scintilla - fae · coisas: como a alma e o intelecto precisam do alimento da escritura, e um modo...

206
EDITORIAL 1 Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 7-8, jan./jun. 2011 SCINTILLA SCINTILLA SCINTILLA SCINTILLA SCINTILLA

Upload: others

Post on 12-Oct-2020

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

EDITORIAL

1Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 7-8, jan./jun. 2011

SCINTILLASCINTILLASCINTILLASCINTILLASCINTILLA

Page 2: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

2

ENIO PAULO GIACHINI

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 7-8, jan./jun. 2011

Page 3: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

EDITORIAL

3Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 7-8, jan./jun. 2011

SCINTILLASCINTILLASCINTILLASCINTILLASCINTILLA REVISTREVISTREVISTREVISTREVISTA DE FILA DE FILA DE FILA DE FILA DE FILOSOFIA E MÍSTICA MEDIEVOSOFIA E MÍSTICA MEDIEVOSOFIA E MÍSTICA MEDIEVOSOFIA E MÍSTICA MEDIEVOSOFIA E MÍSTICA MEDIEVALALALALAL

ISSN 1806-6526

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 1-206.jan./jun. 2011

Instituto de Filosofia São Boaventura – IFSBSociedade Brasileira de Filosofia Medieval – SBFM

Curitiba PR2011

Page 4: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

Copyright © 2004 by autoresQualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.

FAE – Centro UniversitárioIFSB – Instituto de Filosofia São BoaventuraSBFM – Sociedade Brasileira de Filosofia MedievalO IFSB é mantido pela Associação Franciscana de Ensino Senhor Bom Jesus (AFESBJ)

Rua 24 de maio, 135 – 80230-080 Curitiba PRE-mail: [email protected] ou [email protected]

Reitor: Nelson José HillesheimDiretor geral do Grupo Bom Jesus: Jorge Apostolos SiarcosPró-reitor acadêmico: André Luis Gontijo ResendePró-reitor administrativo: Regis Ferreira NegrãoDiretor do Instituto de Filosofia São Boaventura: Dr. Jairo FerrandinEditor: Dr. Enio Paulo Giachini

a) Comissão editorialDr. Emanuel Carneiro Leão, UFRJDr. Orlando Bernardi, IFANDr. Luiz Alberto de Boni, PUCRSDr. José Antônio Camargo Rodrigues de Souza, UFGDr. João Eduardo Pinto Basto Lupi, UFSCDr. Carlos Arthur R. do Nascimento (PUC-SP)Dr. Francisco Bertelloni (Univ. Nacional da Argentina)Dr. Gregorio Piaia (Univ. di Padova – Italia)Dr. Marcos Roberto Nunes Costa (UNICAP)Dr. Rafael Ramón Guerrero (Unv. Complutense – España)Dra. Márcia Sá Cavalcante Schuback, Södertörns University College

Estocolmo (Suécia)Dr. Ulrich Steiner, FFSBDr. Jaime Spengler, FFSBDr. João Mannes, FFSB

b) Conselho editorialDr. Vagner Sassi, FFSBDr. Marco Aurélio Fernandes, IFITEGDra. Glória Ferreira Ribeiro, UFSJRDr. Jamil Ibrahim Iskandar, PUC-PRDr. Joel Alves de Souza, UFPRDr. Gilvan Luiz Fogel, UFRJ

Revisão e editoração: Equipe internaDiagramação: Sheila RoqueCapa: Luzia Sanches

A partir de 2009 a Scintilla compõe o banco de dados da EBSCO –http://www.ebscohost.com/titleLists/hlh-coverage.htm

Catalogação na fonte

Scintilla – revista de filosofia e mística medieval. Curitiba: Instituto de Filosofia SãoBoaventura, Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval, Centro UniversitárioFranciscano, v.1, n.1, 2004-SemestralISSN 1806-65261. Filosofia – Periódicos 2. Medievalística – Periódicos.3. Mística – Periódicos.

CDD (20. ed.) 105 189

189.5

Page 5: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

SUMÁRIO

EDITORIAL ...........................................................................7

Enio Paulo Giachini

ARTIGOS ............................................................................... 9

A árvore de Porfírio: Comentários à Isagoge ....................... 11

Marcos Aurélio Fernandes

Duns Scotus sobre a credibilidade das doutrinas contidas

nas Escrituras .................................................................... 45

Roberto Hofmeister Pich

Liberdade e predestinação. A novidade de Lorenzo

Valla ................................................................................. 95

Paula Oliveira e Silva

A obra sermonária de Santo Antônio e um olhar sobre

a exegese bíblica medieval .................................................. 115

José Antônio de C. R. de Souza

COMENTÁRIOS ...................................................................... 147

Introdução à leitura espiritual, hoje ................................... 149

Hermógenes Harada

TRADUÇÕES .......................................................................... 165

As teorias da escritura contidas nos frutos, isto é, as

considerações que alimentam o entendimento e o afeto

e, primeiramente, as que alimentam o entendimento ......... 167

Page 6: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

O reto caminho e o modo de receber os frutos da

escritura, ou como, pela ciência e pela santidade, se chega

à sabedoria ........................................................................ 181

S. Boaventura

DEPOIMENTOS ...................................................................... 195

Frei Hermôgenes Harada: a universalidade do vazio ........... 197

Sérgio Wrublevski

Uma despedida ................................................................. 199

Alberto da Silva Moreira

Page 7: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

EDITORIAL

7Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 7-8, jan./jun. 2011

EDITORIAL

Enio Paulo Giachini

Alguns dos artigos do presente número de Scintilla estão focados

na leitura e modo como os medievais liam os antigos. Temos uma

leitura da obra sermonária de S. Antônio, feita por José A. de C.R. de

Souza, uma análise de algumas doutrinas escriturísticas em Duns Scotus,

por Roberto H. Pich, uma leitura da “árvore de Porfírio: Comentários

a Isagogé”, por Marcos A. Fernandes; uma análise dos escritos de Lorenzo

Valla, por Paula Oliveira e Silva. Como é nosso propósito, continua-

mos a publicar escritos póstumos de Frei Hermógenes Harada. Sobre

essa temática temos então aqui “Introdução à leitura espiritual, hoje”.

E, mais dois depoimentos sobre Fr. Hermógenes, feitos por Prof. Sér-

gio Wrublevski e Prof. Alberto da S. Moreira. Encerra essa edição

uma tradução de dois textos de S. Boaventura, tirados do Exaemeron

e traduzidos aqui por Fr. Ary Pintarelli.

A título de remissão aos artigos, apresentamos algumas idéias bas-

tardas sobre a leitura. Ler é uma atividade de labuta pela abertura de

sentido da vida de quem e do que se lê. A leitura se torna fecunda

quando esse “de quem lê e do que se lê” coincidem. Leitura dos anti-

gos é, então, um espreitar as próprias possibilidades, “radicalmente

outras, mas longamente preparadas silenciosamente no subterrâneo da

época anterior”. A leitura, enquanto empenho de escuta, é um concen-

trar-se na espera de abertura de novas possibilidades. A leitura originá-

ria, talvez, não se restrinja ao escrito, grafado, registrado. Leitura é

disposição de abertura e de possibilitação esperançosa de renovação da

doação nova e inusitada do real. Como tal, essa espera e empenho se

dão por toda parte, e a toda hora, talvez, mesmo e sobretudo na distra-

Page 8: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

8

ENIO PAULO GIACHINI

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 7-8, jan./jun. 2011

ENIO PAULO GIACHINI

ção, onde nos permitimos ser colhidos pela vida e não proativamente

ler, colher, recolher.

“Esse concentrar-se no ponto de salto e o início do novo mundo,

no entanto, se dão na atualidade presente, não, porém, na superfície

do tempo atual, onde o público e a sociedade estão tomados de anseios,

inquietações, confusões acerca dos temas fundamentais da vida, amea-

çados por infindas crises, convulsões, guerras, e-versões de costumes,

de moral, por consumismo e perda de identidade humana; mas bem

retraído da publicidade, bem no fundo do subterrâneo do tempo pre-

sente na tenaz e silenciosa labuta do pensar”.

Destacamos igualmente algumas idéias centrais do texto de S.

Boaventura, tirado do Exaemeron, onde ele aborda basicamente duas

coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura,

e um modo eficaz de o aprendiz, à época, estudar.Assim como o corpo sem alimento perde a força, a beleza e asaúde, da mesma forma a alma sem o conhecimento da verdadeadoece, se obscurece, fica disforme e instável em tudo; é neces-sário, portanto, que seja alimentada.

Na segunda parte do texto, Boaventura resume um modo de aborda-

gem e leitura das fontes de alimento do intelecto. O estudo está condicio-

nado por quatro diretivas: quem estuda deve ser ordenado, ser assíduo,

encontrar complacência no que faz e ser comedido. A seguir, quanto à

ordem de importância, apresenta também as quatro fontes de leitura dos

estudos e qual sua mutua implicação para os estudos.A maneira de estudar deve ter quatro condições: ordem, assi-duidade, complacência e medida. – A ordem é proposta de di-versas maneiras pelos vários [mestres]; mas é preciso procederordenadamente, para não tornar secundário o que é principal.Portanto, existem quatro tipos de escrituras, dos quais é precisoocupar-se de maneira ordenada. Os primeiros livros são as Sa-gradas Escrituras...; os segundos livros são os originais dos san-tos; os terceiros, as sumas dos mestres; os quartos, os livros dasdoutrinas mundanas ou dos filósofos.

Assim, literalmente, desejamos uma boa leitura.

Page 9: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

ARTIGOSARTIGOSARTIGOSARTIGOSARTIGOS

Page 10: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde
Page 11: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

A ÁRVORE DE PORFÍRIO...

11Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011

A ÁRVORE DE PORFÍRIO:COMENTÁRIOS À ISAGOGE

Marcos Aurélio Fernandes *

Porfírio, nascido em Tiro (Fenícia), pelo ano 232-3, foi discípulo

de Longino, em Atenas, e, depois, a partir de 263, em Roma, de

Plotino, de quem escreveu a vida e organizou os escritos, após a morte

deste em 270. Em Roma, após anos de estudo com Plotino, Porfírio

entrou em uma grave crise depressiva, que o colocou à beira do suicí-

dio e foi mandado por Plotino para tratamento na Sicília. É lá que

vêm à luz os seus mais importantes escritos: comentários a Aristóteles,

Platão e a Homero. Por volta de 299, Porfírio retorna a Roma, onde,

presumivelmente, assumiu o lugar de Plotino. Teve como discípulo

mais importante Jâmblico. Cerca de 301, publica as Enéadas, escreve

a “Vida de Plotino” e as “Sentenças sobre os inteligíveis”, como intro-

dução ao pensamento plotiniano. Perto de 302 se casa com uma viú-

va, Marcela. Depois de 10 meses de matrimônio a abandona, para

dedicar-se aos “problemas dos gregos”. A ela escreve uma carta, uma

coletânea de sentenças éticas retiradas da tradição clássica, e que foi

considerada o testamento moral da antiguidade. Segundo testemunho

de Lactâncio, Porfírio ainda participou do Consilium Principis, que

aconteceu em Nicomédia, onde se reuniram intelectuais da elite ro-

mana, com o objetivo de afrontar a questão dos cristãos e que prepa-

* Professor de História da Filosofia Medieval na Universidade Católica de Brasília e noInstituto São Boaventura (ISB – Brasília).

Page 12: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

12

MARCOS AURÉLIO FERNANDES

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011

rou a grande perseguição de Diocleciano. Faleceu em data incerta (c.

304-5). Os escritores cristãos dizem que Porfírio fora cristão quando

jovem, e que abandonou o cristianismo para se dedicar aos cultos her-

méticos e caldeus. Provavelmente encontrou-se com Orígenes, grande

escritor cristão, que morreu em Tiro em 253. Numa época em que a

perseguição aos seguidores de Cristo chegou ao seu máximo, escreveu

15 livros Contra os Cristãos, dos quais só se conhecem fragmentos dei-

xados pelos defensores do cristianismo, como Eusébio de Cesareia e

Jerônimo. Embora reconhecesse Jesus como um homem muito pie-

doso e um sábio judeu e estimasse o Deus do judaísmo, desprezava os

cristãos e considerava estarem em erro. Agostinho, na Cidade de Deus,

escreveu contra esta posição de Porfírio (XIX, 23), também contra a

sua concepção dos demônios como mediadores entre os deuses e os

homens (IX, 23.26-32). Apesar disso, Porfírio foi um dos

neoplatônicos que mais influências exerceu sobre a Idade Média, gra-

ças, sobretudo, aos seus comentários aos escritos de Aristóteles.

Ao contrário de Plotino e na linha do medioplatonismo, Porfírio

tinha a tendência de conciliar Platão e Aristóteles. O fio condutor

desta tendência de conciliação consistia em ver na lógica aristotélica o

pórtico de acesso para a teologia (metafísica) platônica: “Aristoteles

logicus, Plato theologus”. Platão seria o melhor intérprete da verdade e

Aristóteles o melhor intérprete de Platão. Nesta tendência, salientava-

se a correspondência entre o eidos transcendente e separado (chôristòn

eidos) e o eidos imanente na matéria (énylon eidos), ou seja, entre a

ideia platônica e a forma aristotélica. Entretanto, Porfírio foi além da

tendência medioplatônica de considerar Aristóteles apenas como uma

propedêutica a Platão. Tentou, na verdade, uma síntese do pensamen-

to aristotélico e platônico também em nível metafísico, abrindo, as-

sim, um caminho que será percorrido mais tarde por vários pensado-

res medievais, na linha de Agostinho e de Boécio. Na sua concepção

acerca do Primeiro Princípio, busca uma posição intermédia entre a

Page 13: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

A ÁRVORE DE PORFÍRIO...

13Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011

henologia (doutrina acerca do Uno) platônico-plotiniana e a ontologia

(doutrina do ente enquanto ente), de matriz aristotélica. Deus, o Pri-

meiro Princípio, recebe, assim, as características do Uno absoluto de

Plotino e do Ente Supremo, Substância Primeira, Ato Puro e Pensa-

mento que se pensa a si próprio (nous noeseos), de Aristóteles.

A maior influência do pensamento de Porfírio na Idade Média

vem de seus comentários aos textos lógicos de Aristóteles. Uma obra

que teve uma fortuna significativa para a história da filosofia posterior,

especialmente a medieval, foi a “Isagoge” (“Introdução”).

1 O “Isagoge” como comentário introdutório às categorias deAristóteles

Para Porfírio, a filosofia se articulava em ética, física e metafísica. A

lógica servia como propedêutica a todo o estudo da filosofia. Na lógi-

ca, Porfírio comentava o “Órganon” (“Instrumento”) de Aristóteles e o

diálogo “Crátilo” de Platão. O mesmo método de aproximar Platão e

Aristóteles se dava também nas outras “disciplinas” filosóficas. Assim,

na ética comentava a “Ética” e a “República”; na física, a “Física” e o

“Timeu”; e na epóptica – palavra que significa “Contemplativa”,

“Teorética”, “Esotérica” – ou metafísica, a “Metafísica” e o “Parmênides”.

Entre os escritos do “Órganon”, Porfírio preferiu comentar as “Cate-

gorias” e o texto “Sobre a Interpretação”.

O problema das “categorias”, desde Porfírio e Boécio, passou a ser

um dos mais importantes da investigação filosófica. A palavra “catego-

ria” vem do grego, katêgoría, que significa, na linguagem ordinária,

“acusa”. O uso ordinário da palavra remontava ao fenômeno do falar-

uns-com-os-outros na convivência pública da Pólis. O espaço privilegia-

do, aberto à discussão, onde os cidadãos discutiam os destinos da Pólis

era a “ágora”, a praça, o fórum, o espaço público onde acontecia o

intercâmbio de mercadorias, de opiniões, bem como os discursos en-

Page 14: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

14

MARCOS AURÉLIO FERNANDES

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011

dereçados ao público, as assembleias, os julgamentos etc. Daí o verbo

“katêgoreîn”, que significava, originariamente, dizer alguma coisa pu-

blicamente na cara de alguém, daí, acusar em público, acusar numa

assembleia ou num julgamento. Aristóteles assumiu este verbo da lin-

guagem ordinária e deu a ele uma conotação lógico-filosófica.

“Katêgoreîn” passou a significar, num juízo, atribuir um predicado a

um sujeito e “katêgoría” tomou o significado de “predicado” de uma

proposição. Aristóteles usou a expressão “katêgoriai toû ontos” para di-

zer aqueles predicados mais abrangentes e originários que se podem

atribuir ao ente enquanto ente. A tradição chamou as categorias do ente

de “gêneros supremos”, por serem gêneros que não podem se tornar

espécies de outros gêneros. Trata-se de predicados universais, que se

referem ao ente enquanto ente, isto é, ao ente no seu todo. São chama-

das, em latim, de “praedicamentum”, predicamento – de praedicare:

dizer diante de, dizer publicamente, proclamar.

A lista das categorias ou predicamentos varia na obra de Aristóteles.

Na obra dedicada a este problema – Categorias IV, 1 b – se apresenta a

lista mais completa, constando de dez tipos de predicamentos do ente:

1. Ousía (substantia - substância) – aquilo que responde à pergun-

ta “tí to on?”: o que é o “sendo” (o ente)? É o “ti estin” (o que é) do

ente, o seu ser certo “quê”, sua vigência e presença, seu vigor de ser,

seu modo de ser a entidade que ele é: o que é em si, o que repousa

em si mesmo, o que subsiste em si mesmo. Como tal, é o substrato

(hypokéimenon – subjectum) das manifestações, propriedades ou

atributos de uma coisa. Na dimensão da linguagem, é o sujeito:

aquilo de que se fala ou de que se predica, em primeira instância.

Ex.: “Sócrates”.

2. Póson (quantitas – quantidade) – o que é inerente a uma coisa

por si mesma, devido à sua matéria. Ex.: “Sócrates é de um metro

e setenta de altura”.

Page 15: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

A ÁRVORE DE PORFÍRIO...

15Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011

3. Poión (qualitas – qualidade) – o que é inerente a uma coisa

devido à sua forma. Ex.: “Sócrates é branco”.

4. Prós ti (relatio – relação) – o que é inerente a uma coisa, mas não

por si mesma, e sim por referência a outra coisa. Ex.: “Sócrates é

pai de três filhos”.

5. Poû (ubi – onde) – o lugar natural de uma coisa no universo.

Ex.: “Sócrates é cidadão de Atenas”.

6. Pôte (quando – quando) – ocasião, momento, o que se dá como

medida extrínseca à coisa, a partir do tempo. Ex.: “Sócrates foi

morto em 399 a.C.”.

7. Kheîsthai (situs – situação, posição, disposição, ordem) – o modo

como o sujeito em questão está situado, posto, disposto. Ex.:

“Sócrates está sentado”.

8. Échein (habitus – atinência) – o modo como o sujeito em ques-

tão tem a ver com, se relaciona com ou se atém a determinada

coisa. Ex.: “Sócrates está calçado”.

9. Poieín (actio – atividade) – o que o sujeito faz, o pôr em obra, o

atuar e agir de um sujeito. No caso, o sujeito é princípio da ação.

Ex.: “Sócrates ensina à juventude”.

10. Páschein (passio – passividade) – o que o sujeito sofre, o ser

atingido ou afetado por. No caso, o sujeito é o alvo ou fim de

uma ação. Ex.: “Sócrates foi condenado à morte”.

Já na antiguidade havia três linhas de interpretação a respeito do

estatuto das categorias. Havia uma interpretação ontológica, que toma-

va as categorias como divisões originárias do ser do ente; uma interpre-

tação linguístico-gramatical, que tomava as categorias como modalida-

des segundo as quais se estrutura a língua e às quais correspondem as

partes do discurso: substantivo, adjetivo, verbo, advérbio etc.; e uma

Page 16: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

16

MARCOS AURÉLIO FERNANDES

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011

interpretação lógica, que via nas categorias os termos mais gerais aos

quais se podem reconduzir os termos de um enunciado, melhor di-

zendo, os predicados atribuíveis aos sujeitos. A questão era: qual seria

o “medium”, isto é, o elemento no qual as categorias vigoram: o ser do

ente, a língua e a linguagem ou o pensamento e o conceito? Porfírio,

segundo o seu propósito de uma “Eisagogé” (Introdução) e seguindo

uma tradição presente na escola peripatética (Boeto, sucessor de

Andrônico de Rodes; e Hermínio, mestre de Alexandre de Afrodísia),

toma o fio condutor da interpretação lógica, por ser ela a intermédia,

ou seja, ela inclui a dimensão da língua e da linguagem e remete para a

dimensão do ser e do ente.

A obra em que Porfírio discute o problema das categorias é usual-

mente conhecida em forma abreviada sob o título de “Isagoge”. O

título completo soa assim: “Eisagogé eis tais Aristotélous katêgoríais,

perì tôn pénte phônôn”1, literalmente, “Introdução às Categorias de

Aristóteles: acerca das cinco vozes”. Trata-se, em primeiro lugar, de

uma introdução. Introdução a quê? A resposta pode ser dada em di-

versos níveis: como uma introdução ao problema das categorias em

Aristóteles; como uma introdução à lógica; e como uma introdução à

filosofia. Com efeito, a lógica era a propedêutica à filosofia; Aristóteles

era considerado o pensador que abria o acesso à compreensão dos “mis-

térios” tratados por Platão, e o “Órganon” em geral e as “Categorias”

em especial eram considerados o ponto de partida do estudo das obras

de Aristóteles. De que se trata, porém, quando o título fala de “cinco

1 Cf. PORFÍRIO. Isagoge. Texto greco a fronte / versione latina di Boezio. A cura diGiuseppe Girgenti. Milano: Rusconi, 1995. A introdução desta obra pelo organizadordesta edição italiana serviu como um estímulo importante para o autor deste comentá-rio e abriu perspectivas importantes de interpretação. Sejam dados os créditos, porém,também a outros textos de que o autor se serviu na elaboração do presente texto:ROVIGHI, Sofia V. Elementi di Filosofia (3 vols.). Brescia: La Scuola Editrice, 1998.LIBERA, A. de. Il Problema degli Universali: da Platone alla fine Del Medioevo. Firenze:La Nuova Italia Editrice, 1999.

Page 17: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

A ÁRVORE DE PORFÍRIO...

17Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011

vozes”? Na Idade Média, estes gêneros supremos eram chamados de

“Quinque voces” (Cinco Vozes). A “voz” é a dimensão sensível imediata

do exercício concreto da linguagem, ou melhor, da fala ou discurso:Em seu exercício concreto, o discurso (deixar ver) tem o caráterde fala, de articulação em palavras. O lógos é phonê e, na verda-de, phonê metá phantasías – articulação verbal em que, sempre,algo é visualizado2.

Na Idade Média, haverá quem, como Roscelino de Compiégne

(1050-1120), negaria qualquer estatuto de realidade aos universais,

com a tese: “universalis est vox, flatus vocis” – o universal é voz, sopro

da voz. Abelardo, porém, preferirá identificar “vox” (voz) a “sermo”

(discurso). Podemos dizer que o título do Isagoge não exige uma inter-

pretação “vocalista” ao modo de Roscelino. Entretanto, fica em aber-

to, se requer uma interpretação nominalista, ou seja, que nega qual-

quer estatuto de realidade ao universal. Acerca deste problema dos

universais, porém, não iremos tratar aqui. Deixaremos para outra oca-

sião. Em todo o caso, na leitura que a tradição fez do Isagoge, as “cinco

vozes” são interpretadas como cinco categoremas ou predicáveis, que

designam os modos em que um predicado se predica de um sujeito, ou

seja, as diversas formas de relações lógicas que o predicado pode ter

com o sujeito: gênero, espécie, diferença, próprio e acidente. Aristóteles,

na verdade, nomeava quatro predicáveis: definição, próprio, gênero e

acidente. A compreensão destes predicáveis pode ser articulada em re-

lação a dois critérios: se o predicado pode ser conversível com o sujei-

to, ou seja, se pode haver uma permuta entre o predicado e o sujeito

sem alterar o significado da proposição; e se o predicado é essencial ou

não ao sujeito. A definição é um predicado conversível e essencial a um

sujeito. O próprio é um predicado conversível, mas não essencial a um

sujeito. O gênero é um predicado não conversível, mas essencial ao

sujeito. O acidente é um predicado que não é nem conversível nem

2 HEIDEGGER, M. Ser e Tempo (Parte I). Petrópolis-RJ: Vozes, 1988, p. 63.

Page 18: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

18

MARCOS AURÉLIO FERNANDES

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011

essencial ao sujeito. Porfírio, porém, em relação a Aristóteles, retira a

definição e acrescenta a espécie na lista dos predicáveis ou categoremas.

Porfírio diferencia entre categorias e categoremas. Categorias são

tipos de predicados, são predicamentos; categoremas são formas de

predicação, são predicáveis. Por exemplo: “Sócrates é animal, homem,

branco, de um metro e setenta de altura, pai de três filhos”. “Sócrates”,

enquanto nome próprio, nomeia um indivíduo e indica uma substân-

cia (substantivo). “Animal” e “homem” são predicados de Sócrates que

nomeiam sua essência, não enquanto Sócrates, mas enquanto huma-

no. “Homem” designa a espécie a que este indivíduo pertence, e “ani-

mal” designa o gênero a que esta espécie “homem” pertence. “Branco”

é um predicado que nomeia uma qualidade de Sócrates, algo de con-

tingente, uma vez que Sócrates, a rigor, podia não ser branco e a sua

cor é algo de acidental, não é essencial. “De um metro e setenta de

altura” nomeia uma quantidade. “Pai de três filhos” nomeia uma rela-

ção. Estas indicações trazem à tona as categorias ou predicamentos e

respondem à pergunta: quais são os predicados de Sócrates? Já o modo

de ser dos categoremas ou predicáveis aparece quando perguntamos: de

que modo se predica os predicados “animal”, “homem”, “racional”, “ca-

paz de rir”, “branco”, “pai de três filhos” de Sócrates? Resposta: “ani-

mal” se predica como gênero; “homem”, como espécie; “racional” como

diferença específica; “capaz de rir” como próprio; “branco” e “pai de

três filhos” como acidentes, no caso de “branco” nomeando uma qua-

lidade, e no caso de “pai de três filhos” nomeando uma relação. Os

cinco predicáveis referidos por Porfírio são, pois: gênero, espécie, dife-

rença, próprio e acidente. Vejamos, agora, mais de perto o modo de

predicação de cada um desses predicáveis.

Gênero (Génos) nomeia um predicável que indica a essência do su-

jeito, só que de modo indeterminado, pois um gênero é comum a

várias espécies; espécie (eidos) nomeia um predicável que indica, de

modo determinado, a essência do sujeito; diferença (diaphorá) nomeia

Page 19: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

A ÁRVORE DE PORFÍRIO...

19Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011

um predicável que indica o elemento definidor ou determinante de

uma espécie, ou seja, aquilo que a faz distinguir-se das demais espécies;

próprio (ídion), por sua vez, nomeia um predicável que indica uma

característica, a qual sempre diz respeito ao sujeito em questão, mes-

mo não fazendo parte da definição da espécie, ou seja, o próprio é um

predicável, o qual diz respeito a todos os indivíduos de uma espécie,

somente a estes e sempre; por fim, acidente (symbebekós) nomeia um

predicável que indica algo que diz respeito ao sujeito em questão, mas

só casual ou ocasionalmente, não estando sempre presente nele, ou

seja, o acidente é aquilo que pode estar presente ou ausente da coisa,

sem que ela, por isso, deixe de ser especificamente aquilo que ela é.

Tomemos, por exemplo, o caso do “homem”. A definição de homem

soa assim: “homem é animal racional”. “Animal” indica o gênero.

“Homem”, a espécie. “Racional”, a diferença. Algo que não entra na

definição de homem, mas que é uma sua característica sempre presen-

te, pode ser tomado como seu próprio. Por exemplo: ser capaz de rir.

A capacidade de rir é uma característica própria do homem enquanto

homem, ou seja, enquanto espécie. Outra coisa que não entra nem na

definição de homem nem lhe é uma característica própria, isto é, sem-

pre presente, e que acontece só casual ou ocasionalmente é um aciden-

te, isto é, algo de casual, que sobrevém ao homem só ocasionalmente,

como, por exemplo, ser branco ou negro, ser rico ou pobre, ter nasci-

do no Brasil ou na Itália etc.

Se tomarmos em consideração as “cinco vozes” como possibilida-

des de predicação, ou seja, como possibilidades de relação entre

predicado (P) e sujeito (S), então podemos compreendê-las do seguin-

te modo. 1. Gênero: quando P é predicado de modo essencial na defi-

nição de S, sendo S o nome de uma espécie. Por exemplo: “Homem é

animal racional”. Nesta definição, “animal” é gênero de “homem”, que

é nome de uma espécie. Os gêneros se dividem em diversas espécies:

Page 20: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

20

MARCOS AURÉLIO FERNANDES

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011

com efeito, há diversas espécies de animais. 2. Espécie: quando P é

predicado essencial de S, sendo S o nome de um indivíduo. Por exem-

plo: “Sócrates é homem”. É que a espécie se divide numericamente em

diversos indivíduos: assim, a espécie “homem” se divide, do ponto de

vista lógico, em muitos e vários sujeitos com nomes próprios, como

Pedro, João, Maria, Teresa etc. 3. Diferença: quando P é predicado a

modo de qualidade de S, onde esta qualidade entra na definição da

essência do sujeito em questão. Trata-se, portanto, não de uma quali-

dade acidental, mas sim de uma qualidade essencial. A diferença é o

que determina o gênero, fazendo aparecer a espécie. Por exemplo: “O

homem é racional”. A razão é o que diferencia a espécie “homem” de

outras espécies de animais, muito embora a racionalidade não seja um

atributo somente do homem, mas de todos os seres espirituais. Por

exemplo: os espíritos, tais como demônios e deuses, na visão grega, e

anjos e demônios na visão cristã, serão considerados também como

seres racionais. Por isso, na definição porfiriana do homem, se acres-

centará as diferenças “racional e mortal” e não somente a diferença

“racional”. Racional diferenciará a espécie homem dos animais irracio-

nais e, “mortal”, dos “animais” (viventes, seres dotados de alma) racio-

nais imortais, ou seja, os espíritos. 4. Próprio: quando P é um predicado

não-essencial, isto é, que não entra na definição da essência de um S,

mas que é uma sua característica típica, identificadora, constante,

invariante. Ex.: “O homem é um ser vivo capaz de rir”. Isto valerá para

todos os indivíduos humanos, sempre, mesmo se alguns não exerce-

rem esta capacidade. 5. Acidente: quando P é predicado de modo não-

essencial e indica algo que apenas casual ou ocasionalmente pode estar

presente em S. Por exemplo: “Sócrates é pai de três filhos”.

De uma maneira esquemática, nós podemos expor assim os cinco

predicáveis:

Page 21: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

A ÁRVORE DE PORFÍRIO...

21Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011

Isto quanto ao título do Isagoge. Precisamos, no entanto, entender

também qual a chave de leitura que Porfírio adota ao comentar os

escritos aristotélicos. É o nosso próximo passo.

2 A chave de leitura henológica de Porfírio na interpretaçãoda lógica e da ontologia de Aristóteles

Em Porfírio, os conceitos fundamentais da ontologia aristotélica

são lidos numa chave de leitura típica do neoplatonismo, que pode ser

denominada de henológica e que tem como referência os binômios:

uno/muitos, todo/partes, identidade/diferença. Sob o ponto de vista

do binômio uno/muitos, Porfírio diz:Quando se descende, portanto, às espécies ínfimas, necessariamentese procede, com a divisão, até à multiplicidade; enquanto, quandose remonta aos gêneros supremos, necessariamente se reconduz damultiplicidade à unidade: de fato, a espécie, e, ainda mais, o gêne-ro, reconduz os muitos a uma única natureza, enquanto, ao con-trário, os indivíduos e as coisas particulares, dividem sempre o unoem multiplicidade (Isagoge 6, 16-20).

O domínio dos indivíduos é o do domínio da máxima

multiplicidade. A unidade dos indivíduos é uma unidade numérica.

Page 22: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

22

MARCOS AURÉLIO FERNANDES

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011

Se mantivermos o olhar na multiplicidade dos indivíduos nos disper-

saremos numa infinidade de substâncias, com uma infinidade de aci-

dentes. Se elevarmos o olhar um pouco, tentando colher o que há de

comum entre muitos e vários indivíduos, descobriremos ainda uma

multiplicidade de espécies e subespécies. Se elevarmos um pouco mais

o olhar do intelecto e buscarmos a unidade de muitas e várias espécies,

descobriremos uma multiplicidade reduzida de gêneros. E se elevar-

mos o olhar para os gêneros supremos, nós encontraremos uma

multiplicidade finita de conceitos, a qual nos aproximará cada vez mais

da unidade que recolhe todas as coisas, e que não pode ser conceituada

ou encerrada em qualquer categoria.

Do ponto de vista mereológico, ou seja, na perspectiva do binômio

todo/partes, Porfírio diz:O gênero é um todo, enquanto o indivíduo é uma parte; a espé-cie é ao mesmo tempo todo e parte, mas, parte de outra coisa, etodo em outra coisa, e não de outra coisa; de fato, o todo estánas partes (Isagoge, 8, 1-3).

Os dois extremos são, portanto, o gênero e o indivíduo. Gênero é

um conceito de totalidade, certamente, uma totalidade unitária, em-

bora não simples, pois é composta de várias e muitas espécies. O indi-

víduo, tomado em sua unidade numérica, é aquela substância que é

distinta de todas as outras (“dividida” em relação às demais) e que em

si mesma não pode mais ser dividida: indivisum in se et divisum a

quolibet alio, dirá o adágio da Escola. É claro que o indivíduo pode ter

partes e que cada parte pode ser considerada em si mesma e pode tam-

bém ser considerada em suas subpartes e assim infinitamente. Entre-

tanto, a unidade aqui considerada é uma unidade lógica, mais do que

física. Chamamos de indivíduo uma realidade tomada enquanto tal,

um ente enquanto este ente intencionado numa percepção, ou seja,

numa intuição ou numa visão imediata. Sócrates é um indivíduo, ou

seja, uma substância individual, mas não é uma substância simples. De

fato, esta substância é composta, de matéria e forma, de corpo e alma.

Page 23: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

A ÁRVORE DE PORFÍRIO...

23Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011

É verdade que o corpo de Sócrates é divisível em tantos órgãos e cada

órgão pode ser dividido ulteriormente e assim por diante. Entretanto,

no nome próprio “Sócrates” viso um indivíduo, ou seja, falo da reali-

dade que é esta pessoa, esta substância individual. Nisso, estou falando

de uma unidade indivisível, pois é a unidade de uma pessoa, distinta

de todas as demais pessoas e, ao mesmo tempo, única e singular em si

mesma; e a totalidade dos seus aspectos não é uma mera soma de

partes, mas sim uma totalidade vivente multidimensional, corporal-

psíquica-espiritual; uma totalidade que se reúne em torno de um eu,

melhor, de um si-mesmo, que é o centro unificador de seus atos e de

seus aspectos. Tudo isso quer dizer: embora o indivíduo seja uma tota-

lidade real, natural, “física”, ele não é, do ponto de vista lógico, uma

totalidade que tem sob si mesmo outros tipos de unidade: é indivisível.

Entretanto, entre o gênero, que é totalidade, e o indivíduo, que é

parte, está a espécie, que é parte e todo, ao mesmo tempo. Porfírio dá,

porém, uma dica sobre os diferentes modos de ser todo e parte, em

relação à espécie. Diz que a espécie é parte de outra coisa; e que é todo

em outra coisa. O “ser-de” indica a relação no horizonte da predicação.

A espécie é parte do gênero, como “homem” é parte do gênero “ani-

mal”. Neste caso, o ser-parte-de é tomado a partir da predicação. Mais

uma vez, “parte” tem aqui um sentido lógico, melhor, onto-lógico e

não ôntico-físico. O ser-animal se predica do ser-homem. “Homem”,

enquanto espécie, por sua vez, participa, ou seja, toma parte do modo

de ser do gênero “animal”. Por outro lado, a espécie é todo; e todo em

outra coisa. O “ser-em” indica, em sua perspectiva, uma presença

imanente. A espécie é uma totalidade participada por muitos, vários e

diferentes indivíduos. E que se encontra, como forma comum e como

estrutura invariante, em cada indivíduo. Enquanto forma imanente, a

espécie não é um todo que está “por fora” dos indivíduos, mas um

todo que está em cada indivíduo, pois, diz Porfírio, “o todo está nas

partes”. Poderíamos, talvez, dizer que a espécie se encontra individuada

Page 24: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

24

MARCOS AURÉLIO FERNANDES

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011

em cada indivíduo? Se eu tomasse cor como gênero, e vermelho como

espécie de cor, poderia dizer que o ser-vermelho se encontra presente

em cada vermelho individual, tomado como este vermelho aqui, pre-

sente neste vaso de cerâmica, que é único no mundo, com esta precisa

nuança que lhe é única e singular? Talvez sim, na perspectiva da refle-

xão porfiriana.

Há, ainda, a perspectiva do binômio identidade/diferença. Porfírio

afirma que as diferenças “são parte integrante da definição de cada coisa,

e o ser da coisa, que é uno e idêntico, não admite nem aumento nem

diminuição” (Isagoge, 9, 20-22). O universal diz a identidade de diver-

sos e diferentes. Ser idêntico é ser uno. Todo ente é idêntico consigo

mesmo, à medida que é uno. Diversos entes são idênticos à medida

que, entre eles, há uma unidade, que os reúne numa comunidade.

Todas as abelhas são idênticas enquanto são abelhas, são diversas ape-

nas enquanto há diferenças de grandeza, beleza etc. Quer dizer: no ser-

abelha, são idênticas. Logo se vê, também, que ser-idêntico não é ser-

igual. A identidade é um corolário da unidade. A igualdade o é da

multiplicidade. Pois bem, o ser de uma espécie é único e idêntico, ainda

que os indivíduos que dela participam sejam muitos e distintos. Esta

unidade específica permanece sempre una, isto é, ela não se multiplica

com a multidão dos indivíduos. Assim, nesta perspectiva, a espécie

“homem” não se multiplica com o aumento ou a diminuição dos in-

divíduos humanos. Mais do que uma realidade factual, a espécie diz

uma possibilidade essencial, um possível modo de ser, um poder-ser.

Também permanece sempre idêntica, pois não se diferencia, enquanto

espécie, em razão das distinções que se operam sob sua vigência. Por

exemplo: o vermelho permanece sempre idêntico consigo mesmo,

enquanto vermelho, não obstante acontecer de a vermelhidão ou ru-

bor se dar em distintas nuanças e infindas particularidades em todos os

vermelhos existentes nas coisas. A espécie não aumenta nem diminui,

Page 25: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

A ÁRVORE DE PORFÍRIO...

25Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011

com o aumento e diminuição dos indivíduos. Ela é e permanece sem-

pre una em si mesma. A diferença entre indivíduo e espécie, portanto,

parece não ser uma diferença ôntica, que diz respeito ao ente em suas

propriedades fatuais, mas sim uma diferença ontológica, isto é, uma

diferença não entre ente e ente, mas sim entre ser e ser, ou seja, entre ser

individuado e ser comum. Aumento e diminuição dizem respeito ao

domínio dos indivíduos e dos acidentes das substâncias individuais.

O ser da coisa é, porém, uno e idêntico. A unidade do indivíduo é

numérica. A unidade da espécie não é numérica. Por outro lado, não

obstante a ênfase na identidade como corolário da unidade, não se

pode dizer que a diferença deixa de ter importância. Porfírio afirma,

ainda, que as diferenças entram na definição das coisas, como partes

integrantes, isto é, como partes intrínsecas, essenciais. Naturalmente,

trata-se de diferenças específicas, pois as diferenças individuais não en-

tram na definição de um ente. O indivíduo enquanto tal é indefinível.

Não se pode definir “Sócrates”. Mas se pode definir uma espécie, como

“homem”, por exemplo. Do mesmo modo, um gênero supremo não

pode ser propriamente definido. Não se pode definir, por exemplo,

ser. Pois ser é um conceito transcendental, que ultrapassa toda deter-

minação em termos de gênero, diferença e espécie. Ora, aqui estamos

falando de definição em sentido rigoroso, como definição essencial,

de cunho metafísico, ou seja, uma definição que precisa e determina

os constitutivos da essência da coisa, isto é, o gênero próximo e a dife-

rença específica. Assim, segundo a antropologia filosófica tradicional,

definir “homem” é dizer “animal racional”, sendo “animal” o gênero

próximo da espécie “homem” e “racional” a diferença que determina a

especificidade da espécie “homem”, destacando-a do fundo

indeterminado do gênero “animal”. Logo se vê que é a diferença o

elemento determinante, que torna nítido e preciso o que antes era

indeterminado, isto é, difuso e vago.

Page 26: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

26

MARCOS AURÉLIO FERNANDES

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011

3 A “scala predicamentalis” ou a “árvore de Porfírio”

Tendo tratado das noções dos predicáveis e da chave de leitura

henológica feita por Porfírio a partir dos binômios uno/múltipo, par-

te/todo e identidade/diferença, convém agora tratar da “scala

predicamentalis” ou o que ficou conhecido na tradição como “árvore

porfiriana”. Trata-se de uma escada que articula os predicáveis, descen-

do do gênero supremo através das várias diferenças específicas até a

espécie ínfima e, por fim, ao indivíduo.

3.1 Exposição da “scala predicamentalis”

A ordem dos predicáveis, ou seja, sua disposição e articulação, se

dá de maneira gradual, a modo de escalação descendente. Vemos, as-

sim, que, ao fundo da scala predicamentalis está a ordenação henológica-

ontológica hierárquica. Porfírio escreve:O gênero supremo é aquele sobre o qual não pode haver algumoutro gênero superior, enquanto a espécie ínfima é aquela de-baixo da qual não pode haver alguma outra espécie inferior; sãotermos intermediários entre o gênero supremo e a espécie ínfi-ma, outros que são, ao mesmo tempo, gênero e espécie, natural-mente em relação a sujeitos diversos. Esclarecemos este discursotomando como exemplo uma categoria. A “substância” é ela mes-ma um gênero, à qual é subordinada a espécie “corpo”; subordi-nado a corpo” é “ser vivente”; a este é subordinado “animal”,enquanto a “animal” é subordinado “animal racional”; a este,ainda, é subordinado “homem”, e a “homem”, enfim, são su-bordinados “Sócrates”, “Platão” e os outros indivíduos. Entretodos estes termos, “substância” é o gênero supremo, porque ésomente gênero, enquanto “homem” é a espécie ínfima, porqueé somente espécie; “corpo”, por sua vez, é espécie de “substân-cia” e, ao mesmo tempo, gênero de “ser vivente”. Por sua vez,“ser vivente” é espécie de “corpo” e gênero de “animal”; e assim“animal” é espécie de “ser vivente” e gênero de “animal racio-nal”; “animal racional” é espécie de “animal” e gênero de “ho-mem”; “homem”, enfim, é espécie de “animal racional”, mas

Page 27: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

A ÁRVORE DE PORFÍRIO...

27Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011

não é gênero dos homens individuais, mas é somente espécie(Isagoge, 4, 17-31).

A scala predicamentalis ou “árvore porfiriana” pode ser representa-

da esquematicamente de diversas formas, algumas mais estáticas, ou-

tras mais dinâmicas. Tentemos, pois, representar em forma de escada e

em forma de árvore a ordem dos predicáveis segundo o exemplo apre-

sentado por Porfírio no nosso texto que acabou de ser citado, que é o

exemplo da categoria substância.

Page 28: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

28

MARCOS AURÉLIO FERNANDES

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011

As divisões, portanto, ficam assim:

A árvore porfiriana é, portanto, uma escala descendente. E a des-

cendência se diz tanto em sentido de um movimento que vai de alto a

baixo, do gênero supremo, que é a substância, até a espécie ínfima, que

é o homem, e, para além dela, até os indivíduos humanos – Sócrates,

Platão etc.; quanto no sentido de um movimento por assim dizer

geracional, que constitui uma ordem de proveniência, ao ritmo da

sucessão dos gêneros. Com efeito, a palavra grega “génos”, na lingua-

gem corrente, significava origem, família, descendência, estirpe. Claro

que, aqui, não se trata propriamente de uma geração física. Trata-se,

antes, de um movimento de proveniência, que se estabelece na dinâ-

mica dos predicáveis, no reino enigmático dos universais, isto é, da

linguagem-conceito, com suas correspondências ontológicas

(metafísicas, transcendentes, a priori) e também ônticas (físicas,

Page 29: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

A ÁRVORE DE PORFÍRIO...

29Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011

imanentes, empíricas). Por um lado, é um movimento de descendên-

cia através de diversas formas de unidade (genérica, específica e numé-

rica), onde a cada nível inferior se evidencia mais e mais a multiplicidade.

Trata-se, por outro lado, também de um movimento de contínua e

crescente determinação, onde o que aparece vai se definindo cada vez

mais de maneira precisa e vai ganhando cada vez mais em nitidez.

Poderíamos entender cada nível como um horizonte de compre-

ensão do ser do ente. Aliás, a palavra grega para definição (que articula

gênero e diferença, fazendo resultar a espécie) é hóros, que, em lingua-

gem usual, significava limite, confim. Aristóteles também usava como

equivalente de hóros a palavra horismós, de-limitação, de-finição. Para o

grego, o limite (péras), não era algo de negativo, era, antes, sinônimo

de perfeição. Quando uma obra alcança o seu limite, ela se consuma e

passa a repousar em si mesma. Então é que ela brilha em sua verdade e

beleza. O limite é a determinação, que dá nitidez à identidade da coisa.

É o que torna visível o fenômeno. Ora, chamamos de “horizonte”

aquilo que delimita a visibilidade, o aparecimento, a presença e vigên-

cia de uma paisagem. Podemos, pois, entender cada nível da escala

predicamental como sendo um horizonte de aparecimento, de presen-

ça e de vigência de algum modo de ser. Em vez de horizonte, talvez

pudéssemos também usar a palavra dimensão, pois cada nível tem um

papel mensurador, ou seja, nos oferece certa medida de determinação

do ser dos entes. Em termos lógicos, como a extensão e a compreen-

são de um termo são inversamente proporcionais, os membros superi-

ores da escala têm mais extensão e menos compreensão e os termos

inferiores vão apresentando menos extensão e mais compreensão. É

como se o horizonte fosse se tornando cada vez mais próximo e a

clareza do que se vê fosse ficando cada vez mais nítida.

3.2 Substância

O horizonte máximo de definição do ente é a substância (ousía).

Ousía é expressão do ser, é vigência do ser, essência em sentido verbal,

Page 30: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

30

MARCOS AURÉLIO FERNANDES

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011

como o que essencializa, dá vigor e vigência ao ente em seu ser. É

potência como poder-ser, não no sentido passivo da potencialidade,

típica da matéria, mas no sentido ativo de uma atuação do ser como

Puro Agir. Com efeito, Porfírio entende que o Uno é um Agir Puro e

que este Agir Puro é Ser e que o Ser é anterior ao ente, e, por conse-

guinte, à substância. A substância seria como que o assentamento ou

repouso do ser como Puro Agir. No seu Comentário ao [diálogo]

Parmênides de Platão (XII, 22-33) ele diz:Considera agora se Platão não parece deixar entender isto, asaber, que o Uno que é acima da substância e do ente, não sejanem ente, nem substância, nem atividade, mas acima de tudoaja e seja Ele mesmo o Puro Agir. Por conseguinte, Ele mesmoseria o Ser que é antes do Ente; participando deste Ser, portan-to, o Segundo Uno possui um Ser derivado, e este é o ‘participardo ente’. Portanto, o Ser é dúplice: o primeiro preexiste ao Ente,o segundo é aquele que é produzido pelo Uno, que está além doEnte. E o Uno é em sentido absoluto, ele mesmo, o Ser, ou, dequalquer maneira, é a Ideia do Ente.

Em primeiro lugar, vê-se que Porfírio alude a uma prioridade do

ser em relação ao ente. “Ser”, porém, se compreende fundamental-

mente de dois modos: em sentido originário, como o Uno transcen-

dente, o Puro Agir; e em sentido derivado, como ser, atuação, imanente

ao ente. O ente propriamente não é; só é enquanto participa do Ser, à

medida que é produzido e posto no ser. O que propriamente é diz-se

ser, tomado em sentido originário, como Puro Agir e como Ideia, isto

é, como Uno e potência unificadora, forma originária e originadora,

geradora e configuradora do ente enquanto ente. Na Idade Média,

sobretudo em Tomás, o ser vai ser determinado como “actus essendi”:

ato de ser.

Entretanto, além do ser como verbo (einai/esse), há o ser como parti-

cípio substantivado (on/ens). Isto quer dizer: há também o ser no horizon-

te das coisas que são derivadas do Uno/Bem, melhor, dos entes que rece-

bem o ser a partir da Tríade Uno-Intelecto-Alma. E, neste horizonte, ente

Page 31: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

A ÁRVORE DE PORFÍRIO...

31Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011

se diz em primeiro lugar como substância e depois como acidentes. Por

isso, é compreensível que Porfírio tome como exemplo para a articulação

dos predicáveis a categoria de substância (ousía).

No limite, isto é, na consumação ou perfeição (ato/forma), a ousía,

aparece como presença quieta, que repousa em si mesma, como sub-

sistência, substância. O primeiro horizonte da definição essencial é,

portanto, a imensidão da vigência de ser e de sua subsistência, o “ens

per se”: a substância. “Substância” é o génos primeiro, o ascendente

primordial, do qual os outros modos essenciais de ser recebem a pro-

veniência. É o genikôtaton: o gênero generalíssimo. Entretanto, aqui, o

geral não deve ser entendido meramente como conceito vazio e

indeterminado. O vazio do gênero generalíssimo é, por assim dizer,

um vazio pleno, pois está prenhe, grávido, de possibilidades. Nele es-

tão em potência todos os outros modos possíveis de ser do ente, ou,

mais restritamente, da substância. É máxima universalidade categorial:

o uno supremo no domínio das categorias, isto é, dos modos de ser e

de dizer, em referência ao ente. No meio desta universalidade, aconte-

ce uma primeira cisão, um primeiro corte. A unidade dá lugar à

dualidade. O uno da substância se duplica em duas articulações funda-

mentais ou dois primordiais modos de ser. Emerge a diferença no meio

da identidade, a divergência no seio do máximo convergente. Apare-

cem as diferenças específicas da substância: o modo de ser do corpóreo

e o modo de ser do incorpóreo. Na verdade, numa perspectiva platôni-

ca, trata-se de dois mundos: o kósmos aisthêtós (mundus sensibilis) e o

kósmos noêtós (mundus inteligibilis). O mundo sensível é a ordem dos

entes que podem ser percebidos no espaço-tempo: os corpos e tudo o

que é corpóreo. O mundo inteligível é a ordem das ideias, ou seja, dos

paradigmas ou arquétipos de todos os modos de ser, o ser ideal, o

incorpóreo. O mundo sensível é a totalidade dos entes em devir. O

mundo inteligível, a dos entes que permanecem sempre em quieta

plenitude e em plena quietude. O mundo sensível é uma imagem do

Page 32: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

32

MARCOS AURÉLIO FERNANDES

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011

mundo inteligível, assim como o tempo é uma imagem da eternida-

de. Numa perspectiva aristotélica, por sua vez, o inteligível se une ao

sensível; isto é, as formas inteligíveis (eídê noetà) se tornam imanentes

às formas sensíveis (eídê aisthetá) imprimindo-se na matéria dos sujei-

tos e expressando-se como forma externa (morphé) e figura (schéma)

das coisas. Por conseguinte, o reino do corpóreo não é ininteligível.

Graças às formas (eídê) ele está prenhe de inteligibilidade, ou seja, em

potência ele já traz as diversas dimensões de formas, que se apresenta-

rão em seu horizonte. Aparece, assim, o gênero “corpo”.

3.3 Corpo

“Corpo” (sôma) é uma espécie de substância, a saber, a substância

sensível, ou seja, que é intencionada no ato de nossa percepção natural.

É a ordem da substância, que se dá como entes extensos qualificados,

submetidos ao devir. De fato, tal como se dão na experiência cotidia-

na, são corpos numericamente unos, diferentes, extra-postos espacial-

mente, que manifestam determinadas qualidades: grandezas, configu-

rações, cores e brilhos, sons, calor, dureza, peso etc. A coisa suposta

como substrato dessas manifestações, por sua vez, é compreendida na

nossa percepção como coisa extensa. Com efeito, propriedade caracte-

rística do corpo é a extensão concreta, a qual, porém, é mais do que a

extensão puramente geométrica, pois esta é imaterial e imaginária, en-

quanto aquela é material e real. O corpo se encontra, pois, material-

mente estendido em três dimensões: cumprimento, largura e profun-

didade; é divisível em partes reais; e se dá em referência a uma localiza-

ção num “onde” (ubi), a uma disposição de suas partes (situs) e a uma

atinência a outros corpos (habitus). Por sua vez, no ou junto ao corpo

se manifestam também as categorias do fazer (actio) e do sofrer (passio),

além do movimento, que pode ser local (ubiquação), aumento e di-

minuição e alteração (mutações acidentais e substanciais). Logo se vê

que todas essas categorias não são simplesmente interpretadas em cha-

Page 33: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

A ÁRVORE DE PORFÍRIO...

33Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011

ve científico-matemática, isto é, traduzidas em cifras quantitativas, mas

são prenhes de ressonâncias qualitativas, advindas da experiência co-

mum cotidiana. Outra observação necessária diz respeito ao estatuto

da extensão em relação à substância-corpo. Na perspectiva antiga, di-

versa daquela cartesiana, relacionada à visão da ciência matematizante

da natureza, a extensão não é propriamente a essência do corpo, a sua

ratio essendi, um fundamento de seu ser, mas é apenas uma sua propri-

edade característica, e, portanto, uma sua ratio cognoscendi, um princí-

pio de (re)conhecimento. A categoria acidental que imediatamente se

liga à extensão é a quantidade, que se define a partir da massa e da

figura estendida nas três dimensões espaciais: cumprimento, largura e

profundidade ou altura. Vemos, assim, que a substância-corpo é, na

verdade, um mundo pleno e prenhe de especificidade, de atividade e

de inteligibilidade. Cada corpo, de fato, segundo a perspectiva do

hilemorfismo, é constituído de dois princípios ou condições-de-ser: de

matéria (hýlê), momento potencial e indeterminado, contudo, sus-

ceptível de determinação; e a forma (morphê), o momento atuante,

que dá o ser, determina e qualifica tal ente.

“Corpo” é também um gênero, isto é, uma totalidade, uma or-

dem prenhe, que traz, em potência, diversos outros modos de ser. De

fato, corpo pode ser mineral, vegetal ou animal. São como que possi-

bilidades de ser da corporeidade. Por isso, entra em jogo, no meio do

reino “corpo”, uma cisão que introduz duas diferenças fundamentais,

que são, ao mesmo tempo, dois níveis diversos: o “animado” e o “ina-

nimado”. “Corpo inanimado” nos introduz no reino dos minerais,

onde ser vigora como simplesmente ser, como ocorrer no espaço do

mundo sensível. A pedra, em sua presença retraída, isto é, compacta,

maciça, quieta e fechada em si mesma é uma imagem característica

deste tipo de substância e substancialidade. “Corpo animado”, por sua

vez, nos introduz na totalidade dos seres viventes: vegetais e animais.

Surge, assim, uma terceira dimensão da substância, a da vida. Ao cor-

po pertence simplesmente ser. Ao ser vivente, o ser e o viver. Aliás,

para o vivente, ser é viver.

Page 34: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

34

MARCOS AURÉLIO FERNANDES

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011

3.4 Ser vivente

Entramos, agora, no horizonte que leva o nome de “ser vivente”

ou “ser animado” (émpsychon). Entramos, então, na ordem do vital e

da vitalidade em geral, onde se dá a regência do princípio da vida (psyché).

Certamente, a substancialidade do vivente é diversa daquela do não

vivente. Não há apenas uma diferença de grau entre o inanimado e o

animado, mas sim um salto qualitativo, melhor, o surgimento de uma

diferença não só acidental, mas, sobretudo, substancial, essencial. Como

vimos, o ser animado ou vivente é uma espécie de substância corpórea,

mas nele se manifesta algo de essencialmente novo. O “animado”

(émpsychon) ou “vivente” caracteriza-se por abrir e manifestar a totali-

dade-mundo da psychê (ânima: alma). Trata-se do princípio vital, que

se manifesta tanto na vida vegetativa, quanto na vida sensitiva, quanto

na vida intelectiva. Diversa será, pois, a “animação” ou o “ânimo” de

cada tipo de vida. O mundo vivente supõe o mundo corpóreo, mas

apresenta um “quê” (quid) que não se encontra ao nível do corpo ina-

nimado, da pedra, por exemplo. Este “quê” é a forma substancial cha-

mada psychê, alma. É aquilo pelo que o corpo vivente é o que é, ou

seja, aquilo que torna corpo vivente o corpo vivente. Falando de modo

grosseiro, vivente é aquilo que tem a capacidade de mover-se. Contu-

do, este automovimento não deve ser entendido apenas no sentido do

movimento local (ubiquação). Também uma máquina pode se mover

e, nem por isso, uma máquina é um vivente. Também um vivente

apresenta movimentos precisos, mas nem por isso o vivente é uma

máquina. Mais do que dizer que o vivente é um ente capaz de

automovimento, é melhor dizer que o vivente é aquele ente que é

capaz de ação imanente. Ação imanente é aquela que vai além da ação

transitiva. A ação transitiva termina no objeto ao qual ela tendia. Já a

ação imanente é aquela que enriquece e aperfeiçoa o próprio agente.

Podemos formular ainda melhor: vivente é aquele ente que tem em si

mesmo o princípio da própria atividade, do próprio devir, ou seja, é

Page 35: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

A ÁRVORE DE PORFÍRIO...

35Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011

aquele que vem a ser o que é, por força e graça de si mesmo. A autono-

mia é, pois, uma propriedade característica do vivente. O vivente

vegetativo executa por si mesmo o movimento pelo qual ele busca

alcançar o próprio fim, isto é, a própria consumação ou a perfeição de

sua natureza. A planta por si mesma assimila nutrientes, realiza a

fotossíntese, cresce, floresce, se frutifica. O vivente sensitivo, por sua

vez, providencia para si mesmo o próprio alimento e as demais condi-

ções para assegurar a vida, baseando-se, fundamentalmente, na percep-

ção sensorial, isto é, no conhecimento sensitivo. O vivente intelectivo,

enfim, isto é, o homem, age conforme a sua liberdade, baseando-se no

conhecimento intelectivo do ente no seu todo. Ele é capaz de operar e

agir, a partir de representações abstratas e de conceitos universais. Ora,

o princípio regente da vitalidade do vivente, o que suporta e governa

sua auto-organização, sua autoregulação e sua autoconsumação, cha-

ma-se, na perspectiva da ontologia da substância, alma (psyché). A alma

não é algo que se acrescenta ao corpo, mas é princípio formador do

corpo enquanto corpo vivente. Não há corpo e só depois sobrevém

como um acréscimo extrínseco, a alma. Corpo vivente só é o que é a

partir da atuação do princípio de vida, que se chama alma. Isto quer

dizer: a alma é potência estruturante do corpo-organismo enquanto

tal e de suas funções, potência imanente ao próprio corpo, que dá as

leis de suas próprias atividades e que o torna capaz de alcançar suas

finalidades. É, portanto, princípio que dá o ser ao corpo e potência

unificadora das suas funções vitais; princípio de subordinação e de co-

ordenação das muitas atividades do corpo vivente. Aristóteles deno-

minava a alma de “entelécheia” do corpo: a forma que determina a

realização consumada (entelôs + échein = ter-se perfeitamente) de uma

potencialidade. É aquilo que dá ao corpo olhos para ver, ouvidos para

ouvir etc. Nesta visão teleológica, muito diversa da visão mecanicista

moderna, o vivente tem olhos porque é destinado a ver, não vê porque

tem olhos. Há uma definição aristotélica da alma que merece ser aqui

citada: entelécheia he prôte sômatos physikoû dynámei zôên échontos; os

Page 36: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

36

MARCOS AURÉLIO FERNANDES

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011

latinos traduziam por: actus primus corporis physici potentia vitam

habentis, ou seja, alma é a forma determinante e consumadora do corpo

natural que tem a vida como possibilidade (Da alma II, 4, 415 b). Alma

é atuação primordial, princípio de ser e de devir; de um corpo natural,

isto é, de um corpo não artificial, de um corpo gerado segundo a natu-

reza (phýsis) e não segundo a arte (téchnê); de um corpo que se atém à

vida como sua possibilidade, como seu poder-ser, quer dizer, de um

corpo capaz de viver.

No gênero “vivente”, porém, acontece uma cisão, uma diferença

substancial entre “vegetativo” e “sensitivo”. A presença ou não da per-

cepção sensorial caracteriza, pois, uma diferenciação substancial no

gênero “vivente”. O vivente privado da percepção sensorial, que ape-

nas vive, é o vegetal. Por sua vez, o vivente que é provido da capacida-

de de percepção sensorial, que vive e sente, é o animal.

3.5 Animal

Saltamos, assim, para uma nova totalidade: a do “animal” (Zôon).

Trata-se do vivente que é regido pela Zôê: o princípio perceptivo da vitalida-

de. É a instância da irrupção do conhecimento, mesmo que seja como

conhecimento apenas sensitivo, como no caso dos animais irracionais.

Com efeito, pelos sentidos, o animal é afetado por aquilo que se acha em

seu meio ambiente e entra em conhecimento daquilo que o circunda. Os

sentidos do tato, do olfato e do paladar sobressaem no aspecto afetivo da

experiência sensitiva. Já a visão e a audição são por excelência formas de

tomada de conhecimento, ressaltando, assim, o caráter cognitivo da expe-

riência sensitiva. Aristóteles postulou, ainda, para além dos cinco sentidos

externos, um sentido interno ou sentido comum, pelo qual o animal não

somente sente, mas também sente de sentir. No sentido comum abre-se,

pois, a dimensão da consciência. Pela consciência, o animal sabe de si, na

imediatez do sentir. A capacidade perceptiva e a consciência dão ao animal

Page 37: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

A ÁRVORE DE PORFÍRIO...

37Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011

a possibilidade de se mover em seu ambiente com mais mobilidade do

que a planta no seu. Maior mobilidade ainda ele alcança através da sua

capacidade imaginativa e da sua memória sensitiva. A imaginação possibi-

lita ao animal criar formas inusitadas de providenciar-se a vida. A memória

dá-lhe um passado e abre-lhe a dimensão da experiência. Além do sentido

comum, da imaginação e da memória, o animal é também provido de

instinto. É pelo instinto que o animal se dirige, orientando-se em suas

escolhas, em vista de seu fim: a própria vida. Um filhotinho de gato,

mesmo sem experiência, excita-se como um caçador em potencial diante

de um rato e se arrepia diante de um cão. O instinto mostra que a vitalida-

de do animal não é meramente causal mecânica, mas é também causal

teleológica, ou seja, opera segundo os seus próprios fins. Tudo isso, pois,

dá ao animal toda uma gama de possibilidades de providenciar para si

mesmo as condições de manutenção de seu viver, bem como de reprodu-

ção, para a perpetuação da espécie.

No meio, porém, desta totalidade chamada “animal” opera-se uma

nova cisão: emerge a diferença substancial entre “irracional” e “racio-

nal”. Irracional é o animal que apenas sente, ou seja, que permanece

fechado no círculo do sentir, melhor, da percepção sensorial. Racional

é o animal que sente e pensa e que, pelo pensamento, transcende o

ambiente e se abre para o mundo, quer dizer, para a totalidade do ser.

Instaura-se, assim, uma nova espécie de substância-corpo-vivente: o

animal racional.

3.6 Animal racional

Porfírio entende “animal racional” como espécie de animal e gêne-

ro de homem! É diversa a sua perspectiva do modo como costuma-

mos entender animal e homem. De modo usual, quando falamos de

animal pensamos logo nos bichos, isto é, no animal irracional. E pen-

samos que o homem seja um bicho como outro, apenas com uma

Page 38: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

38

MARCOS AURÉLIO FERNANDES

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011

diferença acidental: a inteligência. Nesta perspectiva, há apenas uma

diferença de grau entre o animal-bestial e o animal-homem. Não há

uma diferença substancial, como é uma diferença específica. A mu-

dança de espécie, porém, se dá por uma diferença que não é acidental,

como diferença de grau ou de qualidades, mas substancial, que é uma

diferença essencial, substancial, no ser do ente em questão. Isto quer

dizer que animalidade, predicada do ser pensante, é uma animalidade

radicalmente diferente da animalidade dos bichos. O vivente pensante

é aquele animal que é dito “racional”. Há animal racional e animal

irracional. O irracional é o que apenas é e sente. O racional é o que é,

sente e pensa. Irracional é o bicho. E o racional? Nós respondemos

logo: o homem. Só que Porfírio, em seu texto citado acima, diz que

“animal racional” é gênero de homem e não simplesmente o homem.

Neste caso, o homem não é simplesmente e sem mais o animal racio-

nal, mas sim uma espécie de animal racional! Haveria outras espécies

de animais racionais? Na visão neoplatônica, sim. Segundo nos repor-

ta Agostinho, os neoplatônicos diziam haver três espécies de animais

racionais: os homens, os demônios e os deuses (cf. Cidade de Deus, l.

VIII, c. 15). Cada tipo de “animal racional”, por sua vez, traz uma

forma de corporeidade própria. Os homens possuem corpo terreno;

os demônios, corpo aéreo – são “espíritos dos ares”, como dizia S.

Paulo (Ef 6,10); e os deuses, que têm corpo celeste ou etéreo. Os

homens e os deuses são os dois extremos do gênero “animal racional”.

Entre estes dois extremos se colocam, pois, os demônios. Estes têm

em comum com os deuses a imortalidade e com os homens as paixões

da alma. Já os deuses são etéreos, impassíveis e imortais. Por causa

desta posição mediana dos demônios, Porfírio atribuiu-lhes um papel

de mediadores entre os deuses e os homens. Na Cidade de Deus, Agos-

tinho busca refutar esta atribuição de mediação dada por Porfírio aos

demônios e busca mostrar que o único mediador entre os homens e

Deus (e não “os deuses”) é Cristo (Cidade de Deus, l. IX, c. 15). Na

Page 39: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

A ÁRVORE DE PORFÍRIO...

39Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011

visão cristã, em lugar de demônios e deuses teremos, então, demônios

e anjos. E o nome “demônio” perde o seu sentido neutro, de divindade

inferior, que, na visão neoplatônica podia ser boa ou má, ou às vezes

boa e às vezes má, e recebe um sentido exclusivamente negativo, iden-

tificando-se com o “diabólico”, o “satânico”. Seja como for, a perspec-

tiva cosmológica neoplatônica (Apuleio, Porfírio) permitia pensar es-

pécies diferentes de “animal racional”, e não somente uma única espé-

cie, ou seja, o homem.

Com “animal racional” abre-se, pois, uma totalidade nova. Aqui a

vitalidade ou animalidade, o ser-alma ou vida, é regida pela razão,

melhor, pelo logos. Nós estamos, pois, no domínio chamado “logikón”,

pois é regido pelo logos. É a potência do légein, ou seja, a capacidade

intelectiva, que inclui as seguintes capacidades: apreender o ente en-

quanto ente, isto é, apreender o ser; apreender a inteligibilidade do

ente, os princípios e as verdades primeiras do todo do ente; universalizar,

isto é, recolher na unidade do conceito a multiplicidade dos indivídu-

os, transcendendo, assim, a imediatez do sensível; receber em si mes-

mo, ao modo intelectivo, todas as formas de ser; poder conhecer to-

dos os entes. Abre-se, assim, toda a vastidão, a profundidade e a

originariedade do ser.

O “animal racional” tem, pois, no pensamento e no conhecimen-

to o princípio de sua animação, isto é, de sua vitalidade, com suas

capacidades e atividades. Entre os ânimos pensantes, porém, se intro-

duz uma diferença substancial. Há os que são imortais e os que são

mortais. A mortalidade, com efeito, contingencia o intelecto humano

de maneira radical. No mortal, o intelecto é razão, isto é, o noûs se faz

diánoia: pensamento discursivo. Este, com efeito, não é imediatamen-

te intuitivo. Para alcançar o universal, precisa do trabalho do conceito,

carece de abstrair do sensível o inteligível, formular conceitos em pala-

vras, dar voz aos seus discursos mentais, trazer para a forma da propo-

sição o que quer dizer, progredir de verdade em verdade por meio do

Page 40: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

40

MARCOS AURÉLIO FERNANDES

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011

raciocínio, para elaborar o conhecimento. A intelecção do espírito

imortal é intuitiva, isto é, imediata; a do mortal é raciocinativa, ou

seja, mediata.

3.7 Homem

O homem é a espécie de ânimo pensante que é determinado pela

sua mortalidade, isto é, pela sua finitude. “Homem é animal racional

mortal”. A razão é a marca da finitude do intelecto humano. Para o

homem, como acabamos de ver, a apropriação do inteligível é uma

conquista, que requer a fadiga do conceito e o esforço da palavra. Para

conhecer, o homem precisa conceituar, multiplicar os conceitos,

sintetizá-los no juízo, conjugar os juízos entre si por meio do raciocí-

nio, e, ao final, o que ele consegue conhecer e dizer não exaure toda a

riqueza da realidade. Esta como que se lhe dá, mas sempre em fuga,

em retraimento. No entanto, para o homem a razão é, tanto quanto

marca de sua finitude, marca também de sua transcendência. Pois

por ela ele libera-se da imediatez do sensível e projeta-se no espaço

de liberdade do inteligível. Por isso, ao homem não é dado ter

somente um ambiente, mas também um mundo. Com a razão se

abre também o espaço da liberdade, tanto no sentido negativo de

desvinculação do ambiente, quanto no sentido positivo de autode-

terminação no seu mundo. A razão concede ao homem voltar-se

para o ser, para a verdade e para o bem. Para a verdade, no seu

comportamento teorético; para o bem, no seu comportamento

prático. Ao arbítrio da sua razão é concedida, pois, a condução da

vida do homem. No homem, com a razão e a liberdade, aparece a

dimensão do espírito na ordem da substância. Emerge, pois, não

somente a consciência do mundo, mas também a autoconsciência.

Esta, por sua vez, se caracteriza pela capacidade de reflexão. O ho-

mem, de fato, percebe-se numa corporeidade vivente e sensível, apre-

Page 41: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

A ÁRVORE DE PORFÍRIO...

41Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011

endendo o próprio corpo não como objeto, mas como dimensão de si

mesmo; sente e sente o próprio sentir, conhece e conhece o próprio

conhecer, percebe-se inteligindo e sentindo e, neste perceber-se, é pre-

sente a si mesmo de modo imediato; enfim, percebe-se como uma

vida que tem o poder de, pela sua reflexão, possuir-se e se

autodeterminar. Daí a capacidade de criação do homem, a projeção de

seu espírito no mundo, como técnica, arte, ciência, filosofia, religião.

No quadro neoplatônico, o homem se encontra colocado no ho-

rizonte de dois mundos: o mundo corpóreo, no qual ele se encontra

radicado, e o mundo incorpóreo, para o qual ele transcende por meio

de sua razão. Com ele, a substância alcança sua mais perfeita forma no

mundo corpóreo: a forma da autosubsistência do espírito, que é a

liberdade. Ele é a espécie especialíssima, pois nele o corpóreo e o

incorpóreo se unem.

A árvore de Porfírio, portanto, é uma ascensão de modo em modo

de ser, do corpo ao espírito. É um caminho de um crescendo da

substancialidade. Normalmente, identificamos a substância com sua

forma mais ínfima e elementar: a substância corpórea. O que nos é

primeiro segundo o processo do conhecimento, é, porém o último

segundo a ordem do ser. E vice-versa: o que é último no processo do

conhecimento é o primeiro na ordem do ser. A escada predicamental

nos faz subir, de nível em nível, para uma compreensão mais originária

e apropriada de substância: a do espírito, ou seja, a autosubsistência do

ser livre que é capaz de conhecer a verdade e de querer o bem. Quanto

mais subimos a escada, tanto mais podemos intuir o que é a vigência

de ser chamada substância: o ser se torna viver; o ser e viver se torna

conhecer e querer; o conhecer racional se torna, enfim, intuição inte-

lectual. E, na intuição intelectual, o inteligível finalmente se revela no

vigor de sua vigência. Vislumbramos, assim, a ordem do inteligível

nas palavras fundamentais, que nos remetem para além de todas as

categorias: Alma, Intelecto, Uno/Bem.

Page 42: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

42

MARCOS AURÉLIO FERNANDES

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011

3.8 O indivíduo

Percorremos até agora a escala predicamental da substância em sua

dinâmica dialética até a espécie especialíssima: o homem. Entretanto,

não chegamos ainda ao fim. Há ainda o domínio dos indivíduos. O

que é o indivíduo enquanto indivíduo? Como se compreende o ser da

individualidade como tal? A língua grega nos dá um aceno, pois, o

ente individual é denominado de “átomon”: o não-dividido, o indiviso.

O adágio medieval o definiria: indivisum in se et divisum a quolibet

alio – não dividido em si mesmo e dividido, isto é, distinto em relação

a qualquer outro que seja. O indivíduo é, pois, cada vez, um, cada vez

ele mesmo, e, por outro lado, é cada vez outro (alius) em relação a

todos os outros indivíduos. A unidade do indivíduo, porém, é diversa

daquela unidade do universal, ou seja, a da espécie e do gênero, pois

esta é unidade da multiplicidade, e a unidade do indivíduo é uma

unidade pura e simples, singular, ao modo de unicidade. O indivíduo

não somente é numericamente uno, mas é também único. Ele é uma

presença singular; uma realização “sui generis”; uma palavra da realida-

de, que é dita apenas uma única vez. É “fora de série”. Não tem outro

que lhe seja igual. É irredutível a toda categoria, pois toda categoria

universal ressalta o que é comum entre vários indivíduos. Nenhum

intelecto humano pode, com efeito, apreender intelectivamente e di-

zer a individualidade deste indivíduo como tal. Por isso, os gregos

antigos diziam que do indivíduo não há ciência.

Nos âmbitos das espécies se dava, sempre de novo, uma cisão ou

divisão entre opostos, introduzindo, assim, a diferença específica, que

era uma diferença não acidental, mas essencial. Já os indivíduos de

uma única espécie não se diferem essencialmente uns dos outros, mas

sim acidentalmente, melhor, numericamente, e, melhor ainda, quali-

tativamente. Isto quer dizer que a unicidade do indivíduo não o exclui

da comunhão ontológica com os demais indivíduos de sua espécie,

Page 43: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

A ÁRVORE DE PORFÍRIO...

43Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011

pois, embora ele seja numericamente um em si mesmo, é uno por

espécie com os outros que compartilham da mesma e comum essên-

cia. Por um lado, platonicamente, pode-se dizer que o indivíduo se

mostra em sua individualidade como uma convergência única e

irrepetível de “acidentes”, isto é, de propriedades e características, como

um “caso único”. Contudo, Aristóteles deu maior peso ontológico ao

indivíduo, ao tomá-lo não apenas como uma unidade acidental, e sim

como uma unidade substancial, ao designá-lo como “substância pri-

meira” (ousía prôtê). Assim, o indivíduo aparece como o sujeito único

de manifestações ou propriedades acidentais que existem em outros,

mas que, numa tal convergência, se encontra somente nele. Além dis-

so, aristotelicamente, o ser individual é dito substância primeira tam-

bém do ponto de vista lógico, enquanto é imediatamente e por exce-

lência o sujeito (hypokeímenon, suppositum, subiectum) de que se afir-

mam ou se negam diversos predicados, e que não é ele mesmo predicado

de nenhum sujeito.

Nos dois extremos, pois, da escala predicamental, se encontram a

substância em seu sentido o mais vasto e indeterminado e a substância

do indivíduo da espécie homem, a substância em seu sentido mais

concentrado e determinado possível.

À guisa de conclusão

Do exposto, percebemos que a escala predicamental em Porfírio

não é a simples articulação de conceitos vazios. Pelo contrário, os con-

ceitos lógicos, aqui, são prenhes de uma densidade ontológica, de uma

densidade que se dá em múltiplos planos ou dimensões. Do ponto de

vista lógico, vemos uma escala que vai descendendo, do gênero

generalíssimo, que é a substância pura e simples até à espécie mais

específica, que é o homem, e, ainda até à substância primeira e às suas

diferenças acidentais, que é o ente individual. Do ponto de vista

Page 44: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

44

MARCOS AURÉLIO FERNANDES

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 11-44, jan./jun. 2011

ontológico e henológico, porém, somos elevados da substância dita

como gênero generalíssimo até a espécie especialíssima e seus indivídu-

os e, na sua vitalidade pensante e mortal, abre-se a totalidade do ser,

em sua vastidão como universo/natureza, mas também em sua altura/

profundidade e originariedade, à medida que, na dimensão do inteli-

gível, o intelecto humano vislumbra aquilo que está além de toda a

substância e de todo o ente, como Tríade divina ou, enfim, o Uno/

Bem como Puro Agir. Esta elevação, pela qual o mesmo, ou seja, o

ser, a unidade, a identidade, é retomado em diversos níveis, se chama

analogia. Cada nível tem o ser que lhe compete ter: ser como mero ser,

como ser e viver, como ser, viver e inteligir. Vemos, assim, muitos

modos de ser, ordenados hierarquicamente, onde o que o ser se diz em

modos cada vez mais originários, à medida que subimos do corpo ao

vivente, do vivente ao animal, do animal ao homem, do homem à

Natureza, da Natureza à Alma universal, da Alma universal ao Intelec-

to arquetípico e do Intelecto ao Uno/Bem. A árvore de Porfírio, de

fato, é uma elevação, uma pura elevação de caráter onto-henológico.

Page 45: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...

45Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

DUNS SCOTUS SOBRE ACREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS

CONTIDAS NAS ESCRITURASRoberto Hofmeister Pich ∗

Introdução **

O Prólogo de Duns Scotus à Ordinatio contém diversas aborda-

gens sobre a natureza da teologia. A parte I traz discussões sobre fé e

razão num estilo “antiaverroísta” e oferece uma definição do proprium

da teologia, de acordo com o conceito de “sobrenatural”1. Num senti-

do específico, a “necessidade”2 do conhecimento sobrenatural (os arti-

gos da fé e as verdades das Escrituras) é defendida. Nas partes III e IV,

é possível encontrar uma análise do estatuto da teologia como scientia,

e ali Scotus avalia criticamente o modo como o “conhecimento cientí-

* Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul/Porto Alegre.

** As divisões I e II deste estudo correspondem essencialmente às divisões I e II do ensaio“Duns Scotus on the credibility of Christian doctrines”, de minha autoria, submetido aosAnais do XII Congresso Internazionale di Filosofia Medievale (SIEPM), Palermo, 16-22settembre 2007, com publicação prevista para o ano de 2009. Naquele ensaio, a “via deconvencimento racional” enfatizada foi a quinta, a saber, “sobre a razoabilidade dosconteúdos” das Escrituras Sagradas. A divisão III, do presente estudo, ocupando pelomenos a metade do texto, é totalmente original. Este outro estudo de caso, pois, podeser entendido como continuação da investigação da Segunda Parte do Prólogo de DunsScotus à Ordinatio, em torno do tema da credibilidade dos artigos da fé.

1 Cf. PICH, R. H. 2003, p. 15-218.

2 Sobre essa “necessidade” cf. CROSS, R., 1999, p. 10-12; PICH, R. H. 2005, p. 7-59.

Page 46: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

46

ROBERTO HOFMEISTER PICH

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

fico” é definido por Aristóteles, nos Segundos analíticos3. Na parte V,

Scotus explana o sentido em que a “nossa teologia” pode ser tomada

como uma “ciência prática”, reconsiderando a teoria aristotélica da

“práxis”, pois o objeto adequado do nosso conhecimento teológico ne-

cessário é a essência divina, e conhecê-la como um objeto em conformi-

dade com e em anterioridade ao amor de Deus – à “reta volição” –

consiste num conhecimento prático4. Na deveras ignorada parte II,

que aparece somente no Prólogo da Ordinatio5, e não nos Prólogos da

Lectura e da Reportatio parisiensis I A, Scotus pleiteia pela suficiência

das Escrituras contra a idéia de que elas não trazem informação sufici-

ente sobre o conhecimento sobrenatural necessário aos peregrinos.

Proponho ler a parte II como lidando também como uma ques-

tão epistemológica que pertence ao discurso teológico. Mais do que

uma tentativa (I) de mostrar a suficiência das Escrituras, Scotus expõe

(II) a credibilidade das suas verdades “necessárias”, incluindo argumen-

tações apologéticas a favor da veracidade das Escrituras, concebendo,

ao final, a idéia de um raciocínio convincente que, potencialmente,

leva descrentes a crer ou a tomar algo – a saber, os artigos da fé e/ou as

doutrinas das Escrituras – por verdadeiro6. (III) Dois desses raciocínios

– que encontram um ao outro sob o corolário “autoridade e testemu-

nho” – serão então explorados com mais detalhes, antes das Conside-

rações Finais, que trarão breves apontamentos sobre o possível lugar

de tais raciocínios de convencimento na filosofia da religião contem-

porânea. Adianto ainda que, na divisão (III) deste estudo, permitir-

me-ei certa ousadia como intérprete dos textos em apreço, o que não

3 Cf. PICH, R. H. 2001.

4 Cf. KROP, H. A., 1987; MÖHLE, H. 1995, p. 13-157; BOULNOIS, 1998, p.131-142.

5 Cf. DUNS SCOTUS. Ordinatio, prol. p. 2 q. un. n. 95-123; I, p. 59-87. “Utrumcognitio supernaturalis necessaria viatori sit sufficienter tradita in Sacra Scriptura”.

6 Cf. também FINKENZELLER, J. 1961, p. 38.

Page 47: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...

47Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

deve, contudo, ser entendido como mera liberdade interpretativa.

Entendidos os objetivos e os pressupostos metodológicos da argumen-

tação “dialética”, mas, não obstante isso, condensada do texto scotista,

o esforço interpretativo de minha parte será, pois, controlado, o quan-

to for possível, por praenotanda.

I Suficiência das Escrituras

Para atingir a intenção própria de Scotus nesse tratado sobre a

credibilidade das Escrituras como um todo, é necessário prestar aten-

ção na apresentação da sua questão e em qual é a sua real preocupação.

Se a sua formulação – “Se o conhecimento sobrenatural necessário ao

peregrino está transmitido suficientemente na Escritura Sagrada” –

aponta para uma intenção de conexão com a questão da parte I do

Prólogo, “sobre a necessidade de uma doutrina revelada [sobrenatural-

mente]” ao ser humano no presente estado, Scotus, apesar disso, ofe-

rece um tratamento embaraçosamente curto do caput ora reproduzi-

do. O que de fato ocorre é que o autor subsume a questão única da

parte II a uma análise da “verdade” das Escrituras e dos seus conteúdos.

A reflexão epistêmica sobre a teologia como um hábito de verdades

reveladas sobrenaturalmente acerca de Deus “própria” à parte II pode

ser bem visualizada somente se a relação entre suficiência e verdade

escriturística for analisada cuidadosamente.

O que é a questão sobre a “suficiência das Escrituras Sagradas” –

isto é, as Escrituras reconhecidas como “canônicas” pela Igreja Católica

Romana –, anunciada em Ordinatio prol. p. 27? É claro que ela está

ligada à parte I do Prólogo, onde Scotus desejava mostrar que há ver-

dades que podem ser conhecidas somente sobrenaturalmente e que

essas são necessárias aos seres humanos num sentido “relativo” – “con-

7 Cf., por exemplo, DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 98; I, p. 60.

Page 48: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

48

ROBERTO HOFMEISTER PICH

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

dicionado” pela potentia ordinata de Deus: são necessárias para que o

ser humano alcance o seu fim último e sobrenatural, a saber, a visão e

a fruição de Deus8. Elas9 são conteúdos da livre10 “autorevelação” divi-

na e são supostamente encontradas numa fonte básica de informação

correspondente: na Bíblia11.

Scotus não lida, aqui, com a verdade e a suficiência dos conteúdos

sobre Deus cuja fonte de informação é a tradição12. Autores medievais

normalmente consideraram as Escrituras e a tradição como fontes das

verdades reveladas de Deus13 – muito embora tenha sido notado que

8 Cf. Mann, W. E. 1999, p. 61.

9 A ênfase, aqui, residiria obviamente naquelas verdades teológicas que não podem serasseguradas por uma teologia natural, mas, por diversos motivos, são carentes de reve-lação ou comunicação divina especial. Nesses termos, e fazendo uso de linguagemcontemporânea, valeria para Scotus que, mesmo sendo “Escritura Sagrada” e “revela-ção” conceitos distintos, “são materialmente inseparáveis”; cf. ABRAHAM, W. J. 2005,p. 588-589.

10 Cf., por exemplo, DUNS SCOTUS. Quaestiones quodlibetales. 1968, q. 14 n. [16]63 p. 520-521: “Completa vero motione contingente ad intra, sequitur motio adextra; illa igitur tota est contingens, et per consequens immediate ipsius voluntatis, utprincipii. Nullum igitur intellectum creatum movet essentia ut essentia tanquammotivum per modum naturae, sed omnem intellectionem illius essentiae, quam noncausat aliquod creatum, causat immediate voluntas divina”.

11 Cf. CROSS, R., 1999, p. 7s. Se as Escrituras são em absoluto um tópico teológicopara Scotus, elas o são como uma parte central da doutrina da revelação: não sãotratadas como tais, mas num sentido subordinado. Isso não deveria ser visto como umsinal de ausência de orientação bíblica na teologia de Scotus; cf. DETTLOFF, W.1993, p. 219s. Cf. também TODISCO, O. 1975, p. 24-31. Dado que a revelação éa fonte do conhecimento sobrenatural de Deus, e as verdades reveladas relevantes estãocontidas nas Escrituras, é compreensível que a análise que Scotus presta a elas sejasituada dentro dos “princípios teológicos do conhecimento”; cf. SEEBERG, R. 1971(Neudruck der Ausgabe Leipzig, 1900), p. 113-129.

12 Sobre os usos de traditio, tradere-tradi e traditus nas obras de Scotus, cf. sobretudoBUYTAERT, E. M. 1965, p. 346-362 (especialmente p. 351-352).

13 Cf. CROSS, R., 1999, p. 156, nota 23, onde o autor sugere outras leituras acerca dodebate medieval sobre a Bíblia como a fonte da doutrina revelada.

Page 49: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...

49Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

Scotus, algumas vezes, adotou a “noção mais antiquada”, de que a Bí-

blia é a fonte única, sendo então o escopo restrito para aquilo que o ser

humano pode saber sobre a essência de Deus, seja na forma de princí-

pios ali contidos ou de conclusões deduzidas (por exemplo, Ordinatio

prol. p. 2 n. 123)14. Por outro lado, o tratamento que Scotus dá a

diversos itens doutrinais envolve um apelo à tradição como fonte de

conteúdos teológicos – e ele explicitamente afirma que o Espírito San-

to ensinou aos Apóstolos também coisas não escritas nos Evangelhos,

as quais os Apóstolos, então, (em forma escrita ou não) legaram per

consuetudinem às demais gerações de crentes15. Conectando isso à sua

eclesiologia, C. Balic enfatizou que, para Scotus, conclusões incluídas

nos artigos da fé não são ainda artigos, antes de serem assim declaradas

e explanadas pela Igreja16: mesmo com mais força, Scotus seguiu como

14 Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 123; I, p. 87: “Unde multae veritatesnecessariae non exprimuntur in sacra Scriptura, etsi ibi virtualiter contineantur, sicutconclusiones in principiis; circa quarum investigationem utilis fui labor doctorum etexpositorum”. Cf. também CROSS, R., op. cit., p. 7-8, e p. 157, nota 24, onde eletambém cita essa passagem, bem como Ordinatio prol. p. 3, q. 1-3 n. 204, 207 p.137-138, 140.

15 Cf. DUNS SCOTUS. Ord. I d. 11 q. 1 n. 20; V, p. 7-8: “Ad rationem illam deEvangelio dico quod ‘Christum descendisse ad inferna’ non docetur in Evangelio, ettamen tenendum est sicut articulus fidei, quia ponitur in Symbolo apostolorum. Itamulta alia de sacramentis Ecclesiae non sunt expressa in Evangelio et tamen Ecclesiatenet illa tradita certitudinaliter ab apostolis, et periculosum esset errare circa illa quaenon tantum ab apostolis descenderunt per scripta sed etiam quae per consuetudinemuniversalis Ecclesiae tenenda sunt. (...). Multa ergo docuit eos Spiritus Sanctus, quaenon sunt scripta in Evangelio: et illa multa, quaedam per scripturam, quaedam perconsuetudinem Ecclesiae, tradiderunt”. Cf. CROSS, R., 1999, p. 8.

16 Cf. DUNS SCOTUS. Ord I d. 5 p. 1 q. un. n. 26; IV, p. 24-25: “Ad dictumRichardi. Si intendit reprehendere Magistrum ibi, sicut ex verbis eius apparet, – cumdoctrina Magistri, et praecipue ista, authenticetur per concilium generale in capitulopraeallegato, nego Richardum tenendo Magistrum. Et quod dicit Magistrum multasauctoritates adducere contra se, Magister bene exponit eas, (...); non autem nullam habetpro se auctoritatem, sed habet illam universalis Ecclesiae in capitulo praeallegato, quaemaxima est, quia dicit Augustinus Contra epistolam Fundamenti: “Evangelio non

Page 50: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

50

ROBERTO HOFMEISTER PICH

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

“norma positiva” o magistério eclesiástico no que diz respeito às verda-

des que “a Igreja” declarava como pertencentes ao depósito da fé. Para

a especulação teológica sobre conteúdos revelados, mas particularmente

“obscuros”, o magistério atuaria, então, como uma “norma negativa”

de permissão: Si auctoritati Ecclesiae vel auctoritati Scripturae non

repugnet17. Não surpreende, pois, que num sentido posterior a Igreja é

fonte de verdades reveladas: como R. Cross aponta, “as doutrinas do

caráter sacramental e da transubstanciação” não são ensinadas na Bí-

blia, nem na tradição dos Apóstolos; antes, Scotus entende que são

ensinadas pelo Papa Inocêncio III e deveriam ser aceitas “por causa da

autoridade da Igreja Romana”18.

Deixando de lado a eclesiologia, um laço entre a parte I e a parte II

do Prólogo está bem amarrado: caso se pergunte como o ser humano

pode conhecer verdades sobrenaturais, a resposta é que elas foram de-

finitivamente reveladas aos Primeiros Apóstolos, e encontram-se ago-

ra fixadas nas Escrituras canônicas da Igreja. Porém, vale lembrar, com

a devida ênfase, que, na parte II, a pergunta é: “É o conhecimento

sobrenatural necessário ao peregrino transmitido suficientemente

[sufficienter] nas Sagradas Escrituras”? Ou, numa boa paráfrase: o que

se sabe acerca de Deus e dos meios para alcançar o seu favor, é isso algo

crederem nisi Ecclesiae crederem catholicae”, – quae Ecclesia sicut decrevit qui sunt librihabendi in auctoritatem in canone Bibliae, ita etiam decrevit qui libri habendi suntauthentici in libris doctorum, sicut patet in canone, et post illam auctoritatem canonis noninvenitur in Corpore iuris scriptum aliquod ita authenticum sicut magistri Petri incapitulo praeallegato”.

17 Cf. BALIC, C. 1957, p. 1813; ID. 1966, p. 215-216; ID., 1967, p. 107-109, p.123-124. Cf. também AUER, J. 1966, p. 165-166.

18 Cf. CROSS, R., 1999, p. 8, e também p. 157, nota 26. O autor cita ali DUNSSCOTUS. Ordinatio. Ed. L. Wadding., vol. VIII, IV d. 6 q. 9 n. 14 p. 344, para“caráter [sacramental]”, e Ordinatio. Ed. L. Wadding. vol. VIII, IV d. 11 q. 3 n. 13 p.616-617, para o assunto da “transubstanciação”. O ensino scotista acerca daquelas“duas fontes” de revelação foi explanado cuidadosamente por FINKENZELLER, J.1961, p. 19-37 (Parte 2) e p. 37-80 (Parte 3).

Page 51: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...

51Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

acerca do que as Escrituras Sagradas realmente informam “suficiente-

mente” os seres humanos, de maneira que todas as notícias que se têm

necessariamente de saber estão contidas naquelas folhas19?

A expressão sufficienter carece de explicação. Nos três argumentos

contrários, no início da questão (Ordinatio prol. p. 2 n. 95-97), pro-

pondo sistematicamente que o conhecimento sobrenatural necessário

ao peregrino não está transmitido suficientemente nas Escrituras Sa-

gradas, “suficientemente” sugere, de fato, a idéia de que se pode encon-

trar ou não todas as verdades de que se precisa, ao menos minimamen-

te, para viver de acordo com a ordenação de Deus e buscar a sua von-

tade. Porém, os argumentos não enfatizam esse aspecto “quantitati-

vo”, mas outros significados de suficiência: (i) para os que viviam sob

a autoridade da Lei, as verdades escriturísticas – incluindo o Novo

Testamento – não eram “necessárias” em sua inteireza, no sentido de

serem “supérfluas”, “dispensáveis”, pois a lei natural no Pentateuco já

era “suficiente”20. Se “não-suficiente” significaria, ali, “não-necessário”

ou “dispensável”, no sentido positivo “suficiente” significaria “necessá-

rio” ou “requerível”, para algumas pessoas, em algum momento –

embora tenha-se de admitir que, na resposta a esse quod non, Scotus

advoga diretamente por uma “suficiência quantitativa” e indiretamen-

te pela “não-superfluidade” do Segundo Testamento: para os judeus,

uma doutrina inspirada modesta, baseada na lei natural (na forma dos

“dez mandamentos”) “pôde ser suficiente”21.

19 Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 95; I, p. 59: “Quaeritur cognitiosupernaturalis necessaria viatori sit sufficienter tradita in Sacra Scriptura”.

20 ID.: “Quia cognitio necessaria numquam defuit humano generi; Scriptura sacra nonerat in lege naturae, quia Moyses primus scripsit Pentateuchum, nec tota sacra Scripturaerat in lege mosaica, sed tantum Vetus Testamentum; ergo etc.”

21 Ibid., n. 121 p. 86: “Ad rationes principales. Ad primam rationem. Ad minoremrespondeo quod lex naturae paucioribus fuit contenta, quae memorialiter per patres adfilios devenerunt. Illi etiam magis erant praediti in naturalibus, et ideo modica doctrinainspirata potuit eis sufficere. Vel aliter dicendum est ad istud et ad illud de lege Moysi,quod ordinatus Scripturae progressus ostendit eius decorem”.

Page 52: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

52

ROBERTO HOFMEISTER PICH

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

(ii) Uma idéia similar é repetida na premissa menor do segundo argu-

mento contrário: as Escrituras (não apenas o Antigo Testamento) contêm

muitas coisas “supérfluas” (cerimônias, estórias etc.). “Supérfluo” significa

coisas ou verdades “cujo conhecimento não parece necessário para a salva-

ção”. Uma espécie de crítica ao caráter literário das Escrituras, baseada na

qualidade “intelectual” dos seus autores, deveria ser notada aqui, a partir da

premissa maior: qualquer autor de ciências humanas (obras sobre formas

de saber próprias ao ser humano), quanto mais agudo no seu intelecto

mais ele evita a superfluidade na transmissão de conteúdos ou idéias. O

argumento leva à conclusão de que autores dos livros escriturísticos fa-

lham em mostrar tal intelecto aguçado22, desvalorizando, portanto, os

seus próprios escritos. “Supérfluo” se opõe a “central”, “essencial” ou, ain-

da, “manifestamente importante”23.

(iii) Um terceiro aspecto de “suficiência” aponta para a “clareza su-

ficiente” dos conteúdos necessários encontrados nas Escrituras. Por

exemplo, sobre muitas sentenças ali encontradas não é conhecido “com

certeza” (certitudinaliter) se são tomadas como pecados ou não. E pa-

rece que de muitos conteúdos nas Escrituras é importante saber preci-

samente o juízo que recebem – afinal, é um conhecimento necessário

22 Ibid., n. 96 p. 59: “Item, quicumque auctor scientiarum humanarum quanto acutiorest intellectu tanto plus vitat superfluitatem in tradendo; sed in sacra Scriptura videnturcontineri multa superflua, ut caeremoniae et historiae multae, quorum cognitio nonvidetur necessaria ad salutem; ergo etc.”

23 A resposta de Scotus ao segundo argumento ad contra revela aspectos interessantes dasua posição acerca da interpretação bíblica: o sentido literal e os sentidos não-literais(analógico, moral ou tropológico e anag ógico ou espiritual) das Escrituras podem serintuídos ali; cf. ibid., n. 122 p. 86: “Ad secundum dico quod dulcius capitur quodlatet sub aliqua sententia litterali quam si esset expresse dictum: et ideo ad devotionemconfert, illa quae expressa sunt in Novo Testamento, sub figura velata fuisse in Veteri,hoc quoad caeremonias; sed quoad historias, ambo sunt exempla legis declarativa”.Breves, porém úteis observações sobre interpretação bíblica na Idade Média podem serencontradas em FRÖR, 1964, p. 20-23. A obra clássica sobre a interpretação bíblicana Idade Média é, reconhecidamente, DE LUBAC, H. 1959, 1964.

Page 53: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...

53Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

para a salvação saber se alguma coisa que eu faço é ou não um pecado

mortal. Se eu não estou certo se algo é ou não um pecado mortal,

provavelmente não o evitarei “suficientemente”. Nesse caso, não é ver-

dadeiro que o conhecimento necessário à salvação é transmitido sufici-

entemente no Livro Sagrado, de modo que os seres humanos terão de

apelar, talvez, a uma outra fonte24. “Suficiência” significa “clareza sufi-

ciente”, e uma “inclareza” deveria ser uma “não-suficiência” que mina o

propósito de um escrito. É ilustrativo checar o que Scotus responde a

essa terceira objeção. Apenas é o caso que muitas verdades necessárias

contidas nas Escrituras não são claramente expressas nelas – como ca-

sos de “silêncio oportuno” (Orígenes) –, mas elas estão contidas virtu-

almente nas verdades lá expressas de modo claro, tal como conclusões

estão incluídas em princípios. A investigação cuidadosa de princípios e

conclusões foi “a obra útil” (utilis labor) dos doutores e expositores das

Escrituras (respeitados pelo seu específico procedimento científico, que

pertence à teologia, isto é, apresentar conclusões metodológicas, par-

tindo dos princípios contidos de modo explícito nas Escrituras25).

Como um textus authenticus referente a Ordinatio prol. n. 123 dá a

entender, é próprio a uma ciência, como é, então, a um escrito intelec-

tualmente respeitoso como as Escrituras cristãs, possuir princípios ca-

pazes de explanar “suficientemente” outras questões implícitas26.

24 Cf. DUNS SCOTUS, Ord prol. p. 2 q. un. n. 97 p. 59: “Item, multa sunt de quibusnon cognoscitur certitudinaliter ex Scriptura utrum sint peccata vel non; quorumtamen cognitio necessaria est ad salutem, quia nesciens aliquid esse peccatum mortale,non sufficienter vitabit illud; ergo etc.”

25 Ibid., n. 123 p. 87: “Ad tertium, Origenes in homilia De arca Noe: “In Scripturasuper hoc opportunum videtur habitum silentium, de quo sufficienter consequentiaeipsius ratio doceret”. Unde multae veritates necessariae non exprimuntur in sacraScriptura, etsi ibi virtualiter contineantur, sicut conclusiones in principiis; circa quaruminvestigationem utilis fuit labor doctorum et expositorum”.

26 Ibid., n. 123 p. 87: “Loco In (1) – doceret (3) textus authenticus: “Nulla scientiaomnia scienda explicat, sed illa ex quibus sufficienter alia elici possunt”.

Page 54: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

54

ROBERTO HOFMEISTER PICH

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

Assim, embora seja verdade que, em cada resposta de Scotus, poder-

se-ia descobrir algo sobre o seu entendimento acerca da interpretação bí-

blica27, o ponto importante é que, mesmo se a questão da parte II devesse

ser entendida, parcialmente, como uma questão sobre a completitude

quantitativa de informação concernente a verdades reveladas necessárias,

“suficiência” de verdades reveladas tem a ver também, e talvez primaria-

mente, com predicados como (i) “requerível”, (ii) “manifestamente im-

portante” e (iii) “suficientemente claro” – onde as últimas duas característi-

cas qualificam um livro como “intelectualmente não-depreciável”. Fica

evidente, agora, que a expressão sufficienter, enquanto qualifica a transmis-

são de verdades, poderia ser traduzida como “de um modo satisfatório”,

“de um modo aceitável”, “de um modo racional preferível”. Deveria ser

considerado surpreendente o que vém a seguir, a saber, que a suficiência

para a contenção das verdades necessárias aos peregrinos depende da “ver-

dade” das Escrituras Sagradas como um todo?

Se “suficientemente” significa, então, “de um modo racional pre-

ferível” ou derivados, é menos surpreendente que Scotus não discute

diretamente se a “suficiência” é alcançada nas Escrituras. Ele discute a

“verdade” das Escrituras, e esse é o “corpo da questão”, ocupando quase

inteiramente a parte II28, deixando para a “Resposta principal” não

27 Cf. BETZENDÖRFER, W. 1931, p. 224; FINKENZELLER, J., 1961, p. 43-49;DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 3 q. 1-3 n. 126, 184 p. 89-90, 124. Que o tópico dainterpretação bíblica – independentemente da suspeita de que comentários sobre a Bíblia,escritos por ele, tenham sido perdidos – não é uma matéria enfatizada por Scotus nas suaspróprias obras conhecidas, isso é indicado não apenas pela usual observação de que ele citaAristóteles mais freqüentemente do que as Escrituras, mas também pelo fato de que o itemsistemático do lugar das Escrituras na teologia de Scotus está, na maior parte das vezes,ausente nas sínteses do seu pensamento teológico; cf., por exemplo, AUER, J. 1954, p.167-175; BALIC, C. “Duns Scot”, op. cit., p. 1801-1818; ID., 1959, p. 603-605;TODISCO, O. 1968, p. 102-113 [resenha crítica de VEUTHEY, L. Jean Duns Scot.Pensée]; HONNEFELDER, L. 2006, p. 403-406; DETTLOFF, W. 1993, p. 218-231.Sobre o papel das Escrituras na teologia sistemática, cf. ainda CROSS, R. 2005, pp. 8-10.Sobre o lugar da Bíblia na teologia escolástica, cf. LEINSLE, U. G. 1995, p. 41-51 (cf. p.1-68 acerca dos aspectos próprios da teologia escolástica).

28 Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 99-119 p. 60-85.

Page 55: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...

55Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

mais do que um parágrafo e treze linhas na Edição Vaticana29. Mas é

em todo caso óbvio qual é a relação entre (A) “suficiência de verdades

reveladas necessárias transmitidas nas Escrituras” e (B) “verdade das

Escrituras”30? A responsio principalis começa com palavras impressio-

nantes que parecem sugerir que há uma implicação em termos de “A

somente se B”. Afirma-se que, uma vez estabelecido contra os hereges

que a doutrina das Escrituras canônicas “é verdadeira”, deve-se ver, “em

segundo lugar”, se aquelas verdades “nas Escrituras” são “necessárias e

suficientes” para que o peregrino atinja o seu fim último31 “em parti-

cular”, isto é, “a visão e a fruição de Deus”, também no que diz respei-

to “às circunstâncias da sua desejabilidade”32 – onde a ênfase é posta,

sem dúvida, na afirmação da segunda parte da conjunção (“e suficien-

tes”), pois a necessidade prática das verdades teológicas já foi estabelecida

na parte I do Prólogo. Scotus oferece, portanto, somente um parágra-

fo para determinar acerca de (A)!

Supondo que isso é fiel à intenção de Scotus, por que (B) deveria

ser relacionado a (A) como uma condição necessária? Scotus não pare-

ce duvidar do antecedente, ou seja, que “As verdades necessárias ao

peregrino estão contidas suficientemente-satisfatoriamente nas Escri-

29 Id. ibid., n. 120, p. 85.

30 Também BUYTAERT, E. M. “Circa doctrinam Duns Scoti de Traditione et deScripturae sufficientia adnotationes”, 1965, p. 360, vê, aqui, o aspecto estrutural maisdifícil da Parte II do Prólogo; naturalmente, outras dificuldades surgem por causa dainformação bem conhecida de que um tratado correspondente não pode ser encontra-do nos outros Prólogos que Scotus escreveu às suas obras teológicas, e ele foi certamenteadicionado sem muito cuidado (parte dele talvez bem tardiamente, ou seja, depois de1301) a um primeiro plano do Prólogo da Ordinatio, que ainda não o continha.

31 Cf. DUNS SCOTUS, Ordinatio prol. p. 2 q. un. n. 120 p. 85: “Habito igiturcontra haereticos quod doctrina Canonis vera est, videndum est secundo an sit necessariaet sufficiens viatori ad consequendum suum finem”.

32 Ibid.: “Dico quod ipsa tradit quis sit finis hominis in particulari, quia visio et fruitioDei, et hoc quantum ad circumstantias appetibilitatis eis; (...)”.

Page 56: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

56

ROBERTO HOFMEISTER PICH

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

turas”. Além da informação de que a visão e a fruição de Deus é o fim

último do ser humano, as Escrituras – desvelando as “circunstâncias da

[sua] desejabilidade”, por certo um direcionamento de crença e ação

dependendo da vontade ordenadora de Deus – (a) informam que tal

beatitude deveria ser dada após a ressurreição, tanto na alma quanto no

corpo, sem fim; (b) elas determinam quais são os meios necessários

para atingir o fim último, revelando também que eles são suficientes

(“assim” os dez mandamentos “foram comandados”! (Mt 19.17)); (c)

elas trazem “explanação” (explicatio) de tais meios necessários, tanto

daquilo que deve ser crido (credenda) quanto daquilo que deve ser

feito (operanda); (d) elas informam os crentes, numa medida possível

e útil, acerca das propriedades das substâncias imateriais33. Num textus

interpolatus34, a idéia de que verdades necessárias e suficientes (no du-

plo sentido de suficiência “quantitativa” e “qualitativa”) “estão conti-

das” nas Escrituras é ligada às três razões que testificam a necessidade de

doutrinas reveladas na solução da parte I do Prólogo: conhecimento

distinto do fim de um agente (Ordinatio prol. n. 13-16); como e de

que forma tal fim é atingível (Ordinatio prol. n. 17-18); meios natu-

rais para alcançar o conhecimento do fim e os meios desejáveis para

esse não estão disponíveis (Ordinatio prol. n. 40-41).

