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Universidade Federal da Bahia Instituto de Letras
Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística Rua Barão de Geremoabo, nº147 - CEP: 40170-290 - Campus Universitário Ondina Salvador-BA Tel.: (71) 263 - 6256 – Site: http://www.ppgll.ufba.br - E-mail: [email protected]
O SAMPAULEIRO:
ROMANCE DE JOÃO GUMES
por
MARIA DA CONCEIÇÃO SOUZA REIS
Orientador: Profª. Drª. Célia Marques Telles
SALVADOR 2004
2
Universidade Federal da Bahia Instituto de Letras
Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística Rua Barão de Geremoabo, nº147 - CEP: 40170-290 - Campus Universitário Ondina Salvador-BA Tel.: (71) 263 - 6256 – Site: http://www.ppgll.ufba.br - E-mail: [email protected]
O SAMPAULEIRO: ROMANCE DE JOÃO GUMES
por
MARIA DA CONCEIÇÃO SOUZA REIS
Orientador: Profª. Drª. Célia Marques Telles
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Letras. Área de concentração: Teorias e Crítica da Literária e da Cultura.
SALVADOR
3
2004 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
INSTITUTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E LINGÜÍSTICA
MARIA DA CONCEIÇAO SOUZA REIS
O SAMPAULEIRO: ROMANCE DE JOÃO GUMES
Tese para obtenção do grau de Doutor em Letras
Salvador, 30 de março de 2004
Banca Examinadora
________________________________ Maria da Glória Bordini
Doutora em Letras Universidade Pontifícia Católica do Rio Grande do Sul
________________________________
Sônia Maria Von Dijck Lima Doutora em Letras
Universidade Federal da Paraíba
________________________________ João Santana Neto Doutor em Letras
Universidade Católica de Salvador
________________________________ Albertina Ribeiro da Gama
Doutora em Letras Universidade Federal da Bahia
________________________________
Célia Marques Teles
4
Doutora em Letras Universidade Federal da Bahia
5
A Miguel, responsável pela re-significância da vida.
AGRADECIMENTOS
A Deus, todo poderoso, pela minha existência.
À minha orientadora, Profa Dra Célia Marques Telles pela amizade,
solicitude, competente orientação e pelo despertar em mim o interesse
pelos estudos filológicos.
À Profa Dra Rita de Cássia Ribeiro Queiroz, pela amizade,
companheirismo e pela tradução do resumo para a língua francesa.
À Profa Dra Albertina Ribeiro da Gama, pela amizade e primeiras
orientações deste trabalho.
Ao Mestre Dr. Nilton Vasco da Gama, o nosso eterno mestre.
Aos meus alunos da UNEB–Caetité por me fazerem conhecer João
Gumes.
À minha família pela compreensão, apoio e incentivo sempre e na
execução deste trabalho.
A José, por tudo: o companheirismo, as reflexões, a firmeza nas horas
mais difíceis, a compreensão nas constantes ausências...
6
Às amigas Rosa Borges Santos Carvalho e Ana Júlia Tavares, pela
amizade e incentivos.
À Profa Maria Belma, pela gentileza e confiança ao emprestar o
primeiro volume do romance O Sampauleiro.
Aos colegas e amigos do Arquivo Municipal de Caetité pela constante
troca de experiências.
7
RESUMO
Trata-se da apresentação e edição do romance O Sampauleiro do caetiteense João
Antônio dos Santos Gumes. Apresentam-se o escritor e sua representatividade literária,
situando-o no regionalismo nacional e no panorama dos romancistas da literatura baiana.
Mostra-se a obra de João Gumes, revelando o seu estado de conservação, a riqueza de
materiais e as possibilidades de análise que poderão ser desenvolvidas na perspectiva dos
estudos filológicos. Determina-se o comportamento do pesquisador e editor e expõe-se a
estrutura da edição crítica, bem como os critérios que foram adotados na edição da obra de
João Gumes e o texto criticamente estabelecido do segundo volume do romance O
Sampauleiro.
Palavras-chave: edição, literatura baiana, regionalismo, romance folhetim, resgate
cultural.
8
RÉSUMÉ
Ce travail a pour le bet l’édition du roman “O Sampauleiro” du caetiteense João
Antônio dos Santos Gumes. On présente l’écrivain et sa représentativité littéraire dans le
régionalisme national et dans le panorama des romanciers de la littérature baianaise. L’oeuvre
de João Gumes est montrée a travers de son état de conservation, de la richesse des matériels
et des possibilités d’analyse qui pourrant être develloppées dans la perspective des études
philologiques. On determine le conduite de l’investigateur et de l’éditeur, on expose la
structure de l’édition critique au delà des critères adoptés dans l’édition de l’oeuvre de João
Gomes et le texte critiquement établi du deuxième volume du roman “O Sampauleiro”.
MOTS–CLEF: édition, littérature baianaise, régionalisme, roman-feuilleton, rachat culturel.
9
SUMÁRIO
LISTA DE FIGURAS
LISTA DE SIGLAS
LISTA DE SINAIS UTILIZADOS
RESUMO
RÉSUMÉ
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
12
1 JOÃO GUMES: VIDA E OBRA 16
1.1 O HOMEM E O ESCRITOR 16
1.2 UM REGIONALISTA NO PANORAMA NACIONAL 23
1.3 UM ROMANCISTA NO MEIO BAIANO 26
2 O RESGATE DA OBRA
32
2.1 A OBRA 46
2.2 SOBRE O CONTEÚDO DE ALGUNS TEXTOS 53
2.2.1 O Sampauleiro 53
2.2.2 Os Analphabetos 53
2.2.3 Pelo Sertão 54
2.2.4 Vida Campestre 54
2.2.5 Abolição 55
2.2.6 Seraphina 56
2.2.7 Mourama 56
2.2.8 Sorte Grande e A Vida Doméstica 57
10
2.2.9 Outros trabalhos 57
2.2.9.1 A tradução 57
2.2.9.2 A partitura de música
58
3 A CONSTRUÇÃO DO TEXTO DE JOÃO GUMES 59
3.1 INTRODUÇÃO 59
3.2 PARA UMA EDIÇÃO CRITICA DE O SAMPAULEIRO 63
3.2.1 O Sampauleiro: do manuscrito ao texto definitivo 69
3.2.1.1 Descrição 69
3.2.1.2 Enredo 71
3.3 EDIÇÃO DOS TEXTOS: NOTAS FILOLÓGICAS 76
3.3.1 Estrutura da Edição 76
3.3.2 Metodologia 76
3.3.2.1 O texto de base 80
3.3.2.2 A ordenação dos textos 80
3.3.2.3 Os aparatos: variantes autorais e textuais 81
3.3.2. 4 As normas adotadas no estabelecimento dos textos 81
3.3.2.5 As siglas remissivas para as versões 83
3.3.2.6 Classificação estemática 84
3.3.3 O Sampauleiro: o texto crítico e o aparato de variantes autorais e da
tradição impressa
86
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS 599
5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 501
5.1 OBRAS DO AUTOR 501
5.1.1 LIVROS 501
5.1.2 MANUSCRITOS 501
5.1.3 CRÔNICAS 501
5.2 SOBRE O AUTOR E SUA OBRA 506
5.3 SOBRE LITERATURA BAIANA 507
5.4 TEORIA E CRÍTICA LITERÁRIAS 508
11
5.5 CRÍTICA TEXTUAL 511
5.5.1 ELEMENTOS DE CRÍTICA TEXTUAL 511
5.5.2 EDIÇÕES CRÍTICAS 516
5.5.3 ELEMENTOS DE CRÍTICA GENÉTICA 519
5.6 VOCABULÁRIO 520
ANEXO
LISTA DE FIGURAS
Fig. 1: Foto de João Antônio dos Santos Gumes. 15
Fig. 2: Foto do manuscrito do livro traduzido por João Gumes. 38
Fig. 3: Penúltimo fólio do manuscrito do drama Abolição. 39
Fig. 4: Recto do último fólio do manuscrito do drama Abolição. 40
Fig. 5: Verso do último fólio do manuscrito do drama Abolição. 40
Fig. 6: Folha de rosto do primeiro volume do romance O Sampauleiro. 41
Fig. 7: Contracapa do romance O Sampauleiro. 42
Fig. 8: Fólio do manuscrito do segundo volume do romance O Sampauleiro. 43
Fig. 9: Foto das partituras da música “À memória do Dr. Joaquim Manuel Rodrigues Lima”.
44
Fig. 10: Foto do manuscrito do romance Seraphina e do drama Abolição. 44
Fig. 11: Foto da coleção do jornal A Penna correspondente ao ano de 1898. 45
Fig. 12: Classificação estemática do segundo volume do romance O Sampauleiro. 85
Fig. 13: Classificação estemática da edição crítica do romance O Sampauleiro. 85
12
LISTA DE SIGLAS
SP O Sampauleiro, manuscrito.
SP1 O Sampauleiro, publicação textual de 1929.
SPF O Sampauleiro, publicado no Jornal A Penna.
13
LISTA DE SINAIS UTILIZADOS
< > segmento autógrafo riscado
(?) leitura duvidosa
† palavra ilegível
[ ] acréscimo
< >/ / substituição por sobreposição, na relação <substituído> /substituto/
< >[↑] substituição por riscado e acréscimo na entrelinha superior
< >[↓] substituição por riscado e acréscimo na entrelinha inferior
< > [ ] substituição à frente
<†>[ ] substituição de um segmento apagado, riscado ou ilegível
/ mudança de linha
// mudança de fólio
( ) itálico intervenções do editor (acréscimo e informações em itálico)
14
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A necessidade de resgatar o patrimônio cultural de um povo não é uma
preocupação da modernidade. Sua origem remonta aos gregos, aproximadamente entre os
anos de 322 a 146 a.C., quando deram início à atividade de resgatar, de preservar e de
divulgar o saber produzido pelos eruditos daquela época. Pode-se dizer que a Edição Crítica
de Textos é uma das atividades mais antigas da filologia. Apropriando-se das palavras de
Erich Auerbach1, é a atividade mais nobre, a mais clássica e a mais autêntica da filologia, que
se ocupa da reconstrução do texto, com a finalidade de restabelecê-lo de acordo com a última
vontade do autor. Segundo Heinrich Lausberg,2 a filologia tem de cumprir com os textos: “a
tarefa tripla da crítica textual, interpretação de textos e a integração superior dos textos tanto
na história literária como na fenomenologia literária.”
1 Cf. Erich AUERBACH. Intodução aos estudos literários. Trad. de José Paulo Paes. 2 ed. São Paulo: Cultrix, 1972. p.11. 2 Cf. Heinrich LAUSBERG. Lingüística românica. Trad. de Marion Ehrhardt e Maria Luísa Schemann. 2 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1981. p. 22.
15
Reunir e editar a obra de um escritor que tem uma produção literária significativa
como João Gumes, mas que, infelizmente, se encontrava sob uma camada espessa de poeira e
não recebera o valor que lhe era devido, é buscar integrá-la na história e na fenomenologia
literária, cumprindo com um dos deveres que a filologia tem com para o patrimônio espiritual
produzido por uma comunidade.
