ideologias próprias e definidas. Estes não passariam de meras agremiações homogeneizadas, maldotados do mínimo substrato programático necessário para diferenciá-las. Os partidos seriam meros instrumentos de aquisição do poder político por indivíduos. Qual seria, então, o valor desse resultado para a democracia, positivo ou negativo? Em tese, o sistema pluripartidário corresponde à diversificação dos posicionamentos ideológicos de um país, porém o sistema eleitoral não garante que esses interesses estejam formalmente representados, ocupando cargos eletivos. No caso brasileiro, as instâncias do poder municipal restringiram-se a uma pequena parcela de partidos. Entretanto, ainda que em menor escala, os demais partidos conseguiram êxito nos mais diversos locais. A questão da fragmentação partidária comumente apontada pelos diversos estudiosos não seria o maior problema do sistema partidário, mas, sem dúvidas, dificulta o exercício da

21 KINZO, 2004. p. 32-33.22 JEHÁ, 2009. p. 105.

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cidadania pelo voto. E esse é o grande problema da fragmentação partidária no país. A disputa eleitoral é complexa, os partidos precisam se utilizar de diversas estratégias para alcançar o poder, enquanto o eleitor é submetido a uma lista infindável de candidatos, de inúmeros partidos, cujos traços ideológicos, objetivos e valores são desconhecidos pelos eleitores, caso existam de forma consolidada. Essa situação não é salutar para qualquer democracia. Nesse sentido, conforme questiona Kinzo23, até que ponto o fortalecimento do sistema partidário é fator fundamental na consolidação da democracia brasileira? Certamente mais estudos e análises são necessários para chegar, se possível, a uma resposta.

Considerações Finais

Em 2016, muitos partidos concorreram e conquistaram cargos eletivos, principalmente no sistema proporcional. Entretanto, a maioria expressiva dos cargos disputados foi conquistada por apenas 10 dos 35 partidos existentes. Os demais partidos obtiveram representação inexpressiva nas prefeituras e câmaras de vereadores, o que vai ao encontro das críticas proferidas ao sistema pluripartidário. Partidos como PSTU e PCO não elegeram filiados, enquanto o NOVO e PCB elegeram, juntos, 5 (cinco) vereadores em todo o país. Em contrapartida, PMDB e PSDB constituíram-se nos maiores partidos, conquistando, juntos, mais de 30% das prefeituras e 20% das vagas para as câmaras de vereadores e predominaram nas cinco regiões brasileiras, seguidos de forma mais modesta pelo PSD, PP, PSB, PDT, PR, DEM, PTB e PT. Evidente, também, que a disputa eleitoral foi bastante diversificada, na qual muitos partidos disputavam os cargos nos diversos municípios, principalmente para as câmaras de vereadores. Todavia, alguns partidos não lançaram candidaturas em diversos estados, principalmente o NOVO, que só concorreu

23 KINZO, 2004. p. 35.

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em municípios de cinco estados do país, o que levanta questionamentos quanto ao requisito de caráter nacional da agremiação partidária, assim como a dificuldade dos partidos menores em conseguir êxito nessas disputas, sem se utilizar das coligações partidárias, que se constitui em um importante instrumento de êxito eleitoral. As coligações são responsáveis por concentrar a maioria dos votos obtidos nas eleições de 2016. Sem dúvidas as coligações propiciam melhores resultados no contexto político, constituindo-se de fato, segundo Kinzo24 , na melhor estratégia tanto para os pequenos quanto para os maiores partidos. Poucos partidos não se utilizaram desse artifício em 2016, caso do NOVO e PCO, e muitas das uniões envolveram agremiações com orientações ideológicas discrepantes. Essa situação não pode ser considerada benéfica, tendo em vista que os partidos não possuem contornos claros e ainda firmam diversas coligações entre si, a despeito das divergências ideológicas, o que dificulta a escolha do eleitor e causa a volatilidade eleitoral e a instabilidade do sistema. Nesse cenário, questiona-se se o fortalecimento do sistema partidário promove, também, o fortalecimento da democracia.

24 KINZO, 2004. p. 35.

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REFERÊNCIAS

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O DIREITO À TERRA: BREVES NOTAS SOBRE TERRITÓRIO

Luana Elainy Rocha Magalhães1

Introdução O presente trabalho surge como resultado final da disciplina de Identidades coletivas, Memória e Processos de Territorialização, do Mestrado em Antropologia da UFPI. Nesse sentido, a metodologia usada foi basicamente a pesquisa bibliográfica, dialogando com autores consagrados no debate sobre território e na pesquisa com comunidades e povos tradicionais. Este artigo tem o objetivo de trabalhar, ainda que sem esgotar o tema, o direito à terra no que tange aos povos e comunidades tradicionais com foco voltado para os índios e os quilombolas. Propõe ainda permitir a compreensão das concepções que se tem acerca do que é território, bem como outras questões envolvidas nessa luta por direitos territoriais.

1 Mestranda em Antropologia pela Universidade Federal do Piauí – UFPI. Advogada. Membro da Comissão de Direitos Difusos e Coletivos da OAB/PI. Especialização em Direito e Processo do Trabalho pela Faculdade CEUT. Bacharela em Direito pela Faculdade CEUT.

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1 ESTRUTURA AGRÁRIA E DELIMITAÇÃO DE TERRITÓRIO

Pensar a estrutura agrária, a partir das categorias de estabelecimento e imóvel rural se tornou insuficiente. Almeida (2002) ensina que havia situações em que as formas de apropriação dos recursos naturais não eram individualizadas, como no caso do imóvel rural, mas também não eram unidades de exploração independente da dominialidade, como nos estabelecimentos. Tais situações foram denominadas de ocupações especiais, expressão essa capaz de comportar todas essas situações até então não reconhecidas, embora legítimas, contemplando assim as chamadas terras de preto, terras de santo e terras de índio. A forma como os povos tradicionais delimitam seus territórios segue não uma ordem objetiva, ou lógica capitalista, mas uma linha subjetiva que tem a ver com a sua história, com a sua relação com a terra, com suas memórias, etc. A terra pra eles tem ligação direta com a vida. Nesse sentido, Paul Little (2002, p. 3) define "territorialidade como o esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico, convertendo-a assim em seu território" de modo que este consiste num "produto histórico de processos sociais e políticos". Quando órgãos estatais vão "regularizar" as terras ocupadas, a história do povo é desconsiderada ou não lhe é dada a importância que merece e criam delimitações que seguem uma lógica ocidental e capitalista. E isso acontece, porque nesses processos de regularização o que se busca de verdade é a "reestruturação de mercados, disciplinando a comercialização da terra e dos recursos florestais e do subsolo" (ALMEIDA, 2012, p. 63). Destarte, é possível pensar que a legislação que trata da regularização de terras dos povos e comunidades tradicionais, antes de buscar efetivamente legitimar o que lhes é de direito, tem como escopo conter conflitos, para que se possa beneficiar os grandes latifundiários, na medida em que, tais regularizações são no sentido de limitar o espaço ocupado por essas pessoas.

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2 ORIGEM DOS CONFLITOS POR TERRA E A SOBERANIA ESTATAL

O Estado brasileiro surge como muitos outros, a partir de um processo de dominação e consequentemente de desapro-priação dos povos que aqui já estavam. Iniciam-se aí os confli-tos territoriais que perduram até os dias atuais. Há nesse sen-tido uma sobreposição de ideias e de outras formas de pensar o território. É o que Almeida (2012) chama de "dessemantização" da ideia de proteção em prol do protecionismo2, o que leva a uma reconceituação de território onde se tem novos critérios de classificação de ordem econômica e ambiental, visando o cresci-mento econômico e com a consequente flexibilização de normas jurídicas que tratam dos direitos territoriais de povos e comuni-dades tradicionais. É claro que ao longo do tempo as noções conceituais podem mudar e de fato mudam, afinal os índios de hoje não são os índios da época do "descobrimento" e nem os quilombolas os escravos de outrora, todavia essa mudança é sempre em fun-ção de "forças históricas e exteriores que exercem pressão sobre eles" (LITTLE, 2002, p. 5). Esses povos são obrigados a aceitar as demarcações de forma estratégica e mesmo por questões de sobrevivência sob pena de ficar numa eterna disputa na qual provavelmente não obteriam êxito. Paul Little chama atenção assim para uma ideologia ter-ritorial, que consiste nisso que já foi falado, na invisibilização de outras formas de se pensar o território e faz isso sob a argu-mentação de que o Estado deve ser soberano, o que implica ter um território para uso da sociedade nacional e se fundamentam em preceitos legais que garantem ao Estado o controle do terri-tório. Diante disso, fica fácil entender a razão pela qual quando se trata de demarcação de terras indígenas o território continua sendo propriedade da União.

2 Alfredo Wagner Berno de Almeida (2012), faz distinção entre proteção e protecionismo, assim ele explica que a proteção "deriva de mecanismos de uma ação ambiental conserva-cionista perpetrada por agências multilaterais", ao que passo que o protecionismo consiste numa "ação de Estado inspirada principalmente no potencial de crescimento econômico".

