saude em debate_n75
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Revista do Centro Brasileiro de Estudos de Saude.TRANSCRIPT
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08Cebes
ISSN 0103-1104
Centro Brasileiro de estudos de saúde (CeBes)
DIREÇÃO NACIONAL (GESTÃO 2006-2009)
NATIONAL BOARD OF DIRECTORS (YEARS 2006-2009)
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1O Vice-Presidente Ligia Bahia (RJ)
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Diretor Ad-hoc Nelson Rodrigues dos Santos (SP)
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CONSELHO FISCAL / FISCAL COUNCIL
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Secretaria Geral Mariana Faria Pesquisadora Tatiana Neves
A Revista Saúde em Debate éassociada à Associação Brasileirade Editores Científicos
saúde em deBate
A revista Saúde em Debate é uma publicação quadrimestral editada pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
EDITOR CIENTÍFICO / CIENTIFIC EDITOR
Paulo Amarante (RJ)
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EDITORA ExECUTIVA / ExECUTIVE EDITOR
Marília Correia
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Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciên- cias da Saúde (LILACS)
Os artigos sobre História da Saúde estão indexados pela Base HISA – Base Bibliográfica em História da Saúde Pública na América Latina e Caribe
ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA
Avenida Brasil, 4036 – sala 802 – Manguinhos21040-361 – Rio de Janeiro – RJ – BrasilTel.: (21) 3882-9140, 3882-9141Fax.: (21) 2260-3782Site: www.cebes.org.br www.saudeemdebate.org.br E-mail: [email protected] [email protected]
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REVISÃO DE TExTO,CAPA, DIAGRAMAÇÃO E EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Zeppelini Editorial
IMPRESSÃO E ACABAMENTO
Corbã Editora Artes Gráficas
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2.000 exemplares
Esta revista foi impressa no Rio de Janeiro em novembro de 2008.
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PROOFREADINGCOVER, LAYOUT AND DESK TOP PUBLISHING
Zeppelini Editorial
PRINT AND FINISH
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NUMBER OF COPIES
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This publication was printed in Rio de Janeiro on november, 2008.
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Core in kromma silk 80 gr
Saúde em Debate, Revista do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES – v.1 (out./nov./dez. 1976) – São Paulo: Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES, 2008.
v. 32; n. 78/79/80; 27,5 cm Quadrimestral ISSN 0103-1104
1. Saúde Pública, Periódico. I. Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES
CDD 362.1
Rio de Janeiro v.32 n.78/79/80 jan./dez. 2008
ÓRGÃO OFICIAL DO CEBES
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
ISSN 0103-1104
EdItorIal / EDITORIAL
aPrESENtaÇÃo / PRESENTATION
artIgoS orIgINaIS / ORIgINAL ARTIcLES
Ensaio
reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético
Psychiatric Reform and psychosocial rehabilitation: an examination based on the dialectical materialism
Alice Hirdes
REvisão
Psicologia e Saúde Mental: três momentos de uma históriaPsychology and Mental Health: three moments of a history
João Leite Ferreira Neto
Ensaio
a Estratégia atenção Psicossocial: desafio na prática dos novos dispositivos de Saúde Mental
Eaps: challenge in the practice of the new devices of Mental HealthSilvio Yasui, Abilio Costa-Rosa
Ensaio
algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção
da saúdeReflections on the conceptual bases of Mental Health and the formation
of the Mental Health professional in the context of health promotionWalter Ferreira de Oliveira
Ensaio
Breve história da reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual
Brief history of the Psychiatric Reform for a better comprehension of the current debate
Richard Couto, Sonia Alberti
REvisão
Saúde do trabalhador de Saúde Mental: uma revisão dos estudos brasileiros
The health of Mental Health workers: a review of Brazilian scientific literature
Tatiana Ramminger
Ensaio
a Escola livre de artes Visuais do Museu Bispo do rosário arte Contemporânea
The Visual Arts Free School of Museu Bispo do Rosário Arte contemporânea
Ricardo Aquino, Thiago Ferreira de Aquino, Rita Aquino
Ensaio
Saúde Mental e cultura: que cultura?Mental Health and culture: what culture?
Alexandre Simões Ribeiro
Ensaio
a dimensão sociocultural da reforma Psiquiátrica e a Companhia Experimental Mu...dança
The socio-cultural side of Psychiatric Reform and the companhia Experimental Mu...dança
Myrna Coelho
PEsquisa
a ação territorial do Centro de atenção Psicossocial em sua natureza substitutiva
The territorial action of the centro de Atenção Psicossocial as indicator of its substitutive nature
Renata Martins Quintas, Paulo Amarante
RElato dE ExPERiência
grupo como dispositivo de vida em um caPs ad: um cuidado em Saúde Mental para além do sintomagroup of devices of life in Caps ad: Mental Health care beyond symptomsMilena Leal Pacheco, Luiz Ziegelmann
PEsquisa
Panorama do tratamento dos usuários de drogas no rio de JaneiroAn overview of treatment service for drug-addicts in Rio de JaneiroMagda Vaissman, Marise Ramôa, Artemis Soares Viot Serra
PEsquisa
Homens-carrapatos e suas mulheres: relato de experiência em Saúde Mental na Estratégia Saúde da FamíliaTick-men and their women: a report about Mental Health issue in Family Health StrategyIonara Vieira Moura Rabelo, Rosana Carneiro Tavares
Ensaio
Saúde Mental e atenção Básica à Saúde: o apoio matricial na construção de uma rede multicêntricaMental Health and primary health care: the matrix support building a multicentric netMariana Dorsa Figueiredo, Rosana Onocko Campos
PEsquisa
a crise na rede: o SaMU no contexto da reforma PsiquiátricaThe crisis on network: SAMU at Psychiatric Reform contextKatita Jardim, Magda Dimenstein
RElato dE ExPERiência
a construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico rio de JaneiroThe construction of a territorial base service: the experience of the centro Psiquiátrico Rio de JaneiroAlexandre Keusen, Andréa da Luz Carvalho
RElato dE ExPERiência
articulando planejamento e contratos de gestão na organização de serviços substitutivos de Saúde Mental: experiência do SUS em Belo HorizonteLinking planning and management contracts in the organization of substitute services of Mental Health: experience of SUS in Belo Horizonte, Minas geraisSerafim Barbosa Santos-Filho
doCUMENtoS HIStÓrICoS / HISTORIcAL DOcUMENTS
Saúde Mental: condições de assistência ao doente mentalComissão de Saúde Mental dos Cebes
artIgoS orIgINaIS / ORIgINAL ARTIcLES
Ensaio
a crise de dominação no sistema público de saúdeThe domination crisis in the Brazilian public health systemArlene Laurenti Monterrosa Ayala
Ensaio
François dagognet, por uma nova filosofia da doençaFrançois Dagognet, for a new philosophy of diseaseSabira de Alencar Czermak
artIgo INtErNaCIoNal / INTERNATIONAL ARTIcLE
Ensaio
Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercadocolombian health model: exportable, depending on the interest of the marketMauricio Torres Tovar
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S U M Á R I O • SUMMARY
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EdItorIal 3
ambiciosa e revolucionária, a declaração de alma-
ata completou 30 anos sem que seus objetivos
fossem totalmente concretizados. o Centro Brasileiro
de Estudos de Saúde (cEbEs) dava seus primeiros passos
quando, em setembro de 1978, a organização Mundial
da Saúde (oMS) e o Fundo das Nações Unidas para a
Infância (unicEf) reuniram no Cazaquistão os represen-
tantes de 137 países que ungiriam a meta de acesso à
saúde digna por todos, no mais tardar até o ano 2000.
a promessa era desenvolver ações urgentes baseadas
na participação social e na promoção da atenção básica
à saúde. o apelo maior era em relação à necessidade
de uma ordem econômica mundial mais justa e mais
solidária.
a essência da alma-ata foi perdida, pois os resul-
tados sanitários nunca foram tão desiguais no mundo,
assim como nunca foi tão precário e injusto o acesso
à saúde. Hoje, é de mais de 40 anos a diferença na
expectativa de vida entre as nações mais pobres e as
mais ricas. os gastos públicos com a saúde nesses paí-
ses variam, respectivamente, de 20 a 6 mil dólares por
pessoa e por ano. Muitos governos deram respostas
inadequadas em relação a esse setor, além de terem sido
incapazes de antecipar os problemas e impotentes na
busca de soluções.
Em ano de efemérides – 20 anos de Sistema Único
de Saúde (SUS), 30 anos de alma-ata, 60 anos da de-
claração Universal dos direitos Humanos – o Brasil tem
bons motivos para se orgulhar do trabalho realizado na
tentativa de melhoria da saúde de seu povo. o relatório
anual da oMS de 2008 voltou a recomendar a adoção da
atenção primária à saúde em todos os países e destacou
o Brasil como exemplo. os avanços na construção da
política nacional de Saúde Mental, um dos temas desta
Saúde em Debate, representam bem essa conquista.
Mesmo nesse Brasil de tantos avanços não é con-
sensual o lugar da atenção primária à saúde, tampouco
são uniformes as abordagens em sua implementação.
Vista por alguns gestores como programa seletivo que
oferta uma “cesta” restrita de serviços e por outros,
meramente como um dos níveis de atenção à saúde,
ainda não foi viabilizada em sua concepção descentra-
lizada, mais abrangente e integral. Estratégica porta de
entrada do sistema, a atenção primária tem um papel
preponderante no processo de implementação do novo
modelo assistencial do SUS, desde que superadas a
superposição de redes de assistência, a falta de unifor-
midade na execução do Programa Saúde da Família
(PSF), as desigualdades no acesso e na utilização dos
serviços, a pouca valorização e formação inadequada dos
profissionais, a focalização e seletividade de ofertas do
pronto-atendimento mínimo – incluem-se nesse tópico
as assistências Médicas ambulatoriais (aMa) na cidade
de São Paulo e as Unidades de Pronto-atendimento
(UPa) no município do rio de Janeiro, alimentadas,
na verdade, pelo marketing eleitoral.
desde que proposta a ‘re-fundação’ do cEbEs, tem-se
voltado muito a atenção para a necessidade de retomada
do espírito crítico, do debate propositivo que deu origem
ao projeto da reforma Sanitária brasileira. Não se trata
de insistir na ressurreição da reforma em si, mas de reco-
nhecer o seu grande êxito na construção do SUS.
da mesma forma, não se trata de reinventar o
passado, mas de manter o clima dos movimentos que
se organizaram em torno de ideais e projetos coletivos,
capazes de exercitar a crítica, de reconhecer as deficiên-
cias, de reorientar os compromissos institucionais e de
radicalizar a democracia.
a dIrEtorIa NaCIoNal
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 3-4, jan./dez. 2008
EDITORIAL4
ambitious and revolutionary, the alma-ata decla-
ration has completed 30 years, without the total
fulfillment of its objectives. the Centro Brasileiro de
Estudos de Saúde (cEbEs) was taking its first steps when,
in September, 1978, the World Health organization
(WHo) and the United Nations Children’s Fund (uni-
cEf) brought together in Kazakhstan 137 representatives
of countries that would reach the goal of providing access
to a deserving health for all, until 2000, at the latest.
the promise was to develop urgent actions based on
social participation and on the promotion of basic atten-
tion to health. the greatest plea was related to the need
for a fairer and more solidary economic world order.
the essence of the alma-ata was lost, because the
sanitary results have never been so unequal in the world,
as well as the access to health, which has never been so
precarious and unfair. Nowadays, the difference of life
expectation rates between the poorest and the richest
nations is of more than 40 years. Public expenses with
health in these countries vary, respectively, from 20 to
6 thousand dollars per person and per year. Many go-
vernments have given inadequate answers regarding this
sector, and have also been incapable of anticipating the
problems and impotent in the search for solutions.
on an ephemerides year – 20 years of National
Health System (SUS), 30 years of alma-ata, 60 years of
the Universal declaration of Human rights – Brazil has
good reasons to be proud of the work accomplished in
the attempt to improve people’s health. the World Health
report 2008 has once again recommended the adoption
of primary attention to health in all countries, and poin-
ted Brazil as an example. the advances in constructing a
Mental Health national policy, one of the subjects of this
Saúde em Debate, clearly represent this achievement.
Even in Brazil, with so many advances, the placing
of primary attention to health is not consensual, and nei-
ther are uniform the approaches in its implementation.
Considered by many managers as a selective program
that offers a restricted “basket” of services and, by others,
as merely one of the levels of attention to health, it hasn’t
been made possible in its decentralized concept, more
extensive and complete. as a strategic front door of the
system, primary attention plays a preponderant role
in the process of implementing a new SUS assistance
model, as long as some issues can be overcome, such
as the superposition of assistance networks, the lack
of uniformity to execute the Family Health Program
(PSF), the inequalities to access and to use the services,
the little importance given to professionals and their
inadequate qualification, the focalization and selectivity
of minimum emergency room offers – in this topic are
included the ambulatory Medical Care (aMa), in São
Paulo, and the Emergency rooms (UPa), in rio de
Janeiro, sustained, in fact, by electoral marketing.
Since the proposal of re-founding cEbEs, there has
been a lot of attention into the need to retake the critical
spirit, the preposition debate that originated the Bra-
zilian Sanitary reform project. It is not about insisting
on the resurrection of the reform itself, but recognizing
its great success in constructing SUS.
also, it is not about reinventing the past, but
keeping the atmosphere of the movements that were
organized around collective ideas and projects, which
were able to exercise the criticism, recognize deficien-
cies, reorient institutional commitments and radicalize
democracy.
THE NATIONAL DIREcTORATE
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 5-8, jan./dez. 2008
aPrESENtaÇÃo 5
Esta revista surge num momento muito especial,
afinal, comemoram-se os 30 anos da reforma Psi-
quiátrica no Brasil. Para celebrar esta data, selecionamos
uma capa estranha: a foto da grade de uma cela de um
hospital psiquiátrico. o objetivo desta imagem provo-
cativa é demarcar a distância histórica, ética e política
entre o momento inicial, 1978 e 1979, e o cenário atual
de participação dos usuários na construção da política,
serviços e estratégias em Saúde Mental.
No início deste ano, em meio às comemorações dos
30 anos de reforma, foi realizado, no rio de Janeiro,
o II Fórum Internacional de Saúde Coletiva, Saúde
Mental e direitos Humanos. Mais de 3.000 pessoas,
militantes das mais diversas áreas da saúde e dos direi-
tos humanos, participaram desse Fórum debatendo e
construindo um novo cenário para a Saúde Mental no
Brasil e em várias partes do mundo.
Para encerrar o ano com chave de ouro, lançamos
este número especialmente dedicado ao tema da Saúde
Mental, no I Congresso Brasileiro de Saúde Mental,
organizado pela recém-criada associação Brasileira de
Saúde Mental (abRasmE).
Há um consenso na área da saúde coletiva sobre a
importante contribuição que o campo da Saúde Mental
tem trazido para a saúde de forma geral, problematizan-
do a relação instituição-usuário e de institucionalização,
destacando a importância do trabalho e do envolvimento
da família, bem como a importância do trabalho no
território. Enfim, são muitas, e reconhecidas, as contri-
buições. Sabemos que uma revista sobre Saúde Mental
não será consultada apenas por profissionais da área,
mas de toda a saúde pública.
a revista é iniciada com uma série de artigos de
natureza conceitual. aqui se incluem os artigos de
alice Hirdes, com uma leitura da reforma psiquiátrica
e da reabilitação psicossocial a partir do materialis-
mo dialético, de João leite Ferreira Neto, com uma
análise história de três momentos da psicologia em
Belo Horizonte, de Silvio Yasui e abilio Costa-rosa,
que discorrem sobre a estratégia e os desafios do novo
modelo de atenção psicossocial, de Walter oliveira
que aborda as bases conceituais da Saúde Mental
e sua relação com a formação dos profissionais no
contexto da promoção da saúde. o artigo de richard
Couto e Sonia alberti apresenta um histórico sobre
o conceito de reforma Psiquiátrica e a tensão entre
clínica e atenção psicossocial e, para finalizar a série,
uma importante revisão de estudos brasileiros sobre
Saúde Mental do trabalhador, de autoria de tatiana
ramminger.
a intervenção no campo da cultura tem assumido
um papel importante no processo da reforma Psiqui-
átrica brasileira e, por isso, um outro bloco de artigos
é dedicado à relação entre cultura e Saúde Mental.
o texto de ricardo aquino trata dos fundamentos e
princípios da Escola livre de artes Visuais do Museu
Bispo do rosário de arte Contemporânea. alexandre
ribeiro aborda as articulações entre Saúde Mental
e cultura e Myrna Coelho tece comentários sobre a
dimensão sociocultural da reforma Psiquiátrica a
partir das experiências vivenciadas na companhia
Experimental Mu...dança.
os Centros de atenção Psicossocial (caPs), dispo-
sitivos estratégicos da política pública de Saúde Mental
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 5-8, jan./dez. 2008
aPrESENtaÇÃo6
brasileira, são objetos de pesquisa no artigo de renata
Quintas e Paulo amarante que discorrem sobre as
características inovadoras e substitutivas de tais dispo-
sitivos. o artigo de autoria de Milena leal Pacheco e
luiz Zielgman traz algumas reflexões sobre a terapia em
grupo em um caPs especializado em dependência quí-
mica; contemplamos, ainda, uma análise do tratamento
dos usuários de drogas no rio de Janeiro no texto de
Magda Vaissman et al.
outro tema importante diz respeito às relações e
possibilidades entre a área da Saúde Mental e a Saúde
da Família que, de formas distintas, está presente nas
abordagens dos artigos de Ionara rabelo e rosana
Carneiro tavares, através dos resultados de uma in-
tervenção psicossocial em mulheres que faziam uso de
ansiolíticos, e de Mariana dorsa Figueiredo e rosana
onocko Campos, que traz algumas observações acerca
do apoio matricial à Saúde Mental na atenção básica
à saúde.
a atenção aos usuários em crise é um dos aspectos
mais sérios e que coloca em xeque todo o processo da
reforma Psiquiátrica. três artigos são dedicados a esse
tema: o de Katita Jardim e Magda dimenstein, que traz
um análise das práticas do Serviço de atendimento Mó-
vel de Urgência (samu) em aracaju e suas articulações
com a rede de atenção psicossocial; o artigo de alexandre
Keusen e andréa da luz Carvalho relata a trajetória de
um centro de atenção em Saúde Mental que atende à
crise e se baseia na lógica do trabalho territorial. Serafim
Santos-Filho aborda a rica experiência de planejamento
e gestão da rede de serviços de saúde e Saúde Mental
em Belo Horizonte, indicando importantes caminhos
para os gestores.
Na seção de documentos Históricos, republicamos
uma das primeiras manifestações políticas do processo
de reforma Psiquiátrica no Brasil, um marco da pro-
dução crítica em Saúde Mental no país. trata-se de um
documento elaborado pelo Comissão de Saúde Mental
do cEbEs, intitulado condições de assistência ao doente
mental que, trazendo uma análise bastante precisa das
características de desassistência e violência institucional
do modelo psiquiátrico de então, foi apresentado no
I Simpósio de Políticas de Saúde da Câmara dos de-
putados em outubro de 1979. Nesse mesmo simpósio,
o cEbEs apresentou à sociedade brasileira a proposta
do Sistema Único de Saúde (SUS) a partir do histórico
texto A questão democrática na área da saúde. a capa da
presente edição traz uma das ilustrações desse texto.
temos uma pauta bastante ampla e variada, que
caracteriza a transdiciplinaridade e enorme dimensão
do campo da Saúde Mental.
Na seção de temas gerais, publicamos os artigos de
arlene laurenti ayala com uma instigante análise sobre a
crise de dominação ou controle das instituições de saúde
por parte dos trabalhadores de saúde e da população. o
texto de Sabira de alencar traz as reflexões do filósofo,
médico e epistemólogo François dagognet, o precursor,
a seu modo, da tradição de seu mestre georges Cangui-
lhem. Na seção internacional, Maurício torres analisa
em seu artigo os aspectos relacionados à estrutura, ao
financiamento e funcionamento do modelo de saúde
colombiano.
Boa leitura!
Paulo amaRantE
EditoR ciEntífico
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 5-8, jan./dez. 2008
PRESENTATION 7
this magazine appears at a very special moment,
after all, the thirtieth anniversary of the Psychiatric
reform in Brazil is commemorated. to celebrate this
date, we have selected a strange cover: a picture of prison
cell bars of a psychiatric hospital. the purpose of this
provocative image is to delimit the historical distance,
ethics and politics between the initial moment, 1978
and 1979, and the current scenery of users’ participation
in the construction of Mental Health politics, services
and strategies.
In the beginning of this year, during celebrations
for the thirty years of the reform, the 2nd International
Forum about Collective Health, Mental Health and
Human rights took place in rio de Janeiro. More than
3 thousand people, militants in different fields of health
and human rights, have participated in this Forum,
debating and constructing a new scenery for Mental
Health in Brazil and around the world.
to end the year with a cherry on top, we have
released this issue, specially dedicated to the theme of
Mental Health, at the 1st Brazilian Congress of Mental
Health, organized by the recently created associação
Brasileira de Saúde Mental (abRasmE).
there is consensus in the collective health area
about the important contribution brought by the
Mental Health field for health in general, rendering
problematic to the relation institution-user and institu-
tionalization, accentuating the importance of health and
family involvement, as well as the importance of field
work. anyway, there many recognized contributions.
We know that a magazine about Mental Health will
not be consulted only by professionals of the field, but
by the whole public health.
the magazine starts with a series of articles of
conceptual nature. Here are included articles by alice
Hirdes, reading the psychiatric reform and the psycho-
social rehabilitation from dialectic materialism; by João
leite Ferreita Neto, with historical analysis of three
moments of psychology in Belo Horizonte; by Silvio
Yasui and abilio Costa-rosa, who discourse about the
strategies and challenges of the new model of psychoso-
cial attention; by Walter oliveira, who approaches the
conceptual basis of Mental Health and its relation to
the graduation of professionals in the context of pro-
moting health. the article by richard Couto and Sonia
alberti presents the history of the Psychiatric reform
concept and the tension between clinic and psychosocial
attention and, to end the series, an important review of
Brazilian studies about Mental Health of workers, by
tatiana ramminger.
the intervention in the culture field has been
assuming an important role in the process of the Bra-
zilian Psychiatric reform and, because of that, another
block of articles is dedicated to the relation between
culture and Mental Health. a text by ricardo aquino
about the fundamentals and principles of the Escola
livre de artes Visuais from the Museu Bispo do ro-
sário de arte Contemporânea is presented. alexandre
ribeiro approaches the articulations between Mental
Health and culture and Myrna Coelho comments on
the sociocultural dimension of the Psychiatric reform
from experiences seen in the dancing group companhia
Experimental Mu…dança.
the Psychosocial Care Centers (the so called caPs
in Brazil), strategic devices from the public policy of
Brazilian Mental Health, are objects of research in the
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 5-8, jan./dez. 2008
PRESENTATION8
article by renata Quintas and Paulo amarante, who
discourse about the innovative and substitutive charac-
teristics of these institutions. the article by Milena leal
Pacheco and luiz Zielgman brings subjects to reflect
about group therapy at a caPs that is specialized in
chemical dependence; we also contemplate an analysis
of drug users` treatment in rio de Janeiro, in the text
by Magda Vaissman et al.
other important theme argues about the relations
and possibilities between the field of Mental Health and
Family Health that, in distinct ways, is present in the
analysis of articles by Ionara rabelo and rosana Carnei-
ro tavares, through results of a psychosocial intervention
in women who were on anxiolytics, and by Mariana
dorsa Figueiredo and rosana onocko Campos, that
brings some observations about matricial support to
Mental Health in the primary health care.
the attention to users in crisis is one of the most
serious aspects and jeopardizes the whole process of the
Psychiatric reform. three articles are dedicated to this
subject: the one by Katita Jardim and Magda dimens-
tein, which brings an analysis of practices of the Mobile
Urgency Service (the so called samu in Brazil) in aracaju
and its articulations with the net of psychosocial atten-
tion; the article by alexandre Keusen and andréa da luz
Carvalho narrates the trajectory of a Psychosocial Care
Center that attends to the crisis and is based on the logic
of territorial work. Serafim Santos-Filho approaches the
rich experience in planning and managing the net of
services of health and Mental Health in Belo Horizonte,
pointing out important directions for managers.
In the section of Historical documents, we have
republished one of the first political manifestations on
the process of Psychiatric reform in Brazil, a mark of
critical production on Mental Health in the country. It
is a document developed by the Mental Health Com-
mittee of cEbEs, entitled condições de assistência ao
doente mental, that, by bringing a very precise analysis
of the characteristics of unassistance and institutional
violence of the early psychiatric model, was presented
at the 1st Symposium of Health Policies in the deputy’s
in october, 1979. In this symposium, cEbEs presented
to the Brazilian society the proposal of the Unified
National Health System (the so called SUS in Brazil)
from the historical text A questão democrática na área da
saúde. the cover of the present edition has one of the
illustrations of this text.
the subjects are very broad and varied, which cha-
racterizes the transdisciplinarity and the huge dimension
of the Mental Health field.
In the general themes section, we have published
the articles by arlene laurenti ayala with a provoking
analysis about the domination crisis or the control of the
health institutions by the health workers and the popu-
lation. the text by Sabira de alencar brings reflections
of the philosopher, doctor and epistemologist François
dagognet, the predecessor, in his way, of the tradition
of his master georges Canguilhem. In the international
section, Maurício torres analyzes the aspects related to
the structure, financing and functioning of the Colom-
bian health model.
Enjoy your reading!
Paulo amaRantE
sciEntific EditoR
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 9-17, jan./dez. 2008
artIgo orIgINal / ORIgINAL ARTIcLE 9
reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial:
uma leitura a partir do materialismo dialéticoPsychiatric Reform and psychosocial rehabilitation:
an examination based on the dialectical materialism
RESUMO Este estudo traz uma reflexão teórica acerca da utilização do referencial
teórico metodológico do materialismo dialético como suporte para interpretação
e discussão do processo de Reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial no
contexto brasileiro. Para tanto, utilizamos as leis da dialética e a dialética do
concreto como substrato teórico para analisar os movimentos que se desenvolveram
historicamente no campo da Saúde Mental e assim como na área da reabilitação
psicossocial.
PALAVRAS-CHAVE: Saúde Mental; Serviços de Saúde Mental;
Desinstitucionalização; Marxismo.
ABSTRACT This paper is a theoretical reflection on the use of the methodological
theoretical reference of dialectical materialism as a basis to interpret and discuss
the process of Psychiatric Reform and psychosocial rehabilitation in Brazil. The
laws of dialectic and the dialectic of the concrete have been used as theoretical
support to the analysis of the movements that have taken place in the field of
mental health as well as in psychosocial rehabilitation.
KEYWORDS: Mental Health; Mental Health services; Deinstitutionalization;
Marxism.
alice Hirdes 1
1 Mestre em Enfermagem pela
Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC); docente de Saúde Mental
da Universidade luterana do Brasil
(UlbRa).
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 9-17, jan./dez. 2008
10 HIrdES, a. • reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético
I N T R O D U ç Ã O
Este artigo tem como objetivo realizar uma re-
flexão teórica sobre o tema da reforma Psiquiátrica
e da reabilitação psicossocial a partir do materialismo
dialético. recorreu-se a autores como lukács (1979),
Konder (1981), Kosik (1995) e lefebvre (1991), a fim
de se resgatarem os princípios e leis da dialética que
sustentam uma interpretação dos fenômenos com base
materialista. Para tais autores, nada que existe é eterno,
fixo, absoluto. toda vida humana é social e está sujeita
a transformações, ou seja, está historicamente condi-
cionada. o sujeito humano é essencialmente ativo e
interfere na realidade. Para a história sociológica (ou
sociologia histórica), os seres humanos não são apenas
objeto de investigação, mas sujeitos em relação ao pro-
cesso investigatório.
UMA BREVE VISÃO HISTÓRICA DO
MATERIALISMO DIALÉTICO
a lógica dialética, conforme Minayo (1998),
“introduz na compreensão da realidade o princípio
do conflito e da contradição como algo permanente
que explica a transformação” (p. 68). outra tese
fundamental da dialética é “o caráter total da exis-
tência humana e da ligação indissolúvel entre história
dos fatos econômicos e sociais e história das idéias”
(p. 69-70).
a partir do conceito de totalidade, que busca reter
a explicação do particular no geral e vice-versa, ocorre
o processo de pesquisa. o princípio metodológico da
totalidade significa:
compreender as diferenças numa unidade ou totalidade parcial; buscar a compreensão das conexões orgânicas, isto é, do modo de relacionamento entre as várias instâncias da realidade e o processo de constituição da totalidade parcial; entender, na totalidade parcial em análise, as determinações essenciais e as condições e efeitos de sua manifestação. (minayo, 1988, p. 70).
ao abordar a dialética da totalidade concreta, Kosik
(1995) dá ênfase à idéia de que esse não é um método
que pretende conhecer todos os aspectos da realidade, um
panorama total da realidade, mas é uma teoria da realidade
e do conhecimento que se tem dela como realidade. É
a partir do entendimento da realidade como concretude
possuidora de uma estrutura própria que se desenvolvem
concepções da realidade. dessas concepções decorrem
conclusões metodológicas que se convertem em princípios
epistemológicos para o estudo de temas da realidade ou
de práticas relativas à organização da vida humana e da
situação social. Kosik enfatiza que
a totalidade concreta não é um método para captar e exaurir todos os aspectos, caracteres, propriedades, relações e processos da realidade; é a teoria da realidade como totalidade concreta. (1995, p. 44).
Pontua, também, que totalidade não significa conhe-
cer todos os fatos, mas reconhecer a realidade como um
todo estruturado, dialético, no qual um fato ou conjunto
de fatos pode vir a ser racionalmente compreendido. o
conhecimento de fatos acumulados da realidade não sig-
nifica o conhecimento da realidade, assim como a reunião
de determinados fatos não constitui ainda a totalidade.
Se compreendidos como partes estruturais de um todo
dialético, os fatos são conhecimentos da realidade.
Konder (1981) também ressalta a característica
totalizante do conhecimento na dialética marxista. Essa
teoria decompõe o todo em partes para depois recompô-
lo e chegar à totalidade. Entretanto, o autor salienta que
tal totalidade não é simplesmente a soma das partes do
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11HIrdES, a. • reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético
todo. Por exemplo, em um trabalho de reabilitação de-
senvolvido por uma equipe interdisciplinar, ou transdis-
ciplinar, os conhecimentos se entrelaçam e os resultados
obtidos certamente serão mais ricos do que o trabalho
realizado por uma equipe multidisciplinar. Nesta última,
o trabalho é realizado em equipe, entretanto os saberes e
práticas são executados de forma isolada, estanque, cada
um com um papel fixo, pré-determinado. Isso que dizer
que o resultado dessa intervenção será um, ao passo que
a ocorrência simultânea de várias abordagens articuladas
entre si, será outra.
Este autor chama atenção para o fato de que a apro-
ximação da realidade não é a realidade, e que a realidade
é sempre mais rica do que o conhecimento que se tem
dela. outra noção diz respeito à visão de conjunto da
realidade. Esta visão é sempre provisória, pois a reali-
dade não é estática, mas dinâmica e em está constante
transformação; não se pode pretender o esgotamento
da realidade de determinado contexto. ou seja, nunca
a realidade alcança uma forma definitiva, acabada.
a dialética, enquanto conceito grego da arte do
diálogo é utilizada cotidianamente pelos profissionais
de Saúde Mental nas negociações com os usuários e seus
familiares, assim como pela interlocução estabelecida
entre profissionais de equipes interdisciplinares. a dia-
lética enquanto conceito moderno do modo de pensar
as contradições da realidade e modo de compreender
a realidade em constante transformação nos remete
à busca constante de novas formas de abordagem da
complexidade dos transtornos mentais. Procura-se por
formas mais completas nas quais, através da construção
de novas possibilidades, o portador de sofrimento psí-
quico reencontre e reescreva a sua história.
Por outro lado, dialética, enquanto modo de pen-
sar as contradições da realidade, a história humana e a
transformação da sociedade, nos leva a uma permanente
inquietação, porque não se satisfaz com a aparência
das coisas, está sempre à procura de sua essência. Para
isso é necessário que sejam desveladas as partes, em um
constante caminho traçado do concreto ao abstrato
e vice-versa. Mas isso não significa, de modo algum,
deixar de lado a totalidade, a conexão e interligação dos
fenômenos do todo. a complexidade da dialética se dá
pela busca constante da superação, pela não-satisfação
com o já atingido, pela busca por formas mais elevadas
de apreensão da realidade e a explicitação que as contra-
dições da realidade e dos fenômenos encerram.
de acordo com lukács:
o conhecimento, que está em condições de apreender dialeticamente as ‘astúcias’ da evolução histórica, só é vá-lido e eficaz quando suas aquisições forem outros tantos expedientes para a ação prática, cujas experiências virão, por sua vez, enriquecer o conhecimento e fornecer-lhe uma força sempre nova. (1979, p. 237).
Entendo que o conhecimento deverá ser passível de
ser traduzido em uma prática; prática essa transforma-
dora e que, se entendida a partir do conceito marxista
de práxis – união da prática com a teoria – pode levar
à emancipação do ser humano. Nessa perspectiva, o
estudo de outras formas de tratamento e recuperação
de portadores de transtornos psíquicos emerge como
uma força que se empenha na busca de soluções mais
completas e complexas, visualizando a totalidade do
ser humano. Na perspectiva dialética, a transformação
das idéias acerca da realidade e a transformação dessa
realidade devem caminhar juntas.
de acordo com Kosik (1995) o homem não está
emparedado na subjetividade, mas tem com a sua
existência a capacidade de conhecer as coisas como elas
realmente são. E este conhecimento se dá através da
práxis. a dialética, para o autor, trata da “totalidade do
mundo revelada pelo homem na história e o homem
que existe na totalidade do mundo” (p. 248).
o princípio metodológico da investigação dialética
da realidade social é, para o autor anteriormente referido,
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12 HIrdES, a. • reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético
o ponto de vista da totalidade concreta. Isso significa
que cada fenômeno pode ser compreendido como um
momento do todo. ressalta-se que um fenômeno social é
um fato histórico que desempenha dupla função: definir
a si mesmo e definir o todo, ser produtor e produto, ser
revelador e ao mesmo tempo decifrar a si mesmo, con-
quistar o próprio significado e conferir um sentido a algo
mais. Essa conexão das partes e do todo demonstra que
os fatos isolados são momentos artificiosamente separa-
dos do todo, os quais só adquirem verdade e concretude
quando inseridos no todo correspondente. assim como
o todo, se os momentos não forem separados tornam-se
um todo vazio e abstrato (KosiK, 1995).
Nas palavras de Konder (1981), para Hegel, filósofo
alemão e um dos expoentes do pensamento dialético, o
trabalho é a mola propulsora do desenvolvimento hu-
mano através da qual pode ser compreendida a atividade
criadora do ser. Hegel introduziu a concepção de supe-
ração dialética utilizando a palavra alemã aufheben, que
significa suspender. o filósofo emprega três diferentes
sentidos à palavra: o primeiro sentido é negar, anular,
cancelar; o segundo, erguer alguma coisa e mantê-la
suspensa; o terceiro, elevar a qualidade, promover a
passagem de alguma coisa para um plano superior. a su-
peração dialética, para Hegel, é a ocorrência simultânea
da negação de uma determinada realidade, a conservação
do essencial que existe na realidade negada e a elevação
dela a um nível superior (KondER, 1981).
abstraindo da concepção dialética a questão
negação-superação para o referencial de reabilitação
psicossocial, trago a negação da realidade assistencial
dos portadores de transtornos mentais centrado no
modelo do dano, nos déficits, assim como o resgate
e a centralização do foco nas habilidades e a busca do
trabalho para se atingirem os objetivos de reinserção
social, cidadania e qualidade de vida. ou seja, nega-se
a primeira realidade, a centralização do foco nos sinais
e sintomas; em suma, na doença resgata-se e centraliza-
se a atenção nos aspectos sadios e concomitantemente
busca-se melhorar a vida do ser humano portador de
transtornos psíquicos através de práticas de reabilitação
psicossocial.
aos novos serviços deverá corresponder uma clínica
renovada, com tratamentos diferenciados e, na qual
simultânea ou seqüencialmente, sejam desenvolvidos
projetos terapêuticos que contemplem as necessidades
psicossociais das pessoas envolvidas. Isto é o que poderá
efetivamente trazer uma pessoa a ser cidadã. Importante
se faz pontuar que os projetos não podem ser modelos
construídos a partir dos profissionais; devem ser cons-
truídos coletivamente com os maiores interessados: os
usuários.
PRINCIPAIS LEIS
Segundo Konder (1981), em virtude do pensamen-
to dialético de Hegel ser considerado abstrato, vago,
idealista, Marx e Engels reescreveram a dialética dentro
de uma perspectiva materialista. as três leis da dialética
formuladas por Engels com base em Hegel são: lei da
passagem da quantidade à qualidade (e vice-versa); lei
da unidade e luta dos contrários e lei da negação da
negação.
alguns autores contemporâneos como lefebvre
e Konder entendem que as leis da dialética não se
deixam reduzir a três. Esse reducionismo, na visão
de Konder (1981), é arbitrário, mas isso não significa
que as leis devem ser esquecidas, e sim utilizadas com
precaução. lefebvre (1991, p. 237) entende que as leis
do método dialético deverão ser universais e concre-
tas. Para este autor o método representa o universal
concreto. E estas leis deverão ser, ao mesmo tempo,
leis do real e do pensamento. deverão ser concretas
para atingir toda a realidade, mas não podem subs-
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13HIrdES, a. • reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético
tituir a investigação e o contato com o conteúdo.
através da investigação das realidades particulares,
da experiência e do contato com o conteúdo pode-se
chegar à essência, ao conceito e às relações das leis
particulares. o autor ressalta:
o método é alternadamente a expressão das leis uni-versais e o quadro de aplicação delas ao particular; ou, ainda, o meio, o instrumento que faz o singular subunir-se ao universal.(1991, p. 237).
as grandes leis do método dialético para lefebvre
são: lei da interação universal (da conexão, da media-
ção recíproca de tudo que existe); lei do movimento
universal; lei da unidade dos contrários; transformação
da quantidade em qualidade (lei dos saltos); lei do de-
senvolvimento em espiral (da superação).
a lei da interação universal prevê que nada é
isolado. o isolamento dos fatos e fenômenos significa
uma privação de sentido, de explicação, de conteúdo.
a pesquisa dialética considera cada fenômeno no
conjunto da inter-relação com os demais fenômenos
e, também, o conjunto da realidade na qual ele é
fenômeno.
Essa lei estabelece uma conexão importante dos
processos de institucionalização/ desinstitucionalização
e da discussão da reabilitação psicossocial. Sem o enten-
dimento anterior sobre a conformação do instituciona-
lismo em psiquiatria e dos saberes e práticas que durante
décadas legitimaram essa especialidade, não haverá o
entendimento ulterior da reabilitação psicossocial em
sua totalidade. a reabilitação psicossocial nasceu de
um conjunto de situações: a diminuição dos pacientes
internados em hospitais psiquiátricos a partir dos anos
1960, em todo o mundo; as demandas dos pacientes
ainda hospitalizados e a evolução dos conhecimentos
psiquiátricos (saRacEno, 1999). dessa forma, a rea-
bilitação psicossocial não pode ser tratada como um
fenômeno isolado.
E esta lei encontra-se atrelada à lei do movimento
universal, que reintegra o movimento interno dos fatos
e fenômenos e o movimento externo, que os envolve no
devir e vir-a-ser universal. a pesquisa dialética considera
cada fenômeno no conjunto de suas relações com os
demais fenômenos e com a realidade. Nessa lei, compre-
endemos a reintegração dos fenômenos – institucionali-
zação/desinstitucionalização/reabilitação psicossocial em
seu movimento próprio. através do movimento destes
fenômenos se estabelece o entendimento essencial e a
conexão entre eles.
a lei da unidade (interpretação) dos contrários nos
fornece a idéia de que a contradição dialética é uma
inclusão concreta dos contraditórios um no outro e,
simultaneamente, uma exclusão ativa. diferentemente
da lógica formal que conserva os dois contraditórios à
margem um do outro, que estabelece uma relação de
exclusão. a contradição dialética se situa no universal
concreto, enquanto a contradição formal permanece na
generalidade abstrata.
O método dialético busca captar a ligação, a unidade, o movimento que engendra os contraditórios, que os opõe, que faz com que se choquem, que os quebra ou os supera. (lEfEbvRE, 1991, p. 238).
Nessa lei, situo a institucionalização e a desins-
titucionalização em psiquiatria (intrinsecamente
contraditórias), como dois lados opostos um ao
outro, mas com uma unidade em comum: o foco na
abordagem da doença mental. Conforme o contexto,
prevalecerá um ou outro – a institucionalização ou
a desinstitucionalização. as idéias contidas em um
e em outro modelo entram em choque na realidade
concreta através das práticas executadas. a realidade
da desinstitucionalização não pode ser compreendida
sem o prévio entendimento da institucionalização,
assim como a conexão estabelecida com a reabilitação
psicossocial.
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as modificações quantitativas, lentas e graduais
desembocam em uma modificação qualitativa que apre-
senta características bruscas, tumultuosas, expressam a
crise e a metamorfose através da intensificação de todas
as contradições. É a transformação da quantidade em
qualidade, também chamada lei dos saltos. o salto
dialético implica, simultaneamente, a continuidade e a
descontinuidade. ou seja, o movimento que continua
e o aparecimento do novo.
trago, nesta lei, as mudanças ocorridas com o
processo de desinstitucionalização identificadas em
alguns lugares do mundo a partir da década de 1960 e
no Brasil mais tardiamente, após a redemocratização. as
transformações políticas, a redemocratização no país, a
Constituição de 1988, a luta pelos direitos humanos e
o Movimento pela reforma Sanitária desembocaram
em um movimento pela reforma Psiquiátrica no Bra-
sil. Neste movimento, pode-se observar que ocorreram
mudanças bruscas, o ‘salto’ dialético, através das de-
núncias expostas à opinião pública e o surgimento de
novas experiências em Saúde Mental, com características
desinstitucionalizantes. observa-se como característica
do salto dialético a continuidade, ou seja, o hospital
psiquiátrico como realidade ainda presente, os saberes
e práticas hegemônicos de exclusão e segregação ainda
não superados; e a descontinuidade, que compreende
o aparecimento de novos serviços respaldados pelas
iniciativas das políticas públicas de Saúde Mental.
Uma característica da lei se refere ao fato de as coisas
não mudarem sempre no mesmo ritmo. transpondo
para a questão da reforma Psiquiátrica, foi possível
observar, nas últimas décadas, alguns períodos em que se
intensificaram as discussões e o surgimento de novos ser-
viços, assim como períodos em que houve uma desace-
leração do processo. Historicamente, podemos situar as
décadas de 1980 e 1990 como marcos significativos nas
discussões pela reestruturação da assistência psiquiátrica
no país. Em 1987, ocorreu a 1a Conferência Nacional de
Saúde Mental; em 1990, realizou-se a Conferência para
a reestruturação da atenção Psiquiátrica, em Caracas,
que resultou na Declaração de caracas. Finalmente, em
1992, aconteceu a 2ª Conferência Nacional de Saúde
Mental. Em seguida, houve uma lacuna no que se refere
às conferências e à legislação (porque os serviços conti-
nuaram sendo constituídos) até a aprovação, em abril
de 2001, da lei de reforma Psiquiátrica. Em 2001, Foi
estabelecido um novo fórum de discussões por meio da
3ª Conferência Nacional de Saúde Mental.
a lei do desenvolvimento em espiral defende que
há um salto dialético entre a vida e a matéria sem vida,
e não uma descontinuidade absoluta. Há uma unidade
sempre renovada entre o individual e o universal, que
submete esse individual às leis universais. É na sociedade
e no pensamento que se revela o movimento em espiral:
o retorno acima do esperado, para aprofundá-lo e elevá-
lo em nível, libertando-o de seus limites. É a contradição
dialética da negação da negação.
APLICAçÃO DO MATERIALISMO
DIALÉTICO NA REFORMA PSIQUIÁTRICA E
REABILITAçÃO
Considero esta lei fundamental para a compreensão
das mudanças e movimentos que o processo de reforma
Psiquiátrica encerra, pois ela contempla os refinamentos
conceituais produzidos. Cita-se como exemplo a dife-
renciação entre tratamento e reabilitação, o enfoque do
trabalho terapêutico sobre os aspectos da história de vida
das pessoas portadoras de sofrimento psíquico. No mo-
delo tradicional biomédico, centraliza-se no diagnóstico,
nos sinais e sintomas, nos déficits. através da modificação
da centralização do trabalho terapêutico, não no modelo
da doença, do dano, mas nos aspectos sadios das pessoas,
permitiu-se aprofundar a questão do sofrimento psíquico,
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e introduzir novos olhares e perspectivas, libertando o
usuário/paciente e o profissional desses limites. ocorre aí
um salto dialético e não uma descontinuidade absoluta, já
que o tratamento continua a ser realizado, mas associado
com técnicas de reabilitação psicossocial. a partir da
união tratamento-reabilitação psicossocial a compreensão
do indivíduo portador de transtorno psíquico torna-se
aprofundada e, dessa forma, realizam-se abordagens mais
completas. a lei da negação da negação promove refina-
mentos que são introduzidos aos poucos como estratégia
para se promover a superação dialética.
dentro de uma perspectiva mais ampla, de to-
talidade, considera-se de fundamental importância o
diagnóstico de vida de uma pessoa e o conseqüente
estabelecimento de um projeto terapêutico a partir do
contexto no qual se insere. Este projeto deve ser sufi-
cientemente flexível para que incorpore mudanças e dê
margem a possíveis redimensionamentos. ressalta-se
a necessidade de leitura do contexto dentro de uma
mudança de óptica: comumente, tal leitura é realizada
em cima dos déficits, dos aspectos negativos. Sublinhar
as forças e os aspectos sadios constitui uma transição
importante no processo de tratamento e reabilitação,
assim como a noção de indissociabilidade de ambos.
lefebvre (1991) assinala que todas as leis dialéticas
constituem uma análise do movimento e no movimento
real estão implicadas a continuidade e a descontinui-
dade, o aparecimento e choque de contradições, saltos
qualitativos e superação. Encontram-se aí os aspectos
do movimento. as leis dialéticas pressupõem uma uni-
dade fundamental, que é encontrada no movimento,
no devir universal. o que ocorre, segundo o autor, é a
ênfase sobre uma ou outra lei, dependendo do tipo de
estudo realizado.
a partir desta constatação, utilizo como referência
para o processo analítico neste estudo a lei do desenvolvi-
mento em espiral, representado pela negação – superação
dialética. Muitos avanços ocorreram com as experiências
de desinstitucionalização. Entretanto, penso que, a des-
peito de muitos serviços que trabalham sob a égide da
reforma Psiquiátrica em nosso país, há a necessidade de
constantemente redimensionarmos o olhar para as práticas
em curso para que aos novos serviços correspondam as
balizas propostas; nesse caso, particularmente, o referencial
da reforma Psiquiátrica italiana. Sabe-se que os projetos
de reforma não são homogêneos, pois as práticas são exe-
cutadas conforme a concepção teórica dos profissionais
da área. dessa forma, é possível visualizar a existência de
princípios orientadores gerais, mas que em última análise
estão subordinados aos settings específicos das práticas.
através da negação da negação, ou seja, a negação de uma
determinada realidade centrada na exclusão (na doença)
para se afirmar outra realidade, focada nos aspectos sadios,
na identidade e cidadania dos portadores de sofrimento
psíquico, deverá prevalecer a superação dialética.
os serviços se constituem, para Saraceno (1999),
como a variável que influi no processo reabilitativo.
o autor assinala como característica de um serviço de
alta qualidade a capacidade do serviço em se ocupar de
todos os pacientes e a todos oferecer possibilidades de
reabilitação. Saraceno pontua, ainda, que os serviços
que não oferecem essas possibilidades acabam gerando
hierarquias de intervenção, e os menos dotados são
excluídos do processo. o autor ressalta que um serviço
de alta qualidade deverá ser permeável e dinâmico, com
alta integração interna e externa:
[...] um serviço onde a permeabilidade dos saberes e dos recursos prevalece sobre a separação dos mesmos e em que a organização está orientada às necessidades do paciente e não às do serviço.(1999, p. 96-97).
a integração interna e externa também deverá
acontecer nos movimentos que perpassam o tratamen-
to e a reabilitação psicossocial. Essa integração se fará
possível e concreta se os profissionais visualizarem a
importância da não-dissociação e assumirem ambos,
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16 HIrdES, a. • reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético
o tratamento e a reabilitação. a idéia contida nessa
proposta enfrenta um embate que se estabelece muitas
vezes no cotidiano dos serviços: o tratamento é execu-
tado por uns e a reabilitação, por outros. ou seja, há
a necessidade de não-separação do trabalho manual do
intelectual reproduzido dentro dos serviços para que
haja a superação dialética.
Saraceno (1999) alerta que, na integração interna
de um bom serviço devem ser contempladas estratégias
organizativas e afetivas. a permeabilidade dos recursos
e dos saberes deve superar a sua separação. Compreen-
demos que esse patamar deveria se constituir no ideal
a ser alcançado pelos serviços. os movimentos nos ser-
viços, quando encaminhados às questões organizativas
e afetivas concomitantemente, conduzirão à superação
dialética. da mesma forma, quando os conflitos e
contradições forem dialeticamente trabalhados, e não
ocultados, será promovida a descontinuidade; o apa-
recimento do novo e a explicitação das contradições
conduzirá a saltos qualitativos que processarão mudanças
reais nos serviços.
Saraceno, asioli e tognoni (1997) destacam a
atitude de integração da equipe como uma das muitas
variáveis que determinam a enfermidade e a eficácia da
intervenção. tais variáveis, relacionadas à organização e
ao estilo de trabalho da equipe, podem ser favoráveis ou
desfavoráveis. os autores conceituam uma equipe inte-
grada com variável favorável e que deve ter as seguintes
características: distribuição do poder; importância dos
conhecimentos; comunicação clara e não-contraditória;
discussão e planificação do trabalho; socialização dos
conhecimentos; autocrítica e avaliação periódica dos
resultados. Entre os fatores que colcoam obstáculos
à integração interna, os autores apontam a separação
prática entre os diferentes papéis profissionais, os dife-
rentes níveis de capacitação e de aspectos culturais dos
papéis profissionais e os conflitos ou frustrações entre
os membros da equipe.
acrescentam-se aqui as inquietações que Basaglia
(1985) já enfatizava: não é a redefinição da instituição
em termos estruturais, através de novos esquemas,
que garantirá ações terapêuticas, mas as relações
que se estabelecerão dentro das novas organizações
assistenciais. os novos serviços deverão atentar para
as possíveis (e concretas) contradições que podem se
configurar no seu interior. Uma dessas contradições
se refere ao discurso sobre a prática muitas vezes não
ser condizente com a prática desenvolvida. Basaglia
postula que as contradições do real deverão ser
dialeticamente vividas. É importante ressaltar que,
nessa tentativa de criação de um mundo ideal, se as
contradições não forem ignoradas ou postergadas,
mas enfrentadas dialeticamente, a comunidade se
tornará terapêutica. Para isso, devem existir alterna-
tivas, possibilidades.
CONSIDERAçÕES FINAIS
resgato a lei da dialética, defensora de que a nega-
ção é a força motriz do progresso. Negação essa, enten-
dida como a negação de uma determinada realidade e
a força, como aquela que se empenha na construção de
outra realidade mais rica e completa. Essa lei poderá ser
empregada no campo da Saúde Mental, mais especifi-
camente na área da reabilitação psicossocial. resgata-se,
neste processo, toda a potencialidade para a produção
de vida significativa ao ser humano. Nesse momento
ocorre um salto qualitativo significativo, através de
uma práxis transformadora que vislumbra todas as
possibilidades que se descortinam frente ao cuidado à
pessoa portadora de transtorno psíquico. Isso permite
alcançar refinamentos conceituais que, em última análi-
se, proporcionarão um olhar crítico em relação à práxis
da reforma Psiquiátrica.
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 9-17, jan./dez. 2008
17HIrdES, a. • reforma Psiquiátrica e reabilitação psicossocial: uma leitura a partir do materialismo dialético
o foco do trabalho terapêutico sobre a escuta, a
validação da identidade dos usuários, bem como a abor-
dagem aos pontos positivos, introduzem refinamentos
conceituais que se traduzem uma filosofia dos novos
serviços pautada na égide da reforma Psiquiátrica. Esses
diferenciais que contornam as ações introduzem saltos
qualitativos que se inserem na vida cotidiana das pesso-
as. a superação dialética é alcançada no momento em
que são reunidos, no mesmo sujeito histórico, aspectos
subjetivos e objetivos oriundos das demandas singulares
de cada pessoa.
Enquanto as práticas tradicionais objetalizavam o
doente (e o seu corpo), hoje rompe-se uma nova aurora,
na qual a subjetividade é reintegrada com o corpo social
dos portadores de sofrimento psíquico. Essa tomada
de consciência sobre a importância dessas intervenções
produz movimentos de superação da objetalização a que
foi submetido o doente e, também, a reconstrução de
um corpo físico, subjetivo e social.
R E F E R Ê N C I A S
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recebido: abr./2008
aprovado: nov./2008
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 18-26, jan./dez. 2008
artIgo orIgINal / ORIgINAL ARTIcLE18
Psicologia e Saúde Mental: três momentos de uma históriaPsychology and Mental Health: three moments of a history
RESUMO Neste artigo são apresentados e analisados três momentos da trajetória
dos psicólogos no Sistema Único de Saúde (SUS), a partir do campo da Saúde
Mental, no município de Belo Horizonte, Minas gerais. O primeiro é aqui
chamado de implantação, o segundo de antimanicomial e o terceiro de apoio
matricial. Trabalha-se com revisão de literatura e com documentos da área.
conclui-se que o psicólogo na Saúde Mental tem, por um lado, uma formação
clínica que não o preparava para a opção prioritária do Programa de Saúde
Mental e, conseqüentemente, sua formação ocorreu em serviço. Por outro lado, a
ênfase presente em sua formação para práticas grupais o capacita para a presente
prática matricial.
PALAVRAS-CHAVE: Saúde Mental; Psicologia; Movimento antimanicomial;
Apoio matricial; Psicoterapia de grupo.
ABSTRACT This article presents an analysis of three moments of psychologists
trajectory in the Brazilian Single Health System (SUS), starting with the field
of Mental Health, in the city of Belo Horizonte, Minas gerais, Brazil. The first
moment is herein named implantation, the second, anti-asylum, and the third,
matrix support. This paper is examines a literature review and documents of
the area. The conclusion is that the psychologist in Mental Health has a clinical
training which wasn’t enough to prepare him to the priority option of the Mental
Health Programme, and his training happened at work. The current emphasis
in training on group practices and psychosocial interventions, on the other hand,
enables the professional to work with present-day practice in matrix support.
KEYWORDS: Mental Health; Psychology; Anti-asylum movement; Matrix
support; Psychotherapy, group.
João lei te Ferre i ra Neto 1
1 Professor do Programa de Pós-
graduação em Psicologia da Pontifícia
Universidade Católica de Minas gerais
(PUC Minas); doutor em psicologia da
PUC São Paulo.
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FERREIRA NETO, J.L. • Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história
I N T R O D U ç Ã O
Quando a psicologia foi reconhecida como profis-
são em 1962, suas três áreas de atuação eram: as psicote-
rapias, dentro do modelo liberal-privado de consultório,
a organizacional e a educacional. a saúde pública ainda
não era tratada como campo de atuação, e após 44 anos
essa situação mudou drasticamente.
Uma pesquisa realizada a partir dos dados do Ca-
dastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES)
contabilizou 14.407 psicólogos no Sistema Único de
Saúde (SUS) em 2006, o que representa 10,08% dos
profissionais registrados no Sistema Conselhos de Psi-
cologia (sPinK, 2007). diversos estudos apontam que a
crescente presença dos psicólogos na saúde pública no
Brasil aconteceu em associação com a reforma psiquiátri-
ca e com a criação do campo chamado de Saúde Mental
(dimEnstEin, 1998; fERREiRa nEto, 2004).
o objetivo deste artigo é a apresentação de al-
guns elementos da história da entrada e do percurso
dos psicólogos no SUS, a partir do campo da Saúde
Mental, no município de Belo Horizonte, Minas
gerais. as fontes bibliográficas e documentais pesqui-
sadas indicam que a construção desse percurso nesse
município ocorreu em três momentos, marcados por
características próprias, em que a noção de Saúde
Mental sofreu variações quanto a seu sentido e à suas
diretrizes, na direção de sua consolidação e de sua
integração no contexto do SUS. Na década de 1980,
ocorreu o primeiro período chamado de implantação,
seguido pelo antimanicomial e o apoio matricial,
respectivamente nas décadas de 1990 e 2000. Essa
análise histórica abordará com maior atenção a pre-
sença de duas polaridades que atravessam este campo.
a polaridade entre abordagens individuais e coletivas,
e a composta pela especificidade da Saúde Mental e
da reforma psiquiátrica são o contexto mais amplo
da saúde geral e reforma sanitária. além da necessá-
ria revisão de literatura sobre o tema, nossa fonte de
dados será um conjunto de documentos produzidos
no decorrer da história mineira e da nacional.
MOMENTO ‘IMPLANTAçÃO’ – ANOS 1980
o Programa de Saúde Mental foi oficialmente
implantado em Minas gerais, na região Metropolitana
de Belo Horizonte, em 1984, durante a gestão do go-
vernador tancredo Neves pelo Partido do Movimento
democrático Brasileiro (PMdB). Nesse período, um
número expressivo de profissionais de saúde com perfil
progressista ocupou postos importantes na Secretaria de
Estado de Saúde. É importante lembrar que o período
de abertura democrática no país consolidou uma
[...] tática desenvolvida inicialmente no seio do mo-vimento sanitário, de ocupação de espaços públicos de poder e de tomada de decisão como forma de in-troduzir mudanças no sistema de saúde. (amaRantE, 1998, p. 91).
a chamada Nova república tornou-se o apogeu
dessa tática de ocupação, quando o movimento sanitário,
juntamente com o da reforma psiquiátrica, se confundiu
com o próprio Estado.
os antecedentes dessa iniciativa são: o Programa
Integrado de Saúde Mental (Pisam), proposto na VI
Conferência Nacional de Saúde, que teve curta duração
entre 1977 e 1979 e, grupos de profissionais isolados
atendendo em centros de saúde sem ligação com um
projeto ou programa que organizasse ações em Saúde
Mental.
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FERREIRA NETO, J.L. • Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história
a proposta do Pisam parte da avaliação de uma
prevalência de transtornos mentais de 18% e uma
demanda atendida de 0,28%. Suas diretrizes envolvem
ações de prevenção primária, integração da Saúde
Mental nas atividades básicas de saúde, utilização de
leitos em hospitais gerais e a integração de profissionais
não-médicos na assistência psiquiátrica. Na prevenção
primária era considerada eficaz a realização de “grupos
operativos de gestantes, mães, professores e o atendi-
mento a crises” (mEndonça filho; alKimin, 1998, p.
25). Particularmente, o grupo de professores deveria ser
conduzido por psicólogos.
Quanto ao atendimento clínico individual, os
pacientes egressos de hospitais psiquiátricos e os casos
graves eram a prioridade. Entretanto, mantinha-se uma
franca divisão nesses atendimentos: os egressos com os
psiquiatras e, os neuróticos e as crianças com a psico-
logia. o Pisam teve curta duração devido, entre outras
causas, à falta de apoio político e pressão dos grupos
privados (mEndonça filho; alKimin, 1998).
Na Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, desde
1984, havia 12 psicólogos distribuídos por oito centros
de saúde. No relatório de atividades de 14 de dezembro
de 1984, é possível observar que nesse ano ocorreram
as primeiras reuniões dos psicólogos que atuavam em
centros de saúde no município. a atuação na época era
voltada para a demanda infantil, para a participação em
outros programas em andamento nas unidades (pueri-
cultura, pré-natal) e conselhos de saúde e, para atuação
junto a instituições comunitárias. Existe uma indicação
no documento pela priorização do trabalho em grupos,
“por permitir uma melhor resposta a demanda” (sEcRE-
taRia municiPal, 1984, p. 2). Nenhuma menção é feita
ao paciente psicótico ou mesmo ao egresso hospitalar,
eixo fundamental da reforma psiquiátrica. Em suma,
a expressão Saúde Mental era tomada de um modo
genérico, sem relação com as propostas da reforma
psiquiátrica.
Nos antecedentes à oficialização do Programa
de Saúde Mental, temos uma compreensão ampliada
e genérica do que poderia ser definido como Saúde
Mental na rede pública. algumas vezes, era entendida
como parte mental da saúde geral, incluindo tanto o
doente grave, como as ações preventivas e a participação
nos programas prevalentes de saúde pública. Contudo,
mesmo quando as ações incluíam o paciente grave, ainda
pertencia ao domínio exclusivo do psiquiatra.
Já no Programa de ações da Saúde Mental da re-
gião Metropolitana realizado em 1985, início oficial do
programa na região metropolitana de Belo Horizonte,
Minas gerais, e anterior à municipalização da saúde, fo-
ram apresentadas 23 equipes de Saúde Mental divididas
em 18 centros de saúde e em cinco unidades em serviços
de pronto atendimento e da rede hospitalar, em parceria
com algumas prefeituras. as equipes são estabelecidas
como referência secundária, ou seja, como atendimento
especializado. a princípio, o Programa de Saúde Men-
tal buscava formular, de modo ainda primário, uma
concepção integral de saúde – o famoso trinômio do
bio-psico-social. Por isso, as primeiras equipes de Saúde
Mental respeitavam essa conformação: psiquiatra (bio),
psicólogo (psico) e assistente social (social). a falta de
experiência para uma formulação mais sofisticada do
que seria um trabalho em equipe multiprofissional e
interdisciplinar, conduziu a essa opção por uma alter-
nativa mais óbvia.
o documento retoma o histórico anterior do Pisam
e faz referência às práticas isoladas de psicólogos com
muitos pacientes em centros de saúde, afirmando seu ob-
jetivo de sistematização das ações em Saúde Mental.
Sua atuação preconiza seis eixos: atendimento à
demanda específica (doença mental), apoio aos demais
programas dos centros de saúde integrando a Saúde
Mental no contexto global da saúde, apoio técnico
ao nível primário, articulação com os recursos das
comunidades (escolas, creches, hospitais e associações
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de bairro), atendimento à criança e avaliação periódica
do programa. apenas no primeiro eixo é mencionada a
necessidade de uma atenção especial aos egressos. Final-
mente, as equipes foram cogitadas para um trabalho de
‘integração’ com os hospitais psiquiátricos, no sentido
de evitar ‘internações desnecessárias’ (sEcREtaRia dE
Estado dE saúdE, 1985, p. 8). ainda não se falava em
substituição do modelo hospitalar.
a ênfase nas ações coletivas permanecia: “o aten-
dimento em grupos tem lugar privilegiado como forma
de abordagem das questões de Saúde Mental” (sEcRE-
taRia dE Estado dE saúdE, 1985, p. 7). aponta ainda
que a intervenção em grupos é um trabalho que exige
constante discussão e aprofundamento por parte dos
profissionais envolvidos e deve ser acompanhada por
avaliação de seus impactos.
a partir desse período os psicólogos continuam
envolvidos com as práticas coletivas nos programas dos
serviços, mas também começam a receber a clientela
prioritária do Programa de Saúde Mental e os pacientes
com transtornos graves e persistentes. Como notificado
no documento, a formação em serviço por meio de su-
pervisões de casos clínicos passa a ser uma prática mais
constante. além disso, inicia-se o curso de Especializa-
ção em Saúde Mental, formando os primeiros grupos
de psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais da rede,
oferecido pela Escola de Saúde de Minas gerais (Esmig),
com forte acento na prática clínica de base psicanalítica
lacaniana tendo parte do corpo docente pertencente
ao Simpósio do Campo Freudiano, que mais tarde se
tornará Escola Brasileira de Psicanálise.
Conclui-se que o momento de ‘implantação’ é por-
tador de algumas características. anterior à implantação
oficial temos a presença da ação dispersa de profissionais
de Saúde Mental, com uma concepção genérica desse
campo. No caso dos psicólogos, a ênfase é nos progra-
mas gerais de promoção da saúde já desenvolvidos e na
atenção clínica voltada à criança. Mesmo no período do
Pisam, quando a questão do atendimento aos casos gra-
ves aparece, essa clientela aparece ainda como domínio
da psiquiatria. Somente quando Programa de ações é
implantado, em 1984, esse quadro começa a se alterar,
e o momento seguinte ‘antimanicomial’ consolidará a
atuação dos psicólogos aos pacientes graves.
Nesse momento, é marcante a preocupação da
integração da Saúde Mental no contexto geral da saúde
e a participação de seus profissionais em ações cole-
tivas com outros profissionais do serviço. as práticas
de grupo se constituem numa importante diretriz de
trabalho, tendo nos psicólogos um de seus principais
agentes. além disso, é preconizado o apoio técnico ao
nível primário, estratégia que somente se consolidará
no terceiro momento de ‘apoio matricial’.
MOMENTO ‘ANTIMANICOMIAL’ – ANOS 1990
a passagem entre os dois primeiros momentos
analisados está atravessada por alguns importantes
eventos. o primeiro deles, no ano de 1987, foi o II
Encontro Nacional dos trabalhadores em Saúde Mental
em Bauru. Nesse encontro foi produzida a consigna por
uma sociedade sem manicômios e instituído o dia 18 de
maio como o dia Nacional da luta antimanicomial. os
psiquiatras já não são mais maioria entre os trabalhadores
presentes, grande parte desses são psicólogos. Contando
com a participação de intelectuais de diversas áreas, ela-
borou-se uma pauta de conceitos para instrumentalizar
a luta pela reforma psiquiátrica, visando à autonomia do
movimento em relação ao Estado. as diretrizes apon-
tavam para um caminho de alargamento das fronteiras
da luta para uma ação no interior da própria cultura,
trazendo a discussão sobre a loucura para o cotidiano
da sociedade, numa estratégia que ampliava a atividade
puramente assistencial e criava pontes entre as ações no
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âmbito do Estado com a sociedade civil. Prevaleceu,
desde então, um ideário de “desinstitucionalização ou
da desconstrução/invenção” (amaRantE, 1998, p. 93),
induzindo a uma disjunção com o movimento sanitarista
e sua tática de ocupação da máquina estatal. desde essa
nova direção, seriam visadas alianças com a sociedade
civil e os movimentos populares e com as associações de
usuários e de familiares, em busca da rua, da imprensa
e da opinião pública.
através do segundo evento, em 1989, a reforma
psiquiátrica assumiu repercussão nacional com a inter-
venção da Secretaria de Saúde do Município de Santos
na Casa de Saúde anchieta e a seqüente criação de dis-
positivos antimanicomiais na cidade, numa gestão que
inspirou várias experiências posteriormente conduzidas
por todo o país (amaRantE, 1998, p. 83).
Finalmente, no mesmo ano temos a apresentação
ao Congresso do Projeto de lei 3.657/89 visando re-
gulamentar o processo de reestruturação da atenção à
Saúde Mental no país, de autoria do deputado federal
Paulo delgado (Partido dos trabalhadores de Minas
gerais, Pt/Mg).
Em Belo Horizonte, somente durante a gestão
municipal do prefeito Patrus ananias, do Pt (1993
a 1996), a Secretaria de Municipal de Saúde (SMSa)
de Belo Horizonte definiu e conduziu suas ações para
priorizar, essencialmente, o atendimento clínico dos
pacientes graves, impedindo assim que as agendas dos
profissionais ficassem comprometidas e congestionadas
com a inesgotável demanda espontânea ou encaminha-
da de crianças com dificuldade escolar, pacientes com
quadros de ansiedade, aqueles pertencentes à ‘clientela
cativa’ dos centros de saúde. Nessa gestão, foi nomeado
para a Smsa o psiquiatra César Campos, engajado, já
de longa data, com os movimentos de luta contra o
aparato asilar. Iniciou-se a construção de dispositivos
substitutivos ao hospital, os centros de convivência e os
centros de referência em Saúde Mental (CERsam, versão
mineira dos Centros de atenção Psicossocial – caPs).
Um importante documento que avalia esse período
foi publicado numa coletânea organizada por técnicos
da saúde, com a assessoria do professor Emerson Merhy,
sobre a gestão da saúde. o capítulo que nos interessa
é assinado pela coordenadora do Fórum Mineiro de
Saúde Mental e pela coordenadora da Saúde Mental
da Smsa (lobosquE; abou-yd, 1998). Nesse docu-
mento, intitulado A cidade e a loucura – entrelaces, o
projeto de Saúde Mental é apresentado em uma versão
marcadamente antimanicomial, tendo como perspectiva
“a extinção do hospital psiquiátrico” e sua substituição
por outro modelo de atenção (p. 244).
o texto, que possui uma função de relatório da
gestão, possui um marcado tom político de ruptura
comparado ao de anteriormente. Essa ruptura é afirmada
em pelo menos quatro aspectos. o primeiro deles, de
cunho mais ideológico e organizacional, era a postulação
de uma incompatibilidade com certa vertente do movi-
mento sanitário com seu acento nos cuidados primários,
em detrimento do tratamento das doenças. Segundo as
autoras esse modelo sanitarista, considerado autoritário,
é estabelecida uma divisão indesejada
[...] nos hospícios, os loucos; nos centros de saúde, os pequenos desviantes – crianças ditas problemáticas, mulheres ditas deprimidas – e as práticas preventivistas em geral. (1998, p. 245).
o projeto propõe o abandono do modelo america-
no de psiquiatria comunitária, adotado anteriormente
pelo Programa da região Metropolitana de 1985, com
seus níveis primário (rede básica), secundário (serviços
especializados) e terciário (hospital), pois valida a perma-
nência do hospital no topo do modelo assistencial. Por
isso, afirma que os cERsam “não se caracterizam como
serviços intermediários ou secundários” (p. 252), mas
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compõem uma rede de assistência que visa substituir
os hospitais psiquiátricos, sem hierarquizar os níveis
de atenção.
o segundo tem componentes de gestão de pessoal,
uma vez que a coordenação encontrou certa “oposição
por parte de profissionais de Saúde Mental”, os quais
se mostravam resistentes “a assumir as novas diretrizes
do trabalho” (lobosquE; abou-yd, 1998, p. 253). a
proposta aponta uma mudança de foco da atenção das
“crianças robustas e gestantes saudáveis”, consideradas
clientela majoritária das unidades básicas, para os
psicóticos e neuróticos graves, que passam a ser quali-
ficados como “prioridades assistenciais” (p. 247). Isso
acarretou, por parte da gestão, uma ação de desestímulo
ao atendimento dos casos considerados mais leves, bem
como a presença em grupos de outros programas, como
aqueles voltados para “gestantes ou diabéticos” (p. 246).
o tom depreciativo de avaliação do trabalho em grupos
e da participação em outros programas de promoção da
saúde, questionável, deve ser entendido a partir desse
contexto de uma gestão que se compromete com a
direção antimanicomial da Saúde Mental. No presente
momento o debate se faz no esforço de evitar a dissocia-
ção entre ações clínicas e de promoção de saúde.
o terceiro aspecto, de caráter político-adminis-
trativo, configurou-se como passo fundamental para
garantir a reorganização da assistência a partir das di-
retrizes antimanicomiais: a nova relação da SMSa com
os hospitais psiquiátricos. Isso envolveu a gestão dos
hospitais privados conveniados por parte da Secretaria.
Nesse sentido, foram realizadas várias ações visando efe-
tivar a desmontagem do aparato manicomial: supervisão
hospitalar efetiva nos hospitais privados conveniados
ao SUS, proibição de novas internações fora dos dois
hospitais públicos, disponibilização de todos os leitos
hospitalares privados conveniados na central de inter-
nação municipal. Uma das medidas mais eficazes para
a organização da nova rede de assistência em Saúde
Mental foi o procedimento de garantir a cada paciente,
antes de sua alta hospitalar, o agendamento de consulta,
via distrito Sanitário, com um profissional de Saúde
Mental no centro de saúde mais próximo de sua casa. a
organização desse fluxo impediu que os pacientes em alta
ficassem sem atendimento ambulatorial e fossem rein-
ternados após nova crise. garantiu também a chegada
dos egressos nas unidades básicas de saúde, rompendo o
circuito: alta, residência, crise e nova internação.
Pacientes e familiares passaram a conhecer uma
nova possibilidade de atenção profissional, próxima de
suas casas. decorridos alguns anos após esse conjunto
de ações, é possível deduzir que para romper com o cir-
cuito hospitalar não é suficiente somente a implantação
de equipes nas unidades, é necessário uma política de
organização do fluxo da demanda. Caso contrário, os
profissionais permaneceriam com sua atividade drenada
com a clientela cativa do serviço, sem que os egressos se
tornassem parte de sua clientela habitual.
o quarto aspecto, de caráter ético e técnico, diz
respeito à concepção de clínica que subsidia um projeto
antimanicomial. de um lado, existe o destaque à psica-
nálise: “sem a psicanálise, [...] sem a referência que nos
inspira, nossas práticas de pensamento e de trabalho não
seriam o que são” (lobosquE; abou-yd, 1998, p. 249).
as autoras reconhecem que a psicanálise usualmente não
está presente em momentos políticos incisivos, sendo,
portanto esta uma rara articulação. ainda é necessário
se fazer uma análise mais acurada dos limites e dificul-
dades oriundos da hegemonia da psicanálise no campo
da Saúde Mental (fERREiRa nEto, 2008).
de qualquer modo, a contribuição da psicanálise,
isoladamente, não é suficiente para se pensar sobre
a atuação na saúde pública. Permanece a dificuldade
presente no despreparo para conduzir uma clínica
sem setting definido. É necessário, então, desfazer sua
colagem com a clínica de consultório, uma vez que os
espaços da primeira são múltiplos, ou seja, abordagem
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de um paciente morador de rua, visita domiciliar, etc.
Isso não se apresenta como tarefa simples, uma vez que
a formação prevalente ainda atende a esse modelo. as
autoras reconhecem que os profissionais não receberam
anteriormente este tipo de formação e perguntam:
“quem a recebe, aliás?!” (p. 263).
o texto relata também duas importantes ações
extraclínicas desenvolvidas pela Saúde Mental junto à
demanda infantil. a primeira foi a criação de fóruns
regionais de atenção à Saúde Mental da Criança e do
adolescente, envolvendo variados segmentos, tais como
os técnicos de Saúde Mental e da educação, membros de
Conselhos tutelares e de outras instâncias comunitárias,
com o objetivo de criar espaços de diálogo e busca de
soluções na atenção à infância tanto individual quanto
coletivamente. a ação dos psicólogos nesse processo foi
de suma relevância. o segundo foi o Projeto arte na
Saúde, como postura clínico-política de não psicologizar
as dificuldades infantis, utilizando espaços comunitários
com monitores da própria comunidade, desenvolvendo
atividades com crianças, idealizado por uma psicóloga
de unidade básica.
Vemos, portanto, nesse segundo momento, a psi-
cologia comparecer com suas fraquezas e virtudes. No
âmbito da ação clínica junto ao paciente com transtor-
nos graves e persistentes, havia muito que aprender, o
que ocorreu processualmente e não sem dificuldades
e resistências. No âmbito das ações extra-clínicas, a
trajetória da psicologia junto às crianças, adolescentes e
até mesmo junto ao diálogo interinstitucional agregou
contribuições importantes ao projeto.
MOMENTO ‘APOIO MATRICIAL’ – ANOS 2000
o Programa de Saúde da Família (PSF) é a principal
estratégia para reorientação do modelo assistencial de
atenção à saúde (bRasil, 2004a). É um movimento de
reorientação do modelo assistencial, operacionalizado
mediante a implantação de equipes multiprofissionais
em unidades básicas de saúde, tendo vínculo formal
com uma parcela da população adscrita. Foi formulado
pelo Ministério da Saúde em 1994, mas começou a ser
implantado, em Belo Horizonte, em 2002 com o nome
de BH – Vida.
o documento municipal a ser analisado, datado
de 2 de julho de 2003, foi intitulado Saúde Mental
na assistência básica (sEcREtaRia municiPal da saúdE,
2003), e visava estabelecer parâmetros para as relações
entre o projeto de Saúde Mental e o BH–Vida. Seu
contorno busca atender à função de ‘apoio matricial’
preconizada pelo Ministério da Saúde (bRasil, 2004B).
Seu diferencial em relação a outros documentos é sua
redação conjunta entre a coordenação de Saúde Mental e
as gerências de atenção à Saúde, ainda que a linguagem
e o ideário que ele apresenta tenham clara ligação com
a Saúde Mental.
o documento aponta para o desenvolvimento de
ações “que vão da assistência e da clínica às dimensões
relativas à reabilitação/reinserção no mundo do trabalho,
da cultura, da reprodução social ampla” (p. 2). discute
também a importância do atendimento na crise, even-
to que alimenta o sistema manicomial sem a busca
apressada da internação. Finalmente, indica o traba-
lho em equipe como instrumento para superação do
paradigma médico, “alargando competências comuns,
desmontando e reorganizando poderes e saberes esta-
belecidos” (p. 3).
No âmbito da integração das Equipes de Saúde
Mental (ESM) com as Equipes de Saúde da Família
(ESF), o documento preconiza que as primeiras
[...] priorizarão o atendimento aos portadores de sofrimento mental grave e persistente e as ESF se responsabilizarão pelas necessidades clínicas desta clientela. (p. 4).
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FERREIRA NETO, J.L. • Psicologia e saúde mental: três momentos de uma história
as ESM continuariam acolhendo outras demandas
mais leves, mas estas seriam atendidas pelas ESF com
apoio das ESM. os usuários e familiares devem par-
ticipar da formulação dos projetos terapêuticos, e do
controle e planejamento das ações de Saúde Mental. as
ações de apoio matricial devem realizar a
[...] discussão conjunta dos casos entre ESM/ESF, como forma de intercambiar cotidianamente, no trabalho concreto, saberes e competências, bem como, progres-sivamente, ir delimitando a clientela. (p. 5).
Em janeiro de 2008, o Ministério da Saúde aprovou
a portaria 154, que cria os Núcleos de apoio à Saúde da
Família (Nasf), fortalecendo as ações de apoio matricial,
através da criação de núcleos multiprofissionais, numa
composição escolhida entre 13 opções profissionais, com
ênfase nas ações de planejamento, educação continuada,
promoção da saúde e atendimento de casos. No caso da
Saúde Mental deve-se priorizar as abordagens coletivas.
recomenda também a presença de pelo menos um pro-
fissional de Saúde Mental em cada Nasf (diáRio oficial
da união, 2008, p. 39). Na portaria são considerados
profissionais de Saúde Mental: psicólogos, psiquiatras e te-
rapeutas ocupacionais (e não mais os assistentes sociais).
Esse apoio matricial ainda dá seus primeiros passos,
sendo que avaliar seu real impacto necessitará de um
tempo maior. Inicialmente nota-se uma preocupação
muito centrada na diminuição e qualificação da demanda
para a Saúde Mental (siRimim, 2007). Contudo, podemos
esperar que a aproximação no trabalho cotidiano entre as
Esm e as Esf, terá vários outros desdobramentos.
CONSIDERAçÕES FINAIS
refletir a partir de estudos históricos com enfoques e
recortes variados sobre trajetória da Saúde Mental é uma
maneira de evitar dissolver acontecimentos singulares em uma
suposta “continuidade ideal” teleológica (foucault, 1979, p.
28). também cerceia a tentação sempre presente da produção
de uma versão oficial da ‘história’ que, em geral representa
uma mitologia construída por um grupo hegemônico.
o recorte histórico aqui apresentado, que tem por
eixo a atuação do psicólogo, possui várias hipóteses de
interpretação. Uma delas é que as direções previstas em
1984 na implantação do programa, o ideário de inte-
gração na saúde geral de prática de apoio às equipes de
saúde e da valorização das práticas grupais, retorna com
vigor no apoio matricial. Podemos deduzir também que a
ação antimanicomial, que num primeiro momento opôs
a ação clínica às práticas grupais, se configurou como um
momento essencial para garantia do projeto de atenção
ao paciente grave. o antagonismo ‘clínica versus promo-
ção’ foi estrategicamente necessário para permitir uma
conjunção de esforços dos profissionais de Saúde Mental
na rede, sempre escassos frente à demanda de trabalho.
Contudo, com a consolidação da assistência ao paciente
grave, é possível pensarmos em fazer uma agenda de
integração em que ações de promoção caminhem juntas
com ações clinicas nas práticas de apoio matricial. a Saúde
Mental é um projeto sempre em movimento, composto
por diferentes atores sociais, que em diferentes momentos,
têm contribuído para sua contínua reinvenção.
No caso do psicólogo, encontramos inicialmente as
deficiências de uma formação clínica baseada num modelo
liberal-privado de consultório, o que não o preparava para
a opção prioritária do programa. Sua formação se deu,
portanto, em serviço, através das práticas de atendimento
aliada às supervisões. Sua entrada no SUS transformou
sua concepção de clínica e introduziu novas perspectivas
de clínica ampliada (fERREiRa nEto, 2008).
Mais recentemente, a ênfase presente em sua for-
mação para práticas grupais e intervenções psicossociais
pode capacitá-lo de modo diferencial para a presente
prática de apoio matricial.
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Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 18-26, jan./dez. 2008
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recebido: abr./2008
aprovado: out./2008
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 27-37, jan./dez. 2008
artIgo orIgINal / ORIgINAL ARTIcLE 27
a Estratégia atenção Psicossocial: desafio na prática dos
novos dispositivos de Saúde MentalEaps: challenge in the practice of the new devices of Mental Health
RESUMO O processo social complexo da Reforma Psiquiátrica, concretizado
como Política de Saúde Mental, nas últimas décadas tem levado a uma
profunda transformação na prática dos cuidados em Saúde Mental. Isso conduz
a mudanças no modelo técnico-assistencial que organiza e sustenta as práticas
desses profissionais que, por sua vez, encontram resistência em outros campos.
O objetivo deste trabalho é refletir sobre os desafios cotidianos das Instituições
de Saúde Mental, que buscam implantar o novo modelo assistencial, apesar de
se depararem com práticas hegemônicas do paradigma que tentam superar. Foi
realizado um mapeamento preliminar das características da Estratégia Atenção
Psicossocial e possíveis avanços, a partir de sua implantação, são apontados.
PALAVRAS-CHAVE: centros de Atenção Psicossocial; Saúde Mental; Assistência
Integral à Saúde; Saúde coletiva.
ABSTRACT Once the complex social process of Psychiatric Reformation, materialized
in Brazil as Mental Health Policy, involves a deep transformation in mental health
assistance and causes several changes in the traditional technical assistance model
that organizes professional practices, it finds many resistances inside several fields of
knowledge. The main objective of this paper is to think about the everyday challenges
of Mental Health Institutions that aim to establish a new model of care but still have
problems with the old hegemonic practices that they intend to deny. It has been made
a preliminary mapping of Psychosocial Attention Strategy characteristics and some
possible advances, which could happen after its deployment, are herein stated.
KEYWORDS: Mental Health Services; Mental Health; comprehensive Health
care; Public health.
Si lv io Yasui 1 abi l io Costa-rosa 2
1 doutor em Saúde Pública pela
Escola Nacional de Saúde Pública
(ENSP) da Fundação oswaldo Cruz
(fiocRuz); docente do departamento
de Psicologia Evolutiva, Social e Escolar
e do Programa de Pós-graduação em
Psicologia da Faculdade de Ciências e
letras da Universidade Estadual de São
Paulo (unEsP), assis.
2 doutor em Psicologia Clínica pela
Universidade de São Paulo (USP);
docente do departamento de Psicologia
Clínica do Programa de Pós-graduação
em Psicologia da Faculdade de Ciências
e letras da unEsP, assis.
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 27-37, jan./dez. 2008
28 YASUI, S.; COSTA-ROSA, A. • A Estratégia Atenção Psicossocial: desafio na prática dos novos dispositivos de Saúde Mental
I N T R O D U ç Ã O
a política de Saúde Mental, construída e pactuada
por diferentes atores sociais desde meados da década de
1980, preconiza e almeja profundas transformações da
atenção, isto é, o atendimento e os cuidados ao sofri-
mento psíquico e demais impasses subjetivos.
Essas transformações apontam para mudanças
na concepção do processo saúde-adoecimento, no
modelo teórico e técnico-assistencial que organiza e
sustenta as práticas dos profissionais; que orienta e
sustenta o arcabouço jurídico e o universo de práticas
e valores culturais. Mudanças que apontam, tam-
bém, para proposições éticas em relação aos efeitos
e desdobramentos das ações no campo da Saúde
Mental (amaRantE, 2007; costa-Rosa, 2000). al-
gumas dessas transformações estão na constituição
maior do país e regulamentadas em forma de lei
como, por exemplo, a participação da população
no planejamento, gestão e controle das práticas de
atenção, e até mesmo na gestão dos dispositivos
institucionais.
Esse conjunto amplo de transformações práticas
e proposições teóricas, tanto éticas quanto políticas,
incorporado e vivenciado na atual Política de Saúde
Mental é suficiente para que possamos falar em Es-
tratégia atenção Psicossocial (EaPs), assim como foi
proposta a Estratégia Saúde da Família (ESF). analisar
os avanços, as resistências e os impasses no campo da
Saúde Mental atualmente, em termos de EaPs, nos
ajudará a explicitar algumas das relações atuais entre
o Centro de atendimento Psicossocial (caPs) e o am-
bulatório de Saúde Mental, bem como entre esses dois
e a atenção Básica. Essas relações se dão, sobretudo,
no que diz respeito aos desdobrementos a partir da
proposta de ações de matriciamento em implantação
nas diretrizes do Ministério da Saúde. Parte-se da hipó-
tese de que esses esclarecimentos poderiam contribuir
como importantes fatores de municiamento na luta
pelos avanços da EaPs.
as mudanças que já se processam, entretanto,
não se dão sem muitas resistências ou claras oposições
advindas de vários setores e direções. Já temos situado
o processo complexo a partir do qual se desdobram as
lutas pela reforma Sanitária e pela reforma Psiquiá-
trica, sob a égide de uma luta de hegemonia quanto
ao controle dos interesses e valores que se encarnam
também nas instituições de Saúde Mental (costa-
Rosa; luzio; yasui, 2003). Um de nós tem realizado
um avanço nos referenciais de análise desse processo
de ações e reações, especificando a forma geral dos
antagonismos em termos de luta paradigmática de dois
paradigmas: o Paradigma Psicossocial e o Paradigma
Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador. Costa-
rosa (2006) propõe que ‘paradigma’ seja entendido
como uma agregação dos diferentes vetores das pul-
sações tanto em termos de ação instituinte quanto de
resistências do instituído no campo da Saúde Mental.
o termo ‘medicalizador’ é utilizado com o duplo sen-
tido do radical ‘medic’: centrado no discurso e na ação
médica (clavREul, 1983) e orientado pela utilização
da medicação como resposta preferencial às demandas
do sofrimento psíquico.
