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sobre arquitetos e sem-tetos – técnica e arquitetura como prática política 1 INTRODUÇÃO argumento Cheguei a afirmar, em outras oportunidades, que não experimentei, ao ingressar na universidade pública em 1978, a mão forte do Regime que então comandava a exceção em que (ainda) vivíamos. Tal afirmação já ensejou, mais de uma vez, reações bastante vigorosas, dado o fato de inúmeros colegas de hoje, naquele período, terem arriscado a vida colocando-se a ombros na luta contra o Regime – e não teria eu o direito de não reconhecer os esforços e os riscos que tal engajamento implicava. Mesmo assim – e com o risco de tornar-me reincidente –, gostaria de retomar o comentário, talvez até mesmo a título de explicação: não declarei que a exceção não existia, apenas ressaltei que o jogo de terror que aparatava em violência as ações do Regime, neste final de anos 1970, já não aparecia mais com a mesma intensidade que no período imediatamente anterior 1 – o que não significa que, já no início dos anos 1980, o programa estabelecido e mantido pelos militares e seus imediatos civis ao longo de mais de uma década repentinamente se esfacelara. Por outro lado, não ficava claro, também no calor da hora, que uma saída assim meio de lado não deixaria o lugar liberado para as alvíssaras de um novo tempo anistiado 2 . Os que viveram este período, pelo menos no intramuros das escolas de arquitetura (ainda não eram muitas), podemos lembrar um certo esmaecimento das cores ideológicas do período predecessor – que o movimento estudantil, na época, ainda insistia fazer persistir-lhes a intensidade: proclamava- se, ainda, o conluio revolucionário entre as vanguardas intelectuais e a classe trabalhadora, compondo, numa improvável coalizão gramsciana em versão trotskista, os vertedouros de uma possível nova ordem social. Mas a estudantada mais engajada rompia alguns limites já claramente delineados pelo novo movimento operário que, naquele momento, retomava seus postos e já fazia bastante barulho: lembro-me de alguns colegas que, já em 1979, pretendendo emparelhar seus esforços nas portas das fábricas, voltavam exibindo hematomas conquistados justamente junto à classe operária com a qual pretendiam alguma aliança revolucionária – e que dali os expulsava, com o verbo em riste, mandando-os voltar para a “casa do papai”. Pensando a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, a FAU do início dos 1980 – naqueles tempos metálicos do Regime ainda em processo –, também era comum desaperceber que nossos 1 Para mim, o definitivo sinal de que a ditadura começava realmente a apresentar sinais de vazamentos foi dado quando tive que atravessar uma grande manifestação estudantil em 1977, nos jardins da Faculdade de Medicina da USP, na Av. Dr. Arnaldo, em São Paulo. O ostensivo aparato repressivo, estacionado e inoperante em frente e ao longo da avenida, produzia um enorme engarrafamento que nos obrigava, de dentro de um ônibus, o acompanhamento espantado de toda a movimentação. Ao longo de horas. 2 Desde a última frase do parágrafo até quase o final deste “argumento”, adaptei um texto que foi publicado na Revista do Instituto de Estudos Brasileiros – IEB, a título de resenha e comentário à publicação da coletânea de textos de Sérgio Ferro – o “Arquitetura e trabalho livre”, de 2006 – cujo título é “Comentários incomodados” (LOPES, 2007).

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Livre-docência do arquiteto João Marcos de Almeida Lopes, defendida em março de 2011 no Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (IAU USP). Professor do IAU USP e Pró-reitor Adjunto de Cultura da USP, João Marcos é um dos fundadores da USINA e até hoje participa – atuando agora como consultor – de atividades desenvolvidas pela assessoria junto aos movimentos sociais.

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sobre arquitetos e sem-tetos – técnica e arquitetura como prática política 1

INTRODUÇÃO

argumento

Cheguei a afirmar, em outras oportunidades, que não experimentei, ao ingressar na universidade pública em 1978, a mão forte do Regime que então comandava a exceção em que (ainda) vivíamos. Tal afirmação já ensejou, mais de uma vez, reações bastante vigorosas, dado o fato de inúmeros colegas de hoje, naquele período, terem arriscado a vida colocando-se a ombros na luta contra o Regime – e não teria eu o direito de não reconhecer os esforços e os riscos que tal engajamento implicava. Mesmo assim – e com o risco de tornar-me reincidente –, gostaria de retomar o comentário, talvez até mesmo a título de explicação: não declarei que a exceção não existia, apenas ressaltei que o jogo de terror que aparatava em violência as ações do Regime, neste final de anos 1970, já não aparecia mais com a mesma intensidade que no período imediatamente anterior1 – o que não significa que, já no início dos anos 1980, o programa estabelecido e mantido pelos militares e seus imediatos civis ao longo de mais de uma década repentinamente se esfacelara. Por outro lado, não ficava claro, também no calor da hora, que uma saída assim meio de lado não deixaria o lugar liberado para as alvíssaras de um novo tempo anistiado2.

Os que viveram este período, pelo menos no intramuros das escolas de arquitetura (ainda não eram muitas), podemos lembrar um certo esmaecimento das cores ideológicas do período predecessor – que o movimento estudantil, na época, ainda insistia fazer persistir-lhes a intensidade: proclamava-se, ainda, o conluio revolucionário entre as vanguardas intelectuais e a classe trabalhadora, compondo, numa improvável coalizão gramsciana em versão trotskista, os vertedouros de uma possível nova ordem social. Mas a estudantada mais engajada rompia alguns limites já claramente delineados pelo novo movimento operário que, naquele momento, retomava seus postos e já fazia bastante barulho: lembro-me de alguns colegas que, já em 1979, pretendendo emparelhar seus esforços nas portas das fábricas, voltavam exibindo hematomas conquistados justamente junto à classe operária com a qual pretendiam alguma aliança revolucionária – e que dali os expulsava, com o verbo em riste, mandando-os voltar para a “casa do papai”.

Pensando a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, a FAU do início dos 1980 – naqueles tempos metálicos do Regime ainda em processo –, também era comum desaperceber que nossos 1 Para mim, o definitivo sinal de que a ditadura começava realmente a apresentar sinais de vazamentos foi dado quando tive que atravessar uma grande manifestação estudantil em 1977, nos jardins da Faculdade de Medicina da USP, na Av. Dr. Arnaldo, em São Paulo. O ostensivo aparato repressivo, estacionado e inoperante em frente e ao longo da avenida, produzia um enorme engarrafamento que nos obrigava, de dentro de um ônibus, o acompanhamento espantado de toda a movimentação. Ao longo de horas. 2 Desde a última frase do parágrafo até quase o final deste “argumento”, adaptei um texto que foi publicado na Revista do Instituto de Estudos Brasileiros – IEB, a título de resenha e comentário à publicação da coletânea de textos de Sérgio Ferro – o “Arquitetura e trabalho livre”, de 2006 – cujo título é “Comentários incomodados” (LOPES, 2007).

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ouvidos sofriam de espasmos de surdez – e que nosso daltonismo ideológico impedia-nos recompor as tais cores, com a mesma intensidade e contraste do período imediatamente anterior. Isso porque, já naquela hora, operários, movimentos sociais e uma parcela da intelectualidade desse país, ainda digerindo o jejum solitário de tanto tempo sem sequer poder ouvir, inventavam instrumentos menos contundentes – porém mais eficazes para aquela conjuntura – para uma resistência inconformada perante a perspectiva sintomaticamente ainda totalitária de um desenvolvimento periférico e perverso que nos tomava a farinha e o fermento do bolo com a promessa de reparti-lo quando crescesse – sabemos no que deu. Mas, voltando, a grande maioria de nós, alunos da FAU daqueles tempos, sequer tolerávamos o discurso encardido contra a “camarilha militar” que os militantes mais assíduos insistiam trazer às salas de aula, criando caso com os professores mais reativos e os alunos menos engajados. O meio de campo acabou ficando ainda mais confuso – criando oposições entre os trotskistas que chamavam colegas de “reformistas” e aqueles que não tinham nome porque os reformistas ignoravam os trotskistas – quando, em 1980, Vilanova Artigas, Paulo Mendes da Rocha e Jon Maitrejean retornaram à FAU, após o período de afastamento compulsório imposto pelo regime militar. Sabemos que Artigas não achava que o golpe militar havia obstruído inteiramente a concepção de uma arquitetura comprometida com o desenvolvimento radical das forças produtivas. Parece-me que, lembrando dessa época, Artigas retornava retomando – sob outros contornos – o discurso de uma arquitetura em plena posse de seus rumos e caminhos.

Figura 1: imagens da publicação que comemora o retorno de Artigas, Maitrejean e Paulo Mendes à FAU (fonte: FAU-USP,1984)

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Figura 2: Artigas falando aos alunos e professores. Imagem também da publicação que comemora o seu retorno e de Maitrejean e Paulo Mendes à FAU (fonte: FAU-USP,1984)

Retomo o período e o trago para este texto para nele gravar a impressão que ainda preservo, do quanto fazíamos ouvidos moucos para alguma postura mais crítica em relação à arquitetura e ao

urbanismo – propriamente ditos – que ensinávamo-nos na FAU. Era muito intensa a agitação estudantil frente às perspectivas e propostas de enfrentamento da ditadura, derivadas de programas dos inúmeros grupos dedicados à causa socialista, era muito intenso o debate quanto à situação operária, mas muito pouco tratávamos de alguma outra possível arquitetura. Apropriando-me do argumento de abertura do “Notícias de Lugar Nenhum” de Willam Morris3, parecia que ninguém estava preocupado com qual seria a arquitetura que faríamos no dia seguinte da Revolução.

Textos como o de Sérgio Ferro eram, para a maioria de nós estudantes, naquele momento, uma composição por fragmentos: alguns colegas gostavam de exibir seus textos elaborados “ao estilo de Sérgio Ferro” outros apenas traziam alguma citação para ilustrar seus trabalhos e outros ainda mal sabiam de sua existência. Alguns professores insistiam, nas aulas, esparsas referências, a título de substrato para suas abordagens, a O Canteiro e o Desenho – um bocado escondido na sua versão de 1976 na revista Almanaque, posteriormente publicado pela Editora Projeto em 19794. Também

3 MORRIS (2002). Neste texto, de 1890, o arquiteto inglês conjeturava como seria o dia seguinte ao da Revolução Socialista: após uma noite mal dormida, o personagem acorda numa Londres transformada pelo socialismo. 4 Também presente na coletânea Arquitetura e Trabalho Livre.

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circulava, naquela época, um texto de Sérgio, de 1969, que nos era oferecido pelo Grêmio da faculdade, o GFAU, em publicação de 1972 – A Casa Popular5.

No geral, o que mais ouvíamos falar do ex-professor que se metera na luta armada era o silêncio6. Principalmente quando Artigas retornou junto com Paulo e Maitrejean e o alarido de boa parte dos alunos – sequiosos por uma arquitetura que nos elevasse a alguma condição demiúrgica – abafava as “chatices” do Sérgio. Daí, parece-me que o discurso da função positiva do desenho ganhava posição isolada, aparecendo apenas como construção de liberdade, de autonomia, ficando assim praticamente sem antagonista, sem a crítica sistemática de seu conteúdo ideológico e de sua condição heterônoma intrínseca, como funcionalidade sistêmica inerente às dinâmicas do ofício – sempre pensando que sob os auspícios do capital, claro.

Não relevo, contudo, alguns esforços importantes – e que reverberaram bastante no período subsequente (como pretendo mostrar ao longo deste texto). Neste período, Rodrigo Lefèvre – que dava aulas no primeiro ano do curso desde seu retorno à FAU em 1977 e que poderia eventualmente partilhar as questões de Sérgio e participar no ensaio de um contraponto mais sólido (falo isso do ponto de vista dos alunos) – já ia se afastando da FAU para sua ida sem volta à Guiné Bissau: faleceria ali, em 1984, aparentemente vítima de um acidente automobilístico que desavisou muita gente na época. Mas em 1978, junto com Ermínia Maricato, Siegbert Zanettini e Walter Ono entre outros, ministrava nosso curso ‘integrado’ (uma velha estratégia didática, sistematicamente reeditada em cursos de arquitetura) – que já vinha sendo ensaiado desde 19757 – ocupando nossas tardes com projeto, algumas noções de planejamento e princípios do que, na época, se denominava “desenho industrial”. Levavam-nos à periferia, propondo nosso encontro com as opções que nos pretendiam fazer ver (não que as víssemos, todos – mas não deixava de ser uma oportunidade).

Mas o fio da meada parecia rompido como também se rompera o cordão umbilical na gestação interrompida que nos era imposta como herança: estes procedimentos didáticos e alguns outros esforços dentro de outras disciplinas, naquele momento, era o máximo de contraponto.

No entanto, aquele também era o tempo em que novos movimentos entravam em cena e a cena prometia permitir uma nova rodada de utopias também nos territórios da arquitetura e do urbanismo.

5 Posteriormente rebatizado de A Produção da Casa no Brasil, como publicado na coletânea Arquitetura e trabalho livre. 6 Sérgio, após um ano de prisão e desligado da FAU, havia deixado o país em 1971 e instalara-se em Grenoble, na França, onde passou a dar aulas na Escola de Arquitetura daquela cidade e dedicar-se à pintura. 7 Mais adiante, ao realizar o percurso aqui enunciado, dedicarei um pouco mais de espaço para este assunto, pois me parece um tempo e um lugar importante – isto é, um enunciado – na constituição do campo discursivo que se adensa neste período.

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Mesmo numa compreensão fraturada e já um pouco para além daquele período, a crítica de Sérgio Ferro – e aí particularmente O Canteiro e o Desenho – ainda continuava frisando, mesmo que às migalhas, o reverso da reafirmação de um caminho glorioso para os desígnios da arquitetura. Tais migalhas, somadas a excertos de aspirações anarquistas, conjuminações idealizadas de um corte político-assitencialista da ação do arquiteto engajado com as questões sociais, concepções estetizantes da miséria e do pobre – muito em voga, em tempos de Comunidades Eclesiais de Base – ou até mesmo um certo inconformismo frente às opções que a prática da arquitetura apresentava naquele momento, levaram-nos – friso o ‘nos’ – a compor uma espécie de caleidoscópio das idéias que aquele tempo incubava, para a construção de uma outra possibilidade de relação entre política

e ofício. Além disso, havia outras tradições que, saindo dos anarquistas e passando por John Turnner e o seu “Housing by People”, do começo de 1976, com seus pressupostos de ‘autogoverno’ na produção da moradia pelos pobres; ou partindo da antropologia e chegando na fusão “antropoteta” do carioca Carlos Nelson Ferreira dos Santos e seu envolvimento nos trabalhos de urbanização da favela Brás de Pina, no Rio de Janeiro, já nos anos de 1960; ou mesmo a partir do próprio campo da arquitetura, quando, por exemplo, algum exercício tecnológico que aliava cultura construtiva tradicional, boa arquitetura e alguma participação popular nos chegava às mãos através do “Construindo com o povo – arquitetura para os pobres”, de 1973, de Hassan Fathy; acabaram compondo outras vozes para as dissonâncias que já se insinuavam, entre os arquitetos, nos meados dos anos 1970 e início dos anos de 1980.

Figura 3: capas dos livros de Turner e Carlos Nelson; imagem do livro de Hassan Fathy (fonte: acervo autor)

Por outro lado, creio ainda hoje que foi justamente o fato de não dispormos de uma teoria que, de modo hegemônico, nos orientasse a prática, o argumento que nos permitiu evitar tornar refratária a própria prática. Este fato nos fez ajuntar os ditos de Sérgio Ferro com os outros tantos ditos de outras searas. Talvez tenha sido bom: a visão por fragmentos contribuiu para a admissão de outros fragmentos e ajudou não transformar – o que imagino que Sérgio odiaria – a crítica em doutrina.

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Dessa percepção descontínua da crítica de Sérgio Ferro associada a um sem número de referências as mais diversas, passamos a viver uma série de ‘experimentos localistas’ considerando, aqui e ali, alguns aspectos que a crítica ao modo de produção da “forma da forma-mercadoria” associava fragmentos de inconformismo e resistência: os Laboratórios de Habitação em algumas instituições de ensino superior – Faculdade de Belas Artes de São Paulo, num primeiro momento, PUC Campinas e FAU Santos ou nas engrenagens de extensão da UNICAMP, posteriormente; o caminho voluntário de arquitetos e estudantes de arquitetura que se dirigiram à periferia para ali fundarem os primeiros passos de uma outra possível prática de ofício; a agremiação de profissionais em torno de organizações voltadas a atividades junto ao movimento popular; o desenvolvimento de técnicas construtivas que expunham diretamente o corolário formal ou conceitual da manufatura heterogênea – uma “arquitetura da terra” mecanizada, desde o CEPED na Bahia até os painéis cerâmicos e as abóbadas da UNICAMP, por exemplo – até mesmo posturas diferenciadas frente às antinomias do desenho e à heteronomia do canteiro de obras que já faziam teimar uma outra composição não-hierárquica entre arquitetos e trabalhadores da construção; todas estas maquinações, certamente, interagiram e se alteraram, como a alquimia que tem, como fim último, a transformação do alquimista: lidávamos diretamente com os trabalhadores da construção civil e seus usuários pobres. “Tratava-se”, como diz Roberto Schwarz no pósfácio que faz à coletânea de textos de Sérgio Ferro publicada em 2006, “de democratizar a técnica, ou, também, de racionalizar a técnica popular por meio dos conhecimentos especiais do arquiteto” 8. Estes ‘experimentos localistas’ fizeram escolas – literalmente – e organizaram uma extensa rede de profissionais que se engajaram no planejamento e na produção habitacional no país. Criaram a cultura da “assessoria técnica” aos movimentos de moradia, consolidaram uma postura mais ‘diluída’, digamos assim, da ação profissional do arquiteto, formaram professores, resgataram o problema da moradia como uma questão da – e para a – arquitetura etc. etc.

No entanto, essa época ‘heróica’, de reconstrução de uma possível democracia, de novas relações entre poder e povo, de utopias que ainda não tinham lugar, parece que foi paulatinamente esgotando suas alternativas para dar lugar a um lugar sem utopias. Chegamos aos nossos dias com um operário tendo passado pelo poder, à posse daquela estrutura técnico-burocrática que afirmávamos ser capazes de mudar ao som de nossas utopias e, meio abobados, percebemos que o poder é que tem o operário e aquela estrutura estatal é que se apropria de nossas utopias. Os movimentos populares que tanto gritaram nos anos 1980, parecem cada vez mais afônicos e atrelaram-se, em diversas instâncias, às ordens burocráticas de uma relação administrada.

8 Em FERRO, 2006, p. 436.

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Transformamos nossas concepções fragmentárias de “arquitetura do trabalho livre” em ‘programas de governo’, em ‘políticas públicas’ de ocasião e as submetemos à ordem que desordena a legítima vontade que tínhamos de mudar.

Assim, chegamos hoje a tempos irônicos: tomando por empréstimo uma figura que Lúcio Costa lançava mão para referir-se à Arquitetura Moderna Brasileira, aquela moça de “pernas finas” e “cara lavada” já não esconde o encardido atrás das orelhas e tanto a arquitetura herança do Dr. Lúcio como a nossa democracia já não tem vergonha de mostrar não ser assim tão asseada. Novamente, convocando Roberto Schwarz, parece um tempo em que “o êxito da esquerda foi pessoal e geracional, mas não de suas idéias, das quais ela se foi separando, configurando algo como um fracasso dentro do triunfo, ou melhor, um triunfo dentro do fracasso”. Pior ainda, “talvez se pudesse dizer também que parte do ideário de esquerda se mostrou surpreendentemente adequado às necessidades do capital”9. Nestes novos tempos, a versão por fragmentos de uma “arquitetura do trabalho livre” sequer almeja mais compor um projeto para desenvolvimento de si mesma, quanto menos o do país, sucumbindo à carga despótica dos tempos de subsunção do capital produtivo ao capital financeiro – na sua forma de absoluto abstrato.

Chegamos então ao final da primeira década de um novo século obrigando-nos mais uma vez a considerar se realmente fizemos as escolhas certas. E no fulcro desse questionamento, por inúmeras vozes, encontramos o arquiteto atrapalhado com sua insofismável função social: parece que, ao pretender afirmá-la, ela necessariamente deve aparecer descolada de qualquer funcionalidade reprodutiva do arquiteto – aquela que lhe mantem a existência; ao pretendê-la como ação politicamente determinada, reverbera como militância ingênua e fora de lugar por se tratar de uma ação profissional e “racional dirigida a fins” que se intromete no complexo campo da crítica teórica sem o adequado comprometimento com alguma clarividência radical – esta sim, capaz de enxergar as artimanhas dos “deslizamentos semânticos”; quando ela decorre da atuação junto aos Movimentos, os arquitetos tornam-se “viciados em virtude”10, “gestores da pobreza”, agentes de um inexorável processo de “filantropização e privatização do pobre”11; ou, numa versão mais liberal

9 Idem, p. 438. 10 OLIVEIRA, 2004 in NOVOS ESTUDOS-CEBRAP, 2006, p.72. 11 “É nesse marco [da resignificação do trabalho e de suas relações] que a Faculdade de Serviço Social da PUC de São Paulo teorizou sobre a chamada ‘filantropização da pobreza’ e da questão social. Grupos de empresários e associações de empresários, como a conhecida Fundação Abrinq, do ramo de brinquedos, o Instituto Ethos, que congrega várias e diversificadas empresas, a Associação Viva o Centro, liderada pelo BankBoston, e várias fundações empresariais empreendem uma vasta discussão e ações que tentam privatizar e filantropizar o que antes era objeto de políticas sociais públicas” (OLIVEIRA, 1999 in Cadernos ABONG,2000, p. 38). Na esteira dessa leitura, seguiram-se inúmeros trabalhos que, em maior ou menor grau, com mais ou menos rigor, estendem essa ideia para qualificar as relações que arquitetos e sem-tetos foram estabelecendo ao longo das últimas três décadas. Cito, particularmente, o rigoroso trabalho de CARVALHO, 2004.

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clássica, coagulam-se como arquitetos que mais se ocupam “com organização política do que com projetos”, empenhados essencialmente em “organizar a população pelos canteiros de obras” – e que, por isso, pensam “pouco em urbanismo”12. E o meu principal desconforto é que as conseqüências dessa operação que decompõe o ‘agir no mundo’ dos arquitetos em dois campos impermeáveis e insolúveis – Técnica: decretada como ação racional objetiva dirigida a fins – e Política: defendida como ação crítica, intersubjetivamente mediada pelo discurso e pelo diálogo –, vem produzindo enormes estragos.

Tradicionalmente, há um persistente melindre que instala em campos inconciliáveis Técnica e Política: em sua versão habermasiana, a Técnica nada mais é que racionalidade instrumental, a base real da categoria trabalho, sempre conspurcado pelas antinomias próprias dos “sistemas de ação racional dirigida a fins” – em suma, um fazer congenitamente alienado das esferas do espírito e inexoravelmente comprometido com as mecânicas empoeiradas do mundo da vida. Interação é a categoria que o filósofo opõe à razão técnica, programaticamente associada à razão dialógica – uma contração entre termos que lhe é cara: a única capaz de colocar a também sua ação

comunicativa em ação, “simbolicamente mediada, orientada segundo normas intersubjetivamente compromissadas e que articulam sentidos e validades a partir da comunicação pela palavra estruturada como discurso” (LOPES, 2006, p. 17). Já tratei deste assunto em outra parte, não pretendo repisar meus próprios argumentos13. Trago aqui este excerto apenas para colocar em evidência uma versão objetiva da oposição a que me refiro: acho curioso, por medidas analíticas, insistirmos em manter o mundo conforme regras binomiais – e que, normalmente, instituem oposições por vezes desastrosas. Assim, escandimos o mundo em pedaços e os arranjamos conforme circunstâncias propícias, permitindo-nos tornar as coisas um pouco mais facilmente definíveis.

12 Ensejada por uma exposição realizada entre abril e maio de 2010 – expressivamente instalada no Museu da Casa Brasileira sob o título “Cidades Informais do Século 21” – e tratando de um possível “novo olhar sobre as favelas”, uma matéria publicada na Folha de São Paulo traz excertos de entrevista com o arquiteto Fernando de Mello Franco, do escritório de arquitetura MMBB, bastante conhecido nos ambientes do meio profissional. Transcrevo o trecho, procurando evitar alguma interpretação: “Em São Paulo, a crise do urbanismo modernista demorou mais tempo para empurrar bons arquitetos para as favelas. O arquiteto Fernando de Melo [sic] Franco, do escritório MMBB, cita duas razões para esse descompasso: 1) o urbanismo paulistano só se preocupou com o trânsito por causa da ênfase na produção; 2) os que atuavam em favelas estavam mais ocupados com organização política do que com projetos. ‘Em São Paulo, a experiência em favelas era a política de mutirões, de organizar a população pelos canteiros de obra. E aí você pensa pouco em urbanismo’” (FOLHA DE SÃO PAULO, Caderno E4 – Ilustrada; 8 de abril de 2010). 13 Ver, portanto, minha tese de doutorado, Em memória das mãos: o desencantamento da técnica na arquitetura e no urbanismo (LOPES, 2006). O excerto em questão insere-se no contexto da discussão entre Marcuse e Habermas, quanto aos comprometimentos da racionalidade instrumental em Max Weber.

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O que pretendo demonstrar – a partir da crônica do surgimento de um modo de atuação do arquiteto14 – é que Técnica e Política são, em essência, indissociáveis. E que é justamente o fato de destituirmos a Técnica do campo da praxis propriamente dita, prescrevendo-a exclusivamente como razão instrumental; e de elevarmos a Política exclusivamente à condição de uma abstrata razão dialógica; que os termos da operação ganham sinais opostos, instaurando a impossibilidade de qualquer conciliação genética entre Técnica e Política. Assim, a crescente normatividade imposta aos processos de produção – racionalmente, democraticamente e dialogicamente construídas, diga-se de passagem – parecem congelar, passo a passo, cada movimento que insinue alguma subversão da ordem estabelecida. Parecem colonizar, sorrateira e sistematicamente, todos os cantos de onde poderíamos aguardar ainda alguma invenção.

Ao instituirmos um campo de trabalho junto com o Movimento de Moradia, não perguntávamos quanto à nossa função social. Desejávamos – e isso era claro em nossas falas e práticas – conseguir viver, suficientemente bem, desempenhando nosso ofício, projetando e construindo moradias – para os pobres e com os pobres. Só isso. E, no entanto, restaram-nos inúmeros problemas – como veremos adiante.

14 Cabe salientar que alguns outros trabalhos e mesmo publicações já articularam, de modo bastante cuidadoso, algumas leituras do trajeto que aqui esboço: por exemplo, tanto o livro de Pedro Arantes (ARANTES,2002) como a dissertação de Magaly Pulhez (PULHEZ, 2007) empenham-se nesta tarefa. Diria até que, emprestando o sentido do título que Magaly Pulhez dá para sua dissertação, procuro aqui estender e alargar, a partir de minhas referências, as “fronteiras do ofício” que ela delineia.

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precauções

Quando criamos a USINA - Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado, entre o final de 1989 e meados de 1990 – uma organização não-governamental que ajudei a fundar, com a qual ainda mantenho estreitos vínculos e que sempre se dedicou a trabalhar na produção da moradia para os pobres –, algo mais que 10 anos já se impunha como um tempo durante o qual uma série de eventos – que claramente conformariam algumas práticas na produção da moradia em São Paulo e em alguns outros lugares do país – vinham sendo tecidos, tramados, obscurecidos ou exageradamente anunciados. Eventos contraditórios, permeados pelas pessoalidades e personalidades que os protagonizaram – muitas vezes resultantes de uma ação coletiva – que, num primeiro momento, se manifestavam disformes e, por vezes, sem significado imediato aparente.

Recuperar esse contexto não é cabível num relato pouco extenso e que conta, em muitos flancos, apenas com o recurso do depoimento e da memória – em se tratando da minha, nem sempre muito confiável. Não pretendo coligir referências, fundamentar algumas de minhas impressões (eram e são impressões!) ou requerer indiscutível veracidade às minhas versões. O relato que se segue pretende, de forma expedita, desenhar o arco de uma experiência localizada e parcial, um olhar assumidamente particular do processo de constituição e construção do Movimento de Moradia em São Paulo ao longo das últimas três décadas, agremiando os sem-tetos15 em torno das lutas pela moradia e por um lugar na cidade; e, a partir daí, de como se deu a ‘invenção’ de um ideário autogestionário que transita como discurso, representação e como formas pensantes da prática, desenhados e anunciados por este Movimento; e, junto com este discurso, também o surgimento de uma outra possibilidade de articular política e prática de ofício – em suma, conjeturar quanto às reais possibilidades de construirmos outras relações entre política e ofício, entre Técnica e Política.

Creio que olho de uma posição privilegiada, na medida em que pude entrar em meandros nem sempre disponíveis à lente acadêmica ou ao observador comum. Mas reconheço as limitações quanto às possibilidades de análise que poderiam ser evitadas se me houvesse imposto algum distanciamento – se é que ele é possível – na medida em que arrisco algumas reflexões. Se as faço, é com hesitação e qualquer semelhança com a realidade nada mais é que a ocorrência fortuita de alguma clarividência que se abateu sobre mim.

15 Passarei a utilizar o termo “sem-tetos” e “arquitetos” de forma genérica, pretendendo esboçar aí o “lugar determinado e vazio” dos sujeitos do enunciado (FOUCAULT, 2002, p.109) – destes sujeitos em constituição, entre e a partir dos quais o discurso deverá medrar – “não como o indivíduo psicossomático que supostamente proferia o discurso” (AGAMBEN, 2008, p.142), mas, antes, como “função determinada” (FOUCAULT, 2002, p.107) –, e fruto de um processo de “conformação” ou “resistência” às singularidades próprias dos dispositivos (conforme discutirei ao longo do texto).

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O objetivo explícito é o registro de um incômodo e a defesa de um argumento. Registro que se estabelece como substrato às questões que apresento na Introdução, as quais pretendo conduzir por entre as tramas de sua evolução.

Nos discursos implícitos, a eloqüência das entrelinhas muitas vezes demonstra que ainda estamos distantes de uma ação que, efetivamente, produza algum possível amálgama entre Técnica e Política. Não é pouco frequente depararmo-nos com rotinas operacionais que deslizam ideologicamente as práticas de dominação, enraizadas e cultivadas pelas estruturas de poder, para o interior das organizações populares ou das administrações ‘populares’ na forma de itens, subitens e rotinas operacionais das políticas públicas – e, aqui, em particular, dos programas habitacionais. Também não é pouco comum convivermos, próximos às estruturas de gestão destas mesmas organizações populares, com todas aquelas idiossincrasias que esperávamos proscritas entre aqueles que sofrem, em outras instâncias, a dominação pelo poder autocrático. Não é pouco frequente vermos justificada pelos gestores públicos, com a objetividade matemática da norma técnica vigente, algum impedimento operacional que abriga alguma ação politicamente determinada. Adequando novas formas a velhos conteúdos, o desenho que resulta acaba invertendo, no espelhamento de até uma vontade produtiva, positiva, eficaz e aparentemente bem sucedida, a pretensão transformadora em novas estratégias de administração da pobreza – e do pobre.

No entanto, o registro que se segue procura explicitar alguns movimentos dessa ambivalência, tentando apenas juntar algumas impressões, resgatadas na trama do tempo e a partir do ponto de vista de um técnico que se aproxima mas não é Movimento, quanto ao que se propõe como uma

forma de engajamento da Técnica na Política; e de como a hipertrofia da normatividade – tanto aquela que decorre da racionalidade burocrática ou de uma “cidadania regulada”16 como aquela que acaba patrocinada pela própria crítica teórica – dilui as possibilidades de efetivamente “politizarmos a técnica”. Além disso, por mais irônico e paradoxal que isso pareça, é justo nesta diluição burocrática da política que identificamos, principalmente ali, a proliferação dos expedientes sumariamente caracterizados como “procedimentos técnicos” – e, portanto, objetivos, contabilmente estabelecidos e inquestionáveis. Isto é, ao pretendermos algum engajamento da Técnica na Política, alguma politização da Técnica, como resolver este paradoxo? É sobre isto que este texto pretende arriscar algumas reflexões.

Em chave teórica e metodológica, a idéia é construir o arco de um processo de individuação histórica e coletiva, onde o jogo de possíveis posições e composições outorgadas pelos enunciados 16 Expressão cunhada por Wanderley Guilherme dos Santos, ainda nos anos 1970 (ver SANTOS, 1979).

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precipita-se no arranjo em camadas do campo discursivo, nas formações discursivas que organizaram o estabelecimento das normas e regras – estes elementos aos quais atribuo o papel de significantes da função enunciativa. Daí, pretendo atravessar estas camadas, perscrutando meu próprio percurso, trazendo à tona as amostras constitutivas dos dispositivos que, conforme Aganbem, ao implicar em processos de subjetivação, acabam produzindo os seus próprios sujeitos: à medida que, neste processo de individuação psíquico-coletiva e em oposição a um certo espontaneísmo criativo e, poderíamos dizer, ‘voluntarismo anárquico’ dos sem-teto e dos arquitetos no primeiro momento, as formulações discursivas vão sendo sistematicamente capturadas e lapidadas pelas normas e regras, parece-me que se trata justamente daquele processo de prescrição e regulação promulgadas em defesa de (um mínimo) de racionalidade – em termos estritos – que, ao mesmo tempo que legitima e conforma, absorve e desarma os ímpetos da primeira hora, capturando-os como positividade justificada, isto é, como dispositivo. Para além de algum determinismo niilista, procuro ainda especular quanto a alguns aspectos ambíguos no arrematamento desta positividade, perguntando quanto à possibilidade de invisíveis vetores de desregulação que deslocam os mecanismos da ordem e que certamente acompanham, por dentro, todas as fases do processo de individuação que analiso – o que Simondon chamaria de “resíduos de abstração” – e de como tais resíduos de desordem podem inocular outras novas fases de individuação.

Assim, a pretensão é uma meta-forma do processo que descrevo: isto é, pelos sinais das metamorfoses pelas quais passa o processo de constituição do campo discursivo com o qual lido, pretendo descrever o arco que traz de volta a questão objetiva que este texto procura colocar em relevo – não trato aqui de uma trajetória acadêmica, de um arranjo de minha produção como pesquisador ou professor, mas de uma no mínimo extensa e complexa trajetória, da qual participei como arquiteto, isto é, como praticante de um ofício, como técnico. Ao debruçar-me sobre ela, busco fletir (dispor em curva, em flexão; dobrar, curvar, voltear) e fazer refletir a ação técnica e o pensamento crítico. Dessa forma, tento desdobrar algumas dobras que, me parece, isolam técnica e política em campos inconciliáveis.

Mais uma última advertência, a título de cuidado com a coerência entre método e evolução do texto: assumo a ordem cronológica dos fatos, mas exclusivamente para estabelecer alguma lógica para a escrita. Como já preveni o leitor, não pretendo estabelecer uma única possibilidade de encadeamento dos eventos – o que seria absolutamente contrariar o modo de articular meu argumento. Tento estabelecer campos distintos onde acontecem práticas discursivas que vão se entrelaçando, na medida que chego nos tempos mais recentes. De aí, o tempo das precedências, o

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momento das viragens e rupturas, o lado dos movimentos e o lado dos arquitetos etc. como eventos intercambiáveis entre si. Deste modo, a descrição cronológica trata-se de um recurso analítico apenas – porque os eventos interpenetram-se a todo momento e não pressupõem histórias apartadas e incomunicáveis.

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UTOPIAS SEM LUGAR precedências

O mapeamento proposto por Magaly Pulhez (2007) procura averiguar como a favela aflora como questão para arquitetos e urbanistas, tanto como um problema urbano – o qual deve ser resolvido através de recursos eminentemente técnicos – como também o lugar da cidade, por excelência, propício ao surgimento de formas espontâneas (e, portanto, verdadeiras, no sentido de vernaculares) de construção da moradia17. Apoiando-me em suas perquirições, parece-me que também é neste determinado momento, quando surgem algumas primeiras providências práticas que evidenciam o reconhecimento da favela como um fato urbano – e, portanto, como um problema técnico e político –, que aparece, por aqui, esta aproximação mais orgânica, digamos assim, entre os arquitetos e os sem-tetos, a qual se estreitará nos momentos subsequentes.

Como já delimitei sumariamente, é certo que uma trama razoavelmente definida de referências estabeleceria padrões que seriam reelaborados e absorvidos nas práticas constitutivas desse campo de ofício entre os anos 1970 e 1980. Mas não se trata de uma gênese desde o vazio: os movimentos em solo europeu que vinham questionando as formulações positivas do Movimento Moderno já faziam água na afirmação categórica do Projeto como recurso determinado para o pleno domínio da produção do objeto arquitetônico e na supremacia progressista do Plano, como a peça motriz que promoveria, submeteria e controlaria todo o espraiar das cidades modernas18.

17 PULHEZ (2007, pp.60-61). Todos os quatro casos aqui indicados foram descritos e analisados pela autora e encontram-se registrados no trabalho de mestrado aqui citado. Além disso, o exercício de articulação entre as iniciativas pioneiras de compartilhamento do ofício realizadas por aqui e na Europa – que desenvolvo em nota mais adiante – aparece, no trabalho de Magaly, bem melhor elaborado. 18 Não pretendo despender muitas linhas com o assunto, no corpo do texto. Mas apenas como referência, faço menção a algumas concepções com as quais lidei, juntamente com Silke Kapp e Ana Baltazar, em um texto nosso sobre um certo “fundamentalismo participacionista” em políticas de habitação para os pobres: (1) as iniciativas do Team Ten, com o engenheiro italiano Giancarlo de Carlo destacando-se como uma das figuras-chave do grupo; é dele o texto “Architecture’s Public”, publicado no periódico italiano Parametro, em 1969, e redigido a partir de uma conferência em Liége, também em 1969; traz, com igual relevância, “tanto o espírito otimista e igualitário de 1968 como a angústia da jovem geração modernista”, que acabara por concluir que os ideais sociais do Movimento Moderno “haviam sido traídos”; segundo os autores de “Architecture and Participation”, é um texto marcado por um tom “profundamente político, retomando um tempo quando o impacto do capitalismo global havia apenas começado e as implicações políticas na estética começavam a aparecer”; é desse texto a conhecida frase: “a arquitetura é por demais importante para ser deixada para os arquitetos” (JONES; PETRESCU; TILL, 2005, pp. 3-22); (2) as concepções de Yona Friedman – com seu “circuit bruillé”, defendendo uma outra posição funcional para o arquiteto, não mais como um “tradutor” das vontades individuais, configuradas numa espécie de “vontade tipo” – argumento norteador de toda a fatura em arquitetura, do projeto à obra –, mas ocupando a posição de um mediador – uma espécie de ‘gerenciador’ (como, mais adiante, a posição de Kroll em Louvain) – na composição das vontades individuais, transformadas em um “pinga-fogo” que constrói uma solução coletiva (FRIEDMAN, 1971); (3) a “linguagem de padrões” e o “modo intemporal de construir”, de Christopher Alexander – uma proposta de método para abordagem de projeto, resultado da sua experiência no planejamento do campus da Universidade do Óregon, realizado a partir de uma intensa articulação entre os alunos, corpo diretivo da instituição, funcionários etc. e arquitetos e urbanistas dirigidos por Alexander (ALEXANDER, 1976); (4) a Maison Médicale (carinhosamente chamada de “Mémé”), na Universidade de Louvain, Bélgica, cujo projeto, dirigido

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No caso brasileiro, Magaly Pulhez identifica pelo menos 4 situações que se pronunciaram com algum relevo e que reverberavam, de certo modo, os desassossegos experimentados com o esgotamento dos pressupostos do Modernismo na arquitetura. Nestas circunstâncias, o questionamento que ganha corpo é justamente a descrença na capacidade do arquiteto de dar resposta – pela adoção de um “homem médio” como referência para elaboração do programa de necessidades, como assim se referia Yona Friedman –, a todos os aspectos que concorrem para o estabelecimento das demandas dos futuros utilizadores do objeto arquitetônico. É um pouco por esse campo que comparecem os ecos do desconforto ultramar como pressuposto de abordagem profissional: aparecem aqui, pela primeira vez, os processos participativos de concepção projetual e de produção do edifício – propostos pelo lado dos arquitetos, urbanistas e engenheiros, num primeiro momento –, trazendo o futuro usuário para dentro processo de concepção de sua moradia e do lugar onde ela será instalada.

Assim como no caso europeu, aqui também as propostas de participação e de algum conluio produtivo entre arquitetos e sem-tetos seriam delimitadas, invariavelmente, por constrangimentos políticos de diversas ordens – ainda que diferentes, mas que também impediam liminarmente alguma efetividade na pretensão de um longínquo horizonte emancipatório. Trazendo como bandeira a ‘função social do arquiteto’, algumas instâncias de organização profissional chegaram a formular, porém já num tempo mais constrito, algumas propostas de articulação do ofício que traziam aspectos germinais do que experimentaríamos anos depois. Dessa forma, apesar de alguma expectativa criada, por exemplo, no Seminário de Habitação e Reforma Urbana – realizado por Lucien Kroll, previa a construção de um conjunto de apartamentos destinados à moradia estudantil; implantado na periferia de Bruxelas em 1971, o conjunto foi todo desenhado a partir de um processo que contou com a participação dos usuários, marcando um passo importante e definitivo no contexto de um ideário participacionista como argumento de planejamento e na produção da arquitetura; é deste arquiteto a idéia de uma “arquitetura homeopática” (JONES; PETRESCU; TILL, 2005: 134-135); (5) o número 3 da revista PROCESS, de 1977, onde é dado destaque ao Community Design: By the People; a revista traz diversas experiências realizadas nos EUA ao longo de toda a década de 1970, tanto no contexto do planejamento de bairros inteiros, como no contexto da moradia e dos equipamentos comunitários; já no editorial, Ching-Yu Chang alega que a rápida deterioração de comunidades planejadas decorre do fato delas resultarem de processos nos quais a “voz do povo raramente é levada em conta”; contra o fato, “mais e mais cidadãos estão se tornando membros do time de design na criação e reabilitação de seu próprio ambiente” (PROCESS, nº 3, 1977); (6) além de, obviamente, Bernard Rudofsky, com o seu “Architecture without architects” (o nome da exposição e do respectivo catálogo é suficientemente expressivo) (RUDOFSKY, 1977); John F. C. Turner e o seu “Housing by People” (ou, em sua versão castelhana: “Vivienda – todo el poder para los usuarios”) – como veremos mais adiante, inadvertidamente apontado como responsável pelas políticas de desresponsabilização do Estado frente ao problema habitacional (TURNER, 1977); e Hassan Fathy – com o projeto de Nova Gurna e a recuperação de uma tradição construtiva a partir da permeabilização do universo ilustrado do arquiteto na confecção da arquitetura (FATHY, 1982). Em todas estas referências, há uma demarcação clara, esboçada pelo espírito de 1968, do contexto em que prospera a vinculação entre participação e democracia. Como efeito e resultado da intensa movimentação no período (a Primavera de Praga e o Maio de 68 em Paris, particularmente), a “imaginação no poder” reverberava nos novos modos de se pensar a produção da arquitetura e da cidade; daí destaca-se um fino fio que nos conduz, ao longo dos anos 1970, por uma curiosa símile entre democracia e participação: o vigor de uma condução democrática aferir-se-á pela prescrição e administração da participação. É neste âmbito que se estrutura uma outra possível interatividade entre arquiteto e usuário do objeto arquitetônico.

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em 1963, a partir de iniciativa do Instituto dos Arquitetos do Brasil –, justamente em virtude do esforço de politização do problema da moradia e da produção da cidade, não é difícil, pela data, compreender porque essa expectativa não prosperou.

De qualquer modo, é procedente situar a experiência do Serviço Especial de Recuperação das Favelas e Habitações Anti-Higiênicas, o SERFHA, como uma das iniciativas pioneiras na adoção de processos de aproximação entre arquitetos e sem-tetos para a discussão e elaboração de programas e projetos em favor de alguma providência para o problema da moradia: criado em 1956, no então Estado da Guanabara, e entregue à direção do sociólogo José Arthur Rios, em 1960, pelo governador recém-eleito Carlos Lacerda, o SERFHA tinha como atribuição cuidar da questão das favelas – um dos problemas urbanos mais controversos daquele contexto, que atormentariam o governador ao longo de todo seu mandato. No relato dos Leeds, citado por Pulhez, “‘Rios e sua equipe mantiveram encontros semanais com os representantes de nove favelas diferentes a cada semana’, promovendo discussões a respeito de questões fundiárias e de como poderiam ser conduzidas as obras de melhoramentos nas áreas” (PULHEZ, 2007, p.61).

Já em São Paulo, o Movimento Universitário de Desfavelamento, ainda que com caráter notadamente assistencialista, asseverava uma aproximação pelo menos inusitada, no contexto paulistano, do problema da acomodação um tanto mais digna da população pobre que morava nas favelas da cidade. O MUD era composto por jovens universitários católicos que, em 1963, atuaram, entre outras frentes, no processo de remoção da favela do Vergueiro: dentre os integrantes do MUD, um grupo

“composto por cerca de dez estudantes de engenharia e arquitetura, desenvolveu uma

espécie de ‘assessoria técnica’ aos moradores da favela do Vergueiro, acompanhando-os

em visita aos terrenos de suas futuras casas e orientando-os na escolha dos mesmos. Além

disso, tal como consta do relatório do trabalho, projetaram praticamente todas as novas

unidades habitacionais, discutindo com os moradores – não sem embates e conflitos,

evidentemente – suas aspirações e sugestões” (PULHEZ, 2007, p.63)

Outra referência – esta mais evidenciada, muito em função da exposição de seu protagonista – é o caso de Cajueiro Seco, em Recife19. Orquestrado no âmbito do governo Miguel Arraes, Cajueiro

19 Um trabalho que considero importante e que resgata com bastante rigor toda a história de Cajueiro Sêco é o livro de Diego Beja Inglez de Souza, Reconstruindo Cajueiro Seco – Arquitetura, política social e cultura popular em Pernambuco (1960-64). Diego reconstrói não só o contexto e condicionantes políticas e urbanas em que a proposta aparece e se desenvolve, como articula com propriedade o caso que estuda com as diversas mobilizações em torno do popular na cultura e na política, particularmente por através do problema da habitação dos pobres. Como afirma Luiz Amorim, na orelha que apresenta o livro de Diego, “Cajueiro Sêco é um dos episódios mais emblemáticos da história urbana brasileira do século XX, reverenciado como exemplo paradigmático de interação entre projeto político,

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Seco tratava-se de um projeto habitacional que, coordenado pelo arquiteto Acácio Gil Borsói, teve início em 1962 e foi interrompido em 1964, em virtude do golpe militar. Um tanto na linha de Hassan Fathy – que projetara um conjunto de moradias em Gurna (localizada em frente a Luxor, por volta de 500km ao sul da cidade do Cairo), recuperando técnicas ancestrais de construção com adobe –, Borsói acabou notabilizado pela proposição de um sistema de pré-fabricação que lançava mão de uma cultura construtiva local, propondo painéis feitos de taipa de pau-a-pique e coberturas confeccionadas de fardos modulares de palha costurada20. Associava, assim, conhecimento local, compartilhado pelos moradores, e o conhecimento ilustrado dos arquitetos e engenheiros, associando procedimentos de pré-fabricação modular e a cultura construtiva autóctone local (PULHEZ, 2007, pp.64-65).

Mas, além destas experiências, parece-me que a quarta situação revelaria, de modo mais eloquente, as novas dinâmicas estabelecidas pela aproximação e permeabilização entre arquitetos e sem-tetos. Trata-se do processo de urbanização de Brás de Pina, uma favela situada na zona norte da cidade do Rio de Janeiro e que resistiu, em 1964, às pressões do governo Carlos Lacerda, recém instalado e em meio à balburdia pela qual o país atravessava. Ameaçados de serem transferidos para as Vilas Aliança e Kennedy – distantes conjuntos habitacionais, recém-construídos –, os moradores, ao enfrentar Lacerda e seu aparato policial, registrariam um marco indelével e fundamental no rumo das relações entre a arquitetura e urbanismo pensados e a arquitetura e

urbanismo vividos.