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Nesse sentido, talvez caiba aqui algumas poucas pala-vras acerca da categorização de terra para fomentar a reflexão sobre essa ideologia territorial. A terra é basicamente privada ou pública. Quando a terra é privada significa dizer que o dono tem total domínio sobre ela, podendo usá-la da forma que lhe for conveniente, inclusive vendê-la, já que na lógica capitalis-ta terra é uma mercadoria. Quando pública, a terra fica sob o controle do Estado, logo é um bem que pertence a todos os ci-dadãos, ou seja, será usada pelo Estado visando o bem comum, então, a priori não seria uma mercadoria, não poderia o Estado livremente fazer dela o que quisesse. É seguindo essa linha de raciocínio que o Estado não pode sair dando terra, sendo necessário seguir processos legais, atender a requisitos, não para dar, mas para demarcar uma terra que é tradicionalmente ocupada por determinado povo ou con-ceder-lhe o direito à propriedade da terra ocupada. Quando isso acontece a terra sai das mãos do Estado e passa a ser proprieda-de do povo que reivindicou a terra, salvo em relação aos povos indígenas, pois a eles cabe apenas a posse e o Estado continua sendo detentor da propriedade da terra. Ocorre, entretanto, que esses processos legais também são realizados para atender finalidades específicas que não cor-respondem com o bem coletivo. Isso acontece quando a ação governamental e os interesses privados andam lado a lado, oca-sionando pressões políticas que se manifestam, por exemplo, com a privatização de terras públicas. Mas como assim? Almei-da (2012, p. 67) nos explica que essa privatização ocorre com o eufemismo de "regularização fundiária" e exemplifica:

Compreende o Programa Terra Legal, instituído a partir da implementação da Lei 11.952, de julho de 2009, que visa a titular 67 milhões de hectares na Amazônia. Essa medida regulariza a ocupação de terras da União, permitindo que sejam repassadas, sem licitação, áreas com até 1.500 hectares aos que detinham a

posse dessas áreas antes de primeiro de dezembro de 2004.

Fica evidente, que a lei não é a mesma para todos, que o Estado usa dois pesos e duas medidas, quando se trata de

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interesses privados, de quem já tem poder econômico e político e quando se trata de interesses de coletividades historicamente subjugadas. Isso está diretamente ligado à ideologia territorial da qual Paul Little fala, onde também o Estado–Nação se vê ameaçado pelas noções de territórios sociais e assim se afasta dos povos tradicionais e se coliga com particulares. Para melhor compreender essa questão que envolve as categorias público e privado, bem como a relação que o Estado mantém com as terras, convém citar Kant de Lima (2012, p. 48) que elucida muito bem sobre isso, lançando luz para nosso entendimento:

O significado da palavra público, em nossa língua, enfatiza sua analogia com Estado, constituindo-se em sinônimo muitas vezes, de estatal. Trata-se do oposto de seu significado na língua inglesa, em que public quer dizer referente a determinada coletividade, ou na língua francesa, na qual publique quer dizer um espaço em que todos devem se engajar num contrato social, como em République. Ora, se o caráter público de alguma coisa remete à sua vinculação com o Estado, isso quer dizer que se impõe nas coisas públicas sua apropriação particularizada pelo Estado, e não aquela universalizada pela sociedade. As coisas públicas são, assim, do Estado, que deve autorizar as formas e regras de sua

apropriação pela sociedade.

Alfredo Wagner de Almeida (2012, p. 65) expõe que "os sentidos de território remetem, em primeiro lugar, a um "biologismo" extremado, que caracteriza o ambientalismo empresarial dos grandes fundos de investimentos". Para os povos tradicionais, todavia, o sentido de território "é encontrado nos vínculos sociais, simbólicos e rituais" que eles "mantêm com seus respectivos ambientes biofísicos" (Little, 2002, p. 10). É nesse sentido que Little (2002, p. 4) faz uso do termo cosmografia, que ele define como "os saberes ambientais, ideologias e identidades − coletivamente criados e historicamente situados − que um grupo social utiliza para estabelecer e manter seu território". Aqui reforçamos então a relação diferente que os povos tradicionais estabelecem com o território em comparação com o Estado e como a noção de território que este adota é hegemônica. Alfredo Wagner de Almeida nos faz entender como

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essa ressignificação das ideias e das fronteiras de território colaboram para perceber esses povos como obstáculos ao desenvolvimento, ao progresso, enfraquecendo assim suas identidades étnicas.

3 ANTROPOLOGIA VERSUS DIREITO

Nessa percepção do território como espaço de disputa é possível verificar também o apego à letra fria da lei que vincula a propriedade a um título, ignorando todo o processo histórico que vincula e legitima a propriedade da terra ao povo que a ocupa. Aqui é possível observar ainda um conflito entre a Antropologia e o Direito, cabendo falar sobre isso, com o auxílio Eliane Cantarino O’dwyer, algumas poucas palavras. O’dwyer (2012) chama a atenção sobre a categorização de indivíduos para atribuir a eles normas jurídicas e citando Geertz coloca que essas classificações não visam eliminar as diferenças, mas gerenciá-las. Todavia, de acordo com O’dwyer (2012, p. 318), essa categorização "representa uma forma de conceber a realidade e responde, em parte, pelas ações sociais orientadas por categorias jurídicas". Esta autora evidencia que as conceituações acerca dos povos e comunidades tradicionais, bem como a noção de território são distintas na antropologia e na seara jurídica normativa. Deste modo, nesta última, a noção corresponde geralmente a do senso comum, que muitas vezes é eivada de preconceitos no que diz respeito à compreensão do que é ser povo ou comunidade tradicional e quanto à ideia de território, este é pensado a partir de uma questão geográfica e política, ligada, pois, à noção de mercado. Na perspectiva antropológica, todavia se compreende esses povos e comunidades considerando-os a partir deles mesmo, fazendo o exercício de relativização e valorizando suas singularidades. Quanto ao território, ele é entendido na antropologia como intrinsecamente ligado a identidade étnica.

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Para nos fazer compreender de modo mais simples essa ideia de território, Barreto Filho (2012) faz analogia com a natureza tratando da biologia dialética segundo a qual os ambientes e nichos ecológicos não existem de forma independente das espécies e dos organismos, deste modo ele fala em pluralidade de ambientes, que são tantos quanto forem os organismos e as espécies. Desse modo Barreto Filho (2012, p. 248) nos explica que:

(...) à semelhança do postulado da biologia dialética, para saber qual é o ambiente físico de uma dada sociedade, temos de perguntar a esta, pois são seus processos e atividades sociais que especificam os elementos do mundo biofísico que lhes são relevantes.

O referido autor nos leva à compreensão de que ao contrário do que possa parecer, o território não se autodefine, nem poderia ser definido por fatores e sujeitos exteriores a ele. Isso significa dizer que território e sujeitos são interdependentes de tal modo que é quem vive nele que o define através, como ele disse, de suas atividades. Com isso ele desnaturaliza quaisquer concepções de território que se possa ter, nos fazendo ver que de fato há uma pluralidade de definições e conceitos, pois há uma diversidade cultural e étnica. De forma prática isso significa dizer que não é o Estado que deve dizer o que é terra de índio e o que é terra de quilombo e até onde ela vai, tampouco dizer o que é ser índio e o que é ser quilombola. Nesse sentido, O’dwyer (2012, p. 322) explica:

Neste tipo de reflexão proposta segundo uma perspectiva da antropologia, a definição prevalente é a de que os grupos étnicos são entidades que se autodefinem, as etnicidades demandam uma visão construída de dentro e não mantêm relações imperativas com nenhum critério objetivo.

Nesta direção, Oliveira (2012) fala sobre como surgem as pesquisas acerca de terras indígenas, mostrando que uma das razões se deve ao conflito entre as perspectivas do Estado, da Funai – com a ideia de território como sendo uma proposta da

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comunidade3 – e o que de fato os índios percebem como sendo seu espaço. Oliveira (2012, p. 371) fala que "as noções de terra e território indígena se modificaram historicamente", contudo essa mudança sempre esteve muito mais relacionada "com os modelos de ação e gestão populacional do Estado brasileiro do que com os anseios das populações indígenas". É por isso que Oliveira (2004, p. 23) diz que a territorialização "é uma intervenção da esfera política que associa (...) um conjunto de indivíduos e grupos a limites geográficos bem determinados". Em outras palavras, as demarcações de terras indígenas são verdadeiros processos de confinamento dos povos indígenas, pois como vimos isso se dá seguindo critérios exteriores aos dos povos indígenas. Sobre isso é relevante refletir sobre a dificuldade de demarcações das terras indígenas especialmente dos índios do Nordeste, já que a demarcação pressupõe o reconhecimento do povo como pertencente à etnia. E como dito alhures, o imaginário popular acerca do que é ser índio está atrelado a critérios objetivos, como andar nu, viver na mata, não falar ou pouco falar o português, não fazer uso de tecnologias, enfim, ser o índio dos anos 500. Ocorre que esse imaginário percorre o ambiente jurídico, que nesse sentido tem resistido em demarcações de terras indígenas por não compreender que a cultura não é estática e assim negando aos índios o direito de mudar assim como os portugueses já não se assemelham aos nossos colonizadores. Nessa perspectiva, fica evidente que a questão étnica está forte e diretamente ligada à luta por direitos territoriais influenciando assim na sua conquista. Isso propicia um movimento indígena a, em certa medida, adotar de forma estratégica, os sinais diacríticos que os órgãos estatais e que a sociedade exigem para que façam jus ao seu território. Isso significa dizer que a luta pelo direito à terra, faz com que os povos indígenas, em especial os do 3 Isso ratifica a proposta de Alfredo Wagner ao falar em seu artigo Territórios e Territoriali-dades específicas na Amazônia, entre a "proteção" e o "protecionismo", sobre a pressão que os povos e comunidades tradicionais sofrem de um lado pelo protecionismo do Estado e de outro pela proteção das agências multilaterais.