Nessa perspectiva, o objetivo principal do presente
trabalho é refletir sobre os desafios cotidianos das Insti-
tuições de Saúde Mental que buscam implantar o novo
modelo assistencial, mas ainda se deparam com práticas
hegemônicas do paradigma que buscam superar. Procu-
raremos, também, realizar um mapeamento preliminar
das características da EaPs e indicar possíveis avanços a
partir de sua implantação.
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 27-37, jan./dez. 2008
29YASUI, S.; COSTA-ROSA, A. • A Estratégia Atenção Psicossocial: desafio na prática dos novos dispositivos de Saúde Mental
A MUDANçA DE MODELO E A PRÁTICA DOS
PROFISSIONAIS: DESAFIOS DO COTIDIANO
DOS SERVIçOS
as transformações propostas pelo complexo campo
da reforma Psiquiátrica brasileira apresentam grandes
desafios, especialmente aos profissionais de saúde que
cotidianamente têm a tarefa de expandir e consolidar
essa mudança. Para isso, seus principais instrumentos
são: sua formação permanente, que faculte a redefini-
ção e reorganização de seu processo de trabalho, e a
articulação das alianças, ou mesmo forças antagônicas,
entre os diferentes setores da sociedade; em suma, que
viabilize a criação e expansão concretas de uma rede de
atenção e cuidados baseada em um território e pautada
nos princípios de integralidade e participação popular.
Esse processo emergente de trabalho deve pautar
sua organização cotidiana na ruptura com o modelo
tradicional. o modelo tradicional, pois, baseia-se no
princípio doença-cura e compreende de forma pre-
dominantemente orgânica o processo saúde-doença,
além de ser estratificado e hierarquizado por níveis de
atenção. Suas premissas são concretizadas em estratégias
de cuidado centradas na sintomatologia e, em conse-
qüência, predominantemente medicamentosas; além
disso, por causa da herança deixada pelas instituições
da reclusão, essas premissas são também hospitalo-
cêntricas. as aproximações à clientela e à população
seguem modelos verticalizados e reproduzem os moldes
socialmente dominantes da subjetividade serializada
do Modo Capitalista de Produção. as ações tendem
a ser funcionalistas por proporem uma adaptação de
indivíduos queixosos, ‘desequilibrados’ ou desajustados.
Um aspecto dessa prática que merece ser explicitado,
por sua importância radical, é a ação medicamentosa
como única solução para todos os males e sofrimentos,
subsumindo as pulsações instituintes que por ventura
estejam presentes nas queixas e impasses, funcionando
como um poderoso suporte para a valia da próspera
indústria farmacêutica.
a proposta de ação da EaPs exige a superação desse
paradigma e sua substituição por um novo que seja capaz
de se situar de modo afirmativo: um paradigma que
situe a Saúde Mental no campo da Saúde Coletiva, com-
preendendo o processo saúde-doença como resultante
de processos sociais complexos e que demandam uma
abordagem interdisciplinar, transdisciplinar e interseto-
rial, com a decorrente construção de uma diversidade de
dispositivos territorializados de atenção e de cuidado.
Mais ainda, para esse novo paradigma, produção de
saúde e produção de subjetividade estão entrelaçadas
e são indissociáveis, o que traz como conseqüência a
radical superação das relações sociais e intersubjetivas
sintônicas com o Modo Capitalista de Produção, que é
o alicerce do Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico
Medicalizador (costa-Rosa, 2006).
Esses desafios se tornam ainda maiores, consi-
derando que essa mudança de paradigma ainda não
está presente na formação básica dos profissionais de
Saúde. Essa formação continua sendo organizada em
disciplinas e especialidades, com pouca ou nenhuma
integração, levando os profissionais em formação a um
olhar fragmentado da realidade, conseqüência do Para-
digma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador,
ainda dominante. Formados e formatados no modelo
médico-centrado hegemônico e em práticas disciplina-
res, os profissionais se vêem diante da responsabilidade
de implantar uma proposta de mudança de modelo
assistencial que requer uma ruptura radical da maioria
dos conceitos estudados ao longo dos anos de formação,
além de necessitarem rever radicalmente concepções
ideológicas e éticas. tal situação assume, por vezes,
características de um impasse.
Esse conflito entre proposta e prática, intenção e
gesto, gera uma tensão permanente no cotidiano insti-
tucional revelando a contradição entre os paradigmas
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 27-37, jan./dez. 2008
30 YASUI, S.; COSTA-ROSA, A. • A Estratégia Atenção Psicossocial: desafio na prática dos novos dispositivos de Saúde Mental
que sustentam os diferentes modelos de cuidado. Via de
regra, os profissionais foram moldados em cursos nor-
teados pelo paradigma hegemônico, foram organizados
em torno de disciplinas fragmentadas, compartimenta-
lizadas, com pouca ou nenhuma articulação entre si.
os profissionais são estimulados, por exigência
do mercado, a se super-especializarem com o aprendi-
zado e o domínio de tecnologias pretensamente mais
sofisticadas. Uma vez graduados, estão aptos a agir
de forma específica, a ler fragmentos da realidade. os
médicos aprendem a medicar e a ver na medicação a
solução primeira para qualquer tipo de situação; os
psicólogos aprendem a realizar uma terapia centrada
no indivíduo e em seu sofrimento privatizado; os tera-
peutas ocupacionais aprendem a coordenar atividades,
etc. No entanto, nenhum desses profissionais aprende
a lidar com as situações cotidianas que os usuários dos
serviços de saúde e Saúde Mental necessitam quando
procuram pelo Sistema Único de Saúde (SUS) como,
por exemplo, impasses na subjetividade das pessoas e seu
sofrimento, na maioria das vezes, desencadeados pelo
cotidiano, que se desenrola em duras condições sociais.
Esses profissionais são incapazes de ouvir o sujeito e sua
dor além da doença, de forma que articule os sintomas e
sinais em um quadro mais amplo e complexo; raramente
estabelecem diálogos que produzam uma integração
com outros profissionais que trabalham a seu lado; não
compreendem as dificuldades das pessoas em aderir ao
tratamento estruturado dessa forma; estranham e se
incomodam com as reivindicações das pessoas a res-
peito de seus direitos; apresentam grandes dificuldades
em construir estratégias que ampliem a participação e
autonomia dos usuários.
a mudança de paradigma não é uma agenda es-
pecífica da Saúde Mental. Pelo contrário, ela se inclui
no conjunto de transformações práticas que têm como
prioridade a construção do SUS no contexto da reforma
Sanitária.
Nesse contexto cresce a consciência de que a crise
na Saúde nada mais é que uma expressão fenomênica
de causas mais profundas que têm sua raiz no modelo
de atenção médica vigente, estruturado pelo paradigma
flexneriano. Sair da crise implica, necessariamente,
transitar de um modelo de atenção médica, fruto do
paradigma flexneriano, para um modelo de atenção à
saúde, expressão do paradigma da produção social da
saúde (mEndEs, 2006). a saúde seria concebida como
estado geral decorrente do modo de se levar a vida em
todos os aspectos: físicos, psíquicos, sociais, econômicos,
culturais e ambientais.
ao Paradigma da Produção Social da Saúde corres-
ponde o Paradigma Psicossocial. Há uma sintonia das
concepções ideológicas, teóricas e éticas entre a reforma
Psiquiátrica e a reforma Sanitária. Isso torna ainda mais
inadiável a questão da formação de novos trabalhadores
de Saúde Mental e do redirecionamento de outros que
se encontram ainda em práticas típicas dos modelos
vigentes, cuja superação se exige. Nossa experiência tem
demonstrado que, no campo da atenção ao sofrimento
psíquico, os avanços na direção da EaPs aparecem como
o passo mais apropriado para a superação de uma série
de impasses decorrentes dessas heranças do Paradigma
Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador. tais im-
passes apresentam-se tanto na forma direta do modelo
asilar como na forma do preventivo-comunitário, cujo
estabelecimento modelo é o ambulatório de Saúde
Mental.
o relatório final da III Conferência de Saúde
Mental, promovida pelo Ministério da Saúde em 2002,
apresenta propostas referentes à política de recursos
Humanos, destacando-se que:
[...] uma política de recursos humanos deve visar im-plantar, em todos os níveis, o trabalho interdisciplinar e multiprofissional no campo da Saúde Mental, na perspectiva do rompimento dos ‘especialismos’ e da construção de um novo trabalhador em saúde men-
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 27-37, jan./dez. 2008
31YASUI, S.; COSTA-ROSA, A. • A Estratégia Atenção Psicossocial: desafio na prática dos novos dispositivos de Saúde Mental
tal, atento e sensível aos diversos aspectos do cuidado, garantindo que todo usuário dos serviços de saúde seja atendido por profissionais com uma visão integral e não fragmentada da saúde. (Brasil, 2002, p. 68).
É importante referir, aqui, as ações do Ministério
que, no setor da Saúde Mental, tendo à frente repre-
sentantes dos interesses diretos da reforma Sanitária e
reforma Psiquiátrica, empreende preciosas ações politi-
camente orientadas para essa direção, em termos de for-
mação permanente, análise e supervisão institucional dos
caPs. Um passo imprescindível nesse momento é reunir
e sistematizar todos os conhecimentos capazes de confi-
gurar claramente a EaPs. a partir da sistematização desse
corpo de conhecimentos, é possível ampliar as bases de
reflexão e análise da práxis, tanto da atenção Psicossocial
quanto da própria formação de trabalhadores em ação.
Essa nossa experiência indica que a ‘formação em ação’
é a única estratégia capaz de se contrapor efetivamente
aos efeitos desastrosos de uma formação universitária
que se referencia mais pelas demandas ideológicas co-
nectadas aos interesses socialmente dominantes e menos
pelas exigências éticas concretas da realidade da atenção
Psicossocial e da EaPs.
O AMBULATÓRIO DE SAúDE MENTAL
COMO ESTRATÉGIA QUE VISOU CONTRA-
POR-SE à LÓGICA HOSPITALOCÊNTRICA
Nos anos 1980, a criação dos ambulatórios de
Saúde Mental, constituídos por equipes multiprofis-
sionais, era apontada como um promissor instrumento
de mudança na realidade o primeiro passo da reforma
Psiquiátrica. No estado de São Paulo, a Secretaria de
Estado da Saúde elaborou também uma proposta de
ação em Saúde Mental nas Unidades Básicas de Saúde
(UBS), acompanhada de um texto que apresentava
uma série de sugestões de organização do trabalho das
equipes de Saúde Mental nessas Unidades de Saúde e
nos ambulatórios. a abordagem era designada como
bio-psico-social.
o trabalho em equipe era uma espécie de terra
prometida onde, afinal, seria possível mudar o modelo
asilar e exercer uma boa assistência à Saúde Mental. Mas
a concretização dessa proposta de trabalho em equipes
multiprofissionais fez com que ela se transformasse,
ao longo dos anos, em um dispositivo burocrático. tal
organização de assistência hierarquizada, tendo a equipe
de Saúde Mental da UBS como porta de entrada, contri-
buiu para se configurarem novas demandas, sobretudo
um conjunto de ações ambulatoriais paralelas às do
Hospital Psiquiátrico. No entanto, não foi capaz de
produzir qualquer impacto na lógica hospitalocêntrica;
pelo contrário, produziu um aumento na demanda de
internações ao ampliar o acesso da população às con-
sultas psiquiátricas.
a multiprofissionalidade continua na agenda do
dia da EaPs; por isso é oportuno refletirmos um pouco
sobre ela.
Podemos levantar uma questão referente ao fato de
a reprodução da divisão social do trabalho no campo da
Saúde gerar uma hierarquização das relações, na qual o
saber médico impera sobre outros saberes, que cumprem
um papel secundário, o que reproduz a divisão típica do
Modo Capitalista de Produção. Isso produz uma espécie
de divisão de atividades e tarefas em compartimentos
com pouca ou nenhuma relação entre si. Um exemplo
desta divisão é uma dada situação em que a consulta
do psiquiatra é tomada como a atividade prioritária e
essencial. Isso gera uma agenda repleta, atendimentos de
curtíssima duração e com grandes intervalos de tempo
entre uma consulta e outra, visando uma alta produtivi-
dade, medida pelo número de consultas. Há, também,
a consulta, geralmente individual, com o psicólogo, que
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 27-37, jan./dez. 2008
32 YASUI, S.; COSTA-ROSA, A. • A Estratégia Atenção Psicossocial: desafio na prática dos novos dispositivos de Saúde Mental
tem longa lista de espera, repetindo o modelo da prática
liberal típica de parte do trabalho desse profissional;
por fim, há os grupos de orientação, coordenados pela
enfermeira ou pela assistente social, sempre pedagógicos
e geralmente à margem das demandas subjetivas espe-
cíficas daqueles indivíduos. Esses encaminhamentos de
um profissional para outro são feitos mediante preen-
chimento de uma guia entregue pela recepção, onde se
agendam as consultas. todos os profissionais se reúnem
(com dificuldade) uma vez por mês e discutem questões
administrativas. Nos cinco minutos finais, um ou outro
caso mais grave é trazido à atenção da pequena parte da
equipe que permanece até o final da reunião.
a propósito do conceito multidisciplinar, do qual
surgiu o termo multiprofissional, Japiassu (1976) já
afirmava que a abordagem multidisciplinar estuda um
objeto sob diferentes pontos de vista, mas sem que tenha
havido um acordo prévio sobre os métodos a se seguirem
ou sobre os conceitos a serem utilizados. Há apenas uma
justaposição de disciplinas sem que fiquem evidentes as
relações que possam existir entre elas.
Na mesma linha de pensamento, almeida Filho
(2000) descreve a multiprofissionalidade como uma
justaposição de disciplinas em um único nível, sem
cooperação sistemática entre os diversos campos disci-
plinares. dessa forma, e segundo esses autores, pode-se
definir o multidisciplinar como uma somatória de
diferentes campos que não estabelecem diálogo e não
apresentam nenhuma cooperação entre si necessaria-
mente, mantendo seus limites e fronteiras e olhando
sob suas perspectivas e a partir de seus lugares para um
mesmo objeto, no caso, o sofrimento psíquico. a equipe
multiprofissional, por esta caracterização, já está fadada
a ser um apenas um agrupamento de profissionais de
distintas áreas que ocupam o mesmo espaço físico.
Essa configuração multiprofissional, já analisada e
criticada desde muito cedo, está de acordo com a lógica
do Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medica-
lizador que, por sua vez, está em sintonia com a lógica
da divisão do trabalho do Modo Capitalista de Produ-
ção (costa-Rosa, 1987). Não há dúvidas de que, sem
uma crítica radical à divisão do trabalho e ao processo
de produção da atenção vigente no campo da Saúde
Mental, não poderemos obter avanços na superação da
estratégia asilar e preventivista ainda dominantes. a EaPs
exige um modo de organização de divisão do trabalho
mais coerente com a lógica dos modos de produção de
cooperação uma vez que, para o Modo Psicossocial,
não se distinguem o processo produtivo dos efeitos da
produção e dos beneficiários de tais efeitos.
No campo psíquico há uma indissociabilidade
entre produção de saúde e produção de subjetividade.
levar em conta a radicalidade dessa proposição conduz
a uma possível superação do modo de produção comum
e a um ‘drible’ das diferentes formas do atravessamento
capitalístico dessa produção. Para a EaPs, a superação
da divisão parcelada do processo de produção (divisão
em especialidades), ainda deverá vir acompanhada da
capacidade de vislumbrar formas para se alcançar a
transdisciplinaridade. a superação do princípio doença-
cura, pois, exige também a superação do modelo sujeito-
objeto que define as especialidades e ações no paradigma
hegemônico.
a EaPs implica também na superação da raciona-
lidade implícita no modelo médico hegemônico que
determina um modo de organização das práticas de
saúde, caracterizadas por atividades curativas, indivi-
duais, assistencialistas e organizadas em especialidades.
o Paradigma da Produção Social da Saúde pressupõe o
planejamento das ações de atenção de modo integral,
baseadas no trabalho em equipe e nas práticas coletivas
de saúde, superando a atual racionalidade que está
pautada numa prática privada e regida por uma lógica
de mercado. Nessa lógica existe apenas a sociedade
colocada de modo figurado, ou a parceria, movida a
interesses comerciais.
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 27-37, jan./dez. 2008
33YASUI, S.; COSTA-ROSA, A. • A Estratégia Atenção Psicossocial: desafio na prática dos novos dispositivos de Saúde Mental
Uma proposta de trabalho em equipe para a EaPs
precisa reconhecer os processos cotidianos de trabalho
como áreas de tensão e interesses sociais conflitantes
encarnados por distintos atores, para justamente pôr
a salvo desse conflito maior os interesses imediatos
dos sujeitos do sofrimento. Com isso, seria permi-
tido que eles tomassem uma posição nos conflitos e
contradições que os atravessam; conflitos esses que se
expressam no sofrimento que, por sua vez, manifesta-se
em sua história. além disso, remover as conquistas da
reforma Sanitária sobre a participação dos usuários e
da população no planejamento, gestão e avaliação dos
dispositivos institucionais não deixa de ser um modo
de abrir a oportunidade para eles de participação na
metabolização da contradição maior. Sair da posição de
objeto exigirá um exercício rotineiro nos vários aspectos
da práxis concernente ao novo paradigma.
A PERMANÊNCIA MICROPOLíTICA
DO HEGEMôNICO
a prática encontrada em diferentes caPs, principal
dispositivo para a implantação da atual política de Saúde
Mental, revelam que a lógica ambulatorial ainda está am-
plamente presente no sistema e de forma aparentemente
intacta. Prática essa bem distante daquela idealizada pelo
modo da atenção Psicossocial, cuja ética implica na
ousadia de buscar o novo. Isso ocorre ainda com mais
freqüência nos lugares em que a implantação do caPs se
deu a partir do ambulatório de Saúde Mental.
os exemplos a seguir demonstram situações de-
safiadoras que as equipes encontram no cotidiano, nas
quais se apresenta a tensão permanente que há entre um
paradigma hegemônico de cuidados que já se conhece,
e que o discurso oficial pretende superar, e outro para-
digma que se pretende construir a partir da prática, do
qual também já se conhecem várias coordenadas e que
é enunciado como estratégia dominante no discurso
oficial do Ministério da Saúde.
Um sujeito em crise que se recusa a ir à institui-
ção sob pretexto de que lá é lugar de louco; a família
que exige internação de um de seus membros em um
hospital psiquiátrico, reproduzindo a inércia do hábito
já instituído; o morador de rua que incomoda os vizi-
nhos por se encontrar em sofrimento psíquico grave;
o usuário que estabelece uma relação de dependência
com a instituição. Como resposta da equipe a essas
situações, ouvimos com muita freqüência as seguintes
falas: “o usuário não quer vir? Não é mais de nossa
responsabilidade, então.”; “a família pede internação?
Pois que interne.”; “Morador de rua? Isso é problema
da assistência Social do município.”; “o usuário está
em crise no serviço? Chama o psiquiatra para medi-
car!”; Se o usuário está tendo uma crise no meio da
rua, “Chama-se a polícia”
além das características que já foram apresentadas
sobre esse modelo hegemônico, é oportuno apresentar
outras características desanimadoramente freqüêntes nas
ações realizadas em muitos dos caPs: atos norteados por
valores e julgamentos morais como “Não faça mais isso,
fulano. É muito feio!”; “Quem não se comportar direito
não ganha o ovinho de Páscoa!”; “Quem vai acompa-
nhar os usuários? Eles não podem sair sozinhos!”; “Que
gracinha, nem parece que são doentes mentais!”
Frases como essas revelam que o sujeito do sofri-
mento é infantilizado e a atuação da equipe se pauta
na ‘correção’ e ‘educação’ de seus comportamentos.
Certa vez, um usuário, irritado, afirmou, a respeito do
caPs que freqüenta: “Isto aqui parece uma creche para
doido!”
Sobre esse tema Foucault afirma:
[...] a loucura encontra-se inserida no sistema de valores e das repressões morais. Ela está encerrada
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 27-37, jan./dez. 2008
34 YASUI, S.; COSTA-ROSA, A. • A Estratégia Atenção Psicossocial: desafio na prática dos novos dispositivos de Saúde Mental
num sistema punitivo onde o louco, minorizado, encontra-se incontestavelmente aparentado com a criança, e onde a loucura, culpabilizada, acha-se originariamente ligada ao erro. (1975, p. 84).
a lógica presente nesse modo de atenção à Saúde
Mental submete os sujeitos do sofrimento e os próprios
trabalhadores a um lugar de sujeição, produção e repro-
dução de subjetividades enquadradas, conformadas e
bem-comportadas: produção de afetos tristes, renúncia
à potencialidade criativa, ao desejo, à autonomia. Não
há caPs aqui, apenas mais uma instituição de Saúde
Mental organizada a partir da mesma lógica hege-
mônica do Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico
Medicalizador.
Essa persistência micropolítica da lógica paradigmá-
tica hegemônica também só poderá ser adequadamente
enfrentada com a ampliação dos espaços de formação
(formação continuada) e de exercício analisado (análise
e supervisão institucional), que já fazem parte das inicia-
tivas de formação dos trabalhadores de Saúde Mental
(tSM), componentes da atual política de atenção
Psicossocial do Ministério da Saúde.
INVENTAR A TRANSDISCIPLINARIEDADE
COMO MEIO NECESSÁRIO DA EAPS
a equipe é o alicerce, o principal instrumento de
intervenção, invenção e produção dos cuidados em
atenção Psicossocial. Produção que se dá no agencia-
mento das pulsações da demanda social e dos afetos para
se produzirem vínculos na negociação de interesses di-
vergentes e se construir a ética da atenção Psicossocial na
pactuação familiar e social para um projeto de cuidado;
agenciamento esse, enfim, das relações que emergem no
encontro que se dá entre o sujeito do sofrimento com
sua demanda, e do trabalhador com sua subjetividade
e caixa de ferramentas (mERhy, 2002).
ao romper com a visão biológica reducionista e
propor a desmontagem dos conceitos basilares da psi-
quiatria hospitalocêntrica e medicalizadora, a reforma
Psiquiátrica, alinha-se na perspectiva de uma crítica aos
fundamentos da racionalidade científica moderna (relação
sujeito-objeto, reducionismo, determinismo) e propõe
inventar o seu campo teórico-conceitual, estabelecendo
um intenso diálogo entre os diferentes campos do saber
e conhecimentos acerca do humano. Produz, também,
um turvamento entre os limites e fronteiras, constituindo
possibilidades diversas para pensar e fazer.
Essa é uma perspectiva semelhante à que Passos e
Barros (2000) denominam transdisciplinaridade que:
subverte o eixo de sustentação dos campos episte-mológicos, graças ao efeito de desestabilização tanto da dicotomia sujeito/objeto quanto da unidade das disciplinas e dos especialismos. (p. 76).
Essa proposta é ousada, de alto risco e, ao ser intro-
duzida na práxis cotidiana, visa à produção do disforme,
à emergência do sem contornos, que mais desorganiza do
que orienta, que institui o próprio processo de instituir.
dessa forma, o pensamento corre riscos, assume o perigo
de se perder na indiferença e no relativismo, estando
sujeito à inércia do ‘tudo ou nada vale o mesmo’. É um
grande desafio constituir esse saber fazer nos interstícios
dos campos disciplinares. ou, como propõem Passos e
Barros (2000), com base em um conceito de deleuze,
nos “intercessores”, naquilo que se dá no “entre”, no
momento em que ocorre.
Não são apenas diferentes disciplinas que analisam
um mesmo objeto; a própria consistência do objeto é
transformada. É preciso se abrir às fronteiras e fazer tran-
sitarem conceitos e categorias, transmudarem os olhares
dos sujeitos em ação, transformarem-se os modos de
pensar, transformarmo-nos como sujeitos, já que se trata
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 27-37, jan./dez. 2008
35YASUI, S.; COSTA-ROSA, A. • A Estratégia Atenção Psicossocial: desafio na prática dos novos dispositivos de Saúde Mental
de um processo de construção de novas subjetividades.
Como diz Edgar Morin (2000), trata-se do desafio do
pensar complexo que remete à dialética e à revisão das
teorias de subjetividade.
No meio de aparentes desencontros é que reside a
estratégia para se produzirem os encontros dos sujeitos do
sofrimento com a equipe. Como concretizar, no dia-a-dia
de trabalho e de produção da atenção, esta transdisciplina-
ridade? aqui, podemos evocar a experiência vivenciada no
caPs luiz Cerqueira, no qual foi possível realizar um traba-
lho que muito se aproximou da proposta transdisciplinar,
e que poderia ser sintetizado da seguinte forma: o trabalho
em equipe é aquele em que os profissionais adotam uma
posição de humildade frente ao sofrimento psíquico, este
nosso objeto complexo, e o existir por ele contextualizado.
apenas uma solidária e despojada atitude de diálogo (in-
tenso e complexo), pode começar a sondar e contemplar
a amplitude de tal complexidade (yasui, 1989).
Isso se reflete na organização dos processos de traba-
lho, construídos como uma criação coletiva, de relações
horizontais, que aspira à transversalidade proposta por
Felix guattari (1981), e com uma efetiva participação
dos sujeitos do sofrimento e seus familiares. a concre-
tização desse projeto implica em: considerar e ativar os
dispositivos existentes no território; na responsabilização
pela demanda, especialmente nos momentos de crise;
na criação de múltiplas e diversas estratégias de cuidado
aumentando a responsabilidade de cada profissional, não
apenas nas decisões e nas competências para o projeto de
cuidados, mas também na gestão dos dispositivos insti-
tucionais. Isso implica, de outra parte, uma flexibilidade
na execução de tarefas distintas e intercambiáveis. É
necessário reconhecer, e não esquecer, que somos atores
de uma prática social, que têm a potencialidade, por
meio dos encontros que ensejamos no cotidiano de nossa
práxis, de produzir novos processos de subjetivação, de
produzir modos mais autônomos de viver e de fazer a
diferença. Essa diferença está encarnada em diferentes
formas de saída da subjetividade serializada que, mor-
mente, vem associada ao sofrimento e aos sintomas, para
outras subjetividades e subjetivações capazes de escapar
ao Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medica-
lizador e ao Modo Capitalista de Produção.
Conectar-se aos horizontes teóricos, técnicos e
éticos da atenção Psicossocial significa estar sempre
atento aos riscos de se recair na alienação do que já está
instituído. É preciso estarmos sempre atentos para que
nas finas teias do cotidiano não sejamos capturados pela
lógica do conformismo e da repetição, pois este é um
processo que se constrói em um movimento contínuo
de desfazer e fazer, desconstruir e construir. desconstruir
conceitos e categorias, redefinir as modalidades dos
vínculos intersubjetivos, inventar novas possibilidades
semânticas e teóricas, desfazer os limites disciplinares
para tornar novas as produções. trata-se aqui de um
novo agenciamento de pulsações da demanda social e
dos afetos, para se produzirem vínculos, que não deixam
de ser transferenciais; negociações entre interesses diver-
gentes presentes nas dimensões micro e macropolítica do
território; pactuações para um projeto de atenção e cui-
dado, que se fazem a partir das relações e nas relações que
emergem no encontro entre as demandas dos sujeitos e
as ofertas de possibilidades transferenciais, ou seja, entre
o sofrimento dos sujeitos e a capacidade de continência
da equipe. Não há dúvidas de que essa capacidade de
agenciamento por parte das equipes também é moldada
pela plasticidade de sua subjetividade e pela desenvoltura
complexa de sua ‘caixa de ferramentas’.
A ESTRATÉGIA ATENçÃO PSICOSSOCIAL
a seguir são apresentados alguns pontos para um
início de discussão acerca de uma definição possível
da EaPs.
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 27-37, jan./dez. 2008
36 YASUI, S.; COSTA-ROSA, A. • A Estratégia Atenção Psicossocial: desafio na prática dos novos dispositivos de Saúde Mental
Yasui (2006) apresenta a idéia de compreender o
Centro de atenção Psicossocial como uma estratégia de
transformação da assistência, concretizada pela organiza-
ção de uma ampla rede de cuidados em Saúde Mental, e
que não se limita ou se esgota em sua implantação como
um serviço de saúde.
Neste texto, nomeamos claramente e EaPs,
definindo-a a partir dos quatro parâmetros do Modo
Psicossocial e das transformações nas dimensões epis-
temológicas, técnico-assistenciais, jurídico-políticas e
culturais (costa-Rosa; luzio; yasui, 2003; amaRantE;
2007). tal definição deve incluir, ainda, os princípios
e diretrizes da reforma Sanitária, particularmente a
participação popular no planejamento, gestão e con-
trole das instituições de Saúde, bem como a concepção
de integralidade das problemáticas de saúde e da ação
territorializada sobre elas. Essa realização prática da EaPs
se opera pela agregação da tática do Matriciamento, já
exercitada em alguns municípios e posta em ação pelo
o Ministério da Saúde, conforme a Portaria 154/2008
(bRasil, 2008), que cria os Núcleos de apoio à Saúde
da Família (nasf).
a EaPs é uma lógica que perpassa e transcende as
instituições enquanto estabelecimentos, tomando-as
dispositivos referenciados na ação sobre a demanda
social do território, distanciando-se, dessa forma, de
um sistema organizado e hierarquizado por níveis de
complexidade da atenção.
a EaPs, uma vez operando e concretizando o princi-
pio da integralidade na produção da atenção e cuidado,
através do matriciamento, da atenção básica e com a
Estratégia de Saúde da Família, poderá dar outro sentido
aos estabelecimentos caPs e seu atual segmento de ações
ambulatoriais. Poderá ajudar, também, na compreensão
de que a persistência do ambulatório, que convive com
o caPs em um mesmo território, significa a reincidência
no preventivismo, longe, portanto, da lógica da atenção
Psicossocial. Permitirá, ainda, re-configurar os caPs como
instâncias aptas a responder à especificidade das demandas
que lhes são atribuídas: demandas específicas de sofrimen-
to psíquico com exigências de intensidade variada, que
vão da exigência máxima que define o caPs atual, até as
intensidades variadas que definem atualmente, de modo
geral, o ambulatório. Sobretudo, a EaPs permitirá consi-
derar a atenção a um conjunto importante e numeroso de
problemáticas dentro da especificidade da atenção à saúde,
impedindo a medicalização e psicologização, geralmente
resultantes do modelo atual.
É necessário ressaltar, também, que na EaPs não
interessa mais se as problemáticas são de alta ou baixa
complexidade. Nas ações de matriciamento, ou nas ações
específicas dos serviços caPs, tudo é considerado de alta
complexidade, o que pode diferir é a especificidade do
saber e da ação exigidos. também não se trata apenas de
organizar os novos dispositivos institucionais em algum
sistema de referência e contra-referência: o sujeito será
sempre compreendido como aquele que está inserido no
território e, mesmo quando for alvo de ações específicas
de caPs ou ambulatoriais, não deixará de estar adscrito
à ESF nem de participar das ações simultaneamente
realizadas por ela; por isso a ESF deverá ser sempre a
referência maior da EaPs.
R E F E R Ê N C I A S
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recebido: abr./2008
aprovado: jul./2008
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artIgo orIgINal / ORIgINAL ARTIcLE38
algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde
Mental e a formação do profissional de Saúde Mental
no contexto da promoção da saúdeReflections on the conceptual bases of Mental Health and the formation
of the Mental Health professional in the context of health promotion
RESUMO Este texto discute algumas bases conceituais da Saúde Mental e aspectos
relativos à inserção do profissional de Saúde Mental no Sistema Único de Saúde
(SUS), na perspectiva da promoção da saúde. Algumas enunciações do conceito de
Saúde Mental são examinadas à luz dos confrontos paradigmáticos proporcionados
pela perspectiva multiprofissional. Os temas abordam as necessidades fundamentais
da formação em Saúde Mental, fortemente influenciada por fatores culturais,
econômicos e sociais. Aponta-se uma necessidade de maior discussão, no campo da
Saúde Mental, sobre suas bases conceituais e outros temas inter-relacionados.
PALAVRAS-CHAVE: Saúde Mental; Saúde pública; Sistema Único de
Saúde.
ABSTRACT This paper brings a discussion about some conceptual bases of Mental
Health and aspects related to the insertion of the Mental Health professional in
the Single Health System (the so called SUS in Brazil), in the perspective of health
promotion. The conceptualization of Mental Health is examined in light of the
paradigmatic confrontations propitiated in the multiprofessional context. The
themes herein stated respond to a fundamental need in the context of professional
formation in Mental Health which is strongly influenced by cultural, economic
and social factors. The need of more discussion on the Mental Health concepts
and other related themes are herein pointed out.
KEYWORDS: Mental Health; Public health; Single Health System.
Walter Ferre i ra de ol ive i ra 1
1 doutor; professor do departamento
de Saúde Pública do Centro de Ciências
da Saúde da Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC).
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 38-48, jan./dez. 2008
39olIVEIra, W.F. • algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde
I N T R O D U ç Ã O
DESAFIOS CONCEITUAIS E
PARADIGMÁTICOS EM SAúDE MENTAL
o campo profissional da Saúde Mental é vasto,
multidimensional e tem grande importância no con-
texto da saúde coletiva. Encontra-se em um momento
histórico de transição paradigmática, que tem como uma
de suas características a força que ganham propostas de
reestruturação epistemológica, técnico-assistencial e
político-jurídica, cujo maior impacto reside no desafio
da psiquiatria hegemônica como dispositivo de máximo
poder na área (amaRantE, 1995). o enfraquecimento da
hegemonia psiquiátrica favorece abordagens, em Saúde
Mental, a partir de bases conceituais mais diversificadas
e, particularmente, uma visão mais fenomênica, mais
social e interativa do universo psíquico, que desprivilegia
o domínio quase exclusivo do referencial nosográfico da
psiquiatria descritiva tradicional, inclusive no campo
clínico (moREiRa; sloan, 2002).
a reforma Sanitária brasileira apóia-se em uma
definição ampla de saúde, que procura não usar a doença
como referência primordial. No caso específico da Saúde
Mental, a busca é por uma definição de sanidade que
não tome como referência fundamental a patologia sob
a óptica médico-psiquiátrica. Essa idéia não só provoca
novos entendimentos do processo saúde-doença, na
perspectiva psicossocial, como estrutura o modelo de
atenção para a rede de Saúde Mental como um todo.
o compromisso da responsabilidade sanitária, que
se vem discutindo intensamente no âmbito do Sistema
Único de Saúde (SUS), inclui um reexame das posturas
éticas profissionais (camPos, 1997). Novas posturas e
novas abordagens tornam-se temas importantes no con-
texto da reforma Psiquiátrica. Propõe-se um novo olhar
sobre e um novo lugar social para a loucura, tomada
como referência emblemática; é preciso identificar a re-
forma Psiquiátrica a partir desse novo olhar e desse novo
lugar social (amaRantE, 1995). Mas há outros temas a
serem explorados na perspectiva do cuidado, da promo-
ção da saúde e das ações preventivas. alguns passos têm
sido dados nesse sentido, por exemplo, ampliando-se a
compreensão de certos estados psíquicos diagnosticáveis
como possíveis insanidades, para modos diferenciados
de vivenciar o cotidiano e que traz conseqüências para
a qualidade da vida de muitos sujeitos estigmatizados
como ‘loucos’ ou ‘anormais’.
apesar dos avanços, na prática, os profissionais,
nem sempre conseguem deixar de ter como foco prin-
cipal o controle dos sintomas, dos corpos e das vontades
de pessoas diagnosticadas como portadoras de transtor-
nos mentais (Rosa, 2006; scalzavaRa, 2006; olivEiRa;
doRnElEs, 2005). Coloca-se, então, uma questão
crucial: como desenvolver ações de Saúde Mental na
perspectiva da responsabilidade sanitária exercida efe-
tivamente em serviços territorializados e promotores da
saúde? a questão ressalta a necessidade de se continuar
com questionamentos, reflexões, problematizações sobre
e a busca pela operacionalização dos novos conceitos e
paradigmas na prática cotidiana do cuidado sanitário,
bem como na perspectiva das relações interpessoais,
interdisciplinares e multiprofissionais, de forma a se
construírem e operarem interações promotoras de saú-
de. além disso, ressalta-se a necessidade de as práticas
preventivas e reabilitadoras serem repensadas de forma
que sejam contextualizadas no projeto do SUS.
a formação dos profissionais de Saúde Mental,
entretanto, ainda se constitui, explícita e, às vezes, sub-
repticiamente como uma antítese das propostas das
reformas Sanitária e Psiquiátrica. o profissional está,
via de regra, à mercê de currículos que marginalizam
a Saúde Mental e o submetem à psicopatologia tradi-
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40 olIVEIra, W.F. • algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde
cional, privilegiam procedimentos clínicos quase que
exclusivamente aplicáveis a consultórios e ambulatórios
tradicionais e promovem a medicalização da vida coti-
diana, o que vai além da corriqueira medicamentação,
passando para toda uma postura cultural que transforma
condições sociais e culturais em problemas de ordem mé-
dica. além disso, há o currículo oculto, que desfavorece
a autonomia do cidadão usuário dos serviços de Saúde
Mental, fomentando a tutela e as assimetrias de poder
que permeiam as relações profissionais e institucionais
(olivEiRa, 2003). a superação dessa situação é um dos
maiores desafios no contexto da reforma Psiquiátrica.
Nesse sentido, ainda há muito a se debater (sobre a
evolução das bases conceituais e das representações
sociais da Saúde Mental, por exemplo) e a se repensar
como, por exemplo, as idéias que foram se cristalizando
no campo da psiquiatria e que estruturam grande parte
do pensamento dos profissionais de Saúde Mental, no
momento de sua formação acadêmica.
Nossa reflexão sobre a evolução do universo con-
ceitual em Saúde Mental é extremamente limitada, e
toma por base metodológica uma análise bibliográfica
focada em obras de autores que se tornaram marcos
proeminentes tanto no que se refere à historicidade da
formação acadêmica como no que diz respeito à for-
mação profissional a partir do que propõe a reforma
Psiquiátrica. torna-se possível, dessa forma, esboçar
algumas considerações frente às atuais políticas de Saúde
Mental propostas no contexto do SUS.
VERTENTES FUNDAMENTAIS NA
FORMAçÃO EM SAúDE MENTAL
o profissional de Saúde Mental contribui, com
sua emergente presença nas unidades de saúde geral,
para oxigenar o sistema de saúde como um todo atra-
vés de seus questionamentos. Mas, esse profissional
também traz consigo contradições inerentes à sua
formação, com sua raiz na literatura psiquiátrica tra-
dicional. Esta, através dos tempos, cristalizou idéias
que são assimiladas, repetidas e perpetuadas de forma
ostensiva ou sub-reptícia nos ambientes curriculares e
extracurriculares. o contraponto é dado pela incor-
poração gradativa, ainda que marginal, de um corpo
literário que vem surgindo nos últimos 30 anos a partir
do movimento da reforma Psiquiátrica.
No período de graduação dos cursos da área da
saúde, embora os níveis de discussão variem de acordo
com o curso, as idéias são em geral apresentadas sem
que se enfatizem os embates epistemológicos travados,
desde o século 18, em torno dos conceitos de saúde,
Saúde Mental e doença mental. Na pós-graduação,
esse quadro melhora para os profissionais que aten-
dem às áreas confluentes da saúde e das Ciências
Humanas e Sociais.
afinal, quais são as idéias, os conceitos e a filosofia
da prática que são transmitidas aos estudantes da área
como verdades inquestionáveis e, além de tudo, em um
ambiente de sala de aula, intimidador, pouco convida-
tivo à crítica e perenemente condicionado pelas notas
obtidas nas avaliações?
a história da psiquiatria constitui uma rota concei-
tual que tem como marco o trabalho de Philippe Pinel,
considerado por muitos o pai da psiquiatria e defensor
dos direitos humanos, conforme os cânones da revolu-
ção Francesa, da qual foi deputado. Pinel era adepto do
chamado tratamento moral, baseado na idéia de que a
disciplina e a moralização do comportamento, exercidas
em ambiente hospitalar, eram os principais elementos
potenciais de cura das doenças mentais (alExandER; sE-
lEsnicK, 1980). Isto se coadunava perfeitamente com al-
guns preceitos estabelecidos pela nova ordem capitalista
imposta pela burguesia, agora dominante. a organização
da existência humana nos moldes capitalistas torna de-
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41olIVEIra, W.F. • algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde
sejável que os corpos não abriguem condições limitantes
ao trabalho, condições que podem ser produzidas por
problemas inatos ou por vidas desregradas. É preciso
cuidar dos corpos, atitudes e comportamentos, além de
controlá-los e normalizá-los. a noção de normalidade
torna-se importante e a prevenção e reabilitação passa
pelo controle, inclusive moral, das pessoas em todas as
suas instâncias (foucault, 1986; 1999). Surge, desta
forma, uma linha de pensamento e ação em saúde, cujo
objetivo é a normalização dos comportamentos e cuja
principal medida é a capacidade de produção.
a medicina se compromete, concomitantemente,
com o pensar científico da época, que busca as causas
definitivas das doenças em substratos patológicos orgâ-
nicos subjacentes. No final do século 19 surgiu, como
resultado, a nosologia de Emil Kraepelin, psiquiatra
alemão que se dedicou à descrição minuciosa de todos
os comportamentos apresentados pelos ‘doentes mentais’
e à definição de síndromes identificadas com estes com-
portamentos, permitindo uma sistematização substancial
do trabalho semiológico em psiquiatria e conferindo um
status de ciência clínica a esta especialidade, tornando-a
mais respeitável no âmbito da medicina geral.
as obras de Pinel e Kraepelin, assim como as de
outros psiquiatras como Esquirol e Janet, permitem
que diagnósticos psiquiátricos cada vez mais específicos,
que levem em consideração os comportamentos (sinais)
e sentimentos (sintomas) expressados pelos pacientes,
sejam estabelecidos. Essa psicopatologia descritiva per-
mite que os médicos psiquiatras estabeleçam ‘verdades
científicas’ e mantenham sob controle a determinação
do cuidado à doença mental. a verdade sobre a doença
mental, estabelecida pelo esquema nosográfico-compor-
tamental, afirma-se como instrumento de poder médico;
uma vez ensinada sob esta óptica, a psicopatologia passa
a ser aceita como verdade natural. E ela é apresentada
dessa forma até hoje, tendo como ‘bíblia’ o dSM-IV-
tr® da american Psychiatric association (2003).
Um dos legados da nosologia de Kraepelin é a idéia
de que não há cura para transtornos mentais graves,
como as síndromes psicóticas. Existe também a palavra
‘alienado’, oriunda da dicotomia colocada e usada para se
explicar e descrever a doença mental entre razão e desati-
no. o doente mental, por não dispor da razão, não pode
participar adequadamente da comunidade social; sua
própria natureza o aliena da convivência sadia e normal
(almEida filho, 1999). as idéias de que os alienados
não são capazes de contribuir produtivamente com a
sociedade e de que apresentam um razoável potencial
de periculosidade são, então, estabelecidas. o esquema
moral e nosográfico impregnou as páginas dos textos di-
dáticos utilizados largamente na formação de psiquiatras
e, por contingência, de outras disciplinas ligadas à Saúde
Mental. Passou-se a aceitar como verdades absolutas
essa idéia de que as pessoas com problemas mentais são
desatinadas, improdutivas, perigosas, incuráveis e que
seu tratamento deve ser feito em regime de estrita tutela,
baseado no controle cuidadoso de seus comportamentos,
normalizando-os e moralizando-os.
Na contra-hegemonia surge o trabalho de Freud,
mas algumas questões importantes pendiam sobre sua
obra. Primeiro, a psicanálise não se enquadra no restrito
esquema experimental que a ciência positivista domi-
nante aceitava como legítimo; segundo, Freud trabalhou
com populações restritas, principalmente com a classe
social mais privilegiada da Europa do fim do século 19
(embora os estudos das forças hegemônicas também
tenham sido, em sua quase totalidade, restritos a sujeitos
internados em manicômios). apesar de sua psicologia
dinâmica ser considerada contra-hegemônica, ainda é
de natureza essencialmente determinista e baseada em
estudos de casos patológicos.
Em 1913, Karl Jaspers lançou Psicopatologia geral,
propondo uma abordagem fenomenológica e existencial do
psiquismo. localizamos três vertentes importantes (psico-
patologia descritiva, psicologia dinâmica e fenomenologia
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42 olIVEIra, W.F. • algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde
existencial) para o futuro desenvolvimento do pensamento
em Saúde Mental; vertentes essas que até hoje marcam
profundamente a formação dos profissionais da área.
DESENVOLVIMENTO CONCEITUAL EM
SAúDE MENTAL
No início do século 20, o movimento higienista
ganha grande força na psiquiatria, afirmando o inte-
resse pela anormalidade e a intervenção preventiva da
psiquiatria na vida pessoal, comunitária e institucional.
a essa altura o repertório psiquiátrico já incluía a noção
de impossibilidade de os esquizofrênicos estabelecerem
relações adequadas, o grande sintoma da esquizofrenia
na visão da nosologia de Kraepelin. Essa característica,
aliada àa noções de periculosidade e improdutividade,
passou a estereotipar por contraposição as maneiras de
ser da normalidade na visão da psiquiatria; visão essa
que consolidava a afirmação peremptória do sistema
capitalista. algumas repercussões desse jogo de forças
ideológicas no território da epistemologia da Saúde
Mental são flagrantes. Em 1947, Karl Menninger (apud
bRoWn, 1958, p. 2324), enuncia a seguinte definição
de Saúde Mental:
Adaptação dos seres humanos ao mundo e a outros com o máximo de efetividade e felicidade. Não somente eficiência, ou apenas contentamento - ou a graça de obedecer alegremente às regras do jogo. É tudo isto junto, os comportamentos que implicam consideração social, e uma disposição alegre.
também emblemáticos, Ewalt e Fansworth (apud
bRoWn, 1975) definem o indivíduo saudável como
sendo aquele:
que tem confiança em si mesmo e nos outros, um senso de competência e um sentimento de que a situação hu-
mana tem um significado maior e um valor profundo, tem mais resistência à descompensação emocional do que aqueles que têm atitudes e sentimentos que levam à insegurança.(p. 2324).
Por outro lado, ginsburg (1955) privilegia a capa-
cidade de se relacionar com o meio, que se manifesta
em três áreas principais: amor, trabalho e prazer. Ele
enfatiza como sinais de uma mente sã
a habilidade de reter um emprego, ter uma família, manter-se sem problemas com a lei e aproveitar as oportunidades de obtenção de prazer. (p. 2324).
a noção de sanidade estava centrada, portanto, na
adaptação social e cultural mediada pela segurança pessoal
e confiança na vida e no próximo, na participação alegre
de um jogo cujas regras eram estabelecidas no contexto
de um complexo social e ideológico hegemônico e na
habilidade em se adaptar à sociedade como ela é, aprovei-
tando as oportunidades que ela oferece para o encontro
da felicidade. tornam-se automaticamente suspeitos não
só aqueles que se encontram em forma radical de alie-
nação (os chamados loucos), mas também aqueles que
questionam, angustiam-se ou não aceitam as propostas
de participação social oferecidas pelo sistema.
Essas, e outras definições de mesmo tom, tornam-se
importantes referências e compõem o universo conceitual
dos livros-texto de psiquiatria dos países alinhados com o
sistema de produção e o modus vivendi capitalista, como o
Brasil. tais definições acabaram por nortear, nas décadas
seguintes, os principais textos psiquiátricos, como os de
Mayer-gross (Inglaterra), Kaplan (EUa), Honório delga-
do (Espanha) e Henry Ey (França) entre outros; passaram,
também, a apresentar ressonância em textos das áreas de psi-
cologia, enfermagem psiquiátrica e terapia ocupacional que,
mesmo trazendo eventuais críticas ao modelo biomédico,
aceitavam como base as verdades científicas já estabelecidas
nos textos psiquiátricos a respeito da loucura.
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 38-48, jan./dez. 2008
43olIVEIra, W.F. • algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde
Essa linha de pensamento, assim como as linhas
contra-hegemônicas, continuava abordando a Saúde
Mental a partir da doença. a organização Mundial da
Saúde (oMS) problematizou o assunto ao lançar no
preâmbulo de sua constituição, em 1946, a idéia de que
saúde não podia ser considerada apenas como a ausência
de doenças, mas um estado de bem-estar físico, mental
e social. Essa forma de compreender a saúde é simultâ-
nea ao lançamento de O normal e o patológico (1943),
de Canguilhem, que questiona a epistemologia vigente
até então na saúde e com grandes repercussões na Saúde
Mental. Esse filósofo discutiu de forma aprofundada a
questão de a saúde poder ou não ser considerada como
um conceito dentro dos padrões da ciência. o autor
conclui que sim, mas faz uma ressalva: há uma forma
de encarar a saúde que é subjetiva, pessoal e outra mais
objetiva, científica (canguilhEm, 1990). Essa idéia se
contrapunha àquelas de alguns autores da escola feno-
menológica, sobretudo os mais radicais, para os quais
a saúde é uma manifestação exclusivamente de caráter
pessoal, absolutamente privado, só podendo ser avaliada
pela pessoa que a vivencia (almEida filho, 1999).
tal problematização epistemológica, tanto quanto a
definição da oMS de 1946, trouxe conseqüências para
decisões sobre saúde coletiva. a partir desse entendimento
da saúde, como sendo um estado de bem-estar, ou uma
manifestação subjetiva, um atributo que se pode obje-
tivar e até mensurar, fundam-se diferentes maneiras e
possibilidades de programar, ou não, ações a promovam
e reabilitem. dependendo do conceito de Saúde Mental
sobre o qual se fundamenta, é possível pensar em que
consiste a sua manutenção, promoção e reabilitação.
Embora o discurso da saúde coletiva inclua o ob-
jetivo da promoção, as discussões acima colocadas não
são, a nosso ver, suficientemente contempladas nas dis-
cussões clínicas, curriculares ou nos processos de gestão
e planejamento. Essa evasão intensifica a confusão que
se instala a partir da contraposição de uma prática, for-
temente vinculada a uma epistemologia essencialmente
positivista, ao discurso da promoção, privilegiando-se
a quantificação de procedimentos, a protocolização
de ações e a avaliação por alcance de metas gerenciais
estabelecidas por planejamentos normativos.
a promoção da saúde questiona a atuação dos serviços
com base na objetividade e na quantificação. Como estabe-
lecer medidas efetivas para a Saúde Mental, ou objetivar a
análise da condição psíquica, sem voltar a privilegiar uma
nosologia hoje posta sob suspeita do ponto de vista da
eficácia terapêutica? (moREiRa; sloan, 2002).
Não existem definições claras que nos ajudem a
elucidar e quantificar a Saúde Mental, para fins de diag-
nóstico e tratamento e as que existem têm sua credibili-
dade em cheque, como é o caso dos testes psicológicos
e de muitas escalas diagnósticas baseadas em contagem
de itens sintomáticos. a questão pode ter significados
diferentes para profissionais que subscrevem uma abor-
dagem fenomenológica, existencial, qualitativa ou dinâ-
mica, e para gestores e avaliadores que determinam, com
base no desempenho objetivo e quantitativo, a alocação
de recursos nos âmbitos público e privado.
Na medida em que se acirram, e não se resolvem,
as tensões entre a hegemonia do modelo tradicional e a
postura de reforma Psiquiátrica, os profissionais de Saúde
Mental sofrem a ação de fatores estressantes que obstaculi-
zam seu desempenho profissional, obrigados a fazer, muitas
vezes, concessões que os desmotivam e os angustiam.
CONTRIBUIçÕES DO MODELO
CULTURALISTA, DA ANTIPSIQUIATRIA E DA
PSICOLOGIA SOCIAL
o modelo biomédico segue a tradição hegemôni-
ca e, portanto, dicotomiza saúde e doença. Na lógica
prevalente, o avanço de um lado significa a menor
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44 olIVEIra, W.F. • algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde
ingerência do outro, isto é, quanto mais uma pessoa se
encontra doente menos possibilidades há de que seja
considerada saudável e vice-versa. Essa premissa, aceita
com reservas, na clínica médica, torna-se complicada no
terreno mental que contempla a idéia de que um indi-
víduo pode, por exemplo, apresentar sinais de doença
mental e, ao mesmo tempo, funcionar de forma saudável
em outros planos existenciais ou temporais. o modelo
tradicional, ancorado na descrição e quantificação de
sintomas, se traduz em uma prática institucional que
desconsidera as potencialidades humanas e estigmatiza
por meio de diagnósticos que definem uma condição
como irreversível, apenas controlável por medicamen-
tos. Por outro lado, essa mesma maneira institucional
reforça a promiscuidade terminológica saúde/doença
como Zusman (1975) ilustra:
Instituições de ‘saúde mental’ normalmente atendem a “doentes mentais.” Profissionais de saúde mental são especialistas em tratamento de doenças mentais e têm relativamente pouco treino em saúde mental. Muitos questionários aplicados à população com a intenção de medir a saúde mental na verdade focalizam sintomas de doenças mentais. (p. 2324).
Para ronald laing (1959; 1967) e thomas Szasz
(1974), o diagnóstico é uma construção social e política
de base econômica e cultural; essa discussão é retoma-
da no campo da antropologia Médica sobretudo por
Kleinman (1988) e Young (1982). a contribuição epis-
temológica desses autores é suficientemente vasta para
merecer uma revisão à parte, trabalho a que se dedicou
almeida Filho (1999).
limitamo-nos aqui a enfatizar o reconhecimento,
por Kleinman, das diferenças biológicas e culturais no
estado de doença (sickness). o autor propõe duas cate-
gorias na análise da doença, usando o termo patologia
(disease) para categorizar as alterações biológicas ou
psicológicas, de acordo com a classificação biomédica,
e o termo enfermidade (illness) para as características
culturais da doença. Patologia refere-se à ocorrência ob-
jetiva de funcionamento anômalo dos sistemas orgânicos
ou fisiológicos. Na categoria enfermidade, incorpora-se
a experiência e a percepção individual relativas a uma
variedade de problemas decorrentes da patologia, bem
como a reação pessoal e social à enfermidade, ou seja, o
significado atribuído pessoal e culturalmente à doença.
a antropologia Médica potencializou um novo olhar
sobre a apresentação e o curso das doenças mentais. Sob
sua óptica, as apresentações, percepções, significados e
evolução das doenças não constituem uma realidade ob-
jetiva e inquestionável, como preconiza a psicopatologia
descritiva, mas ocorrem de acordo com o sujeito, com o
grupo sociocultural e com a interpretação e significância
que lhe são atribuídas pela sociedade e pelos próprios pro-
fissionais da área. além de se contrapor a uma nosologia
que reconhece uma evolução da doença independente-
mente da subjetividade, a abordagem antropológica tira
o foco da doença e o coloca na pessoa que sofre e nos
sujeitos que a circundam, inclusive o profissional que
a diagnostica e trata. Essa é uma proposta radical para
evolução do pensamento sobre a doença mental, embora,
como enfatiza almeida Filho (1999), a doença ainda seja
a referência para se pensar a saúde.
a antipsiquiatria, na década de 1960, marcou uma
nova aderência à fenomenologia existencial e uma transi-
ção para as definições reformistas contemporâneas, enfa-
tizando o condicionamento social da construção coletiva
da experiência e das identidades de grupos e indivíduos
(szasz, 1974). Uma criança, argumenta laing (1967),
começa já em tenra idade a perpetuar valores, crenças
e atitudes aprendidos no contexto da vida familiar e
por conta dos meios de comunicação. À medida que
se desenvolve pela socialização que acontece na igreja,
na escola, nos clubes e em outras instituições nas quais
se estabelecem relações, cujo acesso é determinado por
sua classe socioeconômica e pelas oportunidades que
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45olIVEIra, W.F. • algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde
lhe são apresentadas (ou negadas) de acordo com sua
inserção sociocultural. a definição da insanidade mental,
aponta Szasz (1974), é produzida a partir dessas normas
e padrões de desenvolvimento, que obedecem a regras
morais e servem à opressão de minorias socioeconômicas
e aos interesses de indústrias de serviços e de produção
farmacológica, que dependem da sistematização da in-
sanidade para o seu sustento econômico e político.
a fenomenologia existencial, na visão da antipsi-
quiatria, conceitua a experiência humana como experi-
ência comum, compartilhada socialmente. lane (1984)
corrobora esta visão, apontando que toda psicologia é
psicologia social; não há como dicotomizar ser indivi-
dual e ser social. a autora trabalha a idéia de ‘indivíduo
social’, argumentando que a formação da identidade é
completamente relacional, que ocorre não só em fun-
ção de fatores pessoais, mas das relações com o mundo
exterior. Eu sou o que o outro ajuda a definir. Minha
experiência é parte da experiência geral do mundo. Mi-
nha percepção do mundo exterior, meus desejos, atitudes
e ambições são fruto do que os outros determinam. os
‘outros’ são pessoas, grupos e instituições com os quais
estou envolvido direta e pessoalmente, ou aqueles que
nem mesmo suspeito quem sejam, mas que podem in-
fluenciar minha maneira de ser. a idéia de que a Saúde
Mental da pessoa depende, além dela mesma, de suas
relações com o outro e com o mundo, também se con-
trapõe à radicalidade nosográfica-positivista, já que essa
busca a explicação da determinação da Saúde Mental
primordialmente a partir da genética e da bioquímica.
TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DE
DEFINIçÃO DE SAúDE MENTAL
a década de 1970 foi marcada pelo desenvol-
vimento de uma série de movimentos de reforma,
destacando-se a atuação de Franco Basaglia na Itália,
que adicionou à sua visão epistemológica uma prática
política que visava o fim dos manicômios. Vastas
revisões sobre a reforma Psiquiátrica, na Itália e no
Brasil, têm sido conduzidas, como na obra de Basa-
glia (1985), amarante (1995) e rotelli, leonardis e
Mauri (2001).
Uma série de definições de Saúde Mental ainda
têm sido propostas, seguindo as várias vertentes que
compõem os eixos teórico-conceituais da área. Kaplan,
Sadock e grebb (1997) revisam o conceito e apontam di-
versos fatores considerados nessas definições, entre eles,
a resistência funcional, a constância da personalidade, a
disposição pessoal, o crescimento e o desenvolvimento
compatíveis com ciclo vital, a auto-afirmação, as atitudes
com o self, a percepção da realidade, a previsibilidade
de ações, as formas de reação perante circunstâncias
internas e externas, as características adquiridas e
adaptadas em relação ao meio-ambiente, a habilidade
de se relacionar com o meio ambiente e os graus de
autonomia, entendida como uma independência das
influências sociais.
Se pensarmos as tendências a partir do relatório
lalonde, um dos marcos da Promoção de Saúde, lan-
çado em 1974, teríamos ainda que considerar o estilo
de vida, a capacitação das comunidades e a oferta de
serviços como fatores condicionantes da saúde. a Saúde
Mental, nessa perspectiva, depende também da respon-
sabilidade pessoal e admite a influência dos poderes
socioinstitucionais.
Finalmente, em 2001 a organização Mundial de
Saúde enunciou uma definição de Saúde Mental, como
um:
Estado de bem-estar no qual o indivíduo realiza suas habilidades, consegue lidar com os estresses normais da vida, pode trabalhar produtivamente e frutiferamente e está em condições de contribuir com sua comunidade. (Organização Mundial de Saúde, 2005).
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46 olIVEIra, W.F. • algumas reflexões sobre as bases conceituais da Saúde Mental e a formação do profissional de Saúde Mental no contexto da promoção da saúde
Pode-se dizer, ainda, que a evolução conceitual
no campo da Saúde Mental, em seus aspectos mais
progressistas, propicia um retorno da filosofia exis-
tencial como base interpretativa para a experiência
subjetiva (amaRantE, 2007). a compreensão ampla
desta evolução nos ambientes curriculares, acadêmi-
cos e clínicos, pode se fortalecer com o fomento de
discussões sobre a natureza da saúde, da doença, da
cura, da reabilitação, da promoção e da prevenção;
assim como discussões sobre temas como a inter e
a transdisciplinaridade, o interparadigmatismo, as
relações de poder e a contratualidade exercida entre
profissionais, serviços e usuários, direitos humanos,
autonomia e cidadania das pessoas com transtornos
psíquicos, natureza, missão e funcionamento das
instituições, institucionalização e desinstituciona-
lização, determinação multifatorial envolvida nos
processos saúde-doença e, enfim, sobre a natureza
essencialmente política da epistemologia em Saúde
Mental (vasconcElos, 2002; almEida filho, 1999).
Essas discussões podem viabilizar o exercício de novas
formas de relação, novas linguagens, novas práticas e
novas tecnologias sociais nos projetos terapêuticos,
bem como nortear a participação do profissional de
Saúde Mental em ações comunitárias.
É importante discutir como se efetiva e se cons-
trói, conceitualmente e na prática, a postura, o olhar,
do profissional e das instituições em relação ao sujeito
que procura por seus serviços ou é colocado involun-
tariamente na condição de usuário. o debate entre
correntes positivistas, biologicistas, fenomenológicas,
existencialistas, culturalistas, entre outras, tem um po-
tencial frutífero se exercido como um diálogo no qual
podem emergir livremente as discussões sobre estes e
outros temas relevantes para o avanço do projeto sani-
tário do SUS.
CONSIDERAçÕES FINAIS
Frente a um mundo em constante transformação, o
profissional de Saúde Mental enfrenta questionamentos
sobre temas emergentes e persistentes e, particularmente,
sobre o desenvolvimento de seu campo profissional.
Uma das formas de definir o campo da Saúde Mental
é como um sistema aberto que pensa a natureza, as
condições e as interações humanas, contextualizando
sua existência cognitivo-intelectual e suas interações
simbólicas. Esse sistema funciona em meio a uma
perspectiva sociocultural que constantemente avalia
comportamentos, determinando quais são adequados e
quais são inadequados. Nessa perspectiva, o campo da
Saúde Mental é um universo no qual constantemente
se elaboram, checam, discutem e restabelecem valores,
símbolos e significados; é um campo que contribui com
a formação, compreensão e elaboração de atitudes e
comportamentos pessoais, profissionais e institucionais,
diretamente influenciadores na qualidade da vida dos
indivíduos e das comunidades por meio do poder que
os profissionais detêm sobre os processos privados e
coletivos de saúde-doença.
o avanço neste campo é crucial para uma sociedade
mais sadia, mais justa e humanizada e se materializa no
seio de processos sociais complexos, como as Políticas
Públicas. a discussão das bases conceituais em Saúde
Mental contrasta e dialoga, assim, com um pano de
fundo social, político e cultural. as maneiras de concei-
tuar ‘saúde’ e ‘Saúde Mental’, transcendem disciplinas
científicas e territórios de ação em saúde, colocando
em perspectiva a necessidade de o profissional de Saúde
Mental encarar, em sua permanente formação, os papéis
que exerce frente à realidade da experiência humana da
forma como ela se apresenta no cotidiano de indivíduos,
grupos, comunidades e instituições.
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recebido: maio/2008
aprovado: set./2008
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artIgo orIgINal / ORIgINAL ARTIcLE 49
Breve história da reforma Psiquiátrica para
uma melhor compreensão da questão atual*Brief history of the Psychiatric Reform for a better comprehension
of the current debate
RESUMO O presente artigo visa fornecer um breve histórico do que se convencionou
denominar Reforma Psiquiátrica, partindo do pressuposto de que a psiquiatria
moderna, como especialidade médica, nasceu com uma reforma que seria, portanto,
um conceito intrínseco a ela. Das várias nuanças do termo, em particular, nos
desdobramentos nos anos 1950, na França, Inglaterra, Itália e Estados Unidos, visa-
se depreender o campo instituído da Saúde Mental – dos manuais de Psiquiatria à
Psicanálise, passando pelas Políticas da saúde pública –, supondo que o conhecimento
da história possa trazer instrumentos para uma melhor compreensão do que se
apresenta atualmente como tensão entre clínica e atenção psicossocial.
PALAVRAS-CHAVE: Reforma Psiquiátrica; Políticas de saúde; Manuais
psiquiátricos; Psicanálise.
ABSTRACT The article proposes a brief history of the so called Psychiatric
Reforms. It begins with the idea that modern Psychiatry was born as a reform
which would, in consequence, be intrinsic to psychiatry. Plural nuances of the
term are studied, particularly, those arisen from the movements in 1950´s and
changes in Psychiatry occurred in France, England, Italy and the United States.
The instituted field for Mental Health will then be examined as a derivation
from the effects of Psychiatric manuals and Psychoanalysis, as well as public health
politics, assuming that the fact of better knowledge of the history may provide
instruments for a better comprehension than the actual one, which presents a
tension between the clinic work and the psychological and social care.
KEYWORDS: Psychiatric Reform; Health politics; Psychiatric manuals;
Psychoanalysis.
richard Couto 1
Sonia albert i 2
1 Mestre em Pesquisa e Clínica em
Psicanálise pelo Instituto de Psicologia
da Universidade do Estado do rio de
Janeiro (IP/UErJ).
2 Professora adjunta do IP/UErJ;
e pró-cientista da UErJ; doutora
em Psicologia pela Universidade de
Paris X-Nanterre; pós-doutorada pelo
Instituto de Psiquiatria da Universidade
Federal do rio de Janeiro (IPub/UFrJ);
pesquisadora do Conselho Nacional
de desenvolvimento Científico e
tecnológico (CNPq); psicanalista
membro da Escola de Psicanálise dos
Fóruns do Campo lacaniano.
* texto que se baseia no primeiro capítulo da dissertação de Mestrado de richard Couto, orientando da professora Sonia alberti, que foi defendida e aprovada em 30 de abril de 2008.
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50 CoUto, r.; alBErtI, S. • Breve história da reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual
I N T R O D U ç Ã O
Em toda sua história, é a primeira vez, no Brasil, que
a atual reforma Psiquiátrica tem uma pretensão prática.
o intuito desta pesquisa não é refazer, em todos os seus
aspectos, a trajetória desta reforma, mas percorrer sua no-
ção, que está intimamente ligada à psiquiatria moderna,
a ponto de se poder levantar a hipótese de que a própria
psiquiatria moderna nasce com uma reforma. Com efeito,
quando Pinel abriu os portões do Hospital de Bicêtre
para a saída dos mendigos, dos órfãos e dos pobres, de
modo geral, que foram enclausurados devido à grande
mudança dos meios de produção na Europa e que gerou
modificações sociais contundentes no século 18, os loucos
foram mantidos enclausurados (MoRRissEy, goldman e
KlERman, 1980). assim, pode-se dizer que a primeira
reforma Psiquiátrica foi empreendida por Pinel, como
uma maneira de delimitar os loucos e suas questões no
espaço hospitalar, submetendo-os ao poder psiquiátrico,
sustentado pelo saber médico. tal observação não data de
hoje, veja-se, por exemplo, o texto de tuke (1892). Por
outro lado, no Brasil, a reforma Psiquiátrica é, atualmen-
te, elevada à categoria de conceito, guardando relação com
os documentos oficiais que regulamentam, viabilizam e
concretizam as propostas engendradas pelo movimento
sustentado pela lei 10.216. BraSIl. MINIStÉrIo da
SaÚdE. lei n.º 10216, de 06 de abril de 2001.
AS VÁRIAS NUANçAS DO TERMO REFORMA
PSIQUIÁTRICA
Primeiramente, parte-se da hipótese de que o termo
reforma Psiquiátrica está presente no corpo do saber psi-
quiátrico moderno desde seu nascimento, como uma das
muitas especialidades da Medicina. No Brasil, nos últimos
20 anos, no Brasil, é que o termo reforma Psiquiátrica
ganhou ares de grande novidade, principalmente com
aprovação da lei federal 10.216, em 6 de abril 2001, con-
solidando a desospitalização gradual dos pacientes psiqui-
átricos e a diminuição dos leitos hospitalares, bem como a
invenção de dispositivos substitutivos. daí a questão: que
implicação há entre o antigo e os novos dispositivos de
atendimento para os portadores de sofrimento psíquico e
para os usuários da assistência em Saúde Mental no Brasil,
como são denominados pela lei 10.216?
Com base do que foi apresentado na introdução (a
reforma ocorrida no século 18), o intuito desta pesquisa
é verificar que, com Pinel, a circunscrição dos doentes
mentais nos hospitais psiquiátricos (locais onde se pode-
ria melhor estudar e tratar os doentes por meio do então
proposto ‘tratamento moral’), se consolidou como uma
reforma. Para tal tratamento, considerava-se que a cura
das patologias mentais deveria ser conduzida mediante
a atenção integral à mente do doente, partindo da supo-
sição de que restava algo íntegro da razão perdida com a
doença. Pinel sustentava-se em sua relação com a história
natural e a filosofia para especificar as particularidades
das doenças mentais (bERchERiE; 1989).
Em nome do saber científico, a psiquiatria, para con-
testar Pinel, mais uma vez projeta uma reforma excluindo de
seu campo o tratamento moral da loucura e visa uma nova
maneira de tratamento, baseada no empuxo ao cientificismo
presente no século 19, em particular a partir de sua segunda
metade (albERti, 2003). Contudo, o que os historiadores
mostram é que por trás dessa reforma está a exigência feita à
Psiquiatria de retirar das grandes cidades, tanto na Europa,
quanto na américa do Norte, aqueles que poderiam abalar
e perturbar a ordem vigente dessas sociedades (Foucault,
1972; rEsEndE, 1987; Candiotto, 2007).
a massa que ocupou os hospitais psiquiátricos por
longos anos, especialmente a partir do início do século
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51CoUto, r.; alBErtI, S. • Breve história da reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual
20, e o próprio modelo asilar, somente foram novamente
postos em questão depois da Segunda guerra Mundial.
Muitos fatores contribuíram para esse questionamento
e por uma nova argumentação de reforma Psiquiátrica.
dentre os principais fatores que exerceram influência para
a desmobilização das internações psiquiátricas, nos anos
do pós-guerra estão: o crescimento econômico de alguns
países, a reconstrução social e os movimentos sociais e civis.
Há outros fatores importantes: os psicofármacos – apesar
dos freqüentes questionamentos quanto aos efeitos de
sua comercialização –, a entrada da psicanálise nos meios
psiquiátricos. tanto nos hospitais ingleses quanto nos fran-
ceses, o número de psiquiatras com formação psicanalítica
cresceu consideravelmente, o que gerou uma nova forma
de postura diante do paciente psiquiátrico. Nos Estados
Unidos, essa influência da Psicanálise gerou a chamada
Psiquiatria Psicodinâmica; identificada com uma prática
liberal, a Psicanálise que se impôs no campo da Psiquiatria,
nos anos 1950, era aquela praticada na american Psycho-
analytic association (aPa), restringindo o exercício da
Psicanálise aos médicos – apesar das críticas veementes a
essa prática levantadas por Freud já em 1926 e 1927.
tal conjuntura também trouxe, ao campo da do-
ença mental, a reivindicação da participação da saúde
pública de competência do Estado, obrigando-o a uma
maior implicação nessa área. Isso foi de grande relevância
para os diferentes movimentos de reforma Psiquiátrica
surgidos a partir da década de 1950, como: a Psicologia
Institucional e a Política de Setor, na França; a Psiquia-
tria Comunitária e antipsiquiatria, na Inglaterra; a
Psiquiatria antiinstitucional, na Itália, e a desinstitu-
cionalização, nos Estados Unidos.
Segundo desviat (1999), apesar de haver diferenças
entre todos esses movimentos de reforma Psiquiátrica, as
condições norteadoras e essenciais para suas efetivações
foram as mesmas: 1) um clima social favorável ao ques-
tionamento do modelo manicomial, respaldado num
consenso técnico, político e social, que permitia a elabo-
ração de objetivos alternativos ao hospital psiquiátrico; 2)
a legitimação administrativa, que deveria partir do Estado
em forma de um compromisso de levar adiante o processo
de reforma, auxiliado por um corpo técnico qualificado.
Para o autor mencionado, todas as tentativas de reforma
Psiquiátrica são marcadas por estas duas condições.
DA PSICOTERAPIA INSTITUCIONAL àS
COMUNIDADES
a Psicoterapia Institucional e a Política de Setor, na
França, formaram um conjunto de reformas que influen-
ciaram várias regiões da Europa, mas também a américa
latina, como o Brasil. a Psicoterapia Institucional foi o
braço teórico-clínico da política de setor francesa, aquela
que orientava o atendimento aos doentes mentais de
forma setorizada. tal forma de serviço pôde ser verificada
depois em outros movimentos de reforma Psiquiátrica
que estabeleceram sempre a divisão em zonas para os
serviços de atendimento. Pode-se dizer que a experiência
francesa foi a primeira a pôr, na prática, o atendimento em
zona. Naquele país, a marca da Psicoterapia Institucional
foi uma forte adesão à Psicanálise, principalmente a de
orientação lacaniana. a hipótese inicial da Psicoterapia
Institucional estabelecia que a instituição total, seja ela
hospital, presídio, entre outros, estava doente. Com
isso, não só os pacientes ou usuários eram doentes, mas
também os funcionários e agentes da instituição, e ambos
deveriam ser tratados. assim, o marco da Psicoterapia
Institucional e da Política de Setor se fez em razão de sua
proposta: ser uma ação de saúde pública1.
1 tal proposta da Política de Setor tinham como princípios fundamentais: o princípio da setorização ou zoneamento - delimitaram-se áreas com 50 mil a 100 mil habitantes; o princípio da continuidade terapêutica - uma mesma equipe, no conjunto de cada setor, deveria fornecer o tratamento e se encarregar do paciente, nos diferentes serviços e momentos do tratamento, desde a prevenção até a cura e pós-cura; o eixo da assistência deslocou-se do hospital para o espaço extra-hospitalar - o paciente deveria ser atendido, na medida do possível, na própria comunidade e o efeito cronicizador da instituição deveria ser evitado (dEsviat, 1999).
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52 CoUto, r.; alBErtI, S. • Breve história da reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual
Já a Comunidade terapêutica forneceu subsídios
à Psiquiatria do Serviço Nacional de Saúde da grã-
Bretanha. as comunidades terapêuticas tiveram seu início
ainda nos tempos da Segunda guerra Mundial, principal-
mente pelo trabalho realizado pelo psicanalista inglês W.
Bion, por meio do atendimento em grupo aos soldados
que apresentavam problemas quanto ao engajamento na
guerra. Essa foi a forma que ele encontrou para atender
um grande número de pacientes. No entanto, seu trabalho
diferia o grupo daquele identificado por Freud (1976C)
na medida em que propunha um grupo sem chefe. Bion
trabalhou com a possibilidade da existência:
de um grupo que não se baseia no Ideal do Um (como Exército e a Igreja nas célebres análises freudianas), mas que fizesse existir o particular do sujeito promo-vendo a heterogeneidade inassimilável a qualquer fu-são identificatória. (lauREnt et al.; 1998, p. 259).
deve-se salientar que as diretrizes da lei de Saúde
Mental britânica não tinham como objetivo abolir
do sistema o hospital psiquiátrico ou diminuir leitos
psiquiátricos nas unidades; o fechamento deveria ser
tributário do estabelecimento de outras unidades de
assistência aos pacientes e de serviços presentes nas
comunidades onde os pacientes se encontravam. a
estruturação dos serviços, a partir do seu planejamento
em regiões, com a ênfase nos programas de atendimen-
to parcial e nos serviços residenciais completos nas
comunidades, logo foi elogiada por órgãos internacio-
nais como a organização Mundial de Saúde (oMS).
Finalmente, é notória a modificação do tratamento
da questão com essa contribuição especificamente
inglesa e que tange à designação do campo já não
mais chamado de doença, mas de Saúde Mental, pois
foi a iniciativa inglesa que adotou este termo em seus
documentos, tanto que hoje a privilegia em detrimento
à doença mental.
ENTRE HUMANIZAçÃO E ECLETISMO
a Psiquiatria antiinstitucional, que se fez ponto
de partida para a reforma Psiquiátrica italiana, teve
seu início na experiência do psiquiatra Franco Basaglia,
quando, em 1961, ele assumiu a direção do Hospital
de gorizia, província italiana. o movimento basaglia-
no se caracterizou pela tentativa de humanização e a
transformação da instituição psiquiátrica, apoiando-se
no modelo de Comunidade terapêutica. Porém, em se-
guida, a tentativa era de levar a experiência dos pacientes
para fora dos muros do hospital, para a sociedade que
os excluiu:
Uma comunidade que se queira terapêutica deve levar em conta esta realidade dupla, a doença e a estigma-tização, para poder reconstruir gradualmente o rosto do doente, como devia ser antes de a sociedade, com seus inúmeros atos de exclusão e através da instituição que inventou, agir sobre ele com sua força negativa. (Basaglia; 1967 [1985], p. 124).
ao contrário dos movimentos na França e na Ingla-
terra, o movimento de Basaglia realizou uma contestação
incondicional do modelo manicomial. Uma das críticas
mais enfáticas ao hospital psiquiátrico, realizadas por
Basaglia e seu grupo, foi a violência praticada contra
o doente mental, como o choque elétrico, os métodos
de indução ao desmaio, a contenção e outros. Para o
psiquiatra italiano, a violência é tributária, direta das ins-
tituições, sejam elas a família ou o hospital psiquiátrico,
além de ser condição essencial para o estabelecimento e a
efetivação da instituição e tendo uma função meramente
adaptativa maquilada por um discurso respaldado no
campo médico a inferir uma causalidade biológica ao
sofrimento psíquico. o psiquiatra respalda a objetivação
que fica ainda mais acentuada devido ao assujeitamento
do paciente à instituição e ao saber psiquiátrico. Basaglia
ainda afirma que o problema não é a doença em si, mas
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53CoUto, r.; alBErtI, S. • Breve história da reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual
a relação que se estabelece com ela, pois tanto o psiquia-
tra quanto a sociedade sempre tentaram se defender do
doente mental.
a desinstitucionalização norte-americana não
ofereceu resultados satisfatórios; na verdade gerou um
grande número de abandonados. até hoje, o estado
norte-americano não dispõe de Políticas Públicas de
Saúde, tais como os estados europeus ou como o Brasil.
Salvo o período em que John Kenndy foi presidente, o
estado americano pouco fez para se ter uma reforma
Psiquiátrica no país. Isso não quer dizer que nos Estados
Unidos não havia hospitais psiquiátricos públicos. Em
1955, havia, no país, cerca de 600 mil leitos psiquiá-
tricos e até 1958 houve uma crescente no número de
internos, sendo que os métodos de tratamento foram
questionados tanto pela opinião pública quanto por
psiquiatras da associação Norte-americana de Psiquia-
tria. diante desse quadro, em 1963, John Kennedy
realizou um discurso intitulado Mensagem sobre a
doença e o retardo mentais2, no Congresso Nacional
Norte-americano, para lançar seu programa de Saúde
Mental, que chegou a ser considerado uma revolução
na psiquiatria norte-americana. depois da mensagem,
foi apresentado ao Congresso Nacional, o projeto cujo
título era Community Mental Health Centers act of
1963, que estabelecia a criação de serviços que visassem
a prevenção e/ou o diagnóstico das doenças mentais e
que o atendimento a esses pacientes seria realizado ao
nível comunitário.
as propostas dos centros de Saúde Mental norte-
americanos a serem estabelecidos, a cada 75 a 200 mil
habitantes, eram de oferecer à comunidade serviços
essenciais tais como atendimento de emergência e
hospitalização no período de 24 horas, todos os dias da
semana. Como todo projeto de reforma Psiquiátrica,
os centros de Saúde Mental tinham como princípios:
a facilidade de acesso pela população aos serviços, que
incluía uma boa localização e descentralização dos refe-
ridos serviços; informações à população da área sobre os
serviços, a assistência e suas características. além disso,
tais serviços deveriam ser gratuitos e disponíveis a todos.
outra marca do projeto implantado por Kennedy foi sua
ênfase na prevenção da doença mental, como também
a tentativa de abrangência das necessidades da comuni-
dade atendida e não somente dos doentes mentais, que
já tinham tratamento.
o método utilizado para realizar o tratamento
poderia ser considerado eclético ou multidisciplinar:
psicoterapia de várias orientações, psicofármacos, tera-
pia ocupacional, etc. todavia, a orientação que mais se
destacou nos centros de Saúde Mental foi a Psiquiatria
Preventiva, de gerald Caplan, que pode ser considerado
o seu criador. a concepção de doença mental para a Psi-
quiatria Preventiva residia na postulação de que as várias
formas de doença mental, nas diferentes populações,
eram resultado de fatores contrastantes, fatores positivos,
denominados subsídios e fatores negativos, denominados
práticas de risco. o trabalho da Psiquiatria Preventiva seria
identificar tais fatores negativos e tentar corrigi-los de
maneira positiva, para que eles não viessem a desencadear
uma doença mental. a teoria da crise, desenvolvida em
1944 por lindemann, tornou-se a base da Psiquiatria
Preventiva. Caplan também se valeu das noções de crises
evolutivas e acidentais do psicanalista norte-americano
Erik Erikson. o projeto apresentado por Kennedy previa
a criação de 2.000 centros, mas foram criados somente
600. além disso, na ausência de um sistema nacional de
saúde e o estado crônico de alguns pacientes – e a pouca
importância que se deu ao fator da causalidade social tão
enfatizada na Mensagem do Presidente, em 1963 – aca-
bou por restringir os efeitos originalmente desejados ao
funcionamento dos centros de Saúde Mental.
2 Special Message to the Congress on Mental Illness and Mental retardation.
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 49-59, jan./dez. 2008
54 CoUto, r.; alBErtI, S. • Breve história da reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual
A SAúDE MENTAL COMO CAMPO DE LUTA
E DEBATE: OS MANUAIS E A PSICANÁLISE
logo após as iniciativas de Kennedy, um movimen-
to de psiquiatras, surgido da Psiquiatria universitária
de orientação bioquímica, iniciou uma campanha de
retorno da Psiquiatria aos pressupostos médicos e cien-
tíficos do século 19, movido pelas pesquisas de cunho
psicobiológico e psicofarmacológico, principalmente
os trabalhos publicados em 1962 por donald Klein
sobre a eficácia da imipramina. Esse movimento ficou
conhecido como a Escola de Saint louis, que, na dé-
cada de 1970, deu partida à eliminação, por meio da
eficácia do medicamento, da diferença existente entre
psicose e neurose, iniciando a depreciação das entidades
clínicas presentes na Psiquiatria clássica e mantidas pela
Psicanálise, com lacan, que, na França, conceituou-as
como estruturas clínicas. No lugar da descrição e con-
ceituação das entidades clínicas como psicose, neurose e
perversão, preferiu-se uma lógica do conceito descritivo,
apoiada na noção de transtorno (disorder). as condições
para estabelecer o dSM-III e suas posteriores edições
estavam dadas:
O Manual de Diagnóstico e Estatística da Associação Psiquiátrica Norte-Americana (DSM) constitui o resultado melhor acabado das propostas empírico-operacionais da chamada Escola de Saint-Louis, liderada por Feighner, Robins e guze na década de 70. A criação de um sistema operacional de diagnós-tico para pesquisa como o RDc (Research Diagnostic criteria) e, posteriormente, do DSM-III derivam diretamente das proposições daquele grupo. (PEREiRa, 1998, p. 4).
os manuais que se seguiram pretenderam ser cada
vez mais desvinculados do saber psiquiátrico, a ponto
de, atualmente, a própria prática da Psiquiatria neles
sustentada ser de interesse cada vez menor para os
estudantes de Medicina: “deliberadamente ateóricos
[...excluem] toda e qualquer hipótese etiopatogênica,
como também [fazem desaparecer] o próprio conceito
de doença” (QuinEt, 2006, p. 12).
Por que não considerar a criação dos manuais de
diagnósticos ateóricos como uma reforma Psiquiátrica?
Porque a reforma Psiquiátrica não é somente movi-
mentos que contestam o saber psiquiátrico e visam a
substituição do modelo asilar de reclusão, mas é também
aqueles movimentos que tentam salvar a Psiquiatria, seja
com propostas de trabalho diferentes das anteriores, seja
instrumentalizando-a com as descobertas do saber médi-
co-científico ou tentando eliminar a confusão conceitual
entre as diversas disciplinas psiquiátricas. levantou-se
a hipótese de que a proposta do dMS de ser ‘ateórico’,
além de ser um projeto empírico-pragmático, também
deve ser examinada como uma proposta de reforma
Psiquiátrica. Segundo Pereira, a orientação ‘ateórica’ é
uma tentativa de não estar “submetido aos pressupostos
de qualquer uma das inúmeras disciplinas concorrentes
no campo da psicopatologia” (1998, p. 4). tal tentativa
é centrada de maneira enfática no empirismo dos fatos
clínicos, ou seja, tão somente nos fenômenos clínicos,
identificados e sustentados pela chamada Medicina
Baseada em Evidências (MBE).
a confecção do dSM também se serviu da di-
mensão sanistarista que sempre esteve subsidiada pela
epidemiologia e pela Medicina Social, encontrando,
assim, um lugar dentro das políticas de saúde públi-
ca. tendo em vista que o estado considera necessária
a intervenção da Medicina no social, no cotidiano,
principalmente quando a clínica passa a ser regida por
parâmetros normatizados, o dSM acabou sendo bem
recebido por se fazer um instrumento para o estado. a
marca dos últimos 30 anos é a busca de um ideal de
eficácia que a consolidação do dSM visa em garantir
a normatização dos usuários, apagando as diferenças
subjetivas que cada paciente pode ter se lhe é dada a
oportunidade de comparecer com sua singularidade.
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55CoUto, r.; alBErtI, S. • Breve história da reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual
Não é sem razão que muitos governos, inclusive no
Brasil, adotaram como modelo de tratamento, em
muitos hospitais e ambulatórios, as prescrições dadas
pelos Manuais de diagnósticos, como a classificação
diagnóstica e o uso de medicação correspondente; as
fichas de prontuários são a prova disso, tendo em vista
que exigem a sigla do transtorno que se supõem ser os
mais adequados ao paciente.
Numa vertente oposta à eficácia normatizada, à
biologização e à medicalização do sofrimento huma-
no está a Psicanálise. o rompimento da ortodoxia
psicanalítica se deu, em parte, mediante o ensino de
lacan, na França, que possibilitou o reconhecimento
da Psicanálise por teóricos do campo da Saúde Mental
como um saber que tem contribuições importantes
à Saúde Mental (cf. FiguEiREdo, 1997). Mas o uso
da Psicanálise nessas iniciativas não deixou de causar
questões em lacan, que, em vários momentos de seu
ensino, advertiu seus alunos sobre a extraterritorialida-
de da Psicanálise em relação à Medicina, aos psicólogos
e “outros distintos assistentes terapêuticos” (lacan,
1966[2001], p. 32).
A CONJUNTURA QUE LEVOU à ATUAL
REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA
Em 1852 foi o surgimento da instituição psiquiá-
trica brasileira. o hospital dom Pedro II, inaugurado
pelo próprio imperador, destinado aos doentes de todo
o território nacional, tinha uma capacidade para so-
mente 350 doentes e, no momento de sua abertura, já
contava com 144 internos. Uma característica peculiar
da Psiquiatria brasileira foi sua associação à Medicina
Higienicista. No governo de rodrigues alves (1902-
1906), dois nomes se destacaram na então ciência
brasileira: oswaldo Cruz e Juliano Moreira. a missão
desses médicos era ‘limpar’ a cidade do rio de Janeiro
do risco de infecção gerada pela falta de saneamento e
planejamento urbanos e da massa de desempregados e
indigentes que habitavam as ruas (rEsEndE, 1987). Por
meio de Juliano Moreira, criaram-se os hospitais colônia,
promovendo o uso do trabalho agrícola como instru-
mento de tratamento global dos doentes mentais. Como
tal projeto não vingou, os hospitais agrícolas acabaram
aderindo a sua verdadeira função, isto é, a exclusão dos
doentes mentais em locais geograficamente distantes.
a massa presente nos hospitais psiquiátricos, nas
colônias e as condições dessas instituições não sofreram
grandes modificações na era Vargas, no Estado Novo.