Talvez consiga designar melhor a importância que concedo a esta circunstância – como um dos mais importantes índices do campo em constituição no período que analiso – arriscando um próprio depoimento: em 1989, num momento de transição entre meu período de trabalho da UNICAMP e a criação da USINA, eu e mais dois colegas arquitetos prestamos consultoria à Secretaria de Assuntos Fundiários – SEAF, do Governo Moreira Franco (uma espécie de espólio de meu período de trabalho no Laboratório de Habitação da UNICAMP, quando atuamos no Rio de Janeiro e na movimentos sociais e arquitetura”, isto é, o campo da prática de ofício que aproxima, em sinais favoráveis, o conteúdo técnico dos procedimentos de projeto e as prática políticas essenciais. Em tempo, o livro de Diego Beja também traz, como no trabalho de Magaly Pulhez, uma bem feita articulação entre o momento crítico vivido pela arquitetura naquele período e as repercussões em solo brasileiro. 20 Há uma publicação, bastante singela, que traz na capa, sobre um fundo negro, a palavra “taipa”, em caixa baixa, vazado em branco e ocupando boa extensão do modo ‘paisagem’ em que se organiza o volume, e que registra sumariamente a experiência, através de um breve texto e de algumas fotos. Preparado para a participação de Borsói no concurso internacional do “ICSID’s Philips Award” (tratava-se de um concurso do Conselho Internacional de Sociedades de Desenho Industrial, uma entidade ligada à UNESCO, dos anos 1970, que se dedicava a promover um desenho industrial compatível com as necessidade específicas de desenvolvimento de cada país), a publicação tem mais o caráter de um ‘catálogo’ de exposição que, propriamente, um documento explicativo mais pormenorizado. De qualquer forma, impressiona – como bem percebe Diego Souza – o quanto estas imagens foram povoando inúmeras outras publicações nacionais que se referiam a temas correlatos: desde pré-fabricação até a presença da cultura popular na arquitetura (SOUZA, 2010, pp.317-320; BORSOI, 1965).

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Baixada Fluminense – falo sobre isso mais à frente). No segundo semestre de 1989, além dessa consultoria à SEAF, já começáramos, eu e estes dois outros arquitetos, a articular trabalhos que, posteriormente, seriam realizados pela USINA, juridicamente criada em 1990. Um destes trabalhos, de assessoramento técnico autônomo, em Osasco – SP, tratava da elaboração de projetos urbanísticos e das unidades habitacionais para uma favela, para o reassentamento – em área vizinha, pertencente à COHAB de São Paulo – de em torno de 500 famílias. Tempos de gestão Erundina, havia contudo uma grande indisposição por parte da COHAB para dar encaminhamento às reivindicações daquele povo – gleba de terras num outro município, gravado por uma quantidade enorme de problemas e impasses fundiários, no tempo de uma administração municipal bem pouco simpática à administração paulistana, entre outros problemas. Desta feita, não havia caminhos abertos para qualquer negociação para além da comercialização da terra – que, no final das contas, faria a COHAB grata por livrar-se de um enorme contencioso. Constrangidos pela inexistência de canais que permitissem o financiamento sequer dos projetos, as famílias da favela acertaram conosco a remuneração que estipulamos para os trabalhos: deixamos clara toda a composição dos custos, inclusive o que ganharíamos como honorários com a realização dos projetos, e acordamos uma forma de pagamento que permitiu aos moradores, através de cotização por família, o levantamento mensal dos recursos necessários. Foi este trabalho que nos manteve e manteve nosso escritório ao longo de 6 meses: pagavam-nos rigorosamente no prazo e sem nenhum questionamento posterior. Quando, numa de nossas viagens ao Rio, comentamos sobre este projeto com um técnico da SEAF, o arquiteto Rui Veloso, ele exclamaria espantado que só vira isso acontecer em Brás de Pina, com o trabalho do QUADRA, liderado por Carlos Nelson Ferreira dos Santos21.

Assim, a urbanização de Brás de Pina tornou-se paradigmática: desde o enfrentamento, às vésperas do Natal de 1964, do governador do Estado da Guanabara, Carlos Lacerda – que, comandando pessoalmente uma truculenta remoção dos moradores, respaldado por forte aparato militar, acabara surpreendido pela resistência de aproximadamente 800 famílias, apoiadas por um grupo de padres – ao que o governador teria reagido, dizendo que “se os moradores preferiam viver na lama, seriam tratados como porcos” (SANTOS, 1981, p.34); passando pelo processo de contratação dos projetos junto a um grupo de arquitetos recém-formados – que constituiriam o grupo QUADRA, já em 1967 (SANTOS, 1981, pp.43;52;56); até a auto-construção das casas, já no contexto do sucessor de Lacerda, o governador Negrão de Lima – que, opositor declarado do ex-

21 Apenas como ressalva, é certo que isso não era uma novidade assim tão grande: Luís Fingerman, em depoimento publicado no nº8 da Revista Espaço & Debates (1983), comenta que recebia honorários para prestar assessoria técnica a uma favela de Vila Maria, em São Paulo – isso lá por volta do final dos anos 1970.

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governador, contrariava inclusive a orientação nacional em favor da erradicação das favelas (SANTOS, 1981, pp.60 a 85).

Não vou me estender quanto ao histórico de Brás de Pina: o próprio Carlos Nelson descreve toda a trama dos eventos em seu “Movimentos Urbanos no Rio de Janeiro”, de 1981, uma publicação derivativa de seu mestrado em Antropologia Social, defendido em 1979 junto ao programa mantido pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – uma das obras luminares para todo o percurso que encadeio adiante (SANTOS, 1981). Além dele, ao mesmo tempo compondo e contrastando as impressões, os depoimentos e as análises de Carlos Nelson, o próprio jornalista Sílvio Ferraz – um dos responsáveis pela criação, em 1968, da Companhia de Desenvolvimento de Comunidades, a CODESCO, encarregada por Negrão de Lima para dar andamento aos projetos que pretendiam a urbanização das favelas cariocas – registra extenso depoimento, disponível em meio eletrônico, ponderando sobre os artifícios para driblar a política erradicacionista do governo federal – inclusive invertendo recursos não oficiais para a promoção do empreendimento –, o dia-a-dia do processo de construção das casas e sobre a dinâmica de gestão das obras22. Além disso, vários outros trabalhos sistematizaram e analisaram as inúmeras referências, documentos e depoimentos sobre Brás de Pina23. O que me parece importante ressaltar é um aspecto que compartilho com Magaly Pulhez, para além do ineditismo da situação:

“Na verdade, a urbanização se deu na base do empirismo, mas, surpreendentemente, a

gestão do processo revelou-se, então, algo transgressora: a relação (ou parceria) entre

arquiteto e morador se deu à maneira, quase, de uma ‘antiarquitetura’24, em que o que

havia de precário, flexível, improvisado e inacabado somou-se ao conhecimento técnico

através de um largo (e conflituoso) processo de participação da comunidade. Os moradores

apresentavam desenhos aos técnicos na tentativa de compor um projeto que contivesse um

saber da casa, ou do morar, que não fosse puramente acadêmico”(PULHEZ, 2007, p.73)

22 É possível acessar a entrevista pelo site www.vivafavela.org.br; para acesso direto, usar o link: www.favelatemmemoria.com.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=1. O documento é: MONTEIRO, Marcelo. “O elo perdido”. Favela tem memória – Publique – Especiais, 23/11/2004. 23 Além do trabalho de Carlos Nelson, é importante destacar – como o faz Pulhez – também os relatos e análises promovidas por Gilda Blank, em seu mestrado, resumidamente publicado em Habitação em questão, de VALLADARES (1980); além de citações e referências em entrevistas muito importantes, publicadas em FREIRE & OLIVEIRA (2002). 24 O termo é meu e integra o texto da pesquisadora; procurava, com o termo, estabelecer o padrão daquilo que não poderia ser considerado, já naquele momento, como ‘arquitetura’ propriamente dita, não no sentido de sua composição formal, por certo, mas procurando caracterizar a oposição, justamente, à arquitetura que compunha esforços no sentido das aspirações de desenvolvimento nacional – tão em voga naquele momento. E a favela era uma anomalia, um estorvo a qualquer mobilização desenvolvimentista.

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Corroborando esta percepção, Sílvio Ferraz dá a filigrana do que Magaly chama de transgressão, de permissividade técnica ao flexível e ao improvisado. Ao ser indagado quanto a como se dava o trabalho dos arquitetos com os moradores, Sílvio responde:

“A Codesco era uma integração entre governo, universidade e comunidade. Tínhamos

muitos universitários trabalhando para nós, a maioria arquitetos, economistas e assistentes

sociais. Esse grupo ficava numa casa, chamada depois de Casa Branca. Os moradores

tinham toda a liberdade de fazer a planta da sua própria casa. Eles apresentavam aquela

planta feita a mão para os estudantes que sugeriam mudanças e melhoravam os aspectos

técnicos. ‘Olha aqui tem que ter um corredor, aqui pode ser parede de outro cômodo’. Se

ele concordasse tudo bem. A gente fez também sete tipos básicos de planta para quem não

tinha o mínimo jeito para desenhar. Depois então o caso passava para os economistas. O

pessoal da economia então fazia um estudo sobre a capacidade de endividamento da

família. Se a casa custasse 4,5mil cruzeiros, eles tinham que ganhar o suficiente para

conseguir pagar as mensalidades. A gente não era muito exigente com detalhes. A única

obrigação é que pelo menos uma pessoa da família tinha que ter carteira assinada. Caso o

sujeito só pudesse pagar uma casa de 3mil cruzeiros, aí os arquitetos pensavam uma nova

opção de planta. De repente ele construía uma parte em alvenaria e outra de madeira. A

gente não tinha preconceito nenhum. Todo esse atendimento era gratuito. A única exigência

técnica era que a parte elétrica e o banheiro precisavam ser ligados na rede de esgoto.

Disso eu não abria mão! Se você vai hoje em Brás de Pina vai ver que não tem uma casa

igual a outra. Bem diferente dos conjuntos habitacionais”( MONTEIRO, 2004, p.6)

Não quero que considerem que o meu registro do elogio de Sílvio Ferraz aos destrambelhos de Brás de Pina é decorrente de algum “vício de virtude” de minha parte: não me parece, como arquiteto e urbanista, que uma operação assim, tão atabalhoada, rendesse resultados virtuosos. Ora, utilizo-me do depoimento de Sílvio Ferraz apenas para ressaltar em que medida o tal campo novo a que me refiro aparece sem avisar. Como diz Carlos Nelson, o maior aprendizado com Brás de Pina, talvez seja “que não há que esperar por momentos favoráveis para fazer esta ou aquela ação coletiva”, mas, pelo contrário, “o exemplo parece afirmar que ações que tenham um significado social forte constroem seus próprios momentos” (SANTOS, 1983, p.32). Creio ser esta uma das novidades que germinarão nos anos posteriores, paradoxalmente já em tempos bem menos democráticos: porque, se resultado da conjuminação de

“um conjunto absolutamente heterogêneo que implica discursos, instituições, estruturas

arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados

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científicos, proposições filosóficas, morais e filantrópicas, em resumo: tanto o dito como o

não dito, eis os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se estabelece entre

estes elementos”( FOUCAULT, Dits et écrits, v. III, p. 299-300 in AGAMBEN, 2009, p.28)

Ainda mantendo em suspensão e reservando para o final deste texto o aprofundamento desta indicação que trago de Foucault – pelas mãos de Agamben –, ressalto, apenas para fixar aqui um

ponto de ruptura, o quanto o processo de Brás de Pina instala, sem nenhum fundamento na

essência, um motor de subjetivação pela pura atividade – isto é, “produz o seu sujeito” ao mesmo tempo em que produz as regras pelas quais se concretizam as relações de poder:

“Naturalmente as substâncias e os sujeitos, como na velha metafísica, parecem sobrepor-

se, mas não completamente. Neste sentido, por exemplo, um mesmo indivíduo, uma

mesma substância, pode ser o lugar dos múltiplos processos de subjetivação [...]. Ao

ilimitado crescimento dos dispositivos no nosso tempo corresponde uma igualmente

disseminada proliferação de processos de subjetivação”( AGAMBEN, 2009, p.41)

Ao instituir-se, este campo emerge de modo anárquico, razoavelmente desregulado, sem uma estrutura normativa consolidada de imediato: as regras existem, mas provêm de outros sistemas e não organizam lógica jurídica alguma, no primeiro momento; os discursos dissonam, mas convergem em harmonia no desenrolar da atividade; os contornos dos objetivos depuram-se na medida que a atividade se desenrola – e não previamente; o que fica evidente, portanto, é que, no rastro das rupturas, parece insinuar-se alguma possibilidade de invenção. Por outro lado, se os elementos do dispositivo são parte de sistemas já sedimentados, mesmo que presentes sob uma outra conjugação, como enunciar alguma novidade? Além disso, como este campo em emergência vai abrigar os indícios de alguma possibilidade de conciliação entre Técnica e Política? É aí aonde tento chegar.

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ofício e política: invenções da prática

O tom ideológico e bastante personalista de Sílvio Ferraz pode parecer-nos deslocado em relação à forma como hoje percebemos a trama de acontecimentos que fizeram aqueles finais de anos 1960 e começos de 1970. Mas até mesmo intelectuais acima de qualquer suspeita, no calor da hora e envolvidos pelo contraste dos acontecimentos, já deslizaram leituras mais positivadas de circunstâncias nem tão positivas assim. Ao conviver com os Movimentos de Moradia, sempre encontramos dificuldades razoáveis de diálogo com as Associações de Bairros. Claro, Movimento e assessorias prestavam um desfavor aos bairros já minimamente consolidados das periferias, promovendo a instalação de um número grande de novos moradores, de uma só vez, oferecendo um excedente populacional prestes a inflar as demandas locais, além de toda a espécie de manifestações preconceituosas a respeito dos mutirantes. Dessa forma, deparamo-nos com uma boa sorte de enfrentamentos no estabelecimento das novas relações de vizinhança, boa parte deles suscitados ou conduzidos pelas Associações de Bairros – que se abriam sem peias a práticas clientelistas de toda ordem, funcionando como correia de transmissão entre os políticos locais e as demandas mais prosaicas da população do bairro, entre outras práticas pelo menos questionáveis. Daí alguma reação de estranhamento quando li o comentário do professor Pedro Jacobi ao livro de Pedro Porfírio, “O Poder da Rua”, publicado numa Espaço & Debates de 1982:

“Um fenômeno vem se generalizando em nossa sociedade de maneira bastante intensa: a

participação popular em instituições que, de alguma forma, visam influir nos processos

políticos, especialmente naqueles vinculados às decisões que afetam as condições de vida

das classes populares. O poder da rua está crescendo e as Associações de Bairro se

constituindo numa prática em efervescência nas cidades brasileiras [...]. As primeiras

Associações de Amigos de Bairros surgem na década de 40 em São Paulo visando

mobilizar os moradores dos bairros de periferia com o objetivo de reivindicar melhorias

urbanas. As associações são estimuladas pelo esquema populista, sustentado numa

participação controlada das classes populares. Com as mudanças político-institucionais

ocorridas em 1964, as Sociedades de Amigos de Bairros sofrem alterações significativas,

caracterizando-se um período de cooptação da maior parte das lideranças destas

organizações pela política oficial. Somente após os primeiros sinais de descompressão

política é que as Associações de Moradores e outras formas de organização popular

renascem com um renovado conteúdo reivindicatório. Neste contexto, o livro O Poder da Rua mostra como a população do Rio de Janeiro está se organizando para governar a

cidade. O livro trata da experiência comunitária da rua Lauro Muller, no bairro carioca de

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Botafogo, do surgimento da ALMA (Associação dos Moradores da Lauro Muller e

Adjacências) e da adoção do processo de autogestão que se estendeu a todos os edifícios

da rua. (...) As associações estão se transformando em verdadeiros centros de exercício da

democracia direta, onde o poder da rua é um primeiro passo para uma gestão democrática

das cidades, obtendo vitórias contra a especulação imobiliária,novas áreas de recreação,

cooperativas de alimentos, etc. O Poder da Rua, assim como outras publicações tratando

de um momento ainda distante, a cidade dos cidadãos, torna-se uma leitura estimulante,

principalmente num momento onde a viabilização de algumas experiências de

administrações municipais democráticas, como é o caso de Lajes [Lages, SC], Boa

Esperança, Piracicaba e algumas outras poucas cidades que gradativamente vão se

esboçando e que têm como traço distintivo a abertura de possibilidades de democratização

do poder local.”(E&D, 1982, nº5, p.150)

Da mesma forma que o depoimento de Sílvio Ferraz, as inferências e conseqüências práticas que a leitura de Jacobi do livro de Pedro Porfírio acaba propondo, pode suscitar algum muxoxo nas consciências um pouco mais tensas e agastadas da atualidade. É claro que cada época faz suas verdades, construídas a partir da validade atribuída aos eventos que ela abriga: mesmo num depoimento recente, a releitura de um tempo pregresso permite – talvez mais até – inversões imaginárias a favor de construções mais ideologizadas.

Para compor as impressões de uma época – e aí já no campo das práticas do ofício –, registro os depoimentos de Ermínia Maricato, José Fábio Calazans e Luís Fingerman, publicados também numa longínqua Espaço & Debates, no primeiro semestre de 1983. Em maior ou menor medida atravessados por uma expressão mais cautelosa, articulados em tons pelo menos mais esfumados, os depoimentos dos três arquitetos, a partir de diferentes circunstâncias de realização prática, relatam sobre os campos de diálogo profissional e de trabalho conjunto com “movimentos de participação popular na Grande São Paulo” – como aparece na sua apresentação. Relatam como se deram suas atuações junto aos moradores das periferias paulistanas e como a prática do ofício interpenetrava-se com a ação política. A expectativa da revista, com a publicação dos depoimentos, era “trazer alguma luz ao hoje tão nebuloso horizonte profissional dos estudantes de arquitetura e arquitetos recém-formados”25.

Ermínia, já nas primeiras palavras, delimita categoricamente os campos de onde propõe a visagem:

25 Cabe lembrar – sempre em favor de um relato diacrônico: aquele momento da publicação deste número de Espaço & Debates já era o segundo ano de existência do Laboratório de Habitação da Belas Artes – ao qual me dedico mais adiante –, era o ano de sistematização da experiência das disciplinas integradas no primeiro ano do curso na FAU (comento com detalhes mais adiante) e era o meu primeiro ano como arquiteto formado.

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“Um dos pontos fundamentais dessa abordagem é: ou o profissional está a serviço do

Estado ou está a serviço de um movimento popular independente, que frequentemente se

coloca contra o Estado.” (E&D, 1983, p.79)

A partir de sua experiência de trabalho nas Secretarias de Planejamento do Estado de São Paulo e do município de São Bernardo, Ermínia pudera experimentar os constrangimentos próprios das engrenagens da tecno-estrutura estatal – para utilizar um termo de Otavio Ianni –, orientando o padrão das ações a partir de uma relação um tanto esquizofrênica entre objetivos e realização:

“A gente olhava a produção do espaço através de uma janela, mediada pela burocracia e

pela tecnocracia. O nosso jargão humanista servia inclusive para fundamentar propostas

que não tinham nada a ver com o que a gente fazia. Quer dizer, a nossa fundamentação

servia, mas a proposta era outra.” (E&D, 1983, p.79)

Esta percepção dos limites claramente demarcados pela burocracia estatal teria conduzindo Ermínia a procurar por outras possibilidades de atuação profissional, que permitisse o engajamento em alguma ação “mais concreta: os oprimidos, os que estavam do outro lado” (p.80). Em 1975, a partir do convite de um padre da região de Interlagos, zona sul da capital paulistana, Ermínia inicia um trabalho com a população local, auxiliando na fundamentação técnica do questionamento da qualidade dos serviços de transporte prestados por empresas concessionárias da então Companhia Municipal de Transportes Coletivos, a CMTC. Desperta alguma curiosidade imaginar qual a base física para o desenvolvimento dos trabalhos: tratava-se, para todos os efeitos, de uma espécie de “pesquisa-participante às avessas”, isto é, o povo, usuário dos serviços de transporte, é que era instruído e instrumentalizado para verificar a quantidade de veículos disponibilizados nas linhas de ônibus, “a frequência das viagens, intervalo entre as viagens, condições mecânicas dos ônibus, quais os ônibus que levavam a viagem até o fim, quantos quebravam no caminho, o número de pessoas por viagem, etc.” (p.80) – tudo isso para se fundamentar (e não alguma pesquisa acadêmica). Um trabalho extremamente “eficaz e completo”, segundo Ermínia, que teria custado “uma fortuna” se contratado de alguma empresa especializada, mas recebido como resultado de ‘mobilização subversiva’ pelos diretores da empresa municipal. Apesar de uma pequena melhora nos serviços – ou devido a ela –, o movimento acabou se esvaziando, sugerindo, por outro lado, a percepção de que também a organização popular autóctone também está submetida a constrangimentos. Um pouco mais adiante em seu depoimento, Ermínia faz algumas reflexões quanto à dinâmica dos movimentos sociais, a partir de uma percepção – eminentemente empírica – de como eles, numa “configuração em curva”, atingem um auge e depois diluem suas energias: “O movimento reivindicatório é um movimento de ciclos. E ele é segurado na base de muito ‘pique’, de

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muitos acontecimentos”. Conheço razoavelmente esta dinâmica – e penso que boa parte das dificuldades relativas à manutenção material dos profissionais envolvidos neste tipo de trabalho decorre dela. Mesmo assim, ainda que poucos, estes profissionais acabavam comparecendo – e ainda comparecem –, sabe-se lá motivados por qual ordem de expectativas:

“Nessa época, havia quatro profissionais havia quatro profissionais no movimento: uma

estudante de arquitetura, um arquiteto, uma socióloga e eu. Não havia qualquer partido ou

organização política, apenas a presença dominante da Igreja Católica, através das

CEBs”(E&D, 1983, p.81)

Do movimento pela melhoria nos transportes, Ermínia engaja-se na luta pela regularização dos loteamentos clandestinos, na mesma região. Por intermédio das CEBs, coube ali algum apoio mais definido como, por exemplo, de advogados do Departamento Jurídico do Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito da USP, e de integrantes da Pastoral dos Direitos Humanos. Mas é rápida a constatação de que não há lugar, naquelas circunstâncias de trabalho, para hierarquias profissionais, estabelecidas por uma regulação qualquer, ainda que informalmente – por exemplo, o peso do diploma:

“Enfim, o conhecimento específico do profissional é insubstituível. Não se pode ignorar isso.

Agora, também não existe aquela atitude de ‘tal coisa eu não faço porque eu sou arquiteto’.

Para as pessoas você não é o diploma. Para os participantes do movimento você é uma

pessoa integral que pode ter habilidade para fazer uma série de coisas”(E&D, 1983, p.82)

Mas apesar do esforço de militância, do aporte de alguma estrutura por parte das CEBs e do engajamento do próprio povo na lida com suas agruras cotidianas, a universidade demoraria um tempo a mais para permeabilizar seus costados aos barulhos movimentistas do período:

“Nessa época, nem dentro da Universidade eu encontrei uma forma de fazer uma ponte

entre o que acontecia nos movimentos que já eram um espaço de organização política, de

discussão, de organização comunitária, e a própria Universidade”(E&D, 1983, p.82)

E, na sequência, menciona a iniciativa da Belas Artes:

“Hoje há experiências pioneiras em nossa área, como a da Escola de Belas Artes. Com o

laboratório eles estão junto a favelados participando mesmo de organização territoria e

projeto e construção de casas. Começam a existir algumas tentativas e é possível perceber

que a Universidade começa a se questionar sobre esse tipo de coisa”(E&D, 1983, p.83)

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Com certa clarividência, Ermínia conjetura quanto ao papel do profissional de ofício – seja ele qual for – no campo da luta por mínimos direitos cidadãos, atribuindo-lhe quase como obrigação o papel de “ampliar informações que foram produzidas nas universidades e que fazem parte de um debate restrito aos intelectuais de oposição” (E&D, 1983, p.83). Mas conclui, sem alimentar ilusão, reconhecendo o quanto era (e ainda é) difícil agregar novos profissionais que possam cumprir tal papel: o incontornável engajamento na seara cotidiana dos integrantes dos movimentos “faz com que o trabalho seja muito lento e sacrificado. Não tem aquela objetividade com que a gente está acostumado”(E&D, 1983, p.84).

Por uma outra via, José Fábio Calazans também estabeleceu, por volta do mesmo período, uma relação de trabalho – ainda que, aparentemente voluntário – com diversos movimentos, bastante circunscritos à sua base local, situados na periferia paulistana: projetando e construindo (teria ido morar no canteiro de obras) uma igreja no bairro do Aeroporto; prestando assessoria a mutirões de auto-construção em bairros da zona sul da cidade; ajudando na luta pela regularização de um loteamento clandestino no bairro do Campo Limpo, também em São Paulo; entre outros. Mas, segundo seu depoimento, parece que foi na 1ª Conferência Nacional da Classe Trabalhadora – o que ele denomina genericamente como CONCLAT (realizado entre os dias 21 e 23 de agosto de 1981, na Praia Grande, em São Paulo) – que lhe apareceu a percepção de que, “para retomar o trabalho de bairro com a população, a nossa participação profissional passaria pela participação no nosso sindicato, nos nossos institutos de categoria, etc.”(E&D, 1983, p.87).

Ora, este não é um mero detalhe: Calazans não deixa muito claro de que período está falando, não relaciona datas em seu depoimento e só é possível verificar indiretamente o contexto temporal de alguns eventos (como no caso do CONCLAT). Mas sabemos que, entre 1978 e 1979, ganhou forma, corpo e relativa vida efêmera a Cooperativa do Sindicato dos Arquitetos de São Paulo – uma iniciativa do SASP que pretendia articular profissionais para o atendimento de demandas populares – comento a respeito no final deste trecho do texto; da mesma forma, reverberaria, lá por volta de 1987 e ainda dentro do SASP (gestão de Nabil Bonduki), na guarida ao funcionamento de uma das primeiras ONGs voltadas para o atendimento aos movimentos de moradia, abrindo flancos para uma outra abordagem desse tipo de atuação profissional – agora com algum respaldo oferecido pela estrutura do sindicato da categoria26; além de, entre 1992 e 1995, na gestão de Ives de Freitas, a consolidação de uma representação específica para assessoria a movimentos populares, que 26 Trata-se do GAMHA – Grupo de Assessoria a Movimentos por Habitação, criado por Reginaldo Ronconi, Alexandra Reschke, Margareth Uemura, Ricardo Gaboni, Eulalia Portela Negrelos, Luis Kohara, entre outros, e pelo qual passaram diversos profissionais que passaram a atuar sistematicamente junto aos movimentos de moradia. Para um histórico do GAMHA, ver entrevista de Reginaldo Ronconi concedida a Angela de Arruda Camargo Amaral, em sua dissertação de mestrado Habitação, participação popular e cidadania (AMARAL, 2001).

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vinha sendo articulada desde a gestão de Nabil (pela qual fui responsável naquele período). Diferentemente da experiência de Ermínia – que dependia da universidade para reservar algum tempo de trabalho nas periferias, Calazans aponta para uma outra possibilidade de sustento da aproximação técnica-profissional das demandas dos pobres da cidade – que, sabemos hoje, não prosperou.

De qualquer modo, a atuação de Calazans – não fica claro se por intermédio do IAB ou do Sindicato, o depoimento não deixa isso claro – vai se concentrar no apoio aos moradores do Centreville: um conjunto financiado pela Caixa Econômica do Estado de São Paulo e que fora abandonado pela empreiteira antes de atingir a fase de acabamentos. O conjunto fora invadido por moradores de favelas vizinhas e, desde então, o trabalho de Calazans teria sido ‘inventar’ meios para os moradores conseguirem pagar pelas casas.

Já o arquiteto Luís Fingerman inicia sua atuação profissional em 1973, como estagiário da Prefeitura de Diadema. Desde o início, percebera as condições peculiares de reprodução urbana que se procedeu naquele município: conforme seu relato, chegara à conclusão de que praticamente a totalidade das moradias construídas na cidade era resultado de auto-empreendimento. Daí nasce a proposta de a administração municipal assumir o assessoramento técnico dessa população, ‘inventando’ o que, mais tarde, chamar-se-ia “auto-construção assistida”. Fora as implicações macro-estruturais da iniciativa (lembrando Chico de Oliveira, “transformar nossas cidades num inferno”), a proposta trazia um fundamento que pretendia transcender a liminaridade da iniciativa puramente burocrática:

“Primeiro fomos atraídos pelo aspecto técnico desta proposta de assessoria técnica. A partir

de uma reflexão crítica da sociedade a gente percebia que além dos aspectos técnicos do

projeto que tínhamos a oferecer, havia por trás uma prática política possível. [...]

Começamos a questionar o fato de sermos proprietários de um saber técnico, de existir toda

uma legislação para exprimir isso, seus aspectos corporativos, os privilégios que decorrem

do monopólio deste saber e consequentemente do jogo de dominação aí presente”(E&D,

1983, pp.90-91)

Ao papel do técnico, inevitavelmente sincronizado com as engrenagens da máquina pública, restavam sempre aderidas as idiossincrasias atribuídas ao ente maior: conquistar o reconhecimento de alguma independência do técnico em relação ao padrão do comportamento genérico da administração pública era, portanto, bastante improvável. Mas reconhecer este fato, não teria impedido a tentativa:

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“Tentávamos inverter a imagem que a população tinha e tem de um arquiteto ou de um

engenheiro da Prefeitura. Um fulano que tem o poder de embargar sua obra, sustar um

processo e criar uma série de impedimentos e problemas. [...] A novidade eram os

pressupostos teóricos que embasavam a gente nessa ação. Não usávamos do cargo e

função para exercer uma relação de poder, mas para liquidar com essa visão”(E&D, 1983,

p.91)

Não creio que algum embasamento teórico diferenciado, orientando uma ação também diferenciada, contribua efetivamente para mudar ou pelo menos aliviar a percepção negativa que a população tem do Estado – seja ele quem for27. Trata-se de uma relação de poder que não se estabelece no campo da atividade, no campo do discurso, da frase ou da proposição; e, sim, do enunciado. Parece-me que isso fica mais claro ao percebermos como que uma comunicação rizomática entre contextos tão distintos e aparentemente impermeáveis – como a escola, o sindicato e o poder público, por exemplo – acabam contaminando-se mutuamente, permitindo outras experimentações no modo de organização profissional para o atendimento das demandas dos sem-tetos.

A Cooperativa do Sindicato dos Arquitetos de São Paulo teve, como já comentei, uma breve duração: instalada no SASP, entre os anos de 1978 e 1979 – quando dirigido pelo arquiteto Jon Andoni Maitrejean (presidente) e Lucio Gomes Machado (vice)28 –, a Cooperativa teria reunido arquitetos como Alfredo Paesani e Jorge Oswaldo Caron29, além de Joan Villá, Rodrigo Lefevre e o próprio Lucio Gomes Machado. Segundo depoimento de Joan Villá, em entrevista concedida a Roberto Pompéia, a Cooperativa do SASP teria realizado uma primeira – e, pelo que consta, única – experiência de prestação de serviços de arquitetura para os pobres, em uma comunidade em São Miguel Paulista, cuja demanda teria sido organizada pelo pároco local – que anunciava, nas missas, a disponibilização do serviço, instalado no salão paroquial. Villá acredita que a experiência não progrediu por conta da pouca experiência dos técnicos que abraçaram a iniciativa – maior parte deles recém-formados e carentes de alguma formação técnica mais pragmática. Segundo Villá, Estes jovens arquitetos:

“Não tinham nenhuma preparação para poder responder a qualquer pergunta elementar:

quanto vai custar, quanto tempo vai durar, quanto eu preciso economizar por mês? Já no

27 Creio que faz diferença lembrar que Fingerman fala, neste momento (1983), como integrante da gestão do Partido dos Trabalhadores, que elegera o sindicalista Gilson Menezes prefeito da cidade de Diadema em 1982. 28 Trata-se da gestão 1977-1980 – ou seja, pouco antes de Maitrejean retornar às suas atividades como docente na FAU. 29 Que representavam, respectivamente como titular e suplente, o Sindicato na Federação Nacional de Arquitetos, a FNA, juntamente com Geraldo Vespasiano Puntoni e William Munford.

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sindicato, comentava-se a necessidade, a importância de se conseguir introduzir uma

disciplina de habitação popular ou algo do gênero no currículo das escolas que

existiam”(VILLÁ, 2003 in POMPÉIA, 2006, p.11)

Parece mais plausível, entretanto, o testemunho de Jorge Caron30, segundo o qual a experiência não teria vingado porque os integrantes da Cooperativa teriam percebido a impossibilidade de trabalhar com essa demanda no varejo. De qualquer modo e conforme Amanda Ruggiero – que se debruçou sobre o acervo de uma quantidade enorme de documentos deixado pelo Caron – parece evidente a existência de um estreito vínculo entre a proposta de ensino na Belas Artes, anos depois, e esta experiência da Cooperativa:

“A gênese desse processo [de criação de uma abordagem diferenciada de ensino de arquitetura] iniciou-se com a Cooperativa dos Arquitetos e extrapolou para o campo do

ensino. Alguns documentos sobre a formação e a proposta desta cooperativa foram

preservados em seu acervo pessoal, como reportagens, atas de reuniões e folhetos

utilizados para divulgação da cooperativa nos bairros populares. O objetivo deste grupo foi

estabelecer seu campo de trabalho na periferia, prestando serviços de assessoria técnica

para as construções, além de resolver problemas legais com regularização de plantas,

desmembramento de terrenos, escritura definitiva. A sede do trabalho foi o Sindicato dos

Arquitetos, localizado a rua Avanhandava, 126. Segundo Caron (1992), esta iniciativa foi

precursora do trabalho realizado posteriormente pela FEBASP”(RUGGIERO, 2006, p.64)

O que procuro evidenciar com estas conexões é como este momento aponta para um arco de eventos que alcançará, alguns anos mais tarde, uma configuração mais consolidada da prática e do ensino de arquitetura que daria conta daquilo que Villá relata como uma frequente preocupação no Sindicato, naquele período:

“Comentava-se a importância de se começar a pensar em outro tipo de arquiteto ou, se não

outro tipo, de ampliar a formação do arquiteto ou de conduzi-la mais para as efetivas

necessidades do país que a gente tem”(VILLÁ, 2003 in POMPÉIA, 2006, p.11)

O que considero relevante nos depoimentos e na iniciativa que aqui procurei resumir é como o enunciado insinua-se e afirma-se como a condição de existência dos próprios dispositivos: nas quatro experiências apresentadas pelos depoentes, aparecem já prenunciadas as parcas alternativas para a atuação dos arquitetos junto aos sem-tetos (ou respondendo a “demandas populares”): (i) ou este engajamento técnico-profissional, digamos assim, é sustentado por uma

30 Em conversa informal, pouco tempo antes de falecer.

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atividade paralela, porém não antagônica – como o caso do trabalho na universidade que, inclusive, pode eventualmente absorvê-lo; (ii) ou se dá sustentado por ou vinculado a uma agremiação autônoma de caráter laboral – como o sindicato, mas sem muita chance de consolidar-se por aí (até mesmo porque os sindicatos de profissionais liberais são estruturas híbridas que mal conseguem se manter); (iii) ou, então, resta a administração pública, desde que aberta – pelo menos em tese – aos conteúdos e comprometimentos políticos de uma atuação permeável a aproximações menos burocráticas com a população mais pobre31. As configurações de associação autônoma entre arquitetos e profissionais voltados para atividades de assessoramento técnico a sem-tetos, no formato das organizações não-governamentais, isto é, ‘sociedades civis sem fins lucrativos’ – aliás, um formato jurídico ainda bem pouco usual –, apareceriam com maior vigor apenas entre o final dos anos 1980 e 1990.

De qualquer modo, essa ambivalente e prolífera permuta de saberes entre técnicos e grupos sociais da periferia, permitia, naquele momento, pretender algumas expectativas um pouco mais animadas – algumas utopias, mesmo que ainda ‘sem lugar’. Mas, ímpetos laudatórios à parte, parece que o “poder da rua” deslocava-se, já em tempos menos agudos, para ordens diversas das organizações então estabelecidas – por sinal, desde antes mesmo da instalação do regime ditatorial, como vimos nas “precedências”.

31 Creio que poderíamos até considerar algumas possibilidades alternativas de articulação do trabalho do arquiteto com as “demandas populares”, além das composições aqui indicadas, considerando, por exemplo, o caso do “arquiteto da família” – uma opção por um modo de prestar serviços de projeto e acompanhamento de obras como profissional autônomo, que foi objeto de dissertação de Priscilla Silva Nogueira (NOGUEIRA, 2010); ou a atuação por intermédio de agremiações profissionais articuladas a programas de financiamento oficial, como os INOCOOPs da época do BNH; ou mesmo o trabalho mais isolado de técnicos sustentados por organismos internacionais, como a ASHOKA, por exemplo, que financia – ainda hoje – a atuação de “empreendedores sociais”. Mas o que aqui importa é colocar em relevo as alternativas de ação técnico-profissional que efetivamente iam aparecendo naquela época – não obstante as condições pouco propícias oferecidas pelo país naquele período – e que se estruturariam de forma sistemática e mais ou menos permanente.

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a virada dos anos de 1970 para os anos 1980

Depois do golpe militar de 1964 e até pouco mais de meados dos anos 1970, sindicalismo e movimentos populares mantiveram-se proscritos do cenário político brasileiro e – pelo menos aparentemente – nada ou quase nada deixava pistas quanto a alguma possibilidade do (re)surgimento de organizações populares e sindicais autônomas. É ao longo da década, entretanto, que vão aparecendo “novas configurações sociais assumidas pelos trabalhadores” (SADER, 1988, p.17) que, como vimos, a partir de alguns de seus segmentos, irão elaborar novas identidades, atualizar parâmetros de ação e articular, no período, aquilo que reconhecemos como movimento

social:

“A novidade eclodida em 1978 foi primeiramente enunciada sob a forma de imagens,

narrativas e análises referindo-se a grupos populares os mais diversos que irrompiam na

cena pública reivindicando seus direitos, a começar pelo primeiro, pelo direito de reivindicar

direitos”(SADER, 1988, p.26)

Por um lado, é neste contexto que surge a possibilidade de um Movimento de Moradia, como “modalidade particular de reelaboração das experiências dos trabalhadores” e que irá configurar “novos padrões de ação coletiva” (SADER, 1988, p.19). Nasce do movimento contra a carestia, a partir das militâncias das oposições sindicais e nos fundos das igrejas – que chegariam a abrigar mais de 100 mil Comunidades Eclesiais de Base em todo o país, desde 1973, conforme depoimento de um de seus criadores, Frei Betto32. E nasce, também, dos movimentos de ocupação de terras nas principais cidades brasileiras e das lutas pela instalação de água e luz, bem como pela adoção de taxas viáveis para manutenção destes serviços. No entanto, não se trata de um germinal que brota de nada – neste sentido, o depoimento de Calazans parece-me bastante elucidativo, numa outra parte do que apresentei anteriormente:

“No início todos esses movimentos estavam intimamente ligados com a Igreja.

Paulatinamente, eles foram ganhando autonomia, e isso a própria Igreja reconhece. Num

certo momento, os operários das fábricas começaram a ter um papel forte. Hoje

[depoimento de 1983], a interpretação que eu faço disso é a seguinte: na medida em que

era impossível uma organização nas fábricas, o trabalho do bairro passou a ser uma

contribuição importante para a formação de núcleos dos operários das próprias indústrias. E

veja só, muita gente pensa que a greve de 78-79 caiu do céu, caiu de pára-quedas. Em

vários textos, até em análises sociológicas, parece que 78-79 foi uma linha divisória. Na

32 Depoimento in www.mur.com.br/colunistas/fb.

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verdade 78-79 é um momento importante de inflexão do movimento político brasileiro, na

hora em que há uma certa libertação do movimento operário. Mas essas greves foram

também o ápice de dez anos de luta do povo brasileiro” (E&D nº 8, p.86).

Essa percepção do momento em que reaparecem os movimentos sociais, em nova forma e conjugando novos discursos, trouxe – para uma vertente da reflexão teórica e para além da expressão puramente militante – alvíssaras para o longo tempo de obscurantismo caserneiro, levando alguns analistas a considerar a instalação, ali, de um vigoroso vetor virtuoso de ascensão transformadora.

É certo, porém, que essa (re)nascença dos movimentos veio acompanhada produzindo suas próprias antípodas: há uma extensa literatura que não nos deixa esquecer que esta nova configuração dos movimentos sociais, lastreada por estes “novos padrões de ação coletiva”, na certa não escaparia de produzir suas próprias ambiguidades e contradições.

Se tomarmos os referentes um pouco menos entusiasmados com a primeira hora e um pouco mais ciosos pela manutenção de uma visada crítica, deparamo-nos de imediato com a clarividente percepção de um duplo sentimento em relação à experiência histórica deste país: por um lado, pesar-nos-ia um recalcitrante desconforto frente às manifestações de uma realidade violenta e injusta; por outro, preservaríamos a percepção de uma permanente necessidade de nos reconhecermos e nos fazermos modernos e civilizados. Mesmo que imersos em alguma positividade patente, estaríamos submetidos a um permanente “desconcerto”, segundo formulação de Roberto Schwarz (TELLES, 2001, p.1333).

Como diz Vera Telles, no contexto da insurgência dos “novos personagens”, a pobreza e as iniquidades teriam deixado de ser sumariamente escamoteadas como um lugar do outro, como paisagens “expurgadas do real”, para serem escancaradas e trazidas à cena pública justamente em decorrência do recrudescimento das lutas que promoviam. Por outro lado e em matriz atualizada, a centralidade da questão social e a promessa de sua superação (TELLES, 2001, p.14) reconfigurariam “velhas hierarquias” e recolocariam os mecanismos de exclusão das maiorias e de perpetuação da pobreza (p.53), ao mesmo tempo conformando-a como inelutável subproduto de nosso ingresso na modernidade. Isto é, os dilemas urbanos, a inexorabilidade da subsunção à violência cotidiana, à concretude da pobreza etc. seriam subprodutos incontornáveis de nosso ingresso na modernidade e, paradoxalmente, índices do grau alcançado por ela.

33 Vera da Silva Telles inicia “Pobreza e Cidadania”, de 2001, lembrando essa formulação de Roberto Schwarz, em seu “Ao vencedor as batatas”.

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Ora, como pretendo demonstrar, parece-me que boa parte da própria literatura que lida especificamente com o assunto também sofre dessas esquisitices “desconcertantes”: a irrupção dos movimentos sociais no final dos anos de 1970 promoveram a sólida convicção que adentrávamos uma nova era, onde as instâncias de organização popular e os novos partidos de esquerda pareciam conduzir-nos para uma inédita concepção de sociedade democrática, formulada a partir de mecanismos de gestão e de democracia direta que reestruturariam o Estado brasileiro, instaurada “por um novo modo de governar”. Mas, ao mesmo tempo – e às vezes os mesmos autores – acabavam cedendo à dureza dos fatos, percebendo que, por mais que se fizesse, a novidade se esvaia em si mesma. E em meio a taxativas afirmações quanto à “morte dos movimentos sociais”34 – ou, considerações um pouco menos categóricas, argumentando que alguma letargia se devesse a um determinado processo de “refluxo”35 – ou, “a despeito da matança acadêmica”36, a reafirmação de sua vitalidade, restava-nos a impressão de que, o que se esperava – tanto de um lado como de outro – era um adensamento cada vez maior e massivo, com amplas mobilizações populares que nos levariam a patamares superiores e plenos da ordem democrática ideal. De aí – e de pleno acordo com Gabriel Feltran:

“Muitas das previsões feitas sobre eles, tanto as mais otimistas, que vislumbravam estar

nesses novos sujeitos as principais virtudes transformadoras das sociedades, quanto as

mais fatalistas, que rapidamente decretaram sua “morte” ao primeiro sinal de fraqueza,

viram-se frustradas. [...] Assim, a cada nova tentativa de inferência mais ampla sobre o

papel desses sujeitos históricos, tão plurais e não-lineares, o que se continua a fazer é uma

aposta, mesmo que ainda no campo analítico”(FELTRAN, 2005, p.31 – o grifo é meu)

Não seria o caso aqui de prolongar a discussão quanto à gênese dessa insurgência dos movimentos sociais e quanto aos desassossegos frente aos desacertos de suas implicações atuais, há trabalhos que já se dedicaram de modo mais adequado ao tema37. Introduzo este comentário apenas para situar, de antemão, um primeiro argumento – e que também não é novidade: ao

34 É conhecida a posição, já em sua produção mais recente, de Ruth Cardoso à respeito dos movimentos sociais. Outras indicações dessa convicção – que afirma a “morte dos movimentos sociais” – são citadas em nota por Gabriel Feltran como, por exemplo, a fala de Alain Touraine no XX Congresso Internacional da Latin American Studies Association, em Guadalajara, em 1997. 35 Em linhas gerais, é o que faz quase toda uma perspectiva de abordagem teórica, que estrutura linearmente uma gênese, ascensão e queda (ou “refluxo”, como diz Gabriel Feltran) dos movimentos, situadas entre as décadas de 1970 e 1990 (FELTRAN, 2005, pp.32-33). 36 Trata-se de uma asserção de OTTMANN (1995), citado em nota de FELTRAN (2005, p.37). 37 De pronto, o trabalho de Gabriel Feltran traz uma primorosa leitura e sistematização de toda esta literatura. Penso que é uma forma didática, digamos assim, de abordar esta produção, para posteriormente aprofundarmo-nos nas especificidades de cada vertente do debate (FELTRAN, 2005, particularmente a Introdução). De qualquer forma, parece-me que, para efeito de identificação do campo, vale a indicação, além do livro de Sader, também os trabalhos de PAOLI (1995), SCHERER-WARREN & KRISCHKE (1987), além de DOIMO (1995).

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aparecerem, os movimentos sociais em geral e o Movimento de Moradia em particular, já trazem consigo os códigos que instruirão o formato de seus múltiplos versos e avessos. E isto decorreria – este, o argumento – do fato de que eles advêm de um campo ainda sem normatividade alguma, ainda não parametrizado ou descrito teoricamente, de lutas e demandas sociais congenitamente atreladas às circunstâncias de reprodução material de existência38 – por isso guardariam uma certa distância das modalidades de enfrentamento com as quais o Regime se entendia (grupos de luta armada, focos e aparelhos subversivos, literatura ou produção artística com perigoso conteúdo político, articulações grevistas no ‘chão de fábrica’ etc.). E por isso também as ações do aparato repressivo mais agressivo, em boa medida passaram-lhes ao largo – ainda que não isentos do olhar desconfiado dos vigilantes do Regime.

Provavelmente também é este o contexto que promove as tensões enunciadas no início deste texto que atravessam prática de ofício e militância política – reverberando uma polarização, já bastante surrada pela análise teórica, entre “política microcósmica e macroestrutural”39. Ora, uma tendência, de orientação pragmática, afirmaria que só é possível a atuação verdadeiramente política através e por intermédio de organizações conformadas para tal exercício (partidos políticos, mandatos parlamentares ou mesmo instâncias da administração pública, em certos casos). Esta vertente excomunga qualquer possibilidade de “politização do cotidiano”, parcelando não só a análise, como na abordagem teórica dos movimentos, mas a própria atividade de intervenção. Se me apresento como profissional, meu ativismo ou engajamento político nada tem a ver, objetivamente, com minha atividade técnica. Dessa forma, esse arranjo acaba produzindo algo parecido com o que Sader chama de “esquizofrenia ideológica” (SADER, 1988, p.173), onde parcelas da existência isolam-se

38 O texto de Eder Sader já enuncia isso com uma certa evidência – principalmente quando aborda seus estudos de caso, adentrando no universo da casa e relatando as dinâmicas cotidianas de provisão da família. Também Gabriel Feltran lembra KOWARICK, referindo-se às “necessidades cotidianas” como “mola propulsora” dos movimentos populares, ao analisar as tendências da literatura sobre movimentos sociais nos meados dos anos 1980 (FELTRAN, 2005, p.40). Diz Gabriel: “O que fica marcado é que, se as práticas dos movimentos no início de 1980 tornavam necessário abandonar alguns dos pressupostos marxistas mais ortodoxos, na medida em que se consideravam como válidas politicamente lutas que não se centravam na conquista e reconfiguração do Estado (que centralizaria as contradições de classe), aparecia um novo risco e armadilha às análises que se seguiriam. A tentação, na qual alguns autores caíram, foi a de levar a análise do político à direção oposta, de modo a pensar a política como restrita apenas à textura das relações cotidianas, à sociabilidade primária. Transformações moleculares nesse âmbito abririam caminho para alterações estruturais. [...] Essa análise tendia a considerar o poder como homogeneamente espalhado pela sociedade, ignorando por vezes a especificidade e a potência das estruturas de poder, e do próprio poder estatal, para a análise dos movimentos sociais e de seus impactos políticos” (FELTRAN, 2005, pp.38-39). Se esta abordagem traz problemas para a reflexão teórica, parece-me que fica claro, conforme os depoimentos que registrei anteriormente, o quanto ela também compromete a prática: a crença nas “transformações moleculares” sempre, de alguma forma, permeou as ações dos técnicos e profissionais que se dirigiam às periferias. Muitas vezes, a frustração resultante acabava justificando posturas reativas, justamente oriundas de alguns agentes reconhecidamente ‘combativos’. 39 Novamente, ver sobre esta discussão, FELTRAN, 2005, p.39.

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profilaticamente, procurando evitar a contaminação entre modos do ser. Decreta-se, assim, a impossibilidade irrrevogável de qualquer amálgama entre Técnica e Política40.