A chave para entender a estrutura aparente da argumentação reside

tanto no duplo significado de “suficientemente” quanto no fato de

33 Id. ibid.: “(...); puta quod ipsa habebitur post resurrectionem ab homine immortali,in anima simul et corpore, sine fine. Ipsa etiam determinat quae sunt necessaria adfinem, et quod illa sufficiant, quia illa mandata, Si vis, inquit, ad vitam ingredi, servamandata (in Matthaeo), de quibus habetur in Exodo; horum etiam explicatio etquantum ad credenda et quantum ad operanda explicatur in diversis locis Scripturae.Proprietates etiam substantiarum immaterialium in ea traduntur, quantum possibileest et utile viatori nosse”.

34 Ibid., n. 120 textus interpolatus, p. 85: “Ista conferendo ad tres rationes quibusinnititur solutio quaestionis praecedentis, patet quod Scriptura sufficienter continetdoctrinam necessariam viatori”.

Page 57: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...

57Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

que a parte II não é dirigida a teólogos, mas a não-crentes35. Para eles –

e, em realidade, para todos –, a idéia de Escrituras contendo todo o

conhecimento que um ser humano necessita sobre o seu fim último é

uma verdade sobrenatural “inevidente”: ela depende da crença de que

Deus revelou aqueles conteúdos a seres humanos e inspirou-os no es-

crever. Mas, se o que contém tais conteúdos necessários de modo pró-

prio-suficiente associa-se ao que é inverídico, não-crível, ou não con-

vincentemente racional, nesse caso, a crença na suficiência das Escritu-

ras se torna, ela mesma, improvável. Se o modo de aproximar-se do

inevidente (o sobrenatural necessário aos seres humanos, contido nas

Escrituras) é o modo da crença (todo aquele que adere “racionalmen-

te” ao inevidente pode fazê-lo somente através da crença, nem através

da opinião “somente”, nem, é claro, através de conhecimento científi-

co evidencial), é importante que possam ser encontrados motivos para

“adquirir” a crença correspondente – certamente a aquisição de crença

envolve e, certamente, deve envolver o movimento da razão. Argu-

mentar “a favor” do continente dessas verdades é justificar a crença

nelas: alguém pode crer na suficiência das Escrituras somente se ele

pode crer, por motivos razoáveis, nos seus conteúdos relevantes: so-

mente se ele, por motivos razoáveis, pode tomar os seus conteúdos

por verdadeiros36.

35 Scotus faz com que o seu próprio relato da “verdade” das Escrituras seja precedido poracusações-padrão que partem dos “heréticos”: partem de heresias ou de outras religiõesque condenam as Escrituras totalmente ou parcialmente. Cf. DUNS SCOTUS, Ord.prol. p. 2 q. un. n. 99 p. 60: “– In ista quaestione sunt haereses innumerae damnantessacram Scripturam, totam vel partes eius, sicut in libris Augustini et Damasceni Dehaeresibus patet”.

36 Cf. também a bela interpretação de BUYTAERT, E. M. 1965, p. 360, que, fazendoreferência a uma indicação de Scotus em Ordinatio prol. n. 69 acerca da importância deoferecer motivos suficientes para assentir, vê, então, o objetivo de Scotus, na Parte II doPrólogo, como uma dupla prova da “suficiência” (de duplici sufficientia Scripturae): quea verdade das Escrituras deve ser provada suficientemente por razões naturais (umaquestão apologética); que as verdades reveladas necessárias são suficientemente transmi-tidas nas Escrituras (uma questão teológica).

Page 58: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

58

ROBERTO HOFMEISTER PICH

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

Se o propósito é, então, “adquirir crença”, não faz sentido enten-

der a longa tarefa de provar “a verdade das Escrituras”, de conteúdos

revelados sobrenaturalmente e naturalmente inevidentes, isto é, a con-

dição necessária destacada, em sentido estrito. É melhor tomar o sen-

tido de “verdade” como “o que é racional tomar por verdadeiro” ou “o

que é racional crer ser verdadeiro”. Para o propósito de provar que é

racional tomar as Escrituras e os seus conteúdos como sendo verdadei-

ros, todas as oito (ou dez) vias de convencimento racional cumprem a

mesma função, não importa quais sejam os méritos de cada uma de-

las. Essas são as oito vias originais37: (1) as Escrituras são confirmadas

pelo cumprimento, no Novo Testamento, das profecias do Antigo

Testamento; (2) as Escrituras são internamente coerentes; (3) as Escri-

turas foram escritas por escritores portadores de autoridade; (4) as Es-

crituras foram cridas por uma comunidade bem-conhecida e honesta;

(5) os conteúdos das Escrituras são altamente razoáveis; (6) reivindica-

ções religiosas não-cristãos podem ser mostradas como sendo irrazoáveis;

(7) reivindicações religiosas não-cristãs são efêmeras; (8) as Escrituras

contêm relatos de milagres38, atestados por Deus39.

37 Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q un. n. 100 p. 61: “– Contra istas omnes incommuni sunt octo viae eas rationabiliter convincendi, quae sunt: praenuntiatioprophetica, Scripturarum concordia, auctoritas scribentium, diligentia recipientium,rationabilitas contentorum et irrationabilitas singulorum errorum, Ecclesiae stabilitas,miraculorum limpiditas”.

38 Embora o tema dos milagres, o seu papel comparativo para o entendimento do“sobrenatural” e a sua função na apologia da veracidade e da suficiência das EscriturasSagradas mereça revisão, há certo consenso de que o papel dos milagres na obra scotistae na fundamentação dos loci recém mencionados é modesto – em especial se posto emcomparação àquele no pensamento de Tomás de Aquino; cf. BERCEVILLE, G. 2004,p. 575-579.

39 Há uma adição textual em Ord. prol. n. 118-119 de dois modos posteriores deconvencimento, a saber, (9) os testemunhos externos dos infiéis e (10) a eficácia daspromessas. Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 118 p. 83-84: “// Nonoquoque loco adduci potest testimonium eorum qui foris sunt. Iosephus in libro XVIIIAntiquitatum pulcherrimum testimonium ponit de Christo, (...)”. Cf. id. ibid., n. 119 p.84: “– Decimo et ultimo potest addi quod Deus non deest quaerentibus toto corde salutem”.

Page 59: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...

59Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

II Vias de convencimento racional

Em nenhum momento as provas da verdade das Escrituras são

igualadas a demonstrações estritas. A que tipo de argumentos

epistêmicos elas pertencem? Se elas não são meras formas de “persua-

são” – argumentos da fé para a fé ou, então, a partir da mera autorida-

de40 –, elas são no máximo (mas significativamente) viae rationabiliter

convincendi acerca da veracidade das Escrituras. Elas devem conduzir a

razão ou conduzir alguém racionalmente à crença em algo. Elas não

levam ao conhecimento. Convencimento racional ou aceitabilidade

racional são critérios mais fracos e mais permissivos do que aqueles

que são estritamente epistêmicos41: certeza e evidência, necessidade e

conclusividade42. As viae levam a atitudes tais como “Não é irracional crer

que p”, “há boas razões para crer que p”, “há melhores razões para crer que

p do que para o contrário”. Num estilo contemporâneo, pode até mesmo

haver, aqui, algum nível de “justificação” para crer – ainda que não condi-

ções bastantes para ter conhecimento43. Cada uma das viae está, pois, em

busca de um critério de credibilidade da informação a ser crida, onde por

“credibilidade” entendo um motivo suficiente para que a razão humana vá

além da neutralidade doxástica e, simplesmente, chegue à crença, talvez

inclusive à crença “certa” – muito embora ainda intensificável, se me-

lhores motivos viessem a ser oferecidos.

As razões para crer que as Escrituras são verdadeiras são de diferen-

te natureza em cada via. Tipificá-las e descrever amostras desses argu-

40 Cf. IOANNES PONCIUS. 1968, n. 1 p. 43.

41 Cf., por exemplo, AUDI, R. 1998, p. 275-276.

42 Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 4 q. 1-2 n. 208 p. 141-142. Sobre a teoriascotista do conhecimento científico, cf. PICH, R. H. 2001.

43 Cf., por exemplo, CHISHOLM, R. M. 1989, p. 15-17, p. 63ss., sobre uma hierar-quia qualitativa de predicados epistêmicos, os quais são capazes de marcar a fronteiraentre o razoável (começando com o “provável”) e o não-razoável (começando com o“provavelmente falso”).

Page 60: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

60

ROBERTO HOFMEISTER PICH

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

mentos constituem o único meio de substanciar o que Scotus entende

por credibilidade como uma condição para um tomar-algo-por-ver-

dadeiro racional. Faço uso de “credibilidade” ou mesmo de “verossi-

milhança” como qualidades dos objetos de crença ou proposições. Pa-

lavras latinas para esses termos seriam credibilitas44 e verisimilitas. Na

parte II, Scotus fala basicamente de incredibilis como o contrário da-

quilo que a verdade escriturística é45, e por uma vez de verisimilis46. O

discurso usual é sobre formas de verus como a qualificação objetiva e

doxástica que um conteúdo proposicional merece quando a crença

respectiva está ou pode comprovar-se estar associada a boas razões.

Assim, se Scotus, através de todas as viae, deseja levar entes racionais à

crença em alguma coisa, elas todas devem apresentar a condição de

credibilidade. Tenho discordância com interpretações que vêem a tare-

fa de convencimento racional, ou seja, a de mostrar a credibilidade

racional dos conteúdos das Escrituras apenas nos argumentos (5) e

44 CROSS, R. Duns Scotus on God, 2005, p. 7, põe a questão em Ordinatio prol. p. 2também em termos da “credibilidade” das Escrituras Sagradas.

45 Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 108 p. 71: “De credibilibus patet quodnihil credimus de Deo quod aliquam imperfectionem importat; immo si quid credimusverum esse, magis attestatur perfectioni divinae quam eius oppositum. Patet de Trinitatepersonarum, de incarnatione Verbi, et huiusmodi. Nihil enim credimus incredibile, quiatunc incredibile esset mundum ea credere, sicut deducit Augustinus De civitate XII cap. 5;mundum tamen ea credere non est incredibile, quia hoc videmus”. Cf. ibid., n. 114 p. 78-79: “Nota valde illud miraculum et illud capitulum, quia si quod credimus dicatur incredibileesse, non minus est incredibile “homines”, inquit, “ignobiles et infimos, paucissimos, impe-ritos, rem ita incredibilem tam efficaciter mundo, et in illo etiam mundo doctis persuaderepotuisse”, mundus ut illud credat, sicut iam credidisse videmus, nisi per illos aliqua miraculafierent, per quae mundus ad credendum induceretur”; ibid., n. 114 p. 79: “Quid enimincredibilius quam quod ad legem contrariam carni et sanguini, doctores pauci, pauperes etrudes, plurimos potentes e sapientes converterent?”

46 Ibid., n. 105 p. 65: “– De tertio, scilicet auctoritate scribentium, sic patet: aut libriScripturae sunt illorum auctorum quorum esse dicuntur, aut non. Si sic, cum damnentmendacium, praecipue in fide vel moribus, quomodo est verisimile eos fuisse mentitos dicendo‘haec dicit Dominus’ si Dominus non esset locutus?”

Page 61: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...

61Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

(6)47. Afinal, mesmo argumentos de autoridade – como talvez as pri-

meiras quatro viae – podem ser tomados como satisfazendo a condi-

ção de credibilidade racional: expertise ou autoridade teórica, autori-

dade moral e testemunho veraz podem tipificar e, então, exigir

especificação de razões legítimas ou de motivos suficientes para levar o

intelecto à crença em alguma coisa48. A base para compreender o “con-

vencimento racional” são as próprias viae. “Convencimento racional”,

portanto, parece ser um argumento fundado em credibilidade como

condição necessária para a crença racional, e ele constitui também um

meio – ou, até mesmo, uma certa técnica – para levar à crença racional,

isto é, para identificar, entre proposições não-evidentes, o que pode e o

que não pode contar como racionalmente crível.

Tais raciocínios para a verdade da Scriptura e, então, para a verdade

de que ela é um continente suficiente de conteúdos necessários sobre-

naturais são dirigidos àqueles que não crêem: pagãos, hereges, seguido-

res de outras seitas e religiões (monoteístas ou não). Ao perceber a

razão mesma desse tratado sobre a credibilidade das Escrituras, pode-

se encontrar os aspectos que permitem a identificação do tipo literário

do texto e do seu propósito sistemático na obra de Scotus. Ele é diri-

gido aos não-crentes, para prepará-los à fé cristã e aos seus conteúdos,

através do pensamento racional. Isso é feito (a) pela defesa da

credibilidade das Escrituras contra aqueles que simplesmente não crêem

nessas coisas, (b) pelo combate àqueles que negam de algum modo a

credibilidade delas e dos seus conteúdos (pessoas que rejeitam como

um todo ou parcialmente os conteúdos das Escrituras), (c) pela acusa-

ção de não-credibilidade dos conteúdos de outras religiões “e dos seus

47 Cf. BOULNOIS, O. 1968, 74-75. SONDAG, G. 1999, p. 131, especifica – desneces-sariamente, eu creio – que os argumentos (1)-(4) certificam da verdade das Escrituras comotheologia tradita, os argumentos (5)-(6) apenas mostram que as doutrinas transmitidasnelas estão de acordo com a razão. Eu diria antes: todas as viae pretendem mostrar que osconteúdos escriturísticos como um todo são “críveis” ou “razoáveis de se crer”.

48 Cf. DUNS SCOTUS. Ordinatio. Ed. L. Wadding. vol. VII.1, III d. 23 q. un. n. 4-5, 17 p. 460-461, p. 471.

Page 62: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

62

ROBERTO HOFMEISTER PICH

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

próprios livros”. Nesse nível, Scotus se alinha com uma tradição de

apologia ligada aos Pais da Igreja, especialmente a Agostinho e a João

Damasceno, ambos autores que escreveram uma obra intitulada Sobre

as heresias (De haeresibus)49. Os tipos de endereçados são: (a) pessoas

que não aceitam coisa alguma da Bíblia, talvez numa referência a silentio

aos gnósticos50 (ou, então, aos pagãos, como os seguidores de religiões

greco-romanas); (b) hereges de tipo misto como os maniqueus, que

desaprovam especialmente o Antigo Testamento51; (c) os judeus, que

aceitaram apenas o Antigo Testamento52; (d) os muçulmanos, que re-

jeitam os dois Testamentos, formando, por assim dizer, uma nova

Escritura Sagrada53; (e) pessoas que começaram na fé como cristãs,

mas vieram a pensar diferentemente da Igreja Católica acerca das Escri-

turas, aceitando delas só o que desejam: nem as Escrituras como um

todo (afinal, renegam partes das mesmas), nem de acordo com a ma-

neira como a Igreja Católica as entende. Elas simplesmente interpre-

tam de modo equivocado as Escrituras Sagradas54.

49 Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 99 p. 60: “– In ista quaestione sunthaereses innumerae damnantes sacram Scripturam, totam vel partes eius, sicut in librisAugustini et Damasceni De haeresibus patet”.

50 Cf. SONDAG, G. 1999, p. 129.

51 A base aqui são as obras De haeresibus e De utilitate credendi de Agostinho (empassagens tomadas, talvez, de Henrique de Gand). Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p.2 q. un. n. 99 p. 60: “Quidam haeretici de Scriptura nihil recipiunt. Quidam specialiterimprobant Vetus Testamentum, ut manichaei, sicut patet in libro De utilitate credendia, dicentes Vetus Testamentum esse a malo principio”.

52 Scotus parece se referir a Adversus iudaeos de Agostinho. Sobre a apologética cristãadversus iudaeos cf. BARNARD, L. W. 1993, p. 394-398.

53 As palavras de Scotus contra Maomé em Ordinatio prol. n. 99 são particularmenteduras e ofensivas; cf. a nota seguinte. Cf. também SONDAG, G.1999, p. 129, nota 2.

54 Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 99 p. 60-61: “Quidam tantumVetus Testamentum recipiunt, ut iudaei. Quidam aliquid utriusque, ut saraceni, quibusimmundus Mahometus miscuit alias immunditias innumeras. Quidam autem aliquiddictum in Novo Testamento, puta haeretici diversi, qui sententias diversas Scripturarummale intellectus habentes pro fundamentis, alias neglexerunt; verbi gratia ad Rom.13: Qui infirmus est, olera manducet, et huiusmodi. Item, Iac. 5: Confitemini alterutrumpeccata vestra, (...)”.

Page 63: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...

63Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

Nesse sentido, Ordinatio prol. p. 2 é um tratado apologético: jun-

to com uma defesa da fé cristã, ele objetiva trazer infiéis à crença nas

Escrituras onde as verdades correspondentes são encontradas. Mais

particularmente, a pequena “apologética” de Scotus é uma defesa da

preferibilidade racional da religião cristã. No quanto é de meu conhe-

cimento, especialmente os estudos de Albert Lang55 ajudaram a esta-

belecer o significado dessa forma literária e do seu propósito sistemáti-

co. Os esforços por credibilitas externa às doutrinas reveladas cristãs

são típicos da Alta Escolástica56. Aqui, é importante mencionar o en-

55 Sobretudo LANG, A. Die Entfaltung des apologetischen Problems in der Scholastik desMittelalters. Freiburg – Basel – Wien: Herder, 1962.

56 Como uma nota marginal, isso e o que segue deveriam ser computados contra aimpressão de filósofos contemporâneos da religião que encontraram em autores medi-evais discussões notáveis sobre “o papel da fé na atividade teórica [theorizing]”, masnenhuma atenção “à questão se a fé é ela mesma racional” – o que se tornaria umamatéria de interesse dentro do tópico “fé e razão” somente “no início do Esclarecimento”(J. Locke); cf. WOLTERSTORFF, N. P. 1998, p. 541-542. A propósito, até o pontoem que o programa de Locke para a aceitabilidade racional da verdade religiosa, além dademonstração racional da existência de Deus, apela, para o lema de proposições teoló-gicas reveladas acima dos poderes da razão, mas não-contrárias à mesma, ao testemunhoda profecia e dos milagres, teses “scotistas” sobre a credibilidade dos artigos da fé tange-riam aquela intenção. Porém, creio que o modo como Scotus estabelece credibilidadeou defensabilidade racional pode acabar mais próximo de John Henry Newman doque de John Locke: a proposta local scotista não é claramente “evidencialista” (mesmosem discutir, aqui, “evidência” ou “base evidencial” da crença em ambos os autores), aomenos – e certamente – não num escopo tão restrito de reunião de evidências para odizer ou revelar algo da parte de Deus; além disso – e em especial –, admite expressa-mente a tradição ou acepções antecedentes relevantemente herdadas como meio legíti-mo de influência na formação de crenças. Nesse caso, em Scotus a tradição ou a verdadetransmitida, cujo “monitoramento” através de “razão”, “Escritura” e “experiência” talvezpudesse estar presente em algum sentido, mas acerca da qual dúvidas sobre a possibili-dade mesma de preservação da identidade original de significado através do tempo poucose veriam, pareceria ao fim necessária e, eventualmente, suficiente condição para crençaracional e, em tese, justificada. Para as menções nas sentenças anteriores, cf. MITCHELL,B. 2005, p. 592-596. Não obstante tudo isso, na esteira da sua reabilitação do projetolockeano, SWINBURNE, R. 1992, p. 218-219, associa notavelmente o tratado scotistasobre a credibilidade das verdades escriturísticas à sua própria defesa filosófica de base

Page 64: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

64

ROBERTO HOFMEISTER PICH

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

tendimento que Guilherme de Auvergne deu a essa construção literá-

ria e sistemática: no seu tratado De fide, ele utiliza probationes universales

para provocar a “credulidade” (credulitas) daquelas coisas que perten-

cem ao fundamento da religião: testimonium57, confirmatio

miraculorum, valores elevados do cristianismo, a vida exemplar da co-

munidade cristã etc., poderiam – como formas de probationes – levar

pessoas à credulidade em concepções religiosas fundamentais58. A. Lang

mostra que razões de credibilidade de doutrinas reveladas cristãs eram

comuns e ricas entre pensadores franciscanos, mencionando Boaventura,

Bartolomeu de Bologna, Mateus de Aquasparta, Servasanto de Faenza,

e também Duns Scotus e os seus sequaces59. Ao que consta, as formas

de probationes são similares nesses autores, e elas usualmente servem

para enfatizar a origem divina da revelação que fundamenta o Cristia-

nismo, em que as probationes são vistas como criteria para reconhecer

uma revelação divina. Em Scotus, probationes para reconhecer a revela-

ção divina – talvez, mais manifestamente, os argumentos (1)-(4) e o

argumento (8) – e os demais tipos de probationes são postos num con-

texto diferente: no contexto da tarefa de mostrar que as Escrituras,

como um todo, são dignas de crença. Além disso, credibilidade e coe-

rência racional de itens da fé cristã “não são” buscadas para dar uma

evidencial para o reconhecimento de verdades reveladas por Deus e da adequação dasEscrituras cristãs para a continência desses conteúdos revelados. Nos seus“Acknowledgements”, cf. ibid., Swinburne escreve: “I have been conscious in writing thisbook of an intellectual debt to various former members of the University of Oxford whohave argued that the claims of the Christian revelation stand up well before the tribunalof an impartial reason – to Duns Scotus and John Locke; and especially to two formermembers of Oriel College, Joseph Butler and John Henry Newman”.

57 Autoridade e testemunho verazes são fontes importantes de informação e de motivosrazoáveis para crer, de acordo com Scotus em Ord. III d. 23 q. un. n. 5-6 p. 461-462.Elas são particularmente tocadas nas viae terceira e quarta (cf. abaixo, no texto princi-pal), merecendo tratamento exaustivo em estudos futuros. Cf. também CROSS, R.2005, p. 6-7.

58 Cf. LANG, A. 1964, p. 129-130.

59 Ibid., p. 130-134.

Page 65: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...

65Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

resposta a outros teólogos ou a pessoas ligadas à ciência em geral (aqueles

objetivos postos acima não são propriamente uma questão de intellectus

fidei). Elas são buscadas para mostrar que o cristianismo é uma religião

melhor, a única divina, racional e verossímil. Isso é algo a ser mostrado

a hereges e seguidores de outras religiões, e a filósofos também, mas

somente na medida em que alguém se preocupa com eles na qualidade

“de descrentes”. Por causa de tudo isso, o melhor contexto para situar

o lugar sistemático de Ordinatio prol. p. 2 é a atividade do teólogo,

que admite começar com crenças e atingir crenças. Ele lida com

inevidências. Ele reflete sobre o estatuto epistemológico da sua fé, o

qual é caracterizado pela “certeza”, como Scotus mostraria depois em

Ordinatio III d. 2360. Ele identifica princípios teológicos e de fato

clarifica racionalmente os artigos da fé (intelligentia fidei)61. Por outra

parte, assim que o teólogo quer que outras pessoas adquiram fé em

inevidências, realizem atos de crença em inevidências, a modo de uma

adesão firme e certa62, mostra-se bastante apropriado e desejável ofere-

cer motivos racionais para tanto.

A seção mais extensa da parte II do Prólogo é, então, a exposição

das “oito vias de convencer racionalmente” descrentes e hereges contra

as suas opiniões (octo viae eas rationabiliter convincendi), combatendo

qualquer doutrina que põe em questão o caráter de ser-digno-de-to-

mar-por-verdadeiro das Escrituras. Apenas posso sugerir ler cada uma

das viae como um modelo para um tipo de critério de credibilidade

para os conteúdos de um escrito e para a própria Scriptura como um

todo. A identificação da condição de credibilidade pode ser vista na

premissa maior das probationes – dadas certas articulações que clarifi-

cam o seu enunciado.

60 Cf., sobre a fé adquirida e infusa, DUNS SCOTUS, Ord. III d. 23, q. un., n. 6, 8,15-19, p. 462-463, p. 469-473.

61 Cf. LANG, A. 1964, p. 141, 145; cf. também O’CONNOR, E. D. 1968, p. 34ss.

62 Cf. DUNS SCOTUS, Ord. III d. 23, q. un., n. 4-5, pp. 460-461.

Page 66: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

66

ROBERTO HOFMEISTER PICH

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

III Exemplo de dois tipos de critérios

3.1 A autoridade dos escritores

Inicialmente, faça-se uso da terceira via como um modelo para

um tipo de critério de credibilidade de certos objetos proposicionais.

A terceira via é “sobre a autoridade dos escritores” (de auctoritate

scribentium). Scotus começa com uma proposição disjuntiva: “Ou bem

os livros da Escritura são daqueles autores dos quais são ditos ser, ou

eles não são daqueles autores dos quais são ditos ser”. A disjunção

exclusiva é, em seguida, tratada de perto. Como ela é significativa no

contexto de defesa da credibilidade dos conteúdos das Escrituras? Abor-

da-se, de início, o primeiro elemento da disjunção, isto é, “Os livros

da Escritura são daqueles autores dos quais são ditos ser”. Independen-

temente disso, é correto afirmar que a proposição disjuntiva acima

responde por uma especificação que o restante do argumento de con-

vencimento teria de fazer depender desta formulação geral e axiomática:

PM: “De Escrituras transmitidas quaisquer compostas de livros

atribuídos a diversos autores ou bem os livros componentes são da-

queles autores dos quais são ditos ser ou os livros componentes não

são daqueles autores dos quais são ditos ser”.

É bastante simples completar o silogismo com a premissa que

qualifica as Escrituras cristãs:

Pm: “As Escrituras Sagradas da Igreja Católica são Escrituras com-

postas de livros atribuídos a diversos autores”.

C: “Das Escrituras Sagradas cristãs ou bem os livros componentes

são daqueles autores dos quais são ditos ser ou os livros componentes

não são daqueles autores dos quais são ditos ser”.

A continuação imediata do argumento não indica com clareza como

a credibilidade das Escrituras será defendida. Afirma-se que, se os li-

vros são mesmo dos autores aos quais são atribuídos, nesse caso, pres-

Page 67: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...

67Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

supondo-se que eles condenam a mentira, sobretudo aquela que afeta

a fé ou os hábitos fundados na fé, como pode ser “verossímil” (verisimile)

que autores – aqui, tidos como históricos – tais como Ezequiel e Jeremias

tenham mentido quando disseram em seus textos “isso diz o Senhor”,

se o Senhor não tivesse falado63? Por estranho que seja o argumento,

Scotus explora os dois elementos da disjunção, associados de algum

modo relevante à intenção presumível de não mentir ou, então, de

mentir por parte dos autores (caso em que a ilegitimidade autoral será

destacada). Para o primeiro caso, pode-se talvez propor:

PM: “Escrituras transmitidas, compostas de livros escritos pelos

autores aos quais são atribuídos e que condenam a mentira em matéri-

as de fé e moral, são verossímeis nos seus conteúdos”.

Pm: “As Escrituras Sagradas da Igreja Católica são Escrituras trans-

mitidas compostas de livros escritos pelos autores aos quais são atribu-

ídos e que condenam a mentira em matérias de fé e moral”.

C: “As Escrituras Sagradas da Igreja Católica são verossímeis nos

seus conteúdos”.

A premissa maior parece ser, com efeito, “um princípio de

credibilidade” buscado dialeticamente: um princípio de verossimilhança

de proposições. O drama argumentativo maior, nesse contexto de

credibilidade dos conteúdos e das Escrituras da religião cristã, desenro-

la-se com respeito à premissa menor. Entendo que é a ela que a tarefa

de convencimento, por Scotus, primeiramente dá ênfase. Assim, Scotus

está consciente de que objeções são prontamente articuláveis. Por que

não pensar, por exemplo, (a) que aqueles autores foram enganados (ou

se enganaram), não que mentiram, ou então (b) que mentiram por

63 Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 105 p. 65: “– De tertio, scilicetauctoritate scribentium, sic patet: aut libri Scripturae sunt illorum auctorum quorum essedicuntur, aut non. Si sic, cum damnent mendacium, praecipue in fide vel moribus, quomodoest verisimile eos fuisse mentitos dicendo ‘haec dicit Dominus’ si Dominus non esset locutus?”

Page 68: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

68

ROBERTO HOFMEISTER PICH

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

causa dos benefícios (propter lucrum)64? Por que não levantar tais hipó-

teses acerca “daqueles autores” de textos? Tanto (a) quanto (b) enfra-

queceriam ou retirariam a credibilidade “do que” eles escreveram. Scotus,

contudo, mostra que isso é improvável (expressão minha).

Em resposta, pois, Scotus insiste, num primeiro passo, que (a’) os

autores dos livros que registram conteúdos revelados não se engana-

ram65. O Doutor Sutil faz alusão a 2Cor 12,2-466, num relato do

Apóstolo Paulo67, que, como se verá, é de importância central para a

terceira via e merece ser reproduzido68: “Conheço um homem em

Cristo que, há quatorze anos, foi arrebatado ao terceiro céu – se em

seu corpo, não sei; se fora do corpo, não sei; Deus o sabe! E sei que esse

homem – se no corpo ou fora do corpo, não sei; Deus o sabe! – foi

arrebatado até o paraíso e ouviu palavras inefáveis, que não é lícito ao

homem repetir”. Antes de indicar o propósito dessa citação, ela mes-

ma tem de ser explorada mais detalhadamente. Afinal, nessa segunda69

64 Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 105 p. 65: “Aut si dicis eos esse deceptos,non mentitos, vel propter lucrum mentiri voluisse, (...)”.

65 Respeitando os termos da premissa menor, que precisa ser fortalecida na idéia inclusa deque os autores dos livros escriturísticos “condenam a mentira” ou, o que aqui significa omesmo, “não são mentirosos”, parece correto dizer também que, em sentido lato, se “serenganado” ou “enganar-se” é dizer ou aderir não-intencionalmente a uma inverdade, arecusa de (a), ou de que os autores dos livros não sofreram engano, serve também comouma forma de defender a mesma idéia de que “condenam a mentira” ou “não são mentirosos”.

66 Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 105 p. 65-66: “(...), – contra, et primocontra primum, quod scilicet non fuerunt decepti. Dicit enim beatus apostolus Paulus: Sciohominem, ante annos quattuordecim etc. (...)”.

67 Independentemente das minúcias da sua composição, a ciência bíblica de hoje clas-sifica a Segunda Epístola aos Coríntios como autêntica carta paulina; cf., por exemplo,LOHSE, E. 1985, p. 64-72 (especialmente p. 70-72).

68 As citações de passagens bíblicas, neste estudo, são todas a partir da Bíblia de Jerusa-lém, nova edição, revista, São Paulo: Edições Paulinas, 1986.

69 Alheio ao propósito especulativo de Scotus e além dos recursos exegéticos da suaépoca, a leitura estrutural das cartas de Paulo aos coríntios, nos estudos contemporâne-os, traz um quadro bastante distinto dos acontecimentos em torno dos quais, após 1Coríntios, “diversas” cartas do apóstolo – e não simplesmente uma “segunda” – sãodestinadas àquela comunidade; cf., por exemplo, PATTE, D. 1987, p. 401-407.

Page 69: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...

69Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

carta à comunidade de Corinto, e em particular nos capítulos 11 e 12

da mesma, Paulo se vê diante da situação de provar aos “espirituais”70

desafiantes de Corinto que também ele é um “espiritual”: que tam-

bém a ele Deus se manifesta de modo inquestionável71.

Apesar do evento de revelação no “caminho de Damasco” e da sua

consciência de “apóstolo dos gentios”, Paulo nega “gloriar-se”: rejeita a

idéia de ter de provar que Deus o escolhe ou que também ele é objeto

da manifestação divina reveladora. Em 2Cor 11-12 – parte de uma

“penosa carta”, que teria escrito contra adversários que propagam um

“evangelho diferente” (gnóstico?)72 –, Paulo é como que “constrangi-

do a fazer um elogio próprio”, enfatizando todo o seu engajamento na

missão de pregação do Evangelho, mesmo diante de literais aventuras

e situações de perigo e risco extremo (2Cor 11,21-29)73. Após relatar

as suas “prerrogativas terrenas”74, e embora sendo isso inconveniente,

Paulo diz: “mencionarei as visões e revelações do Senhor” (2Cor 12,1).

Porém, ao invés de ressaltar a sua glória, enfatiza a sua fraqueza. E, por

isso mesmo, fala inicialmente, e ao que tudo indica “indiretamente de

si mesmo”, como de um homem que foi arrebatado ao céu e ao para-

íso e ouviu “palavras inefáveis” (verba arcana; cf. Ordinatio prol. p. 2

n. 105)75, acerca das quais Paulo, com efeito, “não pretende estimular

70 Sobre as dificuldades para uma melhor identificação desses adversários de Paulo nacomunidade de Corinto, cf. LOHSE, E. 1985, p. 67s.

71 Contemporaneamente, há concordância em afirmar que em 2 Coríntios, como emnenhuma outra epístola sua, Paulo se vê obrigado a “defender seu mandato de Apósto-lo”, a legitimar o seu “ministério apostólico”; cf. SCHELKLE, K. H. 1984, p. 13ss. (cf.também p. 191-237).

72 Cf. PATTE, D., 1987, p. 420ss.

73 Traços escandalosamente não-apostólicos para os referidos espirituais de Corinto; cf.ibid., p. 424s.

74 Cf. SCHELKLE, K. H. 1984, p. 222.

75 Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 105 p. 66: “(...), et subdit ibi, audissese verba arcana, quae non licet homini loqui”.

Page 70: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

70

ROBERTO HOFMEISTER PICH

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

a curiosidade”76. Diante disso, afirma: “se quisesse gloriar-me, não se-

ria louco, pois só diria a verdade” (2Cor 12,6), mas não o faz para que

ninguém tenha sobre si conceito superior àquilo que nele vê e dele

ouve (2Cor 12,7). Já que as revelações do Senhor, das quais resolve

não falar, eram de todo modo “extraordinárias”, Paulo interpreta o seu

próprio – e conhecido – “aguilhão na carne” (moléstia crônica? A resis-

tência dos judeus, entre os quais ele mesmo em convicção antes estive-

ra, para com a fé em Cristo que agora anunciava?) como meio permi-

tido por Deus para evitar que a soberba não enchesse o seu coração

(2Cor 12,7). A lição do apóstolo é que lhe basta a graça, pois é na

fraqueza humana que a força (da graça de Cristo) manifesta todo o seu

poder; melhor, portanto, é a seguinte convicção: “Por isto, eu me

comprazo nas fraquezas, nos opróbrios, nas necessidades, nas persegui-

ções, nas angústias por causa de Cristo. Pois quando sou fraco, então é

que sou forte” (2Cor 12,10). Feito, com certa resistência e ironia, esse

constrangimento de autoelogio e autoexibição, o apóstolo Paulo con-

clui que, mesmo nada sendo diante de Cristo, não é em nada inferior

àqueles “eminentes apóstolos” que rondam a comunidade cristã da ci-

dade de Corinto. Pelo contrário, a sua autoridade apostólica inequívo-

ca é confirmada porque “os sinais que distinguem o apóstolo realiza-

ram-se entre vós: paciência a toda prova, sinais milagrosos, prodígios e

atos portentosos” (2Cor 12,12)77. Assim, os “sinais de apóstolo” que

em Corinto Paulo manifestou constituem “nova prova da autenticida-

de do seu ministério apostólico”78.

76 Cf. SCHELKLE, K. H., 1984, p. 226 (cf. p. 223ss.).

77 Para SCHELKLE, K. H., 1984, p. 235, as três palavras utilizadas por Paulo paracaracterizar os sinais apostólicos, a saber, to sêmeion, to teras e hê dynamis, “são termos doNovo Testamento com o sentido de portentos. Como Paulo as diferenciou, mal se podedefinir. Entretanto, o emprego de três palavras representa a expressão das muitas obrasque ele conseguiu realizar”.

78 Id. ibid.

Page 71: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...

71Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

Tudo leva a crer que Scotus procura mostrar um Apóstolo Paulo

autor de textos ou livros das Escrituras, na qualidade de não-enganado

(caso em que, mesmo se não intencionalmente, diria inverdade). Para

enfatizar essa virtude do apóstolo escritor, Scotus ressalta a firme con-

vicção de Paulo e a fé na origem revelatória-sobrenatural dos conteú-

dos da sua pregação: em 2Cor 12,2-3, atreve-se a tomar Deus mesmo

por “fiador” ou “testemunha” das circunstâncias do seu arrebatamento

extraordinário79. Analogamente ao caso dos profetas Ezequiel e

Jeremias, quer-se enfatizar que o apóstolo não foi enganado no “isso

diz o Senhor” (haec dicit Dominus), elocução que, na tradição proféti-

ca, sendo fórmula – “fórmula do mensageiro” – que opera como índi-

ce de uma dita revelação de Javé, vem a funcionar como marca de

autoridade originária ou, ao menos, pretensão inconteste de origem

divina do conteúdo transmitido e, pois, legitimação de autoridade

profética80. Assim, dar ênfase à autoridade de Paulo como não-enga-

nado é, em parte, dar ênfase ao tipo de reação e de pregação que é de se

79 Id.ibid., p. 224-225.

80 Cf., por exemplo, JEREMIAS, J. 1985, p. 184: “A conhecida fórmula, já documen-tada em época muito antiga, “assim fala Javé”, com a qual os profetas em geral selegitimam, faz reconhecer de forma concentrada as características próprias da autorida-de profética em Israel, distinguindo ao mesmo tempo os profetas dos diversos tipos deadivinhos e videntes do Antigo Oriente (...); por um lado a fórmula salienta que ainiciativa para o aparecimento dos profetas provinha, por natureza, de Javé, e não dospróprios profetas; (...)”. Enfatizando a “supremacia da palavra” como traço principal doprofeta do Antigo Testamento e, ao mesmo tempo, reconhecendo a peculiaridade dascategorias psicológicas com as quais a experiência profética veterotestamentária é descri-ta, WOLF, H. W. 1985, p. 165 (p. 164s.), afirma semelhantemente: “A supremacia deuma palavra ouvida e reconhecida, de uma palavra elaborada e objetivamente procla-mada, é que faz do profeta veterotestamentário um profeta. O problema psicológico decomo o profeta recebeu esta palavra deve-se submeter a este fato dominante. A obedi-ência sem contestação de um Amós e de um Isaías e a apaixonada luta de um Jeremias(...). Ninguém, a não ser eles próprios, pode dizer quem era esta vontade alheia cujapalavra os dominou. Com unanimidade e antes de quase todos os ditos eles dizem:‘Assim falou Javé’”.

Page 72: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

72

ROBERTO HOFMEISTER PICH

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

verificar em alguém que está consciente do ser objeto de revelação por

um agente sobrenatural – no caso, o próprio apóstolo. Isso é o que

aparentemente se quer estabelecer quando, ainda em Ordinatio prol.

n. 105, reflete-se sobre as “asserções” (assertiones) de Paulo, para, a par-

tir disso, tomá-lo como não-iludido. Quais asserções? As de testemu-

nhar de ter ouvido “palavras inefáveis”, ter sido objeto de “revelações

extraordinárias”, ter sido acompanhado por sinais (de origem divina)

que distinguem o verdadeiro apóstolo etc. Todas essas asserções, mes-

mo voltadas a conteúdos de teor incomum ao “natural”, foram feitas

firmemente. Se tais asserções fossem claramente feitas com dúvidas,

estar-se-ia justificado, antes de tudo, em supor as asserções como con-

tendo mentiras ou sendo mentiras. Afinal, numa nota técnica sobre

atos opinativos, Scotus aposta no seguinte princípio de voluntarismo81

doxástico ou da “mentira”:

Ato doxástico de mentir: Sempre é o caso que tudo o que é natural-

mente duvidoso ao intelecto e, não obstante isso, é externamente

asserido com firmeza como algo certo e verdadeiro ou bem é uma

mentira ou não está longe da mentira (ou é uma dissimulação)82.

Que o foco da análise é o estado doxástico de “certeza” – causal-

mente não em função do conteúdo em si, mas por causa da autoridade

do transmissor do conteúdo –, isto é, da “certeza” do Apóstolo Paulo

e de outros santos que testemunharam revelações divinas diretas, isso

fica manifesto pelo teor da seguinte conclusão concernente à origem

sobrenatural e, pois, autoritativa dos conteúdos aos quais Paulo e os

santos assentiram: em cada caso, não era possível que o intelecto do

81 Ao que tudo indica, é difícil pensar no ato de mentir sem levar em conta o papel davontade no assentimento ou, pelo menos, sem levar em conta aspectos intencionais doassentimento a algo naturalmente inevidente.

82 Cf. DUNS SCOTUS, Ordinatio prol. p. 2 q. un. n. 105 p. 66: “Quae assertionesnon videntur fuisse sine mendacio si asserens non fuit certus, quia asserere dubiumtamquam verum certum, est mendacium, vel non longe a mendacio”.

Page 73: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...

73Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

receptor da revelação fosse levado a assentir com tamanha firmeza (ita

firmiter) em conteúdos inevidentes aos poderes intelectuais naturais a

não ser que tivesse o auxílio do poder ou da autoridade de um agente

sobrenatural que os levasse a isso. Nesses casos “autotestemunhados” e

conhecidos por relato de tão firme adesão ou crença em algo – aceitan-

do-se que, em absoluto, seja possível “testemunhar” a firmeza de cren-

ças –, tanto “o conteúdo da crença” quanto “a característica doxástica

da crença” (a certeza ou a adesão firme) só são razoavelmente explicá-

veis se têm origem causal numa revelação divina ou, em última análi-

se, oriunda de um agente sobrenatural83. A conclusão aludida parece

responder por um determinado princípio de racionalidade de crença

em dados não-evidentes e que é passível da seguinte formulação:

Princípio de racionalidade de crença em dados não-evidentes revela-

dos: Sempre que o intelecto de um ser humano veraz, junto com o

testemunho ou autotestemunho de revelação extraordinária, é levado

a um mui firme assentimento a conteúdos cujo conhecimento não

pode ser obtido por meios intelectuais naturais, é razoável concluir

que o assentimento a tais conteúdos tem origem causal sobrenatural

não-enganosa e, pois, autoritativa.

Em tais situações, pensar que o intelecto foi movido por outro

meio – pelas ilusões do próprio sujeito passivo de revelações ou por

ilusões originadas de meios externos meramente naturais – é menos

razoável. Se o princípio acima vale como premissa maior, e a premissa

menor é “Pessoas verazes como o apóstolo Paulo e os demais santos,

com o testemunho ou autotestemunho de revelação extraordinária,

foram levados a um mui firme assentimento a conteúdos cujo conhe-

83 Cf. SONDAG, G. 1999, p. 131. Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n.105 p. 66: “Ex ista revelatione Pauli, et multis aliis, factis diversis sanctis, concluditurquod intellectus eorum non potuerunt induci ad assentiendum ita firmiter illis quorumnotitiam non potuerunt habere ex naturalibus, sicut assenserunt, nisi ab agentesupernaturali”.

Page 74: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

74

ROBERTO HOFMEISTER PICH

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

cimento não pode ser obtido por meios intelectuais naturais”, a con-

clusão já discutida segue-se validamente – aqui dimensionada por mim

só no âmbito do “verossímil”. O argumento, pois, “rejeitaria a hipóte-

se” de que (a) os autores dos livros componentes das Escrituras se en-

ganaram ou foram enganados, que, então, “não mais enfraqueceria” a

premissa menor do argumento da terceira via, a saber, “Pm: As Escri-

turas Sagradas da Igreja Católica são Escrituras transmitidas compos-

tas de livros escritos pelos autores aos quais são atribuídos e que con-

denam a mentira em matérias de fé e moral”84.

Com o mesmo propósito de manter a premissa menor, rejeita-se a

objeção de que (b’) os autores dos livros escriturísticos mentiram por

causa de lucro ou benefício. Isso consiste especificamente na tentativa

de fazer perceber que “é irrazoável” crer que foram mentirosos. Mais

ainda: quer-se convencer ou mostrar que é razoável crer que “não são

mentirosos” ou, positivamente, que são verazes. Ora, se os autores dos

livros escriturísticos mentiram por causa do lucro, é simples anotar

que isso tira a credibilidade do que eles escreveram, pressupondo-se

– e “ainda mais” pressupondo-se – que o que escreveram é inevidente

à razão natural: “inevidências mentidas” como marcas epistêmicas

de objetos proposicionais são, por certo, critérios para o improvável e

o irrazoável em qualquer hierarquia qualitativa de predicados

84 Estabelecido esse argumento dialético contra (a), que explica a firmeza da crença ouadesão certa e não-enganosa ao revelado sobrenaturalmente, um outro pode ser mon-tado para garantir o mesmo ponto: PM: “Todo ser humano veraz e razoável que, porcausa de um agente sobrenatural, assente com firmeza a um conteúdo inevidente àrazão natural, o faz sem enganar-se ou ser enganado, portanto, sem dizer inverdade”;Pm: “Os autores dos livros das Escrituras Sagradas da Igreja Católica são seres humanosverazes e razoáveis que, por causa de um agente sobrenatural, assentem com firmeza aum conteúdo inevidente à razão natural”; C: “Os autores dos livros das EscriturasSagradas da Igreja Católica, ao assentirem ao inevidente, o fazem sem enganar-se ouserem enganados, portanto, sem dizer inverdade”. O argumento oferecido no texto,porém, respeita a ênfase de Ordinatio prol. n. 105 nos motivos de adesão firme oucarente de dúvida razoável (equivalendo à crença natural de caráter não enganoso),mostrada no testemunho ou autotestemunho e em relato(s) textual(is).

Page 75: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...

75Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

epistêmicos85. Se entendo bem, Scotus pondera de novo acerca da bi-

ografia do Apóstolo Paulo, no relato de 2Cor 11-12, para mostrar que

não é provável que os conteúdos revelados das Escrituras devam antes

ser tidos como mentiras sobre o inevidente, baseadas numa tentativa

de benefício pessoal. Afinal, por causa das verdades da fé, aquelas reve-

ladas e de conteúdo não-evidente ou não-asserível de modo meramen-

te natural, exatamente as verdades nas quais queriam levar as pessoas a

crer, a ter uma atitude doxástica de credulidade adquirida, os apóstolos

e os santos não tiveram como resultado, em absoluto, o recebimento

de benefícios, mas, antes, a experiência dos maiores sofrimentos e difi-

culdades86. Eis o argumento para mostrar que é improvável que aque-

les escritores mintam por benefício:

PM: “Todo ser humano veraz e razoável que assente com firmeza

ou certeza a um conteúdo inevidente à razão natural, sem benefício

próprio e com consequências de máximos infortúnios e dificuldades

para si, a partir de alegada revelação extraordinária, o faz sem mentir”.

Pm: “Os autores dos livros das Escrituras Sagradas da Igreja Cató-

lica são seres humanos verazes e razoáveis que assentem com firmeza

ou certeza a conteúdos inevidentes à razão natural, sem benefício pró-

prio e com consequências de máximos infortúnios e dificuldades para

si, a partir de alegada revelação extraordinária”.

C: “Os autores dos livros das Escrituras Sagradas da Igreja Católi-

ca, ao assentirem ao inevidente, o fazem sem mentir”.

Em tais situações, pensar que ocorre o ato doxástico de tomar por

certo e verdadeiro o que se reconhece não-certo e se desconhece verda-

deiro – o mentir – é menos razoável. Naturalmente, mais uma vez a

85 Cf., novamente, CHISHOLM, R. M., 1989, p. 16-17.

86 Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 105 p. 66: “– Contra secundum,scilicet quod propter lucrum mentiti sunt: quia pro illis ad quae voluerunt hominesinducere ad credendum, tribulationes maximas sustinuerunt”.

Page 76: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

76

ROBERTO HOFMEISTER PICH

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

conclusão a que recém se chegou é dimensionada por mim só no âm-

bito do “verossímil”. Também esse argumento recusaria a hipótese de

que (b) os autores dos livros escriturísticos mentiram por algum mo-

tivo cogente, hipótese que, então, não mais enfraqueceria a premissa

menor do argumento da terceira via, a saber, “Pm: As Escrituras Sagra-

das da Igreja Católica são Escrituras transmitidas compostas de livros

escritos pelos autores aos quais são atribuídos e que condenam a men-

tira em matérias de fé e moral”.

A proposição disjuntiva com a qual se iniciara a terceira via e a

partir da qual se procurara o princípio de credibilidade que permitiu

concluir pro veracidade e suficiência das Escrituras como um todo – a

saber, a conclusão “Das Escrituras Sagradas cristãs ou bem os livros

componentes são daqueles autores dos quais são ditos ser ou os livros

componentes não são daqueles autores dos quais são ditos ser” – não

foi, contudo, esquecida. Afinal, o segundo elemento da disjunção an-

tes apresentada ainda não foi considerado. Ao que tudo indica, lidar

com a hipótese de que os livros componentes das Escrituras Sagradas

cristãs não são daqueles autores aos quais são atribuídos põe em ques-

tão, de outro modo, a autoridade dos escritores de tais conteúdos e,

portanto, a veracidade e a suficiência dos próprios conteúdos. Há que

se considerar, em Ordinatio prol. p. 2 n. 106, essa segunda possibilida-

de crítica. Visto que a consideração do segundo elemento da disjunção

é pressuposta como relevante para a argumentação a favor da

credibilidade, exige-se aqui, a meu juízo, algum esforço dialético para

encontrar onde se localiza a importância da associabilidade de escritos

aos autores aos quais são atribuídos – num movimento que requer

que o intérprete do texto scotista dê um passo a frente com bastante

independência. Um princípio de credibilidade parece ter de ser forjado

segundo a idéia de que livros escritos sob falsa atribuição autoral são

escritos por impostores, por mentirosos que preferem não associar a si

mesmos o que escrevem. Saber da consciente dissociação autoral àquilo

que se escreve leva a crer que não há compromisso autoral com a ver-

Page 77: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...

77Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

dade do escrito. Sob essas circunstâncias, a credulidade do escrito é

abalada:

PM: “Escrituras transmitidas, compostas de livros não escritos pelos

autores aos quais são atribuídos, mas por outros autores que se ocul-

tam sob nomes e dissociam a sua autoria histórica dos próprios escri-

tos, não são verossímeis nos seus conteúdos inevidentes que versam

sobre matérias de fé e moral”.

Pm: “As Escrituras Sagradas da Igreja Católica contêm em seu todo

livros não escritos pelos autores aos quais são atribuídos, mas por ou-

tros autores que se ocultam sob nomes e dissociam a sua autoria histó-

rica dos próprios escritos”.

C: “As Escrituras Sagradas da Igreja Católica não são verossímeis

nos seus conteúdos inevidentes que versam sobre matérias de fé e moral”.

A réplica à objeção busca enfraquecer e, por conseguinte, anular a

credibilidade da premissa menor ora formulada. Assim, inicialmente,

uma alegação desse tipo quanto aos livros bíblicos “parece [racional-

mente] inconveniente” (videtur inconveniens), pois leva a uma dúvida

geral e em princípio improvável sobre autoria tradicionalmente ou

comumente reconhecida87: poderia, então, ser em geral negado – ao

menos, posto sob suspeita – que qualquer livro é da autoria daquele

autor ao qual é atribuído88. Por que levantar dúvidas precisamente

sobre aqueles livros escriturísticos, isto é, sugerir falsa atribuição auto-

87 Cf. IOANNES PONCIUS. 1968, n. 3 p. 46: “Si dicatur authores Scripturae nonfuisse illos, quibus attribuitur. Contra est primo quod id sine vllo fundamento dicitur,& eadem ratione posset quis negare opera Aristotelis, Ciceronis, Virgilij non esse ipsorum;quod sane irrationabiliter fieret, quando non adesset aliqua probabilis dubitandi ratio,qualis sine dubio non habetur in proposito”.

88 Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 106 p. 66-67: “Si libri non suntillorum, sed aliorum, hoc videtur inconveniens dicere, quia ita negabitur quicumqueliber esse illius auctoris cuius dicitur esse”.

Page 78: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

78

ROBERTO HOFMEISTER PICH

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

ral a eles mais do que a todo e qualquer outro livro89? Que dessa ma-

neira Scotus entenda criticar relevantemente a razoabilidade da obje-

ção construída só se entende sob o fundo de um princípio como este:

PM: “Salvo motivo contrário cogente, livros atribuídos a autores

são, em geral, da autoria dos sujeitos históricos aos quais são, por boa

tradição e por bom costume, atribuídos”.

Caso se aceite

Pm: “As Escrituras Sagradas da Igreja Católica contêm livros da

autoria de sujeitos históricos que lhes são atribuídos por boa tradição e

por bom costume”,

Segue-se uma conclusão em estrita contradição com a anterior:

C: “As Escrituras Sagradas da Igreja Católica contêm em seu todo

livros escritos pelos autores aos quais são atribuídos”.