Firmou-se, então, como propósito desta pesquisa, a reunião de todos os
testemunhos e materiais paratextuais do segundo volume do romance O Sampauleiro, para
fixar-lhes os textos críticos.
O resgate da produção literária e jornalística de João Gumes fazia-se necessário
em Caetité. O trabalho desenvolvido resgata a memória cultural local e garante a sua
permanência. Conforme se expõe mais adiante, tomando-se a produção literária e jornalística
de João Gumes como objeto de estudo e desenvolvendo abordagens à luz da Filologia, poder-
se-iam apresentar três produtos distintos, a saber: preparação de edições críticas ou crítico-
genéticas, estudo do vocabulário e esboço da história de vida do escritor a fim de caracterizar
histórico-socialmente o período em que ele viveu, registrando-se a sua atuação como
jornalista, fazendo-se o inventário de sua produção intelectual, inserindo-o no meio literário
baiano de seu tempo, e, principalmente, avaliando os seus escritos mais relevantes.
Tornar transparente a produção de Gumes, desvelar as primeiras incursões
literárias dos escritores baianos e detectar a importância documental desta produção,
enfim, contribuir para que as lacunas da historiografia literária baiana possam ser
preenchidas, constituem os fins últimos deste trabalho.
A escolha do segundo volume do romance O Sampauleiro para constituição do
corpus de estudo que culminou na elaboração da presente tese de doutorado justifica-se por
quatro motivos: primeiro, porque o segundo volume do romance O Sampauleiro apresenta
16
três testemunhos: manuscrito autógrafo, edição em folhetim e testemunho em livro, situação
textual ideal para a Ecdótica; segundo, porque é a principal obra responsável pela
representatividade literária de João Gumes no panorama da literatura baiana e brasileira;
terceiro, porque, conforme se pode depreender da leitura de algumas crônicas3 publicadas no
jornal A Penna, a obra aborda o tema que foi objeto de uma das suas principais preocupações:
o processo de migração instalado no Alto Sertão Baiano, que levou ao despovoamento da
região e, conseqüentemente, ao seu empobrecimento; quarto, porque o romance é um
testemunho vivo do pensamento de Gumes sobre questões políticos, sociais e culturais, e
constitui memória cultural que deve ser disponibilizada à comunidade de modo geral.
O presente trabalho está organizado em três capítulos, a saber: 1, João Gumes:
vida e obra; 2, O resgate da obra; 3, A construção do texto de João Gumes.
No primeiro capítulo, apresenta-se o escritor e sua representatividade literária,
situando-o no regionalismo nacional e no panorama dos romancistas da literatura baiana.
O segundo capítulo mostra a obra de João Gumes, revelando o seu estado de
conservação, a riqueza de materiais e as possibilidades de análise que poderão ser
desenvolvidas na perspectiva dos estudos filológicos.
Em A construção do discurso de João Gumes, terceiro capítulo, determina-se
o comportamento do pesquisador e editor; expõe-se a estrutura da edição crítica, bem
como os critérios adotados na edição da obra de João Gumes e o texto criticamente
estabelecido do segundo volume do romance O Sampauleiro.
Por fim, no quarto capítulo, fazem-se as considerações finais.
3 Não constitui pretensão nossa classificar quanto ao gênero os textos de Gumes publicados no A Penna. Usamos, no presente trabalho, a designação "crônica" para seus textos de caráter jornalístico, porque ele assim os designava.
17
18
Fig. 1: Foto de João Antônio dos Santos Gumes.
1 JOÃO GUMES: VIDA E OBRA
1.1 O HOMEM E O ESCRITOR
João Antônio dos Santos Gumes, filho do professor João Antônio dos Santos
Gumes e de Ana Luiza da Veiga Neves, nasceu em Caetité4 em 1858 e morreu em 1930. Aos
vinte e seis anos de idade casou-se com sua prima Antônia Dulcina Pinto Gumes, com quem
teve 16 filhos: Maria Sofia, Júlia Adelaide, Laura Luiza, Ana Rufu, Sadi Rútilo, Luís
Antônio, Huol, Carmen, Heloísa, Cândida Stela, Dulce Áurea, Eponina Zita, Célia, Celina,
João Kardec e Antonio. Em 1922 fica viúvo.
Homem de poucos recursos financeiros, mas admirado e respeitado por todos,
participou ativamente da vida pública e cultural de sua terra natal. Foi, entre outras coisas,
escrivão da Coletoria Geral, tesoureiro e secretário da Intendência, secretário da Câmara
4 A cidade natal de João Gumes fica localizada no sudoeste do Estado da Bahia, a 757km de Salvador. Hoje o seu prestígio cultural, político e econômico é menos relevante, mas, nos fins do século XIX e início do século XX, período em que viveu Gumes, era um dos principais centros difusores de cultura e importante pólo político-econômico do estado. Cidade berço cultural, destacava-se pelo alto nível de seus institutos educacionais de seus moradores. Forneceu vários governadores do Estado da Bahia, é local onde o educador Anísio Teixeira nasceu e desenvolveu suas idéias revolucionárias sobre Educação.
19
Municipal, advogado provisionado, professor, arquiteto, músico, tipógrafo, desenhista,
dramaturgo, tradutor, escritor e jornalista.
Como arquiteto idealizou e executou o projeto arquitetônico do Mercado Público
e do Teatro Centenário, prédios hoje demolidos. Como músico, mesmo sem nunca ter
estudado ou visto antes alguns instrumentos musicais, afinava-os e compôs diversas partituras
que executava com maestria no violoncelo. Na pintura fez réplicas de obras clássicas. Todas
foram destruídas, a única que sobreviveu é um retrato de Allan Kardec. Na arte dramática,
além de ter fundado uma sociedade dramática que fomentava o desenvolvimento das
representações cênicas na cidade, compôs dramas e comédias que foram e são até hoje
encenados nas festividades religiosas e cívicas caetiteenses.
Um apaixonado pela região sudoeste do estado da Bahia, desde muito jovem
abraçou como uma de suas principais causas defender os direitos do homem nordestino,
especialmente daqueles que habitavam o denominado Alto Sertão5. Um ser simples mas de
alma elevada. Defendia veementemente a bandeira dos oprimidos homens do campo
esquecidos e explorados pelos "engravatados da cidade grande", dos escravos maltratados, e
combatia o analfabetismo reinante naquele período no nordeste brasileiro. Parece que escrevia
com este propósito e deixava isto explícito, pois considerava seu romance Os analphabetos
"uma propaganda em favor da alfabetização do nosso povo como meio seguro de melhorar a
sua condição e torná-lo últil à prosperidade de sua terra."6 Assuntos estes abordados tanto na
sua produção literária como na jornalística.
5 Define-se normalmente por Sertão baiano uma extensa região com particularidades nos seus aspectos físico, econômico, social e cultural. O Alto Sertão a que se refere este texto diz respeito às regiões da Chapada Diamantina e da Serra Geral, no século XIX. Erivaldo Fagundes Neves diz que: “Geralmente definem região de modo pouco preciso, física ou sócio-economicamente, como área que se pretende delimitar, (...); região do sertão, caracterizada pela morfologia da vegetação; região do Alto Sertão da Bahia, referenciada na posição relativa ao curso do rio São Francisco na Bahia e ao relevo baiano, que ali projeta as maiores altitudes”. Cf. NEVES, Erivaldo Fagundes. Uma comunidade sertaneja: da sesmaria ao minifúndio (um estudo de história regional e local). Salvador: EDUFBA / Feira de Santana:UEFS, 1998. p. 22. 6 Cf. João GUMES. Os analphabetos. Bahia: Escola Tipográfica Salesiana, 1928. 216 p.
20
Como ambicionava extinguir o analfabetismo em Caetité e em cidades vizinhas e
acreditava que a melhor forma para alcançar este objetivo era o incentivo à leitura e à
propagação de textos, não mediu esforços para fazer circular, em 25 de setembro de 1896, o
primeiro periódico7 editado e impresso no sudoeste do estado da Bahia: O Caetiteense. Um
ano depois implanta definitivamente a imprensa no Alto Sertão baiano, fazendo circular o
jornal A Penna8. Segundo o próprio João Gumes, A Penna foi o principal órgão de imprensa
daquela região e “um dos mais importantes fatores do progresso social.”9 O jornal fundado
por Gumes também pode ser considerado patrimônio da memória da imprensa baiana, uma
vez que toda publicação de relevo da região sudoeste do estado, naquele período, passou por
sua oficina de artes gráficas, bem como a própria história da imprensa em Caetité confunde-se
com a de sua tipografia.
Gumes escreveu romances, comédias, dramas e crônicas. Publicou os romances:
O Sampauleiro,10 Os Analphabetos,11 Pelo Sertão12 e Vida Campestre13. Deixou inéditas as
seguintes obras: Seraphina,14 Abolição,15 Mourama16 e Sorte Grande17.
A sua obra, além de possuir grande valor literário, é de fundamental importância histórica. O modo de pensar, viver e agir da época em que viveu o autor são registrados em seus textos, seja na pele do sertanejo que se desloca do nordeste para a região sul e sudeste do país em busca de melhores condições de vida, ou na figura do homem campestre, rude e analfabeto, que repudiava os livros e a leitura por
7 O Caetiteense, primeiro jornal editado por Gumes, teve vida efêmera: edição única. Cf. O CAETITEENSE, Caetité, 25 set. 1896. 8 Mesmo com poucos recursos financeiros e sua quase total reclusão à região Sudoeste, Gumes viajou 757km no lombo de um burro para adquirir na capital do Estado da Bahia um prelo para montar sua tipografia que, em 05 de março de 1897, fez circular o jornal A Penna, publicação quinzenal que, apesar das várias interrupções por questões financeiras, sobreviveu até 1942. 9 Cf. João GUMES. Os analphabetos, citado à n. 3, p.7. 10 Cf. João GUMES. O sampauleiro: romance de costumes sertanejoos. Caetité: A Penna, 1929. 2v. 11 Cf. João GUMES. Os analphabetos, citado à n. 3, p.7. 12 Cf. João GUMES. Pelo sertão. Caetité: A Penna. 11 jul. 1913 – 27 mar. 1914. 13 Cf. João GUMES. Vida campestre. Caetité: A Penna. 6 set. 1917. A data aqui apresentada refere-se ao último capítulo publicado em folhetim no jornal A Penna. 14 Cf. João GUMES. Seraphina. Caetité, [s.d.]. 15 Cf. João GUMES. Abolição. Caetité, [s.d.]. 16 Cf. João GUMES. Mourama. Caetité, [s.d.]. 17 João GUMES. Sorte grande. Caetité, [s.d.].
21
serem prejudiciais à alma humana e “não colocarem panela no fogo”, ou ainda na figura da escrava maltratada mas subserviente ao seu amo.
