saberes necessários · 2017. 5. 29. · delia lerner in ‘ler e escrever na escola – o real, o...
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Saberes necessários...
Rosaura Soligo
Em nenhuma profissão – de fato tratada socialmente como tal – é admissível que se defenda procedimentos profissionais de melhor qualidade, alternativos aos usuais, sem que se preparem os indivíduos para desenvolvê-los. O Magistério talvez seja o único caso em que esse fenômeno é considerado natural: espera-se um tipo de atuação dos educadores1, mas em geral não se oferece a eles a formação adequada para tanto, nem nos cursos de habilitação, nem nos programas de formação em serviço. É certo que a profissionalização do Magistério depende de inúmeros fatores, mas é certo também que não se poderá conquistá-la sem que se dê acesso ao conhecimento necessário para o adequado exercício da profissão.
Este texto discute saberes necessários para uma prática pedagógica competente e espaços de construção desses saberes. Trata-se de um texto produzido coletivamente, porque reflete o pensamento de um grupo. Tem como fio condutor uma reflexão sobre formação de professores, ilustrada com narrativas pessoais de quatro educadoras. Todas são, de certa forma, co-autoras do texto que serve como pano de fundo e cada qual assina a sua própria história. Todas formaram-se umas às outras, como se pode verificar pelas referências que fazem em seus depoimentos. São profissionais atualmente vinculadas à Abaporu - Consultoria e Planejamento em Educação, uma instituição sediada em São Paulo que desenvolve projetos de formação inicial e continuada em vários estados do país. Quase todas trabalham juntas desde os anos 90, duas delas desde o final dos anos 80. Em razão dessa história compartilhada e de projetos realizados em conjunto, constituem, com outros tantos profissionais, um grupo que tem o compromisso e o procedimento metodológico de refletir permanentemente sobre a prática de formação.
O conhecimento didático, esse desconhecido
“A questão da especificidade do conhecimento didático se constitui hoje em um tema
prioritário de discussão: rejeita-se explicitamente a simples ‘importação’ de saberes de
outras ciências e concebe-se a didática de cada ramo do saber como uma ciência autônoma,
cujo objeto de estudo é a comunicação do conhecimento. Desse modo, o saber didático,
ainda que se apóie em saberes produzidos por outras ciências, não pode ser deduzido
simplesmente deles – o saber didático é construído para resolver problemas próprios da
comunicação do conhecimento. (...) A consciência de que os problemas que os professores
enfrentam dia-a-dia na sala de aula estão vinculados ao ensino ou à aprendizagem escolar
de determinados conteúdos não foi suficiente para deduzir imediatamente que os
conhecimentos mais relevantes para eles são precisamente aqueles que contribuem para
resolver esses problemas, quer dizer, os conhecimentos didáticos.”
Delia lerner In ‘Ler e escrever na escola – o real, o possível e o necessário’, Artmed, 2002
Este texto aborda os temas tratados nas Comunicações Coordenadas intituladas ‘Saberes necessários para alfabetizar. Saberes
necessários para formar alfabetizadores’, apresentadas no 14o COLE - Congresso de Leitura do Brasil / 2003. Coordenadora de projetos da Abaporu - Consultoria e Planejamento em Educação. 1 Neste texto, o termo ‘educadores’ refere-se a todos os profissionais da educação: professores, diretores, coordenadores pedagógicos,
supervisores e formadores de modo geral.
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Qual a principal pergunta a fazer quando se pretende compreender por que o conhecimento didático não tem sido tomado como relevante nos currículos de formação inicial de professores e nos programas de formação continuada, se este é um conhecimento imprescindível para a prática profissional?
Talvez a pergunta seja mesmo esta:
Afinal, por quê?
Para buscar uma resposta razoável, vamos considerar que nenhum profissional da educação ousaria discordar que é fundamental para todo professor dominar os saberes relacionados a ‘como ensinar’. Afinal, como ensinar sem ter aprendido como ensinar?
Pois bem, se é assim, teríamos que ir então diretamente às conclusões: todos concordam que evidentemente os professores precisam saber como ensinar, mas é aceitável que eles não tenham acesso a esse conhecimento porque aqueles que têm a tarefa de prepará-los para o exercício da profissão – os formadores – também não o possuem.
“Quem são os formadores? São todos os profissionais que desenvolvem práticas de formação inicial
e continuada de professores: docentes dos cursos de habilitação em nível médio ou superior,
técnicos das Secretarias Estaduais e Municipais de Educação, profissionais das equipes técnicas das
escolas, profissionais de ONGs que desenvolvem programas de formação em serviço, tutores dos
programas de formação a distância...
Os professores das escolas de formação inicial, tanto em nível médio como superior, são
habilitados para ser professores das disciplinas com as quais trabalharão. Os demais profissionais,
que desenvolvem ações de formação em serviço, em geral são habilitados também como
professores ou como pedagogos. Ou seja, tanto num caso como no outro, o curso de formação
inicial desses profissionais qualifica-os para o exercício do Magistério e/ou da Pedagogia, e não
para o exercício da função de formador – pois, como se sabe, a formação de educadores, como tal,
não é objeto de estudo na grande maioria das escolas de habilitação de professores e pedagogos.
Na verdade, não existe em nosso país cursos oficiais de formação de formadores, até porque ser
formador hoje é muito mais uma condição do que uma profissão.
E o que se pode constatar, numa rápida análise da realidade educacional brasileira dos últimos
tempos, é que, com a crescente necessidade de formação em serviço, cada vez mais, diferentes
profissionais vêm assumindo, na prática, a função de formadores, especialmente de professores. A
realidade forjou essa função, e a competência profissional para exercê-la, em geral, é fruto da
própria prática como formador. Até alguns anos atrás, por exemplo, o técnico da secretaria de
educação, o diretor de escola ou o coordenador pedagógico tinham funções razoavelmente bem
definidas, que dificilmente incluíam formar professores. Progressivamente, muitos passaram a
assumir a formação de professores como uma de suas principais tarefas, em especial os
coordenadores pedagógicos das escolas e técnicos das secretarias de educação.
Por um lado, o fato de muitos professores saírem dos cursos de formação inicial não
necessariamente habilitados para cumprir suas tarefas profissionais tem exigido dos sistemas de
ensino o desenvolvimento de uma formação em serviço de natureza compensatória. Por outro, as
sucessivas críticas em relação às limitações e/ou à ineficácia dos programas de formação em
serviço, realizados por assessores externos e não pelos próprios profissionais das secretarias de
educação, têm feito com que a ação dos assessores seja progressivamente substituída pela ação dos
educadores da rede, que passam então a assumir a função de formadores. E, à medida que o
magistério foi conquistando tempo, em sua jornada regular de trabalho, para reuniões de equipe,
estudo e planejamento, a condição de formador foi se tornando cada vez mais necessária, também
para os coordenadores pedagógicos das escolas.
Diante desse quadro, a função de formador está criada e legitimada para diferentes profissionais
da educação, o que demanda um processo próprio de preparação e o desenvolvimento de uma
cultura profissional de formador - do contrário, será difícil superar as práticas tradicionais de
formação em serviço.
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(...) A formação profissional é uma das principais estratégias para a conquista de uma educação
escolar de qualidade, isto é, uma educação que garanta o direito de crianças, jovens e adultos às
aprendizagens imprescindíveis ao desenvolvimento de suas capacidades cognitivas, afetivas,
físicas, éticas, estéticas, de inserção social e de relação interpessoal. Para assegurar esse direito
dos alunos, os professores precisam ter assegurado seu próprio direito a uma formação que lhes
permita uma atuação compatível com as exigências ora colocadas. E para assegurar esse direito
aos professores, os profissionais responsáveis por sua formação – os formadores – precisam, por
sua vez, ter assegurado seu direito a uma qualificação adequada.”2
Se concordamos com essa caracterização do que é parte do problema da formação profissional dos professores – ou seja, a qualificação dos seus formadores – teremos que complementá-la com outras questões que dizem respeito mais especialmente ao papel das Instituições de Ensino Superior.
Como sabemos, no Brasil não há tradição de investigação didática – a Universidade se ocupa com outros temas, tidos como mais relevantes, os programas de extensão geralmente não são valorizados e a utilidade da produção acadêmica dificilmente é questionada.
Nas Considerações Finais do livro ‘Escola reflexiva e nova racionalidade’ (Artmed, 2001), de que é organizadora, Isabel Alarcão posiciona-se a respeito desse tipo de escolha que faz a Universidade não só em nosso país:
“Esta minha análise pode parecer clara e sistematizada, e eu posso ter dado a ideia de
tranquilidade epistêmica. Não a tenho. Antes pelo contrário. Se reconheço e aceito a complexidade
da realidade e a dificuldade em dar sentido às suas manifestações, sinto na crescente pujança da
investigação educacional uma esquizofrenia múltipla e alguma falta de coerência interna e externa.