De forma quase recorrente, aquele trecho de Sader que se refere “à novidade que eclodia...” aparece inúmeras vezes na prolífera produção acadêmica sobre movimentos sociais – e, particularmente, sobre movimentos de moradia. Mas poucos esclarecem: qual era a novidade? Por certo, não seria a eclosão por si só – e seria justamente essa novidade, colocada em relevo por Sader, que estabeleceria alguma solução – pelo menos provisória – para o impasse promovido pelas posturas pragmáticas e teóricas a que me referi anteriormente. Isso porque Sader se volta para antes da pura atividade – justamente, para as raízes que desvelam o enunciado:

“O trabalho brilhante de Eder Sader (1988) se torna referência no estudo desse período por

constatar a relevância política da efervescência movimentista das periferias naquele

momento. O autor percebe nessa efervescência uma reelaboração das matrizes da

esquerda sindical, católica progressista e marxista, de tal modo que se criam novos

discursos e práticas políticas populares, que fazem aparecer esses movimentos sociais

como novos personagens da cena pública” (FELTRAN, 2005, p.40)

Com efeito, esta reelaboração encontra lugar no seio de “agências”, como denomina Sader, que, ao experimentarem um certo “descolamento com seus públicos respectivos”, investem na constituição de outros canais para “reatar suas relações” (SADER, 1988, p.144). E seria nessa operação que acabariam promovendo, de um lado e de outro, a reconfiguração das matrizes discursivas e reelaborariam as “representações sobre os acontecimentos e sobre si mesmos”, como sujeitos envolvidos nas lutas sociais (p.142)41.

São, particularmente, três as instâncias que, em crise, conforme identifica Sader, “abrem espaço para novas elaborações”: as Comunidades Eclesiais de Base – as CEBs; a militância de uma “esquerda dispersa” (SADER, 1988, p.167) – que buscava integrar-se “à vida proletária, indo trabalhar nas fábricas ou na lavoura e morando em bairros populares” (p.172), pretendendo a articulação de um acúmulo ‘basista’ para o adensamento de energias transformadoras e, em autêntico estilo vanguardista, levar os trabalhadores à tomada de alguma consciência de classe e da exploração que os submetia; e, por fim, o “novo sindicalismo” que reagia, a seu modo, às novas implicações impostas pelo Regime, constrangedoramente restritas à meras funções assistenciais.

40 Comentando com Nabil Bonduki a minha pretensão neste texto, ele argumentou que essa era uma “questão já resolvida”. Contudo, dados os estragos que esta postura ainda vem causando, dou-me o direito de não concordar com ele. 41 Isto é, com o cuidado de não distorcer a acepção de Sader: o ‘sujeito’ da “reelaboração” não é a “agência”, solitariamente, mas o campo de enfrentamento entre sentidos – que, logo adiante, aparecerá como “campo político”.

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Ora, o que estava em jogo – e, para efeito de minhas argumentações, dialogo mais uma vez com Gabriel Feltran, de quem empresto a noção – era a conformação de um “campo político”, de um “terreno determinado”, um “campo discursivo e público que, quando presente, facilita a aparição pública, e portanto política, dos sujeitos sociais (FELTRAN, 2005, pp.16 e 211 e ss.). Dessa forma, parte-se do pressuposto de que se tratava de “personagens que forjaram sua [própria] entrada em cena” (FELTRAN, 2005, p.211 – a inserção grifada é minha). Além disso, não se tratava de confinar esta cena à paisagem então estabelecida: a questão era alargar a noção de democracia e política. Conforme o autor, o que aparecia em jogo naquele momento, num primeiro plano, era uma noção particular de democracia e, ao fundo, divergentes concepções de política – estrito senso. Ora, se levarmos para o campo mais pragmático do assunto – e do modo com a coisa aparecia –, tratava-se de uma disputa que acabava estabelecendo uma oposição entre noções como democracia direta e democracia representativa, entre práticas estruturadas a partir de uma prescrição de autonomia objetiva (isto é, de fato e não de jure) e práticas decorrentes de negociações consensuadas e mediadas pela tecnoestrutura estatal42. Se ajustarmos as lentes e as ferramentas aos processos de produção da moradia: ou iniciativas realizadas por através da intermediação do Estado, ou autogestionariamente conduzidas pelas organizações populares – claro que sempre em regime de autonomia relativa43.

Ora, se o que entra em campo é a disputa por uma formulação nocional, então recuamos para um passo antes do ato ilocucionário propriamente dito, isto é, para antes do ponto de formulação do próprio discurso, para antes do argumento e da proposição – recuamos para o campo do enunciado, ali onde se gesta toda a força ilocucionária. Daí uma noção de política mais ampla – talvez também exacerbando Gramsci, para além de Marx – que parte não só para um alargamento da política inscrevendo-a “no conjunto da sociedade e na textura das relações cotidianas”, não mais adstrita “ao conjunto dos aparatos ou instituições que caracterizam um regime democrático-liberal”, mas também remetendo-a para o momento do enunciado44 - o a priori por onde é possível circular,

42 É claro que não se trata de uma oposição binomial, como entre ‘preto’ e ‘branco, justamente por se tratar de ‘noções’ – inteiramente matizadas e sem contornos absolutos: configuro a oposição apenas como recurso analítico. 43 Os movimentos em geral e o Movimento de Moradia em particular nunca escaparam da mediação do Estado, seja por conta de seu reconhecimento jurídico – e legitimação frente à ordem vigente –, seja em virtude de tê-lo como fonte de recursos. O que não me parece razão que impeça classificarmos a ação movimentista como ‘autogestionária’. Caso contrário, seria entrar em acordo com um argumento que já ouvi – e de um prócer reconhecido – de que a classe média, ao contratar sua própria mão-de-obra e administrar toda a construção de sua própria casa, também estaria fazendo “autogestão”. 44 Conforme Agamben: “Com uma lúcida consciência das implicações ontológicas de seu método, Foucault escreve: ‘O enunciado não é uma estrutura [...] mas uma função de existência’. Por outras palavras, o enunciado não é algo dotado de propriedades reais definidas, mas pura existência, a saber, o fato de que certo ente – a linguagem – tenha lugar. Perante o sistema das ciências e a multiplicidade dos saberes que definem, no interior da linguagem, frases, porposições dotadas de sentido e discursos mais ou menos bem formados, a arqueologia reivindica como território próprio o puro fato de tais proposições e tais discursos terem lugar, ou melhor, o fora da linguagem, o fato bruto da

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num “campo de coexistências” (por onde se estabelecem relações e não objetos)45, alguma relação entre técnica e política.

Um pouco na linha de Calazans, quando fala do modo como irrompem os eventos do final da década de 1970, defendo, portanto, interpenetrações – não só a constituição de um campo político ‘dedicado’ e formatado a partir de noções congêneres46 – mas sim de um “campo de coexistências”, em sentido foucaultiano, onde uma série de agenciamentos díspares, diversos, antagônicos até47, acabam se adensando no ritmo de interpenetrações que se estabelecem, como amálgamas improváveis, a contrapelo da expectativa, não só da crítica teórica, mas também da própria estrutura proposicional constituída ou da função ilocutória estabelecida, isto é, da lógica e do discurso, vigentes ou em construção48. Porque só neste campo poderíamos argumentar alguma fungibilidade entre Técnica e Política: pelos enunciados que as instruem como práticas discursivas49.

existência” (AGAMBEN, 2008, p.141. Na minha 6ª edição brasileira do original de 1969, a citação de Agamben encontra-se em FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002, pp.98-99). 45 Segundo Foucault: “A configuração do campo enunciativo compreende, também, formas de coexistência. Estas delineiam, inicialmente, um campo de presença (isto é, todos os enunciados já formulados em alguma outra parte e que são retomados em um discurso a título de verdade admitida, de descrição exata, de raciocínio fundado ou de pressuposto necessário, e também os que são criticados, discutidos e julgados, assim como os que são rejeitados ou excluídos); nesse campo de presença, as relações instauradas podem ser da ordem da verificação experimental, da validação lógica, da repetição pura e simples, da aceitação justificada pela tradição e pela autoridade, do comentário, da busca das significações ocultas, da análise do erro; essas relações podem ser explícitas (e, por vezes, formuladas em tipos de enunciados especializados: referências, discussões críticas) ou implícitas e introduzidas nos enunciados correntes” (FOUCAULT, 2002, p.64 – grifos do autor). 46 Parece-me sintomático quando Gabriel Feltran, ao referir-se à luta empreendida pelos moradores da favela Maria Cursi contra um projeto Cingapura, no período da gestão Maluf/Pitta (1993/2000) – identifica como a “argumentação técnica incluía a crítica à baixa qualidade dos prédios” e como “essa argumentação toda, com muito mais detalhes, estava na ponta da língua de Silmara”, uma das principais lideranças do Movimento em Defesa do Favelado – sobre o qual comento mais adiante (FELTRAN, 2005, pp.296-297). Quer dizer, o agenciamento das referências que contribuem para a constituição e definição de um campo político não ser refere exclusivamente a uma “luta por direitos e cidadania” em abstrato, mas assenta-se solidamente em questões bastante concretas e que advêm de outras inúmeras articulações da existência: como o conhecimento técnico que, reelaborado, vira argumento de uma liderança popular. 47 “Um enunciado pode ser o mesmo, manuscrito em uma folha de papel ou publicado em um livro; pode ser o mesmo pronunciado oralmente, impresso em um cartaz, reproduzido por um gravador; [...] O regime de materialidade a que obedecem necessariamente os enunciados é, pois, mais da ordem da instituição do que da localização espaço-temporal; define antes possibilidades de reinserção e de transcrição (mas também limiares e limites) do que individualidades limitadas e perecíveis” (FOUCAULT, 2002, pp.118-119 – grifos do autor). 48 “Chamamos de discurso um conjunto de enunciados, na medida em que se apóiem na mesma formação discursiva; [...] é constituído de um número limitado de enunciados para os quais podemos definir um conjunto de condições de existência” (FOUCAULT, 2002, p.135); e, “Finalmente, o que se chama de ‘prática discursiva’ pode ser agora precisado. Não podemos confundi-la com a operação expressiva pela qual um indivíduo formula uma idéia, um desejo, uma imagem; nem com a atividade racional que pode ser acionada em um sistema de inferência; nem com a ‘competência’ de um sujeito falante, quando constrói frases gramaticais; é um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou lingüística, as condições de exercício da função enunciativa” (FOUCAULT, 2002, p.136). 49 A razão pela qual tomo a Técnica como uma prática discursiva, tem fundamento na noção que desenvolvo em minha tese de doutorado. Peço ao leitor que aguarde, nas considerações finais, uma justificativa do porquê tomá-la com este sentido.

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Creio que a abordagem teórica, por vezes, limita-se ao tempo e espaço delineado objetivamente pelos movimentos de massa – ruidosamente contestatórios e declaradamente afrontando pilares da ordem vigente – deixando escapar algumas configurações locais, esporádicas, episódicas, fora do eixo dos embates mais visíveis, mas que denotam claramente a imagem do pedregulho que, renovando as energias, avança em arcos, saltando numa lâmina d’água – até mergulhar para o fundo que, em comum, acolhe a todos aqueles pedregulhos que já deixaram a superfície. Se o arranjo dos anos 1990 acabou sequestrando as energias dessas iniciativas – com a radical “onguização” de quase todas elas –, isso não significa que não tenham cumprido uma trajetória significativa e contribuído definitivamente para pelo menos a alteração do regime de forças local, numa primeira instância, mas que repercutiram no conjunto das forças que contribuíram para o processo de redemocratização do país.

Ensaiaram-se, então, ao longo dos anos 1970 até o início dos 1980 – algumas se mantêm até hoje –, uma série de experiências localistas que – como já me referi na introdução deste texto – fariam germinar alguns sinais que foram paulatinamente compondo o universo que apenas se adensaria alguns anos depois. Fora, obviamente, a circunstância das CEBs – que, sob a proteção da Igreja Católica e sob os auspícios da Teologia da Libertação, nasceram relativamente massivas já em 1973 e se fizeram atravessar um dos períodos mais dramáticos da ditadura militar –, relato apenas dois exemplos que, pela proximidade que mantive com alguns de seus protagonistas, parecem-me confiáveis para a defesa de meu argumento.

A cidade de Lages, em Santa Catarina, foi administrada, entre 1977 e 1982, por Dirceu Carneiro, do antigo MDB. Para o período em questão, acredito ser esta uma das mais significativas experiências de participação popular na condução da administração pública municipal (apesar de algumas notícias de iniciativas em outras esparsas paragens). Durante sua gestão, Dirceu teria promovido uma série de inovações administrativas – articulando processos de consulta popular para a elaboração do orçamento municipal – e tecnológicas – empregando sistemas alternativos de tratamento de esgotos e de captação de energia,

“programas de saúde comunitária, construção de casas populares, estradas e escolas. [...]

A principal estratégia concentrava-se na democratização das relações de poder internas e

externas, através da criação de mecanismos de participação popular como Conselhos

Populares, responsáveis por deliberar e implementar as políticas públicas da cidade”

(QUINTEIRO, 1991, p.23).

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Marcio Moreira Alves, em um pequeno relato, realizado a convite de Maurício Tragtenberg e publicado em 1980, faz uma descrição bastante engajada da gestão “A Força do Povo” 50, perpassando as diversas frentes de trabalho, em praticamente todas as instâncias de atuação do poder público municipal: desde novas modalidades de articulação para a prática administrativa municipal, instituindo o ‘intendente do distrito’ como uma figura intermediária entre a prefeitura e a comunidade local, representada pela sua Associação de Bairro; passando pela provisão da moradia, quando por primeiro estruturou-se um ‘banco de materiais’, onde a provisão dos componentes cerâmicos – tijolos e telhas – era sustentada por uma olaria movida a gasogênio (conheci e trabalhei com o arquiteto que assessorava estes projetos de – como chamávamos na época – ‘tecnologia alternativa’); até a assessoria ao Núcleo Agrícola, ao qual era oferecido suporte técnico e material para a produção hortifrutigranjeira e agropecuária; além das iniciativas na área da educação, articuladas com as Associações de Pais e Mestres, ou na área da saúde, estabelecendo o funcionamento dos postos de saúde em regime de ajuda mútua.

Em outras paragens, no norte do antigo estado de Goiás – hoje Tocantins –, na cidade de Porto Nacional, às margens do rio que batizou o novo estado, um grupo de médicos – paulistas em sua maioria –, articulados em torno de uma concepção de saúde como prática política – comprometidos com a ideia de que a saúde era e é uma questão pública –, o grupo teria ido buscar uma oportunidade de realizar um trabalho que atendesse a esta concepção. Aproveitando as vagas num hospital estadual, a Unidade Mista de Saúde de Porto Nacional, o grupo instalar-se-ia, em 1968, fundando, no ano seguinte (10 de junho de 1969), a organização não-governamental Comunidade de Saúde, Desenvolvimento e Educação – a COMSAÚDE –, passando a atuar num amplo espectro de atividades, não só na área da saúde e correlatas, como também nas áreas da cultura e do desenvolvimento comunitário.

Em 1980, quando conheci a entidade, trabalhava-se ali em programas de saúde preventiva, educação nutricional, cuidados básicos com a salubridade da moradia – cheguei a dar umas palestras sobre ventilação natural e conforto da moradia para o equivalente a ‘agentes de saúde da família’, uma coisa que só apareceria anos depois – etc. Mas, para além da atividade fim, a organização dedicava-se também a alfabetização de adultos e realização de cursos profissionalizantes – sempre instruídos a partir das referências paulofreireanas –, além de abrigar a sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, a ASSOCIARA – uma associação de artesãos locais que organizava toda a produção em regime de autogestão –, grupos de música e teatro e 50 Ao seu mandato, Dirceu daria o nome de “A Força do Povo” – um dístico que assumiria o título de um longa de Tetê Morais, de 1982, sobre a administração pública da cidade catarinense no período em questão. O livro: ALVES, M. M. “A força do povo: democracia participativa em Lages”. São Paulo: Brasiliense, 1980.

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instalações de apoio para comunicação popular – com a presença de um casal de artistas gráficos que, a partir da estrita economia de meios, auxiliava na propagação das informações, tanto na cidade como entre ela e as comunidades mais distantes.

Descrevendo assim, o trabalho pode assemelhar-se com qualquer dessas iniciativas apoiadas por qualquer conglomerado financeiro ou institutos bancados pelas poderosas empreiteiras de hoje – e sempre. Mas em 1981, numa de minhas visitas a Porto Nacional – fiz isso ao longo de alguns anos –, ajudei a desenhar cartazes, imprimir camisetas e produzir material que, certamente, seria considerado ‘subversivo’ naquela época. Além disso, a COMSAÚDE estava metida até o pescoço com a ocupação de uma grande fazenda na região – a fazenda São João –, prestando apoio aos ocupantes, auxiliando na defesa das lideranças perseguidas e acuadas, disponibilizando equipamentos, veículos e recursos gráficos para produção de material de comunicação – além do apoio pessoal e profissional.

Lembro que, numa dessas minhas visitas, presenciei, por primeira vez, uma reunião de bairro, promovida para a discussão sobre a criação de “um partido popular, criado pelo povo e para o povo” – isso dito por uma lavadeira. Nesta reunião, esta mesma lavadeira me ensinaria coisas sobre a composição do IPI, do ICM (hoje ICMS), entre outros impostos e taxas, como nunca havia antes aprendido.

É claro que a entidade sofria perseguições, que a atormentavam diuturnamente – sob diversos formatos, asseclas do Regime, simpatizantes ou militantes, viviam às turras com os médicos, profissionais e agentes comunitários da COMSAÚDE. No entanto, havia ali uma boa dose daquilo que venho procurando deixar em relevo: não sei se por conta do isolamento e distância dos grandes centros (ainda não existia o estado de Tocantins e, portanto, não existia a capital Palmas, que seria instalada a 70 quilômetros dali, algum tempo depois), não sei se pela vinculação a ordens institucionais legalmente reconhecidas (tipo o hospital) – estabelecera-se ali um arranjo que escapava às garras mais afiadas do Regime. O certo é que a COMSAÚDE existe até hoje – e agora, ironicamente, emparelhada com a miríade de organizações que, como diz Gabriel Feltran – mais uma vez – reúnem “senhoras da alta sociedade, herdeiros de banqueiros e empresários filantrópicos” e que passam a ser “considerados pelo Estado brasileiro como interlocutores ‘legítimos’, ao menos mais legítimos que os movimentos populares, na representação dos interesses dos pobres no interior do sistema político” (FELTRAN, 2005, p.52)51.

51 A organização mantém um sítio, cujo endereço é: http://comsaude-to.webnode.com.br/. Neste sítio, encontramos formulações que, para quem não conhece a entidade, pareceria o discurso de qualquer ONG ligada a qualquer poderoso instituto empresarial: “Ao completar 40 anos a COMSAÚDE realiza diversos projetos e ações, elencados em 4

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Quando falo em adensamento – e seguindo a pista deixada por Calazans –, insisto na ideia de que os grandes eventos populares não decorrem de um espoucar localizado, espontâneo e diacrônico, de um regime pulsões sem uma origem definida. Pelo contrário, creio que o que chamo de ‘adensamento’ é exatamente a composição dessas infinitas iniciativas pequenas e localizadas que, pelas inúmeras veias que compõem os vasos comunicantes do corpo social, acabam congregando energias que afloram nos grandes eventos – muitas vezes em lugares inesperados ou em situações pouco prováveis.

Como exemplo, são ações como estas que vão reverberar, inclusive, na forma como se articularam as instâncias de constituição dos movimentos sociais, até em suas bases nacionais. Só que, ao elevar-se a estas instâncias, aquilo que respondia ao regime particular, passa a responder às exigências do regime geral – e este é um dado importante para a construção do meu argumento.

Ouvia falar, na época de seu aparecimento, sobre a ANAMPOS (Articulação Nacional de Movimentos Populares e Organizações Sindicais): criada a partir de um encontro entre sindicalistas, igreja e lideranças políticas em João Monlevade (MG), em janeiro de 1980, a ANAMPOS abrigaria uma Pró-Central dos Movimentos Populares (13 anos depois, em outubro de 1993, seria criada a Central de Movimentos Populares – a CMP), nascida meio-irmã da Pró-Central Única dos Trabalhadores – a Pró-CUT, gestada no 1º CONCLAT de 1981 e que viria instituir-se como primeira forma do que viria a ser a CUT (criada em agosto de 1983) e que também acabou articulando a própria fundação do PT (fevereiro de 1980). Acho relevante ressaltar que as duas Pró-Centrais nasceram juntas, mas já definidas como dois campos distintos de articulação política.

Tomo o fato apenas para situar a idéia de um Movimento Popular que se organiza a partir de uma base fragmentada e difusa, agremiando infinitas articulações diversas entre si e em torno de demandas díspares e por vezes antagônicas – dentre elas, aquelas que se estabeleceram em torno da questão da moradia, atravessadas por um sem número de orientações conflitantes, como veremos adiante –, mas que se propõe, no momento em que os mecanismos de poder que regulam a relação entre capital e trabalho se realinham, já em seu nascedouro, separado do Movimento Sindical. Mais adiante, uma certa primogenitura do Movimento Sindical acaba se afirmando em relação aos Movimentos Populares – talvez pelo fato de a CUT ter alcançado sua institucionalização

setores prioritários: Saúde, Educação, Articulação Popular, Comunicação e Cultura. Todos esses projetos tem se destacado pelo apoio e incentivo ao desenvolvimento local das comunidades pobres e ações de inclusão social, valorização da cultura e promoção da qualidade de vida. Prioriza o público excluído do processo econômico, social e político, sendo espaço de articulação e organização social, atuando como entidade incubadora de diversas iniciativas sociais”. Há também, para o caso, uma pequena publicação que conta a experiência, a partir do olhar de um casal de médicos que participava do grupo original, Eduardo Manzano e Heloisa Lotufo Mazano (MANZANO & MANZANO, 2005).

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bem antes da CMP. As diferenças, substantivas ou não, acabarão produzindo reflexos na forma das tensões que, no interior da relação entre Movimento Sindical e Popular, comporiam binômios de oposição como ação direta x ação mediada ou habitação x salário ou ainda autonomia institucional x atrelamento estatal. Rosangela Paz, durante alguns anos assessora do Movimento de Moradia como técnica vinculada à FASE (Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional), numa entrevista para Ana Amélia da Silva em publicação do Instituto PÓLIS, comentando a necessidade de uma articulação do Movimento de Moradia com o Movimento Sindical, diz: “Parece engraçado, mas o sindicalista não se vê e não fala enquanto morador”(SILVA, 1994, p.123)52. Por outro lado, eu diria que um engajado integrante do Movimento de Moradia não se via e nem falava (e ainda hoje não se vê e não fala) enquanto pai que precisa de escola para os filhos, enquanto trabalhador que precisa de emprego, enquanto ser humano que precisa de assistência à saúde etc. etc.53

Mesmo dentro do Movimento de Moradia, tomado assim genericamente, aparecem vertentes que recolhem e ajuntam referências que acabam, eventualmente, produzindo antagonismos praticamente inconciliáveis. No entanto, algum daqueles ‘vasos comunicantes’ acaba estabelecendo alguma possibilidade mínima de articulação entre as partes em conflito deflagrado – com era o caso das relações entre o Movimento Nacional de Luta por Moradia – o MNLM –, uma organização criada à sombra da Pró-central de Movimentos Populares, e a União de Movimentos por Moradia – a UMM –, visceralmente articulada a partir dos movimentos paulistas e, particularmente, paulistanos. Num dos primeiros empreendimentos construídos por ajuda mútua na região da grande São Paulo e que já abrigava alguns fragmentos daquilo que se defenderia mais adiante como autogestão – a Vila Comunitária, em São Bernardo do Campo –, ali, uma de suas principais lideranças, José Albino de Melo, também viria tornar-se um dos principais articuladores da Pró-Central de Movimentos Populares. Mineiro, “bom de negociação”, tive a oportunidade de conhecê-lo em um encontro nacional de diversas instâncias do Movimento de Moradia em Ipatinga, articuladas em torno da formulação do Fundo Nacional para a Moradia Popular – o FNMP. Zé Albino vai, mais para frente, desempenhar papel fundamental na articulação entre partes historicamente inconciliáveis –

52 Esta postura vai aparecer mais tarde, com muita clareza, quando discutimos com a CUT o apoio à criação do Fundo Nacional de Moradia Popular – o FNMP – sobre o qual comentarei mais adiante. 53 Um aspecto que considero importante, quanto a essa discussão entre base popular com vínculo sindical e demanda por uma política pública para produção de moradia popular, é o fato de que o processo todo de produção de moradias experimentado e implantado pelas cooperativas uruguaias é adotado aqui no Brasil como modelo, só que sem o aspecto do vínculo com a base laboral: sindicatos e cooperativas habitacionais aparecem juntas em boa parte das situações uruguaias. No Brasil, já ouvimos dirigentes sindicais afirmando: “Habitação? Habitação é salário!”. Obviamente esse fato é determinante se considerarmos alguma possibilidade de reprodução de modelos: ou se reinventa a prática ou as distorções decorrentes da diferença de contextos implicará numa espécie de incompatibilidade estrutural – que, talvez, tenha sido determinante na consecução, aqui, da própria prática.

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Movimento Nacional de Luta por Moradia e a União de Movimentos de Moradia de São Paulo (que depois se estendeu em nível de articulação nacional) – para viabilização concertada do FNMP e, posteriormente, da própria CMP. Talvez pelo fato de Zé Albino já possuir, em sua bagagem, a experiência da produção da própria moradia, permitia-lhe transitar – e ser aceito – entre a teia hegemônica que os movimentos paulistas de moradia foram, aos poucos, tecendo54.

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Assim, formulando ou sendo formulado, beligerando ou compondo, “reivindicando o direito de ter direitos”, um ainda incipiente Movimento de Moradia – aquele sujeito, conforme a formulação foucaultiana – começa a se articular na cidade de São Paulo (e também na região do ABCD e de Osasco) a partir de processos de ocupação de terra que instituíram, sob certos aspectos, padrões diferenciados de ação coletiva que determinariam a tônica das relações, não só com o poder público, como também entre arquitetos e sem-tetos naqueles primeiros anos – é o que procuro tramar no contexto seguinte.

54 Ao pesquisar o paradeiro de José Albino e pelas notícias de 27 de março de 2009 do informativo eletrônico “Notícias do Município” (uma publicação oficial do município de São Bernardo do Campo, nº1498). Nádia Somek e Ives de Freitas também aparecem como integrantes, naquele momento, da gestão de Marinho – Ives de Freitas vai ocupar posição importante no meu relato, mais adiante.

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Ao longo dos anos de 1980, já em terras paulistanas

pelo lado dos sem-tetos

É significativa a distinção entre o movimento de moradia vinculado às favelas e o de ocupações. Apesar deste último nascer do primeiro, as questões foram, aos poucos, ganhando posicionamentos distintos – talvez em virtude mesmo da tipologia dos problemas enfrentados. Já em 1978 um amplo movimento de reação a um decreto de desfavelamento promulgado pelo então prefeito Olavo Setúbal é articulado em várias regiões da cidade e consegue se unificar em torno de questões como acesso às redes de abastecimento de água e energia elétrica, bem como por tarifas reduzidas para pagamento desses serviços. Em 1979, oito dias após sua posse, Reinaldo de Barros viu organizar-se no território do município que ia governar, uma assembléia com mais de 2.500 favelados (FASE, 1987, p.10)55. O movimento de favelas em São Paulo já contava, nessa época, com alguma estrutura organizativa e articulava, no contexto das limitações impostas pelo regime, na época, um razoável contingente de moradores das favelas paulistanas. Mais adiante, o movimento perde sua unidade em virtude das diferentes tendências que disputavam sua condução – lido com esta questão mais à frente.

Entretanto, o que surge também nesse período é um movimento que viria estabelecer uma nova “configuração social”, como diz Eder Sader, quando uma outra ordem de discursos passa a ser utilizada na interlocução entre sem-tetos, arquitetos e poder público.

Uma série de ocupações iniciadas ainda na gestão de Olavo Setúbal (1975-1979) culminaria na histórica ocupação da Fazenda Itupu, uma área de propriedade do IAPAS localizada na Zona Sul da cidade, em setembro de 1981, já na gestão de Reynaldo de Barros, promovida por aproximadamente três mil pessoas. A ocupação da Itupu, precedida pela ocupação de outras três áreas na mesma região, mobilizaria intensamente inúmeros grupos e movimentos locais por um período de 10 dias56. Após os violentos processos de desocupação, as famílias desalojadas passaram a se articular em torno de lideranças que procuravam estabelecer meandros possíveis de negociação com o poder público: “Na invasão de Itupu o movimento sentou para discutir coisas concretas”, afirma Olímpio da Silva Matos, liderança que marcou época na Zona Sul, um dos principais protagonistas do processo de urbanização da favela Recanto da Alegria, no Grajaú – falo dele mais tarde (FASE, 1987, p.10).

55 Conforme Olímpio da Silva Matos, em entrevista publicada na Revista “Proposta”, da FASE. 56 Informações bastante concisas sobre esta ocupação e o contexto das ocupações de terras urbanas na década de 1980 pode ser encontrada em GOHN (1991).

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É como decorrência desse processo que nasceram diversos movimentos na Zona Sul que irão, aos poucos, conquistando sucesso nas negociações promovidas junto ao poder público. Articulados numa Coordenação de Movimentos de Moradia – a CMM –, o Movimento de Moradia da Zona Sul acaba conseguindo negociar uma gleba de terras pertencente ao Instituto Adventista – 885.000m2 – e uma outra área menor no Parque Fernanda. Às custas de acampamentos – durante 9 dias, em agosto de 198357, um grande número de pessoas manteve-se acampada em frente à COHAB – e de outras ocupações de terras, o Movimento inicia, agora na gestão de Mario Covas (maio de 1983 a dezembro de 1985), uma série de mutirões e, em agosto de 1984, promove o 1º Encontro de

Movimentos de Moradia – por Cooperativismo, Ajuda Mútua e Autogestão – ao qual me dedico mais adiante.

Em outra região da cidade, na Zona Norte, a partir da inauguração de um conjunto construído pelo programa Pró-Morar, gerido pelo então BNH e operacionalizado pelo poder público municipal, um grupo de moradores de aluguel e de cortiços procurou a Prefeitura, reivindicando sua inserção como candidatos àquelas moradias. Sem sucesso, o grupo passa a se organizar e, através de uma comissão de representantes, inicia um percurso que o conduzirá a uma das experiências pioneiras de produção de moradias através de processos autogeridos de organização popular: a Vila Nova Cachoeirinha, Freguesia do Ó, Zona Norte da cidade58. Resultado de outro contexto, a Vila Nova Cachoeirinha aponta, em relação à Zona Sul, com um processo diferenciado de articulação interna para a produção da moradia: contava com o apoio técnico desde o início; insistiria constituir uma cooperativa habitacional, nos moldes das Cooperativas de Vivienda uruguaias, e não uma Associação Comunitária – justamente em virtude das referências oferecidas pelo assessor técnico, o engenheiro Guilherme Coelho, que havia conhecido de perto a experiência uruguaia – falo dele mais adiante; incluía uma parcela significativa de mão-de-obra remunerada para desenvolvimento de uma parcela dos trabalhos no meio da semana59; a discussão de projeto lançaria mão de recursos pouco usuais como a “maquete móvel” – um tabuleiro com ranhuras desenhando módulos que permitiam fixar lâminas de madeira que compunham paredes e cômodos; também nos moldes das cooperativas uruguaias, já se previa, além dos projetos urbanístico e arquitetônico, também um projeto social – uma demanda que apenas se consolidaria em 1993, dez anos depois, no programa

57 Observar, como comento mais adiante, que é neste momento que o Laboratório de Habitação da Faculdade de Belas Artes acaba se articulando ao Movimento no processo de negociação que se instalou, a partir do acampamento. 58 Para uma descrição ‘em ato’ de todo o processo, ver REINHACH (1984). Este trabalho também foi publicado no número 14, da Revista Espaço & Debates, de 1985 (pp.23 a 44). Para uma contextualização das Cooperativas Uruguaias de Vivienda no contexto do cooperativismo internacional, por um lado, e, por outro, no contexto da replicação de sua experiência – o caso de Vila Nova Cachoeirinha – ver o excelente trabalho de BARAVELLI (2006). 59 Uma empreiteira executaria as fundações em ‘radiers’, as entradas de água, as saídas de esgotos e as primeiras fiadas das alvenarias (REINHACH,1984, p.25).

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de mutirões com a CDHU e em Diadema, com o programa de urbanização de favelas estruturado na gestão de José Fillipi; entre outras particularidades. Henrique Reinhach, o arquiteto co-responsável pelo apoio técnico ao grupo, não deixa de explicitar o contexto difícil enfrentado, naquele momento da vida política paulistana:

“Desde o início do projeto, o Município de São Paulo teve, na administração quatro

diferentes prefeitos (dois dos quais interinos). O ano de 1982 foi um ano eleitoral. Portanto,

de maio de 1982 a junho de 1983, quatro administrações diferentes [Reynaldo de Barros,

Antonio Salim Curiati, Francisco Altino Lima e, por fim, Mario Covas] opinaram sobre a

validade ou não validade de se testar o processo de Ajuda-Mútua em São Paulo”

(REINHACH,1984, p.26)

Não poderia deixar de citar, também, o caso da Vila Comunitária, em São Bernardo do Campo, iniciada em 1986, numa área negociada através da igreja, pela Associação Comunitária de São Bernardo do Campo. Organizada a partir de um bem sucedido movimento de compras comunitárias, originado nos flancos do movimento grevista de 1978 a 1981, a Associação Comunitária alcançaria, até o final de 90, amplos resultados em vários aspectos da autogestão e da provisão de benefícios e serviços: abastecimento, através de um sacolão; implantação de um restaurante popular; educação e formação profissional; e produção da moradia, através de uma conformação jurídica específica – a Associação de Construção Comunitária por Mutirão de São Bernardo – cujo primeiro e único empreendimento foi a Vila Comunitária. Financiada pela CDH – a então Companhia de Desenvolvimento Habitacional60 –, a Vila também estabelecia procedimentos autônomos de gestão da obra e produção das unidades habitacionais, como já comentei anteriormente. Assessorada pelo Setor de Habitação da Associação Comunitária, é nesse momento que começa a se estabelecer, autônomo em relação a uma estrutura acadêmica ou estatal, um grupo de assessoria técnica que, mais para diante, constituiria o núcleo do CAAP61.

Cito as três circunstâncias porque elas me parecem explicitar movimentos diversos, porém convergentes. No entanto, o processo articulado na Zona Sul, no início dos anos 1980, parecia

60 A CDH é uma versão intermediária entre as configurações originais da empresa estadual encarregada pela provisão habitacional no estado de São Paulo: criada como Caixa Estadual de Casas para o Povo – CECAP, em outubro de 1949, em 1975 transforma-se – em virtude de submissão ao Plano Nacional de Habitação Popular (PLANAHP) e para receber recursos do Fundo que sustentava o Plano – na CECAP – aproveitando a sigla, agora correspondendo a Companhia Estadual de Casas Populares. Mais adiante, assumiria outras denominações: CODESPAULO, CDH e, desde 1989, CDHU. 61 O CAAP – Centro de Assessoria a Autogestão Popular foi criado no final de 1990, adquirindo personalidade jurídica própria, pelos técnicos que compunham o Setor de Habitação da Associação Comunitária de São Bernardo do Campo. Leonardo Pessina, uruguaio, arquiteto e conhecedor das experiências autogestionárias de produção de moradia no Uruguai, viria do Rio de Janeiro para São Bernardo, a partir de intermediações promovidas pela Igreja, justamente convidado para assessorar no projeto e construção das casas da Vila Comunitária.

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incorporar um aspecto mais massivo, organizando movimentos distintos, tendências diversas, inúmeras associações etc. É dali que surgem as primeiras demandas do Laboratório de Habitação da Faculdade de Belas Artes – como citarei mais adiante. A Zona Norte, por sua vez, parece estruturar uma experiência que agrega aspectos mais organizacionais, privilegiando a concepção do processo em detrimento de uma preocupação com sua própria reprodução – considerando a descrição feita por Henrique Reinach. Estes três movimentos, ambivalentes e convergentes, parecem fundantes de todo o processo que instauraria, naquele começo de década, uma paulatina aproximação entre os Movimentos de Moradia e arquitetos, engenheiros e técnicos envolvidos na questão da moradia para os pobres.

Há também algumas outras referências importantes, tanto em São Paulo – como os Filhos da Terra, que promovera uma bem sucedida ocupação de terrenos da Santa Casa de Misericórdia situados no Piqueri, Zona Norte da capital paulistana – como em outras cidades do Estado – como a Assembléia do Povo, uma agremiação popular que encabeçou a luta pela terra em Campinas, entre 1979 e meados de 198062. Mas o ponto que procuro referenciar para nele me apoiar não é, como já disse, a história dos movimentos de moradia, mas a crônica do surgimento de uma aproximação qualificada entre técnicos do projeto e da obra e estes movimentos – e como se deu o diálogo entre arquitetos e sem-tetos. Daí parece-me o bastante, por enquanto, a identificação das circunstâncias que aqui promovi.

62 Para este assunto, ver DE PAOLI (2000).

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pelo lado dos arquitetos

Se, por um lado, é no contexto de um certo relaxamento – ou escoamento – do torniquete militar que surgem os novos movimentos populares e, entre eles, um Movimento de Moradia numa cidade como São Paulo, por outro lado a possibilidade de uma presença mais ‘orgânica’ de técnicos junto a estes movimentos tem um momento significativo com a criação, em 1982, do Laboratório de Habitação da Escola de Belas Artes de São Paulo – uma das poucas instituições privadas de ensino superior em São Paulo que ofereciam, na época, um curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo na cidade – a outra era a Universidade Mackenzie.

Não pretendo contribuir para a atividade canonista, nem defendo qualquer ineditismo para a configuração que o Laboratório acabou assumindo: como já precavi no início deste texto, apenas situo a história do Laboratório como um feixe de eventos que, grosso modo, acabam delineando uma ruptura, porém sempre contido num devir que se adensa em alguns momentos – e situo minha narrativa naquele momento imediatamente anterior à criação do Laboratório da Belas Artes e retorno a ele em seguida.

Deste modo, parece claro que a aproximação entre os arquitetos e os sem-tetos não se tratava de uma circunstância inédita: alguns movimentos neste sentido já haviam sido esboçados, como vimos anteriormente. No entanto, a novidade que o Laboratório da Belas Artes traz é uma profunda mudança no caráter da ação: ver, por exemplo, no contexto de trabalho do grupo QUADRA, em Brás de Pina, como fica explícito o quanto a ação técnica é desprovida de recursos, conduzida de forma quase destrambelhada, em regime de absoluta precariedade e longe de cuidados mais elaborados com o resultado desta ação – o objeto que se constrói. Qual a diferença que, portanto, fará diferença?

Até então, a presença dos arquitetos no meio dos sem-tetos surgia como ação voluntária e militante, quase como um ‘movimento geracional’ que parecia alimentado por distintos argumentos de motivação profissional: para alguns, essa motivação seria resultado de suas convicções políticas ou até mesmo da forma como ideologicamente representavam sua ação política; para outros, tradições e posicionamentos religiosos acabavam orientando um modo de ‘ser-no-mundo’ comprometido com as causas populares; para outros tantos, uma mistura de convicção política e orientação religiosa; ou ainda, aqueles outros motivados já nos bancos universitários, particularmente quando estimulados por professores que mobilizavam, em suas disciplinas, os esforços dos alunos para o ensaio de problemas vinculados à questão da moradia popular, das ocupações periféricas, dos

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equipamentos dos pobres e de uma “realidade da maioria” (ZANETTINI, 1983 in NIGRIELLO, 1985, p. 10).

Como o depoimento de Ermínia deixa transparecer, a interação e o diálogo entre as demandas da periferia e a universidade não se estabeleciam nem se estabeleceriam muito facilmente – exceto a circunstância da Belas Artes, já em 1983, como menciona. Contudo, algum vaso comunicante já promovia, anteriormente, a contaminação de alguns meandros didático-pedagógicos, trazendo uma série de problemas e abordagens que povoariam os trabalhos acadêmicos dos arquitetos em formação – e aqui já me insiro, como ingressante na FAU em 1978, e passo a integrar um posto mais envolvido no relato que aqui conduzo63. Já no primeiro ano, éramos levados para a periferia – no caso do meu ano, para o Jardim Tereza –, orientados pelo grupo de professores de AUP-100 – Introdução ao Projeto – Siegbert Zanettini, Rodrigo Lefevre, Felix Araujo, Dario Montesano e Eideval Bolanho – e de AUP-400 – Meios de Expressão e Representação (Introdução ao Desenho Industrial) – Ermínia Maricato (inclusive), Walter Ono, Telmo Pamplona, Percival Brosig e Yvonne Mautner –, além de Elvira de Almeida, que aparece como coordenadora do Laboratório de Modelos e Ensaios – o LAME64.

Um documento precioso, de 1978, refere-se a esta estratégia didática, iniciada já em 1975, e conforma-se como o relato da experiência do ano de 1977: reproduzido através de meios limitados, o documento propunha-se a “relatar a experiência didática a nível interdisciplinar ocorrida entre agosto e novembro de 1977, junto ao Departamento de Projeto”. Organizado por Elvira de Almeida e com textos assinados por Rodrigo Lefevre, o documento relacionava todas as disciplinas envolvidas e seus respectivos professores e colaboradores e, além de registrar as estratégias de operacionalização dos trabalhos, a sequência das aulas e os resultados dos trabalhos em algumas fotos e desenhos, propunha algumas considerações prévias que pretendiam explicar o “resultado favorável dessa experiência”: as amplas possibilidades de enfrentamento dos problemas, didaticamente formulados pelas diversas disciplinas, alcançadas com a abordagem pela “tecnologia alternativa” – no sentido de que a opção tecnológica “nunca estava previamente reprimida por um padrão tecnológico padrão”. Justificava a opção pelo projeto de um equipamento de uso comunitário – o qual acabaria se estabelecendo como tema gerador de debates sobre formas de enfrentamento 63 Ressalvo, contudo – e para relativizar a parcialidade com que descrevo o trajeto –, desconhecer possíveis iniciativas, orientadas neste mesmo sentido, em outros contextos acadêmicos do país. Não se trata aqui de esgotar a conversa, mas, inclusive, abrir espaço para o emparelhamento desta trajetória a outras tantas possíveis, realizadas em outras paragens. 64 Uma contextualização desta disciplina no quadro da presença de Rodrigo naquele que seria conhecido como o grupo “Arquitetura Nova” pode ser encontrado em ARANTES, 2002, p.176. Além disso, destaco aqui o esforço empreendido pelo autor, a partir de mesmos ou outros elementos, na reconstituição da trajetória por sobre a qual também me debruço, porém orientado em função de um outro plano de leitura – o de Pedro Arantes, a defesa da existência de um provável “fio da meada” – particularmente delineado entre pp.163 e 189.

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da “penúria” e do trato do objeto a partir de uma referencial escassez de meios. Desta forma, estes debates articular-se-iam a partir de questões concretas – objetivas – sobre pragmatismo, desenvolvimento, pobreza etc. Por fim, o texto introdutório de Rodrigo explica a determinada opção pela periferia como o campo de especulação (em sentido estrito) privilegiado de aprendizado, abrindo

“um mundo novo para os estudantes, ao conviverem mais proximamente com as

populações que estão se estabelecendo na periferia de São Paulo, com problemas de

loteamento clandestino, não atendimento das necessidades básicas em infra-estrutura, e o

não atendimento das necessidades básicas de vida comunitária e mesmo individual. Este

aspecto permitiu aos professores mostrar qual população é a que está mais carente de

soluções arquitetônicas e urbanísticas.” (LEFEVRE, 1978 in ALMEIDA, 1978, p.10)

Na sequência, Rodrigo desenvolve o que chama de “Proposta para uma metodologia”: em um estilo que insinua alguma inspiração hegeliana, o texto faz uma digressão ‘fenomenológica’ sobre a evolução econômica descompassada experimentada pelo país, considerando a forma como “pacotes tecnológicos” vinham sendo introduzidos no Brasil até então e como formações tecnológicas diferentes, originadas de formações econômicas também diferentes, acabavam promovendo a coexistência de elementos técnicos em “desequilíbrio”. As tensões resultantes destas “coexistências” – os atrasos – deveriam ser, para Rodrigo, o motor de qualquer expectativa de “avanço”. No entanto, a cada “pacote tecnológico” introduzido, outro seguia imediatamente, promovendo a superação ou obsolescência do anterior – o que recoloca a situação de “desequilíbrio” de modo permanente. Dessa forma,

“o ensino no Atelier, não pode mais ser feito tomando-se o ‘fazer um projeto’ como simples

aplicação de conhecimentos e conceitos elaborados ou assumidos anteriormente. Cada vez

mais precisamos tomar o ‘fazer um projeto’ como parte de um desenvolvimento do

conhecimento, como instrumento desse desenvolvimento.” (idem, p.23)

E, é claro, que este “desenvolvimento do conhecimento” para o arquiteto, “na sociedade ou na escola”, não deve sustentar-se no campo do puro abstrato, mas deve se estabelecer como um desenvolvimento que “se entrega a uma atividade prática com vistas à modificação de processos objetivos determinados”. Ressalva, a seguir, como este “movimento do conhecimento” encerra dificuldades em seu processo de evolução, abrigando impasses e necessárias reformulações no seu rumo, frente a “circunstâncias imprevistas”:

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“somente depois de insucessos repetidos que se chega a eliminar o erro, a se con-formar

às leis do processo objetivo, a transformar assim o subjetivo em objetivo, quer dizer, chegar

na prática aos resultados previstos. Em todo caso, é neste momento que o movimento do

processo do conhecimento dos homens, no que concerne um processo objetivo

determinado, a um determinado grau de desenvolvimento, pode ser considerado

acabado.”(idem, p.24 – grifo do autor)

Daí a proposta passa a descrever um “sistema de ciclos”, usando como figuras explicativas alguns recursos de projeto: o “corte longitudinal” e o “corte transversal”, como operações que articulariam, por um lado, o processo de aprendizado individual do aluno (“o que é ele mesmo enquanto meio de produção”) e, por outro, o modo como este aprendizado interage em relação ao meio em que o aluno atua (“a compreensão das várias contradições externas e internas dos vários processos ‘cortados’ por esse corte transversal e a escolha de sua participação nessas contradições”) (p.25). Procurando relativizar os mecanismos quantitativos de avaliação, Rodrigo propõe, numa peculiar composição entre construtivismo pedagógico e ‘fenomenologia do espírito’ (provavelmente inspirado em André Gorz), que a ‘percepção’ e a ‘capacidade de representação’ do aluno, reelaboradas ao final de todo o processo, redefinam as formas como o aluno diferencia e identifica aquilo que “percebe” do mundo em relação ao que dele formula como representação. Dadas as “condições concretas existentes”, Rodrigo propõe que o campo de problematização constitua-se no “corte transversal”:

“enfim,[trata-se de] desenvolver o seu conhecimento geral a partir de um ponto de vista, o

de uma atividade que hoje é ligada a uma profissão que terá, por alguns anos ainda, um tal

nível de globalidade e de implicações que poderá ser tomada como fonte de conhecimento,

prevenidos os inconvenientes.”(idem, p.26)

Daí o registro como forma de “expressão”, de representações construídas em detalhe, um “‘pedaço do mundo’ em relação ao mundo”, como “produtos de um pequeno processo de produção, de um pequeno processo de modificação da realidade próxima, ao alcance do indivíduo ou dos indivíduos diretamente ligados ao trabalho[...]” (p.27).

Um registro mais ‘acabado’ – digamos assim – da experiência de integração entre disciplinas do 1º ano na FAU seria publicado em 1985, mais precisamente dedicada à experiência interdisciplinar realizada em 1983. Nesta publicação, aparecem, agora, diversos depoimentos, além da descrição e registro das atividades desenvolvidas, trabalhos realizados, relação de alunos e monitores participantes etc. etc. A ampliação da quantidade de depoimentos – creio eu – decorreria da ampliação do número de disciplinas integradas no curso: conforme relato de Zanettini, a disciplina

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de Planejamento passaria a integrar o grupo em 1979 e, em 1980, também a disciplina de Construção e Tecnologia Básica de Construção do Departamento de Tecnologia – “além da participação posterior das disciplinas de Paisagismo e Conforto Ambiental em alguns exercícios comuns” (ZANETTINI, 1983 in NIGRIELLO, 1985, p.9)65.

A publicação divide-se entre uma apresentação dos trabalhos, o registro de uma série de depoimentos dos professores e monitores que participaram das atividades naquele ano e a descrição propriamente dita destas atividades.

A apresentação, de autoria de Zanettini, traz um apanhado dos pressupostos que nortearam o desenvolvimento dos trabalhos, ressaltando algumas estratégias já delineadas no texto de Rodrigo – como a procura por apoio, para a administração didática, na “experiência anterior de cada um”; ou a opção de orientar os trabalhos didáticos a partir de um referencial concreto, diverso da postura dominante, a qual defenderia que “o belo somente se traduz no grande e no espetacular”, defendendo que o “pequeno também pode ser belo e que principalmente o essencial talvez seja a sua mais completa expressão”66; ou, ainda, sobre o papel do professor como ‘educador’, como aquele que “estimula, desenvolve e orienta as aptidões do indivíduo, em consonância com os ideais de uma sociedade onde ambos se inserem”, propiciando um ensino “voltado para a realidade da maioria e não como reflexo apenas e como resposta aos problemas da sua elite dominante” (ZANETTINI, 1983 in NIGRIELLO, 1985, pp.9-10).