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Nordeste, que não vivem isolados, nem correspondem ao nosso imaginário (re)inventem sua cultura de forma estratégica, mas também como forma de fortalecimento para a luta por seus direitos, até porque, é a demarcação do território que lhes proporciona conquistar também o direito a uma saúde e uma educação diferenciada.

4 UMA CONQUISTA

Como dito anteriormente, a definição de território está ligada à questão étnica. A "concessão" de direitos territoriais então passa pela definição do grupo, para verificar se ele tem direito ou não à terra que ocupa. Leite (2012), nos fala da mudança histórica do significado de quilombolas, onde na Constituição Federal de 1988 se refere a remanescente dos quilombos, sendo isso fruto de pesquisas que identificavam grupos de origem africana vivendo em comunidades e mantendo relações específicas com o território que ocupavam, porém sem terem a propriedade da terra. Com isso, a tais povos eram reconhecidos o direito definitivo à propriedade. Sem dúvida isso foi uma conquista, porém, provocou reflexões que culminaram em reivindicações de movimentos negros de modo a rever a concepção de quilombo. E assim, como resultado dessas reivindicações dos movimentos negros, tem-se o Decreto nº 4.887/20034 segundo o qual ao invés de se determinar o que é ser quilombola, diz que essa definição deve seguir critérios de autoatribuição, ou seja, são os grupos que primeiro devem se reconhecer como tais, associando isso à trajetória histórica e a sua relação com a terra bem como com atitude de resistência. Almeida (2002) fala das chamadas terras de preto, de como ganhou força o movimento social quilombola. Essas

4 O Partido Democratas (DEM) ajuizou no Supremo Tribunal Federal – STF no ano de 2004 uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), sob número 3239, alegando vício formal e material. O DEM alega que houve invasão da esfera de competência do Poder Legislativo pela Presidência da República, porque, segundo ele o Decreto estaria regulamentando dire-tamente o art. 68 da ADCT. Questiona ainda a matéria dos artigos 13, §§2º e 3º do artigo 2º e o §1º do artigo 2º que fala da autodefinição.

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terras eram tratadas pelo legislador como algo bem definido, como um verdadeiro sítio arqueológico em que havia figuras que correspondessem ao seu imaginário. Ocorre que a definição de "remanescentes das comunidades de quilombos" não era satisfatória, o que fez surgir diversos questionamentos, dentre eles o que indagava qual o conceito de quilombo. Segundo o referido autor, a ideia que se tinha/tem de quilombos é que são escravos fugidos em número mínimo de cinco, para localização isolada geograficamente, com moradia habitual e que não contenha pilões, considerando nesse último critério que quilombolas não teriam autonomia nem de produção e tampouco organização para o trabalho, ou seja, seriam vadios.

Dessa forma, esses cinco elementos funcionaram como definitivos e como definidores de quilombo. Jazem encastoados no imaginário dos operadores do direito e dos comentadores com pretensão científica.Daí a importância de relativizá-los, realizando uma leitura crítica da representação jurídica que sempre se mostrou inclinada a interpretar o quilombo como algo que estava fora, isolado, para além da civilização e da cultura, confinado numa suposta auto-suficiência e negando a disciplina

do trabalho. (ALMEIDA, 2002, p. 49)

Esses elementos datam de 1740 e permanecem até hoje definindo o que é quilombo, contudo com variação de intensidade de um elemento em relação aos outros. Este autor nos faz pensar sobre a importância de trabalhar com um conceito atual de quilombo, com base não no que foi, mas no que ele é no presente. É necessário compreender que quilombo não está atrelado a delimitações tão objetivas como o espaço geográfico ou conceitos jurídicos de posse, estabelecimento e imóvel rural. Ao contrário, envolve caracteres subjetivos como a etnia. O problema dos territórios e do reconhecimento de sua titularidade aosquilombolas tem origens antes de 1755 com a crise sofrida pelos proprietários, gerando fragmentação dos estabelecimentos algodoeiros e situações de acamponesamento, que não foram reconhecidas pela Lei de Terra, que menosprezou situações de ocupação e posse

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consolidadas. Isso fez surgir um quadro permanente de conflitos e tensões.

Nesse quadro, o processo de acamponesamento ou de formação de uma camada de pequenos produtores familiares tende a se expandir e consolidar. Eis o que explica esses casos de existência autônoma nos limites das fazendas, no quintal e na própria senzala. Dessa forma, a noção de quilombo se modificou: antes era o que estava fora e precisava vir necessariamente para dentro das grandes propriedades; mas, numa situação como a de hoje, trata-se de retirar as famílias de dentro das fazendas, ou seja, expulsá-las da terra. (ALMEIDA, 2002, p. 59)

Fazer uso da arqueologia para determinar o que é quilombo e delimitar seu território, implica em grave erro e deturpação de uma realidade que vem se mostrando e que com tais técnicas certamente seria mais uma vez desvalorizada e velada. É que escavações em buscas de evidências ou mesmo testes de arqueologia de superfície iriam trabalhar em cima do passado ignorando, portanto, a realidade fática atual. Almeida (2002) defende a ideia de que com o método etnográfico, ao contrário, é possível compreender melhor essas comunidades e romper com o positivismo jurídico e analisar a situação dos quilombos de forma mais crítica, ressaltando sua autonomia, refutando a falsa ideia do imaginário jurídico (imperial e colonial) e popular de que os quilombolas são vadios e sem disciplina para o trabalho e quaisquer organizações. Nesse sentido, é que se pode romper com uma limitação discriminatória e restrita de quilombos, que remete a uma única situação, qual seja a de remanescentes fugitivos e distantes, quando na verdade muitas outras situações devem ser consideradas e englobadas. Além disso, como já dito anteriormente é importante considerar que o que deve valer não é como os órgãos definem esse grupos/sujeitos, mas como esses sujeitos se autodefinem, como identificam sua identidade coletiva e quais critérios eles usam para se guiar e se organizar politicamente. Desse modo, compreender o significado de quilombo implica entender a construção histórica desses sujeitos, sua lógica e estratégias de sobrevivências perante seus antagonistas.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A compreensão de que não há uma limitação de raças e a atualização do conceito de etnia permite trabalhar a questão da identidade e do sentimento de pertencimento, independente de relações consanguíneas e com isso lidar melhor com o conflito de territorialidade. Nesse contexto é que Almeida (2002, p. 75) diz que: "A permanência dos laços chamados primordiais, como laços de sangue e de raça, perde sua força de contraste diante de uma noção de etnicidade considerada como fator contingente". É com base nesse caráter de autodefinição e sentimento de pertencimento que os limites de identidade e territórios devem ser definidos, pois se torna ilegítimo e arbitrário os classificadores oficiais que trazem para si o poder de ficar determinando o que o "outro" é ou não é, o que define ou não sua identidade e com base nisso permitir-lhes e ou vetar-lhes o direito à terra. A Constituição Federal traz bons avanços para os povos indígenas e para as comunidades quilombolas. Esses avanços são resultados de um processo de reivindicações ao longo do século XX que lhes deram visibilidade em razão de uma nova crescente de desaproriação de suas terras em prol do tal crescimento econômico, o que lhes movimentou para lutar em defesa de suas terras disputando assim com o Estado e colocando em evidência as suas formas de compreender o território. Desta forma, os autores trazidos para debater os direitos territoriais, nos fazem refletir sobre as concepções adotadas acerca do que é território e sobre os interesses envolvidos na "concessão" de tais direitos, posto que os indígenas em certa medida são vistos como selvagens, como primitivos e por isso para o Direito tem capacidade civil relativa, sendo pois tutelados pela FUNAI e no processo de demarcação de terras, estas continuam sob a propriedade da União, cabendo aos índios apenas a sua posse, o seu usufruto, sendo portanto, mediante autorização legislativa permitido explorar o subsolo de tais terras.

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Quantos aos quilombos, ainda há uma resistência em aceitá-los, pois denunciam um passado e um presente que não queremos lembrar, uma realidade que há muito lutamos para mascarar. Falo da realidade do racismo, a realidade que o Brasil é um país negro e não branco como se pretende. Nesse contexto, compreendê-los é mais difícil, ao passo que quanto aos índios é uma situação mais "tranqüila", pois por vezes sequer são vistos como pessoas, mas apenas como enfeites para se mostrar aos estrangeiros, como algo parte de nossa cultura, são verdadeiros bibelôs e por isso não se aceita que mudem, exige-se que se mantenham tais quais os indígenas da época do "descobrimento". Assim, é possível afirmar que atualmente muitas conquistas já foram realizadas, mas há ainda muita luta pela frente, pois não obstante os direitos trazidos na Constituição Cidadã, ainda vemos os índios como incapazes, inclusive civilmente e as comunidades quilombolas dificilmente conseguem de fato o título que garante a propriedade da terra. Além disso, as terras ainda estão concentradas nas mãos de poucos, há assim ao contrário do que querem nos fazer acreditar, "pouca terra para muito índio".