Pelo contrário, houve apenas reforma e ampliação das
instalações já existentes e a criação em larga escala de
outros hospitais estaduais, financiados pelo governo
Federal, que obedeciam ao modelo de colônia agrícola.
o modelo manicomial sempre foi a mola mestra das
Políticas Públicas de Saúde Mental no Brasil. Com o go-
verno militar na década de 1960, o que se testemunhou
foi a criação de clínicas e hospitais privados subsidiados
pelo estado, movidos pelos favorecimentos políticos e
o enriquecimento de seus proprietários, às custas das
diárias pagas pelo estado por cada paciente internado.
Em contraposição, durante os anos 1970, o mo-
vimento que resultou nas ‘Comunidades terapêuticas’
instaladas em alguns hospitais psiquiátricos, passou
a apostar na possibilidade de efetivamente sustentar
um trabalho terapêutico em função das propostas que
vinham das reformas realizadas em outros países e dos
investimentos pessoais de alguns psiquiatras. delgado
(1998) circunscreve três eventos políticos que desenca-
dearam o início da contestação e aquilo que se deno-
minou reforma Psiquiátrica brasileira: 1. Congresso
Brasileiro de Psiquiatria, entre agosto e setembro de
1977, em Camboriú, Santa Catarina; 2. I Congresso
Brasileiro de trabalhadores de Saúde Mental, em São
Paulo, em janeiro de 1979; 3. III Congresso Mineiro de
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56 CoUto, r.; alBErtI, S. • Breve história da reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual
Psiquiatria, em novembro de 1979, com a presença de
Franco Basaglia, que teve uma influência marcante no
movimento de reforma Psiquiátrica no Brasil.
a partir do projeto de lei, conhecido como projeto
Paulo delgado, apresentado à Câmara Federal, em 1989,
iniciou-se, em nível nacional, um movimento crescente
de reformulação das Políticas Públicas de Saúde Mental,
que abriu as portas dos hospitais psiquiátricos tanto
para a entrada de pesquisadores e técnicos de diversas
áreas quanto para a saída de pacientes que, muitas ve-
zes, encontravam-se internados há décadas. Uma das
grandes contribuições da primeira versão do projeto de
lei foi possibilitar o debate sobre a lei Federal de Saúde
Mental, tendo em vista que a referida lei datava de 1934,
baseando-se, mormente, na exclusão dos pacientes do
convívio social.
O CONCEITO DE REFORMA PSIQUIÁTRICA
NO BRASIL A PARTIR DE 1995
Nos textos estudados, deparou-se, algumas vezes,
com uma referência à reforma Psiquiátrica como um
conceito (cf. dElgado, 1998; amaRantE, 1995). Sua
formulação como conceito depende de cada autor que o
propõe e seu uso é tributário das afinidades intelectuais
e/ou políticas daquele que escolhe utilizá-lo. É interes-
sante acompanhar o desenvolvimento desse conceito
ao longo dos últimos anos e é por isso que se retomam
aqui algumas de suas incidências.
Em 1995, amarante identificava a reforma Psi-
quiátrica com um importante questionamento e con-
seqüente elaboração de propostas contrárias ao modelo
asilar. Propunha a reforma Psiquiátrica como um:
processo histórico de formulação crítica e prática que tem como objetivos e estratégias o questionamento e a
elaboração de propostas de transformação do modelo clássico e do paradigma da psiquiatria. (amaRantE, 1995, p. 91, grifo nosso).
No Brasil, associa tal processo à redemocratização
do país e à
crítica estrutural ao saber e às instituições psiquiátricas clássicas, no bojo de toda a movimentação político-social que caracteriza essa mesma conjuntura de redemocrtatização. (amaRantE, 1995, p. 91)
três anos depois, delgado (1998) chamava a aten-
ção para certa imprecisão do termo reforma Psiquiátri-
ca, do qual seria feito uso para designar as modificações
do modelo da assistência pública no serviço psiquiátrico
brasileiro, no qual se deu início um diálogo entre a Psi-
quiatria e outras áreas do campo da Saúde Mental:
Reforma psiquiátrica é uma expressão algo impre-cisa. Nela temos insistido como recurso de designação para o conjunto de modificações recentes que vêm sendo produzidas ou tentadas, a partir do final da década de 70, interessando ao modelo assistencial psiquiá-trico público, sua sustentação teórica e técnica, e as relações discursivas que se vêm estabelecendo entre a Psiquiatria, as demais disciplinas de saúde e do campo social, e as instituições e movimentos sociais. (1998, p. 42, grifo nosso).
ainda três anos depois, amarante (2001) apre-
senta uma outra definição, o que permite depreender
um avanço no próprio uso do termo. o autor mantém
o termo ‘processo’, mas ele deixa de ser histórico e
passa a ser ‘social’ e ‘complexo’, tendo uma dimensão
epistemológica, técnico-assitencial, jurídico-política
e cultural, pois haveria várias dimensões nesse mo-
vimento:
“sendo um processo, é antes de tudo permanente, não tem fim predeterminado e articula várias dimensões simultâneas e inter-relacionadas” (amaRantE, 2001, p. 104).
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Nesse momento, lê-se uma primeira tentativa de,
efetivamente, definir o termo reforma Psiquiátrica, não
como um termo cujas incidências históricas podem ser
buscadas em vários contextos, mas que passou à referên-
cia do que acontecia no Brasil, no final do século 20, ou
seja, a desinstitucionalização – que estabelece outro mo-
delo de tratamento, diferente do modelo de isolamento
terapêutico – e a mudança – que redefine o conceito de
doença mental. o autor defende que debater o conceito
de doença é suficiente para transformar as relações das
pessoas envolvidas com a questão da Saúde Mental, além
de viabilizar a modificação dos serviços, dos dispositivos
e dos espaços na maneira de ver o usuário.
Esse novo paradigma já traz consigo também
o debate da dimensão jurídico-política dos direitos
dos doentes à cidadania, pois exige que se rediscuta e
redefina “as relações sociais e civis em termos de cida-
dania, direitos humanos e sociais” (amaRantE, 2001,
p. 105). Promover o resgate dos direitos de cidadãos
dos usuários, quase que perdido devido às internações
forçadas no passado, tornou-se a principal reivindi-
cação da reforma Psiquiátrica, pois o movimento
entende cidadania como a tentativa de garantir, por
meio de meios legais e oficiais, e da apresentação de
projetos e aprovação de leis, os direitos civis e sociais
dos portadores de sofrimento psíquico. além disso, é
necessária a implantação de serviços e/ou modificações
dos serviços já existentes para que a cidadania possa
ser uma conquista diária.
Com a lei 10.216, por exemplo, a internação passou
a ser voluntária ou involuntária; neste caso é obrigatório
informá-la, via formulário, ao Ministério Público Esta-
dual, justificando os motivos da decisão. Em sete anos,
a lei 10.216 promoveu grandes mudanças – os CaPs, as
residências terapêuticas, o trabalho articulado em rede
–, principalmente nos grandes centros. Nas áreas mais
afastadas deles, ainda há muita resistência e, freqüente-
mente, as coisas avançam muito lentamente.
o que fica notório, tanto na idéia central da lei
10.216 quanto nas propostas dos dispositivos criados
a partir dela, é a centralização da cidadania e o resgate
da contratualidade social, de modo que não há dúvida
quanto à importância que a lei sustenta no cuidado e
na atenção, ambos em primeiro plano, revertendo um
quadro calamitoso do contexto da institucionalização.
CONSIDERAçÕES FINAIS
Nos últimos anos, no entanto, multiplicaram-se os
estudos sobre a necessidade de investimento na clínica
da reforma Psiquiátrica, sintagma retomado no título
do livro de Fernando tenório (2001). apesar de serem
criados locais de tratamento que têm como objetivo
sustentar a clínica da reforma Psiquiátrica, observa-se,
por um lado, que a cidadania e o cuidado são tomados
como referência do tratamento dos usuários, mas, por
outro, promove-se uma preocupação maior com a es-
pecificidade de uma clínica que caminhe paralelamente
à atenção psicossocial.
Neste âmbito, percebe-se, nos últimos anos, que
sem um trabalho clínico que leve em conta o sofrimento
psíquico, o próprio resgate da cidadania e da autono-
mia pode ficar comprometido. assim, surge uma nova
tensão: entre clínica e atenção psicossocial, no campo
da Saúde Mental. algumas propostas por uma solução
sugerem ser preciso sustentar um enfoque multidiscipli-
nar: “o campo da saúde mental é [...] multidisciplinar,
heterogêneo e plural, onde diversos saberes e práticas se
entrecruzam” (rinaldi, 2006, p. 142).
Essa orientação visa o enlaçamento de vários sabe-
res. Mas, seria possível sustentar a clínica propriamente
dita sem uma orientação clínico-teórica que tenha con-
sistência para enfrentar os problemas diários de nossa
prática? (BaRbosa, 2004) desde o início da história
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 49-59, jan./dez. 2008
58 CoUto, r.; alBErtI, S. • Breve história da reforma Psiquiátrica para uma melhor compreensão da questão atual
da psiquiatria moderna, com Pinel e Esquirol, não há
clínica sem orientação definida (BERchERiE, 1989). Por
razões que transcendem este artigo e que precisariam
ser aprofundadas no futuro, é o campo psicanalítico
que mais se ocupa com essa busca na atualidade, o que
não deixa de levantar novos questionamentos. Por ora,
nota-se que a reação que alguns setores da reforma Psi-
quiátrica atual dirigem contra o trabalho de psicanalistas
que se instrumentalizam do movimento da reforma e,
ao mesmo tempo, procuram instrumentalizá-lo com as
contribuições de sua própria formação, relaciona-se com
o que já se observou, na década de 1970, nos Estados
Unidos, quando da publicação dos manuais como o
dSM. revisitar a história para verificar possíveis inci-
dências anteriores de questões atuais transcende a função
da história como registro e permite estudar as determi-
nações – nem sempre conhecidas – de movimentos e
resistências com as quais se tem que lidar atualmente.
R E F E R Ê N C I A S
albERti, S. crepúsculo da alma: história da Psicologia no Brasil no século XIX. rio de Janeiro: Contra Capa, 2003.
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recebido: abr./2008
aprovado: ago./2008
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 60-71, jan./dez. 2008
artIgo orIgINal / ORIgINAL ARTIcLE60
Saúde do trabalhador de Saúde Mental:
uma revisão dos estudos brasileirosThe health of Mental Health workers:
a review of Brazilian scientific literature
RESUMO Neste artigo apresentamos uma revisão dos estudos brasileiros sobre a
saúde do trabalhador de Saúde Mental, considerando o processo de implantação
da Reforma Psiquiátrica no país. A bibliografia disponível é recente, datando
de pouco menos de uma década. No final dos anos 1990 havia um predomínio
de estudos em torno do conceito de estresse, com profissionais da enfermagem e
de hospitais psiquiátricos. Atualmente, sobretudo a partir de 2006, os estudos
não apenas apresentaram um crescimento significativo, como se tornaram mais
complexos e ganharam em qualidade, privilegiando, os trabalhadores de Saúde
Mental dos centros de Atenção Psicossocial (caps).
PALAVRAS-CHAVE: Serviços de Saúde Mental; Saúde do trabalhador;
Literatura de revisão.
ABSTRACT This paper presents a literature review under the theme “health of
Mental Health workers” as considered the introduction of the Psychiatric Reform
in Brazil. The available bibliography is recent, with less than a decade. In the
end of the 1990’s, studies on the concept of stress carried out with professionals of
nursing and in psychiatry hospitals were predominant. Nowadays, mainly since
2006, the studies not only increased significantly, but also became more complex
and acquired quality, favouring the workers of Mental Health of the Psychosocial
care centers (Caps).
KEYWORDS: Mental Health services; Workers Health; Review literature.
tatiana ramminger 1
1 Psicóloga; mestre em Psicologia
Social e Institucional pela Universidade
Federal do rio grande do Sul
(UFrgS); doutoranda em Saúde
Pública pela Escola Nacional de Saúde
Pública da Fundação oswaldo Cruz
(ENSP/fiocRuz).
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61raMMINgEr, t. • Saúde do trabalhador de Saúde Mental: uma revisão dos estudos brasileiros
I N T R O D U ç Ã O
Neste artigo, procurou-se questionar a formar
como o campo Saúde do trabalhador dialoga com
a saúde dos trabalhadores de Saúde Mental. res-
saltamos que esse não é um tema muito pesquisado
nem na área de Saúde Mental, que tem priorizado
as discussões em torno das mudanças no cuidado ao
portador dos transtornos mentais e no entendimento
da loucura, nem no campo da Saúde do trabalha-
dor, que acumula estudos em organizações privadas
e industriais. tentando potencializar esse diálogo
necessário, nosso esforço aqui será reunir e discutir
a produção científica brasileira a respeito da relação
entre saúde/adoecimento e trabalho na área da Saúde
Mental, sobretudo a partir do processo de implantação
da reforma Psiquiátrica no país.
Para tanto, foram utilizados os bancos de dados de
teses e dissertações1 das universidades que disponibilizam
este recurso, bem como a base de dados da Biblioteca
Virtual em Saúde (Bireme, www.bireme.br), que inclui
Lilacs, Medline, cochrane e SciELO, com pesquisa feita a
partir dos seguintes descritores: Saúde do trabalhador;
Saúde Mental; reforma psiquiátrica; trabalhador de Saú-
de Mental; trabalhador psiquiátrico; hospital psiquiátri-
co. a última consulta foi feita em abril de 2008, sendo
que também recorremos, eventualmente, a resumos de
congressos científicos e capítulos de livros.
Em consulta à literatura que aborda o trabalho na
área da Saúde Mental, principalmente aos textos publi-
cados a partir do processo de implantação da reforma
Psiquiátrica no país, percebemos que os estudos privile-
giam as mudanças recentes nesse campo, sobretudo na
concepção de ‘loucura’ e nas formas de tratamento dos
usuários (Passos, 2003).
Farta bibliografia preocupa-se em (re)discutir a
função dos diferentes profissionais nas equipes dos
novos serviços de Saúde Mental como, por exemplo,
a atuação do terapeuta ocupacional (mangia, 2000;
RibEiRo; olivEiRa, 2005), do psicólogo (bandEiRa,
1992; figuEiREdo; RodRiguEs, 2004), do assistente
social (vasconcElos, 2000), do psicanalista (figuEiRE-
do, 2001), do acompanhante terapêutico (Palombini,
2004) e, sobretudo, dos enfermeiros (dalmolin, 1998;
bERtoncEllo; fRanco, 2001; KiRschbaum; Paula,
2001; casanova, 2002; lima; amoRim, 2003; olivEiRa;
alEssi, 2003; silvEiRa, 2003; silvEiRa; alvEs, 2003;
silva; fonsEca, 2005), técnicos e auxiliares de Enfer-
magem (maRanhão, 2004; zERbEtto; PEREiRa, 2005).
destaca-se, ainda, a tendência a repetir padrões comuns
ao hospital psiquiátrico, mesmo com severas críticas a
esse modelo (bRêda; augusto, 2001; camPos; soaREs,
2003; olivEiRa; alEssi, 2005a, 2005B; bichaff, 2006;
antunEs; quEiRoz, 2007; lEao; baRRos, 2008).
Por outro lado, a bibliografia existente sobre a rela-
ção entre saúde e trabalho em Saúde Mental é recente,
datando de pouco menos de uma década. recordemos
que os estudos sobre a relação entre saúde/adoecimento
e trabalho, tendem a estar ligados ao que é visível, ou
seja, ao que pode ser medido, examinado ou medicado,
estabelecendo-se objetivamente um nexo entre determi-
nada situação de trabalho e respectivas conseqüências
para a saúde do trabalhador (como no caso de uma
perda auditiva por exposição ao ruído, por exemplo).
dificilmente considera-se, portanto, a mobilização
cognitiva e afetiva do trabalhador, ambas característi-
cas importantes do trabalho em saúde, especialmente
do trabalho em Saúde Mental. Sendo assim, quase a
totalidade dos textos tem caráter qualitativo e poderiam
1 Quando parte das conclusões das dissertações ou teses possuíam publicação em periódicos científicos, privilegiou-se o artigo publicado.
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62 raMMINgEr, t. • Saúde do trabalhador de Saúde Mental: uma revisão dos estudos brasileiros
ser reconhecidos como parte do campo de estudos deno-
minado ‘Saúde Mental e trabalho’. Como este campo
não é homogêneo, ou seja, não há consenso sobre quais
seriam suas principais correntes teóricas (fERnandEs;
mElo; gusmão et al., 2006; JacquEs, 2003), fizemos
nossa própria divisão em três blocos, conforme os temas
privilegiados em cada estudo.
ESTRESSE, CARGA E SOBRECARGA NO
TRABALHO EM SAúDE MENTAL
Estabelecer a relação entre doença/Saúde Mental e
trabalho não é tarefa fácil. o processo de adoecimento
psíquico é sempre singular e envolve várias dimensões
da vida do sujeito, o que pode dificultar pesquisas quan-
titativas. talvez seja essa a explicação para o reduzido
número de estudos epidemiológicos encontrados, ainda
que sejam fundamentais para nos dar a dimensão deste
‘invisível’ que pode se tornar mais palpável na medida
em que começa a ser reconhecido estatisticamente
(tittoni, 1997).
aliás, foi o peso das estatísticas, somado ao esforço
dos pesquisadores e dos movimentos sociais, que possi-
bilitou o reconhecimento legal da relação entre Saúde
Mental e trabalho no Brasil a partir de 1999, através
do decreto 3.048 do Ministério da Previdência e as-
sistência Social que discrimina os transtornos Mentais
relacionados ao trabalho. dentre esses transtornos, há
a síndrome do esgotamento profissional, ou burnout,
descrita pelas teorias do estresse.
as teorias do estresse, embora tenham como re-
ferencial básico a Fisiologia, originaram modelos mais
complexos, com a inclusão da perspectiva social e da
subjetividade (sEligmann-silva, 2003). a síndrome
de burnout, mesmo que de início não estivesse ligada
exclusivamente às situações de trabalho, hoje tem sido
apontada como recorrente entre os profissionais da
educação, da saúde e da segurança, sobrecarregados em
suas formas de prover cuidado (codo, 1999). Segundo
Codo, as principais características dessa síndrome são
a exaustão emocional, a despersonalização da atenção
e a falta de compromisso com o trabalho. as pesquisas
acerca dos trabalhadores de Saúde Mental que seguem
esse referencial apontam um alto índice de esgotamento
emocional e estresse crônico entre eles, diretamente pro-
porcional ao tempo e à intensidade do cuidado direto
ao paciente (fEnstERsEifER, 1999; REgo, 2000; Rosa,
2001; costa; lima, 2002; RammingER, 2002; vianEy;
bRasilEiRo, 2003).
Por outro lado, Carvalho e Felli (2006), buscaram
analisar o processo saúde-doença vivenciado pela equipe
de enfermagem de um hospital psiquiátrico a partir dos
conceitos de carga de trabalho e desgaste, chegando
à conclusão que esses trabalhadores apresentam um
intenso desgaste mental muito mais pelas condições de
trabalho do que pelo convívio com os pacientes. as
cargas de trabalho (físicas, químicas, biológicas, fisio-
lógicas e psíquicas), segundo laurell e Noriega (1989),
são elementos do processo de trabalho que interagem
dinamicamente entre si e com o corpo do trabalhador
gerando processos de adaptação e que resultam em
desgaste, entendido como uma perda da capacidade
potencial e/ou efetiva corporal e psíquica.
Nessa direção, Bandeira, Pitta e Mercier (2000)
validaram, no Brasil, escalas internacionais de avaliação
de satisfação (SatIS-Br) e sobrecarga (IMPaCto-Br)
das equipes técnicas de serviços de Saúde Mental. tais
escalas passaram a ser utilizadas em pesquisas de ava-
liação, fornecendo importantes subsídios para estudos
epidemiológicos. além disso, os estudos de satisfação
vêm crescendo em importância na avaliação da quali-
dade dos serviços de Saúde Mental por considerarem
a percepção dos diferentes segmentos envolvidos na
atenção (usuários, familiares e trabalhadores), assim
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63raMMINgEr, t. • Saúde do trabalhador de Saúde Mental: uma revisão dos estudos brasileiros
como a “escala de sobrecarga constitui um preditor
do estresse apresentado pelos trabalhadores de Saúde
Mental” (bandEiRa; ishaRa; zuaRdi, 2007, p. 280). No
entanto, reboucas, abelha, legay et al. (2008, p. 625)
ressaltam que, embora os estudos brasileiros sejam rea-
lizados com todos estes segmentos, “a pesquisa dirigida
à equipe técnica tem despertado menos interesse do que
as que avaliam usuários e familiares”.
Percebemos que de sua validação (ano 2000) até a
publicação das primeiras pesquisas feitas a partir dessas
escalas em relação ao trabalho em Saúde Mental, passa-
ram-se sete anos. tivemos acesso a quatro estudos, sendo
um de validação do construto das escalas, realizado em
um município de São Paulo (bandEiRa, ishaRa; zuaRdi,
2007), dois realizados em instituições do município do
rio de Janeiro (REboucas; lEgay; abElha, 2007; REbou-
cas; abElha; lEgay et al., 2008) e um que apresenta os
resultados preliminares da aplicação do instrumento em
toda rede de Centros de atenção Psicossocial (caPs) do
Ceará (godoy; Rigotto; maciEl et al., 2007). Nesses
estudos, a satisfação é considerada um estado emocio-
nal que envolve a interação das características pessoais,
valores e expectativas dos profissionais em relação ao
ambiente e organização do trabalho. Já o impacto diz
respeito às repercussões do trabalho sobre a saúde e o
sentimento de bem-estar do trabalhador (REboucas;
lEgay; abElha, 2007).
todas as pesquisas apontam para a predominância
significativa das mulheres no trabalho em Saúde Men-
tal, culminando no caso do Ceará, onde 72,8% dos
trabalhadores dos caPs são mulheres (godoy; Rigotto;
maciEl et al., 2007). a pesquisa de reboucas, legay e
abelha (2007) destaca que esse segmento concentrou
o menor nível de satisfação com o trabalho e o maior
impacto sobre a saúde, interpretado pelas autoras como
conseqüência da ‘dupla jornada’ feminina. No estudo de
validação de construto foi constatada a relação negativa
entre os escores de satisfação e sobrecarga, bem como
os níveis mais baixos de satisfação e mais elevados de
sobrecarga entre os trabalhadores com indicativo de
estresse (bandEiRa; ishaRa; zuaRdi, 2007). as demais
pesquisas confirmam que quanto maior o grau de so-
brecarga dos profissionais, menor o seu nível de satis-
fação no trabalho, assim como a relação inversa entre o
nível de escolaridade e satisfação. Em duas pesquisas, a
satisfação no trabalho esteve relacionada à atuação em
projetos novos e de status diferenciado, à maior idade
e ao contrato de trabalho precário. as pesquisadoras
atribuem tal resultado ao fato de que, provavelmente,
os profissionais mais jovens têm menos recursos para
lidar com os problemas inerentes ao desempenho das
atividades e quando possuem escolaridade mais elevada,
maiores expectativas em relação ao trabalho. (REboucas;
lEgay; abElha, 2007; godoy; Rigotto; maciEl et al.,
2007). Em relação ao impacto do trabalho, os resultados
foram diferentes. Enquanto os resultados encontrados
no rio de Janeiro (REboucas; lEgay; abElha, 2007;
REboucas; abElha; lEgay et al., 2008) não remetem
à associação significativa com a escolaridade, godoy,
rigotto, Maciel et al. (2007) apontam a relação direta
entre a baixa escolaridade e o impacto menor do trabalho
na vida dos profissionais.
SOFRIMENTO E PRAZER NO TRABALHO EM
SAúDE MENTAL
Passemos agora aos estudos que consideram a re-
lação entre prazer e sofrimento no trabalho em Saúde
Mental. a pesquisa de lanzarin (2003), ancorada na
Psicodinâmica do trabalho, procurou analisar as rela-
ções entre trabalho, prazer e sofrimento das auxiliares
de enfermagem de um hospital psiquiátrico. À luz
da Psicanálise, dejours (1988) entende que, frente às
vivências de sofrimento, os trabalhadores desenvolvem,
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 60-71, jan./dez. 2008
64 raMMINgEr, t. • Saúde do trabalhador de Saúde Mental: uma revisão dos estudos brasileiros
coletivamente, estratégias defensivas que podem ser
muito úteis, pois permitem que as pessoas continuem
trabalhando, sobrevivendo à angústia. No entanto:
[...] as estratégias defensivas podem atenuar o sofri-mento, mas, por outro lado, se funcionarem muito bem e as pessoas deixarem de sentir o sofrimento, pode-se prever a alienação. (dEJouRs, 1999).
lanzarin (2003) percebeu grande envolvimento
emocional entre as auxiliares de enfermagem e a clien-
tela atendida. Segundo a pesquisadora, se por um lado
essa intensificação do laço afetivo constitui-se fonte de
gratificação para as auxiliares, e funciona como uma es-
tratégia defensiva frente ao medo e à angústia, por outro
lado contribui para a exploração do trabalho. Mulheres
em sua maioria, as auxiliares acabam tomando para si
algumas responsabilidades que não estão relacionadas
à função que desempenham. ao mesmo tempo, esse
cuidado não é reconhecido como uma qualificação ou
competência da trabalhadora, mas como a expressão de
um instinto maternal inato.
Ferrer (2007) e Silva (2007) nos apresentam
análises similares de estudos realizados com os pro-
fissionais dos caPs de Campinas, interior de São
Paulo (fERRER, 2007) e goiânia, goiás (silva, 2007),
embora não utilizem apenas o referencial dejouriano,
privilegiando as vivências de sofrimento dos traba-
lhadores. ambas as análises citam como importantes
componentes que contribuem para o sofrimento do
trabalhador de Saúde Mental a baixa remuneração,
os contratos diferenciados e, por vezes, precários de
trabalho, a má condição física e material dos estabe-
lecimentos, a limitação das demais redes de suporte
e promoção social, a carência de uma política de
cuidado aos trabalhadores da saúde e o próprio fato
de haver contato com a loucura. Por outro lado, as
duas pesquisadoras também apontam a implicação e
o prazer desses trabalhadores com sua atividade.
Considerando o referencial da Psicologia Institucio-
nal e da Psicanálise de grupos, Koda e Fernandes (2007)
analisam os conflitos e contradições que se instauram
a partir da implantação de um serviço substitutivo à
internação psiquiátrica que exige um contato mais pró-
ximo com o paciente e um trabalho mais articulado com
profissionais de outras áreas e instituições. Segundo as
autoras, isso leva a um “desenraizamento” do trabalha-
dor, que vê sua identidade profissional posta em questão.
os códigos anteriores, ainda que fossem avaliados como
inadequados, asseguravam um modelo de práticas e re-
presentações comuns em relação ao lugar do trabalhador,
à relação profissional/usuário, à concepção da loucura,
entre outras. a transformação desses códigos leva a um
momento de fragilidade, muitas vezes vivenciado como
ameaça contra o sujeito e o grupo ao qual pertence.
Corroborando esse entendimento, rabelo e torres
(2005) pretenderam avaliar a relação entre a adesão a
determinado paradigma norteador de práticas em Saú-
de Mental, e a saúde física e psicológica dos profissio-
nais da área em goiânia. as autoras consideraram dois
paradigmas: o biológico e o psicossocial. o primeiro
está ligado ao discurso médico psiquiátrico, com ênfase
nas causas orgânicas do adoecimento; o segundo, ao
discurso da reforma Psiquiátrica. Participaram da pes-
quisa, trabalhadores de seis serviços de Saúde Mental
‘substitutivos’ e seis clínicas psiquiátricas. os resultados
mostraram que os maiores níveis de bem-estar físico
e psicológico não estiveram relacionados ao local de
trabalho, mas à adesão ao paradigma biológico que,
segundo as autoras, por ser mais legitimado, oferece
maior segurança ao profissional nesse momento de
transição no qual o modelo biológico não foi aban-
donado, nem o modelo psicossocial definitivamente
implantado. No entanto, não podemos deixar de
questionar a validade da separação estanque entre esses
dois paradigmas, bem como das escalas de bem-estar
físico e psicológico utilizadas.
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SUBJETIVIDADE, DISCURSOS, PRÁTICAS
E VIVÊNCIAS DOS TRABALHADORES DE
SAúDE MENTAL
Por fim, aqui destacamos os artigos que não tratam
diretamente da relação entre saúde e trabalho em Saúde
Mental, mas que apresentam contribuições para o tema.
Considerando a análise do discurso dos trabalhadores,
encontramos os trabalhos de Bernardes e guareschi
(2004) e garcia e Jorge (2006). o primeiro parte do
referencial foucaultiano para compreender as formas de
subjetivação, ou o modo como os profissionais consti-
tuem a si mesmos e se reconhecem como trabalhadores
de Saúde Mental. Já garcia e Jorge (2006) procuram
destacar a vivência dos trabalhadores de um caPs à luz
do pensamento de Martin Heidegger e Hans-georg
gadamer. Embora sigam caminhos diferentes, os dois
estudos se valem da figura do ‘humano’ e da ‘humani-
zação’ para retratar as transformações no cuidado em
Saúde Mental. a conclusão é que a reforma Psiqui-
átrica, ao reivindicar a humanização do atendimento
em Saúde Mental, não pode deixar de lado o “humano
que cuida” (gaRcia; JoRgE, 2006), já que os próprios
trabalhadores reconhecem que “a humanização deles
[dos pacientes] será a nossa humanização” (bERnaRdEs;
guaREschi, 2004).
Em um estudo que privilegiou o ponto de vista dos
trabalhadores de Saúde Mental sobre a relação entre a
saúde e suas atividades de trabalho (RammingER, 2006;
RammingER; naRdi, 2007), evidencia-se que a preca-
riedade das políticas públicas de atenção à saúde do
servidor público reflete nos serviços de Saúde Mental. o
acolhimento (ou não) das questões relacionadas à saúde
no trabalho depende do funcionamento e das diretrizes
particulares de cada serviço. a análise dos discursos e
práticas possibilita o entendimento de que os trabalha-
dores habitam um espaço de tensionamentos e confron-
tos. Primeiro, pela circulação de diferentes formações
discursivas, incluindo desde a crença de que cuidar é
uma forma de caridade (discurso religioso), a afirma-
ção de que é a ciência que pode falar do tratamento da
loucura (discurso científico), até o entendimento de que
o trabalho em Saúde Mental não pode ser reduzido a
um domínio de técnicas, devendo incluir a implicação
política e afetiva com a construção de outro modo de
se relacionar com a loucura (discurso antimanicomial).
Em segundo lugar, pela oscilação dos trabalhadores
entre um papel desafiador e criativo, como agentes de
um dispositivo que se pretende inovador, e a constante
desvalorização de sua função enquanto servidor público,
traduzida pela falta de investimentos e ações interseto-
riais que impõem limites à prática e responsabilizam o
trabalhador individual, excessiva e exclusivamente pela
resolutividade dos serviços.
da mesma forma, o artigo de Silva (2005) sobre
os discursos e práticas em torno da responsabilidade
no campo da Saúde Mental, aponta para o aumento da
responsabilidade e autonomia do trabalhador de Saúde
Mental em seu processo de trabalho. No entanto, a
exigência do trabalhador apto a resolver problemas
complexos não é acompanhada do aumento dos ne-
cessários recursos teóricos, financeiros ou emocionais,
em uma clara tendência à precarizacão do trabalho,
somada a expectativas cada vez maiores em relação ao
trabalhador. além disso, a ‘tomada de responsabilidade’
– jargão do campo da saúde – não é apenas do serviço
(pelo território), mas também do trabalhador (por seu
processo de trabalho), do usuário (por sua condição
subjetiva), da família e da comunidade de modo geral
(responsabilização social dos atores), em um processo
no qual distintas áreas – Saúde Pública, análise Institu-
cional e Psicanálise – unem-se em torno da convocação
à responsabilidade.
também os estudos que privilegiam as teorias
sobre a representação social corroboram com a com-
preensão do trabalho em Saúde Mental como uma
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66 raMMINgEr, t. • Saúde do trabalhador de Saúde Mental: uma revisão dos estudos brasileiros
atividade complexa, com a circulação de distintos
discursos e um sobre-encargo do trabalhador, prin-
cipalmente pelo desinvestimento no trabalho e nos
serviços públicos (Koda, 2002; antunEs; quEiRoz,
2007; lEao; baRRos, 2008).
andrade (2007) propõe, inspirado em Nourodine
(2004), considerar o risco no e do trabalho em Saúde
Mental não apenas como negatividade ou algo que deva
ser combatido, mas como positividade e potencialidade,
um “ato de criatividade necessário e jamais dominado
para agir, produzir, inventar e realizar” (andRadE, 2007,
p. 85). No entanto, a não ser pelo risco de reproduzir
os modelos manicomiais ou enclausurar-se nas próprias
defesas frente ao sofrimento do outro, o autor não se
aprofunda em relação aos riscos da atividade do traba-
lhador de Saúde Mental.
Merhy (2007), embora sem a pretensão de apre-
sentar um estudo mais sistematizado, compartilha suas
reflexões, a partir de sua experiência como supervisor
de um caPs. Ele diz que buscar a produção de cuidados
em saúde para além das práticas hegemônicas, é estar
no ‘olho do furacão’, sendo necessário construir um
campo de proteção para aqueles que têm que moldar
suas caixas de ferramentas em ato. descreve o trabalho
nos caPs como algo árduo, com intensa demanda de
múltiplos cuidados, o que faz o trabalhador experi-
mentar sentimentos intensos e antagônicos, cobrando
de si mesmo e da equipe uma disponibilidade e uma
abertura difíceis de serem mantidas permanentemen-
te, sobretudo para quem oferta seu trabalho vivo
para vivificar a vida do outro. São sentimentos de
tristeza, exaustão e impotência que caminham lado a
lado com a exigência de acolhimento e resolução de
problemas complexos de forma criativa e entusiasma-
da. assim, o autor propõe a alegria e o alívio como
dispositivos analisadores.
a alegria é tomada como indicador da luta contra
a tristeza e o sofrimento, sendo necessário um espaço de
apoio, para além das supervisões institucionais e clínicas,
que permita retomar a produção de vida, consumida
em meio ao fazer cotidiano. Essa imagem do consumo
da vida pelo trabalho remete à exaustão ou combustão
(burnout) do trabalhador e da equipe, pois um coletivo
que consome sua própria vida com o objetivo de cons-
truir novas possibilidades de vida para outros, se não
a produzir o tempo todo, exaure. da mesma forma, o
segundo analisador proposto por Merhy – o alívio –
aponta para a necessidade de alívio também daquele
que se ocupa do alívio dos outros.
Uma equipe de trabalhadores dos Caps que não possa usufruir de alívios produtivos e de estados de alegria, de forma implicada, não tem muito a ofertar a não ser exaurir para gerar alívios nos outros, como o ma-nicômio já fazia e faz. (mERhy, 2007, p. 65).
aliás, a precarizacão e a falta de condições de tra-
balho em Saúde Mental, bem como o número sempre
insuficiente de trabalhadores, com excesso de encargos
e responsabilidades, salientados nos estudos aqui apre-
sentados, integram uma herança que acompanhou o
hospital psiquiátrico desde a sua fundação e parece ter
se perpetuado nos novos serviços de Saúde Mental2.
Esses últimos estudos, já apontam a relação intrín-
seca entre a gestão do trabalho e o trabalho como gestão,
ou seja, a indissociabilidade entre as formas de atenção
e gestão. o abismo entre um e outro gera sofrimento
e adoecimento entre os trabalhadores (santos-filho;
baRRos, 2007). Jorge, guimarães, Nogueira et al. (2007)
trata especificamente da gestão de recursos humanos
em três caPs de Fortaleza (CE). os autores afirmam
que os serviços de Saúde Mental enfrentam os mesmos
desafios do sistema de saúde geral como, por exemplo,
2 a esse respeito, consultar os relatórios dos primeiros hospitais psiquiátricos citados nos trabalhos de Wadi (2002) e Machado et al. (1978).
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67raMMINgEr, t. • Saúde do trabalhador de Saúde Mental: uma revisão dos estudos brasileiros
a precarização do trabalho em saúde, que pode ser
definida como a flexibilização ou ausência de direitos
trabalhistas e de proteção social, baixa qualificação
profissional e condições de trabalho insatisfatórias. Na
pesquisa, 60% dos trabalhadores manifestaram algum
desconforto em relação ao processo de trabalho; suas
queixas compreenderam desde o volume de tarefas e a
burocracia excessiva, até a falta de colaboração e apoio
dos colegas e do próprio gestor. as condições de traba-
lho relacionadas à estrutura física dos serviços, também
deixa muito a desejar. No entanto, mesmo com todas
essas limitações, 80% dos trabalhadores declararam que
seu nível de satisfação, por trabalhar no caPs, é bom ou
excelente. os autores concluem que há um descompasso
entre as políticas de recursos humanos implantadas –
como a Política Nacional de Humanização da atenção
e gestão do SUS e o Programa Nacional de despreca-
rização do trabalho no SUS – e sua operacionalização
no nível local.
CONSIDERAçÕES FINAIS
analisando a bibliografia brasileira disponível sobre
a relação entre saúde e trabalho na área da Saúde Mental,
percebemos que trata-se de um tema recente, que data de
pouco menos de uma década. No final dos anos 1990,
predominaram os estudos em torno do conceito de es-
tresse em profissionais da enfermagem e trabalhadores
de hospitais psiquiátricos. atualmente, os estudos não
apenas cresceram significativamente, como se tornaram
mais complexos e ganharam em qualidade, privilegiando
os trabalhadores de Saúde Mental dos caPs. a biblio-
grafia tende a destacar os desafios colocados aos traba-
lhadores pela proposta “cuidar sem segregar” que exige
a redefinição de seu papel como profissional, sua relação
com a equipe e os usuários, bem como sua concepção
de loucura e cuidado. o trabalho em Saúde Mental é
compreendido como uma atividade, ao mesmo tempo
singular e coletiva, criativa e angustiante, gratificante e
desgastante e que, para além do corpo do trabalhador,
deve contar com sua capacidade relacional. os conceitos
mais utilizados nesses estudos, mesmo que por vezes mal
definidos, são aqueles relacionados ao campo da Saúde
Mental do trabalhador, tais como: estresse, desgaste,
sobrecarga, impacto, sofrimento psíquico, modos de
subjetivação e vivência subjetiva.
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recebido:abr./2008
aprovado: nov./2008
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 72-82, jan/dez. 2008
artIgo orIgINal / ORIgINAL ARTIcLE72
a Escola livre de artes Visuais do Museu Bispo do rosário
arte ContemporâneaThe Visual Arts Free School of Museu Bispo do Rosário Arte contemporânea
RESUMO É apresentado o modo de funcionamento, princípio ético e os
fundamentos da Escola Livre de Artes Visuais, um setor do Museu Bispo do
Rosário Arte contemporânea que oferece experiência com a criação artística. O
museu define-se pela criação e é constituído como ‘instituição inventada’ na luta
da cultura contra a psiquiatria disciplinar.
PALAVRAS-CHAVE: Arte; criação; Museu; Psiquiatria; Terapia artística.
ABSTRACT One presents the modus operandi, ethical principles and foundations
of Escola Livre de Artes Visuais (Elavi). Elavi is a section of Museu Bispo do
Rosário Arte contemporânea which offers experience with artistic creation. The
museum is defined by the creation and stands as an ‘invented institution’ in the
fight of culture against disciplinary psychiatry.
KEYWORDS: Art; creation; Museum; Psychiatry; Art therapy.
ricardo aquino 1 thiago Ferre i ra de aquino 2 rita aquino 3
1 diretor; curador do Museu Bispo do
rosário arte Contemporânea.
2 Músico; mestrando do Programa
de Pós-graduação em Música na
Universidade Federal do rio de Janeiro
(uniRio); professor da Escola livre de
artes Visuais (Elavi).
3 dançarina; mestre em dança pela
Universidade Federal da Bahia (UFBa);
professora da Elavi em 2005-2006.
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 72-82, jan/dez. 2008
73aQUINo r.; aQUINo t.F.; aQUINo r. • a Escola livre de artes Visuais do Museu Bispo do rosário arte Contemporânea
I N T R O D U ç Ã O
Neste trabalho é apresentada a Escola livre de
artes Visuais (Elavi) do Museu Bispo do rosário
arte Contemporânea inaugurada em 18 de maio de
2005. a Elavi é o segmento do museu que oferece
a possibilidade de experimentação artística, seu pe-
ríodo de funcionamento é de segunda a sexta-feira,
matutino e vespertino, nas dependências do museu
localizado no perímetro do Instituto Municipal de
assistência à Saúde Juliano Moreira, na cidade do
rio de Janeiro, e é aberta a usuários dos serviços de
saúde mental, técnicos e comunidade. a característica
essencial da Elavi decorre do fato de ser um dispositi-
vo sem medicamentos que oferece a possibilidade de
experimentar a arte fora do circuito de tratamento,
de oficina de terapia ocupacional, da arteterapia, ou
outros. trata-se de um espaço catalisado por artistas,
sem a presença de qualquer profissional relacionado
à Saúde Mental.
o nome escolhido para a escola tem por referência
o trabalho do psiquiatra e psicanalista osório César
desenvolvido na Colônia do Juqueri entre 1949 e 1971.
o psicanalista denominava de Escola livre de artes
Plásticas. a escolha da denominação Escola livre de
artes Visuais foi dada em conformidade com a amplia-
ção do campo das artes plásticas, por intermédio do uso
de novas mídias.
o nome deste setor transmite a idéia de que os
freqüentadores não são ‘doentes mentais sob trata-
mento’, mas sim estudantes ou aprendizes de vivências
artísticas. Portanto, a escola desloca o foco da saúde e
doença para o da criação e cultura. Entende-se criação
artística como algo inerente ao que todos os homens são
potencialmente capazes. desta forma, a Elavi sustenta
a criação artística como uma estratégia de combate à
ciência psiquiátrica e aos seus efeitos.
Benedetto Saraceno recomenda que:
Não necessitamos de esquizofrênicos pintores, necessi-tamos de esquizofrênicos cidadãos, não necessitamos que façam cinzeiros, necessitamos que exerçam a cidadania. (saRacEno, 1996, p. 16).
de fato, a Elavi enquanto setor do Museu Bispo
do rosário arte Contemporânea, que oferece experi-
ências com a arte, se coloca no campo da mudança e
do novo, contra o paradigma psiquiátrico clássico e o
seu positivismo cientificista. o museu coloca em ação
as palavras de Friedrich Nietzsche, as quais sintetizam
sua inserção no debate das questões sustentadas pela
reforma Psiquiátrica:
A história e as ciências naturais foram úteis para vencer a Idade Média: o saber contra a crença. Agora lançamos a arte contra o saber: o retorno à vida! (niEtzschE, 1987, p. 11).
o funcionamento por três anos motivou esta
apresentação em que são contemplados os fun-
damentos e, justificado o recurso da arte contra a
psiquiatria.
MUSEU E REFORMA PSIQUIÁTRICA
a reforma Psiquiátrica se empenha pela mudança
do paradigma psiquiátrico que foi construído tendo
por base o asilo e saber psiquiátrico. a Modernidade foi
construída sobre as bases das instituições e dos saberes de
matiz disciplinar. a reforma Psiquiátrica problematiza
as bases disciplinares da Psiquiatria: o asilo e o saber, e o
correlato disto na cidadania. Mais do que isto, a reforma
Psiquiátrica luta por um novo lugar social na cultura a
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 72-82, jan/dez. 2008
74 aQUINo r.; aQUINo t.F.; aQUINo r. • a Escola livre de artes Visuais do Museu Bispo do rosário arte Contemporânea
ser ocupado pela loucura e pelos que se encontram na
condição de sofrimento psíquico. Joel Birman (1992,
p. 72) destaca este como o eixo central da luta do mo-
vimento. Isto vem ao encontro das seguintes palavras
de Michel Foucault:
A percepção que o homem ocidental tem de seu tempo e de seu espaço deixa aparecer uma estrutura de recusa, a partir da qual denunciamos uma palavra como não sendo linguagem, um gesto como não sendo obra, uma figura como não tendo direito a tomar lugar na história. (foucault, 2000, p. 157).
a desconstrução das instituições e do saber que
sustentam a psiquiatria exigiu a construção de novos
dispositivos, denominados por Franco rotelli (1990a)
como ‘instituição inventada’. Esta necessidade decorre
da mudança do foco do ‘mal obscuro’ (RotElli, 1990B,
p. 91) – os indivíduos recolhidos numa instituição –
para ter como objeto as pessoas em situação de sofri-
mento psíquico. a ‘instituição inventada’ inventa uma
nova maneira de cuidar, a partir de um novo olhar,
sobre um novo objeto. o Museu Bispo do rosário
arte Contemporânea é uma instituição inventada
pelas necessidades e especificidades da luta na cultura.
o foco de sua atuação é a defesa da cidadania plena
da criação artística dos usuários dos serviços de Saúde
Mental (aquino, 2004).
Com outras palavras, o Museu é uma instituição
inventada na dimensão da luta na cultura que tem como
proposta o empenho em prol da reforma Psiquiátrica
da criação artística dos usuários, museus e experiências
com a arte. Se a reforma Psiquiátrica luta pela cidadania
dos usuários e por instituições de cuidados em saúde que
respeitem estes direitos, o museu, por sua vez, é uma
‘instituição inventada’ que luta pela cidadania plena da
criação dos usuários.
Há três observações que ajudam a contextualizar
a Elavi:
• o conceito do Museu Bispo do Rosário Arte
Contemporânea se baseia na crítica ao modelo discipli-
nar de museu que se estrutura e define sobre a coleção de
objetos. a coleção funda o museu disciplinar localizado
em um edifício, o qual funciona como um pan-óptico,
como qualquer instituição disciplinar na qual se dirige
o público a receber passivamente uma narrativa que
tem por base uma história mestra, seja na esfera da arte,
como da história humana ou natural.
Pode-se sintetizar o modelo disciplinar de museu
da seguinte maneira: museu = coleção + edifício +
público.
a crítica a este modelo exigiu do Museu uma nova
definição assentada sobre a criação. a criação artística
é o que possibilita estabelecer uma linha de fuga do
controle do poder psiquiátrico. Como estudou gilles
deleuze (2003) a criação é a resistência por excelência
ao poder, sendo, conseqüentemente, o que funda o
Museu.
Segundo deleuze (2003, p. 4), “existe uma afi-
nidade fundamental entre a obra de arte e o ato de
resistência”. Para ele fazer arte é resistir:
[...] Quando dizemos que ‘criar é resistir’, trata-se de uma afirmação de fato; o mundo não seria o que é se não fosse pela arte, (...) as pessoas não agüentariam mais. (dElEuzE, 2003, p. 5).
a criação pode ocorrer em qualquer lugar denomi-
nado conforme Michel de Certau (2002, p. 202) ‘lugar
praticado’. Esta criação que é realizada no lugar pratica-
do e não mais no edifício sede do museu agencia relações
em ressonância naqueles pontos da rede do tecido social
que entram em contato com a ação de criação do museu.
Com isto de forma abreviada, o modo de funcionamento
do Museu Bispo do rosário arte Contemporânea é:
museu = criação + lugar praticado + rede. a criação é o
elemento que funda o Museu em todo e cada segmento
do seu funcionamento, inclusive na Elavi;
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75aQUINo r.; aQUINo t.F.; aQUINo r. • a Escola livre de artes Visuais do Museu Bispo do rosário arte Contemporânea
• quando se fala em luta contra a psiquia-
tria deve-se levar em consideração a observação de
Foucault, referente à obra de robert Castel: “[...]
a psiquiatria não nasceu no asilo; ela foi, de saída,
imperialista; ela sempre fez parte integrante de um
projeto social global” (foucault, 2002, p. 325).
Esta afirmação ganha maior relevo quando focada
para o fato de que a função de controle das institui-
ções disciplinares tende a se espalhar por todo o corpo
social. Para Foucault,
[...] o esquema pan-óptico, sem se desfazer nem perder nenhuma de suas propriedades, é destinado a se difundir no corpo social; tem por vocação tornar-se aí uma função generalizada. (foucault, 1977, p. 183).
a tendência prevalente é a disseminação das fun-
ções, entre elas o controle, exercidas dentro de cada
instituição disciplinar pela sociedade, exacerbado a
partir de 1945. Com isto, deleuze (1996) denominou
sociedade de controle a nova modalidade do poder de
demarcar o tecido social que se observa cada vez mais
na contemporaneidade. assim, o poder psiquiátrico
de controle circula pelo tecido social.
Na sociedade de controle, sustentar a resistência
através da criação artística é sustentar a própria vida,
pois, “a vida se torna resistência ao poder quando o
poder toma como objeto a vida”. (dElEuzE, 1988, p.
99) Com isto, amplia-se a definição: o Museu Bispo
do rosário arte Contemporânea se estrutura tendo
por base a criação para se colocar como uma estratégia
de resistência ao controle do poder psiquiátrico que
se exprime na cultura;
• a Modernidade foi marcada pela construção
das instituições disciplinares e por uma nova raciona-
lidade ou maneira de correlacionar as palavras e coisas.
Foucault denominou a este arranjo do pensamento
de epistémê. a epistémê da Modernidade, a terceira
e última estudada por Foucault, se alicerçou sobre
o historicismo e o deciframento. o historicismo se
apoiou no darwinismo e reservou ao ‘doente mental’
o lugar do primitivo, arcaico, não-culturalizado e
mais próximo ao animal. o deciframento é a atri-
buição daqueles racionais, adultos, machos, brancos,
europeus, de interpretar o sentido oculto das coisas
e o último segredo dos fatos humanos. a psicanálise
e a etnologia atravessam os saberes da modernidade
(foucault, 1981, p. 396).
a crise da sociedade disciplinar é concomitante
à crise da epistémê da Modernidade. Para george
Yúdice (2004), atualmente na sociedade de controle
vive-se sob uma nova epistémê, a contemporânea, que
é caracterizada pela ultrapassagem do historicismo e
do deciframento:
[...] propor uma quarta epistémê baseada na re-lação entre as palavras e o mundo que resulta das epistémês anteriores – semelhança, representação e historicidade-, mas que, no entanto, as recombina levando em consideração a força constitutiva dos signos. (yúdicE, 2004, p. 53).
Este é o patamar para a apresentação da Elavi,
enquanto setor do Museu que é uma instituição in-
ventada pela reforma Psiquiátrica na crítica do museu
disciplinar e que se afirma como um museu da criação.
a criação organiza e sustenta todos os aspectos do seu
funcionamento: a própria escola livre, as exposições, a
ação educativa, etc. o foco é a luta pela cidadania da
criação dos usuários na cultura. o seu funcionamento
se exerce em sintonia com a sociedade de controle –
enquanto uma estratégia de resistência ao controle
exercido pelo poder psiquiátrico – e também com a
racionalidade contemporânea em contraposição com
a moderna.
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76 aQUINo r.; aQUINo t.F.; aQUINo r. • a Escola livre de artes Visuais do Museu Bispo do rosário arte Contemporânea
A RACIONALIDADE CONTEMPORÂNEA
antonio Negri e Michel Hardt (2000, p. 453-
458) indicam as características da nova racionalidade.
Eles começam por identificar as cinco oposições que
caracterizam a contemporaneidade: (1) criação contra o
limite e a medida; (2) procedimento e processo contra o
mecanismo dedutivo; (3) igualdade contra o privilégio;
(4) entre diversidade e uniformidade e (5) cooperação
contra o comando.
A nova racionalidade da Elavi
criação contra o limite e a medida
É afirmado o caráter ilimitado e desmedido da
potência de criação. Quando a potência cria, cria a si
mesma, alterando todas as relações e colocando-se em
um movimento de ultrapassar os limites e medidas, as
quais, contra o poder da criação, lutam por reduzi-la.
Procedimento e processo contra o mecanismo
dedutivo
trata-se da afirmação da liberdade e do processo
em luta com os enquadramentos externos da norma,
da verdade, da instituição, do saber e da autoridade.
acrescenta-se, entre outros, da instituição e dos saberes
psiquiátricos. É a afirmação da criação de novas singu-
laridades agenciadas pela potência da arte.
Igualdade contra o privilégio
o privilégio, por exemplo, dos técnicos ou do saber
é contraditório ao movimento da potência, ilimitada,
desmedida, não-institucionalizada. o privilégio promo-
ve o bloqueio do processo.
Entre diversidade e uniformidade
decorre logicamente da oposição entre igualdade
e privilégio
cooperação contra o comando
o exercício do comando é a afirmação do consti-
tuído, instituído, normatizado e do uniformizado. ao
contrário, cooperação é inovação. as práticas com a
arte na Elavi rompem com o esquema da racionalidade
moderna. Isso significa estimular a criação artística, sus-
tentar o procedimento, afirmar a igualdade, pressupor
a diversidade e atuar em cooperação. Portanto, surgem
os três eixos de sustentação da Elavi.
Três eixos de sustentação da Elavi
• Efetiva subjunção da concepção de espaço à
concepção de tempo – Hardt e Negri afirmam que “a
potência constituinte rompe o espaço e o transpõe para
o tempo” (haRdt; nEgRi, 2000, p. 439). Esta mudan-
ça, no eixo da temporalidade, implica redimensionar o
referencial de espaço para o de lugar praticado: o tempo
da criação, no presente, é que funda o espaço.
• Continuidade da crise instaurada pela potên-
cia – Implica na valorização do evento da criação e não
do lugar instituído, a Elavi é um lugar praticado pela
criação artística que instaura a crise que é a possibili-
dade de mudança que o acontecimento possibilita. os
acontecimentos ou eventos como define Milton Santos
não se repetem, são singulares: “onde ele se instala, há
mudança” (santos, 2002, p. 146).
a definição da Elavi é ampliada com a idéia de ser
um lugar praticado pela criação artística, que institui a
crise permanente, a crise da criação desmedida, susten-
tando-se assim enquanto uma clínica da desmedida, da
criação permanente a provocar crises, ou seja, mudanças
tanto externas – no ambiente – quanto internas nos
alunos e professores. Esta dinâmica do evento, no caso,
da criação artística, pode ser alcançada quando este
evento está catalisado e ocorre levando-se em contas
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77aQUINo r.; aQUINo t.F.; aQUINo r. • a Escola livre de artes Visuais do Museu Bispo do rosário arte Contemporânea
as cinco oposições já descritas que levam a superar a
racionalidade moderna.
• Mudança da natureza da práxis constitutiva
– Para Hardt e Negri, “sua definição não é dada pela
efetividade do êxito, mas pela ação efetiva no sentido
de tentar sempre um novo êxito” (haRdt; nEgRi, 2000,
p. 440). Na Elavi a práxis é sempre re-proposta. a
potência se afirma em cada evento ou acontecimento,
criando novas relações de tempo e espaço. Isto pode
gerar, em cada nível, novas subjetividades que são pro-
porcionadas pela experimentação repetida. o objeto é
a memória do ato e o importante é a aposta na criação
desmedida através da arte. Na Elavi toma-se a potên-
cia da arte como a possibilidade de criação de novas
subjetividades que resistem ao controle. Fica esclareido
que o processo de afirmação da potência de criação é
mais importante que o produto final – o objeto é a
memória do ato. todo o esforço se dirige à valorização
do ato de criação e não do objeto final. a Elavi não
quer ‘fabricar artistas’, pois estes são valorizados pelos
objetos criados.
a afirmação desta produção, enquanto arte é apoia-
da no fato de que o processo a ser ativado é o da criação
artística, sendo o seu produto, o objeto, de natureza
artística. Isto é atingido, desde que não se interponha
outra lógica, a da razão e do pensamento.
a Escola valoriza a produção artística dos pacientes,
não como objeto artístico ou produto final a ser reconhe-
cido como arte de qualidade e o seu produtor, artista,
mas sim, deve-se valorizar a produção artística, no qual
os usuários se empenham. Pois, nesta produção eles se
fazem, constituindo novas subjetividades, segundo Niet-
zsche: “a ‘obra’, aquela do artista, do filósofo, inventa
em primeiro lugar aquele que a criou, que se supõe que
a tenha criado” (NiEtzschE, s/d, p. 199).
Possibilita-se que os usuários criem o seu fazer
artístico, valorizando a cooperação, sem a sugestão ou
a cobrança de um saber psiquiátrico. Esta produção
não está subjugada em seu nascedouro pelo olhar
interpretativo redutor a outra lógica ou saber. Nem
mesmo à concessão que se faz em arteterapia, quando
se afirma que possibilitam os pacientes à se exprimir
em outra linguagem, mais próxima daquela que pre-
domina no inconsciente, ou seja, por imagens e não
por palavras.
A ELAVI: ÉTICA E FUNDAMENTOS
Um princípio ético: as três metamorfoses
a ilustração do que é a postura ética adotada na
Escola livre pode ser encontrada em Nietzsche (1988, p.
43-44), quando ele menciona as três metamorfoses: do
espírito da suportação (camelo) ao espírito de rebeldia
(leão) e, deste ao espírito de criação (criança). E indica
então qual atitude do espírito que leva verdadeiramente
à criação: é o dizer sim à vida.
o artista é aquele que vê o mundo com o frescor
de uma criança, ou seja, com a total abertura para o
novo, aquele cuja postura não é a de ficar aprisionado
ao “Sim”, tal qual a postura do camelo, à submissão
aos ditames de, por exemplo, uma oficina, em que lhe
seria solicitado que este criasse naquele momento, com
aquelas pessoas, a partir daquele material, em muitas
até, que crie determinada forma de objeto, para tal ou
qual finalidade: a cura; um bazar; uma exposição; para
agradar ao profissional, etc.
a postura de dizer “Sim” o condena ao simulacro e
o afasta da possibilidade de criação, condenando aquele
que a isto se submete a uma falsa identidade, alienado
na submissão ao outro. da mesma forma, a atitude de
afirmar o “Não”, tal qual na postura do leão. Quando
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alguém se coloca nessa postura, sua identidade é cons-
truída em referência contrária a este outro.
a postura ética é levar às últimas conseqüências
a atitude de criar as condições para que as pessoas se
outrem, do verbo outrar, qual seja o exercício da capa-
cidade da pessoa poder vir a ser um outro pelo recurso
da arte. os “outramentos”, ou novas subjetividades de
um tipo distinto daquelas constituídas pela repetição
automatizada de padrões podem se afirmar quando
ocorre um mergulho na criação, quando se afirma a
desmedida da criação artística. denomina-se clínica da
desmedida a clínica ampliada no sentido definido por
Maurício garcia (1996, p. 11) que se calca na criação
artística, pois a arte não tem medida. Se houver medida
não há arte, pois esta é disruptiva por natureza, conforme
afirmou Felix guattari (1986, p. 36).
deve-se estar atento para que não se sucumba à ilu-
são de que o fato de uma determinada oficina produzir
‘produtos’, seria algo interessante sob o ponto de vista
da reforma Psiquiátrica. assim, até mesmo a realização
de uma exposição não deve iludir. deve-se atentar para
o fato de esta determinada oficina ou exposição estar
fabricando ou não falsas identidades, constituindo ou
não falsos selves, mesmo que o de artista. E, refletir se
dinamiza a construção de uma nova possibilidade ou
se está condenada ao passado, reproduzindo a lógica
disciplinar.
Para que a Elavi sustente as condições de afirma-
ção do devir criança, deve-se estar atento para que os
catalisadores também participem criando. Com isto,
é eliminada a distância entre um ‘olhar de fora’ – téc-
nico ou profissional, dotado de um saber artístico ou
de uma verdade psicológica -, no encontro com os
aprendizes.
a atitude dos catalisadores deve estar pautada
pelo recomendado pelo psicanalista Wilfred Bion, ‘sem
memória e sem desejo’. deve-se colocar junto ao aluno
sem ser o portador de nenhum de seus traços biográfi-
cos – sejam de sua história pessoal ou institucional – e
sem nenhuma expectativa direcionada a uma finalidade,
objetivo, intenção ou projeto. o devir criança é o apaga-
mento de qualquer sentimento ou ressentimento prévio
ao processo de criação. trata-se de promover o encontro
da sensibilidade consigo mesma sem a interferência de
nenhum pensamento, nenhum traço de identidade ou
referência de papel.
o catalisador não deve olhar o criador a partir de
nenhuma expectativa: de ser artista ou doente; de conti-
nuar o último trabalho; de criar algo para uma exposição;
de fazer algo para vender; de se colocar em tratamento;
de ser um artista plástico; ou seja, a postura deve ser sem
memória e sem desejo; sem nenhuma referência ao que
passou e sem nenhuma expectativa para o futuro.
o silêncio das emoções não se aplica no caso da
Escola. Vive-se no cotidiano um ruidoso e radical en-
volvimento, principalmente, com o processo de criação.
as relações e os afetos circulam entre as pessoas no
cotidiano das práticas. a intensidade dos afetos entre
os freqüentadores acontece com as características da-
quelas prevalentes dentro de qualquer grupo humano.
É possível definir que o grupo constituído na Elavi é
um grupo homogêneo com todos – alunos e professores
– igualmente irmanados na criação artística. trata-se
de relações transferenciais, sim, como qualquer outra
relação humana.
a relação transferencial não é operacionalizada,
entendida no plano da objetividade das relações
humanas. Nem mesmo se coloca a ressalva de que
numa atividade de arteterapia ou terapia ocupacional
a transferência se desenvolve mediada pela imagem ou
objeto. Na escola, o afeto que catalisa é a paixão de
criar; a captura que a arte agencia em cada um e esta
paixão não deve ser mediada por nenhuma relação
terapêutica ou transferencial.
a atitude de se colocar ‘sem memória e sem desejo’
implica sustentar as questões surgidas e não obstruí-las
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com alguma verdade, respondendo às solicitações ou
oferecendo respostas, promessas e perspectivas. trata-se
de não oferecer respostas às questões e sim sustentar
a indagação. Busca-se sair da ilusão de verdade, que
é o ancoradouro da ciência – falsa proteção de um
saber que lança previsões e que é transcendente – para
se colocar numa relação imanente à sensibilidade.
localizando-se no aqui e agora da criação, sem certe-
zas e verdades, mas com a potência da abertura para
o novo, inesperado, disruptivo, a desmedida, enfim,
a criação artística.
outro aspecto derivado da postura ética é o que
Frieda Fromm-reichmann (1984, p. 27) postula,
referindo-se aos profissionais que atuam na Saúde
Mental, de que o paciente não deva ser uma fonte de
satisfação, realização, segurança para o terapeuta, nem
mesmo nas fantasias.
a aposta é no processo de criação e não nos resul-
tados, benefícios advindos do resultado, uso que vai
haver do resultado, ou na promoção e gratificação dos
profissionais envolvidos. Fromm-reichmann chama a
atenção para a situação em que o profissional inseguro
ou insatisfeito não garanta uma transferência positiva
dos usuários, reforçando laços de admiração e de gra-
tidão, o que estimula uma relação de dependência e
infantilização. Isto deve ser levado em conta, pois se
trabalha com a arte e com produtos que podem vir a
ser valorizados no mercado repercutindo em ganhos
financeiros ou de prestígio.
Enfim, na Escola livre, apostar num devir criança
não se resume a uma recomendação técnica. Mais que
isto: trata-se de um princípio ético, visto que se articula
com uma postura básica de aposta radical na arte e na
criação artística. É a afirmação da vontade de alinhar-
se numa postura contra o controle que possa ocorrer
mesmo em dispositivos extramuros, pois, estas podem
reproduzir com a mesma intensidade uma relação de na-
tureza asilar, como destacou deleuze (1996, p. 220).
Fundamento primeiro: por uma estética não-
aristotélica
Indica-se sumariamente que o Museu se insere na
luta contra o paradigma clássico da estética concebida
segundo os mesmos princípios que fundamentam a
ciência para aristóteles, uma lógica do geral; algo que
pode ser entendido e reproduzido por qualquer um,
desde que leve em conta as condições de emergência do
fenômeno e que se assenta na possibilidade de se afirmar
os princípios gerais segundo os quais, dado efeito se ex-
ternaliza. a estética foi concebida tal qual uma ciência.
a arte, ao contrário, é de natureza singular e individual.
Fernando Pessoa (1986, p. 240) sistematizou a crítica
a esta arte aristotélica, caracterizando que esta tem por
finalidade a beleza. também indica os princípios que
caracterizam uma estética não-aristotélica, apontando
para a idéia de força em contraposição a de beleza. Na
Elavi não interessa uma estética – aristotélica – que se
baseie na noção de beleza, que vem ao lado da de catarse,
contemplação, acomodação ou adaptação.
Fundamento segundo: a loucura é ausência de obra
a Elavi é apoiada no ensinamento de Foucault
(2000, p. 156), que evidencia a relação de exclusão: a
loucura é ‘a ausência de obra’ (foucault, 2000, p. 156).
deleuze (1990) desenvolveu a seguinte tese, o paciente
quando está criando se coloca num devir artista e clinica
o mundo. Neste momento, o criador se coloca numa
postura contrária da compulsão à repetição, prevalente
na doença.
as práticas da Elavi estimulam o processo criativo
e através deste possibilitam a construção de novas subje-
tividades. Isto leva a um processo inverso ao da loucura,
enquanto a ausência de obra entrega à repetição do mesmo,
sem diferenciação, sem a afirmação da diferença. a saúde é
entendida como o fluir do processo de criação e a doença
como a interrupção deste processo. o objeto final a que se
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80 aQUINo r.; aQUINo t.F.; aQUINo r. • a Escola livre de artes Visuais do Museu Bispo do rosário arte Contemporânea
atinge é a memória do ato de criação. o que importa de
fato é a criação de novas possibilidades para o criador.
Fundamento terceiro: o objeto é a memória do ato
a Elavi investe no processo de criação artística:
não importa o objeto ou o produto final originado.
Valoriza-se o processo de criação, sendo entendido o
objeto como a memória do ato.
A prática na Elavi: sumário
a – alunos: usuários, técnicos, artistas e co-
munidade.
B – artistas como catalisadores: artistas oriundos
do campo da Saúde Mental ou do campo artístico
conduzem os trabalhos. Estes são os propositores ou
professores, denominados catalisadores. o catalisa-
dor, tal qual na reação química, é o agente que cria
as condições para que determinada reação química se
processe. Ele não está presente, nem no início nem
no resultado do processo, sua ação é a de facilitar
para que a reação ocorra, de forma mais rápida, mais
eficiente. o professor não ‘ensina a fazer arte’, mas
sim se coloca como exemplo e estimula a atitude da
criação.
C – Fazer junto: todos os envolvidos nas práticas
devem fazer juntos as mesmas atividades para evitar
o olhar controlador ou decifrador. rompe-se com a
prática de deciframento da criação sob qualquer teoria,
escola ou autor.
d – diferentes linguagens: diferentes linguagens
facilitam a livre escolha.
E – Saídas semanais: os alunos são convidados a
circularem pelos espaços sociais consagrados à arte, a
conhecer outros artistas e seus ateliês, a receberem a
visita de outros artistas interessados em intercâmbio e
troca de experiências.
F – os produtos são deles: o produto final perten-
ce a seus criadores. os usuários podem dispor de sua
criação.
g – Eles explicam: os autores ou criadores pro-
duzem discursividade sobre suas obras, recebem os
visitantes e comentam suas obras.
H – Exibir, segundo as correntes: Expõem-se as
obras segundo as correntes reconhecidas na História
da arte. o Museu combate o uso das denominações
que este segmento da criação humana recebeu no
campo psiquiátrico, que as toma como sintoma de
doença mental: arte psicótica, psicopatológica, louca,
teratológica, degenerada ou imagem do inconsciente.
da mesma forma, combate as denominações que
surgiram no campo artístico conferindo minoridade
social à estas obras: arte virgem, bruta, outside art
ou folk art.
I – Busca do estilo: Busca-se criar condições para
a constituição de novas subjetividades, a afirmação do
estilo de cada um, numa direção contrária à da psiquia-
tria, de tratamento e cura.
CONCLUSÕES
definir o Museu Bispo do rosário arte Con-
temporânea, como um museu de criação, implica
privilegiar a criação artística na exposição, na ação
educativa, na Elavi, entre outros. São criadas as
condições para que o processo da criação se expresse
em seu mais elevado grau, na forma mais radical da
arte, numa perspectiva que denominada ‘Clínica da
desmedida’, posto que se operacionalize a arte sem
amarras numa postura de se contrapor à lógica psi-
quiátrica, procurando através da criação artística, a
criação de novas subjetividades como resistência ao
controle do poder psiquiátrico.
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Na Elavi, a criação artística não é usada enquanto
terapia e se rompe com o deciframento da obra de arte.
Quando se fala em cura, tratamento, terapia e outros a
partir do referencial teórico da psiquiatria, diz-se: a Elavi
não cura, não trata, não é terapia. Porém, cura, trata, e age
no corpo teórico da psiquiatria: a arte contra a ciência. a
criação é catalisada exclusivamente por artistas.
Praticar oficinas com a arte pode implicar na
repetição da lógica disciplinar, a qual fundou o saber
psiquiátrico e o asilo. Nesse caso, se lança mão da arte
– domesticada –, como já se lançou mão da psicanálise,
dos grupos, das comunidades terapêuticas, do lazer e
do trabalho.
a Elavi permite a afirmação da obra em contra-
posição à loucura, ao criar as condições pra que estes
gestos sejam reconhecidos, enquanto obra e estas falas
são entendidas como linguagem.
a prática clínica da Escola livre é inserida no
campo em construção da clínica ampliada que interessa
à reforma Psiquiátrica, no qual o eixo da cidadania é
um dos referenciais e o alvo é o indivíduo em situação
de sofrimento psíquico.
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recebido: abr./2008
aprovado: nov./2008
artIgo orIgINal / ORIgINAL ARTIcLE 83
Saúde em Debate, rio de Janeiro. v. 32, n. 78/79/80, p. 83-91, jan./dez. 2008
Saúde Mental e cultura: que cultura?Mental Health and culture: what culture?
“Em toda fronteira há arames rígidos e arames caídos”(canclini, Culturas híbridas, p. 349)
RESUMO A partir de uma crítica às perspectivas mentalistas fortemente presentes
entre os dispositivos da Saúde Mental, busca-se valorizar a articulação da Saúde
Mental coletiva com a cultura. Entretanto, questiona-se sobre que concepção de
cultura estaria perpassando com justeza os avanços no campo da Saúde Mental
coletiva. Há conceituações de cultura que restabelecem posições reacionárias e,
enquanto tais findam por se mostrar condizentes com o reforço das concepções
mentalistas na Saúde Mental, o que seria um retrocesso para posturas excludentes.
Porém, mostram-se mais proveitosas as concepções pós-estruturalistas de cultura.
Para tal, são expostas linhas gerais dos conceitos de descoleção e hibridação a partir
das análises sobre a cultura empreendidas por canclini.
PALAVRAS-CHAVE: Psicanálise; Psicologia clínica; Saúde Mental
ABSTRACT From a critical point of view to the mental perspectives, strongly
operating between devices of Mental Health, there has been an attempt to
searching the joint of collective Mental Health with the culture. However, it is
put in question what conception of culture would be supporting the advances in
the field of the collective Mental Health. There are culture conceptualizations that
reestablish reactionary positions and, therefore, are combined with traditional
positions in the Mental Health, what would be a retrocession to the excluding
postures. However, the conceptions after-critical of culture are more beneficial.
The general lines of descollect concepts and hibridation from the analyses on the
culture are herein displayed in the words of canclini.
KEYWORDS: Psychoanalysis; clinical psychology; Mental Health
alexandre S imões ribeiro 1
1 Psicanalista; doutor em filosofia pela
Universidade Federal de Minas gerais
(UFMg); professor da Universidade do
Estado de Minas gerais (UEMg) no
campus da Fundação Educacional de
divinópolis (funEdi).
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RIBEIRO, A.S. • Saúde Mental e cultura: que cultura?
SALAS-AO-LADO
Nos últimos dez ou 20 anos, vem se percebendo
um interessante deslocamento nas rotinas e desafios que
compõem o campo da Saúde Mental no Brasil. Se for-
mos mais rigorosos, poderemos encontrar circunstâncias
propulsoras desse deslocamento em uma temporalidade
bem maior do que os dez ou 20 anos apontados. Contu-
do, percebe-se que, na última década, aquilo que ainda
era um tanto quanto isolado, às vezes disperso, discreto
e, em alguns casos, incipiente e amórfico se impôs de
tal maneira que, atualmente, ultrapassa limites setoriais,
fronteiras profissionais e delimitações epistemológicas do
conhecimento e do fazer para se mostrar mais enredado
e consistente.
aliás, como é sugerido neste artigo, parece que as
iniciativas de vanguarda presentes na Saúde Mental po-
deriam usufruir muito dos debates e circunstâncias vindos
de outros campos e problemáticas, não só relacionados à
doença, loucura, normalidade versus anormalidade. Em
suma, parece-me que uma forma de aprimoramento na
saúde mental, para além de aparatos adaptacionistas ou
normalizadores e taxonômicos, pode ser obtida se ousar-
mos visitar, por assim dizer, a ‘sala-ao-lado’.
Uma dessas salas-ao-lado, que vem apresentando
potentes desconstruções e agudas complexidades, é pre-
cisamente a que se mostra sensível às considerações pós-
estruturalistas acerca da cultura. tais circunstâncias e
resensibilização dos olhares iniciaram-se, de certa forma,
com a tradição inglesa dos Estudos Culturais (cf. silva,
2004): era preciso pensar o que vinha a ser educação,
conhecimento e cultura face às novas condições dos
trabalhadores no mundo pós-guerra, demarcado pela
bipolaridade de um globo dividido por dois sistemas
de produção antagônicos. Um pouco mais adiante no
tempo, tudo isso se torna agudo, pois a esse cenário
incorporam-se os fenômenos decorrentes da mobilidade
das fronteiras (às vezes, com efeitos devastadores para as
pessoas mais diretamente envolvidas nestas questões), ou
seja, os fenômenos oriundos de um mundo pós-colonial
em que a presença e a produção de diferenças, bem como
a diversidade de identidades (o louco, a mulher, o negro,
o africano, o sul-americano etc.), colocam em derrocada
olhares e fazeres até então aparentemente estáveis e que
garantiam a verdade, a ordem e o futuro.
É justo sublinhar, porém, a necessária discussão
acerca da loucura (em especial) e da Saúde Mental (em
geral) de maneira não restrita às especialidades (a iden-
tidade-psicólogo, a identidade-médico, a identidade-
família etc.) que se voltam, em tese, para tais temas, já
devidamente abordada por alguns autores (lobosquE,
2001; amaRantE, 2003). de certa forma, essa parece ser
a tônica difusa, mas sempre presente, na abordagem do
modo psicossocial de atenção à Saúde Mental (costa-
Rosa; luzio; yasui, 2003).
Certamente, a articulação das questões suscitadas
pelos caminhos da loucura (em todas as suas formas) em
relação à cultura tem como repercussão a produção de
um novo tom ou ânimo e, até mesmo, esperança em meio
à Saúde Mental. E isso, por si só, já é bastante louvável.
Contudo, se não nos indagarmos minimamente acerca do
que se entende por ‘cultura’, não conseguiremos ir além de
uma extravagante idolatria do ‘até-então-marginal’ (sob o
escopo de um ideal de compensação ou reparação sociais)
ou de uma frágil ética da tolerância, que nos conduz a
acolher, suportar e tolerar a diferença (por exemplo, sob
a forma do louco). ora, se há de fato uma possibilidade
e o desejo de se fazer uma transformação no campo da
Saúde Mental que não resulte em niilismo ou em uma
hierarquização disfarçada (‘somos tão superiores que acei-
tamos a diferença!’), trata-se de se produzir a diferença e
não exatamente aceitá-la piedosamente. Em suma,
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RIBEIRO, A.S. • Saúde Mental e cultura: que cultura?
[...] procuramos deixar claro desde o início que o projeto antimanicomial não se reduz a reformas assistenciais. Por eficazes que sejam, as reformas no âmbito da assistência só adquirem um caráter trans-formador quando se articulam com uma intervenção na cultura, tendo a recriação das idéias sobre a figura do louco ao mesmo tempo como objetivo e efeito de sua implementação. (lobosquE, 2001, p. 30).
Mas é vital estarmos atentos para a seguinte pos-
sibilidade:
O conceito de cultura é profundamente reacionário. É uma maneira de separar atividades semióticas (atividades de orientação no mundo social e cósmico) em esferas às quais os homens são remetidos. Tais ati-vidades, assim isoladas, são padronizadas, instituídas potencial ou realmente e capitalizadas para o modo de semiotização dominante - ou seja, simplesmente cortadas de suas realidades políticas. (guattaRi; RolniK, 2000, p. 15).
ou ainda:
Atrás da falsa democracia da cultura continuam a se instaurar – de modo completamente subjacente – os mesmos sistemas de segregação a partir de uma cate-goria geral da cultura. Os Ministros da cultura e os especialistas dos equipamentos culturais, nessa perspec-tiva modernista, declaram não pretender qualificar socialmente os consumidores dos objetos culturais, mas apenas difundir cultura num determinado campo social, que funcionaria segundo a lei de liberdade de trocas. No entanto, o que se omite aqui é que o campo social que recebe cultura não é homogêneo. (guattaRi; RolniK, 2000, p. 20).
O deslocamento
Qual seria o deslocamento que, em tese, justificaria
a freqüentação de salas-ao-lado? trata-se da migração de
uma concepção de clínica e de todos os seus aparatos
calcados em prerrogativas mentalistas para uma perspec-
tiva que, em nítido contraste com aquela, apresentar-
se-ia mais porosa, aberta e extensiva, mas não por isso
isenta de rigor e, muito menos, de vigor. reflexões
desenvolvidas entre nós por Jairo goldberg (1992),
Paulo amarante (2003), abílio Costa-rosa (2003),
ana Pitta (1994), Joel Birman (2005) e muitos outros,
certamente influenciados por uma série de movimentos,
tendências e suspeitas deflagradas por cenários que se
impuseram no período pós anos 1950, em muitos países,
apresentam-se como relevos distintos, mas integrantes
de um mesmo território; território este que já coloca em
xeque a própria noção enrijecida de território, de espaço
com fronteiras discerníveis e de identidade fundante (por
conseguinte, de diferença). ao articular essas circunstân-
cias, promovedoras de descentramentos, com o rápido
quadro que cheguei a ilustrar acerca da possibilidade de
se freqüentar salas-ao-lado, indagaríamos: quais são as
possibilidades de intervenção em Saúde Mental em um
mundo pós-colonial?
A esfera e a clínica estrita
Principalmente através dos diversos discursos e
ações que compõem a psicologia, algo se impôs em
nossos imaginários (e digo isto sem desconhecer a
amplitude desse campo, bem como a larga, e às vezes
discrepante, variedade de teorias que aí se apresentam
oficialmente desde a segunda metade do século 19): a
apreensão do psíquico como uma interioridade, como
algo que se apresenta como posse individualizada e,
em contrapartida, demarcadora de uma imprescindível
marca individualizante e, por isso, identitária.
o psíquico, como um emaranhado de traços, memó-
rias, fantasias, idéias e desejos privados, nos seduz há tem-
pos, fomentando nossos imaginários e adensando discursos
e ações que extrapolam de forma marcante o campo da
psicologia, ainda que sempre porte sua marca e presença
maiores: a psicologização. a constituição de identidades
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RIBEIRO, A.S. • Saúde Mental e cultura: que cultura?
calcadas em atributos e afetações privados é uma decorrên-
cia direta desse homo psychologicus, finamente construído
ao longo da modernidade e aprimorado em um mundo
industrializado. Vejam como é recorrente, por exemplo, a
idéia de Freud (a princípio, um perspicaz anti-mentalista)
enquanto descobridor do inconsciente. tão recorrente e
homogênea é essa imagem às prerrogativas do mentalismo
que fazemos dela uma marca de cientificidade (no sentido
de episteme, ou seja, saber articulado a uma coerência do
discurso) e caução das ações do psicanalista. Porém, uma
leitura mais atenta e aberta às curvaturas internas do que
Freud nos propôs pode verificar que a coisa mais estranha
que poderia lhe ser imputada é, precisamente, a condição
de ele ter sido o descobridor de algo que até então escapava
aos outros. Mas, para tanto, é preciso nos desvencilharmos
do seqüestro constante e naturalizado que nos traz uma
espécie de ‘servidão voluntária’ para, então, retomar a
incômoda expressão de la Boétie (1999). Essa servidão,
que implica em um curioso seqüestro, consubstancia-se
em mentalismo.
todavia, é justo frisar que a noção de interioridade
psicológica (e a operação psicologizante) encontra, an-
tes mesmo do estabelecimento inaugural do corpus da
psicologia a partir da segunda metade do século 19, seu
rastro em Santo agostinho e em suas reflexões confes-
sionais. a partir de outro ângulo, podemos notar que
com descartes (1596-1650), a interioridade é elevada
a uma dimensão que, em muito, convirá à instrumen-
talização da razão, ou seja, a esta localização da razão
como ferramenta que moverá, doravante, o mundo.
aliás, essa imagem da mobilidade do mundo é utilizada
pelo próprio autor:
Arquimedes, para tirar o globo terrestre de seu ligar e transportá-lo para outra parte, não pedia nada mais, exceto um ponto que fosse fixo e seguro. Assim, terei o direito de conceber altas esperanças, se for bastante feliz para encontrar somente uma coisa que seja certa e indubitável. (dEscaRtEs, 1979, p. 91).
Para continuarmos a localizar grandes marcos e
momentos de inflexão que ainda hoje se impõem a
nós todos, contudo, não poderíamos nos descuidar de
Montaigne que possibilitou, com Ensaios e o tom que
ali se produziu, a ampliação da prática da introspec-
ção ao leitor comum como via de prospecção de uma
idiossincrasia enigmática. Está claro, contudo, que
Montaigne (1533-1592) não preconizou, nesse espaço,
o universal e o apodíctico, supostamente inscritos no
homem, debruçando-se sobre as opiniões, os costumes e
os dogmas de sua época, sensível à diversidade, ele soube
matricialmente chamar atenção para um caminho que
se abriu nas margens da filosofia, da literatura e da ‘fala-
de-si’ para o outro do externo, do dado a ver: o nosso
interior. a notória frase de Montaigne, “o que sou eu
sou para mim mesmo importa mais do que eu significo
para os outros” (1991, p. 47), ilustra precisamente a
dimensão que aí se inaugurou, não só em Montaigne
ou por ele, mas em seu tempo, desde então.
a ampliação desse processo para aqueles que nem
leitores eram, já que ele moldou imaginários e confor-
mou uma cultura (que, erroneamente, toma-se como
erudita) foi provocada, sob outra via, por Shakespe-
are que, segundo Harold Bloom (1995), nos levou a
reconhecermo-nos como dominados por uma profun-
didade obscura e insondável e, portanto, que nos levou
a entreouvir-nos.
o projeto de dominação, discernimento e ades-
tramento desse insondável não está em Shakespeare;
sejamos justos, pois ele privilegia perspicazmente o
paradoxo, o oxímoro e a fugacidade como poucos, desde
então. Ele soube nos interiorizar possibilitando que, ao
mesmo tempo, nos descompletássemos e transformás-
semos. a colonização do psíquico interiorizado foi, a
despeito disso, uma decorrência da modernidade.
Curiosamente, debates que parecem ser bipolari-
zados, tal qual o estabelecido entre, as múltiplas escolas
materialistas (hoje, significativamente reerguidas com
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o respaldo dos diversos organicismos e marcadamente
paramentadas de um efeito de cientificidade espetacu-
larizadora) e as escolas introspeccionistas firmam-se, ao
que tudo indica, em um mesmo ponto arquimediano:
a posse (podendo ou não passar por desenvolvimentos,
regressões, etapas etc.) de uma essência que demarcaria
o espaço mental e o espaço do mental. a própria idéia
de mente ou de aparelho psíquico, na maioria das vezes,
é um corolário dessas perspectivas.
Para se opor a isso, uma boa parcela da filosofia,
sobretudo a anglo-saxã declaradamente influenciada por
Wittgenstein, plasmou uma crítica que denunciava o
‘fantasma na máquina’ (para retomarmos o tropo pro-
posto por gilbert ryle em 1949, em O conceito de mente;
cf. Bouveresse, 1987) a título de patrocinador do mito
da interioridade. Mas sabemos também que esta crítica,
tendo trazido de início uma espécie de pharmakon aos
excessos essencialistas, acabou por solidificar uma certa,
e nefasta, reiteração do pragmatismo no campo teórico
e em muitas práticas, enclausurando-nos curiosamente
em outra forma de essencialismo.
Certamente, há razões para que essa imagem da
mente como espaço internalizado (ou locus privado) seja
tão atraente e, às vezes, até mesmo se imponha como
óbvia, de forma a não haver outra maneira de se falar em
psiquismo, subjetividade e clínica senão sob esta óptica,
ou na tentativa desesperada de se desvencilhar da mesma,
adotar um trajeto diametralmente oposto que resultaria
em uma forma de behaviorismo radical.
o estabelecimento de espaços a serem conquistados,
demarcados e apreendidos em sua totalidade é uma das
importantes decorrências da razão instrumental e da mo-
dernidade. Surgindo o indivíduo como mola-propulsora,
produto e processo dessa cena, conforme dumont (1985),
restava apenas categorizar, demarcar e apreender o espaço
interior hipostasiado sob a forma de mente.
Esse imaginário que promulga a detenção privada e,
em extremo, solipsista, de uma substância-espaço mental
é tão impregnante que nem mesmo uma apreensão da
psicanálise, como já cheguei a sinalizar, conseguiu se des-
vencilhar inteiramente dela. Mesmo a densa afirmação
freudiana, proferida ao menos de três formas explícitas
ao longo de sua obra, e ecoada a cada circunstância
clínica que levasse o mesmo Freud a sempre reconstruir
a posição do psicanalista – “o eu não é senhor em sua
própria morada” (1976, p. 178) – não conseguiu le-
vantar barreiras densas à indexação da psicanálise a essa
ótica esférica acerca de nós mesmos.
Ótica esférica de nós mesmos. o que isso significa?
Essa organização que nos conduz a um pathos dicotô-
mico: dentro-fora, sujeito-objeto etc. Nota-se, pois, que
as esferas à semelhança do que guimarães rosa (1988)
propõe acerca dos espelhos1, são muitas.
Quão comum é, entre psicanalistas, professores e
alunos de psicologia e o senso-comum, presenciarmos
a postulação do inconsciente menos como desconti-
nuidade e mais como conteúdo oculto, menos como
‘impossibilidade de totalização’ e mais como duplo que,
substancialmente, me habita?