Boa parte dos depoimentos trata da relação entre teoria e prática, da relação entre universo acadêmico e realidade social, da “inutilidade da academia” quando “encharcados” desta realidade, ou quanto às especificidades de uma “ação crítica” imbuída na construção de um “espaço qualificado”, ou, ainda, sobre as possibilidades de alguma “unidade entre pensamento e ação” (ZANETTINI, 1983 in NIGRIELLO, 1985, pp.16-17 e 19).

Mas ganham relevo (claro que para as minhas ilações) algumas dissonâncias e possíveis conexões que aparecem nesta publicação. Primeiro: ela é dedicada a Rodrigo, recém falecido na Guiné Bissau, em junho de 1984, como já comentei anteriormente. Inclusive Hector Olea abre a publicação com um poema dedicado ao arquiteto, intitulado “Canteiro”, no qual desenvolve um amplo

65 O grupo de professores de Introdução ao Projeto e de Desenho Industrial era o mesmo que aquele registrado no documento de 1977, exceto Walter Ono e Yvonne Mautner; os professores Marcos de Souza Dias e Andreína Nigriello (organizadora da publicação), aparecem como responsáveis pela disciplina Introdução ao Planejamento (AUP-250) e Desenho Urbano (AUP-252); como responsáveis pelas disciplinas de tecnologia – Construção I e II (AUT-108 e 120), de Tecnologia Básica da Construção I e II (AUT-110 e 122), Conforto I e II (AUT-210 e 214) e Geometria Aplicada à Produção Arquitetônica – aparecem, respectivamente, os nomes dos professores Ubertello Bulgarini, Antonio Castanheira Neto, Luiz Chichierchio, Antonio Carlos Mingrone e Ciro Saito. 66 Ecos de E.F.Schumacher e do título do livro que acabou consolidando uma expressão da época: “Small is beautiful: a study of economics as if people mattered”, de 1973.

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amálgama de referências às suas propostas mais marcantes e às suas incursões ao âmago mais profundo das precariedades sociais – que acabara por levá-lo à Guiné Bissau.

Em segundo lugar, diferentemente dos demais depoimentos e contribuições, o registro de Ermínia explicita não um sentimento de ‘etapa cumprida’ ou de uma avaliação positivada do percurso das disciplinas, mas, antes, da irritante persistência de ‘um longo caminho ainda à frente’. Seu texto começa com uma questão bastante aguda – principalmente para aquele momento, pouquíssimo tempo depois de criada a Lei 6.766 (de dezembro de 1979), que regularia a promoção e regularização de loteamentos no país: “Quantos loteamentos clandestinos haverá ainda na cidade de São Paulo?” Ao fazer referência aos resultados dos trabalhos no Parque Maria Fernanda, Ermínia reencaminha, com a questão que formula, a problemática dos loteamentos clandestinos e reafirma, assim, a necessidade de emparelhar esforços no caminho indicado pela história do bairro, “o caminho da luta contra a miséria e a opressão” (ZANETTINI, 1983 in NIGRIELLO, 1985, p.21).

Por fim, chama a atenção a composição e o depoimento dos monitores. Eram 20 alunos (conforme registrado no final da publicação), praticamente todos, salvo engano, ingressantes do ano anterior – e, portanto, recém-egressos da edição de 1982 daquele arranjo interdisciplinar. Desta forma, o depoimento funda-se na recente experiência do grupo, que acabara de cursar seu primeiro ano. Mas não se articula em função dos objetos trabalhados ou da abordagem didática, preferindo centrar-se na relação “com os professores do primeiro ano, enquanto amigos e enquanto mestres”, julgando que as atividades não teriam alcançado o objetivo proposto originalmente – a transmissão das “impressões recém-vividas como mais uma oportunidade de aprendizado” para o próprio grupo. Daí o texto recoloca a questão da monitoria como um expediente que teria que ser “muito trabalhado, muito discutido”, mas que “certamente, o seu desenvolvimento” deveria contar com a assimilação da nossa experiência” (ZANETTINI, 1983 in NIGRIELLO, 1985, p.25)67.

67 Conforme o registro, são os alunos: Agnaldo de Lima Amaral, Ana Lucia Ottoni, Carlos Eduardo Medina dos Santos, Cecília Arruda Sampaio Esteves, Celso Primi, Claudia Vacilian Mendes, Edson Borges Lopes, Fernando de Mello Franco, Filomena Cristina Calligaris Russo, Gina Maria Leandro, José Condé Lamparelli, Katia di Sessa de Diego, Marcos Mendes de Almeida, Maria do Carmo Mendes Righini, Milton Liebentritt de Almeida Braga, Nelson José Cahali, Saide Kahtouni, Silena Gonzales Moreira, Tânia Mara Martins Rossi e Vinicius Gorgati. Por uma circunstância que poderia qualificar, pelo menos, como ‘irregular’, acabei assumindo uma disciplina optativa, vagamente intitulada “Projeto Sensível”, oferecida pelo professor Sylvio de Barros Sawaya, já no primeiro semestre daquele ano de 1983. Devido à proximidade que mantive com ele ao longo de 1982 – como orientador de meu TGI e como alguém ainda bastante marginal às determinações da FAU naquele período (capaz de abrigar propostas de trabalho como as minhas – falo disso logo adiante) –, Sylvio me convidou para ministrar a disciplina com ele. O grande problema é que, após as duas primeiras aulas, quando discutimos os rumos do curso com os alunos, ele pouco compareceu, deixando-me ‘irregularmente’ responsável pelas atividades da disciplina. Foi assim que, aos 23 anos, recém-formado, iniciei-me na docência, ministrando uma disciplina optativa ao longo de todo aquele ano justamente para vários integrantes deste grupo de monitores – reconheço-os pelos nomes – entre eles, Fernando Franco e Milton Braga, hoje integrantes do escritório MMBB – aos quais me refiro no início deste texto. Apenas para registro, pouco tempo depois, em junho de 1983 seria convidado a ministrar aulas na Escola de Belas Artes, inaugurando, assim, minha carreira ‘regular’ como

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O que mais uma vez me chama a atenção é a forma como a inexistência de uma referência aos objetos do próprio curso descreve um “lugar vazio”: como diz Foucault, “por mais que o enunciado não seja oculto, nem por isso é visível” (FOUCAULT, 2002, p.128). O “não-dito” não “assombra o enunciado”, mas explicita a “modalidade enunciativa” e “os limites que delineiam seu referencial” (pp.127-128). Isto é, pouco importa se os monitores mobilizaram suas vidas profissionais a partir da experiência ali vivida e a entrelaçaram à “realidade da maioria”, como dizia Zanettini – não é isto que procuro salientar. Mas o fato de o relato não referir-se à própria experiência de trabalho e ater-se exclusivamente à experiência didática, parece-me relevante no sentido de permitir-me argumentar que não se trata, portanto, de estabelecer uma gênese, uma origem, um começo para esta modalidade de prática profissional. Trata-se, antes de mais nada, de um processo de

subjetivação em processo que reúne um sem número de proposições e discursos, ditos e não-ditos, presenças e ausências – formas em construção e com muito ainda por se fazer, como sugere Ermínia. Desta forma, as disciplinas integradas da FAU no primeiro ano aparecem aqui como uma entre inúmeras circunstâncias que contribuíram para o andamento do processo ao qual me refiro: a ausência de Rodrigo, se por um lado arremata sua participação na construção deste “lugar vazio”, por outro lado afirma sua presença não como origem ou destino, mas como ponte para uma invenção – ao lado de tantos outros. Suas confabulações de 1977 são claras neste sentido: trata-se de um “movimento do conhecimento” e não de um ‘estado de conhecimento’.

Desconheço outras ações de ‘docência militante’ – dito assim por falta de melhor termo – concatenadas em programas e planos de cursos em escolas de arquitetura e urbanismo nesta época, mas tenho como certo que devem ser inúmeras iniciativas que, de uma forma mais ou menos sistemática, traziam o envolvimento com os movimentos ou questões sociais como contexto de prática didática68. Mas, ressalvado o aspecto a que me referi anteriormente, seria possível identificar algum impacto daquela mobilização docente? Difícil afirmar, a não ser por alguns exemplos – como o caso de Henrique Reinach e o meu próprio.

Henrique de Castro Reinach é arquiteto, formado pela FAU em 1980. É um dos primeiros estudantes daquela escola – que tenho notícia – a propor um Trabalho de Graduação Interdisciplinar que versaria sobre urbanização de favelas. Trabalhou com Guilherme Coelho no docente em cursos de arquitetura e urbanismo – e roubando, dessa forma, a primazia de uma circunstância assim tão irregular como promotora do início de minha carreira docente. 68 Por exemplo, do curso de Arquitetura e Urbanismo oferecido pela Universidade Mackenzie sairiam colegas que acabaram se dedicando à atuação junto aos Movimentos de Moradia: Joel Felipe, Celso Sampaio e Mara Gomes, entre outros. Da FAU Santos, também, a arquiteta Rosana Denaldi, por exemplo, que tinha sido aluna de Joan Villá – um dos personagens chave para entendermos os nós de articulação da trajetória que descrevo. Cito, mais adiante, os casos das escolas que estruturaram cursos com abordagens didáticas diferenciadas. Além disso, sei que alguns professores contribuíram, ainda que de modo assistemático, para esta orientação profissional, em seus programas de disciplinas ou práticas didáticas.

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projeto e implantação das obras da Vila Nova Cachoeirinha e, após a morte do Guilherme, recebeu o apoio do irmão dele, Sérgio Coelho – engenheiro civil – para o desenvolvimento do trabalho de construção das casas – comento mais adiante. No seu TGI, Henrique descreve, a partir de sua vivência profissional como estagiário da então Coordenadoria do Bem-Estar Social da Prefeitura Municipal de São Paulo, todo o processo de ‘urbanização’ das favelas do Jardim D’Abril, próximo à divisa com o município de Osasco, e do Jardim São Jorge-Posto, no bairro Jardim São Jorge-Arpoador, situada por volta do km 16,5 da Rodovia Raposo Tavares. Henrique propõe, com seu TGI, contrastar teoria e prática, utilizando o contexto trabalhado para uma imersão pessoal no problema da carência habitacional, para além dos aspectos particulares dos casos que descreve69. Pressupõe a participação como recurso incontornável de trabalho – em função das pré-existências da favela – e a flexibilização das propostas, em virtude de suas acomodações às dinâmicas desse tipo de assentamento. E, por fim, registra como se deu conta de como a pretensão inicial – a composição de uma espécie de manual – era descabida: a infinita diversidade encontrada já na abordagem de apenas dois casos, desaconselhava qualquer iniciativa naquele sentido (REINACH, 1980, pp.6-11).

Eu mesmo acabei concluindo meu curso de graduação, em 1982, desenvolvendo um trabalho em Juquitiba que, sintomaticamente, chamei de “Arquitetura e Participação”: uma ‘imersão’ na cidade mais pobre da região metropolitana da Grande São Paulo, a sudoeste, já na região do Vale do Ribeira, propondo – e tentando implantar – uma rede de centros comunitários locais junto aos bairros do município e cooperativas populares de produção. Sempre achei que não cheguei em nada, em termos do que se entendia, na época, do que seria um Trabalho de Graduação Interdisciplinar – tempos de anistia e retorno de Paulo Mendes e Artigas à FAU. Orientado por Sylvio Sawaya, obtive seu apoio a um trabalho que, no fim das contas, ‘apareceria’ apenas no seu desenrolar: um padre irlandês e um grupo de professores do ensino médio procuraram por alguém na FAU que pudesse auxiliar num projeto de implantação de centros comunitários nos bairros de Juquitiba. Um colega, que conhecia minhas pretensões para o meu TGI e que participara da recepção do grupo, considerou que seria o caso deles conversarem comigo. Acertamos uma rotina para meu trabalho e, por um ano, dividi minhas atividades no escritório com idas e permanências

69 Uma formulação de Henrique contribui justamente como contra-prova para o argumento que venho construindo – desacreditando qualquer possibilidade de composição não antagônica entre Técnica e Política: “Acho importante frizar [sic] aqui o caráter eminentemente técnico que pode vir a ter qualquer solução proposta para o problema [da habitação]. Isto porque me parece bastante clara a diferença entre atacar um problema através de suas causas e através de seus efeitos. As causas dos problemas habitacionais brasileiros estão longe de serem falhas técnicas. São problemas estruturais da organização política e econômica do país, onde não cabem apenas soluções técnicas. No máximo a técnica pode favorecer determinada intenção política, mas não será jamais determinante” (REINACH, 1980). Desde longe, a escansão entre Técnica e Política sempre aparece como determinação.

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em Juquitiba. Logo no início, construí com os moradores uma cobertura – que mal cobria alguma coisa, tudo com material doado – para um bingo que reuniu por volta de 1,5mil pessoas. Depois, cheguei a projetar e iniciar a construção de uma igreja num dos bairros da cidade e articular as cooperativas locais de produção. Apesar da qualidade sofrível do trabalho, acho que consegui vislumbrar ali um pouco do que viria viver pouco tempo depois.

O que procuro ressaltar com este sobrevôo das iniciativas acadêmicas na FAU daquela época, é o quanto as ações mais deliberadas em prol de uma atuação engajada junto a movimentos sociais eram desarticuladas e de cunho ‘voluntarista’, mesmo quando instadas a partir dos bancos escolares e das conjurações docentes – e é aqui que me insiro.

Já no início de 1983, o Partido dos Trabalhadores, criado a pouco (em 1980) e numa conjugação de forças bastante inesperada para aquele momento, assumia a Prefeitura de Diadema, com o sindicalista Gilson Menezes à frente, como prefeito. Seria lá que se formataria, por primeiro e de modo deliberado70, instâncias mais perenes na administração pública que permitiriam uma atuação mais engajada do profissional arquiteto por através das estruturas de gestão municipal – porém ainda profundamente matizada pelas colorações ideológicas do momento e irrevogavelmente comprometida com as lógicas e mecânicas de estruturação do Estado brasileiro.

De qualquer modo, fora os advogados – que tinham uma ação já mais estruturada em defesa dos favelados, conforme notícias – desconheço, antes desse período, em São Paulo, uma ação mais articulada de profissionais e técnicos, particularmente arquitetos e engenheiros. Apesar de toda a crítica levantada por Sérgio Ferro em “O Canteiro e o Desenho”, a formulação de uma prática pensada a partir desta crítica ia se configurando de forma muito tênue e caleidocópica, como já argumentei – pelo menos para nós, naquela época estudantes de arquitetura ou recém-formados. De qualquer modo pesava, de forma decisiva, a crença numa possibilidade de engajamento profissional que aproximava a atividade como técnicos às nossas convicções políticas.

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Diria, no entanto, que fica bastante difícil enquadrar a ação de alguns profissionais que, num determinado momento e atuando no mesmo sentido que venho descrevendo, trazem para a cena alguns elementos que, atravessando a dinâmica dos eventos, acaba alterando radicalmente o rumo dos acontecimentos. Por exemplo, Guilherme Pinto Coelho, engenheiro civil e pós-graduando na Escola Politécnica da USP: junto com Maria Inês Bertão, assistente social que trabalhava na Prefeitura Municipal paulistana, e Laila Mourad, estudante de arquitetura na época, promoveram 70 Se considerarmos o caso de Lages, por exemplo, as estruturas de gestão pública ali instaladas não permaneceram após o período da gestão Dirceu Carneiro.

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inúmeras sessões na periferia de São Paulo de um filme super-8 que Guilherme havia produzido no Uruguai, visitando as Cooperativas de Vivienda por Ajuda Mutua. Foi numa dessas sessões, no final de janeiro de 1982, que um grupo de aproximadamente 600 famílias de moradores de aluguel – aquelas que pleiteavam acesso ao Pró-Morar na Zona Norte – assistiram o filme e entusiasmaram-se com a possibilidade de participar, efetivamente, de todo o processo de construção de suas casas. Pouco tempo depois, Guilherme faleceria num acidente de automóvel. Mas da sessão do seu super-8 surgiria o mutirão da Vila Nova Cachoeirinha, como registrei anteriormente.

Figura 4: A construção da Zona 3, no conjunto J. P. Varela, em Montevidéu, em um fotograma do filme de 1981 e em 2006 (fonte: USINA, 2004 e BRAVELLI, 2006)

Figura 5: A oficina da Central de Cooperativismo Uruguayo – CCU e Guilherme Pinto Coelho, no canteiro de obras do Vila Nova Cachoeirinha (fonte: USINA, 2004 e BARAVELLI, 2006)

Quanto à significação e importância dessas sessões itinerantes do super-8 do Guilherme, há pelo menos duas leituras controversas. Nabil Bonduki, numa entrevista a Ana Amélia da Silva, numa já citada revista do Instituto POLIS, afirma, comentando a estruturação de grupos de assessoria técnica em São Paulo:

“existiu anteriormente [à criação do Laboratório de Habitação da Belas Artes] o trabalho do

Guilherme Coelho, um técnico que atuava isoladamente, calcado na experiência do

Uruguai, e sua morte prematura fez com que a experiência ficasse muito restrita”

(SILVA,1994, p.10)

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Por outro lado, Ermínia Maricato, numa entrevista àquela Revista “Proposta”, de 1987, comenta:

“Mas de qualquer forma, ele [o mutirão] existia previamente e em meados da década de 70,

talvez um pouco mais para frente [no início de 1982], o Guilherme Cunha Pinto [Guilherme Pinto Coelho], fez um filme junto às cooperativas uruguaias que constroem por mutirão. Ele

trouxe esse filme para alguns locais de São Paulo, particularmente para o pessoal que

acabou construindo o mutirão de Vila Nova Cachoeirinha. E o filme entusiasmou muito

alguns movimentos, que já estavam lutando pela moradia, porque trazia uma proposta com

a qual o povo já estava familiarizado: o mutirão (...). Eu não queria me deter em analisar o

que aconteceu com o Vila Nova Cachoeirinha, porque parece incrível dizer que a figura de

uma pessoa pode mudar o movimento, mas isso aconteceu” (FASE,1987, p.31).

O fato é que havia ocorrido, em outubro de 1981, o “Simpósio Latino-Americano de Racionalização

da Construção e sua Aplicação às Habitações de Interesse Social”, promovido pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo – o IPT. Conforme relata ainda Henrique Reinach, a delegação uruguaia teria apresentado “os resultados de uma experiência de dezessete anos [desde 1964, portanto] com Cooperativas Habitacionais por Ajuda-Mútua” (REINACH, 1984:7). A partir deste contato, Guilherme viaja ao Uruguai em dezembro de 1981 e lá realiza o tal super-8 a que me refiro.

Mas quantos outros não participaram desse Simpósio e não se empolgaram com o que viram? Numa reunião anterior a agosto de 1984, no mutirão da Vila Nova Cachoeirinha, num processo de articulação dos Movimentos que culminaria no I Encontro de Movimentos de Moradia naquele ano, Olímpio comentava que as

“propostas começaram a ser elaboradas a partir de um filme sobre as cooperativas de

moradia no Uruguai. Estas propostas foram inclusive aplicadas nesse mutirão de Nova

Cachoeirinha, enquanto existia a assessoria do Guilherme (arquiteto).” – não era, era

engenheiro – “Quando ele morreu num acidente, as pressões foram tantas que essas

propostas acabaram” (FASE, 1987, p.16).

Se as exibições do super-8 foram ou não fundamentais para a constituição de um imaginário, se produtoras de representações que colonizariam os termos reais e concretos da produção autogestionária da moradia em São Paulo, talvez seja questão que importe mais como precisão histórica que por exigência de análise. Acredito que o que realmente importa é a lógica de transferência do modelo e o problema da incompatibilidade estrutural. De uma forma ou de outra, o formato original demandaria uma reestruturação radical para que se adequasse, aqui, a um

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Movimento completamente distante de uma articulação com uma base sindical qualquer71. Além disso, já foi afirmada e reafirmada a limitação da experiência levada a cabo em Vila Nova Cachoeirinha: a COHAB assumiria a coordenação do empreendimento, a FABES – Secretaria da Família e do Bem Estar Social – assumiria a elaboração e execução do projeto social e, por fim, a gestão dos recursos acabaria fugindo das mãos dos futuros moradores e de sua assessoria técnica. De qualquer forma, é inquestionável a quantidade de referências ao modelo instituído pela Vila Nova Cachoeirinha. Inclusive entre os inúmeros autores e pais de processos autogestionários para a produção de moradias no Brasil. Além disso, em respeito a alguma precisão histórica, não seria justo desqualificarmos uma parte do processo, descolando-o de contexto e conjuntura, objetivando uma versão tendenciosa que se disporia para uma análise formulada apenas para confirmar algum julgamento previamente estruturado. No contexto da discussão acerca dos mutirões autogeridos, esse expediente vem sendo, desde sempre, bastante utilizado.

O curso de disciplinas integradas na FAU, as ações voluntárias de técnicos na periferia, o Trabalho Final de Graduação de Henrique Reinach, a movimentação do IPT para articulação de pesquisas e trabalhos na área da tecnologia para a produção habitacional, os primeiros contatos com a experiência uruguaia, a atuação solitária de funcionários da administração municipal que, em diversos momentos, acabavam engajados no outro lado da instância que representavam e, por fim (mas não só), todo o empenho de Guilherme Coelho na divulgação do que vira no Uruguai, tudo isso acontecia ao mesmo tempo, sincrônico à criação do Laboratório de Habitação da Belas Artes – uma inusitada articulação entre professores, alunos e uma instituição privada de ensino que via, naquela iniciativa, uma boa oportunidade de promoção do curso, que se iniciara em julho 1979.

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O LabHab, como era conhecido, foi, sob certo ponto de vista, um dos principais responsáveis pela formatação de um modo de atuação do profissional arquiteto (particularmente) junto aos Movimentos de Moradia. Talvez o Laboratório seja o responsável direto pela instauração de uma possibilidade de atuação profissional que apenas se vislumbrava anteriormente – em Sérgio Ferro e Rodrigo Lefèvre e, um pouco mais à distância, em Carlos Nelson Ferreira dos Santos. Sob um tênue mas presente crivo da crítica de “O canteiro e o desenho”, notícias de um longínquo processo

71 Isso também não passa despercebido para Reinach: “Passados dez meses de obra, observamos que muitas propostas teóricas mostraram-se falhas no decorrer do processo. O regulamento definido foi baseado na experiência uruguaia, muito específica em função da própria população a que se destina e da estruturação das cooperativas no Uruguai. No caso uruguaio, os vínculos anteriores dos grupos que constituem a Cooperativa são mais fortes, pois a origem das Cooperativas é, muitas vezes, sindical ou provenientes de associações de bairros ou organizações afins”. (REINACH, 1984, p.32). Quando comento sobre os ‘vasos comunicantes’ entre momentos de criação das Pró-centrais, no final do “a virada dos anos 1970...”, faço um comentário que se refere exatamente a esta incompatibilidade.

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de urbanização de favela em Brás de Pina, no Rio de Janeiro – além das inúmeras referências e motivações particulares que mobilizavam cada um –, desenhava-se ali a invenção de uma prática que viria instituir-se com um vigor e intensidade próprios de um raro alinhamento de circunstâncias momentaneamente favoráveis.

Como contam os protagonistas, foi a partir de um seminário para discutir os rumos do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Escola de Belas Artes, realizado em 198272, que algumas pessoas, à volta de uma mesa de bar após os trabalhos, acabariam discutindo sobre aquela iniciativa do Sindicato dos Arquitetos de São Paulo, quanto à constituição de uma cooperativa para atendimento às demandas por autoconstrução da moradia na cidade – como vimos, o professor Jorge Caron, coordenador do curso da Belas Artes, e Joan Villá, professor de Projeto – falaremos dele mais adiante –, haviam participado do grupo de profissionais que trabalharam na Cooperativa do Sindicato dos Arquitetos de São Paulo, entre 1978 e 1979. Além disso, era conhecida também a experiência dos uruguaios e parece ter sido Joan Villá o responsável pela referência. Seria dali que surgiria a idéia de um laboratório de habitação dedicado ao atendimento das demandas dos movimentos por moradia que começavam a brotar pela cidade. Conforme o depoimento de Olímpio, uma das principais lideranças daquela época,

“Quando o movimento começou a elaborar propostas concretas, nos articulamos com muita

gente: advogados, arquitetos, engenheiros e mesmo pessoas ligadas ao governo, que

ajudaram a descobrir o que ele tinha e o que é que não tinha. Nesse grupo tinha um núcleo

[o Laboratório de Habitação] ligado à Faculdade de Belas Artes e foram eles que deram o

apoio técnico ao Recanto da Alegria. Através deles foram aparecendo outros arquitetos que

iam aderindo ao movimento” (FASE, 1987, p.13)

Não deixo de insistir no caráter ‘coletivo’ de criação do Lab-Hab, enquanto esforço inventivo de possibilidades de uma ação mais engajada de arquitetos, engenheiros e estudantes de arquitetura. Por ali passaram Nabil Bonduki, Raquel Rolnik, Ives de Freitas, Mauro Bondi, Antonio Carlos Sant’Anna, Joan Villá, Carlos Roberto Monteiro de Andrade, Marcos Osello, Vitor Lotufo, entre tantos outros. Além de vários alunos, na época, que acabariam se tornando figuras importantes para a construção de toda essa história: Reginaldo Ronconi – que viria a ser um dos principais formuladores e gestores do programa FUNAPS-Comunitário, na gestão Erundina –, Eulalia Portela

72 Além do LabHab, também foram criados, naquele momento, o Laboratório do Interior, coordenado pela professora Maria Lucia Refinetti Rodrigues Martins, e o Centro de Documentação, o CEDOC, coordenado pela professora Maria Helena Flynn. Mais tarde seria criado também um Laboratório de Estruturas, coordenado pelos professores Yopanan Conrado Pereira Rebello e Maria Amélia d’Azevedo Leite. Segundo depoimento de Reginaldo Ronconi a Roberto Pompéia, a criação dos laboratórios “fazia parte do projeto do Caron, que era um ótimo negociador. Os laboratórios foram uma obsessão, uma conquista do Caron: ‘tem de ter isso, senão não tem escola’” (em POMPÉIA, 2006, p.11).

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Negrelos, Marianelci Frangipani, Luís Caropreso, Sérgio de Simoni, Martha Genta , Mario Braga – que faz parte da USINA desde a sua fundação – entre tantos outros. Eu não cheguei a integrar ‘oficialmente’ o Lab-Hab – participei num dos processos de seleção, mas Sant’Anna acabaria ocupando a vaga. Mas acabava acompanhando o grupo quase cotidianamente, ou pela minha proximidade com Vitor Lotufo – tínhamos escritório juntos, na época – ou pelas amizades ou ainda apenas pelo fato atuar como professor do curso, desde 1983.

Figura 6: Uma das formações do Lab-Hab, por volta de 1982: Sérgio Simone, Joan Villá, Jorge Caron, Malu Amaral Mendes, Olair de Camilo; Dagoberto, Luis Caropreso, Marianelci Frangipani, Maurício Queiroz Costa, Ives de Freitas, Patrícia Piza Fontes; Francisco; Nabil Bonduki, Marilita Giuliano, (não identifico), Lilia Cunha, Ema Paula, Durvile Cavalcanti, Eulalia Portela Negrelos, Miltom de Biasi, Marcio Pereira, Rodrigo Crispino e Martha Rodrigues Genta (fonte: acervo pessoal de Eulalia Portela Negrelos)

Figura 7: Grupo de alunos do Lab-Hab e projeto para o Grajaú (fonte: AU, ano I, nº3, novembro 1985)

E é claro que também concorreram, para a relativamente rápida consolidação do Laboratório, os desígnios daqueles que a ele acorriam: também é a eles que reivindico participação nesse processo coletivo de criação. Foi o Olímpio que, no caminho para uma reunião de um ainda incipiente

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Movimento de Moradia no Campo Limpo, Zona Sul de São Paulo, chamou Nabil e Reginaldo para conhecerem o Recanto da Alegria, favela onde morava. Foram esses ‘movimentos de moradia’ que, acampados em frente à COHAB em 1983, atrairiam a atenção dos técnicos do Laboratório que, ao prestar-lhes apoio, acabaram auxiliando em todo o processo de negociação de uma gleba de terras no Grajaú, junto à prefeitura. Dessa negociação nasceria o projeto da Associação de Moradia Arco Íris, a AMAI, que comporia parte do ‘espólio’ que seria herdado pelo Laboratório de Habitação da UNICAMP – como veremos mais adiante. As demandas, os inúmeros questionamentos, os conflitos, os compromissos que essa relação gerava, as presenças e ausências, o que era dito e que não era dito, acabavam estabelecendo parâmetros para a atuação do Laboratório, desenhando os contornos e delineando o formato de nossa atividade como arquitetos, engenheiros e estudantes de arquitetura73.

Figura 8: Almoços de domingo; escavação das fundações da cúpula; e moldagem dos blocos de solo-cimento para as fundações da primeira casa a ser construída na urbanização do Recanto da Alegria (fonte: acervo do autor)

73 Em tempo: uma visita do Guilherme ao LabHab da Belas Artes, acompanhada de uma concorrida sessão do tal super-8, certamente ajudaria a consolidar o ideário de uma outra possível postura profissional do arquiteto. Além disso, como relata Eulalia Portela Negrelos, diversos estudantes de outras faculdades frequentaram, com maior ou menor frequência, as instalações do LabHab: por exemplo, Lizete Rubano, Joel Felipe, Mara Gomes, entre outros, do Mackenzie; e Antonio Carlos Kfouri, que estudava na FAU neste período, “ficavam lá desenhando” (conforme depoimento de Eulalia Portela Negrelos, em entrevista concedida em 20 de julho de 2010).

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É neste contexto de produção, de intenso trabalho e cotidiano repleto de injunções de toda ordem, que experimentaríamos algum respaldo material para uma atuação mais concertada junto aos então nascentes movimentos de moradia: os alunos eram remunerados através de isenções no pagamento das mensalidades e os professores receberiam, por suas atividades, a mesma remuneração relativa recebida por hora aula. Atravessávamos nossos finais de semana nos mutirões do Recanto da Alegria, ombreando a abertura das valetas para a implantação das fundações das novas casas e do centro comunitário, acompanhando passo a passo cada uma das etapas de obra. Professores e alunos percorriam a periferia da Zona Sul da cidade atrás de possíveis glebas de terras para implantação de novas moradias, enfrentando toda a sorte de percalços e dificuldades. Professores e alunos frequentavam regularmente diversas favelas da cidade, em busca de soluções para a regularização da posse e urbanização do território. Reuniões intermináveis com prefeitura e governo do estado, diálogos colaborativos com assistentes sociais da prefeitura paulistana, debates internos sobre a propriedade ou não do desenho na luta política etc. etc. Diariamente, alunos e professores, conforme a distribuição dos trabalhos, dedicavam-se à discussão e elaboração dos projetos e aos encaminhamentos cabíveis para orientar seus andamentos. Conforme o depoimento de Eulalia Portela Negrelos74, que passara a integrar o grupo em 1982 e referindo-se ao sentimento em relação ao período pelo qual passava o país:

“Entrei em 80 e a gente já tinha passado pela greve de 1979. [...] Então, nós que entramos

em 80 – e aí eu particularmente – o que eu sentia eram relatos permanentes da ditadura em

uma memória cotidiana dos professores. [...] Depois da greve de 79 e depois 80, era outra

coisa, sabe? Sentia que o Laboratório também tinha um pouco de força do momento, de ter

tido esse destamponamento da força popular sindical, da formação do PT como um

conjunto de movimentos – que era isso que ele queria ser naquele momento – e de

conhecer o que é movimento social e ver como eles estavam fortalecidos com a experiência

sindical. [...] O ambiente de redemocratização era muito forte, a gente vivia nisso o dia

inteiro”(Eulalia Portela Negrelos, entrevista ao autor, 20/07/2010)

O depoimento de Eulalia demonstra, com bastante vivacidade, o sentimento que permeava o cotidiano do grupo. Ainda que negociado com a mantenedora a manutenção de 5 professores e 20

74 Eulalia Portela Negrelos é arquiteta, formada pela Escola de Belas Artes de São Paulo, em 1984. Após seu ingresso em 1980, Eulalia seria selecionada para o Laboratório em meados de 1982. Transfere-se, então, para o período noturno, passando a estudar à noite, conciliando assim um estágio pela manhã na SEMPLA – Secretaria Municipal de Planejamento e as atividades do Laboratório à tarde. Permaneceu no Laboratório dois anos e meio, até concluir o curso, em 1984.

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alunos no quadro permanente do Laboratório75, o espaço era francamente aberto e mesmo alguns como eu, que não eram ‘oficialmente’ do quadro permanente, não saíamos de lá.

“O que era aquele momento com a construção democrática: que eu acho que o Laboratório

teve um papel de, primeiro, ali dentro da escola, ter um efeito demonstração interno sobre a

construção das relações democráticas – que eu acho que foi super bacana – então desde a

seleção das pessoas até assim como atuar, como ser solidário dentro do Laboratório, nos

lugares junto com a comunidade – e depois, um outro jeito de fazer as coisas que,

independente de ter dado certo ou não, ou seja, de ter feito diferente mesmo ou não,

naquele momento essa crença, de que não existe um jeito só de fazer, isso impregnou todo

mundo ali – foi super bacana!” (Eulalia Portela Negrelos, entrevista ao autor, 20/07/2010)

Entretanto, este sentimento não propaga apenas a reverberação de um momento pelo qual passava o país, mas também propala a permanente ambição por “um outro jeito de fazer as coisas”:

“O Laboratório penso que bebeu nisso: na BA, era tudo novo. Então, o curso de arquitetura

era novo, era novo como proposta, era novo no currículo, era novo na semestralização, era

novo por conta do TGI, era novo porque tinha laboratório, era novo porque o pessoal que

dava aula lá era tudo novinho e as [pessoas] mais velhas eram da renovação; era novo por

um monte de razões” (Eulalia Portela Negrelos, entrevista ao autor, 20/07/2010)

Com efeito, conforme Carlos Roberto Monteiro de Andrade76, também professor da Belas Artes naquele período e também participante do Lab-Hab, boa parte dos professores – ele inclusive – teriam passado pela experiência de São José dos Campos onde Mayumi e Sérgio Souza Lima, Siegbert Zanettini, Walter Maffei, Carlos Egidio Alonso, entre outros, haviam experimentado a construção de uma proposta didática que herdaria, pelas mãos de Mayumi Souza Lima, ‘aquilo que poderia ter sido mas não foi’ na Universidade de Brasília – na UnB, de onde Mayumi viria, após seu fechamento pelo Regime: um curso com grade curricular flexível e uma abordagem de temas até 75 Conforme informação registrada em POMPÉIA, 2006, p.14. 76 Carlos Roberto Monteiro de Andrade é arquiteto e cientista social, formado pela FAU e pela FFLCH da Universidade São Paulo, em 1974. Já durante a graduação, Carlos participa da pesquisa de Maria Ruth Sampaio e Carlos Lemos, em 1970, auxiliando nos levantamentos necessários para o que constituiria o “Evolução formal da casa popular paulistana”, publicado em 1976; e frenquenta o CEBRAP, a convite de Juarez Brandão Lopes, convivendo com Otavio Ianni e José Arthur Gianotti. A convite Carlos Alberto Dória, dá início à sua atividade docente em 1974, logo que se forma, na Escola de Sociologia e Política, ministrando a disciplina de Teoria Antropológica. Devido a mais um dos cíclicos processos de crise que sempre acometeram a Escola, Carlos Andrade sai de lá um ano depois e se junta ao grupo que montava o curso na FAU-FVP – conforme conto no texto. Vai também ministrar aulas no curso de arquitetura das Faculdades Farias Brito, em Guarulhos, em 1976, onde permanece até 1982; na FAU PUC de Campinas, em 1978, onde permanece até 1988; e na Universidade Católica de Santos, entre 1980 e 1983. A convite de Raquel Rolnik e Nabil Bonduki, Carlos Andrade vai para a Belas Artes em 1982, permanecendo ali até o início de 1986 – quando a crise entre professores e mantenedora teve, como desfecho, a demissão de praticamente todo o corpo docente. Carlos teria ainda agravada sua situação perante a mantenedora, em virtude de sua condição de vice-presidente, junto com Ives de Freitas, da APROBASP, a associação de professores que se fez à frente de todo o processo de negociação da crise.

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então pouco usuais em cursos de arquitetura. Mantido pela Fundação Valeparaibana de Ensino – que hoje mantém a UNIVAP - Universidade do Vale do Paraíba – e no quintal da Aeronáutica, esses professores manter-se-iam na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de São José dos Campos por um período relativamente breve (entre 1969 e 1975, segundo informação em site da própria UNIVAP77), saindo dali envoltos por eventos controversos e pouco esclarecidos, aparentemente motivados por uma série de constrangimentos que teriam sido patrocinados ou promovidos pelas instâncias militares vizinhas78. Nas palavras de Carlos Andrade:

“Foi como um tipo de ensino que pretendia ter mudanças; eu acho que foi uma experiência

muito rica, ainda que efêmera, porque ela trazia, [...] mais do que a experiência da Mayumi

na UnB, ela trazia as intenções de um novo curso de arquitetura [...] que acabou sendo

abortado por conta da ditadura que, simplesmente, fechou a UnB, não fechou só o curso de

arquitetura – fechou a UnB e mandou todo mundo embora, ela, o Sérgio [Souza Lima] e

outros tantos que estavam lá na ocasião montando o curso – Lelé, inclusive estava

envolvido, se não me engano... Mas [...] o Caron, era um outro pilar, porque tinha uma

experiência como ex-aluno da FAU, de 10 anos... Acho que ainda não havia se envolvido

com outro curso... Talvez Santos” (Carlos R. M. de Andrade, entrevista ao autor,

18/03/2011)

Não se trata, sem dúvida, de processos mais perenes e permanentes de constituição de alternativas de ensino do ofício, ou que tenham definitivamente produzido o deslocamento irreversível das circunstâncias e práticas já consolidadas:

“Acho que tinha essa coisa de ter um grupinho pequeno, com intenções de balançar ou

reformular o ensino de arquitetura – que tinha como única matriz, de certa maneira –

principalmente [...] pela formação do pessoal que foi para São José – a referência era a

FAU, a referência – mas abortada – era a UnB... o Mackenzie nunca chegou a constituir um

modelo de ensino que balizasse [novas experiências didáticas, ensaios, redefinições pedagógicas etc.]. E São José permitiu isso, pelo menos no início – e nas barbas dos

77 http://www.univap.br/univap/historico.php, acessado em 19 de março de 2011. 78 Entrevista concedida em 18 de março de 2011. Carlos Andrade também faz referência à distinção no processo de criação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo em Santos, que teria contado com a presença de Sérgio Ferro, Francisco de Oliveira e, mais uma vez, Rodrigo Lefevre – entre outros. Lembra que “também teve a experiência de Taubaté, também no Vale do Paraíba – mas aí já entra um pessoal novo, como Raquel, como Nabil – também estivemos juntos lá... Também foi efêmero, foi uma coisa de um ano”. De modo inesperado, diversos professores seriam demitidos sem maiores justificativas. De qualquer modo, “foram experiências muito efêmeras [...]” (Carlos R. M. de Andrade, entrevista ao autor, 18/03/2011). Não é papel deste trabalho reconstituir estas trajetórias e experiências didáticas, mas certamente é um campo que merece melhor atenção e cuidado. Em chave lateral, porém bastante próxima, caso interesse, verificar o trabalho por mim orientado, SARAMAGO (2011). Neste trabalho, Rita Saramago conseguiu reunir uma enorme quantidade de referências sobre boa parte destas experiências didáticas ‘inovadoras’- digamos assim. Pedro Arantes também faz referência a elas em seu livro. Ver ARANTES, 2002, p.181.

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milicos – sem dúvida, era uma situação que acabou culminando com... Então, quer dizer,

não foi para a frente...”(Carlos R. M. de Andrade, entrevista ao autor, 18/03/2011)

Mas me parece certo, também, que estes ‘ensaios’ – digamos assim – permitiriam o adensamento das alternativas enunciadas, culminando em um formato que estabelece um outro patamar de agenciamento dos elementos práticos da atividade. Quanto à sua chegada à Belas Artes e ao Laboratório de Habitação, Carlos Andrade relata:

“E foi lá na Belas Artes que eu vi criar, então, o Lab-Hab, [uma] iniciativa aí sobretudo do

Villá e Caron; e chamaram já o Marcos [Osello]; mas aí, já dando aula na Belas Artes,

vendo o Lab-Hab surgir, num certo momento, tinha uma vaga lá para professor – e eu me

candidatei [...] Por motivos diversos, eu me interessei por esta vaga no Lab-Hab [...]. Na

verdade a seleção foi uma entrevista com o Villá e Nabil: aí entrei e comecei a atuar em

alguns trabalhos muito curiosos: acabei num primeiro momento acompanhando a coisa do

Recanto [da Alegria], mas já tinha lá os responsáveis, o Nabil estava tocando. [...] Aí, no

primeiro ou segundo mês, aparece um padre, redentorista, e disse que teve notícia do

laboratório através de alguém que trabalhava em movimento social também, ou ligado a

igreja ou alguma CEB, e queria ver se a gente tinha condições de dar uma assessoria pra

favela do Jardim Oratório em Mauá; então eu fui, do Lab-Hab, o escalado pra cuidar do

Jardim Oratório Mauá – e foi o que eu fiz...”(Carlos R. M. de Andrade, entrevista ao autor,

18/03/2011)

Ou seja, acho relevante que este entrecruzamento de propostas de cursos, notícias, locuções, demandas, argumentos e proposições – que foi o Lab-Hab, certamente – primeiro: reúnam argumentos e expectativas vividos quase que por acúmulos, sedimentados e gestados ao longo de bastante tempo e por um punhado de pessoas e instituições bastante diversas – isto é, a origem é difusa; segundo: se dê, objetivamente, fora da universidade pública – mesmo que inúmeros agentes destas propostas advenham da universidade pública. São dois rastros que aqui imprimo apenas para reencontrá-los mais adiante.

Para um trato imediato, apenas chamo a atenção para o efeito desse entrecruzamento: o que entra em jogo não são apenas as referências macro-estruturais, mas as concepções mesmo individuais:

“eles [alguns professores em particular] sempre fizeram a luta pelo outro lado, da

micropolítica, da transformação das pessoas. [...] Tinha gente que já veio ‘desbundada’ para

a escola...aquela coisa, que a Belas Artes tinha de ser diferente... E era isso, era uma

questão da mudança de comportamento, não era só partidário, político do ponto de vista da

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luta política, era uma luta micropolítica – por isso que o Foucault era tão forte ali [...] a

Raquel [Rolnik] impregnou a gente de Foucault – a questão de que não tem que lutar nas

grandes estruturas, lutar naquilo que você [o entrevistador] chama de dobras” (Eulalia

Portela Negrelos, entrevista ao autor, 20/07/2010)

Quanto ao cotidiano no Laboratório, Eulalia e Carlos Andrade relatam como era a distribuição dos trabalhos entre os professores e os alunos – quase que estabelecida em função das afinidades de cada um – e ressaltam o fato de que não se trabalhava apenas com demanda habitacional, fazia-se de tudo: uma igreja para uma paróquia em Cidade Dutra; uma colônia de férias para um sindicato, na represa de Igaratá, perto de Jacareí/SP; além de uma intervenção no presídio feminino, junto ao extinto complexo do Carandirú, na Zona Norte da capital paulistana, quando Carlos Andrade e um grupo de alunos ‘grafitaram’ as paredes de celas e instalações79. Além disso, lembro-me de atividades bastante heterodoxas como, por exemplo, um ciclo de cinema em praça pública, promovido com o pessoal do Centro de Cultura Social – uma organização que existe até hoje, criada em 1933 pelo movimento anarco-sindicalista paulistano, que tinha uma forte atuação no bairro do Brás. E, é claro, todas estas atividades concomitantes aos trabalhos no campo da habitação: a urbanização das favelas Recanto da Alegria e do Jardim Oratório – que tiveram desdobramentos bem diferentes; e o conjunto de moradias no Grajaú, para o movimento de moradia da Zona Sul, organizados na Associação Vila Arco-Íris.

79 Uma psicóloga que trabalhava com as presidiárias, preparando sua reinserção no ‘mundo livre’, foi quem trouxe a demanda para o Laboratório: eram em torno de 20 moças que, em regime semi-aberto, dormiam no abrigo que tinha sido anteriormente ocupado pelas freiras que cuidavam do presídio feminino – uma ordem religiosa que se dedicava a este tipo de sacerdócio. “E a ideia era a gente fazer alguma coisa no alojamento que o tornasse um espaço mais agradável para elas, enfim, as próprias celas etc. E ao mesmo tempo sem recursos nenhum. Foi a ocasião então que eu me vali dos grafiteiros que tinha lá na BA – eram alunos ainda – [...] Mas, eles fizeram uns trabalhos muito bonitos, usamos material de publicidade e, enfim, não tinha tinta para parede... Acabamos fazendo um trabalho lá que foi curto, mas muito rico: um outro tipo de população [...]. Então essa [atividade no presídio] foi muito episódica, foi pra isso e não tinha mais o que fazer: melhoramos, enfim, as condições de ‘habitação’, vamos dizer assim, com os precários recurso disponíveis que tínhamos”. Além disso, Carlos Andrade ressalta o privilégio da experiência de conhecer um presídio por dentro, exatamente no momento em que lia “Vigiar e Punir”, de Foucault (Carlos R. M. de Andrade, entrevista ao autor, 18/03/2011).

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Figura 9: Reunião de trabalho na sala do Lab-Hab e Nabil, Eulalia e Mauro Bondi, em discussão de projeto (fonte: acervo pessoal Eulalia Portela Negrelos)

Muito em virtude do modo como era feita a distribuição das tarefas – esse modo de adequá-los às afinidades de cada um – acabava criando um contexto que fazia aparecer um dilema que, por outras vias, também atravessa todo o meu texto: a proeminência do projeto ou a determinação da luta política. Conforme Eulalia, lembrando dos conflitos entre Mauro Bondi, muito aferrado à prancheta, e Nabil Bonduki, por exemplo, mais envolvido com as articulações políticas:

“Eram paus entre a valorização do projeto e a valorização, enfim, da luta política – e ficava

parecendo que o Nabil não projetava, sabe, porque ele estava mais vinculado às [questões políticas]. [...] Teve uma briga horrível entre o Mauro e o Nabil – que virou as costas e foi

embora... E Nabil desenhava, sim, mas para, assim, organizar as coisas” (Eulalia Portela

Negrelos, entrevista ao autor, 20/07/2010)

E aí surge uma questão que, me parece, acaba permeando toda a história dos laboratórios que, de dentro das instituições de ensino superior, promovem atividades de extensão, conformadas como ‘prestação de serviços à comunidade’:

“Tinha muita preocupação com a questão da concorrência com os profissionais formados,

porque a gente fazia projeto, né? E eu lembro que [diversos professores] falavam disso:

estavam preocupados, por causa dessa questão de a gente não ser taxado de que

[promovíamos] uma diminuição da atividade profissional, que fazia mais barato – a coisa de

cobrar ou não cobrar das comunidades, porque a gente era de uma escola, afinal de contas,

não éramos profissionais, não éramos um escritório – e por outra parte se aquilo era válido

como um trabalho profissional [...]. Isso nunca foi resolvido, nunca foi muito bem resolvido –

e acho que até hoje.”(Eulalia Portela Negrelos, entrevista ao autor, 20/07/2010)

Ao considerar esta questão – e tomando sua visada a partir do tempo presente, é claro –, Carlos Andrade tece as seguintes considerações – que situam com bastante intensidade um pouco do sentimento da experiência, vivido naquela época:

“Olha, eu vejo aí como trabalhos de extensão, quer dizer, são trabalhos que não vão estar

concorrendo com o mundo profissional... Até porque, se na ocasião já não existia muito

interesse, eu acho que agora menos ainda, salvo os escritórios dessa geração que se

formou nos laboratórios – que acabou dando USINA e outras [...]. Mas, via de regra, os

recursos são os mínimos, a remuneração é baixíssima, quase trabalho voluntário – então eu

não vejo ‘competição’, uma ‘concorrência’, uma disputa por ‘fatias do mercado’. Eu acho

que a gente tem que equacionar isso como trabalho de extensão universitário: então tem

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que ter uma remuneração, não é uma remuneração profissional, não são profissionais,

né...[...] Uma regra geral, você definiria como: não vai mais ter trabalho de extensão

universitário? Você está sacrificando toda uma metodologia de formação do recurso

humano – isso é fundamental! [...] Essa experiência dos alunos terem contato com a

realidade que não é da vidinha acadêmica, universitária, é vital! É vital! Balança a cabeça!