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FEMINICÍDIO: A LEI 13.104/2015 COMO UM INOVADOR JURÍDICO NA TUTELA DOS DIREITOS

DAS MULHERES

Augusto César Bezerra Chaves1

Catarina Vilna Gomes de Oliveira Santos2

Introdução O artigo exposto procura exibir algumas reflexões acerca do feminicídio no Brasil. Verifica-se no contexto histórico a postura da figura da mulher em uma sociedade patriarcal. No presente momento, apesar de existir formalmente uma isonomia entre os sexos, na prática, constata-se, que a sua condição de gênero lhe faz experimentar consequências negativas. O dissimulado machismo da sociedade brasileira exterioriza-se diante do índice exorbitante de todas as formas de violência contra a mulher. A violência contra a mesma está estabelecida entre todas as esferas sociais. Diante desta perspectiva, o Brasil ao promulgar a Lei nº. 13.104/15 passou a integrar o rol de países da América Latina que 1 Estudante de Graduação. 6º. Semestre do Curso de Direito na FATEPI. [email protected] 2 Estudante de Graduação. 7º. Semestre do Curso de Direito na FATEPI. [email protected]

VIII

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tipificaram o crime de feminicídio, penalizando dessa maneira, mais severamente, aqueles que praticam o homicídio por motivo de condição de gênero. A proposta inicial deste trabalho é uma revisão na bibliografia que aborda este tema, muitos autores utilizam de duas variantes para descrever a morte de mulheres em razão de gênero, o femicídio e o feminicídio. Nesse sentido, é efetuada uma interpretação da Lei do Feminicídio com a Carta Magna, Lei Maria da Penha e alguns aspectos dos direitos humanos relevantes ao caso em pesquisa. O objetivo deste artigo não foi exaurir todas as variantes do tipo penal tampouco esgotar todos os assuntos sobre feminicídio no país e sim, promover uma discussão sobre o tema no país, reunindo posicionamentos de alguns doutrinadores.

1 MULHER E AGRESSÃO

No que se relata sobre a violência contra a mulher, o Brasil ainda possui números exorbitantes. De acordo com um estudo realizado por WAISELFISZ (2012), o país ocupa o 7º lugar em um ranking de 84 países de onde mais ocorrem ho-micídios femininos, apesar da Lei Maria da Penha ser ampla-mente conhecida por 99 por cento das mulheres por todo país, tal garantia não foi suficiente para reduzir a violência contra a mulher, esta, presente em todos os segmentos da sociedade. (Pesquisa DataSenado, 2013. p. 2). É de conhecimento geral que a violência contra a mulher não é fato que apareceu somente nos dias atuais. Ao falarmos em relação de gênero estamos falando de papeis dispares exercido por homens e mulheres ao longo dos tempos. Por muito tempo as mulheres sofreram com a desigualdade que assolou as antigas sociedades, tendo como exemplo, as sociedades patriarcais. Dessa forma, Costa (2008) leciona que:

Uma organização sexual hierárquica da sociedade tão necessária ao domínio político. Alimenta-se do domínio masculino na

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estrutura familiar e na lógica organizacional das instituições políticas, construídas a partir de um modelo masculino de dominação. (COSTA, 2008, p. 02)

Nessa compreensão, são muitos os fatores que contri-buíram ao longo dos séculos para preservar esse pensamento na atualidade. Frise-se, a título de exemplo, a importância do mito judaico-cristão “que é a base da nossa civilização atual” (MURA-RO, 1972, p.70), na propagação da desigualdade entre homens e mulheres. Nessa orientação, aduz SILVA (2012) o trecho bíblico, no capitulo do livro de Gêneses, o qual fala o instante em que Deus toma conhecimento que aqueles que por ele fora criado haviam desobedecido a sua ordem e caído em tentação. A mulher, chama-da Eva, recebeu como sanção as dores do parto e a subjugação ao homem, uma vez que ela influenciou a Adão agir em pecado. E o homem como recompensa negativa deveria aprender a dominar a natureza e através desta prover a si mesmo e sua prole. À medida que o homem vai controlando a natureza, seu po-der sobre a mulher vai também, na mesma proporção, aumentando e se cerrando. O fruto da árvore do conhecimento afasta cada vez mais o homem da natureza, e a árvore do conhecimento é também a árvore do bem e do mal. Do bem, no que permite a continuidade do processo humano, e do mal no sentido em que cria o poder, a dominação como conhecemos hoje. (MURARO, 1992, p.71). No intimo deste aspecto, devido a dependência econômi-ca da vítima em relação ao agressor, combinado com a fragilidade física manifesta no medo de represálias, as vítimas são impedidas de denunciarem seus agressores, ou ao denunciarem, voltam a conviver com o mesmo. Desse modo, em alguns casos as violên-cias são agravadas até chegarem ao ápice, qual seja: a morte. Essa violência física ocorre quase sempre por parceiros, ou ex-parceiros das vítimas, no espaço doméstico, frequentemen-te ocasionadas por ciúmes, sendo muitas vezes sob influência de bebidas alcoólicas e dificuldade de aceitar o término da relação (Pesquisa DataSenado, 2013. p. 4)

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Posto que no evoluir da história a mulher procura refutar todas as formas de preconceito, procurando refazer a concepção para ela estabelecida social, cultural, e economicamente, todos es-tes esforços não foram o bastante para frear os números assusta-dores de feminicídio no país.

2 O BRASIL E A CONTENDA DA TUTELA DA MULHER VÍTIMA DE VIOLÊNCIA

No que se refere ao tema ora exposto, salienta-se que a Constituição Federal de 1988 em seu art. 5º, assegura a igualdade entre todos sem distinção de qualquer natureza. O referido dis-positivo garante que todos os cidadãos passem a gozar de trata-mento isonômico evitando assim discriminações indevidas. Nesse segmento, o legislador deve averiguar não somente a igualdade na seara formal e sim a igualdade material quando necessário for. Desta maneira orienta Moraes (2012):

Assim, os tratamentos normativos diferenciados são compatíveis com a Constituição Federal quando verificada a existência de uma finalidade razoavelmente proporcional ao fim visado. (MORAES, 2012, p. 65).

Com o objetivo de garantir a igualdade da mulher na sociedade e combater todas as formas de violência, o Brasil ratificou inúmeros instrumentos de proteção ao público feminino, por exemplo, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher – (Convenção de Belém do Pará). A mencionada Convenção explica em seu artigo 1º:

O que é violência contra a mulher: A violência contra a mulher constitui violação dos direitos humanos e liberdades fundamentais e limita total ou parcialmente a observância, gozo e exercício de tais direitos e liberdades. Também ela constitui ofensa contra a dignidade humana e é manifestação das relações de poder historicamente.

Salienta-se ainda que o Brasil é signatário da Convention on the Elimination of all Forms of Discrimination Against Women

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(CEDAW), comprometendo-se a combater a discriminação contra a mulher e a adotar sanções para os casos. Nesses termos, consta no Art. 2° do documento internacional mencionado:

Artigo II. Os Estados Partes condenam a discriminação contra amulher em todas as suas formas, concordam em seguir, por todos os meios apropriados e sem dilações, uma política destinada a eliminar a discriminação contra a mulher, e com tal objetivo se comprometem a: [...] b) Adotar medidas adequadas, legislativas e de outro caráter, com as sanções cabíveis e que proíba toda discriminação contra a mulher; Situações que configuram a discriminação: matar mulher por entender que ela não pode estudar, por entender que ela não pode dirigir, por entender que ela não pode ser diretora de uma empresa etc. (Convention on the Elimination of all Forms of Discrimination Against Women)

Portanto, as posições adotadas pelo Brasil através dos tratados internacionais deverão nortear sua atuação visando à erradicação da violência de gênero. Nesses pontos, entende-se que a lei 13.104/2015 não discrimina em prejuízo do homem, dando maior valor a vida da mulher. Homens e mulheres possuem igualdade perante a lei, esta igualdade é a formal, devendo ser mantida para assegurar direitos, garantias e deveres a ambos. Entretanto, o que o legislador deseja com a lei do feminicídio é reduzir historicamente a desigualdade entre homens e mulheres, onde sempre existiu a supervalorização da figura masculina na sociedade perante a mulher. Nessa ótica aduz Hermann (2007):

Não se trata de considerar a mulher como, mas de reconhecer que mulheres e homens vivenciam, na vida privada, no âmbito doméstico e nas relações afetivas, situações de desigualdade que propiciam o uso da violência contra as mulheres. (HERMANN, 2007, p. 84)

Contribui ainda com este entendimento Dias (2013):