São várias as manifestações de colisão, não sistematicamente explicada, entre estudos, fatos e
opiniões, como continua a ser evidente a colisão entre investigação em educação e prática
educativa, não obstante os grandes esforços que estão sendo feitos para ultrapassá-la.
Preocupa-me que as condições atuais da investigação em educação possam levar autores de
indiscutível responsabilidade, como David Hargreaves (referido em Tooley, 1998), a afirmar que a
investigação em educação não merece o dinheiro que consome, é de pouco valor e afastada da
prática educativa.
É evidente que afirmações dessa natureza não se aplicam a todas as investigações e cada um de nós
seria capaz de encontrar exemplos de estudos que não se enquadram no sentido dessa afirmação.
Mas serão estes a regra ou a exceção?”
O resultado disso tudo é que vivemos uma situação absurda no Brasil: nossos alunos revelam a todo instante (na sala de aula e nas provas internacionais) um desempenho inadmissível, os professores não sabem – e admitem não saber – como fazer para ensiná-los e as instituições responsáveis pela formação profissional do Magistério não tomam o conhecimento didático como conteúdo prioritário em seus currículos. Essa falta de priorização, na prática, prejudica os professores em um dos seus direitos profissionais mais relevantes: o direito de aprender a ensinar todos os alunos.
Na verdade, ensina-se (ou pretende-se ensinar) muita coisa aos futuros professores, mas geralmente não se aborda aquilo que na realidade é mais urgente, ou seja, tudo o pode contribuir para que eles ensinem mais e melhor os alunos reais que possuem.
O fato é que a democratização do acesso a escola trouxe para os professores um aspecto da realidade com o qual não aprenderam a lidar em seus cursos de formação. Quando apenas os filhos da elite frequentavam a escola, ensinar não era um desafio muito grande e as contradições não se evidenciavam como hoje ocorre, pois indivíduos bem providos culturalmente quase não dependem dos professores para aprender.
2 Guia de Orientações Metodológicas Gerais do Programa de Formação de Professores – PROFA, SEF/MEC, 2001.
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Tem sido mais ou menos unânime o discurso de que os professores resistem às inovações pedagógicas. Por quê? Por que custam a compreender propostas como a da progressão continuada? Por que não conseguem ensinar adequadamente os alunos? Talvez porque não encontram quem saiba informá-los sobre o que podem fazer agora que crianças e jovens desprovidos do conhecimento que a escola valoriza tiveram respeitado o direito de estudar. Talvez porque não encontram quem saiba informá-los como é possível fazer diferente, quando é adequado fazer o quê e de que modo.
De quem é a responsabilidade de preparar os professores para que possam ensinar crianças, jovens e adultos que não aprendem na medida e no ritmo que se espera? Quem fará isso se os seus formadores não dominam os saberes didáticos necessários para prepará-los adequadamente e, pior, muitas vezes não enxergam e não assumem a parte da responsabilidade que lhes cabe.
Muitos formadores – e muitas instituições também – têm defendido que é preciso, sim, que os professores desenvolvam suas competências profissionais, mas que, para tanto, devem encontrar os seus próprios caminhos, devem produzir, eles próprios, o conhecimento didático necessário para desenvolver propostas de qualidade...
Esse é um posicionamento típico dos que, por não terem condições efetivas de assumir o papel de parceiros experientes dos professores, escondem-se atrás do discurso da construção do conhecimento, da reflexão sobre a prática, da inadequação de modelos prescritivos... Nessas condições, esse discurso torna-se pseudo-democrático, autoritário, porque esconde uma incompetência não assumida e uma falta de tratamento profissional do problema.
Não se pode sugerir ou exigir dos professores (em palavras ou em atos) que façam tudo de outra forma, mas não tomar para si o desafio de discutir seriamente como fazê-lo. É isso o que hoje se vê em muitos casos: uma exigência, velada ou explícita, do discurso pedagógico de vanguarda, dos sistemas educacionais e seus gestores, dos formadores e de muita gente bem intencionada.
Esse tipo de conhecimento que falta aos professores, em vários aspectos, precisa ainda ser produzido, sistematizado, compartilhado, difundido... E não faz o menor sentido atribuir exclusivamente a eles essa tarefa.
Por fim, é preciso que se diga que a falta de tratamento adequado do conhecimento didático na formação dos professores é consequência de um equívoco conceitual de resultados desastrosos: a crença de que o domínio dos fundamentos relacionados à compreensão da sociedade, à educação, aos processos de aprendizagem e aos conteúdos do ensino serviria para subsidiá-los quanto aos procedimentos didáticos, ou seja, ao ‘como ensinar’.
Entretanto, o conhecimento didático não é simplesmente uma decorrência natural de outros saberes, mas constitui um campo específico, uma ciência que pressupõe teoria-e-prática. É preciso superar o equívoco de tomar didática como sinônimo de prática, pois talvez seja essa uma das razões da falta de adequado tratamento desse tipo de conteúdo nos currículos e programas de formação de professores.
Nos últimos anos, houve um enorme investimento financeiro em projetos de formação que não contribuíram suficientemente para qualificar de fato a prática pedagógica dos professores – tanto que os índices de fracasso escolar são ainda absurdos. Por certo, uma das razões da ineficácia desses projetos é a ausência do ‘como ensinar’ dentre os conteúdos abordados. Saber que todo indivíduo constrói conhecimento, que as propostas de ensino devem ser ajustadas às necessidades de aprendizagem dos alunos, que é preciso levar em conta o conhecimento prévio de todo aprendiz, que se aprende melhor em colaboração, que as propostas interdisciplinares são metodologicamente interessantes, que a avaliação deve ser formativa, que é preciso consolidar um projeto coletivo da escola, que é função da escola criar condições para que os alunos desenvolvam diferentes tipos de capacidade não informa o professor sobre como atuar para pôr em prática esses pressupostos.
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Se tomarmos os modelos nos quais se apoiaram as práticas de formação de professores nas últimas décadas, teremos mais ou menos a seguinte trajetória:
Em tempos de tecnicismo, o foco era a prática pela prática – em geral se pretendia que os professores implementassem propostas de forma alienada, sem saber quais eram os objetivos e os fundamentos subjacentes ao que prescreviam os manuais que deveriam seguir.
A partir da dos anos 80 (em contrapartida), com o objetivo de contribuir para o desenvolvimento da autonomia do professor e “desaliená-lo” de uma prática cujos objetivos e fundamentos não dominava, o foco passou a ser a fundamentação relacionada às concepções educacionais gerais, aos processos de aprendizagem e aos conteúdos do ensino. Havia um temor (justificado, porém exagerado e de consequências equivocadas) de discutir as questões relacionadas ao “como fazer”, tidas como prescrições – receitas, como se dizia – que não teriam lugar num processo de formação de profissionais autônomos e capazes de gerir a sua própria atuação.
Nos anos 90, vários autores alertam para a necessidade de equilíbrio no tratamento dos diferentes tipos de saberes que compõem o conhecimento profissional de professor. Progressiva e lentamente o temor em tratar do “como fazer” vem sendo superado - até porque esta é a questão mais legítima de qualquer professor que deseja acertar. O foco passa a ser então a formação de profissionais prático-reflexivos. O desenvolvimento de competências profissionais (em seu melhor sentido, importado da sociologia do trabalho) pouco a pouco vai transformando-se em objetivo da formação inicial e continuada de professores e a articulação teoria-prática, em princípio orientador das ações.
Esse é o momento que historicamente se inicia. O professor começa a ser encarado como sujeito e protagonista do seu processo de aprendizagem e as metodologias de formação começam a privilegiar a resolução de situações-problema, a tematização da prática, a reflexão teórica e o estudo para fundamentação do trabalho pedagógico, a parceria solidária entre formadores e professores, a ampliação do universo cultural e a reflexão escrita.
Não há hoje quem não defenda a profissionalização do Magistério - entidades sindicais, associações profissionais, instituições educacionais, representantes da sociedade civil... Mas, como sabemos, o discurso do avanço não tem o mágico poder de produzir o avanço: só com o tempo e com muito trabalho é que se forjam as transformações mais radicais. E lentamente – o que é o pior para os que têm pressa ou para os que dependem dessas mudanças.
Os ambiciosos resultados que os educadores desejam, que a sociedade espera e a que têm direito os alunos só poderão ser conquistados com um investimento concentrado e simultâneo na resolução dos diferentes problemas que, direta ou indiretamente, provocam o fracasso escolar. Isso implica desenvolver políticas eficazes que tenham como conteúdo a valorização profissional, a melhoria da infra-estrutura material das escolas, as condições institucionais necessárias para um trabalho educativo sério e a avaliação do sistema de ensino. Mas implica também acertar o passo das políticas e metodologias de formação de professores, sem o que não se poderá impulsionar o desejado processo de profissionalização do Magistério e nem assegurar uma educação escolar de qualidade.