Essas localizações sempre comportam efeitos clíni-
cos de grande envergadura. Em companhia de Foucault,
somos levados a compreender que na passagem do sé-
culo 18 para o 19, a medicina deu um salto que trouxe
implicações agudas que ultrapassaram em muito seus
espaços mais visíveis de operação. Instituiu-se então a
clínica médica moderna e foi a partir daí que muitos
outros campos obtiveram seus delineamentos. tornou-se
possível, a partir da medicina, amparada principalmente
pelo método anátomo-patológico, estabelecer um saber
sobre o individual mediado por seu sofrimento, a come-
çar pela instalação do mesmo em um corpo que já não
se contém: fisiologia, embriologia, anatomia e, por fim,
1Conto O espelho (Rosa, 1988, p. 65.)
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genética embaralhadas, mas convidando ao saber. Saber
este que não mais se volta para o estudo das doenças
tomadas como realidade em si, mas como específicas a
quem é afetado por elas. a clínica tornou possível uma
episteme do particular.
o passo seguinte, no campo das psicologias, foi
conectar esse aparato ao lugar da mente e engendrar, as-
sim, a clínica do psíquico. dessa forma, a clínica pôde se
sentir inteiramente à vontade com sua própria linhagem
etimológica, fazendo com que o ‘klinos’ implicasse em
um reclinar-se hierarquicamente sob outro que estivesse
abaixo, deitado, recolhido em sua profundidade.
A dobra da esfera
Pois bem, o deslocamento ao qual me referi no
início desse texto tem íntima relação com o afrouxa-
mento, a derrocada desse espaço esférico, desse locus
mental. Na atualidade, começamos a ser atravessados
tanto para o melhor quanto para o pior, por um
outro pathos: não mais cabem tão hegemonicamente
narrativas sobre nós mesmos, bem como sobre os fe-
nômenos contemporâneos, que partam de perspectivas
solipsistas. o solipsista é aquele que nos propõe que
‘meu mundo é meu mundo’, tamanho o compromisso
com essências, apriorismos e categorias universais que
independem da história e da política, ou seja, que não
se inscrevem em e através de processos contestados.
Solipso, ele segue sua rota hedonista apresentando-se
como a medida da vida.
apresento a hipótese de que a crescente reflexão,
ação e interlocução que vêm se dando não mais na Saúde
Mental enquanto espaço bem demarcado, mas na ‘Saúde
Mental coletiva’ como espaço poroso e afeito a uma
constante reterritorialização do psíquico, não seria pos-
sível sem que se instale uma sincronicidade entre esses
processos e as reterritorializações implicadas nos estudos
voltados à cultura, desde um viés antiessencialista.
Mas, muitas vezes, o avesso do interior pode nos con-
duzir a uma superfície ou exterioridade que insiste em se
contrapor àquela mesma interiorização, em uma espécie de
platonismo às avessas. Não é a essas paragens que lançamos
o nosso olhar, na busca de uma possível mitigação quando
não-desconstrução do mito da interioridade. Compreendo
que um psiquismo que se coloca no ‘entre-dois’ e não exa-
tamente em um in ou out seria uma rota viável e oblíqua
aos poderes dos discursos essencialistas.
Porém, sobretudo a partir da performática concilia-
ção de mitos cientificistas (talvez o maior de todos seja
a possibilidade de a ciência, através de uma englobante
parafernália tecnológica, scannear o espaço) com os
atuais modos de produção, circulação e consumo de
bens (rapidamente chamados de globalização), temos
a inundação de explicações e imagens fisicalistas do
funcionamento da vida em todos os seus aspectos e,
em especial, de nosso pathos. a exacerbação do espaço
individual, e não mais opaco ao organismo, colocou o
sujeito (ainda sobremaneira hipostasiado) na pele.
Benilton Bezerra Júnior (2002) argumenta perspi-
cazmente a forma como palavras e processos demarca-
dores de alguns aspectos de nossa condição, tais como
tristeza, desencanto, angústia e percalços da vida, deram
lugar a expressões mais abertas à técnica, à correção e à
adaptação, tais como ‘depressão’, ‘distimia’, ‘síndrome
do pânico’, ‘ansiedade’ e ‘afetivo-bipolar’. Nitidamente,
temos o mercado aberto a todos os ‘especialistas do bem-
estar’ que buscam um patamar de qualidade total, versa-
tilidade e assepsia do psiquismo. Eis aqui um fantasma
que, ao sair da máquina, assombra a Saúde Mental.
o mal-estar ganha, pois, uma visibilidade per-
formática (e as terapêuticas, idem). Nas palavras de
Benilton Bezerra (2002, p. 235):
Se na cultura do psicológico e da intimidade o sofri-mento era experimentado como conflito interior ou como choque entre aspirações e desejos reprimidos e as
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RIBEIRO, A.S. • Saúde Mental e cultura: que cultura?
regras rígidas das convenções sociais, hoje o quadro é outro. Na cultura das sensações e do espetáculo, o mal-estar tende a se situar no campo da performance física ou mental falha, muito mais que em uma interiori-dade enigmática que causa estranheza. Os quadros sintomáticos prevalentes parecem atestar isso: fenô-menos aditivos (incapacidade de restringir ou adiar a obtenção de satisfação, que se torna compulsiva pela via das drogas ilícitas, dos medicamentos, do consumo, da ginástica e do sexo), transtornos vinculados à ima-gem ou á experiência do corpo (bulimias, anorexias, ataques de pânico), depressões menores e distimias (ausência de desejo, motivação, empenho).
SAúDE MENTAL COLETIVA E CULTURA:
ENTRANDO E SAINDO DA SALA-AO-LADO
Uma das características mais marcantes do campo
da Saúde Mental coletiva, bem como de todas as possi-
bilidades de afetação que ali se colocam não mais sob a
primazia do mentalismo, mas em suas clivagens, é que
as práticas não seguem protocolos, estruturas, mapas
rígidos e previamente estabelecidos. Em relação ao mo-
delo de clínica calcado no mentalismo essencialista, diria
que no modo psicossocial os conceitos, ações, perguntas
e dúvidas estão em estado de ‘descoleção’, isto é, estão
desterritorializados quando cotejados com a situação
anterior. descolecionar leva a ‘deslocar’, ‘decolar’, ‘des-
colar’ e, muitas vezes, a ‘des-escolarizar’.
Na Saúde Mental coletiva, portanto, presenciamos
muitas práticas à espera de uma conceituação, bem como
de novos modos de conceituar e pensar. Conceituação,
aqui, não implica em um aparato teórico que conduza
à representação do real em suas minúcias para melhor
compreendê-lo e, então, submetê-lo a um poder de
dominação. Comporta, sim, a possibilidade constante
de tornar a novidade algo transmissível.
Compreendo que os profissionais atuantes na área
da Saúde Mental possam obter uma interessante dobra
em seus tecnicismos realizando visitas à sala-ao-lado.
Um empolgante espaço de desconstrução de categorias
e perspectivas essencialistas vem sendo empreendido
nas problematizações acerca da cultura. dentre diversas
possibilidades que participam de um amplo quadro (que
poderíamos denominar pós-crítico ou pós-estruturalista
a título de uma nomeação um tanto quanto precária),
encontramos a argumentação de Nestor garcía Canclini
em seu livro culturas híbridas: estratégias para entrar e
sair da modernidade.
ali, Canclini empreende uma lúcida crítica em rela-
ção ao tratamento dicotômico e essencialista reservado,
classicamente, à cultura (suas produções, seus processos,
suas lógicas e demarcações), mas, notemos bem: não só
à cultura. recorrendo a dois conceitos mutuamente im-
plicados – os conceitos de ‘hibridação’ e de ‘descoleção’
– Canclini procura argumentar que não mais podemos
compreender e lidar com a cultura a partir de dualismos
(por exemplo, cultura erudita/cultura popular, cultura
massiva/cultura popular, hegemônico/subalterno,
tradicional/moderno etc.) e, muito menos, a partir da
suposta segurança dos lugares em que ela é produzida
ou, a princípio, contida. trata-se, por conseguinte, de
se desomogeneizar a cultura.
Nesse sentido, Canclini apresenta uma forte argu-
mentação que questiona o estatuto de locais destinados
à cultura e à preservação da história ou do patrimônio
cultural de um povo, uma etnia ou grupo, tal como se
dá usualmente com os museus e os monumentos.
ao falar em hibridação, isto é, a constante articu-
lação entre elementos supostamente puros e discretos,
promovendo outros elementos, estruturas, processos
que apagam as certezas em relação às fronteiras de-
marcadoras, conforme canclini (2006, pxix), somos
conduzidos a rever os lugares das coisas e dos processos.
Segundo Canclini:
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RIBEIRO, A.S. • Saúde Mental e cultura: que cultura?
O desenvolvimento moderno tentou distribuir os objetos e os signos em lugares específicos: as mercadorias de uso atual nas lojas, os objetos do passado em museus de his-tória, os que pretendem valer por seu sentido estético em museus de arte. Ao mesmo tempo, as mensagens emitidas pelas mercadorias, pelas obras históricas e artísticas, e que indicam como usa-las, circulam, pelas escolas e pelos meios massivos de comunicações. Uma classificação rigorosa das coisas, e das linguagens que falam delas, sustém a organização sistemática dos espaços sociais em que devem ser consumidos. Essa ordem estrutura a vida dos consumidores e prescreve comportamentos e modos de percepção adequados a cada situação2. (2006, p. 300).
a descoleção é uma decorrência da hibridação e,
enquanto tal, implica em repensar os modos e usos dos
poderes:
A partir do que viemos analisando, uma questão se torna fundamental: a reorganização cultural do poder. Trata-se de analisar quais são as conseqüências políti-cas ao passar de uma concepção vertical e bipolar para outra descentralizada, multideterminada, das relações sociopolítica. (canclini, 2006, p. 345).
talvez tivesse valia a amplificação de uma descole-
ção na Saúde Mental. Certamente, muitos daqueles que
por aí transitam e produzem seus modos de subjetivação
já o sabem ou já o fazem. Entendo que seja aí o lugar
em que a psicanálise ainda pode ter sua chance, não
bem como técnica de revelação do incógnito ou arte
interpretativa que busque esclarecer, mas como ação que
instaura descontinuidades e, portanto, devires. tal como
convidam as palavras de Benilton Bezerra:
O que determinará o lugar da psicanálise no cenário social das próximas décadas será sua capacidade de atualizar aquilo que está na origem da sua clínica: a sustentação de um campo de prática que põe qualquer tipo de experiência humana sob o crivo da interrogação. (2002, p. 238).
R E F E R Ê N C I A S
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Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 83-91, jan./dez. 2008
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recebido: abr./2008
aprovado: jun./2008
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 92-98, jan./dez. 2008
artIgo orIgINal / ORIgINAL ARTIcLE92
a dimensão sociocultural da reforma Psiquiátrica e a
Companhia Experimental Mu...dançaThe socio-cultural side of Psychiatric Reform and the companhia
Experimental Mu...dança
RESUMO Este artigo trata dos percursos da construção coletiva do espetáculo
de dança-teatro das loucuras Da História, pela companhia Experimental Mu...
Dança, no município de Diadema entre 1999 e 2001, e seus desdobramentos
até 2005. A companhia Experimental Mu...Dança é um grupo de dança-teatro
formado em 1999 por pessoas com grave sofrimento psíquico e militantes do
Movimento da Luta Antimanicomial. Esse espetáculo tem 80 minutos de duração
divididos em 16 coreografias criadas coletivamente, a partir de dois eixos definidos
pelos participantes: como o grupo vivenciou o processo de enlouquecimento e o
conceito de loucura. A partir da interface arte-loucura, essas experiências são
definidas como criação de um espaço de participação política.
PALAVRAS-CHAVE: Transtorno mental; Aceitação social; Política social.
ABSTRACT This paper presents the construction trajectory of the dance-theater
show das loucuras Da História created by the Experimental company Mu...
Dança, in the city of Diadema, São Paulo, Brazil, between 1999 and 2001, as
well as its development until 2005. This is a dancing-theater company created in
1999 by people with psychiatric disorders and militants of the antimanicomial
movement. The referred show has 80 minutes and presents 16 choreographies
that have been developed by the integrants of the group, based on two subjects:
how the group experienced the process of becoming “crazy” and the concept of
craziness. Supported by the art/craziness interface, these experiences are defined
as the creation of a space with political participation.
KEYWORDS: Mental disorder; Social desirability; Public policy.
Myrna Coelho 1
1 Psicóloga; coreógrafa; mestre em
Estética e História da arte pela
Universidade de São Paulo (USP);
professora do curso de Psicologia da
Universidade Nove de Julho (uninovE);
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Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 92-98, jan./dez. 2008
CoElHo, M. • a dimensão sociocultural da reforma Psiquiátrica e a Companhia Experimental Mu...dança
I N T R O D U ç Ã O
o presente trabalho tem por objetivo discutir um
dos aspectos principais da reforma Psiquiátrica brasi-
leira: a dimensão sociocultural.
Segundo amarante (2007, p. 73), a dimensão
‘sociocultural’ expressa o objetivo maior da reforma
Psiquiátrica, ou seja, a transformação do ‘lugar social’
da loucura, pois o imaginário social – decorrente da ide-
ologia psiquiátrica tornada senso-comum – relaciona a
loucura à incapacidade do sujeito em estabelecer relações
sociais e simbólicas. dessa forma, o aspecto estratégico
desta dimensão diz respeito ao conjunto de ações que
visam transformar a concepção de loucura no imaginário
social, transformando, assim, as relações estabelecidas
entre sociedade e loucura.
de acordo com o ideal da reforma Psiquiátrica,
as transformações devem transcender à simples reor-
ganização do modelo assistencial e alcançar as práticas
e concepções sociais, intervindo não apenas no fun-
cionamento dos serviços e na formação profissional
dos técnicos envolvidos, mas no profundo e complexo
fenômeno da ‘representação social da loucura’. devemos
pensar o campo da Saúde Mental não como um mo-
delo, mas como um processo. Para tanto, a dimensão
sociocultural é fundamental.
Nesse processo, novas práticas surgem constante-
mente, em especial aquelas que fazem uso das linguagens
artísticas. Com o advento e a proliferação, especialmente
nas duas últimas décadas, de serviços substitutivos ao
manicômio no Brasil, as práticas artísticas passaram a
ser amplamente utilizadas e, com isso, estudadas par-
ticularmente no campo da Saúde Mental. Inclusive, a
legislação brasileira que regulamenta o funcionamento
dos Centros de atendimento Psicossocial (caPs) insere
a prática de “oficinas terapêuticas” como “uma das
principais formas de tratamento oferecido nos caPs”
(bRasil, 2004).
ressalta-se que nessas manifestações artísticas, os
dispositivos materiais e institucionais que as atraves-
sam, isto é, o ambiente onde o indivíduo manifesta sua
criação, bem como aqueles de que dispõe para efetuar
sua criação, as referências de sua história de vida, de sua
própria subjetividade e da relação de si com a instituição
à qual está subordinado, marcará as possibilidades de
sua obra.
Mas, infelizmente, o fato de inserirmos práticas
artísticas em Saúde Mental não garante que elas sejam
antimanicomiais e, portanto, subordinadas teorica-
mente ao paradigma da reforma Psiquiátrica, o que
garantiria sua inserção real na dimensão sociocultural.
Nesse processo, muitas ações acabam por afirmar o
pensamento manicomial, reforçando preconceitos e
prestando um não-serviço à população. Por isso torna-se
tão necessário que tais práticas contemporâneas possam
ser discutidas.
A COMPANHIA EXPERIMENTAL MU...DAN-
çA E A DIMENSÃO SOCIOCULTURAL DA
REFORMA PSIQUIÁTRICA
Mesmo sendo Política Ministerial, as oficinas artís-
ticas dentro de um caPs não são unanimidade teórica.
os saberes do campo da Saúde Mental não são únicos, há
muitas divergências que se colocam especialmente entre
dois paradigmas. de um lado, o manicomial baseia-se,
como nos adverte Foucault (2000), em uma invenção da
loucura como doença mental que pede um tratamento
fundamentado na moralidade e na medicamentação,
propondo, num processo de banalização do sofrimento
e da natureza humana, que qualquer investimento de
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CoElHo, M. • a dimensão sociocultural da reforma Psiquiátrica e a Companhia Experimental Mu...dança
cuidado em Saúde Mental seja um investimento voltado
para a ‘doença’, nunca para os sujeitos da experiência.
Já o paradigma antimanicomial, desenvolve várias ações
que buscam transformar o imaginário social em relação
à loucura, à doença mental, à anormalidade e que se
referem a um conjunto de práticas sociais que possam
construir solidariedade, a inclusão dos sujeitos em des-
vantagem social, a diferença e a diversidade (amaRantE,
1999, p. 51).
temos o relato de uma experiência paradigmática
da dimensão sociocultural da reforma Psiquiátrica,
possibilitada pelo trabalho iniciado em 1999 no Centro
de atenção Psicossocial (caPsi) de diadema (município
da periferia de São Paulo), época em que trabalhávamos
com arte na tentativa de encontrar novas formas de con-
vivência respeitosa e digna com as pessoas que buscavam
auxílio em Saúde Mental, coisa que o pensamento mani-
comial não leva em conta. Como estagiária de psicologia,
uma das atividades propostas pela ‘comissão de ensino’
da instituição a serem cumpridas era a realização de
um projeto que unisse a experiência de coordenação de
grupo com um desejo pessoal do estagiário. Por conta
de minha história pessoal como bailarina, eu e minha
supervisora de estágio, Patrícia Villas-Boas Valero, de-
cidimos montar um ‘grupo de dança’1.
a princípio, esse grupo se preocupava em recontar
as histórias culturais familiares dos participantes através
das danças populares brasileiras, pois hipotetizávamos que
um dos causadores do enlouquecimento é a vivência da
aculturação. Segundo redko (1998), tanto a incidência
quanto a evolução de graves sofrimentos psíquicos estão
ligados aos conflitos psíquicos inescapáveis ligados à
questão da imigração, à vivência pessoal ou familiar, ao
distanciamento de elementos de sua cultura tradicional.
Sendo a população de diadema composta em sua maioria
por migrantes, especialmente naturais de Minas gerais e
da região nordestina, tornou-se interessante a criação de
um projeto que resgatasse, a partir das danças populares,
histórias culturais das pessoas que estavam no caPsi, das
origens de suas famílias, de antigos costumes e rituais.
Iniciamos o projeto como grupo aberto e, com o
passar do tempo, pudemos perceber que nossa proposta
de trabalho não fazia sentido: o grupo queria dançar seu
encontro com a loucura, suas histórias de vida e enlouque-
cimento. a partir daí, mudamos os objetivos do grupo.
Num processo coletivo de discussão e decisão, inventamos
a companhia Experimental Mu...Dança e construímos seu
primeiro espetáculo, das loucuras Da História.
decidimos, em primeiro lugar, coreografar coleti-
vamente um espetáculo que problematizasse as histórias
de enlouquecimento dos participantes com o objetivo
de apresentá-lo o máximo possível para militarmos na
reinserção social da loucura, ou seja, travar debates
com as platéias sobre a loucura e o Movimento da luta
antimanicomial, divulgando-o e contribuindo para
modificar o lugar social do louco. as apresentações eram,
portanto, um norteador fundamental do trabalho sem o
qual o mesmo não se justificaria. a construção coletiva
surgia em nosso trabalho a partir de Hannah arendt
(2003) e sua distinção entre trabalho e labor, distinção
esta gerada por uma sociedade da produção. a idéia do
trabalho está comumente ligada ao suor e à supressão,
mas arendt chama nossa atenção para o quanto estes
aspectos relacionam-se com a idéia de ‘labor’, conceito
que expressa ciclos repetitivos, de longa duração. Já no
‘trabalho’, transcendemos nosso próprio universo na
medida em que, necessariamente, nos identificamos com
nossa produção criativa, diferindo-a da natureza. Isso faz
do ‘trabalho’ uma atividade tipicamente humana, que
nos possibilita construir histórias. É a diferença entre
fabricar bens duráveis e não duráveis, produzir fruição
de beleza e produzir escravidão.
1Esta experiência está descrita e analisada em nossa dissertação de mestrado das loucuras Da História: dança-teatro, sofrimento psíquico e inclusão social, apre-sentada ao programa de pós-graduação Iterunidades em Estética e História da arte da USP, 2007.
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CoElHo, M. • a dimensão sociocultural da reforma Psiquiátrica e a Companhia Experimental Mu...dança
o segundo ponto fundamental do trabalho da
companhia Experimental Mu...Dança era que, além
de recontar as próprias histórias de enlouquecimento,
pudéssemos questionar o conceito de ‘loucura’ estabe-
lecido em diferentes culturas e épocas históricas. Para
tanto, montamos um horário de ‘grupo de estudos’ que
ocorriam por meio de visitas à biblioteca e à videoteca
municipais e discussões acerca de livros como História
da loucura, de Michel Foucault e Dom Quixote de La
Mancha, de Miguel de Cervantes. Esse segundo ponto
viabilizava a construção de uma visão crítica a respeito da
própria loucura, e foi proposto pelos bailarinos do grupo
no momento em que deixaram de olhar apenas para o
próprio sofrimento e despertaram para os fenômenos
que contribuíram com a construção social da loucura.
Um terceiro ponto do trabalho foi a definição de
que, como militantes e aspirantes da divulgação da
nossa causa, deveríamos ocupar a cidade, “levando o
delírio à praça pública” (PElbaRt, 1990, p. 134), ou
seja, não deveríamos ensaiar no ambulatório, mas em
espaços dedicados a atividades culturais da cidade, onde
se encontrava nosso público-alvo. assim, ensaiamos no
Centro Cultural okinawa em dois momentos: quando
funcionava como um centro cultural, e quando abrigou
a guarda municipal. Ensaiamos, também, no Centro
Poliesportivo da cidade, no teatro Municipal (Centro
Cultural Clara Nunes) e na sala de dança do Centro
Cultural Serraria.
Nosso último ponto fundamental do trabalho foi
a definição da técnica artística utilizada: a dança-teatro,
em especial sua expressão contemporânea desenvolvida
pela bailarina e coreógrafa alemã Pina Bausch.
as obras de Bausch não apenas utilizam-se da re-
petição como método ou artifício coreográfico, mas a
incorporam como um tema a ser criticamente retalhado
e decomposto, até gerar o inesperado e, supostamente,
o oposto: a diferença, a transformação. a dança-teatro
de Bausch não rejeita nem serve à força disciplinária da
repetição, mas a usa consistentemente para subverter
seu próprio processo de dominação corporal, no aspecto
estético, cognitivo e social, para dançarinos e para o
público. através da repetição, sua companhia, o Wu-
ppertal dança-teatro, transforma estáveis polaridades.
Simultaneamente natural e linguístico, experiencial e
automático, pessoal e social, o corpo ‘reconta’ e ‘redança’
sua própria história de fragmentação, ausência e domi-
nação, repetindo e transformando constantemente, ou
seja, ‘redefinindo’ a dança (fERnandEs, 2000).
Vale lembrar que durante todo o processo de cons-
trução de Pina Bausch, as preocupações coreográficas
centram-se na valorização e reapropriação da gestua-
lidade individual. assim, na companhia Experimental
Mu...Dança, construímos pontes destas preocupações
coreográficas com o grupo, ampliando as possibilidades
criativas (castRo, 1992).
Em nossa Companhia entendemos que na contem-
poraneidade estamos muito distantes de nosso corpo e, no
caso de pessoas que tiveram histórias de confinamento em
instituições psiquiátricas, a relação com o corpo fica ainda
mais prejudicada. o corpo é visto como meio para a ob-
tenção de lucro (WEil, 1990), tornando-se visível apenas
no binômio trabalho-consumo, distante do que Keleman
(2001) chama de experiência da corporificação.
Partindo dos pilares apresentados, as pesquisas do
grupo levaram a construção do espetáculo por três eixos
norteadores: histórias/experiências de enlouquecimento
dos bailarinos, histórias de tratamento dos bailarinos,
estudo sobre a história da loucura e sua inserção em
algumas culturas. assim, o espetáculo das loucuras Da
História conta com 16 coreografias distribuídas em 80
minutos, criadas a partir das biografias dos próprios
bailarinos e pesquisadas a partir de três temas escolhidos
pelo grupo: o que é loucura? No decorrer da história
da civilização, ela recebe o mesmo significado? Esse(s)
significado(s) existe(m) independentemente da cultura
e da época em que o fenômeno está inserido?
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CoElHo, M. • a dimensão sociocultural da reforma Psiquiátrica e a Companhia Experimental Mu...dança
Em nossa dissertação, concluímos que a companhia
Experimental Mu...Dança possibilitou aos bailarinos
‘desgrudarem-se’ das experiências de enlouquecimento
e deixá-las no passado, saindo do lugar de ‘troca-zero’ da
loucura para a descoberta de outros lugares do mundo.
a metodologia de construção desse espetáculo tornou-se
visível. a partir da análise do espetáculo apontamos e
refletimos sobre as mudanças despertadas nos bailarinos.
a possibilidade de sair de um lugar de ‘troca-zero’ para
um lugar de criação abriu caminho para que outras
potencialidades fossem exploradas por eles. Sair do
papel social do louco é abrir-se para a possibilidade de
ocupar múltiplos papéis sociais. a apropriação de uma
nova linguagem, a vivência de uma construção grupal,
a ampliação da percepção sobre si e dos outros e a luta
pela mudança do imaginário social a respeito da loucura
trouxeram ao grupo uma vivência do trabalho como
construção de linguagem.
a transformação do ‘sintoma’ do sujeito em uma
característica de estilo da personagem que ele repre-
sentaria apresentou-se durante todo o trabalho como
um método bastante significativo. Uma saída para a
construção da tarefa e das personagens, mas também
uma maneira diferenciada de trabalhar com aquelas
pessoas. Percebemos que ao transformar o ‘sintoma’ em
‘estilo’ fornecíamos um novo sentido do ‘sintoma’ para
o sujeito, que poderia, a partir de então, entendê-lo
como algo que fosse além dele mesmo. Com o passar
do tempo, pesquisando e estudando as personagens, o
sintoma ‘desgrudava’ minimamente dos bailarinos, que
assumiam novas possibilidades de identidade produzin-
do algo além da loucura: a arte.
Com a valorização da formação do vínculo como
intermediário da tarefa, todos puderam perceber que
para que o objetivo do grupo fosse alcançado com êxito
era necessário que todos se empenhassem e expressas-
sem sincera opiniões. Esse fato sustenta o paradigma
antimanicomial na medida em que essa tarefa, tal como
foi proposta e construída, tornou-se um facilitador
para que o grupo pudesse despir-se do manicômio
mental (PElbaRt, 1990). apesar de todos nós sermos
militantes do Movimento da luta antimanicomial e,
ainda, apesar dos caPs serem instituições baseadas na
lógica da reforma Psiquiátrica, é comum percebermos
que as relações estabelecidas nessas instituições ainda
são baseadas em relações de saber-poder, ou seja, os
profissionais ‘psi’ têm uma posição privilegiada sobre os
sujeitos acometidos de sofrimento psíquico. Enquanto
os profissionais são bombardeados desde o início de sua
formação com uma verdade paradigmática que institui
as relações de certo e errado, profissional e paciente,
doente e são, louco e arrazoado, os pacientes, em suas
histórias de tratamento (ou tentativa de tratamento)
são bombardeados com informações a respeito de certa
doença incurável, da dependência do saber profissional
e mesmo da subordinação a ele. Mudar essa relação é
mudar a si mesmo.
assim como a companhia Experimental Mu...
Dança, muitos outros projetos inseridos na dimensão
sociocultural da reforma se tornaram paradigmáticos.
Portanto, torna-se necessário que pesquisas sejam
feitas de modo a sistematizar tais experiências para
que seja possível compreender os procedimentos me-
todológicos comuns que garantiriam uma verdadeira
inserção na dimensão sociocultural e a facilidade de
novas experiências.
CONSIDERAçÕES FINAIS
No momento em que a Secretaria Nacional de
Identidade e diversidade Cultural criou uma política
específica para financiar projetos culturais no campo
da Saúde Mental, é veemente que esse financiamento
seja direcionado pela qualidade dos trabalhos realizados
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CoElHo, M. • a dimensão sociocultural da reforma Psiquiátrica e a Companhia Experimental Mu...dança
e efetivo apoio às pessoas com sofrimento psíquico,
promovendo uma política de cura que garanta a disse-
minação do Movimento da luta antimanicomial na
cultura.
Sabemos que no atual estágio do capitalismo, no
qual técnica e razão se sobrepõem à subjetividade e ao
sentimento, as artes podem transformar essa situação em
criação para a autodeterminação. Nesse contexto a arte
se mostra um meio de conhecimento, instrumentos de
aprendizado e, por ser uma ‘ação’ coletiva, possibilita o
encontro e a atitude.
ao falar em ‘ação’, somos remetidos ao conceito
proposto por arendt (2003). Para a autora, a ‘ação’ é a
única atividade exercida diretamente entre os homens
sem a mediação das coisas ou da matéria. Para que ela
ocorra, é necessário que exista um ‘espaço público’, ou
seja, um espaço correspondente à condição humana da
pluralidade. Um espaço em que ‘iniciativa’ e ‘palavra’
circulem, conferindo a todos o mesmo direito de expres-
sar suas diferenças na construção coletiva. a ‘ação’ é a
condição para a vida política, a condição necessária para
que os sujeitos sejam protagonistas de seus papéis como
zoon politikon2 na construção coletiva de transformações
das realidades humanas. a ‘ação’ se consolida, então,
como a condição humana fundamental.
Se pensarmos que a construção do ‘espaço público’
é justamente proporcionada por um espaço horizontal
e criativo onde as subjetividades circulam, podemos
afirmar que a experiência de criação artística coletiva
pode ser uma tentativa de construção de ‘espaço pú-
blico’, ou seja, de experimentação da ‘ação’, a principal
característica dos homens.
a criação artística coletiva proporciona aos envol-
vidos a experiência da ‘ação’. todos sabem que podem
tomar a ‘iniciativa’ da ‘palavra’ para colocarem suas
idéias e opiniões, pois o trabalho realizado é de todos
e diz respeito aos processos de subjetivação e interação
de todo o grupo, ao passo que cria uma concretude
para esse processo, tornado visível justamente no fazer
artístico, na arte.
assim, hipotetiza-se, a partir da experiência da
companhia Experimental Mu...Dança que, além da qua-
lidade técnica dos trabalhos realizados na dimensão so-
ciocultural da reforma, o que garante a essas experiências
seu verdadeiro envolvimento pelos ideais da reforma
Psiquiátrica é, justamente, a existência da ‘ação’.
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recebido: abr./2008
aprovado: nov./2008
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artIgo orIgINal / ORIgINAL ARTIcLE 99
a ação territorial do Centro de atenção Psicossocial
em sua natureza substitutivaThe territorial action of the centro de Atenção Psicossocial as indicator
of its substitutive nature
RESUMO Tomou-se como campo de investigação um centro de Atenção
Psicossocial (cAPS), situado no município do Rio de Janeiro, para verificar como
se organiza o seu cotidiano, investigando as possibilidades de suas ações tanto no
seu interior quanto em relação ao território. Foram eleitas como categorias de
análise: a responsabilidade pela demanda, a porta aberta, a atenção às situações
de crise e o trabalho territorial, por estas características se articularem em um
serviço substitutivo. Utilizou-se de observação participante e de entrevistas semi-
estruturadas com profissionais do serviço. A investigação ressalta a importância
de chegar ao cotidiano deste dispositivo um entendimento das transformações
que pode operar.
PALAVRAS-CHAVE: Território; Serviço substitutivo; cAPS; Reforma
Psiquiátrica.
ABSTRACT The Psychosocial Attention center (caps) in the state of Rio de
Janeiro, Brazil, was taken as a field of investigation in order to verify how its
everyday praxis is organized, investigating the possibilities of its actions, either
inside the institution or in relation to the territory. It was elected as analysis
category the responsibility towards demand, the open door, the attention to crises
situations and the territorial work, for these characteristics are articulated to a
substitutive service. A participant observation was used as well as semi-structured
interviews with some professionals who work in the cAPS. The investigation
emphasizes the importance of making the everyday work reach an understanding
of the transformations it can operate.
KEYWORDS: Territory; Substitutive services; cAPS; Psychiatric Reform.
renata Mart ins Quintas 1
Paulo amarante 2
1 Psicóloga; mestre em Saúde Pública
pela Escola Nacional de Saúde Pública
da Fundação oswaldo Cruz (EnsP/
FiocRuz).
2 doutor em Saúde Pública, pesquisador
titular da EnsP /FiocRuz.
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 99-107, jan./dez. 2008
100 QUINtaS, r.M.; aMaraNtE, P. • a ação territorial do Centro de atenção Psicossocial em sua natureza substitutiva
I N T R O D U ç Ã O
a reforma Psiquiátrica, no Brasil, constitui-se de
processos com características locais, envolvendo lutas
sociais pela transformação do modo de concepção da
loucura e como lidar com o dito louco. luta-se tam-
bém, para transformar o modo como a Psiquiatria, em
nome da razão, permite-se categorizar, trancar e tratar
a loucura, em relação à articulação e invenção de possi-
bilidades de inserção social para as pessoas que sofrem
com transtornos mentais. além disso, compreende,
ainda, um processo permanente de utilização de jogos
de forças que engendram saberes e poderes, e configuram
a sociedade em que se vive.
o referencial teórico fornecido pela Psiquiatria de-
mocrática Italiana e pela experiência santista de Saúde
Mental introduz serviços que atuam como substitutivos
ao modelo manicomial, por promoverem rupturas em
relação ao modo de funcionamento centrado do hos-
pital psiquiátrico. Enquanto conjunto de referências
sociais, de códigos de funcionamento intrapessoais
que conformam um imaginário e uma realidade social
que inclui ou exclui o diferente, o território é palco de
exercício para a transformação cultural em relação ao
fenômeno da loucura.
No contexto do Sistema Único de Saúde (SUS),
o Centro de atenção Psicossocial (CaPs) surge como
promessa de composição de uma assistência mais
articulada ao território (Portaria 336 de 19/02/02),
virtualmente capaz de conhecê-lo em suas peculia-
ridades, de lidar com as necessidades de seus usu-
ários, com as demandas que se produzem, enfim,
de compor com as forças do território em favor da
autonomia, a fim de que se encontrem soluções ao
sofrimento psíquico.
a capacidade do CaPs em substituir o manicômio
deve estar articulada ao modo com que a sociedade lida
com a diferença e como representa a loucura na era da
supremacia da razão. trata-se, portanto, da quantidade
de forças que o CaPs pode mobilizar, e que o torna capaz
de operar uma revolução na forma como que se lida com
a loucura na atualidade. Portanto cabe aqui a pergunta:
do que se trata ao se constituir um CaPs? E, uma vez que
é no território onde essas forças configuram o imaginário
e concretizam relações, torna-se estratégico indagar a
cerca do que pode um CaPs em relação ao território.
o objetivo da pesquisa foi caracterizar o funcio-
namento do CaPs no que diz respeito às novas práticas
assistenciais, verificando sua capacidade de articular
ou não às características do território, como indicativo
de sua capacidade de promover uma transformação na
relação da sociedade com a loucura. Não se propôs uma
avaliação do CaPs, mas contribuir com a compreensão
da noção de serviço substitutivo, a partir do conjunto
de ações que sua atuação territorial possibilita.
DESENHO METODOLÓGICO
trabalhou-se com a abordagem qualitativa, que de
acordo com Minayo (1993, p.10), possibilita “incorpo-
rar a questão do significado e da intencionalidade”, per-
mitindo evidenciar importantes questões que se fazem
presentes na construção cotidiana do CaPs e definem sua
tomada de posição em relação ao território.
após a aprovação pelo Comitê de Ética em Pesqui-
sa, foi obtida permissão para realizá-la tanto no serviço
de Saúde Mental pesquisado quanto na Coordenação
da Área Programática.
Para caracterizar o funcionamento do CaPs em
relação às práticas assistenciais, foi necessária a inserção
em campo, tendo como instrumentos de coleta de dados
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 99-107, jan./dez. 2008
101QUINtaS, r.M.; aMaraNtE, P. • a ação territorial do Centro de atenção Psicossocial em sua natureza substitutiva
a observação participante e as entrevistas realizadas com
os profissionais do serviço.
a estada no serviço ococrreu por um período de
quatro meses. Neste intervalo de tempo, buscou-se
adentrar gradativamente nos espaços de atuação dos
profissionais, na medida em que havia consentimento.
a observação foi guiada por um roteiro que con-
templava aspectos como: a estrutura física do serviço;
seu funcionamento rotineiro; a dinâmica de equipe; as
relações construídas no interior do CaPs, com demais
atores e instituições do território.
Procurou-se, também, desenvolver o hábito de
estar no CaPs de diversas maneiras, isto é, ao expe-
rimentar o lugar de alguém na sala de espera, nas
discussões da equipe de profissionais no espaço de su-
pervisão, ao observar as interações entre os profissionais
e destes com a clientela, nas oficinas, assembléias, e em
atividades e reuniões fora do CaPs. No entanto, foi
possível perceber que havia um limite para a presença
em alguns espaços.
as entrevistas fizeram-se necessárias tanto para
abrir o campo de explanação sobre situações não
acompanhadas como para aprofundar o nível de in-
formações e opiniões quanto à construção do serviço
(Minayo, 1993).
as anotações feitas no diário de campo foram
separadas por categorias, as quais foram entrecruzadas,
promovendo uma sistematização que permitiu a formu-
lação de alguns temas principais, que, no final, compu-
seram a análise dos resultados, além do levantamento
de hipóteses esclarecidas nas entrevistas.
optou-se por entrevistas abertas, por possibilitarem
aos entrevistados discorrer livremente sobre os temas
de interesse para a pesquisa, favorecendo a elaboração
de um discurso em que pudessem expressar suas idéias,
crenças, maneiras de atuar e de conceber o CaPs. as
entrevistas foram realizadas após algum tempo de par-
ticipação no dia-a-dia do CaPs.
a partir dos dados obtidos na observação, foram
elaboradas perguntas que permitiram colher dos entre-
vistados suas opiniões acerca dos temas pretendidos.
Para isso, utilizaram-se perguntas disparadoras, no
intuito de deixar que os entrevistados discursassem
livremente sobre os temas de interesse, expondo, por
meio das associações de idéias, os sentidos que dão às
suas práticas no CaPs.
Foram realizadas seis entrevistas, no período de
agosto a novembro de 2005, concedidas no local de
trabalho dos entrevistados. os entrevistados, pela re-
solução 196/96, concederam livre e esclarecidamente
seus depoimentos, conforme o termo de consentimento
livre esclarecido.
as categorias de análise foram retiradas de Nicácio
(2003), que entende a proposta de um serviço substi-
tutivo como “serviço no/do território”, quando nele se
articulam características, como a responsabilidade pela
demanda, a porta aberta, a atenção às situações de crise
e o trabalho territorial, que levam a uma relação com
as pessoas que nele vivem, quais sejam. Estes princípios
expressam e compõem a transformação da prática tera-
pêutica e efetivam a substituição da lógica manicomial,
ao constituírem serviços fortes.
Para rotelli (2001), o serviço torna-se ‘forte’,
territorial ou substitutivo, ao reconhecer o usuário
em sua complexidade, mas também considerando sua
singularidade e sua diversidade, elaborando respostas
dinâmicas e individualizadas que tentam preservar e
ampliar a riqueza da vida das pessoas.
A PORTA ABERTA
a porta aberta delineia novas bases na relação com
o usuário, em que a acessibilidade e a permeabilidade
do uso do serviço, por parte de qualquer pessoa, tra-
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 99-107, jan./dez. 2008
102 QUINtaS, r.M.; aMaraNtE, P. • a ação territorial do Centro de atenção Psicossocial em sua natureza substitutiva
duzem uma flexibilidade em sua organização. Manter
a porta aberta implica, na capacidade plástica, de aco-
lher a demanda, de forma a garantir atenção a todas
as pessoas que chegam ao serviço, oferecendo uma
possibilidade de resposta a sua questão, mesmo que
seja sua escuta apenas.
Na experiência santista, a ‘porta aberta’ traduz um
conjunto de relações institucionais, num movimento
contínuo de questionar e eliminar a contenção concreta
e simbólica das instituições asilares, pelas quais se dava
o controle do paciente, que:
[...] requer uma dinâmica de trabalho que distante de concepções burocráticas seja capaz de operar no movimento de ordem-desordem, instituinte-instituído na qual as ações são construídas, desmontadas, recons-truídas a partir das necessidades dos usuários em seu contexto de relações [...]. (Nicácio, 2003, p.221).
o dia-a-dia do serviço evidenciou a falta da com-
preensão da noção de porta aberta. observou-se, por
meio da fala de um entrevistado, um ritmo ambulato-
rial de funcionamento, com uma freqüência maior de
técnicos trabalhando nos consultórios ou em oficinas:
“a gente ainda tá preso a esse modelo do atendimento,
da consulta, os grupos” (t3).
Poucas pessoas freqüentavam o serviço de forma
diária e as diversas atividades funcionavam com pou-
cos, sendo quase sempre com os mesmos pacientes. a
presença das famílias restringia-se ao grupo familiar ou
ao acompanhamento às consultas, e não foi observada
a presença de pessoas da comunidade, mesmo em mo-
mentos mais coletivos, como em festas.
a dinâmica do serviço deixava pouco espaço para
a invenção de ações por parte dos pacientes (mesmo
aquelas requeridas para cada caso), funcionando com
atividades padrão: consultas e psicoterapias individuais,
oficinas, visitas domiciliares, assembléia e supervisão.
Havia uma repartição dos espaços em que o paciente
era autorizado ou não a participar, o que evidencia
que o serviço não funcionava segundo a dinâmica da
porta aberta.
Esse paciente foi indo por conta própria. Ele sabia que tinha oficina do papel tal dia, ele vinha na oficina do papel. E aí, quando a gente se deu conta, ele tava freqüentando várias atividades no caps. Até ele le-vou a criar uma regra na equipe, de que paciente de recepção não poderia participar das atividades ainda, só depois que já tivesse cadastrado, que tivesse projeto terapêutico que podia participar, porque meio que fugiu das nossas rédeas. (t2).
a porta aberta também significa a abertura
para o outro, no reconhecimento e acolhimento dos
usuários e ao responsabilizar-se pelos problemas de
saúde da região, numa relação em que Campos (1994)
estabelece entre um “coeficiente de acolhida” e a
“plasticidade” do modelo de atenção, quando se trata
de acessar, junto com o paciente, toda uma variedade
de problemas da demanda, que incluem questões
sociais, econômicas, culturais, além da inconstância
dos recursos disponíveis.
RESPONSABILIDADE PELA DEMANDA
a tomada de responsabilidade aponta para a
ação no território da vida dos pacientes, a partir da
necessidade de assumir uma interação ampla e direta
com a condição do paciente e das suas relações, e
chegando aos seus ambientes de vida (dEll’acqua,
1991). o serviço não é o único local de exercício da
tomada de responsabilidade, pois a prática terapêu-
tica é orientada para o enriquecimento da existência
global, complexa e concreta dos usuários, que os faz
sujeitos ativos nas relações dentro e fora do serviço
(rotElli, 2001).
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 99-107, jan./dez. 2008
103QUINtaS, r.M.; aMaraNtE, P. • a ação territorial do Centro de atenção Psicossocial em sua natureza substitutiva
ao contrário da direção da prática em relação aos
ambientes de vida dos usuários dos serviços substituti-
vos, observou-se uma tendência na dinâmica do CaPs
de trazer para o serviço as situações de trabalho com
seus pacientes. No caso de uma paciente, a falta de um
trabalho mais articulado com a vizinhança e os fami-
liares resultou em ela ser vista como ‘monstro’ por uma
pessoa próxima, que exigiu que a tirassem dali e que a
internassem. a dificuldade em conviver com a diferença
de seu comportamento tornou-se insuportável para sua
mãe, que optou por sua internação já na primeira reação
de agressividade da filha.
assim como o olhar de estranhamento da mãe,
o olhar do serviço enxergava a doença, algum retardo
mental a junto à psicose, deixando de encontrar soluções
terapêuticas que ampliassem a rede de relações para a
aceitação e promoção da diferença. a hospitalidade
oferecida pelo serviço deixou de mobilizar “uma quanti-
dade maior de energia humana e recursos institucionais”
(dEll’acqua, 1991, p.65).
A ATENçÃO DO CAPS àS SITUAçÕES DE
CRISE
a capacidade de responder de forma diversa às
situações de crise se insere nas práticas dos serviços
substitutivos como capacidade cotidiana de sustentar
a atenção à crise, pelo exercício do trabalho em equi-
pe, e ao articular tutela, direitos e responsabilidade
(Nicácio, 2003).
a complexidade envolvida nas situações de crise
demanda a criação de estratégias de contato, pautados
na possibilidade de transformação da intervenção vio-
lenta, ressignificando os conflitos em direção à invenção
de saúde. a base para tais possibilidades constitui-se na
relação de contrato e de reciprocidade com o usuário, e
depende da disponibilidade da equipe para situações que
desafiam novas formas de comunicação entre os envolvi-
dos, “sem protocolos de intervenção pré-constituídos, ou
mesmo ‘equipes especiais’ de intervenção” (dEll’acqua,
1991, p.61). lidar com a crise requer a permissão de
entrada em cena de todos que participam do contexto
relacional dos usuários.
Segundo os discursos dos profissionais, a forma
de o serviço lidar com a crise era ruim, acentuada pela
falta de condições materiais. Evidenciava-se o mau fun-
cionamento em equipe e o medo dos profissionais em
lidar com o paciente em crise e articular possibilidades
de atuação que substituíssem a internação.
Precisava não a mesma estrutura que o hospital tem, mas o mínimo de estrutura pra poder ficar com uma pessoa que está de fato agitada. Porque assusta, né?, ameaça de bater, fica falando sem parar.[...] As pessoas chamam logo a ambulância. Muito rapidamente, é a 1ª coisa que se pensa. Você pode tentar fazer outras coisas, você pode chamar a ambulância e paralelamente ir tentando abordar essa pessoa.[..] Tem situações com colegas onde a gente ficou lá embaixo e as pessoas olhando da escada de cima. (t3).
a resposta às situações de crise está relacionada à
organização das práticas do serviço, em sua capacidade
de acolhimento e reconhecimento que se constitui como
alternativa à internação psiquiátrica:
Depende de cada equipe, de como o serviço se orga-niza. (...) Acho que essa é a questão da relação com o território, o cara ao invés de ir pra emergência, vem pro serviço porque ele sabe que pode ser resolvido ali ou acolhido, esse sofrimento foi acolhido e foi conduzido de alguma forma. (t4).
Evidenciou-se que a forma como o CaPs lida com
a crise guarda relações com a orientação teórica que
organiza suas práticas e com o movimento de sair para
atuar nos espaços de vida dos usuários.
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 99-107, jan./dez. 2008
104 QUINtaS, r.M.; aMaraNtE, P. • a ação territorial do Centro de atenção Psicossocial em sua natureza substitutiva
A RELAçÃO COM O TERRITÓRIO
o território é o local onde deságuam todas as trans-
formações ocorridas no interior do serviço. a interven-
ção precisa chegar às instâncias reais e imaginárias para
se disseminar a norma e a exclusão, e passar ao âmbito
da política, do direito, das legislações, do trabalho e da
cultura. Colocar-se assim em movimento, articulando-
se no convívio entre as pessoas, é o que Santos (1988)
chama de “território da vida”, território onde se dão as
trocas materiais e simbólicas e as relações sociais.
Para Nicácio (1994), o trabalho territorial é construído
na articulação de ações diretas e indiretas, abrindo espaços
para a ressignificação do fenômeno da loucura e o reposi-
cionamento sociopolítico do paciente na sociedade.
a incorporação da noção de território e o alcance
das questões que ela implica indicam a assimilação de
mudanças concretas ao mesmo tempo na sua dinâmica
e em relação à sociedade.
o entendimento que traz a relação do CaPs com o
território é apontado na fala de um profissional quando
diz que “a gente tá tentando fazer esses trabalhos mais
externos” (t1). Existe a consciência de que o trabalho
do CaPs em articulação com outros atores pode mudar a
percepção que se tem do sofrimento mental, a começar
da própria família. No entanto, é freqüente, nas falas da
maioria dos entrevistados, a menção à carência de recursos,
que lhes dificulta sair do ambiente de trabalho, apesar do
reconhecimento de que o CaPs deve atuar no território:
É uma cilada também, que os caps têm que ter o cuidado de sair, porque o trabalho te toma, né? Tem casos muito graves que se deixar você fica só dentro do caps! E a idéia é estar ocupando espaço no território. Então esse é um desafio. (t1).
a relação com o exterior, no entanto, ainda se
reduz às iniciativas pessoais de alguns poucos profissio-
nais, que procuram trabalhar com algumas instituições
localizadas no território, estabelecendo parcerias para
venda de trabalhos confeccionados pelos pacientes: “É
algo que tá no projeto, mas que na prática precisa de
disponibilidade pra isso.” (t2).
o questionamento de que o CaPs possui de fato
um trabalho no território se deve ao fato de que a ação
no território é mais do que a presença física do serviço
na região. o discurso de um profissional chama atenção
para uma necessidade de entender o trabalho fora do
CaPs, a partir da ótica da inserção social, e reconhece que
uma atuação nesse sentido ainda é incipiente no CaPs.
O fato de você estar lá fora com eles não significa que eles estejam integrados. Se a gente só coloca eles pra vender, não incentiva uma crítica a respeito disso, por exemplo, só vai vender nos fóruns de saúde mental, a gente não pode achar que isso é o externo propriamente dito. O externo é o cara poder pôr a barraquinha dele, ou ser um ambulante como um outro, com as dificuldades que ele tem. A gente tendo que ajudar da forma que ele precisa, mas não estar tão dependente de situações como essas. (t3).
o trabalho territorial precisa avançar mais, para
chegar à possibilidade de convívio social, fora da pro-
teção institucional. trabalha-se para a construção de
um novo pacto social, que cria campos de troca entre
os diversos segmentos da sociedade, e interfere nos
processos de exclusão social, além de possibilitar uma
nova ética, “em cujo espaço seria possível reciclar tudo
aquilo que seria descartável na lógica de uma sociedade
excludente” (BaRRos, 1994, p.103).
CONSIDERAçÕES FINAIS
Percebe-se, por meio da observação participante,
assim como pelas falas dos profissionais entrevistados,
que o serviço pesquisado tem-se utilizado tanto de
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 99-107, jan./dez. 2008
105QUINtaS, r.M.; aMaraNtE, P. • a ação territorial do Centro de atenção Psicossocial em sua natureza substitutiva
iniciativas diretas como indiretas. São realizadas visitas
domiciliares, acompanhamento aos pacientes internados
em instituições psiquiátricas, viabilização de atendimen-
to na rede de saúde, além de passeios, e negociações com
instituições de lazer, educação, trabalho, e da rede de
saúde, como ambulatórios de Saúde Mental da região,
nos casos de referência e contra-referência.
No entanto, no CaPs pesquisado, a temática da atu-
ação territorial é pouco presente nas discussões dos técni-
cos, no cotidiano do serviço, fruto de uma dinâmica insti-
tucional no qual as atividades encontram-se centradas na
clínica tradicional. ao mesmo tempo, algumas atividades
e críticas ensaiam movimentos de questionamento desse
funcionamento. No entanto, não há um envolvimento
suficiente dos profissionais para criar uma participação
da equipe nos contextos reais de vida da clientela, e que
mobilizem pessoas diversas na articulação de redes sociais,
responsabilidades e potenciais de ação.
Para Basaglia, o território:
[é o] lugar da expressão plena das contradições de classe, espaço real que tornaria mais clara a própria colocação e mais natural o resultado das alianças. (2005, p.242).
A partir de então, coloca-se como serviço que convive com o manicômio e o realimenta, quando suas práticas não alcançam a reprodução social de sua clientela. É justamente essa discussão política e estratégica da relação com o território que se encontra ainda pouco presente no entendimento do lugar do caps, conforme observado, instituindo um serviço que se coloca como intermediário na relação com o hospital psiquiátrico. A gente não quer ser chamado de um serviço substitu-tivo. A gente tá longe disso. A gente ainda é uma coisa mais ou menos alternativa, no sentido que a gente não substitui o hospital, a gente recorre à internação com muita freqüência. Então não há essa coisa da apropriação do espaço. (t3).
a desinstitucionalização não se restringe à retirada
de pacientes da instituição psiquiátrica. Ela é, funda-
mentalmente, a luta contra o que fundamenta a insti-
tuição, seja ela psiquiátrica ou não. trata-se de dar voz
àqueles que tradicionalmente encontram-se na posição
de inferiorizados, e lutar pela sua liberação, uma vez que
a desinstitucionalização é, em última instância, “a luta
pela liberação do homem” (VEntuRini, 2003, p.165). a
desinstitucionalização é o questionamento dos lugares de
produção de valores da sociedade, é uma luta política.
Faz-se necessário colocar em questão a própria
normalização do espaço que constitui o CaPs enquanto
instituição. Na grande maioria das vezes, este dispositivo
vem funcionando como um espaço organizado, de ma-
neira procedimento-centrado, de forma em que as práticas
e as relações interpessoais se localizam no seu interior,
numa dinâmica centrada na intervenção medicamentosa
e psicoterapêutica, que tende a produzir uma cronicidade
dos próprios profissionais dentro do serviço.
apesar do tempo de reforma Psiquiátrica empreen-
dida no país, entende-se que a superação do manicômio
não se reduz a uma modernização da assistência, mas se
trata de uma luta contra os mecanismos de controle da
população, que precisa ser melhor trabalhado no coti-
diano dos atores da reforma Psiquiátrica. Essa percepção
acerca da capacidade de invenção que um serviço precisa
ter para substituir a lógica psiquiátrica ainda não chegou
ao ponto de transformar suas práticas e construir serviços
de Saúde Mental que se coloquem como substitutivo.
Para Venturini, a presença de usuários, familiares, di-
versos cidadãos e a construção de um clima de cooperação
social “constituem-se em indicadores rigorosos da eficácia
da desinstitucionalização” (2003, p.173). desse ponto de
vista, o serviço precisa redefinir sua prática, flexibilizar-se
no exercício de seu poder, ao abrir-se para permitir o con-
flito dos atores e incorporar uma capacidade de negociação
que considere as necessidades de sua clientela.
a penetração no território acontece quando os ser-
viços se organizam para acolher e trabalhar a pessoa em
sua existência concreta, o que impulsiona a um trabalho
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 99-107, jan./dez. 2008
106 QUINtaS, r.M.; aMaraNtE, P. • a ação territorial do Centro de atenção Psicossocial em sua natureza substitutiva
permanente de inscrição na dinâmica do território, ao
identificar os atores que estão relacionados às ações de
reconstrução de relações com a loucura e ultrapassando
iniciativas isoladas, como sair em busca de determinada
parceria para alguma ação pretendida.
da arquitetura hospitalar, que exerce seu poder de
controle e de formação de corpos dóceis pela anulação
das possibilidades de existência própria, ao espaço
aberto do território, o tema ainda é a convivência com
um poder invisível e onipresente, e a ampliação da
capacidade de singularização1 de pessoas e de grupos.
trata-se mesmo de facilitar rebeldias cotidianas, revo-
luções moleculares, de refazer territórios de resistência e
existência, não totalmente imunes à ordem dominante,
mas poder ampliar a função de autonomização dos
grupos, tornando-os mais hábeis quanto
à capacidade de operar seu próprio trabalho de se-miotização, de cartografia, de se inserir em níveis de relação de força local, de fazer e desfazer alianças, etc. (guattaRi; rolniK, 1986, p. 46).
Em relação a isso, há perseguição dos operadores
dos serviços substitutivos, chamando de invenção de
saúde e de vida.
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1 Por singularização guattari e rolnik (1986) entendem a capacidade de captar os elementos da situação, de construir as próprias referências práticas e teóricas, saindo da dependência total em relação ao poder global, para ler a própria situação e o que se passa ao redor, adquirindo a possibilidade de criação e de autonomia.o e o que se passa ao redor, adquirindo a possibilidade de criaç, e de ter a capacidadestmento dos tles atores que dele se util
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 99-107, jan./dez. 2008
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recebido:maio/2008
aprovado: ago./2008
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 108-120, jan./dez. 2008
artIgo orIgINal / ORIgINAL ARTIcLE108
grupo como dispositivo de vida em um caPs ad:
um cuidado em Saúde Mental para além do sintomagroup of devices of life in Caps ad: Mental Health care beyond symptoms
RESUMO A dependência química envolve aspectos sociais, ocupacionais,
econômicos, políticos e psíquicos, e necessita, portanto, de diferentes olhares
sobre a vida dos sujeitos para que haja uma aproximação de um cuidado
integral. Entretanto, durante muito tempo, os modelos de atenção em Saúde
Mental centraram-se na atenuação de sintomas, deixando em segundo plano
outras questões vinculadas à existência. Neste artigo, objetivou-se refletir sobre
as possibilidades existentes para a clínica de grupos, dentro de um centro de
Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas (Caps ad), por meio do relato de
experiência com um grupo terapêutico. Utilizaram-se os conceitos de produção de
subjetividade, clínica, desejo, saúde, cuidado, integralidade e grupo dispositivo
para problematizar alguns relatos dos participantes.
PALAVRAS-CHAVE: Saúde Mental; centro de atenção psicossocial; Psicoterapia
de grupo
ABSTRACT chemical dependency encompasses social, occupational, economic,
political and psychical aspects and, therefore, it demands numerous views of
people’s life in order to provide full care, as much as possible. However, for a long
time, attention on Mental Health standards focused on diminishing symptoms,
while other issues concerning existence were lagged behind. In this paper, we have
aimed at reflecting on opening up opportunities for group clinic at a center of
Psychosocial Alcohol e drugs (Caps ad) by means of the report of an experience
with a therapeutics group. We considered the concepts of subjectivity production,
clinic, desire, health, care, integrity and groups of devices with the purpose of
questioning some participants’ speech.
KEYWORDS: Mental Health; Psychosocial care center; Psychotherapy, group
Milena lea l Pacheco 1
luiz Ziege lmann 2
1 Psicóloga com residência Integrada
em Saúde (rIS) com ênfase em Saúde
Mental no grupo Hospitalar Conceição
(gHC).
2 Médico psiquiatra do Hospital Nossa
Senhora da Conceição (HNSC) do
gHC.
109
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 108-120, jan./dez. 2008
PACHECO, M.L.; ZIEGELMANN, L. • Grupo como dispositivo de vida em um caPs ad: um cuidado em saúde mental para além do sintoma
I N T R O D U ç Ã O
Este estudo é fruto de uma experiência clínica com
um grupo de adultos que se encontrava em tratamento
para dependência química1 em um Centro de atenção
Psicossocial Álcool e drogas (caPs ad) de Porto alegre,
em 2006, durante meu primeiro ano de residência In-
tegrada em Saúde (rIS) com ênfase em Saúde Mental
no grupo Hospitalar Conceição (gHC)2.
o caPs ad do Hospital Nossa Senhora da Conceição
(HNSC) surgiu com o objetivo de oferecer um cuidado
contínuo às pessoas, com idade a partir de 12 anos, que
apresentassem graves problemas decorrentes do uso de
substâncias psicoativas e/ou do comprometimento sócio
familiar tais quais: intenso sofrimento psíquico, dificul-
dades no convívio social e familiar, escassez de recursos
sociais, políticos e econômicos, entre outros. Inscrito
na proposta de descentralização e territorialização3 do
Sistema Único de Saúde (SUS), esse serviço é destinado
à população das regiões Norte/Eixo Baltazar, Nordeste
e Noroeste de Porto alegre/rS, e fornece atendimento
individual e grupal aos dependentes e seus familiares, por
intermédio de equipes multidisciplinares composta por
profissionais das áreas de Medicina, Psiquiatria, Psicologia,
Serviço Social, terapia ocupacional e Enfermagem.
os caPs ad são considerados a principal estratégia
da reforma Psiquiátrica para o desenvolvimento de ser-
viços substitutivos em Saúde Mental. Esses serviços são
voltados às pessoas portadoras de sofrimento psíquico,
usuárias de álcool e outras drogas e a seus familiares. Por
intermédio de cuidados de atenção diária, os caPs ad
possibilitam cuidados integrais à saúde, propondo uma
nova abordagem, ligada ao social, do sofrimento psíqui-
co, distinta do modelo manicomial, que acaba sendo
gerador de exclusão e estigma social (bRasil, 2004B).
Embora historicamente a problemática do uso, do
abuso e da dependência de substâncias psicoativas tenha
sido abordada por um modelo médico-centrado, em 2003,
a Política Nacional de atenção Integral a Usuários de Álcool
e outras drogas foi apresentada pelo Ministério da Saúde.
Esse documento assinala a necessidade de se facilitar o
acesso de usuários ao tratamento, de se ampliar o olhar dos
profissionais, bem como considerar os processos subjetivos,
as heterogeneidades, as multiplicidades e as particularidades
e diferenças dos sujeitos (bRasil, 2004a).
Em março de 2006, eu e um colega, psicólogo e
residente em Saúde Mental, fomos convidados pela
equipe do caPs ad para coordenar o chamado grupo de
Sentimentos. Com abordagem centrada nos sujeitos e
suas relações, a proposta foi a de criar um espaço coletivo
onde os usuários pudessem refletir sobre suas vidas além
do uso dessas substâncias, buscando outros sentidos em
suas experiências. o grupo de Sentimentos foi iniciado
com oito homens e quatro mulheres, mas alguns pa-
cientes optaram por deixar o espaço e permanecer nos
atendimentos individuais em outros grupos de apoio ou,
mesmo optaram por se desvincularem do caPs.
as falas apresentadas neste artigo são de seis adultos:
cinco homens e uma mulher, com idade entre 35 e 60 anos,
pertencentes a camadas populares e, com exceção de um dos
integrantes, que não estavam empregados no momento.
1Considera-se dependente químico uma pessoa que faz uso abusivo de álcool e/ou drogas, que apresenta problemas sociais, psíquicos, familiares, ocupacionais, econômicos e políticos recorrentes e que sente dificuldade em reduzir ou suspender tal uso (bRasil, 2004a).2o gHC é uma instituição federal considerada eminentemente pública, uma vez que a população atendida é, em sua totalidade, usuária do Sistema Único de Saúde (SUS). atualmente, possui quatro núcleos hospitalares: Nossa Senhora da Conceição, Criança Conceição, Cristo redentor e Fêmina, mais doze Postos de Saúde Comunitária (bRasil, 2007).3o território não é (apenas) o bairro do sujeito ou uma área geográfica, mas o conjunto de referências socioculturais e econômicas que permeiam o cotidiano do sujeito. É constituído, sobretudo, pelas pessoas que o habitam, com seus conflitos, interesses e relações (bRasil, 2004B).
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PACHECO, M.L.; ZIEGELMANN, L. • Grupo como dispositivo de vida em um caPs ad: um cuidado em saúde mental para além do sintoma
No primeiro dia de encontro, após nos apresen-
tarmos, solicitamos que cada um dos presentes fizesse
o mesmo. todos os participantes revelaram o nome e
o tipo de droga que utilizavam. dissemos a todos que
a forma como eles haviam se apresentado “não nos
contava quase nada a respeito de suas vidas” e apenas
mostrava que a existência deles se restringia a uma de-
terminada substância. apresentando-se dessa forma,
(re)afirmavam a idéia de que suas identidades eram
constituídas predominantemente pela dependência de
determinada substância. o grupo ficou surpreso com
tal afirmação, já que, segundo um dos integrantes,
“isso é tudo o que as pessoas querem saber da gente
[...] a única coisa que importa é se eu bebi ou não, às
vezes isso acontece até mesmo aqui no caPs”.
a partir dessa experiência e de trechos das falas,
verifiquei o modo como um cuidado que aborda as-
pectos além dos sintomas de dependência contribui no
tratamento, refletindo sobre as aberturas produzidas na
clínica de grupos. assinalam-se momentos em que o
grupo buscou compartilhar diferentes situações vividas,
produzir outras subjetividades e desmitificar alguns
modos de ser e viver. Este estudo foi fundamentando
em idéias, de autores como Birman, rolnik, Benevides,
Brasil, Naffaf Neto, Foucault, entre outros, que dizem
respeito a produções de subjetividade, clínica, cuidado,
desejo, integralidade na atenção e grupo dispositivo.
PRODUçÕES DE SUBJETIVIDADE
o surgimento do Estado moderno, oriundo de
conjunturas investidoras na anulação das diferenças
entre os sujeitos, como o Iluminismo, a revolução
Francesa, a revolução Industrial e a Psicologia Com-
portamental, inseriu na sociedade a idéia de que
todos os indivíduos são iguais e possuem as mesmas
oportunidades durante a vida. Benevides e Joseph-
son (2006) localizam, nesse período, o surgimento
de um paradigma enraizado na individualização, no
autocentramento e na totalização, denominado modo-
indivíduo. Marcado por uma oposição entre indivíduo
e sociedade, esse modo-indivíduo visa corpos úteis,
produtivos e objetos de cuidado, determinando certas
formas de estar, sentir, pensar, desejar e viver o mundo
(bEnEvidEs, 1994).
diferentemente dessa idéia da subjetividade centra-
da no “eu”, as produções de subjetividades, ou modos
de subjetivação, são fabricadas e modeladas no registro
social (bEnEvidEs, 1995). Essas produções se iniciam
no nascimento e envolvem tudo aquilo que produz
sentido, como o contato com o ambiente familiar,
a relação com amigos, afetos, música, arte, cinema,
política, ou seja, expressam-se através do modo como
os indivíduos pensam, sentem e agem em relação a si,
ao outro e ao mundo. É tudo aquilo que singulariza
e diferencia e são processadas no encontro do sujeito
com o ambiente social, resultando tanto em marcas
singulares como em valores compartilhados na cultura,
na história, na política e no coletivo. Segundo Benevides
(2001), tal noção de subjetividade, não-dicotomizante,
impossibilita uma separação entre o que é do indivíduo
e o que é do social.
Miranda (2000) afirma que é possível conceber
as produções subjetivas a partir de dois pólos. No pri-
meiro, os indivíduos apresentam certa passividade em
relação às instituições produtoras de subjetividade como
a família, o Estado, o trabalho, o sofrimento psíquico,
repetindo suas formas de agir e pensar. No segundo,
os indivíduos e os grupos criam “processos múltiplos e
heterogêneos, que engendram relações livres e criativas”
(p. 41) assumindo, dessa maneira, suas existências de
forma singular, criando diferentes valores, novas formas
de pensar e agir e tornando, por fim, a produção de
subjetividade singularizada.
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PACHECO, M.L.; ZIEGELMANN, L. • Grupo como dispositivo de vida em um caPs ad: um cuidado em saúde mental para além do sintoma
Para Benevides (1994) o corpo-indivíduo tornou-
se objeto de controle e vigilância, impulsionando a
busca de um cuidado de si. Inspirada em pensamen-
tos foucaultianos, a autora afirma que os modos de
subjetivação tanto constroem determinados objetos
de interesse, como afirmam formas de existir:
a cada momento da história, prevalecem certas re-lações de poder-saber que produzem sujeitos-objetos, necessidades e desejos. (p. 28).
guatarri e rolnik (1986) assinalam que as subjetivi-
dades são produzidas também pelas Ciências Humanas,
porque são elas que criam, juntamente com a Medicina,
a possibilidade de investimento em formas de viver a
partir do modo-indivíduo. Essas ciências podem tanto
incentivar a manutenção de processos subjetivos homo-
geinizados sem criar saídas para a singularização, como
investir em modos de subjetivação heterogêneos.
No caso do uso nocivo do álcool e outras drogas,
mesmo com a implementação da reforma Psiquiátrica e da
Política Ministerial, o sujeito, nesse caso dependente quí-
mico, é inserido em um registro social que o individualiza
– ‘Eu sou alcoolista’ – e o circunscreve em um determinado
território de existência ainda marcado pelo estigma, pelo
preconceito e pela exclusão. assim, serviços de atenção à
saúde, como os caPs, podem funcionar tanto como meca-
nismos de controle e vigilância, como de auxílio na criação
de subjetividades mais livres, criativas e autônomas.
afinal, como pensar uma clínica produtora de
subjetividades?
CLíNICA, CUIDADO E INTEGRALIDADE
durante muito tempo as práticas terapêuticas fo-
ram utilizadas para “remover, excluir, abrigar, alimentar,
vestir, tratar” (bEzERRa JúnioR, 2001, p. 29) aqueles
que eram considerados loucos, marginais, bêbados
e indesejados pela sociedade. ou seja, nssa época, as
intervenções serviam apenas para impedir novas pro-
duções subjetivas.
No caso da Psicologia, Medeiros, Bernardes e
guareschi (2005) afirmam que ela surgiu com o intuito
de “descobrir o que tornava os seres humanos sujeitos
da razão.” (p. 265), criando uma série de recursos
para o indivíduo governar a si mesmo. Esses recur-
sos – avaliações, exercícios comportamentais, falar de
si – eram (e ainda são) utilizados, muitas vezes, para
que o indivíduo soubesse (saiba) quem ele é e enten-
desse (entenda) como e por quê age em determinadas
circunstâncias: “tudo para atentar para as próprias
condutas, controlar os excessos, responsabilizar-se por
seus atos.” (mEdEiRos; bERnaRdEs; guaREschi, 2005,
p. 266). Nesse caso, o foco não está na saúde e sim
na materialização de uma interioridade do indivíduo
para subsidiar, segundo Bernardes (2007), formas de
poder sobre a vida.
Para Foucault (1992), a invariância da clínica
aparece na história à medida que os modos de ver e de
sentir são mudados, assim como a própria objetividade
da doença.
a clínica atual ainda apresenta:
[...] posturas clínicas que reproduzem, acriticamente, as clássicas dicotomias interior/exterior, consciente/inconsciente, sujeito/objeto, clínica/política, e tantas outras, porém procurando ajustá-las aos novos tempos. (nEvEs; JosEPhson, 2001, p. 99).
de acordo com Coimbra (2002), essa clínica se
depara com:
[...] histórias e trajetórias que falam de experiências, aventuras, desventuras, sonhos, utopias, massacres fraquezas, cumplicidades, omissões, convivências. (p. 19).
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tudo isso envolve os mais diversos processos sub-
jetivos. assim como a contemporaneidade, a clínica é
atravessada pela complexidade e pela desestabilização
e deve ser entendida, segundo deleuze (1992) como
experiência de desvio, de desestabilização e de crise uma
vez que acompanha a criação de territórios existenciais,
através de um caráter processual. Envolve, também,
questões individuais e coletivas que interpelam o sujeito
e seus modos de subjetivação. Esses atravessamentos
ocorrem através de movimentos de territorialização,
desterritorialização e reterritorialização do desejo.
desejo, de acordo com rolnik e guatarri (1986)
é uma potência de criação de vida, capaz de inventar e
transformar modos enrijecidos de ser, sentir e pensar.
todo desejo é um devir, que constrói e reconstrói objetos
e seus correspondentes modos de subjetivação (RolniK,
2006). Na clínica, a manifestação do desejo se dá no
corpo, é ele que comunica.
o surgimento do SUS e seus princípios (uni-
versalidade, eqüidade, hierarquização, integralidade,
descentralização e participação comunitária) colocou
no cenário da saúde pública outros olhares em relação
ao sofrimento e ao sujeito, abrindo possibilidades para
se dar espaço ao que vem do corpo, ao desejo, ao afeto
e ao impulso para a vida, aspectos esses que, muitas
vezes, são capturados pelas convenções que enrijecem
e doutrinam certos modos de vida ‘indesejados’ para
a sociedade. além disso, a partir da 8a Conferência
Nacional de Saúde, a saúde passa a ser vista não apenas
como ausência de doença ou esbatimento de sintomas,
mas como um encadeamento de interações em vários
níveis de complexidade interdependentes (gioRdan,
1998). Sendo assim, saúde e doença passaram a não ser
conceitos definitivos ou opostos, pois “dizem respeito à
sobrevivência, à qualidade de vida ou à própria produção
de vida” (cEccim, 2000, p. 28), estando relacionados às
condições físicas, psicológicas e sociais; ou seja, o indiví-
duo torna-se um ser tridimensional e biopsicossocial.
as novas concepções de saúde e doença vão ao en-
contro da proposta de integralidade, na qual o principal
interesse já não é o sintoma, mas o sujeito e seu contexto
biopsicossocial. Para Mattos (2001), a integralidade
está relacionada ao ideal de uma sociedade mais justa
e solidária, pois sua atenção diz respeito ao cuidado às
pessoas, aos grupos e à coletividade em seus contextos
históricos, sociais, políticos, econômicos, culturais e
também subjetivos.
Nesse sentido, os espaços terapêuticos podem
possibilitar que os sujeitos encontrem novas formas
para resolver seus conflitos a partir de outras leituras
de sua própria vida. Naffah Neto (1994) utiliza o ter-
mo “psicoterapia-genealógica” (p. 20) para destacar a
importância de o terapeuta denunciar tudo aquilo que
empobrece a vida das pessoas, produzindo, juntamente
com o paciente, pequenas revoluções no cotidiano. Se-
gundo o autor, psicoterapia significa, etimologicamente,
o “cuidado pela vida” (p. 21), capaz de desenvolver o
que Nietzsche chamou de “vontade de potência” (p.
21): uma “potência autônoma, nos seus movimentos
de expansão/retração, construção/destruição, enchentes,
contração/consonância” (p. 110). Segundo o autor, a
vida doente é:
[...] enredada por valores que a intoxicam, obs-truem, empobrecem, necessitando desenvolvimento, soltura, liberdade, para recuperar a sua potência criadora e produzir novas formas. (naffah nEto, 1994, p. 23).
assim, tudo aquilo que vem do corpo, os afetos, as
intensidades, os desejos, as vontades, os movimentos, é
reprimido e a vida se torna limitada.
a concepção de clínica acima descrita nos oferece
uma abertura para o conceito de cuidado proposto por
Boff (2000). o autor assinala que o cuidado contri-
bui para a reinvenção. aquele que cuida, no entanto,
deve considerar a liberdade do sujeito, sua liberdade e
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PACHECO, M.L.; ZIEGELMANN, L. • Grupo como dispositivo de vida em um caPs ad: um cuidado em saúde mental para além do sintoma
capacidade de escolha e seu potencial para estabelecer
normatizações próprias. Pautado na integralidade, e
não na seleção, aquele que cuida de outrem percebe que
cada sujeito possui necessidades que atravessam campos
múltiplos e singulares; sendo assim, seu olhar precisa ser
deslocado da doença, atingindo um conjunto de fatores
que envolvem a vida.
ALGUMAS CONSIDERAçÕES ACERCA DA
DEPENDÊNCIA QUíMICA
a compreensão ampliada do sujeito oferece, de
acordo com Birman (2005), instrumentos para a for-
mulação de um pensamento crítico sobre o mal-estar da
contemporaneidade e sua forma de expressão: o narcisis-
mo. Segundo o autor, para entender os processos subje-
tivos, é necessário investigar os destinos do desejo.
Nas últimas décadas, no ocidente, o ‘eu’ passou
a assumir uma posição privilegiada na construção de
subjetividade. o autocentramento do sujeito no eu,
oriundo das noções de interioridade e reflexão cons-
truídas no início da modernidade, conjugou-se ao valor
da exterioridade e a subjetividade, por sua vez, acabou
tendo uma configuração
estetizante, em que o olhar do outro no campo social e mediático passa a ocupar uma posição estratégica em sua economia psíquica. (biRman, 2005, p. 23).
Com isso, o exibicionismo e o autocentramento
atingiram o valor da solidariedade/alteridade, impe-
dindo que os sujeitos reconhecessem os outros em suas
diferenças e singularidades. desse modo, o narcisismo
torna-se uma forma de subjetivação tributária de uma
organização social que incita o consumo desenfreado, o
autocentramento e a necessidade de prazer imediato.
o uso abusivo de álcool e outras drogas está,
portanto, relacionado às produções da atualidade:
narcisismo, consumismo e imediatismo. o indivíduo
busca desesperadamente atingir a plenitude narcísica
através de uma poção mágica que inviabilize o reco-
nhecimento de sofrimentos e desilusões inerentes
ao ser humano. Nesse “pacto de morte o valor que
direciona o sujeito é um antivalor” (biRman, 2005, p.
23), pois é o não-saber sobre sua existência, alienan-
do-se da vida e do outro por meio de um objeto que
satisfaz e mortifica ao mesmo tempo. ao encontrar
na substância um alívio imediato (e passageiro) para
angústias, sofrimentos, desilusões, tristezas, entre
tantos outros sentimentos despertados, o sujeito se
volta para si.
No contexto da dependência química, em que os
destinos do desejo ficam autocentrados no indivíduo, é
oferecida uma abertura para a discussão do trabalho com
grupos como uma possibilidade de produção de modos
de vida, como propõe Benevides (1995):
Às portas do século XXI, quando observamos o crescente processo de individuação e privatização das práticas sociais e psíquicas, pensar o grupo nos aparece como uma possibilidade de colocar em questão a problemáti-ca da economia do desejo, dos processos de subjetivação e, quem sabe, chamar a atenção para a urgência de se criarem laços de solidariedade e alianças de cidadania. (p. 143).
O DISPOSITIVO GRUPO
os espaços grupais foram utilizados na saúde
pública durante muito tempo com o objetivo único
de atender um maior número de pacientes através da
otimização dos recursos humanos. de fato, em um
grupo abrangemos um maior número de pacientes. No
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entanto, é preciso refletir sobre a riqueza desses espaços
quando tomados como dispositivos para a saúde.
Conforme Benevides (1994) o termo dispositivo
indica algo capaz de acionar um processo de decompo-
sição, produzir novos acontecimentos e romper com o
que se encontra impedido de criar, por meio de tensio-
namentos, movimentos e novos agenciamentos. a clí-
nica de grupos tem caráter processual. Esse processo de
mudança não se restringe a uma tomada de consciência,
pois essa, muitas vezes, é capturada por sentimentos de
culpa e valores morais. Para funcionar como provocador
de inquietações, esse tipo de cuidado precisa provocar
inquietações, suscitar perguntas e trazer respostas novas
(bRasil, 1995). Essa experiência pode tirar o olhar do
sujeito de si, de seu lugar. Naffaf Neto (1994) afirma que
as relações em um grupo terapêutico podem estabelecer
tanto identificações ligadas às representações, ou “formas
extensivas, circunstanciais, históricas, que transpassam
todos e os fazem sentir no mesmo barco” (p.104), como
singularizações.
Passos (2005) utiliza-se de guatarri (1981) para fa-
lar das diferenças entre grupo-sujeitado e grupo-sujeito.
o primeiro é o grupo dos estereótipos, da hierarquia, da
autoconservação, da exclusão, da unificação, da totaliza-
ção e verticalização e que estabelece formas específicas
de ser e de viver. o segundo abre-se para os processos
criativos de outrem e para a alteridade porque precisa
do diferente; é suporte para diversos modos de expressão
emergentes e diferentes enunciados.
Frente a uma situação de conflito trazida por al-
gum dos participantes, perguntávamos com freqüência
para os demais: “alguém já passou por uma vivência
parecida?”. Buscávamos, como aponta Ziegelmann
(2005), outros modelos de saúde que não reduzissem
os sujeitos a categorias diagnósticas, mas tomassem as
formas de viver e os processos de composição de si como
construções coletivas.
GRUPO DE SENTIMENTOS:
OUTRAS POSSIBILIDADES
a proposta de trabalho com o grupo de Sentimentos
já aparece no campo da Saúde Mental há muitas décadas.
Entretanto, em grande parte, apresenta uma conotação vol-
tada para a individualização do sintoma, o que é recorrente
em modelos psiquiátrico-psicológicos voltados para aquilo
que nós, enquanto coordenadores/facilitadores, questio-
návamos. a nossa idéia era intervir tanto no grupo como
no caPs, problematizando alguns modos de subjetivação
acerca do tratamento de dependência química.
Sentávamos em círculo a fim de visualizarmos uns
aos outros, em encontros semanais com duração de uma
hora. Entramos em acordo a respeito de as faltas serem
comunicadas. a ausência de algum membro, quando
não notificada anteriormente, geralmente fazia os ou-
tros pensarem que o colega havia tido uma recaída: “o
fulano não está vindo faz tempo. Será que ele recaiu?”.
Em relação à abstinência, o único critério colocado
pelo grupo era de que não se deveria comparecer aos
encontros sob efeito de álcool ou outras drogas. Porém,
em duas ocasiões, um paciente compareceu alcoolizado
e os demais participantes disseram que aquilo era “uma
falta de respeito com a gente que está levando a sério” e
enfatizaram que nós, os coordenadores, deveríamos bar-
rar a participação dos usuários naqueles dias. Embora os
pacientes fizessem uma crítica dizendo que “a sociedade
só aceita quem não bebe”, eles mesmos esperavam que
cada integrante mantivesse a abstinência. o simples fato
de eles relacionarem a ausência à uma recaída reforça
essa idéia. Essa visão da abstinência e da recaída está de
acordo com as idéias de Moraes (2008), que, em um
estudo realizado em um caPs ad, concluiu que, tanto
para os usuários como para os profissionais, a abstinên-
cia é o principal objetivo do tratamento e a recaída é
entendida como um mau comportamento:
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Talvez a abstinência seja a expressão máxima de que alguém se encontra em condições de ajustamento e purificação, necessários para serem aceitos socialmente. Mesmo assim, parece que o caráter de vigilância sobre essas pessoas se manterá permanente [...] uma vez alcoolista, sempre uma pessoa diferente, em que não se pode confiar por estar sujeita permanentemente a recaídas e crises. (moRaEs, 2008, p.128).
No início, os participantes se restringiam aos
sintomas: “É tudo por causa da maldita da cachaça”.
desconheciam que o grupo “pelo potencial criativo
que insere a partir das transversalizações de idéias, sen-
timento e experiências do outro” (ziEgElmann, 2003, p.
9), oferece outras subjetivações e territórios existenciais
capazes de ressignificar vidas.
aos poucos, o grupo foi trazendo outras inquieta-
ções: “Eu queria que vocês me ajudassem com o meu
casamento. Eu tenho vontade de sair de casa, mas fico
com pena das crianças”. Percebíamos que essas pessoas
tinham uma necessidade de falar sobre diferentes aspec-
tos de suas vidas e não apenas aos sintomas relacionados
à dependência química e buscavam outras respostas
através de uma experiência coletiva para desconstruir
aquilo que há anos se repete: “Eu lembro do primeiro
dia em que a gente conversou. todo mundo só falava
na droga, como se aquilo fosse a gente”.
aos poucos, o grupo passou a desnaturalizar seu
território existencial:
No início achei que aqui só me perguntariam se eu tinha bebido ou não. Vi que nesse grupo a gente pode falar do que quiser e se não quiser falar nada pode ficar quieto também, só escutando o outro.
de um modo em geral, as pessoas procuram os
serviços público de saúde acreditando que devem mani-
festar somente a queixa de seus sintomas, que não podem
falar de si, de suas vidas. o tempo de atendimento é
curto. No entanto, se por um lado essas pessoas falam
de seus sintomas repetitivamente na tentativa de se sen-
tirem aliviadas, por outro, reproduzem certas práticas
hegemônicas tradicionais que direcionam seu olhar à
doença e não ao sujeito e sua complexidade.
o uso abusivo de substâncias psicoativas juntamente
com a sociedade e seus valores morais que determinam
o que é certo e errado, o que é bom ou ruim inibem a
produção subjetiva do sujeito, bem como o surgimento
de outras formas de ser, estar e sentir. a pessoa passa a se
subjetivar principalmente através da droga: “Meu nome é
fulano e o meu problema é a bebida”. Se por um lado a
tomada de consciência faz com que o sujeito reconheça a
dependência química como um problema, ela também o
captura. Nesse caso, a produção subjetiva é marcada pelo
estigma, preconceito, culpa, tristeza e alienação: “lá em casa
eu não posso opinar porque eu sou o bêbado”. apresenta-
vam-se ‘escravos(as)’ do álcool e das drogas, enxergando a
dependência química como uma marca de sua identidade
e a substância, como uma marca de si e um meio de se
relacionar socialmente: “Eu sou o Fulano, eu bebo”.
Benevides (1994) afirma que devemos buscar a
desnaturalização:
[...] tentar ver historicamente como se produzem de-terminados efeitos de verdade nos discursos e práticas, efeitos estes que não são, em si, nem verdadeiros, nem falsos. (p. 24).
ao questionarmos o modo como cada participante
se apresentava, tentávamos também provocar o surgi-
mento de outros territórios, desejos e modos de vida.
A auto-identificação dos sujeitos como ‘dependentes’ parece estar em consonância com um imaginário que a própria sociedade criou, através dos dispositivos de tratamento que reforçam sua postura de impotência diante do controle do uso de drogas [...] como se a partir do momento em que esses sujeitos assumissem a posição de impotência perante a droga, dizendo ‘eu sou adicto’, isso tornasse sua condição inquestionável e natural. (santos, 2007, p. 195).
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de acordo com Brasil (1995), a troca de experiên-
cias com o outro propicia a criação de diversos sentidos,
o questionamento de estruturas duras, e a desnatura-
lização de modos estereotipados de viver, oferecendo
mudanças objetivas e subjetivas. o entrecruzamento de
idéias e a coletivização de ações, afetos e pensamentos,
algumas vezes, promovem o rompimento das estereo-
tipias paralisantes que dificultam o viver: “Cada um de
vocês é uma força que me ajuda. É um reforço que eu
levo comigo”. o confronto com as diferenças facilita
o rompimento com as habituais dicotomias existentes
entre o pensar, o sentir e o fazer, agindo criativamente
sobre os conflitos e inovando as relações através da
criação de novos vínculos: “Às vezes eu estou em casa
e me lembro do que um de vocês falou e aí paro de
pensar bobagens”.
No grupo, os participantes compartilhavam a
experiência da solidão e do empobrecimento dos vín-
culos: “os amigos de bar não são amigos de verdade”.
Falavam de intenso sofrimento psíquico proveniente de
sentimentos de desvalia, solidão, tristeza e exclusão.
Eu queria falar para vocês que eu ando me sentindo muito sozinho. A família não tem me procurado mais, procuram muito pouco. Lá na comunidade o pessoal é gente boa, mas não é a mesma coisa.
ao oferecer um espaço de escuta e de reflexão, o grupo
permitiu que os sujeitos vivenciassem outros sentimentos,
significados, pensamentos, valores, fazeres: “Eu acho que a
gente mesmo acaba fugindo dos amigos de verdade, da fa-
mília. Hoje eu sei dar valor para a minha velha”. a proposta
de clínica grupal dá oportunidade para que se formarem
laços e solidariedade, aliviando sentimentos de vazio,
solidão e desesperança: “aqui a gente tem cumplicidade e
confiança”. Por terem vivido anos ou décadas escondidos
atrás de um sintoma, as relações consigo e com o outro
encontram-se desgastadas, desacreditadas.
luz (2001) assinala que as relações de solidariedade
renovam a sociabilidade e podem restaurar o tecido
social, formando
pequenos e múltiplos pontos de resistência ao indivi-dualismo dominante, colocando a amizade e a coo-peração no lugar do valor dominante da competição. (p. 41).
o restabelecimento da confiança no outro faz com
que o isolamento seja substituído pela convivência, gerando
otimismo e esperança nos sujeitos. Por outro lado, Naffaf
Neto (1994) escreve que o termo amizade não condiz com
a realidade de um grupo terapêutico: “mesmo as grandes
amizades sempre preservam um certo pudor, um certo reca-
to” (p. 103). os grupos são mais como laboratórios da vida
social, pois reúnem pessoas que nunca se encontrariam ou
criariam vínculos um com o outro, mas que nesses espaços
aprendem a compartilhar experiências fundamentais.