Em seus textos de caráter literário parece haver a intenção de representar,
registrar, documentar, perpetuar e divulgar tudo o que, segundo seu ponto de vista, é
característico de seu povo, de sua região. Isso é explicitamente revelado no prefácio do
romance Os Analphabetos, onde se lê:
Continuando o meu proposito de tornar conhecida esta região em tudo quanto concerne ao seu interesse e aproveitamento dos seus opulentos recursos, considerei que o melhor meio era escrever narrativas de factos verossimeis acompanhados de descrição do nosso territorio e costumes do povo sertanejo. É o que fiz na "Vida Campestre", no "O Sampauleiro", no "Pelo Sertão" e n'este livro. O fim collimado creio ser justo; mas não sei si alcancei. Convenço-me, e ninguem poderá contestar-me, que o romance, a novella, ou qualquer trabalho d'este genero, é o que melhor propaganda faz. 18
Como era muito exigente consigo mesmo, não atribuía valor literário aos seus
romances. Considerava-os tãosomente o único meio possível de contribuir para o combate ao
analfabetismo e para fazer sua região conhecida. No trecho a seguir podemos verificar qual
era o seu ponto de vista a respeito de seus romances:
Não se pense que este livro tenha merito litterario e que possa figurar entre tantos que lustram e enriquecem a litteratura brasileira, que põem em evidencia o crescente progresso das lettras no nosso paiz, quanto têm ellas se aprimorado e enriquecido n'estes ultimos tempos. É tão opulenta de alguns annos a esta parte a litteratura a que me refiro, que pode ser arguido de ousadia, mesmo temeridade dirigida, apresentar-se em publico com um trabalho mal burilado, sem expressão, de modo que não fique bem esclarecido o pensamento; sem os lavores de estylistica que attrahem, encantam e prendem o espirito do leitor.
(...) ousei escrever neste gênero embora me falhe competencia para figurar entre os escriptores que têm produzido livros d'essa natureza, que attrahem a attenção do leitor instruindo-o de muitas cousas que lhe são desconhecidas.19
18 Cf. João GUMES. Os analphabetos, citado à n. 3, p.8.
22
Como jornalista de A Penna, escreveu centenas de crônicas e foi redator de
diversas colunas. Essas crônicas constituem um manancial inesgotável de informações que
podem servir de fonte de pesquisa sobre os mais variados assuntos, como por exemplo:
a) a seca e a emigração na região:
Há cerca de um mez já reclamamos, e voltamos agora á carga porque, dia a dia, a nossa situação torna-se mais afflictiva.// Já não é a secca que nos incommoda o espirito; é a sahida de quasi todo o povo em abalada, como que impulsionado por uma fatalidade. O commercio paralysa-se, as situações agricolas são abandonadas. Não é agora somente o jornaleiro que emigra: são familias inteiras, são povoações20.
b) questões da economia local e regional:
Com muito interesse acompanhamos os movimentos de alta e baixa do café, pois é sabido que muito influe na situação economica e financeira de todo o paiz a valorisação da preciosa rubiacea. As ultimas noticias são alarmantes e dão o lugar a mil conjecturas sobre as causas da baixa d’esse genero de commercio.21 Não lemos a lei orçamentaria do Estado porque nem sempre vemos a folha official, e os jornaes da Capital, não sabemos porque, não lhe dão como deveram, a publicidade e diffusão que tanto nos interessam. Entretanto consta-nos que uma taxa, ultimamente creada incide sobre as engenhocas productoras do assucar e rapaduras entre nós.22
c) localização e descrição de recursos naturais dos povoados, vilas e cidades
vizinhas, como no trecho da crônica Monte Alto, publicada em 12 de setembro de 1913:
Quem transpõe a serra Geral, indo dos municipios de Umburanas ou Caeteté, em busca do valle do S. Francisco, avista largos trechos da região a que os naturaes do sertão denominam baixio. Da estrada de Caeteté a Bella Flor, porem, quer da ladeira “Isabel” quer da “Belem” melhor aprehende-se em synthese a forma e disposição d’aquelle vasto territorio. A paizagem é
19 Cf. João GUMES. Os analphabetos, citado à n. 3, p. 8. (Grifos nossos.) 20 Cf. João GUMES. Despovoamento do sertão: o povo emigra á falta de trabalho. A Penna, Caetité, n. 33, p.1, 11 abr. 1913. 21 João GUMES. A baixa do café. A Penna, Caetité, n. 41, p. 1, 01 ago. 1913. 22 Cf. João GUMES. As engenhocas. A Penna, Caetité, n. 27, p.1, 17 jan. 1913.
23
soberba e empolgante. Ao fundo, no ultimo plano, a serra do Monte Alto, esgalho do principal systema ortographico, encantadora, semelhando uma muralha a prumo, colorida de róseo e azul em extensos lanços perpendiculares, estriada por desfiladeiros e contrafortes, e recortando caprichosa e bellissimamente no azul de bobadas achatadas e cippos gigantescos. Essa admiravel construcção natural tem por assento o Baixio, que é um extenso talude, de declividade quasi imperceptivel á commum apreciação, levemente abaulado, orlado pelo sulco dos ribeirões que formam o rio das Rans, eriçado de morros, pequenas cadeias, collinas, extensos largados de formação primitiva e bacias onde se reunem as aguas meteóricas. O solo em geral é esbranquiçado, argiloso e impregnado de saes diversos, e a vegetação natural é de caatingas altas onde se encontram boas madeiras de lei e extensos prados onde vicejam optimas forragens. Nas encostas e proximidades dos morros a terra é carregada de oxido de ferro assim como nos contrafortes da serra: esse elemento chimico é um auxiliar valiosissimo para que ahi a vegetação seja a mais desenvolvida. Em geral o terreno é algodoeiro, mas é feracissimo para diversas culturas. As uvas, laranjas e muitos outros fructos de pomar dão-se alli perfeitamente bem, são dulcissimos e de surprehendente desenvolvimento. As aguas saturadas de saes inoffensivos, o ar quente e quasi permanente em uma boa temperatura e o constante varrer dos ventos alisios, tornam essa região saluberrima, propria á criação de toda a sorte de gados, que alli proliferam e se desenvolvem admiravelmente, e procurada como reconhecido Sanatorium que é para diversas enfermidades do homem.23
A riqueza de informações históricas sobre a região constantes tanto na sua
produção literária como na não-literária é tão significativa que se torna praticamente
impossível, ao pesquisador de várias áreas do saber, realizar qualquer estudo sobre o Alto
Sertão Baiano sem tomar a obra de Gumes como uma das principais fontes de pesquisa. Um
bom exemplo é a dissertação de mestrado desenvolvida por Estrela24, na área de geografia,
intitulada Os sampauleiros do alto sertão da Bahia: cotidiano e representações, que teve,
como uma das principais fontes, para a realização da investigação sobre as representações do
cotidiano dos chamados sampauleiros, a obra publicada de Gumes.
Um outro aspecto importante que ainda deve ser observado a respeito dos textos
do autor é a sua riqueza vocabular. Uma leitura, mesmo que superficial, da sua produção
23Cf. João GUMES. Monte Alto. A Penna, Caetité, n. 44, p.1, 12 set. 1913. 24 A dissertação de Mestrado, intitulada Os sampauleiros: cotidiano e representações, defendida no Departamento de Geografia Humana da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo,
24
literária, revela-nos que os textos de temática regional, como O Sampauleiro, Os
Analphabetos, Pelo Sertão, Vida Campestre e Sorte Grande, em que são documentados os
hábitos e os costumes da região sudoeste do estado da Bahia, apresentam um vocabulário
regional riquíssimo. Estes vocábulos são, na sua maioria, nomes de objetos, animais,
utensílios, atividades, ações, qualidades e comportamentos e/ou atitudes. Arrancador,
babugem, bitu, bruaca, bolsava, cabaz, cacôca, caramanche, caxerengue, croá, desabusado,
deslindar, embasbocado, embuchar, grenha, jornaleiro, latagão, mazarrol, sopitado, sovelão
e pandarana são apenas alguns exemplos de itens lexicais utilizados intencionalmente por
Gumes para documentar e, ao mesmo tempo, revitalizar o seu uso. Isso porque, conforme se
pode depreender da leitura de alguns de seus textos, acreditava que eram usados apenas na sua
região e estavam entrando em desuso na língua corrente de seus contemporâneos.
Todo esse manancial histórico, literário e lingüístico encontrava-se disperso e na
eminência de desaparecer por completo. Fazia-se necessário reuni-lo, preservá-lo em caráter
permanente e colocá-lo ao alcance de pesquisadores e da comunidade de modo geral. O
resgate da memória cultural desse período da história de Caetité permite não só reconstruir a
vida cultural local mas contribuir para a (re)escritura de um capítulo da historiografia literária
baiana, inserindo o nome de um escritor com uma produção expressiva e significativa como a
do caetiteense João Antônio dos Santos Gumes.
em agosto de 1999, sofreu algumas alterações e foi publicada em 2003. Cf. Ely Souza ESTRELA. Os Sampauleiros: cotidiano e representações. São Paulo: Humanitas FFCH/USP; Fapesp; Educ, 2003. 256 p.
25
1.2 UM REGIONALISTA NO PANORAMA NACIONAL
Nas três primeiras décadas do século XIX, inicia-se no Brasil um movimento
cultural em busca de uma literatura própria, de cor local, sem influências externas, exposta
com recursos estilísticos autônomos. Os intelectuais desejavam alcançar a independência
literária, contrapartida da liberdade política. Evidentemente que, no romantismo brasileiro, os
nossos escritores exploraram alguns elementos nacionais, objetivando alcançar uma literatura
livre das influências advindas de outras terras. Bem que tentaram, mas a exploração do
indianismo esgotou-se rapidamente, decretando sua substituição pelo regionalismo. O
indígena estaria, portanto, sendo substituído por um símbolo mais adequado, vaga ocupada
pelo tipo regional: o sertanejo, o cangaceiro, o gaúcho, que protagonizava as obras de alguns
nomes de nossa literatura, como, por exemplo, o Visconde de Taunay, Bernardo Guimarães,
Franklin Távola, José de Alencar, entre outros.
As conseqüências imediatas da exploração desses novos elementos regionais
foram o maior acercamento à realidade e à valorização do cenário local. Este fato, por seu
turno, tem um outro efeito que confere ao regionalismo importância superior às circunstâncias
que regeram o seu nascimento. Proveio daí um maior interesse pelas questões da terra e seus
ocupantes; e a glorificação do herói cedeu lugar às reflexões em torno à miséria econômica e
alijamento do poder das camadas campesinas.
É neste cenário cultural, marcado por uma ruptura estilística e temática, que João
Antônio dos Santos Gumes se lança como um homem das letras baianas, escrevendo
26
romances que denunciam e apresentam as riquezas naturais e humanas existentes em sua
província.
O caetiteense poderia geograficamente encontrar-se afastado dos grandes centros
de efervescência dos ideais libertadores, mas espiritual e intelectualmente estava muito
próximo. Gumes vivencia de perto essas transformações, deixando-se contaminar por todos os
ideais "libertadores". É natural que isso acontecesse, pois, autodidata e curioso, ainda muito
criança desvendou os mistérios do ler e do escrever, o que lhe permitiu ter acesso às idéias
revolucionárias veiculadas nos livros, nos jornais e nas revistas circuladas nos grandes centros
urbanos, mas que, com muitas dificuldades, tardiamente chegavam às pequenas cidades e aos
vilarejos do Alto Sertão baiano. Talvez Marcolino, protagonista do seu romance Os
Analphabetos25, tenha razão: "a leitura não põe fogo à panela mas traz perturbações à alma
humana". As leituras mexeram com "as idéias" do jovem Gumes e o fizeram um abolicionista
convicto, defensor das classes menos favorecidas de nossa sociedade, um revoltado com as
diferentes formas de tratamento dispensadas a cada região do país, em que umas, as
privilegiadas, Sul e Sudeste, recebiam todos os incentivos e as outras, o Nordeste pobre e
seco, especialmente o Sertão, eram esquecidas.