A efetivação do princípio constitucional da igualdade depende do reconhecimento das diferenças e das desigualdades históricas entre homens e mulheres: Para pensar a cidadania, hoje, há que se substituir o discurso da igualdade pelo discurso da diferença. Certas discriminações são positivas, pois constituem, na verdade, preceitos compensatórios como solução para superar as desequiparações. (DIAS, 2013, p. 2)

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Nesse olhar, destaca-se a busca da igualdade substancial, devendo tratar de forma igualitária os iguais e desigualmente os desiguais na medida e na proporção de suas desigualdades. Como se sabe a própria Carta Magna estabelece desigualdades em relação entre homens e mulheres em direitos e obrigações, de forma clara Lenza (2012), destacam as seguintes disparidades:

Condições às presidiárias para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação (art. 5, L); b) licença- maternidade e licença- paternidade (art. 7 XVII E XIX) e serviço militar obrigatório ( art. 143 § § 1 e 2 ) (LENZA, 2012, p. 974)

Pode-se ainda se ater as lições de Nunes Júnior (2002):

O constituinte tratou de proteger certos grupos que a seu entender, mereceriam tratamento diverso. Enfocando-os a partir de uma realidade histórica de marginalização social ou de hipossuficiência decorrente de outros fatores, cuidou de estabelecer medidas compensatórias, buscando concretizar, ao menos em parte, uma igualdade de oportunidades como os demais indivíduos, que não sofreram as mesmas espécies de restrições. (NUNES, 2002, p. 93)

Ora, portanto, nesse ponto de vista, resta evidente que a vontade legislativa ao fornecer tratamento diferenciado às mulheres na lei do feminicídio, ocorre em razão da hipossuficiência a que foi submetido esse gênero. A correção das discrepâncias entre as relações de gênero no Brasil retrata um progresso no sentido de valorização à dignidade humana, de modo que falar em isonomia material entre os sexos é também abordar a esfera da dignidade daquele gênero que restou historicamente alijado da devida proteção jurídica. Nesse contexto, aduz Kont (2010) ao retratar a elucidação do princípio da dignidade da pessoa humana na evolução histórica, a saber:

A compreensão da dignidade suprema da pessoa humana e de seus direitos, no curso da História, tem sido em grande parte, fruto da dor física e do sofrimento moral. A cada grande surto de violência os homens recuam, horrorizados, à vista da ignomínia que afinal se abre claramente diante de seus

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olhos; e o remorso pelas torturas, pelas mutilações em massa e pelas explorações aviltantes faz nascer na consciência, agora, purificada, a exigência de uma nova vida para todos. (KONT,

2010, p. 71)

Desta maneira, a proposta do autor citado vem com uma análise passada dos eventos importantes na história como revisitação dos equívocos enquanto pressupostos das mudanças de comportamento humano. Assim, não precisamos aguardar o aumento do número de mulheres vítimas para que as mudanças paradigmáticas sejam adotadas. Portanto, a nova lei do feminicídio não se limita apenas a uma alteração da esfera legislativa no Brasil, cujo caráter esteja restrito ao seio simbólico das normas jurídicas, mas ensejando avanços inclusive no comportamento e na relação com o gênero feminino, de modo a não só garantir direitos e sim, inequivocamente, assegurar efetiva proteção.

3 FEMICÍDIO X FEMINICÍDIO

Percebe-se claramente que há, doutrinariamente, uma confusão, no tocante as expressões feminicídio e femicídio, onde ambas são geralmente utilizadas como sinônimos para a morte de mulheres por razão do seu sexo, entretanto há uma grande diferença entre esses termos. Por femicídio, entende-se como uma tipologia dos crimes contra vida em que as vítimas são mulheres, independente de motivação especial por conta do seu gênero, diferente da expressão feminicídio que traz um nexo entre o resultado e a condição de gênero. Deste modo, observa-se que a diferença terminológica entre os termos anteriormente mencionados tendem a uma perspectiva de cunho político, haja vista que ambas possuem, genericamente o mesmo significado. Nas palavras de Lagarde (apud Pasinato 2010):

Para que se dê o feminicídio, concorrem de maneira criminal o silêncio, a omissão, a negligência e a conveniência de autoridades encarregadas de prevenir e erradicar esses crimes. Há feminicídio quando o Estado não dá garantias para

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as mulheres e não cria condições de segurança para suas vidas na comunidade, em suas casas, nos espaços de trabalho e de lazer. Mais ainda quando as autoridades não realizam com eficiência suas funções. Por isso o feminicídio é um crime de Estado. (LARGADE apud PASIANTO, 2010, p. 232)

Portanto, o termo femicídio não se confunde com feminicídio, pois enquanto femicídio é a morte de indivíduos do sexo feminino sem distinção de qualquer condição da causa mortis, a segunda expressão diz respeito à morte de mulheres em razão do gênero, a morte é motivada pelo menosprezo à condição de mulher e consideram-se também razões políticas.

4 FEMINICÍDIO: INOVAÇÃO JURÍDICA

Homicídio qualificado é aquele cuja conduta ocorre em algumas das situações ditadas no § 2°, artigo 121 do Código Penal, tais circunstâncias tornam o crime mais gravoso que já é. Há duas situações de qualificadoras nos incisos elencado no mencionado parágrafo. De modo que a qualificadora do crime de feminicídio é considerada subjetiva, pois é possível a coexistência das circunstâncias privilegiadoras (§ 1º do art. 121). As referidas qualificadoras distribuem-se da seguinte forma: Quanto ao motivo tem-se:

a) inciso I - mediante paga ou promessa de recompensa ou motivo torpe;b) inciso II- motivo fútil;

Quanto aos meios empregados:

a) inciso III- Com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum;

Quanto ao modo de execução:

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a) inciso IV- à traição, de emboscada , ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido. Por consequência, levando em consideração a gravidade do delito o legislador previu que o homicídio na forma qualificada fosse considerado hediondo. Assim prevê o artigo 1° da lei n. 8.072.1990:

Art. 1° [...]

I homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2°. I, II, III, IV, V e VI);

Neste panorama, a Lei n. 13. 104 de 2015 veio modificar o citado dispositivo e incluir como hediondo o feminicídio. Os crimes hediondos são tipificados pelos legisladores, não possuindo o magistrado nenhuma discricionariedade nesta atuação, são previstos em um rol taxativo, logo só resta ao magistrado aplicar o tipo consoante positivado na legislação Nesse sentindo segue as palavras de Franco (1994):

Não é hediondo o delito que se demonstre asqueroso, repugnante, sórdido, depravado, abjeto, horroroso, horrível por sua gravidade objetiva, ou por seu modo ou meio de execução, ou pela finalidade que presidiu ou iluminou a ação criminosa, ou pela adoção de qualquer outro critério válido, mas sim aquele crime que, por um verdadeiro processo de

colagem foi rotulado pelo legislador. (FRANCO, 1994, p. 45)

. Vale salientar que por ser uma norma mais danosa só poderá ser aplicada aos crimes cometidos após a publicação da lei, como fala o princípio da irretroatividade da legislação criminal, tipificado no artigo 5°, inciso XXXIX da Carta Magna. Logo um crime ao ser taxado como hediondo significa que todas as circunstâncias atinentes à aplicação das penalidades ao autor do delito serão mais graves. A pena base será de 12 a 30 anos de reclusão, não se permitindo anistia, graça ou indulto. Além disso, a progressão de regime dar-se-á somente após o cumprimento de 2/5(dois quintos) da pena se o reeducando

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for réu primário, 3/5 (três quintos) se for reincidente. Nesta questão, finca-se a maior crítica a nova lei, pois em alguns casos o feminicídio na prática já era abordado como crime hediondo por alguns magistrados, por exemplo, ao ser visto como homicídio qualificado por motivo fútil ou torpe.Nesta vertente aduz Gomes (2015)

Afinal, não há como negar torpeza na ação de matar uma mulher por discriminação de gênero (matar uma mulher porque usa minissaia ou porque não limpou corretamente a casa ou porque deixou queimar o feijão ou porque quer se separar ou porque depois de separada encontrou outro namorado etc.). Mas esse entendimento não era uniforme. Daí a pertinência da nova lei, para dizer que todas essas situações configura indiscutivelmente crime hediondo. Nos crimes anteriores a 10/3/15 o motivo torpe continua sendo possível. O que não se pode é aplicar a lei nova (13.104/15) para fatos anteriores a ela

(lei nova maléfica não retroage). (GOMES, 2015, p. 02)

Embora, na prática forense ora existisse a possibilidade de em determinadas circunstâncias o magistrado acolher a qualificadora do artigo 121 §2° do CP, ora também, poderia ocorrer determinadas circunstâncias em que uma mulher viesse a ser assassinada por razões de gênero e que não fosse possível caracterizar os requisitos para aplicação das qualificadoras em comento, ou até mesmo, algumas qualificadoras, dependendo do caso, poderiam ser descaracterizadas no tribunal do Júri, uma vez que algumas delas possuem caráter subjetivo e os jurados ao julgarem poderiam entender que esta qualificadora não existiu. Assim, para evitar a proteção deficiente ou mesmo o não reconhecimento de quaisquer das qualificadoras já existentes que influenciasse em uma consequência mais favorável ao autor do fato criminoso, agora o feminicídio é formalmente hediondo, logo, o entendimento deverá ser uniforme em todos os tribunais do país. Além disso, a intenção desta tipificação é tirar este crime da invisibilidade, pois embora seja um crime existente, não era conhecido por este nome. O feminicídio saíra da generalidade do campo do homicídio, para ter um campo específico no boletim de ocorrência.