Porque nós tivemos este contato, pra nós foi importante, como cidadão, até, como

profissional também; então, talvez imaginemos ‘não, mas os alunos têm ideia’... Não têm

ideia nenhuma! Não adianta nada ver documentário ou vídeo sobre a catinga, sobre a

miséria do nordeste – o cara só vai saber é quando está lá pisando e sentindo o cheiro de

merda no banheiro que é um buraco e tendo que ir lá usar o banheiro que é um buraco,

igual a todas as outras crianças! [...] Aquele momento é um momento pedagógico!”(Carlos

R. M. de Andrade, entrevista ao autor, 18/03/2011)

De qualquer modo, as ilações e memórias, tanto de Eulalia como de Carlos Andrade apontam para algumas novidades que o tal entrecruzamento a que me refiro parece promover, no contexto do Lab-Hab, apontando para um outro campo de diálogo entre os arquitetos e os sem-tetos:

“Então tinham questões como [por exemplo] o que era projeto... o que era projeto quando

para discutir com a comunidade? O que era representação de projeto – e isso era uma

discussão forte, por isso o maquetomóvel, por exemplo, de a representação ser ipsis literis,

ser uma maquetinha e não ter o desenho... tinha muito pouco desenho! Eu me lembro, por

exemplo, o que que tinha desenho: eram projetos que não eram de habitação! A igreja:

tinha muito desenho – dimensionamento, especificação... é como se a gente pudesse fazer

projeto para habitação que não precisasse de desenho, de especificação, de nada! Olha

que...! Mas era um instrumento de transformação aquilo, aquela atuação.”(Eulalia Portela

Negrelos, entrevista ao autor, 20/07/2010)

Assim, três questões aparecem, para Eulalia, como cotidianas, como presenças que permeavam todas as ações do Lab-Hab – que apareceriam, segundo ela, em três frentes de embates:

“A tensão entre o projeto formal e o projeto... enfim, não muito formalizado; a questão

sindical, isto é, da ética profissional; e o projeto e a luta política – se o projeto é o objeto

primeiro do arquiteto [...] e como no Lab-Hab ele aparecia como instrumento de luta

política.” (Eulalia Portela Negrelos, entrevista ao autor, 20/07/2010)

Contudo, aquele não era um modo de atuação que chegava pronto – não havia roteiro para associar ação técnica deliberada e luta política. Antes de tudo, tratava-se de uma construção:

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“Não era uma discussão que tinha lados muito estanques brigando entre si [...] Mesmo

quem falava do projeto, que tinha que ter projeto, valorizava a luta política, estava lá por

isso, ninguém estava lá só pra fazer projeto. É que cada um tinha a sua visão do caminho a

percorrer, para construir alguma coisa [...] Mas era o jeito de fazer, em que momento tinha

que priorizar o desenho, que momento tinha que priorizar mais as reuniões - ah! Sei lá... e

tem vaidade aí também!” (Eulalia Portela Negrelos, entrevista ao autor, 20/07/2010)

Para Carlos Andrade, o efeito do tal entrecruzamento aparece no modo como se explicitam, nos detalhes da atividade, os impasses gerados pelo expediente – irritantemente frequente, por sinal –, que disfarça a irredutibilidade na negociação política com o argumento da impossibilidade técnica. No caso da urbanização da favela do Jardim Oratório, as negociações envolveram, além da associação dos moradores e o INSS (então INPS, na época) – o proprietário da terra – também a CDH (futura CDHU) – que não teria cumprido papel sequer significativo:

“A perspectiva era a urbanização da favela [...]. A urbanização da favela tinha um

pressuposto que era a definição da situação fundiária – e, no Jardim Oratório, tudo culminou

para se buscar a regularização da situação fundiária – e, o que se reivindicava, era a

concessão do direito real de uso. [...] Daí, quem acabou fazendo alguma coisa foi a própria

associação, através de recursos que a gente conseguiu com a igreja católica alemã – e isso

foi, de certa maneira facilitado por [...] Evelyn Hartoch80: ela veio pra cá para estudar e

[auxiliou na intermediação de recursos para implantação de] uma horta comunitária e de

uma fábrica de blocos, para fazer pequenas obras de infra-estrutura – um grande problema

numa área que é um morrão, com declividades acentuadas: drenagem pluvial – escadarias,

sistemas de drenagem mais simples para evitar que a erosão aumentasse” (Carlos R. M. de

Andrade, entrevista ao autor, 18/03/2011).

Não é um mero detalhe: a necessidade de buscar uma solução, ainda que paliativa ou incompleta – e, ainda por cima, por fora das agências que, teoricamente, estariam incumbidas disso –, implicava na construção de uma experiência outra, para a qual a escola não havia oferecido pouco ou nenhum repertório – desde elementos de projeto e obra de sistemas de drenagem de águas pluviais a fundamentos de horticultura, por exemplo.

80 Evelyn Hartoch é urbanista paisagista, formada em Kassel, Alemanha. Após o período acompanhando as atividades do Lab-Hab – que serviram como estudo de caso em seu trabalho de pós-graduação –, Evelyn passou um tempo dividindo escritório comigo e com Vitor Lotufo, administrando parte do espólio do trabalho no Jardim Oratório, particularmente as providências e cuidados com a horta comunitária. Em 1990, a convite meu, passou a integrar a USINA, como associada e fundadora. Após um período trabalhando conosco, resolveu mudar-se para Salvador, onde passou a ministrar aulas no curso de Arquitetura e Urbanismo da UFBa.

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De qualquer forma, o Lab-Hab assumiria o papel de referência, não só como organismo de atendimento às demandas sociais na área do urbanismo e do habitat em geral – que, inclusive, eram muito maiores do que alcançava atender –, como também acabou servindo como matriz para outras experiências em outras escolas de arquitetura: Carlos Andrade, por exemplo, ao ser demitido da Belas Artes e já inserido no curso da FAU-PUC Campinas, consegue, com o deliberado apoio da direção81 e na condição de coordenador pedagógico – uma instância então recém-criada de administração pedagógica do curso –, criar o Laboratório L’HABITAT, que perduraria por um longo período.

“O Lab-Hab virou uma referência, você sabe disso [...] – e havia uma demanda muito maior

do que a gente podia atender [...]. Tinha uma outra coisa: [o laboratório] era um local de

convívio acadêmico muito intenso... era um espaço que ficou muito forte como referência;

era o primeiro [salão] à direita naquela escadona – então, você acabou de subir, já estava

no laboratório; era uma salona bonita, gostosa, né... porque essas coisas todas vão

pesando [...] A família Cardin, eles jogaram fora um potencial de recursos humanos enorme”

(Carlos R. M. de Andrade, entrevista ao autor, 18/03/2011).

Como afirma Sant’Anna:

“A convergência de nossos trabalhos só veio reforçar essa vivência e o envolvimento dos

estudantes que, ao longo de seus anos de formação, foram extraordinariamente

enriquecidos pela participação que tiveram junto às comunidades. Tanto foi assim, que

muitos desses alunos, quase 20 anos depois, ainda continuam profundamente envolvidos e

alguns se tornaram lideranças. Muitos ainda vivem profissionalmente desses serviços.

Praticamente a maior parte dos estagiários do Laboratório do começo dos anos 80 até hoje

está envolvida e comprometida com esse tipo de trabalho”(SANT’ANNA, 2005 in POMPÉIA,

2006, p.13)

Não quero me estender ainda mais no relato, creio que os trabalhos de Nabil Bonduki (1982) e de Eulalia Portela Negrelos (1998), particularmente, dão conta de modo bem mais adequado do assunto. Além disso, há também o doutorado de Roberto Pompéia (2006) que, num esforço de recomposição da história dos laboratórios de habitação nos cursos de arquitetura de São Paulo – concentrando-se na descrição dos trabalhos do Laboratório da UNICAMP –, dá bastante conta da ordem geral que subsidiou a criação do Lab-Hab da Belas Artes e de como ele se articula em seu contexto: conta com depoimentos de Sant’Anna, de Joan Villá, de Reginaldo Ronconi, entre outros,

81 Nessa época ocupada pelos professores Ricardo Marques (diretor) e Ary Fernandes (vice-diretor).

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sobre arquitetos e sem-tetos 75

e agencia o que é possível da parca informação registrada sobre o assunto na época82. Fora alguns aspectos que aqui acrescento, estes três trabalhos – mais algumas análises, referências e citações em trabalhos e publicações diversos – são fontes que, numa iniciativa de maior fôlego e contando com a complementação de outros depoimentos, contribuirão decisivamente para uma história e uma reflexão mais aprofundada do Lab-Hab83.

Assim, não pretendo descrever a gênese rigorosa do contexto do surgimento do Laboratório da Belas Artes – o que estabeleço, aqui, é alguma sistematização de informações, conversas e experiências que poderão contribuir para outras incursões. No entanto, há duas circunstâncias de trabalho que quero ressaltar – as quais eu vivi – que contribuem diretamente para a construção de meu argumento: trata-se da forma como encarávamos a aplicação do conhecimento tecnológico e o modo como pleiteávamos alguma interlocução positiva quando emparelhávamos este conhecimento aos desígnios e demandas dos nossos parceiros – o povo. E como apareceriam, aí, os ruídos que me interessam. Creio que isto é central.

Defendendo uma concepção de “tecnologia apropriável”, escrevi um texto, por volta de 1991, por solicitação da União de Movimentos de Moradia – a UMM, já em processo de consolidação institucional, naquele momento – que sairia numa pequena publicação para distribuição entre os diversos grupos que compunham o movimento, editada conjuntamente pela FASE – Federação de Órgãos para Assistência Social, agência de São Paulo, e a editora das Irmãs Paulinas84. No texto, apresentava duas circunstâncias de trabalho do Lab-Hab (além de uma terceira, relativa ao sistema de pré-fabricação em cerâmica vermelha da UNICAMP): a construção das fundações da primeira casa a ser levantada no Recanto da Alegria – que seria toda erigida com solo-cimento, aplicando o mesmo processo de prensagem de terra em formas de madeira, utilizado na construção de taipa de pilão; e a construção do centro comunitário naquela mesma favela, então em processo de urbanização – onde propusemos e construímos, praticamente até quase o final, uma cúpula de alvenaria de blocos cerâmicos de oito furos, o tijolo ‘baiano’, sem cimbramento e sem armadura, utilizando, para tanto, a geometria de uma catenária em revolução em torno de um eixo central. Sob 82 Traz, inclusive, num esforço de sistematização muito importante, a relação das atividades do Laboratório e a transcrição de documentos e ofícios trocados entre a Coordenação de Movimentos de Moradia de São Paulo, a COHAB, a APROBASP e a mantenedora da escola, a FEBASP. 83 Como diz Carlos Andrade, “tudo o que aconteceu ainda é muito recente”, exigindo esforços vários no sentido de compreendermos devidamente o significado daqueles eventos. 84 Trata-se de PALUMBO; PEREIRA; BALTRUSIS (1992). O texto “Tecnologia apropriável: a construção civil e o mutirão” que lá está, entre as páginas 58 e 67, foi praticamente ‘esquartejado’: com o argumento de que ele era muito “técnico”, difícil de ser apreendido, os editores promoveram uma série de cortes que comprometeram bastante o resultado final. Relendo hoje o texto original, ele não me parece nem “técnico” e nem inacessível. Em tempo: bem mais adiante, inserido em minha tese de doutorado, articulo estes dois episódios como uma sequência de eventos num processo de individuação dos objetos técnicos, conforme minha abordagem de técnica e tecnologia, estruturada conforme o filósofo francês Gilbert Simondon.

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o título “Tecnologia e Mutirão: Histórias de tecnologias – como fazer e não o que fazer”, relatava as circunstâncias da seguinte maneira:

“No bairro do Grajaú, Zona Sul de São Paulo, entre

1982 e 1983, foi empreendida, sob orientação de

professores e alunos integrantes do Laboratório de

Habitação da Escola de Belas Artes, a urbanização da

Favela ‘Recanto da Alegria’. Em mutirão, foi iniciado o

trabalho com poucos recursos, financiados pela

Prefeitura de São Paulo. [...] Um fato que diz respeito

ao que estaremos expondo, exemplifica um pouco essa

questão da ‘tecnologia apropriada’. Foi proposto, como

tecnologia adequada à situação, a utilização de solo-

cimento para a construção das casas. Liberado o

espaço para a construção de uma casa-protótipo,

iniciamos a escavação das fundações, enquanto que,

paralelamente, eram feitos estudos de qual a dosagem

ideal para a composição do solo-cimento. Ao lado das valetas cavadas para as fundações,

desmanchávamos um barranco para utilizar a terra que, misturada com o cimento,

compunha o material que era depositado, com certo grau de umidade, nas valetas e socado

com pilões feitos com restos de madeira. Sábados e domingos foram bastante socados com

terra e cimento. Isso intrigava bastante os moradores – que encolhiam os ombros e nos

acreditavam ‘doutores’. Alguns se arriscavam dizer que não entendiam ‘por que a gente tira

a terra do chão pra depois devolver e ainda por cima, ter que socar’. Não passou da

fundação: as casas foram construídas com blocos de concreto, assentados com argamassa

de areia, cal e cimento.”(LOPES, s/d, p.4)85

Figura 10: escavação das valetas das fundações para implantação da primeira casa no Recanto (fonte: NABIL, 1992)

E, na sequência:

“No mesmo lugar, foi definida uma área onde seria construído um Centro Comunitário. A

proposta que foi levada adiante foi construirmos uma cúpula de tijolos cerâmicos furados,

de tal forma que o próprio sistema estrutural viabilizasse uma acentuada redução nos

custos, uma vez que a cúpula, conforme a geometria pensada para ela, se auto-portaria,

excluindo a utilização de insumos caros, como aço e concreto. Essa não ficou só na

85 Conforme o texto original: LOPES, João Marcos de Almeida. Tecnologia apropriável: a construção civil e o mutirão. Mimeo: s/data (aprox. 1991).

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fundação. Escavamos as valetas, executamos as fundações e começamos a levantar as

paredes da cúpula. Até que, quando foi escava a valeta circular para a fundação, a

população participou. A partir das primeiras fiadas, a sensação era de que um disco voador

havia pousado na Zona Sul de São Paulo. Íamos, alguns professores e alunos, nos fins-de-

semana, levantando as fiadas, uma a uma. Sem ou quase nenhuma participação dos

moradores. Assentávamos algumas garrafas que serviriam como iluminação e uma

abóbada que faria a vez de porta de entrada. A mais ou menos 3m de altura, já parecendo

um balde de ponta cabeça, começamos a notar que as garrafas eram sistematicamente

utilizadas como alvo para campeonatos de pedradas. Sem falar que o interior servia

otimamente para o alívio de necessidades. Até que, após um acidente em que um dos

moradores perdeu sua casa (aliás uma pessoa muito interessante, que produzia suas

próprias ferramentas...)e, não tendo onde se abrigar, utilizou a cúpula como opção [de moradia. Chegamos a considerar que, enfim, a cúpula ia ser terminada. Mas a solução dada foi outra: um singelo telhado de duas águas, com telhas de fibro-cimento]. O interessante foi

deparar com aquele meio balde emborcado com um telhado de duas águas em cima! Assim

ficou até que os moradores resolveram demolir a cúpula – ao que não nos opusemos”(

LOPES, s/d, p.4)

Figura 11: Conforme estratégia que aprendemos com as experiências de Frei Otto, no Instituto de Estruturas Leves de Stuttgart, Alemanha, compusemos o nosso modelo de “grid-shell”: uma configuração estrutural que, ao acomodar geometricamente os esforços de tração na malha de modo mais eficiente possível, quando invertida, daria-nos referência para a melhor acomodação dos esforços, agora em regime de compressão. Dessa forma, dispensávamos armaduras e podíamos utilizar um material muito barato – o bloco cerâmico de oito furos (fonte: arquivo pessoal do autor)

Figura 12: Início da construção da cúpula, o restrito mutirão que se seguiu e o estágio em que a cúpula acabou coberta com um telhado de duas águas (fonte: acervo pessoal do autor)

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Após o relato de uma terceira circunstância – a partir da experiência de trabalho no Laboratório da UNICAMP –, passava então a considerar que não se tratava de condenar qualquer opção tecnológica: tanto o solo-cimento como a geometria da cúpula ou a utilização de pré-fabricados cerâmicos (falo deles mais adiante) eram opções, de forma e de processo construtivo, perfeitamente adequados às demandas por economia, facilidade construtiva e segurança estrutural. No entanto, argumentava que “não há tecnologia ou sistema construtivo que se suporte por si só”, procurando estabelecer que a tomada de decisão por um ou outro sistema tecnológico deveria submeter-se a uma articulação racional (de “dar razão a”) entre processo em si e sujeitos envolvidos neste

processo, contornando permanentemente o modo do fazer tradicional, “tecnocrático” e “autoritário”:

“A discussão dessa opção deve garantir a possibilidade de intervenção, elucidada pela

transparência do que é possível ou não. A possibilidade de participar e intervir, garantida

pela real compreensão [de todas as injunções envolvidas], legitimará a proposta quando

acordada e adotada”( LOPES, s/d, p.6)

Concluía o texto com uma longa citação de Bakunin, extraída de um texto de 1882, “Dieu et l’état”, onde o anarquista russo recusa identificarem-no como alguém que rejeita toda forma de autoridade: pelo contrário, afirma-se submisso à autoridade do ‘sapateiro que sabe fazer sapatos’ do ‘engenheiro que sabe construir casas’, mas que apenas recusa que o sapateiro ou o engenheiro imponham sua autoridade sobre si – além de não considerar qualquer autoridade infalível.

Quando o Lab-Hab surgiu – e como já procurei delinear no início deste texto –, um sem número de discussões e debates sobre projeto e tecnologia em arquitetura brotavam das mais diversas formas. Creio que muito mais do que em tempos atuais. Além disso, também o tempo e o espaço no qual se descrevia o arco de acontecimentos no país assentavam algum solo firme para a insurgência daquelas modalidades de organização social, particularmente aquela envolvida com a luta pela existência urbana e por direito à moradia. Nada ficava assim tão claro e nada também parecia assim muito obscuro: atuávamos como e enquanto arquitetos, dali extraíamos nosso subsídio material – sem nenhum drama existencial ou político – e acreditávamos possível alguma transformação estrutural a partir das transformações micro-políticas do cotidiano: mudando a forma – cúpulas, abóbadas, solo-cimento etc. – ou mudando o modo – permeando o conhecimento e o fazer técnico, partilhando o processo de projeto, planejamento e obra – estaríamos ensaiando, assim, algumas possibilidades para “o dia seguinte da revolução” – lembrando, novamente, o personagem de William Morris. Assim, o conjunto de referências que organizavam estes debates, instituições, normas, expectativas pessoais ou profissionais encontraram, no Lab-Hab, um momento e lugar

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oportunos, um “campo de coexistência”86 que deliberaria uma confluência de eventos particulares que permitiriam uma extensão dos seus efeitos para bem mais longe do que se imaginava naquele momento. Por isso, parecia óbvio que também a técnica – e justamente aquela, aplicada na construção – teria que ser alternativa. Segundo Villá, discutia-se vivamente “esses procedimentos e essas tecnologias totalmente fora de mercado, totalmente fora da produção, totalmente fora da economia” (VILLÁ, 2003 in POMPÉIA, 2006, p.18).

Porém bem aquém de uma narrativa épica, pela qual corremos o permanente risco de deslizar para um canonismo laudatório sem tons mais contrastados, creio que é necessário tomar aquele conjunto de eventos e atentar justamente para as dobras onde se abrigam algumas tensões que parecem fazer engasgar os conteúdos mais positivos. Explico: acho que parecia óbvio naquele momento, embrenhados naquele contexto, que a solução técnica deveria pautar-se pela excelência da relação entre custo e benefício – além do ‘fazermos o que for possível’. Tanto na solução construtiva para as casas como na adoção da forma da cúpula para o centro comunitário, o que estava em jogo era a solitária referência dos arquitetos, jungidos pela lógica da exiguidade dos meios – parece-me que isso também fica claro na série de depoimentos que articulei. E, no entanto, esta não era a referência dos moradores do Recanto, para os casos que coloco em destaque, e mesmo para a maioria das outras circunstâncias em que o Lab-Hab esteve envolvido: parece-me que, à medida que construíamos nossos campos comuns de diálogo com os sem-tetos, partíamos de enunciados até que aparentados, mas, nesse momento, conformadores de sistemas de proposições que não coadunavam entre si. Falávamos em economia dos meios, mas não conseguíamos levar adiante o questionamento do porquê economizar os meios; propúnhamos sistemas alternativos, mas não avançávamos na explicação do porquê recorrer a alternativas; experimentávamos com os pobres aquilo que recusávamos experimentar na construção de nossas próprias casas; tratávamos os sem-tetos não como um ajuntado de personalidades plurais e tão idiossincráticas como nós, mas como agentes de um coletivo que se afirmaria na consciência de si e de cada um dos outros – levando-nos junto, é claro; enfim, a racionalidade que pretendíamos – que nos parecia óbvia – não era tão óbvia nem tão racional assim, do ponto de vista dos sem-tetos. O que quero dizer é que, na medida em que nosso discurso tecnológico paradoxalmente não tocava 86 “O enunciado não é, pois, uma unidade elementar que viria somar-se ou misturar-se às unidades descritas pela gramática ou pela lógica. Não pode ser isolado como uma frase, uma proposição ou um ato de formulação. Descrever um enunciado não significa isolar e caracterizar um segmento horizontal, mas definir as condições nas quais se realizou a função que deu a uma série de signos (não sendo esta forçosamente gramatical nem logicamente estruturada) uma existência, e uma existência específica. Esta a faz aparecer não como um simples traço, mas como relação com um domínio de objetos; não como resultado de uma ação ou de uma operação individual, mas como um jogo de posições possíveis para o sujeito; não como uma totalidade orgânica, autônoma, fechada em si e suscetível de – sozinha – formar sentido, mas como um elemento em um campo de coexistência; não como um acontecimento passageiro ou um objeto inerte, mas como uma materialidade repetível” (FOUCAULT, 2002, p.125 – grifo meu).

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a realidade – pois era justamente a ela que aquele se referia –, também não se colocava em efetivo confronto com a política. Quer dizer, a arquitetura também é, como o discurso filosófico, como a “palavra dada em sonho” se, como pretendem alguns, não for confrontada ativamente com a política87.

Entre idas e voltas, o tempo viria contribuir para a compreensão destas contradições e experimentaríamos, mais adiante, uma espécie de radicalização dessa ‘confrontação tecnológica’, só que então estruturada a partir de algum solo comum: primeiramente estabelecido a partir da competência e do reconhecimento sustentado pela magnitude e importância do aval institucional – que é o caso do Laboratório da UNICAMP, como veremos a seguir; e, posteriormente, ciosamente construído a partir de micro-estratégias de participação, permeabilização cotidiana do conhecimento técnico e exacerbação do reconhecimento mútuo que permitiu colocar nossa racionalidade tecnológica efetivamente em “confronto ativo com a política” – que constituiria o solo sobre o qual erigimos boa parte dos mutirões autogeridos na época da gestão Erundina e no período subsequente. Mas, como sói acontecer, novamente nos deparando, então, com outras contradições.

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O Lab-Hab teria, como já ficou claro, existência relativamente efêmera: logo no início de 1986, como resultado de um movimento grevista promovido por professores e alunos reivindicando melhores salários e condições de ensino, a fundação mantenedora da Escola de Belas Artes de São Paulo – isto é, os donos da escola – promoveu a demissão em massa dos professores do curso de Arquitetura e Urbanismo. Durante todo o ano de 1985, com o país atravessando um período difícil, quando tudo ganhava contornos, mais uma vez, de ‘alguma coisa que poderia ter sido, mas não foi’ – a morte de Tancredo Neves, em abril daquele ano, é bastante eloquente neste sentido –, a crise da Belas Artes arrastar-se-ia sem horizonte de solução. Entre o final do ano de 1985 e o início do seguinte, o Laboratório de Habitação acabou sendo literalmente desmontado: a partir de uma ação quase criminosa por parte da família dona da escola, arquivos, documentos e grande parte do material relativo aos trabalhos em andamento foram sumariamente ‘trancados’ e professores e alunos que ali trabalhavam foram sistematicamente impedidos de acessá-los. Conforme o depoimento de Carlos Andrade, todo o material sistematizado por Raquel Rolnik para uma exposição dos trabalhos do Lab-Hab que vinha sendo organizada há algum tempo – programas,

87 A formulação é de Márcio Alves da Fonseca, professor no Departamento de Filosofia da PUC-São Paulo, em comentário ao livro de Foucault, recém-lançado, “O governo de si e dos outros”, no caderno Sabático, d’O Estado de São Paulo, 12 de fevereiro de 2011, p.S4.

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‘boneco’ do cartaz, todo o material gráfico e iconográfico reunido – seria sumariamente confiscado, trancado juntamente com todo o material e documentos dos trabalhos em andamento88.

De qualquer modo, foi ao longo dos quatro anos de existência do Laboratório que foi possível realizar alguns ensaios de sistemas construtivos que pretendiam estabelecer algum outro raciocínio para o processo de produção da moradia e, em menor amplitude, da urbanização dos bairros populares e favelas. Como já mencionei, a visita do engenheiro Guilherme Coelho à Belas Artes e a mostra do tal Super-8, traria não só a experiência do cooperativismo e da ajuda-mútua aplicados na produção da moradia, como também contribuiria para a construção de um imaginário tecnológico bastante característico.

A frente de pesquisa que acabaria ganhando maior vulto e visibilidade foi a criação do sistema de pré-fabricação de componentes com cerâmica vermelha – bem conhecido aqui no sul como “tijolo baiano”. Havia, como já mencionei, outras vertentes de pesquisa – como, por exemplo, a utilização de formas deslizantes para a elevação de paredes em solo-cimento – uma modalidade de taipa estabilizada, digamos assim, já experimentada no CEPED, na Bahia, e no IPT, em São Paulo89. Mas estas referências acabavam revelando suas enormes incongruências, enquanto sistemas propostos para aplicação em contexto paulistano. A ordem das demandas – não é o caso aqui discuti-las – ampliava-se demasiadamente, tendo em vista a dinâmica da cidade e as expectativas que circulam por através do imaginário da casa própria.

Até onde posso, fico conjeturando se uma determinada sequência de imagens do tal super-8 não teria forjado a semente que traria, desde os argentinos e passando pelos uruguaios (detalho isso mais adiante), a ideia do painel cerâmico que Villá adaptaria ao contexto brasileiro.

88 Carlos R. M. de Andrade, em entrevista concedida em 18 de março de 2011. Além dessa exposição, Carlos e Raquel organizaram, no âmbito do Lab-Hab, um seminário que teve uma repercussão muito grande – e até hoje é lembrado como referência para um debate que começou por volta daquela época: trata-se do seminário “Cidade, Poder e Território”, com o filósofo francês Pierre-Félix Guattari, o carioca ‘antropoteto’ Carlos Nelson Ferreira dos Santos e o antropólogo argentino Néstor Osvaldo Perlongher. É muito provável que não exista mais nada deste material, nem da exposição, nem do seminário – a não ser que, pontualmente, ex-integrantes do Lab-Hab tenham conseguido levar alguma coisa dali. É certo, por exemplo, que voltei a encontrar, já no Laboratório da UNICAMP, alguns restos de documentos e trabalhos realizados no Lab-Hab – como o maquetomóvel, por exemplo. 89 Antes que me interpelem a respeito, é claro que também as modalidades de gestão – uma outra referência uruguaia, com seus modelos de autogestão empregados na produção da moradia – também constituíam um ramo de ensaios bastante vigoroso. Sem dúvida – e para a saúde de meu argumento – é justamente a tecnificação deste procedimento que irá aparecer, no final deste texto, como índice irrevogável de uma certa ‘quantificação da política’.

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Figura 13: Canteiro de pré-fabricação dos painéis de tijolo maciço que seriam utilizados na produção das moradias nas Cooperativas Uruguaias (fonte: USINA, 2004)

Joan Villá formula, em sua dissertação de mestrado, um particular diagnóstico sobre o processo de “centralização” tecnológica que aparece agregado às propostas de sistemas de pré-fabricação no pós-guerra. “Devido à urgência ditada pela necessidade e o momento histórico em que se desenvolveram”, tais tecnologias assumiriam a proporção de programas estratégicos, articulados a políticas públicas de desenvolvimento urbano, regional e industrial, com altos ingressos de investimentos, demandando invariavelmente, para que se assegurasse sua sustentação, seu atrelamento, enquanto programa, à tecno-estrutura estatal (VILLÁ, 2002, p.53): tomando por empréstimo um comentário de Villá em outra oportunidade, tratar-se-ia aqui também de um desenvolvimento tecnológico ‘chapa-branca’ – ao referir-se à pré-fabricação proposta por Lelé90. Tal “centralização” – ao mesmo tempo, tecnológica e política, chamo a atenção – teria orientado uma progressiva proliferação, digamos assim, dos itens que seriam agregados nos componentes. Conforme Villá:

“A centralização intensificou a concentração no desenvolvimento tecnológico do período,

como decorrência lógica e intrínseca das estratégias adotadas. Concentração que se

explicitou de forma concreta na própria concepção dos componentes prefabricados

independentemente do sistema utilizado. Exemplo eloquente desta evolução foi a rápida

incorporação dos subsistemas elétricos, hidráulicos, sanitários e de calefação, bem como 90 Villá, em entrevista que me concedeu em 24 de junho de 2009, considerava a respeito: “Mas eu acho que esse é o equívoco do Lelé – eu acho. Quer dizer, ele está sendo mordido com o próprio veneno. Por quê? Porque ele apostou todas as fichas em um tipo de empreendimento que só pode ser estatal, na verdade”; daí a “cumplicidade” que Villá sugere, entre Estado, poder privado e arquiteto, justamente em virtude do subsídio estatal – este arranjo conferiria à arquitetura resultante um caráter “chapa branca”, como chama (e talvez por isso os sucessivos esgotamentos da proposta: primeiro com Brizola, depois com Collor e, por fim, mais recentemente, com a própria Associação das Pioneiras Sociais – sustentada preponderantemente com recursos orçamentários federais, geridos pelo Senado Federal até o advento do governo Lula). No tocante às implicações urbanísticas referentes a esta necessidade intrínseca que une pré-fabricação e aparato estatal, Villá comenta em sua dissertação: “Ao mesmo tempo, a complexidade tecnológica deste processo passou a demandar uma concentração também crescente de capital que gerou para sua viabilização, escalas urbanísticas com conjuntos habitacionais de tal porte que sua própria absorção urbana e social, configurou-se problemática” (VILLÁ, 2002, p.54).

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das esquadrias, aos painéis de divisórias e envolventes. A lógica centralizadora que gerou a

concentração tecnológica a que nos referimos, prosseguiu até o esgotamento do sistema no

final da década de 1960, pela crise do modelo concentrador: a crescente incorporação de

acessórios acabou gerando unidades hidráulicas completas (cozinha, banheiro e

lavanderia) de tal modo que os componentes bidimensionais, no salto escalar,

transformaram-se em tridimensionais, maiores e mais pesados, foram sendo gerados

produtos industriais acabados até a prefabricação e montagem de unidades habitacionais

completas”(VILLÁ, 2002, p.53)

Em decorrência desta “concentração” exacerbada, o exercício de composição acabaria comprometido – levando consigo a qualidade do produto final –, uma vez que os paquidérmicos componentes pré-fabricados não permitiriam flexibilidade alguma, devido a sua limitada capacidade de articular-se com outros componentes modulares.

Villá discute o quanto esta modalidade de pré-fabricação apareceria de forma impeditiva, principalmente pelo fato de instituir-se, no Brasil, a partir do concreto armado e de sistemas mais complexos de produção. Na sequência deixa explícita a preocupação frente às possibilidades de adoção de sistemas de pré-fabricação para aplicá-los na produção da moradia popular – e para

produção por ajuda mútua, especificamente:

“No Brasil, chegamos a viver, ainda que em outra escala, situações que tardiamente

lembravam a crise gerada pelo tratamento tecnocrático das questões da habitação e do

urbanismo, como o agravante da escassez de capital e de tecnologia, para suportar tais

políticas.[...] Pensávamos na prefabricação, assim mesmo, mas faltavam-nos referências

que, adequadas à nossa realidade, nos permitissem ensaiar novos caminhos na superação

dos problemas observados nos canteiros de obras por mutirão” (VILLÁ, 2002, p.54)

Apesar de uma bem sucedida aplicação de um sistema de pré-fabricação mais “aberto e leve”, utilizando a argamassa armada – levada a cabo pelo arquiteto João Filgueiras Lima, o Lelé –, parecia claro – inclusive para o próprio Lelé – a impropriedade do sistema para aplicação na construção da moradia, devido, principalmente, à baixa estanqueidade térmica dos componentes de argamassa armada91. A opção, segundo Villá, “deixava-nos sem argumentos de solução, para os problemas da habitação da população de baixa renda” (VILLÁ, 2002, p.55).

91 É conhecida a indisposição de Lelé quanto à adoção dos sistemas que pesquisa e desenvolve em soluções construtivas para a moradia popular; ele considera que são sistemas inadequados, particularmente a argamassa armada – pudemos constatar isso, ao frequentarmos o prédio da Associação Comunitária de São Bernardo do Campo, todo construído com componentes de argamassa armada: em termos de conforto, particularmente o térmico, o prédio deixa muito a desejar.

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E assim conclui este trecho de sua dissertação:

“Ficava, entretanto, a certeza deixada pelo exemplo deste acontecimento singular e

excepcional entre nós [o sistema desenvolvido por Lelé], das possibilidades da

prefabricação. Desde que pensada a partir da nossa realidade e capaz de enfrentar de

forma equilibrada e simultânea, as questões da Arquitetura e da Construção” (VILLÁ, 2002,

p.55).

Sem a menor dúvida – e isto é um testemunho –, toda esta discussão reverberava o ambiente vivido pelo Lab-Hab: em igual dimensão, a miserabilidade dos meios e o processo de produção – que nos levou à proposta de adoção do solo-cimento como opção construtiva e a cúpula em seção catenária – eram o enunciado que nos fazia partilhar os inúmeros discursos que iam se estruturando a partir da prática de projeto e obra.

A partir destas considerações, JoanVillá desenvolveria, com o apoio de Yopanan Rebello, um sistema de pré-fabricação que se pautaria por: “(a) sua adoção por uma mão-de-obra não especializada ; (b) obter, nessas condições, um produto final melhor ; (c) eliminar as perdas de material, frequentemente observadas pela imperícia da mão-de-obra face aos procedimentos adotados, reduzindo significativamente os custos finais ; (d) limitar, ao máximo possível, o esforço físico requerido na construção por processos convencionais; e (e) introduzir um modo de produção que organize a mão-de-obra e o canteiro, de modo compatível com o trabalho coletivo em escala” (VILLÁ, 1985 in POMPÉIA, 2006, p.47)

Fica claro, portanto, a intenção de se pensar um sistema construtivo que alcançasse não só a qualidade do produto, mas também a qualidade do processo produtivo como um todo. Este ‘virtuosismo tecnológico’ acabou determinando toda a sequência de articulações posteriores, descrevendo um longo arco que sai da total incompreensão dos sem-tetos frente às elocubrações tecnológicas dos arquitetos, até uma estreito compartilhamento de soluções construtivas diferenciadas, povoada não só por alternativas de pré-fabricação, como também abóbadas, parabolóides hiperbólicos, materiais não convencionais, estruturas metálicas, plantas livres etc. etc. Quer dizer, o que procuro aqui inferir, é o quanto esta inversão deve ter contribuído para o amolecimento, digamos assim, das posturas mais receosas ou desconfiadas de ambos os lados: arquitetos e sem-tetos. Isso porque o que se tratava era de construir uma alternativa que permitisse o enfrentamento de uma conjuntura especialmente adversa: Jânio Quadros assumira a prefeitura de São Paulo em janeiro de 1986 e só sairia em dezembro de 1988; o governo federal desmantelaria toda a estrutura de financiamento da moradia, com a extinção do BNH – o banco seria extinto em 1986, quando José Sarney baixa o Decreto-Lei nº 2.291, de 21/11/1986; todo o esforço mobilizatório

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naquele momento articulava-se em torno das questões a serem levadas para a Constituinte; e boa parte da capacidade de atendimento técnico aos movimentos havia sido solapada com o fim do Lab-Hab. Dessa forma, muito pouco – ou quase nada – prevaleceria no entorno das práticas discursivas que então entrecruzavam referências, construindo uma racionalidade tecnológica compartilhada que se faria presente em tempos futuros.

Mas retomo, para melhor compreendermos tais ‘tempos futuros’, as articulações entre arquitetos e sem-tetos, quando promoveram verdadeiros encontros entre concepções e expectativas, os quais redundariam – segundo meu ponto de vista – numa associação incomum entre prática política e orientação tecnológica.

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os encontros de moradia: os arquitetos e os sem-tetos

Dizer que aconteceu, neste período, um recrudescimento progressivo de uma ação articulada dos movimentos sociais em toda a cidade pode provocar a ilusão de que era iminente uma espécie de levante popular de grandes proporções. Longe disso. Como ainda hoje, estas malhas que agregavam representações articuladas em torno de demandas sociais apenas irrompiam se o tecido, já roto, era tensionado acima de um determinado limite. E é claro que, já neste momento, um certo grau de manipulação das variáveis podia ser estabelecido – e desde então vem sendo aprimorado – pelo conjunto de mecanismos de controle, ajustados e afinados a partir da experiência, associados a processos de cooptação e domesticação dos movimentos. No entanto, trata-se de movimentos e, mantendo-se como tal – e sem pretender o rigor do nominalismo –, movimentos não são confináveis. Se o foram, foi porque deixaram de constituir um movimento. Caberia, portanto, reafirmar a condição processual de todo o histórico que, aqui, pretendemos registrar uma versão.

Minha formação técnica não deixa de sugerir símiles meio estapafúrdias. Mas, vá lá: quando falamos em ‘lençol freático’ e não pensamos objetivamente no que significa, podemos ceder à sugestão de que existe, no subsolo, uma grande lâmina de água que corre por entre um insondável e obscuro vão entre as rochas. Senso comum, não é o que ocorre: o solo apresenta segmentos mais permeáveis e, como uma esponja, permite que a água caminhe pelos interstícios de seus componentes. É assim que enxergo, por vezes, o Movimento de Moradia: por entre o corpo social, permeiam representações e significados que estabelecem possibilidades de coesão entre sujeitos que, ao articularem-se, acabam compondo ações concertadas.

É dessa forma que o Movimento de Moradia na Zona Sul vai descrever um arco de ascenso e declínio ao longo desse período, até avizinharem-se os anos 90. Das ocupações da Fazenda Itupu e dos terrenos da Record, do acampamento em frente à COHAB, da urbanização da Favela Recanto da Alegria, do projeto para a AMAI, dos processos de negociação para a construção do Parque Fernanda, Valo Velho e Adventistas, o Movimento extrai o vigor que o caracterizará neste período. Talvez o ápice dessa articulação na Zona Sul possa ser

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identificado pelo já citado “1º Encontro dos Movimentos de Moradia – por Cooperativismo, Ajuda-

Mútua e Autogestão” (FASE, 1987, p.7), realizado nos dias 11 e 12 de agosto de 198492.

Sintomática denominação, é dali que surgirá a Coordenação de Movimentos de Moradia, a CMM, instância responsável pela articulação e representação institucional do próprio Movimento. Nesse Encontro, além dos quase 100 representantes de diversos grupos da Zona Sul, estiveram também presentes representantes de São Bernardo do Campo – no caso, a Associação de Construção por Mutirão da Vila Comunitária (aquela, da qual participava José Albino, da CMP), vinculada à Associação Comunitária de São Bernardo do Campo – e das Cooperativas Habitacionais Uruguaias. Eulalia lembra também as presenças de José de Filippi Júnior (que seria prefeito de Diadema por três gestões pelo PT), Leonardo Pessina (sobre o qual já comentei), Nabil Bonduki e Antonio Carlos Sant’Anna, ambos do Laboratório de Habitação da Belas Artes (Eulalia Portela Negrelos, entrevista ao autor, 20/07/2010).

No primeiro dia, é dada a palavra para que cada grupo relatasse “sua história de luta, formas de organização e objetivos” (FASE, 1987, p.7). Dessa forma, o estabelecimento da possibilidade de coesão do grupo parecia alinhavar-se nessa espécie de construção de um personagem coletivo – o Movimento – que agregaria expectativas, compromissos, mazelas e desejos particulares em uma narrativa comum. Não é pouco significativo o fato de um encontro com esse caráter ser iniciado pelos participantes contando suas próprias histórias.

No segundo dia, as questões debatidas versariam sobre formas de organização, relação com o poder público e com os técnicos que prestavam assessoria ao Movimento, além de articular algumas bandeiras de lutas comuns.

A velha história de que a prestação da moradia não deveria superar arbitrários 10% do salário mínimo vigente – referência bastante pouco palpável – acaba cedendo lugar à proposta de 10% da renda familiar – algo um pouco melhor referenciado, mas ainda de difícil aferição e completamente desvinculado de qualquer equação que ponderasse as composições do investimento. Mas é notório: apesar de confuso, mesmo na boca das principais lideranças, o argumento já propunha escapar da discussão economicista instruída por um Sistema Financeiro da Habitação.

92 Há, além deste número da Revista Proposta – praticamente todo ele dedicado ao mutirão em geral, e aos Encontros dos Movimentos, em particular –, uma comunicação de Nabil Bonduki e Eulalia Portela, sobre o 1º Encontro, publicada na Revista Espaço & Debate nº14, ano V, de 1985, pp.117 a 121. No mesmo número, também aparece um debate entre Modesto Azevedo – uma das grandes lideranças da época, volto a falar dele mais adiante –, Agenor Dionísio da Silva e Paulino Caetano da Silva, mediada por Marta Farah e Pedro Jacobi e com a participação de Nabil e José Calazans (pp.93 a 105).

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Também é discutido o repasse dos recursos para produção das moradias para as associações comunitárias, tendo como argumento que, sem isso, o processo de autogestão manter-se-ia limitado a estreitas rotinas de administração da mão-de-obra mutirante. A modalidade “mutirão” como processo de organização da força de trabalho é coisa antiga. O “mutirão das 1.000 casas num dia” do Íris Rezende já havia recuperado e repercutido, nessa época, o significado da prática, historicamente vinculada ao mundo rural, nos meios de comunicação em massa. No entanto, os primeiros mutirões da Zona Sul não faziam a administração dos recursos: os materiais e serviços, pelo que me consta, eram providenciados e comprados pelo agente financeiro, no caso a COHAB, ou através do FUNAPS – que já existia desde a época do Olavo Setúbal. Vila Nova Cachoeirinha e mesmo a Vila Comunitária, em São Bernardo do Campo, também os recursos não eram administrados pelo grupo.

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Abrindo um parêntesis: a ironia é que, se posicionarmos com cuidado os eventos, vamos verificar que o primeiro gestor da administração pública municipal que permitiu uma efetiva transferência de recursos de fundos públicos para organizações populares construírem suas casas, foi Jânio Quadros. Jânio havia decretado, em 4 de abril de 1986 – quatro meses após assumir a prefeitura –, a proibição dos mutirões, transferindo para as empreiteiras a responsabilidade de concluí-los. “A vara curta faz a onça”, diz o caboclo, ainda que, no caso, um tanto pouco ágil: o Movimento articula-se e consegue mobilizar, como ainda não se havia visto, um grande número de sem-tetos de toda a cidade e no dia 15 de maio de 1987 promove uma gorda passeata, unificada e decisiva para todo o processo de negociação. Apesar de toda a luta para a conquista da gleba do Instituto Adventista, adquirida desde as negociações de 1983, foi só no início de 1987, no contexto das negociações com Jânio Quadros, que o Movimento conquista o repasse dos recursos – para a Associação administrar – destinados à construção de 2 protótipos na área, já utilizando o projeto e o sistema proposto pelo Laboratório de Habitação da UNICAMP.

A AMAI – Associação de Moradores da Vila Arco-íris – até receberia os recursos, no governo Covas, para aplicá-los sob seus cuidados na construção de duas casas-modelo, em blocos de concreto e com projeto do Lab-Hab da Belas Artes, mas amargaria mais de 2 anos de espera até a solução do impasse gerado pelo fato de que a gleba – negociada e adquirida pela Prefeitura – para a construção de mais de 600 moradias encontrava-se em área de mananciais93. Reduzido o empreendimento a apenas 82 unidades, a AMAI só vai iniciar a obra – aí sim, administrando os

93 Eulalia considera imperdoável este deslize e reputa a ele toda a obstrução ao projeto, que se seguiria ao longo desses dois longos anos (Eulalia Portela Negrelos, entrevista ao autor, 20/07/2010).

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recursos, provenientes da COHAB, e com projeto e sistema propostos pela UNICAMP –, em meados de 1987, também já no governo Jânio Quadros. Os recursos, porém, só poderiam ser aplicados na aquisição de materiais, sem nenhum expediente que permitisse sustentar custos acessórios (mão-de-obra especializada, projeto, acompanhamento técnico, administração etc.). Além disso, a própria COHAB não se sentia nem um pouco à vontade com a aquela forma de transferência dos recursos. Através de uma simples operação administrativa, asfixiava financeiramente o mutirão, obstruindo um fluxo equilibrado dos recursos. Na época, em virtude da indexação do dinheiro e de um processo inflacionário exacerbado, todo o valor contratado havia sido registrado em ORTNs (Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional). Como as parcelas eram liberadas apenas na virada do mês, o mutirão recebia no último dia do período, mas com o valor do mês anterior. Segundo Roberto Pompéia, o procedimento abrigava a clara intenção de inviabilizar o mutirão, alegando, com a insuficiência dos recursos, a incompetência do AMAI na sua administração. Roberto Pompéia teria então enviado correspondência a Jânio, reclamando do procedimento e cobrando providências. O Sr. Francisco Queluz, presidente da COHAB, receberia então, redigido sobre o mesmo texto enviado pelo Pompéia, a seguinte admoestação de Jânio: “O que é isso Dr. Francisco? Cumpra-se já o determinado!”94.

Traço esse histórico e avanço a narrativa porque considero significativo este momento. Mesmo nos programas mais estruturados que previam a organização da força de trabalho a partir da utilização da mão-de-obra gratuita aplicada pelos futuros usuários das moradias, restava-lhes, apenas, a responsabilidade pela organização e gestão da mão-de-obra mutirante95. Se considerarmos que um dos fatores efetivos de realização de algum poder numa sociedade monetarizada passa pela gestão do dinheiro, isto é, é o fato que assegura algum exercício de autonomia, talvez a primeira vez que se obteve, realmente, alguma autonomia efetiva num processo de gestão da produção da moradia tenha sido na época do Jânio. E que não me acusem de estar identificando virtudes no ex-

94 Quem conta essa história é Roberto Pompéia, em depoimento de agosto de 2004. 95 O Programa Municipal de Habitação instituído pela CDH na época do Governo Montoro, em 1985, propunha “a participação da comunidade e das Prefeituras, através da descentralização administrativa e do apoio técnico e financeiro do Governo do Estado, promovendo soluções para os problemas de moradia das famílias de baixíssima renda”. Chegamos a trabalhar, na época do Laboratório de Habitação da UNICAMP, com mutirões sustentados por este programa. Numa cartilha que reproduz o que a tecnocracia ilustrada pensa do pobre, do que é a ‘linguagem popular’, a CDH explica como se dá, então, a administração das obras: “A Prefeitura na medida em que adquire o material, aloca no tempo/espaço [!] e organiza a mão de obra, monta o esquema de produção das unidades etc., está automaticamente [!] administrando a obra, sempre com a assessoria da CDH no que for necessário. A fiscalização por outro lado fica a cargo da CDH”. Além de caber à população concorrer com mão-de-obra gratuita para a produção das moradias, também lhe era concedida outras formas de participação: “Os futuros moradores participam de todas as fases do Programa. Técnicos da Prefeitura e da CDH sugerem alternativas, mas a escolha cabe aos mutuários, pois é a eles que as casas se destinam. Esta é a forma encontrada pela Secretaria Executiva de Habitação e pela CDH para promover a descentralização de decisões” (COMPANHIA DE DESENVOLVIMENTO HABITACIONAL DO ESTADO DE SÃO PAULO – CDH, 1985). As obscuras intenções de um determinado discurso acabam, por vezes, adulterando até mesmo o entendimento de discursos vizinhos.

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presidente. Longe disso, tento aqui iluminar, com maior intensidade, que: 1º) foi o Movimento que – sim, articulado a uma assessoria técnica – conquistou o repasse dos recursos para sua aplicação administrada pelo grupo. Não se tratava, portanto, de uma invenção que teria que esperar a gestão Erundina – é isso que procuro deixar claro; 2º) ninguém, até então, conjeturava restringir a discussão do que seria ‘autogestão’ apenas à administração dos recursos para construção das casas. Tratava-se, ali, de alcançar mais um passo em direção a uma “autonomia dos Movimentos”, como afirmavam, na época, diversas lideranças96. Daí, estabelecer a crítica à simbiose entre autogestão e ‘administração autônoma de recursos financeiros para a construção de casas’ como sendo o máximo de significação que o Movimento já tenha alcançado para a idéia de ‘autogestão’ é, no mínimo, desonesto. Além disso, insisto mais uma vez: trata-se de um processo e, como tal, suscetível à transdução periódica de significados. Fecha parêntesis.