É natural também que a inclinação ao regional alimentasse o seu fazer literário.
Os romances Os Analphabetos, O Sampauleiro, Vida Campestre e Pelo Sertão apresentam os
aspectos singulares da "cor local". Nessas obras, situadas nos limites das Serras Gerais, ele
trata das relações do homem com a seca e com a miséria. Denuncia as relações de favor e a
política do coronelismo, prevalecendo o interesse pelo social e coletivo. O romance funciona,
para Gumes, como um instrumento precioso de denúncia e de revelação de "tudo que for
concernente à sua região"26. Dedica-se a um realismo documental, revelador tanto de
25 Cf. João GUMES, Os Analphabetos. p. 8, citado à n.5. 26 Cf. João GUMES, Os Analphabetos. p. 7, citado à n.3.
27
indivíduos mal inseridos numa coletividade, como de estruturas familiares e de compadrio. E
daí decorrem as demais peculiaridades de seus textos, como, por exemplo, o vocabulário
empregado e os costumes apresentados, que se destacam por se diferenciarem, se contrapostos
a um certo modelo convencionado como universal.
Os críticos literários, tantos os que tratavam da produção de âmbito nacional como
os de âmbito local, praticamente não fazem menção à prosa ficcional de João Gumes. Os
raros comentários encontrados são fragmentados, mesmo porque os primeiros obstáculos para
executar tal tarefa estavam em recuperar as obras das quais apenas se tinham notícias. Miguel-
Pereira, ao tratar dos grupos de escritores brasileiros que participaram do chamado
movimento regionalista, aponta Gumes como um dos baianos que escreveu romances dentro
desse gênero:
No Norte, porque com Oliveira Paiva e Domingos Olímpio, no Ceará, e Lindolfo Rocha, na Bahia, empreendeu o romance, fez-se o regionalismo menos rígido, permeável a concepções mais gerais do homem, ganhando em humanidade o que perdia em pitoresco. A este grupo se poderá prender João Gumes, que, em O Sampauleiro, estuda a emigração dos baianos das lavras para as lavouras paulistas, embora seja o seu livro de menor valor do que os dos acima citados. E também Luís Araújo Filho cujas Recordações Gaúchas, menos novela que crônica romanceada, reconstituem com grande interesse os costumes locais. 27
Pedro Calmom, em História da literatura bahiana,28 ao tratar da prosa na Bahia,
limita-se a incluir o nome de Gumes no rol dos que aqui, no início do século passado,
produziram romances.
A Enciclopédia de Literatura Brasileira29 cita João Gumes como teatrólogo e
romancista, apontando o drama Abolição e as comédias A Intriga Doméstica e A Sorte
27 Cf. Lúcia MIGUEL-PEREIRA. História da literatura brasileira: prosa de ficção - de 1870 a 1920. 3 ed. Rio de Janeiro: José Olympio/Brasília/INL, 1973. p. 184. (grifos nossos). 28 Cf. Pedro CALMON. História da literatura bahiana. Rio de Janeiro: José Olympio, 1949. p.218.
28
Grande como sendo sua produção literária. Interessante observar que se trata de textos
inéditos e que suas obras éditas, O Sampauleiro e Os Analphabetos, não constam nessa lista.
1.3 UM ROMANCISTA NO MEIO BAIANO
É sabido que quase todos os grandes romancistas da literatura brasileira divulgaram as suas primeiras obras em capítulos publicados semanalmente em folhetim, que alguns jornais faziam circular, inicialmente, nas grandes cidades e, depois, nas pequenas e longínquas províncias. Isso se dava porque, naquele período da nossa história literária, praticamente inexistiam editoras interessadas em publicar livros e o índice de analfabetismo era desanimador. Somando-se a isso, as próprias limitações da tecnologia e a falta de público leitor contribuíram para que isso acontecesse. Esse estado de coisas não se restringia apenas aos limites das fronteiras brasileiras. Ocorreu também na França no último quartel do século XVIII. Hohlfeldt30, ao tratar da evolução do gênero, diz que, naquele país, toda a ficção da segunda metade do século XIX foi essencialmente difundida através do romance-folhetim. E diz ainda que a democratização educacional, mediante o acesso à leitura, e o significativo desenvolvimento tecnológico e o conseqüente barateamento dos produtos advindos das tipografias, refletiam sobre a produção jornalística e livresca.
Ele aponta o nome de Émile de Girardin como iniciador desse tipo de expediente,
quando, em 1836, idealizou La Presse, publicação que revolucionou o jornalismo, mediante a
ampliação da publicidade e o aumento significativo da tiragem, o que levou ao barateamento
dos custos. Essa nova tendência de publicar os romances em folhetim ultrapassa as fronteiras
francesas e, com o passar dos anos, se generaliza por vários países da Europa e, felizmente,
chega ao Brasil, em 1838, quando o Jornal do Comércio do Rio de Janeiro, acompanhando as
novidades literárias da época, divulga o romance-folhetim de Alexandre Dumas, Capitão
Paulo.
Hohlfeldt31 afirma que, no Brasil, a divulgação de romances em folhetim inicia-se com o Romantismo e se estende até o Naturalismo. Vejamos o que diz:
29 Cf. Afrânio COUTINHO, J. Galante de SOUSA (Dir.). Enciclopédia de literatura brasileira. 2 ed., ver., amp., atual., il. São Paulo: Global; Fundação Nacional; Academia Brasileira de Letras, 2001. v.1. 30 Cf. Antonio HOHLFELDT. Deus escreve direito por linhas tortas: o romance-folhetim dos jornais de Porto Alegre entre 1850 a 1900. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003. p.20. 31 Cf. id., ibid, p.20.
29
(...) os escritores surgidos na maré do Romantismo brasileiro utilizariam o mesmo princípio para a divulgação de suas obras, e a circulação dos romances, no Brasil, através dos jornais, permaneceria até meados do século XIX, fazendo com que não apenas os textos românticos quanto os autores das tendências que se seguiriam, especialmente o Realismo e o Naturalismo, adotassem o mesmo tipo de veiculação. Também os textos de peças teatrais consagradas chegaram a ser veiculados no espaço do folhetim.
Tânia Rebelo Costa Serra32 aponta 1839 como o ano em que chegaram aos jornais
brasileiros o romance-folhetim e o romance em folhetim.33 Sua pesquisa sobre o tema,
resultando na Antologia do romance-folhetim, tem esse ano como ponto de partida e o de
1870 como término.
José Ramos Tinhorão34 diz que
O romance-folhetim antecedeu O Filho do Pescador, o primeiro romance brasileiro, de Teixeira e Souza, de 1843. Desde os inícios da década de 30 do século XIX publicava-se novelas e romances em capítulos nos jornais brasileiros.
Hohlfeldt35 é categórico ao afirmar que o primeiro romance-folhetim de autor
nacional, divulgado nas páginas do Jornal do Comércio, foi um texto anônimo, denominado A
Ressurreição de Amor, subintitulado Crônica Rio-grandense, editado nos dias 23, 24 e 25 de
fevereiro de 1839.
Como acontecera além-mar, entre nós essa prática gradativamente foi generalizando-se em diversos jornais que circulavam em várias cidades, principalmente nos grandes centros. Os nossos periódicos se encarregavam tanto de publicar traduções de romances estrangeiros como de divulgar textos nacionais.
32 Cf. Tânia Rebelo Costa SERRA. Antologia do romance-folhetim: (1839 a 1870). Brasília: Universidade de Brasília, 1997. p. 20. 33A autora estabelece diferenças entre o romance-folhetim e romance em folhetim. O primeiro é voltado para o grande público, que recorre ao romance em busca de diversão, e como, muitas vezes, era construido dia a dia até o total esgotamento da curiosidade do público, apresentava freqüentemente fallhas na unidade. O segundo, como existe uma preocupação com a organização interna em busca de uma unidade de estrutura para alcançar o valor estético, tem preocupações estruturais e temáticas que diferem das do romance-folhetim. Cf. Tânia Rebelo Costa SERRA. Antologia do romance-folhetim (1839 a 1870). Brasília: Universidade de Brasília, 1997. Para mais informações sobre o assunto Cf. Marlyse MEYER. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 34 Cf. José Ramos TINHORÃO. Os romances em folhetins no Brasil. São Paulo: Duas Cidades, 1994. P. 9 e 13. 35 Cf. Antonio HOHLFELDT, citado à n. 27.
30
Não podemos esquecer também que as primeiras manifestações literárias no
Brasil foram em verso. Acreditamos não ser nenhum exagero afirmar que até o início do
século XX o verso, em relação à prosa, gozou de mais prestígio entre os nossos escritores. As
razões desta preferência devem-se à maior facilidade de sua divulgação. Como vimos
anteriormente, era uma época em que inexistiam as editoras de livros, e um poema poderia se
tornar público por meio da declamação ou aparecer num rodapé de jornal: os escritores
privilegiavam o gênero, adaptando-o às modalidades disponíveis de comunicação. Além
disso, a poesia se alimentou da contribuição oral, pela familiaridade com o cancioneiro
popular, que estaria muito mais próximo do gosto cultivado da época, fato que levou muitos
críticos do período a afirmar que o Brasil era a terra dos poetas.
As cidades eram pequenas, como também eram reduzidos os instrumentos de
difusão. A solução encontrada pelos intelectuais para resolver essa questão foi uma espécie de
aliança sob a égide de um jornal literário. Fundaram-se vários periódicos, com a finalidade de
abrigar os escritores. Pode-se afirmar que o primeiro fenômeno de industria cultural no Brasil
foi a produção ficcional para a publicação na imprensa periódica brasileira no século XIX.
Esses periódicos eram, para os intelectuais da época, o único meio de difundir seus romances,
contos e novelas. Esse meio de divulgação dos textos em prosa terminou por levar os
escritores a desenvolver uma técnica de narração adequada ao padrão folhetinesco, que era a
de apresentar características de romance impressionantes e sensacionalistas. A descrição
pormenorizada certamente provocava muito interesse nos leitores do folhetim do período, que
era basicamente constituído de estudantes e senhoras da sociedade, conforme se lê no artigo
do Visconde de Taunay36 sobre os consumidores de ficção no periódico.
36 Cf. Visconde de TAUNAY. Reminiscências. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1908. p. 86-7. Mais informações sobre o assunto consultar: Sainte BEUVE. De la littérature industriale. Revue des Deux Mondes, Paris, p. 685, ler. sep. 1839.
31
Fato é que, apesar de o país ainda ser analfabeto, foi através do jornalismo que a literatura popularizou-se, multiplicando os leitores. Talvez a motivação desses leitores decorresse da evasão de problemas mais imediatos, sobretudo os de sua vida estreita.