Proposto como dispositivo analítico, o grupo serviu
para descristalizar posições e papéis a partir dos quais esses
sujeitos construíram suas identidades: “antes era tudo por
causa da maldita cachaça”. Quando pensamos os grupos em
geral com dispositivos, sem separá-los por objetivos clínicos
ou ligados à re-socialização, poderemos habitar em outro
regime de enunciação, no qual clínica e política formariam
um espaço de mútuo engendramento. transversalizamos,
com isso, as questões ditas sociais e políticas bem como as
chamadas subjetivas ou “íntimas” (bEnEvidEs, 2001):
Depois que eu comecei a participar desse grupo eu vi que eu tenho que ir atrás das minhas coisas. Não posso ficar só me queixando, querendo que os outros mudem. O tempo está passando e eu vou fazer o que da minha vida?
o espaço pode ser visto como um “aprendizado.
a gente precisa de novas idéias, novas experiências para
se reciclar”. Isso ocorre na medida em que trabalhamos
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PACHECO, M.L.; ZIEGELMANN, L. • Grupo como dispositivo de vida em um caPs ad: um cuidado em saúde mental para além do sintoma
sob a perspectiva da integração social e da produção de
autonomia, incentivando os próprios sujeitos a buscarem
outros modos de existência: “É como eu já disse para
vocês uma vez: não adianta mudar os caminhos, mas
sim o jeito de caminhar”.
Em um dos encontros, um participante do grupo
comunicou seu afastamento devido a uma cirurgia de
redução de estômago que sofreria:
Eu queria dizer para vocês que eu terei que me afastar do grupo. Eu fui chamado para fazer uma cirurgia de redução de estômago e agora é isso que está me faltan-do. Eu quero poder caminhar, andar de ônibus, hoje eu não caibo nas poltronas do ônibus. Eu quero poder comprar roupas, sair, dançar, voltar a trabalhar. Eu tenho só 35 anos e quero mais é viver.
Escutar o desejo desse participante e percebê-lo
como responsável por sua própria vida é cuidar de forma
integral, é tomá-lo como sujeito capaz de ter autonomia
para fazer suas próprias escolhas. o rompimento com
o paradigma tradicional desloca o objeto de cuidado
da doença para o sujeito em sua existência-sofrimento
(alvEs, gulJoR, 2006).
através de trocas, os participantes transformam suas
questões em problemas e realizam novas ações, na tenta-
tiva de solucioná-los. a fala de cada um pode convidar
o outro a novos entendimentos, ampliando os domínios
de significação: “ao escutar as outras histórias, eu pude
rever a minha própria história”. o grupo possibilita a
experiência genuína da alteridade como valor orienta-
dor de vida. Estamos mergulhados em uma sociedade
centrada no indivíduo, onde o outro serve como objeto
de usufruto de cada um. o contato com o coletivo pode
despertar novos posicionamentos frente a esse modo de
individualização dominante que perpassa as formas do
sujeito se relacionar consigo e com os outros: “No início
eu achava que os meus problemas eram maiores e mais
importantes do que os dos outros”.
outro ponto importante foi a percepção de que os
resultados alcançados vão além do espaço grupal: “o que
a gente vive aqui, leva para lá fora. Quando eu estou
em casa eu penso naquilo que a gente conversou aqui”.
a vivência pode servir para “descristalizações de lugares
e papéis que o sujeito-indivíduo constrói e reconstrói
em suas histórias” (bEnEvidEs, 1995, p. 152): “antes eu
pensava que o meu problema era o maior de todos, só
pensava em mim”.
Ver o grupo como disparador de novos modos de
subjetivação, é considerar que as diferenças, e não as
igualdades, possibilitam novas formas de existir e signi-
ficar a vida. Em grupo são desenvolvidas as habilidades
interpessoais, o desempenho de papéis designados pela
cultura, a participação nos processos coletivos e as so-
luções para os problemas.
“Esse grupo é forte porque aqui a gente fala a
verdade. Eu venho aqui porque me faz bem”. Essa força
à qual o membro do grupo se refere mostra que poder
falar do cotidiano e de seus diferentes atravessamentos
é saudável e produz autonomia. o cuidado para além
do sintoma da dependência incentiva o sujeito a buscar
outras respostas, a dar novos sentidos aos seus desejos e
às suas relações libertando-se, assim, dos sintomas. E aí
que reside a sua força.
Em nossos encontros, os participantes procuravam
outras maneiras de viver a vida. ao invés de usar drogas
para ‘aliviar’ sentimentos, pensavam na companhia da
família, dos amigos e, muitas vezes, na companhia de
si mesmo.
Na metade do ano, os participantes começavam
a chegar um pouco antes do horário do grupo para
conversar entre eles dentro do caPs, sem a presença dos
‘doutores’. Era uma conversa informal, ‘mais livre’, de
‘amigo’. Nos grupos, os participantes mencionavam que
gostariam de se encontrar: “fora do caPs, a gente poderia
marcar um churrasquinho”. Nesse momento, o grupo
passou a caminhar com mais autonomia ou, segundo
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Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 108-120, jan./dez. 2008
PACHECO, M.L.; ZIEGELMANN, L. • Grupo como dispositivo de vida em um caPs ad: um cuidado em saúde mental para além do sintoma
Maturana e Varela (1997), a partir de um andar auto-
poiético. ainda de acordo com esses autores, o grupo
já funcionava como dispositivo para o desenvolvimento
de duas características básicas do viver: a potência de
criação de si e sua capacidade de autonomia, produzin-
do o aumento progressivo das potências criativas e de
autonomia na busca de novas composições de si.
PARA FINALIZAR
Este trabalho, escrito por vários outros além de
mim, buscou contribuir com a criação de campos de
atuação que reivindiquem a singularidade, a multiplica-
ção de modos de subjetivação, o resgate da criatividade,
tomando a clínica como desvio. tivemos como objetivo
abrir reflexões acerca de cuidados em Saúde Mental,
incentivando mais pesquisadores a criar problematiza-
ções e construir outros saberes. Não tenho a pretensão
de fechar a discussão e nem de afirmar que a clínica de
grupos voltada para a produção de subjetividade seja
melhor ou pior do que outras modalidades de grupo ou
da individual, mas procurei mostrar que o modelo de
atenção integral e o espaço grupal possibilitam que os
sujeitos não fiquem tão fragmentados em sua escuta.
a ação terapêutica proposta foi a de cuidar da pessoa
a partir da escuta de sua vida, com a intenção de produzir
outros modos de existência, potencializando, dessa froma,
a saúde, a autonomia e a liberdade, mesmo que isso se mos-
trasse desafiante. Foi preciso pensar em uma clínica integral
voltada para outras produções subjetivas; um cuidado que
considerasse a complexidade de vida dos sujeitos, tomando
o sofrimento psíquico, no caso o consumo de álcool e dro-
gas, não apenas como algo provocado pelo indivíduo, mas
como algo decorrente de uma produção social.
No desenrolar dessa experiência, pude perceber
que o grupo funcionou como dispositivo quando pro-
duziu pequenas rupturas nos modos de subjetivação
do coletivo em relação ao sofrimento, às relações e às
histórias individuais. o desenvolvimento desses atri-
butos produziu nos sujeitos um aumento de algumas
potências criativas e da autonomia, construindo novas
composições de si.
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recebido: abr./2008
aprovado: jul./2008
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 121-132, jan./dez. 2008
artIgo orIgINal / ORIgINAL ARTIcLE 121
Panorama do tratamento dos usuários de drogas
no rio de JaneiroAn overview of treatment service for drug-addicts in Rio de Janeiro
“É muito antes do ópio que minh’alma é enferma”Fernando Pessoa
RESUMO Este artigo reflete sobre a construção de uma rede de assistência
em álcool e outras drogas no Rio de Janeiro durante 1980 a 2004, mediante
movimento da Reforma Psiquiátrica e os primórdios da formulação de políticas
públicas no campo. Utiliza-se de abordagem qualitativa, baseada na história
de vida de atores sociais, e sua relação com a implantação de instituições e
serviços ligados a este cuidado especializado. Apesar da implantação de um
modelo de assistência baseado nos centros de Atenção Psicossociais, neste período
permaneceram várias contradições e dicotomias, como se o modelo da Reforma
Psiquiátrica passasse ao largo das práticas efetivamente propugnadas.
PALAVRAS-CHAVE: Assistência à Saúde Mental; Dependência química;
Reforma dos serviços de saúde.
ABSTRACT This article deals with the reflexion, concerning the installation of
a service for the assistance of alcoholics and drug-addicts in Rio de Janeiro, during
the period of 1999 to 2004, by means of the Psychiatric Reform movement which
anticipated the public policy of treatments in the field. It covers a qualitative
approach based on the history of the social actors and its relations with the
introduction of services and instructions devoted to this specialized care. Despite
the implantation of an assistance model based on the psychosocial scope centers,
during the period it was verified a lot of contradictions and dichotomies, like
the Psychiatric Reform model would navigate far from the effectively supported
practices.
KEYWORDS: Assistance to Mental Health; Drug addiction; Health services
reform.
Magda Vais sman 1
Mari se ramôa 2
artemis Soares Viot Serra 3
1 Mestre e doutora em Psiquiatria pelo
Instituto de Psiquiatria da Universidade
Federal do rio de Janeiro (IPUB/
UFrJ); coordenadora da Unidade de
Problemas relacionados ao Uso de
Álcool e outras drogas (UNIPrad) do
Hospital Escola São Francisco de assis
(HESFa) da UFrJ; médica psiquiatra
desta unidade.
2 Mestre e doutora em Psicologia
Clínica pela Pontifícia Universidade
Católica do rio de Janeiro (PUC-rio);
supervisora do Centro de atenção
Psicossocial para Álcool e outras drogas
(CaPS ad) Mané garrincha, do rio de
janeiro.
3 Mestre em Serviço Social pela Escola
de Serviço Social (ESS) da UFrJ;
assistente social da UNIPrad/HESFa/
UFrJ.
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 121-132, jan./dez. 2008
122 VaISSMaN, M.; raMôa, M.; SErra, a.S.V. • Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro
I N T R O D U ç Ã O
o estudo é sobre a construção de uma rede de aten-
ção ao uso de drogas no estado do rio de Janeiro. Nos
últimos vinte anos foi observada uma discrepância entre
as propostas e implementações de serviços pautados no
movimento da reforma Psiquiátrica1, no que se refere
à assistência à loucura e dependência de drogas.
o objetivo foi desenvolver um histórico dessa as-
sistência e da situação dos dispositivos de tratamento.
Utilizou-se uma abordagem qualitativa com entrevistas
com profissionais representativos do campo e análise
de cadastros de serviços. Neste período, prevaleceu a
iniciativa privada na oferta de serviços e no treinamen-
to de recursos humanos, devido à ausência de política
pública. Mas, a partir de 2002, o Ministério da Saúde
estabelece política para o setor2.
Nos primórdios da estruturação deste campo, os
serviços ambulatoriais ou hospitalares eram privados e
inspirados em experiências pessoais3. tinham a hipótese
de que a vivência pessoal construiu uma prática bastante
solidária4, mas, pouco teorizada, com influências norte-
americanas e metodologia pragmática. Nesse período,
existia um profundo debate entre profissionais da Saúde
Mental, no âmbito da reforma Psiquiátrica, referente
às noções de doença, de periculosidade e da internação
como exclusão social entre outras.
o paralelo entre o campo da Saúde Mental e a
organização de serviços de drogas, teve o objetivo de
contribuições para conscientização da necessidade de
consolidação e desenvolvimento de políticas públicas
na área em nosso estado. Em 1980 surgiram os Centros
de atenção Psicossocial (caPs), dispositivos usados
para psicóticos e neuróticos graves, como resposta à
ineficácia do sistema ambulatorial em reduzir o núme-
ro de internações em hospitais psiquiátricos. Mas os
dependentes de drogas que se encontravam internados
em hospitais psiquiátricos ou que já estavam sendo
atendidos em ambulatórios, com várias reinternações,
não foram beneficiados por tal política, a não ser no
caso de comorbidade.
o termo ‘dependência química’ apareceu freqüente-
mente nas falas dos entrevistados referentes a serviços neste
período estudado. ressaltando a noção de doença, valori-
zando o produto em si e confundindo as várias formas de
relação do usuário com as drogas, como o uso, abuso e a
dependência. a ‘dependência química’ apresenta-se como
objeto dos campos dos saberes médico e jurídico, numa
ênfase dada à droga, o que pode levar a ações repressivas,
com caráter de ‘guerra às drogas’ e à manutenção do
desaparecimento do sujeito. No campo do saber médico
o dependente de outras drogas é visto como doente que
requer cuidados especializados e no campo jurídico como
doente e criminoso5. deve-se pensar em uma assistência ao
usuário de drogas que não o remeta sempre à sua impotên-
cia e sim a sua potência de vida, pois é justamente isso que
o paciente busca em seu afã por um grande êxtase.
1 No contexto de reforma, a Psiquiatria difere da Saúde Mental. de acordo com Saraceno (1999, p. 144-145), a primeira se refere ao trato da doença mental e a segunda coloca no centro da intervenção a dinâmica da saúde-doença, em que, além de tratar o trabalho de prevenção e promoção de saúde também são imprescindíveis para o desenvolvimento do bem-estar das pessoas.2 Política do Ministério da Saúde para atenção Integral a Usuários de Álcool e outras drogas, 2003. Portaria 816/gM (30/04/2002) e em maio dispõe sobre as normas para funcionamento e cadastramento de caPs ad.3 “na criação de serviços e unidades de tratamento de dependentes químicos sempre estiveram presentes vários atores que têm em comum uma história escrita de muito suor, sofrimento e sangue”. (Freire, E., comunicação oral).4 Porém, segundo richard rorty (1993), as pessoas são solidárias quando aceitam as diferenças, o que não ocorreria, portanto, num grupo de iguais.5 a legislação a respeito (1976 a 2001) sempre foi muito confusa, pois um usuário e traficante eram criminalizados e penalizados, pois sempre houve graves dificuldades de se avaliar essa distinção, visto que muitos usuários, em função da situação de violência nas ‘bocas de drogas’ optam por comprarem grandes quantidades de substância para uso, mas seriam enquadrados como traficantes, pois o critério usado pela Justiça é o de quantidade.
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 121-132, jan./dez. 2008
123VaISSMaN, M.; raMôa, M.; SErra, a.S.V. • Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro
Mas o que houve historicamente para que o campo
tenha se organizado isoladamente da Saúde Mental
e das propostas de políticas públicas, até o final dos
anos 1990?
Um setor da medicina tentou preencher a falta de
políticas específicas na área, com iniciativas privadas,
marcadas pelo isolamento, entendendo a internação
como medida terapêutica ou como o tratamento.
Pensou-se na organização de serviços para usuários
de drogas no campo da Saúde Mental e a possibilidade
de articulação de diversos saberes para a construção de
uma prática com os usuários, que se baseie em uma
assistência de âmbito territorial6, na prática possível dos
caPs ad e na constituição de uma rede.
METODOLOGIA
Utilizamos a abordagem de pesquisa social em
saúde como apreensão da realidade e a estratégia de
‘história de vida’ (minayo, 1996, p. 126-129) por ser
apropriada para ser traçada uma história dos primeiros
serviços para dependentes de drogas no rio de Janeiro
e conseqüentemente, sobre impasses e possibilidades de
construção de uma rede para atendimento de usuários
de drogas.
Foram realizadas seis entrevistas com atores que
identificamos a partir de nossa vivência no campo da
assistência, como importantes, os quais atuaram no
período inicial de 1980 a 1990.
Posteriormente, procedemos à análise qualitativa
das histórias de vida contidas nestes depoimentos e foi
desenvolvida uma análise do discurso, o que possibilitou
o levantamento de algumas questões.
Paralelamente, realizou-se um levantamento das
instituições disponíveis no estado do rio de Janeiro
até agosto de 2004, a partir de dados organizados pelo
Conselho Estadual antidrogas, e do cadastro orga-
nizado pelo Instituto de Psiquiatria da Universidade
Federal do rio de Janeiro (iPub/UFrJ) em parceria
com o nEPad/UErJ.
ALGUNS ASPECTOS CONJUNTURAIS
atualmente vive-se uma pandemia de drogas com
a explosão do consumo, da criminalidade e da violên-
cia a elas relacionadas a partir da década de 1980. Se
anteriormente, nos anos 1970, o uso de drogas estava
aliado a um enfrentamento político, jovens protestavam
contra a política militarista norte-americana no bojo da
guerra do Vietnã e manifestavam seu apoio a Martin
luther King pela paz, hoje a relação do sujeito com a
droga é outra, sendo a droga representada por um ob-
jeto de consumo, em uma busca desenfreada por prazer
individualista (Ramoa, 1999).
o resultado da política de repressão ao tráfico de
cocaína dos países sul-americanos, estabelecida pelos
Estados Unidos e Europa, o Brasil torna-se importante
rota e parte considerável da produção passa a ser destina-
da ao consumo interno, com conseqüente agravamento
da violência urbana.
a partir da década de 1990, o uso de drogas, sua
produção e comercialização passaram a representar um
problema mundial ao lado da aids, fome, violência e
corrupção. torna-se conseqüentemente motivo de posi-
cionamento da organização das Nações Unidas (oNU)
na 20ª Sessão Extraordinária da assembléia geral das
6 território entendido não apenas como região, mas no sentido de um pulsar das relações entre horizontalidades e verticalidades. as horizontalidades serão dos domínios da contigüidade, daqueles lugares vizinhos reunidos por uma continuidade territorial, enquanto as verticalidades seriam formadas por pontos distantes uns dos outros, ligados por todas as formas e processos sociais. (santos, M.; silvEiRa, M., 2002.)
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 121-132, jan./dez. 2008
124 VaISSMaN, M.; raMôa, M.; SErra, a.S.V. • Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro
Nações Unidas em 12 de dezembro de 1996, quando
foram propostas medidas de cooperação internacional
no enfrentamento do problema das drogas.
Houve também neste colóquio o reconhecimento
do princípio de ‘redução de demanda’, essencial no
enfrentamento do problema, com o compromisso de
introduzir programas e estratégias nacionais pretenden-
do-se obter resultados significativos e mensuráveis até
2008 (bRasil/sEnad, 2001). assim, em 2001 o Brasil
adota em âmbito nacional uma Política antidrogas que
representa um avanço, ao aderir as diretrizes da ‘redução
da demanda’, ao invés de priorizar somente ações de
cunho repressivo e de segurança e um retrocesso, no
que se refere ao que já vinha acontecendo em termos de
política de redução de danos. Em 1998, a Casa Militar
da Presidência da república assume a coordenação da
Secretaria Nacional antidrogas (Ramos, 1998).
a proposta de redução da demanda corre o risco de
ser atrelada à idéia de criminalizar o usuário e/ou depen-
dente de drogas e responsabilizar tal parcela da população
pela existência do tráfico de drogas, ao invés de questionar
a necessidade de descriminalização da droga.
Porém, a institucionalização e a globalização do
narcotráfico na contemporaneidade devem ser levadas
em consideração como questões que apontam para a
necessidade de uma assistência ao usuário de drogas, que
seja pautada em uma prática territorial, visto que deve
pensar em criar condições de enfrentamento do tráfico
de drogas a partir de alternativas de lazer, de trabalho
etc., para que o usuário de drogas e que muitas vezes
se introduz no tráfico para obter a droga, adquira de
fato e de direito seu lugar de cidadão na sociedade, não
sendo visto como doente ou criminoso, mas como uma
existência em sofrimento (PRocóPio: 1999, p. 70- 94;
RottEli; lEonaRdis; MauRi,1990, p. 17-59). a reforma
Psiquiátrica traz a preocupação não só com a doença,
mas com o sujeito que sofre e foi influenciado pelo mo-
vimento de reforma Sanitária na sua constituição7.
OS SERVIçOS PARA USUÁRIOS DE DROGAS E
SUA PERIODIZAçÃO
Há pouco tempo no setor público só havia a re-
clusão nos hospitais psiquiátricos como proposta de
‘tratamento’ para usuários de álcool e outras drogas. os
serviços psiquiátricos encontravam-se8, em sua grande
maioria, altamente despreparados tecnicamente para
enfrentar esta questão. Não havia centros de atenção
psicossocial especializados, ambulatórios, hospitais-dia,
leitos hospitalares, etc. o primeiro centro de tratamento
especializado para usuários de drogas foi o Centro de
recuperação de dependentes químicos – cREdEq9, con-
veniado com o Sistema Único de Saúde (SUS), surgiu
na década de 1980 e havia dificuldade para ter acesso ao
mesmo, cujo período de internação era de cem dias, o
que implicava em baixa rotatividade do leito hospitalar.
Em meados dos anos 1980, a conjuntura epidemioló-
gica do uso abusivo de drogas era evidente e com isso
surgiu uma demanda de atenção médica e psicológica
mais especializada, visto que o atendimento em hospi-
tais psiquiátricos, desde seu surgimento, trouxe como
herança dos hospitais gerais, a visão de filantropia e de
atendimento leigo-religioso.
7 amarante (1995, p. 93-99) apud Silveira da Silva (2000) destaca três momentos da estruturação da reforma Psiquiátrica Brasileira: 1-trajetória alternativa (de meados de 1970, no movimento contra a ditadura militar); 2-trajetória Sanitarista (no início dos anos 1980, profissionais reformistas da saúde incorporam-se ao aparelho de Estado); 3-trajetória da desinstitucionalização (desconstrução/invenção), que surge na I Conferência Nacional de Saúde Mental, abrindo o caminho para a mudança do Movimento dos trabalhadores em Saúde Mental para o da luta antimanicomial.8 ainda hoje a situação não é muito diferente.9 cREdEq – instituição da assistência Social evangélica.
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 121-132, jan./dez. 2008
125VaISSMaN, M.; raMôa, M.; SErra, a.S.V. • Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro
logo, no rio de Janeiro, até a década de 1980, ou
se tinha uma alta quantia para custear um tratamento
especializado ou ia-se para o hospício. Naquele momen-
to era predominante a filosofia de tratamento baseada na
exclusão do usuário do contexto social, laboral e familiar.
a internação em clínica especializada constituía-se como
a única alternativa de tratamento.
Surgem, então, os primeiros serviços de atenção
a dependentes de drogas na cidade do rio de Janeiro,
cuja historiografia encontra-se sintetizada no Quadro
1 (em anexo 1)10.
Nos depoimentos levantados e já mencionados
anteriormente é bastante relevante que a história pessoal
destes precursores com a droga, funcione como um me-
canismo propulsor de criação de serviços, podendo levar
a uma posição de maior solidariedade ou de maior difi-
culdade de suporte teórico para as referidas práticas.
o motivo em se envolver no cuidado aos usuários
de álcool e outras drogas deve-se à existência de algum
membro com este problema na própria família ou por
vivência pessoal com esta problemática. a única ex-
ceção até 2001 é o Núcleo de Estudos e Pesquisas em
atenção ao Uso de drogas da Universidade do Estado
do rio de Janeiro (nEPad/UErJ), pois a equipe de
profissionais que criou este núcleo buscou na psicanálise
subsídios para sua metodologia de trabalho em atenção
às toxicomanias seguindo o modelo francês em sua fun-
damentação prática e teórica, inclusive sob supervisão
do psicanalista francês Claude olievenstein do Centro
Marmotan de Paris.
Esta instituição foi a primeira de caráter univer-
sitário no estado, sendo responsável pela formação de
inúmeros pesquisadores deste campo de saber. desen-
volveu os primeiros levantamentos epidemiológicos
sobre o consumo de drogas entre estudantes do ensino
fundamental e médio no estado. No entanto, em face de
sua perspectiva filosófica baseada no modelo francês de
toxicomania na atuação clínica, o nEPad passou a ficar
solitário em relação a outros núcleos, pois sua área de
atuação restringia-se às drogas ilícitas, sendo os usuários
de álcool encaminhados a outros serviços.
Se por um lado o setor público não apresentava
alternativas ou condições de acesso ao dependente de
drogas, por outro a assistência psiquiátrica mostrava-se
inadequada e despreparada. diante deste panorama, o
setor privado vislumbra a possibilidade de um grande
negócio na área da saúde, sem concorrentes. todavia,
assume um papel importante e propõe como estratégia
de tratamento o modelo chamado Modelo Minne-
sota, inspirado nos passos e tradições dos alcoólicos
anônimos e que fomentou o surgimento de toda uma
geração de profissionais e instituições seguidoras de seus
ensinamentos, a partir de um centro de tratamento para
dependentes químicos chamado Vila Serena.
Esta instituição teve um papel fundamental de
formação de uma ideologia de tratamento aos usuários
de álcool e outras drogas e de articulação de uma política
privatista de atenção, não somente no rio de Janeiro
como em todo o Brasil. Vila Serena, cujo berço foi no
Estado de São Paulo, se tornou após alguns anos uma
‘franchising’, a primeira no Brasil em termos de trata-
mento de ‘dependentes químicos’, e exportou seu mode-
lo de atendimento a várias capitais brasileiras e cidades
do interior; sendo inicialmente financiada por grandes
empresas multinacionais como Mcdonald’s e a Johnson
& Johnson para a internação de seus executivos.
Fundada em l983 pelo ex-padre John Burns, o qual
trouxe ao Brasil o modelo de tratamento de abordagem
norte-americana do confronto com a realidade do adicto
e de práticas psicopedagógicas através de dinâmicas e
10 Cabe ressaltar que na retrospectiva não foi feita uma separação clara entre os setores públicos e privados, pois se sabe que são complementares dentro do SUS, cabe ao poder público: a regulamentação, normalização, auditoria e controle do sistema como já vigora para o funcionamento de comunidades terapêuticas, segundo o modelo psicossocial (resolução - rdC /anvisa, nº 101 de 30 de maio de 2001).
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 121-132, jan./dez. 2008
126 VaISSMaN, M.; raMôa, M.; SErra, a.S.V. • Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro
Instituição Modelo Tipo Tipo de Atenção1971-1980
Comunidade S8 1971 ComunidadeTerapêutica
Filantrópica Internação ePós-tratamento
1980-1985
Hospital Pedro Ernesto 1980Vila Serena 1983Hospital Pinel UTA 1985Hospital Estadual Pedro II * (Santa Cruz)
Psicossocial MinessottaPsicossocialPsicossocial
Universitário PrivadaPúblicaPública (SES)
AmbulatórioInternaçãoInternaçãoInternação
1985 -1990
Credeq 1985*Nepad (UERJ) 1985 OPJ 1987Clínica Contexto 1989Hospital da PM 1988Fundação Osvaldo Cruz 1988
MinessottaPsicanalistaDay-TopMinessottaMinessottaPsicossocial
Filant. (SUS)UniversitáriaFilantrópicaPrivada CorporativaUniversitária
InternaçãoAmbulatórioInternaçãoAmbulatórioInternaçãoAmbulatório
1990-1995
Clínica Jorge Jaber 1989 Clínica Aldeia 1991Casa do Caminho
MinessotaMinessotaMinessota
PrivadaPrivadaFilantrópica
InternaçãoInternação Internação
1995-2000
Cepral/UFRJ 1995projad/UFRJ 1996Unidade Certa* 1996 (Casa de Saúde Dr. Eiras)Centro Vida 1996Projeto Bem-Te-Vi* 1997-1999
PsicossocialPsicossocialMinessotaMinessotaMinessota
UniversidadeUniversidadePrivada (SUS)FilantrópicoFilantrópico
AmbulatórioAmbulatórioInternaçãoCentro-diaAmbulatório
Santa Casa da Misericórdia (RJ) 1998NAAD 1998Integrarte Petrópolis 1998Celeiro da Saúde 1999Caps ad Estadual Centra-Rio 1999Rede FIA-19981. Criaa UFF (Niterói) 19982. Resgate (Campos) 1998 3. Ceata (Duque de Caxias) 1998 4. AADEQ* (Jacarepaguá)* 2000-2005 5. CASA DO LINS* Fundação Simonton IBMR 1999-20056. Reencontro Casa da Vila (S. João do Meriti) 19987. Gaia (Volta Redonda)8. amai (Campos) 9. Casa de Guaratiba* (Rio de Janeiro) 1998-2000Cead/deprid (SEAS)1998Clínica Michelle de Morais 2000Projeto Nossa Casa (deGase) 2000
PsicossocialPsicossocialPsicossocialMinessota Psicossocial
PsicossocialPsicossocialPsicossocialMinessotaPsicossocialMinessota Minessota PsicossocialMinessota MinesotaMinessota Psicossocial
UniversidadePúblico (SMS)FilantrópicoFilantrópicoPúblico
UniversitárioONGONGONGONGONG ONGONGONGPúblicoONG (SEAS)Público
AmbulatórioAmbulatórioCentro-diaCentro-diaHospital-dia
Centro-diaAmbulatórioAmbulatórioAmbulatórioAmbulatórioAmbulatórioAmbulatórioAmbulatórioInternaçãoAmbulatórioInternaçãoAmbulatório
2001 - 2005
Cepuad/UFRJ 2001-2005*Cead Ambulatório Intensivo 2001 RecuperandoVidas (deGase) 2001REVIVA (Barra Mansa) 2001Semente do Amanhã (Barra Mansa) 2003 uNiprad/UFRJ 2005Caps ad Raul Seixas 2003Transformando Viver (FIA) 2005Semente do Amanhã (FIA) 2003Clínica Nise da Silveira 2003 Clínica Ricardo Iberê Gilson 2001
PsicossocialMinessota PsicossocialPsicossocialPsicossocialPsicossocialPsicossocialMinessotaMinessotaMinessotaMinessota
Universidadedeprid-SEJPúblicoONGONGUniversidadePúblico (SMS)ONGONGPúblico (SEAS)Público (SEAS)
AmbulatórioAmbulatórioInternaçãoInternaçãoInternaçãoAmbulatórioHospital-diaCentro-diaInternaçãoInternaçãoInternação
2001 - 2005
Cepuad/UFRJ 2001-2005*Cead Ambulatório Intensivo 2001 RecuperandoVidas (deGase) 2001REVIVA (Barra Mansa) 2001Semente do Amanhã (Barra Mansa) 2003 uNiprad/UFRJ 2005Caps ad Raul Seixas 2003Transformando Viver (FIA) 2005Semente do Amanhã (FIA) 2003Clínica Nise da Silveira 2003 Clínica Ricardo Iberê Gilson 2001
PsicossocialMinessota PsicossocialPsicossocialPsicossocialPsicossocialPsicossocialMinessotaMinessotaMinessotaMinessota
Universidadedeprid-SEJPúblicoONGONGUniversidadePúblico (SMS)ONGONGPúblico (SEAS)Público (SEAS)
AmbulatórioAmbulatórioInternaçãoInternaçãoInternaçãoAmbulatório
Centro-diaInternaçãoInternaçãoInternação
*Não realizam mais esse tipo de assistência. o Hospital Estadual Pedro II, após participação em curso de atualização na área de álcool e outras drogas, para a zona oeste, promovido em 2007 pela coordenação de saúde mental do município do rio de Janeiro, tenta reativar atendimento a dependentes de drogas. Fonte: Catálogo de Serviços para dependência Química, 4ª edição, Conselho Municipal de Entorpecentes (comEn), Prefeitura do rio de Janeiro; Catálogo de Serviços Núcleo de Estudos e Pesquisas em atenção ao Uso de drogas da Universidade do Estado do rio de Janeiro, Universidade Federal do rio de Janeiro (nEPad/UErJ/UFrJ)
Quadro 1 - Principais serviços na área de álcool e outras drogas de 1971 a 2005 no rio de Janeiro.
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 121-132, jan./dez. 2008
127VaISSMaN, M.; raMôa, M.; SErra, a.S.V. • Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro
palestras baseadas na filosofia dos grupos de mútua-
ajuda. outra forma de atuação deste grupo preconizava
a intervenção específica para ‘dependência química’ nas
empresas, mais conhecidos como Programas de assis-
tência ao Empregado (PaE), através de treinamento
de assistentes sociais e supervisores, que ao identificar
casos de ‘usuários pesados’11, deveriam encaminhá-los
para tratamento interno em Vila Serena. após a alta da
internação de 28 dias, em média, os trabalhadores se-
riam acompanhados pelas assistentes sociais no setor de
trabalho nas empresas, sendo que estes grupos nos locais
de trabalho foram chamados de pós-tratamento12.
Em Vila Serena também era ofertado um grupo de
reflexão e acompanhamento para ex-residentes e que
fazia parte do chamado pós-tratamento (buRns, 1995,
p. 25-27). Isto implica na idéia de que ‘tratamento’ se
faz sob regime de internação e que o seguimento não
é tratamento e sim pós-tratamento, ou seja, posterior
à exclusão social, em que pese ficar marcada como
instrumento terapêutico à semelhança do tratamento
moral dado aos loucos de toda sorte dos primórdios da
psiquiatria pineliana.
Naquela época, havia uma carência de profissionais
aptos para o atendimento aos dependentes. Médicos e
outros profissionais estavam distantes desta realidade;
não havia elo de identificação, além da sabida falta
total de preparo de profissionais da área de saúde e da
Saúde Mental. Surge então como proposta de atenção
aos usuários: utilizar-se daqueles que vivenciaram o
processo de uso de drogas e que saíram do ‘pesadelo
das drogas’13, através da ajuda de grupos de mútua-
ajuda, seriam justamente os que estariam aptos a tratar
dos dependentes – surgem, então, os conselheiros em
dependência química.
Vila Serena trouxe a prática do aconselhamento14,
ofereceu cursos e palestras a leigos e profissionais inte-
ressados em temas de dependência de drogas. Baseada
na metodologia da Fundação Halzenden/Minnesota, a
qual valorizava a ponte com os alcoólicos anônimos,
o grupo dirigente de Vila Serena sai fortalecido por
membros dos movimentos de mútua-ajuda. Nesse pe-
ríodo, com a valorização profissional da metodologia dos
12 passos, há uma estimulação também de criação de
grupos de Narcóticos anônimos e de familiares (na-
Ranon), já que se iniciava o grande ‘boom’ de consumo
das drogas ilícitas.
Neste cenário de ambientes de tratamento percebe-
se o surgimento de um novo ator na figura do ex-depen-
dente, o qual se prontifica a contar seu drama pessoal a
outro, ainda em fase de recuperação, possibilitando, a
princípio, que o internado ou residente realize a iden-
tificação a partir de suas vivências pessoais. Estes conse-
lheiros passam a atuar junto da equipe de saúde como
agentes de motivação e em certas unidades até mesmo
como figura central em programas de recuperação sob
regime de internação, conforme ainda hoje é adotado
na grande maioria das comunidades terapêuticas15 que
oferecem tratamento ‘leigo’ e sem a necessidade da pre-
sença de pelo menos um médico clínico/psiquiatra na
equipe, conforme a Portaria anvisa 101/2001.
Esta modalidade de atuação, ‘aconselhamento’,
até então não existia no escopo de atuação da equipe
11 termo utilizado por entrevistado.12 Esta abordagem compreende a questão das drogas como sendo uma doença de caráter exclusivamente orgânico e moral, sendo necessário o reconhecimento e a reparação do mal cometido a outros pelo uso da droga. o cunho religioso evangélico esteve presente desde a fundação dos alcoólicos anônimos (Ramoa, 1999).13 termo utilizado por entrevistado.14 ocupação muito consagrada nos Estados Unidos e desconhecida até então no Brasil.15 No estado do rio de Janeiro, a experiência das comunidades terapêuticas teve pouco êxito. No entanto, a Comunidade S8 em Niterói, criada em 1971, bastou para formar posteriormente uma forte tradição evangélica de atenção a dependentes. Esta comunidade leiga e de caráter filantrópico foi a pioneira e se mantém hoje como a mais antiga instituição de tratamento de dependentes .
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 121-132, jan./dez. 2008
128 VaISSMaN, M.; raMôa, M.; SErra, a.S.V. • Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro
de Saúde Mental. Foi e continua sendo mal interpre-
tada e sem maiores aportes técnicos e teóricos ou de
representação profissional. Verificou-se, assim, que o
aperfeiçoamento e o treinamento foram desde o início
uma grande preocupação do pessoal que atuava nesta
área. No caso de aconselhamento, contudo, houve um
verdadeiro ‘boom’. todos se arvoraram de cuidadores de
dependentes de drogas e houve uma vasta proliferação
de pequenos treinamentos, de modo geral capitaneados
pelas clínicas privadas para atender a qualquer interessa-
do, sem quaisquer requisitos acadêmicos prévios.
No período de 1980 a 1989, o papel da equipe de
Saúde Mental e do profissional de saúde ainda tinha
pouca relevância. Esta situação perdurou até 1990,
quando se se constataram inúmeros casos de comorbi-
dade psiquiátrica16.
Exceto a necessidade premente de utilização de téc-
nicas específicas de terapia de família e de outros suportes
psicoterapêuticos, os psiquiatras assumiram naquela
época a liderança de muitas equipes. Mas, começava a
se delinear uma psiquiatria diferente na relação com o
poder médico, em que o cuidado é obrigatoriamente
compartilhado com o restante da equipe, frente por um
lado, ao pobre arsenal psicofarmacológico disponível, e
por outro, à magnitude do problema ‘drogas’ com suas
múltiplas causas e a necessidade de atuação multidisci-
plinar, assumindo-se, assim, o compartilhamento das
decisões em grupo, seja com relação ao diagnóstico ou
para traçar, em conjunto, as estratégias terapêuticas no
plano de trabalho. Negociam-se metas com o próprio
paciente que assume um papel ativo no seu tratamento.
Enfim, em todos os centros (com orientações meto-
dológicas diversas) abandonava-se uma postura clínica
baseada na forma hierárquica de cuidado e passava-se
a uma atuação mais horizontal contando-se com uma
equipe multidisciplinar.
até 1995, o modelo predominante no rio de
Janeiro foi centrado no hospital e totalmente desar-
ticulado com o sistema ambulatorial. Em termos de
seguimento, existia o que se chama ainda hoje de pós-
tratamento, geralmente um atendimento semanal em
grupo, pelo prazo de 12 meses, o mesmo ocorria nos
programas financiados pelas empresas. Estas encami-
nhavam seus empregados às clínicas particulares, que
realizavam um acompanhamento, geralmente dentro
da empresa, em grupos de empregados que passaram
por internação em clínica particular. o próprio ter-
mo ‘pós-tratamento’ já mostra o quanto se enfatiza
que o tratamento do dependente de drogas se dá via
internação em um centro de tratamento e em regime
de exclusão. Não se falava ainda em reabilitação psi-
cossocial e reinserção social, pois pela metodologia dos
12 passos a abstinência e sua manutenção eram a única
meta no tratamento.
outro modelo de assistência aos usuários foi a
comunidade terapêutica, mas praticamente não existiu
modelo de assistência em nosso estado, exceto pela pre-
sença da Comunidade S8. No entanto, foi largamente
adotado em vários estados brasileiros, principalmente
por comunidades ligadas às entidades religiosas católicas
e evangélicas17. realizava acompanhamento de pós-in-
ternação por nove meses, o qual envolvia o ambulatório
16 Estudos americanos em epidemiologia de comorbidade de transtornos relacionados ao álcool, drogas e outras desordens psiquiátricas como o Epidemiologic cathment Area (ECa) Study mostram que mais da metade dos usuários de álcool e/ou de drogas teriam, pelo menos, uma comorbidade associada. No caso da cocaína, 76% dos usuários teriam um transtorno psiquiátrico adicional. assim, existiriam as seguintes prevalências: 15,7% no último mês, 19,5% nos últimos seis meses e 32,7% ao longo da vida. Em outro estudo importante, o National comorbidity Survey (NCS) de 1994, estima que 48% de 8.098 entrevistados entre as idades de 15 a 54, reportaram abuso de substâncias e de álcool e/ou de transtornos psiquiátricos ao longo da vida. dos 26,6% que possuíam algum transtorno ligado ao uso de substância, a metade seria devido ao álcool. Quadro de ansiedade (24,9%) e doenças afetivas (19,3%) respondem pela maioria destes transtornos. (apud Beeder, a.B; Millman, r.B, 1997)17 a comunidade terapêutica baseia-se num modelo que busca integrar diversas abordagens: a médica (psiquiatria e clínica médica), a psicossocial (o modelo de base psicanalítica, terapia familiar) e a cultural (atividades de caráter espiritual, recreativo e intelectual), preconizando um regime de internação muito longa, em torno de nove meses, com fortes características de incentivo a mudanças comportamentais.
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 121-132, jan./dez. 2008
129VaISSMaN, M.; raMôa, M.; SErra, a.S.V. • Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro
de dois meses e a freqüência a grupos de mútua-ajuda. E
os trabalhos da Clínica day top e Synanon18 dos Estados
Unidos são adotados como sistema de tratamento.
No período de 1995 a 2000 inicia-se a inclusão de
novos atores no panorama de assistência aos usuários de
álcool e outras drogas no estado, até então dominado
por iniciativas lucrativas. Houve um importante avanço
e inicia-se o processo de especialização dos serviços em
nossa área, com a criação na Universidade Federal do rio
de Janeiro (UFrJ) do Centro de Estudos e reabilitação
do alcoolismo (cEPRal) no Instituto de Neurologia
(INdC) e do Programa de assistência ao Usuário de
drogas (PRoJad) do Instituto de Psiquiatria (iPub), bem
como, a implantação na Santa Casa da Misericórdia dos
Programas de tabagismo e de alcoolismo.
Finalmente, inicia-se neste período, no âmbito da
universidade, a consecução de sua missão primordial
que é a de treinamento, ensino e pesquisa. São defen-
didas as primeiras teses universitárias no rio de Janeiro
neste campo de saber. Consolida-se, no rio de Janeiro,
uma nova geração de professores e pesquisadores sobre
dependência de drogas e com grandes perspectivas de
criar novas linhas de pesquisas no futuro. No âmbito
privado de ensino criam-se as primeiras pós-graduações
em dependência química na Universidade Estácio de Sá
e no Instituto Brasileiro de reabilitação (IBMr) para
formar, capacitar e oficializar novos profissionais da área
de Saúde Mental e afim, desejoso de atualizarem um
conhecimento algumas vezes previamente adquirido na
suas práticas, mas sem a sistematização de um ensino
formal acadêmico.
ocorre um verdadeiro boom nesta área, até então,
tão carente. Viu-se a instalação maciça de novos serviços
e mesmo de novas formas de financiamento do setor
público e foi aberto um amplo leque de parcerias entre
o setor publico filantrópico e de oNgs (organizações
não-governamentais) consignados no Programa de
atenção a Criança e ao adolescente Usuário de drogas,
da Fundação para a Infância e adolescência, ligada a
Secretaria de ação Social e Cidadania do estado permi-
tindo uma ampla cobertura a outras cidades do estado
do rio de Janeiro. totalizam sete unidades ambulatoriais
e de internação e três instituições ligadas à prevenção
instaladas e que mantém convênios com a FIa. os
modelos de tratamento são os mais diversos, desde
serviço universitário como o da Universidade Federal
Fluminense, aos de cunho religioso e são oferecidos
programas a adolescentes ‘infratores ou não’, na área de
prevenção, internação e ambulatorial.
Neste momento histórico surgem duas novas
instituições que trazem um novo paradigma para o
panorama da assistência pública no estado: o Centro
de recuperação de adictos (cEntRa-rIo), o primeiro
hospital-dia público na zona sul da cidade criado no final
de 1998, que apresentou um crescimento vertiginoso no
volume de atendimentos aos usuários de álcool e drogas,
atualmente conta com cerca de cem casos novos/mês
o que confirma a nosso ver a previsão de que ainda há
uma grande demanda reprimida de pessoas com estes
transtornos que necessitam de ajuda.
o segundo momento foi com a implantação do
setor de atendimento ao usuário de álcool e outras drogas
junto ao Conselho Estadual antidrogas (cEad). o cEad
logo assumiu a tarefa do estabelecimento de diretrizes
políticas na área de assistência a dependência de drogas.
as recomendações preconizadas durante o I Fórum Esta-
dual antidrogas, realizado pelo cEad, cuja tarefa foi de
organizar as políticas de atuação no setor de prevenção,
tratamento e reabilitação de dependentes, desenhadas
naquele encontro. o cEad, através do dEPRid, assume
18 Segundo Saád (2001, p. 18), por volta de 1953, surge na Califórnia uma nova modalidade de tratamento, a comunidade terapêutica denominada Synanon. Seu fundador utilizou conceitos de comunidades terapêuticas psiquiátricas da medicina militar e conceitos de alcoólicos anônimos, mas a comunidade tera-pêutica estava mais compatível com os conceitos de reabilitação psicológica da visão criminal do uso de drogas, exceto que estava empenhada em construir uma comunidade policialesca como um passo para a redenção dos adictos.
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130 VaISSMaN, M.; raMôa, M.; SErra, a.S.V. • Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro
a missão de operacionalizar uma política de assistência
aos usuários de drogas em nosso estado. deixa de ser
um órgão meramente consultivo, passando a ocupar um
espaço político de ponta, em termos da formulação de
políticas de saúde pública na área de alcoolismo e outras
drogas e na assistência ao usuário de drogas. Naquele
momento político o governo do estado do rio de Janeiro
assumiria através do cEad uma política de assistência
aos usuários enfatizando o seu vetor social no estado.
assim, ao assumir a função de assistência e acolhimento
aos usuários de drogas e à suas famílias, favorecendo a
eqüidade e acessibilidade ao cuidado, de forma universal,
modifica drasticamente o panorama da assistência que
no início da década passada estava restrito às clinicas
privadas, a algumas obras filantrópicas ou ao hospital
psiquiátrico. Não se pode deixar de ressaltar o fato de
que durante esse período vinham sendo pensadas formas
de implantação de uma política pública para o setor,
no campo da Saúde Mental e que a iniciativa do cEad
de implantar um espaço de assistência ocorre de forma
totalmente desarticulada com as propostas divulgadas
pelas Conferências Nacionais de Saúde Mental, estando
inclusive, na ‘contramão’ de tal proposta, que privilegia
uma assistência pautada no modelo de reabilitação psi-
cossocial, não se baseando na internação como elemento
primordial de uma assistência.
Na virada do século, ou seja, de 1999 para 2000,
assiste-se a um crescimento de 300% nos atendimentos
no cEad. Pelas estatísticas divulgadas no ano de 2001,
observou-se um aumento de mulheres dependentes de
drogas procurando ajuda, a maioria associada ao uso
indiscriminado de tranqüilizantes. diante do enorme
incremento de seu ambulatório, o cEad propõe ao
governo do Estado a implementação da primeira
clínica popular de internação pública especializada no
estado, a Clínica Michelle de Morais, em dezembro de
1999, localizada no bairro de Santa Cruz no espaço
arquitetônico asilar, onde funcionou o Hospital Psiqui-
átrico raimundo Nonato. Em 2001 é implementada
a segunda clínica de regime de internação, a clínica
ricardo Iberê gilson, em Valença, na qual funcionou
um reformatório para adolescentes infratores. E a
terceira clínica Nise da Silveira em Barra Mansa. tais
unidades (perfazem o número de três, com proposta de
expansão, tendo cada uma 90 leitos disponíveis) estão
ligadas à Secretaria de ação e desenvolvimento Social
e relegam ao SUS/Secretaria de Estado da Saúde um
papel secundário na formulação e implementação desta
política, o que tenta ser modificado a partir de uma
política de Saúde Mental implantada pelo Ministério
da Saúde e que privilegia a implantação dos caPs ad.
a partir de 2001.
o iPub/UFrJ, ao criar o Programa de Estudos e
assistência a Usuários de drogas (PRoJad/UFrJ), faz no
contexto de tornar-se um centro de referência formador
de recursos humanos junto ao Ministério da Saúde no
tocante ao treinamento e capacitação de profissionais
do setor público que atuarão nos Centros de atenção
Psicossocial para Álcool e outras drogas (caPs ad), os
quais seriam implementados a partir de 2003.
No campo da Saúde Mental não foi traçado até
2001, alguma política oficial específica para a depen-
dência de drogas ainda que por parte do SUS houvesse
previsão orçamentária para recuperação dos ‘viciados’19.
Pelo contrário, no Brasil, o foco das políticas públicas de
álcool e outras drogas saíram do âmbito do Ministério
da Saúde e foi para o âmbito do Ministério da Justiça,
inicialmente com a criação do Conselho Federal de
Entorpecentes (confEm) em 1987, o qual pautou o
momento de sua atuação no plano governamental nos
últimos anos no estabelecimento de políticas ligadas à
ações de repressão aos entorpecentes.
19 artigo 32 § 1ºque diz que metade da receita de que trata o inciso I do artigo um deste artigo, apurada mensalmente, a qual será destinada à recuperação de viciados.
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131VaISSMaN, M.; raMôa, M.; SErra, a.S.V. • Panorama do tratamento dos usuários de drogas no Rio de Janeiro
Em 2001, o Brasil adota em âmbito nacional uma
Política antidrogas que representa um grande avanço ao
aderir às diretrizes da redução de demanda, no lugar
de priorizar somente as ações de cunho eminentemente
repressivo e de segurança. opera a partir de quatro dimen-
sões da ação antidrogas: prevenção, repressão, tratamento
e recuperação, reinserção social e a redução de danos.
o Ministério da Justiça ao assumir a liderança na
questão álcool e outras drogas, torna uma questão de
estado por força de pressões internacionais. Posterior-
mente, após a 20ª reunião das Nações Unidas em l998, a
Presidência da república extingue o confEm e transfere
suas atribuições ao gabinete Militar da Presidência da
república com a criação da Secretaria Nacional antidro-
gas (sEnad) e fomenta seus desdobramentos aos níveis
estaduais e municipal na luta antidrogas. ou seja, o
‘combate’ às drogas passa a ser visto como uma política
de capital importância para a preservação e manutenção
do estado brasileiro.
É a partir desse contexto histórico apresentado
que se deve entender os impasses para a implantação
de uma nova política para álcool e outras drogas, como
proposta pelo Ministério da Saúde quando lança o Pro-
grama Nacional de atenção Comunitária Integrada aos
Usuários de Álcool e outras drogas (Portaria 816/gM,
30/04/2002) e quando dispõe sobre as normas para
funcionamento e cadastramento de caPs ad, bem como
sobre o Programa Permanente de Capacitação para a
rede de caPs ad (Portaria 305/SaS de 03/05/2002).
Para que se crie uma rede de atenção ao usuário
de drogas é preciso efetivar a atual legislação em Saúde
Mental, articular os diversos setores produtivos da socie-
dade, para que a mesma possa ser de fato uma sociedade
solidária, na qual cuidar do diferente torne-se uma
conduta ética por parte de todos. Para tal é preciso que
ideologias sejam desconstruídas e para isso nada melhor
do que fazer com que os profissionais de Saúde Mental
estejam inseridos nas comunidades e que possam atuar a
partir do saber da mesma e não que estejam defendidos
em posições rígidas apoiadas em saberes pré-estabelecidos.
ou seja, a criação dessa rede é algo extremamente novo e
na contramão de propostas como Justiça terapêutica ou
práticas centradas na internação como modelo de inter-
venção. Foram propostas articulares práticas novas, tais
como internação domiciliar a programas já existentes de
Saúde Mental e de saúde da família, para que se possa a
partir de demandas produzir mudanças efetivas na vida
de quem sofre ou de quem compartilha do sofrimento
associado ao uso indevido de drogas.
R E F E R Ê N C I A S
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recebido: abr./2008
aprovado: nov./2008
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 133-142, jan./dez. 2008
artIgo orIgINal / ORIgINAL ARTIcLE 133
Homens-carrapatos e suas mulheres: relato de experiência
em Saúde Mental na Estratégia Saúde da FamíliaTick-men and their women: a report about
Mental Health issue in Family Health Strategy
RESUMO Este trabalho apresenta os resultados de uma intervenção psicossocial
planejada para atender mulheres que estavam usando medicação ansiolítica. Esta
intervenção foi organizada por uma equipe de profissionais do centro de Atenção
Psicossocial (Caps ii) em conjunto com equipes de saúde da família (ESF). Ao todo
foram realizados dez encontros com diferentes dinâmicas de grupo, desenvolvidas
para o grupo de mulheres e ESF com o objetivo de problematizar o papel da
mulher em conjunto com o significado do remédio na construção desta identidade.
constatou-se que o grupo ajudou estas mulheres a entenderem seu sofrimento para
além do sintoma, uso racional, bem como a retirada da medicação.
PALAVRAS-CHAVE: Saúde Mental; gênero; Programa Saúde da Família.
ABSTRACT This paper presents the results of a psychosocial intervention planned
to attend women who were taking anxiolytic medicines. This intervention was
carried out by a professional team from the Mental Health Services (Caps ii)
along with professional groups of the family health strategy. In total, ten weekly
meetings using different group dynamic techniques were accomplished developed
for women and professionals from the family health strategy. These meetings aimed
at discussing the women’s role, together with the meaning of the medicine in the
construction of a identity. It was found that the group helped the participants
to understand their suffering beyond the symptoms, the rational use and the
withdrawal of the medication.
KEYWORDS: Mental Health; gender; Family Health Program.
Ionara Vie i ra Moura rabelo 1
rosana Carneiro tavares 2
1 Psicóloga do Centro de apoio
Psicossocial (caPs) Beija Flor – SMS
goiânia; doutoranda em Psicologia
pela Universidade Estadual Paulista
(unEsP).
2 Psicóloga do caPs Beija Flor – SMS
goiânia; mestre em psicologia.
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raBElo, I.V.M, taVarES, r.C. • Homens-carrapatos e suas mulheres: relato de experiência em Saúde Mental na Estratégia Saúde da Família.
I N T R O D U ç Ã O
a reforma Psiquiátrica coloca-se como um desa-
fio às ações de Saúde Mental na atenção básica, pois
confronta a lógica do encaminhamento, bem como
reafirma a comunidade como o locus para o atendimento
aos transtornos metais. É a partir deste princípio que
os Centros de atenção Psicossocial (caPs) se propõem
a trabalhar em conjunto com as equipes de atenção à
saúde da família, atualmente nomeadas como Estratégia
Saúde da Família (ESF), através de diferentes estratégias
de atuação em cada região do país.
desde as primeiras oficinas propostas pelo Mi-
nistério da Saúde, realizadas no ano de 2001, para se
avaliar a inclusão de ações de Saúde Mental na atenção
básica, houve a discussão tanto dos principais proble-
mas e situações de risco em Saúde Mental, bem como,
o direcionamento para estratégias de intervenções
comunitárias conjuntas, estudos de caso, construção
de projeto terapêutico individualizado, evitando as-
sim a lógica do encaminhamento. Percebe-se que a
princípio o governo Federal optou por uma lógica
nomeada como matriciamento (ou apoio matricial)
para a atuação de equipes de Saúde Mental em con-
junto com as ESF.
o apoio matricial é uma estratégia que busca co-
nhecer e interagir com as equipes de atenção básica em
seu território; procura estabelecer iniciativas conjuntas
de levantamento de dados relevantes sobre as demandas
em Saúde Mental no território; atender conjuntamente
situações complexas, realizar visitas domiciliares acom-
panhadas da equipe e atender casos complexos em
conjunto (bRasil, 2007).
É importante ressaltar que tais estratégias confron-
tam o modelo manicomial, pois rompem com a lógica
da especialização, e, portanto, ampliam para fora do
hospital psiquiátrico todas as estratégias de atenção em
Saúde Mental. a partir destas considerações coloca-se
a relevância deste trabalho, a qual propõe relatar uma
experiência realizada no município de goiânia a partir
do ano de 2006, entre a equipe de um caPs II que
atende a usuários com transtorno mental e duas equipes
de saúde da família.
Este trabalho iniciou-se a partir de um levanta-
mento realizado pela equipe de mulheres atendidas
nesta comunidade que faziam uso continuado de
ansiolíticos. a proposta de busca apenas por mulhe-
res ocorreu em função de estudos que indicam uma
prevalência de pessoas do sexo feminino como sendo
o público que mais faz uso abusivo de ansiolíticos.
Sendo assim, justificam-se a relevância e a contempo-
raneidade deste estudo por avaliar que a consolidação
de novos paradigmas de atenção em Saúde Mental
depende das possibilidades de reinvenção da atuação
em comunidades.
OS ENCONTROS POSSíVEIS: SAúDE MEN-
TAL E ESTRATÉGIA SAúDE DA FAMíLIA
o compromisso com a intervenção nos processos
de adoecimento, através de ações localizadas na comuni-
dade, tem sido um eixo norteador da política de atenção
básica em saúde que se fortaleceu com a implantação
da Estratégia Saúde da Família (ESF), anteriormente
nomeada como Programa de Saúde da Família (PSF).
até o ano de 2007, estas equipes totalizaram aproxima-
damente 29 mil em todo o território nacional, atingindo
cerca de 90 milhões de brasileiros.
Porém, percebe-se que essas equipes apresentam
deficiências quanto às atuações em Saúde Mental visto
a hegemonia do modelo biomédico (filho; Rocha;
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fRança, 2006). dessa forma, nota-se a importância na
reflexão e pesquisa sobre estas novas práticas que se inse-
rem no processo da reforma sanitária brasileira, elegendo
neste instante o núcleo familiar como possibilidade de
intervenção e manejo do processo saúde e doença.
Simultaneamente à implantação e implementação
das equipes de saúde da família, o Ministério da Saúde
totalizou a implantação de aproximadamente 1.100
caPs em todo Brasil.
Para detectar a necessidade de expansão da rede de
Saúde Mental, a proposta do Ministério da Saúde (bRa-
sil, 2005) é de um caPs para cada 100 mil habitantes,
porém o critério populacional não deve ser o único para
se planejar a rede de Saúde Mental, cabendo ao gestor
local junto a outras instâncias planejar os dispositivos
que melhor atendam à população local. ao avaliar-se
apenas os caPs direcionados para o atendimento aos
usuários com transtornos mentais, considera-se que os
caPs I dá resposta efetiva a 50 mil habitantes, os caPs
II dá cobertura a 100 mil habitantes, e os caPs III a 150
mil habitantes, sendo assim, de acordo como Ministério
da Saúde, há déficit em todas as regiões brasileiras, pois
atualmente os caPs estão assim distribuídos: região
Norte com 0,19 caPs; região Nordeste com 0,28 caPs;
região Centro-oeste com 0,27 caPs; região Sudeste
com 0,34 caPs e região Sul com 0,41 caPs por 100
mil habitantes.
Mesmo ao se considerar um mapa com tantas
deficiências, para um país de dimensões continentais,
é importante ampliar o debate sobre a Saúde Mental,
pois a lógica do território como espaço de relações e
trocas, que permeiam os princípios do caPs e da Saúde
da Família, terminam por contribuir para a conver-
gência de ações apoiadas por um mesmo paradigma
em saúde.
a integração prevista entre os caPs e a ESF passa
a ser discutida sob um novo enfoque quando, o Minis-
tério da Saúde (2008) publica a Portaria 154 em 24 de
janeiro de 2008. tal portaria cria os Núcleos de apoio
à Saúde da Família (nasf), compostos por profissionais
de diferentes áreas de conhecimento com o objetivo
de apoiar, atuar em conjunto e compartilhar com a
ESF, práticas em saúde nos territórios sob responsabi-
lidade das mesmas. a portaria recomenda a presença
de pelo menos um profissional de Saúde Mental na
implementação das equipes dos nasf, porém, não há
exigência que este profissional esteja lotado nos caPs
do território, mas apenas que esteja lotado em uma
das unidades de saúde do território. tal fato deve ser
objeto de discussão dentro de cada município, pois
ficará a critério do gestor local a escolha da composição
e lotação das equipes dos nasf. Esta proposta fomenta
novos debates, e propõe que profissionais dos caPs
fiquem atentos para que as nasf e os caPs não passem
a desenvolver atividades paralelas, mas que possam
funcionar em rede para a atenção em Saúde Mental
no mesmo território.
ao mesmo tempo em que novos dispositivos são
criados, os trabalhadores de caPs e equipes de saúde da
família já têm construído experiências muito ricas em
Saúde Mental, mesmo que nomeadas diferente, mas que
mantém entre si a lógica do matriciamento, onde são
priorizadas a supervisão, o atendimento compartilhado
e a capacitação em serviço, com o objetivo de aumen-
tar a capacidade resolutiva das ações de Saúde Mental
naquele território.
a atuação de forma compartilhada permite a
integralidade das ações e favorece o trabalho de ques-
tões de forma transversal como o conceito de gênero,
o qual é capaz de interligar situações de exploração,
discriminação, violência, salientando determinantes
sociais e culturais que interferem na saúde de mulheres.
Para melhor especificar como o conceito de gênero se
inscreve de maneira importante no cotidiano de Saúde
Mental, são discutidos alguns estudos que abordam
esta temática.
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INTERFACES SAúDE MENTAL E GÊNERO
Para confrontar o cotidiano excludente das re-
lações em sociedade é necessário pensar as relações
historicamente construídas de exploração da mulher,
pobre, negra, analfabeta, louca, desempregada que mora
longe e sofre violência física por parte do parceiro. dar
nome, cor, sentido, data e hora para o sofrimento, pode
possibilitar aos trabalhadores e usuários dos serviços
construírem reflexões sobre o que estão vivenciando,
possibilitando a transformação desta identidade nome-
ada como vítima-doente, podendo ser reposicionada
e não só ceder à mera repetição de uma identidade
pressuposta pelo outro (ciamPa, 2001).
ao se procurar estudos que tentam compreender as
trajetórias e pontos de aproximação e afastamento das
categorias Saúde Mental e gênero, percebem-se duas
grandes bases teóricas: abordagens epidemiológicas com
base no modelo biomédico e abordagens sociológicas
que tentam compreender os determinantes sociais e as
representações compartilhadas que estão presentes no
fenômeno.
os estudos de base epidemiológica (NunEs Filho;
BuEno; NaRdi, 2000) afirmam que a prevalência de
transtornos mentais leves é maior entre mulheres,
principalmente em áreas urbanas. Com relação ao
transtorno depressivo, ele ocorre três vezes mais em
mulheres que em homens, tais dados avaliam de forma
essencialista a Saúde Mental, transformando sofrimento
em adoecimento.
Por outro lado, as abordagens sociológicas irão
enfatizar os estudos sobre como as situações de vio-
lência, exploração e gênero interferem no processo
saúde-doença. Como exemplo pode-se citar o estudo de
adeodato; Carvalho; Siqueira e Souza (2005), no qual
em uma amostra de 100 mulheres que foram agredidas
por seus parceiros e fizeram denúncia na delegacia da
Mulher do Ceará, 72% apresentaram quadro sugestivo
de depressão, 78% queixavam-se de sintomas de ansie-
dade e insônia, 39% confirmavam ideação suicida e 24%
iniciaram o uso de medicação ansiolítica após as situa-
ções de agressão. Mesmo que tal estudo seja norteado
pela semiologia psiquiátrica, ele é válido no sentido de
apontar como a rede de conflitos sociais que, em alguns
casos configuram-se também como violência intrafami-
liar, é constituinte do campo da Saúde Mental.
a situação de violência familiar constrói diferentes
processos e resistências, porém, pode-se avaliar o quanto
crianças, adolescentes e mulheres (mães de crianças,
vítimas de abuso sexual) também apresentam conflitos
e sofrimento diante da lei do silêncio imposta pelas
relações de poder (aRaúJo, 2002).
Pode-se também, encontrar discussões como as rea-
lizadas por Maragno; goldbaum, gianini e Novaes, em
que se detectaram diferenças significativas na prevalência
de transtornos mentais comuns em determinados grupos
populacionais, sendo maior entre mulheres, idosos e
pessoas com menor renda ou de menor escolaridade.
Este estudo foi realizado em regiões periféricas da ci-
dade de São Paulo e demonstra o quanto os processos
que envolvem o sofrimento psíquico conectam-se aos
indicadores de vulnerabilidade social.
Neste cenário de turbulência das relações de violên-
cia e exploração sociais, é necessário salientar o conceito
de gênero como categoria que se afasta dos princípios
essencialistas ao tentar explicar o ser humano, e tenta
investigar a realidade de maneira plural, histórica e
cultural (guaciRa,1997). Neste sentido, pode-se pensar
como as experiências vivenciadas por mulheres, que
não se igualam sob esta nomenclatura, podem produzir
‘sofrimentos psíquicos’ (reforça-se aqui o plural porque
também plural será o sofrer) diante da significação que
dão e recebem sobre seu cotidiano.
Como exemplo desta perspectiva, cita-se o estudo de
alves (2002) no qual o sofrimento descrito por mulheres
idosas, ao narrarem suas histórias de vida, é nomeado
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como ‘nervoso’, ou seja, relatam como uma vida vinculada
à pobreza e violência gerando experiências de fragilização,
e tais experiências são objetivadas num sofrimento cultu-
ralmente compartilhado, como relatos do nervoso.
a partir da concepção de que Saúde Mental e gêne-
ro tecem fios que podem ser tocados nas relações entre
profissionais de saúde e comunidade, pode-se pensar em
tais fios que ao mesmo tempo em que produzem sentidos
para as mulheres, também constroem barreiras entre
profissionais e pacientes, na medida em que existam
trabalhadores que não conseguem mais ouvir o sofrer e
o transformam em dor ou querelância, e a resposta para
este problema será a coisificação-medicalização.
Com base no que foi exposto acima, pode-se refletir
o grande investimento que o Brasil tem feito a fim de
criar novos dispositivos de atenção em Saúde Mental.
dessa forma, torna-se essencial que os trabalhadores de
Saúde Mental estejam envolvidos nesse processo, trans-
versalizando o aparato biomédico com possibilidade de
intervenções que possam enriquecer não só o referencial
teórico, mas também as estratégias utilizadas.
Sendo assim, fundamenta-se a discussão de gênero
como um dos prismas que pode transversalizar este ema-
ranhado, pois esta temática é capaz de tocar diferentes
experiências, ao mesmo tempo em que desencadeia
reflexões pertinentes ao viver em comunidade.
a conectividade do sofrimento psíquico às questões
transversais da vida em sociedade, como por exemplo, as
questões de gênero, torna-se a principal referência para a
atuação em Saúde Mental. Nessa perspectiva, destaca-se
o trabalho desenvolvido por um caPs de goiânia, em
conjunto com duas equipes de saúde da família, cujo
principal objetivo foi retomar o sofrimento psíquico pelo
viés do sofrimento sócio-afetivo relacionado às questões
de gênero, e proporcionar aos profissionais de saúde
da família a ampliação das possibilidades de reflexão e
compreensão do adoecimento psíquico para além dos
aspectos biomédicos dos sintomas.
O CAPS E A ESF:
CO-AUTORIA EM SAúDE MENTAL
o trabalho desenvolvido foi planejado em conjunto
com as enfermeiras de duas equipes de saúde da família
e com os agentes comunitários destas equipes. o pla-
nejamento em conjunto teve como principal objetivo
possibilitar a aproximação da equipe do caPs com as
equipes de saúde da família e romper com o estigma de
que trabalhar a Saúde Mental é ação restrita de unidades
de Saúde Mental, cuja compreensão coloca a atuação do
ESF na lógica de encaminhamentos quando se detecta
problemas de ordem psíquica.
o planejamento deu-se por meio de reuniões com
as equipes de Saúde da Família, a fim de fazer levanta-
mento da demanda, de quais seriam os problemas viven-
ciados pela população do bairro que pudessem indicar a
existência de sofrimento psíquico. Buscou-se nesta fase
priorizar a atenção à população feminina que estivesse
fazendo uso continuado de ansiolítico ou que estivesse
solicitando à equipe de saúde o uso da medicação. Para
este levantamento foram feitas buscas em todos os
prontuários das duas equipes, a fim de detectar aquelas
famílias que tivessem mulheres em uso de ansiolíticos
e/ou de antidepressivos. Com este levantamento foram
encontradas nas duas equipes, 53 mulheres com este
perfil (27 de uma equipe e 26 de outra).
após este primeiro levantamento foram planejadas
visitas domiciliares a todas essas mulheres, a fim de
conhecer a história de vida e uso de ansiolíticos. tais
visitas foram realizadas pelos agentes comunitários de
saúde (aCS) e tiveram importante papel para a capaci-
tação em serviço dos aCS, pois constituíram elementos
de re-significações do que é adoecimento psíquico e
de como os sintomas aparecem no curso de vida das
pessoas. todos os casos visitados foram discutidos em
equipe e propiciaram aos aCS trabalhar com crenças,
tais como, ‘usam remédio porque não conseguem dor-
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mir’; e reelaborar novos significados que permitissem
compreender os sintomas como não desconectados da
vida e da realidade dessas mulheres. Com os estudos de
caso a equipe de saúde da família pôde conectar, por
exemplo, a insônia com a realidade de vida das mulheres,
com relações de poder e com questões sociohistóricas
de gênero.
o passo seguinte foi planejar quais seriam as
intervenções a serem realizadas. decidiu-se, assim, or-
ganizar reuniões semanais e convidar essas mulheres a
participarem. o planejamento das reuniões era realizado
semanalmente com as equipes de saúde da família. as
reuniões semanais com as mulheres ocorriam com a par-
ticipação de duas psicólogas do caPs, de uma enfermeira
da equipe de saúde da família e de uma aCS. após cada
reunião com o grupo de mulheres foram realizadas reu-
niões com todo o restante dos aCS, a fim de apresentar
os conteúdos trabalhados, avaliar o desenvolvimento do
grupo de mulheres e planejar o que seria trabalhado na
semana seguinte.
os encontros semanais com as mulheres tinham
como objetivo problematizar o papel da mulher na re-
alidade histórico-social, em conjunto com o significado
do remédio na construção da identidade feminina. Fo-
ram desenvolvidas dinâmicas e vivências que pudessem
transportar as mulheres ao núcleo de seus sentimentos
e sofrimento, como meio de fazer a junção entre os
sintomas (que exigiam o uso da medicação) e a realidade
vivenciada (opressora e impeditiva de rompimentos).
de todas as experiências realizadas destacam-se al-
gumas mais provocadoras de reflexões e importantes para
a compreensão da efetividade do trabalho ora apresenta-
do. São descritas a seguir algumas destas dinâmicas:
• apresentação com figuras: no primeiro encontro
foi realizada uma dinâmica de apresentação, cujo objeti-
vo foi conhecer as mulheres que estavam participando,
propiciar o conhecimento entre elas, esclarecer o objeti-
vo do grupo e motivá-las para a participação nos encon-
tros. Foi desenvolvida uma dinâmica de apresentação,
com gravuras de conteúdos diversos e solicitou-se que
cada uma das mulheres escolhesse a gravura que melhor
representasse o seu jeito de ser e que permitisse a sua
apresentação por meio desta gravura. Essa dinâmica foi
suficiente para uma significativa mobilização de algumas
mulheres e permitiu a reflexão quanto à necessidade de
propor vivências e dinâmicas menos complexas e mais
lúdicas, a fim de evitar a auto-exposição desnecessária,
mas muitas vezes inevitável, dadas as poucas oportuni-
dades de fala e reflexões que essas mulheres têm no seu
cotidiano;
• complementação de um pensamento: foi solici-
tado que cada mulher do grupo completasse a seguinte
frase: ‘Se eu pudesse, eu trocaria meu remédio por...’.
o objetivo era possibilitar a reflexão do sentido do uso
do remédio na vivência de cada mulher, ou seja, buscar,
minimamente, conectar o sintoma gerador do uso da
medicação à realidade vivenciada por cada mulher. Nesta
dinâmica foi possível emergir conteúdos relativos ao
desejo por estabilidade financeira, à vontade de sentir-se
feliz, ao desejo de ter novamente a alegria de antes e de
retomar vínculos com familiares, o qual foi colocado por
algumas como tendo sido perdido, em função do casa-
mento, das dificuldades financeiras (muitos familiares
moravam em outras cidades ou o marido as impedia de
vê-los, etc). Foram expressos conteúdos de identidade
de gênero e sua relação com o casamento, o sofrimento
de algumas mulheres pelo fato de serem obrigadas a
romper com o seu núcleo familiar primário e ter de se
adaptar à cultura imposta pelo esposo;
• recortes de nomes e características: tal dinâmica
foi planejada, em função dos conteúdos emergentes
na dinâmica anterior com relação ao afastamento do
núcleo familiar primário. Foi solicitado que cada mu-
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Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 133-142, jan./dez. 2008
raBElo, I.V.M, taVarES, r.C. • Homens-carrapatos e suas mulheres: relato de experiência em Saúde Mental na Estratégia Saúde da Família.
lher escrevesse o seu nome e sobrenome em uma folha,
destacando cores diferentes para cada nome/sobrenome
e características que pudessem definir cada nome. o
objetivo foi trabalhar a construção da identidade destas
mulheres em cada eixo familiar (mãe, pai e esposo).
Foram emersos conteúdos relativos à formação da iden-
tidade no seio familiar, como por exemplo, a família
materna e paterna produzindo preconceito de raça; e
a construção da identidade familiar se contrapondo à
identidade construída com o casamento. ou seja, foram
conteúdos que marcaram as contradições vivenciadas
por essas mulheres, que ao se casarem renunciavam
a identidade construída em seu núcleo familiar e se
rendiam à exigência de uma aceitação incondicional da
identidade da família construída com o esposo (esposa,
mãe, cuidadora). Para o desenvolvimento desta dinâmica
houve um problema: algumas mulheres não sabiam ler
e escrever. Na reunião de avaliação deste encontro com
todos os aCS, estes avaliaram que o ambiente familiar
dessas mulheres é opressor e dificulta que os agentes
possam intervir. os aCS refletiram também sobre as
especificidades do bairro: distante, tem alto índice de
criminalidade que gera preconceito e dificulta o acesso
da população masculina a empregos, fazendo com
que as mulheres tornem-se arrimo de família. Foram
reflexões feitas pela equipe de saúde da família que,
concretamente, retiraram o sofrimento como sendo
apenas o sintoma (‘não dorme e por isso toma remédio’)
e possibilitou sua compreensão pelo viés do sofrimento
sócio-psico-afetivo.
• linha da vida: foi trabalhada a dinâmica da
linha da vida, iniciando-se aos 15 anos e utilizando
intervalos de cinco anos. Foi solicitado que cada
mulher representasse em um papel pardo (por meio
de escrita ou qualquer outra expressão gráfica, como
desenhos ou símbolos) cada período de sua vida,
iniciando-se aos 15 anos e passando pelos 20, 25, 30,
e assim sucessivamente. Com essa dinâmica surgiram
elementos que possibilitaram trabalhar questões de
gênero relativas ao papel da mulher no casamento, no
qual ficou marcado um modelo idealizado de casamen-
to perfeito e o sofrimento advindo da realidade, ou
seja, da impossibilidade de realização de uma relação
homem/mulher plena. Foram trabalhados ditados
como: ‘Quem faz o casamento é a mulher’; ‘por trás
de um grande homem há sempre uma grande mulher’.
Foi constatada a dificuldade das mulheres em abando-
narem as escolhas de forma ativa, de sair de relações
infelizes sem necessitar ‘fugir’, os rompimentos relata-
dos eram todos sem autonomia. os conteúdos foram
trabalhados buscando refletir a necessidade de que as
mulheres construam recursos pessoais e sociais que
permitam os rompimentos necessários ao bem-estar
e à Saúde Mental. dificuldade de lidar com a própria
sexualidade foi outro elemento que emergiu com essa
dinâmica e permitiu que fossem, minimamente, dis-
cutidos aspectos relacionados a gênero e sexualidade.
Na avaliação com os aCS muitos se identificaram com
os relatos das mulheres, pois a maioria eram mulheres,
e neles elas puderam refletir suas próprias vidas. Foi
evidente a coincidência do início do uso da medicação
com o confronto e a realidade do casamento infeliz.
a realização da dinâmica da linha da vida durou três
encontros e permitiu amplas reflexões, ressalta-se que o
conteúdo mais homogêneo que emergiu dos encontros
entre todas as mulheres que freqüentaram o grupo é a
condição histórico-social da identidade feminina cons-
truída para o casamento perfeito, no qual a mulher se
incumbe do papel de fazer tudo o que o homem solicita
ou deseja; nunca dizer não ao homem; e sempre permitir
que o marido sugue todas as energias. Uma condição
que coloca na mulher a posição de impossibilitada de
romper com uma relação infeliz e na qual muitas vezes
não há, inclusive, percepção dessa infelicidade, visto que
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Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 133-142, jan./dez. 2008
raBElo, I.V.M, taVarES, r.C. • Homens-carrapatos e suas mulheres: relato de experiência em Saúde Mental na Estratégia Saúde da Família.
culturalmente se o casamento não está bom é porque a
mulher está agindo errado.
Esta condição histórica da mulher de se colocar
como principal responsável pela felicidade do casamen-
to, aliada à condição do homem de não fazer concessões
na relação marital impõe à mulher, principalmente
àquela que se encontra em desvantagem socioeconômica
e educacional uma postura de não conseguir romper
com uma relação infeliz e nem superar os estigmas socio-
culturais. Houve relatos de mulheres que se percebiam
infelizes na relação, mas não tinham recursos pessoais
para superar suas dificuldades e romper com essa relação,
assim, algumas vezes, sentiam-se obrigadas a conviver
com um ‘homem-carrapato’.
a expressão ‘homem-carrapato’ foi utilizada por
uma dessas mulheres e é retomada no presente artigo
como sendo a forma mais fidedigna de expressar sua
condição de vida ao lado de um homem que a massacra
e que a impede de viver a própria vida, um homem cuja
ação se limita a sugar o sangue da uma mulher presa a
uma situação, cuja condição histórico-social a impede
de se libertar.
assim, possibilitar a essas mulheres momentos de
reflexão e compartilhamento de todo o seu sofrimento,
advindo muitas vezes de sua própria condição sociohis-
tórica, cria possibilidades de re-significação do sofrimen-
to e de ampliação de recursos pessoais e afetivos para
lidar com o seu sofrimento. Fornece condições, mesmo
que minimamente, de reelaborar o papel da mulher na
formação do ‘homem-carrapato’, pois se ela procura de
todas as formas atender a todos os desejos ou exigências
do homem, obviamente ele se sentirá muito tranqüilo na
relação e utilizará de todos os seus potenciais masculinos
para manter-se nessa condição.
após seis meses, foi realizada avaliação das atividades
no grupo, e encerramento do mesmo. Neste período
foram realizadas reuniões para estudo de caso de algumas
mulheres que participavam do grupo e estavam há vários
anos utilizando a medicação em função de prescrições
anteriores, requisitavam a continuidade da medicação
apenas porque entendiam que este tratamento era o mais
adequado, até o momento que perceberam, no grupo
realizado, que sua relação necessitava de algo mais que
abafar quimicamente seu sofrimento. após estudo de caso
com equipe do caPs, os médicos das ESF fizeram novas
avaliações para hipótese diagnóstica e, contando com
o apoio do grupo, foi possível a retirada do ansiolítico
em alguns casos, uso racional e troca de medicação em
outros. algumas mulheres que foram ao grupo em busca
do medicamento encerraram o processo compreendendo
melhor os mecanismos geradores de sofrimento e as ha-
bilidades sociais para lidar com os mesmos, sem que para
isso precisassem silenciar-se com o medicamento.
CONSIDERAçÕES FINAIS
o trabalho desenvolvido entre o caPs e as equipes
de saúde da família, como capacitação em serviço por
meio de estudos de caso e realização de grupos de gênero
possibilitou às aCS e às enfermeiras das equipes de saúde
da família a compreensão do sofrimento psíquico para
além do sintoma, pois inicialmente a associação feita
por esses profissionais era de que o uso de ansiolítico
era devido e justificado por um sintoma específico: a
insônia. ao final, todos os profissionais da equipe de
saúde da família demonstraram novas compreensões
a respeito da insônia como indicando a existência de
um sofrimento socioafetivo, mesmo que ainda não
totalmente declarado.
o trabalho em conjunto com as equipes de saúde
da família permitiu não só a aproximação das equipes,
mas também, a garantia da capacitação em serviço,
haja vista que no decorrer desta atividade, não só as
mulheres acompanhadas no grupo foram re-avaliadas
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com a possibilidade de se beneficiarem tanto das temá-
ticas trabalhadas no grupo, bem como, da utilização do
uso racional da medicação. Por outro lado, entende-se
que estes estudos de caso funcionam como capacitação
em serviço, pois o conhecimento compartilhado entre
todos os profissionais ultrapassa os casos estudados e
serve de apoio para manejos em outras situações que se
configurem demandas em Saúde Mental.
Pode-se considerar que o trabalho em equipe, com
relação à estratégia saúde da família, propicia a re-signi-
ficação do sofrimento e a ampliação das ações do caPs,
rompendo com a lógica do encaminhamento. tal ação
traz para o profissional da unidade de atenção à família a
condição de ser capaz de intervir efetivamente na Saúde
Mental das pessoas da comunidade de sua abrangência,
sem necessitar encaminhar a um serviço especializado
uma possibilidade que se dá pela transversalidade das
temáticas trabalhadas em Saúde Mental, como a pro-
posta aqui relatada de inserção da categoria gênero para
a compreensão do sofrimento psíquico.
É importante ressaltar que houve uma mudança
significativa na percepção dos aCS, pois durante este pro-
cesso eles começaram a trazer casos novos de pessoas em
grave sofrimento psíquico, que se encontravam isoladas
em casa há vários anos. Este fato chama atenção, pois,
por mais que os aCS já soubessem e trabalhassem com o
caPs nesta região, ainda assim não conseguiam enxergar
como situações de Saúde Mental os casos de isolamento
como o do exemplo acima. até mesmo a descrição de
casos novos quando precisavam solicitar visitas domi-
ciliares com a equipe do caPs, passou a ser detalhada,
contextualizada e já com as nuances de vulnerabilidade
social típicas das vivências em Saúde Mental.
a experiência de trabalho em apoio à ESF
também foi essencial para a criação de alguns pro-
tocolos para o funcionamento da atenção em rede.
Com relação à dispensação de alguns medicamentos
psicotrópicos, o caPs passou a garantir a entrega
desta medicação para as usuárias do grupo em
acompanhamento na ESF, pois tais medicações não
existem nestas unidades. também com relação ao
prontuário, foi estabelecido que haveria a evolução
do prontuário da família (ESF), como forma de pri-
vilegiar uma comunicação única, e mesmo que os/as
usuários(as) também estivessem em atendimento no
caPs, a equipe de Saúde Mental teria um prontuário
na unidade, mas manteria atualizado o prontuário na
ESF. tal conduta facilitou o monitoramento do uso
de medicamentos, pois o aCS passou, a saber, por
exemplo, o projeto terapêutico do usuário e apoiá-lo
na implementação do mesmo, seja no uso diário da
medicação, seja na busca por escolas e atividades de
geração de renda da região.
Como parte do protocolo, também com relação
às visitas domiciliares dos técnicos dos caPs, passou-
se a agendá-las com antecedência para que fossem
sempre realizadas com aCS e enfermeiras da ESF.
tal procedimento fez com que novas redes de suporte
social começassem a interagir com as famílias com
pessoas com sofrimento psíquico grave. tal fato foi e
é crucial na diminuição das internações psiquiátricas
e manejo das situações de crise, pois a família passa
a contar com vários atores, e, portanto, não mais
recorre à lógica crise-doença-internação. também a
equipe de saúde da família passou a compreender o
sofrimento psíquico conectado com as experiências
vividas, e, sentindo-se mais próxima da equipe do
caPs passou a evitar o uso da ambulância (tanto
no sentido literal como no figurado), acreditando e
reinventando estratégias para atender ao sofrer sem
necessariamente encaminhá-lo.
Novas estratégias para a compreensão do sofri-
mento psíquico também foram viabilizadas para a
equipe do caPs, que na interlocução com a atenção
básica tem conseguido aliar não só novos atores para
confrontar a lógica asilar, mas também tem encon-
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raBElo, I.V.M, taVarES, r.C. • Homens-carrapatos e suas mulheres: relato de experiência em Saúde Mental na Estratégia Saúde da Família.
trado suporte para a criação de projetos terapêuticos
individualizados de usuários de Saúde Mental, que
sem nunca colocar os pés no caPs já começam a
estabelecer laços contratuais na comunidade, graças
ao empoderamento construído pelos trabalhadores e
trabalhadoras das ESF.
R E F E R Ê N C I A S
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recebido: abr./2008
aprovado: jul./2008
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 143-149, jan./dez. 2008
artIgo orIgINal / ORIgINAL ARTIcLE 143
Saúde Mental e atenção Básica à Saúde:
o apoio matricial na construção de uma rede multicêntricaMental Health and primary health care:
the matrix support building a multicentric net
“En medio de la maraña, Dios, la araña”.
alejandra Pizarnik
RESUMO Neste artigo discute-se a inserção da Saúde Mental na Atenção Básica
como uma das necessidades atuais para a continuidade da Reforma Psiquiátrica,
considerando que a atenção em Saúde Mental deve ser feita dentro de uma rede
ampla e interligada de cuidados capaz de agenciar as demandas dos usuários. Em
seguida, é problematizado o apoio matricial como arranjo de gestão para organizar
as ações de Saúde Mental na Atenção Básica e sua potencialidade como disparador
da ampliação da clínica das equipes interdisciplinares para as dimensões subjetiva
e social dos sujeitos, a fim de produzir uma assistência resolutiva à saúde.
PALAVRAS-CHAVE: gestão; Saúde Mental; Atenção básica à saúde; Apoio
matricial.
ABSTRACT In this article, it is argued the insertion of Mental Health in the
basic system, as one of the current necessities for the continuity of the Psychiatric
Reform, considering that the attention to Mental Health must be made inside
an ample and linked net of cares. After that, the matrix support is analyzed as a
powerful management arrangement to organize the actions of Mental Health in
the basic attention and as a trigger for the amplification of the clinic in the health
teams, in order to produce a more resolute assistance to the health system.
KEYWORDS: Management; Mental Health; Primary health care; Matrix
support.
Mariana dorsa Figueiredo 1
rosana onocko Campos 2
1 Mestre; doutoranda em Saúde
Coletiva pelo departamento de
Medicina Preventiva e Social da
Faculdade de Ciências Médicas da
Universidade Estadual de Campinas
(dMPS/ FCM/ unicamP).
2 doutora em Saúde Coletiva;
professora do dMPS/FCM/unicamP.
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FIgUEIrEdo, M.d.; CaMPoS, r.o. • Saúde Mental e atenção Básica à Saúde: o apoio matricial na construção de uma rede multicêntrica
I N T R O D U ç Ã O
Uma rede ou um emaranhado?
durante as últimas duas décadas, a implementação
do modelo dos Centros de atenção Psicossocial (caPs)
tem sido o principal investimento da política de Saúde
Mental no Brasil. o processo de extensão da cobertura
desses serviços demonstra a crescente e intensiva difusão
da rede substitutiva de Saúde Mental pelo país, numa
trajetória frutífera de reversão do modelo assistencial cen-
trado no hospital psiquiátrico para um modelo baseado no
restabelecimento das relações afetivas e sociais dos sujeitos
e na reconquista de seu poder social. Com o desafio de
desconstruir conceitos sobre a loucura e romper com as
formas de tratamento já há muito tempo arraigadas na
lógica sanitária hegemônica (amaRantE, 2001), o modelo
dos caPs ganhou grande visibilidade no decorrer da refor-
ma Psiquiátrica brasileira, ocupando um lugar de destaque
na reorganização da assistência em Saúde Mental.