# Retomando os Encontros, é expressiva a pauta de discussões, então mais acirradas quanto ao caráter da autogestão e seus vínculos com os processos de ajuda mútua para construção das moradias, particularmente no 2º Encontro, realizado em 30 de novembro e 1 de dezembro de 1985. Neste 2º Encontro, os próprios participantes trouxeram a percepção do quanto a questão do sobretrabalho era crucial. Em virtude de, neste momento, várias obras já se encontrarem em estágio avançado de execução, esta percepção é mais aguda e concreta:

“Foi questionado, por exemplo, o fato da obra ser inteiramente edificada com trabalho [não] remunerado, pois o cansaço começa a desgastar os mutirantes, já explorados no emprego

principal; julgou-se conveniente garantir trabalho remunerado (de preferência dos próprios

mutirantes) somando-se ao trabalho voluntário sem comprometer a auto-gestão”(FASE,

1987, p.8)

Outra questão debatida foi a relação entre mutirantes, encarregados pela gestão das obras, mestres, técnicos e monitores,

“destacando-se a necessidade de se criar um clima de responsabilidade mútua que

tornasse desnecessária qualquer tipo de hierarquia e de exercício de autoridades e poder

na obra”(p.8)

É também no 2º Encontro que se reafirma a necessidade de institucionalizar a Coordenação, redigindo e aprovando, “em grande assembléia”, um estatuto próprio que afirmasse, como princípios maiores do Movimento, a “ajuda-mútua, auto-gestão, solidariedade e propriedade comum (é mais 96 É recorrente esta afirmação em várias falas do Modesto, do Olímpio e do Vando, na já citada entrevista concedida à revista “Proposta”.

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fácil o governo desapropriar uma pessoa do que uma comunidade)” (FASE, 1987, p.15)97. Também entre as principais “propostas de luta” é possível já identificar uma preocupação com os mecanismos que regulariam as relações entre Movimento e Estado:

“Os movimentos e associações devem se relacionar com o Estado, visando obter recursos,

mas mantendo sua autonomia e rejeitando a cooptação e privilégios individuais”(p.9)

Registro aqui estas referências porque acho que são muito significativas para os debates que se seguiram.

Primeiro: se abortarmos ou obliterarmos a idéia de que o Movimento é agente de um processo, desqualificamos qualquer possibilidade de composição de um ‘juízo dialético’, opondo altos e baixos a partir de suas leituras críticas como baixos e altos – e vice-versa98. Parece-me importante verificar a alternância ou a mutação de sentidos e os novos significados estabelecidos para cada predicado que, numa operação lógica, vão sendo configurados a partir das representações reordenadas por esse sujeito coletivo – pensando aqui na formulação foucoaultiana. Ora, se o que estabelece coesão é justamente o significado compartilhado dessas representações, o grupo muda na medida em que também mudam tais representações. E a possibilidade da mudança é permanente. Por isso é um Movimento. Se não considerarmos a fluidez do processo – que é o que justamente caracteriza esse sujeito –, aplicamos ao Movimento as mesmas categorias de abordagem utilizadas para

97 A defesa da propriedade comum também era herança do processo uruguaio. Como lá são as cooperativas que acessam os créditos, também são elas as representações jurídicas dos mutuários finais, criando essas bolhas de propriedade coletiva autogerida – nem sempre da forma mais eficiente – num oceano hipersaturado de propriedade privada. 98 Parece que o problema da abordagem da categoria ‘movimentos sociais urbanos’ é já bastante antigo. Flávio Saliba Cunha, em artigo de 1992, comenta a limitação das matrizes teóricas utilizadas para análise dos movimentos sociais urbanos e que a insuficiência de tais matrizes começariam já na definição do que viria a ser essa categoria, uma vez que as aproximações veiculadas até então não conseguiam sequer, por exemplo, isolar “formas de expressão da classe dominante”: movimento ecológico, segurança urbana etc. (citando Machado da Silva, L. A. e Ziccardi, A. “Notas para uma discussão sobre movimentos sociais urbanos”. Ciências Sociais Hoje, vol. 2, 1983). Argumenta, então, que: “O que efetivamente se configura como problemático em termos teóricos são alguns dos pressupostos correntes em análises das relações entre estes movimentos e o Estado. Tais relações tendem a ser vistas, em geral, como detrimentais para os movimentos de base ‘comunitária’, aos quais faltariam mecanismos de defesa contra a ação cooptadora e desmobilizadora do poder público” (CUNHA, 1993, p. 134). Na verdade, a modelagem teórica de ‘movimento social’ não só pecaria pelo fato de estabelecer-se a partir de uma leitura que sempre julga o Estado ‘à montante’ em relação à forma social – uma “visão puramente instrumental do Estado”, como afirma Cunha – mas também porque os “modelos interpretativos da ação coletiva”, construídos como foram, não se aplicariam à análise desses movimentos. O que me parece, é que, depois de consumida a análise teórica sob o crivo de uma “visão puramente instrumental do Estado”, passamos agora a uma análise – também instrumental – que parte do pressuposto que o movimento, em si, é o novo ‘lobo do lobo’, que o próprio movimento articularia uma “ação cooptadora e desmobilizadora”, agora do indivíduo: o que acaba, novamente, operando a mesma inversão ideológica que “separa a realidade das classes sociais e o ideário”, uma vez que “considera que há, de um lado, as classes sociais reais e cuja realidade decorre da prática (esta, geralmente confundida com a noção de comportamento) e há, de outro lado, o ideário que reflete correta ou incorretamente essa prática. À maneira clássica há, de um lado, coisas (as classes e seus feitos ou fazeres) e de outro, idéias. Esvai-se, então, o processo de constituição das classes pela práxis social, sua efetuação e seu aparecer, do qual as representações são um momento real e imaginário, pois é constitutivo do ser das classes sociais que o ilusório seja seu modo de aparecer” (CHAUÍ & FRANCO, 1978). Uma espécie de esquizofrenia que pressupõe a existência de um coletivo sem indivíduos também agentes e pensantes.

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qualquer instituição permanente, minimamente mais adequadas, enquanto matrizes de análise, a tais circunstâncias. Daí, o que vemos, são análises que não ponderam a possibilidade da re/invenção e que vêem, no curso dessa trajetória que não se conhece nem se prevê os rumos, tautologias ou aporias irredutíveis que condenam aqueles sujeitos ao puro e simples desmanche da

política.

Segundo: já estava colocada, desde o início desse processo, a questão do sobretrabalho. Era Modesto que dizia, já em 1987: “É muito importante ressaltar que o mutirão não é uma opção e sim a falta de opção: por que sacrificar o descanso do trabalhador durante um ano e meio?” (FASE, 1987, p.17). Desde então, o Movimento – e nós, técnicos – não paramos de ir e vir em torno dessa questão. Não seria justo aderir o ‘processo que se defendia instalar’ apenas às mazelas do processo de produção da moradia porque não se tratava, desde o início, como vimos, de produzir a moradia apenas. Aqui, era Vando que afirmava: “O mutirão não é só construir e morar dentro de uma casa, é se manter dentro de um bairro em melhores condições de vida e liberdade”. E novamente Modesto completava: “A proposta do mutirão não pode ser uma ilha, tem que atingir a sociedade como um todo” (FASE, 1987, p.18). Acredito que manter a crítica apenas pelo viés do sobretrabalho seria expediente próximo a defender que só se discute autogestão, autonomia popular ou democracia direta se associadas à produção da moradia – o que seria um absurdo. É claro que se trata de uma operação problemática, o fato de uma proposta de autonomia popular para gestão e determinação da própria vida ‘livre’ venha à luz colada e entranhada ao pragmatismo de um processo que pretende atender a uma necessidade da ‘vida crua’. No entanto, a vida parece e se nos aparece sempre ‘crua’ e, evitando ‘desnudá-la’ de vez, resta-nos evitar estes dois escolhos, ceticismo e niilismo, envidando esforços para atravessar por algum poro99.

99 Desde que Francisco de Oliveira publicou “A Economia Brasileira: Crítica à Razão Dualista”, estigmatizou-se entre os arquitetos, engenheiros, sociólogos e todos aqueles que trabalhavam com questões vinculadas à moradia popular, que o sobretrabalho seria o ‘pecado original’, congênito à prática do mutirão, expediente próprio de uma clássica “economia natural”, como diz Oliveira. No entanto, em momento algum é levado em consideração que “mutirão” é uma categoria que abriga uma legião de significados, principalmente se considerarmos as formas como a prática é comumente instrumentalizada. Desta feita, não são poucos os abusos cometidos utilizando-se a profundamente procedente crítica de Francisco de Oliveira, reunindo toda e qualquer prática chamada “mutirão” sob um único significado: aquele de 1972. Ao tratar da “’passagem’ da economia de base agrário-exportadora para urbano-industrial” que se concretizaria nos anos posteriores a 1930, Oliveira nos apresenta uma série de considerações que procuram comprovar a tese de que não há nada de “natural” nos processos articulados para se assegurar os mecanismos de acumulação e a centralidade da estrutura urbano-industrial para a expansão capitalista no país: a regulação dos salários através de uma legislação trabalhista; a ação do Estado no estabelecimento de “preços sociais”, que é quanto se paga pela passagem de uma base a outra; o elastecimento da oferta de terra, a compressão dos salários no campo pelo excedente de mão-de-obra e a instalação de infra-estrutura agrária a partir da ação estatal; a produção inicial de bens de consumo versus a diversificação posterior na produção de bens duráveis; a proliferação da oferta e demanda de serviços, concatenada à expansão da base industrial; e, dentre outras formas para a mesma operação, o relativo rebaixamento dos salários promovidos pelo processo de construir a própria casa; todas estas operações seriam estruturais e indispensáveis para que se realizasse a passagem para a base urbano-industrial. Mais que isso, a presença do arcaico nos territórios do novo, nada mais seria que a necessidade contingente exigida pelo sistema, ao invés da dualidade sugerida pela

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De qualquer forma, um aspecto importante quanto ao significado destes Encontros ganha relevância na descrição de Eulalia Portela Negrelos da experiência de urbanização do Recanto da Alegria – em sua dissertação de mestrado e como uma das protagonistas discentes do Lab-Hab da Belas Artes:

“É a história do processo de organização, conscientização e autogestão daquele período de

trabalho na favela que nos dá elementos para uma avaliação muito positiva da remodelação

do Recanto, inclusive porque havia um ambiente de formulação teórica sobre projeto e

participação popular, com a realização de dois encontros de moradia em 1984 e 1985. No

primeiro, com a presença de representantes da FUCVAM, ‘Federación Uruguaya de

Cooperativas de Vivienda por Ajuda Mutua’, os moradores do Recanto apresentaram uma

dramatização de sua experiência”(NEGRELOS, 1998)

Parece que, nesse momento, o diálogo entre projeto e produção de arquitetura e urbanismo e participação popular começa a estabelecer-se como denominador da aproximação entre arquitetos e sem-tetos: se tomarmos por base os questionamentos das lideranças, a forma como reverberam o sentimento de suas bases – os problemas do sobretrabalho, a hierarquia nas obras e na elaboração dos projetos, conflitos entre o saber ilustrado dos arquitetos e as expectativas dos mutirantes, as contingências e necessidades impostas pela escassez de recursos etc. etc. –, creio que o tensionamento experimentado reflete justamente a forma como as ‘palavras e as coisas’ são colocadas em confronto ativo com o ‘mundo real’, fazendo emergir dali uma modalidade de aparecimento da política – claro que nos termos que venho defendendo (como aparece no momento do enunciado, e não no tempo da pura atividade, da formulação do discurso). Mais uma vez, é dali que vou apontando para alguma relação entre prática de ofício e política.

contraposição entre o “atrasado” e o “moderno”, formulada por uma determinada vertente de análise vigente à época. Ora, o âmbito das questões é absurdamente mais amplo que os meandros particulares da produção da moradia. No entanto, não são poucos que parecem reputar exclusivamente à produção da moradia através de processos de ajuda-mútua (o ‘self-help’ que hoje nos aparece como ‘programa’), toda a culpa pela superexploração do trabalhador no Brasil. Se considerarmos que é possível reduzir o trabalho não pago em 50%, 70% ou até mesmo eliminá-lo, restando apenas – se possível fosse – o pleno processo de gestão coletiva e autônoma do empreendimento, ainda assim a superexploração não deixaria de existir: como manufatura e com pesada presença de trabalho artesanal, a construção civil também abriga mecanismos de rebaixamento sistêmico dos salários, onde “os serviços realizados à base da pura força de trabalho, que é remunerada a níveis baixíssimos, transferem, permanentemente, para as atividades econômicas de corte capitalista, uma fração de seu valor, ‘mais-valia’ em síntese.” (OLIVEIRA, 1972, p.29) Até mesmo o sistema de financiamento do trabalho de pesquisa acadêmico operado pelas agências de fomento nacionais, também contribuem, pela superexploração do trabalho não remunerado – e sem quaisquer garantias estabelecidas pela conservadora legislação trabalhista –, com a ampliação da base de acumulação sistêmica. Além disso, como bem apontou José Baravelli, os uruguaios afirmam preferir apropriar-se diretamente do resultado de seu trabalho, do que vendê-lo em troca de um salário – não mais rebaixado, ora vejam – que terá que partilhar, na forma de mais-valia, com o capitalista que o comprou (BARAVELLI, 2006, p.88). Que algum rigor me permita insistir no ajuste da crítica.

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quase um parêntesis: o MDF

Por uma outra vertente, ainda no campo dos Movimentos, é significativa a presença, nesse período, de uma vigorosa articulação da população favelada da cidade, agremiada em torno do Movimento em Defesa do Favelado, o MDF. Constituído lá pelos idos de 1978 a partir de um encontro de líderes de algumas favelas que estavam sendo ameaçadas de despejo, o MDF manteve-se sempre muito próximo à igreja, talvez principalmente em função da liderança do padre irlandês Patrick Clark – morador, até hoje, da favela de Vila Prudente. Apoio significativo ao MDF também era prestado por um grupo de advogados que criara uma associação para atuar nos processos de negociação frente a ameaças de despejo, a Associação em Defesa da Moradia – ADM.

Foi a partir da aproximação com o MDF, em 1985, que acabei conhecendo Patrick, os advogados Henrique Pacheco e Miguel Reis e os então estudantes de Direito, Paulo Conforto e Marcos Zerbini – que viria se tornar uma liderança do Movimento de Moradia na Zona Oeste e que acabaria assumindo uma postura acentuadamente clientelista, praticando, como chamávamos na época, uma “especulação imobiliária popular”, mobilizando e agregando grupos para compra de terra e autoconstrução de moradias. É claro que, como chegava aos ouvidos, o Marquinhos – que era como o chamavam – acabou ganhando um bom dinheiro atuando como intermediador imobiliário. Por outro lado, parece que até hoje os ‘empreendimentos’ sustentados a partir da ação do Marquinhos permanecem completamente irregulares (região de Perus e proximidades). Migrando para a disputa partidária, chegou a eleger-se vereador, usando seu sobrenome para sugerir necessário um ‘transplante’ no coração da Câmara Municipal.

Como já mencionei anteriormente, eu trabalhava, nessa época, com Vitor Lotufo, num escritório nosso que chamávamos “Oficina de Arquitetura”. Já acalentávamos uma possibilidade de atuação nos moldes do que havíamos vivido no Laboratório de Habitação da Belas Artes, só que a partir da estrutura de nossa pequena empresa. É claro que não foi muito adiante. Apesar disso, chegamos a abordar algumas questões que identificávamos como aquelas discutidas pelo Sérgio Ferro e procurávamos, nos nossos trabalhos, implementar alguns procedimentos que trouxessem a inteligência das mãos dos nossos operários para o primeiro plano daquilo que construíamos. Mas – voltando – nossa atuação junto ao MDF, na época, era voluntária e suscetível às limitações impostas pelo voluntarismo: prestamos-lhes algum apoio, mas já num período bastante difícil para sustentar um trabalho do gênero.

Assim, vem à lembrança uma visita que fizemos à favela Saquarema (mais ou menos em meados de 1986), instalada sob uma rede de alta tensão, num trecho próximo e paralelo à avenida Paes de

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Barros. O objetivo, se não me falha a memória, era avaliarmos e discutir a possibilidade de construção de um Centro Comunitário na favela. Foi nessa oportunidade que pude conversar um pouco melhor com Paulinho – o Paulo Conforto – e iniciar uma amizade que teimamos em fazer prevalecer à distância (Paulo hoje é promotor público no Paraná, na região metropolitana de Curitiba). Também foi por volta dessa época que fizemos algumas reuniões no MDF e acabamos auxiliando o Henrique Pacheco em sua primeira campanha para vereador pelo PT – eram outros tempos: ajudamos desenhando algum material de campanha (folhetos e impressão de camisetas, basicamente).

Para todos os efeitos, a atuação do MDF restringia-se naquela época, basicamente a apoiar moradores de favelas na defesa contra ações de reintegração de posse e despejo. Talvez fosse uma das entidades mais ativas de então. Mas pode ser impressão minha: era a única entidade com a qual mantive alguma proximidade naquele período. De qualquer forma, era significativo o vínculo do MDF com a igreja, quer no âmbito local, com a proximidade ao Patrick, quer no contexto regional, articulando mecanismos de ação e mobilização com D. Luciano Mendes de Almeida, bispo da região na época100.

É nesse período que senti o que já li e ouvi tantas outras vezes: o vetor de organização popular no campo da moradia perdia intensidade na Zona Sul e crescia na Zona Leste. Talvez, um dos fatores que contribuiu para essa nova configuração territorial do Movimento, poderia ser a proliferação acentuada das Comunidades Eclesiais de Base naquela região. Mas é algo a conferir.

100 Para uma aproximação mais precisa com a história do MDF, ver a cuidadosa reconstrução presente – mais uma vez – no já citado trabalho de Gabriel Feltran: FELTRAN, 2005, particularmente o Capítulo 3.

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arquitetura para os pobres e virtuosismo tecnológico: o Laboratório de Habitação da UNICAMP

Como vimos, entre o final de 1985 e o início de 1986, a crise no Curso de Arquitetura e Urbanismo da Escola de Belas Artes de São Paulo agravara-se e praticamente todo o corpo docente é então demitido e todas as atividades sumariamente suspensas. Assim, também o Laboratório de Habitação da Belas Artes encerra suas atividades.

A diáspora esparramou gente para destinos os mais variados. Jorge Caron já havia deixado a coordenação do curso em 1984101 e ingressaria com professor-colaborador no curso de arquitetura e urbanismo da Escola de Engenharia de São Carlos em 1987; Carlos Andrade intensificaria suas atividades na PUC de Campinas – onde já estava desde 1978 –, assumindo a Coordenação Pedagógica e montando e coordenando o Laboratório do Habitat, o L’Habitat; Nabil Bonduki assumiu a presidência do Sindicato dos Arquitetos de São Paulo, em 1986; ali, com Reginaldo Ronconi mais alguns outros arquitetos, seria estruturada uma frente de apoio e assessoria aos movimentos de moradia – como já mencionei em nota. Outros tantos, como eu e Vitor Lotufo, passaram a se dedicar quase que exclusivamente a seus escritórios, atuando apenas esporadicamente nas favelas, nas periferias e junto aos movimentos de moradia.

Pouco tempo antes, em meados de 1985, o arquiteto Joan Villá Martinez – que então coordenava o Lab-Hab juntamente com Nabil Bonduki, teria apresentado a Carlos Vogt, então vice-reitor na UNICAMP, uma proposta para desenvolvimento de um sistema construtivo dedicado à produção da moradia popular. Vogt teria demandado de Villá a adequação da proposta, viabilizando sua inclusão em um dos primeiros programas do NUDECRI – Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade (ainda denominado NDC), chamado “Programa do Artista Residente”. Durante o segundo semestre de 101 Conforme indica a pesquisa de Amanda Ruggiero, em 22 de junho de 1984 – isto é, um ano antes de instalar-se a derradeira crise (RUGGIERO, 2006, p.73). Corroboro aqui uma observação que Amanda registra em seu mestrado (p.75): todo o tempo que passei na Belas Artes (entre meados de 1983 e início de 1986), permanecemos em constantes crises. A administração trabalhista era bem precária, conduzida de uma forma um tanto caseira e nem sempre muito transparente; a administração da vida acadêmica passava, por vezes, pelo constrangimento moral dos alunos, caso envolvidos com atividades de sublevação discente; todos os reajustes das mensalidades – naquele tempo isso era bem frequente – eram devidamente acompanhados pela imediata reação dos alunos; além do que algumas práticas de intimidação ou cooptação, dos alunos e dos professores, eram claramente instruídas por uma orientação para-militar (ameaças, veladas ou explícitas, através de telefonemas anônimos, perseguições nos ônibus ou recados por vias de informantes). Acho que não exagero. O que é paradoxal é que, num clima permanentemente tenso, tenha acontecido tudo aquilo que descrevo e outros tantos já descreveram. O efeito imediato com a saída do Caron foi a perda de um exímio negociador. Mas, por outro lado, o falecimento do patriarca da família Cardim – que, apesar das orientações políticas e vínculos pouco recomendáveis, sob certo ponto de vista, era um empresário bastante lúcido se destacava por um aguçado senso de oportunidade – deve ter deixado claro para o Caron que suas possibilidades de negociação tinham terminado: o sucessor do velho Cardim, Paulo Gomes Cardim, não deixaria dúvidas a este respeito. Mais uma observação: o trabalho de Amanda Ruggiero estrutura-se a partir da documentação do acervo de Jorge Caron, hoje no Centro de Documentação – CEDOC do Instituto de Arquitetura e Urbanismo de São Carlos – USP. Dentre os documentos, Amanda reproduz, em seu trabalho, a carta de despedida de Caron, endereçada a professores e alunos da Belas Artes.

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1985 – ou, mais precisamente, no final de setembro de 1985 – a proposta de uma espécie de ‘programa’ habitacional para ser promovido pela universidade campineira, assinado em conjunto com o arquiteto Mauro Bondi e o engenheiro Yopanan Rebello (ambos também participantes do Lab-Hab da Belas Artes), fica pronto para a submissão às instâncias superiores da universidade. A proposta intitulava-se “Projeto piloto em favela, de núcleo habitacional sob gestão comunitária, com

o emprego de tecnologia de construção utilizando componentes pré-fabricados com cerâmica

vermelha” e efetivamente pretendia que a universidade bancasse materialmente a implantação desse núcleo habitacional utilizando o sistema de construção com painéis cerâmicos pré-fabricados (POMPÉIA, 2006, p.46). Tomava como referência as demandas de contextos que argumentariam, por si mesmas, em favor da proposta: exatamente aquelas formuladas pelos movimentos por moradia emergentes naquele momento – os grupos da Vila Nova Cachoeirinha, do Grajaú (futura Associação de Moradores da Vila Arco-íris, a AMAI, e o Recanto da Alegria), grupos da região do Instituto Adventista e do Parque Fernanda, além dos movimentos que levaram adiante a construção da Vila Comunitária, em São Bernardo do Campo, que agora já articulavam novas perspectivas, apoiados pelo Grupo de Habitação da Associação Comunitária de São Bernardo do Campo. Como argumentos ‘práticos’ o documento trazia, por um lado, a disponibilidade de inúmeros programas de produção da moradia para os pobres em todas as instâncias de governo, mas que esbarravam, via de regra, na carência de sistemas mais ‘racionais’ de produção; e, por outro lado – e deixando implícita a correlação entre o primeiro argumento e este –, a possibilidade de aplicação de mão-de-obra gratuita e não-especializada como recurso para a redução dos custos de produção da habitação – porém situada como uma experiência de “ajuda mútua”, já acumulada pelos movimentos de moradia (POMPÉIA, 2006, p.47). Esta proposta foi então encaminhada ao diretor do Departamento de Ciência e Tecnologia da Secretaria da Indústria, Comércio e Tecnologia do Estado de São Paulo, Sr. Pedro Motta de Barros (governo Montoro), em ofício de 15 de outubro de 1985, e teria sido ela que promoveria os apoios necessários para a criação e implantação de um Laboratório de Habitação na UNICAMP (POMPÉIA, 2006, p.46)102.

102 Cabe ressaltar, portanto, que Villá começa a negociar a transferência do Laboratório para a UNICAMP justamente no período mais crítico da crise no Curso de Arquitetura da Escola de Belas Artes e, portanto, de sustentabilidade do próprio LAB-HAB (a greve que acirrou a crise começou em 11 de setembro de 1985). Segundo Pompéia, “os primeiros documentos da relação de Villá com a UNICAMP datam de meados de 1985, sendo que o fim do Laboratório e da Escola de Belas Artes deu-se no final deste ano, enquanto a demissão dos professores apenas em março de 1986” (POMPÉIA, 2006, p.36 – grifos meus). Tais “primeiros documentos” devem ser, portanto, o projeto piloto e os ofícios entre universidade e secretaria estadual. Tendo em vista a superposição temporal dos fatos, torna-se compreensível o sentimento manifestado por Eulalia Portela Negrelos, no depoimento que me concedeu: “E ainda tem a história, do Villá ter ido embora, né, do Laboratório de Habitação sem falar com ninguém...[...] Ele estava [envolvido] com o desenvolvimento desse painel [cerâmico] – que a gente tentou fazer no Grajaú, mas era muito pesado e tal. [...] Mas ele desapareceu, sumiu, nunca mais pisou no Laboratório, nunca mais pôs os pés lá dentro! Foi um choque para a equipe [...]. Eu me lembro que ele vinha um pouco desgostoso com essa coisa dos projetos nunca irem até o fim – porque ele é

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Pelo que entendi do que aconteceu, Joan Villá teria conseguido negociar – não sei em que termos – o espólio – ou parte dele – dos projetos e trabalhos do Lab-Hab. Uma grande parte desse material foi levada para a UNICAMP, onde o Villá obteve apoio para a criação do Laboratório junto ao tal NUDECRI, um dos muitos núcleos da universidade, à época do Dr. José Aristodemo Pinotti como reitor103. Como diz Mario Luis Attab Braga, no entanto, não seria possível caracterizar todo este processo como uma ‘transferência’ de laboratório entre instituições de ensino: o Laboratório da UNICAMP foi integralmente concebido a partir de um sistema de produção de componentes para construção de moradias populares, enquanto que o Lab-Hab, com vimos, transitava um perfil bem mais heterogêneo e plural.

“O painel foi apenas uma das várias experiências do Laboratório da Belas Artes, que

contava com uma equipe heterogênea, para não dizer interdisciplinar [...]. O laboratório da

UNICAMP foi criado exclusivamente para o desenvolvimento e aplicação desta tecnologia

[...]. Era um outro laboratório, com gestão e proposta completamente diferentes, baseado

em projetos pessoais e políticos. O próprio nome ‘artista residente’ confere a

autoridade”(Mario L. A. Braga, entrevista ao autor, 11/02/2011).

É claro que o que estava em jogo era o respaldo que uma universidade pública podia dar, ainda mais uma universidade com o porte da UNICAMP. Conforme Pompéia:

“Além da fragilidade em que se encontrava o Laboratório de Habitação da FEBASP, a

Unicamp abria a possibilidade de muitos trabalhos, projetos e desejos desse Laboratório se

realizarem. Além da força institucional da Unicamp, decorrente do acesso a inúmeros

órgãos de pesquisa e órgãos públicos, o conhecimento acumulado no Laboratório de

Habitação da FEBASP levou Villá a acreditar numa mudança radical do processo

habitacional. Vislumbrava-se um horizonte bastante otimista, uma arquitetura muito boa,

marcada pela construção modular; uma tecnologia muito simples que poderia ser absorvida

um cara de projeto e excelente – e aí a leitura que eu fiz na época, além de ter ficado muito decepcionada, eu lembro de ter feito a leitura de que ‘bom, ele não quer participação de nada, ele quer é fazer um projeto e construir’![...] Era tão forte essa discussão sobre projetar, não projetar [...] E o painel era dele, ele que tinha desenvolvido, ninguém ia dizer o contrário!” (Eulalia Portela Negrelos, entrevista ao autor, 20/07/2010). 103 O Laboratório nascia articulado institucionalmente à Reitoria, através do NUDECRI, um dos primeiros nove núcleos criados na gestão de Pinotti, entre 1982 e 1986. Inicialmente dirigido pelo professor Carlos Vogt e com o nome de Núcleo de Desenvolvimento da Criação – NDC, o NUDECRI integrava um sistema de núcleos interdisciplinares criados no âmbito dos esforços de fortalecimento institucional da Universidade, concebido e defendido como mecanismos responsáveis pela “dinamização” das relações entre Universidade e comunidade, abrigando as atividades de extensão. A defesa dessa estrutura era liderada por um grupo de professores composto por, entre outros, o próprio Aristodemo Pinotti, Geraldo Giovanni, Paulo Renato Costa Souza, Carlos Vogt, Irineu dos Santos, Renato Jorge e, um tempo depois, Carlos Henrique Brito Cruz e José Tadeu Jorge. Na verdade, pelo menos no caso do Laboratório de Habitação, o que efetivamente viabilizava sua contratação e um relacionamento ‘comercial’ com seus clientes – Prefeituras, Governos de Estados, companhias de habitação etc. – era a FUNCAMP, fundação de direito privado que sustentava a provisão e administração dos fundos gerados pelo nosso trabalho. Desde essa época.

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mesmo por quem não entendesse de construção. Enfim, seria o ‘povo’ montando fábricas

de pré-moldados e a comunidade gerindo o seu próprio empreendimento”(POMPÉIA, 2006,

p.45)

Como teria dito Garrincha, só faltava combinar com os russos.

De qualquer modo, o que fica claro é que esta nova configuração institucional parecia conceder à idéia de um segmento profissional engajado na produção de arquitetura para os pobres uma certa longevidade: uma instituição aparentemente mais estável, aparentemente menos sujeita aos desmandos de seus dirigentes, o ambiente de pesquisa e a demanda por atividades justificavam seus objetivos de extensão – tudo isso parecia fazer a universidade pública o lugar mais adequado para uma proposta como aquela. Por outro lado, construira-se, durante a existência do Lab-Hab, uma real convicção que aquela boa arquitetura da moradia popular que se via no Uruguai tinha que ser, não só devidamente apropriada ao contexto brasileiro, mas também configurada de forma a atender às expectativas de pré-fabricação leve, a ser produzida por ajuda mútua e autogestão, além de responder a uma dilacerante economia de meios – com já procurei deixar claro anteriormente.

Figura 15: componentes do sistema e processo de produção e montagem dos painéis (fonte: UNICAMP, s/d)

#104

No último período de existência do LabHab, um sistema construtivo baseado em princípios de pré-fabricação de componentes, vinha sendo gestado, calculado e ensaiado. A idéia era produzir, em canteiros com instalações pouco complexas, painéis de blocos cerâmicos armados que poderiam funcionar como componentes para paredes, lajes, escadas e mobiliário. O mesmo raciocínio valeria para, lançando mão de telhas cerâmicas, a produção de componentes para a confecção de telhados.

104 Valho-me, para a descrição do sistema, da reescrita de um trecho de minha tese de doutorado: LOPES, 2006, pp.324 a 328.

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O componente era tecnologicamente bastante simples: os painéis eram modulados conforme as dimensões dos blocos cerâmicos – 9x19x19cm – e do dimensionamento da nervura em concreto armado, responsável pela estabilidade do painel. Contando a dimensão da argamassa de rejuntamento, o painel tinha uma seção típica de 9x45cm – dois blocos cerâmicos mais uma nervura de 7cm – e um desenvolvimento que variava conforme a quantidade de blocos compostos, partindo de 20cm e, acrescendo modularmente esta medida conforme a destinação do componente, podia atingir o tamanho que fosse, assegurado o limite dado pela sua capacidade de auto sustentar-se. No caso dos painéis de parede, as pontas eram reforçadas com um encabeçamento de concreto de 5cm, vedando as extremidades e permitindo apoiá-las ou servirem de apoio (os painéis de laje dispensavam este expediente)105. A posição dos tijolos permitia a introdução prévia de dutos e componentes de instalações elétricas e hidráulicas: eram os painéis de chuveiro, de pia, de vaso sanitário, de tomadas, interruptores ou arandelas, já com alturas previamente estabelecidas conforme padrões mais usuais.

Como se destinava para uma produção por ajuda mútua, a restrição da falta de especialização da mão-de-obra era um fator que determinava a busca por uma convergência entre todos os elementos, já no momento de sua fabricação. Por outro lado, precisava ser barato, tanto em termos de composição material como em termos do modo como seria produzido: era necessário pensar como articular os elementos já na fase do projeto, exacerbar as conectividades entre tais elementos e pré-definir todas as singularidades.

O canteiro organizava-se, mais ou menos de modo invariável, em pistas de areia regularizada, apoiada diretamente sobre uma porção de terreno regularizada, confinada entre duas réguas paralelas de concreto, precisamente alinhadas e niveladas. Sobre estas duas réguas de concreto, eram apoiados gabaritos – primeiro eram de madeira e, posteriormente, passamos a fabricá-los com perfil metálico simples – que definiam a largura modular do painel. As alturas eram definidas em planilhas que saltavam dos projetos em números e códigos: painéis de parede, de instalação, painéis para peitoris de janela, para empenas, para lajes, escadas ou coberturas. Os blocos cerâmicos eram encostados nas laterais dos gabaritos e em seguida preenchidos os vãos com concreto, na nervura entre o par de blocos, e argamassa, entre os blocos no desenvolvimento da altura do painel106.

105 Villá, em depoimento concedido em 24 de janeiro de 2009, lembra que este detalhe foi resultado da sugestão do Padre Luís, do Grajaú, um dos muitos clérigos que acompanhavam os mutirões na década de 1980. 106 Novamente, segundo relato de Villá, referindo-se ao processo de preenchimento das juntas entre os blocos cerâmicos com argamassa: “o mais engraçado de todos [os “acontecimentos” que denotariam a riqueza de um determinado processo de produção] – no Grajaú foi uma senhora que era faxineira de uma creche da prefeitura. Um dia ela chegou pra mim e falou: ‘olha, eu estava pensando que se o concreto [sic] fosse um pouco mais mole, se tivesse

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Figura 16: canteiro de fabricação dos painéis em Veranópolis, Rio Grande do Sul (fonte: UNICAMP, s/d)

Era significativo – e esta é uma qualidade inquestionável do sistema – que qualquer um pudesse participar na fabricação dos painéis, independendo de idade, sexo ou força física. Os blocos eram estocados junto às pistas, distribuídos nos gabaritos, concretados e rejuntados com relativa facilidade, e o produto invariavelmente resultava numa qualidade que impressionava.

Em linhas gerais, o processo de montagem seguia as ordens tradicionais da edificação: as fundações, em geral, eram constituídas por ‘radiers’ – placas monolíticas de concreto armado, simplesmente apoiadas no solo, de dimensões que não excediam, na maioria das vezes, exíguos 10cm – por sobre os quais ‘pintávamos’ a posição dos painéis que ali se apoiavam sobre uma rala camada de argamassa. Inter-travados com grampos metálicos e posteriormente rejuntados, os painéis de parede iam, lado a lado, elevando a planta da casa, conformando os espaços e estabelecendo os panos estruturais que sustentariam ou a cobertura ou outro pavimento. Os painéis de laje – já espelhando processos mais tradicionais – eram apoiados nos extremos sobre as

mais água, eu poderia encher...’ Ela explicou, mas eu não entendi... ‘Já volto!’ E ela foi até a creche – isso num domingo – [...] daí quando ela volta, ela vem com um bule de café gigante, de servir a merenda escolar. Puta bule, sabe?! Dois litros e meio, acho que era. E aí ela pediu para um cara lá fazer uma massa pra ela mais plástica, ela enfiou dentro do bule e com o bico ela ia passando, preenchendo as juntas” (Joan Villá Martinez, entrevista ao autor em 24/01/2009). Considerando uma resistência razoável para a argamassa, tal procedimento parecia absolutamente pertinente e original: rapidez na execução e limpeza no resultado final. Mas, em contrapartida, a maior plasticidade da argamassa, ela acabava preenchendo todo o volume dos furos do bloco cerâmico, fazendo com que os painéis ficassem mais pesados e o consumo de argamassa ampliasse de modo desmesurado.

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cabeças dos painéis de parede e escoradas no desenvolvimento do vão, numa frequência relativa ao tamanho deste vão. Levavam capa e armadura negativa como toda laje pré-fabricada.

Quando comecei a trabalhar no Laboratório da UNICAMP, no início de 1988, o sistema já estava praticamente fechado, digamos assim: o que descrevi já tinha se estabelecido, naquela época, como procedimento padrão. Mas volto um pouco no tempo para engatar outras questões.

A concepção do painel vinha, com já disse, do tempo do Lab-Hab na Belas Artes. Villá, apesar de reconhecer a importância da referência uruguaia para o trabalho no Lab-Hab107, nunca deixou muito claro como se deram as conjugações que o levaram a compor o sistema – porque talvez não seja claro mesmo. Em sua dissertação – que trata justamente do assunto –, este aspecto parece ficar evidente:

“É difícil situar com precisão e fidelidade como são e como ocorrem os primeiros momentos

de um processo que, com o passar do tempo, acabam por configurar uma invenção [...]. O

que provavelmente ocorre nestas situações é o precipitar de um processo cumulativo em

que um conjunto de imagens suscitadas pela memória começa a se ordenar dentro de

algum princípio lógico que anteriormente não existia. [...] Os argumentos [para o estabelecimento daquele processo de pré-fabricação], que se mostrariam decisivos, foram

se estruturando ao longo de um processo de concepção que, de forma interativa, alternaria

projetos e ensaios que tiveram seu ponto de partida na resolução técnica de uns elementos

prefabricados, utilizados na construção de unidades habitacionais em algumas cooperativas

uruguaias” (VILLÁ, 2002, pp.49 e 55)

Apesar de identificar de onde provém a principal referência para a concepção do sistema, refere-se incorretamente aos painéis na arquitetura de habitação social no Uruguai:

“Tratava-se de pequenas lajes constituídas por tijolos maciços e nervuras de concreto.

Estas lajes de escassa espessura, da ordem de 5cm, correspondentes à altura de um tijolo,

eram utilizadas para a construção de pequenas marquises e para vencer os pequenos vãos

de espaços como despensas, banheiros e lavanderias. Suas dimensões que não excediam

1,5m de comprimento, possuíam uma largura aproximada de 0,25m e 0,05m de espessura.

Executados sobre bancadas ou, quase sempre no chão, eram configurados com o auxílio

de gabaritos. Após o período de cura, eram empilhadas no estoque do canteiro ou

107 “O intercâmbio do Laboratório de Habitação da FEBASP com o CCU – Centro Cooperativista Uruguayo e os contatos pessoais com alguns dos principais quadros técnicos e políticos, deu-se de forma ininterrupta durante os anos de 1984 e 1985 e tiveram uma importância decisiva na condução das ações do Laboratório de Habitação” (VILLÁ, 2002, p.46).

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colocadas no seu lugar definitivo da obra. A solução dada a estas pequenas lajes, de

alguma forma enraizada na tradição da construção com tijolos maciços, freqüente em boa

parte da América espanhola, adotava procedimentos comuns à cerâmica armada presentes

em obras do Engenheiro Eladio Dieste. Porém, diferentemente do caminho por este

adotado, de transferir para a construção cerâmica aspectos avançados da tecnologia do

concreto armado – construção ‘in situ’ com a adoção de formas deslizantes e a utilização de

sistemas móveis de escoramento – pautava-se por características essenciais e comuns aos

processos de prefabricação de modo geral. Por diversas razões, estas pequenas lajes de

tijolo maciço constituíram-se numa referência definitiva [...]”(VILLÁ, 2002, pp.55-56)

Figura 17: Aplicação, em moradia, do painel cerâmico em lajes, em 2006; e o painel, no lugar de uma de suas origens Centro Experimental de la Vivienda Economica - CEVE, em Córdoba, Argentina, em 2007; observar a construção, atrás, onde a envoltória é construída com painéis (fontes: BARAVELLI, 2006; e acervo do autor).

Se afirmo que a referência de Villá é incorreta, é porque, na verdade, cheguei a visitar algumas cooperativas, em Montevidéu, onde os painéis alcançavam dimensões bem superiores a 1,5m. Além disso, por outro lado, a origem do painel cerâmico remonta longa data, tradição construtiva que atravessa continentes e superposição de proposições que não permite uma delimitação precisa para a tal ‘invenção’: desde a reconstrução européia no pós-guerra, passando pelos esforços da mecanização da indústria da construção civil americana, até as formulações dos argentinos do CEVE – Centro Experimental de la Vivienda Economica, em Córdoba – que, no final dos anos 1960,

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propõem um sistema de pré-fabricação “ao pie de obra” – o sistema BENO –, utilizando componentes produzidos com tijolos maciços, para a composição de paredes, lajes e coberturas108.

Contudo, não quero parecer que fico às turras, pretendendo questionar autorias ou pertinência ou não de uma genealogia das origens – acho que venho procurando demonstrar o avesso. O que quero evidenciar é precisamente a impossibilidade de estabelecermos qual a referência definitiva – e como isso não interfere no estabelecimento de qual a adequação devida. Em seu trabalho, Villá passa a enumerar os principais argumentos que justificariam a adaptação do sistema ao contexto material e produtivo brasileiro – o que demandaria a substituição do tijolo de barro cozido pelo bloco cerâmico laminado de oito furos: (1) porque simplificaria as tarefas e operações, “tornando possível sua execução, com bons resultados, por mão de obra não especializada”; (2) porque permitia a realização concomitante de atividades construtivas, permitindo a superposição de etapas de obra; (3) porque permite a produção “ao pé da obra”, baseando o “processo produtivo numa concepção econômica”, eliminando custos com transporte, “decorrente da produção centralizada em usina” e necessidade de investimentos de grande vulto, “impossíveis de serem absorvidos numa única obra”; (4) porque lança mão do bloco cerâmico e o utiliza intensivamente na composição do produto tecnológico – um material que apresenta um bom desempenho em termos de conforto, portador de inquestionável tradição na cultura construtiva brasileira, além de ser facilmente acessado no mercado comum de materiais construtivos (VILLÁ, 2002, p.56).

Isto posto, todo o processo de concepção de um sistema tecnológico passa por um arranjo quase infinito de suposições e possibilidades. É pelo ensaio e pela conjugação de todos os argumentos – como os que Villá relaciona – que a opção vai sendo circunscrita e se delineando como procedimento – compondo um sistema e arrematando-se como um dispositivo109.

Dessa forma, o desenvolvimento do painel seguiu um significativo percurso e acabava agregando significados para além de sua materialidade imanente. É curioso percebermos, nas imagens publicadas numa matéria sobre o Lab-Hab no terceiro número da revista AU – Arquitetura e

Urbanismo, em novembro de 1985110, a posição dos blocos cerâmicos nas fotos que mostram a montagem do painel no gabarito e aquela na foto no canto direito, com o painel apoiado, vencendo 108 Em pesquisa sobre a Moradia Estudantil da UNICAMP – um dos projetos mais importantes do Laboratório –, resgatamos todo o histórico do painel cerâmico, tentando situá-lo com uma sequência de referências que vão percorrendo tempos e espaços até indescritíveis, e que vão sofrendo alterações e transformações à medida que transita de um contexto a outro. Soubemos, dessa forma, recompor uma trajetória que sai da Itália, nos tempos da imigração para a América do Sul, passa pela região de Córdoba, na Argentina – onde, lá pelos idos do final dos anos 1960, inspira a criação do sistema BENO, passa pelo Uruguai de Eladio Dieste e suas Cooperativas de Vivienda e chega ao Brasil – sem dúvida, pelas mãos de Villá (LOPES & LANCHA, 2011). 109 O filósofo Gilbert Simondon trata isso com o processo de individuação do objeto técnico. Mais uma vez, referência à minha tese de doutorado (LOPES, 2006). 110 AU – ano 1/nº3, São Paulo: PINI, novembro 1985. pp. 61/65.

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um vão entre duas mesas. Se desapercebido, o detalhe acaba diluído e não dá noção do percurso: a capacidade resistente de um bloco cerâmico já não é grande coisa, principalmente se os esforços forem aplicados transversalmente aos furos que o atravessam. Melhor, portanto, que os esforços carreguem o painel no sentido dos furos dos blocos, melhorando, pela inércia destes furos, o desempenho da peça estrutural. De quebra, resolve-se, assim, a passagem dos dutos de elétrica e hidráulica, inseridos na furação dos blocos cerâmicos – agora a prumo e alinhada – acompanhando o maior eixo do componente. É este trajeto, que a sequência de fotos ilumina: entre as cinco primeiras e a sexta última, há uma decalagem que define um outro patamar para a adequação do sistema, arrancando-o de suas origens remotas e atualizando-o para o contexto local e atual.

Figura 18: ensaio de produção do painel e de seu comportamento estático

Se me demoro na descrição do sistema é porque se trata de uma expressão acabada de ‘virtuosismo tecnológico’: a solução parecia perfeita e, mais de uma vez, perguntava-se, na mídia, se definitivamente não seria aquele o ‘ovo de Colombo’. Sem a menor sombra de dúvida, o que se imaginava era alcançar uma “arquitetura popular” em estrito sentido, assentada sobre uma concepção tecnológica que traria, de toda forma, uma efetiva adequação aos processos participativos de produção da moradia, à redução do desgaste físico implicados no sobretrabalho do mutirão, ao equacionamento entre custo e qualidade do produto – inclusive arquitetônica – e, por fim, mas não só, ao contexto terceiro-mundista que nos mantinha sob estrita contingência no agenciamento dos meios.

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Figura 19: Villá, ao centro, com Nabil, atrás, à sua esquerda e Yopanan, na ponta, à sua direita. Esta se tornou uma “imagem símbolo”, a prova da eficiência do painel

Em 18 de abril de 1986, Paulo Renato Costa Souza assumiu a reitoria da universidade, sucedendo José Aristodemo Pinotti: dado o futuro político que o esperava, não é difícil imaginar a importância do personagem, devido ao respaldo dado ao trabalho do Laboratório e a repercussão e visibilidade que, por sua vez, o nosso trabalho lhe devolvia111.

Em 17 de abril de 1986 – ou seja, no último dia da gestão de Pinotti – é inaugurado o primeiro protótipo de uma moradia produzida integralmente com componentes do sistema de pré-fabricação com cerâmica vermelha – a “casinha da UNICAMP”, como ficou conhecida112. Instalava-se numa área que havia sido destinada ao NUDECRI e, por alguns anos, abrigou o escritório de Campinas do Laboratório de Habitação113. A “casinha da UNICAMP” era absolutamente sedutora: assumindo

111 Apenas para registro e para a composição da galeria de nomes que venho anotando: juntamente com Paulo Renato, assumiriam a direção da universidade: Carlos Vogt – Coordenador Geral da Universidade / José Carlos Valladão de Mattos: Pró-reitor de Extensão / Ubiratan D’Ambrosio: Pró-reitor de Desenvolvimento Universitário / Antônio Mario Sette: Pró-reitor de Graduação / Hélio Waldman: Pró-reitor de Pesquisa / Bernardo Beiguelman: Pró-reitor de Pós-Graduação. 112 A construção de um protótipo no campus da UNICAMP – a “casinha” – acabaria consolidando a crença na possibilidade de se articular uma boa arquitetura à provisão da moradia popular. Formalmente adequada às condições materiais e técnicas dispostas no país e com desenho que sempre considerei particularmente original e de altíssima qualidade, seguramente não camuflava as referências à arquitetura das Cooperativas Uruguaias – o que acho uma virtude. Com diz o texto de Villá no ‘folder preto’: “Na ‘casinha da Unicamp’, o desenho que a constrói procura resgatar a dignidade da casa do trabalhador, perdida no fazer tecnocrático que, sob a ótica de eliminar déficits habitacionais – permanentes apesar de tudo –, tem amesquinhado a moradia ao transformá-la num instrumento utilitário, resultado de um processo de produção massiva dentro de normas quantitativas de qualidade: a qualidade quantificada pelo salário e a renda familiar...”. E um pouco mais a frente: “Escolhemos a cerâmica vermelha não só por suas qualidades tradicionais com material mas, também, porque é com ela que se constrói a ‘casa da cidade’, na visão do povo que nela chega para viver” (NUDECRI, s/d). Não posso dizer que estes argumentos não convenceram movimentos, arquitetos e engenheiros, assistentes sociais, dirigentes universitários, mídia, governantes e funcionários das agências governamentais etc. 113 Segundo informação que consta do ‘folder preto’ (ver imagem), o “custo final do protótipo (...) foi computado em 17 de abril de 1986”; e conforme Roberto Pompéia: “Em janeiro de 1986, iniciou-se a implantação do Laboratório de Habitação da Unicamp e, em abril desse mesmo ano, no último dia da gestão do Reitor José Aristodemo Pinotti [dia 17 de abril, portanto], inaugurava-se o primeiro protótipo: ‘a Casinha da Unicamp’” (POMPÉIA, 2006, pp.65-66 – grifos do

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um papel para bem além de sua materialidade objetiva, como diz Pompéia – que é bastante correto em relação à herança deixada pelo Lab-Hab da Belas Artes:

“seria possível descrever a história do Laboratório de Habitação da Unicamp apenas com

um rápido olhar sobre a ‘Casinha da Unicamp’. Essa imagem é reveladora. Ali está a

conjunção de idéias, crenças e contradições nascidas de um momento precioso que

consegue juntar o desejo dos professores e alunos do Laboratório de Habitação da

FEBASP de uma resposta para a questão da moradia” (POMPÉIA, 2006, p.48).