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Saberes necessários para alfabetizar todos os alunos
O conhecimento profissional do professor envolve conteúdos de diferentes campos: conteúdos relacionados à cultura geral, à cultura profissional, à dimensão filosófica, social e política da educação... Mas envolve também saberes pedagógicos, que se apoiam principalmente em conhecimentos sobre os processos de aprendizagem, em conhecimentos sobre os conteúdos do ensino e no conhecimento didático.
Dada a reflexão a que se propõe este texto, caracterizaremos um pouco melhor o conhecimento didático, que, segundo a perspectiva que defendemos:
tem três dimensões necessariamente inter-relacionadas: teórica, prática e experiencial
diz respeito às formas de ensinar adequadamente os conteúdos escolares
envolve conceitos, procedimentos e atitudes
tem como foco principal a construção de situações de aprendizagem de fato – propostas de ensino ajustadas às necessidades e possibilidades de aprendizagem dos alunos, ou seja, situações desafiadoras
constitui-se a partir da informação disponível sobre os processos de aprendizagem dos alunos e sobre os conteúdos do ensino, mas inclui também outros saberes (teóricos, práticos e experienciais) relacionados a: - como planejar o trabalho a longo, médio e curto prazo - como organizar racionalmente o tempo - como articular objetivos de ensino e objetivos de realização dos alunos - como criar situações que aproximem, o mais possível, ‘versão escolar’ e ‘versão social’ das práticas e
conhecimentos que se convertem em conteúdos na escola - como selecionar as formas mais adequadas de organizar os conteúdos (atividades permanentes,
atividades de sistematização, sequências de atividades, projetos...) - como selecionar materiais adequados - como ensinar os conteúdos das diferentes áreas - como organizar o espaço em função das propostas de ensino e aprendizagem - como mobilizar a disponibilidade dos alunos para a aprendizagem - como realizar a gestão da sala de aula, principalmente quando é muito heterogênea - como favorecer a construção da autonomia intelectual dos alunos - como atender as diversidades na sala de aula - como agrupar os alunos de forma produtiva para que trabalhem cooperativamente e aprendam uns
com os outros - como avaliar o conhecimento prévio dos alunos e seu percurso de aprendizagem - como avaliar os resultados obtidos e redirecionar as propostas, quando não forem satisfatórios - entre muitos outros
Nesse sentido, pode-se dizer que o conhecimento didático é o conhecimento do como, relacionado direta ou indiretamente às formas de ensinar mais e melhor, ou seja, a uma intervenção pedagógica de qualidade.
A seguir, o depoimento de uma professora alfabetizadora, também formadora de alfabetizadores há vários anos, em que ela relata como se deu o seu processo de construção do conhecimento didático para alfabetizar.
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Sobre como aprendi a ensinar
Rosa Maria Antunes de Barros
Minha primeira experiência com alfabetização foi numa escola particular que atendia crianças de
classe média alta, em São Paulo. O que o diretor pedagógico pretendia é que fosse realizado um
trabalho de alfabetização com o método global3 e não com o método fonético, mais usual nas
escolas, mas por ele considerado inadequado para ensinar a ler e escrever.
Esse trabalho inicialmente seria desenvolvido por uma professora, autora de uma cartilha que estava
para ser editada, e que, por razões pessoais e profissionais, não pode realizá-lo.
Eu estava ingressando nessa escola e, dentre as novas professoras, fui selecionada pela coordenação
pedagógica para ensinar as crianças de seis anos – o critério era ser professora nova na escola e ter
disponibilidade para desenvolver um trabalho diferenciado. Algumas crianças estavam na turma do
pré pela segunda vez e, conforme a coordenadora de educação infantil, apresentavam problemas de
aprendizagem e de disciplina.
Fiquei um pouco assustada com a proposta, principalmente porque só tinha um final de semana para
me preparar e assumir o trabalho, mas acabei aceitando, incentivada pelo fato de o diretor ter me
assegurado que daria todo o apoio que eu necessitasse.
E assim, pela primeira vez, fui alfabetizar.
Pela primeira vez me dei conta que, apesar de ter cursado Pedagogia, com habilitação em Magistério,
numa Universidade muito bem conceituada, em nenhum momento tive oportunidade de aprender
e/ou discutir sobre a alfabetização. O pouco que sabia – aliás, muito pouco mesmo – tinha aprendido
no curso normal. Fui procurar minhas colegas de profissão, mas o que elas sabiam era executar o que
estava nas cartilhas. Estávamos, eu e a professora auxiliar, minha amiga Márcia Barreira, às voltas
com um grande desafio e enorme responsabilidade.
O tempo foi passando.
Recebi, de fato, muito apoio do diretor pedagógico para diversos assuntos, mas não para o que eu
mais precisava: como ensinar as crianças a ler e escrever na perspectiva que pretendiam na escola.
Comecei a consultar alguns materiais da CENP4 e a conversar com a coordenadora pedagógica do
ensino fundamental, que também apoiava esse trabalho, sobre a forma como deveria conduzir as
atividades. Ela disse que eu estava no caminho certo e esporadicamente trazia alguns materiais para
subsidiar a minha prática.
Meu trabalho tinha como ponto de partida um texto escolarizado (uma história) do qual era retirada a
frase-chave e em seguida a palavra-chave, que era então dividida em sílabas, para formar novas
palavras. Depois que as crianças tinham aprendido a fazer uso das sílabas dessas palavras, que
garantiam a apresentação de todas as letras do alfabeto, é que eram apresentadas então as famílias
silábicas.
Isso aconteceu já no segundo semestre do ano letivo. Foi quando descobri que a maioria das crianças
já sabia ler e escrever convencionalmente. No final do ano – daquele e dos seguintes – 100% delas
dominavam pelo menos a escrita e leitura das sílabas simples. Na verdade, hoje sei que muitas já
estavam alfabetizadas desde muito antes.
Em 1981, depois de cinco anos desenvolvendo esse tipo de trabalho, efetivei-me na rede estadual de
ensino. Sabia das dificuldades que as crianças encontravam para aprender a ler e escrever, mas com o
sucesso que eu havia conseguido na rede particular, acreditei que não enfrentaria grandes problemas.
E qual foi a minha grande surpresa?
Professora da EMEF Olavo Pezzoti, da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, e formadora de educadores. 3 Mais tarde verifiquei que não se tratava do método global e sim analítico sintético. 4 Coordenadoria de Ensino e Normas Pedagógicas, da Secretaria Estadual de Educação de São Paulo.
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Ao final do ano, somente metade das crianças estava em condições de frequentar uma segunda série.
Na época, era muito forte a concepção de que a pobreza, a desnutrição, os problemas familiares,
entre tantos outros, provocavam o fracasso escolar. Estava eu diante de um grande desafio: o que
fazer se eu não acreditava que a responsabilidade pela não-aprendizagem era das crianças e suas
famílias?
Fiquei alguns anos perseguindo a resposta para essa pergunta, porque eu considerava essas crianças
muito inteligentes, espertas e capazes de muitas outras coisas.
O tempo passou e, em 1984, me efetivei na rede municipal, onde realizava o mesmo trabalho e
obtinha os mesmos resultados insatisfatórios alcançados na rede estadual.
Dois anos depois recebi um convite de uma nova diretora da escola municipal para assistir a uma
palestra com Emilia Ferreiro sobre suas descobertas a respeito da aprendizagem da escrita.
A princípio não entendi muito bem o que significava exatamente a sua teoria, mas saí da palestra
com uma sensação boa de que estava começando a encontrar explicação para algumas escritas das
crianças, com as quais eu havia me deparado ao longo do tempo e que, até então, não entendia muito
bem. Estava feliz com essa possibilidade e acreditava que eram esses conhecimentos sobre o
processo de aprendizagem das crianças que me faltavam para ensiná-las melhor.
Por essa razão, aceitei – na verdade, eu e minha colega Ana Furtado5 – o convite da equipe técnica
da escola para realizar um trabalho diferenciado, tendo em conta o conhecimento disponível sobre as
hipóteses de escrita das crianças. Fiquei um pouco receosa porque as coordenadoras deixaram claro
que dispunham do conhecimento teórico e que a prática iríamos construir juntas.
Estudei bastante nesse período. Nas reuniões da escola, os principais temas eram: concepções de
aprendizagem, hipóteses de escrita e prática pedagógica. Passei a realizar um trabalho maior com
textos, incentivar as crianças a ler diferentes portadores e oferecer situações em que elas pudessem
escrever sem ter uma preocupação com a correção... Mas, com o tempo, percebi que, se por um lado
essas propostas eram situações de leitura e escrita de textos, por outro tinham um enfoque ainda
muito escolarizado e não se constituíam em situações de alfabetização.