Porém, essa rede de atenção à doença mental grave,
ainda que inserida no rol das políticas públicas de saúde
e alinhada aos princípios do SUS, veio se constituindo
de forma bastante afastada da rede de atenção Básica
à saúde, resultando num certo descompasso entre as
práticas de Saúde Mental e as práticas de saúde em sua
acepção mais ampla. Essa configuração traz desdobra-
mentos importantes para o SUS, enquanto sistema
unificado e integral, assim como para a eficácia tanto da
atenção Básica, quanto dos caPs, devido a dificuldade
de estabelecer parcerias necessárias para uma atenção
resolutiva em Saúde Mental.
Uma atenção integral, como a pretendida pelo SUS,
só poderá ser alcançada através da troca de saberes, prá-
ticas e de profundas alterações nas estruturas de poder
estabelecidas, instituindo uma lógica do trabalho inter-
disciplinar, por meio de uma rede interligada de serviços
de saúde, a qual permita a articulação das ações que, em
Saúde Mental, é uma necessidade inquestionável.
UMA REDE MULTICÊNTRICA
Considerando a complexidade das demandas em
Saúde Mental, há atualmente uma grande discussão
sobre a necessidade de articular a assistência prestada
nos caPs com outros serviços de saúde, equipamentos
sociais e a rede social nos territórios, na construção de
uma diversidade de possibilidades de produção de saúde,
desenvolvimento da autonomia e fortalecimento dos
vínculos sociais.
ainda que a clínica das psicoses e das neuroses
graves esteja baseada em cuidados intensivos de especifi-
cidade de equipamentos como os caPs (tEnóRio, 2002),
a atenção Básica tem um importante papel no processo
de reinserção social, já que está imersa nos territórios e
é, afinal, um espaço de produção de saúde, tanto para os
usuários, quanto para suas famílias. além disso, atende
a uma diversidade de demandas em Saúde Mental e
é o espaço de promoção, prevenção e tratamento dos
principais problemas de saúde. a questão mencionada
aqui vai além da definição de qual serviço deveria se
incumbir das demandas de maior gravidade, se os caPs
ou a atenção Básica, também, e está na relação a ser
construída entre os dois tipos de serviços.
o Ministério da Saúde, em sua Portaria 336, define
que um caPs deve:
responsabilizar-se [...] pela organização da demanda e da rede de cuidados em saúde mental no âmbito do seu território e [...] desempenhar o papel de regulador da porta de entrada da rede assistencial. (bRasil, 2004, p. 126).
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FIgUEIrEdo, M.d.; CaMPoS, r.o. • Saúde Mental e atenção Básica à Saúde: o apoio matricial na construção de uma rede multicêntrica
ora, se os caPs forem considerados ordenadores da
rede, como propõe o Ministério, não estará se reiterando
o foco nesse equipamento e o seu isolamento em relação
àquela rede ampla e entrelaçada de saúde que é tanto
almejada? Neste caso, seria mais apropriado trabalhar
com o conceito e imagem de uma rede multicêntrica,
em que o caPs pode funcionar como agenciador das
demandas em Saúde Mental, mas no qual, por outro
lado, cada um dos atores sociais e serviços envolvidos
na atenção se destacam, em determinado momento, de
acordo com o andamento do Projeto terapêutico de cada
usuário, tendo uma rede que permita o entrelaçamento
das ações e relações. Uma rede pulsante e viva, que se
movimente para dar sustentação às necessidades dos
usuários, que seja sem centralidade, porém suficiente
para agenciar as demandas dos usuários, e se transformar
em um suporte efetivo para as dificuldades que esses
usuários possuem.
assim, destaca-se a necessidade da integração dos
serviços, há casos comuns entre os serviços, ou situações
que dizem respeito tanto aos caPs quanto à atenção
Básica. Seria o caso do usuário do caPs, aquele da
região de abrangência de determinada equipe da UBS
ou o garoto usuário de drogas que em dado momento
precisa de uma contensão de crise. Nestas situações é
fundamental a articulação dos serviços, a discussão do
caso comum e o envolvimento dos diversos atores no
caso em questão.
É emergente a discussão sobre a inserção da Saúde
Mental no Programa de Saúde da Família (PSF), já
que tem sido crescente a demanda pela atenção aos
transtornos psíquicos leves, mais prevalentes, manifestos
geralmente sob a forma de queixas somáticas e ‘nervosas’,
transtornos de ansiedade, quadros depressivos, relacio-
nados a problemas sociais e familiares, decorrentes do
abuso de psicotrópicos. Para além destes transtornos,
são diversos os problemas advindos das faltas concretas
na vida, geradas pela ordem socioeconômica vigente. a
miséria em que se encontra a maior parte da população
brasileira, sobretudo na periferia das grandes cidades, se
traduz em condições de existência favoráveis às dificul-
dades afetivas, emocionais e relacionais.
Segundo a organização Mundial de Saúde (oMS)
os problemas de Saúde Mental respondem por 12% da
carga mundial de doenças (oMS, 2001). No Brasil, o
Ministério da Saúde avalia que cerca de 3% da popula-
ção apresenta transtornos mentais severos e necessita de
cuidados contínuos, intensivos (específicos dos caPs).
Nove por cento da população apresenta transtornos
mentais leves e de 6 a 8% apresentam transtornos de-
correntes do uso prejudicial de álcool e outras drogas,
pelos quais a atenção Básica que deve responsabilizar-se
(bRasil, 2003).
Existe, ainda, um componente subjetivo associado
ao processo de adoecimento. Muitas vezes ele atua como
entrave ao tratamento, à adesão as práticas preventivas e
até mesmo como intensificador da doença. Por exemplo,
uma pessoa que já não vê tanto valor na vida e não mais
se importa se o cigarro potencializa sua doença cardíaca;
ou o paciente com câncer que não encontra resistência
para enfrentar a doença. Esses casos poderiam se bene-
ficiar com a ampliação da clínica das equipes do PSF
(camPos, g.W.S., 2003).
atualmente, o desenvolvimento do PSF na rede de
atenção Básica vem tencionando a incorporação das
dimensões subjetiva e social na prática clínica, através
do princípio da atenção integral ao sujeito e por meio
do vínculo, a fim de propiciar maior resolutividade
aos problemas de saúde. Isso faz com que as equipes
se deparem cotidianamente com problemas de Saúde
Mental. Uma pesquisa do Ministério da Saúde mostra
que 56% das equipes de PSF referem realizar ‘alguma
ação de Saúde Mental’ (bRasil, 2003), ainda que essas
equipes nem sempre estejam capacitadas para lidar com
esta demanda. Por outro lado, por sua proximidade
com as famílias e as comunidades, elas se constituem
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FIgUEIrEdo, M.d.; CaMPoS, r.o. • Saúde Mental e atenção Básica à Saúde: o apoio matricial na construção de uma rede multicêntrica
num recurso estratégico para o enfrentamento do
sofrimento psíquico.
além disso, a oMS e o Ministério da Saúde esti-
mam que quase 80% dos usuários encaminhados aos
profissionais de Saúde Mental não trazem, a priori,
uma demanda específica que justifique a necessidade
de uma atenção especializada (bRasil, 2003). É o caso
da senhora que se costuma denominar ‘poli-queixosa’,
e que representa uma demanda freqüente para a aten-
ção Básica. Se for ampliada a escuta, é possível deparar
com sua existência pobre de sentido, com a ausência de
espaços de convivência, lazer e trabalho. Nesses casos,
o empreendimento de longos processos psicoterápicos
e a administração de antidepressivos são insuficientes
como únicas respostas, sendo preciso mobilizar outros
dispositivos de atenção, disparadores de produção de
vida, de fortalecimento da auto-estima e de sociabilidade
(camPos; nascimEnto, 2003).
assim, na continuidade da reforma Psiquiátrica
e para propiciar maior consistência às intervenções
em Saúde Mental, torna-se fundamental desenvolver
estratégias que modulem a inserção da Saúde Mental
na atenção Básica, promovendo a interlocução entre
os diferentes profissionais e serviços de saúde e qualifi-
cando as equipes de Saúde da Família para uma atenção
ampliada em saúde que contemple a subjetividade e o
conjunto de relações sociais que determinam desejos,
interesses e necessidades, conforme gastão Wagner de
Souza Campos (2000; 2003).
Campos (1999) propôs, ainda, a reorganização da
atenção Básica, a partir do arranjo de gestão denominado
por ele como apoio matricial. Esse arranjo permite se inse-
rir a Saúde Mental e outras áreas especializadas na atenção
Básica, ao mesmo tempo em que opera como disparador
da ampliação da clínica das equipes locais de saúde. trata-
se de uma importante discussão na atualidade, já que a
estratégia do apoio matricial foi recentemente incorporada
em nível nacional a partir da Portaria nº 154, na qual o
Ministério da Saúde (bRasil, 2008) aprovou a criação
dos Núcleos de apoio à Saúde da Família (nasf). Similar
ao modelo do apoio matricial que ora apresentamos, os
nasf são compostos por profissionais de diferentes áreas
especializadas as quais atuarão no apoio às Equipes de
Saúde da Família, ampliando a abrangência das ações e
resolutividade dessas equipes.
O APOIO MATRICIAL: IMBRICANDO SAúDE
E SAúDE MENTAL
“Onde a brasa mora e devora o breucomo a chuva molha o que se escondeuO seu olhar melhora o meu”
arnaldo antunes e Paulo tatit
Na proposta de Campos (1999), profundas refor-
mas estruturais seriam necessárias para produzir saúde
com maior grau de resolutividade e desalienar os tra-
balhadores em relação ao objetivo de seu trabalho. o
autor propõe uma rotação dos organogramas, de modo
que os antigos departamentos especializados (outrora
verticais) passam a ser horizontais, oferecendo apoio
especializado às equipes interdisciplinares.
Essas equipes, denominadas pelo autor como
Equipes de referência, têm como princípio a adscri-
ção de clientela, garantindo um sistema de referência
e valorizando o vínculo entre profissionais e usuários.
a relação terapêutica, horizontal no tempo, passa en-
tão a ser a linha reguladora do processo de trabalho.
assim, toda vez que o usuário procura o serviço, ele
é atendido por sua Equipe de referência, o que per-
mite o acompanhamento do processo saúde/doença/
intervenção (camPos, 1999). gradativamente, isto es-
timula a responsabilização pela produção de saúde, pois
quando o usuário passa a ter um nome e uma história,
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FIgUEIrEdo, M.d.; CaMPoS, r.o. • Saúde Mental e atenção Básica à Saúde: o apoio matricial na construção de uma rede multicêntrica
a implicação da equipe tende a aumentar e as respostas
profissionais a serem menos estereotipadas. as Equipes
de referência, portanto, seriam responsáveis por realizar
os projetos terapêuticos, promovendo, assim, o vínculo
e a responsabilização.
dessa forma, o apoio matricial seria uma ferramen-
ta para agenciar a indispensável instrumentalização das
equipes na ampliação da clínica1, subvertendo o modelo
médico dominante que se traduz na fragmentação do
trabalho e na produção excessiva de encaminhamentos,
muitas vezes desnecessários, às diversas especialidades,
segundo rosana onocko Campos (2003).
o apoio matricial se configura como um suporte
técnico especializado (camPos, 1999) que é ofertado a
uma equipe interdisciplinar de saúde, a fim de ampliar
seu campo de atuação e qualificar suas ações. Ele pode
ser realizado por profissionais de diversas áreas especia-
lizadas, mas estamos tomando aqui a especificidade da
Saúde Mental, considerando que as questões subjetivas
transpassam quaisquer problemas de saúde e devem ser
abordadas em toda relação terapêutica.
a proposta é que os profissionais possam aprender a
lidar com os sujeitos em sua complexidade, incorporan-
do as dimensões subjetiva e social do ser humano, mas
que estejam acompanhados por alguém especializado
que lhes dê suporte para compreender e intervir neste
campo. No apoio matricial da Saúde Mental, conhe-
cimentos e ações, historicamente reconhecidos como
inerentes à área ‘psi’, são ofertados aos profissionais de
saúde de uma equipe, de modo a auxiliá-los a ampliar
sua clínica e a sua escuta, a acolher o sofrimento psí-
quico e a lidar com a subjetividade dos usuários. Seria
uma oferta do núcleo profissional ‘psi’ ao campo dos
profissionais de saúde (camPos, 2000), na construção
de um novo saber, um saber que se pretende transdis-
ciplinar. a transdisciplinaridade que, no sentido dado
por Passos e Barros (2000) é uma das grandes apostas
do apoio matricial.
A noção de transdisciplinaridade subverte o eixo de sustentação dos campos epistemológicos, graças ao efeito de desestabilização [...] da unidade das disciplinas e dos especialismos. (p. 76).
a Saúde Mental sai do eixo das especialidades e passa
a compor a rede matricial de apoio. Constitui uma linha
de interseção entre as diferentes áreas, a fim de superar a
lógica da especialização e da fragmentação do trabalho e
romper com o sistema de referência e contra-referência,
que produzem encaminhamentos consecutivos para as
diferentes especialidades e que se traduzem em desrespon-
sabilização pela produção de saúde (camPos, 1999).
a partir de discussões clínicas conjuntas, apoio para
a construção de projetos terapêuticos ou mesmo inter-
venções conjuntas concretas com as equipes (consultas,
visitas domiciliares, entre outras), os profissionais matri-
ciais podem contribuir para o aumento da capacidade
resolutiva das equipes, qualificando-as para uma atenção
ampliada em saúde que contemple a complexidade da
vida dos sujeitos.
os atendimentos conjuntos com o profissional ma-
tricial têm uma importante função pedagógica, já que as
equipes podem aprender in loco a intervir no campo da
Saúde Mental e se autorizar nas ações que nem sempre
cabem nos protocolos, lidando com situações de exclu-
são social, violência, luto, as mais diversas perdas, que
não devem ser encaminhadas e sim acolhidas durante a
própria consulta clínica. ou ainda quando se trata de um
usuário de referência do caPs que está em tratamento na
atenção Básica: muitas vezes, os profissionais sentem-se
inseguros para lidar com pacientes psicóticos ou com
1Campos, g.W.S. (2003) denomina clínica ampliada, uma resignificação da clínica tradicional, de modo a deslocar sua ênfase na doença para centrá-la num sujeito concreto e singular, portador de certa enfermidade. ampliar a clínica significa que os profissionais possam aprender a lidar com os sujeitos em sua tota-lidade, considerando o biológico como determinante do processo saúde e doença, mas também incorporando em suas práticas as dimensões subjetiva, social e cultural como outros determinantes.
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FIgUEIrEdo, M.d.; CaMPoS, r.o. • Saúde Mental e atenção Básica à Saúde: o apoio matricial na construção de uma rede multicêntrica
quadros psiquiátricos mais graves e o atendimento
conjunto com o apoiador matricial pode proporcionar
um encontro desmistificador do sofrimento psíquico e
da doença mental, ajudando a diminuir o preconceito
e a segregação da loucura.
Nesse sentido, o trabalho na lógica matricial permi-
te distinguir as situações individuais e sociais, comuns
à vida cotidiana, que podem ser acompanhadas pela
Equipe de referência e por outros recursos sociais do
entorno, daquelas demandas que necessitam de uma
atenção especializada da Saúde Mental a ser oferecida
na própria Unidade Básica pelos profissionais matriciais
ou de acordo com o risco, vulnerabilidade e gravidade,
pelo caPs da região de abrangência. Pretende-se, com
isso, produzir co-responsabilização entre Equipe de
referência e profissionais matriciais, de modo que o
encaminhamento preserve o vínculo e possa ser feito
de forma dialogada.
assim, é possível promover a eqüidade e o acesso,
garantindo coeficientes terapêuticos de acordo com as
vulnerabilidades e potencialidades de cada usuário, fa-
vorecendo a construção de novos dispositivos de atenção
em resposta às diferentes necessidades dos usuários e a
articulação entre os profissionais na elaboração de proje-
tos terapêuticos pensados para cada situação singular.
o apoio matricial, portanto, provoca e explicita
uma intensa imprecisão das fronteiras entre os diversos
papéis e as diversas áreas de atuação profissional. Quando
as questões subjetivas não se encaixam na rigidez dos
diagnósticos, como as dificuldades afetivas e relacionais,
a capacidade maior ou menor de enfrentar os problemas
cotidianos, a potência do apoio matricial está justamente
em desfazer a delimitação entre as diferentes disciplinas e
tecnologias, e, através das discussões de caso e da regulação
de fluxo, evitar práticas que levam à ‘psiquiatrização’ e à
‘medicalização’ do sofrimento humano.
Segundo Campos (1999), essa reordenação do
desenho institucional da rede de atenção Básica per-
mite que a complexidade da vida dos sujeitos e de suas
necessidades seja trazida para o coletivo e possa ser
enfrentada através do trabalho conjunto, favorecendo
a gestão do processo de trabalho e a formação de outra
subjetividade profissional, centrada no diálogo e na
transdisciplinaridade.
No entanto, deve-se reconhecer que a mudança
da lógica de trabalho proposta pelo apoio matricial
não é fácil de ser assumida pelas equipes e não ocorre
automaticamente. Ela deve ser especificamente traba-
lhada junto às equipes, instalando espaços destinados
à reflexão e análise crítica sobre o próprio trabalho, e
que possam ser continentes aos problemas na relação
entre a equipe, aos preconceitos em relação à loucura,
à dificuldade de entrar em contato com o sofrimento
do outro e à sobrecarga trazida pela lida diária com
a pobreza e a violência. todas essas questões podem
dificultar o trabalho com o apoio matricial, se os pro-
fissionais não tiverem espaços de reflexão e formação
permanentes para processá-las, que sejam capazes de
realimentar constantemente a potencialidade do apoio
matricial, enquanto arranjo transformador das práticas
hegemônicas na saúde.
assim, afirmamos a importância de espaços
coletivos em que se possa agenciar uma rede na qual
saúde e Saúde Mental sejam tomadas como instân-
cias interligadas e complementares. Uma rede que,
sobretudo, incite o movimento de acordo com as
necessidades sociais e de saúde das pessoas às quais
ela se destina. Uma rede efetiva de ajuda e socorro ao
usuário da Saúde Mental e não uma teia na qual ele
fique preso, sem acesso, perdido nos emaranhados da
desresponsabilização, uma rede de salvamento e não
de captura e impotência.
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recebido: abr./2008
aprovado: nov./2008
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 150-160, jan./dez. 2008
artIgo orIgINal / ORIgINAL ARTIcLE150
a crise na rede: o SaMU no contexto
da reforma PsiquiátricaThe crisis on network: SAMU at Psychiatric Reform context
RESUMO Esta pesquisa investigou as práticas dos profissionais do Sistema de
Atendimento Móvel de Urgência (samu) no que diz respeito aos atendimentos
psiquiátricos na cidade de Aracaju (SE) e suas possíveis articulações com a Rede de
Atenção Psicossocial (Raps). A primeira etapa da pesquisa foi realizada através de
entrevistas semi-estruturadas com trabalhadores do samu. Os resultados indicam
que a concepção de urgência psiquiátrica deles se baseia no conceito de agressividade
e que o tempo gasto nas ocorrências psiquiátricas e a falta de capacitação em
Saúde Mental dificultam o transcorrer desses atendimentos. Na segunda etapa,
participamos das reuniões de construção do protocolo psiquiátrico do samu.
PALAVRAS-CHAVE: crise; Urgência; Saúde Mental.
ABSTRACT This research investigated the professional practices from samu
(Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) at psychiatric cases of the city
of Aracaju (SE), Brazil, and its possible articulations to psychosocial services
network. Fieldwork first step was made with samu workers by semi-structured
interviews. The results indicate that their urgency psychiatric conception is based
on aggressiveness concept and that the wasted time at psychiatric cases support
and low training in mental health care are dificulties to emergency service. The
second step was to attend meetings to build a new psychiatric urgencies protocol
for samu.
KEYWORDS: crisis; Urgency; Mental Health.
Kati ta Jardim 1
Magda dimenste in 2
1 Psicóloga; mestre em Psicologia
pelo Programa de Pós-graduação em
Psicologia da Universidade Federal
do rio grande do Norte (UFrN);
supervisora clínico-institucional
do Centro de apoio Psicossocial
(caPs) Irmã augustinha; Membro da
coordenação pedagógica da Escola
técnica do SUS de Sergipe.
2 Psicóloga; doutora em Saúde Mental
pelo Instituto de Psiquiatria da
Universidade Federal do rio de Janeiro
(IPUB/UFrJ); docente do Programa de
Pós-graduação em Psicologia da UFrN.
apoio financeiro: Coordenação de aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (caPEs)
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Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 150-160, jan./dez. 2008
JardIM, K.; dIMENStEIN, M. • a crise na rede: o SaMU no contexto da reforma Psiquiátrica
I N T R O D U ç Ã O
Com o avanço da luta pela consolidação da refor-
ma Psiquiátrica, que vem se desenrolando desde o final
da década de 1970 no Brasil, após concretizações impor-
tantes, nos encontramos, hoje, em um momento crucial.
Um dos grandes empecilhos do Movimento Nacional de
luta antimanicomial (MNla) e da reforma Psiquiá-
trica está diante dos nossos olhos de forma gritante: os
caminhos tortuosos de atenção e resposta à crise.
Se o intuito da reforma Psiquiátrica é questio-
nar a lógica manicomial, a psiquiatria tradicional e o
hospício, símbolo máximo de exclusão da diferença,
preconizando o cuidado em liberdade, atenção integral
e serviços substitutivos, devemos nos perguntar qual
posicionamento adotamos diante de uma pessoa em
crise. É importante mencionar que as situações de crise
são um dos principais motivos de internação psiquiátrica
no Brasil atualmente (JaRdim, 2008).
Isso porque, nesses momentos, a rede de atenção
Psicossocial (RaPs) que deveria se responsabilizar também
pela atenção à pessoa em crise, delega essa função à rede
de Urgência e Emergência (REuE). a REuE é uma das
mais medicalizadas pela sua própria tradição e apesar da
estrutura de rede pensada para organizar o Sistema Único
de Saúde (SUS), a RaPs e a REuE têm linguagem, timing e
aparelhagem muito diferentes e que, em vários momentos,
chegam a ser discrepantes, dificultando seu diálogo.
assim, ao delegar a atenção à crise para as urgências
(que por ser uma das portas de entradas do SUS, podem
regular a demanda diretamente para dentro dos grandes
hospitais psiquiátricos) sem nenhuma discussão ou
comunicação inter-redes, estaremos reforçando delibera-
damente a lógica manicomial e enfraquecendo os nossos
serviços substitutivos. tais serviços passam a operar como
meros serviços alternativos, alternativas fracas, diga-se de
passagem, visto que no momento de maior necessidade
‘devolvem’ o louco ao manicômio. Por isso, se faz neces-
sária uma discussão acerca da atenção à crise não somente
pelos serviços substitutivos, mas com foco nas conexões
inter-redes, envolvendo também a REuE e outras.
Nesse sentido, o objetivo deste estudo foi investi-
gar a atuação de profissionais do dispositivo móvel da
Política Nacional de atenção às Urgências, o Serviço
de atendimento Móvel de Urgência (samu), frente às
ocorrências psiquiátricas, bem como as articulações desse
serviço com a RaPs do município de aracaju (SE).
Algumas definições
antes de começarmos a falar sobre o histórico do
samu, é importante conceituarmos urgência e emergên-
cia, já que esse é o foco do atendimento prestado pelo
serviço. as várias definições destes termos ainda não são
claras para a maioria dos profissionais de saúde, que as
usam indiscriminadamente no seu dia-a-dia. Para tanto,
vamos delimitar o sentido em que estamos utilizando
esses termos para fins de esclarecimento do leitor.
Urgência é uma “ocorrência imprevista de agravo à
saúde com ou sem risco potencial de vida, cujo portador
necessita de assistência imediata” (fERnandEs, 2004, p. 2).
Portanto, a urgência se caracteriza por uma situação em
que há necessidade de atendimento imediato, porém, sem
risco de perder a vida, apresentando uma gravidade con-
siderada ameaçadora à integridade física ou psicológica
da pessoa. Como exemplo podemos citar fraturas com
necessidade de imobilização e crises de asma. É no âmbito
da Urgência que se localiza o atendimento psiquiátrico.
Já a emergência é definida como a constatação de
condições de agravo à saúde que implicam em risco
de morte ou sofrimento intenso, lesões irreparáveis,
normalmente caracterizadas por declaração do médico
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JardIM, K.; dIMENStEIN, M. • a crise na rede: o SaMU no contexto da reforma Psiquiátrica
assistente. os exemplos seriam as hemorragias, ataques
cardíacos, amputamentos etc. (fERnandEs, 2004). a
escolha dos conceitos foi feita mediante comparação
de algumas definições de urgência e emergência (con-
sElho fEdERal dE mEdicina, 1995; stERian, 2002;
fERnandEs, 2004 e camPos, 2005), que nos levaram
à constatação de que, salvo algumas divergências, elas
convergem para o exposto.
Em 1986, foi criado no rio de Janeiro o grupo de
Socorro e Emergência (gSE) que finalmente contava
com uma equipe composta por médico e enfermeiros
da própria equipe de saúde do Corpo de Bombeiros.
Foi nesse contexto que o samu foi instituído no Brasil,
mais especificamente na cidade de São Paulo, através de
um acordo bilateral com a França. o samu brasileiro é
estruturado com base no modelo francês, mas baseia-se
em muitos conceitos do modelo americano para seus
treinamentos, como as diretrizes do Pre Hospital Trauma
Life Suport (PHtlS)1.
Só em 2002, com a instauração da Política Nacional
de atenção às Urgências, que o samu deixou de ser um
serviço opcional existente em algumas cidades, passando
a fazer parte oficialmente do SUS como seu dispositivo
pré-hospitalar de urgência. o serviço foi regulamentado
através da Portaria 1864 gM de 29 de setembro de 2003
(bRasil, 2002; bRasil, 2003).
deste modo, conta com uma equipe composta por
médicos, enfermeiros, técnicos/auxiliares de enferma-
gem, condutores veiculares e aqueles responsáveis pelo
suporte na central de regulação2, técnicos auxiliares de
regulação Médica (taRms) e rádio operadores. o samu
atende urgências e emergências clínicas, traumáticas,
gineco-obstétricas, pediátricas e psiquiátricas; funciona
segundo regulação médica concernente à gestão dos
fluxos de ofertas de cuidados médicos, triando as ocor-
rências, a fim de evitar o uso inadequado dos recursos
públicos (bRasil, 2002; bRasil, 2003). É a regulação
médica que interliga o atendimento Pré-hospitalar
(aPH) ao hospital. a função do médico é:
julgar e decidir sobre a gravidade do caso e enviar os recursos necessários ao local, monitorar e orientar o atendimento realizado por outro profissional de saúde [...] ou [...] por um popular. Define e aciona o hospital de referência ou outro meio ao atendimento necessário. (são Paulo, 2001 apud camPos, 2005, p. 16).
a partir do recebimento de uma chamada na central
reguladora, atendida por um taRm, que deve acalmar o
solicitante e preencher um formulário eletrônico com a
localização da vítima, dados detalhados do local, pontos
de referência e o motivo da chamada. a partir de então,
o taRm passa a ligação para o médico regulador que
avalia o caso em questão, decidindo se há necessidade de
mandar uma ambulância ou se apenas uma orientação
médica basta. Se houver a necessidade de se mandar a
ambulância, ele escolherá qual delas será acionada, já
que há dois tipos de ambulância no samu: as Unidades
de Suporte Básico (USBs), que contam com uma equipe
de auxiliares de enfermagem e condutor veicular, e as
Unidades de Suporte avançado (USas) com uma equipe
formada por médico, enfermeiro, auxiliar e condutor
veicular, sendo esta última uma espécie de Unidade de
tratamento Intensivo (UtI). depois disso, o médico
decide para qual hospital, ou outro serviço da rede, será
direcionado o caso, preparando a equipe hospitalar para
receber o usuário.
1 Prehospital trauma life Support Committee and the National association of Emergency Medical technicians in cooperation with the Committee on trauma of the american College of Surgeons (1999). PHTLS: Basic and advanced prehospital trauma life support. 4a ed. St. louis.2 a regulação médica é o elemento ordenador e orientador do Sistema de atenção Integral às Urgências, que estrutura a relação entre os vários serviços, quali-ficando o fluxo dos pacientes no Sistema e gerando uma porta de comunicação aberta ao público em geral, através da qual os pedidos de socorro são recebidos, avaliados e hierarquizados. (bRasil, 2001, p. 1).
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JardIM, K.; dIMENStEIN, M. • a crise na rede: o SaMU no contexto da reforma Psiquiátrica
Hoje em dia, a rede nacional do samu conta com
112 unidades implantadas. No total, 924 municípios
são atendidos pelo samu, cerca de 92,4 milhões de
pessoas. algumas das capitais brasileiras que possuem a
estrutura do samu são: aracaju, Belém, Belo Horizonte,
Brasília, Campo grande, Curitiba, Florianópolis, For-
taleza, goiânia, João Pessoa, Maceió, Manaus, Macapá,
Natal, Palmas, Porto alegre, Porto Velho, recife, rio
Branco, rio de Janeiro, Salvador, São luís, São Paulo,
teresina e Vitória3.
UM ENSAIO METODOLÓGICO
a pesquisa foi realizada em duas etapas; a primeira
em janeiro de 2007 e a segunda, de maio a setembro
do mesmo ano. a primeira etapa teve como corpus de
análise dez profissionais vinculados ao samu de aracaju,
sendo cinco deles homens e cinco mulheres, com idade
entre 25 e 36 anos, e período de vinculação ao serviço de
quatro anos e dois meses. Cinco integrantes dessa equi-
pe eram auxiliares de enfermagem, três eram médicos
reguladores, sendo que dois deles aglutinavam funções
de coordenação: um enfermeiro também coordenador
e uma assistente social gerente (contabilizando quatro
gestores). Escolhemos informantes de influência direta
nos atendimentos psiquiátricos4, na gestão das capa-
citações e na regulação médica, pontos fundamentais
para a prática. a coleta de dados foi realizada através
de entrevistas semi-estruturadas gravadas.
Para isso, construímos dois roteiros: o primeiro
deles, feito para os médicos e gestores, era composto
por nove questões e dizia respeito à Portaria 2048/gM
e às Urgências Psiquiátricas. abordava, além disso, a
reforma Psiquiátrica, a Política Nacional de Saúde Men-
tal e as capacitações realizadas no serviço. o segundo
roteiro de entrevista foi elaborado para os auxiliares de
enfermagem com sete questões. Neste, tratamos tam-
bém das Urgências Psiquiátricas, da Política Nacional
de Saúde Mental e da reforma Psiquiátrica, além da
formação técnica e das participações nos atendimentos
psiquiátricos. Neste momento, abriu-se espaço para
relatos de experiências.
levando-se em consideração que o funcionamento
do samu se dá através de protocolos nos quais são cir-
cunscritas e especificadas as medidas tomadas para cada
tipo de ocorrência atendida, o fato de o samu não possuir
um protocolo psiquiátrico constitui um problema.
Em maio de 2007, os integrantes das equipes dos
serviços responsáveis pelo atendimento às urgências
psiquiátricas decidiram sentar e discutir, num grupo
operativo, o que fazer com essa situação. geralmente,
quem lida com isso tende a colocar a ‘crise do paciente’
como foco de sua preocupação, não conseguindo enxergar
as necessidades e demandas excessivas da clientela que
o próprio serviço pode estar colapsando (dEll’acqua;
mEzzina, 2005). Nesse ínterim, o samu decidiu lidar
com a crise do serviço como lida com a crise do paciente:
criando um protocolo específico, uma normatização, que
serviria para produzir um padrão a ser seguido, o que
não é de todo negativo, pois é necessária a construção de
um parâmetro que guie os profissionais. Porém, haveria
problema se esses parâmetros se sobrepusessem às pessoas
e à ética de cuidado, tornando-se um mero procedimento
técnico e, por fim, mortificando as relações.
assim, a segunda etapa da pesquisa, realizada de
maio a setembro de 2007, compreendeu o acompanha-
mento das reuniões para a construção do protocolo psi-
3 Boletim: http://portal.saude.gov.br/portal/saude/visualizar_texto.cfm?idtxt=23745&janela=1. acesso em 6 de março de 2007. 4 tendo em vista que os profissionais que realizam o atendimento às ocorrências psiquiátricas no samu de aracaju são os médicos (indiretamente, por telefone), os auxiliares de enfermagem e os condutores veiculares (diretamente, no local).
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JardIM, K.; dIMENStEIN, M. • a crise na rede: o SaMU no contexto da reforma Psiquiátrica
quiátrico e a realização dos atendimentos psiquiátricos
junto às equipes das USBs. No entanto, nesse artigo,
abordaremos somente as reuniões de protocolo.
as reuniões intersetoriais contaram com uma psi-
cóloga representante da Coordenação de Saúde Mental,
dois psiquiatras, uma médica sanitarista, a gerente do
serviço de Urgência Clínica e Mental do São José, o
coordenador clínico do samu de aracaju e da Urgência
Clínica e Mental (UCM) do Hospital Filantrópico São
José, órgão responsável pela regulação da demanda de
Saúde Mental na REuE, e o coordenador clínico do
samu estadual. Nas reuniões foram observados a relação
entre os serviços e quais direcionadores a gestão usava
para idealizar esse instrumento. além disso, a nossa
participação constituiu uma intervenção, tendo em
vista que acompanhamos a realidade dos casos assistidos
pelas ambulâncias do samu, geramos discussões a partir
dos casos assistidos e da literatura esquisada. além da
nossa participação nas reuniões, de maio a setembro de
2007 foram realizadas entrevistas abertas com alguns
dos participantes: uma médica sanitarista, responsável
pelo Núcleo de Cuidado em Saúde Mental na atenção
Básica, um dos psiquiatras, que compôs o delineamento
de cinco síndromes, base do protocolo que guiará os pro-
fissionais do samu, quanto a sua regulação e abordagem
no local de ocorrência, o coordenador clínico do samu
de aracaju e do UCM e a psicóloga representante da
coordenação de Saúde Mental.
A primeira etapa da pesquisa de campo: urgência,
tempo, capacitações e o protocolo
a primeira etapa da pesquisa de campo foi cons-
tituída por intermédio de entrevistas. os dados mais
relevantes produzidos dizem respeito a três aspectos: a
concepção que a equipe tem de urgência psiquiátrica, a
questão do tempo no atendimento, a falta de capacitação
e a ausência do protocolo psiquiátrico.
a concepção de urgência psiquiátrica foi associada
de forma unânime pelos entrevistados a ‘agressividade’.
É interessante destacar isso porque a idéia dos técnicos
de que em uma ocorrência psiquiátrica lidarão com
alguém que pode ameaçar sua integridade física os leva
às práticas adotadas nos atendimentos. Por acharem que
serão agredidos, os profissionais adotam uma postura de
defesa, que acaba se transformando em ataque, ou uma
postura de medo, que acaba gerando omissão do cui-
dado. assim, ambas as posturas geralmente progridem
para uma contenção mecânica e, para lidar com isso,
o samu conta com o auxilio do Corpo de Bombeiros,
cordas e muitas ataduras.
além das práticas in loco, a concepção da urgência
psiquiátrica ligada à agressividade também influencia
diretamente na regulação médica. Esta, por sua vez,
organiza os fluxos dos atendimentos, decide se libera ou
não uma ambulância para o caso e é responsável pelo
encaminhamento dos pacientes a um serviço de saúde
fixo. dessa forma, os reguladores acabam por selecionar
a demanda dos casos atendidos, tendo em vista que uti-
lizam a lógica de que os casos que devem ser removidos
pelo samu são aqueles que não podem ser transportados
num carro comum, ou seja, os casos que precisam de
um aparato específico para imobilização. Com isso, o
samu reforça o estigma contra as pessoas em sofrimento
psíquico e encoraja a utilização de métodos manicomiais
em seus atendimentos.
outra questão importante é a do tempo. os ser-
viços de urgência têm de funcionar da maneira mais
breve possível. Quando falamos em casos referentes à
Saúde Mental, porém, o tempo acaba se esticando. Um
dos entrevistados relatou que, em alguns momentos, os
atendimentos psiquiátricos chegam a demorar quatro
vezes mais do que um atendimento clínico. Como agir a
tempo nesses serviços significa salvar vidas, eles acabam
resistindo em liberar ambulâncias ou até mesmo em
realizar os atendimentos; entendem que uma garota com
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JardIM, K.; dIMENStEIN, M. • a crise na rede: o SaMU no contexto da reforma Psiquiátrica
asma precisa muito mais de uma USB do que um louco
surtando e isso acaba fortalecendo o estigma.
apesar de o samu ter um Núcleo de Educação
Permanente, nenhuma capacitação em Saúde Mental é
ministrada atualmente, sendo que apenas duas aconte-
ceram em 2004. os gestores afirmaram que a falta de
capacitação sobre esse tema se deve à falta de informação
sobre o assunto publicada na literatura e, também, à falta
de interesse dos profissionais. Muitos técnicos afirmaram
que não gostam de realizar os atendimentos psiquiátri-
cos; quando perguntamos o motivo, responderam não
saber como agir nesses casos. É importante ressaltar
que o samu é um serviço que funciona com base em
protocolos e sua rotina consiste em segui-los, já que são
eles que guiam as atitudes dos profissionais durante as
ocorrências. Por isso, a falta de protocolo psiquiátrico
foi apontada como um item negativo, um agravante
desestabilizador do funcionamento do serviço.
atualmente, está sendo desenvolvido o protocolo
da psiquiatria pela coordenação de Saúde Mental de ara-
caju, juntamente com a gestão e os psiquiatras da UCM
e com a gestão clínica dos samus estadual e municipal.
Esse protocolo busca delinear quais critérios deverão
ser usados na regulamentação para guiar os médicos
a respeito dos procedimentos que devem ser seguidos
no caso de ocorrências psiquiátricas. delinear esses
procedimentos é importante para o funcionamento do
samu no campo da Saúde Mental, afinal, isso enquadra
o paciente psiquiátrico definitivamente no hall dos casos
atendidos e com alta resolutividade.
Entretanto, há a necessidade de segurança e, por
isso, busca-se o controle em tudo que se faz. a estabili-
dade dos espaços, porém, é ilusória e ignorar isso acaba
por emperrar os fluxos da vida, causando o sofrimento. a
saúde é a fluidez desse processo. assim, a formatação de
prática rígidas, como as propagadas pelo samu quando
se trata de Saúde Mental, acaba sendo parte mais de um
grande problema do que de uma solução.
Configurar um serviço dessa forma não seria em-
perrar os fluxos?
Será que, em lugar de enxergarmos esse ‘não saber
o que fazer’ como uma grande questão a ser extirpada o
quanto antes, não residiria aí uma grande potencialidade
de afirmação vital?
ao final dessa primeira experiência, percebemos que
somente entrevistas focadas na legislação5, na concepção
de urgência psiquiátrica e nas capacitações não levariam
a discussão muito longe, porque poderia desvelar pro-
blemas, mas seria pouco útil na proposição de soluções
práticas. Por conta disso, foi necessário dar continuidade
à pesquisa de campo com a segunda etapa, que problema-
tizaria não só as bases epistemológicas das urgências psi-
quiátricas realizadas pelo samu de aracaju, mas também o
movimento dos usuários na rede e a criação do protocolo
psiquiátrico (que ocorria desde o primeiro semestre de
2007 e não chegou à sua conclusão até então).
tendo em vista essa proposta, o espaço do samu,
como um lugar de fluxo contínuo, condensou as questões
levantadas, configurando o ponto de partida para se dis-
cutir as conexões inter-redes e o próprio funcionamento
dos atendimentos psiquiátricos. Partindo da necessidade
premente de se organizarem estratégias que dêem conta
da atenção à Saúde Mental, o samu decidiu construir o
protocolo psiquiátrico. assim, a nossa análise foi feita
a partir do acompanhamento das reuniões do grupo
operativo e, a bordo das ambulâncias, da participação
do atendimento aos casos que entram nesse circuito pelo
samu e desembocam na Urgência Clínica e Mental do
São José. Escolhemos esse destino com base na conexão
entre os dois serviços: o samu como a porta de entrada
da demanda e a UCM de São José como regulador do
fluxo das urgências psiquiátricas na rede.
5 a Portaria 2048/gM e a Política Nacional de Saúde Mental.
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JardIM, K.; dIMENStEIN, M. • a crise na rede: o SaMU no contexto da reforma Psiquiátrica
Segunda etapa da pesquisa de campo: sobre as reuniões
de construção do protocolo psiquiátrico
Em maio de 2007, o samu fervilhava em meio a
uma crise decorrente de um processo que se arrastava
desde a abertura do serviço, quando a Portaria 1864/
gM de 29 de setembro de 2003 foi escrita e publicada
(bRasil, 2003). a Portaria, que institui o samu como
dispositivo móvel da Política Nacional de atenção às
Urgências (bRasil, 2002), estrutura um serviço capaz
de resolver as questões mais complicadas, de aplacar o
mal-estar nos lugares mais distantes, ainda que houvesse
a necessidade de os profissionais ficarem pendurados
numa corda de rappel para um salvamento vertical
ou embaixo de ferragens, resgatando uma vítima. os
técnicos do samu devem se tornar agentes preparados
para enfrentar qualquer situação, com ‘nervos de aço’
construídos sob um considerável alicerce identitário.
Poucas coisas poderiam tirar a estabilidade de um
serviço como o samu, mas a comoção gerada pelas ur-
gências psiquiátricas levantava questões todos os dias. os
médicos reclamavam por não saberem regular, os auxilia-
res de enfermagem tinham medo de serem assassinados
durante os atendimentos, o relacionamento com a UCM
era complicado e com os caPs, inexistente. Surgiu, então,
a necessidade de se idealizar um protocolo psiquiátrico.
Nesse sentido, ficou decidido que o delineamento
desse protocolo seria feito em conjunto pela Saúde
Mental e pela UCM, o que contribuiria para conectar
a rede. Entretanto, estavam sempre lidando com uma
linha tênue que poderia simplificar esse objetivo ao focar
na simples criação de uma normalização para diminuir
a crise, não só dos pacientes, mas dos próprios serviços
inquietos com as suas incertezas.
Não era só o samu que estava em crise. a UCM tam-
bém dava seus sinais. a sua atribuição de urgência clínica
foi retirada um mês após a sua inauguração e com isso,
todos os seus instrumentos para esse tipo de atendimento
foram desativados. Nesse sentido, o médico clínico geral,
que fazia parte da equipe, deixou de ser plantonista e
passou a ser diarista: tem de se apresentar uma vez por dia
e checar todos os internos. o caso é preocupante. alguns
pacientes com diagnóstico prévio de transtorno psiquiátri-
co com intercorrências clínicas que foram encaminhados
para lá por conta de uma regulação desatenta chegaram a
óbito graças à falta de estrutura do serviço.
geralmente, nos casos em que o solicitante atesta
que a pessoa a ser atendida tem um diagnóstico psiqui-
átrico prévio, o fluxo da rede é unilinear, ou seja, não
existe conexão direta ou indireta nem encaminhamentos
para a RaPs ou para um núcleo de atenção Básica: o
atendimento delegado à REuE começa e termina em si
mesma. Pode-se dizer que um circuito fechado é um
circuito mortificado.
o primeiro passo para o ‘tratamento’ da crise em
ambos os serviços foi programado para ser a construção do
protocolo. No entanto, o que poderia dar, de fato, corpo
à articulação e extrapolar essa norma é o que se constrói
ao longo desse processo: a aproximação dos gestores a fim
de se formar uma rede de apoio social, a familiarização
com o tema e a invenção de estratégias flexíveis capazes
de dar suporte aos trabalhadores e aos usuários.
Problemas de articulação da rede surgiram aos mon-
tes. o samu não entendia porque os caPs têm carros
próprios mas nunca podem usá-los, mesmo quando um
de seus usuários surta e precisa ser levado à UCM. a
prioridade do samu é atender pessoas que estejam nas
ruas, pacientes encaminhados de algum outro serviço
ficam em segundo lugar na escala de prioridade. a gestão
do samu justifica que pacientes nos serviços estão mais
bem assistidos do que aqueles que estão em via pública,
podendo, dessa forma, esperar para serem transportados.
Quando, em uma das reuniões, os representantes dos
caPs compareceram, a questão de que eles não têm como
atender à crise foi colocada, ou seja, eles precisariam com
urgência da ajuda do samu, pois nem sempre seus carros
estariam à disposição ou mesmo funcionando.
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JardIM, K.; dIMENStEIN, M. • a crise na rede: o SaMU no contexto da reforma Psiquiátrica
Surge, então, uma questão crucial: a falta de res-
posta aos episódios de crise dos usuários dos caPs e de
outros cidadãos não vinculados aos serviços é um dos
principais fatores que contribuem para o fortalecimen-
to da lógica manicomial, exatamente por direcionar
essa demanda aos hospitais psiquiátricos, que ainda
se mantêm fortes por serem consagrados pela própria
rede substitutiva como o serviço indicado para atender
prontamente a crise do usuário por meio de internações
e intervenções medicamentosas.
Enquanto ambulatório que acompanha longitudi-
nalmente um usuário constante, essa realidade do caPs
pode ser a base da idéia, sustentada pelo grupo das reu-
niões de construção do protocolo, de que o médico é o
profissional mais capacitado para lidar com a crise, visto
que a tradição psiquiátrica das internações compulsórias
se sustenta na grande maioria das vezes por conta das
crises. da mesma forma, a falta de preparo dos profis-
sionais para lidarem com esses momentos de sofrimento
intenso é indiscutível, já que eles costumam se colocar
na defensiva, com medo do que pode acontecer. Isso
fortalece a idéia de que, nessa situação, o melhor a se
fazer é conter o paciente.
Essa posição centrada no médico, principalmente
no que diz respeito ao atendimento à crise, dificulta
os trabalhos e nos faz regredir. Como assim? Um dos
principais argumentos utilizados como justificativa para
a não-atenção à crise nos caPs é a falta de psiquiatras na
rede. Muito ainda gira em torno do psiquiatra quando
nos reportamos à crise. apesar disso, nós já tivemos vá-
rias experiências bem sucedidas de resposta à crise sem
psiquiatras ou, até mesmo, sem profissionais da Saúde
Mental6 (lancEtti, 2006).
Esses pontos mostram como a crise é o ponto cen-
tral da captura da loucura. a crise é o momento em que a
RaPs se desfaz daquele usuário e o deixa a cargo da REuE
que, mais do que qualquer outra rede, é absolutamente
medicalizada. tendo em vista que tanto a RaPs quanto
a REuE compõem o SUS, mas, não conversam muito
entre si, o que poderia ser o encaminhamento cabível
vira uma agressão à vida da pessoa.
a construção do protocolo será muito eficaz para
o samu funcionar, mas em nenhum momento foi ques-
tionado se a crise será mais bem assistida e, conseqüen-
temente, se é de um serviço padronizado e rápido ou de
um médico que lhe diga o que fazer e quais remédios
tomar que uma pessoa em crise mais precisa. Isso é uma
simplificação diante da complexidade da vida. a crise,
vista como um diagnóstico, cola as duas principais ações
de supressão: a medicação e a internação compulsórias.
tendo isso em vista, questionamos: a quem serve
esse protocolo? o que significa um protocolo nesse
contexto? Seria possível enquadrarmos as diferenças
em protocolos?
o trabalho na urgência requer uma sensibilidade do
técnico que o faça captar o que se passa no campo, produzir
sentido para o que está acontecendo, buscar informações
do usuário e adaptar as suas possibilidades às necessidades
dele. apesar de o protocolo buscar certa uniformidade,
nunca é demais lembrar que, em uma urgência psiquiátrica,
estamos lidando com pessoas em momentos de intenso
sofrimento; aliás, sofrimento que lhe é infligido por sua
diferença e desafia, questiona um mundo que preza pela
identidade. Utilizar um protocolo ao pé da letra reforça
a idéia de que a loucura precisa ser enquadrada em uma
norma, favorecendo a violência simbólica.
Para isso, trazemos à baila outros princípios do SUS
(integralidade, eqüidade e humanização), importantes
norteadores de uma prática ampla. a ‘integralidade’ con-
siste na atenção geral ao usuário, buscando atender a todas
6 Para um maior aprofundamento sobre isso consultar lancEtti, a. clínica Peripatética. São Paulo: Hucitec, 2005; RotElli, F.; lEonaRdis, o.; mauRi, d. Desinstitucionalização. São Paulo: Hucitec, 2001.
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JardIM, K.; dIMENStEIN, M. • a crise na rede: o SaMU no contexto da reforma Psiquiátrica
as suas necessidades e, para isso, é importante que haja
integração das ações, pressupondo a articulação da saúde
com outras políticas públicas que tenham repercussão na
área e na qualidade de vida dos indivíduos. a ‘eqüidade’
tem como objetivo diminuir as desigualdades levando-se
em conta as diferenças, ou seja, tratar desigualmente os de-
siguais: dar mais a quem precisa de mais e menos a quem
precisa de menos (cunha; cunha, 1998). a ‘humaniza-
ção’ é a valorização dos diferentes sujeitos implicados no
processo de produção de saúde (bRasil, 2004).
Com base nisso e nos princípios da reforma
Psiquiátrica é que defendemos uma flexibilização do
protocolo, que deve servir como um dispositivo para
disparar ações consoantes com a necessidade imediata do
sujeito, transformando-o em agente ativo no processo,
fazendo-o cooperar com a equipe, incorporando-o à
própria intervenção, dando-lhe um lugar privilegiado.
o samu, em vez de servir como um mero transporte
com ares manicomiais, deve intervir de forma incisiva
e que contemple as diretrizes da reforma Psiquiátrica.
Sabemos dos impasses de um serviço como esse fun-
cionar com uma lógica oposta a que está acostumado.
Exatamente por isso as urgências psiquiátricas acabam
se constituindo enquanto analisadoras do samu de uma
maneira geral. Em vez de tentarmos adequar o atendi-
mento do sujeito em crise aos moldes protocolares, por
que não pensarmos em estratégias que humanizem o
samu de forma que todas as ocorrências possam seguir,
de maneira palpável, as diretrizes do SUS?
à GUISA DE UMA CONCLUSÃO
a reforma Psiquiátrica ainda é muito recente e por
buscar a descontrução de uma instituição secular, como
é o caso da Psiquiatria tradicional, exige de nós cada vez
mais estratégias de guerra e um caminhar constante.
a acomodação e convencionalização de uma verdade,
a caracterização de uma só tática como eficaz, nos faz
voltar à estaca zero, à conhecida lógica manicomial.
Esse imperativo por constantes criações e movimen-
tações é a grande inspiração dos movimentos antimani-
comiais. Buscamos considerações que dêem abertura e
propiciem uma fluidez da vida em todas as direções, e não
a instituição de conclusões definitivas, simplificadoras e
precipitadas. Por isso, o nosso campo de atuação tende a
se expandir e a se reinventar todos os dias.
assim, focar o samu, um serviço altamente medica-
lizado que, para alguns, não é compatível em nada com
os objetivos antimanicomiais e de desinstitucionalização
da reforma Psiquiátrica, se tornou algo desafiador que
nos abriu possibilidades para pensarmos em potenciali-
dades ainda não exploradas. a nossa pesquisa, em suas
inúmeras idas e vindas, percorreu caminhos inter-redes
para conhecer o trabalho dos técnicos do samu, pensar
em suas possíveis articulações a fim de problematizar a
atenção e a resposta à crise na cidade de aracaju.
apesar de o samu ter um histórico de hesitações no
atendimento a casos psiquiátricos, o que inclui uma falta
de adesão aos treinamentos e capacitações sobre o tema,
de acordo com atribuição da Portaria 2048/gM de 5 de
novembro de 2002, a demanda psiquiátrica continuará
chegando até ele. Por conta disso, houve a decisão de
aproximarem-se da RaPs a fim de construir o protocolo.
Esse momento é especialmente importante, a despeito
de estar, ainda, em fase embrionária, porque já começa
a gerar frutos; na última reunião para a construção do
protocolo, realizada em meados de novembro, alguns
gestores da RaPs e da REuE decidiram que, após quase
um ano de reuniões e negociações, chegara a hora de
compartilharem essas questões com todos os trabalha-
dores de ambas as redes.
Para tanto, no primeiro semestre de 2008, aconte-
ceu o I Encontro Inter-redes de atenção à Pessoa em
Crise, destinado à discussão da problemática das urgên-
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JardIM, K.; dIMENStEIN, M. • a crise na rede: o SaMU no contexto da reforma Psiquiátrica
cias psiquiátricas, incluindo a construção e validação do
protocolo e as possíveis articulações inter-redes a fim de
se estimular a co-responsabilização dos serviços e técni-
cos em relação ao usuário em crise. Esse foi o primeiro
encontro de muitos outros já planejados.
além disso, o samu se mostrou um serviço com pos-
sibilidades inesgotáveis de acolhimento à crise, visto que
os técnicos podem chegar até a pessoa em sofrimento,
o que viabiliza a inclusão da família no processo, bem
como a rapidez no atendimento que, feito no momento
propício, pode evitar internações e permitir encaminha-
mentos mais eficazes e potentes.
o acolhimento se mostrou a principal força para o
estabelecimento de vínculos que auxiliem a pessoa em
crise na produção de sentido. assim, a crise pode ser rein-
ventada como potência transformadora, momento para
engendrar mudanças e afirmar uma emancipação terapêu-
tica. Sendo o acolhimento um procedimento que utiliza a
comunicação como fundamento e os afetos como direção,
ele se torna ‘improtocolável’, aberto, totalmente flexível
para se adequar às situações que se apresentarem.
Isso nos remete a uma discussão que já começa a
se alastrar mais enfaticamente pelos serviços e entre os
gestores da Saúde Mental: o papel dos caPs na atenção
à crise. Com a recusa dos caPs ao atendimento à crise
e seu funcionamento morno de ambulatório, estamos
vivendo o que mais temíamos: a verdadeira institucio-
nalização dos serviços mais emblemáticos da reforma
Psiquiátrica. a estratégia que deveria abrir caminho
para a vida e seus territórios está se fechando, ocupado
demais com sua burocracia a ponto de fechar os olhos
para a rede, os usuários e seus problemas factuais. Um
serviço fechado cheira a manicômio.
Se ao invés de nos preocuparmos com o usuário e
sua liberdade, com o seu direito de usufruir a sua vida
e emancipação, nos fecharmos, achando que terapias e
passeios vão dar conta disso e esquecermos que o tra-
balho que procuramos realizar são atos de forte cunho
político, cairemos na mesma ditadura da lógica manico-
mial. Por isso, impera um incômodo, um movimentar
incessante e criativo que rodopia no caos da vida. as
certezas, as verdades, as seguranças sólidas, as identidades
que, apesar de flexíveis, cortejam uma invariabilidade
de essência podem conferir um território confortável
e sem surpresas, que pode nos fazer descansar do mo-
vimento. Entretanto, esse conforto estático equivale à
própria morte. Vivemos numa guerra constante contra
a cristalização dos fluxos, contra a acomodação que gera
uma reprodução incessante de burocracia e sofrimento.
deveríamos, antes, nos abrir à fluidez e às possibilidades
que podem ser criadas com o intuito de despertarmos
para a transitoriedade potente e criativa da vida.
a necessidade de preparar os técnicos de ambas
as redes é frisante; aproximá-los de seu tema comum
é necessário. as oficinas virão com esse propósito, mas
não podem ser a única tentativa. além da programa-
ção de capacitações e treinamentos em conjunto, seria
significativo intercambiar os profissionais para que
conhecessem a fundo os problemas e possibilidades da
rede. Porém, por se tratarem de redes muito distintas é
importante haver prudência ao aproximá-los. No que
diz respeito à atenção à crise e urgência psiquiátrica,
seria interessante que pessoas fossem estrategicamente
plantadas nos serviços de ambas as redes. Esses profis-
sionais serviriam como aproximadores, disseminadores
de idéias e semeadores de pequenas dúvidas, seriam
incitados a usar a imaginação auxiliando a desemperrar
alguns fluxos previamente estabelecidos.
Precisamos nos aventurar em outros mundos
possíveis; se a crise é a principal responsável pela inter-
nação de pessoas em sofrimento, o que reforça a lógica
manicomial, é esse o desafio que precisamos encarar; é
a questão da crise e de quais significados ela pode as-
sumir que precisamos discutir e pelos quais precisamos
nos responsabilizar. os movimentos antimanicomiais
ainda são muito jovens, mas já deram vários indícios
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Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 150-160, jan./dez. 2008
JardIM, K.; dIMENStEIN, M. • a crise na rede: o SaMU no contexto da reforma Psiquiátrica
de que são eficazes naquilo que se propõem a fazer. Sua
operacionalização e reinvenção estão em nossas mãos e
cabe a todos nós levá-las a diante.
Este trabalho é uma convocação, um chamado para
uma guerra que não permitirá acomodação sob pena de
nos aprisionar em sua mortificação. Portanto, este é um
convite à experimentação e à invenção de outros mundos
possíveis para a loucura e para nós mesmos enquanto
pessoas e profissionais.
R E F E R Ê N C I A S
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recebido: abr./2008
aprovado: ago./2008
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 161-171, jan./dez. 2008
artIgo orIgINal / ORIgINAL ARTIcLE 161
a construção de um serviço de base territorial: a experiência
do Centro Psiquiátrico rio de JaneiroThe construction of a territorial base service: the experience of the centro
Psiquiátrico Rio de Janeiro
RESUMO O artigo relata a trajetória do centro Psiquiátrico Rio de Janeiro
(cPRJ), centro de atenção à saúde mental pertencente à Secretaria Estadual de
Saúde do Rio de Janeiro, no atual contexto da Reforma Psiquiátrica no Brasil.
A partir das políticas estaduais e municipais de Saúde Mental, que orientam a
substituição de hospitais psiquiátricos por uma rede de serviços de saúde mental
de base comunitária, o cPRJ vem se transformando em um serviço territorial
cada vez mais voltado a atender às necessidades da clientela do seu território de
forma complexa, incluindo o desafio de acompanhar clinicamente pacientes com
transtornos mentais graves e moradores de rua.
PALAVRAS-CHAVE: Psiquiatria comunitária; Reforma Psiquiátrica; Saúde
Mental; Política de Saúde; Serviços de Saúde Mental; Reforma dos Serviços
de Saúde.
ABSTRACT The article states the trajectory of the centro Psiquiátrico Rio de
Janeiro, a center of attention to mental health belonging to the State clerkship
of Health of Rio de Janeiro in the current context of the Brazilian Psychiatric
Reform. Starting from the state and municipal politics of Mental Health, that
gives orientation to a replacement of psychiatric hospitals for a net of services of
Mental Health of community base, centro Psiquiátrico Rio de Janeiro have been
transformed throughout years into a territorial service of complex assistance focused
on the needs of the patients, including the challenge of following-up patients with
serious mental disorders and homeless people.
KEYWORDS: community Psychiatric; Psychiatric Reform; Mental Health;
Health Policy; Mental Health Services; Reformulation of Health Services.
alexandre Keusen 1
andréa da luz Carva lho 2
1 Médico psiquiatra; doutor em
Psiquiatria pelo Instituto de Psiquiatria
da Universidade Federal do rio de
Janeiro (UFrJ); diretor do Centro
Psiquiátrico do rio de Janeiro (CPrJ) de
1998 a 2006; atualmente funcionário do
setor de terapia de Família do Instituto
de Psiquiatria da UFrJ.
2 Psicóloga sanitarista; mestre em Saúde
Coletiva pelo Instituto de Medicina
Social da Universidade Estadual do
rio de Janeiro (IMS/UErJ); analista
de gestão em Saúde da diretoria de
Planejamento Estratégico da Fundação
oswaldo Cruz (fiocRuz).
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Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 161-171, jan./dez. 2008
KEUSEN, a.; CarValHo, a.l. • a construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico rio de Janeiro
I N T R O D U ç Ã O
a partir do final da década de 1970, um movimento
político que questionou o tratamento hospitalocêntrico
de doentes mentais (amaRantE, 1995) e criou as bases
das políticas e técnicas na área da Saúde Mental do
final da década de 1980 e da década de 1990, ajudou a
fundar o conceito de reforma Psiquiátrica atualmente
já absorvido no dia-a-dia de gestores, profissionais da
Saúde Mental e usuários.
a reforma Psiquiátrica1 consiste em um conjunto
teórico e prático de transformações nas áreas da política
de saúde, da clínica e da cultura, que tem como pres-
suposto e critério ético a inclusão do doente mental
na sociedade, bem como o seu tratamento em serviços
de base comunitária e a sua inscrição social como um
cidadão de direitos2.
a redução dos leitos psiquiátricos e a expansão
de uma rede de serviços comunitários têm sido uma
das estratégias implantadas pelo Ministério da Saúde a
partir da década de 1990, que visa à inclusão social do
doente mental e o seu tratamento prioritário em servi-
ços abertos como, por exemplo, os Centros de atenção
Psicossociais (caPs).
Este artigo pretende relatar a história da transforma-
ção de um hospital psiquiátrico em um Centro Integrado
de Saúde Mental. Hoje, considerando-se a política que
privilegia a implantação de uma rede comunitária, é de ex-
trema importância se pensar no que pode ser feito com os
equipamentos hospitalares psiquiátricos públicos. É nesse
sentido que o artigo pretende acrescentar algo: relatando
a experiência das modificações ocorridas na assistência
de um hospital psiquiátrico que procurou aproximá-lo
cada vez mais dos modelos comunitários atualmente
preconizados pela política de Saúde Mental.
BREVE HISTÓRICO DO CENTRO
PSIQUIÁTRICO RIO DE JANEIRO
o Centro Psiquiátrico rio de Janeiro (CPrJ) é
um centro de atenção integrado de Saúde Mental sob a
administração da Secretaria Estadual de Saúde do rio de
Janeiro (SES/rJ). Criado em agosto de 1998, a partir da
transferência do Posto de atendimento Médico (PaM)
Psiquiátrico localizado na avenida Venezuela (antiga
emergência psiquiátrica que, nos anos 1970, centralizava
todas as internações dos pacientes segurados do Instituto
Nacional de Previdência Social, INPS), caracteriza-se
por um serviço com emergência psiquiátrica que conta
com uma Enfermaria, dispõe de 18 leitos psiquiátricos
(oito femininos, sete masculinos e três extras), um am-
bulatório e um hospital-dia.
a missão do CPrJ tem sido desenvolver projetos e
ações voltados à clientela com transtornos mentais, em
especial àqueles com quadros mais graves e dificuldades
nas relações sociais. de 1998 a 2006, foi concebido
em adequação às Políticas Públicas voltadas para a
reforma Psiquiátrica desenvolvidas pelo Ministério
da Saúde (MS), SES/rJ e pela Secretaria Municipal de
Saúde do rio de Janeiro (SMS/rJ). atuando de forma
integrada, os serviços do CPrJ buscavam atender essa
clientela em situações de crise e de acordo com suas
demandas cotidianas.
1 o conceito de reforma psiquiátrica no Brasil sofreu a influência dos movimentos de reforma psiquiátrica na Europa e EUa, mas principalmente teve como inspiração o modelo de reforma italiano (ver dEsviat, 2001 e RotElli; lEonaRdis; mauRi, 1990).2 a lei 10.216/2001 (bRasil, 2004a) regulamenta os direitos dos doentes mentais e os tipos de internação. as repercussões clínicas e políticas desta legislação são analisadas por delgado (2001).
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KEUSEN, a.; CarValHo, a.l. • a construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico rio de Janeiro
No início, em 1998, era como um hospital psi-
quiátrico; possuía 15 leitos para curta permanência nos
quais era feita a avaliação da internação psiquiátrica e,
quando necessário, o encaminhamento de pacientes
para clínicas privadas contratadas do SUS. Possuía,
também, um ambulatório predominantemente de
psiquiatras e um hospital-dia incipiente. Seu papel era
ser mais um hospital psiquiátrico que concentrasse os
recursos e a clientela de todo o município e estado do
rio de Janeiro. Com o avanço das Políticas Públicas
voltadas à abertura de serviços territoriais que dessem
conta das demandas da clientela em seu entorno, como
os Centros de atenção Psicossociais (caPs), a política de
controle e regulação dos leitos psiquiátricos3 bem como
o início das discussões entre os serviços do entorno do
hospital através do Fórum de Saúde Mental da Área
Programática 1.04 (a partir do segundo semestre de
2006), o CPrJ realizou transformações em seu projeto
terapêutico institucional no sentido de caminhar para
o perfil de uma unidade assistencial em Saúde Mental
mais engajada em responder às necessidades e demandas
da população adscrita ao hospital.
É preciso ressaltar que, na área de Saúde Mental, a
oferta de recursos mais próximos do local de moradia dos
pacientes e o sentido de responsabilização das equipes
pelo seu acompanhamento é o modelo que traz melhores
resultados em relação à diminuição na necessidade de se
utilizar a internação, que geralmente é um recurso que
onera o sistema de saúde e não deve ser utilizado como
único recurso terapêutico. outro ponto importante a
ser destacado, é que os contextos do paciente e da sua
família devem ser considerados relevantes para o trata-
mento dos transtornos mentais.
É nesse sentido que a sua clientela alvo, prioritária
para acompanhamento no ambulatório e hospital-dia,
é a residente na área do centro do município do rio de
Janeiro e adjacências (área programática 1.0). No entan-
to, ele ainda permanece como um dos quatro pólos de
emergência psiquiátrica da cidade do rio de Janeiro5,
oferecendo atendimento 24 horas e sendo responsável
pela avaliação da necessidade de internação. Seus leitos
são regulados desde maio de 2003 pela Central de re-
gulação da SMS/rJ.
É importante destacar, ainda, os projetos voltados
a especificidades de determinadas clientelas. o aten-
dimento à população de rua com transtornos mentais
realizado no hospital-dia, em parceria com o Instituto
de Psiquiatria/UFrJ, e o projeto PatER, desenvolvido
no ambulatório e voltado para a população idosa tam-
bém portadora de transtornos mentais, são exemplos
desses projetos.
ressalta-se que o projeto terapêutico da insti-
tuição é oferecer serviços (internação, atendimento
mutiprofissional na emergência e consultas em diversas
especialidades tais quais: psiquiatria, psicologia, assis-
tência social, enfermagem, terapia ocupacional, oficinas
terapêuticas, atendimento à família, grupos terapêuticos
e atividades artísticas) para a clientela com transtornos
mentais, levando-se em consideração o quadro clínico
e a situação social dos pacientes. o desafio do CPrJ é
criar projetos que respondam às diversas necessidades
de sua clientela.
3 a partir de maio de 2003, a SMS rio de Janeiro passou a regular todos os leitos psiquiátricos públicos e privados contratados da Cidade do rio de Janeiro. o CPrJ, junto com os outros três pólos de emergência psiquiátrica (Hospital Municipal Jurandyr Manfredini (HMJM), Instituto Municipal Philippe Pinel (IMPP) e Instituto Municipal Nise da Silveira), passou a integrar esse processo de regulação, configurando-se como avaliadores da internação psiquiátrica da cidade (solicitantes e executantes de internação psiquiátrica). Seus leitos eram preferencialmente reservados à sua clientela.4 o CPrJ está localizado na Praça da Harmonia, no bairro Saúde, na área programática 1.0. Essa área possui uma projeção da população para 2007 de 228.549 habitantes, segundo dados do Instituto Pereira Passos (Prefeitura da Cidade do rio de Janeiro). os bairros oficiais que compõem esta aP são: Centro, Saúde, gamboa, rio Comprido, São Cristóvão, Santa tereza, Mangueira, Paquetá, Santo Cristo, Cidade Nova e Caju. 5 os outros três pólos psiquiátricos são o HMJM, o PaM rodolpho rocco e o IMPP, sendo que o HMJM e o IMPP são também hospitais psiquiátricos.
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KEUSEN, a.; CarValHo, a.l. • a construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico rio de Janeiro
Na época da mudança do antigo PaM Venezuela,
o centro se encontrava em clara decadência, sendo des-
crito como uma ‘pocilga’ pelo coordenador de saúde
do Ministério da Saúde em 1987. Já o seu processo de
transformação foi avaliado duas vezes pelo Programa
Nacional de avaliação do Sistema Hospitalar (PNaSH)
(bRasil, 2004a) como a melhor unidade do Estado do
rio de Janeiro.
Neste texto relataremos a evolução desta experi-
ência, avaliando o ano de 2006 em comparação com
o período de 2000 a 20056, através da compilação
de indicadores da assistência e outros relatos sobre as
mudanças dos serviços que objetivavam construir um
serviço de Saúde Mental de base territorial.
O FLUXO DE PACIENTES NO CPRJ
Como já dito anteriormente, o CPrJ se configura
como um dos quatro Pólos de Emergência Psiquiátrica
no Município do rio de Janeiro, responsável pela ava-
liação da necessidade de internação. a porta de entrada
para os seus diversos serviços como enfermaria, ambu-
latório e hospital-dia é a emergência que funciona 24
horas, sete dias por semana.
Caso haja necessidade do paciente permanecer in-
ternado, ele é encaminhado à enfermaria, onde a equipe
realiza uma avaliação sobre a sua permanência ou solicita
à Central de regulação um leito para a sua transferência.
Essa decisão é feita com base em diversas variáveis como
o local de moradia do paciente, acompanhamento do
paciente por algum serviço do CPrJ e, sobretudo, sua
situação clínica.
o ambulatório é aberto preferencialmente aos
pacientes que residem na área programática 1.0 do
município do rio de Janeiro, mas mantém assistência
a todos os pacientes de outras regiões do município e
Estado do rio de Janeiro que já se encontravam em
acompanhamento na Unidade.
o hospital-dia acompanha preferencialmente
novos pacientes, moradores da área programática 1.0
do município do rio de Janeiro, e pacientes antigos de
outras regiões do município e Estado do rio de Janeiro.
Esse é um dos poucos serviços no Estado que possuem
um projeto terapêutico para o acompanhamento de
população de rua.
as equipes realizam reuniões semanais internas
para discussão dos casos e dos problemas dos serviços;
seus coordenadores reúnem-se semanalmente com a
direção para que haja maior integração entre os vários
serviços. as equipes também fazem reuniões entre si
para discutir casos.
INDICADORES DA ASSISTÊNCIA
Emergência e enfermaria
Houve um aumento nos atendimentos feitos na
emergência e no ambulatório no período de 2000 a
2005, sendo que registrou-se uma diminuição no nú-
mero de atendimentos na emergência nos anos 2000
e 2001, enquanto no ambulatório manteve-se um
aumento em todo o período. Em 1999, o ambulatório
realizava 14.996 atendimentos; em 2005 esse número
6 o CPrJ começou a desenvolver um sistema próprio de registro de informações desde a sua inauguração, em 1998. todos os pacientes que entram na emergência são registrados nesse sistema. No decorrer desses oito anos, foram feitas discussões com as equipes dos diversos serviços nas reuniões semanais de direção visando integrar suas informações, ou seja, que o registro do paciente poderia ser visualizado em todas os departamentos de ações terapêuticas no hospital. tal sistema permitiu também a realização de estudos sobre a reinternação dos pacientes para uma melhor formulação dos projetos terapêuticos das equipes. a partir do ano 2000, o sistema passou a ser alimentado com informações mais contínuas.
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cresceu em 95% (29.257 atendimentos). Já no ano
2006, houve uma diminuição de 12% nos atendimentos
de emergência em relação a 2005 (gráfico 1).
dentre os fatores para a diferença no desempenho
da emergência e do ambulatório, destacam-se: a análise
da demanda que chega ao CPrJ e que, em grande parte,
reflete a oferta ainda insuficiente de serviços de saúde
mental na Cidade do rio de Janeiro; as dificuldades de
articulação entre os diversos serviços em uma cidade
de aproximadamente seis milhões de habitantes e com
uma história marcada pela presença maciça de hospitais
psiquiátricos na resolução dos problemas de quem sofre
de alguma desordem psíquica.
o desafio da implantação da reforma Psiquiátrica
na Cidade do rio de Janeiro está não só no aumento
de serviços extra-hospitalares que se responsabilizam
pelo acompanhamento de determinada clientela, mas
também na elaboração de processos de trabalho que
estejam mais direcionados à necessidade da clientela
de ser considerada em sua integralidade e no fato de o
recurso da internação ser utilizado com critério técnico
definido por uma equipe multidisciplinar.
de 2004 a 2005, houve um aumento significativo
dos atendimentos feitos pela emergência do CPrJ em
relação aos números anteriores, que variavam entre
10.000 e 12.500 atendimentos anuais. Em 2004, houve
16.059 atendimentos e em 2005 esse número subiu
para 17.125. destacamos que no segundo semestre de
2005, houve a transferência de uma das Emergências
Psiquiátricas do Instituto Municipal Nise da Silveira para
o PaM rodolpho rocco. Esse acontecimento causou
alguns transtornos para a clientela, já acostumada ao
atendimento feito pelo Instituto Médico Nise da Silveira
já que foi feita uma distribuição desta clientela entre os
outros três pólos de emergência.
a diminuição no número de atendimentos em
2006 pode estar relacionada a alguns fatores internos
e externos ao funcionamento do CPrJ. os fatores ex-
ternos dizem respeito a uma tendência, que se iniciou
em 2003 e acelerou durante esse ano, dos serviços a se
responsabilizarem preferencialmente por suas clientelas
mais adscritas, visando o seguimento desses pacientes
inclusive com ações em seu território de moradia; ou-
tro fator importante foi a ação da assessoria de Saúde
Mental da SES/rJ no auxílio aos municípios do Estado
do rio de Janeiro para organizar suas portas de entrada.
Já os fatores internos dizem respeito à rigorosa avaliação
dos pacientes no CPrJ pela equipe que, neste período
0
10000
20000
30000
40000
50000
60000
1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006
EmergênciaAmbulatórioTotal
Gráfico 1 - distribuição de atendimentos na emergência e no ambulatório no CPrJ de 1999 a 2006
Fonte: Centro Psiquiátrico rio de Janeiro – SES/rJ. censo Hospitalar 1999-2006
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de oito anos, tornou-se multidisciplinar, inibindo cada
vez mais a distribuição de receitas (prática usual nas
emergências em geral) fazendo com que, dessa forma, o
paciente se engajasse em um tratamento contínuo.
Um dos indicadores que ajuda a acompanhar o
desempenho das equipes de emergência é o percentual de
atendimentos na emergência que se tornam internações.
Como já foi dito anteriormente, esse indicador reflete
o esforço do CPrJ em tornar mais complexo o atendi-
mento em sua porta de entrada, de forma que a decisão
acerca da internação seja um critério técnico consentido
pelo médico juntamente com o psicólogo e o assistente
social. os dados apresentados no Quadro 1 mostram a
relação entre o número de atendimentos na Emergência
Psiquiátrica do CPrJ e o número de internações.
Nesse período, a média percentual de internações
girou em torno de 16%. a partir de 2002, houve uma
tendência de queda mais expressiva com estabilização
entre 2004 e 2005 e nova queda em 2006. analisando-se
os números absolutos de atendimentos na emergência e
o número de internações, percebemos, no entanto, que
houve uma queda significativa das internações em com-
paração aos anos de 1999 e 2006 (com uma diferença
de 943 internações, ou seja, queda de 41%).
Chama-se atenção para o fato de o CPrJ ter uma
enfermaria dispondo de leitos de curta permanência.
Como já constatado, esses leitos foram inseridos na
Central de regulação da SMS/rJ em maio de 2003,
quando os leitos psiquiátricos começaram a ser regu-
lados na cidade do rio de Janeiro. o CPrJ é uma das
quatro portas de entrada que avaliam a necessidade de
internações psiquiátricas sendo que os 18 leitos da Enfer-
maria de Curta Permanência são disponibilizados para o
próprio CPrJ; quando há necessidade de transferência,
o hospital solicita um leito à Central de regulação.
Segundo dados do datasus/MS, o faturamento das
internações em um período de seis anos (2000 a 2005)
têm sido em média r$ 95.638,83, o que representa uma
média de 836 autorizações de Internações Hospitalares
(aIH) por ano. Chamamos a atenção para o fato de que
o faturamento da aIH corresponde ao pagamento das
internações de 24 horas e que muitas vezes o paciente
tem alta em menor período.
Na enfermaria, há um esforço da parte da equipe em
tornar essa internação o mais breve possível com a finali-
dade de inserir o paciente em serviços extra-hospitalares.
a enfermaria conta com uma equipe multidisciplinar
formada por médicos psiquiatras, enfermeiros, técnicos
em enfermagem, auxiliares de enfermagem, terapeutas
ocupacionais e assistentes sociais. a estada do paciente
no CPrJ não se limita à permanência no leito e à ad-
ministração de medicamentos; a equipe multidisciplinar
Anos Número de atendimentos Número de internações %1999 12.050 2.295 19,05
2000 10.130 2.205 21,77
2001 10.572 2.114 20,00
2002 11.956 2.051 17,15
2003 12.679 1.881 14,84
2004 16.059 1.967 12,25
2005 17.125 2.106 12,30
2006 11.882 1.352 11,38
Quadro 1 - Percentual de atendimentos da emergência psiquiátrica do CPrJ que se tornaram internações de 1999
a 2006
Fonte: Centro Psiquiátrico rio de Janeiro – SES/rJ. censo Hospitalar 1999-2006
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deve qualificar a assistência, oferecendo atividades no
pátio interno da enfermaria, e realizar grupos diários
com as famílias dos pacientes internados. dessa forma,
acredita-se que o que faz diminuir o tempo de interna-
ção é a interlocução da equipe multidisciplinar com os
recursos apresentados para cada paciente visando, em
muitos casos, a sua intensificação e articulação.
o caminho para o setor é assumir integralmente
toda a clientela de seu território, tendo-se inclusive
ampliado o número de leitos voltados ao atendimen-
to, e não à transferência dos pacientes do território, e
procurar encaminhar os pacientes de outras localidades
para os outros pólos. durante o ano de 2006, a equipe
da enfermaria começou a dar prioridade ao atendi-
mento a essa clientela, não mais transferindo aqueles
que morassem na região, fortalecendo os laços com
o hospital-dia e com ambulatório. Uma dificuldade
evidente, em função da limitação de recursos para se
lidar com os pacientes de outras regiões, ocorria espe-
cialmente em relação à clientela feminina que possuía
poucas alternativas de leitos disponíveis na cidade do
rio de Janeiro.
Em 2005, iniciamos um processo de discussão no
CPrJ que resultou em uma nova organização denomi-
nada de Setor de atividades. o hospital-dia foi dividido
em um setor de atividade e um setor terapêutico, com
o objetivo de se organizar a demanda dos projetos tera-
pêuticos da clientela. Na enfermaria a equipe do ‘pátio’,
desde 2003, iniciara atividades no ambulatório com a
clientela da sala de espera e com atendimentos progra-
mados. Em 2006, com a fusão de todas as equipes envol-
vidas em projetos de atividades, houve a possibilidade de
oferecer a toda a clientela do CPrJ, independentemente
do local do atendimento, a possibilidade de envolvê-la
com programas de atenção específica, seja em termos
de terapia ocupacional, musicoterapia, arte-terapia,
projetos vocacionais, entre outros. Isso, juntamente
com as transformações pelas quais a enfermaria passava,
apontava para o encaminhamento do projeto do CPrJ
como uma unidade de atenção territorial no campo da
Saúde Mental.
de acordo com os dados apresentados no Quadro 2,
as médias dos indicadores hospitalares (taxa de ocupação
e tempo médio de permanência) aumentaram no
período de 2000 a 2005. Esses valores (principalmente
o tempo médio de permanência) expressam, em parte,
resultados do incremento das atividades na enfermaria
nesse período.
o Quadro 2 mostra, também, uma diferença
de 23 pontos entre as médias na taxa de ocupação de
2000 e 2006. Esse aumento pode estar relacionado às
dificuldades de obtenção de leitos femininos na cidade
do rio de Janeiro. Principalmente em 2005, houve uma
drástica combinação de suspensão e redução de leitos
devido aos vários processos de auditoria e interdições
em hospitais psiquiátricos privados contratados pelo
SUS realizados pela Vigilância Sanitária da SES/rJ e
SMS/rJ. Em 2006, houve a suspensão de internações
na Clínica Valência, que oferecia 200 leitos ao sistema.
Essa medida resultou na modificação dos leitos psiqui-
átricos públicos que passaram a atender mais mulheres
do que homens, já que há uma oferta maior de leitos
Indicadores hospitalares 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006
Taxa de ocupação 71% 79% 82% 80% 89% 85% 94%
Tempo médio de permanência (dias) 2 2 2 2 3 2,3 3,9
Quadro 2 - taxa de ocupação e tempo médio de permanência do Centro Psiquiátrico rio de Janeiro no período
de 2000 a 2006 – médias
Fonte: Centro Psiquiátrico rio de Janeiro – SES/rJ. censo Hospitalar 2000-2006
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KEUSEN, a.; CarValHo, a.l. • a construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico rio de Janeiro
masculinos nas clínicas privadas contratadas pelo SUS
na cidade do rio de Janeiro.
Em 2006, o CPrJ registrou em cinco meses (ja-
neiro, março, abril, maio e setembro) taxas de ocupação
maiores que 100%. os tempos médios de permanência
nos leitos femininos (6,6 dias) sempre foram, em média,
maiores do que os masculinos (1,6 dias).
No entanto, ao analisar as altas dadas no período
(com exceção daquelas devido a óbito, transferência e
evasões), percebe-se que este indicador vem aumentando
gradativamente, podendo estar relacionado, mais uma
vez, ao trabalho da equipe da enfermaria. o Quadro 3 de-
monstra que a média percentual de altas dadas pela equipe
da enfermaria em relação à média do total de internações
no período aumentou significativamente, havendo uma
diferença de 15 pontos entre 2005 e 2006.
Houve apenas 11 óbitos no período de 2000 a
2006: dois no ano de 2000, um em 2001, um em
2002, dois em 2003, dois em 2004, três em 2005 e um
em 2006. Segundo portaria do Ministério da Saúde no
251/2002 do Programa Nacional de avaliação do Siste-
ma Hospitalar (PNaSH) (bRasil, 2004B) que orienta a
estrutura e funcionamento dos hospitais psiquiátricos,
o CPrJ deve ter uma estrutura de pouca complexida-
de atender às ocorrências clínicas. observa-se que a
maior parte das causas de morte esteve relacionada à
dificuldade de tal paciente ser inserido e acompanhan-
do clinicamente pela rede de saúde em geral e não à
desordem psiquiátrica.
Ambulatório e hospital-dia
o ambulatório do CPrJ oferece atendimento indi-
vidual e em grupo por médicos psiquiatras, psicólogos e
assistentes sociais, para pessoas maiores de 18 anos. Nos
últimos quatro anos, definiu-se que a clientela de primeira
vez deveria ser moradora dos bairros localizados na área
programática 1.0 do Município do rio de Janeiro, mas
há ainda pacientes de outras áreas programáticas do mu-
nicípio e da Baixada Fluminense que são acompanhados.
Essa escolha se deu devido a um grande número de faltas
às consultas marcadas de pacientes de áreas mais distantes
e, também, para que o serviço pudesse utilizar melhor
toda sua capacidade. de acordo com o Quadro 4, houve
Tipo de atendimento 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006
Inicial 1.651 1.565 2.545 1.839 1.782 1.300 1.012*
Subseqüente 18.901 19.705 22.768 28.577 28.832 30.523 27.736*
Total 20.552 21.270 25.313 30.416 30.614 31.823 28.748*
Quadro 4 - atendimentos de primeira vez e subseqüentes no ambulatório do Centro Psiquiátrico rio de Janeiro
– período 2000 a 2006
* Não está contabilizado o mês de janeiroFonte: Centro Psiquiátrico rio de Janeiro – SES/rJ. Boletim de Atendimento Ambulatorial 2000-2006
Indicador hospitalar 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006
Internação 187 176 176 158 159 175 113
Altas hospitalares 36 36 43 42 43 39 42
% 19% 20% 24% 27% 27% 22% 37%
Quadro 3 - Internação e alta hospitalar no Centro Psiquiátrico rio de Janeiro no período de 2000 a 2006 – médias
Fonte: Centro Psiquiátrico rio de Janeiro – SES/rJ. censo Hospitalar 2000-2006
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um aumento de 55% nos atendimentos do ambulatório
no período de 2000 a 2005.
o ambulatório do CPrJ desenvolve um projeto
especial voltado para a população idosa (projeto Pater),
que realiza avaliação neuropsicológica de pacientes com
suspeitas de demência e Mal de alzheimer; dessa forma,
projetos terapêuticos específicos para estas clientelas
podem ser elaborados.
outro projeto desenvolvido no ambulatório foi a
formação do núcleo de Psicanálise, com reuniões dos
técnicos de vários setores semanalmente. Essa equipe
ampliou de forma significativa o atendimento psico-
terápico na Unidade e, com sua discussão, influenciou
projetos na emergência e no hospital-dia.
o hospital-dia do CPrJ é voltado ao atendimento de
pacientes com transtornos mentais graves e persistentes
cujos laços sociais encontram-se esmaecidos. É também
composto por uma equipe multidisciplinar: psicólogo,
médico psiquiatra, terapeuta ocupacional, assistente
social, auxiliares de enfermagem e oficineiros. além das
tradicionais consultas realizadas por profissionais de nível
superior, o hospital-dia oferece atividades que visam à
reinserção psicossocial de pacientes como oficinas de
arte, marcenaria e culinária. Esse serviço oferece
alimentação para pacientes que freqüentam o serviço
em regime integral. o hospital-dia do CPrJ possui,
também, uma associação de familiares, a associação dos
Familiares, Usuários, amigos e Funcionários do Centro
Psiquiátrico do rio de Janeiro (afaucEP), que apóia as
famílias e pacientes do hospital-dia. o Quadro 5 mostra
o aumento de 22% nos atendimentos feitos no hospital-
dia do CPrJ, comparando-se os anos 2000 e 2006.
Segundo dados do datasus/MS apontados no Quadro 6
houve também um crescimento no faturamento do
hospital-dia no período 2000 a 2005.
o hospital-dia ainda realiza parcerias com as áreas
sociais da SES/rJ, da SMS/rJ e com o Instituto de Psi-
quiatria da UFrJ para o cuidado e acompanhamento de
pacientes com transtornos mentais graves e persistentes
em situação de moradores de rua, em especial aqueles
que moram no centro da cidade e adjacências. Essas
parcerias implicam no abrigamento desses pacientes em
albergues e hotéis; a contrapartida dada pelo CPrJ é o
tratamento destes pacientes. Esse projeto foi incluído
entre as dez experiências bem sucedidas na III Confe-
rencia Nacional de Saúde Mental.