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Contribui com este pensamento, Sagot (2002):

Embora a persecução penal de quem tenha tirado a vida de uma mulher por razões de gênero possa ser alcançada pela norma jurídica neutra do homicídio, não é possível visualizar o contexto em que essas mortes têm lugar, tampouco o caráter social e generalizado da violência baseada no gênero, já que são registradas simplesmente como homicídios, tendentes a ser tratadas como assunto pessoal ou privado, resultantes de problemas passionais, cujos agressores são retratados como de ou quando, na realidade, há um caráter profundamente social e político, resultado de relações de poder entre homens e mulheres na sociedade (SAGOT, 2002, p. 45)

Portanto, além de um caráter simbólico, relevante para a demarcação de espaço social, com próprio reconhecimento jurídico da hediondez implica em suprir possíveis lacunas para um julgamento e adequação típico-penal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não é univocamente a tipificação do feminicídio que irá diminuir os casos no país, assim torna-se relevante uma modificação comportamental na sociedade nacional. O homicídio em nenhuma das suas variantes deveria ser aceito como natural pela sociedade, a vida humana cada dia tem o seu valor mitigado, e espantosamente, deveria ser o oposto, sendo a vida humana possui valor fundamental. Logo, o óbito de mulheres não pode ser banalizado e apreciado apenas como valores estatísticos, a vida humana é extremamente valiosa e apresenta igual valor entre qualquer ser da espécie humana, independente de sexo, raça ou religião. Malgrado homens e mulheres possuam igualdade perante a lei, é inegável que ambos assumirão papeis sociais diferentes no campo social. Conclui-se, assim, que a Lei n. 13.104 de 9 de março de 2015 é um avanço para garantias dos direitos das mulheres e que toda e qualquer medida que venha para prevenir e diminuir formas de violência contra a mulher deverá ser vista como uma vitória feminina.

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A FEDERAÇÃO É A UNIDADE1: JÚLIO DE CASTILHOS E A DEFESA DO ULTRAFEDERALISMO

TRIBUTÁRIO NA PRIMEIRA CONSTITUINTE REPUBLICANA

Ana Luísa Melo Nogueira2

Introdução Com o objetivo de avançar no projeto institucional de um estado de direito, o Governo Provisório designou o dia 15 de setembro de 1890 para eleição geral da assembleia constituinte, que seria instalada no aniversário do golpe de proclamação da república (ANDRADE, BONAVIDES, 1988). Júlio de Castilhos fora eleito deputado pelo Rio Grande do Sul e ao longo dos debates constituintes firmou sua posição de líder da bancada gaúcha, ca-racterizada pelo consenso entre seus membros e pela influência positivista. A principal atuação de Castilhos girou em torno da defesa do federalismo radical, buscando entregar uma maior au-

1 Júlio de Castilhos costumava se referir a sua proposta de federalismo simplesmente como federalismo ou real federalismo. Por outro lado, parlamentares da oposição, historia-dores e juristas denominavam a proposta do gaúcho como ultrafederalismo ou federalismo radical. Ao longo do texto serão usadas essas quatro denominações como sinônimas.2 Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Piauí e pesquisadora do grupo de pesquisa República-UFPI.

IX

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tonomia aos estados e demonstrando clara oposição ao projeto governamental, que tendia mais para um federalismo centrípeto: o poder central administraria os problemas e garantiria o pacto federativo (ANDRADE, BONAVIDES, 1988). Um dos pontos de maior preocupação para o parlamentar foi o federalismo tributário, defendendo a ideia que uma solução verdadeiramente federalista seria transferir aos estados-membros serviços que lhes fossem próprios e proporcionalmente ampliar as competências tributárias desses, objetivando aumentar suas fon-tes de rendas (RODRIGUEZ, 2000, p.57). A proposta de Castilhos recebeu muitas críticas, principalmente dos representantes de es-tados que dependiam ou eram lembrados pelas políticas da União. Uma proposta vencida perdida em uma história constitu-cional de quase 195 anos pode parecer algo sem importância para as análises contemporâneas, mas as ideias de Castilhos na primei-ra constituinte republicana e a resistência que elas enfrentaram ajuda a entender a tendência centralizadora que o federalismo brasileiro passou a ter e que tentativas de reajustes posteriores foram e são ineficazes, ante a situação de dependência dos entes infrafederais em relação ao governo central, que se consolidou ao longo da história, criando estados sem capacidade para se gover-nar, como previu Castilhos.

1 A IDEOLOGIA DE JÚLIO DE CASTILHOS NO FINAL DO IMPÉRIO

Nas últimas décadas do século XIX, período de gran-des mudanças para o Brasil, a doutrina positivista chegou como um alicerce progressista, um suporte teórico a ser usa-da pelos intelectuais inconformados com as estruturas semi-feudal e com a política estática que marcavam o país. Boris Fausto (2000) afirma não entender o porquê do Rio Grande do Sul ser o maior foco do positivismo na transi-ção para a república, mas o certo é que o partido republica-

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no usava essa doutrina como alicerce ideológico. Provavel-mente, a melhor explicação é a influência militar na região somado à necessidade de uma doutrina para torna-los forte e coeso. Júlio de Castilhos, como líder do partido, era um adepto do positivismo comteano, mesmo não se declarando um positivista ortodoxo (FRANCO, 1967, p. 13), as princi-pais concepções politicas dessa corrente estavam presentes em artigos, manifestos e discursos assinados pelo gaúcho. O positivismo de August Comte, visto pela ótica di-nâmica da sociedade, utilizava a ideia da ordem e progresso, como uma forma de enfrentar os estados liberais. Comte en-tendia que a sociedade estava em constante evolução e esse desenvolvimento necessitava da ordem e da preservação de elementos estáticos da sociedade, como a forma que a fa-mília era organizada pelo filósofo (SIMON, 1986). É nesse contexto que Comte fala sobre a sua ideia de “libertar o Oci-dente de uma democracia anárquica e de uma aristocracia retrógrada” (COMTE, 1978). Dessa forma, Maria Célia Simon (1986, p.81) explica que o pensamento comteano deixava de lado as ideias de monarquia, soberania popular e sufrágio universal, enten-dendo que o desenvolvimento da humanidade viria com a República, ou melhor, com uma ditadura republicana, com bases científicas, garantindo a ordem social. A influência da doutrina de August Comte na ideo-logia e na política castilhista é notória, principalmente, em seus escritos que denunciavam os aspectos imediatistas e oportunistas marcantes da política brasileira:

Neste país em que o cesarismo constitucional tem produzido todos os seus funestos efeitos, a política não é meio racional de promover o progresso como um desenvolvimento da ordem, de palpar as opiniões gerais dominantes e suprimir os obstáculos para facilitar a sua realização integral, não é o fecundo agente, incumbido da direção social, que ele efetua - eliminando paulatinamente o que existe de antagônico com o espírito do tempo, para dar lugar à transformação natural, determinada pelas leis fundamentais da sociedade. Entre nós a política,

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essencialmente empírica, deixa absolutamente de desempenhar aquelas funções, e desenvolve-se na independência completa da moral. (CASTILHOS, 2003, p15)

Castilhos apresentava o positivismo como o grande movimento filosófico que ofereceu as bases da sociologia, assentando as leis fundamentais que regem os fenômenos sociais (CASTILHOS, 2003, p.14). O político gaúcho acredi-tava alcançar, por meio de tal corrente, uma política racio-nal, metódica, científica, superando, principalmente, meios imorais de perpetuação no poder. Em relação ao federalismo, uma de suas principais bandeiras, Castilhos era considerado um defensor do ul-trafederalismo, mas não achava prudente, em princípio, o separatismo. Ele entendia que para manter a união entre as províncias era necessário garantir suas liberdades e au-tonomias, respeitando as variedades a fim de garantir uma unidade real (CASTILHOS, 2003, p.52):

Entregues a si mesmas, livres das extorsões do centro, obrigadas apenas à contribuição indispensável aos serviços de carácter essencialmente nacional, igualmente livres na gestão dos seus interesses, sem dependências e ligações a um poder estranho, as províncias se desenvolverão de acordo com as suas respectivas forças econômicas, mais prosperando as que forem mais conscientes das responsabilidades que o gozo da liberdade impõe e mais favorecidas ou pelo gênio dos seus habitantes ou pelas suas circunstâncias naturais. Como um efeito correlato, a harmonia se restabelecerá entre os organismos provinciais e a união nacional será fecundamente cimentada. (CASTILHOS, 2003, p.41)

Júlio de Castilhos fazia alertas em relação às surpresas que o centralismo podia gerar, explicando que no governo centra-lizador, o centro estabelece certas preferências, deixando de lado outras províncias aborrecidas; e com a grande repercussão da propaganda separatista, era necessário ter cautela. A saída para esse possível problema seria, portanto, a descentralização como um meio de afastar o sentimento separatista e fortalecer o senti-mento nacional. Por outro lado, caso a centralização persistisse, o desmembramento seria uma consequência inevitável. Mas para

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alcançar essa mudança, era necessário que ocorresse no seio da República; dentro do império, a ideia de descentralização não pas-saria de algo ilusório (CASTILHOS, 2003, p.53).