Tive oportunidade então de conhecer outros materiais – apostilas com atividades de alfabetização
oferecidas pela Secretaria Municipal de Educação de São Paulo que contaram com a supervisão de
Telma Weisz – e consegui modificar muitas das atividades que propunha na sala de aula.
Mas, com o tempo, observei que apenas dei uma cara nova às velhas propostas, fiz com que ficassem
mais prazerosas, mas de fato elas pouco contribuíam para que as crianças realmente aprendessem a
ler e escrever.
No ano seguinte, a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo desenvolveu um programa de
formação6 em que o enfoque principal era a discussão de atividades de alfabetização considerando as
hipóteses de escrita das crianças. Coloquei em prática então a chamada ‘didática dos níveis’, cujo
objetivo principal era fazer com que as crianças avançassem de um nível de conhecimento sobre a
escrita alfabética para o outro.
Fiquei novamente encantada com a possibilidade de ensinar melhor, agora com propostas que
buscavam levar em conta o processo de aprendizagem das crianças. Passava finais de semana
preparando inúmeros jogos e atividades que pudessem contribuir nesse sentido. Fazia tudo o que me
ensinavam e os resultados novamente não eram os esperados.
E o que de fato mudou na minha prática?
Procurei listar na tabela abaixo alguns desdobramentos que evidenciam a diferença entre o que fazia
anteriormente e, depois, considerando a ‘didática dos níveis’:
5 A pessoa com quem de fato pude planejar, trocar muitas ideias e dúvidas sobre o trabalho. 6 A formação, na época, era mensal e coordenada por Esther Pilar Grossi, que realizava esse mesmo trabalho em Porto Alegre.
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Com o método de alfabetização Com a ‘didática dos níveis’ Texto elaborado pela professora para retirar
palavras-chave.
Texto elaborado pelos alunos para retirar palavras-chave –
textos coletivos.
Palavras-chave determinadas pela professora, de
acordo com as sílabas que pretendia trabalhar.
Palavras-chave determinadas pelos alunos.
Trabalho com o nome das crianças para que
soubessem escrevê-lo.
Trabalho com os nomes das crianças a partir da
quantidade de letras e letra inicial e final.
Ênfase nas sílabas e/ou famílias silábicas. Ênfase nas letras e na quantidade de letras das palavras.
Grau de complexidade crescente das atividades
– do simples para o complexo, tendo-se como
referência o que o professor considerava simples
e complexo.
Grau de complexidade crescente das atividades – do
simples para o complexo, tendo-se como referência as
hipóteses de escrita das crianças. Dependendo do nível de
escrita, havia um grau de complexidade nas atividades.
Atividades com ênfase na discriminação visual e
formação de palavras com as sílabas estudadas...
Atividades de discriminação visual (ligar palavras com a
letra inicial e/ou final, completar palavras com as letras
que faltam a partir do modelo e coisas do tipo); contagem
de letras das palavras e outras similares.
Ênfase nas atividades mimeografadas de escrita. Ênfase nas atividades com jogos envolvendo palavras,
imagens e letras.
Eu acreditava que minha prática tinha passado por muitas mudanças, mas, mesmo assim, continuava
com uma forte sensação de que eu não estava fazendo algo direito. O que seria?
Mais um ano se passou e comecei a participar de palestras, seminários e cursos oferecidos pelas
secretarias de educação municipal e estadual – eu era efetiva nas duas redes públicas. Nesse período,
pude estudar um pouco mais sobre o que é objeto de conhecimento na alfabetização: a língua.
Fiquei novamente entusiasmada, julgando que talvez fosse isso o que faltava para que eu pudesse
desenvolver um trabalho de melhor qualidade. Apesar do meu entusiasmo, de ter estudado o que me
foi possível sobre os processos de aprendizagem da escrita e da leitura e de agora saber mais sobre a
língua, de colocar em prática tudo o que considerava relevante para a aprendizagem das crianças,
observava que os avanços delas ainda não eram significativos. Ou seja, os saberes que eu dispunha
sobre o sujeito da aprendizagem e sobre o que é objeto de seu conhecimento no processo de
alfabetização não eram suficientes para que eu, com toda a minha boa intenção e firme propósito,
conseguisse ensinar tudo o que me parecia possível ensinar às crianças...
Outro ano se passou.
Soube então que teria início na CENP um curso coordenado por Telma Weisz, no qual me inscrevi.
Uma das estratégias metodológicas utilizadas no curso era a análise de propostas de atividades que, a
partir dos conhecimentos teóricos que estávamos adquirindo, desenvolvíamos com os alunos em
nossas salas de aula. E qual não foi minha surpresa quando, ao submeter à discussão as atividades de
alfabetização que eu planejava, descobri que elas pouco serviam para ensina-los a ler e escrever.
Desde então, adquiri uma certa competência para olhar as minhas propostas e identificar o que eu
não deveria fazer. Mas ainda era necessário construir uma prática consistente, considerando ao
mesmo tempo os saberes das crianças e as características dos conteúdos trabalhados com elas.
Sabia que sozinha isso seria impossível.
Foi quando encontrei outras professoras, com as mesmas angústias que eu, e passamos então a
pensar sobre ‘o que colocar no lugar’ das propostas de alfabetização que desenvolvíamos, uma vez
que eram basicamente de discriminação visual.
Foi fazendo parcerias – muitas vezes informais – e discutindo a prática pedagógica a partir dos
saberes teóricos disponíveis que pude construir coletivamente o conhecimento didático que hoje me
permite alfabetizar com muito mais qualidade. Os saberes de natureza didática foram/são assim, a
duras penas, produzidos no processo de interlocução com outros profissionais com as mesmas
demandas e inquietações.
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Agora, organizo o trabalho de forma a garantir que simultaneamente meus alunos aprendam os usos
da leitura e da escrita e aprendam sobre o sistema alfabético; os avanços que eles apresentam são
indiscutivelmente muito mais significativos.
O fato é que tive uma fase em que minha maior preocupação era que as crianças aprendessem a ler e
escrever, no sentido mais estrito. Mas, conforme fui estudando, refletindo sobre as propostas que eu
planejava, analisando os resultados obtidos encontrei muitas outras possibilidades de trabalho com os
usos da leitura e da escrita.
Esses anos todos me fizeram aprender o quanto é importante o conhecimento didático para todo
professor, o quanto é importante o conhecimento didático sobre a alfabetização para todo professor
alfabetizador. Além dos saberes sobre o sujeito da aprendizagem, sobre o que é objeto de
conhecimento dos alunos e sobre a didática dos conteúdos com os quais trabalhamos, há outra
condição fundamental para um professor se tornar cada vez mais competente: a possibilidade de
trabalhar em parceria, mesmo que seja fora da escola. Como sabemos, infelizmente nem sempre é
possível o trabalho coletivo no interior da escola, ou porque os colegas não querem ou porque não há
uma coordenação pedagógica suficientemente preparada para realizar a formação dos professores.
Por isso, todos que querem se desenvolver profissionalmente e não encontram na própria escola um
contexto favorável, acabam buscando espontaneamente espaços alternativos, nem sempre
institucionalizados.
As parcerias que fui construindo ao longo do tempo foram fundamentais para o avanço de minha
prática profissional. As parceiras de trabalho de fato é que foram minhas verdadeiras coordenadoras
pedagógicas – coordenadoras que não tive na escola. E de colegas de trabalho passaram a minhas
amigas7, sempre disponíveis para me ouvir. São companheiras que compartilham e discutem comigo
os conhecimentos teóricos e os ajustes necessários para qualificar o meu trabalho. São companheiras
que me ajudam a investir mais na elaboração do planejamento, a registrar o trabalho desenvolvido, a
refletir sobre a minha prática e a minha função dentro da escola (para além da sala de aula), a
estabelecer um vínculo maior com os pais... enfim, a oferecer, como professora da rede pública, o
ensino de qualidade que as nossas crianças merecem por direito.
Onde aprender a ensinar – espaços de produção de conhecimento pedagógico
Onde os professores aprendem o que é necessário para ensinar aos alunos? No curso de formação inicial? Nos programas de formação em serviço? Na prática profissional?
Na verdade, geralmente esse tipo de conhecimento é construído em espaços de formação nem sempre institucionalizados: em grupos de estudo, cursos ou situações de supervisão pedagógica – dos quais, não raro, participam por iniciativa própria –, em discussões informais com os colegas de trabalho, por meio da análise de registros de professores e, mais recentemente, de atividades gravadas em vídeo.
Muitas vezes, há espaços institucionais garantidos nas escolas, dos quais poderiam se beneficiar, mas as possibilidades de aprendizagem são desperdiçadas, como é o caso de reuniões pedagógicas, cursos e eventos – supostamente de formação – quando não respondem às suas necessidades profissionais.