Clientela atendida 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006
Pacientes 8.626 10.523 10.006 11.135 12.656 11.852 11.799
Familiares 1.227 849 698 592 420 270 271
Total 9.853 11.372 10.704 11.727 13.076 12.122 12.070
Quadro 5 - Número de atendimentos de pacientes e familiares no hospital-dia do Centro Psiquiátrico rio de
Janeiro – período de 2000 a 2006
Fonte: Centro Psiquiátrico rio de Janeiro – SES/rJ. Boletim de Atendimento Hospital-dia 2000-2006
Unidade 2000 2001 2002 2003 2004 2005
CPRJ 180.421,7 205.837,4 222.553,6 172.012,8 210.219,4 195.396,5
Quadro 6 - Valores totais anuais, em reais, de faturamento do hospital-dia do Centro Psiquiátrico rio de Janeiro
– Período 2000 a 2005
Fonte: dataSUS/Ministério da Saúde. Sistema de Informações Hospitalares 2000-2005
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KEUSEN, a.; CarValHo, a.l. • a construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico rio de Janeiro
CONSIDERAÇÕES FINAIS: UM SERVIÇO DE
SAÚDE MENTAL TERRITORIAL NO MEIO
DO CAMINHO7
destacamos que, ao final desses quase dez anos,
o CPrJ têm ampliado sua produção em todos os seus
serviços, procurando qualificar a assistência em Saúde
Mental de acordo com os princípios da reforma Psi-
quiátrica, ou seja, garantir os direitos dos pacientes e
um tratamento humanizado, inserindo-o no social para
romper preconceitos.
a arte adquiriu um papel especial como instru-
mento terapêutico e elemento de enfrentamento do
processo de exclusão e da luta contra o estigma dessa
clientela. destacamos o projeto, chamado Convivendo
com a Música, que gerou o grupo musical Harmonia
Enlouquece composto pela clientela e técnicos da
Unidade, que já lançou dois Cds e vem se apresen-
tando em eventos públicos de importância social e
Casas de Espetáculos no projeto loucos por Música e
outros, no rio de Janeiro, Salvador, Santos, Brasília e
Porto alegre. No projeto Convivendo com a Música,
semanalmente, a clientela se reúne para ouvir e tocar
música; pelo menos uma vez por mês eles recebem um
músico convidado: já foram recebidos um violinista da
Sinfônica de Sttugart, uma banda punk de meninas
do rio de Janeiro, uma banda de forró entre outras
participações. além da música as artes plásticas, poesia,
teatro e outras expressões artísticas foram vivenciadas
durante este período no CPrJ.
Em 2006, o hospital começou a desenvolver pro-
jetos de visitas domiciliares sistemáticas para pacientes
que residem da área do entorno do hospital, mas que
não conseguem aderir a nenhum dos seus serviços e,
também, serviços terapêuticos para moradores de rua
com transtornos mentais graves e persistentes e que
não têm onde morar.
analisando-se o modelo assistencial desenvolvido
pelo CPrJ de 1998 até o momento, pode-se dizer que
esse modelo está em processo de transição, ou seja,
ao longo deste período o hospital foi agregando à sua
função de avaliação da internação psiquiátrica outros
serviços como ambulatório e hospital-dia, serviços que
se responsabilizam pelo acompanhamento de clientelas
e tornam o CPrJ uma instituição mais complexa vol-
tada ao seguimento da população residente nas áreas
próximas ao hospital.
Esta apresentação de uma experiência vivenciada
no CPrJ destaca que seu atual modelo assistencial se
aproxima mais das funções de um caPs tipo III8 (bRa-
sil, 2004C), ou seja, uma unidade de Saúde Mental
voltada à população com transtornos mentais graves e
persistentes e que tenham dificuldade em estabelecer
laços sociais. a grande diferença é o fato de que o CPrJ
ainda possui uma emergência psiquiátrica e ainda cum-
pre a função de avaliação da internação psiquiátrica
para a cidade do rio de Janeiro.
Isso nos permite demarcar a possibilidade de haver,
nas grandes cidades, um desenvolvimento de serviços
que possam atuar de forma integral e ser integrado à
rede, atendendo de forma territorial a clientela, seja
na crise, em sua demanda cotidiana ou no processo
de reabilitação.
Por fim, ressalta-se que as modificações realizadas
em seu modelo assistencial relacionam-se às necessi-
dades e negociações junto às Secretarias Estadual e
Municipal de Saúde do rio de Janeiro com o intuito
de se implantar a política da reforma Psiquiátrica.
7 Este título se deve ao fato de que o CPrJ, apesar de todas as modificações apresentadas o aproximarem de um serviço territorial, sua posição no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde ainda é de hospital psiquiátrico.8 Um caPs tipo III se constitui como um serviço de atenção psicossocial de base territorial que funciona 24 horas e possui no máximo cinco leitos para internação psiquiátrica exclusiva de seus pacientes em acompanhamento.
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KEUSEN, a.; CarValHo, a.l. • a construção de um serviço de base territorial: a experiência do Centro Psiquiátrico rio de Janeiro
ao mesmo tempo, todo o processo de construção da
diversidade de atividades só foi possível por causa do
engajamento de técnicos, usuários e seus familiares que,
através de debates públicos, assembléias e reuniões de
equipe, procuraram encontrar soluções para a melhoria
da assistência dada pelo CPrJ.
R E F E R Ê N C I A S
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recebido: abr./2008
aprovado: ago./2008
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artIgo orIgINal / ORIgINAL ARTIcLE172
articulando planejamento e contratos de gestão na
organização de serviços substitutivos de Saúde Mental:
experiência do SUS em Belo HorizonteLinking planning and management contracts in the organization
of substitute services of Mental Health: experience of SUS in Belo Horizonte, Minas gerais
RESUMO Neste artigo aborda-se a experiência de articulação de um conjunto
de instrumentos de gestão subsidiando a organização dos serviços substitutivos
de Saúde Mental do Sistema Único de Saúde (SUS) de Belo Horizonte, Minas
gerais há cerca de dez anos. Enfatiza-se o modo de aporte das diretrizes do
planejamento e dispositivos agregados, para avançar num modelo de co-gestão dos
processos locais de trabalho. Além da utilidade na organização interna dos serviços,
explicita-se o potencial dessas ferramentas de gestão na organização da rede e no
desenvolvimento de ações articuladas. O aprofundamento dessas aproximações
pode contribuir para a consolidação dos processos coletivos de trabalho em Saúde
Mental e potencializar a integração da rede.
PALAVRAS-CHAVE: Saúde Mental; Planejamento; gestão; Rede.
ABSTRACT In this article it is approached the articulation experience of a
set of management tools subsidizing the organization of substitutive Mental
Health services of the Single Health System (SUS) of Belo Horizonte (Minas
gerais), in about ten years. The emphasis is in the mode of intake of the planning
guidelines and aggregated tools to improve a model of participating management.
In addition to the utility in the services internal organization, it is clear that
these tools potential for managing the organization’s network and development
of coordinated actions. It is suggested that these approaches deepening can do
much to the consolidation of the collective work processes’ in Mental Health and
to enhance the network integration.
KEYWORDS: Mental Health; Planning; Management; Network.
Serafim Barbosa Santos-Fi lho 1
1 Médico sanitarista; mestre em
saúde pública e epidemiologia pela
Universidade Federal de Minas gerais
(UFMg); consultor do Ministério
da Saúde, atualmente realiza
acompanhamento/apoio aos Serviços
de Saúde Mental do Sistema Único
de Saúde (SUS) em Belo Horizonte
e região Metropolitana na área de
planejamento e gestão.
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SaNtoS-FIlHo, SB. • articulando planejamento e contratos de gestão na organização de serviços substitutivos de Saúde Mental: experiência do SUS em Belo Horizonte
I N T R O D U ç Ã O
Historicamente, no âmbito dos serviços tradi-
cionais de Saúde Mental não eram utilizados recursos
de planejamento focados nos processos de trabalho e
organização da atenção. a aproximação das diretrizes
e instrumentos de planejamento estratégico e outras
ferramentas de gestão no campo da Saúde Mental é algo
que vem ocorrendo recentemente, a partir das mudanças
no paradigma da atenção, especialmente com a refor-
ma Psiquiátrica e proposta dos serviços substitutivos
(amaRantE, 1992).
a apropriação dos referenciais do planejamento,
atrelados à uma concepção de gestão participativa, con-
tribui não somente para articular a dinâmica dos serviços
em torno de sua missão e metas, mas sobretudo para
fomentar o exercício da construção coletiva de objeti-
vos, processos e viabilidade para os projetos desejados.
o planejamento pode, portanto, ser exercitado em um
caráter pedagógico, de aprendizagem coletiva.
Nesse sentido, nossa aproximação sistemática em
curso há cerca de 10 anos, inicialmente com um dos
Centros de referência de Saúde Mental (cERsam/caPs)
do Sistema Único de Saúde de Belo Horizonte (SUS/
BH), pautou-se exatamente por essa linha, fomentando
a perspectiva de um ‘jeito’ compartilhado de conduzir
serviços, marcando a importância do envolvimento efe-
tivo de todos os atores na produção do seu próprio fazer
e das práticas de atenção, jeito que sugeria a importância
da atitude de co-responsabilização em torno de ‘planos
de ação’, planos sempre cuidadosamente revistos, e vistos
não numa perspectiva burocrático-protocolar, mas como
norteador dos movimentos considerados necessários
para a consolidação dos serviços. Essa sistemática de
aproximação e acompanhamento dos serviços alinha-se
ao que tem sido apontado por Campos (2000, 2003,
2006) como inovações nos modelos de gestão, atualmen-
te enfatizando-se a metodologia de ‘apoio institucional’,
como estratégia de assessorar os coletivos na discussão e
enfrentamento de situações, compartilhando e fazendo
ofertas, inclusive de ferramentas.
Nesse eixo, trabalhar com ferramentas de planeja-
mento e de avaliação abre caminhos para repensar per-
manentemente ‘o quê’ (metas) está sendo alcançado, com
quais ‘estratégias’, em quais ‘direções’, atinando-se para
um acompanhamento avaliativo das ‘mudanças’ propostas
e esperadas com o serviço. Esse processo ajuda na refle-
xão contínua sobre a proposta de desinstitucionalização,
sobre o que ela traz como objetivos e quais componentes
(‘indicadores’) realmente delimitam o caráter ‘substitutivo’
dos serviços, isto é, faz pensar sobre os objetivos e o que
está efetivamente sendo posto em prática.
No presente artigo, esses e outros aspectos são
levantados e analisados, tendo-se por base um ‘projeto
de intervenção/apoio’ que começou com uma série de
oficinas de planejamento ocorridas em um cERsam/
caPs do SUS/BH, no início de seu funcionamento,
em meados dos anos 1990. Essas oficinas propiciaram
a orientação do processo de trabalho no serviço, avan-
çando em discussões que extrapolam a tessitura do seu
modus operandi, abrigando importantes questões nessas
direções que acabamos de mencionar, no sentido de fo-
mentar o protagonismo da equipe na co-construção do
‘sentido’ daquele serviço substitutivo que se inaugurava.
a pergunta que sempre levantamos para inquietar: ‘a
que viria um serviço substitutivo?’ E, quais ‘frentes de
ação’ poderiam ser construídas para corresponder à nova
missão que se colocava.
a seguir, são sintetizadas algumas reflexões sobre
os movimentos desencadeados com o serviço que foi
mencionado, agregando também nossas outras experi-
ências, estendidas aos demais serviços da rede do SUS/
BH e outros municípios mineiros.
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SaNtoS-FIlHo, SB. • articulando planejamento e contratos de gestão na organização de serviços substitutivos de Saúde Mental: experiência do SUS em Belo Horizonte
A demanda pelo ‘planejamento’ e os rumos da
interlocução estabelecida
o primeiro serviço que nos foi demandado para
contribuir com a organização no início de sua estru-
turação foi o cERsam/caPs Noroeste. Esse cERsam foi
criado no final de 1995, a partir da reestruturação de
um ‘grande’ serviço ambulatorial ligado ao Instituto
Nacional de Previdência Social (inamPs), no processo
de municipalização de serviços. os gestores do Sistema,
no qual o Serviço estava inserido, articularam um grupo
de apoio à sua reorganização, incluídos como assessores
para a discussão de seu planejamento. a participação
deu-se, então, desde o ‘planejamento’ das estratégias para
‘desconstruir’ o serviço instituído (InamPs), caminhando
para ajudar em todas as etapas de sua estruturação como
cERsam/caPs.
No CERsam/caPs em sua nova missão e organização
como serviço substitutivo seria um serviço de curta per-
manência, devendo estar articulado a uma rede ambula-
torial para acompanhamento após o período de crise.
após o início de funcionamento, a equipe do ‘novo’
serviço manifestou interesse em discutir sistematicamen-
te os problemas que estavam sendo observados, expressos
no processo de trabalho, nos resultados das atividades
e principalmente nas insatisfações que começavam a
despontar no grupo.
a partir de uma reunião inicial e co-validação da
demanda que se apresentava, delinearam-se os pos-
síveis movimentos a serem disparados, enfatizando e
explorando especialmente o interesse e mobilização
dos envolvidos na construção de um possível ‘projeto’
para o serviço.
Como grandes grupos de problemas pode-se citar:
(I) aqueles que tocavam na dificuldade de compreensão,
de forma coletiva, das diretrizes centrais do projeto ins-
titucional da Saúde Mental dentro de um novo modelo
assistencial; (II) os relacionados a recursos humanos,
principalmente quanto ao desenvolvimento, qualificação
e adesão ao modelo proposto; (III) os relacionados ao
processo de trabalho, mostrando a inexistência ou insu-
ficiência de definição ou clareza de papéis, atribuições,
arranjos para o trabalho em equipe, rotinas operacionais
e fluxos; (IV) as dificuldades de viabilizar algumas pro-
postas previstas no modelo, especialmente as do âmbito
da reabilitação psicossocial; (V) e as questões estruturais
inicialmente trazidas como uma percepção de limitação
de recursos materiais e humanos.
Seguindo na problematização das situações, mais
do que ações sistemáticas para superação dos problemas
levantados, o planejamento passou a ser uma estratégia
da equipe para a construção de um ‘projeto diretor’
do cERsam/caPs. Clareou-se para a equipe a dimen-
são político-instrumental implicada no planejamento
estratégico, possibilitando entender a necessidade de
uma permanente atitude de participação e negociação,
não somente na definição de uma ação/projeto, mas
principalmente para assegurar a sua operacionalização.
Vislumbrou-se a dimensão político-decisória implica-
da no ato de planejar, envolvendo interesses, desejos,
recursos físicos e mobilização de poderes dos diversos
atores implicados.
as principais ações propostas englobaram aspectos
que contemplavam desde a necessidade de discussões
continuadas e ampliadas em torno do projeto institu-
cional da Saúde Mental, até a estruturação de rotinas ad-
ministrativas para o serviço. Permeando esses extremos,
o processo de trabalho foi o alvo central do enfoque,
criando-se critérios e fluxos organizadores do trabalho da
equipe e para articulação com outros órgãos e serviços,
problematizando-se a idéia de rede.
os momentos da construção das matrizes operacio-
nais concluíram uma primeira fase do planejamento do
cERsam/caPs, desenhando o que era preciso ser explo-
rado mais minuciosamente. a conclusão dessa fase foi
ligada diretamente ao estabelecimento de cronogramas
de trabalho, constando de subprojetos e atividades a
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serem desenvolvidas no âmbito interno e nas articulações
com órgãos externos.
Para além de uma abordagem instrumental de
planejamento: contribuição das oficinas e movimentos
de planejamento na ampliação das discussões
Vale ressaltar uma dimensão de ações que naquele
momento foi de vital importância para o Serviço, ou
seja, a preocupação em se demarcar como uma das
pautas prioritárias a discussão da (nova) clínica que
se desejava fazer e que já se experimentava no próprio
exercício de um aprendizado coletivo. Na medida
em que foram se desenvolvendo as oficinas de plane-
jamento, inicialmente no âmbito da exploração dos
problemas gerais (‘organizacionais’) e, depois como
desdobramento dessas, outros assuntos emergiam do
próprio cotidiano de experiências, vivências, desafios
que se apresentavam em meio a muitas inquietações,
inclusive, pela própria novidade e intensidade do
que estava sendo construído. as oficinas, portanto,
contribuíram funcionando como um cenário no qual
se acolhia e provocava a discussão das demandas e
ofertas do Serviço – a ‘clientela-alvo’, os ‘produtos’ a
lhes serem ofertados, o ‘modo de ofertar’, as marcas
(‘qualidade’) a serem impressas nessas ofertas/ações,
e as ‘respostas’ esperadas com esses ‘investimentos’.
Como isso era efetivamente o cerne do trabalho, na
medida em que se ia aprofundando a discussão sobre
o ‘fazer’ e conduzir os ‘casos’, foi sendo observado
ou reforçado a necessidade de tratar dessas questões
também em outra esfera, ampliando os loci de sua
problematização. Nesse momento, despontou e
fortaleceu-se na própria equipe a demanda por ati-
vidades de supervisão clínica. É interessante lembrar
que essa demanda se apresentou como uma operação
colocada em um dos planos de ação da equipe, a partir
das primeiras oficinas de planejamento.
E nesses movimentos, o serviço/equipe foi cres-
cendo em seu potencial de inventar rumos e buscar a
consolidação dos apoios considerados necessários como
desafios. do ponto de vista do planejamento, havia que
se exercitar esse apoio com direcionamento cuidadoso
dos problemas levantados, principalmente para não
correr o risco de enviesar ou supervalorizar as dimensões
mais ‘aparentes’ dos problemas ou as que apareciam
como ‘sintomas’ mais diretos, a exemplo das situações
de ‘demanda excessiva’ ou das ‘várias faltas estruturais’,
queixas que já naquele momento eram largamente
manifestadas.
Portanto, a necessidade de ajudar a tratar dos
problemas trazendo-os para o âmbito do ‘processo de
trabalho’, processo complexo por se pretender como
inovador e em ruptura (ou superação) com os modelos
tradicionais de fazer. Por outro lado, o cuidado também
na perspectiva propositiva, ajudando a equipe a encon-
trar rumos, mas sem passar a idéia de que as soluções dos
problemas passavam por um eixo de ‘total organização’,
de modo acrítico, com o risco de se criar uma visão ‘dura’
de um processo de planejar; risco de tentar responder
com estruturas rígidas, ‘protocolos’ e ‘fluxos’ inflexíveis
às situações que na verdade eram revestidas de outros
desafios e necessidades.
Na verdade, o mais importante era provocar e
inquietar a equipe para perceber o processo de plane-
jamento e organização atrelado à perspectiva da clínica
que é o caminho pelo qual se apresentam, e são reveladas
as necessidades reais dos sujeitos/usuários.
Portanto, é no âmbito da clínica que se conhece
a necessidade e se direciona a ação; e é nesse contexto
que essa necessidade e essa ação poderiam ser debati-
das, ‘organizadas’, sistematizadas, direcionadas, à luz
de um planejamento – planejamento que viria ajudar
a pensar critérios, prioridades, fluxos, constituição de
equipes, papéis, etc, mas tudo em torno de um objeto
claro/esclarecido (necessidades, demandas, prioridades).
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Evidentemente, a potência do planejamento se estende
quando se pensa que tudo isso está na perspectiva de
rede, uma vez que os ‘casos’ (as necessidades, demandas)
circulam em vários pontos de uma rede, para tal carecen-
do de bons (e pactuados) arranjos e fluxos. Mas, tudo
na perspectiva do que são exatamente as necessidades
(compreendidas no âmbito da clínica ampliada) dos
sujeitos-usuários da saúde mental. Pode-se notar que o
que se nomeia como dispositivo de ‘projetos terapêu-
ticos’, em um sentido, ocupam esse lugar de necessária
indissociação entre ‘clínica’ e ‘planejamento’ e entre
‘atenção’ e ‘gestão’1.
ressalta-se a importância atual dessas reflexões,
inclusive porque não é incomum os serviços/equipes de
Saúde Mental em início de funcionamento ou em fases
de reorganização ‘solicitarem’ planos/intervenções em
certa dureza na concepção de organização, como que
‘sufocados’ por problemas e ‘crentes’ em sua solução, por
meio de arranjos apenas estruturais, formais, ‘externos’,
como que externos à clínica, ao objeto mais central
nesses/desses serviços.
ainda no rastro dessa reflexão enfatizada é pertinen-
te a perspectiva de um desenho de ‘apoio’ aos serviços,
compondo-se de momentos regulares de supervisão
clínica (realizadas por um supervisor específico) e de
momentos de ‘oficinas’ em uma ótica mais ampliada
de planejamento. observa-se que em determinados
momentos isso é benéfico para os serviços. Essa alter-
nância de espaços de problematização, cada um com
suas especificidades e jeitos próprios, foi experimentada
no cERsam Noroeste e também vivenciada ou sugerida
em outros serviços. deve ser vista não exatamente como
uma complementaridade de abordagens, mas como
espaços de levantamentos, explorações e condução de
situações (baseadas nos ‘casos’ e na vida do serviço)
que, ora podem ser da ordem de discussão em fóruns
‘específicos’ (supervisão), ora devem ser ampliadas, na
ótica da gestão (também em sentido ampliado), para
resultar em revisão dos modos de funcionamento e
em intervenções e respostas mais eficazes e satisfatórias
(tanto para usuários quanto para os trabalhadores/
equipe, e para a instituição/gestão). É importante
observar o quão interessante (e coerente) tem sido a
pauta dos seminários regulares que o cERsam Noroeste
vem fazendo bianualmente, cujos temas vêm a refletir
exatamente essa interlocução entre clínica e eixos de
planejamento/gestão.
acredita-se, e há esse retorno a partir de nossas
atividades de acompanhamento, que a máxima amplia-
ção de espaços de discussão possibilita não somente a
ampliação de alternativas, mas também gera ‘desesta-
bilizações’ interessantes, provocativas. as discussões
ampliadas ajudam a não cristalizar a prática, a não se
colocar apenas em função da demanda, a refletir sobre
uma série de pontos críticos do processo e relações de
trabalho, enfim, fazendo aparecer e/ou fortalecer estra-
tégias que têm coerência com as práticas substitutivas.
Possibilitam, com diferentes olhares e questionamentos,
tocar em ‘indicativos’ que estariam refletindo a eficácia
na gestão e resultados dos serviços.
Esses novos serviços de caráter substitutivo (ao
modelo manicomial), na medida em que se consolidam,
acenam cada vez mais a desafios em torno do processo e
metas para o enfrentamento dos modelos tradicionais.
Por um lado, podem ser elencados vários indicadores
de resultados satisfatórios, como por exemplo, os casos
progressivos de desospitalização dos pacientes, a redução
nos índices de reinternação ou de primeiras internações,
1 o aprofundamento dessa discussão, em diferentes direções, tem sido feito por gastão Wagner Sousa Campos (Campos, 2000, 2003, 2006) e tem sido retomada suas bases na formulação das diretrizes e dispositivos do Humaniza SUS/Política Nacional de Humanização. Para maior conhecimento sobre o marco teórico-político do Humaniza SUS, bem como seus dispositivos, recomenda-se uma consulta aos materiais disponibilizados no site do Ministério da Saúde: www.saude.gov.br/humanizasus
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a ampliação de acesso e outros. Por outro lado, no coti-
diano dos serviços, os profissionais têm convivido com
problemas de diferentes ordens, de âmbito estrutural e
de processos de trabalho, resultando em desgastes com
múltiplos fatores em seu entorno – vêm acarretando
uma sobrecarga diária aos profissionais, traduzida no
desgaste que é vivido para se conseguir levar adiante o
projeto proposto.
Essas questões acenam para a necessidade de apro-
fundar a discussão da organização dos serviços nesse
momento de consolidação. E para isso é importante o
aporte de referenciais que ajudem a problematizá-los,
isto é, dando visibilidade aos resultados (indicadores
quanti-qualitativos), evidenciando as falhas no pro-
cesso e sugerindo caminhos para correção de rumos
e viabilização de novas frentes. a apropriação de
ferramentas de planejamento e de avaliação assume
relevância especial no âmbito do movimento e de-
sempenho dos gestores (e equipes), que muitas vezes
expressam a sua limitação quanto a habilidades em
conduzir os processos cotidianos. Mais do que um
caráter instrumental, esses aportes são um arsenal
importante para efetivar o processo coletivo da ges-
tão, ampliando e consolidando dispositivos de gestão
participativa, como os colegiados/fóruns de decisão e
condução dos serviços.
O PLANEJAMENTO PERMEANDO A AçÃO
INTERSETORIAL EM SAúDE MENTAL
a intersetorialidade pode ser vista como ‘estra-
tégia de reorganização das respostas aos problemas,
necessidades e demandas sociais dos diversos grupos da
população’ (tEixEiRa, 2002), refletindo em projetos e
planos efetivos de ação; e o planejamento como meio de
‘revalorizar as estratégias de negociação e de cooperação,
em prol da legitimidade dos planos’ (onocKo, 2003).
Isto implica,
assumir uma perspectiva mais descentralizada de mundo, trazendo à tona o mundo social dos atores para além da fria compreensão do planejamento enquanto tecnologia (onocKo,2003),
o que potencializa sua relevância enquanto ação comu-
nicativa.
Considerando as dimensões técnica e política do
planejamento e da atuação intersetorial, deve-se enfatizar
o seguinte:
O trabalho não se restringe, portanto, a um simples preenchimento de planilhas e corresponde a uma verdadeira análise do ‘estado da arte’ em termos do conhecimento e da tecnologia disponível para o en-frentamento do problema selecionado, ao tempo em que liberta a imaginação dos participantes para que possam pensar em formas inovadoras de organização das atividades previstas, com os recursos disponíveis. (tEixEiRa; Paim, 2002).
Se tais princípios valem para o setor saúde em geral,
destaca-se aqui sua pertinência na área da Saúde Mental,
considerando os desafios para ampliação e consolidação
dos seus novos serviços e práticas (serviços e práticas
inovadoras) e a estruturação de projetos intersetoriais.
Ilustrando o potencial do planejamento participativo
na ampliação de ações intersetoriais em Saúde Mental
À luz do planejamento participativo, as ‘situações’
que se apresentam como situações-problema – objetos de
intervenção – são realidades a serem conhecidas, reconhe-
cidas e exploradas pelos diversos sujeitos que as vivenciam.
o ponto central que se destaca nesse eixo é o reconhe-
cimento dos ‘outros’ atores na articulação desejada para
propostas de solução (construção de alianças para atuação
e solução). No atual momento da reforma Psiquiátrica,
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tanto no plano mais ‘macro’, como na esfera local de
implementação de ações, é indiscutível a necessidade
de potencializar a ‘reunião’ dos diversos sujeitos/agentes
envolvidos nesse ‘assunto’, no intuito de possibilitar a
manifestação de suas diferentes percepções e interesses, e
disparar movimentos de intervenção. No plano local, por
exemplo, deve-se refletir sobre até que ponto se avançou
no envolvimento do ator ‘família/familiares’ na dinâmica
dos novos serviços; indo mais longe: até que ponto foram
disparadas ações para envolvimento da comunidade local.
Por outro lado, deve-se refletir permanentemente sobre o
grau de articulação que se tem conseguido efetivar entre
os próprios serviços de saúde, buscando sempre manter
em pauta a discussão sobre ‘rede’.
de outro lado, numa perspectiva bastante am-
pliada, exemplos recentes da Saúde Mental podem
ser tomados para ilustrar experiências efetivamente
inovadoras no âmbito de um plano intersetorial. É o
caso da iniciativa de propiciar aos usuários atividades
como visitas/entradas nos cinemas da cidade, mobili-
zando, para isso, diferentes setores, incluindo a rede de
empresas de cineclubes. Isso demonstra a incorporação
e intercâmbio de desejos, interesses, saberes e recursos
distintos, bem como de operações táticas desencadeadas
para viabilizar essas ‘intenções’, essas ações. E, é um
exemplo de situação que deve ser colocada em análise,
nos espaços do cotidiano de trabalho, para delas serem
extraídas as ‘lições’ como experiência pedagógica, de
aprendizado no aporte de habilidades e instrumentos
de planejamento/negociações. Certamente essa é uma
dentre várias outras experiências, e foi aqui destacada
por permitir demarcar de forma muito pertinente à
‘coerência entre o que se propõe como projeto inovador
(âmbito da inclusão social efetiva dos sujeitos), o exer-
cício de uma clínica ampliada (contemplando recursos
ampliados nos projetos terapêuticos) e a perspectiva
organizativa (do planejamento) contribuindo para isso’.
(Comentário do autor)
Em um seminário da rede de serviços de Saúde
Mental da criança e do adolescente, tendo como tema
central a Intersetorialidade, foi possível contribuir
no aprofundamento da discussão sobre a construção
de ações articuladas com diferentes atores sociais. os
desdobramentos desse seminário levaram à revisão
dos marcos de organização da atenção à criança e do
adolescente, sendo um dos produtos desse movimento
a elaboração de um documento/projeto de construção
compartilhada, envolvendo a coordenação, equipes de
trabalhadores e gestores locais (dos serviços), abrindo-se
para o envolvimento de outras áreas. reafirma-se com
isso a potência do trabalho construído em parcerias.
o esforço para a realização de um trabalho con-
junto é por si mesmo um indicador de aprendizagem
na perspectiva da atuação integrada, desafio que deve
levar em conta as diferenças reais existentes (de objetos,
de saberes, de momentos, de gerência, etc.) entre os
diferentes serviços que compõem a rede, o que torna
fundamental a premissa de ‘flexibilidade’ para buscar
integração, inclusive numa perspectiva que pode ser
chamada político-pedagógica. Especialmente o ‘momen-
to estratégico’ do planejamento deve ser terreno fértil,
como salienta onocko (2003), para, nesses contextos, a
‘equipe se confrontar com as perguntas: Quem somos?
Quem são os outros? Estamos imaginando o mesmo
futuro? desejamos as mesmas coisas?’. desponta nesse
contexto uma importante problematização de ‘sentidos’,
de interesses e de espaços de governabilidade, que pode
apontar para desafios maiores, como reflexão sobre a
(re)construção coletiva de objetivos, produtos esperados
e processos de trabalho, estimulando a mobilização,
motivação, criatividade e assunção de responsabilida-
des, como a atitude política. a implicação no processo
passa a ir além da assunção ou delegação de funções e
competências restritas ao plano técnico. acredita-se que
a democratização das relações e intensificação das ações
comunicativas (entre dirigentes, técnicos e usuários, e
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Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 172-181, jan./dez. 2008
SaNtoS-FIlHo, SB. • articulando planejamento e contratos de gestão na organização de serviços substitutivos de Saúde Mental: experiência do SUS em Belo Horizonte
interserviços em rede) deve-se constituir como um dos
produtos dos instrumentos de gestão, firmando espaços
para mudanças das práticas institucionais (camPos,
2000; tEixEiRa; Paim, 2002).
No momento atual da Saúde Mental, a exploração
de todas essas perspectivas pode potencializar em muito
o desenho, abrangência e ‘invenção coletiva’ de ações.
Vale ressaltar que alguns dos serviços substitutivos,
como os centros de convivência, vêm demonstrando,
segundo sua própria percepção, que não há limites
para disparar experiências inovadoras, muito para além
de abordagens tecnicistas. E quanto mais sistemáticas
forem as interlocuções, subsidiadas por arranjos/planos
político-instrumentais é possível aumentar o alcance e
qualidade dessas iniciativas e seus resultados.
AVANçANDO NO APORTE DE FERRAMENTAS
DE GESTÃO: APOSTANDO NOS
DISPOSITIVOS DE CONTRATUALIZAçÃO,
‘CONTRATOS DE GESTÃO’, PARA
CONSOLIDAR A REDE DE SAúDE MENTAL
até a presente discussão, foi enfatizada a aborda-
gem dos instrumentos de planejamento e organização
de serviços em seu potencial de abrir campo para pro-
blematizações e negociações. E na intenção de explorar
ao máximo essa perspectiva do compartilhamento dos
processos, das metas e do fazer cotidiano, pautam-se
agora os chamados ‘contratos de gestão’, dispositivos
que têm sido enfatizados a partir da Política Nacional de
Humanização (PNH) (bRasil, 2006) e que possibilitam
avanços nos modos de definir coletivamente os modos
de fazer e os rumos de um projeto, serviço ou da rede.
Parte-se de uma situação concreta que começou
a se experimentar na rede de Saúde Mental do SUS/
BH mais recentemente, envolvendo todos os caPs/
cERsams e Coordenação de Saúde Mental. o início
desse processo deu-se a partir de uma nova série de
oficinas chamadas pelos próprios serviços (gestores)
e coordenação, para discussão de problemas gerais
no funcionamento dos serviços e articulação da rede.
ao serem levantadas coletivamente algumas questões,
foi proposta a continuação do debate canalizando-o
de forma a apontar e direcionar, coletivamente,
metas e estratégias de ação (para enfrentamento dos
problemas identificados), definindo e negociando as
metas possíveis de serem alcançadas, considerando a
realidade de cada serviço e dentro de prazos julgados
pertinentes. assim seriam trabalhados com metas
que norteariam o acompanhamento e avaliação de
desempenhos, conforme acordos firmados entre
partes (Coordenação e gestores locais). os pró-
prios instrumentos avaliativos seriam negociados e
definidos de forma compartilhada. apesar de terem
sido envolvidos cerca de seis meses nesses primeiros
movimentos (de problematização, definição e pactu-
ação de metas), esse processo foi apenas iniciado e,
aqui, é importante ressaltar tal movimento enquanto
potencial que se apresenta para ajudar na consolidação
da rede de Saúde Mental do sus/BH. destacam-se
duas vertentes capazes de abrigar a riqueza desse
processo de contratualização e o que efetivamente
ele pode potencializar.
Quanto ao alcance do método/dispositivo
a perspectiva da ‘contratualização’ está atrelada à
efetivação de um processo de ‘co-gestão’, extrapolando
uma compreensão de ‘contrato’ no sentido formal,
normativo ou mesmo jurídico. No âmbito que mais
interessa ao presente artigo, contratar significa, então,
a capacidade de estabelecer contato, criar conexões,
redes – uma estratégia de pôr as ações, os serviços,
para funcionar de outro modo; para alterar os modos
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Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 172-181, jan./dez. 2008
SaNtoS-FIlHo, SB. • articulando planejamento e contratos de gestão na organização de serviços substitutivos de Saúde Mental: experiência do SUS em Belo Horizonte
de relação e os modos de gerir o/no trabalho. Em
termos instrumentais, os contratos devem-se compor
de metas discutidas e definidas coletivamente, pelas
partes envolvidas no processo, co-construindo pro-
jetos, encadeando-se co-análises e co-elaboração de
propostas viáveis. Em sua metodologia, é importante
serem desencadeados movimentos simultâneos em
duas direções: em uma, o movimento de oficinas en-
volvendo gestores dos serviços e coordenação central;
em outra, um desdobramento e aprofundamento de
discussões entre gestores e suas equipes, não somente
repassando ‘informes’, mas criando-se espaços efetivos
de atualização das diretrizes dos projetos, propiciando
sua apropriação pelo conjunto dos trabalhadores e
ajustamento coletivo de metas no nível local.
Em ambas as direções, o eixo fundamental é
o de abertura a processos de pactuação, com co-
responsabilidade em torno de metas não-definidas de
modo apenas externo, mas de forma compartilhada.
Nesse eixo, deve-se valorizar também a perspectiva de
formação dos gestores quanto à capacidade de gestão
baseada na escuta; quanto ao aprimoramento de uma
das funções do gestor como apoiador institucional, a
de fazer ‘ofertas’, provocando e estimulando inovações
no trabalho, sustentando os processos e movimentos.
a essa ótica atrela-se a perspectiva pedagógica de forta-
lecimento dos gestores (e da gestão) quanto ao aporte
de conceitos, ferramentas e instrumentos de gestão,
que podem ser mais sistematicamente utilizados no
dia-a-dia, envolvendo os trabalhadores em práticas
institucionais de planejamento, avaliação, contratua-
lizações (com base em metas), ampliando a capacidade
de intervenções de toda a equipe. Esse aspecto ‘for-
mativo’, na própria prática, é um aspecto que deve ser
ressaltado inclusive pela necessidade e compromisso
institucional com a atualização dos gestores, alguns
novos na rede, e com pouco conhecimento das áreas
de planejamento, gestão e avaliação.
Quanto aos conteúdos previstos nos contratos e seu
‘acompanhamento avaliativo’
as metas que foram contempladas nos ‘contratos
internos de gestão’ refletem pautas ampliadas, nas quais
se pode observar o avanço do projeto de Saúde Mental
no sus/BH, sobretudo dando passos para ajudar a
ampliar/consolidar um trabalho em rede, com esforços e
instrumentos mais sistemáticos para viabilizar e sustentar
articulações e pactuações entre os serviços. Por outro
lado, e ao mesmo tempo, mostram-se claros os diferentes
momentos de cada serviço/cERsam, cada um apontando
suas metas específicas, seus ‘jeitos’ e seus tempos para
desencadear processos (para isso podendo-se proceder a
uma ‘decomposição’ das metas a serem programadas de
forma gradativa num cronograma de implementação).
o respeito aos diferentes perfis, momentos e especifi-
cidades de cada serviço é uma diretriz cara ao âmbito
dos contratos de gestão. É um dos seus diferenciais de
outros instrumentos de definição de metas, comumente
estabelecidas de modo prescritivo e unilateral. o que
poderia parecer apenas um processo de programação,
ganha outra relevância, de âmbito político e de rede de
compromissos.
Uma estratégia fundamental do processo de contra-
tualização é instituir um método de ‘acompanhamento
avaliativo’, cuidando para que as metas sejam aferidas
(em seu cumprimento), não no sentido de uma ‘fiscali-
zação de seu alcance absoluto’, mas no que se concebe
como ‘avaliação formativa’, capaz de ir ‘incluindo’ as ra-
zões que explicam seu maior ou menor êxito, subsidian-
do ‘regulações’ no processo e repactuação de metas.
Vale destacar as metas/iniciativas que foram aponta-
das, buscando-se cada vez mais efetivar o funcionamento
dos serviços na perspectiva de uma atuação transdisci-
plinar, crescendo em sua proposta de se constituir como
serviço inovador, produtor de conhecimento, de uma
‘clínica feita por muitos’ (utilizando uma expressão da
área e que serviu como mote de um dos grandes seminá-
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SaNtoS-FIlHo, SB. • articulando planejamento e contratos de gestão na organização de serviços substitutivos de Saúde Mental: experiência do SUS em Belo Horizonte
rios bianuais que se organizou com o cERsam Noroeste).
tudo isso vai de encontro ao que se quer enfatizar no
âmbito da missão dos serviços de saúde, marcando seu
compromisso com a produção de serviços (âmbito da
atenção), mas também com a produção de sujeitos,
conhecimento, aprendizagem no coletivo (âmbito da
gestão) (camPos, 2000; 2003; 2006). a democratização
das relações e intensificação das ações comunicativas
entre dirigentes, técnicos e usuários deve-se constituir
como um dos produtos desses instrumentos de gestão,
instituindo-se como espaço para mudança das práticas
institucionais.
R E F E R Ê N C I A S
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recebido: abr./2008
aprovado: out./2008
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 182-192, jan./dez. 2008
doCUMENto HIStÓrICo / HISTORIcAL DOcUMENT182
o quadro sabidamente distorcido da assistência médica no Brasil, com a perversa tendência à privatização e ao
abandono pelo Estado da responsabilidade pela assistência médica da população, delegando essa obrigação social aos
grupos privados, é consideravelmente mais grave na área de cuidados ao doente mental.
Se é verdade que a tendência à privatização é um fenômeno geral atingindo os mais variados segmentos da as-
sistência médica, ou fora dela, não é menos verdadeiro que a previdência conta com alguns hospitais de conhecida
eficiência técnica, não raro os mais procurados nas diferentes especialidades por seu reputado padrão de qualidade e
que, se não atendessem ao universo de segurados, devido ao seu número aquém do mínimo necessário num Estado
estruturado para atender às necessidades mínimas de todos os setores sociais, constituir-se-iam um serviço modelo,
a partir do qual os particulares seriam medidos, num sistema em que o controle de qualidade sobre os serviços con-
tratados fosse efetivo.
Essa possibilidade, todavia, nem mesmo é possível na psiquiatria, especialidade da sem nenhuma unidade
hospitalar oferecida pela Previdência, deixando a totalidade da assistência entregue aos hospitais particulares
através da compra de serviços. Não resta, pois, à Previdência, a possibilidade de controlar a qualidade dos ser-
viços comprados, medida por comparação com a assistência diretamente prestada, como é exeqüível noutras
especialidades.
desse modo, é de se estranhar que a psiquiatria seja o setor da assistência médica onde as denúncias sobre as
distorções, a eficiência e o baixo padrão tenham se tornado lugar comum, motivo que faz dela assunto permanente
Comissão de Saúde Menta l dos cE b E s
SaÚdE MENtal condições de assistência ao doente mental*
* texto extraído de: “Condições de assistência ao doente mental”. In: assistência psiquiátrica no Brasil: setores públicos e privados. Revista Saúde em Debate, rio de Janeiro, n.10, p. 49-55, abr./jun. 1980.
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 182-192, jan./dez. 2008
183CoMISSÃo dE SaÚdE MENtal doS CEBES • Saúde Mental: condições de assistência ao doente mental
nas páginas dos jornais. Uma nota oficial do Movimento dos trabalhadores de Saúde Mental do rio de Janeiro, em
setembro de 1978, já apontava a necessidade de:
1. Denunciar que o modelo assistencial psiquiátrico em funcionamento é ineficaz, cronificador e elitista. Ineficaz, já que o índice de recuperação é insignificante e a prevalência de doença mental na população só tem aumentado. croni-ficador porque elege métodos que, usados isoladamente, provam ser francamente nocivos, como a segregação de doentes em hospitais, com internações repetidas. E elitista, porque deliberadamente exclui o acesso das camadas mais amplas da população a técnicas mais eficazes, como a psicoterapia.
2. Denunciar que tal distorção permite florescer uma verdadeira “indústria da loucura”, constituída por gigantescos hospitais, os quais têm na eterna reinternação de doentes mentais, tornados crônicos, uma fonte inesgotável de lucro, financiada principalmente pela previdência Social.
temos razão para acreditar que a alarmante situação, denunciada há cerca de um ano, não mostra sinal algum de
mudança. Pelo contrário, a desativação dos próprios da divisão Nacional de Saúde Mental (dinsam), o incremento
da política de credenciamento, o vertiginoso crescimento do setor privativo e a diminuição das oportunidades de
preparação de recursos humanos pintam com cores mais sombrias a situação do setor. a seguir, serão feitas conside-
rações sobre o quadro atual da atenção ao doente mental com base na cidade do rio de Janeiro, observando-se como
se articulam a atuação do Ministério da Saúde, da Previdência Social e o setor privado.
A ATUAçÃO DO MINISTÉRIO DA SAúDE
a dinsam, órgão do Ministério da Saúde, antigo Serviço Nacional de doenças Mentais, foi criada com o objetivo
de prestar assistência médica ao doente mental e ditar a política de saúde do setor. Uma das poucas áreas em que o
Ministério da Saúde ocupa-se de parte do atendimento médico assistencial às pessoas, a dinsam parece passar por
um processo irreversível de deterioração.
Criada em 1941, essa divisão orientou as políticas do setor e estimulou a construção de frenocômios por todo
o país, sendo que o setor público deteve a responsabilidade maior por essa parte especializada da assistência. além
da fixação das políticas e da parte normativa, a dinsam desincumbiu-se da prestação direta da assistência no antigo
distrito Federal através da Colônia Juliano Moreira, do Centro Psiquiátrico Pedro II, do Engenho de dentro, do
Manicômio Judiciário Heitor Carrilho, e, posteriormente, do Hospital Pinel. Com a transferência da Capital para
Brasília e com a criação do Estado da guanabara, os hospitais permaneceram sob a administração do Ministério da
Saúde, situação diferente das verificadas nas demais unidades da federação.
Embora devesse oferecer um atendimento de padrão modelar, próprio para uma instituição que normatiza a
assistência, a verdade é que a assistência prestada se caracterizou, com breves e escassas exceções, como retrógrada,
ineficaz e aquém do padrão mínimo aceitável.
o Hospital Pinel, talvez por estar localizado na Zona Sul carioca e prestar pronto-socorro a uma camada social-
mente privilegiada da população, funcionou desde a sua criação em moldes mais modernos, oferecendo uma assistência
de melhor qualidade. tanto foi assim que logo se transformou em um dos principais centros de formação de recursos
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184 CoMISSÃo dE SaÚdE MENtal doS CEBES • Saúde Mental: condições de assistência ao doente mental
humano, acolhendo estagiários de todo o país; essa situação perdurou até o último ano. No Centro Psiquiátrico do
Engenho de dentro, no curto período de 1972 a 1974 ocorreram experiências bastante interessantes tanto do ponto
de vista técnico, com a introdução de novas formas de tratamento, quanto do ponto de vista de formação profissional,
com a instituição da residência médica e o incremento das possibilidades de aperfeiçoamento técnico para as diversas
categorias profissionais que atuam nos programas de atenção ao doente mental. tais experiências não tiveram, po-
rém, longo fôlego. Experiências promissoras em seu início, dotando a dinsam de atividade acadêmica, propulsora de
melhorias no padrão de atendimento, elevando o conceito dos profissionais e da população beneficiaria dos hospitais
do Engenho de dentro, não foram adiante. Injunções políticas, interferências na orientação técnica adotada e mma-
cartismo fizeram com que esses hospitais regredissem a uma época que se acreditava estar ultrapassada. as técnicas
mais liberais e eficazes de tratamento, com psicoterapia, o atendimento familiar, a comunidade terapêutica, e mesmo
o internacionalmente conhecido Museu do Inconsciente, considerados subversivos pela maior liberdade e participação
que propiciavam ao interno e foram substituídos pelo encarceramento sumário e pela brutal opção do eletrochoque,
além das altas doses de medicamentos.
deve-se lembrar, a bem da verdade, que o padrão de atendimento do Hospital Pinel relativamente razoável – por
comparação – e esses fugazes ventos inovadores no Engenho de dentro em nenhum grau transportaram as sementes
modernizantes à Colônia Juliano Moreira com seus milhares de internos, insignificante número de técnicos, deixa-
dos ao longo do caminho, entregues à própria sorte. Para se ter uma vaga idéia do desamparo a que foram relegados
esses infelizes, um grupo de médicos, assistentes sociais e psicólogos, contratados em 1974 como estagiários, foram
encarregados de fazer um levantamento sobre o número e a situação dos pacientes ali internados2. Para a perplexidade
desses técnicos, dentre os inúmeros absurdos constatados, descobriu-se que o número real de internos era bem maior
do que a capacidade a instituição, doentes (?) sem registro, sem prontuário nem tratamento. Para citarmos apenas
mais um dado, tendo em vista o número exaustivo de problemas apontados, boa parte dos pacientes não via um
médico havia mais de dez anos, o que da indícios do descaso da instituição em relação à recuperação dos pacientes.
Isso nos permite, ainda, fazer uma dramática interferência sobre os índices de recuperação naqueles hospitais, posto
que a dinsam não divulga dados sobre período de internação e índice de altas.
o fim da residência médica no Engenho de dentro e a repressão às formas mais modernas de tratamento, não
sustaram os programas de estágio, que prosseguiram no Hospital Pinel, foram estendidos ao Engenho de dentro e,
em menor grau, à Colônia e ao Manicômio Judiciário. Entende-se isso, em primeiro lugar, pela dramática carência
de profissionais nesses hospitais, o que poderia ser minimizado pela ampliação do número de estagiários não remu-
nerados ou bolsistas sub-remunerados, mas se tornaria mais oneroso com a utilização de profissionais regularmente
contratados; em segundo lugar porque, com o afastamento da direção que implementara inovações, estimulando a
participação de técnicos e pacientes na condução do tratamento, novos técnicos foram então admitidos para trabalhar
“com rédeas curtas” e mantendo o mesmo controle sobre os pacientes. os técnicos que para ali se dirigiram, em geral
recém-formados e em busca de aprimoramento e experiência, acharam-se usados como mão-de-obra substitutiva,
farta e barata, nem ao menos recebendo em troca a especialização procurada.
Estiolou-se a formação, subverteu-se a experiência, e o estágio para profissionais e estudantes foi oficializado atra-
vés de concursos para as “bolsa de saúde mental”, com verbas da Campanha Nacional de Saúde Mental, expediente
que ao mesmo tempo sub-remunerava o profissional utilizado como mão-de-obra para sanar a crônica deficiência
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185CoMISSÃo dE SaÚdE MENtal doS CEBES • Saúde Mental: condições de assistência ao doente mental
de técnicos (o último concurso para o provimento de cargos data de 1957), e mascarava o processo de exploração
existente por não reconhecer o vínculo trabalhista, expediente típico de lesão aos direitos do trabalhador assalariado,
perpetrado por instituições públicas ou privadas nesses 15 anos de regime autoritário.
a partir de então, o peso maior da responsabilidade com a assistência caiu predominantemente nos ombros de
estudantes e profissionais denominados estagiários ou “bolsistas”, fórmula mágica através da qual o Ministério da
Saúde desconhecia os direitos trabalhistas de mais de duas centenas de trabalhadores. Para evitar discussões estéreis,
julgamos relevante ressaltar que não se tratava, absolutamente, de cursos de especialização ou de estágios de treinamento
profissional, como demonstravam a inexistência de um programa de ensino, a falta de supervisão e, até mesmo, a
assunção de cargos com responsabilidade de chefia por esses trabalhadores que, ademais, cumpriam função de ensino
ao orientar a prática dos estudantes que faziam Internato no Hospital Pinel. Não restam dúvidas, pois, tratar-se de uma
forma de velar a relação de emprego, escamotear a legislação trabalhista e lesar os direitos desses trabalhadores3.
Naturalmente, a progressiva mobilização de amplos setores da sociedade civil e dos trabalhadores, em particu-
lar, em prol da reconquista dos direitos usurpados a partir de 1964, teve forte ressonância entre os profissionais da
dinsam4. alargada a tomada de consciência do esbulho aos seus direitos e criadas as condições para sua organização e
mobilização, com a criação do Movimento dos trabalhadores de Saúde Mental do rio de Janeiro, esses trabalhadores,
após insistirem na regularização de sua situação trabalhista e na melhoria da assistência, razões pelas quais se viram
acuados por ameaças e punições diversas, até a concretização de demissões, paralizaram suas atividades; foi única
maneira encontrada para deixar clara a discordância da parte deles com o tipo de atendimento que vinham sendo
obrigados a prestar, especialmente no Engenho de dentro e na Colônia Juliano Moreira, e exercer legítima pressão
no sentido de ver tal situação regularizada. Na ocasião, foi enviado um documento à direção da dinsam e ao Ministro
da Saúde, Sr. almeida Machado, do qual, entre outras reivindicações, destacamos:
1. Reconhecimento do vínculo trabalhista conforme prevê o cap. V – decreto 60.252, que cria a campanha Nacional de Saúde Mental, para os técnicos funcionalmente denominados “bolsistas” [...]2. Regularização da situação trabalhista, conforme determinada a Lei 3.999 de 15 de dezembro de 1961, para os técnicos funcionalmente caracterizados como estagiários, que cumpram carga horário semanal mínima de 20 horas e que tenham tempo de serviço superior a 6 meses. O art. 3º da referida Lei dispõe sobre a remuneração para os médicos ditos estagiários e acadêmicos internos após cumprido esse prazo.3. Regularização da situação trabalhista dos demais técnicos em saúde mental, em conformidade com o disposto na cLT.
4. criação da Residência Médica em Psiquiatria, oficializada junto ao MEc, e de acordo com as normas da Associação Nacional dos Médicos Residentes.5
Na realidade, em sua “luta pela dignidade profissional e melhores condições de atendimento à população”6,
esses trabalhadores exigiam tão somente o cumprimento da legislação em vigor, tornada letra morta pelo próprio
poder público.
data daí o ritmo acelerado de deterioração, até agora irreversível, do atendimento psiquiátrico prestado pela
dinsam, bem como a paralisação dos programas de aperfeiçoamento de recursos humanos levados a cabo, princi-
palmente no Hospital Pinel, e que deixaram seqüelas de extrema gravidade mesmo com a contratação de alguns
profissionais pelo departamento administrativo do Serviço Público (dasP), pequeno número, considerada a popu-
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186 CoMISSÃo dE SaÚdE MENtal doS CEBES • Saúde Mental: condições de assistência ao doente mental
lação de internos e o volume de atendimentos outrora prestados nos ambulatórios que até hoje continuam à mostra,
desafiando uma solução. Essas seqüelas, conseqüências da irresponsabilidade da direção da dismam e do Ministério
da Saúde, podem ser assim resumidas:
1. Extinção do atendimento psicoterápico à população infanto-juvenil, sem recursos para tratamento particular;
2. Extinção do ambulatório de Crise do Hospital Pinel, para prevenção de suicídios e atendimento a problemas
emocionais prementes;
3. Paralisação do Centro de Informação toxicológica (CIt) do Bloco Médico – Cirúrgico do Engenho de
dentro;
4. Comprometimento da qualidade do trabalho assistencial dos demais setores, pela sobrecarga de trabalho
sobre os trabalhadores que permaneceram incapazes de arcar com as duas centenas de serviços que, mesmo contando
com as duas centenas de demitidos, era demasiado7.
Não é à toa que o Ministério da Saúde, órgão normativo da assistência médica e que deveria prestá-la em nível
modelar, oferece à população uma assistência que, para evocarmos uma palavra que designava certo tipo de doente
mental, é sórdida. a Colônia Juliano Moreira, com seus 4.000 internos, parece estar situada fora do tempo, cuja marcha
parece ignorar, e cumprir seu inexorável destino de campo de concentração8. o Centro Psiquiátrico do Engenho de
dentro está com seus ambulatórios desativados, pavilhões semi-abandonados e internos assistidos por um número
insuficiente de técnicos. o Hospital Pinel, outrora disputado campo de treinamento profissional e dotado de serviços
de conceituada reputação, encontra-se semi paralisado.
os hospitais do Ministério da Saúde são hoje, mais do que nunca, baluarte da psiquiatria mais retrógada. Brioche
para os ideólogos da privatização; prova da incapacidade da privatização; prova da incapacidade do poder público em
prestar assistência médica à população.
A PREVIDÊNCIA SOCIAL E A SOLUçÃO ASILAR
ao contrário do que ocorre na área do Ministério da Saúde, onde a assistência é prestada diretamente através da
dinsam, na área previdenciária, o Instituto Nacional de assistência Médica da Previdência Social (inamPs) arca com
apenas parte do atendimento ambulatorial, oferecendo a grupos privados, e outros, toda a assistência hospitalar.
o destaque, para efeito de exposição, da assistência previdenciária privativista, por equívoco, não marca como
poderia uma oposição ao Ministério de Saúde. Pelo contrário, somos levados a acreditar em uma complementaridade
entre as duas áreas: na medida em que parece ocorrer uma progressiva e intencional atrofia do Ministério da Saúde,
tem-se como conseqüência a retração de sua área de atuação na assistência psiquiátrica direta, ocorre simultaneamente,
grande crescimento da oferta de atenção médica por terceiros, através da venda de serviços à Previdência. ou seja, a
retratação do Ministério da Saúde na prestação de serviços, no rio de Janeiro, coincide com a hegemonia absoluta
da atenção previdenciária, entregue a terceiros. Faz-se necessária a pergunta: quem lucra com essa política de saúde?
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 182-192, jan./dez. 2008
187CoMISSÃo dE SaÚdE MENtal doS CEBES • Saúde Mental: condições de assistência ao doente mental
Parece que a resposta está diante dos olhos de quem quer enxergar. Isso não quer dizer (desfaçamos logo qualquer
equívoco) que apoiemos ou façamos apologias à psiquiatria asiliar prestada pelo Ministério da Saúde ou por quem
quer que seja. o problema é que a progressiva desmobilização dos próprios do Ministério da Saúde, longe de repre-
sentar uma diminuição no índice de reinternação no rio de Janeiro, apenas mudou o locus, situado agora no hospital
privado, cujo objetivo é o lucro e onde o paciente é apenas um meio para isso, uma mercadoria. Bem entendido, a
retração da atenção psiquiátrica pelo Ministério da Saúde determinou apenas um repasse do paciente ao lucrativo
setor privado.
Esse modelo assistencial adotado pela Previdência, entregando a terceiros a responsabilidade pela assistência,
proporcionou um verdadeiro boom psiquiátrico, representado pelo vertiginoso crescimento do número de leitos
psiquiátricos e, em seu rastro, da população asilar. Seria o resultado do surgimento de demanda reprimida, consti-
tuída por pessoas até então sem acesso aos hospitais? Parece tratar-se de algo diferente, todavia. Não temos notícia,
pelo menos neste século, de pacientes psiquiátricos sem tratamento por ausência de vagas em hospital. ao contrário
de outras especialidades, em que existem até mesmo filas de pacientes aguardando vagas para tratamento clínico ou
cirúrgico em regime de internação, na psiquiatria, os leitos existentes, já no período anterior à adoção da linha priva-
tizante, davam conta da assistência a ser prestada. apesar disso, entretanto, o credenciamento de leitos foi crescente,
fazendo-nos supor que isso era realizado sempre diante da demanda. Coloca-se, então, a pergunta: Qual a natureza
dessa demanda?
Pergunta difícil de ser respondida, dada a inexistência de estudos mais aprofundados nesse campo; dificuldade
essa, acrescida inclusive pela imprecisa delimitação do conceito de doença mental. Isso, porém, não nos impede de
adiantar a seguinte hipótese, plausível a nosso ver: o sistema político e econômico, implantado neste país nos últimos
15 anos, pelo que vem provocando de opressão, exploração e miséria, constitui-se como um fator permanente de
exclusão do tecido social ao elevar a criminalidade, a morbidade e a marginalização em geral a índices inimagináveis.
as instituições de saúde, a psiquiátrica em especial, ao tomarem para si esses marginalizados, enquanto doente, exime
a sociedade da responsabilidade de sua produção. ou seja, o processo de desenvolvimento adotado no país, alienante
e excludente, deixa à sua margem uma parcela de indivíduos que não suportaram o peso da marcha. a instituição
médica, ao medicar o problema, psiquiatrizá-lo ao inseri-lo nas classificações nosográficas, esconde a relação causal
existente, prestando-se ao papel ideológico de escamotear a questão da produção social da doença. a contrapartida
da dissimulação ideológica oferecida ao sistema está representada nos ganhos que aufere, em decorrência da linha
privatizante adotada, tendo o Estado abandonado sua função de produtor de direto aos serviços de saúde.
Para que não restem dúvidas: estamos falando da cumplicidade entre o Estado, que deveria representar a todo
heterogêneo da sociedade, e a parcela dominante desse todo, representada aqui, nesse setor específico do sistema,
pelos empresários da saúde. de um lado, o Estado ao adotar um modelo político-econômico marginalizador de
mais de 70% da população em relação aos benefícios materiais e culturais do crescimento econômico, possibilita um
aumento econômico, possibilita um aumento dos índices de morbidade e, com ele, de doenças mentais, ao mesmo
tempo em que privatiza a assistência; de outro, esses setores privados, beneficiados pela linha privatizante e que, em
contrapartida, isenta a organização social imprimida pelo Estado, pela responsabilidade da produção das doenças, ao
medicar ou psiquiatrizar o problema.
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Para se ter uma idéia a respeito da produção desse tipo especial de marginalizados9, o doente social e o papel
ideológico de encobrimento da medicalização, vale consultar o ensaio Assim enlouquecem nossos operários10, publicado
recentemente, que aponta como alternativa para fugir da fome e da miséria, “a loucura como estatuto”, isto é, uma
condição que permite ao trabalhador receber o benefício doença da Previdência e fugir da exploração do trabalho.
ainda sobre a natureza desse tipo de marginalização continuam ou autores:
Ele está alienado do controle social e do controle da produção, produz sem prazer e sem nenhum outro ganho secundário de origem psicológica, só é motivado pela permanente necessidade imediata de sobrevivência. É máquina submetida a stress contínuo, a desgaste oriundo das massacrantes jornadas de trabalho, o que ganha não dá nem para a alimentação e, portanto, não há a mínima possibilidade de lazer, as férias são vendidas em troca de um salário extra, a vida é um imenso e doloroso cansaço.
Insistindo ainda na caracterização dessa demanda, para que não pairem dúvidas sobre a cumplicidade que de-
nunciamos, entre Estado e empresários da saúde, citamos uma matéria, publicada no último boletim informativo do
Movimento dos trabalhadores de Saúde Mental do rio de Janeiro11, sobre a região de Paracambi (rJ) que, diante do
fechamento de sua maior indústria e o aumento extraordinário do índice de desemprego e miséria:
assiste à expansão de um hospital psiquiátrico, que lentamente vai absorvendo, no seio acolhedor da medicina mental, os desempregados e suas famílias: o hospício substitui a fábrica; o desemprego e a miséria se acomodam no diagnóstico psiquiátrico.
Considerada assim a natureza da demanda12, entende-se o que significa o crescimento do número de leitos psi-
quiátricos enquanto pólo de atração para essa massa de marginalizados sociais, feitos doentes, e que encontram no
Estatuto do doente Mental uma forma de subsistência, através do benefício-doença. a internação representa, para o
paciente, a prova da gravidade de seu estado de saúde e a garantia do recebimento do auxílio e, para o hospital, lucro
certo e garantido no ato do credenciamento com a Previdência.
acusada a linha privatista vigente e caracterizada a demanda, faz-se mais claro o predomínio asilar em detri-
mento do tratamento ambulatorial, implantado nos últimos anos, embora sabiamente ultrapassado e mais oneroso.
Ultrapassado porque, ao invés de contribuir para o ponto restabelecimento do paciente, contribui justamente para
institucionalizá-lo ao cronificar as suas mazelas; e oneroso porque comparado ao custo do tratamento realizado em
caráter ambulatorial (mais eficaz inclusive e, por isso, menos interessante do ponto de vista econômico) é o que conta
dentro da lógica capitalista para as empresas médicas13. Estas exercem, através da Federação Brasileira de Hospitais
(FBH), uma influência na fixação das linhas políticas para a saúde, sem a contrapartida da influência do segurado.
daí a orientação vigente, nitidamente privativista e empresarial, autocrática e antipopular, no sentido que, se atende
às pressões dos setores empresarias, não responde às necessidades de saúde da população. o próprio Ministério da
Saúde aponta o quadro da assistência psiquiátrica no Brasil da seguinte forma:
1. O sistema assistencial brasileiro, baseado na solução custodial, que consiste na internação em massa dos pacientes em hospitais psiquiátricos, está inteiramente superado, pois seu abandono vem sendo preconizado há cerca de trinta anos.
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2. As internações em hospitais psiquiátricos do país são feitas, em proporção apreciável, de modo indiscriminado sem a devida triagem especializada.3. As despesas com hospitais psiquiátricos alcançam 90% dos custos operacionais totais, havendo Estados que não utilizam recursos em serviços estra-hospitalares.14
o Ministério da Saúde reconhece, pois, a natureza anômala e indefensável da tendência asilar da assistência psi-
quiátrica ao privilegiar o asilo, em detrimento do ambulatório e ao estimular o uso abusivo do leitor hospitalar. dessa
forma, o índice de internação em relação ao número de consultas efetuadas superam qualquer estimativa técnica. Para
se ter uma noção em números, prova irrefutável de que o interesse do segurado ou de que os parâmetros ditados por
estudos idôneos ficam em segundo plano diante da lógica empresarial, confrontamos a estimativa da organização
Mundial da Saúde (oMS), segundo a qual “o percentual de admissão hospitalar deverá atingir 3% das consultas
psiquiátricas”, com a estimativa da Previdência que calcula em 13,7% as consultas psiquiátricas que resultaram em
internações em 1975 e em 36% o cálculo referente apenas ao Estado de São Paulo em 197315.
ao menos no que diz respeito a discursos, publicações, mensários estatísticos, etc, não têm o Ministério da Saúde
ou a Previdência como negar a índole perversa de um modelo voltado exclusivamente a interesses alheios à recuperação
da saúde do segurado. No que diz respeito à prática, entretanto, aliam-se na cumplicidade ao estimularem a medici-
na de mercado, omitirem-se na apuração das denúncias às distorções apontadas e propiciarem o credenciamento de
crescente número de leitos hospitalares construídos com financiamento do Fundo de apoio Social, recurso público,
portanto. Em dados de 1973, tímidos para refletir a aberração de hoje, as ações de saúde do Ministério da Previdência,
quanto a gastos, se realizam em mais de 90% através do setor privado, dos quais 80% em hospitalização16. atualizem-se
esses dados, considerando a privatização crescente e, ademais, considere-se que nessa área especializada a Previdência
não conta com nenhum próprio e teremo, na devida dimensão, o caráter perverso, anacrônico e cúmplice, que os
setores público e empresarial conferem ao modelo assistencial. Essa característica, nesse setor especializado, reflete
e complementaridade e adequação entre o sistema político-econômico alienador-enfermizante e a prática médica
psiquiatrizante.
Não seria acaso necessário perguntarmos: a existência de instituições que acolham em seu seio esse marginalizado
social, diagnosticado como doente mental, encobrindo com o manto de seu reconhecimento científico e a reivindi-
cação da propriedade de sua intervenção técnica, os mecanismos socioeconômicos da marginalização? Não integrará,
organicamente, um sistema calcado na defesa de interesses particularistas e na repressão e marginalização daqueles
que se lhes opõem? É justamente a confirmação da existência da organicidade dessa relação, que estivemos discutindo,
que faz do modelo assistencial o que ele é hoje.
Indicada a inclinação estrutural da assistência – perversão estrutural – e de como se dá nele a inserção da insti-
tuição psiquiátrica, faz-se necessária, ainda que em rápidas pinceladas, uma observação sobre o papel desempenhado
pelos técnicos de saúde mental e suas condições de trabalho.
Como se sabe, o modelo capitalista de desenvolvimento impôs não apenas uma alienação do trabalhador em
relação aos instrumentos de produção e ao produto de seu trabalho, mas também determinou um rumo na evolução
das relações de produção, no sentido de uma socialização cada vez mais ampla da atividade produtiva. ora, julgando
ter ficado claro o exposto até aqui, se a prática médica é organizada em termos empresariais e obedecendo à lógica
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do mercado, nenhuma estranheza deve causar a verificação de que uma evolução no mesmo sentido tenha ocorrido
na medicina17. de fato, o predominante no cenário da assistência médica são as clínicas, hospitais, etc, geridos como
empresas, voltadas para o lucro como qualquer empresa capitalista, transformando o médico e demais técnicos em
trabalhadores assalariados. Empregado, trabalhará cumprindo orientação da empresa, atribuindo prioridade ao lucro
financeiro do patrão, o que significa aumentar o período de internação, efetuar internações desnecessárias e outros
expedientes, sem contar aqueles que correm o risco de serem sumariamente dispensados18. Não é por outra razão que
o total de intervenções em psiquiatria no país, na área previdenciária, chegou a 305 mil quando a estimativa da Pre-
vidência ficava em 105 mil, calculando-se em bilhão o gasto desnecessário, no ano de 197719. Como desvincular esse
tipo de distorção do processo de aviltamento da dignidade do profissional acuado diante da pressão dos empresários,
sob a angustiante necessidade de garantir o emprego?
assim se explicam as condições de exploração a que os profissionais estão submetidos e que, por sua vez, está inti-
mamente relacionada com o tipo da assistência prestada: 1) o empresário, dispondo de forças de trabalho em excesso,
sustentado pela proliferação indiscriminada de escolas médicas, impõe sua lei ao mercado, explorando o médico e
interferindo em seu trabalho. Impõe critérios de admissão, altas, tratamentos e etc, que visam ao lucro e não à cura;
2) o padrão de atendimento, em conseqüência, é o pior possível, com o tratamento sofrendo a intervenção de fatores
extra técnicos, não raro danosos ao paciente; 3) o médico, impotente, é aviltado: primeiro, na sua autonomia técnica,
ao se ver constrangido a adotar critérios com os quais não concorda, cassada sua liberdade de escolha do tratamento
adequado, independentemente do fato de a empresa receber mais ou menos por ele; segundo, em sua condição de
trabalhador, ao ver freqüentemente desrespeitados os direitos trabalhistas elementares.
Quando o profissional mostra discordância com o papel que lhe obrigam exercer, invariavelmente perde o
emprego. E os casos de demissão, sobretudo nesses dias em que, depois de anos de severa repressão, os médicos
e demais técnicos voltam a discutir a questão da assistência psiquiátrica e a reivindicar melhores condições de
trabalho, são cada vez mais freqüentes. Situam bem o problema das demissões e ameaças diversas, aqueles que as
consideram como:
investida dos empresários da loucura contra aqueles que se negam a compactuar com as condições vergonhosas de tra-balho e com o precário atendimento dispensado aos pacientes.20
diante desse quadro sombrio, onde se combina o desrespeito aos direitos e à dignidade do profissional, o trata-
mento repressivo aos pacientes e o super-faturamento das empresas, a Previdência cruza os braços, abdicando à sua
responsabilidade, a não ser que atribuamos seriedade e eficácia aos relatórios que locupletam as gavetas dos burocratas,
ou as prosaicas ‘incertas’ do atual titular da pasta.
o mal de que sofre o modelo médico assistencial e, em particular, a assistência psiquiátrica, é estrutural. Não se
trata apenas de evitar distorções, recuperar ou aperfeiçoar o atual modelo. a perversão estrutural que denunciamos
tem seu ponto de partida na abdicação, pelo Estado, à prestação de um serviço básico: o serviço de saúde, direito
inalienável do homem. ao delegar sua prestação a terceiros, o Estado mostra, na área específica da saúde, a feição
particularista que vem assumindo nos últimos quinze anos.
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NOTAS*
1. Jornal do Brasil, 2/9/78.
2. dados obtidos com profissionais que fizeram parte desse grupo de trabalho. o relatório final desse levanta-
mento foi arquivado pela dinsam.
3. Para melhor caracterização da situação dos profissionais denominados “bolsistas”, consultar o artigo Subem-
prego na Dinsam, publicado no sinmEd, abril de 1978. p. 6 (rJ).
4. Ver documento enviado pelos “bolsistas” e estagiários, datado de 6/6/78, ao diretor da dinsam, exigindo
a readmissão de três colegas demitidos, por denunciarem as precárias condições da assistência e a irregularidade do
vínculo trabalhista. a resposta a este documento foi a demissão imediata de mais 80 profissionais.
5. documento enviado ao Ministro da Saúde em julho de 1978.
6. Idem.
7. Nota oficial do Movimento dos trabalhadores de Saúde Mental do rio de Janeiro, em O globo, setembro
de 1978.
8. Jornal do Brasil, 23/9/79.
9. a marginalização social gerada pelo modelo de desenvolvimento a que o país vem sendo submetido a partir
de 64 se manifesta ao aumento da criminalidade, dos menores abandonados, uso de drogas, etc. a doença mental
representa apenas uma das formas de marginalização.
10. revista rádice, pág. 21, nº 10, ano II, jul-agost, 1979.
11. Boletim Informativo do M.t.S.M., nº 5, agosto de 1979.
12. a caracterização da demanda, feita aqui superficialmente, está a exigir estudos mais aprofundados. tornado
doente mental pelo trabalho ou excluído do processo de produção, marginalizado e acolhido numa instituição psi-
quiátrica, essa diferença não tira a validade da nossa argumentação.
13. “Que o setor privado mantenha a situação pela recusa em investir em ambulatórios compreende – se facilmente
porque a consulta médica que irão vender ao inamPs custa Cr$ 86.00 e o leito hospitalar 5.000 ao mês. apesar disso,
em alguns Estados como Pernambuco e São Paulo, um sistema ambulatorial privado começa – se a estruturar, talvez
nesses casos o ambulatório e hospital psiqiátrico estejam se retro alimentando não tem que prove aos empresários
que os ambulatórios podem ser lucrativo”. santana, S. A Situação da Assistência Psiquiátrica no Brasil. III Encontro
Nacional de assessores de Psiquiatria do inamPs/MPaS, Porto alegre, rS, outubro de 1978, mimeografado.
14. bRasil, MS. Política Nacional de Saúde, Brasília, 1973.
15. gEntilE dE mEllo, C. a Irracionalidade da Privatização da Medicina Previdenciária. Revista Saúde em Debate,
nº 3, 1977, SP.
16. gEntilE dE mEllo, C. Perspectivas de Medicina da Previdência Social, Ver. Paulista de Hospitais, 21(12):540-
46, dez. 1973, SP.
* as citações do presente documento foram mantidas na formatação da publicação original.
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17. Na psiquiatria a socialização do trabalho é favorecida ainda mais por ser a assistência desempenhada por uma
equipe multidisciplinar.
18. sinmEd, jun-jul., 79, pág. 13, rJ.1
19. gEntilE dE mEllo, op. Cit., 1973.
20. B. I. do M.t.S.M., op. Cit., nº 5.
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artIgo orIgINal / ORIgINAL ARTIcLE 193
a crise de dominação no sistema público de saúdeThe domination crisis in the Brazilian public health system
RESUMO A crise atual das instituições públicas de saúde é evidenciada pela
freqüência sempre crescente com que surgem notícias, veiculadas na imprensa
escrita, manifestações de insatisfação dos usuários e trabalhadores da saúde.
Procurando compreender melhor essas manifestações, este artigo examina o
enfraquecimento dos mecanismos de dominação/controle dessas instituições sobre
os trabalhadores de saúde e população. Em segundo lugar, apontam-se as formas
de coerção adotadas por essas instituições em situação de oposição e conflito. E,
finalmente a necessidade de um controle verdadeiramente democrático sobre o
setor é reafirmada. Foram utilizadas como prova da situação atual de crise no
setor, notícias de jornais de difusão nacional e regional.
PALAVRAS-CHAVE: Dominação-subordinação; Participação social; Sistemas
de saúde; Setor público.
ABSTRACT The current crisis in the Brazilian public health institutions becomes
evident through the users’ and healthcare workers’ manifestations of dissatisfaction
shown in the increasing number of news in the press. Aiming at understanding
those manifestations, this paper analyzes the institutions’ weakening of the control/
domination mechanisms over healthcare workers and the population. The ways of
coercion adopted by some institutions in situations of conflict and opposition are
herein pointed out. Finally, this paper also reinforces the need of a true democratic
control over the health sector. As a means of highlighting the current situation,
news printed in both local and national newspapers were used.
KEYWORDS: Dominance-subordination; Social participation; Health systems;
Public sector.
arlene laurent i Monterrosa ayala 1
1 Mestre em Saúde Pública pela
Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC); enfermeira da Secretaria
Municipal de Saúde de Joinville,
(SMS).
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194 aYala, a.l.M. • a crise de dominação no sistema público de saúde
I N T R O D U ç Ã O
Como pode a 8ª Conferência Nacional de Saúde e
o movimento pela reforma Sanitária dos anos 1970 e
1980 ter tido sucesso em identificar um modelo teórico
de atenção à saúde com base em premissas e diretrizes
da universalidade, integralidade, equidade, descentrali-
zação e participação da sociedade, mas não nas formas
e modalidades de transição para que tais premissas e
diretrizes fossem alcançadas?
É tarefa de uma teoria de transição articular as
questões específicas do processo social em andamento,
identificando com precisão suas limitações. desse modo,
as restrições da teoria da reforma Sanitária com relação
aos problemas da transição hoje se afirmam, primor-
dialmente, pela ausência de uma estrutura organizativa,
composta por indivíduos livremente associados capaz
não só de negar a ordem dominante, mas também de
exercer as funções de participação na efetivação dos ide-
ais da reforma Sanitária. a participação, como resultado
de tradições culturalmente estabelecidas na sociedade
no intercurso material, é o elemento estratégico para
a reestruturação dos rumos da tão desejada reforma
e retomada do compromisso com os valores de uma
sociedade produzida na própria realidade.
Hoje, somos testemunhas da atual crise pela qual
o setor público de saúde vem passando. tal crise, nem
preciso dizer, vem violando o direito mais elementar dos
indivíduos: decidir sobre sua própria existência.
a leitura de jornais com informações sobre o nosso
dia-a-dia pode constituir uma fonte importante para a
explicitação da crise e dos embates políticos contempo-
râneos do setor da saúde. Nessa perspectiva, procurou-se
mostrar um olhar sobre o nosso cotidiano e uma leitura
mais atenta das informações veiculadas pela imprensa
escrita às quais, muitas vezes, não damos nenhuma
importância e sequer percebemos as manifestações de
uma crise ali explicitadas.
O trajeto problemático do setor de saúde
durante o percurso de organização do setor saúde
no Brasil, a função da participação na definição das
políticas de saúde foi alienada dos setores da sociedade
e transferida para as instituições públicas. assim, essas
instituições adquiriram o poder de aglutinar os traba-
lhadores de saúde e setores da sociedade num padrão
hierárquico estrutural e funcional segundo um critério
que define a maior ou menor participação no controle
e definição dessas políticas.
a centralização do poder de decisão nos níveis
centrais de comando e a arrogância dos especialistas em
planejamento e gestão em saúde não têm sido capazes de
imprimir a eficácia, no sentido de controlar o número de
pessoas que vêm adoecendo e morrendo diariamente.
Práticas determinadas em tais bases têm privado os
trabalhadores do setor e usuários, de participar efetiva-
mente na definição das políticas de saúde, o que vem
ampliando consideravelmente a incapacidade do setor
em responder às necessidades básicas de saúde dos indiví-
duos e da coletividade. a prova disso é a crise estrutural
da saúde, que já vem ocorrendo há algum tempo e, a
cada dia, aprofundando-se, ainda que sua intensifica-
ção não assuma a forma de “grandes confrontações”. a
seguir, mostraremos trechos de manchetes publicadas
em jornais que explicitam a crise.
Prefeitura fecha maternidade alagada: grávidas e bebês são transferidosA Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro fechou, ontem de manhã, a Maternidade Leila Diniz, em Jacarepaguá, onde um bebê morreu no início do mês e outros três foram contaminados, supostamente por uma bactéria. [...]. Há um ano, outros cinco bebês também adoeceram por causa de uma bactéria e três
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195aYala, a.l.M. • a crise de dominação no sistema público de saúde
deles morreram, após inundações na maternidade (albuquERquE, 2005).
outra notícia veiculada no Jornal Folha de São Paulo
expõe a gravidade da situação atual. Em nome da neces-
sidade de racionalização, estuda-se de que forma poderá
ser negado aos pacientes com quadro clínico grave o
acesso a tratamentos que poderiam salvar suas vidas.
Constata-se que, na tentativa de resolver o problema do
déficit do número de leitos de UtI, o governo propõe a
restrição do acesso aos pacientes, sem que em momento
algum faça referência às reais necessidades de ampliação
do número de leitos. Segundo o presidente da associação
de Medicina Intensiva Brasileira (amib):
existe oferta de 21,5 mil leitos de UTI em todo país, no entanto, seriam necessários no mínimo 26 mil vagas, embora o número ideal, segundo recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS), é de no mínimo 44 mil. (apud colluci, 2005, p. C1).
Governo federal quer restringir UTI a doentes com chances de recuperação O Ministério da Saúde vai criar normas que permitam selecionar o tipo de paciente que ocupará um leito de UTI. A idéia é que entrem e permaneçam nas unidades de terapia intensiva das redes públicas só pacientes com chances reais de recuperação. Para isso, serão estabeleci-dos indicadores de prognóstico, baseados em evidências científicas, utilizadas tanto na internação como na alta [...] (colluci, 2005, p. C1).
o absurdo, na notícia acima referida, é a delega-
ção de responsabilidade, imposta pelos burocratas aos
médicos, de condenar à morte. Essa delegação desloca
a responsabilidade do setor de salvar ou melhorar a
vida para os profissionais médicos. desses exemplos,
que poderiam ser multiplicados, parece ficar evidente
que não se poderia chegar a outra conclusão que não
a da possibilidade de esta crise ser posta como o limite
da própria vida.
Ironicamente, porém, a padronização do trabalho
intelectual ‘no topo’ das hierarquias técnicas, o mono-
pólio da informação e decisão à ‘democracia represen-
tativa’ através da institucionalização e cooptação dos
Conselhos Municipais de Saúde, entre outras questões
e o acesso limitado dos indivíduos ao acesso universal,
trazem consigo uma ‘bomba social’ em forma de uma
constante insatisfação da parte dos usuários em gran-
de escala, à medida em que o sistema não consegue
absorver as demandas por serviços e que as formas de
organização, saídas da lutas autônomas, começam a se
submeter às formas de organização da classe gestora,
sendo os representantes do corpo social transformados
em novos gerentes da instituição.
a contradição é estabelecida entre a forma vigente
de controle e a perda dos comandos centrais do setor
do controle e da dominação, dado o funcionamento
problemático do setor, que produz um padrão de
atendimento desumano e com baixa resolutividade aos
grupos populacionais.
a prática de dominação do setor saúde vem en-
contrando resistência da população, que mostra sua
insatisfação através da imprensa, em função do difícil
acesso às tecnologias em saúde, desde as mais simples
até as mais complexas; do outro lado, há uma resistência
por parte dos trabalhadores de saúde, em conflito com
as formas de organização do trabalho impostas pela
estrutura central de comando, que exigem vários pressu-
postos operacionais e técnicos; destaca-se, sobretudo, o
pressuposto de perseguição de eficiência, num contexto
de pouca valorização dos trabalhadores e sobrecarga de
trabalho.
o insucesso dos programas de saúde reflete na
prática das unidades de saúde responsáveis pelo atendi-
mento aos indivíduos e à coletividade. a superlotação
dos prontos atendimentos dos hospitais e os agravos à
saúde dos portadores de doenças crônicas que poderiam
ser prevenidos, e exigem tratamentos mais agressivos,
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196 aYala, a.l.M. • a crise de dominação no sistema público de saúde
podem ser um indicativo da baixa resolutibilidade desses
programas.
Igualmente significativo é o modo persistente com
que esses gestores acreditam que novos programas de
saúde, contempladores dos efeitos dissociados de seus
determinantes, possam resolver os problemas de saúde
da população sem que sejam consideradas as dimensões
geradoras do adoecimento: a econômica, a política e a
social. ou ainda, como se pode constatar na manchete
a seguir, atribuir a culpa da ineficácia do sistema ao
fato de os especialistas médicos realizarem concursos
em instituições públicas simplesmente para testar suas
capacidades profissionais, ignorando que, para esses
profissionais, os salários oferecidos pelo sistema público
estão aquém do mercado. Para Pierantoni (2001), essa
remuneração desloca esses profissionais para setores
ligados à assistência supletiva à saúde.
Está difícil conseguir vaga nos postos de saúde[...] A mãe de Pablo, de um ano e um mês, deveria levar o filho a cada 30 dias no médico para acompa-nhar a doença do filho, que sofre de sopro no coração. Desde janeiro, porém, ela não consegue vaga no posto de saúde da Vila Nova.[...]. Desde o início do ano, apenas uma especialista está atendendo a população do bairro na parte da manhã. Gerente se justificaPor lei, não podemos renovar os contratos, temos de chamar médicos aprovados no concurso público de 2004. A gerente complementa: ‘Há quem faça o concurso só por fazer, da mesma maneira que pres-tam vestibular para testar a própria capacidade’ [...] (WEbER, 2005, p. 6).
Vista de outra forma, a justificativa explicitada aci-
ma no jornal do município de Joinville, Santa Catarina,
A Notícia, deixa claro que o setor público de saúde nem
sempre representa uma alternativa profissional atrativa
e, por isso, não logra sucesso no preenchimento de seus
quadros. a resposta dada pela gerente dissimula a falta
de atratividade, jogando, mais uma vez, ao profissio-
nal de saúde, a responsabilidade pela ‘leviandade’ ao
afirmar que o mesmo só presta concurso público para
‘testar seus conhecimentos’, distorcendo a verdade. Essa
resposta não pode identificar as reais causas do não-
preenchimento das vagas disponibilizadas. Uma delas,
a falta de atratividade pela remuneração do trabalho, já
é vista como resultado da política de não-priorização
da saúde nas ações dos governos. assim, se evita não
apenas enfrentar as causas, mas simultaneamente essa
evasiva torna-se uma conveniente ‘justificada’ perante
a população.
Repressão ao dissenso
Quando o setor de saúde não consegue enfrentar
manifestações de dissenso e, ao mesmo tempo, impor sua
‘tolerância repressiva’, entra em cena a defesa deliberada
da repressão. a concretude dos fatos evidenciados nos
leva a abordar com especial atenção uma pequena parte
da história dos trabalhadores de saúde da instituição
na qual a autora trabalha há tantos anos, sobretudo em
razão de práticas dessa instituição pública, que têm como
base uma determinada forma de resposta ao dissenso na
qual a dominação deve sempre prevalecer.
a atitude de expor a situação, de certa forma re-
presenta uma fonte de dados e, espera-se que, com esse
procedimento, seja possível esclarecer que o episódio
ocorrido no final do ano de 2003 e durante o ano de
2004 teve substancial importância no que diz respeito
ao estudo do tema proposto. as manchetes de jornal
a seguir, ilustram muito bem o que hoje vivenciamos
no setor:
Perseguição e política Uma das fiscais que prestou depoimento ontem na cEI que investiga denúncias contra o setor de vigilância sanitária, da Secretaria de Saúde de Joinville, disse que foi vítima de perseguição por parte do chefe hierárquico, Domingos Alacon [...]
(nEvEs, 2003, p. 8).
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 193-199, jan./dez. 2008
197aYala, a.l.M. • a crise de dominação no sistema público de saúde
Câmara vai prorrogar trabalhos da CPI da saúde [...] A secretária municipal de saúde, Tânia Eberhardt, admitiu ontem ter conhecimento de que o ex- chefe da vigilância à saúde, engenheiro Domingos Alacon, era sócio de uma empresa que poderia ter afinidade com o setor que ele dirigia [...]. Nos depoimentos anteriores, dois fiscais disseram sentir-se constrangidos ao autuar empresas que eram clientes do centro de Assistência Integral ao Trabalhador (Cait), empresa de Alacon. ‘Todos sabemos que as pessoas, às vezes, procuram dire-tamente as instâncias superiores, mas isso não é nenhum crime’, disse a secretária, sobre o fato de empresários não quererem falar com os fiscais, mas diretamente com o ex-chefe do setor [...] (JungEs, 2003, p. 5).
os fatos ocorridos na Secretaria Municipal de Saúde
de Joinville despertaram na autora uma profunda inquie-
tação a respeito das questões dos interesses explicitados
pelos gestores de saúde, indignação com a injustiça e a
opressão para com os trabalhadores de saúde que tive-
ram a coragem de denunciar o uso da estrutura pública
pelos setores privados e, tristeza em relação aos 1.700
trabalhadores de saúde e Conselho Municipal de Saúde
que se omitiram, permanecendo em silêncio e alheios
perante os acontecimentos da época.
tais acontecimentos sugerem uma análise inquie-
tante, primeiro por tratar-se de uma tentativa de colocar
as instituições públicas a serviço dos setores privados e,
segundo, por tornar-se evidente que o fato foi totalmente
ignorado pelos setores representantes da população,
principalmente pelo Conselho Municipal de Saúde e
pela Comissão Municipal de Saúde do trabalhador,
esta última composta por sindicatos de trabalhadores.
Isso nos leva a concluir que esses setores não possuem
um projeto político voltado para o interesse coletivo, ou
talvez que não possuam projeto político nenhum ou po-
dem estar sendo cooptados pelos interesses dominantes
no poder. Por último, pode-se constatar que a defesa da
intolerância institucionalizada, na forma de punição dos
trabalhadores de saúde1, relaciona-se à legitimação de
tais práticas por meio da sujeição desses trabalhadores
a processos disciplinares.