O argumento contra a premissa menor de objeção, ou seja, “As

Escrituras Sagradas da Igreja Católica contêm em seu todo livros não

escritos pelos autores aos quais são atribuídos, mas por outros autores

que se ocultam sob nomes e dissociam a sua autoria histórica dos pró-

prios escritos”, é, em seguida, complexificado. Ao que tudo leva a crer,

do ponto de vista da tradição (= transmissão) dos livros escriturísticos,

ou bem aqueles que atribuíram aqueles livros aos respectivos autores

nomeados eram cristãos, ou eles não eram cristãos. Se não eram cris-

tãos – mas sim, respeitando o fundo apologético da parte II, “rivais”

históricos do cristianismo, como judeus, gnósticos e muçulmanos –,

não parece (verossímil) que tenham querido escrever tais livros e atri-

buí-los, em seguida, a outros autores influentes (concorrentes),

89 Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 106 p. 67: “Quare enim soli isti falsoadscripti sunt, auctoribus quorum non erant?”. Cf. ainda IOANNES PONCIUS.1968, n. 3 p. 46: “Secundum dici non potest; quia non est credibile professoresaliarum sectarum tam operose laborasse, vt persuaderent fidem, & doctrinam Christi,suae oppositam”.

Page 79: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...

79Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

magnificando com os próprios conteúdos escritos a “seita” cujo con-

trário entendiam como verdadeiro ou sagrado90. Se tais adscritores eram

cristãos, e, com razoabilidade, é concedível que a doutrina dos cristãos

condena de maneira explícita a mentira, é pouco provável que tais

personagens atribuiriam, mentirosamente, os respectivos livros a au-

tores nomeados irreais ou historicamente dissociados dos próprios es-

critos91. Nos dois campos de motivos, creio que é possível dizer que a

cláusula “salvo motivo contrário cogente”, da premissa maior acima,

não seria cumprida, ou, ainda, que a cláusula “por boa tradição e por

bom costume”, no caso dos livros das Escrituras cristãs, e isso equivale

ao mesmo, não seria vulnerada. Há, pois, melhores motivos para man-

ter a crença na autoria historicamente atribuída aos livros respectivos

do que para crer na sua ilegitimidade autoral92.

90 Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 106 p. 67: “– Praeterea, aut illi quiadscripserunt illos libros eis fuerunt christiani, aut non. Si non, non videtur quodvoluerunt tales libros conscribere et aliis adscribere, et magnificare sectam cuiuscontrarium tenuerunt”.

91 Cf. ID. Ord. prol. p. 2 q. un. n. 106 p. 67: “Si fuerunt christiani, quomodo igitur illichristiani mendaciter eis tales adscripserunt, cum lex eorum damnet mendacium, sicut prius?”

92 Aqui e para o restante do argumento a favor da autenticidade autoral dos livroscanônicos, deve-se levar em conta a indisponibilidade de ferramentas dos métodos“histórico-críticos” à exegese da época de Scotus – as quais forçariam sérias reconsideraçõesà noção mesma de “livros”, “escritos”, “cartas”, etc., redigidos de modo bem definido porautores, bem como às formas e aos gêneros de “proclamação” e “ensino” que estão nabase da constituição, por exemplo, dos escritos do Novo Testamento; cf. LOHSE, E.1985, p. 22ss. Sobre a formação dos escritos neotestamentários “à luz da crítica dasformas”, cf. MOULE, C. F. D. 1979, p. 13-201. Deve-se também levar em conta, como mesmo peso, o fato importante de que a idéia de uma ciência e uma teologia bíblicaautônomas só ganha substância no século XVIII, com o “programa [iluminista] dapesquisa histórico-crítica da Escritura”, tal que, na contramão desse movimento, acanonização de escritos do cristianismo primitivo, a partir do século IV, pela igreja cristã,na prática identificara “cânone” com “doutrina válida na igreja”, trazendo como conse-qüência que “doutrina eclesiástica” e “tradição apostólica” automática e harmonicamenteincluíam o conjunto das verdades escriturísticas e das retas interpretações da Scriptura,sem que essas pudessem operar autonomamente em relação àquelas; cf. GOPPELT, L.

Page 80: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

80

ROBERTO HOFMEISTER PICH

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

As reflexões de atribuição de autoria podem facilmente se multi-

plicar, em se tratando de adscritores cristãos: é improvável acreditar

que seguiram afirmando que Deus falou as muitas coisas narradas na-

queles livros, a saber, revelando-se às pessoas que dão título autoral

àqueles livros, se, sendo cristãos, sabiam que as revelações conscritas

não tinham tido como passivos aquelas pessoas. Dentro de um certo

perfil de adscritores cristãos, é igualmente improvável que o seu teste-

munho e a sua transmissão de atribuição autoral tivessem sido falsos,

lembrando que como um todo, na tradição histórica da Igreja, os li-

1988, p. 17-18, 20-21. Ora, com esses pressupostos, é evidente que a verossimilhançado bloco argumentativo posto por Scotus, que objetiva convencer da legitimidadeautoral dos livros componentes das Escrituras, ou bem perderia terreno definitivamen-te ou teria de ser adaptada a noções mais permissivas de “autenticidade”. Afinal, cf.LOHSE, E., 1985, p. 44s., é reconhecido, hoje, que (a) poucos escritos do NovoTestamento permitem conhecer inequivocamente o nome do autor, havendo, em ver-dade, (b) diversos escritos que nem indicam nome de autor nem oferecem apontamen-tos que auxiliem à identificação. Nesse sentido, reconhece-se que a tradição do cristia-nismo primitivo, após o período apostólico original e segundo a idéia de que a autori-dade apostólica constituía regra máxima para autenticidade escriturística – portanto,para aceitação compromissiva –, adotou o costume de citar nomes de apóstolos ou dediscípulos de apóstolos aos escritos anônimos transmitidos; os escritos de si transmitidoscomo anônimos logo se transformaram em “pseudônimos”, o que, de resto, ilustravaum processo de ajuste ou atribuição autoral comum à Antigüidade greco-romana. Nomesmo passo, cf. ibid., p. 45, (c) há, na primitiva literatura cristã, exemplos de escritoscuja autoria, desde a origem, é referida sob pseudônimo, como 2 Pedro, em que “o autoroculta o seu nome atrás do de outra pessoa, que goza de aceitação inconteste no círculode leitores ao qual se dirige” – isto é, opta por ficar atrás do nome de um apóstolo, aquem a igreja antiga rigorosamente prestigiava. Não obstante isso, e curiosamente,compreendia-se, nesse procedimento, que era mesmo adequado que o ensinamentoentão formulado, reconhecido pelos destinatários e leitores em geral do escrito como fielao ensino e à doutrina dos apóstolos, fosse remetido ao nome deles: essa submissa“pseudonímia”, de modo algum “falsificação”, era um esforço por dirigir a doutrinado(s) apóstolo(s) às situações que, a cada novo momento e nova geração da igreja,pediam por respostas e conselhos concretos (caso das comunidades da segunda e tercei-ra geração da igreja apostólica constituída): cartas deuteropaulinas e escritos pseudôni-mos certamente buscavam “preservar” e ao mesmo tempo “dar nova expressão aoquérigma da cristandade primitiva”; cf. ibid., p. 46.

Page 81: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...

81Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

vros atribuídos àqueles autores foram tão “originais” – “autênticos” ou

“autenticados” (authentici) – e, em geral, tão divulgados sob tal atri-

buição autoral: é irrazoável pensar que tal reconhecimento de origina-

lidade e tal divulgação poderiam ter sido tão amplos, sem a base da

real associação e da autenticidade dos escritores denominados. A insis-

tência quanto ao resultado do papel dos adscritores cristãos, no que

concerne ao argumento, segue fixada na ausência de motivo forte para

se pensar o contrário da atribuição transmitida e na invulnerada cláu-

sula da boa tradição e do bom costume sugeridas acima93. Se a crença

na legitimidade autoral – em particular, por certo, a apostólica – dos

livros componentes das Escrituras tem como base esse tipo de teste-

munhas e guardiães de tradição, ela parece ser mais provável do que o

seu contrário.

A veracidade ou a autoridade testemunhal dos adscritores cristãos

é tudo o que Scotus, no restante do parágrafo, assevera, ao ratificar a

convicção na transmissão dos escritos bíblicos por homens de “suma

santidade” (summae sanctitatis) anotada por Ricardo de São Vítor94: a

legitimidade autoral dos escritos bíblicos está fundada em testemu-

nhas e guardiães de tradição eles mesmos de suma “santidade” e remis-

sivos a escritores eles mesmos – em particular, como prova a referência

a Agostinho, os apóstolos – reconhecidos como de suma “autoridade”

93 Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 106 p. 67: “Et propter idem,quomodo asserunt Deum locutum esse multa quae ibi narrantur, et hoc personisquibus libri intitulantur, si talia non acciderunt talibus personis? Quomodo etiam istilibri fuissent ita authentici, et divulgati esse talium auctorum, nisi et fuissent eorum, etauctores fuissent authentici?”

94 Cf. RICARDO DE SÃO VÍCTOR. Richard de Saint-Victor. La Trinité – De Trinitate.1959, I c. 2 891D p. 66: “Nonne cum omni confidentia Deo dicere poterimus:Domine, si error est, a teipso decepti sumus: nam ista in nobis tantis signis et prodigiisconfirmata sunt et talibus, quae nonnisi per te fieri possunt; certe a summae sanctitatisviris sunt nobis tradita et cum summa et authentica attestatione probata, teipsocooperante et sermonem confirmante, sequentibus signis”.

Page 82: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

82

ROBERTO HOFMEISTER PICH

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

(auctoritas)95. Desde o autotestemunho dos escritores – sobretudo os

apóstolos – como passivos de revelação divina e registradores dos con-

teúdos da revelação divina e desde o testemunho de adscritores cristãos

– pode pensar em especial nos líderes das comunidades cristãs –, crê-se

e transmite-se crença segundo santidade-autoridade, pelo testemunho

daqueles que, por fé, condenam a mentira. Nos dois casos, sanctitas e

auctoritas podem valer, em sentido lato, como “veracidade forte” ou

“reputação veraz”, qualidades de testemunhas, assimilados e atribuídos

dados certos traços da pessoa e dos seus atos96. No que concerne a esse

aspecto sensível das testemunhas originais e transmissoras-

mantenedoras dos conteúdos revelados e conscritos nos livros

escriturísticos, a base patrística à qual Scotus faz referência, em parti-

cular Agostinho, é abundante97. Se a crença no conteúdo revelado e

transmitido é acompanhada por autores e adscritores com veracidade

forte, então é improvável que tenha sido gerada, desde a origem, pelo

ato doxástico de uma inevidência mentida e que a própria atribuição

autoral seja inevidência mentida. Há, pois, mais motivos para crer que

os livros escriturísticos, desde a sua origem e transmissão de atribuição

autoral, estão isentos da mentira do que para crer na impostura dos

95 Cf. AGOSTINHO. San Agustin. La ciudad de Dios – De civitate dei. 1958, XI c. 3(“De auctoritate canonicae Scripturae, divino Spiritu conditae”) p. 718: “Hic prius perProphetas, deinde per se ipsum, postea per Apostolos, quantum satis esse iudicavit,locutus, etiam Scripturam condidit, quae canonica nominatur, eminentissimaeauctoritatis, cui fidem habemus de his rebus quas ignorare non expedit, nec pernosmetipsos nosse idonei sumus”.

96 Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 106 p. 67-68: “De isto dicitRichardus De Trinitate libro I cap. 2: “A summae sanctitatis viris sunt nobis tradita”.Item, Augustinus libro XI De civitate cap. 3, loquens de Christo: “Prius”, inquit, “perprophetas, deinde per seipsum, postea per apostolos, quantum satis iudicavit, locutus,Scripturam condidit, quae canonica nominatur, eminentissimae auctoritatis”. Cf. tam-bém DUNS SCOTUS, Ord. III d. 23 q. un. n. 4 p. 460.

97 Agostinho talvez seja referido por Scotus, neste contexto, a partir de Henrique deGand. Cf. HENRICUS GANDAVENSIS. Summa quaestionum ordinarium. a. 7 q. 7in corp. (I f. 57D); a. 6 q. 4 in corp. (f. 46M); a. 9 q. 2 arg. 2 in opp. (f. 71H); a. 7 q.7 in corp. (f. 57D); a. 10 q. 2 in corp. (f. 74O); a. 7 q. 7 in corp. (f. 57D)).

Page 83: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...

83Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

autores e transmissores98. A análise da noção de autoridade veraz como

qualidade testemunhal e a sua relação com a epistemologia do teste-

munho, na filosofia da religião, não pode, porém, ser solidamente

estudada neste ensaio. Não obstante isso, alguns poucos apontamen-

tos serão feitos a seguir.

3.2 A diligência dos recebedores

O quarto argumento, “sobre a diligência dos recebedores” (de

diligentia recipientium) dos livros e conteúdos das Escrituras Sagra-

das99, pode bem ser caracterizado como um argumento por testemu-

nho ou por um princípio de credibilidade que é um princípio de teste-

munho: o testemunho é, ou ao menos pode ser, fonte de geração de

crença racional100. O motivo trazido por Scotus para crer no testemu-

98 Cf. DUNS SCOTUS. Ord. prol. p. 2 q. un. n. 106 p. 68: “Hoc ibi. Et Augustinus inEpistola ad Hieronymum prima (et habetur De consecratione): “Si sacras Scripturasadmissa fuerint vel officiosa mendacia, quid in eis remanebit auctoritatis?” Et idem adeundem, epistola eadem: “Solis eis Scripturarum libris” etc. (et Henricus 7, 8g)”.

99 Se é correto afirmar, com o comentador, que este argumento objetiva provar oudefender a autoridade da Escritura Sagrada, mantenho que tal prova de autoridadeopera a partir de um princípio de credibilidade, subsumindo-se, pois, como já adianta-do neste ensaio, ao propósito de provar a “verdade” ou “veracidade” das Escriturascristãs; cf. IOANNES PONCIUS. 1968, n. 1 p. 47: “Qvartum, scilicet recipientiumdiligentia, &c. Haec via ad duo potissimum conducit, primo est principaliter adprobandam authoritatem Scripturae propositae ab authoribus, de quibus in praecedentivia. Secundo ad suadendum non fuisse adiuncta aliqua, aut mutata in eadem Scriptura,quod derogaret eius authoritati”.

100 Nesse sentido, como fonte de geração de crença racional, analiso o testemunho quafonte de crença de um modo mais específico do que a sua análise, em epistemologia,como uma fonte de geração de “conhecimento e justificação”, em que, segundo AUDI,R. 1998, p. 130, o “testemunho é a nossa fonte social [itálico do autor] primária” deconhecimento e justificação. Ademais, cf. ibid., p. 130-131, um sentido básico de“testemunho” me parece comum ao argumento que desenvolvo, a partir do textoscotista: testemunho, em sentido lato, consiste em “dizer alguma coisa numa aparentetentativa de trazer (correta) informação”, tendo como bom correlato a noção de “atesta-ção” (attesting): “Essa cobre tanto o testificar formalmente que algo é assim quanto odizer simplesmente, na maneira informacional relevante, que é assim, por exemplo, aodizer as horas para alguém. Isso também captura a idéia de dizer algo “para” alguém”.

Page 84: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

84

ROBERTO HOFMEISTER PICH

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

nho dos recebedores sobre a origem revelada e, no caso do Novo Tes-

tamento, apostólica dos livros das Escrituras, portanto, sobre a sua

própria origem racionalmente autoritativa à crença firme, é formula-

do de maneira menos inequívoca que o desejado – o que não impossi-

bilita um esforço da parte do intérprete no intuito de encontrar a pre-

missa desejável. No que diz respeito, em geral, à informação que um

ser humano racional recebe por testemunho alheio, por testemunho

de círculos que naturalmente suscitam crenças primárias – entenda-se,

supostamente, por testemunhos da família e da comunidade próxima

–, as atitudes doxásticas possíveis são expressáveis na forma de uma

disjunção exclusiva: ou bem ele não crê em nada do que acontece ou

aconteceu que não tenha ele mesmo visto, não crendo, então, que o

mundo foi feito antes de si, que existe aquele lugar do mundo em que

ainda não tenha estado presente, nem que tal indivíduo é o seu pai e

que tal pessoa é a sua mãe, ou ele crê nas informações testemunhadas

desse tipo, isto é, em informações básicas testemunhadas pelos sujei-

tos que lhe são mais próximos e naturalmente confiáveis101. Note-se

que, na descrição ora feita, informar-se de algo sem direta visão ou

percepção visual do mesmo acaba por equivaler a obter conteúdo

inevidente e, possivelmente, ter crença inevidente em algo. Parece ser

axiomático tanto que a “incredulidade” (incredulitas) nesse tipo de in-

formação por meio desse tipo de testemunho destrói a “vida social”

(vitam politicam)102 quanto, positivamente, muito embora Scotus não

faça uso de tais palavras, que a “credulidade” (o termo latino equiva-

lente seria “credulitas”) nesse tipo de informação por meio desse tipo

de testemunho permite e, essencialmente, erige a vida social.

101 Cf. DUNS SCOTUS, Ordinatio prol. p. 2 q. un. n. 107 p. 68: “– De quarto,scilicet diligentia recipientium, patet sic: aut nulli credes de contingenti quod nonvidisti, et ita non credes mundum esse factum ante te, nec locum esse in mundo ubinon fueris, nec istum esse patrem tuum et illam matrem; (...)”.

102 Cf. ID. Ord. prol. p. 2 q. un. n. 107 p. 68: “(...); et ista incredulitas destruit omnemvitam politicam”.

Page 85: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...

85Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

Claramente, é da natureza da formação de certas crenças em con-

teúdos não diretamente vistos nem visíveis que, se alguém “quer”103

crer num acontecimento qualquer que não é e nem foi “evidente”

(evidens), o mecanismo no qual – ou, ao menos, um dos mecanismos

nos quais – deve integrar-se é o seguinte: “deve crer maximamente

numa comunidade [communitati]” ou, ainda mais fortemente, numa

provável ênfase no caráter básico ou primário dos conteúdos cridos,

naquilo que “a comunidade toda” (tota communitas) aprova, manifes-

tamente, naquilo que uma comunidade com predicados de veracidade

testemunhal aprova; nesse caso, estão em questão “maximamente as

coisas que uma comunidade bem-conhecida [famosa] e honesta [ho-

nesta] prescreve com a máxima diligência como devendo ser aprova-

das”104. Que a partir disso a racionalidade da crença por testemunho

vem a ser defendida, isso fica mais explícito na seguinte formulação de

um princípio de credibilidade por testemunho, que servirá, em segui-

da, aos propósitos do convencimento da verossimilhança e da sufici-

ência das Escrituras Sagradas da Igreja Católica:

Princípio de credibilidade por testemunho:105 É racional crer na ve-

rossimilhança de conteúdos (básicos ou não) inevidentes ou não vistos

103 E, portanto, em termos doxásticos, tem de mover-se judicativamente para além doque é naturalmente evidente à razão.

104 Cf. ID. Ord. prol. p. 2 q. un. n. 107 p. 68-69: “Si igitur vis alicui credere decontingenti quod tibi non est nec fuit evidens, maxime credendum est communitati,sive illis quae tota communitas approbat, et maxime quae communitas famosa et ho-nesta cum maxima diligentia praecepit approbanda”.

105 Estando em debate aspectos de uma teoria de credibilidade ou de crença verossímil,ou, ainda, de racionalidade de crenças em sentido lato, é para esse propósito teórico quetal “princípio de credibilidade por testemunho” é formulado: como fórmula específicada obtenção de crença racional. Assim, pois, um princípio de testemunho como prin-cípio de credibilidade de crença não põe ainda – como, de resto, não será feito nesteensaio – o “testemunho”, nos termos próprios da sua epistemologia, na sua consideraçãoprópria como fonte de crença, via de regra “não-inferencial”, mas, enquanto “atestação”,com dependência da “percepção” e da “interpretação semântica” (R. Audi).

Page 86: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

86

ROBERTO HOFMEISTER PICH

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

diretamente por um sujeito cognoscente, que são informados ao mes-

mo sujeito e aprovados em seu valor de verdade pelo testemunho de

toda uma comunidade bem-conhecida e honesta.

Os termos do princípio acima posto se encaixam, Scotus quer

fazer crer, no caso do “Cânone da Escritura”: os livros canônicos e os

seus conteúdos revelados são inevidentes aos que hoje ou após a gera-

ção dos seus escritores os recebem, tendo sido e sendo, porém, desde

então, aprovados com a máxima diligência por uma comunidade bem-

conhecida e honesta. Toma-se que isso vale para a “solicitude”

(sollicitudo) que os judeus mostraram acerca dos livros que deveriam

constar no seu Cânone; isso vale também no caso da consideração dos

cristãos quanto aos livros que receberam como “autênticos” – como

estudado acima, isso também significa os livros caracterizados por in-

tegridade autoral. A solicitude para o reconhecimento da integridade

autoral e, pois, da origem dos escritos canônicos para os cristãos, Scotus

se permite afirmar, jamais foi encontrada em tamanha intensidade em

nenhuma outra Escritura a receber um “selo de autenticação” (minha

expressão). A ênfase argumentativa, pois, recai, não sobre motivos pró-

ximos para tomar os livros das Escrituras como autênticos, mas na

força de respeitabilidade “do testemunho” de que são autênticos em

sua origem: os livros em questão foram objeto de extremo “cuidado”

Semelhantemente, propriedades do atestador ou da testemunha e ainda “padrões críti-cos” de conferimento de plausibilidade por parte do recebedor têm de ser considerados;sobre isso cf. AUDI, R. 2006, p. 25-28. Ademais, afigura-se instigante a idéia derevisitar, em estudos futuros, a Ordinatio III d. 23 (Scotus) bem como textos medievaistardios acerca do tópico do testemunho (ou, antes, acerca dos aqui trabalhados tipos deprincípios de credibilidade, dentre os quais o testemunho se insere), para conferirorigens intelectuais daqueles princípios que Thomas Reid identificaria como funda-mentais à aquisição de conhecimento a partir da informação concedida por outraspessoas: o “princípio de veracidade” (principle of veracity) e o “princípio de credulida-de” (principle of credulity), a saber, princípios epistêmicos da natureza humana. Cf.sobre isso o estudo (crítico a Reid) de VAN CLEVE, J. 2006, p. 50-74.

Page 87: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...

87Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

– outro tradução para sollicitudo – pelas testemunhas, as comunidades

cristãs (e os seus líderes). Comunidades “solenes” ou “devidas” (sollemnes)

– na linha dos predicados famosa e honesta – “cuidaram” (curaverunt)

daquelas Escrituras ou da transmissão daquelas Escrituras como autên-

ticas, tal como quem realmente cuida (de escritos) que contêm o que

é necessário para a salvação106. As solenes comunidades – judaicas e

cristãs – cuidaram para que Escrituras “autênticas” ou de autores “vera-

zes” (veraces), reconhecidamente passivos de revelação extraordinária e

que, portanto, escreveram como “profetas” ou “por revelação divina”,

fossem incluídas e fixadas no Cânone107 que resume os livros que con-

têm a notícia sobrenatural necessária108. Que no pensamento dos Pais

da Igreja essa é, essencialmente, a lógica de inclusão e compreensão de

autoridade que serve de critério para a constituição do Cânone das

106 Cf. DUNS SCOTUS, Ord. prol. p. 2 q. un. n. 107 p. 69: “Talis est CanonScripturae. Tanta enim apud iudaeos sollicitudo fuit de libris habendis in Canone, ettanta apud christianos de libris recipiendis tamquam authenticis, quod de nulla scripturahabenda authentica tanta sollicitudo fuit inventa, praecipue cum tam sollemnescommunitates de Scripturis illis curaverunt tamquam de continentibus necessaria adsalutem”.

107 Parece-me bastante razoável tomar as solenes comunidades cristãs como, ao menosem parte, representadas pelos “Pais” e “primeiros Doutores” da Igreja, cuja santidade eliderança intelectual é, de fato, reportada como decisiva na formação do Cânone; cf.também IOANNES PONCIUS. 1968, n. 1 p. 47: “Rursus cum constet in primisnostrae religionis exordiis varia prodiisse Euangelia Thomae, Barnabae, Thaddaei,Bartholomaei, Andreae, aliorumque Apostolorum, ac Sanctorum virorum nominibus,& varias actuum Apostolorum historias; certe credi non potest sola quatuor Euangelia,que in nouo Testamento modo habentur, & Acta Apostolorum a Luca conscripta, aliisreiectis, tanquam diuinam authoritatem habentia, esse recepta, nisi magno praemissoexamine, & re mature considerata. Itaque de diligentia sufficienti adhibita non potestdubitari; ea autem supposita in primis habemus, quicunque demum istius doctrinaefuere primi Doctores, magnae fuisse prorsus authoritatis, ac sanctitatis: (...)”.

108 Cf. SONDAG, G. 1999, p. 131-132.

Page 88: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

88

ROBERTO HOFMEISTER PICH

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

Escrituras Sagradas do cristianismo109, isso Scotus repete110 sem novi-

dade e em estilo tradicional daquilo que Agostinho já escrevera111.

O argumento a favor da verossimilhança e da suficiência das Escri-

turas e dos seus conteúdos pode agora ser completado:

Pm: “Os livros das Escrituras Sagradas da Igreja Católica como

conjuntos de conteúdos autorais são inevidentes ou não vistos (experi-

mentados) diretamente pelos sujeitos cognoscentes de hoje e das gera-

ções posteriores aos seus escritores, e, não obstante isso, foram e são

informados no Cânone aos seres humanos de hoje e aprovados em seu

valor de verdade pelo testemunho contínuo de toda uma comunidade

bem-conhecida e honesta, a saber, a comunidade cristã e como um

todo a Igreja Católica”.

C: “É racional crer na verossimilhança dos livros das Escrituras

Sagradas da Igreja Católica, bem como nos seus conteúdos inevidentes”.

109 Uma visão atualizada acerca do processo de seleção dos escritos cristãos que compu-seram o Cânone, dando o devido apreço ao papel intelectual dos líderes e doutores daIgreja, às divergências (em boa parte oriundas de “heresias”) e às posições dos Concílios,pode ser conferida em MOULE, C. F. D. 1979, p. 202-236. Cf. também LOHSE, E.1985, p. 11-21.

110 Cf. DUNS SCOTUS. Ord. prol. p. 2 q. un. n. 107 p. 69-70: “De hoc AugustinusXVIII De civitate cap. 38: “Quomodo scriptura Enoch, de qua Iudas in epistola suafacit mentionem, non recipitur in Canone, et multae aliae scripturae, de quibus fitmentio in libris Regum?”, ubi innuit quod sola illa scriptura recepta sit in Canonequam auctores, non sicut homines sed sicut prophetas, divina inspiratione scripserunt.Et ibidem, cap. 41: “Illi Israelitae, quibus credita sunt eloquia Dei, nullo modopseudoprophetas cum veris prophetis parilitate scientiae confuderunt, sed concordessunt inter se atque in nullo dissentientes: sanctarum Litterarum veraces ab eisagnoscebantur et tenebantur auctores”.

111 Cf. AGOSTINHO. San Agustin. La ciudad de Dios – De civitate dei, XVIII c. 38(“Quod quaedam sanctorum scripta ecclesiasticus canon propter nimiam non receperitvetustatem, ne per occasionem eorum falsa veris insererentur”) p. 1314-1315; XVIIIc. 41 (“De philosophicarum opinionum dissensionibus, et canonicarum apud Ecclesiamconcordia Scripturarum”) n. 3 p. 1321.

Page 89: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...

89Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

Naturalmente, mais uma vez a conclusão a que recém se chegou é

dimensionada por mim só no âmbito do “verossímil”. A premissa

maior na forma de um princípio de credibilidade por testemunho se-

ria, com efeito, mais “um princípio de credibilidade” buscado

dialeticamente: um princípio de verossimilhança de proposições. É

quase desnecessário afirmar que o drama argumentativo maior, nesse

contexto de credibilidade dos conteúdos e das Escrituras da religião

cristã, desenrola-se com respeito à premissa menor. Invoque-se, para

tanto, o labor dos teólogos cuja expertise é a explanação da Bíblia, a

delimitação e interpretação da tradição e, concomitantemente, a fun-

damentação da autoridade da Igreja em matérias doutrinais.

Considerações finais

As premissas maiores dos argumentos principais acima (3.1 e 3.2)

são “princípios de credibilidade” buscados dialeticamente. “Autorida-

de dos que escrevem” e “diligência dos recebedores dos escritos” são

“tipos de princípio de credibilidade”. Os silogismos desenvolvidos são

silogismos dialéticos/prováveis, argumentos que devem levar alguém

a crer na conclusão respectiva: “pelo menos” uma das premissas dos

silogismos – certamente as premissas menores a cada vez, que exigem

o duro labor de expositores – “não é evidente”. Naturalmente, os ar-

gumentos de amostra oferecidos não têm a forma probativa de argu-

mentos científicos (dedutivos) – onde as premissas deveriam manter o

que Scotus chama em Ordinatio prol. n. 208 de “certeza”, “evidência”

e “necessidade”112. Nos casos em jogo, Scotus tanto termina por con-

vencer “acerca de” aspectos básicos de racionalidade e crença quanto

112 Cf. DUNS SCOTUS, Ordinatio prol. p. 4 q. 1-2 n. 208 p. 141-142.

Page 90: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

90

ROBERTO HOFMEISTER PICH

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

quer explicitamente convencer “com” esses aspectos básicos: crença em

algo sob bons motivos ou princípios de credibilidade é razoável; cren-

ça em algo sob princípios de credibilidade não só latentes, mas (prefe-

rencialmente) explicitados e (conscientemente) aplicados é razoável;

ter razões fortes (por causa da subsunção a princípios de credibilidade)

para tomar algo por verdadeiro acarreta que é racionalmente preferível

tomar aquilo por verdadeiro do que não fazê-lo ou, então, do que

tomar a posição contrária – a de dizer a sua falsidade. Reconheço, ou-

trossim, que tais apontamentos conclusivos só puderam ser obtidos

com certa ousadia – bem ou mal sucedida – do intérprete com respei-

to à forma nua dos textos.

Os argumentos soam válidos, mas certamente muitas convicções

posteriores devem ser obtidas para estabelecer a premissa menor a cada

vez113. Na sua apresentação atual nos argumentos, é de supor-se que as

premissas menores não podem (ou, segundo os padrões contemporâ-

neos sobre a interpretação das Escrituras canônicas e da tradição eclesi-

ástica, não poderiam ainda) ser consideradas estabelecidas. Essa é uma

tarefa que o teólogo – mesmo o teólogo filosófico – deveria realizar

quando desafiado pela descrença ou crença contrastante de outros; ele

não faz maravilhas, mas esforços de razão. Somente a “fé infusa” é um

milagre114, não a “aquisição” de fé, que continua sendo, como tal, in-

suficiente para a salvação.

113 Para argumentos desse tipo, que se inserem dentro da rubrica “argumentos deautoridade e de testemunho”, cuja força racional é mais fraca do que a força probatóriade argumentos científicos, a aquisição de crença pode exigir condições posteriores,como, por exemplo, a vontade e o papel da mesma no assentimento e no dissentimento;isso é insinuado em Ordinatio III d. 23 q. un.; cf. CROSS, R., Duns Scotus on God, p. 7.

114 Cf. notas 49, 58, e 61 acima. Cf. também BOULNOIS, O. 1998, p. 91-100.

Page 91: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...

91Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

Referências

1 Duns Scotus

DUNS SCOTUS, Ioannes. Opera omnia. Civitas Vaticana: TypisVaticanis, 1950-.

DUNS SCOTUS, Ioannes. Opera omnia. Ed. L. Wadding. Lyon, 1639,9 vol. (Nachdruck Hildesheim: Olms, 1968).

2 Demais autores

AGOSTINHO (San Agustin). La ciudad de Dios – De civitate Dei. Ediciónbilingue. Edición preparada por el Padre Fr. José Moran. Madrid:Biblioteca de Autores Cristianos, 1958.

ABRAHAM, W. J. “Revelation and Scripture”. In: QUINN, Ph. L.;TALIAFERRO, Ch. (eds.). A Companion to Philosophy of Religion.Oxford: Blackwell Publishing, 2005, p. 584-590.

AUER, J. “Das Theologieverständnis des Johannes Duns Scotus unddie theologischen Anliegen unserer Zeit”, Wissenschaft und Weisheit,29 (1966), p. 161-177.

AUER, J. “Der theologische Genius des Johannes Duns Skotus”,Wissenschaft und Weisheit, 17 (1954), p. 161-175.

AUDI, R. Epistemology. A Contemporary Introduction to the Theory ofKnowledge. London/New York: Routledge, 1998.

AUDI, R. “Testimony, Credulity, and Veracity”. In: LACKEY, J.; SOSA,E. (eds.). The Epistemology of Testimony. Oxford: Clarendon Press,2006, p. 25-49.

BALIC, C. “Duns Scot”. In: Dictionnaire de spiritualité ascétique et mystique,doctrine et histoire. Paris: Beauchesne, Tome III, 1957, p. 1801-1818.

BALIC, C. “Johannes Duns Scotus und die Lehrentscheidung von 1277”,Wissenschaft und Weisheit, 29 (1966), p. 210-229.

BALIC, C. “Ioannes Duns Scotus et Epistula Apostolica ‘Alma Parens’”,Antonianum, 42 (1967):1, p. 95-127.

BARNARD, L. W. “Apologetik I. Alte Kirche”. In: TheologischeRealenzyklopädie. Berlin: Walter de Gruyter, Bd. III, 1993, p. 371-411.

Page 92: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

92

ROBERTO HOFMEISTER PICH

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

BERCEVILLE, G. “Du miracle au surnaturel. De Thomas d’Aquin àDuns Scot: un changement de problématique”. In: BOULNOIS,

O.; KARGER, E.; SOLÈRE, J.-L.; SONDAG, G. (eds.). Duns Scot àParis 1302-2002. Turnhout: Brepols, 2004, p. 563-579.

BETZENDÖRFER, W. Glauben und Wissen bei den großen Denkern desMittelalters. Gotha: Klotz, 1931.

BOULNOIS, O. Duns Scot, la rigueur de la charité. Paris: Les Éditionsdu Cerf, 1998.

BUYTAERT, E. M. “Circa doctrinam Duns Scoti de Traditione et deScripturae sufficientia adnotationes”, Antonianum, 40 (1965):3-4,

p. 346-362.

CHISHOLM, R. M. Theory of Knowledge. Englewood Cliffs: PrenticeHall, 1989.

CROSS, R. Duns Scotus. Oxford: Oxford University Press, 1999.

CROSS, R. Duns Scotus on God. Burlington: Ashgate, 2005.

DETTLOFF, W. “Duns Scotus/Scotismus”. In: TheologischeRealenzyklopädie. Berlin: Walter de Gruyter, Bd. IX, 1993, p.

218-231.

DE LUBAC, H. Exegèse médiévale – Les quatre sens de l’Écriture. 4. Vols.Paris: 1959-1964.

FINKENZELLER, J. Offenbarung und Theologie nach der Lehre des

Johannes Duns Skotus. Eine historische und systematische Untersuchung.Münster: Aschendorff Verlag, 1961.

FRÖR, K. Biblische Hermeneutik. Zur Schriftauslegung in Predigt und

Unterricht. Zweite, durchgesehene Auflage. München: Chr. KaiserVerlag, 1964.

GOPPELT, L. Teologia do Novo Testamento – Volume I: Jesus e a comuni-dade primitiva. São Leopoldo/Petrópolis: Vozes, 1988.

HENRIQUE DE GAND (Henricus Gandavensis). Summa quaestionumordinarium. Ed. Badius Ascenius. Paris: 1520 (Nachdruck Paderborn:1953).

KROP, H. A. De status van de theologie volgens Johannes Duns Scotus. Deverhouding tussen theologie en metafysica. Amsterdam: Rodopi, 1987.

Page 93: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

DUNS SCOTUS SOBRE A CREDIBILIDADE DAS DOUTRINAS...

93Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

JEREMIAS, J. “A autoridade dos profetas no Antigo Testamento”. In:V.V.A.A. Profetismo. Coletânea de Estudos. São Leopoldo: EditoraSinodal, 1985, p. 181-202.

IOANNES PONCIUS. “Commentarius (Supplementum)”. In: JohannesDuns Scotus. Opera omnia V.1: Ordinatio prologus – Ordinatio I d. 7.Ed. L. Wadding. Lyon, 1639 (Nachdruck Hildesheim: Olms, 1968),p. 40-66 (passim).

LANG, A. Die Entfaltung des apologetischen Problems in der Scholastik desMittelalters. Freiburg – Basel – Wien: Herder, 1962.

LANG, A. Die theologische Prinzipienlehre der mittelalterlichen Scholastik.Freiburg – Basel – Wien: Herder, 1964.

LOHSE, E. Introdução ao Novo Testamento. São Leopoldo: Editora Sinodal,1985.

MANN, W. E. “Believing where we Cannot Prove: Duns Scotus on theNecessity of Supernatural Belief ”. In: STOEHR, K. (ed.). TheProceedings of the Twentieth World Congress of Philosophy Vol. 4:Philosophies of Religion, Art, and Creativity. Bowling Green: PhilosophyDocumentation Center Bowling Green State University, 1999, p.59-68.

MITCHELL, B. “Tradition”. In: QUINN, Ph. L.; TALIAFERRO, Ch.(eds.). A Companion to Philosophy of Religion. Oxford: BlackwellPublishing, 2005, p. 591-597.

MÖHLE, H. Ethik als scientia practica nach Johannes Duns Scotus. Einephilosophische Grundlegung. Münster: Aschendorff, 1995.

MOULE, C. F. D. As origens do Novo Testamento. São Paulo: EdiçõesPaulinas, 1979.

O’CONNOR, E. D. “The Scientific Character of Theology accordingto Scotus”. In: De doctrina Ioannis Duns Scoti. Acta CongressusScotistici Internationalis Oxonii et Edimburgi. Roma: CuraComissionis Scotisticae, vol. III, 1968, p. 3-50.

PATTE, D. Paulo, sua fé e a força do evangelho. São Paulo: Edições Paulinas,1987.

PICH, R. H. Der Begriff der wissenschaftlichen Erkenntnis nach JohannesDuns Scotus. Tese de Doutorado. Bonn: Rheinische Friedrich-Wilhelms-Universität Bonn, 2001.

Page 94: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

94

ROBERTO HOFMEISTER PICH

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 45-94, jan./jun. 2011

PICH, R. H. “Duns Scotus on the credibility of Christian doctrines”. In:Anais do XII. Congresso Internazionale di Filosofia Medievale (SIEPM),

Palermo, 16-22 settembre 2007 (em preparação).

PICH, R. H. “William E. Mann sobre a doutrina scotista da necessida-de do conhecimento revelado: segunda consideração”, Dissertatio, 21(2005), p. 7-59.

RICARDO DE SÃO VÍCTOR. (Richard de Saint-Victor). La Trinité –De Trinitate. Texte latin, introduction, traduction et notes de GastonSalet. Paris: Les Éditions du Cerf, 1959.

SCHELKLE, K. H. A Segunda Epístola aos Coríntios. Petrópolis: Vozes,

1984.

SEEBERG, R. Die Theologie des Johannes Duns Scotus. Einedogmengeschichtliche Untersuchung. Aalen: Scientia Verlag, 1971

(Neudruck der Ausgabe Leipzig, 1900).

SONDAG, G. Jean Duns Scot. Prologue de l’Ordinatio. Présentation ettraduction annotée de G. Sondag. Paris: Presses Universitaires de

France, 1999.

SONDAG, G. “Scolie”. In: Jean Duns Scot. Prologue de l’Ordinatio.Présentation et traduction annotée de G. Sondag. Paris: PressesUniversitaires de France, 1999, p. 129-133.

SWINBURNE, R. Revelation. From Metaphor to Analogy. Oxford:Clarendon Press, 1992.

TODISCO, O. Lo spirito cristiano della filosofia di Giovanni Duns Scoto.Roma: Edizioni Abete, 1975.

WOLF, H. W. “Principais problemas da profecia veterotestamentátria”.In: V.V.A.A. Profetismo. Coletânea de estudos. São Leopoldo: EditoraSinodal, 1985, p. 154-180.

VAN CLEVE, J. “Reid on the Credit of Human Testimony”. In: LACKEY,J.; SOSA, E. (eds.). The Epistemology of Testimony. Oxford: ClarendonPress, 2006, p. 50-74.

WOLTERSTORFF, N. P. “Faith”. In: CRAIG, E. (ed.). The Routledge

Encyclopedia of Philosophy. London/New York: Routledge, vol. 3,1998, p. 538-544.

Page 95: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

LIBERDADE E PREDESTINAÇÃO

95Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 95-113, jan./jun. 2011

LIBERDADE E PREDESTINAÇÃO.A NOVIDADE DELORENZO VALLA

Paula Oliveira e Silva *

Resumo: Lorenzo Valla é um pensador humanista, cujo perfil in-

telectual é difícil de definir. Filosofo? Literato? Filólogo? Teólogo? Este

mesmo facto é característica do Weltgeist humanista. É também um

autor pouco conhecido, ao menos no universo de fala lusófona. Neste

artigo damos a conhecer o conteúdo doutrinal do seu opúsculo De

libero arbítrio. Nele tece uma profunda crítica à Filosofia Escolástica,

tal como a entende, atacando-a pela raiz, isto é, centrando-se na figura

e na obra de Boécio e, nomeadamente, naquilo que diz ser a incoerên-

cia das teses do último romano acerca da conciliação entre liberdade

humana e presciência divina. Criticando o excesso de filosofia e de

razão que eiva a teologia do seu tempo, e em concreto a via moderni,

Valla indica o que considera ser a novidade do seu pensamento acerca

da questão em apreço: abandonar de vez a possibilidade de a entender

e viver, mediante a fé, o pré-destino que Deus determinou para o ter-

mo da existência humana. Valla é, aqui, claramente um representante

do fideísmo que caracteriza o movimento reformista.

* Doutorada em filosofia medieval, investigadora auxiliar do Instituto de Filosofia daUniversidade do Porto, Faculdade de Letras da Universidade do [email protected]

Page 96: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

96

PAULA OLIVEIRA E SILVA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 95-113, jan./jun. 2011

1 Valla, um espírito genuinamente crítico

Lorenzo Valla nasce em Roma em 1407 e, após uma existência

marcada de algum modo pela errância – Pavia, Florença, Milão e Ná-

poles, são algumas das cidades por onde passou – termina os seus dias

também em Roma, em 1457. É uma figura de excepcional importân-

cia não só para a cultura italiana, como também para compreender as

características de fundo que historicamente virão a configurar o

humanismo europeu. O objecto dos seus interesses, reflectindo-se na

sua obra, diversifica-se entre o gosto pela literatura, em particular pela

clássica, pela filologia – que o leva a adquirir competências linguísticas,

sobretudo no grego e no latim clássicos –, a apetência pela historiografia

e a compreensão do seu valor na reposição da verdade histórica, a filo-

sofia e a teologia.

Reunindo em si mesmo tal diversidade de saberes, Valla torna-se

efectivamente um modelo do ideal humanista do século XV. Interes-

sa-se pela cultura do seu tempo e pelas particulares tendências humanistas

que começam a assomar, não obstante o método escolástico se encon-

trar ainda vigente e pujante, mormente no plano institucional do ensi-

no universitário da filosofia e da teologia. Reflectindo a atenção do seu

autor aos sinais dos tempos, a obra de Valla responde quase sempre a

situações concretas, emergindo quer do debate com os círculos inte-

lectuais da época, quer da leitura dos autores de uma determinada tra-

dição que, com base em Boécio Auctor, ou na incontroversa auctoritas

de Aristóteles, desenham os elementos da cultura filosófica e teológica

então dominante. Ao método e estilo escolástico, Valla opõe a sua

dedicação à retórica e a preferência pelo estilo dialógico, às quais asso-

cia um espírito não particularmente conciliado com a metafísica.

Do ponto de vista da sua história pessoal, a ambição de Valla teria

sido ocupar o cargo de secretário papal, em Roma. O facto de não ter

conseguido obter esse lugar na Cúria Romana faz que se dirija a Pavia,

Page 97: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

LIBERDADE E PREDESTINAÇÃO

97Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 95-113, jan./jun. 2011

onde ocupará a cátedra de Retórica do Studium da cidade, lugar que

conseguira graças ao apoio de Antonio Beccadelli, dito o Panormita.

Todavia, o ambiente científico e cultural de Pavia não era particular-

mente dado aos estudos humanistas. De facto, o ensino universitário

aí ministrado, tal como em Pádua e Bolonha, estava forjado pelo

aristotelismo e pelo método escolástico, dificultando que aí se viessem

a enraizar os studia humanitatis1.

Em Pavia, Valla teve ocasião de aprofundar a sua posição crítica com

relação ao aristotelismo, à lógica dialéctica e ao método teológico

escolástico. Com efeito, o intercâmbio cultural que aí se vivia e a amizade

com personagens como Pier Candido Decembri e Maffeo Vegio, do ciclo

de humanistas da Lombardia, tê-lo-ão familiarizado progressivamente com

um modo de pensar crítico para com a dialéctica, sobretudo quando apli-

cada às questões teológicas. Ao mesmo tempo, a crítica à aplicação da

dialéctica ao direito, levada a efeito pelo circulo humanista de Pavia e Mi-

lão, é também assumida por Valla sobretudo no libelo Ad Candidum

Decembrium contra Bartoli Libellum cui titulus de insignis et armis epistola,

escrito em 1433 e endereçado a Decembri, contra o escrito De insignis et

armis do consagrado jurista Bártolo de Sassoferrato2.

O anti-aristotelismo, a oposição ao método jurídico, a adesão ao

método histórico-filológico são as notas características mais relevantes

do ambiente cultural humanista de Pavia que Valla levará consigo,

quando tiver de abandonar a cidade, dado o efeito adverso provocado

pela vinda a público do referido opúsculo contra Bártolo de

1 O próprio Petrarca, que aí havia permanecido entre os anos 1365 e 1369, terá sentidoa mesma adversidade, que relata na obra “De sui ipsius ac multorum ignorantia”,redigida em 1377, talvez mesmo em Pavia (ROSSI, V. V. “Il Petrarca a Pavia”, in: Studisul Petrarca e sul Rinascimento. Firenze, 1930, p. 3-81).

2 Este opúsculo foi editado em conjunto com o De libero arbitrio e a Apologia, em Viena(SINGRENIO, G. 1516) e na Basileia (CRATANDER, A. 1518).

Page 98: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

98

PAULA OLIVEIRA E SILVA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 95-113, jan./jun. 2011

Sassoferrato3. Valla acusa-o de ignorar a língua latina e a eloquência –

sem a qual os livros dos juristas romanos não se podem entender - e

de, por esse facto, interpretar erroneamente o direito, corrompendo as

normas da tradução. A perturbação que este escrito provocou na Uni-

versidade de Pavia, onde Valla ensinava retórica, valeu-lhe um pedido

de demissão e o correspondente abandono da cidade. Tais vicissitudes,

contudo, denotam principalmente uma divergência cultural e de lin-

guagem, reveladora do contraste cada vez mais evidente entre duas

formae mentis, a humanista e a escolástica.

Após uma breve estada em Milão e Florença, chega a Nápoles,

vinculando-se à corte de Afonso V de Aragão4, o Magnânimo, onde

permanecerá entre 1433 e 1448. Foram anos de produção fecunda,

nos quais redige algumas das suas obras principais, entre elas o escrito

De Linguae Latinae Elegantia e o opúsculo De libero arbitrio.

Afonso V soube rodear-se de não poucos humanistas e intelectuais

eminentes, como António Beccadeli, Bartolomeu Facio5, Giorgio di

Trebisonda, Teodoro de Gazza, Giannozzo Manetti e Gianantonio di

Pandoni dito Porcellio. Ao seguir Afonso V e a sua corte, Lorenzo

Valla pôde respirar o ambiente de uma verdadeira forja de cultura

humanística. Porém, se a protecção do Rei significou a possibilidade

3 Garin escreve, a propósito do espírito polemizante de Valla: “ Il Valla è semprecrudelmente polémico, e questo suo accento riveste di colori particulari, e quasi scandalosi,le antitesi di cui si compiace nei confronti dello passato” (GARIN, E. L’umanesimoitaliano. Laterza, Bari, 1993, p. 63).

4 Afonso V de Aragão, em 1416, I de Nápoles em 1435 e das Duas Sicílias em 1442.

5 Bartolomeu Facio, humanista ao serviço de Afonso V, historiador real e tutor doPríncipe Ferrante, redige uma obra, De vitae felicitate, contra o De vero bono, de Valla.Esta obra de Valla deu de facto origem a uma série de discussões sobre a condiçãohumana na segunda metade do século XV, que encerra uma tentativa de confrontar avisão cristã tradicional do homem e a realidade observável pela experiência humana.Explicitamente, três nomes estão envolvidos na controvérsia: António Beccadeli,Bartolomeu Facio e Lorenzo Valla. Veja-se a propósito Charles Trinkaus, In Our Imageand Likness, Vol. 1, p. 200-229.

Page 99: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

LIBERDADE E PREDESTINAÇÃO

99Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 95-113, jan./jun. 2011

de realizar os seus projectos literários e de terminar as obras já inicia-

das, contudo Valla não pôde ainda gozar do ócio em liberdade que

sempre ansiou e que considerava condição para se dedicar às artes libe-

rais. De facto, como secretário do Rei, deveria segui-lo, às vezes por

longos períodos, nos acampamentos e campanhas militares6. É neste

ambiente que redige o De libero arbitrio, obra que se encontra entres as

primeiras que elaborou durante o período napolitano.

2 O Diálogo De libero arbitrio: posição do problema

A questão acerca da natureza do livre arbítrio da vontade humana

e da sua conjugação com a presciência divina, ou a existência de uma

ordem universal, é um debate constante ao longo da História da Filo-

sofia. Ora, quando Valla acede a debater, com António Glarea, esta

mesma questão, indica, logo no Proémio, que pretende dizer algo de

próprio, novo e diferente de quanto foi dito pelos demais que se expres-

saram sobre o tema7. Em que consiste, então, esta especificidade?

A uma primeira leitura, o texto não apresenta, de facto, nada de

novo. Analisando o acto livre humano e a presciência de Deus, conclui

que em nada se contradizem, pela dissociação, em Deus, entre o acto

6 No Prefácio ao V Livro das Elegantiae, descreve assim a sua situação: “Já passei três anos,quase quatro, em constante peregrinação, indo de um lado para o outro, por terras e mares,com a campanha ainda recente e certamente despendi toda ela na milícia; mas não sei comcerteza se o fiz por decoro ou mais por necessidade. No entanto, mesmo que o não dissesse,não duvido que todos sabem com certeza que me faltaram todas as ajudas que são impor-tantes e mesmo essenciais para os estudos: leitura habitual, abundância de livros, lugaradequado, tempo disponível e por ultimo, ter o espírito sem outras ocupações” (VALLA, L.De linguae latinae elegantia. Introdução, tradução, edição critica e notas de S. LopezMoreda, Tomo II, Cáceres, 1999, p. 551: nossa tradução).

7 LA, 52-57: “E esforçar-me-ei por discutir e resolver todo este assunto com a máximadiligência que puder a fim de que, depois de todos os que escreveram acerca dele, eunão pareça ter raciocinado em vão. Com efeito, apresentaremos algo de nosso e diferen-te dos demais”.

Page 100: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

100

PAULA OLIVEIRA E SILVA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 95-113, jan./jun. 2011

de conhecer e o acto de exercer a sua vontade. Esta tese é uma constan-

te, nos textos que tratam a mesma questão, bastando recordar, por

exemplo, os diálogos de Agostinho e Anselmo ao propósito. Po-

rém, o diálogo é conduzido a termo por Valla numa direcção ines-

perada, a saber, a da predestinação, por parte de Deus, e a da graça,

dois conceitos cujo horizonte hermenêutico não é mais o da filo-

sofia, mas o da teologia. Acresce ao facto que, por se tratar do ente

supremo, os actos de predestinação e graça são totalmente inacessí-

veis para a mente humana.

Poder-se-ia, então, concluir que, mais do que uma peculiar solu-

ção para o problema proposto, a especificidade do modo de Valla se

posicionar ante ele reside no facto de considerar que a questão do livre

arbítrio e da sua compossibilidade, ou não, de integração numa ordem

maior, não é de âmbito filosófico, mas teológico, sendo, por isso – e

este é um pressuposto constante no pensamento deste humanista –

inacessível à razão. Ora, na óptica de Valla, esse parece ser o grande

equívoco gerado pelos filósofos em torno desta questão particular, sendo

Boécio, neste assunto particular, o principal réu no tribunal da histó-

ria. No contexto da obra de Valla, o De libero arbitrio insere-se assim,

como uma continuatio da crítica a Boécio que iniciara em De vero

bono, muito em particular ao De Consolatione Philosophiae.

Assim sendo, o De libero arbitrio é para Valla um veículo para

ampliar a sua crítica ao saber escolástico e aos pressupostos

epistemológicos da filosofia e da teologia, contestando o método de

ambos os saberes e a sua aplicação à concepção da moralidade e do

exercício da liberdade cristã. De facto, Valla assume o De consolatione

Philosophiae como emblemático de toda a escolástica, quer pelo con-

teúdo, quer pela metodologia, bem como pelo lugar central que esta

obra ocupou ao longo da Idade Média Ocidental. Esta obra e o seu

autor marcam de algum modo o início de uma nova era e permitem

delinear, em conjunto com os demais escritos de Boécio, a forma mentis

Page 101: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

LIBERDADE E PREDESTINAÇÃO

101Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 95-113, jan./jun. 2011

que será uma constante no Ocidente latino até ao século XII8. Ora,

Valla considera que o modo de entender a filosofia e a teologia, por

parte de Boécio, é em si mesmo pernicioso para a religião. Um tal

posicionamento esteve na origem, historicamente, do método

escolástico e da concepção de saber por ele veiculado, sendo necessário

pôr de manifesto o aspecto nefasto de uma tal proposta, por um lado,

e abrir novos itinerários à razão, por outro. Esta tarefa residirá, na óptica

de Valla, em boa parte, na retomada do que fora dito pelos Padres e da

recordação da essência da vera religio, a qual não está no poder da ra-

zão, mas na força da sobrenatureza divina.

