scintilla - fae

184
SCINTILLA SCINTILLA SCINTILLA SCINTILLA SCINTILLA

Upload: others

Post on 03-May-2022

10 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: SCINTILLA - FAE

LA MÍSTICA EN EL ISLAM...

1Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 13-30, jan./jun. 2009

SCINTILLASCINTILLASCINTILLASCINTILLASCINTILLA

Page 2: SCINTILLA - FAE

2

DR. RAFAEL RAMÓN GUERRERO

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 13-30, jan./jun. 2009

Page 3: SCINTILLA - FAE

LA MÍSTICA EN EL ISLAM...

3Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 13-30, jan./jun. 2009

SCINTILLASCINTILLASCINTILLASCINTILLASCINTILLA REVISTREVISTREVISTREVISTREVISTA DE FILA DE FILA DE FILA DE FILA DE FILOSOFIA E MÍSTICA MEDIEVOSOFIA E MÍSTICA MEDIEVOSOFIA E MÍSTICA MEDIEVOSOFIA E MÍSTICA MEDIEVOSOFIA E MÍSTICA MEDIEVALALALALAL

ISSN 1806-6526

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 1-152.jan./jun. 2009

Instituto de Filosofia São Boaventura – IFSBSociedade Brasileira de Filosofia Medieval – SBFM

Curitiba PR2009

Page 4: SCINTILLA - FAE

4

DR. RAFAEL RAMÓN GUERRERO

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 13-30, jan./jun. 2009

Copyright © 2004 by autoresQualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.Centro Universitário Franciscano do Paraná

FAE – Centro Universitário Franciscano do ParanáIFSB – Instituto de Filosofia São BoaventuraSBFM – Sociedade Brasileira de Filosofia MedievalInstituto mantido pela Associação Franciscana de Ensino Senhor Bom Jesus (AFESBJ) Rua 24 de maio, 135 – 80230-080 Curitiba PR E-mail: [email protected] ou [email protected]: Nelson José HillesheimPró-reitor acadêmico: André Luis Gontijo ResendePró-reitor administrativo: Paulo Arns da CunhaDiretor: Vicente KellerEditor: Dr. Enio Paulo Giachini

a) Comissão editorialDr. Emanuel Carneiro Leão, UFRJDr. Orlando Bernardi, IFANDr. Luiz Alberto de Boni, PUCRSDr. José Antônio Camargo Rodrigues de Souza, UFGDr. João Eduardo Pinto Basto Lupi, UFSCDr. Carlos Arthur R. do Nascimento (PUC-SP)Dr. Francisco Bertelloni (Univ. Nacional da Argentina)Dr. Gregorio Piaia (Univ. di Padova – Italia)Dr. Marcos Roberto Nunes Costa (UNICAP)Dr. Rafael Ramón Guerrero (Unv. Complutense – España)Dra. Márcia Sá Cavalcante Schuback, Södertörns University College

Estocolmo (Suécia)Dr. Ulrich Steiner, FFSBDr. Jaime Spengler, FFSBDr. João Mannes, FFSB

b) Conselho editorialDr. Vagner Sassi, FFSBDr. Marco Aurélio Fernandes, IFITEGDra. Glória Ferreira Ribeiro, UFSJRDr. Jamil Ibrahim Iskandar, PUC-PRDr. Joel Alves de Souza, UFPRDr. Gilvan Luiz Fogel, UFRJHermógenes Harada

Revisão e editoração: Enio Paulo GiachiniDiagramação: Sheila RoqueCapa: Luzia Sanches

Catalogação na fonteScintilla – revista de filosofia e mística medieval. Curitiba: Instituto de Filosofia SãoBoaventura, Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval, Centro UniversitárioFranciscano, v.1, n.1, 2004-SemestralISSN 1806-65261. Filosofia - Periódicos 2. Medievalística – Periódicos.3. Mística – Periódicos.

CDD (20. ed.) 105 189

189.5

Page 5: SCINTILLA - FAE

LA MÍSTICA EN EL ISLAM...

5Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 13-30, jan./jun. 2009

SUMÁRIO

EDITORIAL .............................................................................. 7Enio Paulo Giachini

ARTIGOS ............................................................................... 11La Mística en el Islam. Algunas páginas de Abû Bakral-Kalâbâdî ...........................................................................................................................13

Dr. Rafael Ramón GuerreroAverróis (Ibn Rušd) e a Política: O comentário sobre“República” ....................................................................... 31

Rosalie Helena de Souza PereiraIl “sigillo dei filosofi”. Aristotele nelle Epistole dei“Fratelli della Purità” (Ikhwan al-Safa) .............................. 67

Antonella DoninelliA vontade de Deus na metafísica de Ibn Gabirol(Avicebron): um passo além do logos filoniano? ................. 81

Cecilia Cintra Cavaleiro de Macedo

Leo Strauss y la herencia filosófico-política de MoisésMaimónides .................................................................... 113

Prof. Dr. José Ricardo Pierpauli

COMENTÁRIOS .................................................................... 145A Al-sifa’ e a substancialidade da alma – Ibn Sina –Livro da alma I-3 ............................................................ 147

Miguel Attie Filho

Page 6: SCINTILLA - FAE

6

DR. RAFAEL RAMÓN GUERRERO

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 13-30, jan./jun. 2009

Averrois, Comentador da Física de Aristóteles(Liv. II, cap. 2, 193b22-194a12) ..................................... 157

Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento

TRADUÇÕES ........................................................................ 171Las buenas maneras en sociedad – Texto de AbuMuhammad ‘Ali Ibn Ahmad Ibn Sa‘id Ibn Hazm ........... 173

Traducido y apresentado por Luis Vivanco

Page 7: SCINTILLA - FAE

LA MÍSTICA EN EL ISLAM...

7Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 13-30, jan./jun. 2009

EDITORIAL

Enio Paulo Giachini

Na origem tanto da cultura judaica, quanto da árabe, vigoramexperiências humanas do espírito, que não se esgotam na religião, nafilosofia, na teologia etc., nascidas daquelas. Nessas experiências, ohomem é tomado pelo espírito. A vida desses povos começa a estrutu-rar-se a partir de uma inspiração que ultrapassa o homem. Legistas eprofetas são estruturações humanas mediadoras dessas experiências.Escrituras são seus registros-fontes. Os membros “comuns” dessas co-munidades são a florescência e reverberação dessas grandes experiên-cias. Via de regra, o indivíduo comum não tem plena ciência de talexperiência. Nos casos em questão, essa ciência e mediação são exercidaspelo legislador e pelo profeta. O profeta é o paradigma do homemtomado pelo espírito superior. A experiência originária toma corponos profetas que, guiados por essa experiência, direcionam a estrutura-ção desse surgir originário.

Uma cultura se firma e se eleva sempre a partir de um feliz achado,uma experiência originária. É a partir desse achado que se estrutura omundo dessa cultura. Por sua força e intensidade, torna-se possível aconjugação de fatores que possibilitam o surgimento, a identidade e ocrescimento de uma cultura. É a experiência originária desse achadoque fomenta a formulação da vida, do cotidiano de uma cultura, ali-mentação, trabalho, comunicação, propagação, a ética, a religião, avisão de mundo etc.

Uma cultura é sempre mais abrangente que uma nação. Via deregra, uma cultura congrega várias nações, sem destruir a identidade

Page 8: SCINTILLA - FAE

8

DR. RAFAEL RAMÓN GUERRERO

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 13-30, jan./jun. 2009

ENIO PAULO GIACHINI

própria de cada nação. A partir dessa experiência inaugural originária efundante, brotam estruturações mais visíveis em diferentes níveis. Essaexperiência originária se cristaliza em religião, filosofia, arte, política,ética etc.

A persistência e sobrevida de uma cultura estão diretamente liga-das à fidelidade para com esse achado originário. Da capacidade defazer com que essa experiência evolua, se renove e renasça, depende asobrevida, ou melhor, a vida de um povo. O vigor de uma religião,filosofia etc. se mede pela sua afinidade e afinação para com essa expe-riência originária. Todo movimento estacionário e estagnador oudesviante, no seio das mesmas, significa uma dacadência e um desvioda experiência.

Assim, uma cultura vive de iluminação do achado originário, e docultivo, renovação e elevação do mesmo. Essas renovação e elevação seinstauram na medida em que tanto o homem quando seu entorno sãoalavancados.

É nesse sentido que uma cultura jamais está fechada em si, massempre em diálogo com outras culturas. Assim como o indivíduo, afamília, o clã, a nação só avançam ao dialogar com seus outros, tam-bém uma cultura só se eleva no diálogo para com outras culturas.

Diálogo, porém, não significa discussão, embate em vista de umsobrepujar e submeter. Via de regra, procura-se o “diálogo” com a in-tenção de convencer, persuadir ou até de subjugar o outro. Mas o diá-logo, ao contrário, tem a ver com confronto, sim, mas em vista de umaprofundamento da própria identidade, na perspectiva de uma me-lhor e maior diferenciação, uma elevação de si mesmo.

Esse fato nos leva a compreender que é necessário tomar ciência daintransferibilidade absoluta da própria identidade, seja de um indiví-duo, de uma família, clã, nação ou cultura. Quanto mais ciência damesma, tanto mais vitalidade. O diálogo jamais extingue essa identi-

Page 9: SCINTILLA - FAE

LA MÍSTICA EN EL ISLAM...

9Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 13-30, jan./jun. 2009

dade. O diálogo jamais é convencimento, persuasão, subjugamento.Ao contrário, o diálogo fomenta e alavanca a auto-identidade, dá edevolve a cada um o que é seu.

Diálogo não se dá sobre, em cima de um tema, como um debatede saberes e informações a respeito de um tema. Tampouco é um es-forço comum para esclarecer as implicações “fundamentais” de umtema, sejam históricas, filosóficas, éticas, religiosas, econômicas, hu-manas ou quais sejam. Diálogo se estabelece num duplo movimentodos dialogantes. “O diálogo chega a realizar-se só quando os partici-pantes são levados a mergulhar, cada vez mais fundo, em suas decisões,pré-julgamentos e decisões prévias e, com isso, igualmente serem im-pulsionados ao alto, estabelecendo comunidades e comunhões maiselevadas e mais lúcidas”1.

Nesse sentido, diálogo não poderá significar uma troca de infor-mações e opiniões ou o mero estabelecimento de compromissos mú-tuos, mas um aprofundamento e elevação das dimensões da vida comoum todo.

É nesse sentido que, neste número, a Scintilla convidou especialis-tas do pensamento árabe e judeu para o diálogo.

O leitor está convidado a participar do mesmo, na medida emque, pelo confronto com os artigos, se vê instigado ao confronto con-sigo mesmo, na perspectiva do todo da vida.

1 ROMBACH, H. Drachenkampf. Der philosophische Hintergrund der blutigenBürgerkriege. Würtzburg: Rombach Verlag, 1996, p. 142.

EDITORIAL

Page 10: SCINTILLA - FAE

10

DR. RAFAEL RAMÓN GUERRERO

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 13-30, jan./jun. 2009

Page 11: SCINTILLA - FAE

LA MÍSTICA EN EL ISLAM...

11Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 13-30, jan./jun. 2009

ARTIGOSARTIGOSARTIGOSARTIGOSARTIGOS

Page 12: SCINTILLA - FAE

12

DR. RAFAEL RAMÓN GUERRERO

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 13-30, jan./jun. 2009

Page 13: SCINTILLA - FAE

LA MÍSTICA EN EL ISLAM...

13Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 13-30, jan./jun. 2009

LA MÍSTICA EN EL ISLAM. ALGUNASPÁGINAS DE

ABÛ BAKR AL-KALÂBÂDÎ*

Dr. Rafael Ramón Guerrero*

La vida mística tiene una larga trayectoria en el Islam, casi desdelos inicios de éste hasta hoy, en que aquélla florece con gran interésentre musulmanes y con curiosidad entre no musulmanes. El proble-ma de sus orígenes, como han señalado Gardet y Anawati, es delicadoy ha dividido a los orientalistas y a los musulmanes mismos1. Paraunos, se trata de una imitación de la doctrina y métodos de vida delmonacato cristiano2. Para otros, la mística islámica no es más que elresultado del desarrollo de aspectos contenidos en el propio Corán3.También se ha afirmado que estas dos concepciones opuestas parecenno tener en cuenta el hecho de que el Corán está ya penetrado de

* Este trabajo se ha realizado con la ayuda del Proyecto de Investigación El legado clásico(griego, latino, persa) en el Islam de al-Andalus. Referencia: Hum2007-61136/FISO,Ministerio de Educación y Ciencia. Dirección General de Investigación.

* Catedrático de filosofía medieval en la Facultad de Filosofía de la UniversidadComplutense de Madrid. España.

1. ANAWATI, G.C.; GARDET, L. Mystique musulmane. Aspects et tendences. Expérienceset techniques. París: J. Vrin, 3ª ed., 1976, p. 18.

2. Cf. PALACIOS, M. Asín. El Islam cristianizado. Estudio del sufismo a través de lasobras de Ibn ‘Arabi de Murcia. Madrid: Ed. Plutarco, 1931, pp. 5-9.

3. Cf. MASSIGNON, L. Essai sur les origines du lexique technique de la mystique musulmane.París: P. Geuthner, 1922, nueva ed., 1954, 1968, pp. 45-52, 63ss., 104-105.

Page 14: SCINTILLA - FAE

14

DR. RAFAEL RAMÓN GUERRERO

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 13-30, jan./jun. 2009

valores espirituales presentes en la Biblia4. Igualmente se ha hablado deuna influencia del neoplatonismo alejandrino, del gnosticismo y delmazdeísmo persa5. A pesar de ello, los musulmanes encuentran el fun-damento de la mística islámica en las propias fuentes coránicas, al con-siderar que numerosos versículos del texto revelado y muchas tradicio-nes proféticas están cargados de una significación espiritual que losmísticos musulmanes han sentido y han meditado, abriendo así el ca-mino para la vida mística, entendida como la dimensión interna oesotérica de la Revelación.

En realidad, la mística o tasawwuf, como se denomina en lenguaárabe, es una actitud o vía de acceso a la Verdad, que consiste funda-mentalmente en un “desvelamiento”, en una iluminación interior, enuna iniciación por la que el alma es capaz de allegarse directamente aDios. Es la tercera dimensión del Islam, junto a la doctrinal y a lapráctica6, que se expresa como camino de realización espiritual cuyofin es la unión e identificación con Dios. La mística se presentó comola búsqueda de una regla de vida en el nivel más profundo de la natu-raleza humana para alcanzar el anonadamiento del yo personal hastaunirse con Dios a través del amor, entendido como forma de conoci-miento. Es la “ciencia de los corazones” que permite al hombre despo-jarse de todo apego sensible y transformarse en espíritu. Esto requiereun gran esfuerzo que se lleva a cabo por medio de la meditación y eldikr, la constante repetición del nombre de Dios y de otras jaculato-rias. Este esfuerzo permite al místico recorrer un itinerario espiritual, alo largo del cual el alma se prepara atravesando diversas etapas, estacio-

4. ARNALDEZ, R. Réflexions chrétiennes sur la mystique musulmane. París: O.E.I.L., 1989,p. 13.

5. Cf. ARBERRY, A.J. Sufism. An Account of the Mystics of Islam. Londres: Allen &Unwin, 1950.

6. Cf. MURATA, S.; CHITTICK, W. The Vision of Islam. Londres: I.B. Tauris, 1996, pp.XXXII-XXXIV y 265-317.

Page 15: SCINTILLA - FAE

LA MÍSTICA EN EL ISLAM...

15Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 13-30, jan./jun. 2009

nes o moradas (maqâmât) y distintos estados (ahwâl) hasta alcanzar laansiada unión con Dios, momento en el que se producirá la visión, lasexperiencias gustosas y sabrosas y la presencia del sumo grado, todoello inefable e incapaz de ser expresado. Así lo expresó el filósofo IbnTufayl (m. 1185):

Resulta claro de lo dicho que lo que pides se refiere a uno de estosdos objetivos. O bien preguntas por lo que ven quienes, en la fasede la santidad (walâya), han tenido la visión, las experienciaspersonales gustosas y la presencia. Esto es algo cuya afirmaciónsegún la auténtica realidad de su asunto no se puede [exponer] enningún libro. Cuando alguien ha intentado hacerlo y se haencargado [de exponerlo] de palabra o por escrito, se ha alterado surealidad y se ha convertido en parte de la otra clase, la especulativa:porque cuando aquello se reviste con las letras y los sonidos y seacerca al universo de lo visible no permanece en la misma situaciónen la que estaba, pues las expresiones sobre ello difieren con muchasdiferencias; unos cometen error respecto a la recta vía y opinan queotros son los que han cometido error, pero no ha sido así. Se tratade una cosa infinita en una presencia de amplias alas, una cosa queestá circunscrita sin estar rodeada7.

Cualquier intento de formularlas por medio del lenguaje altera suverdadera naturaleza y realidad8.

Éstos son, a grandes líneas, los rasgos característicos del tasawwuf.No hubo uniformidad total entre sus representantes, pues cada uno deellos aportó algo nuevo, resultado de su experiencia personal. Peromantuvieron una actitud global que dio nueva vida a una religión de-masiado legalista, más preocupada por prácticas de tipo ritual y litúr-gico que por el sentimiento religioso interno, más interesada en lopúblico y político que en lo individual e íntimo. Ésta parece haber

7. TUFAYL, Ibn. Hayy ben Yaqdhân. Roman philosophique d’Ibn Thofaïl. ed. L. Gauthier,2ª ed., Beirut, 1936, pp. 10-11.

8. Cf. GUERRERO, R. Ramón. “Discurso filosófico y discurso místico: algunas diferen-cias”, Anales del Seminario de Historia de la Filosofía, 17 (2000) 53-75.

Page 16: SCINTILLA - FAE

16

DR. RAFAEL RAMÓN GUERRERO

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 13-30, jan./jun. 2009

sido la razón por la que se convirtió en un movimiento de gran acep-tación popular, al buscar más la experiencia viva de Dios que el cono-cimiento puramente especulativo y doctrinario de la religión.

Tras la aparición de las primeras manifestaciones de esta nueva vía deacceso a la Verdad, el movimiento conoció una rápida expansión y ungran poder de asimilación, pero careció de una organización claramen-te establecida. A partir del siglo IX, se mostró como un elemento dife-renciado dentro de la comunidad islámica. Fue el momento en queaparecieron los nombres más reconocidos dentro de la mística islámica,tales como al-Muhâsibî, Dû l-Nûn al-Misrî, Bâyazîd o al-Junaid. Susdoctrinas y sus métodos fueron propagados por hermandades o cofra-días, tarîqa, plural, turûq, a cuyo frente había un maestro9.

Las contradicciones y oposiciones que se produjeron entre deter-minadas formas de mística y el Islam tradicional y legalista dieron lugar ainquietudes y desazones que generaron una necesidad de elaborar textos enlos que se pusiera de manifiesto la conformidad de la vía mística con elIslam y la posibilidad de encontrar interpretación racional de versículoscoránicos a la manera de los teólogos. El siglo X vio aparecer las primerasobras en las que sus autores se planteaban la tarea de preservar y transmitirlas enseñanzas de los maestros, a la vez que trataban de rehabilitar el movi-miento frente a los ataques de heterodoxia que arreciaban tras la ejecuciónde al-Hallây10. Fueron textos que querían justificar esta vía ante quienescreían que era un movimiento peligroso para la vida musulmana; tra-taron de mostrar, para ello, el completo acuerdo de las doctrinas de losprimeros sufíes del siglo IX con la ley islámica y cómo la teoría y lapráctica de ellos eran parte integrante del Islam, apelando al ejemplo yautoridad del Profeta y de sus Compañeros.

9. Cf. ARBERRY, A. J. Sufism, op. cit. pp. 31-65.

10. Cf. KNYSH, A. Islamic Mysticism. A Short History. Leiden: Brill, 2000, pp. 116-117.

Page 17: SCINTILLA - FAE

LA MÍSTICA EN EL ISLAM...

17Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 13-30, jan./jun. 2009

Uno de estos primeros textos es el titulado Kitâb al-ta‘arruf li-madhab ahl al-tasawwuf (“Libro del conocimiento de la doctrina delos seguidores de la mística”)11, de Abû Bakr al-Kalâbâdî (muerto entorno al año 990), del que apenas existen noticias a pesar del prestigiode que gozó su obra. Se sabe que era jurasaní de origen persa, que fueun ilustre jurista de la escuela hanafi y un gran tradicionista, además desufí. Se formó con Abû l-Qâsim Fâris al-Dinawarî (m. 951), discípu-lo y seguidor de las doctrinas del célebre al-Hallâj, que había huido deBagdad tras la ejecución de éste12.

El libro está dividido en cinco partes. En primer lugar (capítulos1-4) ofrece una especie de introducción, donde define qué es el sufismoy donde ofrece una lista de los principales maestros sufíes. En segundolugar (capítulos 5-30) realiza una exposición de las principales tesisprofesadas por los sufíes, cotejándolas con las exposiciones que de ellashacen los teólogos, defendiendo algunas de éstas y criticando otras,especialmente las de la escuela mu‘tazilí. En tercer lugar (capítulos 31-51) describe las etapas o estaciones ascéticas y místicas: arrepentimien-to, abstinencia, paciencia, pobreza, humildad, temor, piadosa escru-pulosidad, sinceridad, gratitud, confianza en Dios, contentamiento,recuerdo del nombre de Dios, intimidad, proximidad, unión con Diosy amor a Dios13. La cuarta parte (capítulos 52-63) analiza los términostécnicos y diversas nociones sufíes propias de los estados espirituales,

11. Ed. Arberry A. J., El Cairo, 1924. Trad. ingl por A. J. Arberry: The Doctrine of Sûfîs,Cambridge, Cambridge University Pres, 1935. Trad. franc. por R. Deladrière: Traitéde soufisme. Les Maîtres et les Etapes. París, Sindbad, 1981. Edición y trad. italiana porP. Urizzi: Il Sufismo nelle parole degli antichi, Palermo, Officina di Studi Medievali,2002.

12. Cf. URIZZI, P. Introduzione a su edición y traducción citadas, pp. 7-11, dondeesboza un intento de biografía y de estudio de la obra de al-Kalâbâdî. Sobre al-Hallâj,cf. L. Massignon: La passion de Husayn Ibn Mansûr Hallâj: martyr mystique de l’Islam.París: P. Geuthner, 1922; nouv. edition, París: Gallimard, 1975.

13. Cf. KNYSH, A. Islamic Mysticism, op. cit. pp. 123-124.

Page 18: SCINTILLA - FAE

18

DR. RAFAEL RAMÓN GUERRERO

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 13-30, jan./jun. 2009

tales como el éxtasis, la sobriedad, el desvelamiento, el anonadamien-to y la permanencia o la realidad de la gnosis (ma‘rifa). Finalmente(capítulos 64-75) describe fenómenos como carismas, favores y donesespeciales concedidos por Dios a los sufíes, finalizando la obra con uncapítulo consagrado a la audición espiritual (samâ‘), una de las prácti-cas más conocidas de algunos grupos sufíes como los de la escuelaMawlawî o Mevlevi, fundada por los seguidores de Jalâl al-Dîn Rûmî.

A continuación, voy a ofrecer la introducción o preámbulo y el capí-tulo primero de este libro, para que el lector se haga una idea del tenor dela obra y de su importancia para conocer el sufismo en sus orígenes. Miversión está realizada a partir de la edición citada de Paolo Urizzi.

[PREÁMBULO]

En el nombre de Dios, Clemente y Misericordioso

Alabanza a Dios, que por su magnitud se oculta a la percepción delos ojos (‘an dark al-‘uyûn); que por su majestad y omnipotencia estápor encima de lo que está sujeto a las opiniones; que por su esencia nopuede asemejarse a la esencia de las criaturas; que por sus atributostrasciende los atributos de los seres que comienzan a ser; el Eterno (qadîm),que jamás ha dejado de ser; el Permanente (bâqî), que jamás cesará; el queestá demasiado elevado para tener semejantes, contrarios o parecidos; aquelque muestra a su creación su unicidad (wahdâniyya) por medio de susindicaciones y signos; aquel que se da a conocer a sus santos (awliyât) porsus nombres, sus epítetos y sus atributos; el que se hace próximo a lo másíntimo de su ser14 e inclina sus corazones hacia Él; el que por su gracia losrecibe y por su benevolencia los atrae hacia sí. Ha purificado lo másíntimo de su ser de las manchas del alma y ha puesto sus facultades porencima de lo que conviene a los contornos (rusûm)15.

14. Literalmente: “sus secretos” (asrâr).

15. Sobre el significado de este término, cf. NWYIA, P. Exégèse coranique et langagemystique. Beirut: Dar el-Machreq, 1970, p. 182.

Page 19: SCINTILLA - FAE

LA MÍSTICA EN EL ISLAM...

19Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 13-30, jan./jun. 2009

Entre ellos ha elegido a quien ha querido para [transmitir] sumensaje (risâla) y ha escogido a quien ha preferido para su revelación ysu mediación. Ha hecho descender sobre ellos Libros en los que estánsus mandatos y sus prohibiciones; ofrece promesas a quien obedece yamenazas a quien desobedece. Ha expuesto claramente la superioridadde ellos sobre todos los hombres y ha elevado sus grados hasta el puntode que no les alcance el poder de los hombres eminentes. Los hasellado16 con Muhammad, que la bendición y la paz sean sobre él ysobre los suyos, y ha ordenado la fe (îmân) en él y la sumisión (islâm).Su religión (dîn) es la mejor de las religiones y su comunidad (umma)es la mejor de las comunidades17. No habrá abrogación para su Ley(sharî‘a) ni habrá ninguna otra comunidad después de la suya.

Dios ha puesto entre ellos hombres selectos y elegidos, nobles ypiadosos, que “han recibido de Dios lo mejor”18 y a los que “les impusola palabra del temor”19. Ha desasido a sus almas del mundo terreno.Sus esfuerzos ascéticos20 han sido sinceros y han obtenido losconocimientos del estudio (‘ulûm al-dirâsa); sus comportamientos(mu‘âmalât) han sido puros y se les han concedido los conocimientosde la herencia [profética] (‘ulûm al-wirâta). Sus fueros internos hansido purificados y han sido honrados con una intuición sincera (sidqal-firâsa). Sus pasos han sido firmes, sus inteligencias se han desarrolladoy sus signos distintivos se han iluminado. Desde Dios han comprendidoy hacia Dios se han dirigido, apartándose de lo que no es Dios. Susluces han desgarrado los velos, lo más íntimo de su ser ha girado en

16. Es decir, ha sellado el ciclo de la profecía.

17. Corán, 3, 110: “Sois la mejor comunidad humana que jamás se haya suscitado”.

18. Corán, 21, 101.

19. Corán, 48, 26.

20. El término mujâhada, de la raíz j-h-d, “esforzarse, luchar”, significa en lenguajemístico el “esfuerzo ascético”, el seguir la “vía ascética”. Cf. NWYIA, P. Exégèse coranique.Op. cit. pp. 218, 235, 294, 300.

Page 20: SCINTILLA - FAE

20

DR. RAFAEL RAMÓN GUERRERO

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 13-30, jan./jun. 2009

torno al Trono divino (‘arsh), sus pensamientos (akhtâr)21 son excelsospara quien está en el Trono y sus miradas se han quedado ciegas para loque está por debajo del Trono. Ellos son cuerpos espiritualizados (ajsamruhâniyyûn); en la tierra son celestes (samâwiyyûn), entre las criaturasson divinos (rabbaniyyûn), taciturnos y contemplativos (nuzzâr), au-sentes y presentes, reyes con andrajos, extranjeros en sus cábilas (qabâ’il),/2/ poseedores de virtudes excelentes y luces de las señales [que indicanla vía]. Sus oídos están atentos, lo más íntimo de su ser es puro, suscualidades están ocultas, las propias de los elegidos, las de los sufíes,son brillantes y límpidas22. Son el depósito de Dios entre sus criaturas,los elegidos en su creación, su recomendación a su Profeta, sus cosasocultas para su Elegido. Durante su vida fueron “las gentes del banco”(ahl al-suffa)23 y después de su muerte fueron los mejores de sucomunidad; el primero no dejó de exhortar al segundo y el que precedíaal que le seguía, con el lenguaje de su acción (bi-lisân fi‘li-hi), pues nonecesitaban hablar para ello.

Esto fue así hasta que disminuyó el deseo (espiritual) y se entibióla búsqueda. La situación quedó entonces en preguntas y respuestas,libros y epístolas. Los significados eran familiares a sus autores y lospechos (sudûr)24 eran de amplia comprensión. Así hasta que el signifi-cado se perdió y sólo permaneció el nombre, la verdadera realidad

21. Sobre el sentido de la raíz j-t-r como “pensamiento”, cf. NWYIA, P. Exégèse coranique,op. cit p. 305.

22. Hay aquí un juego de palabras en árabe; términos que significan cosas distintaspertenecen a la misma raíz, lo que le servirá más adelante para establecer posiblesetimologías del término “sufí”. Las cuatro últimas palabras traducidas se leen en árabede la siguiente manera: safawiyya sufiyya nuriyya safiyya.

23. Se refiere a algunos de los Compañeros del Profeta en Medina que dormían en unbanco en la mezquita. Han pasado a simbolizar la pobreza y la piedad. También seservirá del término, suffa, para otra posible etimología de “sufí”. Cf. WATT, W. M. “Ahlal-suffa”, Encyclopaedia of Islam (EI). 2ª Edition, 12 vols. with indexes and etc., Leiden,J. Brill, 1960-2005; vol. I, p. 274.

24. Cf. sobre el significado de este término, NWYIA, P. Exégèse coranique, op. cit. pp.122, 128, 279, 296, 321, 322.

Page 21: SCINTILLA - FAE

LA MÍSTICA EN EL ISLAM...

21Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 13-30, jan./jun. 2009

(haqîqa) se ocultó y sólo quedó el contorno externo (rasm). Laadquisición efectiva (tahqîq)25 [de esta realidad] se convirtió entoncesen adorno y el simple asentimiento (tasdîq)26 [a ella] se hizo meroaderezo. La pretendía quien no la conocía y se adornaba con ella quienno la había descrito. La negaba con sus actos quien la afirmaba depalabra y la ocultaba con su sincera conducta quien la manifestaba ensus explicaciones. Se hacía entrar en ella lo que no le pertenecía y se leatribuía lo que no contenía. Su verdad (haqq) se convirtió en falsa(bâtil) y quien la conocía fue llamado ignorante. Quien la había ad-quirido se aislaba, teniéndola en mucho, y quien era capaz de describirlala guardaba en silencio celosamente. Los corazones se abstuvieron deella y las almas se apartaron de ella. El conocimiento y quien lo poseíadesaparecieron, al igual que la explicación (bayân) y su práctica; losignorantes se convirtieron en sabios y los sabios llegaron a ser seresdespreciables.

Esto [es lo que] me ha llevado a dar una descripción de ello en milibro, a caracterizar su27 método espiritual (tarîqa) y explicar su credo ysu conducta, tanto en lo referente a su doctrina sobre la Unicidad(tawhîd) y los Atributos de Dios, como en lo que concierne al resto delo que va unido a ello, lo cual ha sido objeto de sospecha entre quienesno conocen sus doctrinas ni han estado al servicio de sus maestros. Hedesvelado por medio del lenguaje del conocimiento (bi-l-lisân al-‘ilm)lo que se podía desvelar y he descrito con una exposición clara lo queconvenía describir, para que lo comprenda quien no comprende susalusiones y para que lo perciba quien no percibe sus expresiones. Serefutan las mentiras de quienes calumnian y las erróneas interpretacionesde los ignorantes. Nuestra exposición va destinada también a quien

25. Cf. NWYIA, P. Exégèse coranique, op. cit. pp. 61, 146, 151, 282, 323.

26. Id. ib., pp. 40, 116, 149, 151, 318, 322, 323.

27. El de ellos, es decir, de los sufíes.

Page 22: SCINTILLA - FAE

22

DR. RAFAEL RAMÓN GUERRERO

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 13-30, jan./jun. 2009

quiera seguir su método espiritual, a quien tenga necesidad de DiosAltísimo para alcanzar su realización espiritual. [Lo he escrito] despuésde haber examinado los libros de los versados en este asunto y de haberido tras los relatos de quienes lo han adquirido, y después de haberlosfrecuentado e interrogado.

He titulado este libro Conocimiento de la doctrina de los seguidores dela mística, para informar del objetivo que contiene. /3/ Imploro la ayudade Dios y a Él me confío. Ruego sobre su Profeta y solicito su intercesión.No hay fuerza ni poder sino en Dios Altísimo, el Magnífico.

Capítulo Primero – Por qué los sufíes se llaman “sufíes”

Algunos han dicho: “Los sufíes han sido llamados sufíes(sûfiyya)28 por la pureza (safâ’) de lo más íntimo de su ser y por lalimpieza de sus huellas (âtâr)”. Bishr al-Hârit29 ha dicho: “El sufí esaquel cuyo corazón es puro (safâ’) ante Dios”, Otro ha dicho: “Elsufí es aquel cuyo comportamiento (mu‘âmala)30 es puro ante Dios ycuyo carisma (karâma)31, que le viene de Dios, loado y exaltado sea,también es puro”.

Alguno ha dicho: “Son llamados sufíes porque ellos están en laprimera fila (al-saff al-awwal) ante Dios, loado y ensalzado sea, por laelevación de sus aspiraciones hacia Él, por ocupar sus corazones en Él y(awsâf) con las cualidades de la “gente del banco” (ahl al-suffa) que

28. Obsérvense las distintas etimologías que va ofreciendo, todas ellas pertenecientes ala misma raíz árabe del término sufí o a otras muy semejantes.

29. Sufí que vivió y murió hacia el año 841 en Bagdad. Cf. EI2, I, 1282-1284. P.Urizzi ofrece una breve semblanza de todos los nombres aquí citados; véase su edicióny traducción, pp. 297-327.

30. Cf. NWYIA, P. Exégèse coranique, op. cit. p. 244.

31. Id. ib. pp. 161, 179 y 272.

Page 23: SCINTILLA - FAE

LA MÍSTICA EN EL ISLAM...

23Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 13-30, jan./jun. 2009

vivían en la época del Enviado de Dios, a quien Dios bendiga y salve.Otro ha dicho: “Se llaman sufíes por su vestido de lana (sûf)32”.

En cuanto a quienes ponen en relación [este término] con “banco”y con “lana” no hacen más que expresar el aspecto externo (zâhir) desus estados espirituales (ahwâl)33. Es a saber, son gentes que han aban-donado el mundo terreno, han salido de sus moradas, se han alejadode sus amigos, han recorrido países, han pasado hambre en su vientre,han dejado desnudos sus cuerpos y sólo han tomado del mundo aquelloque les permitía cubrir sus vergüenzas y satisfacer su hambre.

Por haber abandonado sus moradas se les ha llamado “extranjeros”y por sus numerosos viajes se les ha denominado “peregrinos”. Porvagar por los desiertos y por refugiarse en las cavernas cuando teníannecesidad, algunos habitantes de la región34 los llaman “cavernícolas”(shikaftiyya), pues shikaft quiere decir en su lengua “gruta, cueva”. /4/Los sirios los llaman “hambrientos”, porque solamente toman lacantidad de comida necesaria para conservar sus fuerzas, tal como dijoel Profeta, Dios lo bendiga y lo salve: “A los hijos de Adán les sonsuficientes los alimentos aptos para conservar sus fuerzas”35. Sarî al-Saqatî36 los ha descrito diciendo: “Su comida es como la comida de losenfermos, su sueño es como el sueño de los que se ahogan y su hablares como el hablar de los dementes”.

Porque han renunciado a las propiedades se les ha llamado “po-bres”. A uno de ellos a quien se le preguntó qué era el sufí, respondió:

32. Es la etimología que se suele aceptar.

33. Cf. NWYIA, P. Exégèse coranique, op. cit. pp. 19, 20, 119, 152, 171, 172, 220, 223, etc.

34. Parece que se refiere a Iran, porque el término con el que los va a designar es untérmino persa. En el actual Iran hay una ciudad que se llama “Shikaft-i Sulayman”. Enlos alrededores de Gulgul, también en Iran, hay una gruta (shikaft) con relieves asirios.

35. Hadit referido por Ibn Hanbal: Al-musnad, Beirut, 1969, vol. IV, 132.

36. Figura prominente del círculo de sufíes de Bagdad, muerto hacia los años 867-871. fue amigo y compañero del antes citado Bish al-Hârit.

Page 24: SCINTILLA - FAE

24

DR. RAFAEL RAMÓN GUERRERO

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 13-30, jan./jun. 2009

“Aquel que no posee y no es poseído”; quería decir con ello aquel queno es esclavo de la codicia. Otro respondió: “Aquel que no posee naday si poseyera algo lo donaría”.

Por sus vestimentas y sus ropas se les ha llamado sufíes, porque novestían telas suaves y agradables al tacto para no deleitar al alma, sinoque tan sólo ponían para cubrir sus vergüenzas un hábito de vellón,toscas cerdas y áspera lana.

Todo esto era como los estados de los “hombres del banco” quevivían en la época del Enviado de Dios, que Él lo bendiga y lo salve.Ciertamente ellos eran extranjeros y pobres, emigrados que habíanabandonado sus moradas y sus bienes. Abû Hurayra y Fadâla ibn‘Ubayd37 los han descrito diciendo: “Han caído de hambre hasta elpunto de que los árabes los han tomado por locos”. Sus vestidos erande lana y, según algunos, transpiraban mucho, por lo que de ellosprovenía un olor como el de los carneros cuando llueve. Éste era [tanintenso] que ‘Uyayna ibn Hisn38 dijo al Profeta, Dios le bendiga y lesalve: “El olor de éstos me resulta molesto. ¿No te molesta a ti?”

La lana es la indumentaria de los profetas (anbiyâ’) y el vestido delos santos (awliyyâ’). Dijo Abû Mûsâ al-Ash‘arî39 refiriéndolo al Profe-ta, Dios lo bendiga y lo salve: “Por la roca de Rawhâ’40 han pasadosetenta profetas, descalzos y con manto de lana sobre ellos, que seencaminaban a la Casa Antigua (al-Bayt al-‘atîq)”41. Al-Hasan al-Basrî42

37. Compañeros del Profeta, considerados “gentes del banco”. Cf. EI2, I, 132-133.

38. Jefe de una tribu de los Gatafân. Se cuenta que se convirtió al Islam, pero luego sepuso al lado del enemigo instigándolo contra los musulmanes. Cf. WATT, W. M.Mahomet à Medina, París: Payot, 1977, pp. 113-118.39. Compañero del Profeta, jefe militar y gobernador de Basora. Cf. EI2, I, 716-717.40. Lugar en el que había un pozo de agua entre Medina y La Meca.41. El Templo de La Meca.42. Nacido en Medina en 642 y muerto en Basora en 728, predicaba la renuncia almundo. Ha sido considerado como uno de los fundadores de las cofradías musulmanas.Cf. EI2, III, 254-255.

Page 25: SCINTILLA - FAE

LA MÍSTICA EN EL ISLAM...

25Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 13-30, jan./jun. 2009

dijo: “Jesús, que la paz sea sobre él, vestía de pelo, comía de los árbolesy dormía allí donde anochecía”. Abû Mûsâ [al-Ash‘arî] también dijo:“El Profeta, que Dios lo bendiga y lo salve, vestía de lana, montaba alomos /5/ de asnos y aceptaba la invitación de los débiles”. Y al-Hasanal-Basrî también señaló: “He conocido a setenta [Compañeros de labatalla] de Badr, cuyas vestimentas eran de lana”.

Puesto que este grupo tiene las mismas cualidades que la “gentedel banco”, según lo que hemos mencionado, siendo su vestimenta ysu comportamiento como el de esta gente, se les llamó suffiyya ysûfiyya43. Respecto a su poner el nombre en relación con la parte mejor(safwa) y el primer rango (al-saff al-awal), se quiere expresar lo másíntimo de su ser y sus aspectos interiores. Es a saber: a quien abandonael mundo, renuncia a él y se aparta de él, Dios le purifica lo más ínti-mo e ilumina su corazón. Dijo el Profeta, que Dios lo bendiga y losalve: “Cuando la luz penetra en el corazón, se dilata y se expande”. Sele preguntó: ¿Cuál es el signo de eso, Enviado de Dios?”. Respondió:“Apartarse de la morada ilusoria, volverse hacia la morada eterna yprepararse para la muerte antes de que sobrevenga”. El Profeta, queDios lo bendiga y lo salve, ha dado a conocer que a quien se aparta delmundo Dios le ilumina su corazón. El Profeta, que Dios lo bendiga ylo salve, preguntó a Hârita44: ¿Cuál es la verdadera realidad (haqîqa) detu fe (îmân)?”. Respondió: “He desapegado mi alma de este mundo,estoy sediento durante el día y paso la noche en vela; es como si vieseaparecer el Trono de mi Señor y como si viese a los habitantes delParaíso visitarse mutuamente y a los habitantes del Infierno enemistarseentre sí”. Daba cuenta así de que cuando se desapegó de este mundoDios iluminó su corazón y lo que antes le estaba oculto ahora se le

43. Es decir, “los del banco” y “los de lana”.

44. Compañero y pariente lejano del Profeta, uno de los “del banco”.

Page 26: SCINTILLA - FAE

26

DR. RAFAEL RAMÓN GUERRERO

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 13-30, jan./jun. 2009

hacía manifiesto. Dijo el Profeta, que Dios lo bendiga y lo salve: “Quienquiera ver a un servidor cuyo corazón ha sido iluminado por Dios, quemire a Hârita”. Daba a conocer así que era un iluminado en su corazón.

Por estas cualidades este grupo45 es llamado “iluminados” (nûriyya).Ésta es también una de las cualidades de las “gentes del banco”. DiosAltísimo ha dicho: “Hay hombres que gustan de purificarse y Diosama a los que se purifican”46. Se trata de purificarse externamente delas impurezas e internamente de las ocurrencias e ideas que se agitan enla mente. Dios Altísimo ha dicho: “Hombres a quienes ni los negociosni el comercio les distraen del recuerdo de Dios”47.

Por la pureza de lo más íntimo de su ser, su intuición48 es verídica.Dijo Abû Umâma al-Bâhilî49, que Dios esté satisfecho de él, [que habíaoído] del Profeta, que Dios lo bendiga y lo salve, lo siguiente: “Temedla intuición del creyente, porque ve con la luz de Dios”. Abû Bakr alSiddîq50, que Dios esté satisfecho de él, ha dicho: “He recibido en micorazón que lo que está en el vientre de Bint Khâriya es mujer”. Y fuetal como había dicho. El Profeta, que Dios lo bendiga y lo salve, hadicho: “La verdad habla por boca de ‘Umar”. Uways al-Qaranî51 dijo aHarim ibn Hayyân, cuando éste lo saludó: “Y sobre ti sea la paz, Harimibn Hayyân”, siendo así que no lo había visto nunca; luego añadió:“Mi espíritu (rûh) ha reconocido a tu espíritu”. Abû ‘Abd Allâh al-

45. Los sufíes.

46. Corán, 9, 108.

47. Corán, 22, 37.

48. El término firâsa, que suele hacer referencia a la fisiognómica, designa para losmísticos la capacidad de leer el corazón. Cf. NWYIA, P. Exégèse coranique, op. cit. pp.296-297.

49. Joven Compañero del Profeta, muerto hacia el año 700, que transmitió numerosastradiciones (hadît) de Mahoma.

50. Íntimo consejero y compañero del profeta, murió en 634, y fue uno de los primerosen abrazar el Islam. Cf. EI2, I, 112-114.

51. Originario del Yemen, vivió en tiempos del Profeta.

Page 27: SCINTILLA - FAE

LA MÍSTICA EN EL ISLAM...

27Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 13-30, jan./jun. 2009

Antâkî52 ha dicho: “Cuando os sentáis con las gentes de la verdad (ahlal-sidq), os sentáis con la verdad, pues ellos son los espías de loscorazones; ellos penetran en lo más íntimo de vuestro ser y revelanvuestras intenciones”.

Además, quien esté en posesión de estas cualidades: limpidez en lomás íntimo de su ser, pureza en su corazón y luz en su alma, está en elprimer rango, porque estas cualidades son las propias de los preceden-tes (sâbiqûn). El Profeta, que Dios lo bendiga y lo salve, ha dicho:“Setenta mil miembros de mi Comunidad (ummatî) entrarán en elParaíso sin juicio”. Y lo ha descrito a continuación diciendo: “Aquellosque no han recurrido a encantamientos, para sí o para otros, ni hanrecurrido a cauterización, para sí o para otros, sino que han confiadoen su Señor”. Por la pureza de lo íntimo de su ser, por la apertura desus almas, por la iluminación de sus corazones, los conocimientos quetienen de Dios son correctos; no han remontado a las causas segundaspor su confianza en Dios, loado y ensalzado sea, se encomiendan a Ély están satisfechos con su Decreto (qadâ’).

Todos estos atributos y los significados de estos nombres están reuni-dos en los nombres y denominaciones de estas gentes (qawm). Estasexpresiones son correctas y accesibles. Aunque estos términos difieran apa-rentemente, sus significados son coincidentes, porque si el término se tomade safâ’ (pureza) o de safwa (la parte mejor), sería safawiyya. Si se pone enrelación con saff (fila) o con suffa (banco), entonces sería saffiyya o suffiyya;en el primer caso es posible que /7/ la letra wâw haya sido antepuesta al fâ’,[convirtiéndose] en la palabra sûfiyya (sufíes), mientras que en el segundocaso haber añadido [el wâw] a saffiyya o a suffiyya sería una alteración lin-güística. Si se ha tomado de sûf (lana), el término sería correcto y la expresiónsería adecuada lingüísticamente.

Todos estos significados tomados juntos [implican] la renuncia almundo, el desapego del alma respecto del mundo, el abandono de su

52. Personaje que vivió en el siglo IX.

Page 28: SCINTILLA - FAE

28

DR. RAFAEL RAMÓN GUERRERO

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 13-30, jan./jun. 2009

morada, el viaje continuo, el abstenerse las almas de sus placeres, lapureza de su comportamiento, la limpidez de lo más íntimo del ser, laapertura del corazón y el ponerse por delante. Bundâr ibn al-Husayn53

ha dicho: “El sufí es aquel a quien la Verdad ha elegido para sí mismoy ha tratado con afecto (sâfâ); lo ha liberado de su alma y le ha impe-dido esfuerzos y cargas por razones [personales]”. El término sûfî54

equivale morfológicamente a ‘ûfî, “ha sido protegido”55, es decir, queDios lo ha protegido y a kûfî56, “ha sido recompensado”, es decir, Dioslo ha recompensado, y a yûzî57, “ha sido remunerado”, es decir, Dios loha remunerado. La acción de Dios sobre él es manifiesta en el nombremismo [de sûfî]. Dios es el único que se ocupa de él.

Abû ‘Alî al-Rûdabârî58 fue interrogado sobre el término sûfî yrespondió: “Es quien ha revestido de lana (sûf) su pureza (safâ’), quienha alimentado sus deseos con el sabor de la repugnancia y quien hadejado atrás este mundo y quien ha seguido el camino del Elegido”.