Quanto à situação do estado da Bahia em relação à publicação de romances em
folhetim, Lizir Arcanjo Araújo Alves37 diz que desde os primeiros decênios do século XIX
novelas e romances na Bahia não têm a mesma relevância encontrada nas demais regiões do
país.
Esta falta de prestígio do texto em prosa levou Carvalho Filho38 a se perguntar se
teriam os baianos fracassado no romance. É claro que desde os primeiros anos do século XIX
as novelas e os romances são produzidos.
David Salles, ao tratar das primeiras manifestações da ficção na Bahia, diz que
...existiram causas influentes conduzindo a argumentos de natureza sociológico-literária para explicar a conseqüência, ou seja, a quase ausência ou pobreza indigente da manifestação ficcional na Bahia do século passado. E arrumadas a modo de esquema, seriam: a) neoclassicismo baiano retardatário; b) prestígio literário e popular da retórica oratória, na tribuna e no púlpito; c) preferência e predomínio da manifestação poética, favorável à conquista rápida de notariedade social no meio provinciano; d) culto da erudição em decorrência da projeção da Faculdade de Medicina como núcleo da vida cultural baiana; e) ausência de autores.39
Pedro Calmon afirma que a Bahia teve um número expressivo de romancistas:
Romancistas, é preciso dizer, os teve em bom número a província, alguns com desenganada vocação para o gênero, porém todos – antes de Xavier Marques e Afrânio Peixoto - estranhamente limitados à sua área de produção, quer pela modestia das tentativas, quer pelo desfavor ou incúria dos editores que as não encorajava. Numa relação de escritores de romances, contos e novelas têm de figurar Manuel Carijé, Sérgio Cardoso, Cirilo Eloi,
37 Cf. Lizir Arcanjo ALVES. Poesia e vida literária na Bahia de 1890 a 1915. São Paulo, 1986. Dissertação de Mestrado, USP, 1986, p.199. 38 Cf. Aloysio de CARVALHO FILHO. A Bahia no romance brasileiro. Diário Official do Estado da Bahia,. Salvador, jul. 1923, p. 99-101. Edição especial do centenário da Independência. 39 Cf. David SALLES. Primeiras manifestações da ficção na Bahia. Salvador: UFBA, 1973. p.12 (Estudos Baianos, 7). (grifos nossos).
32
Ana Ribeiro de Góis Bittencourt, Amélia Rodrigues, o sertanejo João Gumes. 40
O estado da Bahia apresenta uma produção de narrativas ficcionais expressiva, mas o que lhe faltava eram as editoras que estivessem interessadas em publicar a produção local.
Certamente não será exagero afirmar que Gumes, mesmo sendo um homem simples e pacato, limitado pela longa distância que o separava dos grandes centros, e, praticamente, pela inexistência dos meios de comunicação de massa, esteve ao longo de sua vida “conectado” com o processo de desenvolvimento cultural, intelectual, sobretudo o que se refere à divulgação de conhecimentos através do texto escrito, que se processava nas grandes urbes brasileiras e, porque não, mundiais. Apesar de o romance-folhetim não ter sido tão bem acolhido pelos periódicos da Bahia como nas demais regiões do país, e da província onde vivia estar a uma distância de 757 quilômetros da capital baiana, esses fatos não impediram que Gumes se colocasse como sujeito agente de uma tendência iniciada na França e que estava se propagando no Brasil: divulgação de romances em folhetim. Ele não só divulgou como também escreveu seus romances seguindo, em linhas gerais, as mesmas características de seus contemporâneos.
Suas principais preocupações eram contribuir para combater o analfabetismo que
reinava no Brasil, mas principalmente nas províncias mais distantes dos grandes centros
urbanos, porque, segundo Gumes, somente através do conhecimento adquirido nos livros as
pessoas poderiam lutar e conquistar a libertação de todos os tipos de opressão e injustiça
social. Desejava contribuir para o progresso social e cultural de sua região. E, como bom
cidadão, é natural que desejasse compartilhar seu conhecimento com os demais. Talvez essas
preocupações o tenham motivado, mesmo conhecendo suas limitações enquanto escritor, a
criar um jornal e publicar capítulo a capítulo os seus romances, inscrevendo seu nome no rol
daqueles pioneiros na produção e divulgação de textos desse gênero. As suas obras Pelo
Sertão e Vida Campestre são os primeiros exemplos de romance folhetinesco na região
sudoeste do estado da Bahia.
O jornal de Gumes desempenhou um papel central não apenas em Caetité, mas em
toda a província, pois contava com a participação de sócios de várias cidades do interior.
40 Cf. Pedro CALMON. História da literatura bahiana. Rio de Janeiro: José Olympio, 1949. v.2, p.218. (Grifos nossos.)
33
Facultou a constituição de um sistema complexo de intercâmbio de idéias e produções
literárias, bem como a consolidação de uma cultura com características próprias.
A iniciativa de Gumes, de criar o jornal A Penna e de escrever prosa para ser veiculada nesse periódico, provavelmente não foi a única nas províncias pertencentes ao nosso estado, principalmente aquelas mais prósperas e próximas da capital. Essa possibilidade leva a crer que algo no sentido de levantar e resgatar esta produção deva ser realizado com uma certa urgência.
2 O RESGATE DA OBRA
O material de Gumes, tão rico em quantidade de informações e diverso em
qualidade, estava prestes a desaparecer por completo. Poucos tinham conhecimento de sua
existência. E os que o tinham, utilizavam-no da pior forma possível: ou era mero objeto de
curiosidade, ou só servia para os estudantes do ensino médio cumprirem tarefas41 nas
tradicionais gincanas escolares.
Após tomar conhecimento da existência do jornal A Penna na cidade de Caetité,
procuramos obter mais informações a respeito do autor, do local e/ou locais onde poderiam
ser encontrados os exemplares do jornal, os manuscritos, os textos impressos, as partituras, os
dados pessoais, enfim, tudo que fora produzido e que pertencesse ao escritor João Antônio
dos Santos Gumes.
O primeiro passo tomado no intuito de reunir a produção foi procurar os
familiares de João Gumes que ainda residiam em Caetité. D. Heloísa Gumes, uma das filhas
do escritor, em entrevista, revelou-nos que seu pai tinha o hábito de arquivar um exemplar de
cada número do jornal A Penna e todos os manuscritos dos romances que havia produzido ao
34
logo de sua vida. Entretanto, após a sua morte, os filhos, quando se casaram, levaram consigo
caixas contendo documentos e livros, dispersando dessa forma a obra. No entanto, no porão
da casa onde vivera o escritor, ainda existiam vários exemplares do jornal A Penna e alguns
manuscritos referentes a sua produção literária. Ainda segundo D. Heloísa, parte destes
documentos que sobraram no porão da sua casa e que estavam sob seus cuidados, tinha sido
emprestada a alguns professores da faculdade42 para fazerem estudos. Os mesmos nunca
haviam retornado para lhe devolver o referido material. Existia ainda uma parte no porão
mas, infelizmente, ela não permitiria a mais ninguém vê-la ou pegá-la. Nada sairia daquele
local.
Explicamos a D. Heloísa o nosso interesse em criar o Acervo do escritor, a fim de
colecionar, classificar, preservar e tornar acessível à pesquisa os escritos e os jornais de João
Gumes. Informamo-la da importância de se reunir esse material que estava disperso e
susceptível de ser destruído por completo, privando, assim, a comunidade científica e a
sociedade de modo geral de a ele terem acesso ou, pelo menos, de saberem da sua existência.
Muitas foram as tentativas de convencê-la a fazer-nos a doação. Informamo-la
também da criação do Arquivo Público Municipal de Caetité pelos professores Maria de
Fátima Pires e Paulo Henrique Duque e garantimos que o acervo de João Gumes ficaria em
uma sala especial do Arquivo Público e, lá, ele seria organizado e protegido. Os documentos
não poderiam ficar espalhados como estavam, mas deveriam estar em poder de uma
instituição séria e responsável que se comprometesse a conservá-los e disponibilizá-los, de
forma segura, ao alcance de todos.
41Muitos exemplares do jornal A Penna circulavam com uma certa freqüência entre os estudantes de Caetité nas tradicionais gincanas escolares. Normalmente, os exemplares emprestados nestas ocasiões não retornavam e, quando isso raramente acontecia, sempre estavam multilados: recortados, riscados, rasgados. 42 A faculdade a que nos referimos é a Universidade do Estado da Bahia, especialmente o atual Departamento de Ciências Humanas – Campus VI de Caetité.
35
D. Heloísa se mostrou muito preocupada em nos fazer a doação. Hesitava porque
não mais confiava em ninguém. Temia que fizéssemos o mesmo que os outros professores
haviam feito quando a procuraram anteriormente: desaparecer com os documentos. Levamo-
la ao Arquivo Público para mostrar o estatuto do mesmo e o local onde os documentos seriam
acomodados e acondicionados. Um mês após a visita ao Arquivo Público, ela resolveu nos
procurar e fazer a doação, meio tímida, de alguns exemplares avulsos do jornal A Penna.
De posse dessa primeira doação, procuramos um dos professores mencionados por
D. Heloísa na entrevista. O professor, depois de negar que possuisse material pertencente a
Gumes, revelou-nos que realmente tinha em suas mãos uma tradução feita pelo escritor de um
livro do francês para o português e os exemplares do A Penna correspondentes ao período de
20 de maio de 1898 a 12 de maio de 1905. Acrescentou, porém, que, infelizmente, não
poderia devolvê-los porque ainda não concluíra a pesquisa iniciada a uns seis anos atrás. Com
muita insistência conseguimos ver esse material e fotografar a coleção do jornal que estava
em seu poder (cf. figura 11). A devolução da coleção de A Penna foi impossível porque o
professor pretendia concluir suas pesquisas sobre a história da Educação em Caetité e as
crônicas de Gumes publicadas no jornal eram sua fonte principal. Os jornais estão em estágio
avançado de decomposição: o papel desintegra-se com o simples toque dos dedos. Mas,
felizmente, depois de uma série de investidas, a tradução retornou às mãos D. Heloísa para
que ela pudesse nos fazer sua doação.
Diante da atitude do professor, D. Heloísa resolveu nos doar os manuscritos que
estavam em seu poder, de um exemplar do romance Os Analphabetos e do segundo volume
do romance O Sampauleiro e da tradução de um livro descritivo do interior do Brasil escrito
pelo francês Ferdinand Denis.
36
Outro passo tomado para concretização de nossa missão foi proceder a buscas nas
bibliotecas mas, infelizmente, nada foi localizado. Apesar de por ora sermos obrigados a
apresentar um primeiro produto, a tese de doutoramento, a recensio dos documentos
pertencentes ao escritor caetiteense continua. A dificuldade consiste no fato de os parentes
que possuem algo do escritor não mais se encontrarem na terra natal de Gumes. E de as
pessoas negarem possuir material que havia pertencido ao escritor. Buscamos localizar nas
bibliotecas particulares e públicas e nos arquivos públicos textos completos ou fragmentos de
obras publicados em periódicos: revistas e jornais. Dessa busca, até o momento, só foi
localizado um fragmento do romance Os Analphabetos, publicado em 14 de agosto de 1928,
no jornal A Tarde.