É o que conta a professora Rosalinda em seu relato.
7 Meus agradecimentos a elas: Rosana Dutoit, Rosaura Soligo, Rosângela Veliago, Leika Watabe, Débora Vaz e Margareth Buzinaro.
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Onde foi que eu aprendi
Rosalinda Soares Ribeiro Vasconcelos
Foi no ano de 1990, quando pela primeira vez participei de um curso sobre a Psicogênese da Língua
Escrita, que comecei a refletir sobre a concepção de educação, de escola, de aluno, de ensino e de
aprendizagem que eu tinha até então. E a partir daí comecei a mudar o rumo do meu trabalho. Não
fui resistente às mudanças, pois o velho não me satisfazia mais. Mesmo assim, foi dolorido. Ao
mesmo tempo em que eu me deslumbrava com as coisas novas que aprendia, eu me desesperava sem
saber o que fazer em sala de aula com os meus alunos.
1990 foi, assim, um marco na minha vida. A partir do que estava aprendendo, ia ficando claro o que
não deveria fazer em sala de aula. Mas chegar ao como fazer de forma adequada foi um longo
percurso.
Muitas vezes, no meio de uma atividade eu percebia que aquilo tudo estava muito ruim, que
precisava ser melhorado, mas não sabia como. Ficava cada vez mais evidente o que não servia mais,
mas a dúvida era o que colocar no lugar e como fazer.
Eu tinha muitas perguntas sem respostas, que o relato abaixo representa muito bem:
“Minha classe é muito heterogênea: são 38 alunos com diferentes saberes, alguns já alfabetizados,
outros que ainda nem estabelecem relação entre fala e escrita, outros que fazem uso do
conhecimento de algum valor sonoro. Como propor desafios para todos? Como organizar a classe?
Cada um trabalhando sozinho ou em duplas? Se o melhor forem duplas, quem com quem? Qual o
tempo adequado para cada tipo de atividade? Algumas crianças fazem tudo muito rápido e depois
ficam conversando e atrapalhando, já outras são muito vagarosas e não terminam nunca. Preciso
esperar todas terminarem para encaminhar outra proposta? Como posso ajudar as crianças durante
as atividades? Que perguntas fazer? Informo ou não? Como fazer com que todas as atividades
sejam boas situações de aprendizagem, que sejam difíceis e possíveis para todos (porque não posso
deixar nenhuma criança para trás – afinal, meu objetivo é alfabetizar a todas?)
Como? Como? Como? Era uma infinidade de perguntas sem respostas.
Evidentemente eu não buscava um receituário. Mas precisava de bons modelos, pois a partir dos
conhecimentos que eu já construíra seria fácil adequá-los às necessidades de aprendizagem de meus
alunos.
E onde buscar esse conhecimento didático? Na escola? Nos cursos de formação? Em grupos de
estudo?
Essa preocupação com o conhecimento didático, tão necessário ao professor, era rara nos programas
de formação em serviço e mais raro ainda nos cursos de formação inicial. Mas tive a sorte de
participar, em 1991, de um grupo de formação na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo
coordenado por duas professoras alfabetizadoras – Rosaura Soligo, que acabava de deixar a sala de
aula, e Rosa Antunes, que alfabetizava adultos. Ambas tinham as mesmas preocupações que eu com
o “como fazer” e nos nossos encontros, a cada três semanas, abriam um espaço para discussão de
atividades de sala de aula, trazidas pelas professoras cursistas e também por elas – era quando se
discutia o planejamento, o desenvolvimento e a avaliação dessas propostas. Isso, entretanto, era
pouco. No dia-a-dia, apareciam muitas questões que não podiam esperar a data do curso.
Dentro da escola em que eu trabalhava, havia (e ainda há) um espaço garantido de formação, mas
que muitas vezes era (e ainda é) desperdiçado com outras questões que não correspondem às nossas
necessidades de professoras.
Em conversas informais, pelos cantos, nos corredores, com duas amigas – Flor e Izabel – que
tinham as mesmas demandas que eu, comecei a planejar, discutir, trocar atividades. Juntas,
Professora da EMEF Octávio Pereira Lopes, da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, e formadora de educadores.
12
analisávamos os resultados obtidos e fazíamos uma reflexão crítica sobre a nossa prática
pedagógica.
Isso tudo foi muito bom, porque perdemos o medo de nos expor, de aceitar as críticas e de refazer o
que não estava bom.
Nessa época éramos vistas como as diferentes e, por mais que tentássemos compartilhar com as
colegas o que aprendíamos e o que fazíamos, essa tentativa foi em vão. Acabamos meio excluídas
do grupo, embora as coordenadoras pedagógicas nos dessem o maior apoio – por pouco tempo,
entretanto, pois acabaram assumindo outros cargos na Secretaria de Educação.
Participei de grupos de estudo por iniciativa própria, fora do horário de trabalho, onde sempre havia
professoras que já desenvolviam uma prática mais avançada e que socializavam e discutiam o que
sabiam. E isso ajudava muito.
Também foi importante registrar o que fazia. Isso acontecia na minha casa, tarde da noite, onde eu
passava para o papel os meus avanços, as minhas dificuldades, as minhas angústias. Nesses
momentos de reflexão eu conseguia tomar distância de minha prática e enxergar, por exemplo,
porque determinadas atividades tinham sido produtivas e outras não, porque as crianças se
envolveram mais com algumas situações do que com outras... Isso me ajudava a replanejar e
intervir melhor em outras situações.
De repente, de aprendiz passei a formadora de professores. Aí foi um corre-corre atrás do que ainda
faltava saber, porque ao mesmo tempo que eu ainda estava construindo esse conhecimento didático
para utilizar na minha sala de aula, quando nem todas as questões estavam resolvidas, me vi no
papel de formadora, com novas questões relacionadas a onde aprender o como ensinar professores.
Esse foi outro momento profissional difícil, mas que me ajudou a aprender mais rápido como
ensinar meus alunos.
Como formadora, levo muito em conta o quanto foi difícil o meu percurso na construção do
conhecimento didático. Por isso, em meus grupos de formação, há sempre espaços para se discutir
bons modelos de atividades e o como fazer para desenvolvê-las adequadamente.
Estou convencida da importância dessa discussão. É evidente que podem acontecer distorções por
parte de alguns professores, mas os demais – aqueles que têm conhecimento teórico suficiente para
não tomá-las como receitas e que podem reinventá-las – vão aprender melhor e mais rápido como
ensinar adequadamente os seus alunos.
Afinal, não é preciso que todos os professores passem, a duras penas, pelo mesmo processo que eu
e tantas outras professoras passamos para aprender a planejar e ajustar as propostas de ensino às
necessidades de aprendizagem dos alunos.
Como ensinar a ensinar – espaços de formação de alfabetizadores
Como os formadores aprendem a formar professores? Quando assumem o desafio de trabalhar com professores em programas de formação continuada, assumem também o desafio de aprender a fazê-lo em parceria com outros profissionais engajados na mesma proposta.
Atualmente, isso vem sendo feito por meio de situações nem sempre institucionalizadas: estágio em grupos coordenados por formadores já experientes, planejamento coletivo das pautas de trabalho, análise da prática de outros formadores por meio de relatos escritos ou vídeos, coordenação de grupos de formação compartilhada com outro formador... Em todas elas, entretanto, o apoio permanente de parceiros solidários é fundamental...
O depoimento da professora Valéria revela como é essa história.
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Sobre como me tornei professora-formadora
Valéria Dutoit
Falar sobre formação de professores, sendo eu professora e formadora, é no mínimo uma situação
conflituosa.
Como professora, meu trabalho é muito solitário. As parcerias são raras, as reuniões pedagógicas
geralmente não contribuem para a formação de um coletivo de professores que tenha a prática de sala
de aula como objeto permanente de reflexão.
Como formadora, não tive uma preparação específica e as experiências vividas como professora, nas
situações de formação dentro da escola, não me foram bons modelos.
Por todas as experiências pelas quais passei, senti a necessidade de aprender cada vez mais e buscar
caminhos para confirmar ou não aquilo que acreditava. Assim, acabei estudando, fazendo cursos e
principalmente participando de grupos informais de formação, que contribuíram para que eu pudesse
obter conhecimentos que subsidiaram meu trabalho de sala de aula.
Sendo assim, posso afirmar que durante muito tempo fui formadora de mim mesma e das professoras
que buscavam no meu pouco conhecimento informações que pudessem favorecer suas práticas.
Em duas escolas onde trabalhei, a coordenadora pedagógica solicitou que eu orientasse as
professoras que quisessem discutir o que eu estava estudando e colocando em prática com meus
alunos – propôs que eu coordenasse um grupo de formação dessas professoras.