Se preguntó a Sahl ibn ‘Abd Allâh al-Tustarî59: “¿quién es el sûfî?”Respondió: Quien está libre de lo turbio, quien está lleno demeditación, quien se dedica exclusivamente a Dios (alejándose) de loshombres y quien tiene por igual el oro y el barro”.

Se le preguntó a Abû l-Hasan al-Nûrî60 qué era el sufismo(tasawwuf). Respondió: “Abandonar todo placer del alma”.

53. Sufí de Shirâz, muerto en 964.

54. Del verbo safâ en sentido pasivo: “ha sido tratado con afecto”.

55. Del verbo ‘afâ.

56. Del verbo kafâ.

57. Del verbo yazâ.

58. Sufí originario de Bagdad y discípulo de Junayd y de Nûrî. Murió en Egipto en 934.

59. Importante místico muerto en el año 896. Fue el primer maestro de al-Hallâj, aquien siguió en su exilio. Cf. CLEMENTE, P. Garrido. “El Tratado de las letras (Risâlat al-hurûf ) de Sahl al-Tustarî”, Anuario de Estudios Filológicos, 29 (2006) 87-100.

60. Místico de la escuela de Bagdad, muerto en 907. Cf. Abû l-Hasan al-Nûrî: Mora-das de los corazones, ed. y trad. Luce López Baralt, Madrid, Ed. Trotta, 1999.

Page 29: SCINTILLA - FAE

LA MÍSTICA EN EL ISLAM...

29Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 13-30, jan./jun. 2009

Se le preguntó a Junayd61 acerca del sufismo (tasawwuf).Respondió: Es purificar el corazón del agrado de los hombres, alejarsede las costumbres naturales, extinguir los impulsos egoístas, cosecharlas solicitudes propias del alma, recoger las cualidades espirituales,consagrarse a los conocimientos verdaderos (al-‘ulûm al-haqîqiyya),servirse de lo que es más apropiado para la vida eterna, practicar elbuen consejo para toda la Comunidad (umma), ser fiel al compromisode Dios según la Verdadera realidad (haqîqa) y seguir al Enviado, Dioslo bendiga y lo salve, en (el cumplimiento de) la Ley (al-sharî‘a)”.

Dijo Yûsuf ibn al-Husayn62: “Cada Comunidad tiene una parte mejor(safwa). Ellos (hum) son el depósito que Dios ha ocultado a sus criaturas.Si hay algunos de ellos en esta Comunidad, esos son los sufíes”.

/8/ Alguien preguntó a Sahl Ibn ‘Abd Allâh al-Tustarî: “¿A quiéndebo frecuentar entre los grupos de los hombres?” Respondió: “A lossufíes, pues ellos no consideran excesivo nada ni rechazan nada. Todaacción es interpretable (ta’wîl) para ellos, pues ellos te darán excusassobre toda circunstancia”.

Yûsuf ibn al-Husayn ha dicho que planteó a Dû l-Nûn63 [la mismapregunta]: ¿A quién debo frecuentar? Le respondió: “A quien no poseanada ni te cuestione ninguna de tus circunstancias, ni cambie por tucambio, aunque éste sea grande, porque cuanto más cambies másnecesidad tendrás de él”.

Dû l-Nûn también ha dicho: “Vi a una mujer a orillas [del mar]en Siria y le pregunté: ‘¿De dónde vienes, que Dios tenga misericordia

61. Uno de los más grandes místicos, maestro de al-Hallâj. Murió en 910. Cf. EI2, II,pp. 614-615.

62. Discípulo de Dû l-Nûn al-Misrî. Murió el año 917.

63. Uno de los más notables sufíes del siglo IX. Nació hacia el año 774 y murió en 860.Cf. EI2, II, 249. Cf. Ibn Arabi: La maravillosa vida de Dhû l-Nûn el Egipcio, Murcia,Editora Regional, 1991.

Page 30: SCINTILLA - FAE

30

DR. RAFAEL RAMÓN GUERRERO

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 13-30, jan./jun. 2009

de ti?’ Me respondió: ‘Vengo de gentes a las que repugna [hacer des-cansar] su cuerpo64 en lechos y que invocan a su Señor con temor ydeseo’. Le pregunté: ‘¿A dónde te diriges?’. ‘Hacia hombres a los que elnegocio y la compraventa no distrae de la mención (dikr)65 de Dios’.Le dije: ‘Descríbemelos’. Ella empezó a recitar:

Gentes cuyas ocupaciones están subordinadas a Dios y cuyasintenciones son elevarse al Único.Gentes que sólo buscan a su Dueño y a su Señor. ¡Oh! ¡Quéhermosa búsqueda la del Único, el Eterno!No disputan nada de este mundo, ni honores, ni alimentos, niplaceres, ni hijos.Ni vestidos, ni ropas excelentes y elegantes, ni la alegría y elgoce de permanecer en el país.Sólo se apresuran para alcanzar una morada eterna a la queacercan sus pasos.Corren por arroyos y ríos y en las alturas en gran número se lesencuentra”66.

64. Literalmente: “sus costados”.

65. Como se ha dicho anteriormente, es la constante repetición del nombre de Dios yde otras jaculatorias.

66. Aquí acaba el capítulo primero. Los tres siguientes están consagrados a una meraenumeración de sufíes.

Page 31: SCINTILLA - FAE

31Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 31-66, jan./jun. 2009

AVERRÓIS (IBN RUŠD) E A POLÍTICA

AVERRÓIS (IBN RUŠD) E A POLÍTICA: O COMENTÁRIO SOBRE “REPÚBLICA”

Rosalie Helena de Souza Pereira*

Imortalizado na história da fi losofi a com a alcunha de “O Co-mentador”, diga-se, de Aristóteles, Averróis – nome latinizado de Ibn Rušd (1126-1198) – surpreende os estudiosos com o Comentário sobre “República”, seu único trabalho dedicado a comentar uma obra platônica. Dado o título que a tradição fi losófi ca latina atribuiu a essa obra, Paráfrase de “República”, o estudioso espera encontrar nela as teses desenvolvidas por Platão em sua monumental obra. Não é isso, porém, que aí encontramos.

A primeira pergunta que se faz, portanto, é sobre a razão que levou Averróis a compor um tratado que tem como fi o condutor a República. A resposta nos é dada pelo próprio autor ao afi rmar que, como não teve acesso à Política de Aristóteles, serviu-se dessa obra platônica com o intuito de completar a primeira parte da fi losofi a política, isto é, a ética.

Ainda assim, a leitura do Comentário sobre “República” instiga outras questões. A primeira e mais geral, mas não menos importante, é por que Averróis escreve um tratado político. Seria para criticar a

* Mestre em fi losofi a pela FFLCH-USP e doutora em fi losofi a pelo IFCH-UNI-CAMP. Atualmente faz estágio de pós-doutorado na PUC-SP. Publicou Avicena: A viagem da alma (Perspectiva, 2002) e a tradução feita em parceria com a Profa. Anna Lia A. de Almeida Prado do tratado de Averróis, Exposição sobre a substância do orbe (EDIPUCRS, 2006); organizou dois livros com artigos de diversos especialistas, brasileiros e estrangeiros, sobre a fi losofi a medieval árabe-islâmica: O Islã clássico. Itinerários de uma cultura (Perspectiva, 2007) e Busca do conhecimento. Ensaios de fi losofi a medieval no Islã (Paulus, 2007).

Page 32: SCINTILLA - FAE

32 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 31-66, jan./jun. 2009

ROSALIE HELENA DE SOUZA PEREIRA

sociedade e o regime político de sua época? Seria para completar o programa aristotélico de estudos, já que comentara a quase totalidade das obras de Aristóteles, exceção feita à Política “que não lhe chegara às mãos”? Seria para seguir seu predecessor, Al-Fārābī, que escreveu um tratado sobre a cidade virtuosa, e desse modo redigir também a sua Madīnat al-fādila? Seria para seguir a tradição da falsafa e harmonizar Platão com Aristóteles?

Averróis faz de República uma leitura peculiar, usando apenas as passagens que lhe interessam. Além disso, faz amplo uso de seu co-nhecimento de algumas obras de Aristóteles e de certas concepções políticas de Al-Fārābī. No desdobramento do comentário, entretanto, constata-se que há uma crítica subjacente aos enunciados de Al-Fārābī

que serviram de ponto de partida para a elaboração de suas teses. Por exemplo, Averróis inicia a sua argumentação com uma tese retirada ipsis litteris da obra de Al-Fārābī, Obtenção da felicidade (Tahsīl al-Sacāda):

Digo, pois, que já está esclarecido na primeira parte desta ciência que, em geral, as perfeições humanas universais são de quatro espécies, a saber, perfeições especulativas e perfeições cogitativas, perfeições morais e perfeições operativas (...)1.

Nessa questão, porém, Averróis não segue fi elmente o pensamento de Al-Fārābī, já que desenvolve, no livro II de seu tratado, suas próprias concepções acerca da educação do governante, que têm como base a doutrina de Aristóteles. O núcleo de seu pensamento ético-político

1. ELIA DEL MEDIGO I <I, 10>; trad. Rosenthal I.i.10; trad. Lerner 22:9-12; trad. Cruz Hernández, p. 5. Ao longo de nosso texto, as citações do Comentário sobre “República” de Averróis, na tradução latina de Elia del Medigo, serão feitas como está indicado nesta nota e seguem a edição de Coviello e Fornaciari de Para-frasi della “Repubblica” nella traduzione latina di Elia del Medigo. Essa edição seguiu o critério da divisão do comentário adotada por E. I. J. Rosenthal em sua edição crítica do texto hebraico. As referências latinas serão sempre seguidas das referências às traduções inglesas de E. I. J. Rosenthal e de Ralph Lerner e à tradução espanhola de Miguel Cruz Hernández (ver Referências).

.

. .

Page 33: SCINTILLA - FAE

33Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 31-66, jan./jun. 2009

AVERRÓIS (IBN RUŠD) E A POLÍTICA

com relação ao soberano está condensado na tese apresentada logo no início desse mesmo livro:

É evidente que isso ele (i. é., o soberano) não consegue, a não ser quando for sábio segundo a ciência prática e com isso tiver o mérito da virtude cogitativa, pela qual é descoberto o que está demonstrado na ciência moral (...)2.

Com essa tese, Averróis defende a idéia do soberano phrónimos, de acordo com a Ética nicomaquéia. Al-Fārābī permanecera num ter-reno de cunho platônico ao defender a idéia do fi lósofo-rei, ou seja, a noção de que o soberano deve ser versado sobretudo nas ciências especulativas. Averróis, o Comentador, no entanto, defende a noção do phrónimos aristotélico permanecendo, portanto, no interior da fi losofi a peripatética ainda que se tenha debruçado sobre um texto platônico (ou de origem platônica, como será oportunamente explicitado).

A leitura do Comentário sobre “República” defronta-se com pro-blemas de tradução que podem levantar objeções. Como exemplo, temos, já na primeira passagem supracitada, o termo perfectiones que pode suscitar dúvidas conceituais. Já que não temos notícia do original árabe desse comentário de Averróis, recorremos ao original árabe do opúsculo de Al-Fārābī, Obtenção da felicidade, em que surge, na frase correspondente, o termo fadā’il, que signifi ca “virtudes”, ao invés do árabe al-kamālāt, que melhor se aproxima do grego teleiótes, “perfeição” no sentido de “completude”. Em diversas outras passagens, encontram-se os mesmos problemas que é necessário solucionar na medida do possível e de modo mais satisfatório.

Outro problema com o qual se depara o estudioso desse tratado é sua classifi cação em “comentário médio” ou “menor”. Conhecidas na escolástica latina por “comentários” ao corpus aristotelicum, as

2. ELIA DEL MEDIGO II <I, 3>; trad. Rosenthal II.i.3; trad. Lerner 61:1-4; trad. Cruz Hernández, p. 71-72.

.

Page 34: SCINTILLA - FAE

34 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 31-66, jan./jun. 2009

ROSALIE HELENA DE SOUZA PEREIRA

exposições de Averróis costumam ser divididas em grande, médio e pequeno comentário, o que não signifi ca que sejam comentários de maior ou menor extensão3. Na tradição fi losófi ca árabe são usados os termos šarh ou tafsīr para o “grande” comentário, talhīs para o “médio” ou paráfrase, e jawāmic (sing. jāmic) para os “pequenos”, que, porém, estão mais próximos de sumas, epítomes ou compêndios, pois sua fi nalidade é ater-se às partes consideradas mais importantes. Todavia, é difícil estabelecer se a exposição sobre República seja um talhīs, paráfrase ou “comentário médio”, ou um jāmic, epítome ou suma4. No título da versão hebraica e no fi nal do Livro I, o termo usado é be’ur, equivalente ao árabe talhīs para paráfrase ou “comen-tário médio”. Mas, segundo Cruz Hernández, na conclusão do Livro III, surge o termo hebraico qissūr, equivalente do árabe jāmic (CRUZ HERNÁNDEZ in AVERRÓIS, 1990, p. XII). Não é essa, contudo, a posição de J.-L. Teicher, que afi rma que na conclusão desse livro surge o termo hebraico be’ur (=talhīs), mas que se trata do explicit do escriba, não podendo, portanto, ser atribuído a Averróis (TEICHER, 1960, p. 177). Teicher reitera que isso não signifi ca que o tratado seja considerado um “comentário”, como defendeu E. I. J. Rosenthal (ROSENTHAL in AVERRÓIS, 1966, p. 8-9). Cruz Hernández tende a considerá-lo uma obra “original”, diversa de seus comentá-rios grandes, médios e pequenos, em razão das posições políticas aí assumidas por Averróis.

Por conveniência prática, aqui nos referimos à obra estudada como Comentário sobre “República”.

Face à complexidade do texto de Averróis, esperamos que essas primeiras tentativas estimulem estudos mais aprofundados em nosso

3. Sobre a classifi cação dos comentários de Averróis na pesquisa contemporânea, ver PUIG in AVERRÓIS, 1987, p. 14 et seq.

4. J.-L. Teicher afi rma tratar-se de um “compêndio” [jawāmic (sic)], embora o título em hebraico Be’ur Ibn Roshd corresponda ao árabe talhīs mas que “evidentemente não é o original” (TEICHER, 1960, p. 177).

. .

.

.

. .

.

.

Page 35: SCINTILLA - FAE

35Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 31-66, jan./jun. 2009

AVERRÓIS (IBN RUŠD) E A POLÍTICA

meio, dada a importância de sua fi losofi a e da tradução de suas obras para o hebraico e o latim, que tanto contribuíram para a formação do pensamento fi losófi co ocidental. Sem dúvida, as traduções dos comentários remetem ao contexto da translatio studiorum medieval, em que, como afi rma Alain de Libera, a fi losofi a de Averróis desem-penhou um papel importantíssimo:

Por intermédio de Averróis, realizou-se todo o movimento da “transferência dos estudos” (translatio studiorum), da longa e lenta apropriação pela Europa da fi losofi a greco-árabe e de sua acu-mulação fi losófi ca e científi ca – uma história multissecular, a da transmissão e renovação da antiga fi losofi a e ciência, iniciadas no século IX na Bagdá dos califas abássidas, prosseguidas no século XII na Córdoba dos almôadas e continuadas nos países da cristandade, dentro e fora das universidades dos séculos XIII-XV. Ibn Rušd é a peça central do dispositivo intelectual que permitiu ao pensamento europeu construir a sua identidade fi losófi ca (LIBERA, 2002, p. 11-12 [grifo do autor]).

Status quaestionis do Comentário sobre “República”

Embora haja exaustivos estudos sobre a obra de Averróis, poucos são os autores que se devotaram a uma investigação mais ampla do pen-samento político do Comentador. A bibliografi a disponível mostra que eles, em sua maioria, escreveram apenas artigos ou capítulos de livros.

Miguel Cruz Hernández, eminente arabista espanhol, consagrou a Averróis uma monumental obra biobibliográfi ca (CRUZ HER-NÁNDEZ, 1986; 1997), de que, porém, não consta uma análise do Comentário sobre “República”, embora a tivesse privilegiado com uma tradução à parte5.

5. Como ele próprio afi rma, Cruz Hernández seguiu a edição hebraica de 1969 de E. I. J. Rosenthal, embora tenha tirado proveito da tradução latina de Jacob Mantino, quando esta “completava o texto hebraico”, e também da “documentada tradução inglesa” de Ralph Lerner para completar as referências de Averróis às obras de Platão, de Aristóteles e de Al-Fārābī. Cruz Hernández, de certa forma, inova em sua tradu-

Page 36: SCINTILLA - FAE

36 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 31-66, jan./jun. 2009

ROSALIE HELENA DE SOUZA PEREIRA

Charles E. Butterworth, especialista que mais se devotou ao pensamento político de Averróis, é autor de um curto estudo mono-gráfi co acerca do Comentário sobre “República”, publicado no Cairo em 1986 (BUTTERWORTH, 1986), sendo este o único trabalho exclusivamente dedicado à uma análise dessa obra de Averróis.

Ainda que existam duas traduções inglesas da versão hebraica desse comentário, não há nenhuma tradução das versões latinas, que todavia procedem do texto hebraico, já que o original árabe está perdido6.

Por que comentar República?

Além de ser parte integrante de seus trabalhos fi losófi cos, o co-mentário de Averróis sobre República é uma refl exão importante na fi losofi a política elaborada em ambiente islâmico. Todavia, um duplo problema se apresenta e requer algumas considerações.

Em primeiro lugar, como bem notou Ralph Lerner (LERNER in AVERRÓIS, 1974, p. xiii), não é evidente por si por que um mu-çulmano como Averróis teria decidido escrever um tratado político baseado em República. Afi nal, que utilidade teria um tratado fi losófi co originário de um ambiente pagão para um povo cujas crenças e práticas são fundamentalmente moldadas pela lei revelada, a Šarīca7, e pela

ção. Traduz, por exemplo, o termo (hebraico? latino?) equivalente ao árabe madina (cidade) por “sociedade” ou por “comunidade”, em razão do “sentido subjacente ao termo grego pólis”, e, em vez de traduzir o termo correspondente por “democracia”, a palavra é traduzida por “demagogia”, “levando em conta o modo como [Averróis] descreve essa forma social” (CRUZ HERNÁNDEZ in AVERROES, 1990, p. LXXI). Essa tradução de Cruz Hernández merece ser vista com certa reserva, já que seu autor, muitas vezes, deixa-se levar pelo sentido que ele atribui ao texto.

6. Nossa tradução para o português da versão latina de Elia del Medigo está sendo preparada.

7. Literalmente signifi ca “caminho”. É o nome dado à lei revelada islâmica, ao conjunto de prescrições e regras reveladas no Corão e às quais o muçulmano deve se submeter.

Page 37: SCINTILLA - FAE

37Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 31-66, jan./jun. 2009

AVERRÓIS (IBN RUŠD) E A POLÍTICA

sunna8, o paradigma da vida do Profeta MuÊamma¼ Que interesse um “jurista, imã, juiz e letrado ímpar”9 poderia ter nos assuntos tratados por Platão em República, que dizem respeito à organização da socie-dade grega? A Šarīca é uma lei completa e sufi ciente que se dirige “ao vermelho e ao negro”10. Haveria, então, necessidade de completá-la ou de esclarecê-la por meio de diretrizes platônicas?

Essa questão não diz respeito apenas à obra de Averróis, mas insere-se em um quadro mais amplo, ou seja, o de toda a tradição fi losófi ca em terras do Islã, cujo início se deu no Oriente com Al-Kindī (m. ca. 873), conhecido pela alcunha “Filósofo dos árabes” por ter assenta-do as bases para o desenvolvimento da fi losofi a helenizante entre os muçulmanos e ter contribuído substancialmente para a transmissão do pensamento grego aos árabes por meio das traduções de obras gregas. O ápice da falsafa ocorreu com a obra de Ibn Sīnā (Avicena, 980-1037), mas destacam-se também Al-Fārābī (ca. 873-ca. 950), Al-Rāzī (865-925) e, de certa maneira, Miskawayh (ca. 932-1030). No Ocidente, a fi losofi a de Aristóteles foi introduzida por Ibn Bājjah (Avempace, ca. 1085/1090-1139). Em Al-Andalus, distingue-se tam-bém Ibn £ufayl (Abubacer, ca. 1100-1185), fi lósofo que despertou em Averróis o interesse em comentar a obra de Aristóteles. Averróis,

8. Sunna signifi ca “costume, norma de conduta” e refere-se ao conjunto dos exemplos normativos que têm na vida do Profeta MuÊammad o seu paradigma.

9. Lêem-se esses qualifi cativos no cabeçalho de sua obra Faîl al-Maqal: “al-faqih, al-imam, al-qadi al-halamat al-mujid” (AVERRÓIS, 2001, p. 1).

10. Referência ao hadit: “bucittu ilà kulli al-aÊmara wa-al-aswad” (“Fui enviado a todos, ao vermelho e ao negro”), tradição tornada proverbial e citada para testemu-nhar a universalidade da missão de MuÊammad (Cf. GEOFFROY in: AVERRÓIS, 1996, p. 189, nota 47). Averróis cita este hadit no Livro I de seu Comentário sobre “República”, cf. ELIA DEL MEDIGO I <XXII, 3>: “Et hoc tactum fuit in lege missa ad Rubeos et ad Nigros.” (Na versão latina de Elia del Medigo, a expressão é pluralizada: “vermelhos e negros”). Trad. Rosenthal I.xxii.3; trad. Lerner 46:20; trad. Cruz Hernández, p. 46.

.

.

.

Page 38: SCINTILLA - FAE

38 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 31-66, jan./jun. 2009

ROSALIE HELENA DE SOUZA PEREIRA

o último expoente da fi losofi a árabe-islâmica de cunho helenizante e talvez o autor que mais tenha contribuído para o desenvolvimento da fi losofi a na cristandade, pertence, portanto, a uma tradição que durante quatro séculos se desenvolveu no mundo islâmico. Todos esses fi lósofos se viram diante do dilema de conciliar a fi losofi a grega com os ditames da lei revelada islâmica.

As tentativas de conciliar a fi losofi a política com a lei religiosa são particularmente espinhosas quando se permanece no terreno da fi losofi a de cunho helenizante, como a elaborada pelos falāsifa11. A lei religiosa islâmica tem estatuto civil, e a inteira comunidade islâmica (umma) deve ser por ela regida. Como afi rma H. A. R. Gibb, “é um dado característico da tendência prática da comunidade islâmica e de seu pensamento que sua primeira atividade e mais alta expressão desenvolvida se tenha dado antes na lei e não na teologia” (GIBB, 1954, p. 88).

De fato, desde os primórdios do Islã, os métodos e a formulação da lei islâmica combinaram preceitos positivos e discussões teológi-cas. Na perspectiva dos sábios muçulmanos, porém, a lei nunca foi independente do aspecto prático da doutrina religiosa e social pregada por MuÊammad. Para os primeiros muçulmanos não havia uma sepa-ração entre o que é “legal” e o que é “religioso”. Esses dois domínios estão entrelaçados nos textos que fundam o Islã, a saber, o Corão e a Tradição (�adīt12). Averróis descendia de uma importante família de juristas e ele próprio exercia a atividade de jurisconsulto e de juiz, o que dele exigia um amplo conhecimento do Direito islâmico (fi qh13), cujos caminhos eram diferentes dos traçados pela fi losofi a grega.

11. Faylasūf (sing.) e falāsifa (pl.) são os termos que indicam os fi lósofos de cunho helenizante no mundo árabe-islâmico.

12. Hadit é a coleção que reúne as tradições proféticas com base nos ditos, gestos, feitos e silêncios atribuídos a MuÊammad.

13. Impropriamente traduzido por “Direito”, fi qh é o conhecimento da Šarica. Aplicado aos domínios político, social e religioso, o fi qh rege a totalidade da orga-nização interna da comunidade dos muçulmanos. Por defi nição, a lei repousa sobre o Corão e sobre a sunna do Profeta MuÊammad, a norma de vida que deve servir de exemplo para os muçulmanos.

.

Page 39: SCINTILLA - FAE

39Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 31-66, jan./jun. 2009

AVERRÓIS (IBN RUŠD) E A POLÍTICA

Em segundo lugar, que interesse teria numa obra platônica o fi lósofo que foi reverenciado por Tomás de Aquino e por Dante Ali-ghieri com a alcunha de “O Comentador” em razão de seus extensos comentários à obra de Aristóteles?

O historiador Al-Marrākušī narra, em sua História do Maghrib, o que o próprio Averróis teria relatado a um de seus discípulos, quando, no fi nal de 1168 ou princípio de 1169, fora introduzido por Ibn £ufayl à corte do sultão Abū Yacqūb Yūsuf b. cAbd al-Mu’mīn, homem culto que se cercou de pensadores e letrados. Averróis narra a conversação que os três tiveram sobre o que haviam afi rmado Aristóteles, Platão e outros fi lósofos acerca da questão da eternidade ou da geração do céu e sobre a oposição que os muçulmanos faziam a seus argumentos. Passados alguns dias, Ibn £ufayl chamou Averróis e disse:

(...) Ouvi, hoje, o Príncipe dos crentes queixar-se da obscuridade do estilo de Aristóteles ou das traduções [de suas obras] e da difi -culdade para compreender suas doutrinas. Se esses livros – disse o sultão – encontrassem alguém que os comentasse e expusesse seu sentido depois de tê-los compreendido perfeitamente, poderíamos consagrar-nos a seu estudo. Se tens a força para empreender um trabalho desse porte [disse-me Ibn ðufayl], deves empreendê-lo. (...) Vês, pois, acrescentou Ibn Rušd, o que me levou a escrever meus comentários sobre diversos livros do fi lósofo Aristóteles14.

O projeto fi losófi co15 a que Averróis se dedicou foi, portanto, comentar a totalidade das obras de Aristóteles. O Comentário sobre “República” deve, então, ser visto como parte integrante desse amplo projeto, pois o próprio Averróis, nas primeiras páginas dessa obra, justifi ca o uso de República, já que “não chegara a suas mãos a Política, de Aristóteles”16.

14. AL-MARRĀKUŠĪ, cAbd al-WāÊid. Al-mucjib fī talhīs ahbār al-Maghrab (escrito em 1224). Ed. M. Z. M. cAzab, Cairo, 1994; ed. R. Dozy. Leiden, 1881, reimpressão 1968, p. 174-175 (apud CRUZ HERNÁNDEZ, 1997, p. 27).15. Ver a respeito ENDRESS, 1999, p. 3-31.16. ELIA DEL MEDIGO I <I, 8>; trad. Rosenthal I.i.8; trad. Lerner 22:5; trad. Cruz Hernández, p. 5.

.

Page 40: SCINTILLA - FAE

40 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 31-66, jan./jun. 2009

ROSALIE HELENA DE SOUZA PEREIRA

O paradigma da sociedade ideal

Embora Averróis não tenha tido a oportunidade de examinar a Política, a República está longe de representar um mero substituto da obra aristotélica para que redigisse tão-somente um comentário. Se-gundo Erwin I. J. Rosenthal, editor e tradutor da versão hebraica do tratado, Averróis condescendeu com a República “como que um guia para compreender o Estado enquanto tal e, em particular, os Estados islâmicos seus contemporâneos” (ROSENTHAL, 1971, p. 80). Ao empreender a tarefa de tomar o texto platônico como fi o condutor de seu escrito, Averróis viu-se no papel do fi lósofo que, embora não pudesse vivenciar a existência da cidade virtuosa, poderia no míni-mo apresentar alguns julgamentos sobre o seu próprio Estado com a esperança de exercer alguma infl uência na condução dos assuntos governamentais que ele considerava imperfeitos.

Ainda que no Comentário sobre “República” Averróis se tenha inclinado a assumir o papel de crítico de sua sociedade, houve uma razão mais profunda, segundo Rosenthal, para que Averróis comen-tasse o texto platônico de uma maneira que difere muito da que usou em seus outros comentários, mas que se assemelha à de seus tratados polêmicos redigidos na época entre 1179-1182. Rosenthal acredita que esta razão deva ser buscada, de um lado, nos “fundamentos comuns” a Platão e Aristóteles e, de outro, nos fi lósofos da falsafa, em particular Al-Fārābī, Avicena e Averróis (ROSENTHAL, 1971, p. 81). Trata-se do duplo aspecto do problema central na fi losofi a islâmica, ou seja, o caráter político da profecia e a afi nidade entre a Šarīca e o nómos que se manifesta no conceito do legislador profético (ROSENTHAL, 1971, p. 81)17.

17. Sobre a relação entre a lei revelada e as leis particulares no pensamento de Aver-róis, ver nossa comunicação nas Atas do XII Congresso Internacional de Filosofi a Medieval (SIEPM), Palermo, 2007: PEREIRA, Rosalie H. de S. L’universalità della Šarica e le leggi particolari (nómoi) nel pensiero politico di Averroè.

Page 41: SCINTILLA - FAE

41Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 31-66, jan./jun. 2009

AVERRÓIS (IBN RUŠD) E A POLÍTICA

Crítica à sociedade de seu tempo

A celebridade de Averróis se deve à sua atividade de fi lósofo, comentador de Aristóteles. No entanto, em vida, sua fama era de-vida à sua função de cádi e de jurisconsulto. De fato, sua atividade de juiz lhe concedeu um posto de prestígio na sociedade andaluz de seu tempo. Uma de suas obras mais importantes é o Faîl al-Maqāl (Tratado Decisivo) em que Averróis emite uma fatwà, uma opinião jurídica, sobre o estatuto legal da fi losofi a. As fátuas eram e são ainda hoje emitidas pelos muftis, os jurisconsultos responsáveis por pareceres legais. O avô de Averróis, Abū al-Walīd MuÊammad b. AÊmad b. Rušd (m. 1126), também cádi e jurisconsulto, deixou à posteridade muitas fátuas, o que faz ver a importante função jurídica que desempenhou em seu tempo, ainda sob a dinastia dos almorávidas18. Diante da evidência da função jurídica de Averróis, levanta-se a questão de se o Comentário sobre “República” poderia ser lido, ou pensado, mais como um texto jurídico-político que fi losófi co. Na comunidade acadêmica é lido como texto fi losófi co, como o próprio título sugere. Mas, como afi rma Miguel Cruz Hernández, em nenhuma outra obra Averróis expõe suas idéias políticas com uma tomada de posição tão clara contra a sociedade de seu tempo (CRUZ HERNÁNDEZ, 1993, p. 105-118). Desse modo, é preciso que levemos também em conta os tratados considerados polêmicos, em particular o Tratado Decisivo, pois há nele argumentos que Averróis ou retoma no Comentário sobre “República” ou dele toma emprestados, dependendo de quando se considera a data da elaboração desse comentário.

O leitmotiv de seus trabalhos considerados polêmicos é sobretudo a crítica às concepções dos teólogos racionalistas (mutakallimūn), a quem Averróis acusa de promover a discórdia na comunidade islâmica

18. Sobre as atividades do avô de Averróis, ver URVOY, 1998, p. 20-29.

Page 42: SCINTILLA - FAE

42 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 31-66, jan./jun. 2009

ROSALIE HELENA DE SOUZA PEREIRA

em razão do modo como interpretam e divulgam os ensinamentos da lei revelada. O período que vai de 1175 a 1180-82 é a época em que Averróis redige o Comentário sobre Retórica (1175), o Comentário sobre Ética nicomaquéia (1177), o Tratado Decisivo (Faîl al-Maqāl) e Damīma (Apêndice) (1179), Kašf can manāhij al-adilla (Desve-lamento dos métodos de demonstração dos dogmas) (1179-1180) e Tahāfut al-Tahāfut (Demolição da demolição19) (1180-82). São essas as obras em que podemos discernir o pensamento político de Averróis, redigidas numa época que coincide com a consolidação do ideário dos almôadas.

Depois de uma segunda temporada em Marrakesh, sede do poder almôada, Averróis é nomeado, em 1179, cádi-mór de Sevilha e, em 1180, cádi-mór de Córdoba. Em 1182, Averróis ocupa a posição de médico do sultão almôada Abū Yacqūb Yūsuf. Esses são anos em que Averróis tem contato direto com o poder e escreve seus trabalhos considerados polêmicos. Alguns estudiosos, como Erwin I. J. Rosen-thal e Dominique Urvoy, defendem a tese de que o Comentário sobre

19. O termo tahāfut tem sido traduzido por “destruição” ou “incoerência”. Trans-crevemos aqui uma observação interessante, retirada por Asín Palacios do dicionário Tāj al-Arū (Ed. Boulac, 1898, I, P. 596), em que o comentário de Sayyd MurtaÅà al-Qāmūs afi rma o seguinte: “Antes de mais nada, o nome hafata denota aquele que fala muito, sem refl etir sobre o que diz. O discurso hafata é o que é prolixo e irrefl etido [...] Al-haft é também a chuva torrencial que cai precipitadamente. Também se diz da neve [...] Al-haft [signifi ca ainda] a estupidez assombrosa e com-pleta, e al-mahfūt é aquele que está estupefato [sem saber o que fazer, como aquele que perdeu o rumo], como o que é violentamente turbado. Al-haft é também a queda de uma coisa, fragmento por fragmento, pedaço por pedaço, como a caída da neve [...] No Hadīt (corpus de ditos e feitos do Profeta MuÊammad), está dito: precipitam-se no inferno. A palavra al-tahāfut [signifi ca] a queda de algo, parte por parte, [derivação] de al-haft, que é a queda. Na maior parte das vezes emprega-se al-tahāfut no sentido pejorativo. A mariposa tahāfata no fogo [signifi ca]: precipita-se. [Diz-se das] pessoas tahāfata tahāfutan quando elas se lançam à morte e nela se precipitam.” Apud OZCOIDI, 2001, p. 51. Optamos por traduzir o título da obra de Averróis por “Demolição da demolição”, pois uma demolição é sempre realizada por partes; o sentido atribuído de tahāfut nas obras de Al-Ghazālī e de Averróis que trazem o termo no título é o de demolir os argumentos um a um.

.

Page 43: SCINTILLA - FAE

43Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 31-66, jan./jun. 2009

AVERRÓIS (IBN RUŠD) E A POLÍTICA

“República” foi escrito nessa época (ROSENTHAL in AVERRÓIS, 1966, p. 11; URVOY, 1998, p. 149). Como afi rma Rosenthal, “cer-tamente não é um acidente que todos os tratados polêmicos – seja os teológicos seja os teológico-fi losófi cos – escritos em defesa da falsafa sob a Šarīca pertencem ao período de nosso comentário” (ROSEN-THAL in AVERRÓIS, 1966, p. 11).

Partimos do pressuposto de que Averróis era um muçulmano perfeitamente integrado em sua cultura ao exercer a função de cádi da escola mālikita, função que lhe conferia ainda mais importância no interior de sua comunidade. O Tratado Decisivo, incontestavelmente de sua autoria, é uma argumentação jurídica para fazer com que a fi losofi a fosse aceita por seus conterrâneos, de acordo com o que está prescrito pela lei revelada. Averróis reivindica que a fi losofi a é a única disciplina legítima que conduz ao verdadeiro conhecimento dos sig-nifi cados não-aparentes da lei revelada e nega aos doutores teólogos e juristas (culamā’20 e fuqahā’21), que se limitam a usar argumentos dialéticos e retóricos, a habilidade de chegar às provas demonstrativas da Revelação. Se levarmos isto em conta, o Comentário sobre “Repú-blica” é uma obra cuja intenção é fi losófi ca.

Averróis, porém, não pretende contentar-se com a confecção de um tratado apenas fi losófi co em sentido estrito, pois propõe soluções para a sociedade almôada, dominada pela infl uência desses doutores teólogos e juristas. Se levarmos em conta sua argumentação crítica, podemos concluir que seu exílio tenha sido conseqüência dessa obra. Nesse caso, ela poderia ser datada em 1194, pouco antes do seu des-terro, em 1195.

20. Plural de cālim, aquele que possui cilm, isto é, o conhecimento religioso. Corresponde, no judaísmo, aos sábios da lei [hbr.: hahamīm; ár.: hakīm (sing.), hukamā (pl.)].

21. Plural de faqīh, jurista dotado de conhecimento da lei fundada na revelação (Šarica ou Šarc).

. . .

.

Page 44: SCINTILLA - FAE

44 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 31-66, jan./jun. 2009

ROSALIE HELENA DE SOUZA PEREIRA

Mas, ao mesmo tempo em que dirige críticas à sociedade de sua época, Averróis pretende instituir uma pedagogia dirigida, não tanto ao povo, mas ao conjunto da elite (URVOY, 1996, p. 13). De fato, como afi rma o arabista Dominique Urvoy, na confl uência das três correntes que, na época, dominam a fi losofi a em Al-Andalus, a saber, o misticismo sincretizante, o sincretismo da falsafa oriental (neopla-tonismo e aristotelismo) atacado pelo teólogo Al-Ghazālī e o projeto racionalista almôada22,

a atitude radical de Averróis de fazer regressar a fi losofi a a seu conteúdo exclusivamente aristotélico responde a uma necessidade fundamental: desenvolver todo o campo do saber de modo coerente combatendo adequadamente os vazios ou as insufi ciências da tra-dição andaluz para além dos erros e tentativas do breve período de formação intelectual que vai do século X ao princípio do século XII (URVOY, 1996, p. 37 [grifo do autor]).

Mas, ainda assim, pergunta-se por que um fi lósofo como Aver-róis, que se dedicou a comentar exclusivamente a obra de Aristóteles, apóia-se em República para tecer seus comentários políticos?

Averróis não foi o único dos falāsifa a reconhecer a importância da fi losofi a política grega para a sociedade islâmica. O primeiro a introduzi-la e adaptá-la para o Islã foi Al-Fārābī (m. 950), que muito se serviu de República e de leis, de Platão, e de Ética nicomaquéia, de Aristóteles, pois a Política do Estagirita parece não ter vindo à luz no mundo islâmico. Se essa obra aristotélica era conhecida ou não pelos muçulmanos é uma questão controversa. Do corpus aristotelicum, a Política, a Ética a Eudemo e a Grande Ética são os únicos textos que não

22. “A prática especulativa tardiamente implementada e tentada por um ‘sincretis-mo cultural’ é parcialmente disciplinada por Ibn Bajjah (Avempace) que fi xa uma problemática; a falsafa oriental foi elaborada de tal modo que Al-Ghazālī pôde fazer uma síntese antes de refutá-la em bloco, o que permite retomar a questão do ‘ponto zero’; Ibn Bājjah igualmente orientou a prática científi ca, acentuando uma tendência que já surgia, embora difusa. A confl uência com um quadro religioso racionalizante, como o almoadismo, seguiria, portanto, por si só” (URVOY, 1996, p. 33).

Page 45: SCINTILLA - FAE

45Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 31-66, jan./jun. 2009

AVERRÓIS (IBN RUŠD) E A POLÍTICA

foram traduzidos para o árabe (PÉREZ RUIZ, 1994, p. 27), embora sobre isso haja certa discordância entre os especialistas. Os fi lósofos árabes sabiam da existência da Política, porque tanto Al-Fārābī como Averróis comentaram a Ética nicomaquéia, em que Aristóteles faz, no fi nal (Et.Nic. X, 12, 1181b 10-20), menção à continuidade desse tratado com uma discussão sobre as questões políticas.

Logo nas primeiras páginas de seu tratado, o próprio Averróis justifi ca o uso de República pela impossibilidade do acesso à Política. Esse procedimento, contudo, estava de acordo com a tradição fi losófi ca islâmica de compreender as relações entre o pensamento de Platão e o de Aristóteles como sendo essencialmente concordantes. Procurava-se completar o que faltava de Aristóteles com o que havia à disposição das obras de Platão. Entretanto, as diferenças entre os dois fi lósofos gregos não passavam despercebidas aos falāsifa, que, então, faziam críticas a um e outro a partir de posições adotadas do respectivo opo-nente. Averróis seguirá esse procedimento em seu Comentário sobre “República”. De fato, a leitura que Averróis faz dessa obra platônica é, em grande parte, uma leitura com lentes aristotélicas, embora ele se sirva abundantemente de concepções de Al-Fārābī.

Permanece, todavia, a questão da utilidade de um texto pagão para a comunidade islâmica. No início e no fi nal do Comentário sobre “República”, Averróis aponta, do ponto de vista da ciência, a relevância de comentar um texto sobre a política23. Ao longo do tratado, em diversas passagens Averróis indica que a ciência prática deve ser con-siderada necessária para “essas cidades”, embora isso não signifi que que a Šarīca deva ser preterida. Averróis tece críticas à sociedade de sua época indicando o quanto é necessário considerar as lições que ele

23. ELIA DEL MEDIGO I <I, 1>; trad. Rosenthal I.i.1; trad. Lerner 21:7; trad. Cruz Hernández, p. 3. ELIA DEL MEDIGO III <XXI, 1>; trad. Rosenthal III.xxi.1; trad. Lerner 105:5-6; trad. Cruz Hernández, p. 148.

Page 46: SCINTILLA - FAE

46 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 31-66, jan./jun. 2009

ROSALIE HELENA DE SOUZA PEREIRA

apresenta em seu tratado. O desconhecimento da enfermidade que assola a sociedade sob o domínio dos almôadas24 é sinal de quanto realmente “enfermas” essas cidades estão.

É tema recorrente Averróis contrapor “essas cidades” a “essa cida-de”. Essa diferença em número indica a posição pessoal de Averróis – quando mencionada no plural, a expressão signifi ca as cidades de seu tempo, em oposição à cidade virtuosa concebida por Platão25 e “que descrevemos no [nosso] discurso”26. Em oposição a “essa cidade”, isto é, a virtuosa, que lhe serve de medida, Averróis aponta as “cida-des ignorantes” (al-madā’in al-jāhiliyya) ou “desviadas”27 e aproveita para julgar, reiteradas vezes, as práticas e normas baseadas na Šarīca, como é o caso da crítica que faz à exclusão das mulheres em relação a diversas atividades sociais. De fato, ele adverte que, “como as mu-lheres dessas cidades não são preparadas para [desenvolver] qualquer das virtudes humanas, elas freqüentemente se assemelham, nessas cidades, a plantas”28 e que, ao anularem as capacidades femininas, os homens contribuem para o empobrecimento dessas cidades29. “Essas

24. Em árabe, al-muwahhidūn, também mu’minidas, dinastia de origem berbere que estendeu seu império do Maghrib (corresponde aos territórios conquistados pelo Islã na África setentrional) a Al-Andalus difundindo o ideal religioso defi nido pelo fundador do movimento, Ibn Tūmart.

25. ELIA DEL MEDIGO II <XVII, 5; 6; 8>; I <XXI, 4>; I <XXIV, 11>; III <IX, 2>; III <XIII, 6>; trad. Rosenthal II.xvii.5; 6; 8; I.xxi.4; I.xxiv.11; III.ix.2; III.xiii.6; trad. Lerner 44:30-45:1; 52:21; 79:9-12; 79:19-20; 87:19-20; 93:31-32; trad. Cruz Hernández p. 100-101; 43-44; 56; 115; 127.

26. ELIA DEL MEDIGO II <IV, 7>; trad. Rosenthal II.iv.7; trad. Lerner 64:25; trad. Cruz Hernández, p. 78.

27. ELIA DEL MEDIGO I <XXI, 6>; I <XXIV, 9>; I <XXIV, 11>; II <XVII, 6>; II <XVII, 8>; trad. Rosenthal I.xxi.6; I.xxiv.9; I.xxiv.11; II.xvii.6; II.xvii.8; trad. Lerner 52:13-14; 52:22; 45:11; 79:11-18; trad. Cruz Hernández, p. 44; 56; 101.

28. ELIA DEL MEDIGO I <XXV, 9>; trad. Rosenthal I.xxv.9; trad. Lerner 54:5-10; trad. Cruz Hernández, p. 59.

29. ELIA DEL MEDIGO I <XXV, 4-9>; trad. Rosenthal I.xxv.4-9; trad. Lerner 53:14-54:10; trad. Cruz Hernández, p. 57-59.

. .

Page 47: SCINTILLA - FAE

47Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 31-66, jan./jun. 2009

AVERRÓIS (IBN RUŠD) E A POLÍTICA

cidades”, portanto, são as conhecidas de seu tempo, de seus leitores e de seu público-alvo; são as cidades que existem efetivamente, não apenas no discurso; são “as nossas cidades”30. A indicação sistemática desse par de expressões mostra como Averróis, com grande economia de linguagem, é capaz de ilustrar o seu propósito. Outro exemplo do uso do plural para criticar a sociedade sua contemporânea aparece quando Averróis afi rma que “essas cidades, que atualmente existem, não recebem qualquer vantagem dos fi lósofos e dos sábios”31. Um verdadeiro fi lósofo que cresce “nessas cidades” estaria numa situação semelhante à de um homem cercado por animais perigosos32.

A advertência que Averróis faz sobre o declínio do poder de um governo é ilustrada com menção ao motivo da queda dos almorávidas, cuja dinastia fora destronada pelos almôadas em 1146, porque seus governantes, que inicialmente eram regidos pela lei (Šarīca), tornaram-se timocratas com laivos oligárquicos para, enfi m, dedicarem-se ape-nas aos prazeres. A tomada do poder pelos almôadas só foi possível “porque o regime (dos almôadas) que a eles (os almorávidas) se opôs assemelhava-se ao regime baseado na lei”33. O declínio do cumpri-mento das leis e da moral fez com que, em apenas três gerações de soberanos, o governo dos almorávidas fundado na lei se transformasse em timocrata, depois em oligarca e, por fi m, em hedonista. Dirigindo-

30. ELIA DEL MEDIGO III <IV, 9>; trad. Rosenthal III.iv.9; trad. Lerner 84:20, p. 112; trad. Cruz Hernández, p. 110-111. Em nota de rodapé, Cruz Hernández adverte que, inicialmente, Averróis parece estar referindo-se aos Reinos de Taifas e às dinastias do Maghrib, deixando ambígua a referência ao governo almôada; mas, como depois insere a expressão “em nosso tempo e em nossas cidades”, Averróis estaria incluindo também o governo almôada, cf. trad. Cruz Hernández, p. 111, nota 11.

31. ELIA DEL MEDIGO II <III, 3>; trad. Rosenthal II.iii.3; trad. Lerner 63:6-8; trad. Cruz Hernández, p. 75.

32. ELIA DEL MEDIGO II <IV, 7>; trad. Rosenthal II.iv.7; trad. Lerner 64:25; trad. Cruz Hernández, p. 78.

33. ELIA DEL MEDIGO III <XI, 5>; trad. Rosenthal III.xi.5; trad. Lerner 92:4-8; trad. Cruz Hernández, p. 124. O primeiro governante dos almorávidas, Yusuf ibn Tašufi n, respeitou as leis estabelecidas; seu fi lho e seu neto distanciaram-se do modelo inicial.

Page 48: SCINTILLA - FAE

48 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 31-66, jan./jun. 2009

ROSALIE HELENA DE SOUZA PEREIRA

se a seu leitor, Averróis adverte que está claro “que, após quarenta anos, podes observar o que, entre nós, aconteceu quanto aos hábitos e aos estados [relativos à virtude] dos governantes e dignatários”34.