Tentamos localizar o Sr. Silvio Gumes, que atualmente reside em São Paulo, e o
Sr. Marcelo Gumes, que mora na cidade de Vitória da Conquista, na expectativa de
conseguirmos o restante da obra do escritor, em especial os manuscritos dos romances Pelo
Sertão, Vida Campestre, Os Analphabetos e o primeiro volume de O Sampauleiro, que
acreditamos estar no poder do Sr. Silvio Gumes.
À medida que íamos recebendo esse material, procedíamos à higienização, à
leitura superficial para uma primeira organização, à organização dos manuscritos em
conjuntos, ao arquivamento dos manuscritos em pastas e à organização cronológica dos
jornais.
No momento do nosso encontro e início do envolvimento com a obra do autor,
acreditávamos que a catalogação dos documentos seria o grande problema a ser resolvido
quanto ao projeto que pretendíamos desenvolver. No entanto, ao darmos início às pesquisas,
verificamos que a reunião da obra do escritor João Gumes para a constituição do Acervo seria
uma tarefa muito árdua e difícil de ser executada. Ainda hoje parece-nos quase impossível
37
reunir a sua produção intelectual e aquilo que o fez um intelectual: a sua biblioteca. Onde
estão os livros que Gumes manuseou e leu? Não mediremos esforços para um dia, obviamente
não muito distante, conseguir localizar a sua produção e o seu acervo bibliográfico.
No desenvolvimento de nossa pesquisa, resgatar os textos de Gumes não foi o
único problema com que nos deparamos. Outro tão grave, ou até mais, a depender do ponto de
vista de que se encare o problema, é a impossibilidade de seu manuseio. O material
recenseado também apresenta problemas sérios de conservação. A leitura de alguns
exemplares do jornal A Penna, conforme atesta a figura 11, é impossível, devido às péssimas
condições físicas do suporte. Muitos exemplares estão total ou parcialmente destruídos e os
que aparentemente se encontram em boas condições de conservação não podem ser
manuseados em decorrência do avançado estado de desidratação e do alto nível de acidez; o
papel rompe-se ao simples leve toque da mão ao serem abertos. A situação é tão grave que
quase não nos restam alternativas. Se abrirmos os jornais para fazermos microfilmagem,
escaneá-los ou fotografá-los, corremos o risco de destruí-los por completo. Em contrapartida,
se não os abrirmos, não teremos acesso nem a uma parte significativa da produção literária de
João Gumes, que foi publicada em forma de folhetim no jornal A Penna como, por exemplo,
os romances Pelo Sertão e Vida Campestre, nem às centenas de crônicas que fazem parte de
sua produção como jornalista. Se escolhermos esta ou aquela opção estaremos, da mesma
forma, cometendo um crime contra a preservação do patrimônio cultural baiano, uma vez que
inviabilizaríamos, é claro que de formas distintas, a manutenção e a veiculação do saber
produzido pelo intelectual caetiteense. Em relação a outros exemplares do jornal, a situação é
um pouco diferente, mas não menos grave: foram recortados e apresentam partes faltantes,
justamente nas colunas em que se encontrava um texto de Gumes. A título de ilustração, o
exemplar de no 163, página 2, traz publicado um capítulo do romance O Sampaleiro.
38
Justamente nessa coluna, falta metade da página que corresponde à coluna onde iniciava o
capítulo do romance.
O estado de conservação dos impressos em forma de livro e dos manuscritos não é
muito diferente da situação dos periódicos. Dos impressos, o romance Os Analphabetos é o
que apresenta piores condições de conservação: papel está amarelado, nota-se a ação de
insetos em quase todas as páginas, as margens superior e inferior apresentam rasgos e a parte
superior das últimas 5 páginas foi totalmente destruída. O segundo volume do romance O
Sampauleiro, quanto aos aspectos físicos do suporte, encontra-se em boas condições de
conservação, mas, quanto à mancha escrita, a tinta de péssima qualidade esvaeceu e, em
muitas páginas, o conteúdo do texto é praticamente ilegível. Os manuscritos apresentam, na
sua grande maioria, um quadro melhor: o suporte revela ação do tempo, está amarelado, em
estágio inicial de desidratação, com manchas de tinta, de água e de fungos; o descuido levou
ao desaparecimento de fólios de alguns conjuntos. A título de exemplificação, o drama
Abolição tem seus últimos fólios rasgados ao meio e a parte inferior, correspondente à 11a
cena do último ato, desapareceu. A outra parte desse fólio foi localizada em meio a outros
manuscritos. O manuscrito da tradução do livro escrito pelo francês Ferdinad Denis encontra-
se em ótimas condições de conservação (cf. figura 2), excetuando-se os primeiros fólios.
Estes, devido ao fato do volume ser encadernado e à falta de cuidados em seu manuseio,
foram colados à capa do livro manuscrito montado pelo próprio João Gumes,
impossibilitando, portanto, identificar o título, nome do autor, editora e data de publicação do
original em francês.
39
40
Fig. 2: Foto do manuscrito do livro traduzido por João Gumes. Os primeiros fólios encontram-se colados à capa, impedindo a sua leitura. Observa-se o cuidado do autor ao costurar os cadernos de papel almaço e o seu estado de conservação.
41
Fig. 3: Penúltimo fólio do manuscrito do drama Abolição.
42
Fig. 4: Recto do último fólio do manuscrito do drama Abolição.
Fig. 5: Verso do último fólio do manuscrito do drama Abolição.
43
Fig. 6: Capa do segundo volume do romance O Sampauleiro.
44
Fig. 7: Contracapa do romance O Sampauleiro.
45
Fig. 8: Fólio do manuscrito do segundo volume do romance O Sampauleiro.
46
Fig. 9: Foto das partituras da música “À memória do Dr. Joaquim Manuel Rodrigues Lima”.
Fig. 10: Foto do manuscrito do romance Seraphina e do drama Abolição.
47
Fig. 11: Foto da coleção do jornal A Penna correspondente ao ano de 1898. Observa-se o estado de conservação e a impossibilidade de sua consulta.
48
2.1 A OBRA
Visando a realizar uma das propostas apresentadas no item anterior, realizou-se o
levantamento preliminar de todos os dados e testemunhos existentes sobre a obra de Gumes,
para a conseqüente análise de sua tradição. Até o presente momento foram reunidos:
a) dos éditos:
• O Sampauleiro: romance de costumes sertanejos
Os dois volumes da publicação textual, sendo uma cópia xerox do primeiro
volume, gentilmente cedido pela sobrinha do escritor Maria Belma Gumes, e um exemplar do
primeiro; parte do manuscrito autógrafo correspondente aos últimos capítulos do segundo
volume; e os capítulos do segundo volume publicados no jornal A Penna.
• Os Analphabetos
Do romance Os Analphabetos, publicado, em 1927, pela Escola Tipográfica Salesiana, temos um exemplar do impresso bastante danificado devido à ação de insetos e uma cópia xerox de outro exemplar em perfeito estado de conservação.
• Vida Campestre
Do romance Vida Campestre localizaram-se o primeiro e o último capítulo que circularam em 25 de junho de 1914 e em 6 de setembro de 1917, respectivamente, e os folhetins correspondentes aos capítulos XXIV, XXV, XXVI e XXVII, dos quais, infelizmente, não foi possível identificar a data de publicação devido ao estado de conservação dos jornais, faltando justamente a parte superior das folhas, local onde se encontra a datação.
• Sorte Grande e A Vida Doméstica
Apesar de Gumes, em O Sampauleiro, ter feito referência aos textos Sorte Grande e A Vida Doméstica como sendo duas comédias, até o momento, nada de concreto pode ser localizado que comprovasse a existência das mesmas.
• Pelo Sertão
49
Do romance Pelo Sertão localizou-se o primeiro capítulo e a conclusão que circularam em A Penna, em 4 de abril de 1913 e em 27 de março de 1914, respectivamente.
b) dos inéditos:
• Mourama
Do Mourama localizou-se o manuscrito autógrafo do qual fizemos uma leitura
paleográfica.
• Abolição
Do drama Abolição localizou-se o manuscrito autógrafo completo, com emendas
autorais e uma cópia do prólogo feita pelo próprio autor. Uma vez que os textos apresentam
um número expressivo de emendas autorais, dentre elas, supressões e acréscimos nas
entrelinhas superior e inferior, procedeu-se uma leitura paleográfica da versão completa e do
prólogo, utilizando uma bateria de sinais, para que as emendas ficassem manifestas ao leitor,
principalmente o leitor especialista, que se deparará com um material revelador do processo
de construção do texto de Gumes.43
Seraphina
Do projeto de romance filosófico, segundo o próprio autor, localizou-se o manuscrito autógrafo dos capítulos que já tinham sido escritos quando da sua morte.
c) da produção jornalística:
As crônicas publicadas no jornal A Penna correspondem ao período de 19 de
dezembro de 1911 a 01 de setembro de 1916, que somam um total de 99 textos e que já foram
transcritas.44 Vale dizer que nem todos os exemplares do jornal desse período tiveram
condições de manuseio, o que significa que a reunião da produção jornalística ainda não pôde
ser concluída. As crônicas, que puderam ser lidas e transcritas, vão relacionadas a seguir:
43 A leitura paleográfica do drama Abolição não faz parte desta tese, porque, em trabalho deste gênero, necessário se faz realizar recortes possíveis de ser, efetivamente, concretizados dentro dos prazos legais.
50
TÍTULO NOTA DE IMPRENTA
Programma 19 dez. 1911, n. 1, p.1-2.
Êxodo 09 jan. 1912, n . 2, p.1.
Ainda o Êxodo 26 jan. 1912, n. 3, p. 1.
Micro-Chronica 26 jan. 1912, n. 3, p. 2-3.
Educação 09 fev. 1912, n. 4, p. 1.
24 de fevereiro 28 fev. 1912, n. 5, p. 1.
Rio Branco 28 fev. 1912, n. 5, p. 2.
Rio Branco 15 mar. 1912, n. 6, p.1-2.
Açudes 29 mar. 1912, n. 7, p.1.
Max Leuret 12 abr. 1912, n. 8, p.1-2.
Açudes 26 abr. 1912, n. 9, p.1.
O Cobre 10 maio 1912, n. 10, p.1.
A ferro-via 24 maio 1912, n. 11, p. 1.
Theatro 07 jun. 1912, n. 12, p. 1.
Theatro 21 jun. 1912, n. 13, p. 1.
Theatro 05 jul. 1912, n. 14, p. 1.
Theatro 19 jul. 1912, n. 15, p.1.
TÍTULO NOTA DE IMPRENTA
Theatro 02 ago. 1912, n. 16, p.1.
Theatro 23 ago. 1912, n. 17, p.1.
Theatro 06 set. 1912, n. 18, p. 1.
Açudes 20 set. 1912, n.19, p. 1.
A canna de assucar 08 out. 1912, n. 20, p. 1.
Paiz ignoto 18 out. 1912, n. 21, p.1.
Paiz ignoto [continuação] 01 nov. 1912, n .22, p. 1.
A proposito de K. Martello 15 nov. 1912, n. 23, p. 1.
44 As noventa e nove crônicas recolhidas do A Penna não constituirão corpus do presente trabalho. Serão objeto de outra investigação que em breve concluiremos.