Nessas situações em que intuitivamente atuava como formadora, as professoras traziam os problemas
que estavam enfrentando na sala de aula e minha proposta era sempre que pensássemos juntas como
poderíamos resolvê-los – eu relatava a minha experiência de como havia buscado resposta para
problemas semelhantes, explicitando para o grupo a concepção que estava orientando as minhas
ações em cada caso.
Era muito interessante notar que, ao explicitar as teorias, sempre de forma relacionada à prática, isso
fazia a maior diferença para as professoras – esse mesmo grupo, em outros momentos de reuniões
coletivas na escola, mostrava-se muito resistente a mudanças e mesmo a conhecer novas formas de
encaminhar o trabalho na sala de aula.
As reuniões do grupo de formação passaram a ser frequentes e aumentou o número de professores
interessados. Nosso foco se mantinha: era a busca de soluções para os problemas enfrentados em sala
de aula.
Os problemas trazidos pelas professoras e por mim eram relacionados ao “como ensinar”, para que
os alunos pudessem de fato aprender. Ou seja, discutíamos o que nos faltava: as questões de natureza
didática.
Penso que, nessa experiência, construímos conhecimento didático, partindo da reflexão sobre a
minha prática – já que o grupo a legitimava como a prática de uma professora mais experiente –, do
estudo de textos que nos ajudavam a entender as questões levantadas pelas professoras, das decisões
que tomávamos conjuntamente e da avaliação dos resultados obtidos.
Uma situação que evidencia esse processo e que vale compartilhar: Certa vez discutimos como
trabalhar com os alunos que não estavam alfabetizados nas quatro salas de 2a. série. Para que essa
defasagem não fosse se acumulando, resolvemos planejar um trabalho de apoio pedagógico para
esses alunos desde o início do ano. Essa situação permitiu a discussão sobre como agrupar os alunos
de forma que as parcerias fossem produtivas, como elaborar atividades desafiadoras e como
antecipar intervenções pedagógicas que favorecessem o avanço dos alunos.
Professora da EMEF Gastão Moutinho, da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, e formadora de educadores.
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A partir dessa experiência de formadora, aprendi que o conhecimento didático é construído na
reflexão permanente sobre o trabalho realizado em sala de aula e sobre os seus resultados e que o
envolvimento dos professores com as propostas de formação depende do quanto elas respondem ou
não as dúvidas que eles têm sobre o que e como ensinar.
Mas quando fui convidada para formar um grupo de professores alfabetizadores fora da escola, tive
muito receio, pois os desafios eram e são ainda muitos para mim.
Considerando que no trabalho realizado anteriormente as professoras haviam avaliado que a
interlocução comigo tinha sido importante para o avanço de suas práticas, porque me tomavam como
uma parceira mais experiente, não tive dúvidas que o melhor que teria a fazer agora era trabalhar em
parceria com alguém que desempenhasse esse papel comigo.
Acredito que, para a minha formação como formadora, foram fundamentais os seguintes aspectos:
1.Parceria experiente
Eu e Rosalinda assumimos juntas a formação de um grupo de professoras alfabetizadoras de uma
escola estadual em São Miguel Paulista, Zona Leste de São Paulo8.
A coordenação compartilhada desse trabalho foi decisiva para mim, porque a experiência que ela já
possuía fez com que eu aprendesse muito sobre a prática de um formador: aprendi, por exemplo, que
para a formação de professores há procedimentos metodológicos muito específicos.
No grupo que orientava na escola já havia parcialmente me dado conta disso, mas pude desenvolver
outros procedimentos fundamentais e aperfeiçoar os que já sabia. Relaciono a seguir aqueles que
considero mais relevantes:
Elaborar registro reflexivo sobre cada encontro realizado.
Elaborar registro por escrito sobre as situações mais relevantes ocorridas no grupo, no momento
em que aconteciam.
Antecipar perguntas ou situações para problematizar com o grupo.
Tematizar a prática das professoras – ou seja, torná-la objeto de reflexão.
Tematizar os conteúdos de vídeos que tratam da prática de sala de aula.
Analisar as estratégias metodológicas utilizadas, a fim de avaliar os pontos negativos e positivos.
Valorizar os conhecimentos e as experiências do grupo, para poder lançar novos desafios.
2. Planejamento coletivo
Rosalinda e eu definimos três dias por semana para o planejamento: era quando discutíamos a pauta,
estudávamos os textos e vídeos que subsidiariam as discussões e antecipávamos as possíveis dúvidas
que o grupo poderia ter diante do assunto tratado.
Depois socializávamos essa nossa produção com duas formadoras mais experientes, a Rosa Antunes9
e a Rosângela Veliago, que nos davam dicas sobre as melhores estratégias metodológicas para tratar
determinados assuntos.
Muitas vezes, nossas propostas de pauta chegavam incompletas ou chegávamos nós com algumas
dúvidas e, a partir das discussões que ocorriam naqueles encontros, modificávamos ou
acrescentávamos o que era necessário para que elas fossem concluídas.
8 Esse grupo – e outro realizado em Salvador – integrou o projeto-piloto de implementação do Programa de Formação de Professores
Alfabetizadores (PROFA): neles o Programa foi desenvolvido em 2001, sob supervisão permanente, antes de ter início em todo o
país. O grupo de São Paulo foi coordenado por Valéria e Rosalinda e contou com a supervisão de Rosa Antunes e Rosângela Veliago. 9 Co-autora deste artigo.
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3. Registro do trabalho
Após o encontro com as professoras, eu e Rosalinda elaborávamos um relatório, de formato bem
simples, com a pauta do encontro, um breve relato sobre o desenvolvimento do trabalho, os avanços
e dificuldades do grupo e também os nossos. Esses relatórios permitiam a constante reflexão sobre o
nosso trabalho e a reorganização das próximas pautas.
4. Observação atenta do que revelavam os professores sobre sua compreensão a respeito dos
conteúdos trabalhados
A observação de como as professoras estavam entendendo os conteúdos da formação foi
fundamental para reorganizar o nosso trabalho e para definir a melhor forma de tratá-los
metodologicamente.
Constatamos que a falta de conhecimentos prévios das professoras sobre certos conteúdos da
formação, colocava a necessidade de estabelecer outros pontos de partida para abordá-los ou, ainda,
de agrupar as professoras de forma que pudessem contribuir umas com as outras para a compreensão
do assunto tratado.
Pudemos verificar também que a falta de conhecimento sobre certos assuntos fez com que houvesse
uma compreensão distorcida do que estávamos discutindo, a ponto de algumas professoras
desenvolverem com seus alunos atividades que eram propostas para elas nos encontros de formação
e que só eram adequadas para elas.
Um exemplo desse tipo de distorção: propusemos o estudo de um texto teórico complexo e, para
orientar esse estudo, explicamos como se elabora um mapa conceitual, um esquema com uma rede
de relações. No encontro seguinte, muitas professoras disseram que tinham proposto que os alunos
de 1a série fizessem a mesma coisa com os textos literários que estavam lendo...
A reflexão sobre essa situação evidenciou a necessidade de acompanhar mais de perto como os
professores estavam entendendo os conteúdos, para que pudéssemos ajustar a forma como estávamos
planejando o nosso trabalho.
5. Colaboração e solidariedade
Vale a pena ressaltar que a colaboração, o companheirismo, o investimento, a credibilidade em mim
e no meu trabalho, por parte de outros profissionais, foram aspectos fundamentais para a minha
formação. Não tenho a menor dúvida que essas são condições fundamentais para que possamos
trabalhar como formadores de professores.
Por fim, retomo a minha colocação inicial: o conflito que significa falar como formadora de
professores, sendo eu também professora.
Com a experiência que venho desenvolvendo, posso avaliar que ser ao mesmo tempo formadora e
professora permite que o diálogo com os professores dos grupos seja mais direto, pois as situações,
as angústias e os problemas por eles colocados também são ou foram vivenciados por mim.
Tenho compartilhado essa reflexão com outras professoras-formadoras e a conclusão é que temos a
nosso favor a vantagem de estar inseridas no mesmo contexto dos professores que estamos
formando, porém com um olhar mais apurado: isso permite que os exemplos que trazemos para eles,
vivenciados em nossas salas de aula, os deixem mais à vontade para expor suas dúvidas e seus
conflitos.
Ao que tudo indica, esse é um diferencial que contribui bastante para que nossas propostas de
formação respondam às necessidades profissionais dos professores.
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A sala de aula como espaço de formação de formadores
O que um formador pode aprender quando faz estágio na sala de aula de aula de um professor?
Para um formador que pretende tratar da alfabetização e não teve a oportunidade de, ele próprio, alfabetizar ou acompanhar de perto o trabalho de bons alfabetizadores, observar um professor competente em ação é uma necessidade. A observação de classe é um espaço fundamental de aprendizagem sobre a prática pedagógica no contexto da sua realização.