Platão entre os árabes

A referência mais antiga e confi ável sobre República em língua árabe está no célebre Catálogo (Al-Fihrist) do biobibliógrafo Ibn IsÊāq al-Nadīm (ca. 935-991) ao enumerar as obras de Platão (Afl ātūn). Ibn al-Nadīm abre a notícia sobre os diálogos de Platão mencionan-

do República, que “�unayn ibn IsÊāq explicou (fassara), e leis, que �unayn traduziu (naqala), assim como também o fi zera Yahyà ibn cAdī” (IBN AL-NADĪM, 1998, p. 592). Parece estranho aceitar que

o grande tradutor tenha apenas “comentado” República, sem antes ter-lhe dado a versão árabe. Contudo, a menção de Ibn al-Nadīm ao

referido texto confi rma que os falāsifa, já no século IX, conheciam

a existência desse diálogo, embora permaneça incerto se tiveram em

mãos o texto completo ou apenas um resumo.

Segundo Franz Rosenthal, é certo que os árabes não usaram os

originais de Platão, como tampouco usaram diretamente a maior

parte das obras de Aristóteles, mas se serviram de compêndios e ma-

nuais do período grego tardio (ROSENTHAL, F., 1990, p. II/392;

II/417). Parece razoável, portanto, supor que não se dedicaram ao

estudo direto das obras de Platão, mas aos ensinamentos platônicos

que eram tidos como exemplares. Franz Rosenthal afi rma que Al-

Fārābī, em seus escritos políticos, não teve em mãos a República e, talvez, nem sequer estivesse familiarizado com o seu conteúdo, caso

34. ELIA DEL MEDIGO III <XIX, 5>; trad. Rosenthal III.xix.5; trad. Lerner 103:5-10; trad. Cruz Hernández, p. 144.

.

Page 49: SCINTILLA - FAE

49Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 31-66, jan./jun. 2009

AVERRÓIS (IBN RUŠD) E A POLÍTICA

contrário “teria seguido mais de perto a sucessão de idéias dada por Platão” (ROSENTHAL, F., 1990, p. II/411). Sempre segundo Franz Rosenthal, “o que nessas obras de Al-Fārābī remete-se a Platão era lugar-comum na literatura antiga, jamais esquecido desde o tempo de Platão e de Aristóteles” (ROSENTHAL, F., 1990, p. II/416). Franz Rosenthal, portanto, é tentado a tomar como evidente que Al-Fārābī nunca tenha tido em mãos uma obra completa de Platão, em qualquer língua que fosse (ROSENTHAL, F., 1990, p. II/411).

Mais recentemente, Dimitri Gutas afi rmou que as obras de Aristó-teles e seus comentários foram, com certeza, traduzidos para o árabe, o que possivelmente não ocorreu com os comentários platônicos. A falta de interesse no material platônico, por parte dos autores de ex-pressão árabe, pode ser explicada pela importância que o aristotelismo passou a ter com Abū Bišr Mattà e seu discípulo Al-Fārābī (GUTAS, 1999, p. 186).

Quanto ao Comentário sobre “República”, os estudiosos discor-dam sobre a possibilidade de chegar-se a saber se Averróis conheceu o texto platônico traduzido para o árabe ou se utilizou o resumo (ou paráfrase35) que Galeno fez de República36 – traduzido para o árabe durante o califado dos abássidas, no século IX, por �unayn ibn IsÊāq. Em seu comentário, Averróis critica Galeno diversas vezes, recusa suas observações e o acusa de ter sido ingênuo, vaidoso, confuso e de desco-nhecer a lógica37. Diante disso, é razoável acreditar que Averróis tenha tido acesso direto ao texto platônico, confrontando-o com o resumo de Galeno. Ademais, há passagens que confi rmam que se aproveitou

35. Alguns estudiosos, como Richard Walzer, afi rmam que se trata de uma paráfrase de República, outros sustentam que se trata de um resumo ou sumário. Como esse texto está perdido, não é possível afi rmar se é paráfrase ou resumo.

36. Sobre a posição de que Averróis não usou o sumário de República feito por Galeno, ver VAN DEN BERGH, 1958, p. 409, apud BERMAN, 1971, p. 438.

37. Ver as referências na nota 39 infra.

Page 50: SCINTILLA - FAE

50 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 31-66, jan./jun. 2009

ROSALIE HELENA DE SOUZA PEREIRA

não apenas de República, mas ainda de leis, além dos resumos dessas duas obras de Platão feitos pelo médico grego.

O helenista e arabista Richard Walzer, todavia, afi rma que, embora tenham sido descobertos indícios das “paráfrases” perdidas de Galeno sobre República e sobre leis, o Comentário sobre “República” está

livre de aspectos neoplatônicos (...), remontaria a um original grego perdido que pode ter sido conhecido em tradução árabe por Al-Fārābī . Não há dúvida de que Al-Fārābī fez amplo uso desse material em Mabādi’ ārā’ ahl al-madīnat al-fādila (Princí-pios das opiniões dos habitantes da cidade virtuosa), em especial nos capítulos 15, 18 e 19. A análise desses capítulos indica que o desconhecido predecessor platonizante de Al-Fārābī (de quem ele muito aprendeu) deve ter vivido no tempo do Império Romano, presumivelmente em época tardia (WALZER, 1998, p. 426).

Assim, embora tanto Al-Fārābī como Averróis possam ter-se valido de uma antiga paráfrase de República em versão árabe, Walzer não acredita que usaram a de Galeno, principalmente Averróis “que critica algumas posições” do médico de Pérgamo38. Essa afi rmação de Walzer causa certa perplexidade, pois, se Averróis critica Galeno em seu Comentário sobre “República”, certamente conhecia as posições do médico em relação ao texto platônico. De fato, Averróis cita cinco (5) vezes Galeno ao longo do comentário39. É signifi cativo, contudo, que dessas cinco, o médico é citado quatro vezes no Livro I e uma no Livro III. O Livro II, que é o que mais permanece na esfera de uma

38. Segundo Richard Walzer, “Ibn Rušd usou uma antiga paráfrase de República que, possivelmente, Al-Fārābī também conhecia. Mas nem Al-Fārābī nem Ibn Rušd usaram a paráfrase de Galeno que existia em tradução árabe. Ibn Rušd rejeita certas posições de Galeno, ver IBN RUSHD, trad. Rosenthal i, 22 §2; 26 §8; iii, 20 §11 (...)” (WALZER, 1998, p. 444, nota 680).

39. Galeno é citado em ELIA DEL MEDIGO I <I, XVI, 1>; I <XXII, 2>; I <XXVI, 3>; I <XXVI, 8>; III <XX, 11>. Trad. Rosenthal I.xvi.1; I.xxii.2; I.xxvi.3; I.xxvi.8; III.xx.11; trad. Lerner 36:5-10; 46:5-10; 55:20-25; 56:20-25; 105:1; trad. Cruz Hernández, p. 29; 45; 62; 63; 147.

.

Page 51: SCINTILLA - FAE

51Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 31-66, jan./jun. 2009

AVERRÓIS (IBN RUŠD) E A POLÍTICA

discussão de conteúdo aristotélico, nada menciona sobre Galeno. Com este dado, pode-se supor que Averróis realmente tivesse tido em mãos uma paráfrase de República feita por Galeno que o tenha auxiliado sobretudo na composição do Livro I, que é o que mais se aproxima das concepções platônicas. O Livro III, que trata dos regimes políticos, embora de conteúdo platônico, aproxima-se mais das concepções de Al-Fārābī, que tratou desse tema em suas obras políticas, principal-mente no Livro das opiniões dos habitantes da cidade virtuosa (Kitāb

Ārā’ Ahl al-Madīnat al-Fādila)40.

Essa questão, entretanto, permanece em aberto até que venham à luz novas descobertas que possam elucidar quais foram as fontes que Averróis usou para tecer seu Comentário sobre “República”.

O Comentário sobre “República”

Enfi m, não se sabe ao certo se Averróis usou uma paráfrase ou resumo de República que Galeno compôs ou se usou trechos que en-controu na obra de Al-Fārābī, ou se realmente teve em mãos a versão árabe integral do diálogo de Platão para compôr sua obra sobre esse texto platônico. Esse escrito de Averróis, no entanto, é mais uma obra original e criativa em que ele comenta grande parte dos livros de República, utiliza muito Ética nicomaquéia e tece críticas à socie-dade de seu tempo e aos teólogos islâmicos. Não pode, portanto, ser considerado um “comentário” no mesmo sentido das exegeses que elaborou da quase totalidade das obras de Aristóteles. Permanece, no entanto, o fato de que o seu Comentário sobre “República” não consti-tui uma evidência de que tenha tido em mãos a tradução integral do

40. Al-Fārābī é citado duas vezes no Livro I: ELIA DEL MEDIGO I <VIII, 2>; I <X, 6>; trad. Rosenthal I.viii.2; I.x.6; trad. Lerner 26:25-30; 29:30; trad. Cruz Hernández, p. 13, 18.

.

Page 52: SCINTILLA - FAE

52 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 31-66, jan./jun. 2009

ROSALIE HELENA DE SOUZA PEREIRA

diálogo platônico. Averróis faz uma leitura aristotélica de República, não faz nenhuma referência à redação dessa obra em forma de diálogo e tampouco refere-se aos diferentes personagens que dele participam. Não leva em conta nem o tempo nem o lugar, nem as circunstâncias em que se desenvolve a discussão sobre a justiça na obra platônica.

O Comentário sobre “República” está dividido em três livros, cada um deles correspondendo a determinados livros de República. Embora a parte inicial do primeiro livro do comentário esteja inteiramente calcada em Ética nicomaquéia41, esse livro refere-se, grosso modo, aos livros II, III, IV e V de República. Averróis não se detém na defi nição da justiça, pois seu propósito principal é apresentar o paradigma da cidade virtuosa. A justifi cativa para ignorar certas partes do diálogo platônico é anunciada já na frase inicial: “a intenção deste tratado é a de expor as doutrinas científi cas atribuídas a Platão prescindindo da argumentação dialética”. O segundo livro corresponde aos Livros VI e VII de República, e o terceiro, aos Livros VIII e IX. Sobre o Livro X, Averróis afi rma, no fi nal de seu tratado, que não é necessário para a ciência política, pois, como já mencionara antes, os mitos não têm qualquer valor e deles não se extrai nada que seja imprescindível para que alguém se torne autenticamente virtuoso. E quanto à crítica de Platão aos poetas, tecida no Livro X de República, Averróis não vê necessidade de repetir o que já dissera sobre os poetas árabes no Livro I de seu comentário.

Essa obra, no entanto, é um exemplo da fi losofi a que se desenvol-veu em ambiente islâmico a partir da tentativa de conciliar as idéias de Platão com as de Aristóteles. Ao apresentar a sua concepção da cidade virtuosa, Averróis retoma o caminho já trilhado por Al-Fārābī, o da “harmonização” das idéias dos dois sábios gregos. Mas, embora

41. Especialmente Ética nicomaquéia I, 13; II, 1, passagens consagradas à defi nição da virtude.

Page 53: SCINTILLA - FAE

53Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 31-66, jan./jun. 2009

AVERRÓIS (IBN RUŠD) E A POLÍTICA

possa ter tido inicialmente essa intenção, ao comentar República ele privilegia a fi losofi a aristotélica.

Na leitura peculiar que Averróis faz de República, podemos dis-cernir quatro principais diretrizes: 1) a retirada do texto platônico dos argumentos “dialéticos” e para isto Averróis fundamenta seu tratado no núcleo dos Tópicos, cuja concepção do discurso é marca aristotélica; 2) a classifi cação aristotélica das ciências entre teoréticas e práticas que distingue a ética e a política como ciências práticas, sendo a ética o fundamento teórico da política propriamente. Essas duas diretrizes desenvolvem a metodologia proposta por Averróis em que são discernidas as ciências práticas. A terceira diretriz, o tema das excelências ou virtudes42, constitui o eixo em torno do qual se articula o tratado. Contudo, a citação das quatro virtudes/excelências (perfec-tiones) enunciadas logo no início do tratado é de origem farabiana: as virtudes são teoréticas/especulativas, cogitativas/refl exivas, morais e as artes práticas. Mas, no Livro II, Averróis adapta esse passo à doutrina aristotélica citando-o da seguinte forma: “as virtudes são especulativas e artes práticas, cogitativas e morais”43. Na lista defi nitiva, as “artes práticas” passam para o segundo lugar, o que, segundo a argumentação do Comentador, parece ser a conseqüência lógica da subdivisão da expressão “artes práticas” em teóricas e práticas44. “Arte”, nesse sen-tido, tem o signifi cado de “disciplina”, polissemia herdada do termo grego tékhne com o duplo signifi cado de “habilidade, destreza”, e de “disciplina” no sentido de “método” de trabalho.

Por último, a quarta diretriz diz respeito à noção de justiça, que permite a Averróis inserir em sua obra considerações sobre certas

42. O termo grego areté pode ser traduzido tanto por “excelência” como por “virtude”. Contudo, o texto latino ora registra “virtude” ora “perfeição” como se fossem sinônimos.

43. ELIA DEL MEDIGO II <IX, 3>; trad. Rosenthal II.ix.3; trad. Lerner 68:19-26; trad. Cruz Hernández, p. 84.

44. Essa questão foi amplamente analisada em nossa tese de doutorado, Averróis e a Arte de Governar. Uma leitura aristotélica d’A República (Editora Perspectiva, no prelo).

Page 54: SCINTILLA - FAE

54 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 31-66, jan./jun. 2009

ROSALIE HELENA DE SOUZA PEREIRA

características do Islã ao introduzir a idéia central da justiça funda-da na lei revelada, ou melhor, na Šarīca, o fundamento do Direito islâmico (fi qh).

Datação do original árabe do Comentário sobre “República”

Não há consenso entre os especialistas sobre a datação do Comen-tário sobre “República”, obra dedicada ao sultão regente, cujo nome não é citado, omissão que faz com que haja dúvidas sobre a data de sua redação. A crítica tecida nesse comentário leva alguns especialis-tas, como E. Renan e M. Cruz Hernández, a supor que o exílio de Averróis tenha sido decretado em razão de “intrigas palacianas”, pro-movidas pelos teólogos e os juristas mālikitas interessados em cancelar a infl uência do almoadismo racionalista (CRUZ HERNÁNDEZ, 1997, p. 29). Outros estudiosos, no entanto, como L. Gauthier e E. I. J. Rosenthal, afi rmam que o exílio de Averróis teria sido causado pelo intento do soberano de separar-se publicamente dos fi lósofos, que gozavam de um reputação nada favorável, e, com isso, acalmar os ânimos belicosos dos juristas e dos teólogos, além de promover sua própria imagem junto ao povo (ROSENTHAL, 1985, p. 291).

Em sua introdução à edição da versão hebraica com tradução inglesa, E. I. J. Rosenthal expõe as difi culdades para datar essa obra na ausência de critérios confi áveis. Se Averróis compôs este seu co-mentário antes do comentário sobre Ética nicomaquéia é ainda uma questão em aberto. Moritz Steinschneider determina uma data pró-xima à redação do Comentário Médio sobre Ética nicomaquéia, tratado que data seu término em 1177. Steinschneider baseia-se em um verbo

45. A passagem em hebraico corresponde a ELIA DEL MEDIGO II <I, 7>: “utrum autem debet esse propheta, habet magnae investigationis necessitatem. Et conside-rabimus de illo in prima parte huius scientiae” (grifo nosso); trad. Rosenthal II.i.7; trad. Lerner 61:16-18; trad. Cruz Hernández, p. 72 (a propósito, ver ROSENTHAL in AVERRÓIS, 1966, p. 10, nota 1; id. 1971, p. 60-92).

Page 55: SCINTILLA - FAE

55Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 31-66, jan./jun. 2009

AVERRÓIS (IBN RUŠD) E A POLÍTICA

no futuro da versão hebraica do Comentário sobre “República”45 para determinar 1176 como data provável de sua composição, mas Rosen-thal afi rma não encontrar nenhuma evidência dessa possível datação (ROSENTHAL in AVERRÓIS, 1966, p. 10). Como diz Rosenthal, é pouco provável que Averróis tenha escrito o seu Comentário sobre “República”, a parte prática da política, antes do Comentário sobre Ética, a parte teorética da política, já que ele repete muitas vezes ao longo do Comentário sobre “República” que “isto já foi visto antes”, isto é, o que se refere à parte teorética da arte política já tinha sido desenvolvido e explicado no Comentário sobre ética. Há, no entanto, grande possibilidade de que estes dois comentários tenham sido re-digidos na mesma época, uma vez que Averróis esperava ter em mãos o tratado aristotélico, Política, para compor sua obra sobre a parte prática da política. Como o próprio Averróis afi rma, a Ética nicoma-quéia e a República formam duas partes complementares da mesma ciência política. De qualquer modo, é plausível considerar 1177 como terminus post quem da redação do Comentário sobre “República”, em virtude da data do término da redação do Comentário Médio sobre Ética nicomaquéia, a saber, 4 de maio de 1177.

Sempre segundo Rosenthal, entretanto, é preciso considerar o fato de que Averróis menciona a Ciência da Física, e, pelo que se sabe de seus comentários, considera a Physica e o De Anima como partes integrantes dessa ciência. O Comentário a De Anima foi concluído em 1182. Como Averróis não cita esse comentário, tal como o faz em seus comentários posteriores, para Rosenthal é possível considerar o ano 1182 como terminus ad quem (ROSENTHAL in AVERRÓIS, 1966, p. 10).

Todavia, o arabista e exímio conhecedor da obra de Averróis, Mi-guel Cruz Hernández, afi rma que o tratado foi escrito em 1194 (CRUZ HERNÁNDEZ in AVERRÓIS, 1990, p. XI). Também sustentam essa datação cAbdurraÊmān Badawī (BADAWĪ, 1998, p. 33; ID., 1972, v. II, p. 761), Massimo Campanini (CAMPANINI, 1999, p. 164) e o

Page 56: SCINTILLA - FAE

56 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 31-66, jan./jun. 2009

ROSALIE HELENA DE SOUZA PEREIRA

historiador Dominique Urvoy em sua apresentação da biobibliografi a de Averróis (URVOY, 1998, p. 224, nota 3; ID., 1996, p. 48).

A atribuição de uma data mais tardia ao Comentário sobre “Re-pública” seria uma hipótese a ser considerada. Os anos 1193-1194 constituem um período obscuro da vida de Averróis (CAMPANINI, 1999, p. 164), e, em fi ns de 1195, ele é perseguido e desterrado em Lucena, importante centro de estudos judaicos próximo à cidade de Córdoba46. No início de 1198, é perdoado e volta a Marrakesh, junto à corte do soberano almôada Abū Yūsuf Yacqūb al-Manîūr. No mesmo ano, Averróis morre em 10 de dezembro, no Marrocos, longe de sua terra natal, Al-Andalus47. Depois do trágico exílio, Averróis compôs em matéria fi losófi ca apenas as Questões sobre os Primeiros Analíticos48.

A datação em 1194 do Comentário sobre “República” é também atribuída a um erudito do século XVII (URVOY, 1998, p. 224, n. 3) que, para considerar essa data como possível, levou em conta o fato de Averróis não ter tido em mãos a Política e ter esperado até que se esgo-tassem todos os seus recursos para conseguir esse escrito aristotélico. O argumento parece conseqüente, ainda que Rosenthal chame à atenção para questões de vocabulário que fariam recuar a datação do tratado

46. O exílio nessa comunidade judaica deu origem à lenda de que Averróis se teria refugiado na casa de Maimônides – Ibn Maymun (1135-1204) como era conheci-do entre os árabes –, o que é impossível já que o pensador judeu vivia há anos no Cairo. Dessa boataria, resultou outra lenda na tradição medieval e renascentista, a da origem judaica de Averróis (cf. CRUZ HERNÁNDEZ, 1997, p. 31). Embora a lenda medieval descreva as relações de amizade entre os dois fi lósofos, Maimônides declarou-se discípulo de um aluno de Ibn Bājjah (Avempace) e seria somente no exílio, no Egito, que teria lido alguns comentários de Averróis (Cf. URVOY, 1996, p. 159). Essa lenda da hospitalidade concedida a Averróis por Maimônides foi propagada por Leão Africano (cf. RENAN, 2002, p. 33; 36). Os motivos do desterro de Averróis são controversos (ver a esse respeito CRUZ HERNÁNDEZ, 1997, p. 28-33).

47. Sobre o “nacionalismo” de Averróis, ver CRUZ HERNÁNDEZ (1997, p. 32-33).

48. Sobre a cronologia da vida e das obras de Averróis, ver CRUZ HERNÁNDEZ (1997, p. 57-60).

Page 57: SCINTILLA - FAE

57Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 31-66, jan./jun. 2009

AVERRÓIS (IBN RUŠD) E A POLÍTICA

para antes de 1182. No entanto, em relação às críticas tecidas no Co-mentário sobre “República”, é possível aproximar a data de sua redação com a dos textos doutrinais escritos por volta de 1179-82, as obras consideradas originais e polêmicas, Faîl al-Maqāl (Tratado Decisivo), Kašf can-Manāhij al-adilla (Desvelamento dos Métodos das Provas), Damīma (Apêndice) e Tahāfut al-Tahāfut (Demolição da demolição) (URVOY, 1998, p. 224, n. 3; VAN DEN BERGH, 1958, p. 409).

Cruz Hernández contesta a datação de E. I. J. Rosenthal, que pensou que a dedicatória de Averróis fosse dirigida ao soberano Abū Yacqūb Yūsuf, que morreu em 1184. O arabista espanhol afi rma que o contexto da obra indica que ela teria sido dedicada ao fi lho e sucessor desse soberano, Abū Yūsuf Yacqūb al-Manîur, sob cuja proteção viveu Averróis. Ainda, Averróis se desculpa pela brevidade de sua exposição em razão “dos confl itos desta época”. Segundo Cruz Hernández, essa expressão não teria sentido antes de 1184, quando o califado almôada, apesar do avanço das conquistas dos cristãos, permanecia ainda fi rme49.

As críticas de Averróis aos governantes almôadas, entretanto, po-dem bem ter desencadeado os tristes eventos dos últimos anos de sua vida50. Sabemos que em 1195 Averróis já sofria perseguições que resul-taram em seu humilhante exílio51 que durou de três a quatro anos.

49. “Pouco antes de 1194, os exércitos dos reinos do norte renovaram suas ofensivas; em 1186, Afonso VIII ocupou Alarcón; Iniesta, em 1186 e Magacela em 1189. Todas essas conquistas, todavia, foram perdidas depois da batalha de Alarcos em 1195, exceto as do alto Júcar.” Em razão desses fatos históricos, Cruz Hernández situa o término do Comentário após 1189 e antes de 1195 (CRUZ HERNÁNDEZ, in trad. Cruz Hernández, p. 48, nota 72).

50. A propósito de uma crítica de Averróis à sociedade de seu tempo, Cruz Her-nández afi rma que “uma tão dura observação abona minha hipótese da redação tardia dessa obra, não muito antes de se desencadear a perseguição contra seu autor” (CRUZ HERNÁNDEZ, in trad. Cruz Hernández, nota 13, p. 78).

51. Conta-se que uma das piores humilhações sofridas por Averróis é ter sido acusado de ser descendente de uma família judia. Como relata Dominique Urvoy, “a família

Page 58: SCINTILLA - FAE

58 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 31-66, jan./jun. 2009

ROSALIE HELENA DE SOUZA PEREIRA

Para concluir, são válidos os diferentes argumentos para datar esse comentário. Contudo, à parte a querela sobre a sua datação, permanece o fato de que o Comentário sobre “República” pode bem ser lido como uma exposição de soluções originais a problemas que o contexto sócio-político da época apresentava.

A tradução hebraica e as versões latinas do Comentário sobre “República”

O original árabe desse importante texto não sobreviveu. Segundo cAbdurraÊmān Badawī, um manuscrito em árabe do comentário de Averróis sobre República ainda existia na biblioteca do Escorial em 1671, quando houve o incêndio que destruiu boa parte do acervo. De acordo com o catálogo do Escorial, o título árabe da obra seria Aflātūn

fī al-talātat al-mansūba fī siyāsat al-madīna, bi-talhīî Abī al-Walīd ibn

Rušd (Os três níveis da política segundo Platão, no comentário de Averróis) (MORATA apud BADAWI, 1998, p. 131). Todavia, a lista das obras de Averróis publicada por Ernest Renan contém o título Jawāmic siyāsat Afl ātūn (Prolegômenos sobre a política de Platão)52.

Chegou a nós, porém, conservada em oito manuscritos, uma tradução hebraica, realizada por Šamu’el b. Yehudā Mešullam b. Se-

dos Banū Rušd jamais experimentara a vaidade, então tão freqüente, de fazer remon-tar suas origens a uma das tribos árabes que ocuparam a Espanha a partir de 711; quando surgiram as difi culdades pelas quais passou Averróis, seus inimigos invocaram a obscuridade de sua genealogia para insinuar que ele era de origem judia. Em razão das evoluções lingüísticas já apontadas, isso foi mais fácil porque seu nome poderia se aproximar da forma “Bennarosh”, isto é, “fi lho de camponês”, muito comum entre os judeus marroquinos.” URVOY, op. cit., 1998, p. 18. Em árabe, “Ibn Ru¹d [é um] termo magnífi co que designa ‘fi lho da retidão’” (cf. ibid., p. 17).

52. Lista do manuscrito nº 879 (Casiri), fol. 82 e publicada no apêndice por RENAN, Ernest. Averroès et l’Averroïsme. Paris, 3ª ed., 1866, p. 462, 1. 10, apud BADAWI, 1998, p. 131.

.

.

Page 59: SCINTILLA - FAE

59Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 31-66, jan./jun. 2009

AVERRÓIS (IBN RUŠD) E A POLÍTICA

lomo, de Marselha, a partir do original árabe53, cuja primeira versão foi terminada em 24 de novembro de 1320, na cidade de Uzès.

É oportuno mencionar o epílogo do tradutor judeu que relata as difi culdades da tradução. Šamu’el narra que, quando empreendeu a tradução do Comentário sobre “República”, não tinha ainda em mãos o comentário de Averróis sobre Ética nicomaquéia, “que constitui a pri-meira parte dessa ciência prática”54, embora tivesse o texto de Aristóteles que, porém, não foi capaz de traduzir “em razão de sua complexidade e difi culdades”, superadas somente quando obteve o comentário sobre a Ética escrito por Averróis “na linguagem, clara e distinta que costuma usar em todas as suas exposições”55. Šamu’el completou a primeira

53. A edição estabelecida do texto hebraico, realizada por E. I. J. Rosenthal, está ancorada no manuscrito (B) Ms. München, Bayrische Staatsbibliothek, Hebr. 308, fols. 1v - 43v, manuscrito datado de princípios do século XVI. A revisão desta edição está baseada em oito manuscritos e no resumo feito, em 1331, por Joseph Caspi. Os manuscritos usados por Rosenthal são os seguintes: (A) Ms. Firenze, Biblioteca Medicea Laurenziana, Conventi Soppressi 12, fols. 95v - 130v; (B) Ms. München, Bayrische Staatsbibliothek, Hebr. 308, fols. 1v - 43v; (C) Ms. Milano, Biblioteca Ambrosiana, R. 33 sup., fols. 1r - 56r; (D) Ms. Firenze, Biblioteca Medicea Lau-renziana, Plut. 88.25, fols. 100v - 138r; (E) Ms. Oxford, Bodleian Library, Mich. 565, fols. 127v - 154r; (F) Ms. Viena, Nationalbibliothek, Heb. 27, fols. 87r - 114v; (G) Ms. Cambridge, University Library, Add. 496, fols. 1r - 62r; (H) Ms. Oxford, Bodleian Library, Mich. 317, fols. 1r - 62r; cf. ROSENTHAL, Erwin I. J. Averroes’ Commentary on Platos’ Republic, p. 2-7. Moritz Steinschneider arrola ainda um ma-nuscrito em Torino, que, porém, foi destruído em um incêndio em 1904, cf. id., p. 6. Ralph Lerner usou, para sua tradução, o manuscrito (A) Ms. Firenze, Biblioteca Medicea Laurenziana, Conventi Soppressi 12, fols. 94r - 129v, embora ele utilize o aparato crítico da edição do texto hebraico feita por Rosenthal; o manuscrito (A) é datado de 1457, o mais antigo de todos os sobreviventes dessa versão em hebraico do comentário de Averróis e possui variantes superiores aos outros, cf. LERNER, Ralph. Preface. In: trad. Lerner, p. viii. O manuscrito (A) não está incluído na lista feita por M. Steinschneider, como informa E. I. J. Rosenthal na p. 3 de sua edição.

54. ŠAMU’EL B. YEHŪDĀ MEŠULLAM B. SELOMO, DE MARSELHA. Epí-logo do Tradutor. Texto editado por E. I. J. Rosenthal e traduzido por Miguel Cruz Hernández in trad. Cruz Hernández, p. 151; id. Translator’s Colophon. In: trad. Lerner, p. 153. Rosenthal não nos dá a tradução nem do Epílogo do tradutor nem do Colofon do copista, embora tenha realizado a edição deles em hebraico.

55. Id. ibid.

Page 60: SCINTILLA - FAE

60 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 31-66, jan./jun. 2009

ROSALIE HELENA DE SOUZA PEREIRA

versão da tradução do Comentário sobre Ética nicomaquéia em 20 de setembro de 1321, enquanto esteve preso no castelo de Beaucaire56. Narra que esperava ter oportunidade de revisar o comentário à Ética com a ajuda dos cristãos a fi m de confrontá-lo com o próprio texto de Aristóteles e poder contar também com o comentário de Al-Fārābī à mesma Ética. Impediram-no, porém, de realizar tal tarefa as agruras pelas quais passou nessa época, pois lhe era impossível a necessária ajuda dos estudiosos cristãos em razão do “longo e rigoroso encarce-ramento que nesse tempo”57 padeceu e “do rigor das expulsões e das prisões infl igidas por esse povo que nos bania”58.

Entre os judeus circulava somente a obra de Al-Fārābī, Livro dos princípios dos seres, obra mais bem conhecida por Livro da política (Kitāb

al-siyāsat al-madaniyya), que, porém, tratava apenas da segunda parte da ciência política, e “nada da primeira parte”. Para verifi car a tradução que conduziu do Comentário sobre Ética nicomaquéia, Šamu’el afi rma que sempre se apoiou no texto do próprio Aristóteles, mas, para veri-fi car sua tradução do Comentário sobre “República”, não dispunha de nenhum outro livro59. Não cabe, portanto, excluir eventuais erros na versão hebraica. O copista, Moisés b. Rabbi Isaac, insiste nas difi culdades que o tradutor enfrentara ao empreender seu trabalho60. Apesar disso, copiou o manuscrito como o encontrou e, assim, a versão hebraica é o que temos de mais próximo do original árabe perdido.

Para quem não conhece o hebraico, restam as traduções latinas feitas a partir dessa hebraica, embora elas nem sempre coincidam.

56. Trad. Cruz Hernández, p. 152; trad. Lerner, p. 154.

57. Id. ibid.

58. Trad. Cruz Hernández, p. 154; trad. Lerner, p. 156.

59. Trad. Cruz Hernández, p. 154-155; ibid.

60. Cf. MOISÉS B. RABBI ISAAC. Colofon del Copista. In trad. Cruz Hernández, p. 157-158; id. Translator’s Colophon. In trad. Lerner, p. 153-157.

Page 61: SCINTILLA - FAE

61Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 31-66, jan./jun. 2009

AVERRÓIS (IBN RUŠD) E A POLÍTICA

Em 1485, Elia del Medigo, o Cretense (1460-1493), a partir da versão hebraica, redigiu uma tradução latina61 encomendada por Pico della Mirandola cujo único manuscrito, o de 1491, está conservado em Siena62.

Em 1539, o médico judeu Jacob Mantino fez uma nova tradu-ção latina63, também a partir da versão hebraica, que, entretanto, é mais uma paráfrase que uma tradução. Esse trabalho é dedicado ao papa Paulo III e foi editado em Veneza quando veio a público a obra completa de Averróis, em latim. Desconhecendo a anterior tradução de Elia del Medigo, Mantino afi rma, em sua dedicatória ao papa, que a sua é a primeira tradução latina dessa obra de Averróis64. A tradução de Mantino, embora parafrástica, tem seu valor, pois é um interessante exemplo de interpretação dada por um erudito médico da Renascença com conhecimentos tanto da fi losofi a medieval hebraica e islâmica como da lei judaica (ROSENTHAL in AVERRÓIS, 1966,

61. Expositio Commentatoris Averrois in librum politicorum Platonis. Ms. Siena, Biblio-teca Comunale degli Intronati, G. VII, 32 (56), ff. 158r - 188r, cópia terminada em Roma em 26 de abril de 1491 por Raimondo di Saleta para Pietro Negroni, abade de San Gregorio al Celio (cf. COVIELLO; FORNACIARI apud AVERRÓIS, 1992, p. XXIII; cf. CRUZ HERNÁNDEZ, in trad. Cruz Hernández, p. LXX, n. 44).

62. Esse manuscrito foi descoberto em 1964, em Siena, pelo Prof. Paul Kristeller, cf. GEFFEN, 1973 – 1974, p. 4. Como atesta a edição de Annalisa Coviello e Paolo Edoardo Fornaciari, publicada em 1992, é inexata a informação de cAbdurraÊmān Badawī de que esta tradução latina estivesse perdida (cf. BADAWĪ, 1998, p. 131, nota 1). Badawī publicou este livro usando o capítulo dedicado a Averróis de sua Histoire de la philosophie en Islam, publicada em 1972, com o acréscimo de dois ensaios que não faziam parte da obra original, conforme anuncia no Prefácio de Averroès (Ibn Rushd).

63. Aristotelis Opera cum Averrois Commentariis. Averrois Cordubensis Paraphrasis in libros de Republica Platonis speculativos: et est secunda pars scientiae Moralis. Jacob Mantino Hebraeo Medico interprete. In: Aristotelis omnia quae extant opera. Averrois Cordubensis in ea opera omnes, quid ad haec usque tempora pervenere commentarii. Venetiis, apud Iunctas, 10 v., 1562 - 1574; reimpressão anastática Frankfurt: Mi-nerva, 1963, 14 v., v. III, ff. 336H - 373M.

64. MANTINO: “(…) a me nunc primum latinitate donatos” (op. cit., f. 335r).

Page 62: SCINTILLA - FAE

62 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 31-66, jan./jun. 2009

ROSALIE HELENA DE SOUZA PEREIRA

p. 7). Mas, segundo Rosenthal, sua tradução é muito imprecisa, já que ele freqüentemente segue o original de Platão ao invés da versão hebraica do comentário de Averróis que está traduzindo. Rosenthal afi rma que, como Mantino não é fi el à versão hebraica, seu lugar apropriado seria como intérprete do texto de Averróis, e não como tradutor. Rosenthal ainda alerta para o cuidado que se deve ter ao usar essa tradução latina, embora ela possa servir de referência e de auxílio na compreensão das passagens mais obscuras (ROSENTHAL in AVERRÓIS, 1966, p. 8).

A tradução de Elia del Medigo, além de ser mais próxima cro-nologicamente ao original árabe, é mais fi el à versão hebraica. Como escrevem os editores dessa versão latina,

A primeira peculiaridade, muito evidente até numa observação superfi cial, consiste no escrúpulo com que o texto de Elia segue o original hebraico, escrúpulo que chega, às vezes, a tornar quase ininteligível o sentido geral do discurso, a fi m de evitar perífrases ou expansões que se distanciem muito da letra (COVIELLO; FORNACIARI in AVERRÓIS, 1992, p. X).

Elia del Medigo escreve num latim que não é o comumente usado pelos humanistas seus contemporâneos, pois é um latim cujo para-digma é a lingua falada, que demonstra um certo desinteresse pelo estilo, mas que respeita ao máximo as exigências de clareza próprias da linguagem fi losófi ca (COVIELLO; FORNACIARI in AVERRÓIS, 1992, p. X-XV). Essa tradução foi encomendada por Giovanni Pico della Mirandola que estudava fi losofi a em Padova em 1481, quando então teve início, entre tradutor e fi lósofo, uma amizade intelectual bastante intensa. Pico teve, por meio das traduções de Elia, a possibi-lidade de aplicar-se aos textos da tradição fi losófi ca aristotélica a que até então não tivera acesso65.

Por que o interesse dos judeus nas obras de Averróis?

65. Sobre os itinerários do intercâmbio intelectual entre Pico e Elia, ver COVIELLO; FORNACIARI in AVERRÓIS, 1992, p. XIX-XXIII.

Page 63: SCINTILLA - FAE

63Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 31-66, jan./jun. 2009

AVERRÓIS (IBN RUŠD) E A POLÍTICA

A língua árabe se impôs aos não-muçulmanos. Segundo Domi-nique Urvoy, os cristãos ditos “moçárabes”, isto é, os “arabizados”, suspeitos de se aliarem aos príncipes cristãos do norte da Península, representavam um perigo para o poder almôada. Os moçárabes se viram, portanto, obrigados ou a se exilarem na África do Norte ou a serem absorvidos pela população muçulmana e, nessas circunstâncias, não tiveram a oportunidade de elaborar uma refl exão fi losófi ca. Ao contrário dos cristãos, os judeus andaluzes não representavam qualquer ameaça e puderam manter e elaborar uma cultura própria, ainda que boa parte de suas obras fossem redigidas em árabe, inclusive algumas de ressonância exclusivamente judaica como o Kuzari de Ha-Levi. Foi graças a esse processo de assimilação da língua árabe pelos judeus e sua relativa estabilidade no ambiente almôada que a obra de Averróis, ignorada e esquecida por seu próprio meio, passou a ser traduzida para o hebraico já a partir de 1232. Com a geração dos discípulos de Maimônides, desenvolveu-se um verdadeiro “averroísmo” judeu que viria a ser a origem da célebre doutrina das “duas verdades”. Os textos de Averróis foram conservados pelos judeus em árabe, em árabe escrito com caracte res hebraicos e em traduções hebraicas. Com suas traduções, os judeus representam um importante intermediário entre Averróis e a Escolástica latina (URVOY, 1996, p. 158-160).

Referências

AL-FĀRĀBĪ. On the Perfect State (Mabādi’ ārā’ ahl al-madīnat al-fādila). Edição bilíngüe árabe-inglês. Revised text with Introduction, Translation, and Commentary by Richard Walzer. Oxford: Oxford University Press, 1ª ed. 1985, 2ª ed. 1998.

AL-FĀRĀBĪ Kitāb tahsīl al-sacāda (Livro da Obtenção da felicidade). Introdução, comentário e explicação por Dr. ‘Alī bu-Milhem. Beirut: Dār wa Maktabat al-Hilāl, 1995. Trad. (inglesa) de Muhsin Mahdi: The Attainment of Happiness. In: Alfarabi. Philosophy of Plato and Aristotle. Revised edition: Ithaca (N.Y.): Cornell University Press,

.

. .

Page 64: SCINTILLA - FAE

64 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 31-66, jan./jun. 2009

ROSALIE HELENA DE SOUZA PEREIRA

2001; trad. (francesa) de Olivier Sedeyn e Nassim Lévy: De l’obtention du bonheur. Paris: Éditions Allia, 2005.

AVERRÓIS (IBN RUŠD). Parafrasi della “Repubblica” nella traduzione latina di Elia del Medigo. Edição de Annalisa Coviello; Paolo Edoardo Fornaciari. Firenze: Leo S. Olschki Editore, 1992.

AVERRÓIS (IBN RUŠD). Aristotelis Opera cum Averrois Commentariis. Averrois Cordubensis Paraphrasis in libros de Republica Platonis specu-lativos: et est secunda pars scientiae Moralis. Jacob Mantino Hebraeo Medico interprete. In: Aristotelis omnia quae extant opera. Averrois Cordubensis in ea opera omnes, quid ad haec usque tempora pervenere commentarii. Venetiis, apud Iunctas, 10 v., 1562 - 1574; reimpressão anastática Frankfurt: Minerva, 1963, 14 v., v. III, ff. 336H - 373M.

AVERRÓIS (IBN RUŠD). Averroes’ Commentary on Plato’s “Republic”. Edição da versão hebraica, introdução, tradução (inglesa) e notas de E. I. J. Rosenthal. Cambridge: Cambridge University Press, 1956, reprint with corrections 1966.

AVERRÓIS (IBN RUŠD). Averroes on Plato’s “Republic”. Tradução (in-glesa) da versão hebraica, introdução e notas de Ralph Lerner. Ithaca/London: Cornell University Press, 1974.

AVERRÓIS (IBN RUŠD). Exposición de la “República” de Platón. Tra-dução (espanhola) e estudo preliminar de Miguel Cruz Hernández. Madrid: Tecnos, 1ª ed. 1986; 2ª ed. 1990.

AVERRÓIS (IBN RUŠD). The Book of the Decisive Treatise determining the Connection between the Law and Wisdom. Edição bilíngüe árabe-inglês, tradução, introdução e notas de Charles E. Butterworth. Provo (Utah): Brigham Young University Press, 2001.

AVERRÓIS (IBN RUŠD). Discours décisif. Tradução e notas de Marc Geoffroy. Introdução de Alain de Libera. Paris: Flammarion, 1996.

AVERRÓIS (IBN RUŠD). Epítome de Física (Filosofi a de la Naturale-za). Traducción y estudio por Josep Puig. Madrid: CSIC; Instituto Hispano-Árabe de Cultura, 1987.

BADAWĪ, cAbdurraÊmān. Averroès (Ibn Rushd), Paris: J. Vrin, 1998.

BADAWĪ, cAbdurraÊmān. Histoire de la philosophie en Islam. 2 v.; v. II: Les philosophes purs. Paris: J. Vrin, 1972.

Page 65: SCINTILLA - FAE

65Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 31-66, jan./jun. 2009

AVERRÓIS (IBN RUŠD) E A POLÍTICA

BERMAN, L. V. Review of Rosenthal’s Edition, Translation and Notes of Averroes’ Commentary on Plato’s ‘Republic’. Oriens, v. XXI-XXII (1968-1969). Leiden: Brill, 1971.

BUTTERWORTH, Charles E. Philosophy, Ethics and Virtuous Rule: A Study of Averroes’ Commentary on Plato’s “Republic”. Cairo: The American University in Cairo Press, 1986.

CAMPANINI, Massimo. Islam e politica. Bologna: Il Mulino, 1999.

CRUZ HERNÁNDEZ, Miguel. Abū-l-walīd Muhammad ibn Rušd (Averroes). Vida, Obra, Pensamiento, Infl uencia. Córdoba: CajaSur, 1ª ed. 1986, 2ª ed. 1997.

CRUZ HERNÁNDEZ, Miguel. La crítica de Averroes al despotismo oligárquico andalusí. In: MARTÍNEZ LORCA, Andrés (Org.). Al encuentro de Averroes. Madrid: Editorial Trotta, 1993, p. 105-118.

ENDRESS, Gerhard. Le projet d’Averroès: Constitution, Reception et Édition du Corpus des Oeuvres d’Ibn Rušd. In: ENDRESS, G.; AERTSEN, Jan A. (Org.). Averroes and the Aristotelian Tradition. Leiden; Boston; Köln: Brill, 1999.

GEFFEN, David. Insights into the Life and Thought of Elijah Medigo Based on His Published and Unpublished Works. Proceedings of the American Academy for Jewish Research, v. 41 [1973 – 1974, p. 69-86].

GIBB, H. A. R. Mohammedanism. London/New York/Toronto: Oxford University Press, 1ª ed. 1949, 2ª ed. 1953, reprint 1954.

GUTAS, Dimitri. Greek Thought, Arabic Culture. The Graeco-Arabic Translation Movement in Baghdad and Early ‘Abbāsid Society (2nd–4th / 8th–10th centuries). London: Routledge, 1ª ed. 1998, reprint 1999.

IBN AL-NADĪM. The Fihrist - A 10th Century AD Survey of Islamic Culture. Edited and translated by Bayard Dodge. New York: Columbia Univ. Press, 1ª ed. 1970; 2ª ed. 1998.

LIBERA, Alain de. Préface. In: RENAN, Ernest. Averroès et l’averroïsme. Paris: Maisonneuve & Larose, 2002, p. 11-12.

MORATA, N. Un catálogo de los fondos árabes primitivos de el Escorial. Al-Andalus, t. II, 1934.

Page 66: SCINTILLA - FAE

66 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 31-66, jan./jun. 2009

ROSALIE HELENA DE SOUZA PEREIRA

OZCOIDI, Idoia Maiza. La concepción de la fi losofi a en Averroes. Madrid: Editorial Trotta, 2001.

PÉREZ RUIZ, F. Averroes y la “República” de Platón. Pensamiento, v. 50, 1994, nº 196.

PUIG, Josep. Introducción. In: AVERROES. Epítome de Física (Filoso-fi a de la Naturaleza). Traducción y estudio por Josep Puig. Madrid: CSIC; Instituto Hispano-Árabe de Cultura, 1987.

RENAN, Ernest. Averroès et l’averroïsme. Paris: Maisonneuve & Larose, 2002.

ROSENTHAL, Erwin I. J. Political Thought in Medieval Islam. An Introductory Outline. 1ª ed. 1958. Westport (Conn.): Greenwood Press, Publishers, 1985.

ROSENTHAL, Erwin I. J. The place of politics in the philosophy of Ibn Rushd. Bulletin of School of Oriental and African Studies (BSOAS), v. XV, nº 2, 1953; reprint in: id. Studia Semitica. Volume II. Islamic Themes. Cambridge: Cambridge University Press, 1971.

ROSENTHAL, Franz. On the knowledge of Plato’s philosophy in the Islamic world. Islamic Culture 14, 1940. Reprint in: Greek Philosophy in the Arab World. Great Britain; USA: Variorum, 1990.

TEICHER, J.-L. Resenha da edição de Rosenthal. Journal of Semitic Studies, nº V, 1960.

URVOY, Dominique. Ibn Rushd (Averroès). Paris: Cariscript, 1996.

URVOY, Dominique. Averroès. Les ambitions d’un intellectuel musulman. Paris: Flammarion, 1998.

VAN DEN BERGH, Simon. Bulletin of Schools of Oriental and African Studies (BSOAS), v. XXI, 1958.

Page 67: SCINTILLA - FAE

IL “SIGILLO DEI FILOSOFI”

67Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 67-80, jan./jun. 2009

IL “SIGILLO DEI FILOSOFI”.ARISTOTELE NELLE EPISTOLE DEI

“FRATELLI DELLA PURITÀ” (IKHWANAL-SAFA).