Com efeito, escreve Valla, o erro de Boécio, que o levou a não

entender como devia a questão do livre arbítrio, foi o de não ter ama-

do a filosofia como devia9. Mas, como deveria, então, ter Boécio ama-

do a filosofia, na perspectiva de Valla? De certo modo, colocar a filo-

sofia ao serviço da religião comporta uma dupla perversão, inquinando

ambos os saberes. Ora, foi isso que a Idade Média, e a Escolástica com

seu exponente máximo, levaram a efeito, primeiro pela mão de Boécio,

posteriormente pela de Aristóteles. A crítica de Valla atinge, assim,

rejeitando-a, uma multissecular tradição filosófico-teológica. A esta,

opõe a christiana religio, em moldes que deixam de lado um sentido

determinado da inteligência da fé, que servira de base ao exercício da

filosofia como ancilla theologiae: o facto de a razão, identificada com

8 Sobre este assunto, veja-se COURCELLE, P. La consolation de Philosophie dans latradition littéraire. Paris, 1967. A obra do erudito francês analisa à exaustão as fontes deBoécio para a composição do De Consolatione, bem como a projecção desta obra aolongo da Idade Média, quer quanto à transmissão do texto, quer quanto à doutrina.

9 LA, 10-11: “(...) só o amor desmedido à filosofia levou Boécio, no Livro V da suaConsolação, a não raciocinar como devia acerca do livre arbítrio. [11] Na verdade, aosquatro primeiros livros respondemos na nossa obra sobre O Verdadeiro Bem. E esforçar-me-ei por discutir e resolver todo este assunto com a máxima diligência que puder a fimde que, depois de todos os que escreveram acerca dele, eu não pareça ter raciocinado emvão. Com efeito, apresentaremos algo de nosso e diferente dos demais”.

Page 102: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

102

PAULA OLIVEIRA E SILVA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 95-113, jan./jun. 2011

o modelo da lógica dialéctica, estar na base da ciência teológica. À

sanctissima religio, afirma Valla, as doutrinas dos filósofos não foram

senão prejudiciais, tendo estado na origem da maior parte das heresias.

Contra estas pugnaram os Apóstolos e os Padres, quais colunas do

templo de Deus – mais do que com a filosofia, que tantas vezes expul-

saram como fonte de erros –, pela prática das boas obras.

Afinal, o que Lorenzo Valla propõe – atitude que é comum a

outros humanistas da mesma época e que caracteriza afinal o próprio

humanismo – é a defesa de um novo paradigma de racionalidade. Este,

regressando às fontes dos Padres e dos Apóstolos em matéria de fé,

deve recolher-se à autoridade dos Antiquii, mais do que enveredar pela

nova via modernorum. Para transmitir a doutrina de sempre, deverá

apurar as artes da comunicação, fundamentalmente da retórica, bem

como cingir-se ao apuramento da verdade histórica mediante o recur-

so ao método histórico-filológico10. Por seu turno, opondo-se vee-

mentemente à instrumentalização da filosofia por parte da teologia,

que caracterizou a escolástica aristotélica-tomista, Valla apresenta a

rethorica como alternativa ao problema da mediação epistemológica

entre esses dois saberes fundamentais. Desta forma, propunha-se ins-

taurar o estatuto humanista da teologia11.

A especificidade do posicionamento de Valla em face da discussão

sobre a natureza do livre arbítrio é a compreensão da destinação huma-

na no contexto de uma salvação sobrenatural, operada pelo Deus da

10 Exemplo dessa paixão pela historiografia é a obra escrita enquanto secretário, conse-lheiro e historiógrafo de Afonso V: Historiarum Ferdinandi Regis Aragoniae libri tres(1446/1447). Do apuramento do texto à luz da filologia é resultado a Collatio NoviTestamenti, cuja segunda redacção foi publicada por Erasmo em 1505, em Paris. E,associando aqueles dois saberes, o histórico e o filológico, Valla escreve o De falso creditaet ementita Constantini donatione declamatio.

11 Sobre esta proposta de Valla, e o modo como ela é articulada no interior da sua obra,veja-se “La rethorica come modus tehologandi”, no capítulo II da obra de S. Camporeale,Lorenzo Valla...., p. 226-265.

Page 103: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

LIBERDADE E PREDESTINAÇÃO

103Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 95-113, jan./jun. 2011

revelação judeo-cristã. É este o horizonte desse diálogo do humanista

romano, o qual, porém, só é desvendado claramente já no final do

opúsculo, mormente à luz da selecção de textos paulinos aí levada a

efeito por Valla. Todavia, antes de concluir por esta tese de cepticismo

racional face ao conhecimento do modo de agir de Deus, o debate

tido com António Glarea, de que De libero arbitrio deixa constância,

inicia-se com uma análise da própria tese boeciana acerca da relação

entre a presciência divina e o livre arbítrio.

Reconhecendo a um tempo quer a arduidade do problema, quer a

necessidade de o esclarecer12, Valla nega-se a aceitar as respostas dadas

pela tradição filosófica, incluindo a de Severino Boécio. Não recusa

que o posicionamento da questão por parte deste seja exacto, mas sim

que o seja a solução apontada, a qual, todavia, foi considerada por

uma tradição multissecular como sendo a melhor. Aliás, Valla retoma

o debate justamente a partir do posicionamento boeciano, assumin-

do-o como próprio. Porém, onde Boécio pensa ter solucionado a ques-

tão, Valla encontra uma limitação essencial, operada pela razão filosó-

fica quando, erroneamente, e extrapolando a sua limitação natural, se

julga capaz de penetrar nos segredos divinos.

3 Presciência divina e liberdade humana

No livro V de De Consolatione, Severino Boécio soluciona o con-

flito entre presciência divina e liberdade humana invocando a

especificidade do conhecimento de Deus. A solução boeciana incide

numa análise do modo do conhecer divino, sublinhando a diferença

entre tal modo de conhecer, eterno e necessário, e o conhecimento

12 LA, 80: “Ant. - A questão acerca do livre arbítrio, da qual depende tudo o que serefere às acções humanas, toda a justiça e injustiça, todo o prémio e castigo, e não sónesta vida como também na futura, parece-me extremamente difícil e particularmenteárdua”.

Page 104: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

104

PAULA OLIVEIRA E SILVA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 95-113, jan./jun. 2011

humano, sujeito aos condicionamentos da alma unida ao corpo e à

sucessão temporal13. Boécio distingue, da mesma forma, uma necessi-

dade per se, que é própria de Deus, e uma necessidade condicionada,

específica das realidades contingentes, entre as quais se conta o poder

humano de escolha. Na base destas categorias, afirma a coexistência de

um conhecimento necessário, por Deus e para Deus, de tudo o que

sucede, sem que tal acto divino condicione ou determine a escolha

humana14. Valla, por seu turno, tece uma dura crítica a esta postura

boeciana. Como pode a razão humana, que acaba de ser descrita como

limitada e sujeita ao tempo, sendo essa a base do argumento, penetrar

na essência da divindade, afinal, conhecer a mente suprema de Deus?

Por isso, o raciocínio de Boécio surge a Valla como contraditório,

baseado em elucubrações e sobretudo um atentado ao primado de

Deus sobre a razão humana15.

13 BOÉCIO, S. De Consolatione, V, 6, 2-3: “Deum igitur aeternum esse cunctorumratione degentium commune iudicium est. Quid sit igitur aeternitas, consideremus;haec enim nobis naturam pariter divinam scientiamque patefacit”. No seguimento,define, com base neste conhecimento humano da inteligência divina, o que é a presci-ência: “Si praesvidentiam pensare velis, qua cuncta dinoscit, non esse praescientiamquasi futuri, sed scientiam numquam deicientis instantiae rectius aestimabis”. Boéciosoluciona a questão anulando a própria noção de presciência. Tratar-se-ia, afinal, de umconhecimento de presença, ante o qual a percepção do futuro é inadequada (Cf. Ibid.V, 6, 31-32).

14 Cf. BOÉCIO, S. De Consolatione Philosophiae, V, 4, 21-36.

15 A crítica à posição de Boécio e aos limites da razão é introduzida pela fala de António.LA, 149-164: “E nos demais assuntos não rejeito os escritores, pois ora um, ora outrome parece dizerem coisas prováveis. Mas no assunto acerca do qual desejo falar contigo,seja-me dada a tua benevolência e a dos demais: absolutamente nenhum deles tem omeu assentimento. Na verdade, que direi dos outros, quando o próprio Boécio, a quemtodos dão a palma na explicação desta questão, não sendo capaz de levar a cabo a suatarefa, se refugia em certas realidades imaginárias e fictícias? Com efeito, diz que Deuspela sua inteligência, que está acima da razão, e pela sua eternidade, sabe tudo e temtudo na sua presença. Eu porém, que sou racional e nada conheço fora/à margem dotempo, a que conhecimento da eternidade e da inteligência poderei aspirar? Suspeitoque estas coisas certamente nem o próprio Boécio as entendeu, se o que disse é verdade,coisa que não creio”.

Page 105: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

LIBERDADE E PREDESTINAÇÃO

105Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 95-113, jan./jun. 2011

Qual é, então, a solução de Valla e o seu contributo para o esclare-

cimento da questão? Valla não concebe a oposição entre presciência e

liberdade a partir de um modelo de conhecimento específico da divin-

dade, mas a partir da experiência humana do conhecimento prévio16.

Neste sentido, recorda o debate ocorrido entre Agostinho e Evódio,

alguns séculos antes daquele registrado entre Boécio e a Filosofia. Com

efeito, no terceiro livro do Diálogo sobre o Livre Arbítrio, é debatido

precisamente o mesmo problema e conclui-se que as dificuldades deri-

vam não tanto da divindade da presciência, mas da relação entre o

conhecimento de outro face à acção livre de um terceiro17. Este pressu-

posto é coincidente com o de Valla, para quem a previsão de um acon-

tecimento não é causa eficiente dele18. No modelo de Agostinho, o

debate prossegue apurando a análise e fixando o problema não com

relação a um conhecimento eterno de acções que se desenrolam no

tempo – proposta que se viu ser a de Boécio – mas por referência ao

conhecimento dos futuros, pois só com relação a estes se coloca a ques-

16 LA 252-253: “Não dirás que algo seja por tu saberes que é”.

17 Diálogo sobre o Livre Arbítrio (DLA), III, IV, 10. “A. – De onde te parece provir estacontradição entre a presciência de Deus e o nosso livre arbítrio? É por se tratar depresciência ou por ser presciência de Deus? E. – É mais por ser de Deus. (...)” Após odebate com Agostinho, Evódio reconhece que o que faz a presciência dos futuros umconhecimento necessário é a própria noção de presciência – conhecimento antecipado.Conclui Agostinho: “A. – (...) não é por ser presciência de Deus que é necessário queaconteça o que ela conhece de antemão, mas tão-somente por ser presciência, a qualseguramente não existe se não conhecer coisas certas” (Trad. de Paula Oliveira e Silva,INCM, Lisboa, 2001, p. 267-269).

18 LA, 248-255: “Ainda não vejo por que razão te parece que da presciência de Deusdecorre a necessidade das nossas acções. Se, de facto, prever que algo virá a existir, fazque venha a existir, seguramente saber que algo é faz igualmente que seja. Mas seconheço a tua inteligência, não dirás que algo seja por tu saberes que é. Por exemplo,saber que agora é de dia. Porventura é por saberes isso que o dia é? Ou pelo contrário, éporque é o dia que sabes que é de dia?”

Page 106: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

106

PAULA OLIVEIRA E SILVA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 95-113, jan./jun. 2011

tão da incerteza e da variabilidade19. Ora, a presciência divina confere,

a este futuro incerto (para nós), um determinismo absoluto, pois as

coisas terão de ocorrer tal como Deus as prevê. António Glarea leva o

raciocínio até à aporia, pois a ser assim, a liberdade humana de escolha é

anulada. Mas se, inversamente, se afirmar que as coisas acontecem de um

determinado modo, e é por isso que Deus as prevê, a presciência de Deus

torna-se necessária (e, inclusivamente, de algum modo, subordinada aos

acontecimentos), o que introduz em Deus a contradição própria de um

conhecimento necessário de realidades contingentes.

Às aporias de Glarea, Valla responde com duas teses que também

se encontram em Agostinho. Por um lado, o facto de o conhecimento

prévio de Deus respeitar a natureza das coisas que conhece. Deste modo,

Deus conhece as acções humanas enquanto resultados de uma decisão

livre da vontade que as pratica20: de que modo pode Deus ignorar a

acção, se não ignora a vontade que é fonte da acção?21 Quanto à segun-

da dificuldade que decorre da introdução em Deus de um conheci-

mento necessário do contingente – Valla responde com a infinita per-

feição do conhecimento de Deus. O facto de Ele não poder não prever

19 LA, 271-274: “Assim, nestas realidades temporais admito que não é por algo ter sido,ou ser, que sei que é desse modo, mas sei que assim é porque isso é ou foi. Mas oraciocínio acerca do futuro é diferente, porque é variável e não pode conhecer-se comcerteza, porque é incerto”.

20 LA, 233-236: “Pelo facto de Deus prever algo que será feito pelo homem, não hánenhuma necessidade em que o faça, porque o faz voluntariamente. Ora o que é voluntárionão pode ser necessário”. Em DLA III, III, 8: “Como Deus conhece de antemão a nossavontade, existirá a própria vontade, que Ele conhece de antemão. A vontade existirá,portanto, porque a presciência de Deus é de uma vontade. Mas não poderia tratar-se deuma vontade se não estivesse em nosso poder. Deus é também presciente de tal poder.Assim, não é pela presciência de Deus que este poder me será arrebatado. Ele até mepertencerá com mais segurança, na medida em que Deus o conhece de antemão, poisAquele cuja presciência não se engana conheceu de antemão que este poder me pertence-ria” (AGOSTINHO, Diálogo sobre o Livre Arbítrio… p. 267).

21 Cf. LA, 339-340.

Page 107: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

LIBERDADE E PREDESTINAÇÃO

107Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 95-113, jan./jun. 2011

o futuro é manifestação não de uma imperfeição da sua natureza mas

de um excesso da sua sabedoria22.

Um derradeiro passo na análise da relação entre presciência e liber-

dade humana é dado pela distinção entre futuros contingentes e futu-

ros livres. Aqueles primeiros sucedem dentro de uma ordem natural

das coisas, a qual está na base de uma certa presciência que também se

encontra em toda a ciência humana dos fenómenos naturais, e que é

exemplo a medicina ou a agricultura. A base de um tal conhecimento

é a constância das relações causa-efeito, expressa nas leis da natureza. O

mesmo não sucede com as acções humanas. Sendo estas causadas pela

possibilidade de escolha, nenhuma determinação prévia as poderá an-

teceder. Ora a pura indeterminação delas faz ou que Deus não as possa

prever ou, se pode, que elas não sejam efectivamente livres. No exem-

plo retirado das fábulas de Esopo, discute-se precisamente este aspec-

to23. A essência da questão é a distinção, nas acções humanas, entre um

domínio de possibilidade e a decisão efectiva, considerados por Valla

como dois planos de realidade distintos. De facto, só sobre esta última

incide a presciência, pois no plano da pura possibilidade de escolha os

próprios contrários são compossíveis24.

Mas a novidade da proposta de Valla estará, sobretudo, no que

emerge da fábula de Sexto Tarquínio, com a qual estabelece o limite

racional de compreensão do problema em análise, dando por encerra-

do o debate25. A fábula é acerca da consulta que Sexto fez a Apolo,

sobre o que lhe viria a acontecer. Apolo profere um oráculo sumamen-

te desfavorável a Sexto, informando-o de que morrerá na miséria e no

exílio. Suplicando Sexto que lhe altere o futuro, Apolo responde que

22 Cf. LA, 290-294.

23 Cf. LA, 320-385.

24 Cf. LA 405-414.

25 Cf. LA 453-575.

Page 108: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

108

PAULA OLIVEIRA E SILVA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 95-113, jan./jun. 2011

não o pode fazer, pois apenas conhece factos, não os elabora ou determi-

na. Ora, Sexto fará livremente os actos que o conduzirão àquele desti-

no desafortunado. Mas o infortúnio, que Sexto não deseja e contudo

lhe ocorrerá contra sua vontade, a quem deverá ser imputado? Apolo,

no diálogo imaginado, responsabiliza Júpiter, o Deus em cujas mãos

está o poder e o querer dos destinos, pois a ele cabe a decisão de que

assim acontecerá 26.

Qual é, afinal, a força da fábula? Ela é revelada, mediante a inter-

pretação de Valla, em De libero arbitrio 576-584: se é verdade que em

um só Deus (que os gentios não possuíam, e por isso apresentam em

duas personagens) não se podem separar a sabedoria e o poder da von-

tade, também é um facto que, aquilo que a presciência não torna ne-

cessário se deve submeter à vontade divina: hoc, quidquid est, totum ad

voluntatem Dei esse referendum. Assim, apelando para a potência ab-

soluta da justíssima vontade de Deus, e insistindo nos limites da razão

humana, Valla orienta o debate para o contexto da adesão fiducial.

4 O divino e o humano no concurso das vontades

Ante o postulado da absoluta vontade de Deus, à qual tudo se

refere, o diálogo sofre uma inflexão. Se até agora ele fora conduzido

no domínio da razão dos filósofos, a partir de agora, abandonada esta à

sua limitação, o discurso avançará no plano da fé. Estas duas formas de

conhecimento são claramente distintas: estamos firmes na fé, não na

probabilidade da razão27. Para esta, é inacessível tudo o que se refere à

ordem divina. Inversamente, aquela deve importar para si uma dupla

certeza: a da bondade de Deus e a da inacessibilidade dos seus desígnios.

26 LA, 476-480: “Acusa Júpiter, se for do teu agrado, acusa Parcas, acusa a fortuna deonde procede a causa de tudo o que acontece. Está nas mãos deles o poder e o quererdos destinos, nas minhas está apenas a presciência e a predição”.

27 Cf. LA 792-793.

Page 109: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

LIBERDADE E PREDESTINAÇÃO

109Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 95-113, jan./jun. 2011

Deste modo, o raciocínio da fé deve comportar um juízo maximamen-

te benévolo acerca do incompreensível28, por um lado, e por outro, a

certeza do carácter arcano do agir divino para a razão humana29.

O que está em discussão, nesta terceira e última parte do diálogo,

é saber se a vontade de Deus anula, ou não, a liberdade de escolha30.

Valla afirma não ter solução para a resposta no plano da razão filosófi-

ca, e convida António a procurar outro mestre. O diálogo abandona,

então, o comentário a Boécio, investindo sobre o texto bíblico, con-

cretamente sobre a Epístola de S. Paulo aos Romanos31. O horizonte

hermenêutico é agora o da história da salvação, na versão específica

que dela possui a religião judaico-cristã. Na base, como se referiu, está

a convicção de potência absoluta de Deus, a qual sempre se exerce a

fim da maior expressão de bondade. Neste quadro, Valla pode afir-

mar, a um tempo, que Deus age sobre os indivíduos, quer endurecen-

do a sua vontade, quer usando de misericórdia para com eles, e, no

entanto, eles são livres de escolher o próprio curso a imprimir à sua

vontade, não lhes sendo, por isso, retirada a responsabilidade no agir.

Acresce a estes elementos a vontade salvífica universal de Deus, cuja

operatividade se levou a efeito mediante a morte do Cristo histórico32.

28 Deus é sapientíssimo e óptimo; o que é bom só pode agir bem (cf. LA 664-666). Aideia de Deus como noção suprema é uma constante na história da filosofia ocidental enela se baseiam os argumentos de Agostinho, em De libero arbitrio, o de Anselmo, noProslogion, e a 4ª via de Tomás de Aquino, na S. Th, I, q. 2. Por seu turno, é estaconcepção de um Deus sumamente bom que age necessariamente pelo melhor, quepermitirá a Leibniz, a quem este opúsculo de Valla não passou despercebido, concebereste como o melhor dos mundos possíveis.

29 A razão oculta da causa do agir divino está numa espécie de tesouro escondido (cf. LA675-676).

30 Cf. LA 585-593.

31 Os textos referidos por Valla são Rom. IX, 11-12 e Rom. 11, 33.

32 Cristo, sabedoria e virtude de Deus, diz que quer que todos os homens se salvem eque não quer a morte dos pecadores, mas que se convertam e vivam. Esse facto devepermitir aos humanos confiar nesse desígnio (Cf. LA, 784-787).

Page 110: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

110

PAULA OLIVEIRA E SILVA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 95-113, jan./jun. 2011

O raciocínio de Valla é assaz complexo. Antes de mais, na lição da

fábula de Sexto Tarquínio, insinuou que, em Deus, a sabedoria e a

vontade não são o mesmo, conclusão que agora irá explorar. Depois,

ao postular uma vontade de Deus absoluta, mostrará que ela pode agir

sobre os indivíduos, no que se refere à relação deles com o divino. Esse

facto não obsta às livres acções dos homens, mas apenas ao modo

como Deus actua neles e, por meio deles, na relação com o conjunto

dos homens. Quanto à relação, em Deus, entre a sabedoria e a vonta-

de, Valla afirma que os actos desta se submetem àquela, tornando-se,

por isso, totalmente incompreensíveis para a razão humana, mesmo se

muito santa e próxima do divino, como sucedia com S. Paulo, e

mesmo no caso da inteligência angélica que tem o privilégio de conhe-

cer Deus por intuição. Valla considera totalmente inacessível a qual-

quer razão criada a compreensão dos desígnios da sabedoria divina: a

vontade de Deus tem uma causa antecedente que reside na sabedoria de

Deus. Essa causa é absolutamente justa, porque é de Deus, tornando-se

para nós e pelo mesmo motivo absolutamente incógnita33.

Quanto à relação de Deus com as liberdades criadas, angélicas ou hu-

manas, ele pode agir, e age de facto, endurecendo umas e sendo favorável a

outras. Este facto – e aqui reside alguma novidade, da parte de Valla – não

decorre de uma queda original. Ele é, necessariamente, anterior à queda. De

outra forma não seriam compreensíveis a actuação de Adão e a consequência

dela. Analisemos a interpretação de Valla neste assunto particular, que se

prende com a explicação de uma queda original e das suas consequências

para o género humano. Adão pecou por livre escolha. Porém, esse facto

não corrompe a sua natureza, nem a matéria de que ele foi feito por Deus

– a especificidade da sua natureza, racional e livre. Esta mantém-se naque-

les que são toda a sua descendência, ou seja, no género humano. Não há,

de facto, uma corrupção da natureza. Que sucede, então, na natureza hu-

33 Cf. LA 660-665.

Page 111: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

LIBERDADE E PREDESTINAÇÃO

111Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 95-113, jan./jun. 2011

mana, depois do pecado livre de Adão? Pecaram com ele todos os

homens? Degradou-se a matéria original criada por Deus? Nenhuma

das soluções faz sentido, para Valla. O que sucede é que a vontade dos

homens foi endurecida. Por quem? Pela vontade de Deus. De que modo

ela pode ser regenerada? Pela morte de Cristo34. Qual a causa de que a

vontade divina endureça uns e use de misericórdia para com outros? Esta

razão é impossível indagar35.

Uma semelhante posição para a relação entre as vontades divina e

humana, se é certo que não anula a liberdade de escolha, pelo menos

debilita-a na sua autonomia. Em última instância, sobre a liberdade de

escolha, e mais além dela, exerce-se uma vontade suprema. Esta acaba

por intervir na humana, ao menos numa certa orientação da existência

humana, para Deus ou contra ele, para o bem ou para o mal. Se é

verdade que Valla não emprega aqui o termo predestinação - porventura

por o considerar mais próximo de uma presciência (o conhecimento

de um destino prévio) do que de uma consideração da vontade abso-

luta de Deus – as fronteiras entre liberdade e destino/desígnio são aqui

efectivamente assaz ténues. É certo que o acto humano permanece

livre: é cada homem que escolhe em cada acto. Porém, não deixa de o

fazer em função da determinação de uma vontade suprema e absoluta

que, se não anula a capacidade de escolha, não permite ao ser humano

querer de outro modo.

A proposta não deixa de ser interessante, pois desta forma Valla

pretende conciliar o exercício individual da liberdade de escolha com a

afirmação de uma ordem suprema e universal, a qual é sempre benéfi-

ca e quer para todos o melhor dos bens. Perante tal posição, é fácil

compreender a leitura que a posteridade dela fará. Os reformadores,

34 Cf. LA 681-729.

35 LA, 775-777: “A causa da vontade de Deus, que endurece uns e se compadece deoutros, não é conhecida nem dos homens, nem dos anjos”.

Page 112: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

112

PAULA OLIVEIRA E SILVA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 95-113, jan./jun. 2011

como Lutero e Calvino, observando a garrafa meio vazia – isto é, ficando

com a dimensão negativa de uma predestinação anunciada e de uma liber-

dade cujo exercício escapa à escolha humana – defenderão a tese da massa

damnata e de uma impossibilidade de o livre arbítrio do homem contri-

buir, efectivamente, para a salvação dele. Esta será sempre obra da graça, a

qual é à partida, sectária, com a agravante do carácter arcano, para não dizer

aleatório, do critério de selecção entre justos e injustos. Fixando-se na gar-

rafa meia cheia, o posicionamento de Valla servirá a Leibniz, mediante

alguns ajustes, de base para a ilustração da sua tese acerca do melhor dos

mundos. De facto, no final do Livro III dos Ensaios de Teodiceia, Leibniz

reproduz alguns trechos deste opúsculo de Valla, fazendo incidir o seu

comentário na fábula de Sexto Tarquínio36. Depois, corrigindo a interpre-

tação de Valla, levando-a mais longe retira dela uma nova força. Numa

linguagem simbólica, completa a narração de Valla. Teodoro, pai de Sex-

to, é levado ao reino de Parcas, onde lhe é permitido contemplar as acções

de Júpiter, não apenas reais, mas também as possíveis. Aí, visualiza as

diferentes possibilidades da existência de Sexto e compreende que, de

entre elas, Júpiter executou a melhor, a de um Sexto que elegeu ser

perverso. Com efeito, as escolhas de Sexto não pertencem a Júpiter,

mas apenas o ser dele37.

Também Valla considerara, de algum modo, este mundo de pos-

síveis, ao menos aplicado às escolhas individuais38. Leibniz leva esta

36 LEIBNIZ , Essais de Théodicée, III, 406-412. Préface et notes J. Jalabert. Paris, 1962,p. 270-374.

37 Essais de Théodicée, III, 416 : « mon père [ de Parca] n’a point fait Sextus méchant. Ill’était de toute éternité, il l’était toujours librement».

38 LA 405-411: “É muito diferente o facto de que possa acontecer e o facto de vir aacontecer. Posso casar-me, posso ser soldado ou sacerdote. Porventura se segue imediata-mente que o serei? De modo nenhum. Se é verdade que posso agir de modo diferente doque virá a acontecer, contudo não ajo de modo diferente, e estava nas mãos de Judas nãopecar, embora tivesse sido previsto, mas ele preferiu pecar, facto que já assim tinha sidoprescrito. Portanto, a presciência é confirmada, permanecendo a liberdade de escolha”.

Page 113: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

LIBERDADE E PREDESTINAÇÃO

113Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 95-113, jan./jun. 2011

possibilidade às últimas consequências e aplica-a, mediante a actividade

criadora de Deus, à totalidade do universo. Exercendo-se mediante a

livre escolha dos seres racionais e livres, a própria liberdade se insere no

domínio mais amplo de uma vontade e sabedoria absolutas de bonda-

de e felicidade. O resultado só pode ser a efectivação do melhor dos

mundos a um tempo livre, maximamente feliz e sumamente bom.

Referências

AGOSTINHO DE HIPONA. Diálogo sobre o livre arbítrio. Tradução e

introdução Paula Oliveira e Silva, Lisboa, 2001.

BOECIO, S. La consolazione della filosofia. Turim, 2004.

CAMPOREALE, S. Lorenzo Valla. Umanesimo, Reforma eControriforma. Studi e Testi. Roma, 2002.

COURCELLE, P. La consolation de Philosophie dans la tradition littéraire.Paris, 1967.

FUBINI, R. Umanesimo e secolarizzazione da Petrarca a Valla. Roma,

1990.

GARIN, E. L’Umanesimo italiano. Laterza, Bari, 1993.

KEßLER, E. Lorenzo Valla. Über den freien Willen. München, 1987.

LEIBNIZ, G. Essais de Théodicée. Paris, 1962.

RIBEIRO DOS SANTOS, L. Linguagem. Retórica e Filosofia no

Renascimento. Lisboa, 2004.

ROSSI, V. “Il Petrarca a Pavia”, in: Studi sul Petrarca e sul Rinascimento.Firenze, 1930, p. 3-81.

TRINKAUS, Ch. In Our Image and Likness, Humanity and Divinity in

Italian Humanist Thought. Vol I-II, Notre Dame-Indiana, 1995.

VALLA, L. De linguae latinae elegantia. Introdução tradução, edição cri-tica e notas de S. Lopez Moreda, Vol. I-II, Cáceres, 1999.

Page 114: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

114

PAULA OLIVEIRA E SILVA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 95-113, jan./jun. 2011

Page 115: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO ANTÔNIO...

115Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011

A OBRA SERMONÁRIA DE SANTOANTÔNIO E UM OLHAR SOBRE A

EXEGESE BÍBLICA MEDIEVAL*

José Antônio de C. R. de Souza **

Pretendemos com este estudo, fundamentado na opera antoniana e

na bibliografia especializada, apresentar ao leitor o desconhecido Magister

estudioso e culto que, em seus escritos, soube habilmente conciliar a tradi-

ção exegética monástica com as inovações introduzidas por intelectuais

que o precederam nos séculos imediatamente anteriores.

Com efeito, alguém que, desavisado tomasse em suas mãos, pela

primeira vez, a edição bilíngue em latim e português1 dos Sermões

Dominicais e Festivos2 de Santo Antônio, pensaria tratar-se de um con-

junto de prédicas ou homilias que ele escreveu e proferiu, alusivas a

** Professor Titular aposentado da Universidade Federal de Goiás-Goiânia, Brasil edocente do Gabinete de Filosofia Medieval do Instituto de Filosofia da Faculdade deLetras da Universidade do Porto.

1 CAEIRO, Francisco da Gama. Santo António de Lisboa, vol. I, Lisboa, IN-CM, 2ªed., 1995, p. 185-186: “... elegante, de excelente contextura, que o misticismo antonianoainda mais avivou, com extrema riqueza e variedade de vocabulário, fazendo lembrar alinguagem dos tempos áureos de Roma e presumir a leitura pelo Santo, decerto emCoimbra, dos prosadores e poetas clássicos...”.

2 REMA, Cf. Henrique Pinto, OFM, Santo António de Lisboa, Obras Completas, Ser-mões Dominicais e Festivos, vols. I e II, Porto, Lello e Irmão, 1987. Iremos usá-la nestetrabalho e ao transcrever ou citar um trecho, sempre indicaremos o sermão, o volume ea página em que se encontra.

Page 116: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

116

JOSÉ ANTÔNIO DE C. R. DE SOUZA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011

cada evangelho dominical3 ou para missas festivas em louvor, da Vir-

gem Maria, dos Santos, e etc., ao final da leitura do Evangelho ou,

conforme se diz hoje, da Liturgia da Palavra, de acordo com o que

acontece nas missas, há muitos séculos, em que o oficiante ou outrem

retira das leituras ou, particularmente, de uma delas, ensinamentos

que visam à instrução religiosa e moral dos fiéis, bem como ao seu

engajamento na vida eclesial quotidiana. Essa mesma pessoa, tendo ouvi-

do dizer ou lido algures que o Santo foi um famoso pregador que conver-

teu muita gente, também poderia ser levada a crer que eram sermões po-

pulares4 que ele teria dito, como os pregavam os sacerdotes na Idade Mé-

dia e antigamente, hauridos, sim, nas Escrituras, mas, pregados numa lin-

guagem rica em exemplos, muitos dos quais terrificantes ou piegas, com o

fito de, primeiramente, assustar ou comover os fiéis, e depois, levá-los a

conhecer e a compreender as verdades da fé e a refletir sobre a sua conduta

religiosa e moral, e, enfim, estimular neles a prática da doutrina cristã.

Na verdade, os Sermões antonianos não são isso.

Em primeiro lugar, convém esclarecer o leitor de que Santo Antô-

nio pregou, principalmente, ao povo em geral, em português arcaico,

em ocitano ou provençal e em vêneto, nos lugares onde exerceu o

ministério sacerdotal. Entretanto, esses sermões jamais foram escritos.

Com certeza, também, há que ter pregado em latim, em determinadas

ocasiões, dirigindo-se, por exemplo, aos seus confrades franciscanos,

naturais e provenientes de vários lugares, reunidos em Capítulo, pro-

vincial ou geral, ou em retiro espiritual; aos prelados francos reunidos

em sínodo nacional; aos cardeais da Cúria Pontifícia e a Gregório IX

3 SILVEIRA, Ildefonso, OFM “Santo Antônio Pregador Modelo de Evangelizador”,RHEMA 4 (1995), p. 25: “...Falo em domingos e não em sermões, pois às vezes omesmo Domingo encerra, além de várias partes do sermão ou cláusulas, também ser-mões morais, alegóricos e anagógicos, que constituem outros esquemas e temas...”.

4 CANTINI, Gustavo, OFM Conv., “La tecnica e l’indole del Sermone medievale edi Sermoni di S. Antonio da Padova”, Studi Francscani, 31 (1934) p. 64: “... consistevanel dire de buone cose di esortazione e di edificazione, senza tema fisso e obligato, senzacurarsi di riminiscenze bibliche; ma parlando sopra tutto ex abundantia cordis ...”.

Page 117: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO ANTÔNIO...

117Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011

(1227-41), o qual deu testemunho desse acontecimento5 e a Assidua

ou Legenda Prima, a hagiografia mais antiga a seu respeito (c.1231-

32), o registrou6. Mas, igualmente, não se pode afirmar, categorica-

mente, que, na íntegra, tais prédicas tenham sido incluídas nos predi-

tos sermões. No entanto, podemos supor que, ao escrevê-los, lançou

mão de muitos trechos deles todos.

Em segundo lugar, ainda, convém dizer que o título suprareferido,

dado à opera antoniana, não pode ser tomado literalmente ao pé da

letra, pois, na verdade, há quatro sermões, integrantes do primeiro

conjunto que especificamente foram escritos em louvor da Virgem

Maria, e um número considerável deles multiplica-se em outros tan-

tos sermões mais breves de determinados tipos, conforme, adiante,

voltaremos a dizer algo.

Atualmente, ninguém dúvida de que o Santo tenha efetivamente

escrito esses sermões, aliás, como ele mesmo o diz, entre outros moti-

vos, «a pedido dos irmãos», graças ao estabelecimento crítico dos tex-

tos, trabalho esse, primeiramente, efetuado por Antonio Maria Locatelli

e sua equipe, o qual, há pouco mais de vinte anos, foi ampliado e

aperfeiçoado por um grupo de estudiosos que os publicaram em três

volumes7. Mas não é descartável a hipótese de que, nos próximos anos,

5 Cf. Bula Cum dicat Dominus, 23 de junho de 1232, in BF, 4 vols. ed. por J. H.Sbaralea, v. I, p. 79-81.

6 Cf. c. X, a tradução é nossa: “... O Altíssimo deu-lhe o dom de despertar tal estima nosveneráveis príncipes da Igreja, que o Sumo Pontífice e todo o colégio de cardeais escu-taram com devoção ardentíssima seus sermões. De fato, sabia tirar das Escrituras signi-ficados tão originais e tão profundos, com notável eloquência, que o próprio papa, comuma expressão muito pessoal, chamou-o de Arca do Testamento ...”.

7 PACHECO, Maria Cândida Monteiro. “Santo António de Lisboa”, in: História do Pensa-mento Filosófico Português, dir. Pedro Calafate, v. I, Idade Média, Lisboa, Caminho, 1999,p. 193: “... A autenticação crítica da sua obra iniciou-se com A. M. Locatelli e concluiu-secom a última Edição Crítica de Pádua, de 1979, que publica os textos considerados isentosde qualquer dúvida, agrupando-os nas designações Sermones Dominicales et Festivi ...”.Cf. também REMA, Henrique P. OFM, Introdução, op. cit., p. XXXIV-LV.

Page 118: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

118

JOSÉ ANTÔNIO DE C. R. DE SOUZA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011

venham a ser identificados outros sermões que se encontram no Códice

do Tesouro de Pádua como da lavra do Santo8. Tampouco, ninguém

põe em causa que a opera antoniana contêm dois conjuntos específi-

cos, embora, de certo modo, inter-relacionados.

Desde os anos oitenta9 e especialmente a partir do importante

Congresso antoniano de 1981, comemorativo dos 750 anos da morte

do Santo, uma questão tem sido objeto de pesquisa e debate entre os

antonianistas, qual seja, a de tentar determinar, com precisão, quando

exatamente teriam sido escritos os Sermões Dominicais, apesar de a

Assidua afirmar que o foram, entre 1227-30, durante a primeira esta-

da do Santo em Pádua10, enquanto exercia o cargo de ministro pro-

vincial dos Menores da província da Romanha.

Os estudiosos estão divididos. Um bom número deles mantém-se

fiel à indicação fornecida pela Assidua. Um outro grupo de pesquisa-

dores não menos sério e expressivo, liderado por Gama Caeiro11, Ma-

8 Cf. FRASSON, L.; GAFFURI, L.; CRISCIANI, C. “In nome di Antonio: la Miscellaneadel Codice del Tesoro (XIII in) della Biblioteca Antoniana di Padova. Edizione critica”,Il Santo 35 (1995): 533-575.9 PACHECO, Maria Cândida M. op. cit., 1999, p. 193-194: “... Nas duas últimasdécadas, estudos mais aprofundados sobre o sermonário – possibilitados pela últimaedição crítica de Pádua – fizeram ressaltar a impossibilidade de uma obra tão complexater sido redigida tão rapidamente; puseram igualmente em evidência a disparidadelitúrgica subjacente, a diversidade das formas de citação da Bíblia e a aplicação desigual,nos Sermões Dominicais e Festivos, do esquema estrutural da Quadriga, sendo estesúltimos mais curtos e muito mais simples na sua arquitectónica interna ...”.10 Cf. C. XI, 3: “... Verum, quia alio in tempore, cum videlicet sermones per annumDominicales componeret, apud civitatem Paduanam residentiam fecerat ...”.11 CAEIRO, F. da Gama. Santo António de Lisboa - Introdução e selecção de textos,Lisboa/São Paulo, Verbo, 1990, Introdução, p. 41: “... No simples plano conjectural,quanto à preferência por uma das opções cronológicas: não surgirá como mais plausívelo momento de redacção de uma obra da natureza e envergadura dos Sermões Domini-cais no contexto de uma corporação monástica como Santa Cruz de Coimbra, mais doque no ambiente efervescente de constante deambulação apostólica, de uma existênciaitinerante, com os recursos necessariamente limitados das pobres livrarias das comuni-dades da incipiente Ordem Franciscana –, a qual aliás estava vocacionada, não para apregação antoniana, litúrgica e douta, mas sim para a pregação popular do Patriarca deAssis e seus companheiros ?...”.

Page 119: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO ANTÔNIO...

119Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011

ria Cândida Pacheco, J.G. Bougerol OFM12 e Francesco Costa OFM

Conv.13, defendem a opinião de que uma obra tão profunda e rica de

conteúdo filosófico e teológico, de citações das Escrituras e de men-

ções explícitas e implícitas a textos de autores sacros e profanos não

podia ter sido escrita numa ocasião em que Antônio estava completa-

mente absorvido pelos deveres do cargo que desempenhava; antes, foi

sendo progressivamente elaborada na Ocitania (Montpellier, Limoges

e Toulouse) e na Itália setentrional (Bolonha)14, onde ele viveu, tendo

ganho sua última demão em Pádua.

Francesco Costa reiterou sua hipótese, de acordo com a qual os

Sermones Dominicales foram escritos em duas etapas 1223/24 e 1226/

1227, tendo afirmando, por exemplo, com referência a esta segunda

etapa que, o Santo indicou claramente a leitura dos trechos do Breviário

da Cúria para os meses de setembro, outubro e novembro, o que, ao

seu ver, trata-se de correspondências com os Domingos 13o ao 24o

depois de Pentecostes que, igualmente, é congruente com um ano em

que setembro e outubro tiveram quatro domingos, e que novembro,

12 Cf. “La struttura del ‘Sermo’ antoniano”, in Atti del Congresso Internazionale diStudio sui Sermones di S. Antonio di Padova, a cura de Antonino Poppi, Pádua, Ed.Messaggero, 1982, p. 93-108. O estudioso aventa a hipótese de este conjunto resultar,em parte, dum material preexistente, sem especificar a sua procedência e o local deredação. O Prólogo geral e os Prólogos parciais teriam sido acrescentados à redação final.

13 Cf. “Relazione dei Sermoni Antoniani con i libri liturgici”, in: Atti del CongressoInternazionale di Studio sui Sermones di S. Antonio di Padova, ed. cit., p. 109-144. Oautor propõe dois momentos para a primeira redação, dividindo a execução dessa tarefaem 1223/1224 (Itália Setentrional) para os sermões do Domingo da Septuagésima atéo do 12º Domingo depois de Pentecostes, incluindo entre estes os 4 sermões em louvorà Virgem, e 1226/1227 (Ocitânia) para os sermões relativos desde o 13º Domingodepois de Pentecostes até o do 4º Domingo depois da Epifania.

14 COSTA, Francesco, OFM Conv., “Sulla natura e la cronologia dei sermoni di Sant’Antonio di Padova”, Il Santo 39 (1999), p. 36: “... A mio modo di vedere, furono,probabilmente gli stessi confratelli di Bologna che, conoscendo meglio degli altri la rarasapienza e dottrina del Santo e la sua straordinaria capacità oratoria, gli chiesero dicomporre anche un sussidio per la predicazione ...”.

Page 120: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

120

JOSÉ ANTÔNIO DE C. R. DE SOUZA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011

embora tenha tido cinco domingos, o último deles, como de praxe,

equivalia ao 1o Domingo do Advento que assinala o começo do Ano

Litúrgico. Ora, tais coincidências só se explicam num ano em que a

Páscoa tenha caído no dia 19 de abril, e no século XIII, durante a idade

madura do Santo, isto ocorreu somente em 1215 e 1226. Excluído

1215, por razões óbvias, resta apenas o ano de 122615.

Avançando em sua hipótese, estribado nos mesmos pressupostos,

somado à hipótese precedente, com respeito ao término da versão ori-

ginal do Opus Evangeliorum, Francesco Costa afirma que se Santo

Antônio restringe a quatro os domingos depois da Epifania, após o

qual, conforme o ciclo litúrgico de então, vinha o Domingo da

Septuagésima, isto só pode ter ocorrido num ano em que a Páscoa terá

caído entre 8 e 14 de abril, mais exatamente, no dia 11 desse mês.

Excluído o ano de 1221, porque o Santo não teria se ocupado com

esse mister16, “... Resta il 1227, anno in cui alla Domenica IV dopo

15 Art. cit., p. 57-58: “... Con grande cura ... Antonio ... specifica la lettura biblicadel Breviaro della Curia romana per i mesi di settembre, ottobre e novembre ...Ora, queste coinicidenze delle Domeniche XIII-XVI dopo Pentecoste con unanno i cui settembre ha solo quattro Domeniche; dele Domeniche XVII-XX dopoPentecoste con un anno in cui il mese di ottobre há solo quattro Domeniche; delleDomeniche XX-XXIV dopo Pentecoste con un anno in cui il mese di novembreconsente di collocarvi le ultime quattro Domeniche dell’ anno liturgico conesclusione della Quinta della quale ha inizio il nuovo anno liturgico ... sonocoincidenze che si verificano quando il giorno di Pasqua cade il 19 aprile. Nelsecolo XIII ... la Pasqua il 19 aprile capitò nel 1215 e nel 1226 ... inoltre l’iniziodel lavoro sui Sermoni sembra risalire al 1224. Non resta che 1226 ...”

16 Ibidem, p. 59, 62: “... A mio parere, se Il Santo concluse la seri dei Sermones dominicalescon la Domenica IV dopo l’ Epifania, vuol dire che nell’anno in cui attendeva a quest’ultimo gruppo di sermoni la Domenica sucessiva coincideva con la Settuagesima.Orbene, la circostanza cronolologica di solo quattro Domeniche dopo l’Epifania siverifica negli anni in cui la Pasqua cade dall’ 8 al 14 aprile ... siamo indotti a ritenere cheil Santo terminò di abbozare i suoi Sermones dominicales in un anno in cui la Pasquacadde l’ 11 aprile ... Se Antonio iniziò il lavoro sui Sermones nel 1224, dobbiamoescludere l’ anno 1221...”.

Page 121: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO ANTÔNIO...

121Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011

l’Epifania, segnata nel calendario al 31 gennaio, segue ... la Domenica

di Settuagesima, segnata al 7 di febbraio...”17.

Os poucos estudiosos brasileiros que escreveram sobre os Sermões

Dominicais não tomaram posição acerca dessa polêmica.

Seguindo o caminho aberto pelo segundo grupo de antonianistas,

modestamente, ousamos propor mais uma hipótese relativa ao local e

à ocasião em que Antônio teria elaborado a primeira redação global

dessa parte da sua opera, a saber, o eremitério de Monte Paulo18, hipó-

tese essa que, ao nosso ver, não contraria as palavras do Prólogo geral,

em que ele próprio afirma:... Coligi estas matérias e concordei entre si, segundo o que meconcedeu a graça divina e consentiu a “frágil veia de minha ci-ência pequenina e pobrezinha”... Fi-lo com medo e pudor por-que me sentia insuficiente para tamanha e incomparável res-ponsabilidade; venceram-me, porém, os pedidos e o amor dosconfrades, que a tal empresa me impeliam ...19.

Com efeito, primeiramente, consideramos o fato de o Doctor

Evangelicus ter permanecido nesse lugar durante 15 meses, um tempo

razoável para poder dedicar-se a essa tarefa, apesar de o Prof. Claudio

Leonardi20 observar que a elaboração dos Sermões exigia que o Menorita

17 Ibidem, p. 62.

18 Temos presente a observação de Luís G. da Fonseca SJ, in “S. António e a SagradaEscritura”, Brotéria, 2 (1949), p. 625: “... ignorado e tido por ignorante, do célebrecapítulo das esteiras (Assis, 1221) foi encerrar-se no ermo de Montepaulo, admitidonele quase por compaixão, e lá se ocupou, por alguns meses, em exercícios ascéticos deoração, humildade e penitência, não porém em exercícios literários ou cientificamente.Depois, improvisamente, vemo-lo nos púlpitos, assombrando o mundo com suaeloquência ...”.

19 Ed. cit., vol. I, p. 5. Cf. também LOMBARDO, P. Libri IV Sententiarum, Prologus,como, em nota, o indica Pinto Rema.20 In “Il Vangelo di Francisco e la Bibbia di Antonio”, Atti del Congresso Internazionaledi Studio sui Sermones di S. Antonio di Padova, ed. cit., p. 301: “... È tuttavia difficilepensare che Antonio, quando scrisse i Sermones, non avesse sotto gli occhi una copiadella Bibbia e soprattutto non avesse tra le mani un qualche repertorio biblico oconcordanza o altro. Tanto più che egli è solito convogliare in un texto biblico base unamoltitudine di altri testi più o meno parallelli ...”.

Page 122: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

122

JOSÉ ANTÔNIO DE C. R. DE SOUZA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011

olisiponense tivesse de ter à mão um número considerável de todos os

tipos de textos para deles retirar as citações de que viesse a precisar. Isso

é verdade, tratando-se da redação derradeira, mas necessariamente não

se aplica às versões iniciais, pois, convém ter presente que o Santo não

só possuía uma memória privilegiada, conforme atesta a Assídua, mas

também que a havia aprimorado durante os seus estudos na canônica

de Sta.Cruz de Coimbra e, igualmente, em seguida, como sacerdote,

ao pregar aos fregueses da paróquia de São João, anexa à mesma, fatos

esses ocorridos, não havia passado muito tempo.

Ademais, há que pensar que em Monte Paulo Antônio gozava das

condições ideais para elaborar a primeira versão de seu Opus, dado que

suas obrigações eram inserir-se no modus vivendi franciscano, celebrar

missa para os confrades que não eram sacerdotes e meditar sobre a

Palavra de Deus. Propositadamente, desconsideramos como irrelevantes

para a hipótese que sustentamos os fatos de os frades terem de cuidar

da comunidade, obter o próprio sustento, preparar os alimentos e aí

não haver os materiais necessários para a pesquisa e a escrita.

Além disso, julgamos que seria mais um tópos hagiográfico da

Assidua a afirmação segundo a qual o superior de Antônio ao mandar

que ele pregasse aos frades reunidos em Forli, para as ordenações das

Têmporas de Setembro de 1222, inclusive aí estando presentes alguns

frades Pregadores, pensasse que relevariam o fato de a mesma não

corresponder às expectativas de tão importante solenidade, posto que

se tratava de um religioso de quem não se poderia esperar muito, face

aos afazeres simples que executava e, que possuía apenas conhecimen-

tos rudimentares acerca das Escrituras21. Antes, é impensável que os

superiores do frade lusitano não soubessem o que ele estava fazendo, e

que não tivessem julgado que o seu trabalho tinha valor. Enfim, atual-

mente, seria muita ingenuidade pensar que foi só por causa de sua

21 Cf. Assidua, c. 8, ed. citada.

Page 123: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO ANTÔNIO...

123Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011

brilhante pregação na mencionada ocasião, não tendo passado muito

tempo da mesma, que os seus superiores indicaram-no a frei Elias, o

Vigário da Ordem, como uma pessoa apta a assumir a tarefa de prega-

dor, e, pouco depois, igualmente capaz de desempenhar o cargo de

lector do studium da Ordem em Bolonha que havia sido reaberto.

Por outro lado, discordando dos defensores da tese tradicional

suprareferida quanto à ocasião em que os Sermones Dominicales foram

escritos, e tendo presente os rasgos da personalidade de Antônio que

podem ser entrevistos na própria Assidua e, principalmente, em toda a

sua opera, tais como o amor profundo a Deus e ao próximo e a serie-

dade e a dedicação com que tudo fazia, há que indagar deles como,

durante aquele período de tempo, ao exercer o cargo de Ministro Pro-

vincial, assoberbado pelas inúmeras atividades pastorais e administra-

tivas, inerentes ao seu ofício, o Menorita lusitano podia ter tido con-

dições de começar a escrevê-los e, enfim, vir a concluí-los?

À parte essa questão, que permanece em discussão até que venham

a surgir fatos novos, decorrentes de investigações meticulosas, medi-

ante os quais possa vir a ser determinado, também é o referido Prólogo

que nos fornece indicações precisas sobre o que Antônio tinha em

mente ao escrever seus Sermões Dominicais, por exemplo, os objetivos

imediatos e derradeiros, numa perspectiva, ao mesmo tempo, imanente

e transcendente, quer dizer, de um lado, o louvor a Deus, de outro, a

atenção para com o fim último, isto é, a bem-aventurança eterna, dos

seres humanos, à qual todos aspiram e tendem; a quem podia vir a

interessar, nomeadamente, seus leitores, inclusive os que desejassem

estudá-la e dela servir-se, v.g. para seu trabalho, ou àqueles a quem

viessem a ser lidos; o conteúdo ou o teor que aborda, isto é, textos dos

Evangelhos, das Epístolas e dos Intróitos dominicais articulados, entre

si e com as histórias narradas no Antigo Testamento, lidos no Ofício

Page 124: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

124

JOSÉ ANTÔNIO DE C. R. DE SOUZA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011

divino; o tipo ou natureza marcante da obra22, isto é, de que maneira

esses textos são analisados ou interpretados, obviamente, de acordo

com os cânones científicos de então; e enfim, que esses procedimentos

geram a Teologia, a ciência mais completa que existe, porque se haure

na própria a Revelação, e que, por esse motivo, tem a preeminência

sobre as demais, à semelhança do ouro que, por ser o mais nobre dos

metais, é o mais precioso de todos23.