2 EM DEFESA DE UM ULTRAFEDERALISMO NA CONSTITUINTE REPUBLICANA

O congresso com poderes constituintes desempe-nhou suas funções com extraordinária rapidez, breves três meses foram suficientes para a elaboração da nova Consti-tuição. Isso porque o Governo Provisório já enviará um pro-jeto base (Decreto nº 914 A, 1890), elaborado pela Comissão dos 5 e revisado por Ruy Barbosa; tamanha rapidez também pode ser atribuída a homogeneidade teórica-institucional da constituinte, fato que gerou calorosas discussões apenas em torno de interesses inter-regionais, tendo os maiores deba-tes entre parlamentares que defendiam um federalismo mais radical e os defensores do federalismo mitigado proposto pelo projeto governamental (FRANCO, 1967, p.88). Desde o início dos trabalhos da constituinte, Júlio de Castilhos demonstrava sua orientação ultrafederalista, em consonância com os anseios da bancada de seu estado. Acre-ditando que só seria possível um federalismo administrativo quando os estados possuíssem autonomia financeira, Casti-lhos defendeu um federalismo radical na questão tributária, que fora o ponto que mais exigiu do parlamentar, proferindo os mais longos discursos sobre a questão e rebatendo quais-quer críticas.

3 ATUAÇÃO NA COMISSÃO DOS 21 E AS CRÍTICAS AOS IMPOSTOS CUMULATIVOS

Na data de abertura da constituinte, a população e a imprensa clamavam por uma reconstitucionalização do país.

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Durante a atividade do Congresso, não foram poucas as críticas vindas de jornais da época. O país reclamava, sob orientação de membros do governo provisório como Rui Barbosa e Quitino Bocaiúvas, da morosidade nas votações. Nesse contexto agitado, o Congresso com poderes constituintes optou por eleger uma comissão, formada por um membro de cada estado, que analisaria o projeto apresentado pelo governo provisório- a Comissão dos 21 (ANDRADE, BONAVIDES, 1988). A composição de tal grupo seguia um critério federativo e geográfico, não se preocupando em escolher conhecedores das matérias constitucionais, sendo esta uma estratégia arriscada para o desempenho da função constituinte. Os 21 membros não formaram um grupo homogêneo e as diversidades foram inúmeras, mas conseguiram elaborar o primeiro parecer em duas semanas, que foi apresentado no Congresso pelo relator Júlio de Castilhos (ANDRADE, BONAVIDES, 1988). Apesar de ter sido o relator do parecer da Comissão, Castilhos não deixou de ler seu voto, se empenhando em explicar melhor suas emendas que foram rejeitadas. A principal questão abordada por ele foi a da descriminação das rendas no sistema republicano federativo. Júlio de Castilhos explicou que o sistema federativo é responsável por garantir a autonomia da administração local, e ao mesmo tempo, os interesses nacionais. Para conseguir essa variedade sem prejudicar a concentração política, ele ressaltou a importância de garantir a autonomia, passando para os estados os serviços que são de interesse de cada um, e para efetivar essa autonomia seria necessária uma igual descentralização das rendas, a fim de não pôr o sistema federativo em risco (ANAIS, Vol.I, 1890, p.363-364). Baseado nessas ideias, ele criticou o projeto apresentado pelo governo (Decreto nº914 A, 1890), na medida em que este trazia o sistema cumulativo (art.12) de tributos entre estados e união, considerando-o incompatível com o sistema federativo (ANAIS, Vol.I, 1890, p.364). Castilhos considerava o projeto do governo uma continuidade do que vigorava com o Império, além disso, ele ressaltava que as características políticas

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e geográficas do país clamavam por efetivas mudanças administrativas e, consequentemente, tributárias a fim de que o centralismo fosse realmente superado. Com essa base, é que ele propôs a seguinte emenda:

Pensando assim, ofereci um plano substitutivo que consiste em determinar expressamente a competência da União e dos estados quanto à tributação. Segundo esse plano, é da exclusiva competência dos estados decretar qualquer imposto que não esteja consignado no art.6º e que contraria às disposições da Constituição. Evita-se assim a consequência funesta que decorrerá do regime de impostos duplos estatuídos no art.12, de acordo com as lições da longa e desastrosa experiência que nos legaram os desastres imperiais. Prevendo a possível insuficiência de produtos dos impostos do art.6º, que, aliais, constitui as mais abundantes fontes de receitas, propus ao art.12 uma emenda que especifica os meios que lançará mão a União, quer sobrevenha caso extraordinário de calamidade pública, quer surjam necessidades determinadas pelo serviço da dívida nacional.

(ANAIS, Vol.I, 1890, p.364)

Em suma, a proposta do parlamentar gaúcho era que fosse elencado os tributos que ficaria a cargo da união e todo o resto seria arrecadado pelos estados. Caso a receita da união não fosse suficiente, ficaria estabelecido um sistema de quotas a ser cobrado dos estados, a fim de cobrir o déficit orçamentário. Ciente que a questão da descriminação das rendas ainda não estava organizada em consonância com o sistema federalista, Castilhos pediu que o assunto voltasse a ser debatido nas sessões subsequentes da Constituinte.

3.2 O discurso contra a repartição de rendas pro-posta pelo projeto do Governo Provisório

Em um artigo de 1886 - Recriminação do Centro - Júlio de Castilhos já abordara a questão do centralismo fiscal nas mesmas linhas que viria a defender ao longo das sessões da constituinte republicana. Nesse trabalho, ele explicou que em um estado centralizador, como era o Brasil imperial, o centro era cada vez mais dependente de verbas das províncias e que nesse intercâmbio de receitas nasciam desigualdades entre as províncias, uma vez

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que sempre havia aquelas que eram sustentadas pelo trabalho de outras:

O que o representante do centro deverá dizer, mas não disse, é que na verdade há províncias que são beneficiadas com prejuízo de outras e com grande ônus para a receita geral, mas essas de ordinário não são as que apresentam uma maior renda, nem as que concorrem para o império com as quotas mais avultadas. Essa desigualdade iníqua, essas preferências odiosas, essas predileções irritantes mostram um dos mais desoladores aspectos do regime centralista, que em toda parte e em todos os tempos sempre foi e há de ser assim (...).As próprias províncias por essa forma preferidas habituam-se às preferências protetoras e a esperar tudo da tutela central, que assim vai estiolando mais e mais o já mirrado espírito de iniciativa local, como se já não bastassem as restrições opressoras do regime para impedir e sufocar a expansão da atividade livre e desembaraçada (...). Esse caráter torna-se ainda mais visível com relação às províncias que são excluídas das estufas do centro e que sentem-se positivamente extorquidas na sua renda e sugadas na sua vitalidade própria a bem do ostensivo espírito de dissipação do império e em benéfico de outras cuja prosperidade é artificialmente fomentada pela tutela central. (CASTILHOS, 2003, p.39)

. Castilhos defendia que dessa assimetria de contribuição decorria duas consequências: primeiro, as províncias prediletas se acostumavam com a tutela central e o crescimento local ia sendo inibido; uma segunda e mais perigosa consequência era o surgimento de revolta em províncias que se consideravam injustiçadas, colocando em risco a unidade nacional. Por fim, ele alertava que a falta de liberdade para governar e administrar as províncias também eram causas da miséria e dos problemas locais, uma vez que quem as governavam eram emissários do poder central (CASTILHOS, 2003, p.39-41) e não estavam preocupados com as necessidades da população da região governada, mas com interesse de quem os colocava e os tirava do poder. Com o intuito de resolver esse cenário, Júlio de Castilhos voltou a defender, nas sessões da constituinte, sua emenda que visava alterar a questão das competências tributárias apresentadas pelo projeto governamental. No início de sua manifestação, ele enfatizou a necessidade de montar uma federação real, a fim de garantir a unidade política

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em meio a pluralidade de costumes e interesses provinciais. (ANAIS, Vol.I, 1890, p.568). Além disso, Júlio alertava para a necessidade de uma constitucionalização da federação, com o intuito de evitar os tumultos imperiais. Na sequência, ele foi didático explicando que para que houvesse um efetivo federalismo, era essencial que a união devolvesse para os estados os serviços que eram do interesse deles, juntamente com as suas rendas. Nesse ponto, ele apresenta o seguinte questionamento: como classificar as rendas para saber o que deve ficar a cargo da união e o que deve ficar para os estados? A solução para tal problema poderia vir de três formas. Na primeira, a união calcularia suas despesas e os estados teriam que cobri-las; tal medida ele julgava um tanto inadequada para um país que acabava de derrubar um regime centralizador e que não preparará as províncias para sustentar todos os encargos da união. Uma segunda solução seria que estados e união buscassem suas receitas nas mesmas fontes e a terceira seria elencar os tributos da união e deixar os remanescentes para os estados. O projeto apresentado pelo governo (Decreto nº 914 A, 1890) trazia uma proposta para tal questão. O artigo 6º permitia à união tributar sobre importação, taxas de selos e contribuições postais e telegráficas, além de regular as alfândegas e gerenciar a entrada e saída de navios. O artigo 8º, por sua vez, trazia a competência tributária dos estados, permitindo que esses decretassem impostos sobre exportação, propriedade territorial e transmissão de propriedade. Por fim, o artigo 12 permitia que estados e união criassem novos impostos, cumulativos ou não, incorrendo no sistema imperial da bitributação, em que dois entes da federação tributariam sobre um mesmo fato gerador. Castilhos interpretou que o projeto governamental, nos seus artigos 6º, 8º e 12, optou por uma mescla das duas últimas soluções, podendo gerar um sistema anárquico e anti-federalista (ANAIS, Vol.I, 1890, p.570). Impostos cumulativos seriam um retrocesso ao regime imperial, que