Antonella Doninelli*

Abstract: The main purpose of this paper is to show how theinfluence of Aristotelian philosophy is a big part of the precence ofGreek philosophy in ‘Brethren of Purity’’s thought, it is at least asimportant as Neoplatonic influence. With the name of ‘Brethren ofPurity’ (Ikhwan al-Safa) we usually make reference to a group of islamic

* Indirizzo postale: C.da Bertoni 18, I-87036 Arcavacata di Rende (CS), Italia; e-mail:[email protected]. (Studio Filosofico-Teologico Cosentino ‘Redemptoris Custos’, Ren-de (CS) Italia)Questo breve saggio raccoglie i risultati della prima fase di uno studio che sto affrontandosulla filosofia alchemica araba e sulle sue fonti. Ringrazio il Prof. Enio Paulo Giachini, perl’opportunità di pubblicare questo mio scritto e il Prof. Filippo Burgarella per l’apportofornitomi, sia nel reperire materiale bibliografico, sia per gli interessanti spunti emersi dallenostre conversazioni. Mi auguro di averne fatto tesoro nella preparazione di questo testo,che dedico alla mia famiglia: in particolare alla mia piccola Rita, che riesce ad addolcire conun suo sorriso le parti più recondite del mio animo. Poi anche al mio intelligentissimoFrancesco -Flavio, energia delle mie giornate, a mio marito Luca, amato compagno di vitae formidabile pungolo intellettuale, che spero sappia quanto gli sono grata, e ai miei carigenitori Ida e Franco, che ci sono sempre nei momenti di bisogno. Vorrei anche ringraziarei seminaristi dello Studio filosofico-teologico Redemptoris Custos di Rende (CS), che hoavuto l’immenso piacere di avere come studenti negli ultimi quattro anni: senza di lorobuona parte della mia passione per la ricerca filosofica sarebbe andata irrimediabilmenteperduta. Grazie a Davide, Andrea, Dario, Paolo, Andrea, Leonardo, Emilio, Pierfrancesco,Mario, Antonio, Mario, Dione, Demetrio.

Page 68: SCINTILLA - FAE

ANTONELLA DONINELLI

68 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 67-80, jan./jun. 2009

thinkers, who were interested by philosophy as well as alchemic andesoteric thought. Particularly Aristotelian Physics has an importantrole in ‘Brethren of Purity’’s work, known as “Rasa’il”, that is a collectionof letters. Vocabulary and several concepts, as for exemple four ele-ments, first matter, substance, generation and corruption, are Aristo-telian. Even the method used in ‘Rasa’il’, according to which it is nec-essary to start from sensible things and arrive to abstract concepts, isnot Platonic nor Neoplatonic but Aristotelian.

I. L’opera enciclopedica dei Fratelli della Purità

L’opera filosofica e religiosa dei cosiddetti “Fratelli della Purità” (o“Fratelli Sinceri”1) è una raccolta di 52 Epistole (Rasa’il), divise in quattrolibri (indicati di solito dal numero romano) dal carattere incredibilmenteeclettico ed enciclopedico. Il nome stesso della setta è riconducibile,secondo gli studi più accreditati, al contenuto e all’obiettivo dellaraccolta di scritti: la purificazione dell’intelletto dalle false credenze delvolgo, al fine di poter raggiungere la salvezza dell’anima. I Fratellidella Purità operavano in condizioni di quasi-anonimato, evitando difirmare i propri scritti. E’ riportata tuttavia la notizia sul carattere assai‘aperto’ delle loro riunioni alle quali potevano prendere parte anchepensatori non islamici2.

1. Anche se secondo l’opinione di illustri studiosi, la traduzione da preferire in Italianoè Fratelli Sinceri o della Sincerità, in questa sede preferiamo utilizzare l’espressioneFratelli della Purità, per omogeneità col Francese e l’Inglese, che abitualmentepreferiscono ‘Frères de la Pureté’ e ‘Brethren of Purity’. Segnaliamo che in linguainglese è appena uscita l’introduzione che prepara l’edizione completa delle Epistole apartire dall’edizione critica araba corredata da una traduzione inglese, che finalmentemetterà a disposizione degli studiosi l’intero corpus in una edizione facilmente accessibile:The Epistles of the Brethren of Purity. Ikhwan al-Safa’ and their Rasa’il: An Introduction,edited by N. EL-BIZRI, Oxford University Press, Oxford 2009.

2. Questa ‘tolleranza’ dei Fratelli viene fin troppo esaltata da Christian GODIN, nel suoarticolo sull’enciclopedismo L’encyclopédisme hors d’Europe, “Philosophiques”, vol. 23,n° 2, 1996, pp. 359-369.

Page 69: SCINTILLA - FAE

IL “SIGILLO DEI FILOSOFI”

69Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 67-80, jan./jun. 2009

Carmela Baffioni3 ci riporta la notizia secondo la quale il letteratoarabo Abu Hayyan al-Tawhidi tramanda alcuni dei nomi degli autoridelle Epistole, ma la loro identità certa rimane un problema storico estoriografico. Si è invece raggiunto un buon livello di sicurezza relati-vamente al luogo in cui vissero e alla datazione dell’opera. Per quel cheriguarda il luogo, si tratta della città di Bassora, mentre l’arco temporaleè individuabile, secondo quanto scrive Yves Marquet4, con il X secolo.I Fratelli della Purità sono di solito classificati come appartenenti allacorrente islamica ismailita, con un ruolo ben definito e ufficiale nellapropaganda (da’wa) secondo alcuni (Corbin e Marquet), con un ruoloa margine dell’ufficialità secondo altri (Stern e Bausani). La loroappartenenza all’ismailismo è supportata dalla notizia secondo cui unatradizione vorrebbe che l’opera dei Fratelli ricevette il sostegno diAhmad, uno degli imam nascosti, prima dell’avvento di ‘Ubayd Allahal-Madhi e dei fatimidi5.

Baffioni sottolinea che alle dottrine ismailite vengono comunqueaggiunte anche idee appartenenti ad altre correnti shiite, come peresempio la proposta del celibato, tipica del sufismo. Quel che rimanecome dato acquisito è senz’altro l’appartenenza all’Islam shiita, datoconfermato dai giudizi di condanna che ambienti sunniti hannopronunciato a più riprese contro i Fratelli. D’altra parte il carattereshiita delle Epistole è manifesto innanzitutto nella dimensione elitariadella conoscenza, resa esplicita nella distinzione tra uomini “eletti” euomini appartenenti al “volgo”, i quali arriveranno gli uni alla salvezza;

3. Cfr. C. BAFFIONI, Gli Ikhwan al-Safa e la loro enciclopedia, in C. D’ANCONA (a curadi), Storia della filosofia nell’Islam medievale, vol. I, Piccola Biblioteca Einaudi, Torino2005, pp. 449-489.

4. Y. MARQUET, La Philosophie des Ihwan al-Safa, Nouvelle édition augmentée, S.È.H.A.- ARCHÈ, Paris - Milan 1999. Questa monumentale opera di Yves Marquet, è senz’altrolo studio di riferimento per accostarsi al pensiero dei Fratelli della Purità.

5. A. VENTURA, Confessioni scismatiche, eterodossie e nuove religioni sorte nell’Islam, in AA.VV., Islam, a cura di G. Filoramo, Editori Laterza, Roma-Bari 2002, pp. 309-404; p. 364.

Page 70: SCINTILLA - FAE

ANTONELLA DONINELLI

70 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 67-80, jan./jun. 2009

gli altri alla perdizione a meno di non intraprendere la strada che portaalla salvezza6.

II. Influenze aristoteliche sul pensiero dei Fratelli della Purità

Le influenze più evidenti nella filosofia dei Fratelli della Puritàsono di stampo neoplatonico e pitagorico, ma si possono rintracciareanche presenze ermetiche e di certo aristoteliche. Su quest’ultime, chespesso non vengono adeguatamente messe in luce, forse proprio pernon creare troppo contrasto con il neoplatonismo esplicito che leEpistole manifestano, vorremmo concentrare la nostra attenzione.

Innanzitutto è evidente l’ispirazione aristotelica nella strutturadell’enciclopedia dei Fratelli. Se si osserva l’indice, si vede che moltititoli di epistole ricalcano scritti aristotelici, e ne riproducono anche lasuccessione, sia quella data dai bibliotecari di Alessandria, sia quellache rispecchia l’ordine logico previsto da Aristotele, come nel casodegli scritti fisici. In particolare troviamo i titoli dei trattati dell’Organon(Categorie che corrisponde all’epistola 11, Sull’Interpretazione checorrisponde all’epistola 12, Analitici Primi, Analitici Secondicorrispondono rispettivamente alle epistole 13 e 14) e i trattati di filo-sofia naturale, appartenenti alla seconda sezione delle Rasa’il, messi nellostesso ordine del Corpus aristotelico (Il Cielo che corrisponde all’epistola16, La generazione e la corruzione che corrisponde all’epistola 17,Metereologia che corrisponde all’epistola 18, Le parti degli animali checorrisponde all’epistola 22, Sul Senso che corrisponde all’epistola 24,Sull’Anima che corrisponde all’epistola 27)7.

6. Cfr. BAFFIONI, Gli Ikhwan al-Safa..., op. cit., p. 452.

7. Cfr. A. BAUSANI, L’enciclopedia e il mondo arabo-islamico medievale, in A. BAUSANI, Il“pazzo sacro” nell’Islam, raccolta di saggi a cura diM. Pistoso, Luni Editrice, Milano2000, pp. 71-82.

Page 71: SCINTILLA - FAE

IL “SIGILLO DEI FILOSOFI”

71Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 67-80, jan./jun. 2009

E’ poi evidente l’uso del vocabolario filosofico di Aristotele(termini quali sostanza, categorie, elementi, materia, forma, sillogismo,... sono usati in maniera sistematica nelle Epistole), che si presenta comeuno strumento imprescindibile per l’intera filosofia araba e anche perquella dei Fratelli della Purità.

A nostro parere, tuttavia, l’influenza di Aristotele non riguardameramente il lessico, ma riguarda anche il contenuto, forse in un modoaltrettanto sostanziale del neoplatonismo. Non bisogna infattidimenticare che anche per questi filosofi, come più in generale in moltiambienti filosofici islamici, Aristotele è considerato il ‘sigillo’ deifilosofi, come Maometto è il ‘sigillo’ dei profeti8. Il riferimento adAristotele era comunque avvertito come un principio d’autorità nelcircolo dei Fratelli, se si considera il fatto che essi non esitavano araccontare la storia secondo la quale lo stesso Maometto avrebbedichiarato che se Aristotele avesse conosciuto l’Islam attraverso il suomessaggio, si sarebbe senz’altro convertito9.

L’influenza di Aristotele e dell’aristotelismo appare evidente soprattuttonei temi fisici, in particolare su quanto i Fratelli scrivono a proposito deiquattro elementi, della materia e della forma, della generazione e lacorruzione10. Inoltre essi, come Aristotele, credevano che ogni corpo avessequattro cause: materiale, formale, efficiente e finale. Marquet citaopportunamente l’esempio che si ritrova nelle Epistole: il letto, del quale lacausa materiale è il legno, la causa formale è la forma quadrata, la causaefficiente è l’artigiano, la causa finale è quella di sdraiarsi11.

8. C. BAFFIONI, L’Epistola degli Ihwan al-Safa “Sulle opinioni e le religioni”, IstitutoUniversitario Orientale, Ed. Intercontinentalia, Napoli 1989, p. 37.

9. La notizia è riportata da I.R., NETTON, Muslim Neoplatonists. An introductionto the thought of the Brethern of Purity (Ikhwan al-Safa), RoutledgeCurzon, London2002, p. 19.

10. Sul punto si veda MARQUET, La philosophie des Ikhwan..., op. cit., pp. 24-25.

11. Cfr., Ibid., p. 86.

Page 72: SCINTILLA - FAE

ANTONELLA DONINELLI

72 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 67-80, jan./jun. 2009

Nel caso della materia e della forma, alle nozioni aristotelichevengono armonizzati alcuni assunti neoplatonici e creazionistici.Secondo quanto i Fratelli della Purità scrivono nella seconda partedelle epistole, Dio creò ex-nihilo la materia prima inerte e le formearchetipe presenti nell’Intelletto, entrambe sono dunque sostanzespirituali allo stesso titolo dell’Intelletto e dell’Anima universale.

Yves Marquet12 ricostruisce e sintetizza in maniera assai efficace ladottrina della creazione presente nelle Epistole, opera di carattereenciclopedico ascritta al circolo dei ‘Fratelli della Purità’. La creazioneavviene su due livelli distinti, che ad un certo punto interagiscono. Ilprimo livello è quello spirituale, in cui la creazione avviene al di fuoridello spazio e del tempo. Tre esseri spirituali si producono peremanazione da Dio, il primo è l’Intelletto Universale, che include tuttigli archetipi di ciò che successivamente verrà creato, il secondo è l’AnimaUniversale e il terzo è la Materia Prima, che è descritta – secondo lalezione aristotelica della pura potenzialità – come di per sè completa-mente passiva e quasi come inesistente. Il secondo livello poi, è quellodella creazione materiale, che trovò la sua causa in una colpa dell’Animaadamitica. Quest’ultima ha desiderato in maniera impropria il contattodiretto con Dio, ricevendo la punizione di ‘decadere’ nel mondo dellamateria, nel quale essa realizzerà la creazione appunto materiale.Unendosi alla materia, l’Anima produce il Corpo universale, chiamatoanche Corpo del mondo, poi grazie all’Intelletto che le trasmette gliarchetipi essa si divide in diverse facoltà che daranno le forme allamateria. Le facoltà più alte dell’Anima crearono innanzitutto le sferecelesti (sfera esteriore motrice, stelle fisse, i sette pianeti), quelle piùbasse, chiamate ‘coda’ dell’Anima o Natura, produssero gli enti terrestri,

12. Y. MARQUET, La place de l’alchimie dans les “Epîtres des Frères de la Pureté”,“Chrysopoeia”, Paris-Milan 2000-2003, Tome VII, pp. 49-59; in particolare sullacreazione si vedano le pagine 50-52.

Page 73: SCINTILLA - FAE

IL “SIGILLO DEI FILOSOFI”

73Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 67-80, jan./jun. 2009

in modo speculare agli archetipi e alle influenze delle facoltà astrali,con le quali essi conserveranno uno stretto rapporto. I primi enti terrestriad essere creati furono i quattro elementi della tradizione aristotelicacon le loro coppie di opposizioni primarie (caldo, freddo, secco, umido)di cui parleremo più diffusamente di seguito. Subito dopo si formaronoi minerali e via via gli altri enti terrestri, tutti soggetti alla generazionee alla corruzione. In definitiva, la vera punizione, conseguente aldesiderio disordinato dell’anima adamitica, è il destino transitorio degliesseri frutto della creazione materiale.

E’ chiaro che il discorso creazionista si discosta in modo nettodalla prospettiva aristotelica, che si muove in un orizzonte greco, nelquale l’eternità del cosmo, o quantomeno dei suoi principi, è un as-sunto incontrovertibile. Va tuttavia evidenziata la perfetta specularitàfunzionale che i concetti di materia prima e forma assumono sia nelpensiero aristotelico, sia in quello dei Fratelli. Anche in Aristotele infattimateria prima e forme sono due principi pre-esistenti al resto dei corpi(perchè eterni) almeno a livello logico poiché nella concretezza delmondo sublunare esistono soltanto nella specie del sinolo. Aristoteleparla della materia prima in termini tali che molti studiosi, a seguitodi Düring, la hanno definita ‘sostrato logico’, necessario per il formarsidegli altri corpi. Essa è infatti quel sostrato praticamente impercettibileche consente i mutamenti inter-elementari, poiché sappiamo che glielementi sono le componenti più semplici della realtà fisica13. Ed èproprio relativamente ai quattro elementi un altro punto in cuil’influenza aristotelica appare marcata. Nelle Epistole essi vengonochiamati ‘matrici universali’, ‘corpi assoluti’, ‘materia naturale’14. Ter-ra, aria, acqua e fuoco sono infatti i quattro corpi semplici, elementariappunto, che sono alla base del divenire naturale e sono caratterizzati

13. Cfr. La generazione e la corruzione, II, 1 329a 24-25.

14. MARQUET, La philosophie des Ikhwan..., op. cit., p. 155.

Page 74: SCINTILLA - FAE

ANTONELLA DONINELLI

74 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 67-80, jan./jun. 2009

da coppie di qualità che ne costituiscono la forma, o natura: caldo,freddo, secco e umido. Nella prospettiva dei Fratelli della Purità, lequattro nature sono costantemente in lotta tra loro, cercando didominarsi a vicenda. Tuttavia grazie alla saggezza divina esse sono statemescolate e armonizzate nei quattro elementi, che infatti si presentanonel seguente modo: la terra è fredda e secca, l’acqua è fredda e umida,l’aria è calda e umida, il fuoco è caldo e secco. Inoltre ciascuno deiquattro elementi è dotato di un livello di mobilità differente, dallaterra che è completamente immobile al fuoco che è l’elementomaggiormente in movimento. Anche Aristotele descriveva la terra comeimmobile nel suo tendere costantemente verso il luogo naturale che leè proprio, vale a dire il basso, il centro della terra stessa, allo stessomodo anche il fuoco nella prospettiva aristotelica è pure costantementein movimento nel suo tendere verso il luogo naturale che gli è propriocioè la parte superiore dell’aria, che negli scritti dei Fratelli – riprendendoancora una volta il vocabolario di Aristotele – viene chiamato etere.Dunque nel procedere dalla terra all’etere, gli elementi sonomaggiormente mobili, nobili e puri15. E come già Aristotele illustravanei suoi scritti fisici, in particolare ne La generazione e la corruzione16,anche nel pensiero dei Fratelli della Purità gli elementi mutano unonell’altro mutando la loro forma. Marquet precisa:

Les éléments, on l’a dit, sont sujets au changement qualitatif,et peuvent donc changer de forme, c’est-à-dire d’intensité dansle mouvement et l’immobilité (...) Un élément peut setransformer soit en celui d’en dessus, soit en celui d’en dessous:le feu éteint devient air; l’air chauffé devient feu, épaissi devienteau; l’eau évaporée devient air, inerte devient terre.17

Dalla composizione in diverse proporzioni dei quattro elementi sigenerano poi tutti gli altri enti che, come in Aristotele, per i Fratelli si

15. Ibid., p. 158.

16. Si veda La generazione e la corruzione II, 4.

17. MARQUET, La philosophie des Ikhwan..., op. cit., p. 159.

Page 75: SCINTILLA - FAE

IL “SIGILLO DEI FILOSOFI”

75Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 67-80, jan./jun. 2009

dividono essenzialmente in tre tipi: inanimati (minerali), vegetali esensibili. La modalità con la quale i quattro elementi, pur in contrastotra loro, sono armonizzati nella costituzione dei corpi è descritta nelleEpistole, in particolare nella epistola VI dedicata alle proporzioninumeriche e geometriche, con la teoria della Bilancia. La teoria dellaBilancia, oppure della ‘misura’, come la si potrebbe anche chiamare,ha come punto centrale l’idea per cui tutto ciò che esiste è frutto dimisura e proporzione. I Fratelli citano innumerevoli volte la frasepitagorica “Gli esseri sono secondo la natura del numero” e distinguonodiversi tipi di ‘bilancia’: innanzitutto la ‘Bilancia Archetipa’, quella delGiudizio menzionata dal Corano, poi altre tre, di cui una materialeche serve a pesare fisicamente le cose, la prosodia, che misura illinguaggio, infine la ‘bilancia della ragione’, esemplificata dalle capacitàdeduttive del sillogismo dimostrativo18. In ambito fisico la ‘teoria dellabilancia’ si traduce nel fatto che i corpi sono costituiti da una mescolanzadei quattro elementi, che, in condizioni di efficienza, mantengonouna giusta proporzione. Qualora questa proporzione venisse a mancare,l’equilibrio della ‘bilancia’ sarebbe turbato e si renderebbe necessarioun qualche intervento per ripristinarlo. Questa teoria, che tanta fortu-na ebbe nel pensiero arabo e anche in quello occidentale – soprattuttoin contesti alchemici e medici19 – ha le sue origini probabilmente nelpensiero del medico pitagorico Alcmeone di Crotone, ma era anchecondivisa e ripresa da Aristotele, sia nella spiegazione della costituzionedei corpi, sia a livello morale, nei suoi studi etici, ove lo Stagirita lautilizza per spiegare l’alternanza di piacere e dolore20.

18. Cfr. Y. MARQUET, La philosophie des alchimistes et l’alchimie des philosophes. Jabir ibnHayyan et les ‘Frères de la Pureté’, Maisonneuve&Larose, Paris 1988, p. 45.

19. Tra i pensatori arabi merita senz’altro di essere menzionato Jabir ibn Hayyan, la cuiteoria della Bilancia presenta molti punti in comune con quella dei Fratelli.

20. Cfr. Etica Nicomachea, VII.

Page 76: SCINTILLA - FAE

ANTONELLA DONINELLI

76 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 67-80, jan./jun. 2009

Per quel che riguarda i concetti fondamentali della cosiddetta Filoso-fia Prima, la presenza di Aristotele sembra essere persino più rilevante diquella neoplatonica. I Fratelli della Purità ripresero da Aristotele il concettostesso di sostanza con la sua definizione di “essere qualcosa di separato (cioèdi autosufficiente, capace di sussistere senza essere associato a qualcos’altro)e capace di ricevere le altre categorie (essere cioè sostrato di inerenza)”21.Anche gli Autori delle Epistole, come Aristotele, perseguivano il fine22 ditrattare della sostanza in quanto sostanza e del suo ruolo nella metafisica,come scienza dell’essere in quanto essere. Per questa ragione forse EmilFackenheim è arrivato ad affermare che nello studio dell’essere in quantoessere l’influenza di Aristotele è stata decisiva anche rispetto ad altre fonti,incluse quelle neoplatoniche:

there seems to be a simple realistic acceptance of the world inan Aristotelian sense, of the world in an Aristotelian sense, of aworld primarily conceived in terms of substance and accident,rather than in terms of an aprioric emanation-structure23.

III. L’interessante caso della generazione umana

Vorremmo concludere questa breve analisi dell’influenza diAristotele nelle Epistole dei Fratelli della Purità con l’esame del casodella generazione umana, mettendo in risalto, in particolare, comevengano ripresi dai Fratelli i due punti essenziali della prospettivaaristotelica: il passaggio della forma attraverso lo sperma e il ruolocentrale del calore e del sole nella generazione dell’embrione.

21. Cfr. Categorie 5, e i cosiddetti ‘libri centrali della Metafisica, in particolare il libro Z.

22. BAUSANI (L’enciclopedia..., op. cit.), ha ben evidenziato come le raccolteenciclopediche antiche, a differenza di quelle moderne e contemporanee, fosserocostruite su un progetto, mirante ad una certa finalità, come rispondessero - detto inaltri termini - a esigenze finalistiche.

23. E.L. FACKENHEIM, The Conception of Substance in the Philosophy of the Ikhwan as-Safa’ (Brethern of Purity), “Medieval Studies” 5, 1943, pp. 115-122; p. 116.

Page 77: SCINTILLA - FAE

IL “SIGILLO DEI FILOSOFI”

77Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 67-80, jan./jun. 2009

Secondo quello che Aristotele scrive ne La generazione degli animali,l’embrione umano è prodotto dall’unione dello sperma maschile e delresiduo sanguigno femminile. Entrambi sono classificati dallo Stagiritacome residui utili24 prodotti dal corpo in eccesso, e questa classificazionefunzionale sarà ripresa dai Fratelli della Purità che individuano proprionella produzione in eccesso di alcuni fluidi e nella conseguente necessitàdi espellerli – pena turbare l’armonia interna del corpo – uno dei motoriche muovono il desiderio sessuale25. Lo sperma è considerato, in virtùdel suo maggiore livello di calore, portatore della forma della specie,mentre il residuo femminile è chiamato prevalentemente a svolgere,nella generazione dell’embrione, una funzione materiale26. Laconservazione della specie e la trasmissione della forma da genitore agenerato, costituisce uno dei punti più importanti della teoria aristotelicadella generazione27: anche in questo caso ritroviamo il succo dell’analisiaristotelica nel pensiero dei Fratelli. Anche nelle Epistole viene espressoil concetto dell’importanza della riproduzione per la conservazione dellaspecie, conservazione possibile soltanto attraverso la trasmissione dellaforma da un individuo ad un altro. Scrive infatti Marquet:

L’appétit sexuel, renforcé aussi par l’amour de la femelle pour lemâle ou inversement, a pour but la reproduction et la conservationde l’espèce et du genre, ainsi que la conservation de leur formedans la matière, puisque l’individu est en perpétuel flux28.

24. Cfr. La generazione degli animali, I, 19 726b 9 - 727a 30.

25. “L’appétit sexuel consiste donc à se débarasser de ce trop plein d’humide. Bien sûr ilpeut s’accompagner d’amour: celui-ci provient d’une correspondance qui existe entreamant et objet aimé, comme entre le sens et la chose sensible; c’est donc une question dedosage du ‘tempérament des humeurs” MARQUET, La philosophie..., op. cit., p. 184.

26. Cfr. La generazione degli animali, I, 2.

27. Si tratta del principio di sinonimia, secondo il quale appunto il genitore, nel proces-so generativo, trasmette al figlio la sua forma-essenza specifica. Aristotele lo enunciachiaramente nel libro Lambda della Metafisica (1070a 4-5). Su questo punto e sullateoria aristotelica della generazione, più in generale, ci permettiamo di rinviare al nostro A.DONINELLI, Dal non-essere all’essere. Generazione naturale ed eternità del mondo nel “Degeneratione et corruptione” di Aristotele, Rubbettino, Soveria Mannelli 2006, p. 192.

28. MARQUET, La philosophie des Ikhwan..., op. cit., p. 188.

Page 78: SCINTILLA - FAE

ANTONELLA DONINELLI

78 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 67-80, jan./jun. 2009

Da quanto detto fino a questo punto è possibile ricavare chesostanzialmente in Aristotele e nel pensiero dei Fratelli della Purità c’èun forte accordo sulle modalità in cui avviene la generazione naturale,in particolare nel caso dell’essere umano29. Le tre cause appena esaminatecoincidono nei loro assunti di fondo: la causa materiale è datadall’unione di sperma e residuo mestruale, la causa formale dalla for-ma della specie all’interno della quale sta avvenendo la generazione, lacausa finale è la conservazione della specie attraverso la generazione diun nuovo individuo di quella stessa specie. Resta da esaminare la causaefficiente e risulterà, crediamo, particolarmente interessante osservarecome anche in quest’ultimo caso le due teorie sulla generazione umanarisulteranno essere sorprendentemente vicine, ancorché, nel casoposteriore – cioè nel caso dei Fratelli – risulti evidente la presenza dicommistioni concettuali successive ad Aristotele, quali il creazionismo– a proposito dell’infusione dell’anima individuale –, e l’influsso pro-gressivo degli astri sul temperamento del generato30.

La causa efficiente della generazione è per Aristotele il sole (celebree ad effetto la sua frase “In effetti un uomo lo generano un uomo e ilsole” che leggiamo in Fisica II, 2 194b 13). Questo in natura èriscontrabile tramite l’osservazione poiché fa parte dell’evidenza notarecome il calore del sole sia in grado di produrre l’accrescimento deicorpi sensibili, mentre l’assenza del calore del sole facilmente producail loro deperimento. In effetti, il sole ciclicamente si avvicina eciclicamente si allontana seguendo il suo moto apparente lungol’eclittica, il quale non essendo perfettamente circolare è causa unica didue fenomeni contrari, generazione e corruzione appunto. Nel casodell’embrione umano – come troviamo ampiamente illustrato ne Lagenerazione degli animali – Aristotele applica un’analogia tra il calore delsole e il calore dello sperma o meglio di quella sua componente

29. Si veda sulla generazione dell’embrione umano in Aristotele anche il nostro A.DONINELLI, Modelli di ragione nella ricerca di Aristotele sui principi primi delle scienzenaturali, “Bollettino filosofico”, 20, 2004, pp. 126-139.

30. Cfr. MARQUET, La philosophie..., op. cit., pp. 218-226.

Page 79: SCINTILLA - FAE

IL “SIGILLO DEI FILOSOFI”

79Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 67-80, jan./jun. 2009

fondamentale che negli scritti aristotelici troviamo indicata con il nome dipneuma, traducibile con aria calda, soffio caldo31. L’esatta natura del pneumanon è stata ancora precisata dagli studiosi, ma Aristotele ci dice chiaramenteche esso non è affatto simile ai corpi del mondo sublunare, ma è moltopiù simile ai corpi celesti. Si può quindi supporre che l’analogia pensata daAristotele potesse essere la seguente: come il calore del sole è ciò che producela generazione in natura, così il calore del pneuma è ciò che permette ilconcepimento dell’embrione umano, che avviene dunque per ‘cozione’,provocata appunto dal calore del pneuma32.

Il punto da notare è proprio quest’ultimo relativo alla capacità di‘cozione’, di cottura si direbbe con una terminologia nonfilosofica, dello sperma grazie al calore del pneuma. Qui si ritrova infattila forte somiglianza con quanto sostenevano i Fratelli della Purità,secondo i quali è il calore dello sperma che scalda e ‘cuoce’ l’umoresanguigno, rendendolo simile a latte cagliato e dandogli quindi unaconsistenza grumosa, quindi più spessa33, dalla quale si avvierà losviluppo dell’embrione.

La controprova della forte presenza della teoria aristotelica dellagenerazione nel pensiero dei Fratelli della Purità è questa breve sintesiche riporta Marquet sull’importanza del ruolo del sole nella generazionedella nostra specie.

D’autre part chaque espèce suit le cycle d’une planètedéterminée, qui transmet aussi les influences des signes duzodiaque; cette planète jouera un rôle particulièrement importantdans la formation de l’embryon; en ce qui concerne l’espècehumaine, c’est le Soleil34.

31. La generazione degli animali, 3 737a.

32. Si veda sul punto l’interessante saggio di M. MATTHEN, The Four Causes in Aristotle’sEmbriology, “Apeiron”, 22, 1989, pp. 159-169.

33. Cfr. MARQUET, La philosophie des Ikhwan..., op. cit., p. 219.

34. Ibid.

Page 80: SCINTILLA - FAE

ANTONELLA DONINELLI

80 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 67-80, jan./jun. 2009

Speriamo di essere riusciti a dare un contributo nella ricostruzionedelle influenze che la filosofia aristotelica ha esercitato sull’opera e ilpensiero dei Fratelli della Purità, che vivendo e operando a Bassora, sitrovavano in quella che fu la culla della filosofia araba di matrice greca.Non bisogna infatti tralasciare di ricordare che le prime traduzioni dalSiriaco all’Arabo avvennero proprio in quei territori35, che mostraronoquindi da subito una predilezione per la filosofia aristotelica36. I Fratellidella Purità sono spesso qualificati come ‘neoplatonici’, eppure le loroEpistole, capaci di abbracciare la totalità del reale seguono nel loroinsieme un andamento tipicamente aristotelico. Come lo Stagirita piùvolte nei suoi scritti si è preoccupato di indicare il cammino correttodella ricerca scientifica nel passaggio graduale da ciò che è più noto anoi (il dato concreto) a ciò che è più noto in sè, il dato astratto37, cosìi Fratelli mettono in pratica nella loro opera il precetto metodologicoaristotelico alla perfezione38. Precetto sicuramente distante da qualsiasiforma di platonismo o neoplatonismo.

35. La più celebre scuola di traduttori fu la ‘Casa della Saggezza’, a Bagdad, ove a partiredall’anno 830, prestarorno la loro opera celebri traduttori aristotelici, quale ad esempioil cristiano Hunain Ibn Ishaq (809-873), medico e fisico alla corte del califfo alMutawakkil.

36. Il patrimonio siriaco, di matrice cristiana e aristotelica, al quale attinsero i pensatoriarabi, costituiva un terreno fertilissimo sul quale sviluppare ulteriori speculazioni.

Scrive F. E. PETERS (Aristotle and the Arabs, NY University press - London UniversityPress, New York - London 1968, p. 39): “The fact remains thet the theology of theseSyrian thinkers was scholastic and therefore Aristotle-oriented, and thus the Arabscame into contact with a Semitic culture akin to their own which had an interest andfamiliarity with technical Aristotelianism (...) its technical equipment was sufficientlyadvanced and its enthusiasm was such that Arab Peripateticism could be erected onsolid and lasting foundation”.

37. E’ proprio l’incipit della Fisica, uno dei luoghi in cui Aristotele enuncia questoprincipio della sua metodologia (I, 1).

38. MARQUET, La philosophie des Ikhwan..., op. cit., p. 15: “...elles [les épîtres] sontcensées suivre une gradation conforme à la doctrine pédagogique des Ihwan et vontthéoriquement du concret à l’abstrait”.

Page 81: SCINTILLA - FAE

A VONTADE DE DEUS NA METAFÍSICA DE IBN GABIROL (AVICEBRON)

81Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 81-112, jan./jun. 2009

A VONTADE DE DEUS NAMETAFÍSICA DE IBN GABIROL

(AVICEBRON): UM PASSO ALÉM DOLOGOS FILONIANO?

Cecilia Cintra Cavaleiro de Macedo*

Resumo: Entre o modelo neoplatônico das emanações e a visãocriacionista apresentada pelas religiões monoteístas existe uma indis-cutível distância teórica, representada, fundamentalmente, pela inten-cionalidade da criação em contraposição às sucessivas emanações porsuperabundância. O impulso inicial à compatibilização destes doismodelos deveu-se fundamentalmente a Filon de Alexandria. Até mui-to recentemente, a maioria dos estudiosos negava veementemente apossibilidade de influência histórica direta das idéias de Filon sobre osneoplatônicos judeus medievais. Mais recentemente, suspeitas recaí-ram sobre o mito até recentemente inquestionável de que as obras dojudeu alexandrino tivessem sido preservadas unicamente pelas mãosdos cristãos. Neste artigo exploramos as semelhanças que algumas idéiasde Ibn Gabirol apresentam com as de seu antecessor alexandrino.

O neoplatonismo judaico

Entre o modelo neoplatônico das emanações e a visão criacionistaapresentada pelas religiões monoteístas existe uma indiscutível distân-

* Doutora em ciências da religião – PUCSP, e-mail: [email protected]

Page 82: SCINTILLA - FAE

CECILIA CINTRA CAVALEIRO DE MACEDO

82 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 81-112, jan./jun. 2009

cia teórica, representada, fundamentalmente, pela intencionalidade da cri-ação em contraposição às sucessivas emanações por superabundância.Muitos autores originários das três religiões abrahâmicas tentaram compa-tibilizar estes modelos, com maior ou menor sucesso. Se, ao pensarmosem neoplatonismo judaico, por um lado, encontramos somente algunspoucos autores medievais, com influência restrita, por outro lado, há quelembrar que isto significa falar também da primeira tentativa de incorpo-ração do platonismo no âmbito do monoteísmo abrahâmico.

Existe um lugar histórico definido para essa incorporação que,muito mais do que a uma ligeira influência na filosofia judaica medi-eval, conduziu a um processo que veio a marcar profundamente todaa elaboração medieval da relação entre fé e razão, ocorrida no seio dastrês religiões abrahâmicas. Esta influência se reflete em todo o esforçoda filosofia na Idade Média, ao menos até o século treze, a partir doqual a presença do Aristotelismo escolástico se torna dominante, ofus-cando a presença neoplatônica. Conforme Guttmann,

Aparecendo pela primeira vez no helenismo judaico, esse tipode filosofia, conquanto não haja produzido idéias originais, teve,não obstante, uma significação e uma influência de longo al-cance. A partir do helenismo judaico, passou ao cristianismo,foi transmitido ao Islã, de onde retornou, na Idade Média, aojudaísmo (GUTTMANN, 2003, p. 28).

O impulso inicial à compatibilização desses dois modelos deveu-se fundamentalmente a Filon de Alexandria, o qual, pela extensão equalidade da obra a ele atribuída, passa a nosso conhecimento como oprimeiro grande filósofo a tentar realizar esta conjunção de maneirasistemática, ainda que se refira a outros pensadores que o precederamnessa tentativa.

Até muito recentemente, a maioria dos estudiosos negava veemen-temente a possibilidade de influência histórica direta das idéias de Filonsobre os neoplatônicos judeus medievais. Mais recentemente, suspei-tas recaíram sobre a univocidade da transmissão interna ao pensamen-

Page 83: SCINTILLA - FAE

A VONTADE DE DEUS NA METAFÍSICA DE IBN GABIROL (AVICEBRON)

83Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 81-112, jan./jun. 2009

to judaico como um todo, abrindo portas a uma compreensão dife-renciada do que teria sido a formação filosófica dos judeus, especial-mente no Oriente, sob o domínio islâmico. Por outro lado, suspeitasrecaíram também sobre o mito até recentemente inquestionável deque as obras do judeu alexandrino tivessem sido preservadas unica-mente pelas mãos dos cristãos.

Estas suspeitas justificam os paralelos, semelhanças e referências apon-tados entre este primeiro neoplatônico judeu e seus correligionários medi-evais. Ainda que seja uma transmissão de difícil demonstração histórica,seu modelo de (neo)platonismo apontou as linhas que irão acompanhar afilosofia mística judaica, no mínimo até a Kabbalah. Ao considerarmosque Ibn Gabirol foi não somente um autor de origem judaica, mas umjudeu praticante, provavelmente um rabino, altamente versado nas Escri-turas e na religião, como atestam suas poesias e os comentários acerca deseus ensinamentos exegéticos, acreditamos que vale a confrontação de seumodelo metafísico com o de seu predecessor, ainda que a conexão comfontes históricas não possa ser assegurada.

Após a obra de Filon de Alexandria, o neoplatonismo judaico de-saparecerá, ou permanecerá submerso nas tradições, por aproximada-mente oito séculos. Depois deste intervalo – dominado pelo Kalamjudaico, no qual sobressaem-se as interpretações racionalistas das escri-turas como as de Saadia Gaon1 e Samuel Ibn Hofni2 – a influência

1. Saadia Gaon, ou Rabi Saadia ben Joseph (882 a 942). Também conhecido comoSaid al-Fayyumi. Nascido no Egito, foi Gaon da Academia Rabínica de Sura no Iraque.Foi considerado o príncipe dos talmudistas de sua época; escritor prolífico, sobretudoem árabe, seu texto filosófico “Fé e razão” (Emunot Ve-Deot), defende que a razão e aReligião não são excludentes, dedicando-se a justificar a fé através da razão. Outrasobras suas são os comentarios sobre o “Sefer Yetzira”, o “Livro das crenças e convicções”(Kitab al-Amanat w´a-I´tiqadat). Ver S. L. Skoss, Saadia Gaon, the Earliest HebrewGrammarian (1955); H. Malter, Saadia Gaon: His Life and Works (1969); e sua obrafundamental, Saadia Gaon, “The Book of Beliefs and Opinions”. Tradução de SamuelRosenblatt. Yale University Press, 1989.2. Morto em 1034, foi outro Gaon de Sura, teve marcante influência da tradição doKalam Mutazili. Elabora uma interpretação racional da Bíblia, atacando a crença namagia e na astrologia. Ver Samuel Ben Hofni Gaon and His Cultural World: Texts andStudies. Brill Academic Publishers, 1997. Tradução para o inglês de David Eric Sklare.

Page 84: SCINTILLA - FAE

CECILIA CINTRA CAVALEIRO DE MACEDO

84 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 81-112, jan./jun. 2009

neoplatônica ressurge na expressão medieval do médico e filósofo IsaacIsraeli (832-932). Contemporâneo de Saadia, Israeli retoma o neopla-tonismo, especialmente em suas obras filosóficas O livro das definiçõese O livro dos elementos.

A filosofia judaica, em uma extensão até maior do que a islâmica,não permitiu uma divisão temporal estrita entre tendências fi-losóficas alternantes. O primeiro filósofo judeu, Isaac Israeli,era um neoplatônico, enquanto que seus contemporâneos maisjovens, Saadia e David Al-Moqames eram seguidores do Kalam(GUTTMANN, 2003, p. 82).

Ao que parece, Israeli segue as idéias de Filon na maior parte de seusescritos. Israeli foi visto por muitos dos pensadores posteriores do judaís-mo como mais um historiador do que propriamente um filósofo originale, segundo comentadores, não apresenta nem a audácia de seu antecessorFilon nem o brilhantismo original de seu sucessor que será Salomão IbnGabirol. Ficou mais famoso por suas obras no âmbito da medicina doque propriamente pela sua filosofia. Não encontrando seguidores imedia-tos fora do círculo íntimo de seus discípulos, seu pensamento parece tersido pouco discutido durante o século seguinte.

Já no século onze, vemos um processo de transformação marcantena filosofia judaica, o qual delinea um modelo que irá dominar opanorama daquele século e do seguinte. Cabe ressaltar que este deslo-camento na filosofia judaica acompanha pari-passu o desenvolvimen-to do pensamento no mundo islâmico. Conjuntamente ao desloca-mento geográfico do pensamento filosófico judaico do Oriente Mé-dio para as terras de Al-Andalus, a Espanha islâmica, há o deslocamen-to do referencial do Kalam para o neoplatonismo, cujo maior expoen-te será sem dúvida Salomão Ibn Gabirol. Podemos citar outros nomesde expressão nos meios judaicos espanhóis que, de algum modo, fo-ram influenciados pelo neoplatonismo, como Ibn Paquda ou YehudaHa-Levi. Entretanto, além de serem ambos posteriores a Ibn Gabirol,o primeiro, Ibn Paquda pode ser considerado predominantemente

Page 85: SCINTILLA - FAE

A VONTADE DE DEUS NA METAFÍSICA DE IBN GABIROL (AVICEBRON)

85Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 81-112, jan./jun. 2009

como um autor ético, cujas idéias se encontram profundamente com-prometidas com as regras religiosas judaicas e apresenta uma propostaascética, mais influenciada pelo sufismo do que propriamente por umafilosofia de cunho racional; o segundo, Ha-Levi, é muito mais umpoeta nacionalista e apologeta religioso, que se utiliza dos conheci-mentos filosóficos de que dispõe para combater a prática da especula-ção filosófica pura e defender a centralidade da religião, em sua obraHa-Kuzari. Nenhum dos dois possuiu a originalidade e versatilidadeque são apresentadas na obra filosófica de Gabirol, aliadas ao seuvirtuosismo místico expresso na poesia religiosa que, na época, e emseu meio, não encontraram paralelo.

Gabirol seguiria na mesma tendência geral de compatibilização doneoplatonismo com a religião bíblica, ainda que em seu texto propria-mente metafísico não se utilize de referências religiosas. A sua obrafilosófica fundamental é a “Fonte da Vida”. Escrita originariamenteem árabe, como era padrão entre as obras cultas dos intelectuais daépoca, o original foi irremediavelmente perdido, e, com a perda, aidentidade do autor foi apagada. Conhecemos atualmente seu pensa-mento filosófico através de duas traduções3: o Fons vitae Latino, queacredita-se ser uma tradução completa e fiel ao original, confeccionadapor Juan Hispano e Domingo Gonzáles (Gundissalinus) e uma com-

3. A primeira é o Fons Vitae Latino, que seria supostamente uma tradução completa fielao original, confeccionada por Juan Hispano e Domingo Gonzáles (Gundissalino ouGundisalvo). Esta tradução, de uma obra atribuída a um certo Avicebron ou Avencebrol,ofereceu aos autores latinos a possibilidade de contato com o pensamento do autor,ainda que de sua origem religiosa nada se soubesse. Acreditou-se, nos séculos seguintes,que se tratava de um autor de origem árabe convertido ao cristianismo. A outra via, pelaqual o livro foi divulgado foi uma compacta tradução hebraica do livro, denominadaLiqqudim min Sefer Mekhor Hayim, preparada por Shem Tov Falaqera. Nessa edição, aestrutura de perguntas presente na versão latina, apresentada em forma de diálogosdiscípulo-mestre foi removida, sendo preservada apenas a explicação concisa do autor.Mas, ainda assim, Falaqera afirma ser sua publicação não um mero resumo, mas umaabreviação, contendo o extrato do pensamento do autor, totalmente fiel às palavras dolivro original.

Page 86: SCINTILLA - FAE

CECILIA CINTRA CAVALEIRO DE MACEDO

86 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 81-112, jan./jun. 2009

pacta seleção hebraica de passagens do livro, denominada Liqqudimmin Sefer Mekhor Hayim e realizada por Shem Tov Ibn Falaqera. Gra-ças a estas fontes paralelas, Salomão Munk em 1847 – que traduz aofrancês o texto hebraico de Falaqera – pôde constatar a identidade doautor, apontando a coincidência entre ambos os textos, e devolvendo aSalomão Ibn Gabirol sua glória de ter passado para a história, como

um dos filósofos mais lidos durante o século XIII, ao menos pela esco-

lástica cristã.

A obra “A fonte da vida” compõe-se de cinco livros ou tratados. O

livro primeiro, além de apresentar explicações preliminares sobre a im-

portância do estudo e seu objetivo, trata do que se deve entender sobre

matéria e forma em geral. O livro segundo trata, em particular, da

matéria revestida da forma corporal, ou, como o autor denomina, da

substância que suporta a corporeidade do mundo. No livro terceiro,

estabelece a existência das substâncias simples, que seriam as interme-

diárias entre o primeiro agente ou eficiente, ou seja, Deus e, no caso

específico, sua vontade, enquanto potência criadora, e o mundo sensí-

vel e corpóreo. No livro quarto, demonstra que essas substâncias tam-

bém são compostas de matéria e de forma, e no livro quinto trata da

matéria universal e da forma universal, das quais todo o mundo sensí-

vel e inteligível é composto, e da relação daquelas com a vontade e

com Deus.

Esta obra filosófica, utilizada e comentada por diversos autores

latinos, que, em parte desconheciam sua origem, acabou por deixar

profundas marcas, tanto entre seus adversários, como Alberto Magnoe S. Tomás de Aquino, quanto naqueles que acolheram seu pensamen-to, especialmente os franciscanos. Alberto Magno denuncia em Deintellectu et intelligibili, a filosofia de Avicebron como odiosa e repug-nante (apud. De LIBERA, 1998, p. 203).

Page 87: SCINTILLA - FAE

A VONTADE DE DEUS NA METAFÍSICA DE IBN GABIROL (AVICEBRON)

87Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 81-112, jan./jun. 2009

Tomás de Aquino dedica-se à refutação da obra de Ibn Gabirol,retornando umas quinze vezes4, em seus escritos, às questões das quaisveementemente discordou. A crítica do Doutor Angélico gira em tor-no de três questões fundamentais: a primeira é a noção de hilemorfismouniversal que, segundo S. Tomás, Ibn Gabirol teria sido o primeiro adefender. Tomás dedica o final de seu livro De spiritualibus creaturis àrefutação das idéias do enigmático Avicebron. Temos também umasevera crítica em De ente et essentia, no qual se dedica a refutar ohilemorfismo universal, que é incompatível com sua própria filosofiaque, calcada em Aristóteles e Avicena, defende, para a inteligibilidadedas formas, é preciso que “em qualquer substância inteligente haja to-tal imunidade de matéria” (TOMÁS DE AQUINO, 1995, p. 36).

Por outro lado, “a escola franciscana posterior admitiu com entu-siasmo nosso autor, especialmente no que se refere ao voluntarismocósmico e divino e ao hilemorfismo aplicável a todos os seres” (LOM-BA FUENTES in IBN GABIROL, 1990, p. 35). Sua influência ésentida de maneira forte. Além de se expressar na obra dos própriostradutores do Fons vitae5, alcança notória importância em Alexandrede Hales, Guilherme de Auvergne, São Boaventura, Duns Scotus, en-tre outros. Guilherme de Auvergne cita o trabalho de Gabirol sob oTítulo “Fons Sapientiae”. Acredita que Gabirol seja um cristão e refe-re-se a ele como unicus omnium philosophantium nobilissimus. Alexan-dre de Hales e São Boaventura aceitaram a doutrina do hilemorfismouniversal, entendendo que as substâncias espirituais são compostas de

4. Em De ente et essentia, De spiritualibus creaturis, De substantiis separatis, Quodlibetaetc. Para todos os trechos em que S. Tomás critica as idéias de Ibn Gabirol, verBRUNNER, F. Platonisme et Aristotelisme, La critique d’Ibn Gabirol par Saint ThomasD’Aquin. Louvain: Publications Universitaires de Louvain, 1965, p. 36.