Se assim não for, terá de, no mínimo, analisar boas práticas gravadas em vídeo, como há algum tempo vem sendo possível – só o Programa de Formação de Professores Alfabetizadores (PROFA)10 conta com um acervo considerável de situações desse tipo, com quase trinta programas.
E o que um formador pode aprender quando participa de um grupo coordenado por um professor-formador, ou seja, por um formador que também atua como professor?
Em se tratando de grupos de formação que tenham como conteúdo principal o conhecimento didático e como estratégia metodológica privilegiada a reflexão sobre a prática, a coordenação por professores-formadores vem se mostrando muito produtiva, uma vez que podem colocar em pauta o próprio trabalho que realizam na sala de aula.
É o que se pode comprovar no relato a seguir.
Alternando os papéis
Ester Broner
O que um formador pode aprender quando faz estágio na sala de aula de aula e quando participa de
um grupo coordenado por um professor-formador?
Creio que a melhor forma de responder a essas questões seja de fato compartilhar experiências
pessoais.
É certo que cada história que se cria a partir de nossas vivências vem carregada de subjetividades,
perspectivas dominantes, marcas da investigação pessoal. O sujeito aprendente, seja ele quem for,
atribui significados e relevâncias distintas ao conhecimento, segundo sua trajetória.
Fazer hoje um depoimento, de certa forma me leva a compartilhar uma história pessoal e que aqui
recortada, fica sintetizada no interesse profundo e crescente como formadora, de há muito precisar
saber quem são os professores que estão diante de mim, como aprendem e como ensinam esses
professores.
Na experiência que vivi no Curso de Formação de Professores Alfabetizadores11, tive a oportunidade
de mudar de lugar, e ser uma formadora-aluna num grupo coordenado por duas professoras-
formadoras. Essa perspectiva colocou em evidência um olhar sobre o processo, que compartilhei na
10 Curso de formação de alfabetizadores, com 180 horas de duração, desenvolvido pelo MEC em parceria com algumas universidades
e secretarias de educação de todo o país, nos anos de 2001 e 2002 – a partir de 2003, continuou a ser realizado, porém sem a
participação do MEC. Consultora pedagógica e formadora de educadores. 11 Promovido pela Abaporu – Consultoria e Planejamento em Educação, em São Paulo, tendo como formadoras Rosalinda e Valéria,
co-autoras deste artigo. O Curso foi orientado pelos mesmos pressupostos metodológicos do Programa de Formação de Professores
Alfabetizadores, desenvolvido pelo MEC em parceria com Secretarias de Educação de todo o país e que contou com a participação
ativa das professoras citadas neste relato no processo de elaboração de materiais e de implementação.
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avaliação do curso e que agora torno público. Fico feliz se trouxer contribuições a professores e
formadores.
Do lugar de formadora, na mediação entre as teorias e as práticas, entre as trajetórias da vida e as
trajetórias curriculares, com frequência me perguntei sobre as histórias de vida dos professores.
Que histórias traziam em suas bagagens, como aprendentes e como ensinantes?
Que vínculos têm com essas histórias e de que forma estão presentes na subjetividade do exercício
pedagógico?
Que saberes se constituem em tais histórias?
Que visões de mundo estão representadas nessas histórias?
Na busca de respostas para tais perguntas, com uma espécie de alegria, aprendi que ensinar é contar
histórias.
Talvez faça sentido fazer esse parêntesis quando os nossos prováveis interlocutores são pessoas
preocupadas com a leitura, com a escrita, com a compreensão, com o deleite e com a produção de
histórias no mundo.
Quando ensinamos contamos histórias sobre o mundo. Histórias científicas, histórias literárias,
histórias filosóficas. Eu sempre me perguntei, quando coordenadora, quais as histórias que os
professores escolhem para contar? Em função do que, ou de quem, fazem tais escolhas?
Aprendi nesse exercício que as teorias educacionais que estão por trás das escolhas que fazemos
também são histórias – de como ensinar e aprender acontece em cada lugar, em cada comunidade,
em cada cultura. Sobre quem faz, para quem faz e com que propósito.
Trazer à tona e fazer escolhas das histórias que se quer contar, ter clareza de nossas concepções,
trajetórias e da diversidade cultural já apontavam para um vínculo maior com as interações do
processo educativo. Contudo, eu percebia também que faltava algo muito essencial nessa interação.
O que sabia faltar nessa história toda foi algo que de certa forma eu encontrei numa experiência de
formação com essas professoras, Rosalinda, Valéria e Rosa12, que com uma intencionalidade
evidente compartilharam não só suas histórias, mas sobretudo o estudo das melhores ou mais
interessantes formas de contá-las. Tão interessantes, a ponto de que quem compartilha, pode se
ver incluído nelas e assim sendo, se sinta mobilizado no desejo de retomar a sua própria história,
experimentar contar, reescrever, e produzir outras mais.
O que faço neste depoimento é socializar a avaliação de um processo que vivi como aprendente, no
Curso de Formação de Professores Alfabetizadores, com as parceiras formadoras Valéria e Rosalinda
e de um estágio na sala da professora Rosa e que acabaram evidenciando, aos meus olhos e a
algumas de minhas inquietações, algo que foi além do conteúdo que fui buscar, no caso o
conhecimento didático sobre a alfabetização – que dessa perspectiva pode ser visto como histórias da
intersecção entre a teoria e a prática, ou entre o saber e aquilo que se faz com o que se sabe. Mais do
que isso, elas revelaram a importância das estratégias metodológicas para abordar os conteúdos
trabalhados, na perspectiva de suas próprias histórias em sala de aula.
Eis a minha avaliação, que entreguei a elas e agora transcrevo neste texto:
MUDANÇAS
Como não se pode separar o pessoal do profissional, eu diria que no Curso de Formação de
Professores Alfabetizadores, muitos foram os conteúdos que contribuíram para o meu trabalho de
educadora, em quaisquer segmentos em que venho atuando hoje, sobretudo o da formação de
professores.
12 Na sala da qual tenho feito estágio durante o ano de 2003.
18
Nesse sentido, considero também conteúdo as entrelinhas dos objetos de estudo de cada encontro.
Isso, para não correr o risco de restringir a avaliação de um curso de formação a uma única
perspectiva, a dos conteúdos conceituais.
Desse modo, a pontualidade, a clareza das pautas, a diversidade proposta nos diferentes tempos de
trabalho, a valorização das pausas como espaço de "alimento" do corpo e das afetividades, a
transparência dos saberes didáticos revelados tanto nos 30 vídeos que assistimos e exploramos,
quanto nas tarefas e trabalhos pessoais compartilhados, bem como a harmonia na trama textual do
trabalho da dupla, não podem ficar à margem da avaliação.
A metodologia, não é um conteúdo que passa desapercebido ao aluno, muito menos ao aluno-
professor.
Por analogia, diríamos que representa a coreografia de um espetáculo. É a energia que coloca as
ideias, os conceitos e o corpo do conhecimento em movimento, ora fundo, ora figura, e procura,
como num abrir e fechar de cena, causar impacto ao espectador, provocá-lo, retirá-lo de seu
próprio pulso, da condição única e solitária do seu ponto de vista, chamando-o para o diálogo, para
que adentre a roda solidária do conhecimento construído no coletivo.
Isto não muda a vida da gente?
Magda Soares, Mario Prata, João Ubaldo, Madalena Freire, Clarice Lispector, Flávio de Souza,
L.F. Veríssimo, Telma Weisz, Isabel Sole, Eva Furnari, Cora Coralina, Ricardo Azevedo, Irmãos
Grimm, Vinicius de Moraes, Heloísa Prieto, Ana Maria Machado, Marcelo Duarte, Maria José
Nóbrega, Ítalo Calvino, Câmara Cascudo, Rosaura Soligo, Paulo Mendes Campos, Arthur Gomes
de Moraes, entre tantos outros, em leituras compartilhadas na dança-roda em trinta encontros. Em
todos, bons textos.
Isto não amplia a vida da gente?
E Iara que estudava com Yukiko, que pensava com Valquíria, que escrevia com Adalgisa, que ouvia
a Neide, que ditava pra Neli, que planejava com Roberta, que copiava com a Angela, que contava
para a Ester, que revisava com Ana Cristina, que lia para a Jane, que argumentava com a Patrícia,
que relia para Rejane, que recomendava para Raimunda, que sintetizava com Andréia...e que
aprendiam com Valéria e Rosalinda a tecer uma rede de ideias.
Isto não melhora a vida da gente?
E a "matéria-vida, tão fina", exposta nos vídeos?