Figura 20: 1º folder: meados 1986, a “casinha”: por volta de 1987 e em maio 2010

Agora, é claro que a propaganda também ajudava a fazer a fama: o “folder preto” – que era como nos referíamos a ele – também acabou assumindo um papel icônico, no transcorrer de toda essa história. O trabalho do Laboratório de Habitação tinha sido escolhido, em 1987, juntamente com mais dois outros projetos, para representar o Brasil na premiação internacional da UIA de 1987, no Reino Unido. O “folder preto” é resultado dos painéis desenhados para envio à premiação. Mas, para além de sua finalidade imediata, serviu também como material de divulgação do trabalho: foi reproduzido, por exemplo, numa publicação da FASE, o nº35 da Revista Proposta – Experiências

em Educação Popular, de setembro de 1987, a qual venho citando alguns excertos no meu texto. Ocupando nove páginas centrais da revista, o conteúdo dividia espaço com uma descrição do que eram os mutirões habitacionais em São Paulo naquela época e como se estabeleceu a Coordenação dos Movimentos e Associações de Moradia, Ajuda Mútua e Autogestão; com um relato do que fora o I e o II Encontro dos Movimentos de Moradia – por cooperativismo, ajuda mútua e autogestão, além de uma entrevista com as principais lideranças da época; com um longa entrevista com Ermínia Maricato, já uma referência para os movimentos neste período; e com textos autor). Isso significa que, boa parte da transição de Joan Villá entre Belas Artes e UNICAMP foi realizada ainda na gestão do professor José Aristodemo Pinotti.

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de Haroldo Baptista de Abreu e Márcia da Silva Pereira Leite, sobre a condição de “subcidadania” conferida aos mutirantes pelo sobretrabalho que lhes era imposto e sobre os problemas fundiários que, com lembrou Carlos Andrade, precedia toda e qualquer iniciativa para solucionar o problema da moradia dos mais pobres. No final, a revista traz uma sequência de fotos, com um certo apelo impressionista, de uma desocupação realizada pela Guarda Civil Metropolitana, criada por Jânio Quadros – então prefeito de São Paulo –, de uma ocupação na Zona Leste, quando é assassinado, pela força policial, o pedreiro Adão Manuel da Silva.

Chamo a atenção para esta composição de participantes de uma publicação deste caráter porque me parece eloquente o “campo de coexistência” que ela propicia. Independentemente de indagarmos quem eram os leitores da revista, é certo que ela fazia cruzar inúmeros elementos, de fontes e origens diversos, mas que coadunavam algum sentido. Como procurei destacar anteriormente, a figura da “casinha da UNICAMP” também contribuiria de modo determinado para a composição deste sentido.

Figura 21: O ‘folder preto”, integralmente reproduzido no número 35 da Revista “Proposta”, de 1987 (fonte: acervo do autor)

Tendo como base tecnológica o desenvolvimento de um sistema construtivo organizado como manufatura homogênea – buscando escapar das limitações do sistema artesanal da produção única ou mesmo da produção manufatureira serial –, o Laboratório da UNICAMP constituiu-se pretendendo ir muito além na qualidade do desenho aplicado para a produção habitacional que

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vinha sistematicamente desde sempre sendo praticado, articulando um ‘virtuosismo tecnológico’ que acabaria deixando escapar alguns descompassos que fariam a proposta dobrar-se sobre si mesma. As palavras de Joan Villá, no texto do “folder preto”, publicado na Revista Proposta, se olhadas assim de longe, podem parecer fruto de um destempero ideológico desmedido. Mas elas são a real medida do que, naquele momento, parecia verdade:

“Acreditamos na atividade projetual como sendo uma ação coletiva na qual arquitetos e

usuários se relacionem mediante o desenho e o canteiro numa postura sem pressupostos,

na qual não haja lugar para experiência exclusiva e apriorística de quem quer que

seja”(NUDECRI, s/d)

Já no final de 1986, o Laboratório da UNICAMP consolidava-se e crescia a quantidade de trabalhos, implicando também no crescimento da equipe. Conforme Roberto Pompéia:

“No final de 1986, o LabHab-Unicamp deslanchou. Além do coordenador Joan Villá,

trabalhavam na equipe do escritório de São Paulo dois arquitetos, Francisco Scargliusi e

Roberto Pompéia. Em Campinas, o arquiteto Adauto Moraes, estagiários da PUCCamp e os

quatro instrutores de obra desenvolviam os protótipos. No início de 1987 a equipe se

ampliou e os trabalhos multiplicaram-se” (POMPÉIA, 2006, p.52).

Tendo em vista a demanda e o acúmulo de solicitações de trabalho,

“só havia uma saída: a contratação de mais dois arquitetos, um engenheiro, técnicos em

edificação e estagiários. Assim, em meados de fevereiro de 1987, foram contratados os

arquitetos Mario Luis Attab Braga e Sérgio de Simone, o engenheiro Yopanan Conrado

Pereira Rebello, o técnico em instalações Edson Takahashi e, para os desenhos dos

manuais foi contratada a arquiteta Sueli Takabaiashi. Menos de um ano depois [da criação do Laboratório], a equipe dobrou”(p.52)

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Figura 22: equipe do Laboratório da UNICAMP em 1989; da esquerda para a direita: João Marcos de Almeida Lopes, Roberto Alfredo Pompéia, Edson Takahashi, Paulo Milanez, Débora Akemi Doukan e Mario Luis Attab Braga (fonte: acervo do autor)

Quando fui convidado por Joan Villá para trabalhar no Laboratório, entre o final de 1987 e o início de 1988, dava-se encaminhamento a vários projetos, distribuídos entre nós, arquitetos, em função de suas características intrínsecas: desde as obras no campus da UNICAMP – Moradia dos Estudantes, Restaurante do Lago e Creche do PROFIC/PRODECAD; passando pelos mutirões no interior de São Paulo sustentados pelo Programa Municipal de Habitação, ainda da época do Montoro (Socorro, Duartina e Vinhedo); pelos protótipos que pretendiam fincar embriões de empreendimentos em outras cidades (Recife, João Pessoa e Maceió); pelo conjunto em Veranópolis no Rio Grande do Sul e, de quebra, uma creche em Canoas; pelo protótipo do Jardim Industrial, em São Bernardo do Campo; até as articulações com o governo Moreira Franco, no Rio de Janeiro, que acabou me levando a trabalhar na condição de ‘sub-secretário’ de habitação de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense (Joan Villá era o secretário); sempre, na pauta, mantinham-se os trabalhos com o pessoal da AMAI, do Adventistas e do Movimento de Moradia na Zona Sul114.

Esse período no Laboratório de Habitação da UNICAMP deve ter sido um dos mais intensos de minha vida: chegávamos cedo, saíamos tarde, trabalhávamos aos sábados e domingos e a intensidade com que discutíamos os trabalhos fazia-nos acreditar que participávamos de um processo que prestes faria eclodir transformações mais substantivas. Trabalhei ali durante um ano e meio, sob a coordenação do Joan Villá. Nesse período, Roberto Pompéia, Paulo Milanez – o Tchê, como o chamávamos e como se chama qualquer gaúcho fora do Rio Grande do Sul –, Mario Braga, 114 Eram frequentes as visitas do Roberto, uma liderança do Parque Fernanda, que invariavelmente acabavam terminando no bar da esquina, discutindo como seriam os dias posteriores àqueles de uma improvável revolução libertária promovida pelos movimentos sociais, ao sabor de cerveja indigestamente associada a sanduíches de mortadela.

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Miriam Blois e Edson Takahasi compunham o grupo quando fui parar ali. Depois se juntou a nós, com a saída de Miriam, Ana Müller, Débora Akemi e Sérgio Roberto Mancini, colega de turma que trabalhava com informática, desde nossa época na FAU.

Logo que entrei, fui designado para o projeto e acompanhamento das obras de um conjunto de 72 casas em Socorro, interior de São Paulo, juntamente com outros arquitetos. A capacidade do mutirão de Socorro produzir painéis impressionava: se uma casa demandava em torno de 500 a 600 painéis em média, os mutirantes dali fabricavam uma média de 400 painéis a cada dia do fim de semana, isto é, praticamente uma casa e meia por semana. Pelos números absolutos, significaria que o conjunto todo poderia ser concluído entre 10 a 14 meses.

A obra para a construção da Moradia Estudantil, para alunos da UNICAMP, por circunstâncias óbvias (difícil imaginar um mutirão de estudantes), foi realizada por uma empreiteira, a partir dos projetos e sistema construtivo elaborados pelo Laboratório. A uma certa altura do desenvolvimento das obras, os serventes iniciaram uma greve por melhoria de salários, porque não viam distinção entre sua atividade na fabricação dos componentes e a qualidade dos painéis que produziam, da atividade e da qualidade dos painéis fabricados pelos oficiais pedreiros. Isto é, o sistema diluía a diferença de habilidades tradicionais que eram mecanicamente traduzidas em diferencial de salários – e o que poderia parecer uma possibilidade de avantajar os salários dos ajudantes, contribuía para o rebaixamento relativo do salário dos oficiais, bastava eliminá-los do canteiro de obras.

Procuro deixar claro nestes dois exemplos de aplicação dos ‘painéis cerâmicos’ – simplificávamos o nome para também pré-fabricar a fala – o quanto o sistema todo aplicado na sua fabricação – o aparato canteiro – demonstrava alguma pertinência enquanto processo técnico. Mas era a partir do canteiro de fabricação que começavam os problemas.

Os painéis em Socorro empilhavam-se em carreiras extensas, dispostos em pilhas cuidadosamente montadas, numa área central que não seria ocupada nas primeiras etapas de obra. Mas, mesmo central, a área de estocagem mantinha uma distância variável dos locais onde as casas seriam montadas. Para carregá-los, corpos, linfas e sangue aos montes. As péssimas condições topográficas das áreas em que trabalhávamos (aos pobres, frequentemente é o que resta) impedia o uso de carrinhos; mesmo assim, vivíamos procurando ou inventado modelos que melhor adequassem relevo e transporte horizontal dos painéis. Basicamente, toda a movimentação dos painéis era feita pelos braços, corpos e mãos dos mutirantes. Não é necessário dizer que a obra se estendeu por muito mais tempo.

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No caso da obra da Moradia, a empreiteira havia empregado sistemas mecanizados de içamento e transporte. Como as edificações ali chegavam a até três pavimentos, eram necessárias gruas já de porte razoável: o que fazia parecer uma operação desproporcional, comparando a potência da grua e o peso – agora insignificante – dos painéis. No caso de empreendimentos menores, invariavelmente a morfologia do terreno e o adensamento entre as construções (pobres moram em adensamentos edificados), impediam sequer a entrada e o trânsito de pequenos caminhões com gruas de menor porte – o que chamamos de ‘caminhão munk’, a marca que assume o nome da coisa.

O que me parece é que faltava um meio termo, isto é, faltava um ajuste fino entre o projeto do sistema e o processo de sua execução – em toda sua extensão, não apenas parcialmente, circunscrito ao canteiro de fabricação dos painéis, mas alcançando o processo como um todo. Faltava inventar o meio técnico adequado para o restante do sistema: transporte horizontal e vertical, mecanismos para o manuseio dos painéis no local de montagem, equipamentos para montagem de lajes de modo seguro etc.

Se num primeiro momento o sistema da UNICAMP seduziu arquitetos e sem-tetos – vários mutirões na cidade e no estado de São Paulo, além de algumas investidas, de menor e maior porte, em outros estados –, já em 1988 era visto com um certo pé atrás, justamente pelos aspectos que acabo de relatar.

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É a partir dessa possibilidade tecnológica e dessa referência arquitetônica e urbanística que o pessoal da Associação Pró-Moradia da Zona Sul (Parque Santo Antonio, Parque Regina, Jardim Comercial e Vila Remo) negocia a construção de 620 casas em mutirão, já no período Jânio Quadros, dando continuidade a um processo que havia sido iniciado ainda no tempo do Lab-Hab da Belas Artes. Os embates da negociação testemunhariam algumas passagens que ilustram a habilidade do ex-presidente, então prefeito, com as palavras: Movimento, Villá e, se não me engano, o Tchê, ao saírem de uma das sessões de negociação com Jânio, depararam-se, na ante-sala do gabinete, com uma luxuosa maquete de uma possível obra encomendada pelo prefeito a Oscar Niemeyer. Ensaiou-se então o muxoxo de uma fingida indignação pelo fato de a Prefeitura interpor tantos obstáculos alegando falta de recursos se lhe era possível encomendar um projeto de Niemeyer para a cidade – e que, provavelmente, custaria uma fortuna. Jânio teria respondido: “Ora, Niemeyer para os ricos; ‘Villa’ para os pobres”.

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De toda feita, foi nesse momento que Jânio acordou que liberaria os recursos para a construção de dois protótipos no Adventistas115. Lembro que um deles abrigaria a residência do Modesto, uma das lideranças mais importantes da Zona Sul, do qual já citei algumas frases. Isso foi em 1987. As casas-modelo reproduziriam a mesma planta da “casinha da UNICAMP” e se tornariam protagonistas de uma série de acalorados debates, controvérsias ou defesas incontestes. Nas palavras de Modesto:

“Agora que o 1º protótipo com o novo modelo de construção (com tecnologia da UNICAMP)

foi concluído, fizemos uma primeira avaliação e houve algumas críticas. Estamos pensando

em “sentar” os instrutores, a equipe técnica e os mutirantes e discutir as seguintes

questões: uma universidade tem certos equipamentos de infra-estrutura que a população

não tem; outra questão é se a UNICAMP está aberta a receber críticas do movimento, se

está disposta a fazer alterações para melhorar o projeto” (FASE, 1987, p.16)

Figura 23: Modesto, Vando e a construção do 1º protótipo da casa da UNICAMP no mutirão do Colégio Adventista (FASE. Revista Proposta nº35, anoXII, Setembro 1987, p.30) Apesar do discurso oficial, as sugestões de alteração não eram muito bem recebidas, principalmente quando propunham alterações no sistema construtivo. Uma das questões que acabou me indispondo em relação ao trabalho no Laboratório foi justamente o fato de o sistema manter-se fechado, no sentido que comentei anteriormente. Chegamos a arriscar algumas tentativas de ampliar a composição do sistema, permitindo a adoção de sistemas leves de transporte horizontal e vertical – uma providência que eu considerava imprescindível, particularmente, na medida em que, carregar um painel cerâmico que pesaria em torno de 100kg em quatro pessoas, até seria aceitável. O problema é que uma casa demandava em torno de 400 a

115 Também seria nesse mesmo período que, para espanto geral, Jânio chamaria Olímpio e o Valo Velho para negociar o mutirão naquele local. Em 1988, José Fillipi Jr. foi convidado, através do Olímpio, para prestar assessoria técnica para o grupo. A COHAB – na época do Queluz – obviamente interpôs-se e alegou impossibilidades operacionais para remunerar o trabalho dos técnicos. Para que fosse viabilizada a remuneração, Fillipi combinaria com Jânio que o valor para remuneração dos técnicos deveria ser embutido no valor dos tijolos e das esquadrias – um expediente, no mínimo, questionável. Num de seus famosos bilhetinhos, Jânio exorta Queluz a cumprir o que havia combinado.

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500 painéis. Carregá-los todos e içá-los todos manualmente, sem nenhuma mecanização, era humanamente improvável que os mutirantes se sentissem satisfeitos. Roberto Pompéia lembra que, um dos principais entraves para o acelerado desenvolvimento das obras da AMAI, no Grajaú, era justamente a morosidade dos processos de transporte e montagem. Quando estruturado o programa FUNAPS-Comunitário, seria Reginaldo Ronconi, então coordenador do FUNAPS-Comunitário, quem proporia a instalação de uma grua na obra, viabilizando finalmente sua conclusão.

Esses são, portanto, os termos que teriam conduzido a experiência da UNICAMP dobrar-se sobre si mesma, com falei. Uma certa intransigência frente às demandas pela flexibilização do sistema, o fato de que realmente o painel era pesado demais para manuseio sem mecanização alguma, além das próprias variações de humor nas gestões subsequentes da universidade – este um aspecto determinante, nos anos posteriores –, acabariam arrastando o Laboratório para uma espécie de limbo que o faria perdurar, com alguma sobrevida, até seu fechamento, no final de 1999.

Se retomarmos as questões que Villá levanta em seu mestrado – e como as situamos no final da história do Lab-Hab da Belas Artes – caberiam os seguintes comentários:

(a) Villá faz com que seu leitor acabe com a convicção de que, praticamente, só se fez, aqui e em outras paragens, pré-fabricação usando o concreto armado – o que não é verdade. Apenas a título de exemplo, cabe registrar o trabalho “Desempenho estrutural de painéis pré-fabricados com blocos

cerâmicos”, de autoria de Cristina Guimarães Cesar, em tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Engenharia Civil da Universidade Federal de Santa Catarina, em abril de 2007 – ali, a autora faz um razoável balanço do que se produziu e se produz em termos de pré-fabricação com blocos cerâmicos, contemplando um histórico que nem sempre nos é dado acesso. Traz algumas experiências americanas e européias – onde painéis de grandes dimensões são içados para sua instalação no edifício em construção –, além daquelas realizadas no Brasil – dentre elas, o sistema de pré-fabricação cerâmica da UNICAMP.

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Figura 24: Orange County Professional Building, em Santa Ana, Califórina – EUA (fonte: SCHNEIDER e

DICKEY, 1994 in CESAR, 2007)

(b) Trata-se, como denominam os colegas de fala hispânica, de uma “prefabricación a pie de obra” – e, portanto, parece absolutamente pertinente a preocupação de Villá com os processos que descreve como configuradores de uma “centralização tecnológica”. Isto é, falta a adequação da escala do processo de pré-fabricação ao “tamanho” da composição orgânica do capital (capital fixo + capital variável); é necessário que o sistema de pré-fabricação considere o ajuste fino entre mão-de-obra disponível e a disponibilidade de equipamentos e de áreas para a produção e o estoque, além da adequação do material aplicado na produção dos componentes do sistema.

(c) de qualquer forma, não seria impertinente considerar que, dadas as condições em que se realizaram os processos – todos – de produção das relativamente poucas obras utilizando o sistema de pré-fabricação em cerâmica vermelha, também aqui se faz necessário um esforço razoável de concentração de recursos para sua viabilização: é relevante observarmos que o sistema só agregou respaldo suficiente para seu desenvolvimento na medida que a UNICAMP lhe deu guarida e nele investiu recursos consideráveis (toda a equipe técnica do Laboratório, incluindo a coordenação exercida pelo Joan Villá, além de toda a estrutura administrativa instalada no escritório de São Paulo – e o Laboratório era um dos motivos de a universidade manter um escritório em São Paulo – era sustentada a partir de recursos do orçamento da UNICAMP – e não a partir dos convênios que o Laboratório firmava. Os recursos resultados de tais convênios não seriam suficientes para sustentar os custos com salários, material de consumo e todos os serviços que concorriam para o desenvolvimento dos projetos). Além disso, a UNICAMP tornar-se-ia o principal cliente do Laboratório – o que lhe emprestava a condição de um escritório técnico especializado, para desenvolvimento de projetos de interesse direto da reitoria. O que queremos aqui sugerir é que um

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sistema relativamente ligeiro de pré-fabricação – como o é o sistema de pré-fabricação em cerâmica vermelha – também requer respaldo técnico-burocrático suficiente que lhe conceda a infra-estrutura e o respaldo necessários para seu adequado desenvolvimento – o que pode aproximá-lo da condição “chapa branca” sugerida por Villá anteriormente.

Creio que é dessa forma que um excesso de ‘virtuosismo tecnológico’ acaba promovendo seu próprio esgotamento: no momento em que o sistema fecha-se em si mesmo, perde a capacidade de confrontar-se com as mazelas próprias do cotidiano – e, desse modo, perde a capacidade de dialogar como e enquanto política.

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É nesse período, no entanto, que o Movimento da Zona Sul também acaba enfrentando um processo de esgotamento que o levaria, já no início dos anos 90, a uma completa fragmentação: conforme depoimentos, o desgaste das lideranças mais antigas e a dificuldade na formação das novas, além dos problemas próprios de gestão das obras – como os entraves interpostos pela COHAB – acabaram patrocinando o declínio de suas estrutura organizativas.

Presenciei, em 1988, um debate entre o pessoal da Zona Sul, da Coordenação de Movimentos, e o pessoal da Zona Leste – que se agrupava em torno da liderança do padre Antonio Marchioni, de São Miguel, mais conhecido como ‘o padre Ticão’. Lembro que também estava presente alguém da FASE. A discussão, acalorada, debruçava-se sobre a definição do lugar onde seria instalada, na cidade, uma fábrica de casas, nos moldes do que o Lelé havia estruturado para as escolas no Rio116. A disputa acirrava-se a partir de uma lógica territorial: ou Leste, ou Sul. A sugestão conciliatória de Joan Villá seria a construção da fábrica num terreno qualquer no fim da Avenida Tiradentes: nem tanto a Leste, nem tanto a Sul. A proposta não foi além daquele debate. Mas foi significativo perceber o nível das tensões que, mais tarde, iriam refletir as disposições e dissidências entre o Movimento da Zona Sul e a União de Movimentos de Moradia, fortemente influenciada pelo movimento cada vez mais peso-pesado da Zona Leste, representado na liderança do padre Ticão e de Paulo Conforto – que havia conhecido em minhas incursões na favela Saquarema, como contei mais atrás.

Quanto ao esgotamento das estruturas de direção do Movimento na Zona Sul, pudemos experimentar um pouco das dificuldades quando assessoramos, já como USINA, a partir de 1990, o que virou o Residencial Talara, no Guarapiranga. Eram quatro movimentos num único empreendimento, quatro associações, quatro compradores, quatro administrações etc. Uma 116 Chamávamos essa possibilidade de UZINA de casas – sem ainda nenhuma referência ao grupo de José Celso Martinez – que adotaria o nome alguns anos depois. Mas rendo aqui tributo ao que criamos: USINA.

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desconfiando da outra, não percebíamos nenhuma possibilidade de trégua entre as lideranças. O que me parece é que justamente a estrutura que pretendia a “autocapacitação” do Movimento, estabelecendo a alternância obrigatória dos dirigentes a cada duas gestões (isto é, um período máximo quatro anos), acabaria promovendo sua autocorrosão.

Essa pretensão fica clara na fala de Vando Elídio, do Parque Santo Antonio, ainda na Revista Proposta de 1987:

“Isso significa que, após 4 anos no máximo, os 12 diretores deixam o cargo formalmente,

mas a nova diretoria teria, em vez de doze, 24 companheiros, porque os 12 novos terão a

colaboração dos 12 anteriores. Formando novas lideranças que continuarão o

trabalho”(FASE, 1987, p.21)

No âmbito do Movimento de Moradia nunca vi um investimento deliberado em trabalho de formação – não como vi no Movimento dos Sem-Terra. Restavam as disputas internas pelo micro-poder exercido pelos novos quadros dirigentes e um profundo desgaste das lideranças mais antigas. Cheguei a ver Modesto e ‘seu’ Pedrinho – outra liderança importante da Zona Sul – serem violentamente questionados, acusados injustamente de cultivarem uma postura centralizadora e autoritária – o que me parecia largamente improcedente.

O confronto e a dissidência entre as instâncias regionais do Movimento de Moradia fariam surgir um novo arranjo na geografia da ação coletiva, do conteúdo das pautas e do caráter das mobilizações empreendidas até então. O surgimento e uma crescente proeminência da União de Movimentos de Moradia, à semelhança de uma aparente hegemonia, far-se-ia sentir logo nos primeiros anos da década de noventa – e para sua origem, a Zona Leste havia contribuído com diversos grupos, já bastante articulados em torno da Igreja. Além disso, a Assembléia Nacional Constituinte colocava, para os Movimentos, questões como Reforma Urbana, Orçamento Público, Direito Urbanístico e financiamento público federal para a habitação, questões estas que pareciam distantes do universo de um Movimento que, neste momento, deixava o âmbito local, tornava-se efetivamente massivo e operava intensamente pelos resultados.

A percepção do dissenso em relação à Zona Leste não deixava de ser observada até mesmo entre as lideranças do Movimento na Zona Sul. Uma fala do Modesto, já em 1987, demonstra o modo de tratamento dado para as questões:

“As propostas que a Zona Sul tem é de uma independência, inclusive dos partidos políticos,

e de não cooptação do movimento. O que o pessoal da Leste tem é outro tipo de relação

com o Estado; com eles esta relação se dá de forma normal e natural. Eles acatam as

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propostas da assessoria técnica do governo, enquanto que a gente manteve um conflito

permanente entre as nossas propostas técnicas e as do governo. Na verdade a Zona Leste

não tinha propostas alternativas e, assim, o único jeito é você aceitar o que o governo

oferece. A diferença básica entre Zona Sul e Leste está portanto no conceito de autonomia

do movimento.”(FASE, 1987, p.16)

Rosângela Paz, avaliando as razões para o esgotamento do “espaço articulador” representado pela Coordenação da Zona Sul já no final do governo Jânio, sugere algumas pistas, numa entrevista a Ana Amélia da Silva:

“Primeiro, pelo desgaste da relação entre administração, lideranças e bairros e, segundo,

pela fragmentação do movimento, que se acentuou principalmente a partir das eleições de

1986 (...). Sim, porque as lideranças da Zona Sul se lançavam como candidatos e a disputa

partidária por diretórios era muito forte, principalmente no interior do PT. Isso ajudou a

quebrar a Coordenação. Penso que a questão da área física – disponibilidade de terras

para a construção de moradias – também funcionou como um elemento de restrição,

impedindo que os movimentos se ampliassem como na Zona Leste. Lembro aqui a você

que a Zona Sul tem um limite territorial por conta das questões da proteção dos

mananciais.” (SILVA,1994, p.115)

Por outro lado, a eleição de Luiza Erundina no final de 1988 acabaria extrapolando, aparentemente, a medida dos limites com os quais os Movimentos sempre lidaram: tudo parecia, então, possível. E é nesse contexto que as estruturas organizativas do Movimento de Moradia vão, pouco a pouco, adquirindo uma fisionomia mais massiva, por um lado, e mais institucionalizada, por outro. E não é sem dificuldades que qualifico o que via como ‘fisionomia institucionalizada’ (e, novamente, volto ao núcleo do meu argumento): menos que isso, tratava-se de um espaço de regras não-estatutárias, fragilmente articuladas entre si, mas rigorosamente formalizadas em discurso; mais que isso, um grupo extenso e coeso, capaz de aglutinar multidões em torno da questão da moradia, mas sem um patamar mínimo de elaboração mais complexa. No fundo, não sabíamos o que fazia da União, a União. Acho, realmente, que seu caráter era e ainda é mais complexo do que se costuma suspeitar.

Tais estruturas, entretanto, pareciam surgir imersas num estado de tensão que faria sentir resultados também no período subsequente: posturas propositivas associadas a uma permanente afirmação de autonomia; concordância em participar de algumas instâncias de governo, ao mesmo tempo em que se reafirmava alteridade; envolvimento nas disputas internas entre as tendências partidárias e a recusa de oferecer o Movimento como ‘massa de manobra’; a admissão de uma poderosa presença da igreja convivendo com discursos e práticas libertárias e nem sempre ‘muito

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católicas’. Parecia, assim, um corpo abrigando muitos corpos: havia, já de início, uma certa indistinção de limites, esmaecimento dos contornos de posturas diversas e superposição entre posições e proposições117.

Seria por isso, afinal, que surgiriam as tensões. Elas promoveriam, então, gradualmente, uma reedição dos significados, sem necessariamente exprimir uma cisão deflagrada já na origem.

Seriam talvez estas nuanças que possibilitariam alguma coesão entre lideranças da Zona Leste, Norte, Sudeste e Oeste para criação da União de Movimentos por Moradia de São Paulo, a UMM, a partir de uma articulação de movimentos que remontava o ano de 1987. Funcionando precariamente, a UMM promovia reuniões semanais de sua coordenação executiva, e ampliava as discussões em plenárias mensais com representantes das regiões.

As reuniões da executiva aconteciam todas as segundas-feiras no gabinete de Henrique Pacheco, já na época vereador pelo PT. Nem sempre corriam tranqüilamente. Lembro de uma reunião em que o padre Ticão batia na mesa e esbravejava: “O que é isso, companheiro?”, quando uma liderança da Zona Norte reclamava sua posição na futura coordenação geral da UMM. Padre Ticão sempre manteve, ao longo de todo o período da gestão Erundina, uma condução bastante firme do Movimento, compartilhada com Paulinho. A FASE e mesmo nós, das assessorias técnicas éramos invariavelmente demandados para tarefas urgentíssimas que Ticão depois apresentava impressas em papéis coloridos mimeografados. Foi a partir de uma dessas demandas que acabei redigindo uma primeira proposta do que viria a ser, depois de muita discussão, o esboço do Fundo Nacional de Moradia Popular – que acabou desaguando no Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social – o FNHIS. Lembro que discuti exaustivamente com a coordenação da União porque achava que não deveria ser um Fundo Nacional de Habitação, como pretendia, inicialmente, padre Ticão. A urgência na elaboração da proposta era a necessidade de se dar início à coleta de assinaturas para apresentá-la ao Congresso Nacional como projeto de lei de iniciativa popular – pretendendo alcançar a cifra de um milhão de assinaturas, a qual jamais seria comprovada118.

As reuniões plenárias da UMM aconteciam a cada mês, normalmente aos sábados. Era nessas plenárias que corriam soltos os papéis coloridos do Ticão, convocando para uma passeata, definindo agendas, noticiando negociações, tudo misturado com letras de músicas e trechos bíblicos.

117 Pode ser que talvez cometa algum exagero, mas minha impressão dessa época é que o Movimento adquirira proporções que inviabilizariam qualquer mecanismo de controle. E, no entanto, mantinha-se relativamente coeso – pelo menos até 1992. 118 Lembro-me de Paulo Conforto preparando os pacotes de assinaturas para levá-las em caravana ao Congresso Nacional e dizendo: “você acha que alguém vai conferir se tem um milhão de assinaturas nesta montanha de papel?”

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O caráter institucional da União, entretanto, nunca foi peça de primeira preocupação. Uma minuta do estatuto, após muito debate, depois de inúmeras idas e vindas no porta-malas do carro de um dos advogados que acompanhavam a União, acabou sumindo misteriosamente. Pode parecer, também, que a atuação de Ticão – o “trator de Deus”, como brincávamos com ele, na época – seria absolutamente centralizadora e autoritária. Podia até ser assim, sob certos aspectos. Mas acho que seriamos simplistas se assim resumíssemos o personagem: tanto que, quando encerrada a gestão Erundina e reordenadas as negociações com o Governo Estadual, Ticão distanciou-se da UMM e passou a se articular de forma independente, junto ao grupo da Leste II. Hoje, é possível vê-lo de braços e abraços com Gilberto Kassab e Geraldo Alckmin.

De qualquer modo, na relação com o poder institucional, prevalecia aquela ambigüidade que comentei anteriormente: algumas lideranças da União chegariam a participar da administração Erundina – como o próprio Paulo Conforto, assessor de Miguel Reis na presidência da COHAB. Nesses casos, minha impressão é que prevalecia uma certa postura blasé e um certo distanciamento estratégico em relação à ‘corte’ – principalmente nos casos de cargos mais próximos do gabinete.

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Nos dias 15 e 16 de agosto de 1988, mais ou menos 300 pessoas em caravana – segundo a UMM, quase todas de SP mais uma delegação do Pernambuco – chegaram de ônibus a Brasília, apresentando propostas para a nova Constituição – usucapião urbano e desapropriação de áreas ociosas, entre outros –, defendendo um Programa Nacional de Mutirões Habitacionais que fosse promovido pela Secretaria Especial de Ação Comunitária – SEAC119 e um projeto experimental com repasse dos recursos, provenientes do FGTS, para administração de obras habitacionais pelas associações comunitárias. A primeira Caravana a Brasília, como ficou conhecida, conseguiu abrir alguns canais de negociação e obteve o agendamento de uma série de reuniões no primeiro semestre de 1989, entre o Movimento e a CEF. Uma comissão específica seria instalada para discutir as reivindicações da UMM, inclusive com a participação do uruguaio Leonardo Pessina, o arquiteto da Associação Comunitária de SBC, que apoiava o Movimento naquela negociação.

Apesar dos esforços das lideranças, de Leonardo Pessina e de alguns técnicos da Caixa (menciono aqui, pelo menos, a arquiteta Cláudia Serpa, talvez a única integrante do grupo entusiasmada com a

119 A SEAC, nessa época – governo Sarney – era uma instância bastante controversa e não compreendíamos muito bem como aquilo funcionava. Trabalhando em Nova Iguaçu, um dia apareceu na Secretaria um sujeito de Brasília, cobrando a prestação de contas de um recurso que havia sido destinado para uma associação comunitária local construir um centro comunitário e um campo de futebol. Pergunta óbvia: qual associação? Onde fica? Não obtive resposta e o assunto terminou por ali.

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história toda) os parcos avanços eram sistematicamente obstruídos. A equipe de trabalho não alcançava nenhum consenso, em parte por uma certa abjeção à possibilidade de uma operação de crédito com um grupo de pessoas que, teoricamente, não estariam aptas a administrar montantes vultosos de forma adequada.

A 2º Caravana seria então promovida nos dias 11 a 13 de junho de 1989. Com 30 ônibus saindo de São Paulo e algumas delegações de outros Estados, o Movimento, entre outras reivindicações, voltaria a insistir no cumprimento da promessa do investimento em projetos piloto, contando com a possibilidade de administração dos recursos pelos próprios futuros moradores. Numa reunião com Paulo Mandarino, a UMM obtém o compromisso da CEF no financiamento de 3 projetos na Grande São Paulo: 50 moradias no município de São Paulo, 50 em Diadema e mais 50 em São Bernardo do Campo, desde que o Movimento viabilizasse, junto às prefeituras locais, a terra necessária para os empreendimentos. As 50 de São Paulo seriam, então, repassadas para Diadema: o movimento local dispunha de terra e passava por uma série de dificuldades enquanto que o movimento em São Paulo ainda não tinha como dispor nenhuma área.

Na verdade, creio que o Movimento, em São Paulo, havia avaliado que seria melhor aguardar os desdobramentos da proposta e formulação – já em curso, neste momento – de um programa municipal de atendimento às suas demandas, já na gestão Erundina. Por outro lado, em Diadema, as tensões haviam se agravado em virtude de um mal sucedido processo de desocupação da área destinada ao projeto – o “Garzouzi”, mais conhecido como o “Buraco do Cazuza”, em virtude de uma grande bacia muito aclivosa que ocupava uma boa parte da área. Originalmente, o projeto previa uma quantidade de unidades bem maior que as atualmente 264 casas e apartamentos ali construídos. A ocupação do “Buraco do Cazuza”, ocorrida em 1989 e promovida por grupos que consideravam que o Movimento estaria ‘dobrando os joelhos’ ao acreditar na promessa de um projeto para aquela área, acabaria reduzindo o número de unidades para o atual. O desastroso processo de reintegração de posse acabaria impondo um intenso desgaste da imagem do PT, um partido que, por pressuposto, defenderia os movimentos sociais. O problema é que, ali, no caso, eram grupos em conflito dentro do mesmo movimento social. Difícil dizer para qual lado os gonzos rangem.

A negociação, mediada e tensa, acabaria partilhando a área. Até hoje, apesar das inúmeras modificações nas moradias, é possível distinguir pelo menos três formas de “rebaixamento relativo de salários” ali implantados: o grupo do ‘seu’ Alcides, que auto-construiu suas moradias a partir de um projeto padrão da prefeitura; o grupo do Boni – que depois se tornaria vereador em Diadema –, que repartiu sua porção em pequenos lotes que, distribuídos entre os ocupantes foram

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transformados numa densa favela; e o grupo da Associação de Construção Comunitária de Diadema – a ACCD, filiada à UMM e promotora da construção, por mutirão e autogestão, das suas primeiras 100 unidades.

O projeto de Diadema previa a construção de 68 unidades habitacionais sobrepostas – uma dessas idéias que a arquitetura deixa de ensaiar teoricamente antes de torná-las concretas – e de 32 apartamentos, distribuídos em 2 prédios de 4 pavimentos.

Na verdade não importa muito se foram ou não os primeiros prédios construídos em mutirão no país. O que importava era demonstrar a competência do Movimento – e nossa! – no enfrentamento da cada vez menor disponibilidade de terra urbana. Isso era definitivo. Todos os processos anteriores pressupunham a disposição de grandes glebas, extensas o suficiente para a implantação de casas térreas, em terrenos entre 70 e 100m2 (é o caso do negociado no Adventistas Ia. Fase). A escassez de terra urbana e urbanizável acabaria implicando numa alteração, inclusive, da cultura construtiva: era muito comum, nos tempos da AMAI e do Adventistas, os grupos reclamarem de casas geminadas. Nos novos tempos, não só geminadas como também empilhadas.

Eu e mais dois colegas arquitetos (Mario Braga e Sérgio Mancini) havíamos saído da UNICAMP em meados de 1989. Um certo desconforto, como já descrevi, acabaria afrouxando nosso desejo de continuar ali. Por outro lado, insistíamos em tentar manter a possibilidade de continuar trabalhando com o que trabalhávamos – habitação popular, movimentos de moradia, mutirões e autogestão – só que sem a ‘grife’ da universidade. Desejávamos autonomia, também. Chamamos um outro colega arquiteto, Wagner Germano – que já havia trabalhado comigo e com Vitor Lotufo – e, durante todo o segundo semestre de 1989, demos continuidade a um trabalho que ‘herdáramos’ da UNICAMP, em Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro. Mais ou menos em setembro, Ricardo Gaboni (havia sido meu aluno na Belas Artes e também havia participado do Lab-Hab da Belas Artes) apresentou-nos um grupo de moradores numa favela em Osasco, que acompanhava há algum tempo. Foi nosso primeiro trabalho como USINA: ‘rabo solto’, como dizíamos, remunerados exclusivamente pelas 520 famílias da favela Terra é Nossa para as quais desenvolvemos os projetos urbanísticos e arquitetônicos que definiriam a ocupação de uma terra negociada com a COHAB de São Paulo – como já comentei ao falar sobre Brás de Pina –, sustentamos nosso trabalho e nosso novo escritório por pelo menos seis meses.

Mais para frente, no início de 1990, Leonardo Pessina e Rosana Denaldi, do Setor de Habitação da Associação Comunitária de SBC, consultaram-nos se não concordávamos conduzir a obra do Cazuza, em Diadema: eles já estavam assoberbados com a construção das 50 casas destinadas a São Bernardo do Campo, no Jardim Industrial, resultado da negociação em Brasília. Para

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assumirmos a interveniência no contrato da CEF com a Associação de Construção Comunitária de Diadema, precisávamos estabelecer nossa personalidade jurídica. Chamamos então o urbanista e arquiteto Gilberto Rizzi e o engenheiro civil Yopanan Rebello – os dois ex-professores da Belas Artes – e a urbanista-paisagista alemã Evelyn Hartoch – para, no dia 6 de junho de 1990, fundarmos a USINA – um nome que trazia uma história em si e para o qual agregamos um complemento que identificaria nossos objetivos: Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado.

Nesse ínterim, o Movimento conseguira dar início ao mutirão São Francisco, na Zona Leste: o primeiro de uma série de mais de 80 mutirões, espalhados por toda a cidade. Juntamente com ele, também foram retomadas, com maior intensidade, as obras do Valo Velho e da AMAI, na Zona Sul, morosamente conduzidas ao longo da gestão Jânio. Na esteira da implantação do FUNAPS-Comunitário, algo em torno de 25 grupos de assessoria estabeleceriam um padrão de organização novo em torno da produção de projetos e condução de obras. Como sempre afirmávamos, havia muita diferença entre os grupos, ou porque articulavam modos distintos de atuar, ou porque assumiam posturas diversas frente ao Movimento e suas demandas, ou ainda porque acumulavam experiências muito distintas – em termos de tempo e qualidades diversas. Algumas mantinham uma ação mais localizada, atrelada a uma determinada região de atuação do Movimento, outras associavam prestação de serviços diversos ao trabalho com os mutirões e outras ainda acabavam extrapolando os limites da cidade, atuando em municípios vizinhos e até mesmo em outros Estados. No entanto, bem poucas restaram: maior parte delas, esgotadas as possibilidades de trabalho após a gestão Erundina, acabaram desarticulando-se na medida em que estacionavam as obras ao longo do período Maluf-Pitta.

De qualquer forma, insisto aqui: não foi o FUNAPS-Comunitário que ‘criou’ o modelo “assessorias técnicas”, como muitas vezes já vi afirmado – isso é uma daquelas coisas incômodas que identifico em alguns trabalhos que vêm sendo produzidos pelos mais jovens. Esse modelo, como já visto, já havia sido desenhado pelas demandas do Movimento, pelos revezes institucionais das universidades e faculdades, pelas convicções políticas de inúmeros profissionais das mais variadas formações que atuaram antes desse período etc. Nós, da USINA, vínhamos de uma experiência na UNICAMP e chegamos em São Paulo só depois de passar pelo Rio, por Osasco e Diadema. O CAAP formou-se a partir do Setor de Habitação da Associação Comunitária de São Bernardo do Campo – que já atuava desde 1984, se não me engano. O núcleo da AD – Ação Direta – não deixava de corresponder, já na sua forma embrionária, à atuação de Joel Felipe no Valo Velho, em 1988. O GAMAH se estrutura com a chegada de Nabil à presidência do SASP, lá para os idos de 1986. É certo, contudo, que o programa foi decisivo para a existência de todos os grupos de

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assessoria da época, normatizando e consolidando um formato de atuação instituído ao longo de muito tempo e com a contribuição de muita gente.

Mas de qualquer modo, apesar dessa normatização orientar a ação do Movimento e das Assessorias, ela ainda se constituía mais como um conjunto de recomendações e procedimentos, do que objetivamente um conjunto fechado de regras. Naquele período, como estava envolvido com a formulação do Fundo Nacional, estudava com afinco os processos e documentos de regulamentação de programas no âmbito do SFH, pela Caixa Econômica Federal: sabia a que correspondia uma Instrução Normativa – com toda sua estrutura de interdependências juridicamente montada, descrição minuciosa da rotina operacional, elementos da operação financeira detalhados (regras de amortização do principal e para a aplicação de taxas e juros) etc. – e me parecia evidente que a norma do FUNAPS-Comunitário acabava propiciando, em virtude de sua baixa normatividade, uma ampla desenvoltura para as Assessorias Técnicas e para o Movimento. Aquilo que poderia, sob certo ponto de vista, ser tomado como defeito, era, na verdade, virtude – se considerarmos o engessamento que experimentaríamos no futuro subsequente.

Não há dúvida que esta frouxidão – digamos assim – em relação à norma, acabou acarretando inúmeros problemas para as Associações, seus dirigentes, suas Assessorias Técnicas, bem como para os gestores públicos: todos fomos chamados pelo Ministério Público, acusados de promovermos “loteamentos clandestinos”120. Além disso, os mutirões até hoje ainda encontram-se pendentes de regularização fundiária.

Mas, de todo modo, creio que foi exatamente essa baixa normatividade que permitiu o programa experimentar algum sucesso.

120 Seria irônico se não fosse trágico, lembrar que justamente Ermínia Maricato, que lá pelos meados dos anos de 1970 iniciava sua atuação nas periferias paulistanas lutando contra os loteadores clandestinos, agora, como ex-secretária de Habitação, via-se envolvida em processo que a acusava como um deles.

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LUGARES SEM UTOPIA os anos 1990

Transcorriam, no fim de 1989 e começo de 1990, os primeiros dias de efetiva realização de uma política habitacional que privilegiava, de forma ampliada, processos de participação em todas as etapas de produção da moradia: através de um fundo, estruturado a partir de um arremedo de política de atendimento assistencialista herdado de Olavo Setúbal (1975/1979) – o FUNAPS – Fundo de Atendimento à População Moradora em Habitação Subnormal – instituído, como o nome já diz, para atendimento emergencial de moradores ‘subnormais’ alcançados pelas inúmeras vicissitudes urbanas (chuvas, alagamentos, deslizamentos, incêndios etc.) – o FUNAPS viraria, a partir de algumas consultas ao setor jurídico da SEHAB, o FUNAPS-Comunitário. Através de uma releitura e algumas adaptações (Nabil Bonduki, Reginaldo Ronconi, Leonardo Pessina e Inês Bertão, entre outros, são os técnicos particularmente responsáveis pela reformulação do estatuto jurídico que instituía o Fundo e pela sua transformação num programa), o FUNAPS-Comunitário ganhava o perfil de um programa de provisão habitacional que restringia o acesso aos recursos apenas através de Associações Comunitárias e que se dispunham trabalhar em processos coletivos de produção – a ajuda mútua ou o mutirão. Logo na introdução da peça burocrática que dá as diretrizes e formula as rotinas operacionais do programa, é possível percebermos o caráter das intenções:

“A participação da população em todas as fases do desenvolvimento do projeto, é campo

fértil para o crescimento de uma consciência crítica e participativa dos cidadãos na

administração dos destinos da cidade. [...] [O programa] Deverá garantir a participação

direta e coletiva da população em todas as etapas de desenvolvimento do processo

(implementação, implantação, execução e consolidação da construção), na perspectiva do

crescimento da organização popular e da consciência crítica e política dos movimentos

sociais.” (FUNAPS-Comunitário, 1990, pp.2-3)121

121 Se comparado aos programas propostos e geridos pela CEF ou pela CDHU, o FUNAPS-Comunitário assemelha-se mais a um conjunto de diretrizes, de competências e rotinas que soam mais como uma ‘carta de recomendações’: se tomarmos por pressuposto que normas e regras são estabelecidas para serem seguidas e, caso não o forem, elas mesmas prescrevem sanções e procedimentos de correção de conduta, posso afirmar que – a não ser por um item ou outro que prevê a suspensão da liberação de parcelas do financiamento caso incapacidade da Assessoria Técnica no cumprimento de suas obrigações ou alguma obstrução ao andamento do processo de solicitação de financiamento em virtude de alguma pendência documental – nem o documento que apresenta as normas e diretrizes para o FUNAPS-Comunitário e nem as Instruções de Serviço que lhe são adjuntas, não estabelecem nenhuma sanção precautelar, isto é, sanções que instruem precauções que darão segurança para a operação de crédito – se pensarmos pela ótica financeira, é claro. De modo algum estou considerando isso como um ‘defeito’ do programa; pelo contrário, reafirmo que foi justamente esse alargamento da regra que nos permitiu fazer o que fizemos, Movimento e Assessorias Técnicas. Mas este é o dilema: era certo que não iam nos deixar em paz.

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Sem me deter na análise do programa – outros já o fizeram –, acho importante observar como ele acaba se estabelecendo como um dos – ou talvez ‘o’ programa mais importante da SEHAB. A composição do poder na Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano parecia dispor elementos antagônicos em posições chaves: Ermínia Maricato, como secretária, não se sentia confortável com a presença do advogado Miguel Reis, presidente da COHAB – uma indicação do Movimento para o cargo, graças à sua militância, enquanto integrante da ADM (Associação em Defesa da Moradia), junto ao MDF. Se durante todo o período anterior, todos os procedimentos para obtenção de financiamento para a produção de moradia por ajuda mútua e autogestão passava necessariamente pela COHAB, nada mais lógico que o Movimento pleitear à prefeita Luiza Erundina este braço operacional da Secretaria de Habitação. Nabil Bonduki ficaria na Superintendência de Habitação Popular, uma instância mais ou menos insignificante no organograma da Secretaria até então. No entanto, com a implantação do programa FUNAPS-Comunitário – entre outras providências (infra-estrutura, por exemplo) – a HABI acaba extrapolando o próprio regime de suas atribuições e, até a resolução do conflito entre secretária e presidente da COHAB – o que se deu com a demissão de Miguel Reis –, sua inserção institucional já havia ganhado peso semelhante ao da própria COHAB – só que sem o estatuto jurídico e sem a habilitação comercial da COHAB.

Em setembro de 1989, tinha sido dado início a um dos primeiros mutirões financiados pelo FUNAPS-Comunitário: o São Francisco, na zona leste de São Paulo, o primeiro mutirão da gestão Erundina, começaria atropelando os ajustes finais no programa, a parametrização dos valores máximos para aplicação nos itens de financiamento e os ajustes práticos na equipe que operacionalizaria os procedimentos administrativos122.

A partir dali, o programa abriria caminho para mais ou menos 80 associações comunitárias contratarem aproximadamente 10.000 moradias, atendendo a um universo de cerca de 50.000 pessoas.