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poderia vir a ser motivo de grande agitação federalista, tendo em vista a excessiva carga tributária que teria que ser suportada pelo povo. Garantir aos estados a autonomia de seus serviços sem lhes garantir renda seria, para Castilhos, a consagração de uma "liberdade da miséria" (ANAIS, Vol.I, 1890, p.576). Júlio de Castilhos demonstrou que as fontes de receitas atribuídas à união no art.6º correspondiam às mais rentáveis, sendo suficientes para cobrir as suas despesas. No entanto, ele apresentou a opção de um sistema de quotas que, em casos extremos, seria facultado à união tributar das antigas províncias:

Pode, em virtude de uma guerra ou em virtude de uma calamidade, como a peste, a seca, precisar o Governo Federal de receita extraordinária para ocorrer a despesas extraordinárias. Pois bem: nessa eventualidade, em vez de deixar a Constituinte à União a faculdade ampla de tributar o que ela entender conveniente nos estados, perturbando a economia e invadindo as atribuições destes, deve a União ficar com a faculdade de tributar as rendas dos estados de acordo com as condições econômicas de cada um, quero dizer: deve tributar uniformemente, mas cada Estado pagará segundo suas forças econômicas. (ANAIS, Vol.I, 1890, p.574)

O parlamentar gaúcho esclareceu que esse sistema apresentado não deixaria a união na dependência dos estados pois as fontes mais rentáveis ficariam para o centro e as residuais para os estados-membros. Apenas em casos excepcionais de insuficiência da renda da união é que seria cobrado as quotas dos estados, com o objetivo de não cair no anárquico artigo 12, que autorizava os tributos duplos e também, buscando não inibir o crescimento local, não incidindo sobre as atividades econômica, mas sim sobre a própria receita do estado. Uma outra dificuldade que Castilhos teve que superar nos debates da assembleia ao defender sua emenda foi em relação a insubordinação dos estados, ou melhor, o que aconteceria se alguma unidade da federação se recusasse a contribuir com o déficit da união? Para Júlio de Castilhos, a solução era clara: "A

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intervenção eficaz do governo da união" (ANAIS, Vol.I, 1890, p.577). No entanto, ele não aprofundou a explicação sobre essa solução e como nos demais momentos, a intervenção era sempre a solução, mas os constituintes não chegavam a aprofundar o tema, que se tornou em um instituto mal utilizado durante a República Velha. Por fim, o parlamentar gaúcho recebeu algumas objeções partindo da ideia que sua emenda deixaria a União desamparada e ainda sofrendo o risco dos estados não conseguirem suprir as necessidades extraordinárias do governo federal. Nesse empasse, Júlio ofereceu uma solução que ele acreditava ser a mais federativa possível, que consistia em realizar operações de créditos (contrair empréstimos), ficando os serviços de juros e amortização a cargo dos estados. Com o objetivo claro de favorecer os estados-membros (RODRIGUEZ, 2000, p.57), Castilhos não obteve sucesso e sua emenda foi rejeitada, mas mesmo assim, ainda conseguiu ganhar um amplo apoio na assembleia constituinte, além de fomentar o debate sobre o tema

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A questão da repartição de competência tributária é assunto materialmente constitucional, sendo basicamente o que determina a receita de cada ente da federação, daí o empenho da constituinte republicana em discutir o assunto, ainda mais tendo como função instalar e constitucionalizar o instituto do federalismo no Brasil. Acreditando estar diante de um sistema tributário incompatível com o modelo federativo, Júlio de Castilhos apresentou uma emenda, por duas vezes, que buscava a técnica de repartição de competências que enumerava os impostos da união, deixando os remanescentes para os estados-membros.

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O objetivo era garantir uma real autonomia para que esses pudessem sustentar seus serviços, mas ao mesmo tempo garantiria à união os tributos mais rentáveis e o amparo dos estados em caso de desfalques nas contas federais. A emenda em questão buscavam efetivar um federalismo real, como sugeria o constituinte, mas foi bastante criticada por desamparar a união, sendo a ideia de quotas suplementares de difícil execução (FRANCO, 1967, p.91). Ruy Barbosa foi um grande crítico da proposta de Castilhos, alegando que a emenda invertia as posições dos estados e da união, deixando essa a mercê da boa vontade daqueles e desmoralizada para pedir empréstimos no exterior (BARBOSA, 1946, p.175). Diante dessas críticas, a emenda saiu derrotada mas o parlamentar conseguiu o apoio de boa parte das bancadas de Pernambuco, Santa Catarina, Amazonas, Maranhão, Rio Grande do Norte e Goiás; estados que eram excluídos do favoritismo da União e aspiravam por mais autonomia. Por outro lado, representantes da Bahia, Capital Federal, São Paulo e Minas Gerais foram contrários à proposta de Júlio de Castilhos. O apoio de paulistas e mineiros à União é curioso mas pode ser explicado. São Paulo se apresentava como um Estado autônomo, forte, com uma boa força pública e uma economia pujante. Mas como a união era responsável pelos rumos financeiros do país, o estado de São Paulo não poderia ter tamanha autonomia a ponto de ser absoluto. Os paulistas necessitavam de apoio do governo federal no plano de valorização do café (FAUSTO, 2000). Os mineiros, por sua vez, não se voltaram para apenas uma atividade, dessa forma, não conseguiram se tornar uma potência econômica, dependiam de investimentos federais. Diante disso, Minas se estabeleceu como um estado rico em políticos profissionais, esses tinham expressiva participação na câmara dos deputados, controlavam a entrada nos cargos federais e conseguiam muitos investimentos para a região (FAUSTO, 2000). Diante do exposto, nota-se que a proposta de Castilhos era descentralizadora e tentava garantir a efetiva autonomia aos

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estados-membros. No entanto, o receio dos parlamentares que fizeram oposição apoiava-se na tradição centralizadora, que criara estados incapazes de se autogovernarem, gerirem suas financias e seus serviços, chegando a pôr em risco a unidade nacional. Após a instalação de um federalismo fiscal centralizador, o Brasil passou por sucessivos momentos de maior centralização e maior descentralização, a depender do regime político vigente (SOUZA, 2015, p.4). O período militar, por exemplo, foi o de maior centralização. As reformas de 1965/1967 (Emenda nº 18 de 1965) reduziram a autonomia dos estados e municípios para instituir tributos e apesar de vedar a bitributação, como a proposta de Castilhos, por outro lado, garantia os impostos residuais à união e estados e municípios receberiam repasses da receita federal, que tinha fontes mais rentáveis. Como sintetiza Dornelles (2008, p.06), a filosofia da reforma militar era a "centralização da competência tributária com redistribuição do produto da arrecadação", proposta que foi aos poucos afetada e gerou a necessidade de reformas. A constituição de 1988, por sua vez, inaugurou um período de descentralização fiscal, os parlamentares acharam que descentralizar as receitas tributárias seria uma opção adequada para devolver o estado de solvência dos estados e municípios. Dessa forma, na tentativa de aumentar a autonomia fiscal, terminou por criar um "arranjo federativo no plano fiscal complexo que exacerbou mais à frente os conflitos e as tensões entre seus atores principais" (SOUZA, 2015, p.05), criando um sistema tributário paralelo com contribuições sobre a folha de salário, o faturamento e o lucro para a seguridade social, para o ensino fundamental, para o apoio ao trabalhador e para entidades vinculadas ao sistema sindical. Esse sistema engrenado (DORNELLES, 2008), nada mais foi que uma reação à descentralização proposta, gerando um retrocesso e enfraquecendo o pacto federativo, que cada vez menos consegue sustentar os períodos de descentralização. Por certo, que a aplicabilidade da emenda de Castilhos hoje e seus efeitos positivos podem ser questionados, pois

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como o próprio movimento pendular do nosso federalismo fiscal demonstra, as tentativas de descentralização foram e são frustradas, seguidas por períodos de centralização. No entanto, conhecer essa proposta e os debates em torno dela nos leva a compreender melhor as origens do federalismo brasileiro, como a centralização no momento de instalação do instituto (genuinamente marcado pela descentralização) foi uma forma disfarçada de manter a centralização do Império. Se muitos institutos constitucionais brasileiros vêm conseguindo evoluir, a federação não consegue avançar e cada tentativa de garantir maior autonomia aos estados é seguida de medidas mais centralizadoras.

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REFERÊNCIAS

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FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Fundamentos para o desenvolvimento da educação, 2000;

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