Realidade nua, nada crua em termos de saber, saber fazer e vir a acontecer. Ali mesmo diante dos
nossos olhos, vislumbramos o suor de todos os esforços, daqueles que corajosa e diariamente
enfrentam o desafio de ensinar e de aprender. São Diogos, Talitas, Rodrigos e Daianas, iluminados
pelo olhar reflexivo e portanto amoroso de Valérias, Rosalindas, Clélias, Flores, Márcias e Telmas.
Quem aprende, quem ensina? Quem muda a vida da gente?
Destaco, mas não em detrimento de qualquer outro, a Revisão de Textos Bem Escritos, como o
conteúdo que me convidou à cena, lançando-me do lugar do leitor-espectador, testemunha dos fatos,
para o foco do leitor-apreciador, cujo deleite está em interagir com cada trama da obra.
Mais do que nunca, exploro a minha própria competência como leitora. "Com-petência", como já
disse Lino de Macedo, na qualidade de apetente, de sentir-se autorizado a desejar algo do texto,
compartilhá-lo, e alimentar-se dele como quem quer descobrir outros sentidos de vida.
Isso, me parece, é o que faz a gente mudar a vida!
E por fim, ainda que para mim tenha significado um começo, avalio como a experiência da maior
importância, a oportunidade do estágio na 1a. série da Professora Rosa. É algo como ultrapassar as
instâncias de um campo hipotético e ser convidada a interagir com a vida pulsante das crianças e da
professora em verdadeiras situações de aprendizagem para todos.
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A gestão super democrática na sala de aula, levada com a maior responsabilidade e compromisso
pela Rosa, não é jargão político, nem discurso pedagógico. É uma realidade documentada de modo
sistemático e apaixonante, tanto pela professora quanto pelas crianças, nas suas diferentes
possibilidades de fazê-lo.
A história que ali se constrói está registrada em cada caderno, diário ou painel, na estante
de livros, nas imagens fotográficas, nos desenhos e nas perguntas das crianças, nas produções
coletivas e na poesia concreta da coreografia das carteiras que se movem na intenção de ajustar o
espaço, às diferentes possibilidades de produtivas relações interpessoais. Nas cartas e mais cartas
comunicando e incluindo os pais nessa história.
Na história que ali se escreve de tão intensa, fui inscrita e hoje também faço parte.
O tempo na sala da Professora Rosa não pára. Mas se inclina diante de todos os momentos
sagrados, num ir e vir exaustivo, numa revisão de processos que o fazer coletivo e democrático
impõe aos seus participantes.
Um exercício decerto mais demorado, profundo, mas que acredito, há de fazer toda a diferença na
vida da gente!
A diversidade de histórias trazidas às aulas nos vídeos, textos, nas reflexões e na oportunidade do
estágio, com a maior delicadeza não deixam de consagrar como referência de formação, a
Professora Telma Weisz, por quem há muito tempo também dedico, silenciosa, a minha admiração.
Hoje reiterando-a, quero observar que possivelmente o fruto de seu empenho me guardou o
privilégio de participar também de um grupo de formação, orientado por alguns daqueles seus
professores que diante das câmeras, e de suas salas abertas, ampliam uma comunidade de
aprendentes e ensinantes a partir do compartilhamento das histórias que escrevem junto com seus
alunos, na intenção de incluí-los na produção cultural de uma sociedade letrada.
A vocês todas, generosas professoras, que continuam com o firme propósito de construir e
compartilhar competências que fazem a diferença na leitura e na escrita de nossa história,
Muito obrigada.
Ester
Considerações Finais
Para encerrar provisoriamente esta reflexão, vale ressaltar duas questões importantes, ainda não abordadas anteriormente: o tipo de conhecimento sobre o que é conteúdo de ensino – no caso do aluno, do professor e do formador – e o tempo necessário para um processo de formação que pretenda contribuir para transformações radicais na prática pedagógica.
Tanto num caso como no outro, estamos considerando que o processo de formação pressupõe o desenvolvimento de competências profissionais, ou seja, da capacidade de enfrentar os diferentes desafios colocados pelo exercício da profissão. Dessa perspectiva, não há espaço para práticas multiplicativas, ou de ‘repasse’ de conteúdos, como se costuma dizer.
Quando o modelo é esse – de ‘repasse’ de conteúdos – há uma coincidência quase integral entre o que é trabalhado com formadores, professores e alunos.
Vejamos uma situação desse tipo:
O objetivo de que os alunos aprendam procedimentos adequados de leitura justificaria um trabalho com professores em que este é o assunto, o que por sua vez justificaria um trabalho com os seus respectivos formadores para tratar o assunto com eles. Essa é a situação quando, por exemplo, se reúnem os coordenadores pedagógicos de várias escolas, para que eles posteriormente repassem aos professores o
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que foi com eles trabalhado. Com a expectativa de um efeito multiplicativo – de baixo custo financeiro, inclusive – todos aprenderão a mesma coisa – propostas de trabalho com leitura. De fato, nesse modelo, a estratégia é mesmo o repasse do conteúdo.
Entretanto, as questões da aprendizagem e da formação não são assim simples, como podem a princípio parecer. Por essa razão, hoje se defende uma concepção que pressupõe, do ponto de vista dos alunos, o desenvolvimento de diferentes capacidades e, do ponto de vista dos educadores, o desenvolvimento de diferentes competências profissionais. Os conteúdos a serem trabalhados num caso e no outro são determinados por essas capacidades/competências profissionais que são tomadas como objetivos do trabalho.
Assim, se a proposta é que os alunos tenham acesso a boas situações de aprendizagem da leitura, o conteúdo da formação dos professores terá de incluir uma série de questões que não apenas as propostas de leitura – procedimentos utilizados para ler, importância dos modelos de leitores para os aprendizes, trabalho com a diversidade textual, relação entre os gêneros e os tipos de estratégias que demandam, fatores que interferem na proficiência de leitura, entre outros. Tudo isso não se ‘repassa’ aos alunos como conteúdo de ensino. Tudo isso contribui para que o professor desenvolva competências profissionais para trabalhar adequadamente com a leitura na sala de aula, para se fundamentar melhor, para fazer intervenções pedagógicas de boa qualidade.
No caso dos formadores, os conteúdos serão, além desses, as estratégias metodológicas adequadas para abordá-los com os professores, que são, também elas, conteúdos da formação dos formadores.
Do mesmo modo que não faz o menor sentido o professor repassar para os alunos os assuntos que têm a finalidade de subsidiá-lo para uma prática de melhor qualidade, não faz o menos sentido o formador repassar para os professores os assuntos que têm a mesma finalidade em relação à sua própria prática.
Ou seja, em cada situação, os objetivos previstos (sejam as capacidades dos alunos ou as competências profissionais de professores ou formadores) são diferentes e demandam conteúdos também diferentes.
Essa constatação inevitavelmente tem como resultado a defesa de programas de formação de longa duração e ajustados às necessidades de aprendizagem dos profissionais. Ou seja, programas de formação de fato continuada, que privilegiem estratégias metodológicas de resolução de problemas e tematização da prática.
Nesse sentido – e para concluir a reflexão a que este texto se propôs – é necessário registrar, ainda que brevemente, a importância da questão ‘tempo’ no processo de formação. Para tanto, nada melhor do que destacar o texto de Myriam Nemirovsky, assessora e coordenadora de programas de formação de professores alfabetizadores, uma vez que suas ponderações representam exatamente o que nosso grupo acredita e defende.
“(...) A variável tempo desempenha um papel decisivo no processo de aprendizagem. Embora cada sujeito, em função de diversos fatores, necessite de um tempo maior ou menor para avançar em seu processo de
aprendizagem, poderíamos dizer que são processos que sempre exigem períodos de médio e de longo prazo
– e inclusive deveríamos precisar que é necessário no mínimo um ano de trabalho para começar a notar certos avanços entre os participantes do grupo com menor grau de dificuldade para modificar seu ponto de
vista a respeito da alfabetização. Isso porque modificar, ao mesmo tempo, tanto a concepção de leitura e de escrita como a de sua aprendizagem e também a concepção do papel do professor, do grupo e da escola no
que diz respeito ao ensino é algo complexo, muito complexo. E, além disso, não podemos nos esquecer que
nem sempre esse processo é complementado ou apoiado por outras instâncias educativas, o que implica que o professor enfrenta, em muitos casos, uma diversidade de frentes simultaneamente: suas próprias
concepções e ainda as pressões externas (autoridades, companheiros, pais...). É evidente então que ele necessita não só de apoio e de orientação a respeito de como ensinar a ler e a escrever, mas também de
apoio e incentivo para seguir adiante.”13
13 In “Evolução das perguntas, evolução da aprendizagem”, texto publicado em abril de 2001, na revista “La formación del
professorado – Proyectos de formación en centros educativos”, Série Claves para la inovación educativa, Editora GRAÓ, Barcelona.