5. Juan Hispano, Tractatus de anima; Domingo Gundisalvo, Liber de processione mundie Liber de unitate.

Page 88: SCINTILLA - FAE

CECILIA CINTRA CAVALEIRO DE MACEDO

88 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 81-112, jan./jun. 2009

matéria e forma6. “Boaventura provavelmente absorveu essa doutrinaatravés de seu mestre, Alexandre de Hales. Boaventura parece não sereferir diretamente a Avicebron ou à Fonte da Vida” (QUINN, 1973,p. 159). No seio do judaísmo, somente sua obra poética terá sidoconhecida após sua morte, tendo sido alguns de seus cânticos incorpo-rados à liturgia sefaradi do Yom Kipur e Hosh Hashana, e até os dias dehoje permanecem.

Filon e Gabirol

No presente texto, partimos de uma breve explanação de algumasdas idéias expostas por Filon de Alexandria, por crer que há um fiocondutor iniciando naquelas idéias, que nos dirige a Ibn Gabirol, ain-da que existam também momentos no qual ele se parte, e nos quaisIbn Gabirol demonstra sua superioridade explicativa. A questão davontade é, sem dúvida, uma das mais fortes, assim como o são tam-bém as questões formuladas por Gabirol acerca da matéria e da formauniversais e conseqüentemente da origem mesma da matéria. Adverti-mos que não é nossa intenção apresentar aprofundadamente as idéiasde Filon, tal como ele as apresenta, mas unicamente apontar um cami-nho de investigação da propagação de certas doutrinas no seio do juda-ísmo medieval.

Filon não vê incompatibilidades entre o conhecimento propostopela filosofia e pelas Escrituras. E isso depende tanto de sua posturacom relação a uma, quanto com relação às outras. Da filosofia, admitesuas maiores influências “por ter um (gosto) especial pelo platonismoe pitagorismo” (MARTIN, 1907, p. 42), ainda que possuísse profun-do conhecimento da problemática da filosofia grega desde os pré-

6. Sobre a influência que a obra de Ibn Gabirol exerce nos autores cristãos, ver. H.Adler, Ibn Gabirol and His Influence upon Scholastic Philosophy, London, 1865.

Page 89: SCINTILLA - FAE

A VONTADE DE DEUS NA METAFÍSICA DE IBN GABIROL (AVICEBRON)

89Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 81-112, jan./jun. 2009

socráticos, sendo admirador, sobretudo, de Parmênides e de Empédocles(REALE, 1992, p. 221). Quanto às Escrituras, defende que devem serlidas partindo-se de uma interpretação alegórica, na qual aquilo queestá escrito não pode ser entendido de modo literal ou histórico, masdentro de um enfoque muito especial. Para ele, as escrituras em sicompõem-se de corpo e de alma (MARTIN, 1907, p. 38). Comoexemplo, temos sua afirmação de que “é de fato absurdo acreditar queo mundo nasceu em seis dias, ou de modo geral, dentro do tempo”(BREHIER, In PHILON, 1909, p. 5). Muito além de um mero re-curso eventual, “o alegorismo constitui o verdadeiro traço espiritual denosso autor” (REALE, 1992, p. 224). Toda a leitura que Filon nosfornece das escrituras está baseada neste referencial alegórico, e oferecemostras contundentes de sua visão mística ou iniciática em inúmeraspassagens. Podemos selecionar como exemplo sua interpretação da duplacriação em Gênesis 2-7, na qual existiriam “dois gêneros de homens: ohomem celeste e o homem terrestre”, ou ainda, que estes “homens”participariam de níveis de realidades diferentes na criação. “O homemceleste, porquanto é nascido à imagem e semelhança de Deus, nãopossui participação na substância corruptível, e em geral, terrestre”(PHILON, 1909, p. 23).

Com relação a esta prática exegética mística, comum também emambientes diversos no âmbito da cultura helênica, o próprio Filonaproxima sua interpretação alegórica das Escrituras à iniciação mistérica,favorecendo o excesso de insistência por parte de alguns comentadoresquanto à sua relação com os mistérios helênicos7. Mas é ele mesmoquem nos fornece as informações acerca de suas fontes, revelando alarga utilização da leitura alegórica interna aos ambientes judaicos:

Sobre a existência de exegeses alegóricas da Bíblia nos ambien-tes judaicos é o próprio Filon quem nos informa, embora não

7. Ver por exemplo, GOODENOUGH, E. R., By Light, Light, New Haven, 1935.

Page 90: SCINTILLA - FAE

CECILIA CINTRA CAVALEIRO DE MACEDO

90 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 81-112, jan./jun. 2009

com as precisas e circunstanciadas notícias que nós modernosdesejaríamos. Ele nos fala, de fato, entre outras coisas, de “ho-mens inspirados” aos quais ele teria escutado, que interpreta-vam a maior parte das coisas contidas na Bíblia como “símbolosvisíveis de coisas invisíveis”, “símbolos exprimíveis de realidadesinefáveis”.Filon atribui, ademais, à comunidade dos essênios, que vivia naPalestina, a prática da meditação da maior parte das passagensda Bíblia, justamente, mediante símbolos. Também da comu-nidade hebraica dos Terapeutas, que se tinha estabelecido noEgito, Filon diz que praticava sistematicamente a interpretaçãoalegórica, e que se comparava o sentido literal ao corpo do servivo e o alegórico à alma (REALE, 1992, p. 227).

Apesar do destaque para o método alegórico, Filon não descartacompletamente a validade da leitura literal das Escrituras. O sentidoliteral tem sua função, mas situa-se num plano inferior, enquanto quea interpretação alegórica é capaz de atravessar as barreiras e tocar a almada verdadeira mensagem mosaica, aquilo que foi realmente sua inten-ção transmitir.

Embora nenhum comentário propriamente exegético de Gabiroltenha chegado até nossos dias, o que faz com que ignoremos se houveou não alguma obra na qual o autor se dedicasse totalmente à exegese,ou se as referências posteriores são extraídas de sua poesia religiosa ouensinamentos orais, podemos afirmar, pelas citações e comentários deseus seguidores, que a exegese alegórica é precisamente um dos maisfortes pontos de contato entre as idéias de Filon e de Ibn Gabirol. Estalinha de interpretação das Escrituras teria prosseguido, provavelmente,na expressão medieval do médico e filósofo Isaac Israeli (832-932)antes de chegar a Gabirol. Alguns trechos preservados especialmenteem Ibn Ezra não deixam dúvidas quanto à força de sua interpretaçãoalegórica que, além de utilizá0ka amplamente, ele parecia também aensinar (IBN EZRA, 1999). A mais surpreendente entre estas seleçõesde Ibn Ezra é uma interpretação da história do paraíso, curiosamente ecuidadosamente elaborada, que pode ser entendida como um exem-

Page 91: SCINTILLA - FAE

A VONTADE DE DEUS NA METAFÍSICA DE IBN GABIROL (AVICEBRON)

91Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 81-112, jan./jun. 2009

plo clássico da introdução de idéias filosóficas no texto bíblico. Duasdas citações de Ibn Ezra – referentes a comentários sobre o Gênesis3:21 e Números 22:28 – são trechos que, a alguns comentadores,parecem indicar uma certa simpatia de Gabirol com relação à interpre-tação racionalista das escrituras proposta por Saadia. Por outro lado,vale levantar a possibilidade de que, nem tão alinhado com a escola deSaadia, apesar de nutrir por este exegeta imensa admiração, pudesseestar muito próximo de uma linha de interpretação ainda mais alegó-rica, seguindo os passos de Aristóbulo e Filon, como podemos suporpor indicações presentes em seus poemas e em sua filosofia nitidamen-te neoplatônica.

A própria indicação de Abraham Ibn Ezra, no seu comentário aoGênesis, sugere que Ibn Gabirol estaria “inaugurando” uma nova óticana exegese das escrituras, desconhecida daquele autor. Isso parece bemclaro quando escreve:

Vejam: agora lhes farei descobrir por alegoria o mistério do jar-dim, dos rios e das túnicas. E não encontrei este mistério emnenhum dos grandes, além de em R. Salomoh Ibn Gabirol, debendita memória, já que era um grande sábio no mistério daAlma.O Éden é o (mundo) superior; e o jardim está repleto de mul-tidões como se fossem plantas. O rio é como a mãe de todos oscorpos; os quatro braços são os fundamentos. O homem é oracional que impõe os nomes. Eva, conforme seu significado, é aalma animal; a serpente é a alma concupiscente, e seu nomeprova que é da raiz “ki-nahesh yenahesh” (Gn, 44,15). A árvoredo conhecimento é o prazer sexual e do jardim procede a suaforça. Podes ver que a (alma) vegetativa está no pó, e a descen-dência da mulher esmagará a cabeça que se levante; e o final da(alma) animal é o início da vegetativa. As túnicas de pele sãointerpretadas como sendo o corpo (IBN EZRA, 1999,Commentary on the Pentateuch: Genesis).

Ao comentar a obra de Ibn Gabirol, muitos estudiosos seguem amesma linha: defendem a visão da obra do autor como um todo,

Page 92: SCINTILLA - FAE

CECILIA CINTRA CAVALEIRO DE MACEDO

92 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 81-112, jan./jun. 2009

sustentando que, para Gabirol, não há nem pode haver contradiçãoentre suas posturas religiosas e sua filosofia. Pois, para ele não há nempode haver contradição entre fé e razão. Aponta que essa discussãonem sequer é mencionada, ao contrário do que fariam muitos outroscorreligionários seus nos séculos seguintes. “Para ele é simplesmenteevidente que não existe problema algum entre elas, e não se colocasequer em questão o fato de que o Deus da Bíblia e o dos filósofos sejaum só” (SÁENZ BADILLOS, 1992, p. 130). Já Rafael RamonGuerrero aponta que o fato de que “Ibn Gabirol fosse poeta para osjudeus e filósofo para os não judeus mostra a realidade de que a filoso-fia judaica foi a tentativa de compatibilizar uma fé exigente com aspretensões racionais de uma tradição filosófica” (GUERRERO, 2001,p. 260). Ainda segundo Sáenz-Badillos, os principais filósofos deSefarad escolheram o caminho da interpretação filosófico-alegórica,seguindo a trilha aberta por Schlomo Ibn Gabirol (SÁENZBADILLOS, 1992, p. 167).

Em sua tentativa de compatibilização, Filon descreve a criaçãocomo obra de Deus uno, eterno, imutável, e ser incorpóreo. Essa se dáatravés do verbo (logos), que é ente incorpóreo, assim como as potên-cias – pois afirma existirem potências junto a Deus, das quais temoscomo relevantes e mais próximas a bondade e o poder – e as idéias. Aspotências principais seriam em número de cinco, mas o logos não seencontra entre elas. O logos é, para Filon, o intermediário entre Deus ea criação. As almas são também realidades incorpóreas, e todas elasdesempenham – em diferentes níveis – papéis bem definidos enquan-to causa e fundamento para o sensível. Assim, Filon inverte a perspec-tiva comum entre as escolas de pensamento helenísticas, ao assentar osensível no incorpóreo, afirmando que o primeiro só existe porque éproduzido, sustentado e mantido pelas realidades incorpóreas:

Justamente no incorpóreo é indicada a Filon a verdadeira causado corpóreo, e, por conseqüência, invertendo a perspectiva co-mum de todas as escolas helenísticas, ao corpóreo é negada toda

Page 93: SCINTILLA - FAE

A VONTADE DE DEUS NA METAFÍSICA DE IBN GABIROL (AVICEBRON)

93Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 81-112, jan./jun. 2009

autonomia ontológica, ou seja, toda capacidade de dar razão a simesmo. As conquistas metafísicas de Platão são, assim, não sóplenamente recuperadas, mas, como veremos, ulteriormentefecundadas e desenvolvidas em função de alguns elementos es-senciais extraídos da Escritura (REALE, 1992, p. 235).

Podemos considerar esta como sendo a segunda semelhança fun-damental, que pode ser definida, nos moldes Gabirolianos que já uti-lizam a linguagem aristotélica, como a causa final da criação. Ibn Gabirolrepete e reforça diversas vezes em sua obra que a criação existe somentepela vontade de Deus e através das realidades inteligíveis8.

M. – Posto que o movimento pelo qual todas as coisas são pro-duzidas está ligado à vontade, é necessário que o movimentodas coisas dependa do movimento da vontade e o repouso dascoisas, ao repouso da vontade.D. – E o que se deduz disso?M. – Disso se deduz que o repouso e o movimento na geraçãodo homem e dos demais seres são causados pela ação da vontade(IBN GABIROL, Fons vitae, I, 3).

Conjuntamente à incorporeidade de Deus, são resgatadas tambéma sua absoluta simplicidade, incorruptibilidade e transcendência; é ouno absoluto ao qual se opõe a criação com sua necessária multiplici-dade. “Ele é o lugar9 para si próprio, ele é pleno de si mesmo, basta a simesmo, é ele quem preenche e contém todas as outras coisas, que sãopobres, solitárias e vazias, sem ser, por sua vez, contido por nada, sen-do ele, o uno, e o todo” (FILON, Legum Allegoriae, I, 44). Maisadiante faz afirmações acerca da criação do homem e da mulher, quepodem ser estendidas à origem da diversidade e multiplicidade dascoisas em comparação com a absoluta simplicidade de Deus:

Porque é bom que somente o uno esteja só; e Deus, sendo úni-co, é uno em si mesmo e nada é semelhante a Deus; assim por-

8. Observe-se que aqui o termo “incorpóreo” é substituído na obra de Gabirol por“inteligível”, mantendo, porém o mesmo significado.

9. Observe-se desde aqui a utilização do termo lugar, paralela em ambos os autores.

Page 94: SCINTILLA - FAE

CECILIA CINTRA CAVALEIRO DE MACEDO

94 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 81-112, jan./jun. 2009

que é bom que o ser seja uno, já que ao uno se refere o bem, nãopoderia ser bom que o homem ficasse só. (...)Deus é uno e único, não é um composto, é uma natureza simples,enquanto cada um de nós e todas as outras coisas que foram gera-das são múltiplas. Eu, por exemplo, sou muitas coisas: alma, corpoe na alma, a parte não-racional e a parte racional, e depois, nocorpo, quente e frio, pesado ou leve, seco ou úmido. Ao invés,Deus não é um composto nem é constituído de muitas partes,mas é isento de mistura com outro. De fato, se algo se acrescentas-se a Deus, deveria ser superior, ou inferior, ou igual a ele. Mas nadahá que seja igual ou superior a deus e nada que lhe seja inferiorpode acrescentar-se a ele; do contrário, ele seria diminuído; mas seisso fosse possível, ele seria também corruptível, o que não é nemlícito pensar (FILON, Legum Allegoriae, II, 2-3).

As assim denominadas realidades incorpóreas, ou idéias incorpó-reas são, para Filon de Alexandria, paradigmas que servem de causaexemplar para as realidades corpóreas, “ou seja, o modelo arquetípicode todas as qualidades essenciais, segundo o qual todas as coisas rece-bem forma e medida” (Legum Allegoriae, I, 44). Pensamento seme-lhante encontra-se em Ibn Gabirol, com a função arquetípica das subs-tâncias inteligíveis em relação às realidades sensíveis, às quais, pelo fatode serem reflexos daquelas realidades superiores, servem de imagempara alcançarmos o conhecimento das realidades mais elevadas:

Como tudo o que possui o ser no extremo inferior é provenientedo mais elevado, tomaremos como regra que cada coisa que en-contrarmos no extremo inferior deve ser relacionada com o quese encontra no extremo superior, porque o inferior é imagem dosuperior, e as coisas que provêm de outras são imagens daquelasdas quais provêm. Por isso, posto que o inferior descende dosuperior, é preciso que seja a imagem do superior (IBNGABIROL, Fons vitae, II, 7).

Pelo que se depreende de seu próprio texto, a afirmação filonianada existência das “idéias incorpóreas” foi bastante criticada e combati-da. Se partirmos da possibilidade de que Ibn Gabirol tenha efetiva-mente se baseado em Filon, e que suas “substâncias espirituais” sejam

Page 95: SCINTILLA - FAE

A VONTADE DE DEUS NA METAFÍSICA DE IBN GABIROL (AVICEBRON)

95Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 81-112, jan./jun. 2009

de algum modo equivalentes às idéias incorpóreas, no sentido de cons-tituírem um “cosmo inteligível”, talvez isso por si só justifique a longae detida explanação das demonstrações lógicas da existência das subs-tâncias espirituais à qual ele se dedica tão acirradamente no livro tercei-ro do Fons vitae.

A doutrina das potências de Filon é considerada um tanto confu-sa, apresentando um misto de criacionismo e emanacionismo que seugênio filosófico não foi capaz de superar. Questões como a procedên-cia da matéria primeira jamais foram claramente explicitadas por ele.Afirma que “a matéria de todas as coisas é sem forma. Deus lhe dáformas...” (apud. MARTIN, 1907, p. 73), o que levaria a uma con-cepção de que a matéria não provém de Deus, mas somente as formas,ao mesmo tempo em que não explica a origem da matéria.

Para Gabirol, matéria e forma são universais, sendo delas compos-ta toda a realidade criada, seja corpórea ou incorpórea. Somente Deus(e a vontade/logos que lhe é inerente) foge desta composição, enquantoessência primeira. A vontade divina é a intermediária entre Deus e arealidade criada enquanto causa eficiente. Dado que a matéria e a for-ma não podem derivar diretamente de algo que não lhes seja seme-lhante – no caso, de Deus –, derivaria então deste intermediário. “Arazão é que tudo o que é criado necessita de uma causa e algum inter-mediário entre eles; assim, pois, a causa é a essência primeira, aquiloque é criado, a matéria e a forma, e o intermediário, a vontade” (IBNGABIROL, Fons vitae, I, 7). Esta estrutura de intermediação é repeti-da inúmeras vezes durante o texto, sendo aplicada a tudo o que é cria-do, ou existe. Cabe ressaltar que o pensamento de Gabirol não semovimenta jamais através de relações entre duas realidades, mas sem-pre entre três: as duas que se quer demonstrar e a intermediação entreelas. Assim ocorre desde sua explanação sobre espírito e corpo, comintermediação da alma, até a relação entre Deus e o mundo – entendi-do enquanto forma e matéria unidas na criação – na qual a vontade é a

Page 96: SCINTILLA - FAE

CECILIA CINTRA CAVALEIRO DE MACEDO

96 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 81-112, jan./jun. 2009

intermediação. Essa explicação se estende por tudo o que há entre eles,sendo o mesmo modelo aplicado à relação entre vontade e matéria,por exemplo, na qual a forma seria o intermediário entre elas.

Os conceitos de forma e matéria assumem, no livro V, uma signi-ficação mais geral, funcionando como pólos opostos – aquilo que su-porta e aquilo que é suportado – que se estendem por toda a criação.Matéria e forma são vistas enquanto idéias, encaixando-se na estruturaprecedente e entendidas sempre uma em relação à outra. “É precisoque o inferior seja matéria hílica do superior, pois o superior atua so-bre o inferior. Por esse motivo, os sábios só chamaram realmente for-ma, entre as substâncias, à inteligência primeira, à qual denominaramintelecto agente” (IBN GABIROL, Fons vitae, V, 19). Desse modo,forma e matéria procedem de Deus, mas a matéria só éontologicamente possível através da forma que, por sua vez, torna-sepossível através da vontade. E mais, a matéria existe em potência naforma, bem como a forma, em potência na vontade. Portanto, a ma-téria, ainda que num grau inferior, provém também da vontade. Ain-da que, para Gabirol, a matéria possa ser definida enquanto privação enecessidade, uma vez que adquire o ser somente a partir de seu encon-tro com a forma, que é a intermediação entre ela e a vontade, ele expli-ca ao discípulo o que ele denomina de “a visão dos filósofos” de que amatéria seria possibilidade. Mesmo enquanto privação e necessidade, enão possuindo o ser em ato, a matéria, entretanto, possui o ser empotência, sendo então possibilidade frente à forma que lhe confere oser atual. Mas sublinha que matéria é possibilidade somente se forvista sob esse ângulo, e não em si mesma, pois em si, ela seria privação.

Gabirol se recusa a definir a matéria universal e a forma universal,uma vez que, para ele não há definição possível, posto que não hásobre elas incidindo qualquer gênero que se apresente como princípiopara sua definição. Somente podemos saber que elas existem e, é pos-sível descrevê-las através das suas propriedades. Assim, a descrição pro-

Page 97: SCINTILLA - FAE

A VONTADE DE DEUS NA METAFÍSICA DE IBN GABIROL (AVICEBRON)

97Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 81-112, jan./jun. 2009

posta é a seguinte: “Imagina que a essência da matéria é uma virtudeespiritual, que existe em si e carece de forma. E imagina que a essênciada forma é luz que sobrevêm, que dá a tudo aquilo em que está apropriedade e o conceito de espécie e de forma” (IBN GABIROL,Fons vitae, V, 4). Numa outra parte de sua obra, Gabirol assim descre-ve a matéria universal: “é uma substância que existe em si, que sustentaa diversidade e que é uma em número; também é descrita como asubstância apta a receber todas as formas”. Por sua vez, a forma univer-sal seria “a substância que constitui a essência de todas as formas, des-crita também como sabedoria perfeita e luz puríssima” (IBNGABIROL, Fons vitae, V, 22).

Para Ibn Gabirol, as coisas se distribuem de acordo com quatrograus de existência: aquilo ao qual somente se pode perguntar “se é”,como Deus; o que se pode perguntar, além de se é, “o que é” como ainteligência; o que se pergunta também “de que natureza é”, como aalma; e o que se pode perguntar finalmente “por que é”, como a natu-reza e as coisas engendradas por ela. Além disso, as coisas podem dife-renciar-se por serem necessárias, possíveis ou impossíveis: “O necessá-rio é o uno, o autor, altíssimo e grande; o possível é tudo o que sofresua ação, o impossível é a privação de ser e sua ausência” (IBNGABIROL, Fons vitae, V, 24).

Assim, do mesmo modo, não se pode perguntar sobre a matériauniversal e a forma universal “por que são?”, pois nelas, o “por que são”(sua finalidade) e “o que são” (sua espiritualidade) estão unidos, emsendo elas unidades simples.

Também se diz da matéria primeira e da forma primeira e, emgeral de todas as substâncias simples, que só Deus, que as criou,é a causa de seu ser, pois a causa eficiente está fora da essênciado causado. Fora das substâncias simples nada há mais que aque-le, elevado e santo, que as criou; por isso se dizem eternas, de-vido à eternidade daquele que as criou (IBN GABIROL, Fonsvitae, V, 24).

Page 98: SCINTILLA - FAE

CECILIA CINTRA CAVALEIRO DE MACEDO

98 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 81-112, jan./jun. 2009

Pelo que foi exposto, notamos que a sustentação do primado davontade de Deus é, ao mesmo tempo, aquilo que torna possível aadequação do neoplatonismo ao pensamento judaico, bem como apeça-chave para solucionar o problema da matéria suscitado pela pro-posta filoniana. A matéria é definitivamente criada por Deus, e Deusestá – ainda que enquanto pálido reflexo na matéria que sofre sua ação –tanto na matéria universal primeira, quanto no mais baixo grau da matériacorpórea. Tudo aquilo que é criado (ou existe), o é através da vontade deDeus, ainda que os particulares difiram entre si pela forma limitante e pelagraduação ocasionada pelo distanciamento da fonte original. Mas, a natu-reza deste distanciamento pode não ser facilmente apreendida por umaleitura superficial, quando consideramos o caso da matéria universal. Ondehá matéria, há Deus, pois a privação total do ser e, conseqüentemente, suaausência, é impossível. Dessa maneira, a matéria pura – primeira e univer-sal – ainda que, na “ordem” da criação, proceda da forma universal que,por sua vez, procede diretamente da vontade, é a menos luminosa, pois sóé capaz de ser em potência. Torna-se capaz de ser em ato quando delimita-da pela forma. Em contraposição, a forma universal é “luz puríssima”,e semelhante ao ser.

Deus estaria em tudo, espalhando-se por toda a criação, sem exce-ção, através de sua vontade, ainda que seja “preciso que nas substânciasespirituais e corporais haja diversos graus de penetração e de impressãoda vontade, de acordo com a diversidade dessas substâncias em superi-oridade e inferioridade, em proximidade e distanciamento, em espiri-tualidade e em corporeidade” (IBN GABIROL, Fons vitae, V, 37).Mas, ainda que existam estes graus de imperfeição, o caminho naturalé a busca de graus cada vez maiores de perfeição. A prova disto, paraIbn Gabirol é precisamente o movimento primeiro da matéria emdireção à forma. Esta “se move primeiro para recebê-la, quer dizer,para obter a perfeição” (IBN GABIROL, Fons vitae, V, 26).

Page 99: SCINTILLA - FAE

A VONTADE DE DEUS NA METAFÍSICA DE IBN GABIROL (AVICEBRON)

99Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 81-112, jan./jun. 2009

Matéria e forma são limitadas e finitas. São limitadas, uma pelaoutra, em virtude de sua oposição. A matéria é finita, em um extremo,pela própria forma e pela vontade, e no outro, pelas categorias que sãoo limite da geração (IBN GABIROL, Fons vitae, V, 28). A forma, porsua vez, tem seu limite superior onde é criada, e obtém seu limiteinferior onde termina sua ligação com a matéria. “Por essa razão se dizque a inteligência é finita em seus dois extremos, no superior devido àvontade que está acima dela, e no inferior, devido à matéria hílica queestá fora de sua essência” (IBN GABIROL, Fons vitae, V, 28). Gabirolquestiona assim a infinitude das substâncias espirituais simples. Paraele, como a matéria hílica é densa e corpórea, existe uma distinção,estando, portanto, fora da essência da inteligência. Essa distinção é opróprio limite.

Vemos, portanto, que a vontade representa, assim, no sistema deGabirol, um papel semelhante ao do logos em Filon de Alexandria,com a vantagem de que ela não oferece riscos à total liberdade e onipo-tência de Deus pregada pelo monoteísmo judaico. Enquanto que ologos Filônico supostamente poderia ameaçar de certa forma a figurade Deus enquanto criador, a vontade gabiroliana alcança uma adequa-ção superior entre o sistema emanacionista neoplatônico e a lingua-gem bíblica, afastando a possibilidade de interpretações gnósticas, bemcomo reforçando o primado judaico da vontade de Deus como causada existência e duração da realidade criada. Certo é que, por vezes, eisso inclusive pode ser notado paralelamente também na sua poesia,Gabirol cita o intermediário sob a denominação de inteligência, o queaproxima mais ainda seu pensamento do logos Filônico. Na realidade,a diferença entre a vontade, a inteligência e a própria forma universal émuito difícil de ser estabelecida na obra de Gabirol. Em nossa leiturairíamos ainda além, questionando o papel do conceito de luz na obrado autor, dado que, ora ele é utilizado como pura metáfora, no senti-do da luz visível e reveladora das cores, ora o conceito, enquanto luz

Page 100: SCINTILLA - FAE

CECILIA CINTRA CAVALEIRO DE MACEDO

100 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 81-112, jan./jun. 2009

inteligível, assume uma espiritualidade alarmante funcionando comodescrição da forma universal, da vontade criadora e até, por vezes, ela éexposta como se fosse algo ainda mais elevado. Mas, esta questão fica-rá para um outro momento.

Gabirol revela sua teoria, oscilando entre a estrutura das emana-ções e a criação ex-nihil do imperativo judaico. Conforme Munk, oque Gabirol chama de criação, limita-se à matéria universal e à formauniversal: o que vem a seguir, tanto o mundo espiritual quanto omundo corpóreo, procede unicamente pela via da emanação sucessiva(MUNK, 1927). Uma vez que, como tantos que tentaram compati-bilizar as escrituras e a filosofia grega, ele sustenta, como Filon, a pos-tura de que a leitura das escrituras não pode se dar somente pela vialiteral, ao pensarmos sob esta contribuição já previamente assentadaentre os filósofos judeus, aliado ao princípio da vontade criadora, bemcomo ao estabelecimento de graus de perfeição nesta criação, a aparen-te contradição se desfaz imediatamente, tornando-se questão mera-mente lingüística. Por outro lado, a questão apontada por Munk deque existe necessariamente uma diferença entre o surgimento da maté-ria e da forma universais e o restante da realidade composta por elas, éinegável, o que pode ser atestado pela seguinte passagem:

Dado que uma coisa não é senão a partir de seu oposto, é neces-sário que o ser tenha surgido da privação, quer dizer, do não ser.Logo, a matéria procede da não-matéria e a forma da não-for-ma. Além disso, se a matéria e a forma tivessem surgido de umageração, como qualquer coisa natural procede do que é seme-lhante a ela, isso seria assim até o infinito (IBN GABIROL,Fons vitae V, 31).

Assim, Gabirol remove o problema que ficara na obra de Filon,sobre a origem da Matéria. Em Filon, Deus aparece como o doador deformas, mas a origem da matéria não fica bem explicitada. Para Gabirol,já que os seres espirituais e realidades incorpóreas também são com-postos de matéria, e a matéria e forma são igualmente universais e

Page 101: SCINTILLA - FAE

A VONTADE DE DEUS NA METAFÍSICA DE IBN GABIROL (AVICEBRON)

101Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 81-112, jan./jun. 2009

criadas, o problema já não mais existe. O Voluntarismo divino de IbnGabirol foi muito mais adequado à apropriação pelas religiõesabrahâmicas e correntes posteriores da filosofia (especialmente cristã)do que as abordagens precedentes.

A questão das potências de Deus é abordada por Gabirol tambémde uma maneira que remove os problemas apontados na obra de Filon:os poderes que Deus manifesta são inseparáveis dele mesmo; estãonele mesmo, e não são atributos suscetíveis de serem isolados, separa-dos da substância primeira. “A substância primeira (santificada seja!)forma com seu atributo uma verdadeira unidade sem distinção algu-ma”. E assim ocorre também com a vontade, que “é uma força divinaque cria a matéria e a forma e que as une, que está difundida desde omais alto até o mais baixo, como a alma está no corpo, e que elamesma move todas as coisas e as ordena” (IBN GABIROL, Fons vitae,V, 38). Ainda que a vontade “mova”, ela em si não conhece o movi-mento, pois age incessantemente fora do tempo e do espaço.

Assim, se podemos classificar o pensamento filosófico de IbnGabirol como neoplatônico – no sentido de apresentar um universoem que todos os seres são em virtude das formas de que cada um delesparticipa, por outro lado, sua cosmologia torna-se profundamentehebraica, no momento em que estrutura de formas é obra de um prin-cípio supremo denominado vontade. “Salomão ibn Gabirol, em seuMekor Hayim (Fonte da Vida), não somente defende uma teoriaemanacionista, mas sente-se capaz de manter o imperativo volitivo dopensamento judaico” (KATZ, 1992, p. 27). Para ele nada mais há quea realidade criada por matéria e forma, a essência primeira e um inter-mediário entre os dois, que é a vontade.

Quanto à questão da incompreensibilidade divina, Filon assim nosapresenta: “não é Deus que é incompreensível, é nossa inteligência quenão pode conceber a plenitude do ser Divino. Mas, Deus, se ele con-

Page 102: SCINTILLA - FAE

CECILIA CINTRA CAVALEIRO DE MACEDO

102 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 81-112, jan./jun. 2009

sentir, pode nos tornar capazes de vê-lo” (MARTIN, 1907, p. 55).Dentro do modelo monoteísta, a própria sabedoria não é algo quepertença ao homem, mas uma dádiva de Deus: Deus nos criou, eleproduziu também nosso conhecimento. “Oh, pelo único Deus verda-deiro! Eu não encontro nada de tão miserável quanto me estabelecernesse pensamento: eu compreendo (por mim mesmo), e eu exerço(por mim mesmo) a sensação. Minha inteligência é causa da intelecção...”(PHILON, Legum Allegoriae, II, I, 342). Para Filon, em outros termos, aExistência de Deus é compreensível, embora nem todos os homens che-guem a compreendê-la (como os ateus ou agnósticos), ou ao menos acompreendê-la livre de equívocos (como é o caso dos supersticiosos, dospanteístas, dos politeístas). Mas a essência de Deus é de impossívelcompreensão para o conhecimento humano.

Mais uma vez, podemos traçar um paralelo com o pensamento deIbn Gabirol, quando afirma que “ascender até a substância primeiraaltíssima é impossível; mas elevar-se àquilo que se encontra próximodela é extremamente difícil” (IBN GABIROL, Fons vitae, V, 35). Eexplica a razão da impossibilidade do conhecimento da essência deDeus por parte do homem:

D. – Por que é impossível o conhecimento da essência?M. – Porque está acima de tudo e porque é infinita.D. – Como então a alma pode conhecer a inteligência que estáacima dela?M. – Porque a inteligência é semelhante à alma e são contíguas,por isso pode conhecê-la; mas a essência primeira não é seme-lhante à inteligência e não mantém nenhuma relação com ela,posto que não se relaciona com nenhum dos compostos nemnenhum dos simples; e a relação dos simples para com a essên-cia, na impossibilidade de conhecê-la, é como a relação do com-posto com o simples, na impossibilidade de conhecê-lo (IBNGABIROL, Fons vitae, I, 5).

Para Filon, a possibilidade de conhecimento da existência de Deusse dá através de suas obras:

Page 103: SCINTILLA - FAE

A VONTADE DE DEUS NA METAFÍSICA DE IBN GABIROL (AVICEBRON)

103Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 81-112, jan./jun. 2009

As obras são sempre, de algum modo, indícios dos artífices. Quemde fato, à vista de estátuas ou quadros não pensou no escultor ouno pintor? (...) Assim, aquele que chega à cidade verdadeiramentegrande, que é esse cosmo, vendo os montes e as planícies repletosde animais e de plantas, as torrentes dos rios e dos riachos, a exten-são dos mares, o clima bem temperado, a regularidade do ciclodas estações, e depois o sol e a lua dos quais dependem o dia ea noite, as revoluções e os movimentos de outros planetas e dasestrelas fixas e de todo o céu, não deverá formar-se com verossi-milhança e, antes, com necessidade, a noção do criador, Pai etambém Senhor? De fato, nenhuma das obras de arte se pro-duz a si mesma, e esse cosmo implica em suma arte e sumoconhecimento, de modo que deve ter sido produzido por umartífice dotado de conhecimento e de perfeição absolutos. Dessemodo formamos a noção da existência de Deus (FILON, Spec. I,32-35. apud. REALE, 1992, p. 239).

Da mesma maneira, Ibn Gabirol sustenta que o caminho que levaao conhecimento de Deus – denominado por ele essência primeira – éatravés das obras:

D. – Há um caminho para alcançar o conhecimento da essênciaprimeira?M. – Alcançar este conhecimento não é impossível, mas tam-bém não é possível em todos os seus aspectos.D. – O que é possível e o que é impossível?M. – Impossível é conhecer a essência primeira sem as criaturasque foram criadas por ela; o que é possível é conhecê-la, mas so-mente por meio de suas obras. (IBN GABIROL, Fons vitae, I, 4).

Filon acredita, por outro lado, que existe uma outra possibilidadede conhecimento de Deus, que não é aquele que vem do mais baixopara o mais alto – justamente o caminho que Ibn Gabirol traça em seulivro A fonte da vida, subindo a partir da substância que sustenta ascategorias até o limite superior da matéria e da forma, abrindo o cami-nho em direção ao conhecimento da vontade e da própria essênciaprimeira – mas consiste num conhecimento direto. Esse caminho queprovém do alto é reservado aos eleitos e precisamente aos que são ver-dadeiros servidores e amantes de Deus. Esta idéia nos remete à discus-

Page 104: SCINTILLA - FAE

CECILIA CINTRA CAVALEIRO DE MACEDO

104 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 81-112, jan./jun. 2009

são acerca dos finais contrastantes apresentados na versão latina e naversão hebraica da obra de Ibn Gabirol.

No final de seu texto, Gabirol ressalta novamente que a compre-ensão da matéria e da forma não basta e que não está aí o limite doconhecimento humano. Essa disciplina é necessária e, portanto, seuestudo urgente, pois “quando o tiveres feito, tua alma se purificará, tuainteligência se esclarecerá e penetrarás até o mundo da inteligência”.“Então poderás ascender ao conhecimento do que há além”. Mas, parao conhecimento mais elevado, que está além, é necessário unir-se àvontade. Este conhecimento levará à “libertação da morte e à uniãocom a fonte da vida”.

O caminho é afastar-se das coisas sensíveis, penetrar por meio doespírito nas coisas inteligíveis e “unir-se totalmente àquele que dá obem”. A seguir temos dois finais um pouco divergentes: o primeiro éo da versão hebraica de Ibn Falaqera: “Quando tiveres feito isso, eledeitará seu olhar sobre ti e te fará o bem, dado que Ele é a fonte detoda benevolência. Louvado e exaltado seja! Amém”. O segundo é daversão latina: “Quando tiveres feito isso, ele deitará seu olhar sobre ti eserá generoso contigo, como lhe convier. Amém”.

Desta divergência entre os dois finais derivam duas possíveis ques-tões. A primeira refere-se à possibilidade e pertinência de prosseguirseu ensinamento sobre a vontade e sobre a essência primeira através dalinguagem racional. Como não temos certeza absoluta nem mesmosobre se o seu livro sobre a vontade de fato existiu, podemos conjecturarque talvez seu julgamento sobre a linguagem possa tê-lo levado a nãoescrever o livro imaginado, ocultando as etapas seguintes de sua men-sagem na poesia religiosa. Por outro lado, o final do texto hebraico,“ele é a fonte de toda benevolência”, faz com que nos remetamos dire-tamente ao título do livro sobre a vontade que ele nos prometera du-rante o texto do Fons vitae, intitulado Origo largitatis et causa essendi.

A segunda questão que desta passagem deriva, reside nas implica-ções dos finais diferentes nas duas versões. Estes revelam posturas dis-

Page 105: SCINTILLA - FAE

A VONTADE DE DEUS NA METAFÍSICA DE IBN GABIROL (AVICEBRON)

105Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 81-112, jan./jun. 2009

tintas acerca da graça de Deus. Que a Graça é necessária para que Oalcancemos, é inegável em ambas as traduções. Mas a versão hebraicasugere, mais na linha de um neoplatonismo tradicional, quase umaresposta automática ao esforço humano, enquanto que a versão latinaexibe claramente o condicional, por parte de Deus: “como lhe convi-er”. A opção acerca de qual dos dois finais seria mais fiel à proposta doautor surge, a nosso ver, a partir das relações com o restante de suaobra, especialmente com o texto do Keter Malkhut, e com as demaisfontes de seu pensamento. E esta nos conduz à versão latina. E, se aversão latina estiver correta, mais uma vez podemos traçar aqui umarelação com o pensamento de Filon de Alexandria, para quem esteconhecimento privilegiado não é acessível a todos, e pode ser resumi-do na seguinte passagem:

Existe também uma inteligência mais perfeita e mais purifica-da10, iniciada nos grandes mistérios, que conhece a causa não apartir das coisas criadas, como se conhece pela sombra o objetoque a produz, mas, superado o criado, recebe uma clara mani-festação do incriado, de modo que, a partir dele, ela o compre-ende, assim como sua sombra, ou seja, o logos e este cosmo(Filon, Legum Allegoriae, III, 100).

Esse conhecimento de Deus, repetimos, resume-se à sua existên-cia, e não à sua essência, considerada impossível por ambos os autores.Para Filon, não é propriamente o homem que vê a Deus, mas é Deusque se dá a ver ao homem; a iniciativa é da parte de Deus que concedeao homem um dom gratuito. E esta perspectiva consiste numa dasmarcas fundamentais do pensamento judaico. Essa é a razão pela qualsuscitamos especial atenção à expressão acima: “Ele deitará seu olharsobre ti”. O “olhar” do alto aparece mais vezes na obra de Ibn Gabirol11;

10. Grifo meu: Atentar aqui para a idéia da inteligência perfeita e purificada em Filone da alma purificada e inteligência esclarecida em Gabirol, que aparece exatamente damesma maneira em ambos os autores – como condição para a benevolência de Deus.

11. A idéia do “olhar” do alto surge no tratado quinto do Fons vitae, especificamentenas seguintes passagens: “olhar das causas aos efeitos” (V, 17); “por isso foi dito que tudonasce da sabedoria de Deus excelso, por seu olhar, por seu mandato e outras coisassemelhantes” (V, 27); “Porque o verbo, por cujo olhar a forma foi imposta” (V, 30).

Page 106: SCINTILLA - FAE

CECILIA CINTRA CAVALEIRO DE MACEDO

106 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 81-112, jan./jun. 2009

curiosamente, surge associado, não a qualquer fonte religiosa, mas areferências expressas a Platão.

Apesar da absoluta transcendência de Deus, da sua incompreensi-bilidade essencial para a condição humana, tanto Filon quanto Gabirolrecomendam expressamente o estudo e a busca de Deus, posto quealgumas propriedades referentes à essência divina podem se dar a co-nhecer ao homem.

Conclusões

A defesa da possibilidade de alguma conexão direta entre as obrasde Filon de Alexandria e a re-introdução do neoplatonismo no judaís-mo medieval ainda é um problema sério entre os estudiosos do tema.É alvo de muitas críticas, especialmente de estudiosos que levam maisem consideração a documentação historiográfica, em detrimento daseqüência e semelhança das idéias professadas e defendidas em mo-mentos diferentes do processo de transmissão do conhecimento. Nãonos cabe neste trabalho avaliar o modo como se deu a passagem dessasidéias através dos séculos, mas acreditamos que valem ser destacadosalguns paralelos que podem contribuir com a noção de que as idéias deFilon possam ter efetivamente, ainda que não de maneira direta, influ-enciado os neoplatônicos judeus medievais.

As idéias de Ibn Gabirol são freqüentemente comparadas às de seuantecessor alexandrino. Assim se refere Gonzalo Maeso, tradutor doseu livro de máximas morais La selección de Perlas:

Se o sábio judeu de Alexandria, Filon, “platonizava” olhandomais ao passado, Ibn Gabirol, mil anos depois, “ocidentalizou”,olhando em direção ao futuro e transmitiu ao Ocidente a filoso-fia greco-árabe, contribuindo poderosamente com sua difusãopela Europa e os povos dos quais, no decurso do milênio se-guinte, foi mestra (MAESO In IBN GABIROL, 1977, p. 39).

Page 107: SCINTILLA - FAE

A VONTADE DE DEUS NA METAFÍSICA DE IBN GABIROL (AVICEBRON)

107Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 81-112, jan./jun. 2009

Ainda que a maior parte dos estudiosos do tema se esquive deafirmar qualquer contato dos filósofos do medievo judaico com asobras do alexandrino, podemos verificar que muitos destes autoresapresentam ecos nítidos das idéias de Filon, e que esta influência seestenderá até a construção do pensamento da kabbalah sefirótica.

De todos os modos, o fato de que o caraíta Qirqisani (séc. X)estivesse familiarizado com certas citações tomadas dos escritosde Filon demonstra que algumas de suas idéias chegaram, talvezpor canais cristãos ou árabes, a membros de seitas judias noOriente Próximo. Mas, disso não se pode deduzir que existisseuma influência contínua até essa época, e menos ainda até otempo da formulação da cabala na Idade média. Paralelos espe-cíficos entre a exegese de Filon e a cabalística deveriam ser atri-buídos à semelhança de seu método exegético que, naturalmen-te produziu em diferentes ocasiões, idênticos resultados(SCHOLEM, 1994, p. 19).

O argumento utilizado por Scholem de que basta a sobrevivênciainterna no judaísmo da tradição da exegese alegórica para que, emmomentos diferentes, sejam produzidos idênticos resultados, ou aomenos resultados semelhantes, parece-nos possível unicamente se le-varmos em conta a influência filosófica. O mesmo método, ou seja,no caso, a exegese alegórica, só poderia gerar idênticos resultados casoaplicado sob as mesmas regras e a mesma visão de mundo. Ou seja, nomínimo, muitos séculos depois, em outras circunstâncias profunda-mente diferenciadas, deveria estar em contato com o mesmo tipo defilosofia. O argumento, portanto, só é viável a partir da recuperaçãoda tradição Platônica no seio do judaísmo. Mas, a tradição filosóficaque chega já ao mundo judaico medieval através das traduções ao siríacoe ao árabe não é mais a tradição platônica pura, como aquela que ins-pirara a Filon, mas está já entremeada pelo pensamento aristotélico edas elaborações alexandrinas, sem falar nas próprias adaptações cristãs eislâmicas que foram se somando ao longo dos séculos.

Julius Guttmann, notoriamente contrário a admitir a influênciafiloniana em Gabirol, afirma que “não há dúvida de que a vontade, no

Page 108: SCINTILLA - FAE

CECILIA CINTRA CAVALEIRO DE MACEDO

108 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 81-112, jan./jun. 2009

pensamento de Gabirol é, de muitas maneiras, uma reminiscência dologos filoniano e, após a descoberta de que os primórdios da filosofiajudaica revelavam alguma familiaridade com os ensinamentos de Filon,é compreensível que os estudiosos tenham suspeitado de alguma filiaçãohistórica” (GUTTMANN, 2003, p. 128). Na realidade, a associaçãodas idéias de Gabirol com as de Filon fora já observada por JakobGuttman, mas resumiu-se praticamente à questão do logos e da vonta-de, não estabelecendo ainda qualquer ligação histórica entre os autores(GUTTMAN, 1889, p. 251, nota 3). Porém, o próprio Plotino foium autor de estranho destino no mundo árabe. Não há quase qual-quer menção a seu nome. Muitos estudiosos como Haarbrücker eRosenthal associaram a Plotino o qualificativo Al Sheikh Al-Yunani(O mestre grego)12. Mas permanece uma figura obscura, porém bas-tante citada entre os filósofos islâmicos (BADAWI, 1897, p. 47). Se oargumento de que as Enéadas de Plotino em si jamais tenham sidotraduzidas ao árabe ou hebraico não desqualifica a priori as conexõestraçadas entre a filosofia plotiniana e diversos autores medievais, nãovemos razão pela qual exatamente o mesmo argumento – levantadopor Julius Guttmann para justificar a impossibilidade de contato deIbn Gabirol com a teoria filoniana – possa desqualificar a influência deFilon, ainda mais, se levarmos em consideração que o próprio Plotinojá vinha influenciado por seu precursor de fé judaica. O fato de serimpossível retraçarmos a conexão histórica, posição com a qual esta-mos inteiramente de acordo, não exclui os paralelos entre as idéias.

12. Outros imaginaram que fosse Porfírio; F. W. Zimmermann examinou em detalhesas fontes referentes ao Mestre Grego e é notório em seu trabalho que o autor era umanônimo para Miskawayh, o primeiro autor conhecido que o citou. JOLIVET, Jean eMONOT, Guy, In SHAHRASTANI, Livre des Religions et des Sectes, vol. II, cap. IV, p.328, nota 1. Como certo, temos que o conteúdo da teologia de Aristóteles consistenum resumo das Enéadas IV-VI, com paráfrases e inversões de ordem. O texto denomi-nado Epístola sobre a ciência divina, atribuído a Al-Fârâbî, consiste também numextrato da Enéada V.