Ação política como expansão do setor privado
as matérias jornalísticas a seguir expõem, de forma
reveladora, que as formas de controle indireto das deci-
sões são obrigadas, em função dos grandes interesses de
expansão dos setores privados, a permitir um controle
direto, através de representantes de grandes empresas
aos mais elevados postos políticos do executivo, ou ain-
da, por intermédio das instituições de direito privado,
denominadas de organizações Sociais (oS). Portanto,
a política atualmente nada mais é que a aplicação de
medidas utilizadas como instrumento de manipulação
do corpo social em detrimento de seu desenvolvimen-
to, sendo também de sua responsabilidade responder
sistematicamente às crises do sistema.
Vejamos outra manifestação da mídia na qual as
estratégias de ocupação privada das macroestruturas
afinada com os princípios de expansão encontram seu
equivalente também nas microestruturas.
Prefeito de Itabuna (BA) é acusado de realizar repasses ilegais [...] o prefeito de Itabuna, geraldo Simões (PT), foi acusado pelo Ministério Público de efetuar repasses ilegais (no total, R$ 7 milhões) para a Aias (Associação Itabunense de Apoio à Saúde). [...] ‘As transferências são ilegais e configuram, em tese, ato de improbidade administrativa, que causa prejuízo ao erário’, escreveu o procurador [...]. Segundo o promotor, a irregulari-dade está no fato de uma entidade privada, sem fins lucrativos, gerir recursos do governo [...] (maRtinEz, 2003, online).
o modo como a ação política tem sido utilizada
para a expansão do setor privado é ainda mais revelador,
1 os três trabalhadores de saúde que denunciaram as irregularidades na Secretaria Municipal de Saúde foram transferidos e respondem ou responderam por processo administrativo interno. Um deles sofre de distúrbios psiquiátricos e se encontra em tratamento.
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 193-199, jan./dez. 2008
198 aYala, a.l.M. • a crise de dominação no sistema público de saúde
mesmo quando tais ações são desvirtuadas e apresentadas
como interesse da sociedade. Na manchete a seguir cons-
tatamos esta revelação, à medida que o atendimento das
reais e prioritárias necessidades da população não se cons-
titui pré-condição para o financiamento das empresas do
setor privado, prestadoras de atendimento em saúde.
Governo Lula cria programa de apoio financeiro para os planos de saúde O governo Luiz Inácio Lula da Silva prepara medi-das de socorro financeiro para as empresas de planos e seguros de saúde, o polêmico setor que reúne 1.797 operadoras e responde pela assistência a 40,1 milhões de brasileiros. A intenção é criar duas linhas de cré-dito, ambas com recursos do mercado financeiro, a princípio de duas instituições estatais[...]. Uma das linhas servirá para estimular fusões e aquisições. [...] Se aprovada, ela poderá criar monopólio no mercado, diz Arlindo de Almeida, presidente da Abramge[...]. Segundo cardoso, os principais grupos de setor, o de operadoras e seguradoras de saúde, perderam clientes nos últimos quatro anos, [...] (lEitE, 2005, p. C1).
a medida acima, proposta pelo atual governo, visa
equilibrar as enormes perdas do setor privado. Conse-
qüentemente, ela prescreve a transferência de subsídios
públicos a esses setores. Essas medidas políticas têm
servido, portanto, para responder às crises das institui-
ções privadas e aos ditames do Capital Monopolista,
numa freqüência crescente. Não há dúvidas de que no
sistema atual se desenvolve uma crise estrutural em sua
totalidade, hoje manifestada através do crescente e con-
tínuo distanciamento entre os interesses da maioria da
população e das estruturas do sistema, de maneira que
as perturbações acentuam-se e a observação a ser feita
refere-se ao fracasso evidente das instituições públicas e
privadas no enfrentamento dos problemas da socieda-
de. E isso nos faz evidenciar a necessidade urgente de
um controle social que garanta uma maior eficácia do
sistema público de saúde e, portanto, a melhoria das
condições de vida dos indivíduos e da coletividade.
A necessidade de um controle social
Se há necessidade de retornar aos princípios origi-
nais da reforma Sanitária é imprescindível uma análise
da forma como se instituiu o controle social do Sistema
Único de Saúde (SUS). a lei 8.142 de 28 de dezembro
de 1990 instituiu os conselhos e as conferências como
instâncias de controle social do SUS (Radis dados,
2005). ao analisar esse importante aspecto da proposta,
deparamo-nos com grandes dificuldade por entender-
mos que a instituição de uma entidade jurídica não ga-
rantirá o controle social, e pela completa transformação
dos ideais da reforma Sanitária em uma realidade que
substitui a participação coletiva dos indivíduos livre-
mente associados pela participação forçada de homens
governados por uma força política que lhes é alheia, na
forma dos Conselhos Municipais e locais de Saúde.
Sob tais circunstâncias, cabe ao movimento pela
reforma Sanitária refletir se a institucionalização do
controle social tem levado à sustentação e legitimação
das aspirações da sociedade ou do sistema. Estamos
convictos de que as aspirações do corpo social só podem
ser plenamente estabelecidas se as condições para sua
realização forem expressas concretamente, na própria
realidade.
CONSIDERAçÕES FINAIS
Quando a sobrevivência dos indivíduos está ame-
açada, e de fato está, pela estrutura pública ineficiente,
ineficaz, corrupta e pela administração, das instituições
públicas e privadas, inadequada e descomprometida com
o bem-estar da sociedade, a saída é a mudança das regras
do jogo social; é colocar os indivíduos no controle dos
seus interesses. reconhecer essa necessidade significa
não ser condescendente com as políticas atualmente
praticadas pelas instituições, que privilegiam o capital e
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199aYala, a.l.M. • a crise de dominação no sistema público de saúde
utilizam medidas manipuladoras e repressivas, além de
imporem a penúria, a falta de alternativas, a humilhação
e a miséria aos indivíduos, descumprindo, com rigor,
o seu objetivo.
E isso nos faz retornar ao corpo de nosso trabalho.
Caracteriza-se aqui que no passado, os defensores da
reforma Sanitária discursaram em prol de uma política
antiliberal. agora, precisam retomar,com o mesmo vigor
a análise da conjuntura atual. deve-se considerar aspec-
tos que nos limitamos a simplesmente mencionar, como,
por exemplo, emancipar as ações coletivas dos interesses
econômicos e conceber programas e instrumentos de
ação sóciopolíticos elaborados pela própria realidade.
assim, as instituições não devem ser definidas em de-
talhe antes que sua articulação prática aconteça, mas
devem ter como pressuposto as necessidades e, portanto,
a flexibilidade das demandas sociais. o último ponto
a enfatizar é o controle social, que deverá incorporar o
poder político de decisão com o corpo social, dando
origem a uma ação política determinada pelos interesses
coletivos da sociedade.
R E F E R Ê N C I A S
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recebido: maio/2008
aprovado: nov./2008
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 200-206, jan./dez. 2008
artIgo orIgINal / ORIgINAL ARTIcLE200
François dagognet, por uma nova filosofia da doençaFrançois Dagognet, for a new philosophy of disease
RESUMO O texto pretende apresentar o filósofo, psiquiatra e epistemólogo francês
François Dagognet, ainda pouco conhecido no Brasil apesar de sua vasta obra
transdisciplinar que compreende mais de cinqüenta livros com temas diversos e
de grande importância, na atualidade. Aluno de georges canguilhem, Dagognet
retoma problemáticas tais como normal/patológico, corpo/vivente, distanciando-se
em alguns pontos de seu mestre por estar inserido em um novo contexto de progresso
científico e tecnológico, com novas pautas de discussões. Sempre atento à aplicação
dos saberes (médico, jurídico, filosófico, estético) na realidade, esse pesquisador
traz imensa contribuição para o campo da saúde.
PALAVRAS-CHAVE: Vitalismo; Normatividade; Epistemologia; corpo.
ABSTRACT This article aims to present the French philosopher, psychiatrist
and epistemologist François Dagognet, still unknown in Brazil despite his
transdisciplinary work that includes more than fifty books and a wide variety of
important nowadays themes. As he was georges canguilhem’s student, Dagognet
recovers issues such as normal/pathological, body/living beings, but disagrees with
the master for he was in a new context of scientific and technological progress, with
new kinds of subjects on the agenda. He turned his attention to the application of
knowledges (medical, juridical, philosophical, aesthetical) in the current reality,
bringing precious contributions for the health field.
KEYWORDS: Vitalism; Normativity; Epistemology; Body.
Sabira de alencar Czermak 1
1 Psicanalista; mestranda em Saúde
Coletiva no Instituto de Medicina
Social da Universidade do Estado do
rio de Janeiro (UErJ).
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 200-206, jan./dez. 2008
201CZErMaK, S.a. • François dagognet, por uma nova filosofia da doença
I N T R O D U ç Ã O
georges Canguilhem foi, para muitos, um grande
mestre, um teórico que deu o que falar em sua época,
tecendo críticas severas à tradição filosófica e médica ou
mesmo incentivando atos políticos de importância históri-
ca. Sua filosofia de vida foi um divisor de águas na tradição
da medicina. o livro O normal e o patológico, concluído
em 1966, é a sua obra mais conhecida e a principal repre-
sentação de seu pensamento. Quase meio século depois, a
discussão central do livro ainda é um valioso argumento
crítico em relação às perspectivas reducionistas que sempre
assolaram as velhas discussões no terreno das patologias:
como as definir, de onde vêm e o que se faz com elas.
Canguilhem formou um número importante de
intelectuais franceses, sobretudo nos anos 1960. dentre
seus pupilos, esteve Michel Foucault, seu orientando
na elaboração de A história da loucura na idade clássica
(1961). Foucault afirma em um artigo escrito em 19851,
no qual homenageia o mestre, que, sem Canguilhem,
diversos debates não teriam sido tão bem compreendi-
dos. E acrescenta:
Este homem, cuja obra é austera, voluntariamente bem delimitada, e cuidadosamente devota a um do-mínio particular numa história das ciências que, de todo modo, não se faz passar por uma disciplina de encenação aparatosa, encontrou-se de certa maneira presente nos debates em que ele próprio tomou bastante cuidado de nunca aparecer. (p. 763)2.
É nesse sentido, entre outros motivos, que se enfa-
tiza a importância de um pensador com a experiência
de François dagognet. Filósofo e médico desde os pri-
mórdios da psicofarmacologia e da época em que ainda
não existia raio X, completa 84 anos de idade e ainda
agita o cenário francês com seus elogios ao Prozac, à
instrumentação médica, ao transtorno (trouble), com sua
briga pela homoparentalidade e pelo direito à fecundação
post-mortem3. trata-se de um teórico eclético visto que seu
interesse se estende da geologia à química, passando pela
epistemologia, neuropsiquiatria, direito, sociologia, psi-
canálise e por onde mais a contemporaneidade exigir.
a proposta deste artigo é apresentar a leitura que
dagognet faz do pensamento de Canguilhem, de quem
se distancia em algum ponto de sua trajetória.
DAGOGNET, ALUNO DE CANGUILHEM
georges Canguilhem e François dagognet são
reconhecidos como dois grandes mestres no domínio
da filosofia da Medicina. o primeiro, nascido em 1904
em Castelnaudary, sul da França, lecionou em várias
instituições acadêmicas francesas como filósofo. Sua tese
de doutorado, porém, foi defendida no curso de Medi-
cina sob o título O Normal e o patológico, com diversas
atualizações de seus argumentos até ser publicada como
a sua obra-prima. Vinte anos mais jovem e nascido em
landres, também no sul da Franca, François dagognet
seguiu os passos do mestre. assim como georges Can-
guilhem, cursou Filosofia e depois Medicina. trilhou
um percurso teórico marcado pela epistemologia de
Bachelard, de quem também foi aluno e amigo. Exerceu,
durante dez anos (na década de 1950) atividade clínica
e reivindica a tradição francesa de rené laennec e rené
leriche (dumas, 2005, p. 261).
1 La vie: l’expérience et la science2 tradução da autora. 3 Para mais informações, consultar Questions interdites (2002) e Penser le vivant: l’homme, maître de la vie? (2003) de dagognet.
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202 CZErMaK, S.a. • François dagognet, por uma nova filosofia da doença
É possível perceber a reciprocidade entre os dois a
partir das referências mútuas nas obras de um e outro,
como se vê nos livros La Raison et les Remèdes (1964), de
dagognet e O Normal e o patológico, dois clássicos escri-
tos na mesma época. Em 1983, Canguilhem organizou
o primeiro colóquio sobre a obra ainda em construção
de dagognet, em Saint-Julien-en-Beaujolais, cidade de
Claude Bernard. Nessa data, dagognet havia concluído
treze dos mais de cinqüenta livros que escreveu até hoje.
Em 1997, o autor publicou o primeiro estudo sobre o
conjunto da filosofia de vida proposta por Canguilhem,
dando origem ao livro georges canguilhem: philosophe
de la vie.
Entre suas teorias acerca da normatividade,
das normas, da máquina, da evolução, de auguste
Comte, Claude Bernard ou gaston Bachelard, o eixo
central do legado deixado por Canguilhem é, sem
dúvida, o vivente (vivant). Em georges canguilhem:
philosophe de la vie, dagognet retoma a perspectiva
canguilhemiana para expor seu pensamento funda-
mental, confrontá-lo a novos impasses e, acima de
tudo, apontar a busca de Canguilhem pela essência
da vitalidade (dagognEt, 1997, p. 167). talvez seja
nesse ponto que se encontra a crítica mais importante
de dagognet ao mestre: a tese central de Canguilhem
traz os equívocos da tradição médica bem como sua
incapacidade de reconhecimento de situações de fato
e valor na clínica. Como nos esclarece dagognet, na
denúncia epistemológica a respeito da ambigüidade
que acompanha o termo ‘normal’, geralmente dedutí-
vel para o uso do conceito de patologia, Canguilhem
termina deslizando no mesmo erro: parece acreditar
ter encontrado um ‘finalismo’ para a vida, ou seja, um
princípio que explicaria a organização biológica dos
seres vivos por um fim ao qual eles seriam destinados,
uma espécie de adaptação a uma ordem universal
advinda de um princípio ou de uma vontade superior
à própria vida.
ao desacreditar que a vida é redutível a seus proces-
sos químico-físicos e acreditar que é algo mais do que
a soma de todos os seus aspectos, Canguilhem reincide
em um vitalismo epistemologicamente contraditório,
mas compreensível, tendo-se em vista os efeitos éticos
que o objetivismo da época devia engendrar. de alguma
maneira, para ele a vida se tornou inobjetivável. Por
isso a pretensão da Medicina em objetivar a questão do
patológico e do normal deveria ser combatida.
Vale lembrar que nenhum estudioso da década de
1940 fazia as experiências que atualmente se fazem, na
tentativa de manipular a vida. Houve com freqüência,
nesse período crítico da história, experimentos de cunho
eugenista e de efeitos sociais devastadores. Hoje, conhe-
cemos o código genético, fazemos experiências entre
espécies e a Medicina, sem dúvida, foi muito beneficiada
com tais avanços. a idéia da vida artificial passa a ter
um sentido que na época não existia. os limites entre
o artificial e o natural hoje estão cada vez mais turvos.
Se as idéias de dagognet parecem mais pragmáticas que
as de Canguilhem, é preciso que seja lembrada a época
em que foi escrita a sua obra-mestre. o próprio autor
reconhece que suas idéias se modificaram enormemente
desde La raison et les remedes (1964).
No prefácio de georges canguilhe: philosophe de la
vie, uma questão importante introduz as discussões do
livro: por que o jovem filósofo teria escolhido, sem in-
tenção de exercê-la, o domínio da Medicina? dagognet
sugere que isso tenha se dado pelo interesse inicial do
mestre por auguste Comte, pela insatisfação que sentia
diante das idéias de ordem e progresso que atravessavam
o século 20 e, ainda mais, pela relevância que as inves-
tigações sobre o corpo vivo tinham para ele. Contra o
positivismo da época, Canguilhem defende a concepção
de corpo como uma ‘potência criativa’ que contém sua
normatividade vital. a vida, para ele, tem sua base na
idéia de normatividade, conceito que usa contra as ins-
tituições que queriam ‘discipliná-la’ ou contra os saberes
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203CZErMaK, S.a. • François dagognet, por uma nova filosofia da doença
objetivistas e reducionistas que tentavam controlá-la. a
Medicina parece ter sido fundamental para o esclareci-
mento do positivismo experimental do conhecimento
(através do hospital e do laboratório) e seus limites, ou
seja, o esquecimento do corpo doente e da experiência
da doença à qual o sujeito resiste e através da qual se re-
nova. Nessa época, marcada pela tradição positivista, era
como se coubesse apenas ao filósofo lembrar o médico
da questão essencial: interrogar-se sobre o que significa
estar doente (dumas, 2005, p. 263).
Esse rebelde escolheu a Medicina porque, de um lado, ele precipita o começo de uma importante cisão entre a saúde e aqueles que dela tratam; de outro, percebe no fundo desse problema a filosofia maior do corpo, da existência e da liberdade. Enfim, essa disciplina lhe permite abordar uma questão que lhe é essencial, a da técnica, da instrumentação e da aplicação real. Ora, o médico valoriza a eficácia. (dagognEt, 1997, p. 51).
Como era de se esperar, o livro privilegia esse con-
ceito central do projeto canguilhemiano de normativi-
dade, mostrando como essa noção tornou-se complexa
e foi enriquecida ao longo de sua obra (sobretudo com
as contribuições do campo da genética) em oposição a
outras perspectivas. trata-se de uma nova filosofia do
corpo, como afirma dagognet, diferente do reducio-
nismo da teoria molecular e de toda Medicina clássica,
construída sobre três eixos complementares: um corpo
dialetizado, um corpo semafórico e um corpo rebelde.
Canguilhem sugere que o corpo não advém de
uma única extensão e, portanto, não pode ser reduzido
a um objeto composto por várias partes que se somam
entre si. o corpo só pode ser compreendido em uni-
dade e somente através dessa concepção holística é
possível entender a potência integradora, compensadora
e regeneradora da totalidade que comanda as partes
e as absorve. o teórico parece ter ultrapassado uma
concepção uniformizada do corpo mostrando que ele
mantém suas diferenças ao mesmo tempo em que as
integra. dagognet acolhe uma noção semelhante do
corpo dialetizado, ou seja, é um todo que não deixa de
se fracionar para melhor atender ao conjunto e torná-lo
mais rico em sua diferenciação. as partes do corpo, no
entanto, só podem funcionar se o conjunto, aquele que
as integra e recompõe, não estiver alterado (dagognEt,
1997, p. 174).
de acordo com dagognet, foi Canguilhem quem
introduziu no campo da Medicina a idéia de um corpo
que não cessa de emitir todo tipo de sinal. dagognet o
chamará de corpo ‘semafórico’. a partir de O Normal
e o patológico, os corpos doentes ganham outra impor-
tância; o pathos irá preceder o logos e, conseqüente-
mente, a clínica passará a ser soberana. o autor não só
seguiria de modo fiel esse princípio, como o ampliaria
afirmando que “ao médico caberá a tarefa de aprender
e colher os menores sinais que o corpo entrega. a ele
cabe saber questioná-lo e interpretá-lo” (dagognEt,
1997, p. 179).
Provavelmente pelo fato de ter permanecido vivo
ao longo de tantas transformações, o saber clínico
para dagognet em muito se beneficia das técnicas que
sofisticam o olhar e a escuta do médico. dagognet se
preocupa em mostrar o quanto a clínica progrediu com
os aparelhos de captura, de gravação e visualização em
tela, tornando mais claro aquilo que antes precisava ser
dissecado. Se também para Canguilhem o corpo emite
sinais que devem ser minuciosamente colhidos e inter-
pretados, dagognet escancara um elogio à tecnologia
médica e à instrumentação que permite dispensar o
dilaceramento do corpo para aperfeiçoar a leitura mais
acurada e objetiva de suas perturbações. Por mais que a
exteriorização possa parecer objetivação, dagognet não
deixar de frisar que a doença cardíaca, por exemplo,
nunca poderá ser reduzida a um simples traço elétrico,
ou a um eletrocardiograma. Mesmo que o laboratório
seja indispensável, não há razão para que se exclua a
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 200-206, jan./dez. 2008
204 CZErMaK, S.a. • François dagognet, por uma nova filosofia da doença
‘subjetividade’. de acordo com a idéia canguilhemiana,
é exatamente devido à existência de doentes que existe
uma doença e não o contrário. o doente é bem mais
do que sua estrutura físico-química. Mas, para equili-
brar a valorização da instrumentação e retomar a lição
do mestre, dagognet profere um elogio ao periférico,
acreditando não haver afecção grave que não possa se
projetar na pele.
É em relação ao corpo rebelde que o caminho des-
ses dois filósofos parece se bifurcar. Em seus primeiros
trabalhos, Canguilhem opõe a potência afirmativa e
singular do corpo a tudo aquilo que a captura para,
dessa forma, inseri-lo nas normas. Ele se faz advogado da
‘vitalidade transbordante do corpo’ em oposição à lógica
corretiva e normalizante dos profissionais da saúde, dos
educadores e higienistas. a relação de conflito que há
entre a normatividade não submetida às normas disci-
plinares está, para dagognet, no centro das contradições
do campo médico. Ele não compactua com essa idéia,
mas defende justamente que as normas disciplinares de
Canguilhem muitas vezes servem à normatividade, e
não parece concordar que a Medicina seja uma réplica
da vida. a fundação da Medicina para dagognet parece
sim estar na vida, mas não deixa de estar na ciência, na
política, no social, na filosofia.
Canguilhem toma partido do ser vivo em seu
caráter resistente e reativo ao examinador que quer
compreender as razões do seu comportamento. Ele se
posiciona contrário às técnicas de dosagem e aos exa-
mes numéricos da época em prol de uma singularidade
que transcenderia a qualquer tabela de medidas. Claro
que ele não se opõe a uma abordagem racional da cor-
poreidade, mas à rigidez dogmática de uma razão que
submeteria o corpo a teorias pré-existentes. a crítica de
dagognet é justamente que Canguilhem, como filósofo
da vida, mobiliza a razão, purifica-a de seu positivismo,
mas termina propondo uma espécie de ‘vitalismo racio-
nal’. Esse oximoro reflete bem a tensão presente nessa
filosofia entre um lado obscuro, irredutível à razão, e o
poder analítico que exige inteligência ou racionalidade
para ser alcançado.
Encantado como é pela química, dagognet defen-
de outra idéia de organismo. o corpo não é, para ele,
rebelde à razão, tampouco o corpo doente é inacessível,
pois permanece idêntico em sua impermanência:
[...] não só seus principais constituintes oscilam apenas dentro de limites bastante estreitos [...] mas, sobre-tudo o código matricial, aquele que marca ou sela fundamentalmente o ser, permanece o mesmo. Não mudamos. (dagognEt, 1997, p. 268).
E é por isso que a razão deve ser astuta ao criar meios
de, sem trair a si própria, entrar nessa lógica do corpo vi-
vente que se auto-constitui ao lutar contra os obstáculos.
Isso não significa, para dagognet, desqualificar a expe-
riência do doente. Estar doente é perder a sua liberdade
e viver na dependência. “a doença é a dor, eu percebi
que como filósofo eu não tinha nenhuma idéia da dor,
da morte e do sofrimento” (dagognEt, 1996, p. 21).
Para ele, a enorme adesão às idéias de Foucault acentua
o vitalismo rebelde da filosofia de Canguilhem.
POR UMA FILOSOFIA DA DOENçA
dagognet não se propôs a refletir sobre a doença,
mas a partir da doença e de seus efeitos. Em Pour une
philosophie de la maladie (1996), ele contextualiza o
campo do saber, criticado na primeira parte de O normal
e o patológico. Explica, ainda, que a filosofia da Medici-
na existe desde Hipócrates, no século 4 antes de nossa
era, e que a tradição hipocrática influenciou por muito
tempo pensadores, como auguste Comte, e clínicos,
como François Broussais, quanto ao entendimento da
doença e quanto à sua filosofia.
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205CZErMaK, S.a. • François dagognet, por uma nova filosofia da doença
desde o fim do século 19, duas escolas principais
se desenvolveram. de um lado, a escola de fisiologia
alemã, sintonizada com os trabalhos de François Ma-
gendie e Claude Bernard, que denunciava a necessidade
de hospitais e laboratórios, apoiava o diagnóstico e
seus instrumentos. a doença aqui é objetivada tanto
quanto possível. de outro lado está a Medicina hospi-
talar, escola dos grandes clínicos (onde se encontram
rené laennec e Xavier Bichat), que prioriza o olhar do
médico, a decifração dos sinais, a tomada da história
do doente. Esta última, qualificada como humanista,
desenvolveu-se com mais força na França após a revo-
lução Francesa (1789-1799) e se manteve até o século
20, por exemplo, com rené leriche. Segundo dagognet,
leriche revolucionou a cirurgia ao abrir espaço para a
instrumentação sem se afastar do doente (dagognEt,
1996, p. 12-13).
trata-se de um confronto entre a escola instrumen-
talista dos técnicos, que desvaloriza o olhar médico e a
escuta do doente em prol de sua objetivação, e a escola
semiológica, que prioriza a leitura dos sinais. dagognet
questiona para que lado é preciso pender para que se
defina e compreenda realmente a patologia. a maior
parte dos objetivistas se fixou na doença e deixou de
lado o doente. observa-se, no entanto, com alguma
complacência, que foi um momento importante para
a anatomia patológica, para a bioquímica e para a
parasitologia, ainda que o sujeito tanto quanto o seu
lado social (a maneira de se viver, o meio, os riscos)
fossem minimizados. Esse frenesi tecnicista, como ele
chama, de importância em certo aspecto, atingiu seus
limites. Então, foi preciso voltar a atenção ao subje-
tivo. daí surgem questões fundamentais como: onde
situar a fronteira entre a irregularidade (a anomalia, a
singularidade) e a anormalidade (o patológico), assim
como outras que giravam em torno da oposição entre
o objetivo e o subjetivo, o resultado cifrado e a dis-
função. No século 20, à medida em que a Medicina se
tornava cada vez mais sofisticada e eficaz, os problemas
também ganharam complexidade e fizeram com que se
repensassem a essência do ato médico e a velha relação
médico-paciente. No âmbito da filosofia da doença,
dagognet descreve a luta que sempre existiu entre suas
correntes de pensamento.
ainda nesse livro (1996), o autor descreve Can-
guilhem como o fortalecedor da tradição francesa
neste campo, aquele que mostrou a instrumentação e
as análises biológicas da técnica reportadas ao corpo
do doente. dagognet posiciona O normal e o patológico
enquanto marca dessa perspectiva humanista e ressalta
a crítica canguilhemiana dirigida a uma concepção
ontológica da doença e da saúde contrapondo-a ao
foco sobre a normatividade individual presente tan-
to no estado patológico quanto no estado de saúde.
apesar da crítica que faz ao vitalismo de Canguilhem,
esses conceitos continuam sendo centrais em todo o
seu percurso. também concorda com a contraposição
que o mestre sugere à visão puramente quantitativa
da doença e sua descentralização em partes do orga-
nismo, falando sobre o caráter histórico e singular de
toda doença. Propõe que o corpo seja colocado entre
a clínica e a instrumentação, ou seja, considera-se
partidário da Medicina objetivada, mas sem deixar de
reconhecer seus limites.
Com relação ao status ontológico da doença,
questão filosófica que dividiu o pensamento médico
desde a antigüidade, o discurso médico oscilou entre
duas concepções distintas. Uma que se propunha a
reificar a doença e outra chamada tradicionalmente
de ‘dinâmica’ ou, depois do século 19, de ‘fisiológica’.
dagognet acredita que tais concepções não consti-
tuem uma real oposição, mas uma espécie de conluio
entre a idéia segundo a qual o estado de doença é
eminentemente individual e a versão científica da
Medicina. Em síntese, o que esse pensador propõe
é que o estado da doença não seja compreendido
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 200-206, jan./dez. 2008
206 CZErMaK, S.a. • François dagognet, por uma nova filosofia da doença
unicamente a partir da relação da Medicina com o
indivíduo doente, visto que a mediação da sociedade
será sempre fundamental.
Para concluir, vale reforçar que além da riqueza
histórica e teórica que as filosofias desses dois grandes
pensadores apresentam, a importância de ressuscitar
tais discussões está em se pensar o processo terapêu-
tico, seja ele de que ordem for, no sentido de uma
recuperação da normatividade, diferente da orientação
de normalidade que o presente nos traz preponde-
rantemente. a normatividade existe na saúde ou na
doença, e esta última não pode mais ser compreendida
simplesmente como um mal a ser erradicado. apesar
das contradições apontadas por dagognet no vitalismo
materialista canguilhemiano, não há dúvida de que
valorizar a normatividade e não a normatização é a
melhor opção para os agentes de saúde, ou melhor, os
intérpretes da vida, quanto aos efeitos éticos, morais
e clínicos de tal perspectiva.
R E F E R Ê N C I A S
canguilhEm, g. O normal e o patológico. 4. ed. rio de Janeiro: Forense, 1995.
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______. Histoire de la folie à l’âge classique. Paris: Plon, 1961.
recebido:abr./2008
aprovado: out./2008
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 207-219, jan./dez. 2008
artIgo INtErNaCIoNal / INTERNATIONAL ARTIcLE 207
Modelo de salud colombiano: exportable, en función
de los intereses de mercadocolombian health model: exportable, depending on the interest of the market
RESUMEN Este artículo describe los aspectos relacionados con la estructura,
financiación y funcionamiento del modelo de salud colombiano y los resultados
sanitarios que ha producido luego de 14 años de implementación. La información
presentada es principalmente secundaria, proveniente de fuentes institucionales y
académicas del país y el análisis hace parte de los procesos de reflexión académica
y política que impulsa el Movimiento Nacional por la Salud y la Seguridad
Social. Se revela la acción devastadora del modelo de salud colombiano sobre las
estructuras y funciones públicas de la salud y la violación sistemática del derecho
a la salud de la población.
PALABRAS-CLAVE: Sistema de Salud; Derecho a la salud; Mercado;
colombia.
ABSTRACT This article describes the aspects related with the structure, financing
and operation of the colombian health model and the sanitary results after 14
years of implementation. The information presented is mainly from secondary
institutional and academic sources of the country. The analysis is part of an
academic and political reflection which promotes the National Movement for
Health and the Social Security, from witch the author is the political spokesman.
It will also show the devastating action of the colombian health model over its
public health functions and structures, and the systematically violation of the
health right.
KEYWORDS: Health System; Right to health; Market; colombia.
Mauric io torres tovar 1
1 Médico, Salubrista ocupacional,
Coordinador de la región andina
de la asociación latinoamericana de
Medicina Social (alamEs), Vocero
Político del Movimiento Nacional
por la Salud y la Seguridad Social de
Colombia.
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208 toVar, M.t. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado
I N T R O D U ç Ã O
Colombia fue una de las naciones latinoamericanas
más juiciosas en acoger e impulsar, desde comienzos de
los años 1990 del Siglo XX, el conjunto de orientaciones
dadas por el Banco Mundial en materia de reformas
económicas, sociales y políticas, en el marco de la glo-
balización neoliberal que propuso la liberalización del
mercado y el ajuste estructural del Estado.
En este sentido, Colombia impulsó un conjunto de
reformas tanto del aparato estatal (reforma judicial y admi-
nistrativa), como del sector económico y social (reformas
tributaria, educativa, laboral, de seguridad social y de sa-
lud) y avanzó en una reorientación del Estado llevándolo
a un papel más de regulador de mercado que de oferente
directo de servicios1. Esto produjo cambios profundos en
la esfera del mundo del trabajo generando flexibilización
laboral con efectos de precarización de las condiciones de
trabajo, mayor desempleo, crecimiento importante de la
economía informal, arrastre hacia la pobreza y la miseria
de amplios sectores de la población y pérdida de soportes
de protección social con los que se contaba.
En el campo específico de la seguridad social en
salud, Colombia acogió la orientación de reforma a
este sector propuesta por el Banco Mundial (banco
mundial, 1993), que tenía como eje central la reforma
del financiamiento de los servicios de salud en cuatro
aspectos básicos: a) el cobro de tarifas a los usuarios
de servicios estatales, b) la provisión de seguros frente
a los riesgos económicos relacionados con la atención
médica, c) el empleo eficiente de recursos no guber-
namentales y d) la descentralización de los servicios
gubernamentales.
Bajo esta égida Colombia, en su reforma Cons-
titucional de 1991 definió la salud como un servicio
público permanente (sin reconocimiento explícito de
su condición de derechos humanos), que puede ser
prestado por el Estado o por los particulares; base cons-
titucional sobre la que se reestructuró administrativa y
financieramente la Seguridad Social en el país a través
de la ley 100 de 1993.
la imposición de la nueva organización de la salud
en Colombia no se dio sin previa lucha. Para avanzar
en este modelo, la tecnocracia colombiana, formada
principalmente en Harvard y puesta al servicio de la
política privatizadora de salud, desarrolló una batalla
de ideas para ganar terreno ideológico en el campo de
la salud, esgrimiendo el argumento de que hay recursos
insuficientes para grandes demandas de salud, por lo
cual se requería un modelo regulador, y el mejor para
ello es el mercado, en la lógica de la oferta y la demanda
que regula el consumo, distribuye adecuadamente y con
calidad el servicio, y hace uso eficiente de los recursos.
Estas tesis permitieron que los empresarios de la
salud ganaran en la batalla de ideas un asunto fun-
damental que ha logrado que el modelo de salud en
Colombia continúe incólume luego de 14 años, a pesar
de sus efectos devastadores: hacer entender y creer que
la salud es un bien privado de consumo que se resuelve
individualmente en un mercado de servicios de atención.
así, se despojó a la salud de su condición de derecho
humano fundamental, deber de Estado.
Para reafirmar la experiencia como un modelo de
salud que enfrenta adecuadamente los problemas de
ineficiencia, baja calidad e inequidad, se han adelantado
1 Esta orientación internacional respondió a la necesidad de la recomposición del modelo de acumulación capitalista, en lo cual los servicios públicos se empe-zaron a ver como un campo para explorar y explotar por el mercado, lo que implicó reconocer al Estado de bienestar, ya no como un salvador sino como un gran competidor. tal fue el entendimiento de fondo, que llevó a que de manera específica en el sector Salud, el aseguramiento y la prestación de los servicios de atención a la enfermedad fueran incorporadas en la lógica de mercado.
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 207-219, jan./dez. 2008
209toVar, M.t. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado
diversas estrategias, una de las mas sobresalientes fue la
de haber ubicado a Colombia en el informe mundial
de salud del año 2000 como el país con mayor equidad
financiera en salud en el mundo (oRganización mun-
dial dE la salud, 2000). Si estos son los resultados,
pues es claro que se debe acoger la experiencia exitosa y
debe impulsarse en muchos países, como efectivamente
viene ocurriendo2. El modelo así, ha ganado legitimidad
exportable.
En este escrito y bajo una postura de deber ético, se
describe la estructura del modelo de salud colombiano y
sus impactos, que evidencian por que este modelo de salud
no debe ser acogido por los pueblos de américa latina
y el mundo, dada su acción devastadora sobre las estruc-
turas y funciones públicas de la salud y por su violación
sistemática del derecho a la salud de la población.
EL MODELO DE SALUD COLOMBIANO
En desarrollo del mandato de la Constitución
Política de 1991, se adelantó el proceso de reforma a
la seguridad social que llevó a la expedición de la ley
100 de 1993 mediante la cual se creó el Sistema de
Seguridad Social Integral, con cuatro componentes:
pensiones, salud, riesgos profesionales y servicios
sociales complementarios. Este sistema optó por un
modelo de aseguramiento individual como vía para
alcanzar la universalización de los servicios de salud y
por la creación de un mercado de servicios de atenci-
ón para superar los problemas de calidad y eficiencia,
bajo la lógica de regulación de mercado vía oferta y
demanda.
a la ley 100 de 1993 subyace una comprensión
de la salud como un bien de consumo privado, respon-
sabilidad directa de los individuos, quienes acceden
a ella a través de un mercado de servicios, en donde
el Estado, a través de una política de focalización de
subsidios, incorpora a los miembros de la comunidad
que no tienen capacidad económica. Esta política que
ha orientado la salud en el país durante los últimos 14
años ha consolidado la concepción de salud como una
mercancía, alejando las políticas públicas de la compren-
sión de la salud como un derecho humano que debe
ser garantizado por el Estado a todos los ciudadanos
(toRREs; PaREdEs, 2005).
Organización
El Sistema general de Seguridad Social en Sa-
lud (SgSSS) se organiza en la lógica de un seguro
popular de salud, que implica una vinculación a él
vía aseguramiento individual a través de una cuantía
que se paga (cotización), bien por lo cual se tiene
capacidad de pago o que se recibe un subsidio para
el pago. Esto implicó que el seguro público de salud
fue sometido a una desintegración en sus compo-
nentes de administración y prestación de servicios,
para lo cual se creó un mercado para administrar este
seguro y articularlo con el de prestación de servicios.
a su vez, implicó la generación de mecanismos de
regulación de mercado para facilitar un desarrollo
armónico de tales mercados (gRuPo Economía dE
la salud, 2002).
Para esto, el SgSSS generó una organización de la
oferta de los servicios del aseguramiento y de la prestaci-
ón de los servicios de atención con criterios de mercado
y separó las funciones de afiliación, administración, pres-
tación y regulación. Esto implicó el surgimiento de un
conjunto de actores o agentes de mercado responsables
de estas funciones:
2 El caso de república dominicana y recientemente México.
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210 toVar, M.t. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado
• las aseguradoras denominadas Empresas
Promotoras de Salud (EPS), bien del régimen Con-
tributivo (EPS-C) o del régimen Subsidiado (EPS-S)
quienes están encargadas de realizar la afiliación de los
asegurados, administrar los recursos del aseguramiento
y contratar la prestación de los servicios de atención. En
este sentido las EPS hacen una función de articulación
entre los usuarios que se aseguran con las instituciones
que les prestan los servicios;
• las Instituciones Prestadoras de Servicios de
Salud (IPS), quienes prestan los servicios de salud defini-
dos en un paquete denominado PoS (Plan obligatorio
de Salud), según grados de complejidad de la atención
(desde el primer nivel el menos complejo, hasta el cuarto
el más complejo);
• las Empresas Sociales del Estado (ESE), hos-
pitales de carácter público que debieron convertirse
en empresas autosostenibles financiera y administra-
tivamente, para lo cual como cualquier IPS venden
servicios y compiten en el mercado por los contratos.
Cuando muchas de ellas no resistirán a la competencia,
se quebraron, por lo que el patrimonio público que el
Estado y la sociedad conservaban en salud, han venido
pasando a manos privadas (PaREdEs, 2000);
• al Estado se le asignó la función de coordinación
y modulación del sistema, de promover la incorporación
de las personas que no pueden pagar su seguro y de realizar
acciones de impacto colectivo que poseen externalidades
(es decir aspectos que no controlan el propio sector sa-
lud), inmersas en el Plan de Salud Pública (anteriormente
conocido como Plan de atención Básica, PaB).
la incorporación al SgSSS se hace vía afiliación al
aseguramiento según la condición socioeconómica de
la persona a través de varias vías:
• por el régimen contributivo, si se tiene capa-
cidad de pago, bien como trabajador formal, servidor
público, pensionado o trabajador independiente,
afiliándose a las EPS-C, recibiéndose un paquete de
servicios del régimen contributivo (PoS-C) a través
de las IPS;
• por el régimen subsidiado, a través de las
EPS-S (antes denominadas administradoras del ré-
gimen Subsidiado – arS), mediante el subsidio del
Estado (subsidio a la demanda) que se recibe por la
condición socioeconómica de pobre, atribuido por
un sistema de identificación de beneficiarios (sisbEn),
subsidio que puede ser completado si clasificado en
el nivel 1 o 2 del sisbEn o si un subsidio parcial esta
clasificado en el nivel 3 de sisbEn. reciben un paquete
de servicios de régimen subsidiado (PoS-S) si es sub-
sidio completo o reciben atención a las enfermedades
crónicas (denominadas enfermedades de alto costo) a
través de las IPS y ESE;
• cuando las personas no pueden acceder al régi-
men contributivo por su incapacidad de pago y han sido
identificados como beneficiarios por el sisbEn pero no
alcanzan los subsidios para cobijarlos, quedan en con-
dición de población pobre no asegurada (inicialmente
llamada vinculada) y son atendidos por los municípios
a través de las Empresas Sociales del Estado (ESE) o por
IPS privadas que tengan contrato con los municípios,
con los recursos del subsidio a la oferta en salud (subsi-
dios dados directamente por el Estado a los municipios
para los contratos con los hospitales públicos);
• hay un grupo de personas que pertenecen
a regimenes de excepción, es decir que cuentan con
su propio sistema de seguridad social. Estos sectores
son de las fuerzas militares y el sector público de la
educación.
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211toVar, M.t. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado
Hay una franja poblacional que el SgSSS no tiene
en cuenta, que en el lenguaje popular se le ha denomi-
nado población ‘sandwich’, por no tener capacidad
adquisitiva para vincularse al régimen contributivo,
pero que no son lo suficientemente pobres para obtener
el subsidio, y por lo tanto no reciben ningún tipo de
beneficio por parte del SgSSS, a no ser que lo paguen
completamente de su bolsillo. Esta población es com-
puesta principalmente por personas de clase media
desempleadas, grupo que viene creciendo dado las
reestructuraciones laborales y los cambios en el mundo
del trabajo en Colombia.
En relación al componente de beneficios que brin-
da el SgSSS, el cotizante y su núcleo familiar reciben
un paquete de servicios en salud denominado PoS, lo
cual es diferenciado, siendo más amplio para el régimen
contributivo que para el subsidiado y más restringido
para los que reciben el subsidio parcial.
El contenido del PoS se define teniendo como
criterio el perfil epidemiológico de la población co-
lombiana, el ciclo de vida, la disponibilidad tecnoló-
gica para su atención y el costo de efectividad de los
tratamientos.
El PoS incluye servicios de promoción, pre-
vención, atención de la maternidad y la enfermedad
general, diagnóstico, tratamiento, rehabilitación física
y provisión de medicamentos esenciales en su presen-
tación genérica. Para el régimen contributivo incluye
intervenciones en los tres niveles de atención en salud,
mientras que el PoS para los afiliados al régimen sub-
sidiado sólo incluye intervenciones del primer nivel de
atención, excepto para mujeres embarazadas y niños
menores de un año cuyas intervenciones incluyen todos
los niveles de complejidad. Para aquellos que reciben
subsidio parcial el PoS se restringe a la atención a un
grupo de enfermedades de alto costo (enfermedades
catastróficas como las denomina la ley 100, referidas a
un conjunto de enfermedades principalmente crónico
degenerativas, que demandan altos recursos para su
atención).
las EPS reciben un pago por la garantía del PoS al
asegurado denominada unidad de pago por capitación
(UPC), que es un pago anual por persona dependiente
del ciclo vital de ella, siendo mayor, por ejemplo, cuando
hay mayor riesgo de enfermar como en el caso de la
población infantil, de la población adulta mayor, o de
las en mujeres en edad fértil.
En este aspecto de beneficios del SgSSS se expresa
de manera clara parte de las inequidades que genera,
en tanto a la población afiliada al régimen contribu-
tivo le brinda un paquete de servicios que es mayor
en comparación al que recibe la población afiliada al
régimen subsidiado, y ni que decir en relación al que
recibe la población con subsidio parcial (que recibe
un pequeñito PoS como popularmente se le viene
diciendo).
Hay otro conjunto de acciones que las EPS deben
garantizar relacionadas con promoción de la salud y pre-
vención de la enfermedad (PyP), acciones no relaciona-
das directamente con la atención de la enfermedad y que
buscan precisamente mantener la salud de las personas.
Estas acciones han entrado en la lógica de mercado, por
lo cual son reconocidos que lo desarrollado en PyP es
muy débil y lo pago por ello se convierte más bien en
un rubro de ganancias para las EPS, como lo mostró la
defensoría del Pueblo al evidenciar el incumplimiento
de las aseguradoras en estos aspectos (dEfEnsoRía dEl
PuEblo, 2003).
Para garantizar la prestación del PoS, las EPS
contratan con las IPS o ESE a través de mecanismos de
mercado. Entonces, se establecen relaciones contractu-
ales entre ellas, en las cuales se observa una lógica, por
la cual las EPS buscan sacar el mejor partido. En ese
sentido las EPS han incorporado variantes para la con-
tención de costos como la contratación por capitación
(se contrata la atención de un número determinado
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212 toVar, M.t. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado
de personas por un monto fijo de dinero, mecanismo
a través del cual le traslada el riego a las instituciones
prestadoras de servicio); glosan los servicios, es decir
no aceptan las condiciones en que las prestadoras han
brindado un servicio y por lo tanto no le reconocen el
pago; lentifican el flujo de pago (pueden pasar más de
seis meses para que se les pague los servicios prestados
a las IPS y ESE). Esto lleva a su vez a que las IPS y ESE
generen barreras de acceso para contener costos y evitar
asumir el riesgo3.
Complementario a las acciones del PoS se define
un conjunto de acciones establecidas en el Plan de Salud
Pública (antes PaB). Este plan aborda un conjunto de
intervenciones dirigidas a la colectividad o a los indivi-
duos pero que tienen altas externalidades, o sea asuntos
que no son de exclusivo control del sector salud, tales
como la información pública, educación y fomento de la
salud, el control de consumo de sustancias psicoactivas,
complementación nutricional, planificación familiar,
control de vectores, entre otras.
la organización del SgSSS en Colombia descrita
respondió a un enfoque llamado pluralismo estructurado
o como otros mencionan de competencia o mercado
regulado, bajo el precepto y la comprensión que la salud
es un bien privado de consumo que debe regularse en
una oferta de mercado, lo que garantiza su distribución
adecuada, su calidad y el uso eficiente de los recursos.
Producto de este modelo se organizó el SgSSS en tor-
no a cuatro funciones básicas: articulación, prestación,
financiación y modulación, por lo cual se procura la
integración de todos los agentes en torno al suministro
del plan único de salud (PoS), financiado con un pago
por capitación UPC (fREnK; londoño, 1997).
En este modelo, las EPS son el centro financiero
al recaudar la cotización, descontar la capitación cor-
respondiente a cada uno de sus afiliados y son los que
administran el plan de salud para estos mediante la
prestación directa o la contratación de servicios con otros
agentes. las EPS actúan en el marco de un contrato
público, son delegadas por el Fondo de Solidaridad y
garantía (fosyga) y hacen parte de un mercado alta-
mente regulado en el cual lo producto (PoS), el precio
(UPC) y ciertas pautas de la entrada y operación en
el sistema están determinadas por normas (gRuPo dE
Economía dE la salud, 2002).
Es claro que el SgSSS es un modelo de asegu-
ramiento público, lo cual separa las funciones de
aseguramiento, prestación y regulación, que genera un
conjunto de actores de mercado para estas funciones
y que establece un conjunto de mecanismos de regu-
lación del mercado, establecidos por el aseguramiento
obligatorio, el PoS, la UPC, el fosyga, la prohibición
de la selección del riesgo por parte del asegurador; la
prohibición de la selección adversa por parte del paciente
por medio de los tiempos mínimos para beneficios; y el
control del riesgo moral por parte de los usuarios por
medio de las cuotas moderadoras denominados coPagos
(hERnándEz, 2003a).
Bajo esta concepción y modelo se asume entonces
que el mercado regulado distribuye eficientemente la
provisión de servicios individuales, mientras el Estado
incorpora a los pobres al mercado a través de los subsi-
dios, vigila el cumplimiento de las reglas de mercado y
dispensa los servicios estrictamente públicos, es decir,
con altas externalidades ubicados en el denominado
Plan de Salud Pública (hERnándEz, 2003B).
tal separación, sustentada en la teoría económica
neoclásica, deja a los servicios de atención de enferme-
dades en calidad de bienes privados (los individuos están
dispuestos a pagar por ellos ya que satisfacen sus necesida-
3 tal situación en gran medida es responsable por el denominado paseo de la muerte, en donde una persona en una condición crítica de salud solicita atención y empieza a ser llevada de una a otra institución, que niegan el servicio por que no demuestra quien paga o que lo que se paga por ella no es suficiente para cubrir la condición clínica que se debe atender, hasta que se presenta una atención tardía o simplemente no se da, y la persona fallece. Paseos de la muerte que no son situaciones aisladas, y sí vueltos constantes, y son otros indicadores de la lógica mercantil de la política de salud.
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213toVar, M.t. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado
des particulares) y a las acciones colectivas de salud como
bienes públicos (son bienes que satisfacen necesidades de
muchas personas al mismo tiempo, es decir, tienen altas
externalidades y las personas no están dispuestas a pagar
por ellos, por lo cual deben ser financiados con recursos
públicos y ejecutados por el estado descentralizado), lo
que genera un proceso estructural de fondo impidiendo
una acción integrada e integral del SgSSS y lleva a que
no se garantice la salud como derecho humano para todas
y todos (hERnándEz, 2003B).
Financiación
En el SgSSS coexisten articuladamente, para su
financiamiento y administración, un régimen contribu-
tivo de salud y un régimen de subsidios en salud, con
vinculaciones mediante el fosyga.
El financiamiento del régimen contributivo se basa
en un esquema de aporte obrero patronales debiendo
cubrir los costos del PoS para todos los afiliados y sus
beneficiarios, y, además, realizar una contribución so-
lidaria para la financiación del régimen subsidiado. El
monto actual de la cotización, ajustado por la ley 1.122
de 2007, es del 12.5% del ingreso base de cotización
(IBC); en el caso de los trabajadores dependientes, el
8.5% lo paga el patrón y el 4% el trabajador; y en el
caso de los independientes, éstos pagan el 12.5% del
IBC que declaren.
El manejo de los recursos financieros está a cargo
del fosyga, el cual esta adscrito al Ministerio de la
Protección Social y se maneja mediante un encargo
fiduciario. Posee cuatro cuentas: compensación, solida-
ridad, promoción y eventos catastróficos. En la cuenta
de compensación se administra el régimen contributivo
y su saldo se determina por la diferencia entre los apor-
tes de los cotizantes, descontando 1.5 que se trasfiere
al régimen subsidiado, y el valor de la UPC que debe
reconocerse a las EPS por todos los afiliados.
El régimen subsidiado se financia mediante cuatro
fuentes de recursos que fueron definidos por la ley 60
de 1993 y luego ajustado por la ley 715 de 2001, el
sistema general de participaciones (que incluye la suma
del situado fiscal y la participación de los municípios en
los ingresos corrientes de la nación), los recursos de soli-
daridad del fosyga, el esfuerzo propio de las entidades
territoriales y los recursos de las cajas de compensación
familiar.
lo dinero del régimen subsidiado es administrado
bajo un esquema de subsidio a la demanda, que se con-
creta vía una política de focalización, la cual identifica
al beneficiario y le asigna el subsidio que le da ingreso
a la EPS-S y recibe un PoS-S.
CONSOLIDACIÓN DE INEQUIDADES E
INJUSTICIAS EN SALUD PROPIAS DEL MER-
CADO
En términos de los resultados sanitarios y sociales
que ha ocasionado este modelo neoliberal de salud
durante estos 14 años de implementación, se eviden-
cian un conjunto de efectos entre los que se destacan
(toRREs, 2003):
No se logró la Universalidad
la ley 100 de 1993 estableció que para el año 2001
existiría cobertura en salud para toda la población, con
igualdad de benefícios.
Según las cifras de aseguramiento presentadas por
el Concejo Nacional de Seguridad Social en su informe
de 2007 al Congreso de la república, se refiere que
hay 37.3% de la población total asegurada al régimen
contributivo, 46.9% asegurada al régimen subsidiado,
4.5% en regímenes especiales y 11.3% de la población
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214 toVar, M.t. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado
no tiene aseguramiento. Cabe distinguir que del por-
centaje de población asegurada en régimen subsidiado,
el 9.4% son subsidios parciales (concEJo nacional dE
sEguRidad social En salud, 2007).
Hay una diferencia ostensible entre cobertura
de aseguramiento y acceso real a los servicios. Estar
asegurado no es garantía de acceder a los servicios, por
el conjunto de barreras que el sistema ha desarrollado
de carácter administrativo, geográfico, económico y de
información (REstREPo; EchEvERRy; vásquEz; RodRí-
guEz, 2006).
Parte del problema de no lograr la cobertura uni-
versal obedece a que el aseguramiento se soporta sobre
el empleo formal y Colombia tiene un escenario de
desempleo del 13.6% (danE, 2007) y de informalidad
y subempleo que supera el 60%.
Lo privado se ha favorecido a costa de lo público
Uno de los efectos positivos más destacado por los
defensores del modelo está en relación con el incremen-
to de los recursos financieros para el sector salud, que
sin lugar a dudas es cierto; pero también es cierto que
estos recursos han servido para enriquecer las arcas de
las intermediadoras (EPS).
Es claro que hay un incremento de los recursos para
el sector salud, lo cual no redunda en aumentos suficien-
tes de la cobertura de salud, ni en resultados positivos
para la salud, lo que esta en relación con la evidencia de
que 30% de estos recursos quedan en la administración
de la intermediación que hacen las aseguradoras y 5%
va para infraestructura (lEguizamón, 2007).
El cambio central del esquema de financiamiento
pasando del subsidio de oferta al subsidio a la demanda
exigió a los hospitales públicos a generar sus propios
recursos para sostenerse económicamente a partir de
la venta de servicios, lo que acarreó un aumento de las
dificultades económicas para la mayoría de estas insti-
tuciones, llevando a muchas de ellas incluso al cierre
(por mencionar como ejemplo vergonzoso el cierre del
hospital emblemático de mayor nivel de formación
académica en el país, el Hospital San Juan de dios de
Bogotá), desestructurando de esta manera la red hospi-
talaria pública, base de la protección social en salud para
extensos sectores de la población colombiana.
La salud de la gente se deterioró
la situación de salud debe ser la manera adecuada
para medir los impactos de una política de salud. aun-
que al modelo se le pueden atribuir el mejoramiento en
indicadores tradicionales, como el de mortalidad mater-
na y infantil de manera global4, el énfasis del modelo en
la atención a la enfermedad ha reducido el componente
de salud pública, dejándolo contenido a un plan (PaB,
ahora plan territorial de salud pública), que esta en la
misma lógica del paquete de servicios.
Esto ha llevado a debilitar programas de promoción
y prevención tan importantes como los relacionados con
la prevención y atención a la fiebre amarilla, la tubercu-
losis y la malaria, enfermedades estas que han tenido un
crecimiento importante en el país (entre 1995 a 2000
la fiebre amarilla reportó un total de 21 casos; la tasa
promedio anual de tuberculosis pulmonar fue de 12 por
100.000 y el promedio anual de casos de malaria llegó
casi a los 100.000).
El componente de inmunización se ha debilitado
completamente, según información del Ministerio de la
Protección Social en 2003, 15 de los 32 departamentos
en el país no lograron alcanzar las coberturas promedios
del 90% para ninguna de las vacunas del plan ampliado
de inmunizaciones; en 2006 la cobertura en vacunación
fue de 86.5% para polio, 86.1% para dPt, 88.2% para
BCg, 86.1% para HEPb; 86% para HiB y 88.3% para
4 Si, por que en quinquenio 2000 a 2005 la tasa de mortalidad infantil nacional fue de 19 por 1.000 nacidos vivos, pero en el área rural fue de 24, de madres con educación superior fue 14, en madres sin educación fue 43, en estratos ricos 14 y en estratos pobres 32 (EncuEsta nacional dE dEmogRafía y salud, 2005).
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 207-219, jan./dez. 2008
215toVar, M.t. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado
tV (ministéRio dE la PRotEcción social/ oRganiza-
ción PanamERicana dE la salud, 2007). Coberturas
no útiles de vacunación, lo que ha generado la reemer-
gencia de enfermedades infectocontagiosas. Para citar
un ejemplo, en estos momentos en Colombia se vienen
presentando casos de rabia humana, un indicador que
evidencia que la salud pública con este modelo de salud
entro en la debacle.
Las inequidades en salud se incrementaron
los datos muestran que el sistema colombiano
aumentó las inequidades en salud, es decir que quienes
más necesitan menos reciben y quienes más tienen más
reciben. Según estudio hecho por el observatorio de
la Seguridad Social de la Universidad de antioquia en
junio de 2003 al desagregar la distribución porcentual
del subsidio en salud por condiciones socioeconómicas
se encontró que el decil 1 (los más pobres) recibían el
de 4.8%, mientras que para el decil 9 era del 12.8%
y para el decil 10 (los más ricos) era del 14%. al ob-
servar los denominados gastos de bolsillo se observó
también discriminaciones de índole económica ya
que mientras los hogares donde los jefes pertenecían
a regímenes especiales gastan el 5.7% de su ingreso,
los del régimen subsidiado gastan el 14% y los que no
están afiliados el 12.4% (gRuPo dE Economía dE la
salud, 2003).
En relación con el uso efectivo de los servicios de
salud las razones más frecuentes para no acudir a éstos
tiene que ver con los costos que generan, bien por las
cuotas moderadoras y los coPagos en el régimen con-
tributivo, o por el pago porcentual que se deben hacer
del costo de los servicios en el régimen subsidiado.
Quejas, reclamaciones y tutelas en salud por doquier
Son miles de casos de violación al derecho a la salud,
muchos de los cuales se evidencian en el conjunto de tu-
telas (recurso de amparo) para proteger este derecho.
asunto que se constata con el resultado de la inves-
tigación de tutela en salud de la defensoría del Pueblo
que arrojó un resultado impactante revelando que en
el país se presentan 60.000 tutelas en salud anuales.
la mayoría de acciones de tutela fueron interpuestas
por negación de servicios, por falta de oportunidad
en el tiempo para la atención y por la no entrega de
medicamentos, aspectos del PoS por el que las EPS
reciben pago a través de la UPC; lo que evidencia la gran
vulneración general del derecho a la salud ocurriendo
en Colombia, con sus obvias consecuencias para la sa-
lud, la vida y la integridad de la población colombiana
(dEfEnsoRia dEl PuEblo, 2007).
Precarización de las condiciones laborales de los
trabajadores del sector salud
El modelo de salud llevó a que el ejercicio de las
profesiones del área de la salud se rija por la lógicas de
mercado, por lo cual las aseguradoras y las prestadoras
interpretan el acto terapéutico como un componente
del negocio y por lo tanto ejercen sobre él las técnicas
administrativas para que sea lo más rentable posible
(toRREs, 2006a).
El sector de la salud también entró en el proceso de
flexibilización laboral. Miles de trabajadores despedidos
por la liquidación y reestructuración de las instituciones
públicas de salud, contratación temporal que se hace a
través de cooperativas intermediadoras precarizando
las condiciones de trabajo y disminuyendo el monto
salarial. la situación es tan grave que para cientos de
trabajadores formales del sector público se ha vuelto
común que pasen meses sin recibir salario. Esta situación
es reflejo de la lógica de mercado que contiene costos
y aumenta ganancias también por la vía del manejo de
lo laboral.
Un alto porcentaje de la fuerza de trabajo de salud
pasó a ser contratado por las aseguradoras y prestadoras
en modalidades temporales y de subcontratación (en ge-
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 207-219, jan./dez. 2008
216 toVar, M.t. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado
neral a través de una figura perversa llamada cooperativas
o asociaciones de trabajo que desvirtúa la esencia del
cooperativismo) y desde esta relación laboral subordi-
nada se imponen condiciones en aspectos básicos de la
relación del profesional de la salud con el paciente.
Esta situación ha implicado que las aseguradoras
y las prestadoras definan la forma como se contrata el
talento humano de salud, la manera como debe trabajar
en términos de tiempos y ritmos, que tipo de conductas
terapéuticas pueden o no pueden desarrollar y el monto
de pago de sus honorarios. Esto explica la imposición
sobre la mano de obra médica de ver un volumen alto de
paciente por hora (por lo cual los tiempos de consulta se
redujeron, sin tener en cuenta los estándares internacio-
nales) y de imponer ahorro de gastos por diversas vías:
solicitud del mínimo de exámenes clínicos y prescripción
del menor número de medicamentos.
Esto a su vez ha llevado a un deterioro de la calidad
de los servicios asistenciales. los casos de iatrogenia
ahora son múltiples.
Degradación de la institucionalidad pública de la
seguridad social
Este modelo desestructuró la institucionalidad
pública en seguridad social con que contaba el país. la
Caja Nacional de Previsión (caJanal) que cubrió la se-
guridad social de los trabajadores oficiales fue liquidada
hacia finales del año 2000. El Instituto de los Seguros
Sociales (ISS) se fue desmontando paulatinamente y en
el año 2003 solo tenía tres millones de afiliados estando
en 1996 con diez millones, asunto que fue inverso para
las EPS privadas (toRREs, 2006B) y en 2007 se le dio la
estocada final a partir de separar sus áreas administrativas
de las de prestación y empezarse a liquidar esas áreas de
prestación. En este año de 2008 se dará el proceso de
liquidación completo del ISS.
al caso de caJanal y el ISS, se suma al caso de
otras empresas del Estado que fueron vendidas o li-
quidadas. Por supuesto se entiende claramente que lo
que acá ha primado son los grandes flujos de capital
que atraviesan a estos sectores y que el sector privado
se los viene apropiando. No es gratuito que algunas
de las EPS privadas estén ranqueadas dentro de las
100 empresas más grandes de Colombia, con un
crecimiento financiero para el año 2003 del 18.26%,
cinco veces superior al promedio nacional que fue del
3.74% (infoRmE EsPEcial, 2004).
Ruptura del tejido social
El modelo esta fijado sobre una base de focalización
de subsidios para incorporar sectores pobres de la po-
blación al aseguramiento, y ha generado disputas entre
sectores sociales por el acceso a estos subsidios llevando a
rupturas dentro de las comunidades e incluso al interior
de organizaciones sociales, asunto que ha sido denun-
ciado por las propias organizaciones, especialmente del
campo y del sector indígena.
LOS AJUSTES DE TUERCA A LA POLíTICA
PRIVATIZADORA DE SALUD
durante estos años de implementación de la políti-
ca de estado en salud en Colombia a través de la puesta
en escena de la ley 100 de 1993, los gobiernos de turno
han buscado profundizar el modelo privatizador, que
de entrada no lograron, dada la resistencia de sectores
progresistas en el país.
Como estrategias para avanzar en esta vía se han
utilizado principalmente tres herramientas. de un lado,
la orientación del Banco Mundial de impulsar la nueva
concepción de protección social derivada del deno-
minado manejo social del riesgo, que lleva a impulsar
programas de transferencias en efectivo condicionadas
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 207-219, jan./dez. 2008
217toVar, M.t. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado
para los más pobres, junto con reformas estructurales
de los sistemas de salud hacia sistemas de aseguramien-
to individual con subsidio a la demanda para pobres.
Modelo acogido por Colombia y que viene impulsando
el país a través del programa de familias en acción y del
régimen subsidiado de salud.
de otro lado, la suscripción de un tratado de libre
comercio con Estados Unidos, que busca en el compo-
nente de salud profundizar la privatización del sector al
ahondar la concepción de la salud como bien privado
de consumo, ampliar el mercado de servicios de salud
a las multinacionales farmacéuticas, de aseguramiento
y de prestación de servicios tanto de atención, como de
educación en salud, alejando a la salud de su realización
como derecho humano y bien público. Este tratado de
libre Comercio (tlC) de ser firmado (afortunadamente
se detuvo su firma en el Congreso de Estados Unidos),
será sin lugar a duda un ajuste de tuerca en el proyecto
neoliberal de privatización de sectores como el de la
seguridad social y la salud (toRREs, 2006C).
Por último, por las presiones políticas de diversos
sectores se impulso una reforma a la ley 100 dada sus
limitaciones y efectos negativos, la cual quedo normada
en la ley 1.122 de 2007, la cual mantuvo el modelo de
aseguramiento e intermediación, garantizando el juego de
los actores privados tanto en el componente de asegura-
miento como de prestación de servicios a la enfermedad,
sin resolver los problemas de fondo que derivan de una
política con este tipo de orientación (toRREs, 2007).
CONCLUSIONES
la ley 100 de 1993 instauró en Colombia un siste-
ma de aseguramiento individual en salud que modificó el
papel del Estado en la prestación de estos servicios dando
mayor participación al sector privado; imponiendo a los
ciudadanos demostrar capacidad de pago para acceder
al aseguramiento, definiendo un conjunto mínimo de
intervenciones en salud (PoS), cambiando la concepción
de salud pública al restringirla al desarrollo de acciones de
bajo costo y alto impacto a partir de la lógica de factores de
altas externalidades y un cambio en los subsidios estatales
pasando de los de oferta a los de demanda, entregados
a través de una política de focalización que incorpora al
aseguramiento a sectores sociales marginales (caRmona;
molina; casallas, 2003).
la implementación de este modelo de salud de
corte neoliberal ha venido instalando un conjunto de
conceptos y procesos en el país en contra vía de la ga-
rantía del derecho a la salud, entre los que se destacan
(hERnándEz, 2003a; caRmona, 2006):
• se naturaliza que la salud es un bien privado de
consumo al satisfacer necesidades individuales por las
que se esta dispuesto a pagar;
• se separa la atención individual de la enfermedad
de la atención colectiva. los campos de la salud pública y
la promoción de la salud son marginados y disminuidos
en su potencial transformador de la situación de salud. En
esta lógica de mercado promocionar y prevenir la salud
no es rentable, el negocio esta en la venta de servicios
individuales de atención a la enfermedad;
• se producen exclusiones e inequidades propias
del mercado: hay una salud para ricos (medicina priva-
da); una salud para sectores asalariados (aseguramiento)
y una salud para pobres (redes públicas de salud);
• se produce una serie de barreras administrativas,
económicas, geográficas y culturales para el acceso a los
servicios, como mecanismos de contención de costos
para el aumento de las utilidades del actor de mercado
más beneficiado: las aseguradoras (EPS) privadas;
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218 toVar, M.t. • Modelo de salud colombiano: exportable, en función de los intereses de mercado
• el modelo de salud es homogenizador, no re-
conoce las diferencias en términos de territorio, clase,
etnia, género, diversidad sexual;
• el modelo se entroncó perfectamente con la
nueva orientación de comienzo de milenio del Banco
Mundial denominada manejo social del riesgo, que
promueve el enfrentamiento y resolución de las diversas
contingencias sociales, sanitarias y económicas a que están
expuestas las personas desde el ámbito individual y fami-
liar, reforzando que la protección social es un asunto de
mercado donde el Estado es regulador de este y asignador
de subsidios.
las orientaciones y resultados del modelo de salud
en Colombia que se han descrito, permiten decir que no
puede ubicarse como un modelo exitoso y con legitimidad
exportable y que más bien se ve la urgente necesidad de
establecer una política que coloque el bienestar y la pro-
moción de la salud en el centro y razón de ser del modelo
de salud, en una perspectiva universal y pública, y no
como un asunto subordinado a la lógica de los intereses
particulares del mercado, lo que debe permitir concretar
la realización del derecho a la salud y constituirse en un
componente de un modelo de protección social integral
que enfrente y supere el conjunto de inequidades sanita-
rias y sociales presentes en el país.
B I B L I O G R A F í A
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recebido: maio/2008
aprovado: out./2008
Saúde em Debate, rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 220, jan./dez. 2008
agradECIMENtoS / AcKNOWLEDgEMENTS220
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ElIaNE goNÇalVES
EMIKo EgrY
EStEla aQUINo
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JoSÉ JUSto StErZa
JoSÉ lUIS tEllES
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KarEN gIFFIN
KatHIE NJaINE
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a publicação dos trabalhos está condicionada a pareceres
do Conselho Editorial ad-Hoc estabelecido para cada número
da revista. Eventuais sugestões de modificações da estrutura ou
de conteúdo, por parte da Editoria, serão previamente acordadas
com os autores. Não serão admitidos acréscimos ou modificações
depois que os trabalhos forem entregues para a composição.
ModalIdadES dE tEXtoS
aCEItoS Para PUBlICaÇÃo
Artigos originais
1. Pesquisa: artigos que apresentem resultados finais de
pesquisas científicas, com tamanho entre 10 e 15 laudas.
2. Ensaios: artigos com análise crítica sobre um tema
específico de relevante interesse para a conjuntura das políticas
de saúde no Brasil, com tamanho entre 10 e 15 laudas.
3. revisão: artigos com revisão crítica da literatura sobre
um tema específico, com tamanho entre 10 e 15 laudas.
4. relato de experiência: artigos com descrições de expe-
riências acadêmicas, assistenciais e de extensão, com tamanho
entre 10 e 15 laudas.
Resenhas
Serão aceitas resenhas de livros de interesse para a área de
políticas públicas de saúde, a critério do Conselho Editorial.
os textos deverão apresentar uma noção do conteúdo da obra,
de seus pressupostos teóricos e do público a que se dirige em
duas ou três laudas.
Documentos e depoimentos
Serão aceitos trabalhos referentes a temas de interesse
histórico ou conjuntural, a critério do Conselho Editorial.
SEÇÕES da PUBlICaÇÃo
a revista está estruturada com as seguintes seções:
Editorial
apresentação
artigos temáticos
artigos de tema livre
artigos Internacionais
resenhas
depoimentos
documentos
aPrESENtaÇÃo do tEXto
Seqüência de apresentação do texto
os artigos podem ser escritos em português, espanhol
ou inglês.
os textos em português e espanhol devem ter título
na língua original e em inglês. os textos em inglês devem
ter título em inglês e português e o título, por sua vez, deve
expressar claramente o conteúdo do artigo.
a folha de apresentação deve trazer o nome completo
do(s) autor(es) e, no rodapé, as referências profissionais (con-
tendo filiação institucional e titulação) e o e-mail para contato.
Quando o artigo for resultado de pesquisa com financiamento,
citar a agência financiadora.
apresentar resumo em português e inglês (abstract)
ou espanhol e inglês, no qual fique clara uma síntese dos
propósitos, métodos empregados e principais conclusões do
trabalho com o mínimo de três e máximo de cinco descrito-
res (keywords), não ultrapassando o total de 700 caracteres
(aproximadamente 120 palavras). Para os descritores, utilizar
os termos apresentados no vocabulário estruturado (deCS),
disponíveis no endereço http://decs.bvs.br. Caso não sejam
encontrados descritores relacionados à temática do artigo, po-
derão ser indicados termos ou expressões de uso conhecido.
INStrUÇÕES aoS aUtorES - SaÚdE EM dEBatE
Em seguida apresenta-se o artigo propriamente dito:
a. as marcações de notas de rodapé no corpo do texto
deverão ser sobrescritas. Ex.: reforma Sanitária1
b. para as palavras ou trechos do texto destacados a critério
do autor, utilizar aspas simples. Ex.: ‘porta de entrada’.
c. quadros e gráficos deverão ser enviados em impressão de
alta qualidade, em preto-e-branco e/ou escala de cinza, em
folhas separadas do texto, numerados e intitulados correta-
mente, com indicações das unidades em que se expressam
os valores e fontes correspondentes. o número de quadros
e gráficos deverá ser, no máximo, de cinco por artigo.
d. os autores citados no corpo do texto deverão estar escritos
em caixa-baixa (só a primeira letra maiúscula), observando-
se a norma da aBNt NBr 10520:2001 (disponível em
bibliotecas). Ex.: Conforme Mario testa (2000).
e. as referências bibliográficas deverão ser apresentadas,
no corpo do texto, entre parênteses com o nome do
autor em caixa-alta seguido do ano e, em se tratando
de citação direta, da indicação da página. Ex.: (Miranda
Netto, 1986; testa, 2000, p. 15).
as referências bibliográficas deverão ser apresentadas
no final do artigo, observando-se a norma da aBNt NBr
6023:2000 (disponível em bibliotecas). Exemplos:
Carvalho, a.I. Conselhos de saúde, responsabilidade
pública e cidadania: a reforma sanitária como reforma do
Estado. In: Fleury, S.M.t. (org.). Saúde e democracia: a luta
do Cebes. São Paulo: lemos, 1997. p. 93-112.
Cohn, a.; Elias, P.E.M.; Jacobi, P. Participação popular
e gestão de serviços de saúde: um olhar sobre a experiência do
município de São Paulo. Saúde em debate, londrina (Pr),
n. 38, p. 90-93, 1993.
demo, P. Pobreza política. São Paulo: Cortez, 1991.
Extensão do texto
o artigo deve ser digitado no programa Microsoft®
Word, ou compatível, em página padrão a4, com fonte
times New roman tamanho 12 e espaçamento entre linhas
de 1,5.
Declaração de autoria e de responsabilidade
Segundo o critério de autoria do International Commit-
tee of Medical Journal Editors, os autores devem contemplar
as seguintes condições: a) Contribuir substancialmente para
a concepção e planejamento, ou análise e interpretação dos
dados; b) Contribuir significativamente na elaboração do
rascunho ou revisão crítica do conteúdo; c) Participar da
aprovação da versão final do manuscrito. Para tal, é neces-
sário que se assine a seguinte declaração de autoria e de
responsabilidade:
“Certifico que participei de forma suficiente na concep-
ção deste trabalho para tornar pública minha responsabilidade
pelo seu conteúdo. Certifico que o manuscrito representa
um trabalho original e que nem este manuscrito, nem outro
com conteúdo substancialmente semelhante de minha au-
toria foi publicado ou submetido a apreciação do Conselho
Editorial de outra revista, quer seja no formato impresso ou
no eletrônico.”
Conflitos de interesse
os trabalhos encaminhados para publicação deverão
conter informação sobre a existência de algum tipo de con-
flito de interesse entre os autores. os conflitos de interesse
financeiros, por exemplo, não estão relacionados apenas ao
financiamento direto da pesquisa, mas também ao próprio
vínculo empregatício.
Ética em pesquisa
No caso de pesquisas iniciadas após janeiro de 1997
e que envolvam seres humanos nos termos do inciso II da
resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (pesquisa
que, individual ou coletivamente, envolva o ser humano de
forma direta ou indireta, em sua totalidade ou partes dele,
incluindo o manejo de informações ou materiais) deverá ser
encaminhado um documento de aprovação da pesquisa pelo
Comitê de Ética em Pesquisa da instituição onde foi realizada.
No caso de instituições que não disponham de um Comitê
de Ética em Pesquisa, deverá ser apresentada a aprovação pelo
CEP onde ela foi aprovada.
Fluxo dos originais submetidos à publicação
todo original recebido pela secretaria do Cebes é
encaminhado ao Conselho Editorial para avaliação da
pertinência temática e observação do cumprimento das
normas gerais de encaminhamento de originais. Uma vez
aceitos para apreciação, os originais são encaminhados a
dois membros do quadro de revisores (pareceristas) da
revista. os pareceristas serão escolhidos de acordo com o
tema do artigo e sua expertise, priorizando-se conselheiros
que não sejam do mesmo estado da federação que os auto-
res. os conselheiros têm um prazo de 45 dias para emitir
o parecer. ao final do prazo, caso o parecer não tenha sido
enviado, o consultor será procurado e a oportunidade de
encaminhamento a outro conselheiro será avaliada. o
formulário para o parecer está disponível para consulta no
site da revista na Internet. os pareceres sempre apresenta-
rão uma das seguintes conclusões: aceito para publicação;
aceito para publicação (com sugestões não impeditivas);
reapresentar para nova avaliação após efetuadas as modi-
ficações sugeridas; recusado para publicação.
Caso haja divergência de pareceres, o artigo será encami-
nhado a um terceiro conselheiro para desempate (o Conselho
Editorial pode, a seu critério, emitir um terceiro parecer).
No caso de solicitação de alterações no artigo, poderão ser
encaminhados em até três meses.
ao fim desse prazo, e não havendo qualquer manifesta-
ção dos autores, o artigo será considerado como retirado.
o modelo de parecer utilizado pelo Conselho Científico
está disponível em: http://www.saudeemdebate.org.br
Envio do artigo
os trabalhos para apreciação do Conselho Editorial
devem ser enviados através do site da revista: www.saudee-
mdebate.org.br.
Endereço para correspondência
avenida Brasil, 4.036, sala 802
CEP 21040-361 – Manguinhos, rio de Janeiro (rJ)
tel.: (21) 3882-9140
Fax: (21) 2260-3782
E-mail: [email protected]
the magazine Saúde em debate, created in 1976, is a
publication by Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes),
directed to Public Policies in the health field. Published every four
months, in april, august and december, it is distributed to all of
the associates in regular situation with Cebes’ treasurer’s office.
It receives unpublished works under the form of original
articles, book reviews of academic, political and social interest
and declarations.
the texts that are sent for publication are of total and
exclusive responsibility of the authors.
the total or partial reproduction of the articles is permit-
ted, as long as identified the source and authorship.
the publication of papers is conditioned to the opinions
of the Editorial Board ad-Hoc established for each issue of the
magazine. occasional suggestions of alterations in structure
or content, from the Board, will be previously resolved with
the authors. additions or modifications will not be admitted
once the works have been delivered for composition.
ModalItIES oF tEXtS
aCCEPtEd For PUBlICatIoN
Original articles
research: articles that present final results of scientific
researches, between 10 and 15 sheets.
assays: articles containing a critical analysis about a
specific subject of relevant interest for the health policies
conjuncture in Brazil, between 10 and 15 sheets.
review: articles with a critical review of literature about
a specific subject, between 10 and 15 sheets.
Experience report: articles containing descriptions of
academic, attendance and extension experiences, between
10 and 15 sheets.
Reviews
Book reviews of interest for the health public policies
field will be accepted under the criteria of the Editorial Board.
the texts must present a notion about the content of the
paper, of its theoretical purposes and of the public to which
it is directed in two or three sheets.
Documents and declarations
Papers referring to themes of historical or conjectural
interest will be accepted under the criteria of the Editorial
Board.
SECtIoNS oF tHE PUBlICatIoN
the magazine is structured with the following sec-
tions:
Editorial
Presentation
thematic articles
Free theme articles
International articles
reviews
declarations
documents
tEXt PrESENtatIoN
Sequence of text presentation
the articles may be written in Portuguese, Spanish or
English.
the texts in Portuguese and Spanish must contain the
title in the original language and in English. the texts in
English must contain the title in English and in Portuguese,
and it must express the content of the article clearly.
the presentation sheet must have the author’s full name
and, at the footnote, the professional references (containing
institutional affiliation and title) and e-mail for contact.
When the article is a result of financed research, cite the
financing agency.
Present the abstract in Portuguese and English, or Span-
ish and English, so that a summary of the purposes, methods
used and main conclusions of the paper is clear with the
minimum of three and maximum of five keywords, without
exceeding the total of 700 letters (approximately 120 words).
For the keywords, use the terms presented in the structured
vocabulary (deCS), available on http://decs.bvs.br. In case the
INStrUCtIoN For aUtHorS - SaÚdE EM dEBatE
keywords related to the theme of the article are not found, it
is possible to indicate terms or expressions commonly used.
after, the article itself is presented:
a. the footnote markings must be superscribed. Ex: Sani-
tary reform1
b. for words or extracts of the text that stand out under the
author’s criteria, use simple quotation marks. Ex: ‘front
door’.
c. boards and graphs must be sent in high quality print-
ing, black and white and/or gray scale, in sheets that
are apart from the text, numbered and correctly en-
titled, containing indications of the units in which are
expressed the correspondent values and sources. the
number of boards and graphs must be, at most, five per
article.
d. the authors that are cited in the text must be written in
small letters (only the first one is capital), observing the
aBNt NBr 10520:2001 norm (available in libraries).
Ex: according to Mario testa (2000).
e. bibliographical references must be presented in the text,
in parenthesis, with the name of the author in capital
letters followed by the year and, in the case of a direct
quotation, the indication of the page. Ex: (Miranda
Netto, 1986; testa, 2000, p. 15).
Bibliographical references must be presented at the end
of the article, observing the aBNt NBr 10520:2001 norm
(available in libraries).
Examples:
Carvalho, a.I. Conselhos de saúde, responsabilidade
pública e cidadania: a reforma sanitária como reforma do
Estado. In: Fleury, S.M.t. (org.). Saúde e democracia: a luta
do Cebes. São Paulo: lemos, 1997. p. 93-112.
Cohn, a.; Elias, P.E.M.; Jacobi, P. Participação popular
e gestão de serviços de saúde: um olhar sobre a experiência do
município de São Paulo. Saúde em debate, londrina (Pr),
n. 38, p. 90-93, 1993.
demo, P. Pobreza política. São Paulo: Cortez, 1991.
Text extension
the article must be typed on Microsoft® Word software,
or compatible, in pattern page a4, font times New roman,
size 12 and 1,5 between lines.
Declaration of authorship and responsibility
according to the criteria of authorship of the Interna-
tional Committee of Medical Journal Editors, the authors
must contemplate the following conditions: a) to contrib-
ute substantially for the conception and planning, or data
analysis and interpretation; b) to contribute considerably for
the elaboration of the draft or critical review of the content;
c) to participate in the approval of the final version of the
manuscript. For that, it is necessary to sign the following
declaration of authorship and responsibility:
“I certify that I have participated sufficiently for the
conception of this paper to make public my responsibility
for its content. I certify that the manuscript represents an
original paper and that not this manuscript nor any other
with a substantially similar content of my authorship has been
published or submitted to the analysis of an Editorial Board
from another magazine, printed or electronic”.
Conflicts of interest
the texts sent for publication must contain information
on the existence of any kind of conflict of interest among the
authors. the conflicts of financial interest, for instance, are
not only related to the direct financing of the research, but
also to the employment bond itself.
Ethics in research
For researches initiated after January 1997 that involve
human beings under the terms of the incise II, resolution
196/96 of the Health Councils (research that individually
or collectively involves the human being, directly or indi-
rectly, in its totality or partially, including the management
of information or materials), a document of approval of the
research by the Committee of Ethics in research from the
institution where it was developed must be sent. In the case
of institutions that do not have a Committee of Ethics in
research, an approval by the Post office region where it has
been approved must be presented.
Flow of originals submitted to publication
Every original received by Cebes’ office is forwarded to the
Editorial Board for the evaluation of thematic pertinence and
the observation of the fulfillment of general rules for directing
originals. once they have been accepted for analysis, the originals
are forwarded to two members of the reviewer’s board (report-
ers) of the magazine. the reporters will be chosen according
to the expertise and the theme of the article, giving priority to
counselors who are not from the same State of the federation
as the authors. the counselors have 45 days to emit the report.
on the deadline, if it has not been sent, the consultant will be
informed and the opportunity to forward it to another counselor
will be analyzed. the form for the report is available for consulta-
tion in the website of the magazine in the internet. the reports
will always present one of the following conclusions: accepted
for publication; accepted for publication (with non restraining
suggestions); present again for new evaluation after making the
suggested modifications; refused for publication.
In case there is a divergence in reports, the article will
be sent to a third counselor to decide (the Editorial Board is
allowed, under its criteria, to emit a third report). In the case
of alteration requirements in the article, they can be sent in
up to three months.
at the end of this deadline, and if there is no mani-
festation from the authors, the article will be considered as
cancelled.
the model of the report used by the Scientific Council
is available on http://www.saudeemdebate.org.br.
Sending the article
the work to be analyzed by the Editorial Board must be
sent by the magazine’s website: www.saudeemdebate.org.br.
Mail address
avenida Brasil, 4.036, sala 802
CEP 21040-361 – Manguinhos, rio de Janeiro (rJ)
Phone: (21) 3882-9140
Fax: (21) 2260-3782
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Centro Brasileiro de estudos de saúde (CeBes)
DIREÇÃO NACIONAL (GESTÃO 2006-2009)
NATIONAL BOARD OF DIRECTORS (YEARS 2006-2009)
Diretoria Executiva
Presidente Sonia Fleury (RJ)
1O Vice-Presidente Ligia Bahia (RJ)
2O Vice-Presidente Ana Maria Costa (DF)
3O Vice-Presidente Luiz Neves (RJ)
4O Vice-Presidente Mario Scheffer (SP)
1O Suplente Francisco Braga (RJ)
2O Suplente Lenaura Lobato (RJ)
Diretor Ad-hoc Nelson Rodrigues dos Santos (SP)
Diretor Ad-hoc Rodrigo Oliveira (RJ)
CONSELHO FISCAL / FISCAL COUNCIL
Áquilas Mendes (SP)
José da Rocha Carvalheiro (RJ)
Assis Mafort (DF)
Sonia Ferraz (DF)
Maura Pacheco (RJ)
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Cornelis Van Stralen (MG)
CONSELHO CONSULTIVO / ADVISORY COUNCIL
Sarah Escorel (RJ)
Odorico M. Andrade (CE)
Lucio Botelho (SC)
Antonio Ivo de Carvalho (RJ)
Roberto Medronho (RJ)
José Francisco da Silva (MG)
Luiz Galvão (WDC)
André Médici (DF)
Jandira Feghali (RJ)
José Moroni (DF)
Ary Carvalho de Miranda (RJ)
Julio Muller (MT)
Silvio Fernandes da Silva (PR)
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SECRETARIA / SECRETARIES
Secretaria Geral Mariana Faria Pesquisadora Tatiana Neves
A Revista Saúde em Debate éassociada à Associação Brasileirade Editores Científicos
saúde em deBate
A revista Saúde em Debate é uma publicação quadrimestral editada pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
EDITOR CIENTÍFICO / CIENTIFIC EDITOR
Paulo Amarante (RJ)
CONSELHO EDITORIAL / PUBLISHING COUNCIL
Jairnilson Paim (BA)
Gastão Wagner Campos (SP)
Ligia Giovanella (RJ)
Edmundo Gallo (DF)
Francisco Campos (MG)
Paulo Buss (RJ)
Eleonor Conill (SC)
Emerson Merhy (SP)
Naomar de Almeida Filho (BA)
José Carlos Braga (SP)
EDITORA ExECUTIVA / ExECUTIVE EDITOR
Marília Correia
INDExAÇÃO / INDExATION
Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciên- cias da Saúde (LILACS)
Os artigos sobre História da Saúde estão indexados pela Base HISA – Base Bibliográfica em História da Saúde Pública na América Latina e Caribe
ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA
Avenida Brasil, 4036 – sala 802 – Manguinhos21040-361 – Rio de Janeiro – RJ – BrasilTel.: (21) 3882-9140, 3882-9141Fax.: (21) 2260-3782Site: www.cebes.org.br www.saudeemdebate.org.br E-mail: [email protected] [email protected]
Apoio
REVISÃO DE TExTO,CAPA, DIAGRAMAÇÃO E EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Zeppelini Editorial
IMPRESSÃO E ACABAMENTO
Corbã Editora Artes Gráficas
TIRAGEM
2.000 exemplares
Esta revista foi impressa no Rio de Janeiro em novembro de 2008.
Capa em papel cartão supremo 250 gr
Miolo em papel kromma silk 80 gr
PROOFREADINGCOVER, LAYOUT AND DESK TOP PUBLISHING
Zeppelini Editorial
PRINT AND FINISH
Corbã Editora Artes Gráficas
NUMBER OF COPIES
2,000 copies
This publication was printed in Rio de Janeiro on november, 2008.
Cover in premium card 250 gr
Core in kromma silk 80 gr
Saúde em Debate, Revista do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES – v.1 (out./nov./dez. 1976) – São Paulo: Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES, 2008.
v. 32; n. 78/79/80; 27,5 cm Quadrimestral ISSN 0103-1104
1. Saúde Pública, Periódico. I. Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, CEBES
CDD 362.1
Saú
de
em D
ebat
e
v.32
n
.78/
79/8
0
jan
./dez
. 20
08Cebes
ISSN 0103-1104