51
19 de dezembro 19 dez. 1912, n. 25, p.1.
Renovação 03 jan. 1913, n. 26, p. 1.
As engenhocas 17 Jan. 1913, n. 27, p.1.
A lavoura: seu estado actual 31 jan. 1913n. 28, p.1,.
A lavoura: causas do seu atrazo 19 fev. 1913, n. 29, p.1.
A lavoura 28 fev. 1913, n. 30, p.1.
Nossa situação 09 mar. 1913, n. 35, p.1.
A lavoura: há probabilidade de um futuro prospero
entre nós?
14 mar. 1913, n. 31, p. 1.
Instituto de Butantan 14 mar. 1913 n. 31, p. 1.
Despovoamento do sertão - 11 abr. 1913, n. 33, p.1.
Emigração: recrudesce o mal 25 abr. 1913, n. 34, p.1.
Emigração: o alpha. Correspondecia de bebedouro
n’elle publicada.
23 maio 1913, n. 36, p.1.
Hookworm: verme do amarellão. 23 maio 1913, n. 36, p. 4.
O emigrante : como se creou o typo entre nós 06 jun. 1913, n. 37, p.1.
A victoria do civilismo 20 jun. 1913, n. 38, p.1.
Dous de Julho 04 jul. 1913, n. 39, p.1.
Açudes: trabalhos da commissão de obras contra as
seccas.
18 jul. 1913, n. 40, p.1.
A baixa do café: opiniões sobre as causas d’ella. 01 ago. 1913, n. 41, p. 1.
Engenhocas: o orçamento deve ser melhor estudado no
art. 30 da tabella n.2
15 ago. 1913, n. 42, p.1.
TÍTULO NOTA DE IMPRENTA
Pelles: uma riqueza 29 ago. 1913, n. 42, p. 1.
Monte Alto: riqueza do município. Optima situação da
villa.
12 set. 1913, n. 44, p.1.
Monte Alto: riqueza do município. Optima situação da
villa. [Continuação]
26 set. 1913, n. 45, p.1.
Retorno 10 out. 1913, n. 46, p.1.
Repatriamento 05 dez. 1913, n. 50, p.1.
Rememorando 19 dez. 1913, n. 51, p.1.
52
Invasão 02 jan. 1914, n. 52, p.1.
Contra as seccas 30 jan. 1914, n. 54, p.1.
Clama: ne cesses 13 fev. 1914, n. 55, p. 1.
A eleição 27 fev. 1914, n. 56, p. 1.
A catastrophe 27 mar. 1911, n.58, p. 1.
Meios de transporte 10 abr. 1914, n. 59, p.1.
As festas ao 2 de julho 9 jun. 1914, n. 64, p.1-2.
Situação angustiosa: falta-nos tudo. Achamo-nos
assediados. Habeas corpus
25 jun. 1914, n. 62, p.1.
As estradas: são ellas o elemento do qual depende em
primeiro lugar o nosso progresso.
25 jun. 1914, n. 63, p.1.
Cemiterios: ruinas e abandono. 23 jul. 1914, n. 65, p.1.
Pelo commercio: um problema a resolver 06 ago. 1914, n. 66, p.1.
A emissão do papel 03 set. 1914, n 68, p.1.
Imprevidência 12 nov. 1914, n. 71, p.1.
O fogo: como meio de amanho da terra 26 nov. 1914, n 72, p.1.
Conciliação 19 dez. 1914, n. 73, p.1.
[Não vimos, por estas linhas, assignalar grandes
conquistas...]
19 dez. 1914, n. 73, p.1.
O anno que vae-se 31 dez. 1914, n. 75, p. 1.
Conciliação 28 jan. 1915, n. 76, p. 1.
O correio 11 fev. 1915, n. 77, p.1.
Ainda o correio 25 fev. 1915, n.78, p.1.
TÍTULO NOTA DE IMPRENTA
Exploração 11 mar. 1915, n. 79, p.1.
O correio 25 mar. 1915, n. 80, p. 1.
Tivemos correio !! 08 abr. 1915, n. 81, p. 1.
14 de abril 22 abr. 1915, n. 82, p.1.
Exodo 03 jun. 1915, n. 86, p.1.
A secca: este alto sertão da Bahia tambem norte e acha-
se
17 jun. 1915, n. 87, p.1.
Associado pela secca 01 jul. 1915, n. 88, p.1.
53
A epidemia 15 jul. 1915, n. 89, p. 1.
Epidemia? 29 jul. 1915, n. 90, p. 1.
Ainda a epidemia 26 ago. 1915, n. 92, p.1.
Rainha do sertão? 21 out. 1915, n. 96, p. 1.
Choveu 04 nov. 1915, n. 97, p. 1.
15 de novembro 18 nov. 1915, n 98, p. 1.
Mendicancia 02 dez. 1915, n. 99, p. 1.
Um quatriennio 19 dez. 1915, n. 100, p. 1.
Os nossos males 12 fev. 1916, n. 104, p.1.
As searas 24 fev.1916, n. 105, p. 1.
Exprobrações 10 mar. 1916, n. 106, p. 1.
O café 23 mar. 1916, n. 107, p. 1.
O mercado 06 abr. 1916, n 108, p. 1.
O açude da cachoeirinha 20 abr. 1916, n. 109, p. 1.
Triste 04 maio 1916, n. 110, p. 1.
Riacho de S. Anna versus Caeteté 18 maio 1916, n. 111, p. 2.
Os nossos productos 01 jul. 1916, n. 112, p. 1.
Theatro 15 jun. 1916, n. 113, p. 1.
Do presente ao futuro 29 jun. 1916, n. 114, p. 1.
Em abandono 20 jul. 1916, n. 116, p. 1.
Os mercados públicos 04 ago. 1916, n. 117, p. 1.
Unamo-nos 01 set. 1916, n. 119, p. 1.
d) se outros trabalhos:
Da obra dispersa de João Gumes localizou-se ainda uma tradução de um livro de
história do Brasil cujo original é em língua francesa; a partitura de uma música intitulada À
memória do Dr. Joaquim Manuel Rodrigues Lima; a certidão para inscrição do jornal A
Penna, datada de 20 de fevereiro de 1924 e assinada pelos membros da sociedade: João
Antônio dos Santos Gumes e seus dois filhos Saadi Rutilho dos Santos Gumes e Luiz Antônio
dos Santos Gumes; o contrato de constituição de uma sociedade mercantil e industrial da
54
"Empreza Typografica d'A Penna estabelecida no prédio no. 17, à rua 2 de Julho", datado de
1º de janeiro de 1921, constando ainda as assinaturas dos três sócios; e o livro de Registro de
Assignantes d' A Penna entre 1924 a 1927. O livro de assinaturas, organizadas em ordem
alfabética,traz uma lista com 442 nomes de assinantes com a indicação da cidade onde
residem.
As buscas das obras foram (e continuam sendo) realizadas nos acervos públicos e
particulares, bem como nas bibliotecas públicas e particulares da cidade e da região sudoeste
do estado da Bahia e em vários outros lugares. Após a conclusão da recencio, o acervo da
obra de João Gumes deverá ser constituído de manuscritos e das edições em livros e em
periódicos em vida e post mortem do autor.
2.2 SOBRE O CONTEÚDO DE ALGUNS TEXTOS
2.2.1 O Sampauleiro
O Sampauleiro, romance escrito entre 1917 e 1929, quando se intensificava a
emigração do homem simples do campo para São Paulo, publicado primeiramente em
folhetins quinzenais no jornal A Penna durante um longo período que não pode ser
55
determinado com precisão, porque a coleção de que dispomos ainda se encontra incompleta,
sendo possível apenas consultar os folhetins que correspondem ao segundo volume. Em 1929,
toma fomato de livro na própria gráfica do jornal. Trata do movimento dos sertanejos em
direção aos estados do Sul à procura do eldorado. Nele o autor descreve o sofrimento do
homem do campo com as freqüentes e duradouras secas que o obriga a deixar suas
propriedades e seus familiares em estado de flagelo para partir em busca de soldos que
possam lhes garantir a sobrevivência. Característico dos romances que se prestavam à
divulgação em folhetim45, apresenta quatro personagens principais: o herói, João Lopes, a
heroína, Maria da Conceição, o vilão, Abílio, e o amigo e protetor, Professor Serafim.
2.2.2 Os Analphabetos
Os Analphabetos, romance escrito em 1927 e publicado em 1928 pela Escola
Tipográfica Salesiana em Salvador, é, segundo o próprio autor, uma obra de propaganda
contra o analfabetismo na região. Descreve os costumes e crenças do homem simples e rude
do campo. Marcolino, o pai do protagonista do romance, é a representação do homem simples
do sertão baiano, desprovido de instrução, limitado a reproduzir e a perpetuar os valores
herdados de seus antepassados. Por esta razão, considera o conhecimento adquirido através
dos livros algo maléfico ao ser humano, porque o transforma em ser pensante e
revolucionário.
45 Cf. Marlyse MEYER. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 472p. Consulte ainda Antônio HOHLFELDT. Deus escreve direio por linhas tortas: o romance-folhetim dos jornais de Porto Alegre entre 1850 1 1900. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003. 321p.
56
2.2.3 Pelo Sertão
Apesar de a contracapa do romance O Sampauleiro trazer a informação de que é
um texto inédito, Pelo Sertão circulou em A Penna, no período de 4 de julho de 1913 a 27 de
março de 1914. Segundo o próprio autor, descreve os costumes da zona alto-sertaneja.
2.2.4 Vida Campestre
Vida Campestre provavelmente circulou em A Penna entre 25 de junho de 1914 e
6 de setembro de 1917 (a primeira data refere-se ao início e a última à conclusão). Sobre o seu
conteúdo pouco se pode dizer porque os capítulos localizados oferecem apenas algumas
pistas. Entretanto, dois fatos autorizam a inferir que trata dos costumes do homem sertanejo e
do folclore da região. O primeiro é que, conforme Gumes, no segundo volume d'O
Sampauleiro, ao tratar das "queimadas", diz: "Na “Vida Campestre”, nosso trabalho ainda
infelizmente inédito, já fizemos uma demorada descrição desses incêndios." O segundo é que
a contracapa do romance O Sampauleiro traz: "VIDA CAMPESTRE – (Interessante romance
de folklorismo desta zona). Inédito".
Viu-se que no capítulo X, às linhas 103-110, e na contracapa do romance O
Sampauleiro, Gumes faz referência a sua obra Vida Campestre como sendo um texto ainda
inédito. Interessante observar que, em 1929, quando a obra que traz essas informações foi
publicada, Vida Campestre já havia circulado em folhetim, como atestam os exemplares do A
Penna que circularam em 25 de junho de 1914 e em 6 de setembro de 1917. Ao chamá-la de
57
"obra inédita" Gumes poderia ter se equivocado ou, simplesmente, não considerava a
veiculação de um texto em periódico como uma forma de publicação que o tornaria um édito.