Page 109: SCINTILLA - FAE

A VONTADE DE DEUS NA METAFÍSICA DE IBN GABIROL (AVICEBRON)

109Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 81-112, jan./jun. 2009

Como argumento importante, vale ressaltar também aqui a ob-servação de Dominique Barthélemy de que, durante a Idade Médianão se dispunha de uma única coleção de obras de Filon, mas que umadas fontes que circulava teria sido “corrigida” ou “revisada”. De acordocom seu estudo, essa revisão só poderia ter sido realizada por um ju-deu. Conforme sua interpretação, esse texto chegara às mãos dos rabi-nos judeus (até mesmo por força da utilização das obras do alexandrinopor parte dos primeiros Padres da Igreja, como argumento para a defe-sa da compreensão cristã do verbo como Filho), tendo sido “censura-da” por rabinos judeus na Palestina do século III. Discorda assim deoutros autores, como Katz, que defendem o inverso. Conforme a au-tora, “o que impediu o comentário de Katz de chegar a essa conclusãofoi a convicção de que (...) para poder servir de fonte a nosso revisor, asobras de Filon não foram certamente conservadas mais do que pelasmãos cristãs” (BARTHÉLEMY, 1967, p. 57-8).

Se o trabalho de Barthélemy está correto, e sua argumentação pa-rece bastante coerente com os indícios apresentados pelas correções notexto, não há como atestar sem sombra de dúvidas que, ao menos oComentário alegórico fosse totalmente desconhecido dos judeus no iní-cio da Idade Média. Além disso, ao menos por tradição oral, existe apossibilidade de que algumas de suas idéias tenham sido incorporadasna especulação mística judaica posterior, vindo a ressurgir, com maisforça, a partir do século IX. Vale ressaltar ainda que, quando nos refe-rimos à impossibilidade da conservação dessas idéias pelos judeus, fa-lamos mais especificamente da Palestina. Mas, na época de Filon, apopulação judaica em Alexandria era imensa, e não temos como ava-liar o impacto da transmissão dessas idéias na diáspora mediterrâneadessa população. “Numericamente é, sem dúvida, Alexandria e nãoJerusalém a metrópole do judaísmo” (SIMON, 1967, p. 19). O co-nhecimento do grego não era também, por sua vez, particularidade deFilon ou de alguns poucos privilegiados, mas gozava de uma grande

Page 110: SCINTILLA - FAE

CECILIA CINTRA CAVALEIRO DE MACEDO

110 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 81-112, jan./jun. 2009

difusão na população judaica, tendo sido utilizado inclusive em certasescolas rabínicas:

Há todas as razões para pensar que esse estado de coisas remon-ta, ao menos quanto ao que se refere à situação lingüística, paraalém dos 70 e em particular que, na época de Filon há ummovimento de intercâmbio entre a palestina e uma diáspora daqual Alexandria representava o foco mais ativo, que caracteriza avida religiosa judia (SIMON, 1967, p. 19).

Assim, reafirmamos que ainda que seja uma influência de difícildemonstração histórica, seu modelo de neoplatonismo apontou as li-nhas que irão acompanhar a filosofia mística judaica, no mínimo até aKabbalah. E, no caso específico de Ibn Gabirol, acreditamos que asidéias falam por si, justificando, em pontos específicos como a ques-tão logos/vontade, um estudo comparativo.

Referências

AVENCEBROLIS (IBN GABIROL) Fons vitae/ex Arabico in Latinumtranslatum ab Iohanne Hispano et Dominico Gundissalino; ex codicisParisinis, Amploniano, Columbino primum edidit ClemensBaeumker. Münster: Aschendorff, 1895.

BADAWI, Abdurrahman. La Transmission de la Philosophie Grecque auMonde Arabe. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 1897.

BARTHÉLEMY, Dominique. Est-ce Hoshaya Rabba qui censura le“commentaire Allégorique”; a partir des retouches faites aux citationsbibliques, étude sur la tradition textuelle du commentaires Allégorique dePhilon. In Philon D’Alexandrie, Colloques Nationaux du CentreNational de La Recherche Scientifique. Lyon, 11-15 septembre 1966.Paris: Éditions Du Centre National de la Recherche Scientifique,1967, p. 45-78.

BEN HOFNI, Samuel. Samuel Ben Hofni Gaón and His Cultural World:Texts and Studies. Trad. David Eric Sklare. Leiden: Brill AcademicPublishers, 1997.

Page 111: SCINTILLA - FAE

A VONTADE DE DEUS NA METAFÍSICA DE IBN GABIROL (AVICEBRON)

111Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 81-112, jan./jun. 2009

BRUNNER, F. Platonisme et Aristotelisme, La critique d’Ibn Gabirol parSaint Thomas D’Aquin. Louvain: Publications Universitaires deLouvain, 1965.

DE LIBERA, Alain. A filosofia medieval. São Paulo: Edições Loyola, 1998.

GUERRERO, Rafael Ramón. Filosofías árabe y judía. Madrid: EditorialSíntesis, 2001.

GUTTMANN, Julius. A filosofia do judaísmo. São Paulo: Perspectiva,2003.

GUTTMAN, Jakob. Die Philosophie des Salomon ibn Gabirol. Göttingen,1889.

IBN EZRA, Abraham. Ibn Ezra’s Commentary on the Pentateuch: Genesis(Bereshit). trad., H. Norman Strickman, Arthur M. Silver. MenorahPub Co, 1999.

IBN GABIROL, S. La Selección de Perlas. Introducción, traducción ynotas, David Gonzalo Maeso. Barcelona: Ameller Editores, 1977.

IBN GABIROL, S. La Corrección de los Caracteres. Introducción,traducción y notas, Joaquín Lomba Fuentes. Zaragoza: Universidadde Zaragoza, 1990.

KATZ, Steven. Mysticism and Language. Oxford: Oxford University Press,1992.

MARTIN, Jules. Philon. Paris: Librairie Felix Alcan, 1907.

MUNK, Salomon. Mélanges de Philosophie Juïve et Arabe. Paris: Librairiephilosophique J. Vrin, 1927.

PHILON D’ALEXANDRIE. De Opificio Mundi. trad. Roger Arnaldez,Paris: Editions du Cerf, 1961.

PHILON D’ALEXANDRIE.. Legum Allegoriae, I-III, trad. ClaudeMondèsert, s. j. Paris: Editions du Cerf, 1962.

PHILON D’ALEXANDRIE. Commentaire Allégorique des Saintes Lois,apres l’oeuvre des six jours. Traduction et introduction Emile Brehier.Paris: Librairie Alphonse Picard et Fils, 1909.

QUINN, J. F. The historical constitution of St. Bonaventure’s philosophy.Toronto: Pontifical Institute of Mediaeval Studies, 1973.

REALE, Giovanni. História da filosofia antiga vol. IV – As escolas da eraimperial. São Paulo: Loyola, 1992.

Page 112: SCINTILLA - FAE

CECILIA CINTRA CAVALEIRO DE MACEDO

112 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 81-112, jan./jun. 2009

SÁENZ-BADILLOS, Ángel. El Alma lastimada: Ibn Gabirol. Córdoba:Ediciones El Almendro, 1992.

SCHOLEM, Gershom. Desarrollo Histórico e Ideas Básicas de la Cábala.Barcelona: Riopiedras, 1994.

SIMON, Marcel. Situation du Judaïsme Alexandrin dans la diaspora. InPhilon D’Alexandrie, Colloques Nationaux du Centre National deLa Recherche Scientifique. Lyon, 11-15 septembre 1966. Paris:Éditions Du Centre National de la Recherche Scientifique, 1967, p.17-31.

TOMÁS DE AQUINO. O ente e a essência. Trad. Carlos Arthur Ribeirodo Nascimento. Petrópolis: Vozes, 1995.

Page 113: SCINTILLA - FAE

LEO STRAUSS Y LA HERENCIA FILOSÓFICO-POLÍTICA

113Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 113-144, jan./jun. 2009

LEO STRAUSS Y LA HERENCIAFILOSÓFICO-POLÍTICA DE MOISÉS

MAIMÓNIDES

Prof. Dr. José Ricardo Pierpauli(Universidad del Salvador-Buenos Aires)

Abstract: El presente examen tien por finalidad ofrecer lareconstrucción del pensamiento filosófico-político de Leo Strauss a partirde la rehabilitación de la filosofía política árabe y judaica del Medioevo.Para ello ofreceré en pimer lugar, una breve presentación del estado de lacuestión a saber, el perfil propio de la obra del autor alemán. Posteriormentedelinearé de modo sistemático aunque también breve, aquello que consideroel núcleo del pensamiento político de Strauss a saber, el problema teológicopolítico. Dicha perspectiva me permitirá introducir al lector en el examende la posible integración como lo hizo Strauss, del punto de vista de Platóncon el de Moisés Maimónides. Algunas referencias contrastantes respectodel proyecto filosófico-político moderno se tornan indispensables desdeque el punto de vista de Strauss es tan medieval como contemporáneo.De allí el examen del punto de vista crítico de Strauss respecto delproyecto filosófico-político moderno. El aporte que nuestrasconsideraciones pretenden alcanzar bien podría expresarse del modosiguiente: El racionalismo straussiano constituye una prueba de que esposible y necesaria la rehabilitación de la filosofía política medieval defrente a los actuales grandes temas de la filosofía política actual.Maimónides y los grandes maestros árabes que le precedieron tienenaun algo que ofrecernos.

Page 114: SCINTILLA - FAE

114

DR. JOSÉ RICARDO PIERPAULI

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 113-144, jan./jun. 2009

1. Punto de partida: El estado de la cuestión

Los esfuerzos en torno de la obra de Strauss se desenvolvieronsegún dos grandes orientaciones: 1 – La revalorización de las tesis deStrauss en el marco de su confrontación con las obras de algunas figurasrelevantes de la filosofía política moderna y contemporánea1 y 2 – surelación con los autores árabes y judíos2. Dentro del primer campo losesfuerzos realizados estuvieron orientados según dos grandes direcciones.Mediante la primera y tal vez la más conocida, se intentó rehabilitar, através de Strauss, el ius-naturalismo de base onto-teológica. Ello tuvolugar de modo concreto mediante la temprana lectura, en el ámbitoacadémico de habla castellana, de dos obras. La primera de ellas, laversión al castellano de Qué es filosofía política? (Madrid, 1970) y lalectura de la obra Natural right and History (Chicago-London, 1953)3.En no menor medida contribuyó la traducción de la obra dedicada aN. Maquiavelo que, bajo el título Meditación sobre Maquiavelo, realizóen 1964 (Madrid) Carmela Guitierrez de Gambra. Resultado de estaprimera etapa de recepción fue la interpretación del Derecho Naturalcomo presupuesto del orden político y jurídico y, naturalmente, larehabilitación de la dimensión trascendente del orden político. Ellosirvió como contrapunto respecto de las posiciones historicistas y neo-positivistas. Respecto de las fuentes del pensamiento de Strauss fue en

1. KAUFFMANN C., Strauss und Rawls. Das philosophische Dilemma der Politik,Berlin, 2000. MEIER H., Carl Schmitt, Leo Strauss und Der Begriff des Politischen. Zueinem Dialog unter Abwesender, Stuttgart-Weimar, 1988. BEHNEGAR N., LeoStrauss, Max Weber, and the scientific study of politics, Chicago-London, 2003.McALLISTER, Kansas; 1995.

2. Cf. TAMER G., Islamische Philosophie und die Krise der Moderne. Das Verhältnis vonLeo Strauss zu Alfarabi, Avicenna und Averroes, Leiden-Boston-Köln, 2001, p. 24ss.

3. Cf. BLUHM H., Die Ordnung der Ordnung. Das politische Philosophieren von LeoStrauss, Berlin, 2002, p. 202-208. Cabe destacar que el autor del presente estudiosostiene, diferentemente de lo que aquí defendemos, que Strauss no es autor de unafilosofía política sistemática.

Page 115: SCINTILLA - FAE

LEO STRAUSS Y LA HERENCIA FILOSÓFICO-POLÍTICA

115Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 113-144, jan./jun. 2009

EE. UU y en Europa donde el desarrollo científico alcanzó mayoresdimensiones. Así pues, se ofrecieron valiosas contribuciones orientadasa poner de manifiesto el predominio de las fuentes árabes4 y judaicas5

del pensamiento de Strauss. Por último, un tercer grupo de estudiososse propuso revalorizar el lugar de la escritura esotérica descubierta yutilizada por Strauss6.

2. El problema teológico-político como centro de referenciasde la obra de Leo Strauss

Pero sin duda, los mayores debates giran en torno de la naturalezay alcance del llamado problema teológico-político. Qué es lo queStrauss pretende darnos a entender con el enunciado de problemateológico-político?7 H. Meier sostiene la tesis siguiente: Strauss intentópostular la radical autonomía entre filosofía y teología8. No obstante,creemos que una completa solución del problema sólo podrá obtenerseleyendo entre líneas la obra de Strauss. Ello implica sin duda una

4. Cf. TAMER G., Islamische Philosophie und Krise der Moderne. Das Verhältnis von LeoStrauss zu Alfarabi, Avicenna und Averroes, Leiden-Boston-Köln, 2001.

5. Cf. GREEN K. H., Jew and Philosopher. The return to Maimonides in the jewishthought of Leo Strauss, Chicago-London, 1993.

6. Cf. TAMER G., op. cit., p. 24-27.

7. PANGLE Th., Leo Strauss. An introduction to his thought and intellectual Legacy,Maryland, 2006, p. 1ss. SORENSEN K., Discourses on Strauss. Revelation and Reasonin Leo Strauss and his critical Study of Machiavelli, Notre Dame-Indiana, 1974, p. 161-166. SMITH S., Reading Leo Strauss. Politics, Philosophy, Judaism, Chicago-London,2006, p. 81-82.

8. Cf. MEIER H., Das theologisch-politische Problem. Zum Thema von Leo Strauss, Stuttgart-Weimar, 2003, p. 18. Recientemente apareció la versión castellana de la obra mencionadaCf. Leo Strauss y el problema teológico-político, trad. al castellano por María Antonieta Gregory Mariana Dimopulus, Buenos Aires, 2006, p. 40. He discutido personalmente conMeier acerca del problema, sin alcanzar a converserme de sus argumentos.

Page 116: SCINTILLA - FAE

116

DR. JOSÉ RICARDO PIERPAULI

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 113-144, jan./jun. 2009

auténtica tarea de detective. No obstante, la explícita remisión alconcepto de una naturaleza inmutable alude sin duda alguna a un ordenpre-establecido a todo orden político. A los fines pues de establecer lasbases sobre las que defendemos la presencia de la trascendencia en laobra de Strauss, iremos reconstruyendo progresivamente las baseshistórico-filosóficas sobre las que Strauss se apoyó.

Uno de los primeros escritos elaborados por Strauss estuvo dedicadoal examen de la filosofía política de Baruj Spinoza. En rigor, Strauss seinteresaba por los fundamentos teológico-políticos de la obra deSpinoza. Ahora bien, como es sabido, la obra del renombrado filósofojudío está indirectamente orientada contra la ortodoxia judaica medievalque representa Moisés Maimónides. Por este camino Strauss alcanzó apersuadirse que Spinoza había criticado dura e injustificadamente aMaimónides y, más aún, que el verdadero alcance de la obra de Spinozasolamente podía valorarse si es que previamente se examinaban loscontenidos filosófico-políticos ofrecidos por Maimónides en su Guíade Perplejos. Como resultado de esa operación retrospectiva Straussofrecería su primer gran delimitación de la filosofía política y su primerdeterminación acerca de qué cosa debe entenderse por problemateológico-político. En efecto, Strauss comprendió que si Maimónidesrepresenta el paradigma por excelencia de la filosofía política judaicadel Medioevo y Spinoza el modelo por excelencia de la filosofía políticamoderna, entonces entre Edad Media y Modernidad correspondeestablecer una clara línea de discontinuidad. Por otra parte, Straussdefinía de este modo el problema teológico-político, a lo largo de susreflexiones dedicadas a ambos autores judíos. Antes de todo filosofarexiste una ley previa que sin ser estrictamente racional bien puede sercomprendida por el intelecto humano como punto de partida para laconstitución de la filosofía y de la filosofía política en particular. ParaStrauss la teología, desde cuyo interior extraemos una lex divina, esuna ciencia sagrada cuyo objeto es un Dios vivo, para él anunciado

Page 117: SCINTILLA - FAE

LEO STRAUSS Y LA HERENCIA FILOSÓFICO-POLÍTICA

117Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 113-144, jan./jun. 2009

solo en el Antiguo Testamento, y que ofrece a la filosofía su más altadignidad. Conviene subrayar que Strauss descubrió el auténtico aporte deMaimónides a la filosofía política luego de su examen de la obra teológico-política de Spinoza. Tal confrontación le sugirió adpotar el punto de vistateológico-político como el eje de sus posteriores reflexiones. Strauss es unauténtico filósofo político judío. Strauss descubrió también queMaimónides no es tan solo un aristotélico sino que su obra está enmarcadaen el interior de una arquitectura claramente platónica. Así pues, el puntode vista teológico-político que Strauss asumió como propio y que le sirvióde plataforma para formular su muy aguda crítica de la Modernidad fuearticulado mediante la unión armónica entre las filosofías políticas dePlatón y de Moisés Maimónides.

3. La configuración del punto de vista crítico de Leo Strauss

Kenneth Hart Green en su monografía titulada: Judío y Filósofo. Elretorno a Maimónides en el pensamiento judaico de Leo Strauss (NewYork, 1993) deja abierta una cuestión de capital importancia que a lavez constituye una limitación previamente establecida para sumonografía. Dice el autor: “Si Strauss tiene o no razón en su crítica dela modernidad y en el hecho de postular como solución el retorno aMaimónides, es un asunto que no podrá resolverse aquí...”9 Pues bien,nuestra exposición se propone, de aquí en más, resolver en parte lacuestión abierta. Hablar de Leo Strauss y la filosofía política significa:1 – Intentar una primera aproximación en torno del problema de lasfuentes en que nuestro autor se sustenta para formular su crítica de lamodernidad; 2 – Puntualizar que el proyecto filosófico-político deStrauss parte de la rehabilitación de la filosofía política de la Edad

9. Cf. Kenneth Hart Green, op. cit., p. XIV. El mismo autor ha publicado JewishPhilosophy and the Crisis of Modernity. Essays and Lectures in Modern Jewish Thought. LeoStrauss; New York, 1997.

Page 118: SCINTILLA - FAE

118

DR. JOSÉ RICARDO PIERPAULI

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 113-144, jan./jun. 2009

Media. Nos interesa saber en qué medida es Strauss deudor de lafilosofía política de Moisés Maimónides, claro está, si es que en rigorMaimónides fue autor de tal filosofía política; 3 – Establecer la posiciónde Strauss respecto del proyecto político de la Modernidad. Straussrechazó el racionalismo moderno por considerar que la crítica bíblicaque lo sustenta era enterametne injustificada. A su vez, pudo persuadirseque el racionalismo ofrecido por Maimónides en su obra capital,valiéndose también de elementos bíblicos, ofrecía mayor rigor a losfines de la constitución de una filosofía política.

Ahora bien, comprender el alcance del racionalismo straussianoimplica situar la discusión en el nivel teológico-político10. A su vezcomprender el alcance del problema teológico-político nos obliga aexaminar aquí los hitos fundamentales en los que Strauss se apoyó. Esa partir del recurso a un orden inmutable que Strauss formuló el másradical contraste respecto del historicismo11 y del neo-positivismo. Suobra pues ofrece el complejo panorama de la crítica de ese punto devista según diversos hitos. De ese modo, para quien por primera veztoma a su cargo la tarea de descifrar las tesis filosófico-políticas deStrauss, se presenta la siguiente cuestión: Pero es en realidad Strauss elcreador de una sistemática dentro del ámbito de la filosofía política ose trata más bien de un historiador de las filosofías políticas de otrosautores? La primera tesis que aquí debe ser defendida indica que Strauss

10. By political theology we understand political teachings which are based on divinerevelation. STRAUSS L., What is political Philosophy? Chicago-London, 1998, p. 13.

11. Modern thought reaches its culmination, its highest self-consciousness, in themost radical historicism, i.e., in explicity condemning to oblivion the notion of eternity.For oblivion of eternity, or, in other words, estrangement from man´s deepst desire andtherewith from the primary issues, is the price which modern man had to pay, from thevery beginning, for attempting to be abssolutely sovereign, to become the master andowner of nature, to conquer chance. STRAUSS l., op. cit., p. 55. Cf. STRAUSS L.,Natural Right and History, Chicago-London, 1953, p. 9-34, KAUFFMANN C., LeoStrauss zur Einführung, Hamburg, 1997, p. 55-84.

Page 119: SCINTILLA - FAE

LEO STRAUSS Y LA HERENCIA FILOSÓFICO-POLÍTICA

119Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 113-144, jan./jun. 2009

no es tan sólo un historiador, sino un sistemático de la filosofía políticaen el más estricto sentido de la palabra. Las dos tesis que presentaré acontinuación pretenden pues ofrecer un panorama claro acerca delámbito en el que debe entenderse la cuestión teológico-política enStrauss. En efecto, Strauss es un autor platónico (tesis n. 1). Sin perjuiciode ello Maimónides (Tesis n. 2) representa el personaje central de suobra12. Maimónides constituye el camino de Strauss hacia Platón. Laindicación que marcó el camino de Strauss hacia Platón fue recogidade Avicenna, más concretamente de su libro Acerca de la divisón de lasciencias. Dice allí el filósofo árabe, en la versión que Straus colocó nadamenos que como epígrafe de su libro dedicado al diálogo teológico-político por excelencia de Platón, esto es las Leyes, ...the treatment ofprophecy and the Dinive law is contained in laws...13 A partir de allípudo formular la idea de racionalismo medieval (Tesis n. 3).

Ha sido destacado el hecho que Strauss también regresó a Platónal final de su vida. De hecho su último libro Studies in Platonic PoliticalPhilosophy (Chicago-London, 1983), editado por Joseph Cropsey conuna introducción de Thomas Pangle, está casi íntegramente dedicadoa los diálogos platónicos14. Un importante lugar encuentran tambiénen esa obra las reflexiones dedicadas a Maimónides. La publicación dellibro con su actual contenido respondía a la expresa voluntad de Strauss.Dos son las motivaciones que Strauss encontró en Platón. La primerade ellas, la expresión de la vida filosófica y su ámbito apropiado. Paraque la vida filosófica sea posible es necesario la genuina libertad depensar, pues filosofía y compulsión son incompatibles15. La segunda,

12. Cf. GREEN K. H., op. cit., p. 5.

13. Cf. STRAUSS L., The Argument and the Action of Plato´s Laws, Chicago-London,1975, p. 1.

14. Cf. MEIER H., Leo Strauss, en: RETLICH N.-LUTZ B., Metzler PhilosophenLexikon. Von den Vorsokratikern bis zu den Neuen Philosophen, Stuttgart-Weimar, 2003,p. 860.

15. Cf. STRAUSS L., The City and the Man, Chicago-London, 1964, p. 14.

Page 120: SCINTILLA - FAE

120

DR. JOSÉ RICARDO PIERPAULI

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 113-144, jan./jun. 2009

el criterio expositivo empleado por Platón. Los diálogos platónicosexpresan del mejor modo la situación de oposición casi irremediableentre filosofía y Poder, así como la estrategia empleada por Platón parapersuadir, eludiendo la coacción. Strauss sostiene que mientras al leerun libro como la política de Aristóteles podemos escuchar las enseñanzasdel Filósofo, no ocurre lo mismo cuando leemos los diálogos de Platón.Allí jamás escuchamos a Platón16. Platón jamás responde directamenteuna cuestión central, sino que nos sugiere apenas la respuesta, si es quesomos hábiles lectores. Platón, según cree Strauss, habla a través de suspersonajes y de las circunstancias en que estos se encuentrancircunstancialmente involucrados. Ello sería imposible si en lugar deldiálogo optásemos por la forma literaria del tratado, pues allí lasenseñanzas deben ser claras y directas. El hermetismo de Strauss entornode ciertas cuestiones centrales, como por ejemplo la relación entre razóny fe, también parece esconderse detrás de su comentario a los diálogosde Platón. Tampoco Strauss procedió como Aristóteles, vale decirlegándonos un tratado de filosofía política. Strauss mueve sus propiascuestiones en ocasión de comentar lo que otros dijeron o bien, cuandointenta dilucidar lo implícito en los diálogos platónicos.Resumidamente: Strauss regresa a Platón en dos momentos. En primerlugar, cuando descubre la posibilidad de armonizar la teología17 con lafilosofía a través de las sutiles recomendaciones de Avicenna. PeroAvicenna es a su vez el camino de Strauss hacia Maimónides. De talmodo el estudio de las fuentes platónicas en Strauss es inseparable deun parejo estudio acerca de sus fuentes medievales. Por este motivohemos introducido nuestras referencias a la recepción del platonismo

16. Cf. STRAUSS L., op. cit., p. 50.

17. Cabe recordar que Strauss había descubierto la relevancia del punto de vista teoló-gico ya en su juventud cuando dedicó una de sus primeras monografías al examen dela obra de Spinoza. Puede decirse que desde entonces Strauss busca determinar el lugarde la teología en su relación con la política.

Page 121: SCINTILLA - FAE

LEO STRAUSS Y LA HERENCIA FILOSÓFICO-POLÍTICA

121Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 113-144, jan./jun. 2009

en Strauss mediante una referencia a su recepción del modelo deMaimónides.

Es en Avicenna donde Strauss encuentra la sugerencia valiosa a saber,que ya Platón nos ofrecía en Las Leyes los elementos necesarios paraarmonizar la teología con la filosofía. Strauss examina en formacomparativa tres de los diálogos políticos de Platón. Ellos son LaRepública, el Político y Las Leyes. Particularmente relevante es la relaciónde mutua correspondencia que establece entre La República y Las Leyes.Sostiene que mientras La República nos ofrece el cuadro general de lafilosofía de Platón, sin trascender explícitamente el orden político, LasLeyes en cambio, ofrecen el cuadro del mejor régimen político posible,tarea propia, por lo demás, de la filosofía política, según la entiendeStrauss18. Alcanzar la idea de justicia como criterio más alto y por ello,regulativo del orden político, supone, si nos atenemos al texto de LasLeyes, un conocimiento superior. Strauss afirma, en relación siemprecon la argumentación platónica en Las Leyes, que el gobierno de LasLeyes es algo así como la imitación del gobierno de los dioses. Por elloel delito mayor era la impiedad. Strauss observa que Las Leyes es elúnico diálogo platónico que comienza con la expresión dios. Dios olos dioses existían para los griegos y eran además objeto de demostración.Los sabios legisladores creían en los dioses y actuaban como ministrosde la divinidad. Debían establecer dos cosas, a saber: que el fin de lavida política consistía en el ejercicio de la virtud política pero, y esto esverdaderamente importante, que la noción de virtud política erasubsidiaria de la idea acerca de dios. Los miembros del consejonocturno, a quienes se confiaba el cuidado de la ciudad, debían conocer,según la medida de la inteligencia humana, la verdad acerca de ladivinidad. Éste era y no otro, el mejor orden político posible. Es aquídonde Strauss sugiere que el mejor gobierno, postulado en Las Leyes,

18. Cf. STRAUSS L. What is political Philosophy?, p. 10.

Page 122: SCINTILLA - FAE

122

DR. JOSÉ RICARDO PIERPAULI

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 113-144, jan./jun. 2009

corresponde en forma complementaria, a la argumentación platónicade La República.

Ahora bien, no debe perderse de vista, a fin de intentar aproximarnosa una solución plausible de la relación entre teología y política en laobra de Strauss, aquello que en la descripción de la argumentaciónplatónica, Strauss da por sabido. En efecto, tanto el eje argumentaldesarrollado en Qué es filosofía política? como en Derecho Natural eHistoria, contiene una abierta aceptación de la idea de naturalezainmutable y de creación como regla y medida de la justicia política.Strauss es abiertamente platónico porque acepta de Platón el convite areflexionar acerca del mejor orden posible, de un orden posiblesustentado sobre una idea superior de justicia. La misma no puedeapoyarse en un puro convencionalismo, criticado a lo largo de casitoda la obra de Strauss, sino, como queda claro, en un bien superior.La admiración del modelo de Las Leyes resulta pues explicativa de lapropia posición de Strauss. Podríamos aceptar, a modo provisorio, queStrauss habla detrás de Platón en Las Leyes. Pero veamos de qué modo,tuvo lugar la integración entre Platón y Maimónides en el pensamientofilosófico-político de Leo Strauss.

A la luz de lo expresado hasta aquí, enunciaremos de un modomás claro nuestra primera tesis: El regreso de Strauss a la obra deMaimónides se produjo junto con el descubrimiento de la posibilidadofrecida por los diálogos platónicos. El mito de la caverna sirve parabosquejar el punto de vista crítico de Strauss respecto de la filosofía políticamoderna y contemporánea.

Lo dicho bien podría demostrarse mediante dos recursos. O bienpuede leerse la obra de Strauss según el orden de su cronología, o bien,y éste puede ser tal vez el camino más aconsejable en orden a unaeconomía de esfuerzos, podría leerse cuidadosamente la obra del autoralemán, procurando delimitar su estructura básica. A los fines de lacorrecta determinación de los fundamentos del ius-naturalismo de

Page 123: SCINTILLA - FAE

LEO STRAUSS Y LA HERENCIA FILOSÓFICO-POLÍTICA

123Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 113-144, jan./jun. 2009

Strauss, dos obras deben ser recomendadas. La primera de ellas es sumonografía titulada Philosophie und Gesetz (1935). La segunda, suobra más conocida titulada What is political Philosophy (1959). La obracitada en primer término da a su vez el título para el segundo volumende los escritos completos de Strauss, recientemente aparecida enAlemania (1997). Se reúnen allí 35 escritos en total, a través de loscuales puede comprobarse la recepción de las tesis de Maimónides sobreun trasfondo claramente platónico. Ese volumen, junto con losnúmeros I y III de su obra completa en vías de edición, reúne losescritos tempranos de nuestro autor, elaborados durante los años 1921y 1937. Dicho período finaliza con el exilio de Strauss en los EE. UU.La segunda obra en cambio, perteneciente al período de produccióndesarrollado en EE. UU (1938-1973) junto con Derecho Natural eHistoria (1953) puede ser considerada como el esquema general delpensamiento propio de Strauss.

Strauss toma partido en favor de Platón. Precisamente a partir depresupuestos platónicos tendrán lugar dos consecuencias. La primera deellas le permitió constituir a la filosofía política en una cierta filosofíaprimera19. La segunda actitud por lo demás, paradójica, le permitetrascender el horizonte platónico a partir de presupuestos a los que podríamoscalificar bajo diferentes perspectivas, como platónicos y como no platónicosa la vez. Declararse en favor de Platón no significa para nuestro autor,manifestarse contra Aristóteles. Strauss, igual que Maimónides, intentaráarmonizar el neo-platonismo con el aristotelismo20.

19. Since human life is living together, or, more exactly, is political life, the question,why philosophy?, means, why does political life need philosophy?. This question callsphilosophy beforee the tribunal of the political community: it makes philosophypolitically responsible. STRAUSS L., On Classical Political Philosophy, en: PANGLET., The Rebirth of classical political rationalism, Chicago-London, 1989, p. 61.

20. Cf. STRAUSS L., Quelques remarques sur la science politique de Maimonide et deFarabi, en: Philosophie und Gesetz, Gesammelte Schriften (GS) II Ed. Por H. Meier,Stuttgart-Weimar, 1997, p. 126-127.

Page 124: SCINTILLA - FAE

124

DR. JOSÉ RICARDO PIERPAULI

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 113-144, jan./jun. 2009

El autor alemán se decide a favor de Platón ya en sus primerosescritos y lo hace apoyado en el hecho que Platón, a diferencia deAristóteles, subordina en cierto modo, la filosofía especulativa y demodo general, la actitud contemplativa, a la praxis política. El filósofopropuesto por Platón, a diferencia del de Aristóteles, está obligado adescender desde el cielo hacia al fondo de la caverna a fin de lograr,mediante la persuasión, un orden político más digno de ser vivido. Supreocupación por la verdad surgió primeramente como problemapolítico. En efecto, en el fondo de la caverna sólo pueden ofrecerseopiniones acerca del bien y de la justicia política, mas no verdaderosconocimientos.

Es, pues, labor nuestra – dije yo –, labor de los fundadores, elobligar a las mejores naturalezas a que lleguen al conocimientodel cual decíamos antes que era el más excelso, y vean el bien yverifiquen la ascensión aquella; y una vez que, después de habersubido, hayan gozado de una visión suficiente, no permitirleslo que ahora les está permitido. Y qué es ello? Que se quedenallí – dije – y no accedan a bajar de nuevo junto a aquellosprisioneros ni a participar en sus trabajos ni tampoco en sushonores, sea mucho o poco lo que estos valgan21.

La praxis política es para Strauss un esfuerzo orientado hacia doscaminos posibles, o bien hacia el cambio de un orden injusto por otrojusto, o bien hacia la conservación del orden justo22. Mas lo justo y loverdaderamente bueno constituyen algo así como la regla y medida detoda comunidad política23. Se trata, siguiendo en esto a Aristóteles, dela gramática de todo orden político24. Bueno y justo alude pues a la

21. PLATON, República, 519 d ss. citado por STRAUSS L., en Philosophie und Gesetz,GS II, p. 122.

22. All political action is then guided by some thought of better and worse. STRAUSSL., What is political philosophy?, p. 10.

23. But thought of better or worse implies thought of the good. STRAUSS L., Whatis political philosophy?, p. 10.

24. Cf. ARISTOTELES, Etica a Nicómaco, 1094 a 1.

Page 125: SCINTILLA - FAE

LEO STRAUSS Y LA HERENCIA FILOSÓFICO-POLÍTICA

125Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 113-144, jan./jun. 2009

inmutabilidad y más aún, a la idea de Dios25. Sin la existencia de lobueno y justo por excelencia no tendría sentido el lenguaje político,pues justo y bueno sería solo aquello que resulta de la imposición delmás fuerte. El historicismo en su crítica del modelo ius-naturalista debase metafísica, ofrece, según Strauss, la mejor prueba de lo dicho26.En efecto, la sola afirmación a saber, que lo pasado debe quedarencerrado dentro de los límites del pasado y que solo lo posterior esdigno de consideración, eleva a regla y medida precisamente lo posterior,ello sin ejercer una cuidadosa crítica de lo anterior. De este modo, laposición historicista reduce, paradójicamente, la perspectiva histórica27.El neo-positivismo y el positivismo jurídico son también contrastadospor Strauss a propósito de la descripción del comportamiento y deltipo de argumentación propuestas por Trasímaco. Se ve, en las actitudesde este personaje, alguien que escinde Phycis de Nomos, orden naturalde convención. Lo justo es lo legal y lo legal bien puede estarrepresentado por el tirano. No hay pues una instancia superior regulativadel mejor orden posible, sino que será el mejor orden aquel que cuentecon la voluntad del tirano como su único sustento. A través del análisisde la conducta política de Trasímaco, Strauss pone de manifiesto larelevancia de la proyección del paradigma weberiano, vale decir, laseparación de hechos y valores, la exaltación de la figura del Leviatánhobbesiano como modelo del decionismo político y, por qué no, eltrasunto jurídico de ambas posiciones en el modelo positivista de H.Kelsen.

25. Cf. STRAUSS L., What is political Philosophy?, p. 11. Cf. STRAUSS L., NaturalRight and History, p. 9.

26. STRAUSS L., Natural Right and History, p. 12-13.

27. Cf. MEIR H., Die Denkbewegung von Leo Strauss. Die Geschichte der Philosophieund die Intention des Philosophen, Stuttgart-Weimar, 1996, p. 29-30. Cf. STRAUSSL., The Three Waves of Modernity, en Hilail GILDIN ed. Political Philosophy: SixEssays by Leo Strauss, Indianapolis, 1975, p. 96.

Page 126: SCINTILLA - FAE

126

DR. JOSÉ RICARDO PIERPAULI

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 113-144, jan./jun. 2009

Como consecuencia de ello y en la perspectiva del historicismo ydel neo-positivismo, la filosofía política medieval y la antigua pertenecenal pasado28, pues se apoyan en la percepción de una dimensiónteleológica de la naturaleza y por ende, de un orden pre-establecido alorden político. Vale decir, la dimensión teleológica del orden naturalconduce al reconocimiento de una última fundamentación teológicade dicho orden. Frente a la herencia del pasado, sólo pueden adoptarsedos actitudes válidas, o bien estudiarlas como piezas de museo sinposibilidad alguna respecto del presente, o bien ignorarla por completo.Una nueva actitud podría agregarse a las enunciadas por Strauss, a saber,estudiar la filosofía de la Edad Media bajo la lente de la modernidad,estableciendo una nítida separación entre razón y fe.

The genuine understanding of the political philosophies whichis then necessary may be said to have been rendered possible byshaking of all traditions; the crisis of our time may have theaccidental advantage of enabling us to understand in anuntraditional or fresh manner what was hither to understoodonly in a traditional or derivative manner. This may applyespecially to classical political philosophy which has been seenfor a considerable time only through the lenses of modernpolitical philosophy and its various successors29.

El filósofo se mueve dentro de un tiempo histórico perotrascendiéndolo. Sus soluciones permanecen abiertas, y por ello debenser exhaustivamente estudiadas, a fin de reconocer sus limitaciones,pues no es el paso del tiempo el recurso que permite debilitar su rigorsistemático. Cuando desaparece la dimensión trascendente, vale deciraquella que, en el mito de la caverna permite juzgar acerca de las cosas

28. In consequence, the belief in progress, as distinguished from the views of thephilosophic tradition, can be legitimately criticed on purely historical grounds. Thiswas done by early historicism, which showed in a number of cases – the most famousexample is the interpretation of the Middle Ages – that the progressivist view of thepast was based on an utterly insufficient understanding of the past. STRAUSS L.,What is political philosophy?, p. 67.

29. STRAUSS L., The city and the man, Chicago, 1964, p. 9.

Page 127: SCINTILLA - FAE

LEO STRAUSS Y LA HERENCIA FILOSÓFICO-POLÍTICA

127Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 113-144, jan./jun. 2009

y aquella que, según vimos, permite en Las Leyes, establecer el mejororden político posible, aparece, en su reemplazo, la actitud dictatorialde los enemigos de la Filosofía, esto es, los sofistas, los neo-positivistasy los historicistas.

La situación actual de la cultura parece haber sumergido al hombreen el fondo de la caverna y con ello, haber puesto en peligro la vidafilosófica. Mientras que para los antiguos y los medievales filosofarimplica abandonar la caverna, elevarnos por encima de lo visible en lasuperficie, en definitiva, búsqueda de lo esencial y de aquella verdadque ofrece sentido pleno a lo aparente, para el hombre moderno ycontemporáneo filosofar pertenece estrictamente al mundo histórico,a la llamada cultura o bien, a la Weltanschauung.

En el fondo de la caverna se encuentran los hombres amarrados asus sillas, sin posibilidad de girar su cabeza hacia atrás. Sólo les es posiblemirar las representaciones proyectadas sobre la pared que tienen pordelante. Es necesario pues liberarse de las cadenas que hasta ahora losmantienen en sus lugares, para ir en busca de la realidad. Mas estaactitud propia del sabio, implica un poner el mundo de lasrepresentaciones entre paréntesis. La verdadera racionalidad está paraStrauss, más allá de lo meramente sensible y también más allá del nivelde las opiniones vulgares. Entre tanto, en el fondo de la cavernacontinúa la discusión acerca de cuestiones políticas. Allí sólo opinanquienes creen saber a partir de ideas formadas fuera de la trascendencia,mas no por ello despojadas de su pretensión de totalidad.

Philosophizing means to ascend from the cave to the light ofthe sun, that is, to the truth. The cave is the world of opinion asso opposed to knowledge. Men cannot live, that is, they cannotlive together, if opinions are not stabilized by social fiat. Opinionthus becomes authoritative opinion or public dogma orWeltanschuung. Philosophizing means, then, to ascend frompublic dogma to essentialy private knowledge30.

30. STRAUSS L., Natural right and History, p. 12-13.

Page 128: SCINTILLA - FAE

128

DR. JOSÉ RICARDO PIERPAULI

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 113-144, jan./jun. 2009

Se trata, desde el punto de vista epistemológico, de un estadio pre-científico de la Scientia política31. Precisamente la verdadera actitudfilosófico-política consiste en reemplazar las opiniones vulgares porconocimientos ciertos acerca de la totalidad32. Mientras que para elhistoricismo, en esta posición pre-científica, lo posterior esverdaderamente relevante, para Strauss, es lo anterior lo verdaderamenterelevante en la medida en que a partir de su comprensión, recién podrácaptarse y aun anticiparse lo posterior. El verdadero filósofo haencontrado, siguiendo a Platón, el verdadero centro unitivo, aquellafuente dimanante del verdadero sentido de todas las cosas, saber elbien más alto. Hasta aquí deben formularse algunas consideraciones.En efecto, para Strauss, todo filósofo político auténtico está de algúnmodo obligado a asumir en principio una posición platónica. Todofilósofo auténtico deberá enfrentar primeramente un problema político.Lo dicho podría comprobarse del modo siguiente: Cualquiera denosotros podría caminar por la calle, intentando mostrar que en verdadla raíz de nuestros problemas políticos está en la recuperación de unaactitud genuinamente filosófica. Podríamos intentar convencer a losdemás que sólo mediante el retorno a la trascendencia, o lo que equivalea la misma idea en la argumentación de Strauss, lo inmutable, lo justoy lo bueno siempre y en todo lugar33, podremos tal vez alcanzar apercibir el horizonte de un orden político más justo. Podríamos ir máslejos aún, intentado decir a nuestros semejantes que la solución a losproblemas políticos es ante todo de orden religioso. Sin embargo esteno fue el eje argumentativo de Strauss.

31. Cf. STRAUSS L. On Classical Political Philosophy, en: PANGLE T., The Rebirth ofclassical political rationalism, p. 51.

32. ...philosophy is necessarily preceded by opinions about the whole. It is, therefore,the attempt to replace opinions about the whole by kowledge of the whole. STRAUSSL., What is political philosophy?, p. 11.

33. Cf. STRAUSS L. Natural Right and History, p. 8.

Page 129: SCINTILLA - FAE

LEO STRAUSS Y LA HERENCIA FILOSÓFICO-POLÍTICA

129Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 113-144, jan./jun. 2009

En efecto, para el autor alemán, es aquí donde el verdadero filósofo,aquel en quien el platonismo se da fácticamente, deberá asumir el riesgode Sócrates y de Aristóteles. El auténtico filósofo debe pues leer a Platóny a Aristóteles. Mas deberá filosofar con vistas, como se dijo, de lapreservación del orden justo o del cambio del orden injusto. Por estemotivo, deberá hablar, pero no podrá hacerlo abiertamente y para todosen la plaza pública, pues al no ser debidamente comprendido por todosa causa de la confusión reinante, no sólo su propia vida correrá peligro,sino lo que es más importante, también la vida de la filosofía. A pesarpues del peligro, el filósofo debe regresar a la ciudad para hablar. Comoen el caso de Sócrates, es mejor morir por la filosofía, que preservar lapropia vida a costa de la filosofía. Ese es el ideal de la vida filosófica. Elverdadero filósofo político deberá extraer de aquí dos consecuencias.En primer lugar, de orden metodológico. En efecto, deberá hablarpara pocos, escondiendo las perlas preciosas del saber detrás del lenguajeexplícito. De la adquisición de ese arte depende la vida misma de lafilosofía política. El filósofo político debe hablar. Strauss muestra queSócrates prefirió morir en su patria. Sócrates consideró más relevanteofrecer una última lección de filosofía política mediante su martirio,allí donde ese saber estaba en peligro, antes que salvar su vida fuera dela patria. Valía menos su propia vida que el saber político auténtico.

Strauss parece darnos a entender, siguiendo en esto la tradiciónantigua y medieval, que el hombre no es tan sólo un animal político,sino principalmente religioso, pues sólo encuentra el sentido verdaderode todo lo real cuando encuentra a Dios detrás de cada naturaleza. Latensión pues hacia lo verdaderamente trascendente es innata en elhombre de tal modo que cuando el filósofo político asume la actitudsocrática también honra a Dios, cuya ley se ofrece como un datoirrefutable. Provisoriamente puede decirse que la base de la crítica deStrauss al modelo de la modernidad radica en el descubrimiento de lotrascendente detrás de la idea de naturaleza.

Page 130: SCINTILLA - FAE

130

DR. JOSÉ RICARDO PIERPAULI

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 113-144, jan./jun. 2009

Lo que Strauss nos propone es una rehabilitación de la genuinaperspectiva histórico política. No es que la nueva ciencia política hubieraperdido de vista el horizonte histórico, de hecho Strauss concluye quela auténtica filosofía política es apenas un cuerpo en estado dedescomposición al que pronto debe darse sepultura, mas tiene en comúncon la nueva, el interés por la historia de las ideas pero, como fuedicho, invirtiendo el sentido de la pregunta. Esta es la actitud de losintelectuales sponsoriados por el poder político de turno. Conviene puesreiterar: Ya no preguntamos qué dijeron los antiguos y los medievales,sino que sería apropiado que digan y mejor aún, que han dicho enfavor de nuestros propios intereses. Para ello indagamos acerca delpasado con las herramientas metodológicas del presente. Para Straussen cambio, siguiendo las valiosas indicaciones de Maimónides, debemosconstruir una llave según la medida del tesoro que debe abrirse. Vanosserán pues los intentos de abrir esos tesoros del pasado y del medioevocon herramientas construidas en abstracto. De allí el peligro que naciócon la actitud del positivismo del Siglo XIX frente al pasado. A partirde entonces será de especial relevancia el criterio metodológico queaplican los estudiosos para alcanzar sus metas. Aquí el método actúacomo una metafísica alternativa y aún más, detrás de la misma subyaceuna teología cuyo objeto es la negación de Dios.

Sin embargo, la referencia hacia un centro explicativo de todo loreal que Strauss recibió de Platón y de Maimónides, le permitióofrecernos una nueva e importante contribución: Si no existe puesposibilidad alguna de conocer el bien y lo justo y posteriormente la leynatural, no es posible la filosofía política como scientia practica34, sinocomo mera descripción de los hechos políticos35. Mientras que la

34. Cf. STRAUSS L. On Classical Political Philosophy, en: PANGLE T., The Rebirth ofClassical Political Rationalism. An introduction to the Thought of Leo Strauss, p. 57.

35. Cf. STRAUSS L., What is political philosophy, p. 14. STRAUSS L., On Classical

Page 131: SCINTILLA - FAE

LEO STRAUSS Y LA HERENCIA FILOSÓFICO-POLÍTICA

131Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 113-144, jan./jun. 2009

reflexión propia de la filosofía política tradicional estaba orientada haciael orden político justo, la ciencia política actual se preocupa por elestudio de hechos políticos a partir de los cuales pretende obtenercriterios universalmente válidos. Mas esa pretensión, siguiendo elmodelo de Maquiavelo, no podrá sobreponerse a la contingenciahistórica, debido a la pérdida precisamente del punto de vista que, enla perspectiva platónica, ofrecía a la vez unidad y sentido al saber, valedecir el bien, y, posteriormente, debido a la pérdida de su criteriovalorativo por excelencia: Bonum esse faciendum et prosecuendum etmalum vitandum. Este principio que es evidente per se, resultacuestionable tanto para el historicismo como para el neo-positivismo.