22 Ed. cit. p. 4-5: “... Para a honra de Deus, pois, edificação tanto do leitor como doouvinte, a partir da mesma inteligência [compreensão] da Sagrada Escritura, comsentenças [frases] dum e doutro Testamento fabricamos uma quadriga, ‘a fim de quenela, juntamente com Elias, a alma se eleve dos bens terrenos e, por meio de celesteviver, chegue ao céu’. E como que ‘na quadriga há quatro rodas’, assim nesta obra seversam [são tratadas] quatro matérias, os Evangelhos dos domingos, factos históricos doVelho Testamento, tais quais se lêem na Igreja, os Introitos e as Epístolas da missa dominical... Esta arca cobre-se com as asas dos querubins, quando a alma, por meio da pregação doNovo e do Velho Testamento, se protege e defende do ardor da prosperidade mundana, dachuva da concupiscência carnal, do raio da sugestão diabólica...” .Cf. também, pela ordem,4Rs (2Rs) 2,11; Glo. Ord., Mc 1,16; Glo.. Ord., Ct (Cântico dos Cânticos) 6, 11; ICr ouParalipômenos 28, 18. A propósito, MOSER, A. OFM “A concepção moral de SantoAntônio de Pádua”, in: Antônio, homem evangélico na América Latina, Compilação dasConferências apresentadas no 1º Congresso Antoniano Latino-Americano. Santo André: Ed.Mensageiro de Sto. Antônio, 1996, p. 49: “... O que se depreende de seus sermões éuma ‘concepção moral’ disseminada um pouco por toda parte, e que pode ser delineada.Trata-se de uma concepção voltada eminentemente para a prática ... entretanto ... aorganicidade da sua concepção moral nos faz descobrir algumas linhas mestras, que aomesmo tempo fazem emergir os principais conteúdos...”.

23 Prólogo, Ibidem, p. 1: “... Está escrito no Génesis: Na terra de Hevilat ‘nasce ouro e oouro daquela região é óptimo’. ‘Hevilat interpreta-se parturiente’ e significa a SagradaEscritura, a qual ‘é como a terra, que primeiramente produz a erva, depois a espiga e,finalmente o grão maduro na espiga’. A erva constitui a alegoria ‘que edifica a fé’ ... naespiga ‘chamada assim de spiculus (ponta), entende-se a moralidade que informa oscostumes e com a sua doçura traspassa e fere o ânimo; no grão maduro, figura-se aanagogia ‘que trata da plenitude do gozo e da felicidade angélica’. Na terra de Hevilatnasce, portanto, ouro óptimo, pois que dos textos das páginas divinas emana a ciênciasagrada; e como o ouro está acima de todos os metais, assim a ciência sagrada sobressaia toda ciência ...’. Cf. também, pela ordem, Gn 2,11-12; Glo. Ord. a Gn 2,11;GREGÓRIO MAGNO, In Evang. Hom. 40, 1, PL 76, p. 1301; AGOSTINHO, Dedoctrina christiana 1, 4, c. 5 n. 7, PL, 34, p. 92.

Page 125: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO ANTÔNIO...

125Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011

Com vista a bem esclarecer o que acabamos de retirar do Prólogo

geral, o leitor dos Sermões há que sempre ter presente a própria

cosmovisão de Antônio, cristão, religioso e sacerdote que viveu na

época medieval24, impregnada de cristianismo, cujos propósitos ou

metas fundamentais consistiam na construção do Reino de Deus na

terra, mediante os processos pessoal e comunitário da pessoa humana

quanto à conversio (da mudança de vida do mal para o bem, dos vícios

ou pecados para as virtudes, mediante as graças recebidas), e da propa-

gação da justiça divina, como os únicos caminhos seguros para cons-

truir-se um mundo melhor, e, depois, atingir-se a pátria derradeira.

Isso, igualmente implica, dum lado, numa orientação de seu devir histó-

rico e espiritual, relativas ao seu próprio ser e à sua maneira de agir que,

igual e paralelamente, supõe Deus como sua causa eficiente e final, e sua

inserção terrena parcial numa comunidade social, a Ecclesia/Societas

christiana, fundada numa fé comum, e à qual passou a pertencer desde o

dia de seu Batismo, e que possui os meios e as pessoas aptas a distribuí-los

entre eles todos, a fim de que possam vir a alcançar a sua meta.

A par disso, essa comunidade funda-se no mistério do amor divi-

no, materializado historicamente com a Encarnação, a Paixão, a Mor-

te e a Ressurreição de Jesus Cristo, O qual, além de resgatar os seres

humanos da escravidão da morte e do pecado, legou-lhes o manda-

mento do amor ao Pai e ao próximo. Esta cosmovisão religiosa do

mundo e do ser humano é, pois, a base para compreender o significa-

24 Cf. SILVEIRA, Ildefonso, OFM, art. cit., p. 24: “... Os sermões [sic] de Santo

Antônio podem considerar-se como fontes históricas ... Portanto, devem ser entendi-

dos no seu contexto medieval, por exemplo, o método oratório, as preocupações com

questões vivas no tempo, a temática geral e etc. ... foram escritos por um autor concreto,

Frei Antônio Martins. Por isso, podem levar ao conhecimento de sua figura intelectual,

de seus pontos de vista doutrinários, de sua cultura, de sua personalidade de homem,

de santo, de religioso...”.

Page 126: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

126

JOSÉ ANTÔNIO DE C. R. DE SOUZA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011

do da existência humana sobre a terra e da própria mensagem moral

antoniana25.

Nessa perspectiva, então, a história da salvação se efetiva em cada

pessoa, simultaneamente, por intermédio, da adesão e do esforço indi-

vidual, e das graças sobrenaturais, bem ao contrário do que acredita-

vam os cátaros ou albigenses, para quem o processo salvífico resumia-

se numa doutrinação de tipo gnóstico e iluminante e na prática de

alguns ritos individualistas. Daí, menosprezarem os sacramentos, a Igreja

e os seus ministros.

Por isso, também, não foi sem motivo que, no referido Prólogo

geral, o Santo agrupou todos os cristãos ou batizados, filhos da mes-

ma mãe, a Igreja, e de seu esposo divino, redentor misericordioso, em

dois grupos de caráter religioso e moral, designadamente, os principi-

antes (incipientibus) e os proficientes26 (proficientibus) ou penitentes (e,

com frequência, utilizou essas expressões), perspectiva essa diretamen-

te relacionada com o objeto que elegemos trabalhar.

25 MOSER, A. OFM, “A concepção moral de Santo Antônio de Pádua”, in: op. cit., p.50-51: “... Mas como todo pregador inspirado no Evangelho, o que Antônio visa ésempre a conversão do pecador, para que este viva. Daí a importância que dará aosmandamentos e sacramentos, como caminhos de vida. E, uma vez que investe comveemência contra o pecado e a decadência dos bons costumes, nada mais natural que dêum lugar especial ao sacramento da penitência ...”.

26 Ed. cit., p. 2-3 “... ‘David interpreta-se misericordioso, forte de mão’ ... e significaJesus Cristo, Filho de Deus’, que foi misericordioso na Encarnação, forte de mão nosofrimento e ser-nos-á desejável ... na bem-aventurança eterna. Igualmente é misericor-dioso na infusão da graça, e isto com os principiantes ... É forte de mão, quandoprogride de virtude em virtude, e isto com os proficientes. Por isso, diz em Isaías: ‘Eusou o Senhor teu Deus, que te tomo pela mão e te digo: Não temas, porque eu sou o teuauxílio. Como a mãe piedosa toma na sua mão a mão do filho pequenino que se esforçapor subir, a fim de que possa subir atrás dela, assim o Senhor, com a sua mão piedosa,toma a mão do penitente humilde para que possa subir pela escada da cruz ao mais altograu de perfeição e se torne merecedor de contemplar na sua glória o ‘Rei desejável deaspecto’...” (cf. também pela ordem: Glo. Int. a 1Rs 16, 13, e JERÔNIMO, De nominibushebraicis, PL 23, p. 813, Is 41, 43, 1Pd 1, 42).

Page 127: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO ANTÔNIO...

127Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011

As breves citações que fizemos do Prólogo geral, igualmente,

enriquecidas com o respectivo aparato complementar, indicado pelo

editor, mostram ao leitor outras duas características originais e domi-

nantes em toda a opera antoniana, a saber, a erudição do seu autor,

manifesta na riqueza de informações que, reiteramos, Antônio reco-

lheu nas bibliotecas de São Vicente de Fora e, sobretudo, na de Sta.

Cruz de Coimbra, tendo-a absorvido e, a consequente densidade do

texto que ele consegue diluir e explicar, recorrendo tanto aos métodos

exegéticos quanto às técnicas que empregou, sobre o que, adiante,

voltaremos a tratar.

Por essa razão, conforme escrevemos páginas atrás, os Sermões

antonianos são um manancial rico de ensinamentos religiosos perenes

bem como um acervo de informações acerca dos conhecimentos cien-

tíficos próprios de uma época27, contemplando a filologia, a botânica, a

zoologia, a geografia, a mineralogia, os quais, às vezes, impregnados de

fantasias, com que faz belas comparações aplicando-as moralmente ao

comportamento humano28; conhecimentos esses que também se esten-

27 No Prólogo, ed. cit. p. 5-6, o próprio Santo esclarece porque teve de lançar mão detais conhecimentos, afirmando: “... Em nosso tempo, a estulta sabedoria dos leitores edos ouvintes degradou-se a tal ponto, que, se não encontram e não ouvem palavraselegantes, rebuscadas e altissonantes de novidade, enfastiam-se da leitura e recusam-sea ouvir ... por isso inserimos no mesmo trabalho uma exposição moral sobre a naturezade coisas e etimologias de vocábulos...”. Cf. SILVEIRA, Ildefonso, OFM, art. cit., p.31: “... S. Antônio cita várias vezes exemplos da natureza, mineral, vegetal e animal.Treze da mineralogia, cinquenta e um da botânica, trinta e sete de animais, vinte e duasde aves, doze de répteis. Descreve a natureza de vários desses seres, baseado na ciênciado tempo, mas com a intenção de ilustrar o que dizia ...”.

28 Muito a propósito, observa Maria Isabel Pacheco, in “Fundamentos e Sentidos daExegese Moral Antoniana”, Itinerarium 154 (1996), p. 53: “... Em nosso entenderessa transposição tem uma função simbólica, na medida em que não se dá apenas nodomínio da linguagem, não é uma figura de estilo, mas funciona como o apontamentoe o indício de um projeto maior de recondução da natureza à sobrenatureza, da história– da carne e da letra – ao espírito...”.

Page 128: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

128

JOSÉ ANTÔNIO DE C. R. DE SOUZA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011

dem à filosofia29, ao direito30, e obviamente, à teologia31, embora não

tenham sido expostos e analisados de maneira ordenada e sistemática,

dado o próprio gênero literário desse tipo de obra, mas que revelam… a organicidade rigorosa de um pensamento apoiado em fun-damentos sólidos, estruturados por fontes e autores significati-vos e que, para ensinar Teologia ou para promover a formação depregadores, carreia os materiais do seu conhecimento, os quepode utilizar – se os têm ao seu alcance – e os que consideraúteis ...32,

que, entretanto, requerem do estudioso que deseje explorá-los, ele-

gendo um desses vastos campos, não só uma leitura atenta e um

desentranhamento pari passu, mas também uma certa bagagem cultu-

ral com a qual devem ser cotejados.

Daí, os antonianistas de ontem e de hoje, estribados no Prólogo,

estarem perfeitamente de acordo, ao afirmar que, especialmente, os

Sermões Dominicais, entre outras finalidades concebidas por Antônio,

intelectual e professor, visava a servir, tanto de amplo material de estu-

do para seus alunos instruírem-se nas Artes predicandi, com o fito de,

no futuro, desempenhar os ministeria presbiterais da catequese e da

29 PACHECO, Maria Cândida M. op. cit., 1999, p. 198: “... que vão da cosmologiaà antropologia, da gnosiologia à metafísica, da ontologia à teologia, passando pela éticae pela estética, emergindo, no entanto, sempre, da interpretação hermenêutica do textobíblico ...”.

30 RÁBANOS, J. M. Soto. “?Formación jurídica en Antonio de Lisboa?”, Actas, Con-gresso Internacional Pensamento e Testemunho, 8º Centenário do Nascimento de Sto. Anto-nio, Braga: UCP/Família Franciscana Portuguesa, 1996, vol. I, p. 771, 773, 774-775, 780, 783: “... No hay testimonios directos para poder elaborar conclusionesdefinitivas respecto a la posible formación juridica de Antonio ... no obstante cabeatribuirle, ya de principio, algunos conocimientos jurídicos, muy especialmentecanónicos, los adecuados a su excelente formación eclesiástica…”.

31 SILVEIRA, Ildefonso, OFM, art. cit., p. 45: “... S. Antônio...não tratou sistematica-mente de um tema específico, mas em seus sermões podemos descobrir todos os temasmais importantes da teologia...”.

32 Idem, ibidem, p. 197.

Page 129: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO ANTÔNIO...

129Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011

pregação, quanto de paradigmas e ou de esquemas de sermões (não

como os manuais apropriados que, então, já havia), os quais seus

confrades poderiam vir a usar, dando o seu toque pessoal, ao exercer o

ministério sacerdotal33.

Quanto às fontes em que o Doutor Evangélico estribou-se para

escrever sua opera, considerada em sua totalidade, evidentemente, a

preeminência coube à Sagrada Escritura, tanto em razão do caminho

que escolheu trilhar e dos métodos que elegeu, e acreditamos não estar

sendo redundantes ao empregar palavras sinônimas ao fazer essa afir-

mação, a qual adiante, quase ao final deste tópico será esclarecida, quanto,

também, porque essa era a principal fonte em que os autores da época

se fundamentavam. A título de ilustração, ele citou o Antigo Testa-

mento 3700 vezes, talvez, com a intenção de refutar, implicitamente,

uma das principais concepções defendidas pela heresia cátara ou

albigense, conforme a qual o Deus do Antigo Testamento era a origem

do mal e, portanto, não podia ser o Pai Eterno, Criador de todas as

coisas visíveis e invisíveis34. Ao contrário, para Antônio a Bíblia toda é a

Palavra de Deus, e ambas as suas partes estão em perfeita consonância

33 CANTINI, Gustavo, OFM Conv., art. cit., Studi Francescani, 29, 1932, p. 420: “...I Sermoni scritti di Antonio poi sono Sermoni fatti ai Religiosi che volevano prepararsial Ministerio della Predicazione; oggi li chiameremmo lezioni. Tutto ciò si ricava inmodo chiarissimo dallo stesso Prologo che Antonio ha premesso ai Sermoni ...”. Cf.DHAAN, Gilbert. “Saint Antoine et l’exégèse de son temps”, Actas, Congresso Interna-cional Pensamento e Testemunho, ed. cit., vol. I, p. 154: “... Il paraît certain que lesSermones de saint Antoine sont en fait un stock de matériaux destinés à aider lesprédicateurs. Chaque sermon (aussi bien les dominicales que les festivi) fournit lamatière d’une série des prédications pour le dimanche ou la fête considérée ... Il ne s’agitpas pour autant d’un recueil de sermons modèles, comme ceux dont les auteurs d’artespredicandi accompagnaient parfois leurs exposés théoriques ...”.

34 LONIGO, Cherubino da. “Dio in sè e nelle sue opere secondo S. Antonio”, Atti delledue settimane, ed. cit., p. 339: “... quello di ricavare dalla Scrittura la prova di ogni cosabella e buona, per combattere i Catari e gli Albigesi i qualli, tra gli altri errori, dicevanoanche che la Scrittura dell’Antico Testamento era opera dello spirito cattivo, risuscitandocosì l’eresia dei Manichei ...”.

Page 130: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

130

JOSÉ ANTÔNIO DE C. R. DE SOUZA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011

e se completam. Igualmente, citou o Novo Testamento 2400 vezes35,

e ao fazê-lo... no utiliza una Biblia latina ‘vulgata’, la cual contiene solamenteel texto sagrado, sino que utiliza una Biblia glosada, es decir,anotada, entre las líneas y al margen, con breves exposicionesextractadas de las obras de los padres de la iglesia y, con menorfrequencia, de teólogos posteriores ...36.

Ao nosso ver, as demais fontes utilizadas pelo Doutor Evangélico

podem ser catalogadas em três blocos distintos, nomeadamente, os

Padres da Igreja37 e as Glosas Ordinária e Interlinear38, que citou mais

35 Cf. LEONARDI, C. In: “Il Vangelo di Francesco e la Bibia di Antonio”, Atti delCongresso Internazionale di Studio sui Sermones di S. Antonio di Padova, ed. cit., p.300, 302-303, chama a atenção para outros pormenores assaz importantes: “... Moltedi queste citazioni sono esplicite, molte altre implicitamente evidenti. Un buon nume-ro sono citazioni lunghe, di interi passi biblici, che si inseriscono come dei blocchiorientativi di tutto il sermone, che attorno alla citazione si costruisce ... Delle citazioniveterotestamentarie bem 1.000 si riferiscono al Pentateuco e ai libri storici, comun’incidenza fortissima per il Genesi, un terzo esatto: 335 occorrenze. I libri poetici esapienziali sono presenti con 1.500 luoghi (con 340 a Giobbe, 180 ai Proverbi, 115al Cantico dei cantici, 165 all’ Ecclesiastico, 570 ai Salmi). Un poco sorprendono le1.200 ocorrenze per i libri profetici, com il primato dato a Isaia, che con le sue 600citazioni suoera i Salmi e i Vangeli. Tra questi, il predominio va a Matteo con 480citazioni e a Luca con 500, rispetto a Giovanni (370 occorrenze) e soprattutto a Marco(con solo 75). Buona presenza di Paolo con 570 luoghi (ivi compresa la lettera agliEbrei), non grande quella dell’Apocalisse con sole 130 occorrenze, meno di quelle dicui gode l´Ecclesiastico ...”.

36 REINHARDT, Klaus. “Presencia de la Glosa ordinaria en los Sermones de san Anto-nio de Lisboa, in: Actas Congresso Internacional Pensamento e Testemunho, ed. cit., vol. I,p. 417.

37 Santo Ambrósio (Hexameron, De fide ad Gratianum, Expositio in Lucam, De officiisministrorum, De Virginibus); São Jerônimo (Epistolae, Adversus Jovinianum, De nominibushebraicis, Lexicon origenianum, Commentarioli in Psalmos, Commntarii in Isaiam, inJeremiam, in Amos, Commentarius in evangelium Matthaei, Comentarius in Job). GregórioMagno (Moralia in Job, Homiliae in Ezechielem, Homiliae in Evangelia, Regula pastoralis,Dialogui, Epistola L, Liber Sacramentorum); Isidoro de Sevilha (Etymologiae, Differentiaeverborum et rerum, De ortu et obitu Patrum, De fide catholica, Sententiae, De ecclesiasticisofficiis, Synonyma, De ordine creaturarum, De natura rerum, Chronicon); São Beda (In

Page 131: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO ANTÔNIO...

131Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011

de cem vezes, ou de modo explícito, ou implícita ou aproximativa-

mente39; os escritores coevos, e os autores pagãos40. Para tanto, basica-

mente seguimos as indicações de Henrique Pinto Rema OFM41.

Cantica Canticorum; In Marci, In Lucae, In Joannis evangelia expositio); São Bernardode Claraval (Epistolae, De Consideratione, De conversione ad clericos; De moribus et officioepiscoporum; De gradibus humilitatis et superbiae, Sermones per annum; Sermones dediversis; In Cantica Canticorum).

38 REINHARDT, Klaus. art. cit., p. 418-419; 421: “... Cuando, a principios del sigloXII, Anselmo de Laon y otros maestros de teología comenzaron en Laon, Auxerre yParis a glosar de esta forma los libros bíblicos, fue solamente la extensión de una glosa loque decidió su colocación entre las líneas o al margen; de este modo podía sucederfácilmente que una glosa se encontrara en un manuscrito al margen y en otro entre laslíneas. Sólo hacia los años 1150/1160 se fijó la distribución de las glosas en marginalese interlineales ... Desde 1150 hasta los años 1230/1240, es decir durante casi un siglo,la Glossa constituyó la obra exegética estandar; era la lengua mediante a la cual la Bibliahabló a los teólogos y a los predicadores...”

39 COSTA, Beniamino OFM Conv., in: “Sant´Antonio e la Glossa”, Il Santo 7 (1967),p. 163: “... in via ordinaria ricava dalla Glossa le interpretazioni letterali e allegorichedella Sacra Scritura. Si tratta della parte iniziale dell’esposizione delle pericopi liturgicheche fanno da trama al sermone: quatro pericopi per il sermone domenicale (vangelo,introito, epistola, lettura biblica dell’ufficio divino), una sola pericope (il vangelo) peri sermoni festivi. A se stesso il Santo riserva le interpretazioni morali e pratiche. Non siescludono tuttavia dalla Glossa interpretazioni morali. Dette interpretazioni sonospesso introdotte dalle formule: ‘Allegorice’, ‘Moraliter’. Di raro interviene pure ‘Adlitteram’...”. Às páginas 151-154, 154-157, 157-160 arrola um bom número decitações desses três tipos.

39 REINHARDT, Klaus. Ibidem, p. 425-426.

40 Entre os autores gregos e latinos que Antônio citou implícita ou explicitamente,merecem destaque Aristóteles (De historia animalium, De animalibus, De partibusanimalium, De generatione animalium, De somno et vigilia, De juventute et senectute, Derespiratione, Meteorologicorum, Ethicorum, De Plantis); Boécio (Liber de Persona et duabusnaturis); Cícero (De Inventione, Pro Milone, Phillippicae, De officiis, De amicitia,Naturalia); Filo de Alexandria; Flávio Josefo; Horácio (Epistolae, Odes, Sátiras); Lucano(De bello civili, Meditationes piissimae); Ovídio (De arte amandi; Metamorphoseon;Remedia amoris; Ponticae); Plínio o Antigo (Naturalis Historia); Sêneca (De moribus;Epistolae); Solino (Polyhistor); Varrão (De lingua latina; De re rustica); Virgílio (Eclogae;Georgicon).

41 In: Índice das Fontes Antonianas, vol. II, p. 1027-1033.

Page 132: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

132

JOSÉ ANTÔNIO DE C. R. DE SOUZA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011

Entre os Padres, em parte por ter sido frade agostiniano, como

não podia ter sido de outro modo, Antônio hauriu, principalmente,

dos escritos de Santo Agostinho42, considerado pelos medievais lati-

nos o mais importante de todos eles.

Com referência aos magistri medievais43, o Doutor Evangélico lan-

çou mão, particularmente, dos textos de Pedro Lombardo (século XII).

Com efeito, este se servindo tanto das especulações filosóficas aplica-

das à Teologia, quanto do método de estudo, utilizado nas escolas de

então, e recorrendo às partes mais filosóficas dos textos dos Padres da

Igreja, escreveu o seu Comentário às Sentenças em quatro livros, o qual,

como sabemos, indiscutivelmente foi a obra mais completa do gêne-

42 Ibidem, p. 1025. Citamos apenas as mais relevantes. Contra Faustum manichaeum,De Genesi contra Manichaeos, De immortalitate animae, De libero arbitrio, De vera etfalsa poenitentia; Enarrationes in Psalmos, In Joannis evangelium tractatus, De civitateDei; in Epistolas Joannis; De doctrina christiana, De Scripturis, Regula ad servos Dei,Soliloquia, Confessiones e muitos Sermones. Cf. KLOPPENBURG, D. Boaventura,OFM, “Santo Antonio, Doctor Evangelicus” REB, 6 (1946) p. 259: “... Especialmenção merece sua dependência de S. Agostinho. Outrora Cônego regular de S. Agos-tinho, continuou a ter, por certo, em alto preço seu antigo Pai. Um pouco mais tardetornar-se-á isto característico de toda a escola teológica franciscana. Além das 54 citaçõesexplícitas, encontram-se inúmeras implícitas. Nota-se verdadeira familiaridade e inti-midade com o Doutor de Hipona. Mas sabe também aproveitar-se dos ditos de Agos-tinho, para ilustrar sua própria doutrina. Não só em questões particulares, mesmo paraexplicar parábolas inteiras e esclarecer alegorias...”.

43 A lista dos magistri medievais citados textualmente ou aproximativamente peloDoutor Evangélico também não é pequena: Acardo de São Victor (Sermones); Adão deSão Victor (Sequentiae); Alano ab Insulis (de Lille) (Sermones, Distinctiones dictionumtheologicalium, Liber poenitentialis, Summa de arte praedicatoria), Abade Godofredo deAuxerre (Declamationes); Graciano (Decretum), Hugo de São Victor (In Phil. 3, 19);Inocêncio III (Regesta IX, Epistola 196, Sermones de Tempore, Sermones de Sanctis, Sermo5); Pedro Cantor (Summa de sacramentis et animae consiliis, Verbum abbreviatum);Pedro Comestor ou Manducator (Historia Scholastica); Pedro Damião (De bono religiosistatus, De divina omnipotentia, Liber salutatorius); Ricardo de São Victor (Benjaminminor, Benjamin maior, In Cantica Canticorum, Mysticae adnotationes in Psalmos, DeTrinitate, De exterminatione mali et promotione boni, De eruditione hominis interioris);Roberto de Curson (Summa de poenitentia), Hugo de Folieto (De bestiis et aliis rebus).

Page 133: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO ANTÔNIO...

133Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011

ro, e veio a tornar-se o texto básico de trabalho para os estudantes

universitários de Teologia nos séculos subsequentes44.

Não é demais, pois, ressaltar de novo que a erudição sacra e profa-

na, evidente na opera de Antônio, foi colhida e absorvida em Portugal,

nas bibliotecas das canônicas de São Vicente de Fora e, especialmente

de Sta. Cruz de Coimbra.

Ao examinar o Prólogo geral aos Sermões Dominicais, conforme

indicamos páginas atrás, verificamos que o menorita olisiponense pro-

meteu expor e interpretar as passagens da Escritura que viesse a utilizar,

recorrendo aos três sentidos espirituais ou figurados, então em uso45,

nomeadamente, o alegórico, com o fito de descobrir o “... espírito

oculto e misterioso de Deus, mas este escopo ... se alcançava ... com os

“olhos do coração”, ou, mais propriamente, com os “olhos da Fé” ...”46,

o tropológico ou moral e o anagógico ou espiritual47.

44 LONIGO, Cherubino da. art. cit.: 336. “... Pier Lombardo incomincia ... semprecoll’autorità della S. Scrittura e dei Padri; la prova filosofica deve sgorgare dagli stessitesti che raccoglie. Egli incomincia la sua opera coll trattato di Dio e della Trinità..

Questo serio metodo teologico, che dice anche senso di rispettosa ortodossia, colpiparticolarmente S. Antonio che, in molte parti dei suoi Sermoni, fa pensare allo stessoprocedere del Maestro delle Sentenze. Da questi anzi trascrive delle intere pagine ...”.

45 CAEIRO, Francisco da Gama, op. cit. 2ª ed., vol. I, p. 201: “... A posição de SantoAntónio, ou porque, na altura em que viveu, ele já tivesse à sua disposição uma tradiçãomais longa e mais esclarecida sobre a exegese bíblica, ou porque como pregador, hou-vesse de compreender melhor o valor da exposição, é bastante clara e coerente, emboraa circunstância de sua doutrina ter de ser deduzida da obra sermonária, e colhida, assim,de modo indirecto, obrigue a um exame mais cuidadoso e, por vezes, extremamentedifícil...”.

46 Ibidem, vol., I, p. 243..

47 SILVEIRA Ildefonso, OFM, art. cit. p. 46: “... O figurado abrangia três tipos:alegórico..., alegoria termo que designa outra coisa diferente da insinuada... tropológico(ou moral ..., do grego “tropos”, costume) ... e anagógico (relativo ao além) ..., do grego“anagogé”, o levantar-se para o alto ...”.

Page 134: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

134

JOSÉ ANTÔNIO DE C. R. DE SOUZA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011

Antônio cumpriu essa promessa, mas isto não quer dizer que ele não

tenha usado o sentido literal ou histórico porque o desconhecia. Antes,

muitas vezes, serviu-se dele, como se fora um átrio duma casa pelo qual se

tem de passar para chegar à sala principal, isto é, aos sentidos figurados dos

texto bíblicos48. Aliás, estribado no abade Guiberto de Nogent, num tre-

cho do Exórdio ao sermão alusivo ao 9º Domingo depois de Pentecostes,

dirigindo-se aos pregadores, ele tanto ressaltou a importância desse proce-

dimento introdutório quanto a ênfase a ser dada ao significado moral dos

passos bíblicos, primeiramente, afirmando:... Salomão traz nas Parábolas: ‘Quem aperta muito os úberespara tirar leite, obtém manteiga e o que violentamente ordenhatira sangue’. Considera estes quatro elementos: os úberes, o lei-te, a manteiga e o sangue. Os úberes designam o Velho e oNovo Testamento; o leite, a alegoria; a manteiga a moralidade;o sangue a compunção das lágrimas ... O pregador, portanto,deve tirar dos úberes o leite da narrativa, para dele poder tirar amanteiga suavíssima da moralidade. Recorde-se que o leite constade três substâncias. A primeira é o chamado soro aquoso; a se-gunda a nata; a terceira a manteiga. O soro aquoso significa anarrativa; a nata, a alegoria; a manteiga, a moralidade. Esta,quanto mais suave é, tanto mais suavemente penetra nos cora-ções dos ouvintes, porque os costumes estão corrompidos. Porisso, ‘deve-se ligar mais à moralidade, que informa os costumes,do que à alegoria, que ensina a fé, pois a fé, por graça de Deus,encontra-se difundida em toda a terra’, ... o sangue ... significaa compunção das lágrimas, que vivificam e sustentam a alma, afim de não cair em pecado ... O pecador, pois, enquanto se

48 Cf. CAEIRO, F. da Gama. op. cit., 2ª ed., vol. I, p. 205-206: “... Na terminologiamedieval emprega-se muitas vezes a palavra história como sinónimo de letra, traduzin-do neste caso o sentido verbal ou literal da Escritura..., raiz e fundamento da exegesebíblica, o primeiro degrau ou o primeiro plano a procurar e esquadrinhar para a conse-cução do conhecimento desejado e da Verdade..., resulta evidente que ele atribuiu àhistória a primeira e fundamental posição pelo facto de ela ser extraída directamente daEscritura... Para manter essa espontaneidade da história, o sentido que mais a poderiafavorecer era o moral, por ser menos doutrinal e mais exortativo...”.

Page 135: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO ANTÔNIO...

135Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011

ordenha violentamente com a palavra da pregação, levantando paraas alturas o seu espírito, tira sangue, isto é, derrama lágrimas, porter dissipado os bens do Senhor que lhe foram confiados...49.

Especificamente, no que concrene à exeges50 antoniana nos Ser-

mões Dominicais e Festivos, ao nosso ver, é uma das notas constitutivas

mais importantes dos mesmos, porque o Menorita lusitano compulsou

e absorveu dos autores que o precederam o que de melhor haviam

produzido a respeito e lançou mão de tais conhecimentos, tendo dado

em seus escritos um toque pessoal.

Em primeiro lugar, julgamos que, fica assaz evidente, a razão que

levou Antônio a, inicialmente, ter retirado do Antigo Testamento as

narrativas históricas e tê-las usado nos Sermones Dominicales, e depois,

das hagiografias os exempla dados pelos santos, e inseri-los nos Festivi,

como ponto de partida ou motivação pedagógica para seus alunos e

leitores.

Igualmente, também, não foi despropositadamente, conforme ti-

vemos ocasião de ver, explicitamente, no acima indicado Exórdio ao

sermão do 9º Domingo depois de Pentecostes, e outrossim, podemos

verificar em toda opera antoniana, que o sentido tropológico ou a ex-

posição moral do texto bíblico tem uma importância singular. Com

efeito, o ato de pregar, efetivado pelo pregador, devidamente investido

nesse ministério e bem preparado para executá-lo, tem por fito levar o

49 9º Domingo depois de Pentecostes, ed. cit., vol. I: 760, 761, 762. Cf. também, AbadeGuiberto, Quo ordine sermo fieri debeat, in PL 156, col. 26. , e ainda, Cf. Igualmente,LEONARDI, Claudio. art. cit., p. 311: “... L’originalità di Antonio piuttosto chenell´esegesi allegorica è da ricercare nell’esegesi morale. Non è certo casuale ladichiarazione, che percorre tutti i Sermones, di voler intendere ‘moraliter’ la Bibbia: difatto il senso morale occupa una porzione assolutamente maggioritaria dei Sermones ...”.

50 Nas últimas décadas os mais destacados estudiosos desse assunto foram Beryl Smalley,The Study of the Bible in the Middle Ages. Oxford, 1941. Essa autora consagrou algunsde seus trabalhos a Santo Antônio; SPICQ, Celas. Esquise d’une histoire de l’exégèse latineau moyen age. Bibliothèque Tomiste, 26, Paris, 1944; LUBAC, Henri de. Exégèsemédiévale. Paris, 1961, e mais recentemente, G. Dahan.

Page 136: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

136

JOSÉ ANTÔNIO DE C. R. DE SOUZA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011

ouvinte (bem como o estudante e ou o leitor da opera) à conversio e ao

aperfeiçoamento moral, tornando-o receptivo a tais dons que, gratui-

tamente, foram-lhe oferecidos pelo Redentor, porquanto o mesmo... estabelece ... o traço de união entre Deus, por um lado, e,por outro, os homens, o mundo e a realidade sensíve ...» demodo que «... o intento moral como seja a salvação de si e dosoutros é o que leva o cristão a procurar na Escritura quer o ali-mento, o sólido apoio para a sua vida, quer o estímulo da letra,que, mercê de uma dinâmica especial, se desdobra em novassignificações...51

A exegese de Santo Antônio demonstra também uma abertura de

espírito, aos conhecimentos científicos profanos de seu tempo, utili-

zando-os como instrumentos que poderiam ajudar seus leitores a com-

preender melhor o texto bíblico.

É, de notar ainda, no referido Prólogo geral aos Sermões Dominicais

que, empregando uma imagem figurada, a da quadriga mística52, o

Doutor Evangélico explicitou que, tencionava elaborar os seus sermões

alicerçando-os em quatro tipos de perícopes53 escriturísticas, como es-

crevemos atrás, tiradas dos evangelhos, das epístolas e dos intróitos das

respectivas missas dominicais articuladas com as leituras do Antigo

Testamento, tal como se rezava no Ofício divino ou na Liturgia das

51 CAEIRO, Francisco da Gama. Santo António de Lisboa, vol. I, IN-CM, 2ª ed., 1995,p. 250.

52 DAHAN, G. art. cit., p. 154: “... la fameuse image du quadrige montre assez quel’objectif est d’indiquer au prédicateur comment les trois lectures bibliques... (l’introitede la messe constituan le quatrième élément) concordent, quels, sont les liens thématiquesqui les unissent... Ces deux éléments, destination du recueil et lien avec la liturgie,expliquent les options herméneutiques: l’exégèse sera uniquement spirituelle...”.

53 FONSECA, L. Gonzaga da, SJ, art. cit., p. 680: “... A perícope [o trecho] evangélicaé dividida em ‘cláusulas’, que serão ordinàriamente as partes do sermão... A epístola e ointroito são igualmente divididos em outras tantas partes e ‘concordados’ brevementecom as do evangelho; a Escritura ocorrente é usada no desenvolvimento das diversascláusulas, onde quer que se pode bem adaptar...”.

Page 137: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO ANTÔNIO...

137Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011

Horas54 de então55, textos esses que ia fazer concordar entre si, o que,

entretanto, nem sempre ocorreu como o demostraram muito bem

Gustavo Cantini OFM Conv.56, Jaques Guy Bougerol OFM57 e

Francesco Costa OFM Conv.58 e, foi assim que o Menorita lusitano

procedeu ao intercalar outras citações do tipo em seus textos.

54 Estas subdividem se em Matinas, Laudes, Prima, Terça, Sexta, Noa, Vésperas e Completas.

55 COSTA, F. OFM Conv., art. cit., 1999, p. 37-38: “... Al tempo di Antonio diPadova in Occidente da oltre un secolo si erano affermati, come único libro per lacelebrazione dell’Ufficio orario, il Breviario e, come libro único per la celebrazione dellaMessa, il Messale cosiddetto ‘plenario’... Del Breviario ... erano venuti a far parte ilSalterio, l’Antifonario, l’Innario, il Lezionario, il Responsoriale, l’ Evangeliario e l’Omeliario, prima raccolti in altrettanti libri differenti. Dall’ambiente monastico, dovecominciò ad essere usato nel sec. XI, il Breviario si diffuse ben presto in tutti gliambienti ecclesiastici divenendo, per la sua maggiore praticità, il libro ufficiale ancheper la celebrazione dell’ ufficio corale... Sotto il pontificato di Gregorio VII (1073-85)si può dire che la liturgia in tutto l’Occidente era sostanzialmente romana nella suastruttura ed erano già in uso sia il Breviario che il Messale plenario ...”.

56 In: “La tecnica e l’indole del Sermone medievale ed i Sermoni di S. Antonio daPadova”, Studi Francescani, 31 (1934), p. 201-202: “... La promessa in generale èmantenuta, specie dalla prima Domenica dopo Pentecoste in poi; ma vi sono nonpoche eccezioni ... Come si possono spiegare queste anomalie?... Una spiegazione piùpropia si trova in ciò che Antonio nel comporre la Mistica Quadriga si sia servito, comeho accennato, di un materiale che giá precedentemente aveva disposto in sermoni,iquali con qualche ritaglio e ritocco sono entrati in questa composizione sistematica ...”.O estudioso, nas páginas seguintes (203-204), a fim de corroborar seu ponto de vista,arrola uma série de exemplos assaz interessantes.

57 In: “La Struttura del sermo Antoniano”, Atti del Congresso Internazionale di Studio suiSermones di S. Antonio di Padova, ed. cit., p. 93-104.

58 Art. cit., p. 35: “... È da ritenere dunque che la quadriga sia il nucleo originario deiSermones dominicales, ma che il Santo nella redazione finale a Padova abbia aggiunto almateriale originario altro materiale utilizzato in altre occassione ... sembra certo, adesempio, che il primo dei due sermoni della Domenica I di Quaresima abbia avuto un’origine indipendente dalla quadriga, brevissimo e incentrato sul vangelo della ‘tentazionidi Gesù’ senza referimento alle altre ‘ruote’ della quadriga. Nella Domenica II diQuaresima, troviamo due sermoni, uno sulla ‘Transfigurazione’, secondo il rito dellaCuria romana, e l’altro sulla Cananea, letto in altri luoghi, come in Francia; e in terrafrancese potrebbe essere stato scritto questo secondo sermone, utilizzato poi dal Santoin fase di redazione finale ...”.

Page 138: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

138

JOSÉ ANTÔNIO DE C. R. DE SOUZA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011

Para melhor entendimento do leitor sobre esse procedimento, é

preciso esclarecer dois pontos, a saber, a concordância a que Antônio se

referia que ia fazer concerne às ideias ou aos assuntos a abordar59 e,

aplicada amplamente aos passos do Antigo e do Novo Testamento,

significa que ambos constituem-se num todo, a Bíblia, a palavra de

Deus revelada de maneira especial pelo Verbo60 não, propriamente, à

combinação de palavras e ou frases entre si, embora isto também pu-

desse acontecer. Tecnicamente, Jaques Guy Bugerol OFM e G. Dahan61

designam esse procedimento por concordância temática.

O outro ponto concerne a uma novidade, no mínimo interessan-

te, introduzida pelo Doutor Evangélico nesta parte de sua obra. Ao

59 FONSECA, L. Gonzaga da, SJ., art. cit., p. 681: “... São sugeridas por uma palavrapreponderante do texto a comentar, palavra que o orador frequentemente introduz nocomentário, quando não a encontra no próprio texto; outras vezes, é, antes, o pensa-mento que se quer explicar, confirmar ou demonstrar que chama outros e outros passosbíblicos, onde o mesmo pensamento aparece ou se faz aparecer ...”. O estudioso portu-guês, às p. 681-684, demonstra como o Santo fazia a mencionada concordância,analisando o “Sermão da III Dominga da Quaresma”.

60 DAHAN, G. art. cit., p. 173, 177: “... L’affirmation que Jésus est l’exégète véritablen’est ni une image ni une pieuse pensée, mais un principe herméneutique... la lignedirectrice principale de leur interprétation… la Bible fournit à la fois un contenu (unsavoir, une réflexion sur Dieu, sur le monde, sur l’homme) et une langage (qui est lemoyen d’accéder à ce savoir) ...”.

61 Art. cit., p. 175: “... Ainsi, dans le sermon pour le 1er dim. de carême, Antoine faitconcorder un épisode de la Genèse, la tentation d’Eve par le serpent (Gen. 3, 1-5) etun récit de Matthieu, la tentation de Jésus par le diable (Matth. 4, 1-5); la mise enparallèle des versets souligne la proximité des deux textes...” Antes mesmo, GustavoCantini OFM Conv., in : “La tecnica e l’indole del Sermone medievale ed i Sermoni di S.Antonio da Padova”, Studi Francscani, 31 (1934): 204, já havia explicado como entendercorretamente aquela expressão antoniana, dizendo o seguinte “(...) La concordanza di cuisi parla qui (...) si tratta di porre in rilievo come le affermazioni e pensieri contenuti nelVangelo, ed anche nelle altre tre parti della Liturgia, trovino armonia e consonanza in altreautorità bibliche tanto del nuovo che del vecchio Testamento. È la caratteristica intima diogni sermone medievale...Il metodo che usa Antonio per introdurre questi testi diconcordanza, in generale è quello di citare prima le parole del Vangelo, spiegare brevemen-te il loro significato, e poi recare il testo di concordanza ...”.

Page 139: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO ANTÔNIO...

139Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011

invés de ter escrito seus sermões de acordo com o calendário da Igreja,

o qual, desde o século IX na Cristandade Ocidental, até hoje, começa

com o 1º Domingo do Advento e termina com o último Domingo

de Pentecostes, cujo número, então, podia variar, entre 22 e 24, con-

forme o domingo em que caísse a festa (móvel) da Páscoa, organizada a

partir do calendário lunar de 28 dias, Antônio optou por seguir um outro

caminho, qual seja, o de tê-los escrito correlacionando-os com as leituras

do Antigo Testamento que eram feitas de acordo com a recitação do Ofí-

cio Divino, a oração litúrgica oficial da Igreja. Assim, o 1º sermão refere-se

ao antigo Domingo da Septuagésima, em cuja época do ano, as predi-

tas leituras eram tiradas do 1º livro bíblico, o Gênesis, e o último, ao

antigo 3º Domingo depois da oitava da Epifania.

Em suma, compartilhando da opinião de G. Dahan face ao minu-

cioso estudo que fez da exegese antoniana62, afirmamos que o Menorita

olisiponense também lançou mão de todos os recursos que a

hermenêutica de seu tempo havia alcançado, paralelamente, tendo con-

servado o que a exegese monástica tinha de melhor, e tendo sido recep-

tivo às novas contribuições desenvolvidas nas escolas urbanas (catedrá-

ticas e canônicas), o que pode ser confirmado, de um lado, mediante

as fontes de sua opera, que indicamos páginas atrás e, de outro, é

suficiente referir que, em vários trechos de sermões usou o sentido

literal bíblico63; que, para Hugo de São Victor, os animais menciona-

dos nas passagens bíblicas assumem um significado alegórico e repre-

sentam Cristo, Adão, Eva etc., “... in Antonio significano i vizi e le

virtù: la continenza, la clemenza, la povertà di spirito, l’ira, l’ipocrisia, il

62 Observa Maria Cândida Pacheco art. cit., 1999, p. 198, que se trata de “... um dostemas antonianos mais estudados nas últimas décadas..., e reflecte as tendências de suaépoca e de sua própria formação (...)”.

63 FONSECA, Luís G. da, SJ, art. cit., p. 687-691, arrola uma série de exemplos dessetipo de uso.

Page 140: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

140

JOSÉ ANTÔNIO DE C. R. DE SOUZA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011

falso cristiano etc...”64. Ademais, ao contrário de São Bernardo e dos

outros membros da escola exegética a que pertencia o Melífluo, o

Doctor Evangelicus não recorreu às citações da Escritura, ou dos Padres

da Igreja ou das Glosas para comprovar um ponto doutrinal que dese-

java transmitir. Para ele, o trecho da Palavra, objeto da reflexão e ex-

planação, simultaneamente, é o seu começo e o seu fim. As citações

dos Padres, das Glosas ou de outras fontes, apenas serviram-lhe de

instrumento ou de caminho para chegar a um entendimento mais pro-

fundo do mesmo65.

Também, constatamos atitude semelhante da parte de Antônio

no que respeita à abertura de espírito para acolher as inovações técnicas

preconizadas pelos especialistas de então na oratória sacra66 e, tal é o

caso da organização formal ou interna que deu à maior parte de seus

sermões, dividindo-os em tema, exórdio ou protema, cláusulas ou

partículas, exposição ou explicação, e epílogo ou conclusão67.

64 CANTINI, G. OFM Conv. “La tecnica e l’indole del Sermone medievale ed iSermoni di S. Antonio da Padova”, Studi Francscani, 31 (1934), p. 198.

65 DAHAN, G. art. cit. p. 177: “... L’exégèse de saint Antoine, même si elle ne renonceà aucune des richesses de l’exégèse traditionelle, notamment de l’exégèse monastique,n’est pas tournée vers le passé: le repprochement avec les sermons universitaires composésdans le premier tiers du XIIIe siècle, particulièrement à Paris, confirme qu’Antoineparticipe au mouvement de son temps...”.

66 Cf. REMA, Henrique Pinto, OFM, “A Retórica em Santo António de Lisboa nocontexto português e europeu da Idade Média”, in: A Retórica Greco-latina e a suaperenidade, Actas do Congresso (Coord. José Ribeiro Ferreira), Instituto de EstudosClássicos, Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra, 11 a 14 de Março de 1997,vol. II, Porto, Fundação Eng. António de Almeida, p. 497-518.

67 DAHAN, G. art. cit., p. 157: “... Dans la divisio textus, saint Antoine recourt à quatretermes essentiellement: clausulae, notabilia, particulae, partes. En fait, ils ne sont páséquivalents et l’on a affaire à deux séries: d’une parte, clausulae et notabilia, qui necorrespondent pas à la structure du texte mais à ses idées fortes, autour desquellesAntoine organise sa matière... Dans de nonbreux sermons particulae (appliquégénéralement à l’épître) s’oppose à clausulae (appliqué à l’évangile...”.

Page 141: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO ANTÔNIO...

141Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011

Em geral, os protemas nos Sermones Dominicales, obviamente,

hauridos no evangelho lido na missa do dia e articulados com um

lanço do Antigo Testamento, que nas outras partes do sermão poderá

ser retomado, para além de serem variadíssimos, às vezes são sucintos,

às vezes são mais extensos e, nestes casos, constituem-se, até certo

ponto, em minisermões, dirigidos, especialmente, por exemplo, aos

pregadores, aos prelados, aos fiéis indistintamente, a determinados tipos

de pecadores e aos vícios que praticam ou, ainda, reportam-se à prática

das virtudes ou a temas doutrinas, como a Paixão de Cristo.

Quase sempre, o tema68 dos Sermões Dominicais é um trecho ou

uma passagem evangélica lida na missa do dia, tomado na íntegra ou

parcialmente, que está presente em todo o texto do sermão, o qual,

adiante, o Santo explicou minuciosamente, o dividido em partes,

designadas por cláusulas, sem um número fixo, explicação essa feita de

acordo com as possibilidades de interpretação que a passagem permitia,

cujo resultado eram outros pequenos sermões secundários de caráter

moral ou anagógico etc.69

68 CAEIRO, F. da Gama, op. cit., p. 191: “... O tema inicial do sermão dominical é, emregra, constituído por um texto do Evangelho do dia; a estes Sermões chamou mesmoo Santo ‘Evangelia’... Quase sempre o Santo emprega a expressão tema para indicar otexto-base de todo o sermão... mas considera algumas vezes como temas os textosbíblicos sobre os quais assentam as várias cláusulas em que dividiu o sermão e quefuncionam também como ‘sermões’, embora sermões secundários, no sentido de partesintegrantes do sermão principal...”.

69 Ibidem, p. 192-193: “... Desenvolvido mais ou menos o protema..., é então recorda-do o tema principal do sermão e efectuada a sua conveniente explanação e desenvolvi-mento. Quando o tema dava para tal, era sua matéria dividida em partes com certaligação entre si, a que o Santo chamou cláusulas, de número maior ou menor, conformea necessidade. Em geral, as cláusulas eram três, mas há sermões com duas e alguns comquatro e mesmo cinco. Estas cláusulas eram novos sermões mais simplificados, partindocada uma de seu tema, quase sempre diverso do tema geral, mas, no contexto de cadaum havia ligações ou concordâncias com o tema geral e, às vezes, continuavam ali asconcordâncias com a epístola e o intróito da missa dominical que se não tinham chega-do a fazer no sermão de entrada, ou ‘sermo prior’...”.

Page 142: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

142

JOSÉ ANTÔNIO DE C. R. DE SOUZA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011

Os epílogos, sob a forma duma oração, contêm “... em síntese

muito curta, a matéria do sermão, ou de um de seus aspectos mais

salientes, acabando-a com a invocação da misericórdia divina ou com

o louvor de Deus e dos seus atributos...”70.

Enfim, queremos ressaltar mais dois aspectos presentes nos Sermones

Dominicales. No Epílogo conclusivo Antônio designou explicitamente

seu trabalho por opus evangeliorum, quer dizer, Obra dos Evangelhos,

dando a entender, claramente, que seu livro se alicerçava, precipuamente,

nos quatro Evangelhos, e que, por isso mesmo, fugia dos padrões co-

muns dos sermonários, então em uso. Um pouco mais adiante ele

também afirma: “... E tudo o que for encontrado neste volume digno

de rasura e correção, deixo à lima da discrição dos sábios da Ordem o

torná-lo claro e emendá-lo...”71. Se, por um lado, esta frase era usual-

mente utilizada pelos autores da época, ao final de seus escritos, por

outro, é também um importante testemunho de que, em pouco mais

de vinte anos de existência, a Ordem dos Menores já contava entre

seus membros pessoas cultas e capazes de ajuizar aquele texto.

Por último resta dizer algo sobre a segunda parte da opera sermonária

antoniana, a qual é constituída pelos Sermones in Solemnitatum

Sanctorum per anni circulum ou Festivos, escrita a pedido do Cardeal-

bispo de Óstia, Rinaldo dei Conti di Segni, sobrinho dos pontífices

Inocêncio III (1198-1216) e Gregório IX, e, mais tarde, papa, eleito

em 12 de dezembro de 1254, sob o nome de Alexandre IV, na altura,

Protetor do Ordo Minorum, o qual tendo tomado conhecimento dos

Sermones Dominicales, apreciando o seu valor, e tendo visto e ouvido

Antônio pregar aos integrantes da Cúria Romana (1230), solicitou-

lhe que escrevesse algo parecido no tocante às festas dos santos.

70 Ibidem: p. 192-193.

71 Ed. cit., p. 613-614.

Page 143: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO ANTÔNIO...

143Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011

O Menorita lusitano atendeu ao pedido do cardeal Rinaldo e co-

meçou a escrever os Sermones Festivi, em Pádua72, onde se radicou

logo após ter deixado de exercer o cargo de Ministro Provincial da

Romanha e ter cumprido com a missão que os frades capitulares havi-

am-lhe (e a outros irmãos) confiado junto à Cúria Pontifícia, incum-

bência tal que não deve ter se estendido para além do correr de agosto

daquele ano. Todavia, Antônio não chegou a concluir a redação deste

conjunto, cujo último sermão é dedicado a São Pedro e São Paulo (a

festa em seu louvor era celebrada em 30 de junho), porque, como se

sabe, veio a falecer em 13 de junho de 1231, o que, igualmente, leva a

supor que não teve tempo de revisá-lo, como, certamente, deveria ter

tido a intenção de fazê-lo73.

Ao nosso ver, nesta parte da opera o Doutor olisiponense acompa-

nhou o supra-referido calendário litúrgico da Igreja, pois o 1º sermão

concerne ao Natal do Senhor, o 2ª a Santo Estêvão (festejado em 26 de

dezembro), o 3º a São João Evangelista (celebrado em 27 de dezem-

bro), o 4º aos Santos Inocentes (28 de dezembro), e, assim, quase

sucessiva e cronologicamente, apesar de, sob essa perspectiva poder ser

formulada a seguinte indagação: por que Antônio não fez sermões em

louvor a Santa Catarina, a Santo André, a São Tomé, Apóstolo, a San-

72 A propósito, muito oportunamente, observa Henrique P. Rema OFM, Introdução, p.XXX: “... é natural que o nosso Doutor Evangélico tenha começado a recolher mate-riais para a futura obra quando lhe confiaram o ofício de pregar em 1222 e o de ensinarem 1223...” (cf. também COSTA, F. OFM Conv. “Sermoni antoniani e Libri Liturgici”,in: Atti..., 1982, p. 141).

73 CANTINI, G. OFM Conv., “La tecnica e l’indole del Sermone medievale ed iSermoni di S. Antonio da Padova”, Studi Francscani, 31 (1934), p. 217: “... Antoniointerrompe il lavoro per consacrarsi interamente al ministerio della predicazione, e loriprende quando gli agricoltori non possono più seguire Antonio predicatore, perchèurgevano i lavori della campagna. Allora Antonio si porta in Campo S. Piero... Peròsorella morte viene a troncare la sua esistenza, e così il lavoro rimane poco più che ametà, e rimane non finito anche l’ultimo sermone che è quello della Commemorazionedi S. Paolo, 30 giugno...”.

Page 144: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

144

JOSÉ ANTÔNIO DE C. R. DE SOUZA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011

to Tomás Becket (1118-1170), arcebispo primaz da Inglaterra, marti-

rizado em sua catedral pelos asseclas do rei Henrique II, e canonizado

por Alexandre III (1159-81) em 1172, e a São Silvestre, 314-337,

cujas respectivas festas são (eram) celebradas em 25 e 30 de novembro;

21, 29 e 31 de dezembro? A indagação não se aplica à festa em louvor

da Imaculada Conceição de Maria, aliás, enaltecida pelos Franciscanos

desde João Duns Escoto (1266-1308), também designado por Dou-

tor Mariano, porque esta festa só veio a ser introduzida, após a procla-

mação do Dogma correspondente, em 8 de dezembro de 1854.