Números extensos: se por um lado o novo perfil que o Movimento vinha adquirindo parecia ajustar-se às pretensões de um movimento de massa, por outro lado – condição necessária mas não abusiva – também necessário seria a disposição de condições para que o atendimento às suas demandas se realizasse nas mesmas dimensões relativas. Ora, vice-versa. Seria pouco provável a ampliação do programa e conquistas na disputa pelo orçamento, carreando recursos para a

122 Dentre as estratégias para pressionar a Superintendência, o movimento não prescrevia apenas passeatas ou ocupações: presenteado com um bolo preparado pelos futuros mutirantes, Nabil, meio desavisado, participaria da inauguração de um canteiro de obras financiado com um dinheiro que, enquanto Superintendente de HABI, ainda não tinha conseguido viabilizar.

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moradia, se não houvesse o devido ajuste entre proporções, isto é, um fez o outro que fez o um crescer.

Isso pode ser o fundamento de um problema que, mais tarde, será apontado também por Reginaldo Ronconi, um dos principais formuladores do FUNAPS-Comunitário: ora, um corpo que cresce acaba mudando o padrão de suas necessidade vitais. Se o crescimento se dá num curto período de tempo, a base não se articula – não atende. Era necessário que se viabilizasse, no tempo justo, a requalificação das estruturas e seu adequado dimensionamento. Caso contrário, não se dá razão à implementação de uma política de produção massiva de moradia uma vez que não se viabiliza infra-estrutura para tanto. Só o montante ‘massivo’ de recursos exclusivos para a produção não basta.

Além disso, o programa parece cumprir, como um personagem aqui animado, uma espécie de flautista de Hämelin suicida: promove uma espécie de ‘cooptação branca’ do Movimento, na medida em que o conduz, num baldaquim dourado e sem termos de referência (uma vez que os parâmetros de proporção são os mesmos) para o mesmo insondável abismo das imponderabilidades a que está sujeita a administração pública. Explico melhor: sem a extensa estrutura estatal e para-estatal – as Centrais Cooperativas, por exemplo, como no Uruguai –, sem legislação adequada, sem apoio logístico institucional e sem – sequer – um horizonte factível de resolução do problema fundiário, o FUNAPS-Comunitário teria apenas alcançado o que lhe é mais exaltado: quantidade e (alguma) qualidade.

Em termos de resultado urbanístico e arquitetônico até que, no princípio, os resultados eram bastante satisfatórios – ganhamos, os projetos do FUNAPS-Comunitário, um estande na II Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo, realizada em agosto de 1993. Mas 8 a 12 anos depois, o saldo não é dos melhores: visitar o São Francisco, a 26 de Julho e o Talara – só aqui, uma amostragem de quase 20% das 10.000 moradias produzidas através do FUNAPS-Comunitário – é o suficiente para confirmar o sugerido. Claro que dirão: “Mas as moradias são maiores e de melhor qualidade!” Sem dúvida. Mas queríamos mais: nossa referência era o Uruguai – e não o “inferno que são nossas periferias”, com diria Chico de Oliveira.

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Figura 25: Um dos conjuntos das cooperativas uruguaias e o São Francisco Setor 8, na zona leste de São Paulo, na época de sua construção – premiado num concurso promovido logo no início da gestão Erundina, o projeto do grupo carioca CO-OPERA-ATIVA foi construído por mutirão, financiado pelo FUNAPS-Comunitário; as imagens de baixo, são do conjunto em seu atual estado (fonte: NAHOUM, 1999; encarte da Revista Projeto, nº165, julho 1993; e USINA, 2010)

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Figura 26 – no pé da página anterior: construção dos sobrados no mutirão da Associação 26 de Julho, na Fazenda da Juta – zona leste, São Paulo; nesta página: o estado do conjunto, em 2010 (fonte: USINA, 2010)

E em termos de quantidade? 10.000 moradias somadas a 3.000 da primeira etapa do programa de mutirões com o Estado, mais algumas poucas iniciadas na gestão Marta Suplicy etc. Quanto mais seria preciso? Alguém sabe efetivamente – para que possível fosse algum termo de comparação – a realidade numericamente mensurável da indisponibilidade ou inadequabilidade da habitação na cidade de São Paulo?

Mas então, em termos de organização, formação para a cidadania e para a gestão coletiva da cidade, poderíamos dizer que o movimento massivo de produção autogestionária da moradia proporcionou acúmulo razoável que, na sequência do período, não fosse a era Maluf-Pitta, certamente haveríamos estabelecido condições para, como disse Ermínia numa entrevista para aquela Revista Proposta de 1987:

“um nível de libertação e de controle dos bairros, porque também tem esse lado: se a

população constrói uma região inteira autonomamente, ela também fica com um controle

sobre o espaço e sobre a sua manutenção sobre a gestão do espaço coletivo, o que é uma

coisa muito interessante; se os mutirões evoluírem para a libertação de certas áreas da

cidade, sob controle total da população.”(FASE, 1987, p.16)

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Também, em termos organizacionais as Associações Comunitárias e seus pressupostos formativos não deram conta de superar o desgaste gerado pela responsabilidade institucional do Movimento que teria patrocinado – pesado dizer assim – sobretrabalho e superexploração do trabalho gratuito: alguém tinha que pagar por isso – mas, claro, só depois de garantido o acesso à moradia. De um jeito ou de outro, ‘o povo’ transfere a responsabilidade pelas suas agruras e culpa o Movimento por tê-lo conduzido por vias tão espinhosas: por razões ideológicas, é mais fácil cobrar dos representantes que, mais proximamente configuram o poder, do que das formas abstratas mais distantes que, supostamente, lhe coagiram. Em alguns casos, inclusive com agressão bastante concreta.

Daí, imaginar uma possível coalizão popular para a gestão sequer do próprio conjunto – um condomínio autogerido –, pouco provável: o coletivo passa a significar expoliação e expropriação do tempo livre. Cada um considera ter feito mais e tendo feito mais pelos outros se sente expoliado pela forma abstrata que representa o coletivo: este coletivo que se impunha e lhe obrigava a fazer mais que os outros.

Se então ao menos a deliberada disposição da possibilidade de uma outra arquitetura social, adequadamente remunerada e valorizada, instruísse uma nova prática profissional, talvez aí encontraríamos um saldo positivo.

Mas que saldo é esse? A maior parte dos grupos de assessoria técnica abandonou esse campo de atuação e mesmo os que ainda atuam, o fazem de forma absolutamente precarizada. Patrocínio a formas de “acumulação primitiva” e a mecanismos de superexploração do trabalho não pago também são perfeitamente conciliáveis com o cotidiano dos técnicos que atuam assessorando os mutirões. Mais ainda: pelo perverso mecanismo de transferência de mais-valia – como lembra Chico de Oliveira na “Crítica da Razão Dualista” – também o resultado de nosso trabalho como técnicos vai sendo transferido, a um baixíssimo custo, para as “atividades econômicas de corte capitalista” (OLIVEIRA, 1972, pp.29 e 31) como aquelas operadas pelo mercado imobiliário. A equação é simples: projetamos a um custo de 1,5%, mais ou menos, do valor do empreendimento. Acompanhamos a obra a mais ou menos 6 a 8%. O valor de investimento, por unidade habitacional, corresponderia, em valores de hoje (março 2011), em torno de R$40.000,00 (por volta de U$24.000), considerando infra-estrutura, edificação e custos acessórios (assessoria, alguma mão-de-obra especializada, canteiro e pessoal administrativo). A terra, normalmente, não entra na composição inicial do financiamento, sendo incorporado seu valor apenas no momento da individualização do contrato e cálculo das prestações. Dependendo do lugar, um imóvel pronto, construído adequadamente, com tamanho proporcionalmente maior que a maioria daquilo que é

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oferecido pelo mercado formal, pode chegar a quadruplicar seu valor de produção, agregando todos os benefícios concretos e abstratos tais como localização, acessibilidade, proximidade a serviços, infra-estrutura resolvida etc. Ora, esse valor abstratamente concebido é agregado de forma bastante concreta. E a proporção do que recebemos disso é nada: socializamos nosso ofício para a capitalização do usuário e só. Todo arquiteto “tem seu dia de otário”, como diria Alba Zaluar, em relação aos antropólogos: arquitetos, engenheiros e todos os profissionais envolvidos nas equipes de Assessoria Técnica também estão sujeitos a uma baixa – aqui não tão aparente – do custo de reprodução de sua força de trabalho.

Mas, pelo menos, o pretendido “crescimento de uma consciência crítica e participativa dos cidadãos na administração dos destinos da cidade” teria sido alcançado.

Nem a consciência crítica, nem a mais ignota consciência instrumental e pragmática: num dos empreendimentos que acompanhamos na Zona Leste, a 26 de Julho na Fazenda da Juta – que aparece nas fotos acima –, logo nos primeiros dias após as eleições de 1992 – quando já sabíamos que Maluf havia sido eleito – perguntei, sem nenhum pudor, em quem os mutirantes haviam votado. Fiquei espantado em saber que a grande maioria havia votado no Maluf – apesar da casa que estava sendo construída por eles dependesse da continuidade da administração petista.

Então, pelo menos o aprofundamento da discussão sobre a reforma urbana poderia ser considerado um saldo positivo desses mais de 20 anos de mutirões autogeridos além de um salto qualitativo para o debate, articulação e o aprendizado de autonomia dos Movimentos.

O debate sobre a reforma urbana raramente visitou as reuniões dos movimentos nessas últimas duas décadas. Seria injusto não identificar pelo menos a questão dos cortiços, particularmente, ou o intenso trabalho do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), articulando as ultimamente frequentes ocupações de prédios nos centros de algumas cidades brasileiras. Mas são inserções esporádicas, vinculadas invariavelmente à provisão habitacional. Não há uma clara compreensão dos vínculos entre o Estatuto da Cidade e os mecanismos de produção autogestionária de moradias, por exemplo. Além disso, o implausível debate sobre reforma urbana foi substituído pelo impassível debate sobre as disputas eleitorais e os cargos comissionados – tanto no Executivo como no Legislativo. Justificando que o embate político também tem que se dar por dentro das estruturas partidárias, inúmeras lideranças do Movimento abandonaram a militância autônoma e lançaram-se candidatos a cargos eletivos, ingressaram nas administrações públicas ou passaram a

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atuar como cabos eleitorais dos gabinetes pelos quais estariam ‘liberados’123. Convoco, novamente, Gabriel Feltran para auxiliar nos meus argumentos:

“Pensar a complexidade dessa inserção [no interior dos novos espaços de participação, abertos pela própria Constituição de 1988] politicamente não é simples até

porque, estimulados pelas vitórias eleitorais de frentes

populares (especialmente nos municípios) na última

década, possibilitadas pela democratização, os

movimentos sociais passaram a se ver não mais somente

como atores de resistência ao Estado autoritário, mas

como possíveis “parceiros” do poder, especialmente o

municipal, na formulação e implementação de políticas

públicas” (Feltran, 2005, p.50)

Figura 27: cartaz do 10º Encontro Nacional de Moradia Popular, realizado em 2006; observar as diferenças – pauta e apoios – entre esta imagem e aquela de 1984, da CMM, por ocasião do 1º

Por fim, tratar-se-ia, então, de pelo menos considerar que a conquista de um programa nos moldes do FUNAPS-Comunitário junto ao governo do Estado – ou mesmo uma ampliação no volume de financiamentos na modalidade Entidades do Minha Casa Minha Vida, junto ao governo Federal – poderia retomar o passo no preciso ajuste do processo autogestionário de produção da moradia e da cidade.

Pelos idos de 1992, Fleury saltava de um helicóptero na Fazenda da Juta, cercado de seguranças para os quais as mutirantes não disfarçavam suspiros, disposto a capitalizar o fato de aquela terra ter sido disponibilizada pelo Estado – apesar do financiamento municipal para a construção das casas. Andou, apertou mãos e discutiu conosco alguns detalhes da obra. Paulo Conforto, então a principal liderança da UMM, passou a insistir numa já anunciada possibilidade de articularmos um programa semelhante ao FUNAPS-Comunitário no âmbito estadual, operado pela CDHU. Fleury retrucava que não existia mais área para a construção de sobradinhos, que seria necessário verticalizar e que o mutirão não era capaz de resolver esse impasse etc. Daí a tréplica: mas nós já fizemos em Diadema, não é João? Explicamos, então, para o Governador como tinha sido o processo de construção dos prédios no Buraco do Cazuza, em Diadema. Com cara de falso espanto, Fleury fez que duvidava – para aumentar o cacife do acordo. Sem nada combinado, um

123 Ermínia Maricato, naquela mesma entrevista de 1987, comentaria: “Agora, eu penso o seguinte: primeiro nós estamos toda hora pensando o Estado como alguma coisa que está sempre contra. Nós já fizemos alguns exercícios na elaboração de plataformas do PT, de pensar o Estado a favor. Mas sempre com o pé atrás. O Estado sempre vai ser o Estado. Mesmo na mão do PT, a tendência da máquina vai ser sempre de cooptar”. (FASE, 1987, p.37).

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mutirante pergunta: “Sr. Governador, sabe aquele apartamento que o senhor morou na rua tal, bairro tal, construído no ano tal?” Fleury, agora sim francamente espantado com aquela exibição informal de um assunto tão particular como seu antigo endereço, assente e pergunta o por quê da pergunta. O mutirante responde: “Se a gente não soubesse construir prédio, eu não tinha construído aquele”. Fleury resolve então, num político abraço, dizer-se convencido a concordar com o novo programa.

Algumas semanas depois, assinamos uma carta de intenções numa grande manifestação no Palácio do Governo – impressionante o competente e minuciosamente adequado discurso do Fleury. Plenamente conformado à situação, levou aquela massa espremida no auditório do Palácio ao delírio e às palmas. Quase um ano depois, contudo, ainda não havíamos conseguindo iniciar nenhum projeto com o Estado. O grupo que havia sido estabelecido para interlocução entre a CDHU e a UMM – do qual eu fazia parte – fora desmobilizado logo na primeira reunião com os técnicos do governo. O pessoal da Leste II, ligado ao padre Ticão, não concordava com nossa intermediação e exigia o diálogo direto com a Companhia. A CDHU aproveitou-se da confusão e explorou-a o que pode: enfrentamos um dos processos mais desgastantes de produção, análise e revisão de projetos, de equacionamento de documentação dos mutirantes, de respostas a exigências descabidas e a entraves burocráticos de toda ordem. Iniciamos as obras por obra e fibra do Movimento e das Associações, sem projetos aprovados e sem o justo equacionamento dos recursos. Mas começamos.

Mario Covas chegava, então, ao governo do Estado. Uma opção ao obscurantismo anti-autogestionário malufista. Covas afirmar-se-ia o “pai dos mutirões”, fazendo referência ao período que governara o município e que autorizara a realização de alguns mutirões na cidade. Aprovava nossos projetos por ‘decreto’ e assegurava, por intermédio de Goro Hama, Edsom Marques e todo o primeiro escalão da CDHU, que o Estado investiria maciçamente em mutirões autogeridos. Mas – que a União de Movimentos por Moradia não pensasse que era o único movimento de moradia da cidade. Há que se repartir o bolo. Assim, o programa UMM de Mutirões passou a se chamar Programa Paulista de Mutirões, uma estratégia bastante bem acabada de cooptação de movimentos e de suas lideranças, organizando no varejo as demandas para colher no atacado a composição de uma extensa base domesticada pelo sorteio de uma vaga nos mutirões.

Bom, isso é o que ouvíamos falar das Associações que iam sendo montadas a rodo em todo o Estado, para acesso aos financiamentos. Nós, juntos à União, mantínhamos os procedimentos como se o resto não alterasse significativamente nosso modo de agir. Mas o que estava em curso era justamente uma apropriação indébita e adulteração interessada do programa anterior,

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transformando antigos argumentos nossos e do Movimento, em pretextos úteis às engenharias de arrecadação de fundos ‘menos contingenciados’. Nesse caso, na verdade, trata-se de discutir como a idéia de autogestão se descola dos processos de produção de moradia por ajuda mútua, permitindo apropriações mais graves e determinantes que aquelas apenas semânticas. Rebaixa, em tons de cinza, o princípio da autonomia e da livre organização popular, cedendo lugar a um processo – sutil, num primeiro momento – de incorporação das bandeiras de luta: “menos mutirão – mais autogestão”, por exemplo, justificou, nos anos Covas, o ingresso das empreiteiras executando fundações e superestrutura – o “paliteiro” ou “canela seca”, como dizia o povo –, ‘liberando’ os mutirantes de grande parte do tão propalado ‘sobretrabalho’. O detalhe é que esta tarefa consumia 60% dos recursos previstos para a produção de toda a unidade habitacional – contra os tradicionais, no máximo, 30%. E mais: quem contratava as empreiteiras, sem nenhum processo licitatório e por indicação da própria CDHU, eram as Associações que se prestavam a testas-de-ferro, úteis para a tal engenharia que sugeri.

Assim, quando o Ministério Público intimou a CDHU, convocado a proceder averiguações a partir de requisição do então deputado estadual petista Elói Pietá, a empresa encaminhou, sem muitas delongas, num primeiro lote, todas as Associações que ainda procuravam manter os procedimentos originais e seus vínculos com uma ‘razão autônoma’ de produção: projetos próprios que negavam a adoção dos modelos prontos da Companhia e que previam unidades habitacionais maiores e melhores que as dela, modelos de gestão de obras que se antagonizavam – pelo princípio de participação dos mutirantes nas decisões – com os modelos tradicionalmente praticados etc. O critério que orientou a composição desse primeiro lote de empreendimentos conduzidos ao crivo do Ministério Público foi, sem dúvida, político – no pior e mais perverso sentido: não interessava, à CDHU, administrar os ruídos provenientes de uma prática que poderia, não sem algum esforço, explicitar as diferenças que ela teimava obscurecer.

Outro fato irritante: numa incapacidade de fazer contas proporcionais óbvias, o Movimento achava, nesse período, que nunca havia vivido uma época de “vacas tão gordas”. Com efeito, Covas cumprira o que prometera quando, logo nos primeiros meses de seu primeiro mandato, estendeu a produção de moradia por mutirão para todo o Estado. Para tanto, sua extensão operacional, a CDHU, apropriar-se-ia do nosso Programa UMM de Mutirões e, operando algumas inversões – sutis mas cruciais –, o transformaria no Programa Paulista de Mutirões, com já disse. Apenas acomodações de ordem semântica? Para o Movimento, desde o princípio, sim. Mas bastava olharmos a quantidade de Associações criadas no afogadilho das composições político-partidárias regionais para percebermos que, proporcionalmente – apesar de um número absoluto de unidades

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maior – a União havia deixado de conduzir um processo para apenas legitimar um obscuro mecanismo de ‘fazer política’ às custas da produção habitacional mutirante.

Neste processo, o que havia de novo acabava dando lugar às velhas práticas duvidosas de administração do erário público. Pois se a autogestão enquanto ideário não se bastava como propósito prático, como bandeira de luta em si mesma, necessitando operar a partir de uma espécie de enxertia no processo de produção da moradia, uma simples operação de substituição dos mecanismos de controle e das senhas de acesso aos significados mais entranhados, bastou para isolá-las entre si.

Daí, restaria a representação descolada da ação, como se produzíssemos uma inversão entre sujeito e predicado – uma operação profundamente ideológica, como diz Marilena Chauí (CHAUÍ & FRANCO, 1978, pp.11 e 12).

Não sei se é o caso, mas tenho essa impressão: o que parece é que a forma ‘autogestão’ não se realiza senão abstratamente numa ação concreta de produção da vida. Ora, se eu deslocar essa forma para longe de sua possível representação, resta apenas o vazio de uma significação que espera apenas um outro possível conteúdo. Bastam alguns ajustes semânticos.

Nabil Bonduki achava que Maluf poderia ter se apropriado dos mutirões. Que ele poderia ter aproveitado para suavizar sua imagem de truculento e que negar os mutirões autogeridos havia sido um erro tático. Não trabalhei estes anos todos para aliviar a imagem de Maluf. Imagino que justamente o que nos coloca hoje numa conjuntura domesticada e administrável é o fato de termos, aos poucos, tanto Movimentos como técnicos e militantes, cada vez mais, liberado a carga de significados que, oriundos de enunciados originais, circulavam pela nossa prática: solidariedade, propriedade comum, ajuda mútua, autogestão, autonomia etc. etc.

Finalmente, o procedimento racional de quantificação e mensuração de resultados de uma ‘política pública’ acaba invertendo o avesso do que se esperaria da própria política. Quantos foram atendidos? Com quanto se faz uma política pública? Ao quantificar a política, nega-se exatamente a sua essência. Mais recentemente, em virtude de uma certa escassez de áreas para empreendimentos novos e também em virtude do olhar tentacular do Tribunal de Contas disposto por sobre o governo Marta Suplicy, a SEHAB, por sugestão do secretário Paulo Teixeira, resolveu instituir um processo de ‘licitação’ de Associações Comunitárias que desejassem acessar um rol de glebas e linhas de crédito associados, assegurando um processo “isento” e “democrático”. Não mais se propõe a mudança das regras: conforma-se a elas. As condições para participar do certame incluíam: quantos anos a Associação acumulava de experiência; se os estatutos da Associação

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previam a alternância do poder (se de 2 em 2 anos: 10 pontos; se de 4 em 4: 5 pontos; se mais de 8 anos: zero); se eram promovidos e quantos por mês, programas ou atividades de formação para os dirigentes e associados; entre outros quesitos. Conforme o número de pontos, a Associação A ou B estariam aptas a acessar gleba e crédito. É claro, contudo, que tudo passava pelo velho método do acordo: conversas de lideranças do Movimento com o Secretário acabavam ajustando as distorções do procedimento licitatório: tudo é negociável – inclusive a aritmética.

Não vou me estender mais no que aqui construo como aporias, mas indico e anexo dois textos onde arrisquei e arriscamos algumas explicações para o modo como a progressiva tecnificação dos procedimentos e a paulatina transformação dos discursos em atividade acabaram fazendo-nos topar nos escolhos dos quais pretendíamos desviar. Coloco-os na sequência como anexo, mas para ser lido antes do final deste texto, onde ensaio algumas últimas considerações. Ver, portanto, “As

artimanhas do discurso bifronte: práticas de autonomia e ambigüidade discursiva na gestão de

projetos sociais nos mutirões em São Paulo”, de minha autoria e para apresentação no XII Encontro Nacional da ANPUR, em 2007, e “Por partes: o novo fundamentalismo participacionista nos

programas de moradia para os pobres”, escrito juntamente com Silke Kapp e Ana Baltazar, da FAU-UFMG, para o Simpósio Ibero Americano “Cidades e Cultura: novas espacialidades e territorialidades urbanas” – SILACC, em 2010. Em ambos os textos procuramos compreender como o campo dos enunciados joga entre “posições possíveis para um sujeito”, isto é, como que, a partir do “campo de coexistências”, as formulações e discursos podem adquirir feições e proposições comuns. Daí, resta-nos transcrever Francisco de Oliveira, ao comentar sobre o Estado e seus mecanismos de exceção:

“Não há mais política: há tecnicidade e dispositivos foucaultianos que se impõem como a lei

da necessidade. Adequamos nosso discurso para reconhecer a “realidade” e em nome dela

planejar a exceção. Reconheçamos: nosso esforço teórico transitou da busca da

normatividade para a racionalização da exceção que nossa prática cotidiana já leva a cabo

faz tempo. Porque do nosso horizonte já sumiram as transformações. Sejamos pragmáticos,

já é tempo e já estamos na idade, ora bolas, de abandonar as utopias!” (OLIVEIRA, 2003)

#

Recentemente estive no COPROMO, uma grande obra que projetamos e para a qual trabalhamos como assessoria na implantação da primeira fase, em Osasco, região metropolitana de São Paulo. Gosto muito dali. Ficou bonito, agradável. Os moradores, no geral, cuidam muito bem dos 50 prédios e de seus 1.000 apartamentos. Acompanhava um professor de Recife, juntamente com um colega da FAU e mais alguns companheiros da USINA.

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Uma senhora, sentada nos degraus em frente a uma das muitas pracinhas que projetamos e que fazem as áreas comuns entre os prédios, reconheceu-me. Olhou para mim com um olhar meio soslaio e perguntou se me lembrava dela. Não menti. Seguimos conversa, dizendo que ficara contente em ser reconhecido, apesar do meu cabelo que branqueara. Concluindo a prosa, perguntei-lhe se gostava dali – uma dessas perguntas que o ego de um arquiteto sempre teme, mas faz:

“Seu João – disse ela –, antes eu morava mal, hoje eu moro bem. Antes eu não tinha um lugar,

agora tenho”.

De resto, como diz Chico, “sejamos pragmáticos, já é tempo e já estamos na idade, ora bolas, de

abandonar as utopias!”

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finalmente algumas considerações

Pretendi, ao longo do texto, ir pontuando os principais aspectos que, acredito, trazem algum fundamento para meus argumentos originais: a conformação do “campo político” como modalidade do “campo de coexistências”; a prerrogativa da imanência em relação à essência, no que tange à aproximação com o real; a prática como processo de subjetivação que, num primeiro momento, escapa à normatividade instituída, instruindo não só novos dispositivos – que capturará, à frente, as energias fundadoras de si mesma – mas também de novos sujeitos; e, por fim, a possibilidade de fazer fungíveis técnica e política se deslocarmos os elementos de seus discursos para o campo dos enunciados.

Resta-me, por hora, dois problemas, frente aos quais mantenho ainda a suspensão de algum juízo mais acabado.

De princípio, creio ser importante ressaltar que, ao longo de todo o período que vai da finalização de meu mestrado (1999) até a conclusão de meu doutorado (2006), empreendi um esforço bastante grande para compreender, pela Filosofia, de que modo gesto e palavra, cérebro e mãos poderiam, eventualmente, compor uma diarquia em relação ao mundo da vida, uma relação dialógica que recusasse qualquer expediente de interexclusão. Para tanto, até mesmo a humana formação neurológica – que mostra como são próximos e igualmente desenvolvidos os campos do cérebro onde se dão os processos da fala e de controle das mãos – contribuiu para esta aproximação entre gesto e palavra. Visitei a Física de Aristóteles e as formulações quase semânticas de Heidegger sobre a questão da técnica. Encontrei na formulação de Gilbert Simondon, um pouco conhecido filósofo francês do século passado – professor de Merleau Ponty e sinceramente admirado por Gilles Deleuze – que traz uma inusitada leitura do objeto técnico, como e enquanto um modo de existência que se dá ancorado nos processos de individuação do sujeito, ainda como individuação

técnica. Isto é, Simondon demonstra o quanto há de humano no objeto técnico e o quanto há de técnico no humano. Dessa forma, passei a tratar a técnica – como e enquanto conhecimento das mãos – como alma gêmea da cultura – como e enquanto forma pensada. Desse modo, no final da tese de doutorado, conduzi minhas reflexões para a prática de ofício – e por isso chego aos questionamentos que este trabalho de livre docência procura lidar – agora em 2011. Esta ressalva é importante para compreender o modo como utilizo técnica – referindo-me a ela como um autêntico ‘discurso das mãos’, e não mais como pura atividade, como pura funcionalidade mecânica perante a necessidade e sem a estatura das formas pensadas da existência – na argumentação que arranjo a seguir.

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Ora, creio que a interexclusão entre política e técnica também pode ser vista como a oposição – construída, por certo – entre palavra e gesto – e, no horizonte, entre liberdade e necessidade: conforme Sérgio Ferro, não se trata aqui de pensar a técnica – o trabalho de transformação material do mundo – em regime de subsunção irrevogável ao mundo da necessidade – o trabalho heterônomo. Mas

“E o que é trabalho livre? Nada a ver com arbitrariedade, improvisação ou preguiça. O

trabalho é livre quando realiza o melhor possível em dada situação, o melhor do ofício, o

melhor objetivamente inscrito no material, o melhor projeto social. A liberdade, ensina

Hegel, não se opõe à necessidade: ambas consistem em ter todas as razões para serem o

que são em si mesmas. A verdadeira autonomia é intrinsecamente racional” (FERRO, 2006)

Numa passagem de “O que resta de Auschwitz”, Giorgio Agamben, pretendendo redefinir as categorias modais – uma formulação kantiana –, argumenta que necessidade, em oposição a contingência, assim como possibilidade, antônima de impossibilidade, não é uma “categoria lógica ou gnosiológica inócua” – que se refere à estrutura das proposições ou à faculdade de conhecer. Trata-se de um “operador ontológico” – e devastador, conforme o filósofo italiano, pois arbitra diretamente quanto ao ‘poder ser’ e o ‘poder não ser’. Se, como em Aristóteles, o ser é a vida daqueles que vivem, este ser sempre implicará em um sujeito vivente. Daí trazer impossibilidade e necessidade como “operadores da dessubjetivação, da destruição e da destituição do sujeito, ou seja, dos processos que nele estabelecem a divisão entre potência e impotência, entre possível e impossível” e, por outro lado, fazer da possibilidade e da contingência os “operadores da subjetivação, do ponto em que um possível chega à existência”, isto é, “toca (contingit) o mundo” (AGAMBEN, 2008, p. 148).

Claro que acabo trazendo esta discussão para o campo terminológico: sobre qual necessidade estamos a falar?124 Se ela é operadora de processos de dessubjetivação e, para Hegel, conforme lembra Sérgio Ferro, não se oporia à liberdade, então como resolver a problemática relação entre dessubjetivação e liberdade? Talvez seja possível argumentar, sem pretender resolver o problema, que é necessária a dessubjetivação para que se vislumbre a liberdade – isto é, tanto a destruição como a invenção passariam, necessariamente, por um doloroso processo de dessubjetivação. Ora, também conforme Agamben, estes processos de dessubjetivação decorrem da forma como, enquanto indivíduos, atravessamos os dispositivos – ou como somos atravessados por eles. E aí 124 Necessidade é domínio do mundo da vida, da realidade: de nada adianta condenarmos “nossa prática cotidiana” como responsável pela “racionalização da exceção”, se não a confrontarmos com a palavra (discurso) e o gesto (a técnica) – se não a “tocarmos”, lembrando novamente o que diz Márcio Alves da Fonseca, a palavra será apenas “logos” – apenas uma “palavra dada em sonho” – e a técnica será apenas tecnicidade – um conjunto de regras e normas que nos roubam a possibilidade de algum “confronto ativo com a política” (FONSECA, 12/02/2011).

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pergunto, não como Agambem, quanto ao que resta de Auschwitz, mas quanto ao que resta diante desse processo de dessubjetivação – para o filósofo, apenas um “experimento biopolítico sobre os operadores do ser” (idem, p. 149).

Não creio que só nos reste entregar-nos à “vida nua”, plenamente constrita à sobrevida biológica. E creio que o filósofo também considera alguma possibilidade de um contradispositivo. Além do que, não me parece que, sem dessubjetivar as formas instituídas, sem alguma destruição, seja possível alguma invenção125.

O que quero dizer – e retomando o trecho do texto de Chico de Oliveira – é que o fato de que “não há mais política” e de que apenas nos restam “tecnicidade e dispositivos foucaultianos” não significa que ‘somos’ os sujeitos que se sujeitam à normatividade (gosto da ideia do sujeito como um “lugar vazio”), a qual nos fez ajustar os discursos à realidade e nos conduziu ao planejamento da exceção. É a própria normatividade que nos produziu os sujeitos – no qual nos aninhamos, como e enquanto indivíduos psicossomáticos que somos. Em última instância, fomos nós mesmos que construímos os dispositivos foucaultianos. Sei que é isso mesmo que Chico está querendo dizer. Mas:

“O termo dispositivo nomeia aquilo em que e por meio do qual se realiza uma pura atividade

de governo sem nenhum fundamento no ser. Por isso os dispositivos devem sempre

implicar um processo de subjetivação, isto é, devem produzir o seu sujeito [...] A profanação

é o contradispositivo que restitui ao uso comum aquilo que o sacrifício tinha separado e

dividido”(AGAMBEN, 2009, pp. 38 e 45)

Cabe-nos, com diz Agamben, profanar os dispositivos, retirando-os da fina superfície dos jogos de poder sacralizados: porque no campo dos dispositivos, são habilmente descritos e conformados como doutrina, como jurisprudência, como norma, como regra ou até mesmo tradição – que nada mais são que proposições (lógicas) e frases (juridicamente formuladas).

Mas o problema atual é que os processos de subjetivação e dessubjetivação alternam-se e “parecem tornar-se reciprocamente indiferentes e não dão lugar à recomposição de um novo sujeito, a não ser de forma larvar e, por assim dizer, espectral” (AGAMBEN, 2009, p. 47).

Daí,

125 Cabe ressalvar que não estou aqui a apostar “sem escrúpulos na dessubjetivação”, como diz Agamben, que promoveria o “eclipse da política, que pressupunha sujeitos e identidades reais (o movimento operário, a burguesia etc.” – e eu acrescento, Movimento de Moradia, Assessores Técnicos etc. Se prevalece a dessubjetivação, resta-nos “uma pura atividade de governo que visa somente à sua reprodução” (AGMABEN, 2009, p. 49). Obviamente não em detrimento da precaução do filósofo, o que proponho é uma ‘proposição lógica’, não a defesa de um expediente.

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“o problema da profanação dos dispositivos – Magaly Pulhez chama de “transgressão, de permissividade técnica ao flexível e ao improvisado”, ao referir-se ao processo de urbanização de Brás de Pina – isto é, da restituição ao uso comum daquilo que foi

capturado e separado nesses – é, por isso, tanto mais urgente. Ele não se deixará colocar

corretamente se aqueles que dele se encarregam não estiverem em condições de intervir

sobre os processos de subjetivação, assim como sobre os dispositivos, para levar à luz

aquele Ingovernável, que é o início e, ao mesmo tempo, o ponto de fuga de toda

política”(AGAMBEN, 2009, pp. 51 e 52)

O território para onde se resgata o que nos foi “capturado e separado” nos dispositivos é o chão dado pelo uso comum – o lugar da realização positiva dos dispositivos, o lugar da profanação. Talvez ali, no início e no ponto de fuga de toda a política, ainda valha a pena reinscrever nossas utopias.

Este, o primeiro problema.

#

Como bem observa Agamaben, há um problema na definição do território da arqueologia foucaultiana: ao fazer “vazio” o lugar do sujeito, ao despsicologizar a figura que o ocupa, ao permitir o livre intercâmbio entre indivíduos que se alternam na prerrogativa da condução da função enunciativa126 – que se dará por intermédio dos dispositivos –, neutralizando a “pergunta ‘quem fala?’”, Foucault “parece ter omitido – pelo menos até certo ponto – interrogar-se a respeito das implicações éticas da teoria dos enunciados” (AGAMBEM, 2008, p. 143). Isto é, por esta operação da arqueologia foucaultiana, o sujeito como posição fica liberado de qualquer constrangimento ético. Assim,

“o que acontece no indivíduo vivente quando ele ocupa o ‘lugar vazio’ do sujeito, no

momento em que, ao entrar em um processo de enunciação, descobre que ‘a nossa razão

nada mais é que a diferença dos discursos, que a nossa história nada mais é que a

diferença dos tempos, e que o nosso eu nada mais é que a diferença das máscaras’?”

(AGAMBEN, 2008, p. 144)

Como procurei demonstrar, são inúmeros pequenos acontecimentos, quase imperceptíveis – “histórias, quase imóveis ao olhar”, como diria Foucault – que ocuparam a cena ao longo da 126 Lembrando: “[...] o sujeito do enunciado é uma função determinada, mas não forçosamente a mesma de um enunciado a outro; na medida em que é uma função vazia, podendo ser exercida por indivíduos, até certo ponto, indiferentes, quando chegam a formular o enunciado; e na medida em que um único e mesmo indivíduo pode ocupar alternadamente, em uma série de enunciados, diferentes posições e assumir o papel de diferentes sujeitos” (FOUCAULT, 2002a, p. 107)

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trajetória que descrevi, que vão, pouco a pouco, fazendo deslizar os sentidos e significados sem que, necessariamente, se alterem os significantes: e este é o dilema. Ao procurar a excelência técnica na resolução do projeto e da construção; ao trazer os conteúdos de um modo estrangeiro de produzir moradia para os pobres (sem que a forma dos elementos dos dispositivos aqui arranjados correspondesse, em algum grau, às prerrogativas que originalmente a orientava); ao formatar programas para a produção de moradia por autogestão e ajuda mútua que acabaram se estruturando, no calor da hora, em regime de baixíssima normatividade; etc., quer dizer, ao colocarmos em movimento uma determinada “prática discursiva”127, parece que tínhamos o total domínio dos discursos, de uma razão histórica e de uma integridade entre sujeitos e personagens reais.

Mas não se trata de “erros” ou “equívocos”; são apenas a fina lâmina de acontecimentos que reordenam a lógica dos elementos dos dispositivos, permitindo a alternância de sentidos, discursos, falas, proposições etc. Ora – e aqui se trata de uma operação puramente lógica –, se a inferência de Calazans é correta – foi uma série de pequenos acontecimentos que convergiram e se adensaram, aleatoriamente articulados e ao mesmo tempo logicamente conectados, que mobilizariam as forças que fizeram emergir os movimentos sociais no final dos anos de 1970 – então posso afirmar que também é verdadeira a inferência de que, ao atravessar esta fina camada de acontecimentos, também produziremos efeitos na dinâmica estrutural da existência – se não, restam-nos os escolhos.

Isso porque se trata, novamente, de uma disputa pela significação, isto é, uma disputa por este “lugar vazio do sujeito”, onde nos cabe, como indivíduos, profanar os dispositivos e resgatar a forma dos enunciados em sua força propulsora de discursos e atividade, das frases e das proposições, lá em sua formulação mais devastadora – até que, novamente sejam capturadas pelos novos dispositivos, inventados e reinventados neste processo, obrigando o ciclo se renovar permanentemente.

Mas ainda nos resta o problema dos travões nos olhos: como estabelecer um ‘certo’ e um ‘errado’ quando ocuparmos o lugar do sujeito? Como fundamentar algum compromisso ético?

Entre a escrita de “A arqueologia do saber”, de 1969, e o “Vigiar e punir”, publicado em 1975, há uma série de cinco conferências de Foucault, realizadas na Pontifícia Universidade Católica do Rio 127 “Finalmente, o que se chama ‘prática discursiva’ pode ser agora precisado. Não podemos confundi-la com a operação expressiva pela qual um indivíduo formula uma ideia, um desejo, uma imagem; nem com a atividade racional que pode ser acionada em um sistema de inferência; nem com a ‘competência’ de um sujeito falante, quando constrói frases gramaticais; é um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa” (FOUCAULT, 2002a, p. 136)

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de Janeiro, entre 21 e 25 de maio de 1973, e que foram publicadas sob o título “A verdade e as formas jurídicas”, já naquele mesmo ano. Certamente há toda uma consideração quanto ao percurso filosófico que faz destas conferências uma espécie de ligadura entre as duas obras de Foucault. Mas não é isso que interessa destacar aqui. O que chama a atenção – particularmente na primeira das cinco conferências – é como Foucault agencia argumentos para defender que, do mesmo modo que o conhecimento é uma invenção – e, para tanto, parte de um texto de Nietzche, “Verdade e mentira no sentido extra-moral” – assim também a verdade o é.

“Meu objetivo será mostrar-lhes como as práticas sociais podem chegar a engendrar

domínios de saber que não somente fazem aparecer novos objetos, novos conceitos, novas

técnicas, mas também fazem nascer formas totalmente novas de sujeitos e de sujeitos de

conhecimento. O próprio sujeito de conhecimento tem uma história, a relação do sujeito

com o objeto, ou, mais claramente, a própria verdade tem uma história” (FOUCAULT,2002b,

p. 8)

Quer dizer, na evolução dos eventos que procurei relatar, era permanente a sensação de que produzíamos verdades – e por se tratar de uma ‘prática social’ por excelência, os “novos objetos, conceitos e técnicas” pareciam corresponder a uma fundação determinada de uma história, aonde firmaríamos os apoios para vôos mais altos e distantes. Daquele “lugar vazio”, projetávamos as tais utopias sem que necessário fosse pretender-lhes algum lugar. Para todos os efeitos, aquele momento e aquele lugar era nossa origem:

“Atualmente, quando se faz história – história das idéias, do conhecimento ou simplesmente

história – atemo-nos a esse sujeito de conhecimento, a este sujeito da representação, como

ponto de origem a partir do qual o conhecimento é possível e a verdade aparece” (idem, p.

10)

Como procurei demonstrar – escavando precedências que, certamente, não são todas as possíveis – os eventos se adensariam em determinados momentos, quando as referências e efervescências de campos diversos interpenetravam-se e criavam uma nova modalidade de prática discursiva, fazendo parecer situar-se ali o ponto de origem de uma determinada nova ordem do real – como na virada dos anos 1970 para os de 1980, quando o próprio Eder Sader vê ali a germinação determinada de “novos personagens” entrando em cena. Mas

“Seria interessante tentar ver como se dá, através da história, a constituição de um sujeito

que não é dado definitivamente, que não é aquilo a partir do que a verdade se dá na

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história, mas de um sujeito que se constitui no interior mesmo da história, e que é a cada

instante fundado e refundado pela história” (idem, p. 11)

E esta era a investigação proposta por Foucault, como “hipótese de trabalho para um trabalho futuro” a ser discutido nas conferências na PUC Rio: tratava-se de não mais atribuir uma origem ao sujeito do conhecimento e a ele conceder a condição de ‘senhor’ da história. Na medida em que, como e enquanto sujeito do conhecimento, era dele a atribuição de promover a representação do real, também era dele a responsabilidade pela condução dos processos de subjetivação. Tratava-se, portanto, de um sujeito preservado em sua integridade, tanto de origem, como indivíduo, grupo ou instituição definidos. Foucault propõe inverter esta relação. Se possível a inversão, então a proposta seria acompanhar “a constituição histórica de um sujeito de conhecimento através de um discurso tomado como um conjunto de estratégias que fazem parte das práticas sociais” – dali de onde surgiriam novas formas de subjetividade (idem, p. 11 e 12). Parte então do pressuposto que “o conhecimento foi, portanto, inventado. Dizer que ele foi inventado é dizer que ele não tem origem. É dizer, de maneira precisa, por mais paradoxal que seja, que o conhecimento não está em absoluto inscrito na natureza humana” (idem, p. 16). Desenvolvendo suas considerações por este caminho, Foucault vai trazendo, pouco a pouco, a precisa noção de como se estabeleceu, ao longo do tempo, uma certa “política da verdade”, como uma “relação estratégica” que põe em movimento sistemas objetivos de “relações de força” que instituem as verdades de cada época. Mas, já no final do primeiro dia de conferência, adverte que esta operação não se trata de ideologia, no sentido marxiano do termo.

“Retomo agora meu ponto de partida. Em uma certa concepção que o meio universitário faz

do marxismo ou em uma certa concepção do marxismo que se impôs à universidade, há

sempre no fundamento da análise a idéia de que as relações de força, as condições

econômicas, as relações sociais são dadas previamente aos indivíduos, mas, ao mesmo

tempo, se impõem a um sujeito de conhecimento que permanece idêntico, salvo em relação

às ideologias tomadas como erros” (idem, p. 26)

Desse modo, as ideologias – no sentido dado pela concepção de marxismo indicada por Foucault – são tomadas como uma verdade velada e re-velada pelas “condições de existência”, pelos modos poeirentos de produção e reprodução da vida, ou “por relações sociais ou por formas políticas que se impõem do exterior ao sujeito do conhecimento”; uma verdade que se esfumaça sob o signo de uma concepção ingênita de um sujeito do conhecimento que permanece a “salvo das ideologias” – do qual se espera, um dia, a remoção dos escolhos que impedem uma relação direta da humanidade com a verdade. Segundo esta concepção, “a ideologia é a marca, o estigma destas

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condições políticas ou econômicas de existência sobre um sujeito de conhecimento que, de direito, deveria estar aberto à verdade”.

Mas o que Foucault procurou demonstrar naquele ciclo de conferências é como

“as condições políticas, econômicas de existência [e é aqui que eu insiro a técnica]128 não

são um véu ou um obstáculo para o sujeito de conhecimento, mas aquilo através do que se

formam os sujeitos de conhecimento e, por conseguinte, as relações de verdade. Só pode

haver certos tipos de sujeito de conhecimento, certas ordens de verdade, certos domínios

de saber a partir de condições políticas que são o solo em que se formam o sujeito, os

domínios de saber e as relações com a verdade” (idem, p. 26 e 27)

A ideia que persigo aqui é simples: o que pretendo é desfazer a noção de que técnica é pura racionalidade instrumental que – como queria Habermas, mais uma vez –, enquanto ideologia, enquanto distorção do real, ofuscaria o sujeito do conhecimento, preservado em sua potência como um a priori. Se não são os processos materiais e econômicos que são conduzidos pelos sujeitos, mas são os sujeitos (lembrar: um lugar “vazio”) que são produzidos pelos processos materiais e econômicos, é assim que a técnica – enquanto capacidade de agenciar e conduzir processos de produção material da vida e enquanto modo de linguagem, fazendo com que sua matéria se relacione diretamente com o mundo – também produz seus sujeitos. Assim, implicando na construção desse “lugar vazio” – que é ora ocupado por indivíduos estes, ora ocupado por indivíduos aqueles –, a técnica – assim como o discurso – também participa desse processo de subjetivação, delineado, como vimos, conforme “discursos, instituições, estruturas arquitetônicas,

decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições

filosóficas, morais e filantrópicas, em resumo: tanto o dito como o não dito”, isto é, pelos elementos do dispositivo129.

128 Insisto – como já o fiz em minha tese de doutorado e faço em disciplina que trata do assunto – na ideia de que técnica é capacidade de produzir meios de existência e tecnologia é a mesma coisa que meios de produção – isto é, as condições econômicas objetivas de produção e reprodução da vida. 129 Advirto que, se parece que estou “positivando” a noção de dispositivo, a impressão é errônea. Isso porque, para Foucault, a noção de positividade é íntima da ideia de dispositivo. Além disso, é o próprio Foucault que define: “Analisar uma formação discursiva é, pois, tratar um conjunto de performances verbais, ao nível dos enunciados e da forma de positividade que as caracteriza; ou, mais sucintamente, é definir o tipo de positividade de um discurso. Se substituir a busca das totalidades pela análise da raridade, o tema do fundamento transcendental pela descrição das relações de exterioridade, a busca da origem pela análise dos acúmulos, é ser positivista, pois bem, eu sou um positivista feliz, concordo facilmente. E não estou desgostoso por ter, várias vezes (se bem que de maneira ainda um pouco cega), empregado o termo positividade para designar, de longe, a meada que tentava desenrolar” (FOUCAULT, 2002a, p. 144).

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Talvez por isso, devamos ser efetivamente mais pragmáticos e deixar de nos envolver com utopias – são não-lugares, sequer “lugares vazios”, impossíveis modais que nos interditam qualquer possibilidade de subjetivação.

Este, o segundo problema.

São Carlos março de 2011

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pós escrito Este texto toma como base uma espécie de ‘memorial’ que elaborei, em 2004, para contextualização dos movimentos e da atuação dos arquitetos, em São Paulo, desde a virada dos anos 1970 para os de 1980, até quando foi escrito, para apresentação no Seminário de Pesquisa “Procedimentos Inovadores para a Gestão da Produção Habitacional” – um seminário realizado em novembro de 2004, onde a USINA apresentava e discutia os resultados de uma pesquisa, com o mesmo nome, financiada pela FINEP.

O texto “Artimanhas do discurso bifronte” é de 2007 e o “Por partes: o novo fundamentalismo participativo” é de 2010. Além deles, há também o “Comentários incomodados”, de 2006 que, reescrito, faz a abertura do presente trabalho.

Dentre outros, os textos que considero mais relevantes para a discussão que aqui empreendi, são: o “Anão caolho”, um ensaio de réplica ao texto de Chico de Oliveira, “O vício da virtude”, ambos publicados na NOVOS ESTUDOS – CEBRAP; e o “De molde a contra-molde”, em co-autoria com Magaly Pulhez, publicado no Cadernos do IPPUR, em 2008. Todos estes textos encontram-se referenciados no Memorial Circunstanciado.

Além destas incursões – mais teóricas e reflexivas, por certo – quero colocar em relevo – e aqui proponho a atenção a estes aspectos no Memorial – a forma como acredito pautar meu trabalho na universidade: do mesmo modo que venho argumentando, trata-se de compor, “na fina camada dos acontecimentos” mais prosaicos e até mesmo mais burocráticos, atividades que me permitam estabelecer uma clara relação entre prática de ofício e tarefa política. Venho insistindo nisso e o texto de tese que aqui apresento procura refletir, em número e grau, esta disposição de enfrentar as problemáticas relações entre Técnica e Política. Dessa forma, tanto no âmbito da pesquisa, como no do ensino e da extensão, o que procuro é investir, sempre que possível, num espectro de assuntos e abordagens que me permitam estabelecer sempre as conexões e nexos entre prática política e atuação técnica profissional. É isto que procuro colocar em relevo no Memorial Circunstanciado.

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