The attempt to replace the quest for the best political order bya purely descriptive or analytical political science which refreinsfrom value judgments is, from the point of view of the classics,as absurd as the attempt to replace the art of making shoes, thatis, good and well-fitting shoes, by a museum of shoes made byapprentices, or as the idea of a medicine which refuse todistinguish between health and sickness36.

Así por tanto, sostiene Strauss, el proceso de descomposición en elque no sólo la filosofía política genuina, sino también la nueva cienciapolítica se encuentra, trajo como inevitable consecuencia lafragmentación de esa ciencia en disciplinas que, sin perder su carácterpolítico, pasaron a ser radicalmente autónomas. Nuestra conclusiónen este punto, podría expresarse del modo siguiente: Strauss proponemediante su retorno a Platón, la rehabilitación de la filosofía políticacomo compromiso vital y como reflexión orientada hacia el bien y hacia elorden político justo. Mas tal rehabilitación sólo es posible, como surgede lo hasta aquí expuesto, mediante la inclusión de la política dentrode la filosofía, considerada como todo potestativo. Diríamos por nuestraparte, no es la Enciclopedia de Diderot sino la metafísica de Platón

36. STRAUSS L., ib.

Page 132: SCINTILLA - FAE

132

DR. JOSÉ RICARDO PIERPAULI

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 113-144, jan./jun. 2009

esbozada en el Mito de la caverna el criterio de legitimidad del saberhumano. Tal punto de vista cosmológico coloca a la filosofía políticaen el umbral de la teología, o dicho desde el punto de vista histórico-filosófico, permite unir el aporte platónico con aquel que emerge delas reflexiones de Moisés Maimónides.

4. La recepción de las tesis de Maimónides en la filosofíapolítica de Leo Strauss

Ante todo debemos dedicar algunas líneas, breves por cierto, a lafigura y la obra de Maimónides37. Moshe ben Maimon (1135-1204)nació en Córdoba de Andalucía y recibió su primera educación de supropio padre, maestro de reconocida sabiduría. Posteriormente se inicióen los estudios de las ciencias naturales y de la filosofía en las escuelasmusulmanas. más tarde estudió medicina en el llamado el viejo Cairo38.Su obra, de carácter fuertemente enciclopédico, ofrece valiosascontribuciones a la lógica, astronomía, medicina y a la teología. En loque respecta a la filosofía política en particular, su Commentary on theMishnah, de 1168, y la Mishna Tora (Code,) de 1180, Maimónidesintenta describir la significativa complejidad de la legislación talmúdica,ofreciendo a su argumentación una valiosa estructura sistemática. Laconocida Guide of the Perplexed, de 1185 o 1190, en cambio ofrece laarmonización de la filosofía de los griegos con las exigencias de la leydivinamente revelada en el Antiguo Testamento. El tratado conocidocomo Treatise on the Art of Logic fue escrito cuando su autor teníaaproximadamente 60 años de edad (1195). En esa obra, en aparienciapoco relevante para la filosofía política, Maimónides ofrece por primera

37. Cf. LERNER-MAHDI, Medieval Political Philosophy: A Sourcebook, Ithaca-NewYork, 1972, p. 188-189.

38. Cf. GEYER B., op. cit., p. 339-342.

Page 133: SCINTILLA - FAE

LEO STRAUSS Y LA HERENCIA FILOSÓFICO-POLÍTICA

133Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 113-144, jan./jun. 2009

vez una determinación precisa acerca del lugar de la política en el marcodel saber general.

Mas como observa el propio Strauss39, el hecho de ser este últimotratado el primero en el que Maimónides se refiere abiertamente acuestiones relacionadas con la filosofía política, no significa que el autorjudío hubiese otorgado importancia menor al tema hasta entonces. LaGuía de Perplejos ofrece contenidos políticos basados en la observaciónde la naturaleza humana al modo aristotélico40. Para Strauss,Maimónides, sin perjuicio de su condición de teólogo, constituye elpunto de partida del típico racionalismo nacido en el corazón de laEdad Media41. Aun cuando Maimónides parte de la relevancia de laprofecía seriamente cuestionada por Spinoza, la razón humana no sepuede limitar a recibir esa ley sin ofrecer su propia contribución42.

39. Cf. STRAUSS L. Maimonides´ statement on political science, en: STRAUSS L.What is politcal philosophy?, p. 155-157.

40. Cf. MAIMÓNIDES, Guía de perplejos, Cap. I-40, I-71, II-32, II-36, II-37, II-38,II-39, II-40, II-45, III-27, III-28, III-34. A los fines de un estudio exhaustivo de lasposiciones filosófico-políticas de Maimónides, conviene leer la traducción al inglés deSCHLOMO PINES, con un extenso estudio introductorio de Leo Strauss.

41. Nach einem Worte Hermann Cohens ist Maimuni der Klassiker des Rationalismusim Judentum. Dieses Wort scheint uns in einem genaueren Sinne richtig zu sein alsCohen es wohl gemeint hat: Maimunis Rationalismus ist das wahrhaft natürlicheVorbild, der vor jeglicher Verfälschung sorgfältig zu hütende Maßstab, damit derStein des Anstoßes an dem der moderne Rationalismus zuschanden wird. STRAUSSL., Philosophie und Gesetz, GS II, p. 9.

42. Das Gesetz ruft auf zum Glauben die wichtigsten Wahrheiten an Gottes Existenz,Einheit usw. Glauben ist aber nicht bloßes Bekannten mit den Lippen, sondernVerständnis des Geglaubten; der Glaube ist erst dann vollkommen, wenn der Menscheingesehen hat, dass das Gegenteil des Geglaubten in keiner Weise möglich ist. DasGesetz ruft also zum Verständnis und zum Beweis der von ihm mitgeteilten Wahrheiten.Damit befiehlt es implizite die Erkenntnis der Welt; denn Gott ist nur von seinenWerken her zu erkennen. Zwar hat es diese Erkenntnis nicht ausdrücklich mitgeteilt;aber indem es befiehlt, Gott zu lieben und Gott zu fürchten, befiehlt es die Erkenntnisder Welt, welche der Weg zur Gottesliebe und zur Gottesfurcht ist. Die Anneigungder vom Gesetz vorgeschriebene Wahrheiten hat vierlei Vorstudien zur Voraussetzung:Mathematik, Logik und Physik. STRAUSS L., Philosophie und Gesetz, GS II, p. 75 yMAIMÓNIDES, More Neboukim, I-34, I-50, III-28 y III-51.

Page 134: SCINTILLA - FAE

134

DR. JOSÉ RICARDO PIERPAULI

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 113-144, jan./jun. 2009

La racionalidad desarrolla su tarea a partir de la Revelación y nofrente a la misma como más tarde lo porpondrá Spinoza. Por tal motivoel Profeta debe ser también filósofo43. Para Strauss la existencia deDios y el valor de su ley es un hecho inobjetable. Precisamente a partirde allí cobra sentido el punto de vista crítico de toda su filosofía política.En efecto, ya en la modernidad el filósofo político debió estar en lasituación de los sabios que descendían nuevamente a la caverna. Loshombres no creían ya más en el significado teológico de la naturalezani en su carácter regulador e inmutable y por tanto, no aceptaban laresolución de los problemas políticos en términos filosófico-políticos.Desde entonces la posibilidad de la filosofía volvió a depender, desdeel punto de vista metodológico, del arte de la escritura esotérica, a finde preservar su propia vida ante un poder político que no acepta eldebate filosófico-político. Desde el punto de vista sistemático, se tratabade la substitución del saber político vulgar, vale decir el de los prisionerosde la caverna, por el saber verdadero acerca de un orden político mejor.Pero esa posibilidad sólo podrá concretarse mediante la inclusión de lapolítica dentro de la filosofía y, por su parte, de esta, dentro de y apartir de la ley divinamente revelada. «Of Philosophy thus understood,political philosophy is a branch. Political philosophy will then be theattempt to replace opinion about the nature of political things byknowledge of the nature of political things»44.

En síntesis pues: Un conocimiento omniabarcador y a la vezexplicativo de todo lo real sólo es posible, para el lector de Maimónidesantes que de Platón, como conocimiento de Dios. «Quest forknowledge of all things means quest for knowledge of God, the world

43. Se debe destacar que la doctrina de la profecía juega un rol relevante tanto en lafilosofía política de los árabes como de los autores judíos. Cf. STRAUSS L., Quelquesremarques sur la science politique de Maimonides et de Farabi, en: STRAUSS L.Philosophie und Gesetz, GS II, p. 125-165.

44. Cf. STRAUSS L., What is political Philosophy?, p. 12.

Page 135: SCINTILLA - FAE

LEO STRAUSS Y LA HERENCIA FILOSÓFICO-POLÍTICA

135Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 113-144, jan./jun. 2009

and man – or rather quest for knowledge of the natures of all things:the natures in their totality are the whole45. Véase de qué modo, a laluz de los textos paralelos a los anteriormente citados a propósito de larecepción de Platón, va integrando Srauss la perspectiva platónica conla de Maimónides. Dado pues, que todas nuestras acciones morales ypolíticas son pensadas teniendo en vista el cambio o la preservación deun determinado orden político, todas esas acciones están orientadashacia la buena vida. Ésta es en concreto la finalidad última de la filosofíapolítica. Toda vez que la naturaleza de las cosas nos remite a Dios,Maimónides ofrece a nuestro autor la posibilidad de integrar el esquemaplatónico de La República y de Las Leyes, vale decir, la idea del bien,con la idea de un Dios trascendente que habla a través de la naturalezay de sus profetas46. Enunciamos a continuación nuestra segunda tesisen el nivel histórico filosófico.

Strauss postuló el retorno a un racionalismo y por qué no a un ciertoiluminismo medieval, mediante la rehabilitación de la filosofía políticade Maimónides47. La recepción de la obra política de Maimónidesconstituye el nivel exotérico sobre el que se apoya la argumentación esotéricade Strauss. Queremos decir, como fue en el caso de Platón, que al

45. Id. ibidem.

46. Cf. STRAUSS L., Philosophie und Gesetz, GS II, p. 68. Precisamente en el marco deesta obra se puede ler la contribución tal vez más esclarecedora respecto de ese punto.Cf. STRAUSS L., Die philosophishce Begrundung des Gesetzes. Maimunis Lehrevon der Prophetie und ihre Quellen, en: STRAUSS L., Philsophie und Gesetz, GS II, p.87-123.

47. El retorno a Maimónides tuvo lugar en la crítica a Espinosa. “Maimuni vereinbartVernunft und Offenbarung am radikalsten dadurch, daß er den Kennzeichnung Zweckder Thorah, des göttlichen Gesetzes, mit dem Zweck der Philosophie identifiziert. Derkennzeichnende Unterschied des göttlichen Gesetzes von den menschlichen Gesetzenist, dass diese nur der Vollkommenheit des Körpers dienen, jenes sowohl die Vollkomenheitdes Körpers als auch die Vollkommenheit der Seele zum Zweck hat.” STRAUSS L.,Untersuchungen zu Spinozas Theologisch-politischem Traktat, 1930, en: DieReligionskritik Spinozas und zugehörige Schriften, GS I, Stuttgart-Weimar, 1996, p. 215.

Page 136: SCINTILLA - FAE

136

DR. JOSÉ RICARDO PIERPAULI

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 113-144, jan./jun. 2009

parecer, Strauss también habla detrás de Maimónides. Mas la preguntaque ante todo debe formularse aquí es la siguiente: Existe en rigor unafilosofía política en el pensamiento de Maimónides? Algunos trabajos48

dedicados a esta misma cuestión hablan a favor de una respuestaafirmativa, entre ellos se cuenta, sin duda, la obra del autor que esobjeto del presente examen. Dice Strauss: Il y a, dans la philosophie deMaimonide aussi bien que dans celle de ses maitres musulmans et de sesdisciples juifs, une science politique49.

Como se sabe, la filosofía judaica es, en parte, deudora de la Cábalay en parte de un modo peculiar de recepción de la tradición platónicay aristotélica50. Es esta segunda tradición la que aquí nos interesa demodo especial, pues Strauss viene siendo identificado con la misma.El análisis de este punto de vista, que conduce a la comprensión delpasaje de nuestra primera tesis a la segunda, debe partir del siguientepresupuesto: Strauss recibió la filosofía política de Maimónides a partirde un presupuesto que es a la vez – mas bajo una diferente perspectiva– platónico y no exclusivamente platónico. Es platónico en el nivelexotérico, pero ese platonismo, unido a la recepción de las doctrinasde Maimónides y, en parte de Aristóteles, hace que, en el nivel esotérico,Strauss pueda ofrecer una filosofía con límites bien definidos y almismo tiempo, enteramente compatible con la posición asumida porun filósofo judío pre-moderno. Si el eje argumental del pensamientode Strauss se puede identificar mediante la relación ley-filosofía, y dehecho al postular el término ley nos referimos a la ley divinamenterevelada, queda en evidencia el papel decisivo que jugará en la filosofía

48. Cf. ROSENTHAL E., Maimonides´Conception of the State and Society, en:EPSTEIN I, Moses Maimonides, Londres, 1935, p. 189-206.

49. STRAUSS L., Quelques remarques sur la science politique de Maimonide et deFarabi, en: Philosophie und Gesetz, GS II, p. 125.

50. Cf. GEYER B., op. cit., p. 325.

Page 137: SCINTILLA - FAE

LEO STRAUSS Y LA HERENCIA FILOSÓFICO-POLÍTICA

137Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 113-144, jan./jun. 2009

política de Strauss su propia idea acerca de cuál sea la ley divinamenterevelada51. Strauss, comentando a Maimónides, sostiene que la leydivinamente revelada está contenida en el Antiguo Testamento. Mas el

único modo de comprender cabalmente la posición teológico-política

de Maimónides, así como la de todos los filósofos árabes y judíos del

medioevo, afirma Strauss, es solamente a partir de la filosofía política deAl-Farabi52.

El mismo Maimónides recuerda, en carta a Ibn Tibbón, que de

entre los filósofos árabes Al-Farabi merecía especial atención, pues todos

sus escritos son como harina de la mejor calidad53. De hecho Al-Farabi

puede ser considerado así como un segundo Aristóteles54. En efecto,

dentro del mundo árabe, Al-Farabi intentó en el siglo X, aquello que

sería luego concretado por Alberto Magno en el siglo XIII a saber, la

síntesis entre el Platonismo-neo-platonismo y aristotelismo a la luz de

los presupuestos de la doctrina revelada. La tentativa de superación del

antagonismo entre Platón y Aristóteles no fue sólo patrimonio de los

teólogos cristianos del siglo XIII, sino antes de Al-farabi (X) y de

51. “Der Versuch, die wirkliche Offenbarung im Horizont der Platonischen Politik zuverstehen, zwingt zu Veränderungen des Platonischen Rahmens mit Rücksicht auf diewirkliche Offenbarung.” STRAUSS L., Die philosophische Begründung des Gesetzes.Maimunis Lehre von der Prophetie und ihre Quellen, en: Philosophie und Gesetz, GSII, p. 118.

52. STRAUSS L., Quelques remarques sur la science politique de Maimonide et deFarabi, en: Philosophie und Gesetz, GS II, p. 128.

53. Cf. Carta a R. Samuel Ibn Tibbón, en: Cartas y testamento de Maimónides, ed. alcastellano de CARLOS DEL VALLE, Córdoba, 1989, p. 33-34.

54. La importancia del lugar de Alfarabi en la historia de la filosofía política consiste enque él recuperó la tradición clásica y la hizo inteligible dentro del nuevo marco aportadopor las religiones reveladas. MAHDI M., Alfarabi (870-950), en: STRAUSS-CROPSEY, Historia de la filosofía política, trad. al castellano de L. GARCIA y DSÁNCHEZ, México, 2000, p. 205.

Page 138: SCINTILLA - FAE

138

DR. JOSÉ RICARDO PIERPAULI

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 113-144, jan./jun. 2009

Maimónides (XII)55. Mas dejadas de lado estas cuestiones histórico-filosóficas, retomamos la pregunta previa de nuestro principal asunto:Hubo entre los árabes y los judíos una filosofía política? Hay, en casoafirmativo, una relación entre esas dos filosofías políticas? La anteriordigresión histórico-filosófica servirá aquí apenas para levantar unahipótesis de trabajo. En la perspectiva de Strauss existe tal filosofíapolítica56. Pues, dice el autor alemán:

Les hommes ont besoin, pour vivre, d´une direction et, parconséquent, d´une loi; ils ont besoin, pour vivre bien, pouratteindre la félicité, d´une loi divine qui les dirige non seulment,comme la loi humaine, vers la paix et la perfection morale, maisencore vers l´intelliggence des vérités supremes et, par là, vers laperfection supreme; la loi divine est donnée aux hommes par(l´intermédiaire d´) un homme qui est prophète, c´est-à-direqui réunit dans sa personne toutes les qualités essentialles aussibien du philosophe que celles du législator et du roi; l´activitépropre du prophéte c´est la législation57.

Para Strauss igual que para Maimónides, esa ley está contenida enel Pentateuco. En términos puramente teológicos, nuestro autorafirmará que un filósofo judío no puede permitirse el olvido de esaley. La puesta de relieve de la función legislativo-política del profeta –la figura del Profeta es común a ambas teologías – junto con la inclusiónde la misma como tema de la política, constituye un hito de significativarelevancia. Mas tal inclusión implica: 1 – La remisión de la política al

55. Debe destacarse que la línea doctrinal que parte desde Al-farabi y se proyecta hastaMaimónides, alcanzó una importante proyección en el ámbito de la escolástica cristianadel medioevo. Cf. JOEL M., Verhaeltniss Albert des Grossen zu Moses Maimonides,en: Jahrbericht des judisch-theologischen Seminar Fraenckelscher Stiftung, Breslau, 1863,p. I-XXVVII. Cf. ROHNER A., Das Schoepfungsproblem bei Moses Maimonides, AlbertusMagnus und Thomas von Aquin, Muenster, Wiesbaden, 1913, p. 1-44.

56. Cf. STRAUSS L., Quelques remarques sur la science politique de Maimonides etde Farabi, en: Philosophie und Gesetz, GS II, p. 125.

57. STRAUSS L., ibidem.

Page 139: SCINTILLA - FAE

LEO STRAUSS Y LA HERENCIA FILOSÓFICO-POLÍTICA

139Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 113-144, jan./jun. 2009

interior de la teología, 2 – El reemplazo del Filósofo Rey de Platónpor la nueva figura del Profeta58 y 3 – El punto de partida paracomprender la teoría de la iluminación en la versión neo-platónica queStrauss acepta, a fin de delinear debidamente aquello que antes hellamado el iluminismo medieval.

El texto que acabo de transcribir no deja dudas acerca del hechosiguiente. Strauss no desecha por completo los elementos aristotélicosde su filosofía política. La preocupación de nuestro autor no radica enunir a Platón directamente con la teología judaica, sino antes bien enintegrar, en cuanto sea posible, a Platón con Aristóteles, paraposteriormente armonizar esa síntesis con aquellos presupuestosteológicos. El filósofo alemán actúa en primer lugar como abogadodel diablo, proponiéndonos la siguiente observación: Ninguno de losfilósofos árabes ni judíos comentó la filosofía política del Estagirita.Averroes, por caso, dejó sin comentar dos textos de Aristóteles, ellosson precisamente la política y el Tratado acerca de los Sueños y de laAdivinación. En opinión de Strauss59 ello se debe al hecho, por lodemás comprensible, que la integración de esas doctrinas con lospresupuestos de la teología musulmana, impediría un completodesarrollo de esa teología. La relación ley y filosofía es aquí decisiva y

58. Al respecto dice Strauss: “Der Prophet als Philosoph-Staatsmann-Seher(-Wundertäter) in einem ist der Stifter des idealen Staates. Der idealen Staat wird nachder Anleitung Platons verstanden: der Prophet ist der Stifter des Platonischen Staates.Durch Platons Forderung, daß Philosophie und politische Macht zusammenfallenmüssen, wenn der wahrhafte Staat wirklich werden soll, durch Platons Begriff vomPhilosophen-König ist der Rahmen abgesteckt, dessen mit Rücksicht auf die faktischeOffenbarung vollzogene Ausfüllung den Prophetie-Begriff der Falasifa und Maimunisergibt. Das Verständnis dieser Prophetologie hängt also davon ab, daß das Verhältnisder Position der Falasifa zur Position Platons aufgeklärt wird. STRAUSS L., Diephilosophische Begründung des Gesetzes. Maimunis Lehre von der Prophetie undihre Quellen, en: Philosophie und Gesetz, GS II, p. 118.

59. Cf. STRAUSS L., Quelques remarques sur la science politique de Maimonides etde Farabi, en: Philosophie und Gesetz, GS II, p. 127-128.

Page 140: SCINTILLA - FAE

140

DR. JOSÉ RICARDO PIERPAULI

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 113-144, jan./jun. 2009

lo es a punto tal que la filosofía constituye una cierta derivación de laley divinamente revelada. De allí que resulte decisivo el momento dela contemplación que Strauss recogió de los filósofos antiguos. En ese

plano, Strauss prefiere destacar el acuerdo que hay entre Platón y

Aristóteles en cuanto a la primacía de la contemplación. Mas desde el

punto de vista sistemático debe observarse que mientras Platón busca

la racionalidad de la praxis en la contemplación del bien más alto,

Aristóteles la encuentra en las cosas mismas. Por este motivo, siguiendo

en este punto a Avicenna60, Strauss sostendrá que el modelo platónico

sirve, en su estructura fundamental, para recibir la doctrina de la profecía

y de la providencia en el nivel teológico61.

La filosofía política de Maimónides se integra al nivel de la teología

y al de la metafísica62 por dos motivos. El primero de ellos, como se

dijo, por la relevancia atribuida a la figura del profeta. El segundo,

realmente digno de mención: Maimónides, en la perspectiva de Strauss,

no habló explícitamente de temas políticos al modo de otros tratadistas

posteriores. Sus tesis políticas, igual que ocurre en el caso de la estructura

argumental de su maestro Al-Farabi, se ubican dentro del More

Nebukim, luego del tratado acerca de los atributos divinos. Ello en

virtud de que, como señala Strauss, tanto para los falasifa como para

los filósofos judíos del medioevo, la ley moral y política está contenida

de una vez en la ley revelada. La política es allí un tema sin duda de la

teología. Ese punto de vista explica el hecho que cuando Maimónides

60. Cf. STRAUSS L., op. cit. p. 126.

61. Cf. STRAUSS L., Der Ort der Vorsehungslehre nach der Ansicht Maimunis, en:Philosophie und Gesetz, GS II, p. 179ss.

62. Cf. STRAUSS L., Quelques remarques sur la science politique de Maimonides etde Farabi, en: Philosophie und Gesetz, GS II, p. 139.

Page 141: SCINTILLA - FAE

LEO STRAUSS Y LA HERENCIA FILOSÓFICO-POLÍTICA

141Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 113-144, jan./jun. 2009

se ocupa de clasificar los saberes, en su Tratado de Lógica63, sólo formulauna digresión muy rápida acerca del saber político, pues paraMaimónides, desde que existe la ley divina los libros sobre políticaescritos por los filósofos paganos se tornaron superfluos. El modo deordenar la comunidad política está íntegramente dado en aquella ley.Por su parte, para Strauss, siguiendo en esto a Maimónides, la totalidadde la doctrina acerca de la ley se remite a la teoría de la profecía, puessin profeta no es posible conocer la ley64.

El profeta, vale decir el encargado de traducir en términos políticosla ley divina, debe reunir en su propia persona las siguientes cualidades:1 – Debe poseer un intelecto humanamente perfecto, 2 – Debe practicarbuenas costumbres – en acuerdo con la ley divina, 3 – debe poseergran capacidad para comprender una situación dada y sus futurasconsecuencias (Einbildungskraft), 4 – debe ser valiente, 5-Debe poseercapacidad de adivinación y por último 6-Debe poseer el don de mandosobre los demás hombres65. Sin profeta no hay ley divina, pues él es elmediador entre Dios y los hombres. Pero, dado que la ley se sustentaen la Fe religiosa y dado que creer no es apenas un mero reconocimientocon los labios, sino con el entendimiento de lo creído66, el profeta

63. Cf. MAIMONIDES, Logic, cap. XIV, trad. del original árabe al inglés por MuhsinMahdi, en: LERNER-MAHDI, Medieval Political Philosophy: A Sourcebook, Ithaca-New York, 1963, pp. 189-190. Cf. STRAUSS L., Maimonides´ Statement on PoliticalScience, en: SRAUSS L., What is political Philosophy?, p. 155-169.

64. Les fondaments de la théorie de la loi ne se trouvent donc pas allieurs que dans ladoctrine de la prophétie. Il ne peut pas en etre autrement: On sait que la croyance à laprophétie precede la croyance à la loi; car s´il n´y a pas de prophète, il n´y a pas de loi.STRAUSS L., Quelques remarques sur la science politique de Maimonides et de Farabi,en: Philosophie und Gesetz, GS II, p. 138 y MAIMONIDES, Moré Nebukim, III-45,Hamburg, 1995, p. 274-284.

65. Cf. STRAUSS L., Die philosophische Begründung des Gesetzes. Maimunis Lehrevon der Prophetie und ihre Quellen, en: Philosophie und Gesetz, GS II, p. 87.

66. Cf. STRAUSS L., op. cit, p. 75.

Page 142: SCINTILLA - FAE

142

DR. JOSÉ RICARDO PIERPAULI

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 113-144, jan./jun. 2009

debe ser ante todo un piadoso creyente en la única ley a saber en laThora. Véase una vez más la coincidencia con el papel atribuido porPlatón al consejo nocturno en Las Leyes. Y, dado que esa es la única leyverdadera, le será lícito procurar la aceptación de la misma por todaslas naciones del orbe. De allí la inclusión, propuesta por Maimónides67,de aquello que hoy llamaríamos el Derecho Internacional Público,como rama del saber político68.

El profeta no es tan solo un legislador en el sentido técnico en quehoy lo entendemos según el Derecho Positivo. Tampoco puede decirseque la filosofía política de los árabes y de los judíos parta desde unpresupuesto positivista. Por el contrario, el profeta debe ser ante todoel traductor en términos políticos, de la sabiduría que recibe porinmediata revelación de Dios. De este modo también valdrá paraMaimónides aquello que el extranjero ateniense nos relataba en LasLeyes a saber, que el gobierno de Las Leyes era semejante al gobiernodivino. El profeta es filósofo sólo dentro de esos límites. Comparadocon la figura del jefe político aristotélico, el profeta es mucho más queun hombre prudente, es aun un vidente y un providente. Las luces desu entendimiento constituyen, desde la perspectiva neo-platónica, unaefusión divina. El profeta debe saber que no podrá hablar para todoslos hombres y por tanto deberá poseer el arte de saber hablar entrelíneas. Aquello que Platón puntualizaba como uno de los atributos

67. Political science falls into four parts: first, the individual man´s governance ofhimself; second, the governance of the household; third, the governance of the city;and fourth, the governance of the large nation or of the nations. MAIMONIDES,Logic, Trad. Por M. MAHDI, a partir del original árabe, en: LEHRNER-MAHDI,Medieval Political Philosophy. A sourcebook, Ithaca-New York, 1963, p. 189. La obrafue escrita cuando Maimónides tenía 60 años de edad.

68. Debe recordarse que también para los musulmanes es teológica y políticamentelícito emprender la guerra para que la ley divina se cumpla. Cf. MAHDI M., Alfarabi,en: STRAUSS-CROPSEY, Historia de la filosofía política, op. cit. p. 218-222.

Page 143: SCINTILLA - FAE

LEO STRAUSS Y LA HERENCIA FILOSÓFICO-POLÍTICA

143Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 113-144, jan./jun. 2009

del Político Sabio, se constituye aquí en uno de los atributos del profeta.Así por tanto, la filosofía sirve a la teología. El profeta no es otra cosaque el reemplazo del rey filósofo. Strauss, judío creyente, así lo entendió.En esa medida fue Strauss no tan solo un receptor de la filosofía políticaantigua, sino principalmente un transformador de la misma a la luz delos presupuestos de la filosofía política judaica del medioevo. Su retornoal ius-naturalismo reconoce pues como inseparable sustento teológico,la doctrina de Maimónides.

5. Consideraciones finales

Los aportes recogidos por Strauss de las filosofías políticas de Platóny de Maimónides por sugerencia de algunos filósofos árabes nospermiten, al final de nuestra exposición, rehabilitar el valor y el alcancede la filosofía política medieval en su relación con la moderna ycontemporánea. Strauss es de hecho y de derecho, un filósofo políticoinspirado en la escolástica judaica del Medievo. Para el filósofo alemán,la crisis de la ciencia política y de la filosofía política está decididamentecaracterizada por la crisis que vive la fe judaica desde el iluminismo enadelante: “Die gegewärtige Lage des Judentums ist als solche – alsoabgesehen von der auch in ihr und durch sie nicht angetastetenGrundverfassung des Judentums – bestimmt durch die Aufklärung”69.Así pues, la clave que permitirá superar la crisis actual de la cienciapolítica, consiste, en la perspectiva de Strauss, por un lado, en el retornode la política a la filosofía y de ésta al interior de la teología y, por elotro, en la recuperación de la dimensión espiritual de la religiónjudía108. Podríamos adaptar la tesis de Strauss a los términos de lafilosofía clásica postulando aquello que interesa en el marco de unaexposición fundamentalmente filosófica, esto es, que la clave que

69. STRAUSS L., Philosophie und Gesetz, GS II, p. 10.

Page 144: SCINTILLA - FAE

144

DR. JOSÉ RICARDO PIERPAULI

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 113-144, jan./jun. 2009

permitirá resolver la crisis actual de la filosofía política consiste, segúnStrauss, en la rehabilitación de la dimensión trascendente de la política.El ius-naturalismo straussiano es, por tanto, inseparable de la creenciaen la Tora como única ley previamente establecida e inmutable. Setrata del presupuesto no filosófico que ofrece unidad a todas sus tesisfilosófico-políticas.

Page 145: SCINTILLA - FAE

LA MÍSTICA EN EL ISLAM...

145Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 13-30, jan./jun. 2009

COMENTÁRIOSCOMENTÁRIOSCOMENTÁRIOSCOMENTÁRIOSCOMENTÁRIOS

Page 146: SCINTILLA - FAE

146

DR. RAFAEL RAMÓN GUERRERO

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 13-30, jan./jun. 2009

Page 147: SCINTILLA - FAE

A AL-SIFA’ E A SUBSTANCIALIDADE DA ALMA

147Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 147-156, jan./jun. 2009

A AL-SIFA’ E A SUBSTANCIALIDADEDA ALMA – IBN SINA – LIVRO DA

ALMA I-3Miguel Attie Filho*

O Livro da alma é o sexto na ordem do tomo das ciências naturaisda obra enciclopédica Al-Sifa’. Sua escrita deu-se durante um períodode aproximadamente dez anos, provavelmente entre 1020 e 1030 d.C.,tendo sido terminada quando Ibn Sina tinha por volta de 50 anos.Baseando-se nas referências contidas em sua autobiografia – completa-da por seu discípulo Al-Juzjani –, além de ser possível uma classifica-ção cronológica, ao menos em parte, da longa lista de seus livros, epís-tolas, comentários e outros escritos que compõem sua obra completa,por volta de 276 títulos1, também é possível e mesmo comum estabe-lecer uma divisão da vida de Ibn Sina em seis principais períodos, in-cluindo pequenas viagens e estadas em algumas cidades importantes.Os dois últimos períodos (Hamadan e Isfahan) situam a composiçãoda referida obra.

Nessa medida, a Al-Sifa’ é não só uma obra de maturidade – vistoque Ibn Sina veio a falecer em 1037d.C., aproximadamente sete anos

* Professor de filosofia e história do pensamento árabe. Depto. de Letras Orientais/FFLCH/Universidade de São Paulo.

1. A divisão mais geral apresenta 24 títulos de filosofia geral (dentre os quais a Al-Sifa’);22 de lógica; 26 de física; 33 de psicologia; 15 sobre matemática, música e astronomia;32 de metafísica; 11 sobre ética, economia, política e profecia; 43 de medicina; 3 delingüística; 1 de poesia; 6 sobre química e magia; 6 de exegese do Alcorão; 32 tratadosalegóricos e 22 cartas pessoais.

Page 148: SCINTILLA - FAE

148

MIGUEL ATTIE FILHO

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 147-156, jan./jun. 2009

depois de terminá-la –, mas também, em larga medida, selaria suasreflexões e pesquisas em várias áreas do conhecimento, às quais eleesteve ligado na maior parte de sua vida. Levando-se em conta a soma,a ordenação e o desenvolvimento de assuntos reunidos nos quatro to-mos (lógica, ciências naturais, matemáticas e metafísica), a Al-Sifa’ cons-tituiu-se num dos marcos da história da ciência e da filosofia. Isso sedeu não só porque muito do que foi produzido antes de Ibn Sinarepousou sobre sua pena, como também – e principalmente – porquemuito do que foi realizado depois de sua morte partiu dessa síntese,quer tenha sido no mundo árabo-islâmico, quer tenha sido na emer-gente Europa do séc. XII. Nesse último período, o vasto corpus árabo-greco – ou greco-árabe – recém-chegado a Europa conteve traduçõesde partes da Al-Sifa’, entre as quais destaca-se o Livro da alma, traduzi-do em latim por volta de 1152 d.C., passando a ser conhecido noocidente medieval como LiberDe Anima seu Sextus de Naturalibus.

A própria dedicatória da tradução do Livro da alma de Ibn Sinatornou-se uma fonte histórica importante ao fornecer detalhes das cir-cunstâncias da tradução, envolvendo um judeu que lia em árabe e tra-duzia oralmente em língua vulgar e um diácono cristão que adaptava aetapa oral para o texto em latim: “eis, pois, este livro, traduzido doárabe conforme vossa orientação, eu dizendo cada palavra em línguavulgar e o arquediácono Domenico convertendo-a em latim”2. Olatinista geralmente foi identificado como sendo DomenicoGundissalinus, falecido em 1190; e quem escreve e assina a própriacarta identifica-se como o arabófono da equipe: “Avendauth IsraelitaPhilosophus”, talvez “Abraham Ibn Daud”, sábio judeu que viveu emToledo nessa época, e que era conhecido, entre outras coisas, por umtratado filosófico escrito em árabe. Como essa etapa oral era realizada,

2. “Habes ergo librum, vobis praecipiente, et me singula verba vulgariter proferente, etDomenico archidiacono singula in latinum convertente, ex arabico translatum” (cf.AVICENNA LATINUS, Liber de anima I-III. Introd. Verbeke, p. 95). A dedicatóriaencontra-se integralmente em latim na p. 103s.

Page 149: SCINTILLA - FAE

A AL-SIFA’ E A SUBSTANCIALIDADE DA ALMA

149Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 147-156, jan./jun. 2009

isto é algo que não se esclareceu, pois não se sabe bem em que medidao tradutor arabófono conhecia ou não o latim e, em que medida, o tradu-tor latinista conhecia ou não o árabe. O que se pode verificar na confron-tação do texto árabe com o texto latino, é que este último contém váriosequívocos e distorções, entre eles, confusões entre raízes árabes e erros desintaxe devido à estrutura maleável da língua de partida.

Até algumas décadas atrás não havia edições dos textos árabes dasobras de Ibn Sina – nem de outros filósofos de língua árabe do mesmoperíodo – que permitissem um acesso direto às fontes originais de seupensamento. Sua filosofia geralmente foi conhecida, e inicialmentetransmitida, sob a lente de pensadores cristãos do período medieval, apartir do acesso às traduções latinas de parte de suas obras, como men-cionamos. Assim, se pensarmos nas implicações que há no fato de oKitab annafs – isto é, o Livro da alma – ter sido escrito em língua árabepor Ibn Sina, muçulmano nascido na região da antiga Pérsia, no iníciodo quarto século da Hégira, traduzido por um judeu e um cristão para alíngua latina como Liber de anima seu sextus de naturalibus na primeirametade do século XII na Espanha, onde o autor já era conhecido pelonome de “Avicena”, poderemos nos perguntar até que ponto Ibn Sina eAvicena, nafs e anima, árabe e latim – e outros tantos binômios – sãoresponsáveis por caminhos filosóficos ora distintos ora coincidentes; e porque muçulmanos, cristãos e judeus estariam embrenhados numa mes-ma tradição filosófica a respeito da natureza da alma humana.

De toda maneira, o impacto que o Livro da alma proporcionounas três tradições resultou, em parte, da convergência de categoriasaristotélicas com princípios espiritualistas básicos das três religiõessemitas. A substancialidade da alma com sua respectiva sobrevivênciaindividual após seu desligamento da matéria corporal não deixou deser um dos pontos que facilitaram a rápida acolhida das idéias de IbnSina entre os eruditos judeus, cristãos e muçulmanos. A tradução queapresentamos a seguir é a terceira das cinco seções que compõem o

Page 150: SCINTILLA - FAE

150

MIGUEL ATTIE FILHO

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 147-156, jan./jun. 2009

primeiro capítulo do Livro da alma, na qual Ibn Sina inicia a questãoa respeito da substancialidade da alma. Leve-se em conta que, seguin-do Aristóteles e partindo da noção da alma como forma e perfeição deum corpo natural, Ibn Sina, ao longo da obra, procura ultrapassar taisnoções, estabelecendo paulatinamente a afirmação de que, embora sepossa dizer que a alma seja forma e perfeição de um corpo natural, eisaí aspectos acidentais de seu caráter substancial.

Livro da alma3

Ibn Sina (Avicena)CAPÍTULO PRIMEIRO

SEÇÃO 3De que a alma está inserida na categoria da substância

Dizemos, pois: pelo que foi apresentado, tu já sabes que a almanão é corpo. Agora, se constatares que uma certa alma estaria apta aoisolamento pela sustentação de sua essência, então não te ocorreriadúvida alguma de que ela seria uma substância. Tu constatas isto so-mente num certo [caso] daquilo que se diz “alma”, pois, quanto aosoutros – tais como a alma vegetal e a alma animal – isto tu não cons-tatas enquanto tal4. Entretanto, a matéria próxima – pela existência,nela, dessas almas – somente é o que é por meio de uma mistura carac-

3. A tradução a seguir fundamenta-se nas seguintes edições: IBN SINA. Attabi’yyat –kitab annafs. Texto árabe editado por G. Anawati e S. Zayed. Cairo: 1974; IBN SINA.kitab annafs. Edição do texto árabe por RAHMAN, F. Avicenna’s De Anima, Being thePsychological part of Kitab Al-Shifa. London: Oxford University Press, 1960; IBN SINAKitab annafs. Edição do texto árabe acompanhado de uma tradução francesa por BAKÓS,J. Psychologie d’Ibn Sina. Praga: Académie tchecoslovaque des sciences, 1956; IBN SINA/ AVICENNA. Liber de Anima seu Sextus de Naturalibus I-II-III. “Avicenna Latinus”,Édition critique par S. Van Riet et Introduction par G. Verbeke, 1972.

4. A alusão restringe-se à constatação da existência que somente o intelecto tem de simesmo, tal como ilustrado na alegoria do homem suspenso no espaço. As almas vegetale animal não têm como constatarem sua própria existência, o que indica sua impossibi-lidade de sobrevivência fora da inerência aos corpos e aos órgãos aos quais se vinculam.

Page 151: SCINTILLA - FAE

A AL-SIFA’ E A SUBSTANCIALIDADE DA ALMA

151Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 147-156, jan./jun. 2009

terística e por meio de uma configuração característica, mantendo-seexistente, por meio dessa mistura característica em ato, enquanto nelapermanecer a alma – tendo sido a [própria] alma quem tornou [amatéria próxima] de tal modo, por meio dessa mistura. Sem dúvida, aalma é causa para a gênese do vegetal e do animal – quanto à misturaque possuem – visto que a alma é princípio da geração e do desenvol-vimento, como dissemos.

Ora, é impossível que, para a alma, o sujeito próximo fosse aquiloque ele é, em ato, se isso não fosse por meio da alma. A alma é causapara que seu modo de existir seja assim. Não se pode dizer que a natu-reza do sujeito próximo pudesse chegar a existir por uma razão quenão fosse a alma – e que, em seguida, a alma anexar-se-ia a ele por umacerta agregação, não possuindo, depois disso qualquer mediação quan-to à conservação, estruturação e desenvolvimento do [sujeito próxi-mo] – tal como é o caso dos acidentes, que têm sua existência subordi-nada à existência do sujeito, o que é para eles, uma subordinação ne-cessária, sem terem estruturado os seus sujeitos em ato.

De modo diverso é a alma quem estrutura seu sujeito próximocomo um existente em ato. Tú saberás das disposições a esse respeitoquando falarmos sobre o animal. Agora há entre o sujeito remoto e aalma, outras formas que o estruturam. Quando a alma separa-se, im-plica-se a necessidade de que, de sua separação, advenha –freqüentemente por outra disposição – a transformação do sujeito,ocasionando-se nele, uma forma gélida, em paralelo à forma da mistu-ra compatível à alma e àquela [primeira] forma. Assim, depois da alma,a matéria5 não permanece mais em sua mesma espécie, de maneiraalguma, mas das duas uma: ou as espécies e as substâncias que lá esta-vam e que eram sujeitos para a alma se aniquilam; ou a alma deixa o

5. Anawati acrescenta à passagem: “a matéria que é para a alma” (cf. ANAWATI, op. cit.p. 23).

Page 152: SCINTILLA - FAE

152

MIGUEL ATTIE FILHO

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 147-156, jan./jun. 2009

lugar na [matéria] a uma outra forma que preserva a matéria em ato,de acordo com sua natureza. Ora, [depois da alma] aquele corpo natu-ral não fica mais como era antes, mas há para ele outra forma e [ou-tros] acidentes. Além disso, algumas de suas partes, às vezes, são subs-tituídas, havendo separação com a alteração do todo na substância.Nesse caso, não há matéria preservada da essência após a separação daalma que tivesse sido sujeito para a alma e, agora, seria sujeito para algoque não fosse ela. Portanto, a existência da alma no corpo não é comoa existência do acidente no sujeito. Conseqüentemente, a alma é umasubstância porque ela é uma forma que não está no sujeito.

Contudo, se alguém replicasse: “admitamos que a forma da almavegetal fosse a causa que estruturasse sua matéria próxima. Pareceria,então, que a alma animal decorreria da vegetal,depois de esta ter suamatéria. Desse modo, a [alma] animal seria realizada numa matériaque teria se estruturado por meio da essência da [vegetal]. Esta seriauma causa para a estrutura de tal [matéria], decorrendo a partir desta a[alma] animal. Assim, só existiria [alma] animal depois de um sujeitoestruturado”.

Em resposta a isso, dizemos, pois: não está implicado em absolutoque, da alma vegetal enquanto alma vegetal, provenha nada além doque “um corpo que se nutre”. A alma vegetal não possui, em absoluto,uma existência, a não ser uma existência em sentido genérico, isto é, naestimativa6, e nada mais. O existente nos individualizados se dá a seumodo, o que implica dizer que a alma vegetal é uma causa que possuitambém algo geral, universal, absolutamente genérico, não especifica-do e não realizado (que é o corpo que se nutre e cresce). Quanto aocorpo dotado dos órgãos dos sentidos, do discernimento e do movi-mento voluntário, este não provém da alma vegetal enquanto alma

6. O sentido é o de existir na conjectura. O texto latino traduziu por “intellectu” (cf.RIET, op. cit. p. 61). Não se trata propriamente do intelecto mas da forma própria àfaculdade estimativa.

Page 153: SCINTILLA - FAE

A AL-SIFA’ E A SUBSTANCIALIDADE DA ALMA

153Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 147-156, jan./jun. 2009

vegetal, mas enquanto junta-se a ela uma outra diferença, por meio daqual [a alma] passa a ser de outra natureza, ou seja, nada mais do que setornar alma animal.

Contudo, é necessário completar esse comentário, dizendo: i) ou“alma vegetal”, quer dizer a alma específica que caracteriza o vegetal,excluindo-se o animal; ii) ou quer dizer uma noção comum, na qualestão incluídas a alma vegetal e animal sob o aspecto do que nutre,gera e cresce. Certamente a isto, às vezes, chama-se “alma vegetal” mastrata-se de um sentido figurado do enunciado, pois a alma vegetal estásomente no vegetal. O sentido no qual se incluem a alma do vegetal edo animal existente tanto nos animais como nos vegetais é dado pelomodo da noção comum de existir nas coisas; iii) ou bem significa-se,com isso, a faculdade – dentre as faculdades da alma animal – da qualprocedem os atos da nutrição, do desenvolvimento e da geração.

Ora, se o significado for o de “alma vegetal” por analogia, especifica-mente à alma que efetua a alimentação, essa está no vegetal e em nenhumoutro. Não está no animal. Por sua vez, se o significado for ao modo danoção comum é necessário, então, relacionar à [alma vegetal], a noçãocomum e não a noção particular pois, ao artesão comum está relacionadoo artefato comum; ao artesão específico tal como o marceneiro está relaci-onado o artefato específico; e ao artesão determinado está relacionado oartefato determinado. Mas, tu já verificastes isso.

De todo modo, o que se relaciona à alma vegetal comum concernecomumente à ordem do corpo enquanto cresce. Agora, quanto a queele cresça de modo a estar ou não estar apto à recepção dos sentidos,isso não se refere à alma vegetal enquanto ela é comum, não é esse seusignificado. Agora, quanto à terceira classe, é impossível – como pen-sam alguns – que a faculdade vegetal intervenha sozinha e, assim, atualizeum corpo animal. Se a individuação fosse por meio da regência dessafaculdade, dar-se-ia acabamento [somente] a um corpo vegetal. Ora,

Page 154: SCINTILLA - FAE

154

MIGUEL ATTIE FILHO

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 147-156, jan./jun. 2009

mas não é assim! Somente dá-se acabamento a um corpo animal, pormeio dos órgãos dos sentidos e do movimento. Logo, essa é uma dasfaculdades que uma [certa] alma possui. Essa faculdade, entre as ou-tras, comporta-se segundo o modelo que executa a aptidão dos órgãospara as perfeições segundas, as quais pertencem à alma que possui talfaculdade. Ora, essa alma é a animal. Será explicitado, depois, que aalma é una e que a partir dela essas faculdades ramificam-se nos mem-bros. As ações de algumas delas adiantam-se e retardam-se, conforme aaptidão dos órgãos.

Assim, a alma que cada animal possui é uma agregadora dos ele-mentos de seu corpo, síntese e composição deles7; de modo que eleesteja apto a ser um corpo para ela [alma]. Ela é uma conservadora paraesse corpo, segundo a organização que convém. Desse modo, as varia-ções externas não o dominam8 [o corpo], enquanto a alma existentepermanecer nele. Se assim não fosse, como seria mantida sua saúde?