Esses sermões, formalmente num total de 20, se apóiam nas mes-

mas fontes anteriormente referidas, particularmente nas Glosas, bem

como nos Dominicales, mas têm uma estrutura interna bem mais sim-

ples do que aqueles, porque, em geral, nutrem-se no Evangelho lido

na missa do dia do qual o Santo extrai diretamente o tema, e que é

explicado frase por frase ou parte por parte (cláusulas ou partículas),

mas sem longas digressões, gravitando, muitas vezes, em torno dos

ensinamentos relativos à fé74, mas deles não consta o protema ou

exórdio75 e exclui-se a articulação ou concordância com a Epístola, o

74 CANTINI, G. OFM Conv., art. cit., p. 218-219: “... Noto innanzi tutto che nellaspiegazione o commento di questi Vangeli, Antonio si è molto servito della Glossa, siaordinaria che interlineare, specie quando delle parole evangeliche dà una spiegazioneallegorica... La spiegazione evangelica in quest’Opera è assai più breve, in generale, chenella Mistica Quadriga... Per altro la cura maggiore di Antonio, anche qui, è quella diestrarre il burro dal latte della parola evangelica, vale a dire anche qui tende a moralizzare...”.

75 Há duas exceções. Uma é o sermão em louvor à Ressurreição do Senhor (essa é suadesignação) e a outra, à Festa do Pentecostes. Todavia, o tema e o exórdio do primeirofundamentam-se em passos do Antigo Testamento a partir dos quais o Santo escreveuum sermão alegórico, dois morais e um outro anagógico, cujas conclusões aparecem soba forma do epílogo convencional. Quanto ao segundo, o tema e o exórdio respaldam-se em Jo 14,26: “O Espírito Paráclito, que o Pai enviará em meu nome, vos ensinarátodas as coisas e vos recordará tudo que vos tenho dito”. Depois vêm um sermão literal(o único neste conjunto), um outro alegórico e um terceiro, moral, cujos dois últimoshaurem-se em Daniel 7, 10 “De diante do Ancião dos dias saía um impetuoso rio defogo”. A palavra fogo é o eixo para a concordância.

Page 145: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

A OBRA SERMONÁRIA DE SANTO ANTÔNIO...

145Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011

Intróito e com trechos vetotestamentários. Ao final da exposição, to-

dos contêm um epílogo.

Por outro lado, o mesmo passo evangélico abre caminho para a

elaboração de outros dois (breves) sermões paradigmáticos, ou alegó-

ricos ou morais, os quais se articulam, tematicamente, com trechos

tirados do Antigo Testamento ou das hagiografias, conforme o caso,

que estão divididos da sobredita maneira, para facilitar a sua explana-

ção, também de acordo com os modelos exegéticos, referidos páginas

atrás. A título de exemplos, o sermão dedicado à festa da Cátedra de

São Pedro é acompanhado por mais dois sermões alegóricos e mais

dois morais; o em louvor à Ceia do Senhor traz dois sermões alegóri-

cos e um anagógico76, o em louvor a S. Pedro e São Paulo traz um

alegórico em louvor a ambos, um outro desse tipo, exclusivamente

em louvor a São Paulo, e mais dois morais. É de se notar, ainda, a

recorrência frequente a uma interpretação figurada moralizante dos

seres da natureza e dos nomes próprios77.

A modo de conlusão, nas páginas precedentes, pensamos ter apre-

sentado ao leitor a valiosa contribuição inovadora do Santo à exegese

medieval, fundada em sua vasta bagagem cultural e em sua formação

intelectual, obtidas nas canônicas agostinianas de São Vicente de Fora,

em Lisboa e em Santa Cruza de Coimbra.

76 Nesse conjunto há apenas dois sermões desse tipo.

77 CANTINI, Gustavo. Ibidem, p. 222: “... Noto che la descrizione di questi animaliqui è più sintetica e più stringata, che nella Mistica Quadriga; poche parole per delinearlie poi si passa all’applicazione... Noto in secondo luogo... a differenza del primo, glianimali hanno pure un significato allegorico. Così la pantera, la calandra, il pellicano, lagallina il verme sono simbolo di Gesù Cristo; e si capisce che il serpente sia simbolo deldiavaolo... noto anche qui di passagio che nella presente opera vi sono elementi cherivelerebbero una dipendenza da Ricardo da S. Vittore, sia nella descrizione, sianell’applicazione simbolica di alcuni animali”.

Page 146: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

146

JOSÉ ANTÔNIO DE C. R. DE SOUZA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 115-145, jan./jun. 2011

Page 147: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

COMENTÁRIOSCOMENTÁRIOSCOMENTÁRIOSCOMENTÁRIOSCOMENTÁRIOS

Page 148: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde
Page 149: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

INTRODUÇÃO À LEITURA ESPIRITUAL, HOJE

149Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 149-164, jan./jun. 2011

INTRODUÇÃO À LEITURAESPIRITUAL, HOJE

Hermógenes Harada *

Algo sobre leitura espiritual

1. Leitura espiritual é uma das atividades recomendadas para o

fomento da vida espiritual. Trata-se na leitura espiritual primeiramen-

te de leitura, que tem o caráter de ser espiritual.

2. Leitura é uma das atividades exercidas e exercitadas pelo ser hu-

mano como manifestação do seu espírito. Usualmente o que lemos re-

cebe o nome de livro.

3. Na era da computação, fala-se muito de que o livro tem vida já

contada, pois vai ser substituído pelo computador. Independente de se

isso vai acontecer ou não, é de inter-esse observar que o modo de ser

do livro e da sua leitura tem propriedade específica dele, de tal sorte

que, quem consegue ver essa especificidade sempre apreciará a leitura

do livro e, embora seja inteiramente afeiçoado à técnica da computa-

ção, não irá substituir simplesmente, como se fossem coisas iguais, a

experiência da leitura de um livro pela “leitura” de um “texto” do com-

putador.

* Escrito póstumo.

Page 150: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

150

HERMÓGENES HARADA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 149-164, jan./jun. 2011

4. Existem livros escritos sobre uma porção de coisas. Os livros

que foram escritos sobre uma coisa, mesmo que essa coisa se chame

espírito não são espirituais. Pois, escrever ou falar sobre uma coisa, e

correspondentemente ler ou ouvir sobre... tem um modo de ser todo

próprio, que é diferente do modo de ser do escrever, falar, ler ou ouvir

espiritualmente.

5. No caso do escrever ou falar, ler ou ouvir sobre não se tem pro-

priamente o modo de ser do encontro, mas sim um modo de colocar a

coisa sob o ponto de vista do projeto do meu interesse. Por isso a

primeira coisa que me toca ali é o horizonte, é a perspectiva a partir e

dentro da qual olhamos para uma coisa, sobre uma coisa, ordenando-

a, ajeitando-a, submetendo-a ao meu ponto de vista. Esse modo de

ordenar, de encaixar a realidade à perspectiva do ponto de vista, se

chama modo de ser objectivo.

6. Muitas vezes usamos os termos objetividade e objetivo para indi-

car realidade e real. Essa identificação da objetividade com a realidade

e do objetivo com o real não possui a precisão crítica. Assim, o real não

é igual ao objetivo; a realidade não é igual à objetividade. Objetivida-

de, objetivo, objeto; realidade, real, res (latim = coisa) são categorias

usadas a partir de duas situações de todo próprias do sentido do ser

que decide a epocalidade das épocas denominadas na história da hu-

manidade de Modernidade e Antiguidade.

7. Se mantivermos com precisão a distinção acima feita entre ob-

jetividade e realidade, não mais estranhamos quando dizemos que a

objetividade, o objetivo, o objeto é o que aparece na perspectiva do enfoque

da subjetividade.

8. Subjetividade indica não este ou aquele sujeito, este ou aquele

grupo de sujeitos, mas sim o modo como um determinado sentido

do ser vem à fala, compreendendo o ser humano como ser sujeito e

agente de suas ações e estas como interpelações produtivas, e a realidade

Page 151: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

INTRODUÇÃO À LEITURA ESPIRITUAL, HOJE

151Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 149-164, jan./jun. 2011

como o conjunto de produtos (pro-jectos) das atuações do agenciamento

do perfazer-se desse ser sujeito nessas interpelações produtivas.

9. Realidade indica, não esta ou aquela coisa (res em latim), este

ou aquele grupo de coisas, mas sim o modo como um determinado

sentido do ser vem à fala, compreendendo o ser humano como uma

das intensidades de ser substância, cujo ser é entendido como um em

si, por e para si. Aqui, a realidade e suas coisas não são produtos da

interpelação projetiva do inter-esse do sujeito e agente homem, mas

sim vigência do ser que se realiza em diferentes níveis e densidades da

sua presença como ordens e esferas das entidades ou coisidades.

10. Aqui observamos que o como do falar, escrever e ler da subjeti-

vidade é sobre objeto. O como do falar escrever e ler da realidade é o em

participando da vigência do ser em diferentes níveis da sua densidade

como substância.

11. Nessa diferença do modo de ser epocal, tanto da Antiguidade

como da Modernidade, surge sempre a questão: “Entre” essas duas

totalidades há ligação, continuidade, ruptura, ou complementação?

Há “entre” elas algo de comum, geral? Se não houver, como podemos

nós, hodiernos, ler um livro da Antiguidade?

12. Na realidade, essa é uma questão dificílima de ser respondida

adequadamente, a partir das impostações que fazemos com nossas pro-

blemáticas. Mas, em todo o caso, percebemos que no fundo do modo

de ser do todo chamado subjetividade (falar, escrever e ler sobre) e

realidade (falar, escrever e ler conascendo) há um fundo anterior, algo

não dito, oculto qual abismo do não saber insondável e sem fundo.

Com outras palavras, ambas as colocações epocais, no fundo, partem

do retraimento de onde, a partir de que e de que coisa?

13. Estar aberto a essa questão, a essa busca, não por curiosidade

de que tipo for, mas sob o toque de uma profunda afeição e necessida-

de de uma “vida Severina” de “encontro” é o que a grande tradição do

Ocidente denominou de Espírito ou espiritual.

Page 152: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

152

HERMÓGENES HARADA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 149-164, jan./jun. 2011

14. Seja quem for, analfabeto ou letrado, criança ou adulto, são

ou enfermo, santo ou pecador, cada qual como é facticamente, se quer

fazer uma leitura espiritual, é necessário que o faça a partir e dentro

dessa aberta, dentro e a partir dessa nuvem do não saber.

15. Essa leitura a partir da nuvem do não saber é como se a própria

coisa escrevesse, falasse, lesse ou ouvisse acerca de si mesma a partir de

si. E isso com suas próprias palavras, sem querer se encaixar nenhum

ponto de vista que não seja a própria coisa ela mesma. Aqui toda a

atenção e todo o cuidado devem estar concentrados em deixar ser, dar

espaço livre para que a coisa ela mesma apareça a partir dela, nela mes-

ma, à vontade. Aqui o eu que escreve, fala, lê ou ouve não é sujeito e

agente de uma ação interpretativa, projetiva, impositiva de condição

para a coisa aparecer (cf. o primeiro modo de escrever, falar, ler e ouvir

sobre), mas é pura e límpida abertura de recepção cordial e afinada ao

surgir, crescer e consumar-se da coisa ela mesma, é ser como que caixa

de ressonância da coisa ela mesma.

16. Esse modo de ser do espaço aberto à ressonância da coisa ela

mesma é o que se denomina muitas vezes de ver simples e imediato na

disposição de abertura ao encontro. Mas, como na nossa maneira usual

de entender fixamos o ver como julgar ou lançar perspectivas, em vez

de ver, auscultar, ouvir atentamente, talvez fosse melhor dizer esperar o

inesperado. Esse ver simples e imediato, esse auscultar, esse ouvir não é

passividade. Pelo contrário, trata-se da máxima atenção plena de aco-

lhimento, é o grau mais alto e denso do conhecimento, entendido

como conascimento (em francês conhecer é con-naître, conascer). Esse

modo de ser de acolhimento se diz em grego antigo légein, donde vem

a palavra Logos, que se traduz geral e usualmente por conversa, discur-

so, pensamento, espírito, razão, mas cuja tradução mais originária se-

ria talvez acolhida, colheita. Por isso, os gregos antigos definiam o ser

humano como sendo o vivente, o ânimo, como coragem de ser atinente

e pertencente ao Lógos. (Tò zôon lógon écchon) essa definição foi então

Page 153: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

INTRODUÇÃO À LEITURA ESPIRITUAL, HOJE

153Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 149-164, jan./jun. 2011

traduzida para a língua latina e ficou animal rationale, que em portu-

guês é: homem é animal racional. Mas essa definição é entendida de

modo inteiramente inadequado, quando se interpreta a palavra ani-

mal como bicho, bruto, e, racional como racionalista, cerebral. Ani-

mal, na definição clássica do homem, significa coragem criativa de ser,

o ânimo vivo; racional, referido ao Logos, à plena atenção de colheita

do ser, de acolhida da coisa ela mesma.

17. Quando usamos a expressão leitura espiritual, podemos en-

tender o adjetivo espiritual de diversos modos. Podemos entender o

espiritual como indicando o objeto da leitura. Por exemplo, posso clas-

sificar um objeto como pertencente à classe dos objetos do espírito, por

exemplo, votos religiosos, virtudes, Deus, anjos, alma, encontro, amor;

à classe dos objetos físico-naturais (da natureza), por exemplo, pedra,

animais, plantas; dos objetos da cultura, por exemplo, obras de arte,

monumentos etc.

18. Quando a leitura é classificada conforme o seu objeto, então,

temos o modo de ler, descrito lá em cima como leitura sobre. E assim

podemos denominar esse tipo de leitura sobre de leitura historiográfica,

leitura psicológica, leitura sociológica, leitura prática, técnica, leitura lite-

rária, estética, religiosa, moralizante, fundamentalista, espiritual,

espiritualista etc.

19. Mas na expressão leitura espiritual o adjetivo espiritual pode

não estar se referindo ao objeto, mas à leitura. Nesse caso leitura espiri-

tual significa ler espiritualmente. E se a gente pergunta: qual é exata-

mente esse modo todo próprio de ler espiritualmente, a gente agora

pode responder: é exatamente aquele modo de ler, de colher, de rece-

ber, vivo e cordial, grande e profundo, infinitesimalmente diferencia-

do que está exposto acima nos ns. 13, 14, 15 e 16. Aqui a abertura ao

encontro não deve ser confundida com o olhar sem mais nem menos

imediatista conforme o uso padronizado dos nossos ajuizados, pré-

Page 154: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

154

HERMÓGENES HARADA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 149-164, jan./jun. 2011

conceitos ou opiniões. O ver simples e imediato na disposição de aber-

tura ao encontro é a evidência que se dá no fundo de nossa alma, e na

maioria dos casos está entulhada por outros tipos de saber, que não

possuem esse caráter de limpidez e imediatez do ânimo e da prontidão

pura. Por isso, deve-se trabalhar duramente para que esse entulho seja

afastado e que apareça com todo o esplendor e pureza a clarividência

de fundo da alma.

20. Essa nossa reunião se chama encontro e não tanto curso. Isso

porque no curso se acumulam informações e saberes sobre objetos do

tema das nossas reflexões. Chama-se encontro, pois em tudo que faze-

mos na reunião não fazemos outra coisa do que exercitar-nos em ver

de modo simples e imediato, na disposição de abertura ao encontro. Em

nos exercitando longa, tenaz e cordialmente nessa disposição, aos pou-

cos nos vamos abrindo para a recepção agraciada do que a grande tradi-

ção do cristianismo chamou de Espírito do Evangelho. E o Espírito do

Evangelho é o sopro vital da espiritualidade cristã, a Vida Espiritual.

21. O nosso modo de compreender usualmente a nós mesmos e

os nossos atos está bastante defasado. Por isso, quando nos reunimos e

nos concentramos para um período de leitura de fontes, começamos a

ter dificuldades, antes nunca sentidas. É que o nosso modo de estudar,

aprender, é de se informar sobre as coisas e entendê-las conforme

parâmetro e tabela de programação que temos na nossa mente. Ler e

pensar e descobrir o que está sendo dito ali nós quase nunca fazemos.

Porque raríssimas vezes exercitamos o pensar, sem perceber, vivemos

desde há muito tempo numa inércia e preguiça mental muito grandes.

A nossa não compreensão vem dessa inércia, e não tanto porque so-

mos analfabetos, não estudados. Quando começamos a leitura espiri-

tual e nos exercitarmos com maior volume e intensidade, vamos so-

frer muita frustração e tédio com a inércia da nossa mente. Vamos

sub-portar, sustentar com boa disposição esse tipo de dificuldade e

sofrimento. Sem passar por esse tirocínio, não podemos ser espiritu-

Page 155: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

INTRODUÇÃO À LEITURA ESPIRITUAL, HOJE

155Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 149-164, jan./jun. 2011

ais. Quando eu descubro uma defasagem dentro de mim, não devo

me satisfazer em corrigir somente essa defasagem.

22. Para que a leitura espiritual possa ser feita adequadamente,

hoje, e não permaneça apenas uma leitura espiritualista, da qual pode

vir muito consolo e vivências “emocionais”, sem transformação da nossa

existência, é necessário redescobrir e retomar a dimensão onde direta e

imediatamente se dá o espiritual e o espírito, e então exercitar-se longa

e tenazmente nessa “área”. Para essa retomada e redescoberta, é útil e

necessário entender até certo ponto bem, com precisão, a nossa impli-

cação com o saber científico e o saber usual. Por isso, vamos rapida-

mente refletir sobre esse tema.

Algo sobre o saber científico e o saber usual

23. Muitas de nossas questões, perguntas e respostas podem ser

ambíguas. Ambíguo é diferente de equívoco. Este último se dá quando

a pergunta não atinge a questão, dela está inteiramente por fora, está

de todo enganada. Resposta à questão equívoca não é complicada, pois

basta mostrar que a pergunta está por fora da questão. Pergunta ambí-

gua é quando nela estão implícitas, digamos, empacotadas várias per-

guntas, de diferentes pressuposições, com diferentes níveis de compre-

ensão. E, em geral, esse empacotamento não é percebido, tanto por

quem pergunta como por quem quer responder. Há ambiguidade no

sentido lato e estrito. No sentido lato é quando a simultaneidade sig-

nificativa vem do empacotamento de significações diversas, num úni-

co termo, por exemplo, o termo entre pode significar: pode entrar e

também o permeio existente entre duas coisas. O nosso professor de

inglês nos contou que havia uma pessoa que queria mostrar que sabia

inglês. Assim, quando alguém bateu à porta, gritou: between!

Ambiguidade, em sentido estrito, temos quando o sentido de um ter-

mo ou de uma frase nos evoca uma realidade, cujo modo de ser con-

Page 156: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

156

HERMÓGENES HARADA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 149-164, jan./jun. 2011

tém em si profundidade e densidade de ser que não se deixa explicitar

num ou mais termos.

24. Há usualmente confusão de compreensão mútua, quando se

discute, mormente, entre pessoas estudadas e especializadas. Isto por-

que cada qual fala e escuta a partir de pressuposições de sua própria

disciplina, na qual é especialista.

25. Nessa questão, a maioria de nós pensa mais ou menos o se-

guinte:

a) Certamente, existem colocações e perspectivas que vêm da espe-

cialização. A especialização tem a sua terminologia, a sua linguagem

própria. Assim, a fala especializada das disciplinas de especialização tem

a sua língua própria. Por isso, a economia tem o seu economês. A

filosofia tem o seu filosofês. E assim adiante: matematês, sociologuês,

psicologuês, pedagoguês, teologuês etc.

b) Mas para além ou por cima de todos esses “especializês” há a fala

geral, comum, compreensível a todos que falam a mesma língua. Por exem-

plo, termos como número, globo terrestre, pensamento, idéias, Deus, ho-

mem, cachorro, cachorro-quente, quente de mais, átomo, molécula, célula,

celular, trânsito, lei de trânsito, multa, guarda de trânsito caolho, papa, Igreja

Católica, a espiritualidade franciscana, o Colégio Bom Jesus etc. etc., todo

mundo entende. Para compreender todos esses termos, a gente não precisa

ser especialista, nem fazer um curso especializado. Basta o uso cotidiano.

Mas é ai que nos enganamos redondamente.

26. Em nossas reflexões, distinguimos duas grandes áreas da com-

preensão da realidade que denominamos compreensão científica da rea-

lidade e compreensão pré-predicativa ou pré-científica da realidade. Aqui,

podemos relacionar o que acima falamos há pouco no n. 25 b) à res-

peito da compreensão pré-científica da realidade. Essa compreensão é o

que está na linguagem comum, usual do cotidiano, e é entendida por

todos, pensamos nós. E há pouco dissemos: Para entender todos esses

Page 157: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

INTRODUÇÃO À LEITURA ESPIRITUAL, HOJE

157Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 149-164, jan./jun. 2011

termos, a gente não precisa ser especialista, nem fazer um curso especi-

alizado. Basta o uso cotidiano.

27. Aqui reside uma grande ambiguidade, a qual, se não for

esclarecida, nos leva à equivocação. É o seguinte: O que de imediato

experimentamos como realidade pré-científica e sua compreensão e

identificamos com a vida usual, comum, cotidiana de toda a gente, de

todo mundo é na realidade um abismo insondável e inesgotável da

possibilidade de ser que na perplexidade diante de sua imensidão, pro-

fundidade e “abissalidade” denominamos de Vida, Ser. Nós nos mo-

vemos, vivemos e somos a partir da Vida e nela, a partir do Ser e nele.

Vida e/ou Ser nos antecede, nos abrange, nos impregna, nos compre-

ende; mas a partir de nós não o compreendemos, pois é nele, com ele, a

partir dele que tudo compreendemos, tudo somos, a tudo pertencemos.

O que sabemos, o que compreendemos, o que fazemos, desejamos e po-

demos, em resumo, o que somos, é in-stante da entoação desse abismo da

possibilidade de ser. A nossa percepção desse nosso situar-se a partir de e na

Vida, capta a Vida e/ou o Ser como Nada (Abismo), Escuridão, Simples

Fato de ocorrer, Algo que sempre de novo nos escapa e se nos retrai. O que

o ser humano é no fundo dele mesmo é ser percepção desse abismo da

possibilidade de ser, chamado Vida e/ou Ser, é ser percutido pelo toque

desse abismo e repercutir como eclosão cada vez nova de um mundo. Essa

disposição de ser passagem da possibilidade para a realização, cada vez como

surgir, crescer e consumar-se de um mundo, os gregos a denominavam de

psyché; e a possibilidade ou a dinâmica de receber o toque do abismo

insondável da possibilidade insondável de ser e se adentrar nesse abismo,

i.é, nele se abismar chamavam-na de nõus; e a concreatividade de

conascer e se constituir como mundo e ser-no-mundo, chamavam de

lógos. Mais tarde psyché foi posicionada como alma; nõus como espírito

e lógos como razão.

28. Tudo quanto vem à fala e vem a si e se constitui como entonação

do abismo, uma vez surgido do abismo, se constitui como mundo, se

Page 158: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

158

HERMÓGENES HARADA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 149-164, jan./jun. 2011

estabelece como uma realização da realidade e se firma como posição

ou pré-suposição.

29. Pré-suposição assim se firma e se coisi-fica como fundamento,

como base de todo um sistema de explicitação do que ali jaz contido

como fundo do fundamento. As ciências positivas erguem o seu edifí-

cio a partir e sobre tais pré-suposições ou fundamentos coisificados. O

nosso saber pré-científico, parte de tais posições das ciências, as

aprofunda, as “des-constrói”, afundando-as para dentro do abismo in-

sondável e inesgotável da possibilidade de ser.

30. Há várias modalidades de adentrar-se na pais-agem dessa di-

mensão-matriz pré-científica, que alguém como Antoine de Saint-

Exupéry chama de Terra dos Homens. Só que, a partir do saber cientí-

fico, essa dimensão-matriz pré-científica somente aparece à raiz de suas

pressuposições fundamentais como terra inculta, ainda não suficiente-

mente evoluída, dimensão irracional, popular, mítico, metafísico, como

“nuvens do não-saber”.

31. É somente quando a existência humana adentra o toque desse

não-saber que começa a habitar a Terra dos homens. A coragem de ser à

luz das nuvens do não-saber, da assim denominada “douta ignorância”,

i. é, de ser psyché, nõus e logos, era chamada pelos gregos de virtude dia-

noética.

A virtude dianoética e o não saber

32. Dizendo-o assim de modo banal, virtude dia-noética é a virtu-

de intelectual. Usamos o termo grego, porque a autocompreensão do

termo intelectual, hoje, está bastante defasada. Mas para compreender

com precisão o que é dianoético, comecemos com essa compreensão

banal usual para ir aos poucos adequando a nossa compreensão à dinâ-

mica dianoética.

Page 159: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

INTRODUÇÃO À LEITURA ESPIRITUAL, HOJE

159Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 149-164, jan./jun. 2011

33. Virtude dia-noética é o que usualmente denominamos de vi-

gor, força da inteligência.

34. Vigor, força da inteligência é algo de grande importância para

uma instituição, cuja missão é ensino, aprendizagem, pesquisa e inves-

tigação. Por isso, a nossa pré-compreensão ou pré-conceito do que seja

vigor ou força e inteligência não nos pode ser indiferente, neutro e

óbvio-geral. Todo o ingrediente de dogmatismo, por menor que seja,

aqui nesse ponto, pode se tornar fatal para o ser do progresso e desen-

volvimento humano, conforme o que observa Sto. Tomás de Aquino

no seu famoso opúsculo De ente e essência, a saber, que um pequeno

erro no início se torna um grande no fim1 (cf. citação direta).

35. O pequeno erro, que no fim se torna grande, no nosso caso,

consiste em que, para nós, a compreensão do que seja a excelência do

vigor da inteligência está se tornando uniforme, bitolada e

unidimensional. E esclarece-se isso, tomando as ciências positivas como

modelo do saber verdadeiro (certo, seguro), e mormente, a modo de

ciências naturais. Verdadeiro, a saber, assegurado, certo, objetivo, por-

tanto, real.

36. Essa unilateralidade fez com que considerássemos um “tipo”

de racionalidade como critério de cientificidade e racionalidade como

tal; reduzindo todo outro modo de saber e conhecer ao reino do saber

subjetivo, vivencial, instintivo-espontâneo irracional. Com isso, a com-

preensão do que seja vigor da inteligência se tornou defasada, e, com

isso, começou a proliferar e a se exacerbar a “cultura” toda própria,

astênica, do racionalismo e espiritualismo e sentimentalismo esteticista.

37. Com isso, o que a grande Tradição do Ocidente denominou e

experimentou como psyché – alma, nõus – espírito, lógos – razão foi

1 “Por que um pequeno erro no princípio é grande no fim, segundo o Filósofo noprimeiro livro do Céu e do Mundo...” (TOMÁS DE AQUINO, De ente et essentia,edição latim-alemã, Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1980, p. 15).

Page 160: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

160

HERMÓGENES HARADA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 149-164, jan./jun. 2011

reduzido à energia bio-neuro-física; e as três grandes fontes e vigências

da criatividade humana, a saber, crer (religião), poetar (arte) e pensar

(filosofia), se defasaram como espiritualismo, esteticismo e cientificismo.

38. Vivemos, nos movemos e somos numa grande entropia do

espírito (psyché, nõus, logos). Essa entropia epocal é chamada muitas

vezes de esquecimento; ou também de ocultamento, ou mesmo, de re-

traimento.

39. Esquecimento, ocultamento, retraimento do espírito é epocal,

marca a nossa época, aponta para a nossa época, como sinal dos tempos.

40. Na história da humanidade, o que marca de modo decisivo e

fundamental a inovação e a transformação do seu destinar-se, chama-

se epocal. A palavra epocal vem do grego epoché, que significa parada,

suspensão a modo da contenção de um movimento ou impulso. O verbo

do qual vem a epoché é epéchein, que por sua vez significa ter, manter,

colocar sobre; segurar, estendendo em direção a; alcançar, estacionar, ter

uma estância, demorar; parar, impedir, manter-se contido, conter-se,

hesitar; estender-se sobre, expandir, avançar sobre; ater-se a, assumir, to-

mar conta de. Todas essas significações, aliás, afins entre si, se referem

de alguma forma a momentos, aspectos da suspensão contida na ten-

são do ponto de salto, no instante da eclosão do novo mundo. É nesse

instante que se dá a decisão criativa do todo que se deslancha como

real possibilidade do que permanece de próprio do novo mundo. É

dessa suspensão dinâmica de concentração que surge, cresce e se consu-

ma a nova possibilidade radicalmente outra, mas longamente prepara-

da silenciosamente no subterrâneo da época anterior. Esse concentrar-

se no ponto de salto e o início do novo mundo, no entanto, se dão na

atualidade presente, não, porém, na superfície do tempo atual, onde o

público e a sociedade estão tomados de anseios, inquietações, confu-

sões acerca dos temas fundamentais da vida, ameaçados por infindas

crises, convulsões, guerras, e-versões de costumes, de moral, por

consumismo e perda de identidade humana; mas bem retraído da pu-

Page 161: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

INTRODUÇÃO À LEITURA ESPIRITUAL, HOJE

161Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 149-164, jan./jun. 2011

blicidade, bem no fundo do subterrâneo do tempo presente na tenaz e

silenciosa labuta do pensar.

41. Esse modo de ser do Historiar-se da Humanidade chamada

epoché, época, epocal se caracteriza como tempo de ambiguidade, que é

interpretada como confusão, equivocação. Uma dessas ambiguidades

epocais que acontecem na instituição do saber, aprendizagem, pesqui-

sa, portanto, na escola, na formação humana é em referência à relação

entre as disciplinas do ensino. A seguir, vamos dar um exemplo dessa

equivocação que no fundo é ambiguidade epocal.

42. O exemplo trata da relação entre ciência chamada ciências po-

sitivas e ciência chamada filosofia. Assim, muitas vezes, circula certo

equívoco na compreensão da contribuição da filosofia às ciências posi-

tivas. E isto, no meio de nós todos, tanto na compreensão usual da

nossa vida cotidiana, nos seus afazeres, como, também, na compreen-

são acadêmica, especializada, principalmente quando o especialista é

mais funcionário e usuário do status quo do saber padronizado, oficia-

lizado, do que alguém doado à busca da verdade em si e como tal. E

isso vale, mormente, para a própria filosofia. O equívoco consiste em

se representar a contribuição da filosofia como fundamentação positi-

va do saber das ciências positivas. É que filosofia, no seu ser, não é um

saber positivo, nem positivamente sua fundamentação. Num sentido

todo próprio, para ser determinado mais adiante, a filosofia mais afunda

do que fundamenta, mais nadifica do que positiva. Talvez seja nesse

sentido que Nietzsche diz do filósofo no aforismo …..: Um burro,

pode ele ser trágico? Carregar um peso que não pode suportar, nem lançá-

lo para fora de si (Nietzsche, Götzen-Dämmerung).

43. Tentemos precisar bem em que consiste esse mais afundar do

que fundamentar; mais nadificar do que positivar.

Fundamentar significa dar um fundamento, uma base, algo como

uma laje firme e fixa. Afundar significa afundar, ir à pique. Aqui no ir

Page 162: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

162

HERMÓGENES HARADA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 149-164, jan./jun. 2011

à pique, afundar, devemos evitar de representar esse movimento de

afundar como assentar-se na base fixa, no fundamento, mas sim per-

der-se no abismo insondável e inesgotável, sem fundo. Quando dize-

mos aqui sem fundo, é necessário cuidar para não fixar a representação

do espaço vazio. Pois, com abismo insondável e inesgotável, sem fundo

não se está apenas dizendo a negação da base e fundamento a modo de

fixação, mas está-se acenando para a plenitude toda própria, inteira-

mente simples, total única e una, a qual na perplexidade diante da

impossibilidade de dizê-lo, dizemos Ser, Nada, Vida. Mas em assim o

dizendo, na perplexidade e impossibilidade de dizer, poder, querer, fazer

e ser essa “plenitude”, ela se nos desvela, e nesse desvelar-se se retrai

como ab-ismo (ab-imo) próximo de nós, mais próximo de nós do

que nós a nós mesmos, nos impregna em todas as fibras das articula-

ções de tudo que somos e de tudo que não somos nós mesmos.

Essa plenitude toda própria, dita Ser, Nada Vida, novamente, não

deve ser representada como algo místico, uma divindade, um vazio

cósmico, um ente supremo transcendente, metafísico, ou um “empírico

físico matemático”, mas como o não-saber, pré-sente, ora como trans-

parência do óbvio e-vidente, sereno e imperceptível, ora como escuri-

dão opaca e impenetrável, qual paredão da ignorância, ora como enig-

mática profundidade insondável, em suma, como a amplidão, fundu-

ra e dureza da factualidade presente em toda parte como o a-priori

realidade.

Certamente, talvez fosse útil, aqui, recordar novamente a necessi-

dade de precaução em não confundir esse a-priori realidade com o

caótico e irracional. Isso porque esse pré-vio do a-priori realidade é

anterior ao modo como aparece, pois ele não é algo que aparece saindo

por de trás ou do fundo de um outro algo que ali está ou aparece, mas

é a pré-sença retraída que tudo impregna como en-toação de tudo

quanto é e não é. Desse modo, o “quê” assim tudo impregna e tudo

envolve, na precisão da sua diferença que constitui a sua identidade,

Page 163: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

INTRODUÇÃO À LEITURA ESPIRITUAL, HOJE

163Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 149-164, jan./jun. 2011

não é um outro ente do que o ente a que impregna e envolve, mas é o

ente ele mesmo, sua vigência, seu ser, sua essência, enquanto ente, quer

dizer, em sendo. Aqui, o “saber isso”, ou “disso”, o conhecer não é outra

coisa do que contato imediato e simples, “corpo a corpo”, de “corpo e

alma”, “pele a pele” em sendo.

O verbo ser, o é, não é ativo nem passivo, não tem conteúdo, e,

segundo Kant, é pura posição. Só que quando nós dizemos hoje, pura

posição, passamos por cima da palavra pura e pensamos: aqui se trata da

ação pura, maciça, densa e volumosa de pôr, colocar, posicionar algo.

Com isso pura adquire a conotação de densidade, de volume, atribuí-

da ao conteúdo, ao algo, a “o quê” do objeto posto. O pôr é compre-

endido a partir de “o que é posto”. Assim, a posição não é captada como

pura posição, apenas posição, posição nua e crua, mas como

“euponhoobjeto” (sujeito empírico). À pureza da posição, somente se

faz jus se posição significa condição da possibilidade de posicionamento

de algo como objeto pelo eu-sujeito. A pura posição está em todos os

elementos que constituem o “todo” do “sujeito empírico” não como

um dos elementos, a modo empírico, mas transcendendo a todos eles,

não, porém, constituindo um algo superior, fora da série, mas como

que constituindo “pregnância”, “plenitude” de ser onipresente em toda

parte, lá onde acontece o ente, ou o em sendo. Essa presença que não

aparece, por não ser algo, mas tudo fazer aparecer, qual espaço livre de

ressonância, qual tonalidade das tonâncias de todos os sons, é o a-

priori realidade, acima insinuado, o abismo insondável e inesgotável,

fundo sem fundo da possibilidade de ser. É o não-saber, a escuridão que

se abre à raiz de toda e qualquer posição e pressuposição, seja em que

nível e em que dimensão do ente se achar.

A assim chamada contribuição da filosofia às ciências positivas não

consiste, portanto, em embasar as posições das ciências positivas numa

posição mais vasta e profunda, visto ser considerada um saber mais

profundo e mais fundamentando, mas em reconduzir primeiramente

Page 164: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

164

HERMÓGENES HARADA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 149-164, jan./jun. 2011

a si mesma, em todas as suas posições, e com isso também as pressu-

posições das ciências positivas, ao toque da percussão do abismo da

possibilidade de ser, que se recolhe à raiz de toda e qualquer posição e

pressuposição, como abertura ao não-saber, afinado ao abismo da ple-

nitude insondável e inesgotável do nada ou da possibilidade de ser.

Page 165: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

TRADUÇÕESTRADUÇÕESTRADUÇÕESTRADUÇÕESTRADUÇÕES

Page 166: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde
Page 167: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

AS TEORIAS DA ESCRITURA CONTIDAS NOS FRUTOS...

167Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 167-180, jan./jun. 2011

AS TEORIAS DA ESCRITURACONTIDAS NOS FRUTOS, ISTO É, ASCONSIDERAÇÕES QUE ALIMENTAM

O ENTENDIMENTO E O AFETO E,PRIMEIRAMENTE, AS QUE

ALIMENTAM O ENTENDIMENTO *

S. Boaventura

Sumário: Introdução; repetição, 1. – Parte I: As teorias que consis-

tem nas considerações das reflexões salutares em geral. Estes frutos

alimentam o intelecto e o afeto. O pão de muitos é insípido, 2. – Esta

refeição é indicada na Escritura, 3-4. – A alma na qual está plantada a

Escritura é o paraíso, é o jardim fechado e a fonte selada, 5. – Parte II:

A refeição do intelecto em particular. O que é a alma sem o conheci-

mento da verdade; ela necessita de objeto que dê firmeza aos pensa-

mentos instáveis, 6. – A Escritura mostra isso, 7. – Ela ilumina o

intelecto por doze aspectos, 8. – Primeiro, por dentro, pelos espetácu-

los internos; em segundo lugar, por fora pelos exemplos propostos, 9.

* Texto latino das Opera omnia Sancti Bonaventurae, Edição de Quaracchi, EditioMaior, vol. V, 1891, pp. 329-449. A Colação XVII está na p. 409-414; a Colação XIX,p. 419-424. O mesmo texto é usado também para a edição Opere di San Bonaventura,VI/1, Sermoni Teologici/1, Città Nuova Editrice, Roma, 1994. Colação XVII, p. 310-325 e a Colação XIX, p. 344-359. Esta última edição é bilíngue: traz o original latinoda Edição crítica de Quaracchi (citada acima) com tradução italiana, feita por PietroMaranesi. A tradução dos textos aqui é feita por Fr. Ary E. Pintarelli.

Page 168: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

168

S. BOAVENTURA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 167-180, jan./jun. 2011

– Em terceiro lugar, por cima, pelas promessas divinas, 10. – Em quarto

lugar, por baixo pelos tormentos do inferno, 11. – Em quinto lugar,

de frente, pelos preceitos que dirigem, 12. – Em sexto lugar, por trás,

pelos juízos rigorosos, 13. – Em sétimo lugar, à direita, pelos consolos

severos, 14. Em oitavo lugar, à esquerda, pelos castigos benignos, 15.

– Em nono lugar, pelo contrário, mostrando os exércitos da tríplice

guerra, 16-18. – Em décimo lugar, ao redor, mostrando ajudas de

todos os lados, 19. – Em décimo primeiro lugar, à distância, pelos

sinais das doze figuras em todas as criaturas, 20-24. – Há perigo para o

teólogo na demasiada investigação das coisas naturais, 25. – Em déci-

mo segundo lugar, de perto, pelos dons das graças; o duplo conheci-

mento: exterior e interior, 26. –A respeito destes doze mistérios existe

tanto a árvore da vida como a árvore da ciência do bem e do mal, 27.

– Epílogo sobre o tempo futuro, quando não haverá defesa pela razão,

mas pela autoridade, 28.

1. A terra produziu erva verde etc. (Gn 1,12). Foi dito que a visão

da inteligência ensinada pela Escritura trata de três coisas: das inteli-

gências espirituais, que se compreendem pela reunião das águas; das

figuras sacramentais, representadas pela germinação das ervas e das ár-

vores; pelas teorias multiformes, mediante a multiplicação das semen-

tes e a nutrição das árvores. Estas teorias consistem nas considerações

dos tempos que se sucedem, que são como que sementeiras e em cor-

respondência entre si; as outras teorias consistem nas considerações

dos alimentos salutares, porque não só de pão vive o homem (Mt 4,4).

O homem deve considerar de que se alimenta, isto é, da palavra da

Escritura; por isso, é uma árvore que produz fruto (Gn 1,12). Com

efeito, o intelecto necessita de alimento, de que necessita o afeto.

2. Em primeiro lugar, deve-se falar da refeição do intelecto. Mas,

como diz o Apóstolo: O agricultor que trabalha deve ser o primeiro a

colher os frutos (2Tm 2,6); porque é necessário que o pregador primei-

ramente se encha e se adoce e depois proponha aos outros. Todavia,

Page 169: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

AS TEORIAS DA ESCRITURA CONTIDAS NOS FRUTOS...

169Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 167-180, jan./jun. 2011

muitos querem ser vistos e ouvidos como Profetas, mas seu pão ou

seu alimento é insípido, mal cozido e frio, e retêm o povo e pouco

progridem.

3. Deve-se notar que assim como o fruto agrada à vista e ao gosto,

todavia agrada à vista principalmente por sua beleza e formosura, e ao

gosto por sua doçura e suavidade, da mesma forma também estas teo-

rias alimentam o intelecto por sua formosura e o afeto por sua suavi-

dade. – Isso é indicado pela Escritura quando diz: Ora, desde o princí-

pio, o Senhor Deus plantara um jardim de delícias, no qual pôs o homem

etc. (Gn 2,8). Isso é dito como recapitulação depois do sétimo dia,

porque esta plantação foi feita no terceiro dia.

4. E continua: E fez brotar da terra toda a sorte de árvores de aspecto

atraente e saborosas ao paladar: a árvore da vida no meio do jardim, e a

árvore da ciência do bem e do mal (Gn 2,9), para alimentar o intelecto

por sua formosura e o afeto pela suavidade. A realização, porém, esta-

va na árvore da vida, contanto que se precavesse da árvore da ciência.

Portanto, a terra é a Escritura que produziu toda a espécie de árvores de

aspecto atraente quanto ao intelecto, e saborosos ao paladar quanto ao

afeto, isto é, produziu multiformes teorias que agradam e que alimen-

tam. No paraíso celeste não existe plantação senão das razões eternas; e

embora ali exista alimento proveniente das predestinações de todos os

Santos, todavia, gozarei sobretudo pela minha predestinação; e a isso

alude o Salvador quando diz: Alegrai-vos porque vossos nomes estão es-

critos no céu (Lc 10,20). – Paulo pôde falar do paraíso celeste, pois foi

arrebatado até o terceiro céu (2Cor 12,2); nós não o conhecemos, e só

falamos do terrestre.

5. Mas a alma é o paraíso, na qual foi plantada a Escritura e possui

admiráveis suavidades e belezas. Por isso diz o Cântico dos Cânticos:

És um jardim fechado, minha irmã, minha esposa, um jardim fechado,

uma fonte selada. Tuas plantas formam um paraíso (Ct 4,12-13). A

alma é o jardim, e nela estão os mistérios sacramentais e as inteligênci-

Page 170: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

170

S. BOAVENTURA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 167-180, jan./jun. 2011

as espirituais, onde brota a fonte das emissões espirituais; mas está

fechado e a fonte selada, porque não está aberto aos imundos, mas

àqueles dos quais se diz: O Senhor conhece os seus (2Tm 2,19). A sabe-

doria eterna ama este jardim e cuida dele; por isso diz-se no Eclesiásti-

co: Como um canal saído do rio, eu saí do paraíso (Eclo 24,30). Aquele

que planta todas as coisas irrigou este horto, mas a plantação que ele

não planta, será erradicada: Toda planta que meu Pai celeste não plan-

tou, será arrancada pela raiz (Mt 15,13). E continua: Eu disse: Regarei

as plantas do meu jardim, saciarei de água os frutos do meu prado (Eclo

24,31). Ora, rega com o sangue (cf. Hb 9,19) com o qual foi aspergi-

do o livro e todo o povo; rega também com a efusão do Espírito

Santo que se origina dele, efusão presente na Escritura e que encontra-

mos nela. Portanto, estas são as árvores belas à vista e suaves ao paladar,

por causa dos frutos belos e doces.

6. Devemos falar sobre o alimento do intelecto. Com efeito, as-

sim como o corpo sem alimento perde a força, a beleza e a saúde, da

mesma forma a alma sem o conhecimento da verdade se entenebrece,

torna-se enferma, disforme e instável em tudo; portanto, é necessário

que seja alimentada. Assim acontece que quando a mente é errante,

não tendo alimento, desvia-se continuamente e é instável. Por isso, é

dito: Jerusalém cometeu um grande pecado, por isso tornou-se instável

(Lm 1,8) e assim, expulsa do paraíso, anda errante e dá tudo o que tem

de precioso em troca de alimento, para sustentar a vida (Lm 1,11). Por

isso, esta paixão é miserável. Por causa disso nada é mais sadio do que

fixar os pensamentos, para que não descambem para o mal. – Por isso,

João Cassiano dirigiu-se com muitos outros a um santo Padre e o

interrogou a respeito da instabilidade dos pensamentos, dizendo que

em nada podia fixar o intelecto1. E aquele respondeu: Se alguma vez

tinham feito versos, e se então pensavam neles. Responderam que es-

1 Cr. CASSIANO JOÃO, Collationes, 1, c. 16, Testi patristici 155, Città Nuova Ed., Roma,2000, p. 85.

Page 171: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

AS TEORIAS DA ESCRITURA CONTIDAS NOS FRUTOS...

171Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 167-180, jan./jun. 2011

tavam tão imersos que com dificuldade podiam pensar em outra coi-

sa, a ponto de refletir até dormindo. Ele disse que aquilo era causado

pelo costume. Por isso, é preciso acostumar-se a alguma coisa que,

quando vier à mente, não seja má.

7. Ora, esta é a Escritura, onde se encontra não uma coisa, mas

muitas, nas quais existe prazer espiritual; e assim não sairemos do jar-

dim do paraíso, mas a alma o cultiva e o guarda (cf. Gn 2,15) e dela

[da Escritura] faz para si um pequeno e belo jardim. – Só nesta ciência

existe prazer, não nas outras. O Filósofo afirma que é um grande pra-

zer saber que o diâmetro é assimétrico ao lado; que este prazer seja seu

e se nutra dele2.

8. Da Escritura, porém, sai uma certa luz ou iluminação para o

intelecto unido à imaginação, para que não seja captado pelo sábio

senão olhando em doze direções, isto é, para dentro, para fora, para

cima; para baixo, para frente, para trás; para a direita, para a esquerda;

de frente, ao redor, de longe e de perto.

9. Com sua produção de brotos, a Escritura ilumina [o intelecto]

para dentro mediante espetáculos internos; de fato, [a Escritura] pro-

põe nobres espetáculos espirituais que, de modo especial, são as raízes

da fé; [ilumina] a partir de fora, mediante os exemplos extrínsecos, de

que toda a Escritura está cheia. Se queres um exemplo de paciência,

olha para Jó e Tobias; se de magnanimidade, olha para Davi contra

Golias e para Judas Macabeu; se um exemplo de fé, olha para Abraão

e para a Virgem gloriosa, cuja fé supera a de Abraão. Com efeito,

Abraão acreditou que podia ter um filho de uma anciã estéril (cf. Gn

17,16-17; Hb 11,8-10); Maria, porém, acreditou que uma Virgem

conceberia por obra do Espírito Santo (cf. Lc 1,38); e não teria conce-

bido se não tivesse acreditado. Se queres um exemplo de caridade,

2 ARISTÓTELES, Tópicos, I, c. 15 (106b 39-40).

Page 172: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

172

S. BOAVENTURA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 167-180, jan./jun. 2011

olha para Moisés, que disse: Perdoa-lhes esta culpa, ou risca-me do livro

que escreveste (Ex 32,32). Se queres um exemplo de misericórdia, lê

no Eclesiástico: Estes são varões de misericórdia, cujas obras de piedade

não foram esquecidas (Eclo 44,10). Se queres um exemplo de justiça,

de fortaleza, de prudência, de pureza, de qualquer virtude honesta, a

Escritura te propõe exemplos. Já que a virtude consiste em ações par-

ticulares, não basta uma regra diretiva interior se não houver um exem-

plo particular; e assim, a Escritura coloca os dois. Contra a ira, deu

uma regra: A resposta branda aquieta a ira (Pr 15,1); veja o exemplo de

Abigail, que quebrou a ira de Davi (cf. 1Sm 25,14-35).

10. E mais, a Escritura ilumina para cima mediante as promessas

divinas, pois ela ensina sobre as coisas que estão acima. Por isso, o

Apóstolo afirma: Porque sabemos que, ao se desfazer a tenda que habi-

tamos – nossa casa terrestre – teremos nos céus uma casa preparada por

Deus e não por mãos humanas, uma casa eterna (2Cor 5,1); e o Salva-

dor diz: Na casa de meu Pai há muitas moradas (Jo 14,2); nos Salmos

se diz: Os filhos dos homens refugiam-se à sombra de tuas asas, saciam-se

da abundância de tua casa e lhes dás a beber da torrente de tuas delícias,

porque contigo está a fonte da vida, e através de tua luz veremos a luz (Sl

36,8-10); e a palavra do Apocalipse: O cordeiro que está no meio do

trono os apascentará e guiará às fontes de água da vida (Ap 7,17); e no

Salmo: As delícias estão à tua direita até o fim (Sl 16,11). Portanto [a

Escritura] nos propõe as promessas divinas.

11. Além disso, a Escritura ilumina para baixo, propondo os tor-

mentos do inferno. Diz o Salmo: Sobre os ímpios fará chover armadi-

lhas, fogo, enxofre e como porção de sua taça terão um vento causticante

(Sl 11,6); e o Apocalipse: E sua parte no tanque ardente de fogo e enxo-

fre (Ap 21,8). E a fumaça de seu tormento sobe pelos séculos dos séculos

(Ap 14,11). Essas coisas são propostas pela Escritura desde o início,

onde se diz que as trevas cobriam a face do abismo (Gn 1,2), até o fim.

– Portanto, a Escritura propõe espetáculos internos, exemplos exter-

nos, promessas celestes e suplícios do inferno.

Page 173: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

AS TEORIAS DA ESCRITURA CONTIDAS NOS FRUTOS...

173Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 167-180, jan./jun. 2011

12. Se estas coisas não são suficientes para ti, mas queres sair e

procurar o alimento do intelecto em outra parte, dar-te-á outras árvo-

res, outros frutos, com os quais poderás te alimentar. A Escritura ilu-

mina para frente mediante preceitos diretivos; para trás, mediante juízos

duros; para a direita, mediante consolos severos; para a esquerda, me-

diante castigos doces ou benignos. – Com efeito, é preciso ter uma luz

diante de si, pois o preceito é uma lâmpada e a lei, uma luz (Pr 6,23);

ela dirige para o céu, e por isso diz: Se quiseres entrar na vida, observa os

mandamentos (Mt 19,17), aos quais se acrescentam os conselhos (cf.

Mt 19,21); e a Escritura nos propõe isso em toda parte. Por isso, no

salmo se diz: Felizes os de conduta íntegra (Sl 119,1) e: Mostra-me,

Senhor, o caminho de tuas prescrições (Sl 119,33) etc., e em cada versículo

faz-se menção do mandatos, sob o nome de lei, ou de testemunho, ou

de palavra, ou de qualquer outro termo equivalente. Por isso, também

para os Hebreus todos os versículos de um octonário iniciam pela

mesma letra, coisa que não pôde ser observada entre nós, assim que as

vinte e duas letras correspondem aos vinte e dois octonários e cada um

tem oito versos. Por isso, também Agostinho ficou impressionado

com tanta identidade; e todavia, nisso existe uma grande ciência e uma

admirável variedade, pois o próprio Agostinho, uma vez, viu uma

belíssima árvore que tinha vinte e dois ramos e cada um tinha oito

raminhos dos quais brotavam gotas dulcíssimas. E compreendeu que

aquela árvore era o Salmo: Felizes os que conduta íntegra. Por isso, a

meditação da lei é sumamente necessária; e o Salmo diz: Feliz o ho-

mem que não segue o caminho dos ímpios, mas sua vontade está na lei do

Senhor. Ele será como a árvore que está plantada junto às correntes das

águas (Sl 1,1-3). E no Eclesiástico: Não sejas curioso nas muitas obras

suas, mas pensa sempre naquilo que Deus te mandou (Eclo 3,22).

13. Além disso, ilumina para trás mediante duros juízos. Com

efeito, Deus sempre fez duros juízos sobre as transgressões dos precei-

tos, como com Lúcifer, com Adão, com sua mulher, com Caim, com

Page 174: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

174

S. BOAVENTURA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 167-180, jan./jun. 2011

os luxuriosos sobre os quais veio o dilúvio, com os soberbos que

edificaram a torre, com os Cananeus, com Israel. De maneira seme-

lhante, o Novo Testamento está cheio de juízos. Mas o juízo está atrás

e o preceito, na frente. O juízo tem relação com o preceito; se o trans-

gredires, será punido; se não seguires a luz que dirige, a espada te ferirá;

diz o Salmo: Se não vos converterdes, [Deus] afiará sua espada, pois

retesou e apontou seu arco, e colocou nele dardos de morte, tornou

abrasadoras as suas setas (Sl 7, 13-14). O arco é o juízo da Escritura; a

dureza da árvore é o Antigo Testamento; a corda que dobra a árvore, o

Novo Testamento; os juízos mais leves e mais duros são as flechas. Diz

o Salmo: A lei do Senhor é perfeita, reconforta a alma. O testemunho do

Senhor é seguro, torna sábio o homem simples. Os juízos do Senhor são

verdadeiros, são todos justos (Sl 19,8.10) etc.

14. E mais, a Escritura ilumina para a direita mediante severos

consolos. Não sem motivo são chamados de severos consolos e benig-

nos flagelos, porque os consolos são perigosos. Veja Adão, Saul,

Salomão, o idólatra Jeroboão e o primeiro Anjo; para todos eles os conso-

los temporais e os triunfos foram ocasião de ruína. Mas são ocasião de

ruína quando agradam; porém, quando não agradam, o homem não se

preocupa. Por isso, Cristo não quis ter um consolo temporal, porque

cairão mil a teu lado e dez mil à tua direita (Sl 91,7) etc. Alguém deve

querer estar do lado em que é menor o número dos que caem.

15. E ainda, a Escritura ilumina para a esquerda mediante flagelos

benignos. Por isso, o Senhor permitiu que o justíssimo Abel fosse

morto. Veja Noé, que durante cem anos fabricou a arca e lá pôs tudo

o que possuía e todo o mundo zombava dele. – E aqui acrescentou

que o rei da França não poderia hoje fazer tal obra se ela for calculada

segundo a medida dos côvados geométricos. – O mesmo se observa

em Abraão, Isaac e Jacó, que foram peregrinos; e José, que não pudera

ser exaltado se antes não ocorresse a venda, o cárcere e a humilhação.

Veja Moisés, que Deus devia colocar à frente de todo o mundo, como

Page 175: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

AS TEORIAS DA ESCRITURA CONTIDAS NOS FRUTOS...

175Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 167-180, jan./jun. 2011

foi humilhado: por quarenta anos apascentava o rebanho de um sacer-

dote (Ex 3,1). Igualmente Davi, enquanto esteve no sofrimento, foi

ótimo e chegou ao reino mediante as tribulações; e depois, quando

esteve na prosperidade, cometeu muitos pecados (cf. 1Sm 24,5-8; 2Sm

6,21-22; 11,2-4.14-15). Da mesma forma Ezequias (cf. Is 38, 39),

foi muito humilde na enfermidade, mas depois foi soberbo com a chega-

da dos embaixadores dos babilônios. Veja o pobrezinho Elias (cf. 1Rs

17,1-16), que não tinha o que comer a não ser aquilo que lhe trazia o

corvo e aquela pobre viúva; mas ele fechava o céu. Veja João Batista (cf. Lc

1,80), que permaneceu no deserto por sete anos e ali dormia sobre pedras.

O mesmo se diga de Cristo e dos Apóstolos. De maneira semelhante diz

Paulo: Foram apedrejados, foram serrados, foram tentados, foram mortos a

fio da espada, andaram errantes (Hb 11,37) etc. Portanto, os flagelos são

suavíssimos. Pois ou Deus castiga ou não. Mas ele castiga a quem recebe

como filho (Hb 12,6). Esta verdade está provada mediante fatos parti-

culares; portanto, deve ser aplicada universalmente.

16. E a Escritura possui também árvores de que se alimentar. Ela

ilumina mediante as coisas que são opostas. Com efeito, ela nos mos-

tra as infinitas batalhas que estão contra nós, ora por meio de sete

príncipes (Est 1,14), ora por uma guerra, ora por muitas. Esta guerra

dura do dia em que Miguel e seus Anjos lutavam contra o dragão (Ap 12,7).

Ora, ameaça-nos uma tríplice guerra: a guerra doméstica, a guerra civil e a

campestre. – A primeira é com a carne, que tem muitas frentes; esta serva

está sempre pronta a abrir, como Eva. Por isso é dito: Contra aquela que

dorme em teu seio, guarda as portas de tua boca (Mq 7,5).

17. E mais, a guerra civil é a tentação do mundo. Com efeito,

todas as criaturas estão na armadilha (cf. Sb 14,11), porque a beleza da

criatura atrai os homens. Por isso diz: Vaidade das vaidades, tudo é

vaidade. Que proveito tira o homem de todo o trabalho com que se afa-

diga debaixo do sol? (Ecl 1,2-3). Vão e inutilmente é feito se nada sobra

ao homem na morte e, assim, tudo é vaidade; e no Salmo se diz:

Desvia meus olhos, para que não vejam a vaidade (Sl 119,37).

Page 176: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

176

S. BOAVENTURA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 167-180, jan./jun. 2011

18. Além disso, existe a guerra campestre, travada com os demô-

nios, que atacam dia e noite, ora exaltando para que presumamos, ora

mediante a consideração da ciência, ora mediante a consideração da

santidade; ora tornam o homem iracundo e assim diabólico e cheio do

espírito de malignidade; e o fazem cair na tristeza e no desespero e o

mesmo se diga de outros aspectos. A Escritura ensina a fugir destas

coisas. Com efeito, qual a ciência que ensina a fugir das potências con-

trárias? Nenhuma.

19. E mais, a Escritura ilumina ao redor, de modo que não se

precisa fugir, porque em toda parte temos um refúgio. Com efeito,

temos o próprio Senhor e os Anjos ao nosso redor; por isso, diz-se no

Salmo: Montes estão em volta de Jerusalém, e o Senhor envolve seu povo

(Sl 125,2). Por isso, ao servo de Eliseu que gritava por causa dos la-

drões da Síria que queriam capturá-lo, Eliseu disse: Senhor, abre-lhe os

olhos para que enxergue, e o Senhor os abriu. E eis que o monte estava

cheio de cavalos e de carros de fogo ao redor de Eliseu (2Rs 6,17). Tam-

bém Jacó, temendo seu irmão, viu os Anjos e por isso disse: Estes são os

acampamentos de Deus (Gn 32,3). Por isso, diz o Salmo: O Senhor é

minha luz e minha salvação; a quem temerei? (Sl 27,1). E em outro

lugar: Se o Senhor não estivesse do nosso lado, que Israel o diga (Sl 124,1)

etc., até o fim.

20. E mais, ilumina de longe mediante os sinais das figuras; de

fato, a Escritura cria figuras de todas as coisas. Ora, todas as coisas que

existem no mundo reduzem-se a doze espécies, que são utilizadas pela

Escritura e que são sinais longínquos: as formas celestes, as naturezas

elementares, as naturezas meteóricas, as naturezas minerais; as nature-

zas que germinam, que nadam, que voam, que andam; órgãos huma-

nos, forças humanas, obras humanas e artes humanas.

21. Portanto, em primeiro lugar está a forma celeste. Com efeito,

a Escritura serve-se de todos os céus e de todas as estrelas; diz o Salmo:

Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento apregoa a obra de

Page 177: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

AS TEORIAS DA ESCRITURA CONTIDAS NOS FRUTOS...

177Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 167-180, jan./jun. 2011

suas mãos (Sl 19,2); e o Eclesiástico: O orgulho das alturas é a limpidez

do firmamento, e o aspecto do céu é um espetáculo de glória (Eclo 43,1).

22. As formas elementares: o fogo, o ar, a água e a terra; todas são

usadas pela Escritura. – As naturezas meteóricas, como a nuvem, a

chuva, o orvalho, a neve etc.; utiliza também as luzes que aparecem no

céu, os rios e os lagos. – Existem também as naturezas minerais, como

os sete metais principais e as pedras preciosas, como a pedra de ônix;

lê-se no Gênesis: Lá também se encontra o bdélio e a pedra de ônix (Gn

2,12); e no mesmo lugar: Onde nasce o ouro; e o ouro desse país é ótimo

(Gn 2,11-12). E no Apocalipse existem doze pedras preciosas. – Exis-

tem também as naturezas que germinam, como as árvores, as ervas, as

plantas e as sementes; a Escritura trata das hortaliças, das ervas e das

outras coisas que nascem da terra.

23. Há também as naturezas dos que nadam; assim trata do leviatã

(cf. Jó 40,20), dos peixes e dos cetáceos. – Há as naturezas dos que

voam, como o gavião, a águia, a pomba, o pássaro; e existe um grande

mistério, porque só três tipos de voadores são postos no sacrifício (cf.

Lv 1,14). Além disso, fala-se de aves que fogem da luz e de aves que

amam a luz. – Além disso, fala-se de animais que andam, da serpente

e da cobra: Foge do pecado como de uma serpente (Eclo 21,2); como

Deus permitiu que a tentação viesse por meio da serpente. Fala-se tam-

bém das raposas, da cabra, dos porcos, do cervo, do corso, do urso e

dos bois. Também não deixa de ser um mistério que somente três

tipos de animais que andam eram oferecidos ou sacrificados.

24. E mais, existem as naturezas do homem, de cujos membros a

Escritura trata atribuindo-os em parte a Deus e em parte aos Anjos.

Por isso, Dionísio mostra o que significam os membros humanos nos

Anjos3. – E ainda, existem as forças vegetais, as forças sensíveis, racio-

3 Cf. DIONÍSIO PSEUDO-AREOPAGITA, De caelesti hierarchia, c. 13, par. 3, PG 3,302-303.

Page 178: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

178

S. BOAVENTURA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 167-180, jan./jun. 2011

nais etc., todas elas são plenamente usadas pela Escritura. – Além dis-

so, fala-se das obras humanas, como da construção de casas, dos po-

ços, da agricultura e do comércio; e de todas as artes liberais e mecâni-

cas. O teólogo as utiliza ora como aritmético, ora como astrólogo, ora

como geômetra; vê-lo-ás ora como reitor, ora como médico.

25. Nesta consideração, existe um perigo, porque é um perigo

afastar-se demais da casa da Escritura; com efeito, a criança nunca quer

afastar-se muito da casa. Assim, existe um perigo nas ciências, isto é,

que [os teólogos] se ocupem tanto nas considerações destas ciências

que, depois, não possam voltar para a casa da Escritura, e que entrem

na casa de Dédalo, de forma que não possam sair. Afinal, é melhor

manter a verdade do que a figura. Se eu visse teu rosto e te pedisse que

me trouxesses um espelho claro para ali ver tua face, este seria um

pedido tolo. A mesma coisas acontece quanto às Escrituras santas e às

figuras das demais ciências.

26. A Escritura ilumina também de perto mediante os dons das

graças, que completam todas as coisas que o talento humano não pos-

sui. Com efeito, muitos hóspedes da ciência vieram à nossa casa e ao

nosso talento; mas em tais coisas o talento deve pôr um fim. Por isso,

a Escritura ilumina estas coisas de perto; assim, não é preciso ir longe

para a coisa que está perto. Afinal, a Escritura descreve os dons do

Espírito Santo de modo completo; em João se lê: Fatigado do cami-

nho, sentou-se Jesus à beira da fonte (Jo 4,6); e continua: Quem bebe

desta água, tornará a ter sede; mas quem beber da água que eu lhe der,

tornar-se-á uma fonte que jorra para a vida eterna (Jo 4,13-14). – En-

tão, fala-se de uma dupla água; com efeito, é descrito um conheci-

mento exterior, do qual quem mais beber, mais sede terá; outro interi-

or, do qual se lê: Quem crê em mim, como diz a Escritura, do seu inte-

rior correrão rios de água viva. Referia-se ao Espírito que haviam de rece-

ber aqueles que cressem nele (Jo 7,38-39). Estas são as águas das fontes

do Salvador (Is 12,3), isto é, os conhecimentos das graças que alimen-

tam as almas.

Page 179: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

AS TEORIAS DA ESCRITURA CONTIDAS NOS FRUTOS...

179Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 167-180, jan./jun. 2011

27. Próximo a estes mistérios está o mistério da árvore da vida e o

mistério da árvore da ciência do bem e do mal (Gn 2,9). De fato, quem

busca somente o conhecimento, come da árvore da ciência do bem e

do mal. E isso é indicado em Isaías: Porque este povo rejeitou as águas

de Siloé, que correm em silêncio, e preferiu apoiar-se em Rasin e no filho

de Romelias; por este motivo, eis que o Senhor fará vir sobre eles as águas

impetuosas e abundantes do rio (Is 8,6-7). E conforme diz Jerônimo, as

águas de Siloé correm com grande ruído4; portanto, é claro que ali

existe outro sentido. – As águas que correm em silêncio são a Sagrada

Escritura, que não pode ser compreendida senão em silêncio; e ali acon-

tece a iluminação. Como sinal disso é dito ao cego: Vai lavar-te na

piscina de Siloé, que quer dizer enviado (Jo 9,7). Com efeito, estas

águas são obtidas por revelação. Antes, porém, é preciso esfregar os

olhos com barro feito de cuspe e pó (cf. Jo 9,6); a saliva é a sabedoria,

o pó é a carne de Cristo, o barro é a fé no mistério da encarnação. –

Mas os que buscam Rasin e o filho de Romelias são os que buscam as

ciências exteriores. E por isso, o príncipe dos Assírios os dominará (cf.

Is 8,7); o Senhor o quis. E aqui deve-se notar que os filhos de Israel

obtiveram furtivamente os vasos de prata do Egito (cf. Ex 3,22; 11,2;

12,36); e depois, o Senhor não quis mais que eles voltassem para lá.

28. E [Boaventura] disse: Crede-me que ainda haverá um tempo no

qual de nada valerão os vasos de ouro ou de prata, isto é, os argumentos;

nem existirá a defesa mediante a razão, mas somente mediante a autorida-

de. Por isso, como sinal disso, quando foi tentado, o Salvador não se

defendeu mediante a razão, mas mediante as autoridades (cf. Mt 4,4-10),

embora ele conhecesse perfeitamente mediante as razões. E assim indicou

o que deveria fazer seu corpo místico na tribulação futura.

4 Cf. SÃO JERÔNIMO, Commentarium in Is. Proph., III, c. 8, PL 24, 119: “Siloé é umafonte aos pés do Monte Sion, e não derramam águas constantes, mas somente em certashoras e em certos dias, atravessando cavernas e antros saem de uma rocha duríssima ecom grande fragor; coisa de que não duvidamos, sobretudo nós que habitamos nestaprovíncia”.

Page 180: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

180

ENIO PAULO GIACHINI

Scintilla, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 7-9, jul./dez. 2010

Page 181: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

O RETO CAMINHO E O MODO DE RECEBER...

181Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 181-193, jan./jun. 2011

O RETO CAMINHO E O MODO DERECEBER OS FRUTOS DA

ESCRITURA, OU COMO, PELACIÊNCIA E PELA SANTIDADE, SE

CHEGA À SABEDORIA *

Sumário: Introdução. Convite a perceber os mencionados frutos

da Escritura e a passar da vaidade para a verdade; a dupla passagem, 1.

– Abandonada a vaidade, deve-se seguir a sabedoria, que se goza so-

mente em Deus, 2. – O perigo na passagem da ciência das coisas infe-

riores para a sabedoria que goza as superiores; da ciência deve-se subir

para a santidade, como caminho médio para a sabedoria, 3-5. – PARTE

I: A ciência e o modo de estudar, que deve ter quatro condições. Destas

quatro. Primeiro, a ordem a ser observada no estudo. Existem quatro

tipos de escritos, 6. – O primeiro tipo, ou a Sagrada Escritura; sua

excelência; como se deve estudar nela, 7-9. – O segundo tipo, ou os

originais dos Santos, 10. – O terceiro, ou as Sumas dos mestres, 11. –

O quarto, ou a filosofia, 12-15. – A segunda condição, ou a assiduida-

de, 16. – A terceira, ou a complacência, 17-18. – A quarta, ou a medi-

da, 19. – PARTE II: A santidade como caminho para a sabedoria e a

própria sabedoria. Quatro qualidades da vida santa: primeiramente deve

ser uma vida timorata, 20. – Em segundo lugar, impoluta, 21. – Em

terceiro lugar, religiosa, 22. – Em quarto lugar, edificante, 23. – A

sabedoria que é fruto da ciência e da santidade, consiste em quatro

* Exaemeron, Colação XIX - terceira visão - sétimo e último tratado.

Page 182: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

182

S. BOAVENTURA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 181-193, jan./jun. 2011

coisas: primeiro, no reconhecimento dos defeitos interiores, 24. – Em

segundo lugar, na mortificação das paixões, 25. – Em terceiro lugar, na

ordenação dos pensamentos, 26. – Em quarto lugar, na elevação do

desejo, 27.

1. A terra produziu erva verde (Gn 1,12) etc. Falou-se dos frutos

da Sagrada Escritura. Para estes frutos nos convida a Sabedoria eterna;

diz-se no Eclesiástico: Como a videira fiz brotar o encanto, e minhas

flores deram frutos de glória e riqueza. Vinde a mim vós que me desejais

e saciai-vos de meus frutos (Eclo 24,17.19). Se quisermos passar, é pre-

ciso que sejamos filhos de Israel, que saíram do Egito; os egípcios,

porém, não passaram, mas foram submersos (cf. Ex 14,26-28). Ora,

passam aqueles que põem toda a sua atenção sobre a maneira de passa-

rem das vaidades para a região da verdade. Adão passou da verdade

para a vaidade, por isso, diz-se no Salmo: Na verdade, o homem passa

como uma simples sombra, é em vão que se afadiga; amontoa riquezas e

não sabe quem as desfrutará (Sl 39,7). Como a erva, de manhã floresce

e viceja, de tarde murcha e seca (Sl 90,6). Portanto, quando se ama o

bem mutável, transitório e vão, então o homem passa e a Sabedoria

reprova tal passagem. Esta passagem produz toda espécie de mal. As-

sim passou Lúcifer, de quem foi dito: De fato, foste precipitado no

inferno (Is 14,15). Primeiramente foi lançado pela culpa e, depois,

pelo juízo. Assim também agiu Adão; depois que perdeu a árvore da

vida, escondeu-se. Com efeito, viu-se despido de todos os bons hábi-

tos e, por causa disso, foi expulso do paraíso (cf. Gn 3,6-7.24).

2. Portanto, a sabedoria e a caridade são os principais frutos; a elas

opõe-se principalmente a vaidade. Por isso, no Cântico dos Cânticos,

expressa-se a sabedoria amorosa. Afinal, ninguém pode pronunciar as

palavras do Cântico dos Cânticos sem a sabedoria e o amor, e também

se não se afastar da vaidade. E assim o Eclesiastes precede esse livro; ali

mostra a vaidade quando diz: Vaidade das vaidades e tudo é vaidade

(Ecl 1,2). Essa afirmação é verdadeira e é provada em todo o livro.

Page 183: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

O RETO CAMINHO E O MODO DE RECEBER...

183Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 181-193, jan./jun. 2011

Portanto, é preciso passar de todas as coisas para a verdade a fim de que

não exista prazer senão em Deus.

3. Ora, como se há de passar? Todos querem ser sábios e cientistas.

Mas logo acontece que a mulher engana o homem (cf. Gn 3,6.12). A

sabedoria, porém, está acima porque é nobre; mas a ciência está abai-

xo, parece bela ao homem e, assim, quer unir-se a ela e a alma se incli-

na para as coisas cognoscíveis e sensíveis, quer conhecê-las e, uma vez

conhecidas, experimentá-las e, consequentemente, unir-se a elas. E as-

sim se debilita, como Salomão, que quis saber todas as coisas e discor-

reu sobre as árvores, desde o cedro do Líbano até o hissopo (1Rs 5,13);

esqueceu-se da coisa principal e assim se tornou vão. Portanto, a passa-

gem da ciência para a sabedoria não é segura; então, é necessário pôr

um termo médio, isto é, a santidade. Ora, a passagem é um exercício:

a exercitação de passar do estudo da ciência para o estudo da santidade,

e do estudo da santidade para o estudo da sabedoria; deles fala-se no

Salmo: Ensina-me a bondade, a sabedoria e a ciência (Sl 119,66). Ini-

cia pelo mais alto, porque quereria experimentar quanto é bom e suave

o Senhor (Sl 34,9); todavia, não se pode chegar à sabedoria senão pela

disciplina, nem à disciplina senão pela ciência: portanto, não se deve

preferir o último ao primeiro. Seria mau comerciante quem preferisse

o estanho ao ouro. Com efeito, quem prefere a ciência à santidade

jamais prosperará.

4. Em A Cidade de Deus, Agostinho1 diz que os Anjos bons ou

espíritos chamam-se Anjos, isto é, mensageiros, porque se alegram com

a humildade; os espíritos maus chamam-se demônios, isto é, instruí-

dos, porque querem ser chamados a partir de sua altivez. Mas deve-se

temer o que diz Jó a respeito de Beemot-Leviatã: Andará por cima do

ouro como por cima do lodo (Jó 41,21). De fato, na ciência existe a

tentação que facilmente leva à ruína. Daí dizer-se: Sereis como deuses,

1 SANTO AGOSTINHO, De civitate Dei, XV, 23, n. 1, in PL 41, 468.

Page 184: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

184

S. BOAVENTURA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 181-193, jan./jun. 2011

conhecendo o bem e o mal (Gn 3,5). Por isso, alguns querem investigar

a respeito dos segredos da natureza, como sobre as realidades contin-

gentes. Quanto aos degraus da soberba, o bem-aventurado Bernardo2

afirma que o primeiro vício é a curiosidade, pelo qual Lúcifer caiu; e

também Adão caiu por ele. O desejo da ciência deve ser modificado e

a ela deve-se preferir a sabedoria e a santidade.

5. De que maneira, pois, é preciso ocupar-se da ciência, da santida-

de e da sabedoria? É preciso conhecer, a fim de participarmos dos fru-

tos da sabedoria e podermos entrar pelas portas da cidade; o Eclesiastes

diz: O trabalho dos insensatos cansa-os tanto que nem sequer sabem como

chegar à cidade (Ecl 10,15), isto é, os que não sabem aplicar-se às

coisas que são necessárias. No Gênesis, diz-se que o Senhor Deus tomou

o homem e o colocou no paraíso para que o cultivasse e o guardasse (Gn

2,15). – É preciso trabalhar na Sagrada Escritura e exercitar o intelecto.

Sêneca afirma: “Encontrei muitos que exercitavam o corpo, mas pou-

cos a inteligência”3. Esta é a exercitação do espírito para a piedade; por

isso, diz-se nos Provérbios: Passei pelo campo do homem preguiçoso e

pela vinha do homem insensato; e vi que tudo estava cheio de urtigas,

que os espinhos cobriam sua superfície e que o muro de pedra estava caído

(Pr 24,30-31). Isso acontece quando o homem tem boa disposição e

não a exercita, mas ali crescem as urtigas da malignidade e os espinhos

da cobiça. A cerca de pedras das virtudes é destruída pela dissipação

dos pensamentos; por isso, no mesmo lugar se diz: Prepara teus traba-

lhos de fora e lavra cuidadosamente o teu campo (Pr 24,27).

6. A maneira de estudar deve ter quatro condições: ordem, assi-

duidade, complacência e medida. – A ordem é proposta de diversas

maneiras pelos vários [mestres]; mas é preciso proceder ordenadamen-

2 SÃO BERNARDO DE CLARAVAL, De gradibus humilitatis et superbiae, c. 10, n .28, in PL 182, 957.

3 SÊNECA, Epistula 80.

Page 185: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

O RETO CAMINHO E O MODO DE RECEBER...

185Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 181-193, jan./jun. 2011

te, para não tornar secundário o que é principal. Portanto, existem

quatro tipos de escrituras, dos quais é preciso ocupar-se de maneira

ordenada. Os primeiros livros são as Sagradas Escrituras. Segundo

Jerônimo4, no Antigo Testamento existem vinte e dois livros; no Novo

Testamento são oito. Os segundos livros são os originais dos Santos;

os terceiros, as Sentenças dos mestres; os quartos, os livros das doutri-

nas mundanas ou dos filósofos.

7. Portanto, quem quiser aprender, procure a ciência na fonte, isto

é, na Sagrada Escritura, porque entre os filósofos não existe a ciência

que dê o perdão dos pecados; nem entre as Sumas dos mestres, porque

eles beberam dos originais e os originais da Sagrada Escritura. Por isso,

Agostinho5 diz que ele pode se enganar, como também os outros; mas

lá existe tamanha fé que não pode haver engano. E, em Os nomes divi-

nos, Dionísio afirma que “não se deve aceitar nada, senão aquilo que

nos é comunicado de maneira divina na Sagrada Escritura”6. – O discí-

pulo de Cristo deve estudar na Sagrada Escritura, como as crianças

aprendem primeiro o a, b, c, d etc., depois a silabar, a seguir a ler e por

fim o que significa o discurso. De maneira semelhante, na Sagrada

Escritura, primeiramente deve-se estudar no texto, tê-lo à mão e com-

preender “o que se diz mediante a palavra”, não só como o judeu, que

sempre o entende em sentido literal. Toda a Escritura é como uma

cítara, onde a corda inferior sozinha não faz uma harmonia, mas so-

mente junto com as outras; de forma semelhante, um lugar da Escri-

tura depende de outro, e até, um lugar refere-se a mil outros lugares.

8. Deve-se notar que, quando Cristo fez o milagre de transformar

água em vinho, não disse logo: faça-se vinho, nem o fez do nada; mas

4 SÃO JERÔNIMO, In libros Samuel, Praef., in PL 28, 593.

5 SANTO AGOSTINHO, Epistula 82, c. 1, n. 3, in PL 33, 277.

6 DIONÍSIO PSEUDO-AREOPAGITA, De divinis nominibus, c. 1, par. 2, in PG 3,614.

Page 186: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

186

S. BOAVENTURA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 181-193, jan./jun. 2011

quis que os servos enchessem os cântaros de água, como diz Gregório7.

Literalmente, não se pode dar a razão de ter agido assim; mas segundo

a compreensão espiritual, a razão pode ser dada: porque o Espírito

Santo não dá a compreensão espiritual se o homem não encher o cân-

taro de água, isto é, sua capacidade, a saber, o conhecimento do senti-

do literal, e depois Deus transforma a água do sentido literal no vinho

da compreensão espiritual. – Por isso, Paulo foi profundo, porque

aprendeu a Lei aos pés de Gamaliel (cf. At 22,3). Daí, quem possui a

Escritura é poderoso nos discursos e também belo na palavra. Por isso,

o bem-aventurado Bernardo sabia pouco, mas, porque estudou muito

na Escritura, falava de modo elegantíssimo.

9. Portanto, primeiramente é preciso que o homem possua a Es-

critura, não como o judeu, que quer apenas a casca. Por isso, uma vez,

um judeu lia o capítulo de Isaías: Senhor, quem deu crédito ao que nós

ouvimos? (Is 53,1; Rm 10,16) etc.; e lia literalmente e não pôde ter a

concordância nem o sentido; por isso, jogou o livro por terra,

imprecando que Deus havia confundido Isaías, porque, conforme lhe

parecia, não podia ter certeza do que dizia.

10. Todavia, o homem não pode chegar a esta inteligência por si

mesmo, mas por aqueles aos quais Deus a revelou, isto é, mediante os

originais dos Santos, como Agostinho, Jerônimo e outros. Portanto, é

necessário recorrer aos originais dos Santos; mas estes são difíceis, e

então, são necessárias as Sumas dos mestres, nas quais se aclaram aque-

las dificuldades. Mas é preciso precaver-se da quantidade dos escritos.

Contudo, porque estes escritos trazem as palavras dos filósofos, é pre-

ciso que o homem as conheça ou as suponha. – Portanto, existe um

perigo ao descer para os originais, porque é bela a linguagem dos origi-

nais; a Escritura, porém, não possui um estilo tão belo. Por isso, Agos-

tinho não considera coisa boa que deixes a Escritura e estudes em seus

7 SÃO GREGÓRIO MAGNO, In Ezechiele, I, hom. 6, n. 7, in PL 76, 831.

Page 187: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

O RETO CAMINHO E O MODO DE RECEBER...

187Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 181-193, jan./jun. 2011

livros; assim como nem Paulo daqueles que eram batizados em nome

de Paulo (cf. 1Cor 1,12-13). A Sagrada Escritura deve ser tida em

grande honra.

11. Porém, o maior perigo consiste em descer às Sumas dos mes-

tres, porque, às vezes, nelas há erros; e pensam que compreendem os

originais, mas não os compreendem, antes os contradizem. Por isso,

como seria tolo quem quisesse permanecer sempre nos tratados e nun-

ca subir ao texto, o mesmo acontece também quanto às Sumas dos

mestres. Nelas, porém, a pessoa deve ter o cuidado de sempre seguir a

opinião mais comum.

12. O maior perigo, porém, consiste em descer para a filosofia;

por isso Isaías afirma: Porque este povo rejeitou as águas de Siloé, que

correm docemente, e preferiu apoiar-se em Rasin e no filho de Romelias,

por este motivo, eis que o Senhor fará vir sobre eles as águas impetuosas e

abundantes, o rei dos Assírios (Is 8,6-7) etc. Não se deve mais voltar

para o Egito. – Deve-se ter presente o caso de Jerônimo, que, depois

do estudo de Cícero, não sentia gosto nos livros proféticos e, por isso,

foi flagelado diante do tribunal8. Mas isso aconteceu por causa de nós;

por isso, os mestres devem cuidar de não confiar e apreciar demais os

ditos dos filósofos, para que, com esse pretexto, o povo não volte para

o Egito ou, por seu exemplo, abandone as águas de Siloé, nas quais

está a máxima perfeição, e vá para as águas dos filósofos, nas quais

existe o eterno engano.

13. Isso foi indicado em Gedeão, quando aqueles que foram pro-

vados nas águas, isto é, os que lamberam as águas como os cães, luta-

ram e venceram; enquanto que aqueles que, dobrando os joelhos, be-

beram inclinados, voltaram; e aos que venceram foram dadas trombe-

tas, ânforas e lanternas, e venceram por meio do clamor das trombetas

8 Cf. SÃO JERÔNIMO, Epistula 22, n. 30, in PL 22, 416.

Page 188: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

188

S. BOAVENTURA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 181-193, jan./jun. 2011

e pela explosão das ânforas (cf. Jz 7,4-8.19-25). Estes são os pregado-

res da Igreja, que tocam a trombeta na pregação. As ânforas são os

corpos, as lâmpadas os milagres. Com efeito, quando morreram pela

verdade, resplandeceram através dos milagres e venceram os inimigos.

Mas aqueles que bebem água com a língua como os cães, que bebem

pouca água com a língua, são os que tomam pouco da filosofia; mas

os que bebem dobrando o joelho, são os que se dedicam totalmente;

aqueles dobram-se a infinitos erros e, assim, fomentam o fermento do

erro. Por isso diz Oséias: Repousou um pouco a cidade, depois da mistu-

ra do fermento, até que a massa se levedou toda (Os 7,4); e chocam ovos

de serpentes, para que daquele que for chocado saia uma cobra (Is 59,5).

14. Considera o caso de São Francisco, que pregava ao Sultão. O

Sultão lhe disse que discutisse com seus sacerdotes. E ele lhe respon-

deu que, partindo da razão, não podia discutir sobre a fé, pois ela está

acima da razão; nem partindo da Escritura, porque eles não a aceita-

vam; mas pedia que fizesse um fogo e ele entraria com eles9. – Por isso,

não se deve misturar muita água da filosofia com o vinho da Sagrada

Escritura, a ponto de o vinho se tornar água; esse seria um péssimo

milagre; e lemos que Cristo fez vinho de água (cf. Jo 2,9), não o con-

trário. – Daí se conclui que aos fiéis a fé não pode ser provada através

da razão, mas pela Escritura e pelos milagres. Na Igreja primitiva, os

livros de filosofia eram até queimados (cf. At 19,19). Afinal, os pães

não devem ser transformados em pedras (cf. Mt 4,3).

15. Portanto, a ordem é que primeiro o homem estude na Sagrada

Escritura segundo a letra e o espírito, depois nos originais e os submeta

à Sagrada Escritura; de maneira semelhante, nos escritos dos mestres e

nos escritos dos filósofos, mas de passagem e por alto, como se ali não

devesse permanecer. O que ganhou Raquel, quando roubou os ídolos de

9 Cf. SÃO BOAVENTURA, Legenda Maior S. Francisci, c. 9, 8.; in Analecta FranciscanaI, p. 601; Fontes Franciscanas e Clarianas, Petrópolis: Ed. Vozes, 2004, p. 613.

Page 189: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

O RETO CAMINHO E O MODO DE RECEBER...

189Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 181-193, jan./jun. 2011

seu pai? (Gn 31,19). Ganhou tanto que foi mentirosa, fingiu estar

enferma e os escondeu sob os arreios do camelo e sentou-se em cima (Gn

31,34); assim aconteceu quando se escondem os livros dos filósofos.

Nossas águas não devem descer para o Mar Morto (cf. Js 3,16), mas

para sua primeira origem (cf. Sl 114,3).

16. Em segundo lugar, é preciso ter assiduidade. De fato, uma

leitura desordenada é um grandíssimo obstáculo, como quem planta

ora aqui, ora ali; ora lê um, ora, outro. A divagação exterior é um sinal

da divagação da alma; e assim não se pode progredir, porque nada se

fixa na memória. A propósito, Gregório apresenta um exemplo: quando

um homem vê a face de um homem uma só vez, depois não pode

reconhecê-lo perfeitamente, mas quando o vê com frequência, então o

reconhece10. Assim acontece com a Sagrada Escritura: porque no iní-

cio ela possui uma face obscura, depois, quando é vista com frequência,

torna-se familiar.

17. Em terceiro lugar, é preciso ter a complacência. Com efeito,

assim como Deus relacionou o gosto e o alimento, porque deu sabor

ao alimento e discernimento ao gosto; e por estes dois elementos o

alimento é incorporado: assim, em primeiro lugar é preciso tomar a

Escritura, depois mastigá-la e, por fim, incorporá-la. Para que o ho-

mem bebe água turva? Diz Jeremias: E agora, o que vais ganhar indo

para o Egito, para beberes água turva? (Jr 2,18). Bebe antes a água

salutar, isto é, da sabedoria.

18. Observa que o animal que não rumina é imundo. De fato, o

animal rumina porque tem dois ventres: ele traz o alimento à boca,

rumina-o completamente e o lança em outro ventre mais profundo. –

Lê-se no Salmo: Quão doces ao meu paladar são as tuas palavras: mais

que o mel à minha boca! (Sl 119,103). Não ames a meretriz e não

10 SÃO GREGÓRIO MAGNO, Moralia in Iob, IV, pref., n. 1, in PL 75, 633.

Page 190: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

190

S. BOAVENTURA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 181-193, jan./jun. 2011

repudies tua esposa; diz-se no livro da Sabedoria: Amei-a e a desejei

desde a minha juventude (Sb 8,2). Não comas as bolotas e as vagens

dos porcos (cf. Lc 15,16), para ser suspenso com Absalão pelos cabe-

los (cf. 2Sm 14,26; 18,9), isto é, por teus afetos. As doutrinas antigas

são altas, majestosas, inflexíveis como os carvalhos. Não comas os pe-

pinos do Egito, os porros e os alhos, mas o maná do céu (cf. Ex 16,3-

4; Nm 11,4-9; 21,5); e não tenhas náuseas desse alimento. Não sejas

carnal, como os filhos de Israel; eles não experimentam nenhum outro

sabor, mas os homens espirituais encontravam toda a suavidade do

sabor (Sb 16,20).

19. Em quarto lugar está a medida, a fim de não se querer saber

acima das forças, mas saber com sobriedade (Rm 12,3). Por isso, o sá-

bio diz: Se achaste mel, come o que te basta, para não suceder que,

depois de farto, o vomites (Pr 25,16). Não pretendas mais do que teu

talento é capaz de elevar-se, nem permaneças mais baixo. Por isso, para

significar isso, como diz Dionísio, os serafins voavam com as asas do

meio11, para que o homem não permaneça aquém do que pode nem

suba além do que pode; assim como aqueles que cantam além de suas

forças, jamais produzirão uma boa harmonia. – E Agostinho12 afirma

que aqueles que não estudam de modo ordenado são como pequenos

potros, que correm ora para cá, ora para lá; mas o jumento, com seu

andar lento, caminha muito, porque caminha de modo regular; assim

alguém que não é dotado, mas que sabe ordenar seu estudo, tem o

mesmo resultado que um inteligente que estuda sem ordem.

20. Mas quem quer progredir nesse estudo, é preciso que tenha a

santidade e possa aplicar-se a uma vida timorata, impoluta, religiosa e

11 DIONÍSIO PSEUDO-AREOPAGITA, De ecclesiastica hierarchia, c. 4, par. 8, in PG3, 482.

12 Cf. SANTO AGOSTINHO, Hypognost. (entre as obras de Santo Agostinho), II, c.11, n. 20, in PL 45, 1632.

Page 191: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

O RETO CAMINHO E O MODO DE RECEBER...

191Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 181-193, jan./jun. 2011

edificante. – Esta é a vida timorata dos Santos para que, em tudo o

que faz, sempre tenha uma atitude de temor, quer vá à Missa ou à

mesa, quer esteja parado ou caminhe, porque em tudo pode existir

pecado; Jó afirma: Eu temia todas as minhas obras, sabendo que não

perdoas ao culpado (Jó 9,28). O temor é um ótimo sinal, e a audácia é

um péssimo sinal, porque o audaz jamais se corrige.

21. Em segundo lugar, é preciso ter uma vida impoluta, que reali-

za tudo por amor de Deus, não por amor a alguma coisa, pois qual-

quer amor é suspeito se não for amor de Deus. Por isso diz Agosti-

nho13, e também o bem-aventurado Bernardo numa carta a um mon-

ge14, que o amor dos Apóstolos pelo corpo de Cristo impedia a vinda

do Espírito Santo. Que dizer do amor pelas outras criaturas? O Salmo

afirma: Minha alma recusa consolar-se (Sl 77,3) etc. Guarda-me como a

pupila de teus olhos, Senhor (Sl 17,8). A pupila não está bem limpa

quando nela há vapor, pó ou umidade.

22. Em terceiro lugar, é preciso que haja uma vida religiosa, fecha-

da como o muro de uma vinha (cf. Is 5,5; Sl 80,13); assim é necessá-

rio que o homem modere o gosto, a língua e os outros sentidos, por-

que se alguém acredita ser religioso e não refreia a língua, engana-se a si

mesmo, porque vã e sua religião (Tg 1,26). Cerca teus ouvidos com espi-

nhos (Eclo 28,28). Nossa vida não deve ser dada a conversas, mas a

lágrimas.

23. Em quarto lugar, é necessário que seja uma vida que edifique o

próximo e o distante, para estar pronto a edificar a todos e condoer-se

se alguém se escandaliza por sua causa; e deve cuidar de não prejudicar

o outro, porque se só eu comer bem e os outros jejuarem, seria mal

feito. E este é o fruto de outras considerações.

13 SANTO AGOSTINHO, In Ioannis Evangelium, tr. 94, n. 4, in PL 35, 1869.

14 SÃO BERNARDO DE CLARAVAL, Epistula 462, n. 6, in PL 182, 665.

Page 192: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

192

S. BOAVENTURA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 181-193, jan./jun. 2011

24. E mais, das coisas já ditas, isto é, da ciência e da santidade,

segue-se o fruto da sabedoria ou o estudo, que consiste em quatro

momentos necessários, isto é, o primeiro é o reconhecimento dos pró-

prios defeitos internos. Por isso, no frontispício do templo de Apolo

estava escrito: “Conhece-te a ti mesmo”, sem isto é impossível chegar

à sabedoria. Por isso, quanto mais o sábio progride, tanto mais despre-

za a si mesmo. Por isso, é um mau comerciante aquele que engana a si

mesmo, como faz quem se considera mais do que vale; mas deve esti-

mar os outros e desprezar a si mesmo; e este é o mais importante

estudo da sabedoria, isto é, que o homem se persuada de seus defeitos

e se torne humilde aos próprios olhos.

25. O segundo estudo da sabedoria é a mortificação das paixões,

que são as sete afeições da alma, quatro principais e três anexas: o te-

mor, a dor, a esperança e a alegria; o desejo, a vergonha e o ódio. Tam-

bém em todas essas coisas pode existir o excesso. Ora, quando grita

demais, o menino é repreendido; assim o homem deve domar e refre-

ar estas paixões por uma censura judicial, para que, quando vier a dor,

diga a si mesmo: fique em paz; e a mesma coisa com as outras paixões;

e abandona estas puerilidades e desejos pueris. Com efeito, os meni-

nos seguem os impulsos das paixões; maldito o menino de cem anos (Is

65,20).

26. O terceiro estudo da sabedoria é a ordenação dos pensamen-

tos; por isso: O insensato olha pela janela para dentro da casa do próxi-

mo (Eclo 21,26). E aqui existe uma grande dificuldade para ordenar

nossas imaginações, para que, quando estamos na Igreja, não pense-

mos em nada senão no que se faz; e assim sobre os outros aspectos; e

necessariamente é preciso ordenar estes pensamentos, para que o Espí-

rito Santo entre por meio da sabedoria, porque o Espírito Santo da

disciplina foge dos fingimentos e se afasta dos pensamentos desatinados

(Sb 1,5). E assim, é preciso ter certas matérias sobre as quais nos exer-

citamos.

Page 193: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

O RETO CAMINHO E O MODO DE RECEBER...

193Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 181-193, jan./jun. 2011

27. O quarto estudo da sabedoria é a elevação do desejo; isso dá

valor aos outros estudos, para que, esquecidos do que fica para trás, nos

lancemos para o que está na frente (Fl 3,13). Os olhos do sábio estão em

sua cabeça (Ecl 2,14). O coração do sábio está à sua direita (Ecl 10,2).

Nisso consiste o estudo do sábio: que nosso estudo não se dirija senão

para Deus, que é todo desejável (Ct 5,16). Estas quatro coisas são difí-

ceis se não se tiverem os primeiros estudos; mas com estes são fáceis. E

assim é fácil ter o domínio sobre as paixões, como se diz de certo

filósofo, que disse a seu servo: “Como te castigaria se não estivesse

irado”15.

15 Cf. M. T. CÍCERO, Tusculanae, IV,c. 36.

Page 194: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

194

S. BOAVENTURA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 181-193, jan./jun. 2011

Page 195: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

DEPOIMENTDEPOIMENTDEPOIMENTDEPOIMENTDEPOIMENTOSOSOSOSOS

Page 196: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde
Page 197: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

FREI HERMÓGENES HARADA: A UNIVERSIDADE DO VAZIO

197Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 197-198, jan./jun. 2011

FREI HERMÓGENES HARADA:A UNIVERSALIDADE DO VAZIO

Sérgio Wrublevski *

A existência de frei Hermógenes Harada marcou decididamente a

existência de muitos homens e mulheres que tiveram a graça de parti-

cipar do desafio espiritual nos mais diversos níveis de participação:

como irmão, amigo, mestre do espírito. A sua morte tornou ainda

mais nítida a sua presença viva, corajosa, prenhe de acenos de renova-

ção, sempre tão preciosos em nossos tempos de indigência espiritual.

Como poderia ser compreendido o seu principio de vida e traba-

lho, que o fez trabalhar incansavelmente com tanta alegria e nitidez até

os últimos instantes, que o fazia tão procurado e estimado por tantos,

e que o fazia, ao mesmo tempo, ser tão incompreendido por muitos?

De seu pai, professor escolar, budista convertido ao exército da

salvação e depois ao catolicismo, a modo dos missionários alemães no

Japão, frei Hermógenes disse ter recebido acenos para a atitude funda-

mental: fazer de sua existência algo de benéfico para a humanidade, e

isto, de modo entusiasmado, abnegado e sem pretensões subjetivas.

No jargão filosófico, essa atitude significa fazer a existência ser um

caminho de universalidade na condição particular-singular. Buscar,

em toda a radicalidade, a universalidade de modo absoluto e finito na

* Doutor em filosofia pela UFRJ, professor de Filosofia no IFITEPS (Nova Iguaçu –RJ).

Page 198: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

198

SÉRGIO WRUBLEVSKI

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 197-198, jan./jun. 2011

existência singular, traz como desafio fazer de cada tempo e lugar da

existência o encontro cada vez único, concreto e pleno de realização.

Isto significa assumir toda a existência factual como lugar singular e

criativo de uma acolhida cada vez mais ampla e originária, e de tal

modo que cada concreção origina, a partir desta pura abertura, múlti-

plas concreções de universalidade. Este é o vazio cheio, do qual a

cultura do oriente e todas as grandes intuições religiosas falam.

Esta exigência de radical transcendência na finitude acolhe e ultra-

passa tanto as possibilidades da filosofia acadêmica, como também as

possibilidades do budismo, do cristianismo e franciscanismo, enquan-

to movimentos históricos e juridicamente institucionalizados, para

convocar cada homem a exercitar esta transcendência a partir do e no

seu enraizamento finito em direção a uma pura disponibilidade, capaz

então de ser agenciamento tanto da humanização do homem, de sua

autêntica divinização, e da divinização de toda criatura.

Esta atitude de espírito recusa uma filosofia entendida como reu-

nião de conhecimentos e sabedorias de vida, mas admite e busca

potenciar a fala desveladora do filosofar. Trata-se de uma atividade

reflexiva, na qual problemas filosóficos desabrocham e problemas apa-

rentes são desmascarados. As respostas do presente conduzem, muitas

vezes, a uma crítica da cultura explícita, na qual este filosofar perde seu

sentido.

Uma tal reflexão filosófica se torna, cada vez, diálogo formativo,

que não necessita de medidas objetivas, nem de doutrinas filosóficas,

termos técnicos e métodos, mas é, antes de tudo, vida existencial, puro

testemunho que forma e transforma o mundo. Esta unidade de vida e

atuação é, então, sementeira para novas possibilidades de renovação da

força de espírito. Como lembra o poeta Hölderlin, uma pérola preci-

osa, mesmo escondida nas profundidades da terra, não deixa de atuar e

transformar, pela força de sua própria essência.

Page 199: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

UMA DESPEDIDA

199Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 199-200, jan./jun. 2011

UMA DESPEDIDAAlberto da Silva Moreira *

Partilho com vocês, a seguir, uma reflexão que escrevi depois da

visita ao túmulo do Hermógenes e que enviei a alguns amigos dele.

Na segunda-feira à tarde, dia 29 de junho, fazia um tempo lindo

nas colinas verdes de Rondinha; o vento balançava as árvores e fazia

rolar as muitas folhas secas pelo chão. Tantas questiúnculas, brigas de

frades, projetos urgentes e outras coisas estavam na minha cabeça. Tudo

muito humano, demasiadamente humano. Fui largando tudo e sol-

tando o espírito ao tomar o caminho que conduz ao pequeno cemité-

rio dos frades. Foi uma graça estar sozinho e ter bastante tempo. Sen-

tei-me na grama e fiquei olhando o monte de terra fresca que ainda

recobre o Harada. Por cima do monte de terra alguém colocou umas

duas plantas, verdes e cheias de flores brancas e vermelhas, parecendo

um ramalhete que brotou e criou raízes. Belas e rudes como a vida. I

fioretti da frate Hermógenes. Continuei a antiga conversa com o Harada.

Desta vez, mais perguntas do que respostas, e muitos silêncios...  Um

profundo sentimento de gratidão e de paz me invadiu, sem tristezas

ou arrependimentos; uma grande comunhão de espírito e uma grande

vontade de aprender mais deste grande espírito, desta grande alma com

quem tivemos a pura graça de conviver por tantos anos. A decisão de

aprender mais e direito, e seguir em frente, acreditando firmemente na

* Professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC-GO.

Page 200: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

200

ALBERTO DA SILVA MOREIRA

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 199-200, jan./jun. 2011

“comunhão dos santos”, ou como o Harada dizia, naquela “comuni-

dade anônima e silenciosa dos guerreiros”, verdadeira família dos que

lutam, às vezes sem não ter com quem contar. Pensei que os verdadei-

ros discípulos e amigos, assim como as plantas, estão unidos, no silên-

cio, por debaixo da terra que tudo sustenta. Com esses sentimentos no

coração e tais pensamentos na mente me levantei, inclinei-me em re-

verência ao humilde mestre; saudei ainda fraternalmente Hildefonso,

Basílio, Barnabé e os mais antigos que não conheci, e tomei o cami-

nho que conduz ao dia de hoje.

Alberto da Silva Moreira, Julho de 2009.

Page 201: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

UMA DESPEDIDA

201Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 199-200, jan./jun. 2011

NUR - Núcleo de Estudos em Filosofia no Mundo IslâmicoMedieval - UNIFESPCoordenação: prof. Dr. Jamil Ibrahim Iskandar e profa. Dra. Cecilia

Cintra Cavaleiro de Macedo

http://www.sites.google.com/site/nurunifesp/

O núcleo dedica-se a investigar o desenvolvimento do pensamen-

to filosófico medieval sob o domínio islâmico através do estudo

das obras de seus maiores expoentes , bem como suas origens e

influências sobre a história do pensamento filosófico. Para tanto,

conta com três linhas de pesquisa: Filosofia medieval

islâmica, Filosofia medieval judaica, e origens e desdobramentos

da Falsafa,  sendo esta última dedicada à investigação das fontes

destes pensamentos, dos diálogos possíveis com outras correntes

filosóficas e outros ramos do conhecimento, assim como dos

desdobramentos posteriores destas importantes contribuições na

história do pensamento até os dias atuais.

O trabalho principal do grupo consiste nas pesquisas individu-

ais e compartilhadas dos professores integrantes e na orientação de

monografias, trabalhos de iniciação científica e dissertações. Os pro-

fessores participantes mantêm também um grupo de estudos

presencial na UNIFESP/Campus Guarulhos, em caráter perma-

nente, voltado a temas e obras compreendidos por estas linhas de

pesquisa, assim como desenvolvem ações no sentido da divulgação

desta área de investigação.  

Page 202: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

202

SÉRGIO WRUBLEVSKI

Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 197-198, jan./jun. 2011

Page 203: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

FREI HERMÓGENES HARADA: A UNIVERSIDADE DO VAZIO

203Scintilla, Curitiba, vol. 8, n. 1, p. 197-198, jan./jun. 2011

Normas para publicação

• Os artigos devem ser formulados obedecendo às normas técni-

cas de publicação da ABNT, e encaminhados à nossa editoria em

modelo eletrônico e com cópia impressa.

• A editoria da Revista se reserva o direito de, após criteriosa aná-

lise consultiva, publicá-los ou não. Os artigos não publicados não

serão devolvidos.

• Os autores articulistas receberão três exemplares da revista em

que tiver sido publicado seu artigo, abdicando, com isso, em fa-

vor da revista, dos direitos autorais dos artigos.

• Os artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus au-

tores e não precisam coincidir com o pensamento da Faculdade.

• O idioma de publicação é o português, não estando excluída a

publicação ocasional de textos ou artigos em outras línguas. Os

artigos deverão conter no mínimo 15 e no máximo 25 laudas (1

lauda = 2.100 toques) e vir acompanhados de um resumo de no

mínimo 8 e no máximo doze linhas.

• Em folha de rosto deverão constar o título do trabalho, o(s)

nome(s) do(s) autor(es) e breve currículo, relatando experiência

profissional e/ou acadêmica, a instituição em que trabalha atual-

mente, endereço, número do telefone e do fax e e-mail.

A editoria agradece qualquer contribuição, no sentido de melhoria

da revista, sejam comentários, sugestões, críticas...

Page 204: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

Pedimos aos colaboradores da Revista encaminhar seus artigos e

contribuições para endereço logo abaixo:

Scintilla – Revista de filosofia e mística medieval

BR 277 KM 112

Bom Jesus Remanso

83607-000 – Campo Largo – PR

Ou: [email protected]

ou: [email protected]

A revista aceita permuta – We ask for exchange, on demànde

l’èchange.

Assinatura anual (2 por ano – semestral): R$ 25,00;

Número avulso R$ 15,00

Pedidos: enviar cheque em nome de ASSOCIAÇÃO

FRANCISCANA DE ENSINO SR. BOM JESUS, para:

Scintilla – Revista de Filosofia e Mística Medieval

BR 277 KM 112

Bom Jesus Remanso

83607-000 – Campo Largo – PR

Ou depósito bancário

HSBC

Ag 0099

CC 22431-14

Cod. Id. 300669-4

Contrato 130176 [Mandar comprovante por e-mail]

Contato: [email protected] ou [email protected]

Fone: (41) 2105-4568

Page 205: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde

Scintilla – Revista de Filosofia e Mística MedievalPÁGINA DE PEDIDOS E ASSINATURAS

Nome: _____________________________________________

Endereço: ___________________________________________

_____________________________________________________________

_____________________________________________________________

Telefone: ____________________________________________

E-mail: _____________________________________________

Outras informações ____________________________________

VALORES E FORMAS DE PAGAMENTO

Assinatura anual (2 por ano – semestral): R$ 25,00; Número

avulso: R$ 15,00

Pedidos: enviar cheque em nome de ASSOCIAÇÃO FRANCIS-

CANA DE ENSINO SR. BOM JESUS, para:

Scintilla – Revista de Filosofia e Mística Medieval

BR 277 KM 112

Bom Jesus Remanso

83607-000 – Campo Largo – PR

Ou depósito bancário

HSBC

Ag 0099

CC 22431-14

Cod. Id. 300669-4

Contrato 130176 [Mandar comprovante por e-mail]

Contato: [email protected] ou [email protected]

Fone: (41) 2105-4568

Page 206: SCINTILLA - FAE · coisas: Como a alma e o intelecto precisam do alimento da Escritura, e um modo eficaz de o apr endiz, à épo ca, estudar . Assim como o corpo sem alimento perde