Agora, quanto ao vigor ou fragilidade da faculdade do crescimen-to, em vista do que a alma capta daquilo que se lhe apresenta – repudi-ando ou acatando9 [sendo que] repulsa e acatamento não são, de modoalgum, corporais10 – isto se dá pelo domínio que a alma tem sobre o[corpo]. Tais ocorrências, visto serem convicções, incluem-se naquiloque se apresenta à alma por certo modo de assentimento e não naquilo

7. A passagem é bastante esclarecedora para que se entenda que a alma é uma força queagrega os elementos para que eles não se dissolvam, perdendo-se, nesse caso, o organismo.A alma tem função agregadora, catalisadora, organizadora e mantenedora do corpo.

8. A tradução latina traz “dissolvunt” (cf. RIET, op. cit. p. 65).

9. Literalmente “odeia ou ama” e, em seguida, “amor e ódio”.

10. O corpo, enquanto tal, não pode ter as ações apresentadas, pois essas são anímicas.Isso não significa, pois, que elas não tenham influência sobre o corpo mas, ao contrário,geram reações desde o vigor até o enfraquecimento. A interdependência entre o corpoe a alma são constantes ao longo de toda obra. A respeito das relações com Aristóteles (cf.BAKÓS, n. 136).

Page 155: SCINTILLA - FAE

A AL-SIFA’ E A SUBSTANCIALIDADE DA ALMA

155Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 147-156, jan./jun. 2009

que afeta o corpo – ainda que se siga a essa convicção, atos de alegria ede tristeza, pois também esses estão entre os percebidos anímicos, nãoocorrendo ao corpo enquanto corpo11. Isso [tudo] afeta as faculdadesdo crescimento e da nutrição, de modo a incidir nelas, em razão doacidental que ocorre primeiramente na alma – qual seja, a satisfaçãoracional –, um vigor e uma eficácia em suas ações. Do acidental con-trário a esse – qual seja, a tristeza racional, que não tem, em si, dorcorporal – incide uma fragilidade e uma insuficiência de modo a cor-romperem-se suas ações e, talvez, a compleição dele [corpo, chegue a]terminar totalmente.

Tudo isso basta para que tu saibas que a alma é uma agregadora dasfaculdades da percepção e faz uso do alimento. Ela [alma] é una paraelas [faculdades]. Tal individuação não provém dessas [faculdades].Assim, fica evidente que a alma é aperfeiçoadora do corpo no qual elaestá; ela tanto é conservadora dele como é organizadora dele. O pri-meiro [de seus atos] é distinguir e separar, na medida em que toda equalquer parte do corpo merece um outro lugar, precisando, pois, es-tar separada de sua companheira. Ademais, somente conserva-se [ocorpo], enquanto há para ele algo exterior à sua natureza. Esse algo é aalma no animal. Assim, na medida em que a alma é perfeição para osujeito, tal sujeito é estruturado por meio dela. Também é [a alma] aaperfeiçoadora da espécie; ela é sua artesã. Desse modo, as coisas dealmas diferentes tornam-se, por meio delas, diferentes [quanto] às es-pécies, sendo distinguidas, pois, por meio da espécie e não por meiodo indivíduo. Assim, a alma não está entre os acidentes, por meio dosquais as espécies não se diferenciam, [acidentes] que não estão incluí-dos na estruturação do sujeito. Logo, a alma é uma perfeição comosubstância e não inere12. Esta [substância], ou é separada ou é inseparável,

11. Ou seja, o corpo não pode gerar isso por si mesmo.

12. Literalmente, “não decorre”. Isto é, a alma não é consequência do corpo.

Page 156: SCINTILLA - FAE

156

MIGUEL ATTIE FILHO

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 147-156, jan./jun. 2009

visto que não é toda substância que é tida na categoria de separada.Ora, a hylé13 não se separa e, tampouco, a forma14. Tu já soubestes queas coisas são assim. Agora, façamos, então, uma indicação abreviadadas faculdades da alma e de suas ações e, depois, retomaremos isso demaneira minuciosa.

13. Mantida a transliteração do termo grego como aparece em árabe.

14. BAKÓS, n. 141, remete a ARISTÓTELES, Metafísica, Z, 3 e H, 6, 1045 b18-19;De Anima, II, 2, 414 17. A separação só realizando-se em logos.

Page 157: SCINTILLA - FAE

AVERROIS, COMENTADOR DA FÍSICA DE ARISTÓTELES

157Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 157-169, jan./jun. 2009

AVERROIS, COMENTADOR DAFÍSICA DE ARISTÓTELES

(Liv. II, cap. 2, 193b22-194a12)

Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento*

Resumo: Este artigo examina o comentário de Averrois à Física deAristóteles (Liv. II, cap. 2. 193b22-194a12). Averrois segue passo apasso o texto aristotélico, explicitando-o. No que se refere às matemá-ticas mais próximas da ciência da natureza (astronomia, ótica e harmô-nica), sustenta ele que estas se ocupam com algo que tem um “sercomo que intermediário entre o natural e o matemático”. O texto docomentário de Averrois consta em anexo.

Averrois (1126-1198) debruçou-se também sobre o texto da Físi-ca de Aristóteles e naturalmente propõe uma leitura de Física II, 2,193b22-194a12, onde Aristóteles se avém com a distinção entre afísica ou ciência da natureza e a matemática. Ao contrário de Avicena,o texto de Averrois é propriamente um comentário, seguindo passo apasso a exposição aristotélica.

Averrois parte então da formulação do problema por Aristóteles.Os corpos naturais têm volumes, superfícies, linhas e pontos que de-vem ser considerados pelo estudioso da natureza. Ora, tais aspectosconstituem o tema de estudo da geometria. Logo, das duas, uma: ou a

* Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). E-mail: [email protected]

Page 158: SCINTILLA - FAE

158

CARLOS ARTHUR RIBEIRO DO NASCIMENTO

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 157-169, jan./jun. 2009

geometria distingue-se da ciência natural e ambas consideram tais as-pectos de modos diversos, ou então a geometria faz parte da ciêncianatural. Acrescenta, porém, uma observação ausente do textoaristotélico e que se refere à questão de saber a que ciência competeocupar-se com tal problema. De maneira sintética (em uma frase),Averrois enuncia seu ponto de vista: falar disso no que diz respeito atodas as ciências (artes), compete à lógica, mas abordar tal problema,no que ele tem de próprio a uma determinada ciência (arte), cabe a estaciência (arte). Feita esta observação, Averrois passa ao caso paradigmá-tico da astronomia, pois o problema da distinção entre a ciência danatureza e a matemática, considerado em geral, torna-se agudo no casoda física e da astronomia. Isto, pelas razões já indicadas por Aristóteles,pois seria de todo modo inadmissível que o estudioso da natureza seocupasse com o que é o sol ou a lua e nada dissesse sobre as caracterís-ticas destes, como, por exemplo, sua forma ou figura. Além do mais,vê-se que aqueles que falam sobre a natureza, falam também sobre afigura do sol, da terra e do universo, perguntando-se se são esféricos.Averrois explica: é inaceitável que o físico se ocupe do que é o sol, a luae o conjunto dos astros, nada dizendo sobre sua figura, porque é plau-sível (provável) que aquele que pesquisa a natureza de algo pesquisetambém seus acidentes. Ora, sendo o provável verdadeiro, Aristótelesdiz que seu contrário é improvável ao máximo. Tal improbabilidadese manifesta pela opinião notória, que se opõe a isto. Segundo esta, osestudiosos da natureza estão de acordo na consideração do que foimencionado. Ora, um dos modos do provável é aquilo sobre o qualhá acordo dos peritos. A notoriedade, observa Averrois se encontraaqui, quanto à própria coisa e quanto à proposição que a enuncia, asaber: que todo perito deve considerar os acidentes de seu tema deestudos (sujeito). Segue-se, pois, ou que a astronomia é parte da ciên-cia natural ou que ambas procedem diferentemente em sua considera-ção. Ora, é impossível que seja parte dela. Logo, devem ter modos de

Page 159: SCINTILLA - FAE

AVERROIS, COMENTADOR DA FÍSICA DE ARISTÓTELES

159Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 157-169, jan./jun. 2009

considerar diversos. É o que passa a ser examinado. Como exemplo domatemático, toma o geômetra e o astrônomo, tendo em conta quetanto eles como o estudioso da natureza consideram os corpos, super-fícies, linhas e pontos. Mas, o geômetra não os considera na medidaem que são “limites de um corpo natural, pois o limite exige um subs-trato, do qual é limite”. Ora, isto se dá na medida em que tais limitesestão na matéria; o que compete ao estudioso da natureza, pois esteconsidera as coisas na medida em que são materiais e sujeitas à mudan-ça (movimento). Assim, o geômetra considera o corpo apenas comoalgo dotado de três dimensões, ao passo que o estudioso da naturezaconsidera tais dimensões como limites de um corpo transmutável. Omesmo acontece com a superfície, a linha e o ponto. Semelhantementeo astrônomo considera vários acidentes dos corpos celestes, tal como oestudioso da natureza. Mas não o faz na medida em que tais acidentesafetam a natureza de tais corpos, o que o estudioso da natureza faz. Porexemplo, o astrônomo considera a figura da lua e do sol, mas não “namedida em que a natureza destes exige esta figura, mas na medida emque a mente as abstrai do movimento e da transmutação”. Isto é, con-sidera tais figuras apenas na medida em que são figuras e não na medi-da em que são corpos celestes mutáveis, o que são fora da mente.Nisto não ocorre nenhuma falsidade, pois a natureza de tais figurasexige que sejam separadas quanto à noção. O mesmo não ocorre comas formas naturais. Assim, há algo que pode ser considerado na medi-da em que está na matéria e na medida em que é extraído da matéria.Nisto há superposição do matemático (astrônomo) e estudioso danatureza. Mas há algo que só pode ser considerado na matéria; istocabe propriamente ao estudioso da natureza. Ambas as considerações,embora distintas, são verdadeiras, mesmo se a consideração do geômetrae do astrônomo se dá na medida em que não estão na matéria, emborasejam nesta. No entanto, a consideração do geômetra é mais abstrata emais afastada da matéria do que a do astrônomo, pois aquele conside-

Page 160: SCINTILLA - FAE

160

CARLOS ARTHUR RIBEIRO DO NASCIMENTO

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 157-169, jan./jun. 2009

ra figuras simples e este figuras determinadas, isto é, nos corpos celes-tes. Averrois considera que os partidários das formas remetem a Platão.Este separa as formas naturais quanto à noção porque estas seriam se-paradas no ser. Ora, o que é separado no ser, o é também quanto ànoção, mas a recíproca não é verdadeira, como se viu a propósito doque é matemático. Os partidários das formas abstraem da matéria asformas naturais do mesmo modo como o geômetra o faz com a su-perfície e a linha. Ao fazerem isto não percebem que o separar as for-mas naturais quanto à noção depende do separá-las no ser. Ora, com-parando as formas naturais com as entidades matemáticas descobrir-se-á, ou que elas não são separáveis de nenhum modo, ou pelo menosque são menos separáveis do que estas. O que é evidenciado pelo modode definir o que é natural e o que é matemático. De fato, ao definir onúmero e suas propriedades como o par e o ímpar, bem como as ex-tensões e suas propriedades, as definições não incluirão a matéria, queé causa da mudança, o que acontecerá necessariamente ao se definir acarne, o osso ou o que quer que seja de natural. Estes últimos são, comefeito, definidos como o achatamento que implica o nariz e não comoa curvatura e semelhantes, que não implicam a matéria. De fato, adefinição do achatamento é o nariz côncavo e a da concavidade é adepressão da superfície. Finalmente, no último parágrafo, aparece areferência às ciências matemáticas mais próximas da ciência natural.Estas também evidenciam que nas definições do que é natural inclui-se a matéria. De fato, em ciências como a perspectiva (ciência das apa-rências), a harmônica (música) e a astronomia a matéria aparece maisem suas definições, embora menos do que na ciência natural. Averroisconsidera que as definições que se apresentam numa disposição às avessasda disposição da geometria são pura e simplesmente definições da ciên-cia natural, pois a geometria considera as extensões abstraídas da maté-ria, ao passo que o estudioso da natureza as considera na medida emque estão na matéria. Ora, “o estudioso das aparências considera, po-

Page 161: SCINTILLA - FAE

AVERROIS, COMENTADOR DA FÍSICA DE ARISTÓTELES

161Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 157-169, jan./jun. 2009

rém, as linhas numa disposição intermediária entre estas duas conside-rações. Com efeito, não considera a linha na medida em que é linhapura e simplesmente, como o geômetra, nem na medida em que élinha de fogo ou de ar, como o estudioso da natureza, mas na medidaem que é visual. Ora, este ser é como que intermediário entre o naturale o matemático”. Semelhantemente, o músico considera as propor-ções numéricas, não enquanto tais, mas enquanto cabem aos sons sen-síveis. A afirmação de Aristóteles de que o estudioso das aparênciasconsidera a linha matemática, não enquanto tal, mas enquanto naturaldeve, pois, de acordo com Averrois, ser bem entendida: Aristótelesnão pretendia dizer que sua consideração é a do estudioso da natureza,mas que é mais próxima desta.

Vemos, portanto, que Averrois acompanha bem de perto o textoaristotélico, justificando o título a ele atribuído de o Comentador,isto é, o comentador por excelência de Aristóteles. Afasta-se do textodo Filósofo uma ou outra vez de maneira bastante discreta, explicitandoalgum aspecto mais de caráter metodológico. Uma dessas ocasiões éjustamente ao falar das matemáticas mais próximas da ciência da natu-reza. Aí, introduz ele uma expressão destinada a um grande futuro, aodizer que a consideração do estudioso das aparências é como que inter-mediária (media) entre a do geômetra e a do físico. Averrois ancoraesta observação mais metodológica ou epistêmica em uma considera-ção do estatuto das próprias coisas ou ontológica. Com efeito, apre-senta ele, em primeiro lugar, a linha pura e simplesmente, à qual con-trapõe a linha de fogo ou de ar, acrescentando que o visual, considera-do pelo estudioso das aparências é um “ser como que intermediárioentre o natural e o matemático”.

Talvez seja possível dizer que Averrois utiliza o esquema platônicotripartido, do sensível, do dianoético e do noético, dentro de um qua-dro aristotélico. Entre o pura e simplesmente sensível e o dianoéticohá um domínio intermediário representado pelo tema de estudo das

Page 162: SCINTILLA - FAE

162

CARLOS ARTHUR RIBEIRO DO NASCIMENTO

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 157-169, jan./jun. 2009

ciências matemáticas mais físicas. Já se disse também que Averrois te-ria tido um papel importante no aparecimento da expressão “ciênciasintermediárias” (scientiae mediae)1. A contribuição de Averrois podeser tida como certa, mas antes que Tomás de Aquino a reservasse paraas ciências matemáticas mais próximas da física, diversos estudiosos aempregaram, ou alguma outra aparentada, para designar diversas ciên-cias2. De fato, expressão é bastante óbvia quando há três elementosordenados de algum modo e um é intermediário entre os dois outros,que se apresentam como extremos opostos. De qualquer modo,Averrois, talvez um pouco menos do que Avicena, mas também ele,testemunha um crescente interesse pelas disciplinas do tipo da harmô-nica, ótica e astronomia, mencionadas por Aristóteles apenas comoum argumento a favor da distinção entre matemática e física.

Anexo

Oito livros Sobre a audição física de Aristóteles com vários comen-tários de Averrois Cordovês sobre os mesmos. Veneza: Juntas, 1562.Livro segundo, Suma segunda, fl. 53 vb-55 vb.

1. Cf. GAGNÉ, J. Du Quadrivium aux Scientiae Mediae. In: Arts Libéraux et Philosophieau Moyen Âge. Montréal, Paris: Institut d’Études Médiévales; J. Vrin, 1969, p. 975-986. Aqui, p. 980. MAURER, A. The Philosophy of William of Ockham. Toronto:Pontifical Institute of Mediaeval Studies, 1999, p. 137.

2. Por exemplo, Gundisalvus (Gundissalinus) chama a lógica de “scientia media” entre as“scientiae eloquentiae” (grammatica, poetica, retorica) e as “scientiae sapientiae” (philosophiateorica et practica). Cf. De divisione philosophiae. L. Baur (Ed.), Beiträge zur geschichte derphilosophie des Mittelalters, Band IV, Heft 2-3, Munique, 1903, p. 81, lin. 7. Grosseteste,menciona um certo “artífice como que intermediário entre o físico e o que ensina a artenatural de demonstrar”, também designado como um “intermediário entre o lógico e oestudioso da natureza”, a quem caberia “adaptar a lógica (arte universal de demonstrar) àsnaturezas (matéria física) de modo que apropriadamente e sem erro a (ciência) natural sejaregida pela lógica adaptada a ela”. Cf. DALES, Richard C. Roberti Grosseteste, EpiscopiLincolniensis Commentarius in VIII Libros Physicorum Aristotelis, Boulder (Colorado):University of Colorado Press, 1963, p. 37-38.

Page 163: SCINTILLA - FAE

AVERROIS, COMENTADOR DA FÍSICA DE ARISTÓTELES

163Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 157-169, jan./jun. 2009

Sobre a diferença do estudioso da natureza e do matemático. So-bre a diferença entre a teoria do físico e do matemático sobre a mesmacoisa, e que erram mais os que sustentam formas naturais despojadasda matéria do que os matemáticos que separam apenas pela intelecção.

– Ora, uma vez que foi determinado de quantos modos a naturezaé dita, depois disto deve-se observar em que o matemático difere dofísico. Pois os corpos físicos têm também planos, sólidos, extensões epontos, sobre os quais o matemático considera.

– E uma vez que determinamos os modos de acordo com os quaisa natureza é dita, é preciso examinarmos qual é a diferença entre omatemático e o estudioso da natureza. Pois os corpos naturais têmsuperfícies, volumes extensões e pontos e estes são sobre o que o mate-mático considera.

* Diz. E uma vez que explicamos o que é a natureza e de acordocom quantos modos é dita, é preciso que falemos também sobre ou-tro princípio natural, e cumpre dar a diferença entre a consideração doestudioso da natureza e do matemático. Com efeito, coincidem naconsideração sobre o mesmo, posto que os corpos naturais por teremvolumes, superfícies, linhas e pontos, é preciso que a consideração so-bre eles seja parte da ciência natural; e como estes são sujeitos da geo-metria, é necessário que, se a geometria for distinta da ciência natural,que ambas considerem-nos por dois modos diversos, ou a geometriaseja parte da ciência natural. E embora esta pesquisa pertença à lógica,é de regra que o que é comum a todas as artes seja dito na lógica e oque é próprio a cada arte seja dito nesta arte. E quando perguntou adiferença entre a consideração natural e a geometria nos corpos, super-fícies, linhas e pontos, começou a perguntar também a diferença entrea consideração natural e a astronômica. Com efeito, coincidem nofato de que consideram sobre a figura da lua e do sol, da terra e doscorpos celestes.

Page 164: SCINTILLA - FAE

164

CARLOS ARTHUR RIBEIRO DO NASCIMENTO

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 157-169, jan./jun. 2009

– Além disso também se a astronomia é distinta ou parte da física.Pois, se compete ao físico saber o que é o sol ou a lua, mas nenhumdos acidentes por si, é inadequado; e principalmente pois os que tra-tam a respeito da natureza são vistos se pronunciar sobre a figura dosol e da lua e se a terra e o mundo são esféricos ou não.

– E também se a astronomia é distinta da ciência natural ou é partedela, pois, se cabe ao estudioso da natureza conhecer o que são o sol ea lua e não lhe cabe conhecer seus concomitantes, isto é inadmissívelde todas as maneiras e ao máximo. Pois vemos aqueles que falam so-bre a natureza, falar também sobre a figura da lua e do sol e pesquisarsobre o mundo e a terra se são esféricos ou não.

* E diz. Ademais cumpre perguntar também se a astronomia édistinta da ciência natural ou se é parte dela. Pois tratam sobre os mes-mos, a saber, sobre as figuras dos corpos celestes e das estrelas. Comefeito, a consideração do matemático nisto é manifesta, mas a consi-deração do estudioso da natureza é que, uma vez que considerou sobrea natureza do sol, da lua e em geral sobre os corpos celestes, cabe con-siderar sobre os seus acidentes. Ora, as figuras são acidentes neles. Porisso disse: pois, se cabe ao estudioso da natureza conhecer etc. e isto éinaceitável, porque é provável que aquele que pesquisa sobre a nature-za de algo deve pesquisar sobre os seus acidentes. E como aquilo que éprovável é verdadeiro, disse também ao máximo, pois o provável éoposto ao improvável. E como o declarou improvável, invocou a opi-nião notória oposta a isto. E é a seguinte: que todos os estudiosos danatureza concordam na consideração sobre estas coisas. E foi dito queum dos modos dos prováveis é aquilo no qual concordam os peritos.E assim a notoriedade se reúne aqui de dois modos, cujo primeiro estána própria coisa e o segundo está na proposição que contém a própriacoisa. E é: que todo perito deve considerar sobre os acidentes do seusujeito. E, como invocou o testemunho comum e disse também aomáximo e como segue-se disso, ou que a astronomia seja parte da

Page 165: SCINTILLA - FAE

AVERROIS, COMENTADOR DA FÍSICA DE ARISTÓTELES

165Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 157-169, jan./jun. 2009

ciências natural, ou que a consideração se diversifique nelas; ora, ela serparte dela é impossível. Portanto, é necessário que se diversifiquem naconsideração. E por isso começou a apresentar o modo de considera-ção delas.

– Portanto, o matemático se ocupa com isto, mas não na medidaem que é limite para cada corpo físico nem tem em conta os acidentesna medida em que advêm a tais existentes. Pelo que abstrai. Comefeito, são abstraídos do movimento pelo intelecto. E não importa,nem dos que abstraem surge mentira.

– E o matemático também considera sobre estes, mas sua conside-ração sobre eles não se dá na medida em que cada um deles é o limitedos corpos naturais, nem também sua consideração sobre os acidentesdeles se dá na medida em que advêm a estes corpos que são destemodo. Por isso os abstrai e separa deles. Com efeito, são separados domovimento na mente. E nisto não há diferença, nem acontece falsida-de ao serem separados.

* Toma aqui por matemático, o geômetra e o astrônomo e tomapor aquilo em que coincidem o geômetra e o estudioso da natureza,corpos, superfícies, linhas e pontos. E disse que o geômetra não consi-dera sobre eles na medida em que são limites do corpo natural, pois olimite exige um substrato, do qual é limite e esta consideração se dá namedida em que estão na matéria e é própria do estudioso da natureza,já que foi declarado que ele considera sobre as coisas na medida emque são nas matérias e móveis. Portanto, o geômetra considera sobre ocorpo apenas na medida em que tem três dimensões. Mas o estudiosoda natureza considera sobre ele na medida em que estas dimensões sãoos limites existentes no corpo transmutável. E o geômetra considerasemelhantemente sobre a superfície na medida em que é apenas super-fície. Mas o estudioso da natureza na medida em que é limite do cor-po natural. E semelhantemente considera também sobre as linhas e os

Page 166: SCINTILLA - FAE

166

CARLOS ARTHUR RIBEIRO DO NASCIMENTO

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 157-169, jan./jun. 2009

pontos. Depois diz: nem considera também sobre os acidentes deles,isto é, o astrônomo que considera sobre vários acidentes dos corposcelestes, sobre os quais o estudioso da natureza considera. E disse que oastrônomo não considera sobre estes acidentes na medida em queadvêm à natureza daquele corpo, como o estudioso da natureza consi-dera sobre eles, isto é, como não considera sobre a figura da lua e dosol na medida que a natureza deles exige esta figura, mas na medida emque a mente as abstrai do movimento e da transmutação, isto é, comoconsidera sobre as figuras deles na medida em que são apenas figuras,não na medida em que são corpos celestes móveis e porque o ser destascoisas é de outro modo em relação àquele pelo qual o astrônomo con-sidera sobre elas. De fato, considera sobre elas na medida em que sãoabstraídas das matérias, mas fora da alma são nas matérias. Depoisdisse que não se dá o falso, isto é, como a natureza destes exige que elessejam separados quanto à noção, de modo nenhum se dando o falso.E não é assim sobre as formas naturais. Há, portanto, alguns sobre osquais é possível considerar na medida em que são nas matérias e namedida em que são extraídos das matérias. E são aqueles nos quaiscoincidem o matemático e o estudioso da natureza. E há alguns sobreos quais é impossível considerar senão com a matéria. E estes cabempropriamente ao estudioso da natureza. Depois disse: e não há diferen-ça nisto. E não deves entender que a consideração de ambos os modos,nisto, leva ao mesmo em todo lugar; pelo contrário, leva a disposiçõesdiversas. Mas cumpre entender que não há diferença no fato de queambas as considerações sobre estes levam à verdade. Depois disse: quan-do são abstraídos não se dá o falso, isto é, embora a consideração sobreeles seja de outro modo, distinto daquele pelo qual são fora da mente,isto é, porque são na matéria e a consideração sobre eles é na medidaem que não são na matéria. E isto é comum ao geômetra e ao astrôno-mo, mas a consideração do geômetra é mais abstrata e mais afastada damatéria. Com efeito, considera sobre a figura simples, mas o astrôno-mo sobre a figura determinada, isto é, no corpo celeste.

Page 167: SCINTILLA - FAE

AVERROIS, COMENTADOR DA FÍSICA DE ARISTÓTELES

167Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 157-169, jan./jun. 2009

– Escapam, no entanto, aos que fazem isto e afirmam as idéias.Com efeito, abstraem o que é físico, embora seja menos abstrato doque o que é matemático. Ora, isto se torna manifesto se alguém tentarenunciar as delimitações de ambos, tanto deles como dos acidentes;com efeito, o ímpar, o par, o reto e o curvo, mas também o número,a linha e a figura serão sem movimento, no entanto, a carne, o osso eo homem não mais, mas estes são enunciados como o nariz achatado,mas não como o curvo.

– E os que afirmam as formas fazem isto sem que o percebam.Com efeito, separam as formas naturais que a respeito do que é mate-mático separam-se menos. E isto podes saber, se principiares a definirambos os modos, isto é, a natureza e os acidentes, encontrarás, comefeito, a definição do par, do ímpar, do reto e do curvo e também donúmero, da linha e da figura fora do movimento, o que não encontra-rás na definição da carne, ou do osso, ou do homem; mas estes sãoenunciados como é enunciado o achatado, não como é enunciado ocurvo.

* Toma por os que afirmam as formas, Platão e acontece a estesseparar as formas naturais quanto à noção, pois são separadas no ser deacordo com eles e é manifesto que o que quer que seja separado peloser, é separado quanto à noção e não se reciproca, como consideram osque afirmam que as coisas matemáticas são separadas. E disse: os queafirmam as formas etc., isto é, acontece aos que afirmam que há for-mas também definir as formas naturais abstraídas da matéria, como ogeômetra faz na superfície e na linha. E não percebem isto que lhesacontece. Depois disse, com efeito separam as formas naturais, isto é,acontece-lhes isto pois separam no ser as formas naturais da matéria,pelo que acontece-lhes fazer isto semelhantemente nas definições e nãopercebem. Depois disse, e a respeito do que é matemático etc., isto é,também quando isto e o que é matemático são comparados, desco-brir-se-á, ou que não se separam absolutamente ou que se separam

Page 168: SCINTILLA - FAE

168

CARLOS ARTHUR RIBEIRO DO NASCIMENTO

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 157-169, jan./jun. 2009

menos do que este. E disse isto, pois certas formas são mais separáveisda matéria do que outras. Depois certificou isto pelas definições e dis-se: e isto podes saber etc. E toma por acidentes aquilo sobre o que ogeômetra considera e isto que disse é manifesto por si, porque quandodefinirmos o par e o ímpar, como disse, e ademais o número e osacidentes do número e igualmente as extensões e os seus acidentes, nãoaparecerá a matéria nas suas definições, a qual é causa da transmutação.Quando, porém, definirmos a carne e o osso e o demais que é natural,aparecerá imediatamente a matéria na sua definição. E por isso dissenestes “que são definidos como é definido o achatamento” e de modogeral os acidentes naturais, não os matemáticos, como a curvatura e osdemais. E evocou o exemplo do achatamento porque é manifesto queem sua definição é tomado o nariz, uma vez que se diz que o achata-mento é o nariz côncavo, mas na concavidade não aparece a matéria,pois a concavidade é a depressão da superfície.

– Mas demonstram também aquelas dentre as matemáticas quesão mais físicas, como a perspectiva, a harmônica e a astronomia. Comefeito, se apresentam de certo modo ao contrário para com a geome-tria. Com efeito, a geometria considera sobre a linha física, mas não namedida em que é física. No entanto, a perspectiva de fato, a linhamatemática, mas não na medida em que é matemática, mas física.

– E demonstram também isto, o que dentre as matemáticas é maispróximo da ciência natural, como a ciência das aparências, a música e aastronomia. Têm, com efeito, uma disposição de um certo modo àsavessas da disposição da geometria. Com efeito, o geômetra considerasobre a linha natural, mas não na medida em que é natural; no entan-to, o estudioso das aparências considera sobre a linha matemática, nãona medida em que é matemática, mas na medida em que é natural.

* E esclarecer-se-á que nas definições naturais aparece a matériapelo fato de que, porque aquilo que dentre o que é matemático é mais

Page 169: SCINTILLA - FAE

AVERROIS, COMENTADOR DA FÍSICA DE ARISTÓTELES

169Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 157-169, jan./jun. 2009

próximo da ciência natural diz mais respeito à matéria e a matériaaparece mais em suas definições, embora apareça menos do que naciência natural, como na ciência sobre as aparências, na música e naastronomia. E disse “de um certo modo” porque as que estão de fatoem uma disposição às avessas da disposição da geometria são pura esimplesmente definições da ciência natural. Com efeito, a geometriaconsidera sobre as extensões abstraídas da matéria. Mas o estudioso danatureza considera sobre elas na medida em que estão na matéria. Oestudioso das aparências, porém, considera sobre as linhas numa dis-posição intermediária entre estas duas considerações. Com efeito, nãoconsidera sobre a linha na medida em que é linha pura e simplesmentecomo o geômetra, nem na medida em que é linha ígnea ou aérea,como o estudioso da natureza, mas na medida em que é visual. Ora,este ser é como que intermediário entre o natural e o matemático. Esemelhantemente o músico considera sobre as proporções numéricas,não na medida em que são proporções numéricas, mas na medida emque são dos sons sensíveis. Por isso, quando disse, porém, que o estu-dioso das aparências considera sobre a linha matemática, não na medi-da em que é matemática, mas na medida em que é natural, não devesentender que sua consideração é a consideração do estudioso da natu-reza, mas pretendia que sua consideração está mais próxima da consi-deração do estudioso da natureza.

Page 170: SCINTILLA - FAE

170

DR. RAFAEL RAMÓN GUERRERO

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 13-30, jan./jun. 2009

Page 171: SCINTILLA - FAE

LA MÍSTICA EN EL ISLAM...

171Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 13-30, jan./jun. 2009

TRADUÇÕESTRADUÇÕESTRADUÇÕESTRADUÇÕESTRADUÇÕES

Page 172: SCINTILLA - FAE

172

LUIS VIVANCO

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 173-178, jan./jun. 2009

Page 173: SCINTILLA - FAE

LAS BUENAS MANERAS EN SOCIEDAD

173Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 173-178, jan./jun. 2009

LAS BUENAS MANERAS ENSOCIEDAD

Abu Muhammad ‘Ali Ibn Ahmad Ibn Sa‘id Ibn Hazm

Traducido y apresentado por Luis Vivanco*

Breve noticia sobre Ibn Hazm

Abu Muhammad Ibn Hazm nació en 384 h. / 994 d.C., y murióel año 456 h /164 d.C. Oriundo de Córdoba, fue uno de los másimportantes filósofos de Al-Ándalus, la España islámica. Fue ademásun gran polígrafo y su obra alcanza dimensiones enciclopédicas.Provenía de una ilustre familia de altos funcionarios de la corte de losomeyas españoles. Se educó en el harén de su familia, y decía al efecto:

Yo he intimado mucho con mujeres y conozco tantos de sussecretos que apenas habrá nadie que los sepa mejor, porque mecrié en su regazo y crecí en su compañía, sin conocer a nadiemás que a ellas y sin tratar hombres hasta que llegué a la edadde la pubertad… Yo no sé cual será la razón de que este modode ser se apodere de las mujeres, si no consiste en que tienen elpensamiento desocupado de todo lo que no sea la unión sexualy sus motivos, el marteleo y sus causas y el amor y sus diferentesaspectos, pues no se ocupan de otra cosa ni han sido creadaspara nada más1.

* Director do Centro de Estudios Filosóficos “Adolfo García Díaz”, Editor da Revista deFilosofía. Universidad del Zulia, Maracaibo - Venezuela.

1. Citado en CRUZ HERNÁNDEZ, Miguel: Historia del pensamiento islámico. Tomo2. Editorial Alianza, Madrid, 1981, p. 35. Aparte de esta obra, se ha consultado parala elaboración de esta noticia la siguiente: RAMÓN GUERRERO, Rafael: Filosofíasárabe y judía. Editorial Síntesis, Madrid, 2001, pp. 183-187.

Page 174: SCINTILLA - FAE

174

LUIS VIVANCO

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 173-178, jan./jun. 2009

Con estos antecedentes, nada tiene de extraño que fuera uno de lospensadores que no sólo pudo tratar con profundidad sobre el amor entodas sus variantes y manifestaciones – desde el humano hasta el divi-no y el místico –, sino que además lo hizo abundantemente en variasobras, y desde perspectivas tanto morales como psicológicas, psicofísi-cas y antropológicas que intervenían en ese fenómeno tan relacionadocon las pasiones y emociones del alma humana.

Ibn Hazm escribió además sobre historia, poesía, religión, derecho,epistemología (origen del conocimiento y clasificación de las ciencias),teología, y estética. Según su hijo, el número de libros de qué fueautor alcanzaba los cuatrocientos ejemplares, con un total de más deochenta mil páginas de extensión. Muchos de ellos se han conservado,y algunos que se creían perdidos han sido encontrados recientemente.De sus obras, quizá la más representativa y famosa sea su Tawq al-hamâma (“El collar de la paloma”), que es su tratado sobre el amor, elcual para él es natural a lo humano. En este sentido, su teoría sobre elamor se parece mucho a la de Platón, sobre todo por el contenidoestético de la misma. Expuso sus ideas sobre el amor no sólo en trata-dos y en prosa narrativa, sino también en poemas como este:

… y existe el amor irresistibleque no tiene otra causaque la afinidad de las almas,el amor verdadero que es la atracciónincontenible,que se adueña del ánimoy no desaparece sino con la muerte2.

En lo personal, conoció el amor desde muy joven, pues a los treceaños se enamoró de una de las chicas de su casa, que era rubia (lo cualselló su gustó por las rubias de ahí en adelante). Aunque no fue unamor compartido, por haber sido el primero, influyó mucho en él. A

2. Tomado de: IBN HAZM DE CÓRDOBA: El collar de la paloma. Versión de EmilioGarcía Gómez, Alianza Editorial, Madrid, 1994.

Page 175: SCINTILLA - FAE

LAS BUENAS MANERAS EN SOCIEDAD

175Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 173-178, jan./jun. 2009

los diecinueve años volvió a enamorarse profundamente de otra chica,llamada Nu’um, que significa ‘felicidad’. Tal nombre fue un buenaugurio, pues fue un amor mutuo e intenso. Desgraciadamente, suamada moriría un tiempo después. Su tristeza fue tal, que pasó añossin volver a enamorarse ni querer rehacer una vida familiar, hasta que,ya maduro, volvió a amar a otra mujer, con la cual se casó y tuvierontres hijos de esa unión.

Ibn Hazm hizo además estudios profundos sobre temas como elproblema del lenguaje, en relación con el tema del origen y desarrollodel conocimiento. Llegó al respecto a conclusiones que aún hoy lucenaudaces en su contexto islámico, como la de que es difícil decir cual seala lengua más perfecta, pues ni siquiera el hecho de la Revelación seríatestimonio a favor de una lengua en especial: Dios ha utilizado distin-tas lenguas en la Torá, el Evangelio y el Corán. Por ello, no habría nilenguas, ni palabras ni letras más sagradas o mejores que otras.

También incursionó en el estudio de las relaciones entre la sociedad yel Estado. Prefería la forma monárquica a la republicana,3 y la monarquíahereditaria a la electiva. En otra época, esas ideas le habrían granjeado elapoyo de los reyes y califas que gobernaban de manera bastante absoluta,pero los tiempos habían cambiado, y a pesar de un breve periodo derestauración monárquica del Califa Abderrahmán V, durante el cual fuevisir o primer ministro, el eventual derrocamiento de los omeyas significótambién su caída. Estas vicisitudes motivaron que sufriera años de prisióny destierro. Ya en su madurez, se retiró a su casa de campo, un resto de laspropiedades familiares que pudo conservar cerca de Huelva, donde en pazy tranquilidad pasó los últimos años de su vida.

3. En 1031, cuando Ibn Hazm contaba con 37 años, sus paisanos cordobeses acabaroncon los intentos de facciones de restaurar la monarquía, aboliendo el califato yestableciendo un Estado aristocrático en la ciudad, parecido a las repúblicas renacentistasdel norte de Italia. Este ejemplo de Córdoba fue seguido por otras ciudades españolasgobernadas por los árabes, y fue en su momento un eficaz remedio contra la anarquíay la tendencia tiránica de algunos líderes.

Page 176: SCINTILLA - FAE

176

LUIS VIVANCO

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 173-178, jan./jun. 2009

El texto

Si asistieres a una reunión de sabios, que tu presencia sea la dequien quiere crecer en conocimientos y méritos, no la de un pedante yengreído que busca poner en evidencia algún error o desliz de los demás;ni que sea tampoco la presencia de quien anda repitiendo y regandoideas raras y descabelladas4, sin fundamento, porque eso es lo que hacenlos imbéciles que nunca llegan a nada en la ciencia.

Si asistieres, pues, como dijimos al principio, ello será beneficiosopara ti. Pero si no vas con esa intención, es mejor entonces que tequedes en tu casa, y eso será más descansado para tu cuerpo, mas hon-roso para tu dignidad y más sano para tu fe. Si así y todo decidierasasistir, entonces compórtate de alguna de estas tres maneras5, a saber:

O te callas como se callan los ignorantes, en cuyo caso ganarás elmérito de la asistencia y las alabanzas y la estima de los presentes porno ser impertinente y por tener un comportamiento adecuado a lastertulias. O, si no hicieras esto de quedarte callado, pregunta entoncescomo preguntan los que buscan el conocimiento. Así conseguirás lascuatro virtudes y ganaras una quinta, que es el aumento del saber6. Espropio de quien busca el conocimiento preguntar lo que no se sabe,pues preguntar lo que se sabe es una tontería y una falta de sentido.

Mas si así y todo no eres capaz de preguntar de esta manera, y teempeñas en discutir repitiendo insensatamente tus argumentos,

4. Más literalmente: “extrañas hipótesis”.

5. Literalmente: “Compórtate de una de estas tres maneras, [y] no hay cuatro de ellas”.Este es un giro de expresión para decir que no es necesario más de lo que se estádiciendo.

6. “Las cuatro virtudes”: referencia a un lugar común de la cultura árabe de ese tiempo.Ellas serían la humildad, la piedad, la valentía y la fraternidad o compañerismo. Adiferencia de la que añade el autor, que es una virtud más intelectual, las otras cuatrovirtudes son netamente éticas.

Page 177: SCINTILLA - FAE

LAS BUENAS MANERAS EN SOCIEDAD

177Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 173-178, jan./jun. 2009

llevando tercamente la contraria sólo por llevarla7, entonces abandonala discusión, porque tu no vas a lograr nada ni aprender nada con eso.Sólo obtendrás tu rabia o la de tu interlocutor, o la de ambos.

Y si te encuentras con que oyes algo o lees algo que te molesta,¡cuidado con irritarte desmedidamente por ello! Primero examina si eserróneo, buscando pruebas tajantes y fidedignas. Pero tampoco creas ycolmes de alabanzas todo lo que oyes o lees de buenas a primeras, si nolo conoces bien. En ambos casos, éste y el primero, cometerías unainjusticia. Que tu acercamiento a un texto sea más bien el de quienquiere tener la suerte de comprender lo que oye y ve, para así aumentarsus conocimientos; de modo tal que aceptará lo correcto, y rechazarálo equivocado.

Es deber de todos aprender el bien y practicarlo. Quien haga am-bas cosas se beneficiará doblemente. Aquel que enseña el bien, pero nolo practica, hace bien en lo primero pero mal en lo segundo, mezclandoasí una buena obra con otra mala. Y sin embargo, esta persona todavíaes mejor que aquella que ni aprende el bien, ni lo practica. Y esta últi-ma persona, que no sirve para nada, es todavía mejor y menos censurableque aquella que impide a otros conocer el bien.

Si solamente prohibiera el mal aquel que no tiene nada de malo, ysolamente ordenara el bien aquel a quien le corresponde hacerlo8,entonces nadie podría prohibir a alguien que hiciera el mal a otros, ninadie podría ordenar a otros que hicieran el bien, a excepción del pro-feta (la paz sea con él), y estarías a merced de quienes emiten falsosjuicios, causan mala impresión, y en general denigran de todo.

7. Literalmente: “… no te queda más que repetir tus palabras, o la refutación de lo quetu oponente no ve [sino como mera] refutación”.

8. Literalmente: “… y si solamente ordenara el bien aquel para quien éste le fuerapropio”. Estas palabras aluden al conocido principio del pensamiento ético y políticoislámico el cual indica que le está reservada a la acción política más alta, la del gobernante,“ordenar el bien y prohibir el mal” (al-’amr bil-ma‘aruf wa-n-nahy ‘an al-munkar).

Page 178: SCINTILLA - FAE

178

LUIS VIVANCO

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 173-178, jan./jun. 2009

Nota do tradutor: Cooperaron gentilmente en estatraducción, durante varios años, las siguientes personas:Sra. María Basil al-Boueiri, R.P. Irene Kabbabe, Sr. RicardoNafi y Prof. Dr. Kaldone Nweihed. A todos ellos, en estemundo y en el otro, mi inmenso agradecimiento por suinspiración y paciencia. El texto del filósofo procede de larevista literaria egipcia Al-Hilal, edición de febrero de1940, obsequiada a quien esto escribe por el Sr. MayerAbadí y la Sra. Rose Taicher de Abadí.

Page 179: SCINTILLA - FAE

VIII EIEM – Encontro Internacional de Estudos Medievais

Entre os dias 11 a 14 de agosto de 2009, sob os auspícios do Depar-tamento de Filosofia da Ufes, acontecerá na Universidade Federal doEspírito Santo (Vitória – ES) o VIII EIEM – Encontro Internacio-nal de Estudos Medievais, evento bienalmente apoiado pela ABREM(Associação Brasileira de Estudos Medievais).

Tema do Encontro: “As múltiplas expressões da Idade Média: Filoso-fia, Letras, Artes, História e Direito”.

Já estão confirmados os nomes de seis conferencistas: Maria doAmparo Tavares Maleval (Letras-UERJ), Alexander Fidora (Filosofia–Universität Frankfurt am Main), Hilário Franco Jr. (História – USP),Maria Isabel Morán Cabanas (Filologia – Universidade de Santiago deCompostela), Jean Lauand (Educação – USP) e José Enrique RuizDomènec (História – Universitat Autònoma de Barcelona).

A partir de janeiro de 2009 receberemos os pedidos de inscrição, bemcomo de apresentação de trabalhos.

O endereço do site do evento é: http://www.cchn.ufes.br/depfil/viiieiem

Page 180: SCINTILLA - FAE

Jorge Augusto da Silva Santos, Fabricia dos Santos Giuberti e Ricardoda Costa (orgs.). VIII EIEM – VIII Encontro Internacional de Es-tudos Medievais

http://www.cchn.ufes.br/depfil/viiieiem

Page 181: SCINTILLA - FAE

Normas para publicação

• Os artigos devem ser formulados obedecendo às normas técni-cas de publicação da ABNT, e encaminhados à nossa editoria emmodelo eletrônico e com cópia impressa.

• A editoria da Revista se reserva o direito de, após criteriosa aná-lise consultiva, publicá-los ou não. Os artigos não publicados nãoserão devolvidos.

• Os autores articulistas receberão três exemplares da revista emque tiver sido publicado seu artigo, abdicando, com isso, em fa-vor da revista, dos direitos autorais dos artigos.

• Os artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus au-tores e não precisam coincidir com o pensamento da Faculdade.

• O idioma de publicação é o português, não estando excluída apublicação ocasional de textos ou artigos em outras línguas. Osartigos deverão conter no mínimo 15 e no máximo 25 laudas (1lauda = 2.100 toques) e vir acompanhados de um resumo de nomínimo 8 e no máximo doze linhas.

• Em folha de rosto deverão constar o título do trabalho, o(s)nome(s) do(s) autor(es) e breve currículo, relatando experiênciaprofissional e/ou acadêmica, a instituição em que trabalha atual-mente, endereço, número do telefone e do fax e e-mail.

A editoria agradece qualquer contribuição, no sentido de melhoriada revista, sejam comentários, sugestões, críticas...

Page 182: SCINTILLA - FAE

Pedimos aos colaboradores da Revista encaminhar seus artigos econtribuições para endereço logo abaixo:

Scintilla – Revista de filosofia e mística medievalBR 277 KM 112Bom Jesus Remanso83607-000 – Campo Largo – PR

Ou: [email protected] ou [email protected]

A revista aceita permuta – We ask for exchange, on demàndel’èchange.

Assinatura anual (2 por ano – semestral): R$ 25,00; Número avulso R$ 15,00

Pedidos: enviar cheque em nome de ASSOCIAÇÃO FRANCISCANA DE ENSINO SR. BOM JESUS, para:

Scintilla – Revista de Filosofia e Mística MedievalBR 277 KM 112Bom Jesus Remanso83607-000 – Campo Largo – PR

Ou depósito bancário

HSBCAg 0099CC 22431-14Cod. Id. 300669-4Contrato 130176 [Mandar comprovante por e-mail]

Contato: [email protected] ou [email protected]: (41) 2105-4568

Page 183: SCINTILLA - FAE

Scintilla – Revista de Filosofia e Mística MedievalPÁGINA DE PEDIDOS E ASSINATURAS

Nome: _____________________________________________

Endereço: ___________________________________________

_____________________________________________________________

_____________________________________________________________

Telefone: ____________________________________________

E-mail: _____________________________________________

Outras informações ____________________________________

VALORES E FORMAS DE PAGAMENTO

Assinatura anual (2 por ano – semestral): R$ 25,00; Númeroavulso R$ 15,00

Pedidos: enviar cheque em nome de ASSOCIAÇÃO FRANCIS-CANA DE ENSINO SR. BOM JESUS, para:

Scintilla – Revista de Filosofia e Mística MedievalBR 277 KM 112Bom Jesus Remanso83607-000 – Campo Largo – PR

Ou depósito bancárioHSBCAg 0099CC 22431-14Cod. Id. 300669-4Contrato 130176 [Mandar comprovante por e-mail]

Contato: [email protected] ou [email protected]: (41) 2105-4568

Page 184: SCINTILLA - FAE