2.2.5 Abolição
Gumes classifica a obra como comédia drama. É um texto inédito que trata da
permanência da escravidão na região das Serras Gerais após a abolição, ou seja, depois de
assinada a Lei Áurea que proibia essa prática no Brasil. O drama, composto de um prólogo e
três atos, apresenta onze interlocutores, a saber: Alferes Bonifácio, o solteirão Rocha, o
negociante de escravos Antenor de Sá, Dr. Francisco de Oliveira, o escravo Domingos,
Conselheiro Santos, o protagonista Capitão Sescuando, Antônio, Emília e Ussina. Apesar de
não ter sido publicado, provavelmente, esta é a obra de João Gumes mais conhecida na
atualidade, talvez, seja porque, em vida do autor, foi encenada repetidas vezes e ainda
costuma ser encenada nas comemorações cívicas.
2.2.6 Seraphina
Seraphina é um projeto de romance moralizador e filosófico. O manuscrito doado
ao Arquivo Municipal de Caetité está incompleto. Gumes apenas escreveu os cinco primeiros
capítulos, a saber: A velha Margarida, O aprisco e o pastor, A recém chegada,
Contrariedades, Nunca estamos isolados. Do sexto capítulo Gumes deixou apenas o seu
título: O club.
58
A contracapa do romance O Sampauleiro traz a seguinte informação a respeito
dessa obra: "SERAPHINA - romance moralisador e philosophico. Inédito." Diante desta
informação, pergunta-se: Na contracapa de um livro, onde estão listadas as "OBRAS DO
MESMO AUTOR" ,Gumes incluiria o título de um texto que apenas era projeto? Ele já teria
concluído o seu texto e, por uma razão qualquer, resolveu passar a limpo o que escevera, não
dispondo mais de tempo suficiente para concluí-lo e o deixando incompleto? Se o romance foi
concluído, onde estão os seus originais?
2.2.7 Mourama
Mourama, texto inédito, trata dos costumes sertanejos. Manuscrito autógrafo
completo, classificado por Gumes em auto comédia.
2.2.8 Sorte Grande e A Vida Doméstica As obras Sorte Grande e A vida doméstica também aparecem, na contracapa do
romance O Sampauleiro, no rol das "OBRAS DO MESMO AUTOR", somente com a indicação de serem comédias. Como ainda não foram localizadas, inferências a respeito do seu conteúdo não podem ser feitas. Pelas mesmas razões que expusemos no item 2.2.6, não sabemos se as duas comédias de fato foram escritas, apesar da segunda ter sido citada, na Enciclopédia de literatura brasileira46, com o título A intriga doméstica, como uma das produções de Gumes. Estas e outras dúvidas somente serão solucionadas quando os manuscritos forem localizados ou, quem sabe, quando a coleção de A Penna estiver completa e for possível consultá-la.
2.2.9 Outros trabalhos
46 Cf. Afrânio COUTINHO, J. Galante de SOUSA, citado à n. 26.
59
2.2.9.1 A tradução
Gumes também se dedicou à tradução de um livro de história do Brasil escrito em
francês. A obra descreve com riqueza de detalhes vários aspectos da flora, da fauna, da vida e
dos costumes do povo brasileiro.
O manuscrito doado por dona Heloisa ao Arquivo Municiopal de Caetité, pela
letra cuidada, pela falta de emendas e pelas gravuras ilustrativas que foram cuidadosamente
coladas, compondo uma unidade significativa, tem características de um texto passado a
limpo. Os cadernos de papel almaço foram costurados formando um grosso volume que
recebeu uma capa dura. Infelizmente, apesar da dedicação e do zelo de Gumes, os seus
primeiros fólios foram colados à capa, impedindo que as informações sobre autoria da obra
original e título fossem identificados. A identificação só se concretizará quando for viável a
sua restauração para separar os dois primeiros fólios da capa.
2.2.9.2 A partitura de música
A partitura da canção À memória do Dr. Joaquim Manuel Rodrigues Lima consta de 12 folhas, com a mancha escrita apenas no recto, não numeradas. No ângulo superior esquerdo de cada folha lê-se: Canção/ Rodrigues Lima. É uma composição de Ernesto Dantas Barbosa sendo Gumes encarregado de elaborar a partitura. Conforme sugere o próprio título, trata-se de uma homenagem post mortem a seu ilustre conterrâneo: primeiro governador do Estado da Bahia eleito pelo voto direto.
60
3 A CONSTRUÇÃO DO TEXTO DE JOÃO GUMES 3.1 INTRODUÇÃO
Do exposto até o momento dá para se ter uma idéia da diversidade de
possibilidades de estudos que podem ser desenvolvidos com a obra de João Gumes.
Resumidamente, elencam-se três recortes viáveis.
A primeira seria submeter os textos ao tratamento da Critica Textual Moderna,
preparando edições críticas para os textos impressos e edições crítico-genéticas ou genético-
críticas para os textos que apresentam testemunhos manuscritos, esclarecendo o processo de
criação do Autor, que deixa marcas de manipulação no texto. Essas marcas são correções
autógrafas, estilísticas e lingüísticas, que determinam a seleção realizada pelo escritor entre as
diversas possibilidades que o sistema lingüístico lhe oferece ao construir o texto. Desse modo,
faz-se um estudo genético da prosa de Gumes, visando depreender como o autor constrói o
seu texto, quais os instrumentos que utiliza e quais são os seus hábitos. Estar-se-ia, portanto,
buscando caracterizar o seu usus scribendi e o seu modus faciendi.
A segunda seria traçar a história de vida do escritor a fim de caracterizar histórico-
socialmente o período em que ele viveu, registrando a sua atuação como jornalista, fazendo-se
o inventário de sua produção intelectual, inserindo-o no meio literário baiano de seu tempo, e,
principalmente, avaliando os seus escritos mais relevantes. Seja qual for o caminho que se
trilhe, o trabalho a ser desenvolvido deverá registrar a memória cultural e garantir a sua
permanência porque, tornando transparente a produção de Gumes, desvelando as primeiras
incursões literárias dos escritores baianos e detectando a importância documental dessa
61
produção através de uma leitura ancorada na metodologia do gênero, haverá uma contribuição
sobremaneira válida para que as lacunas da historiografia literária baiana possam ser
preenchidas. Enfim, com esse resgate, utilizando-se do periódico fundado por João Gumes,
pode-se reconstruir a vida cultural da região sudoeste do estado da Bahia naquele período
porque, apropriando-se das idéias de Di Decca47, é através da vida guardada pelos grupos
vivos e, em seu nome, que ela está permanentemente aberta à dialética da lembrança e do
esquecimento, vulnerável a todas as utilizações e manipulações, susceptíveis a longas
latências e a súbitas revitalizações. A história é reconstrução sempre problemática e
incompleta daquilo que já não é mais. A memória é um fenômeno sempre atual, uma ligação
do vivido com o eterno presente.
A terceira seria estudar o léxico da obra do autor a fim de caracterizar tanto os
seus usos lingüísticos específicos como a língua utilizada por seus contemporâneos daquela
região. Assim também se estaria resgatando os aspectos sócio-culturais do Sudoeste baiano,
pois, como é sabido, o léxico de uma língua é constituído por um conjunto de vocábulos que
representa a herança sócio-cultural de uma comunidade. Apropriando-se de Matoré48, poder-
se-ia dizer que a palavra analisa e objetiva o pensamento individual, tendo um valor coletivo,
pois a sociabilidade é própria da língua. E, por essa razão, torna-se testemunha da própria
história dessa comunidade, assim como de todas as normas sociais que a regem. O estudo
sobre o léxico permite compreender os conceitos e as ocorrências da vida cotidiana, por ser
modelo e modelador de uma cultura.
Um outro aspecto que também deve ser considerado importante é que no estudo
da formação de uma dada língua faz-se necessário levar em consideração a influência
47 Cf. Edgard Salvadori DI DECCA. A memória e a cidadania. In: DI DECCA, Edgard Salvadori. Direito à memória: patrimônio histórico e a cidadania. São Paulo: DPH, 1992.p. 129-135. 48 Cf. George MATORÉ. La méthode en léxicologie. Paris: Didier, 1953. p.37.
62
exercida pelo ambiente através da experiência social. Esse contato entre língua e realidade irá
determinar a linguagem como reflexo da realidade e, sobretudo, como força geradora da
imagem do mundo que o indivíduo possui. Genericamente, pode-se considerar como princípio
o fato de que um vocábulo é aceito como elemento da língua, a partir do momento em que ele
passa a exprimir todos os valores de um determinado grupo social e, sobretudo, satisfazer suas
necessidades.
A língua concebida como um organismo vivo e dinâmico encontra-se em contínuo
processo de transformação, e essas transformações são explicadas pelo próprio funcionamento
da língua. Elas são motivadas por vários fatores, como por exemplo, geográficos, sócio-
culturais e históricos. E, por mais reduzido que seja um espaço geográfico, o estado natural
de uma língua nele inserida é o estado da mutabilidade. Toda essa dinamicidade da língua
evidencia-se, sobremaneira, no seu léxico, nível lingüístico que melhor documenta o modo
como um povo vê e representa a realidade em que vive. O vocabulário de um determinado
grupo social atesta seus valores, suas crenças, suas formas de nomear os referentes do mundo
físico e do universo cultural nas diferentes épocas da história. Ou seja, o vocabulário de uma
língua expressa a mutabilidade das estruturas sociais e a maneira como uma dada sociedade
vê e representa a realidade.
Daí acreditar que o vocabulário da obra regional de João Gumes mereça ser objeto
de estudo. Estudar o léxico da obra de um escritor regionalista e realista como Gumes é de
fundamental importância para a caracterização de seus usos lingüísticos específicos e da
língua utilizada por seus contemporâneos em uma dada região.
Uma leitura, mesmo que superficial, da obra de João Gumes aponta algo bem
particular em relação à escolha dos itens lexicais. Os seus textos literários de caráter regional
revelam certa predileção pelo uso de um vocabulário de “cor local”. Nessas obras, percebe-se
63
que o autor tem duas intenções: 1) documentar todos os hábitos e costumes da região sudoeste
do estado da Bahia, especialmente os da cidade de Caetité e de cidades circunvizinhas; 2)
documentar/registrar os vocábulos utilizados por seus contemporâneos. Essa intencionalidade
é explicitada pelo próprio autor no prefácio do romance Os Anaphabetos:
“Continuando o meu propósito de tornar conhecida esta região em tudo quanto concerne ao seu interesse e aproveitamento dos seus opulentos recursos, considerei que o melhor meio era escrever narrativas de fatos verossímeis acompanhados de descrição do nosso território e costumes do povo sertanejo. (...) o romance, a novella, ou qualquer trabalho d'este genero, é o que melhor propaganda faz.” 49
Os textos literários que tratam de outra temática e as crônicas publicadas no jornal
A Penna não apresentam a mesma característica. Nesses textos, diferentemente daqueles,
talvez movido por outras razões, principalmente com o objetivo de disseminar conhecimento
e de contribuir para “combater o analfabetismo reinante na região”, Gumes parece ter dado
preferência a termos mais “eruditos”, sobretudo de origem latina. Nesse caso também se
percebe a presença de palavras, expressões e frases em latim, italiano e francês.
Conforme foi demonstrado anteriormente, podem-se enfocar aspectos diferentes
da obra de João Gumes, mas, infelizmente, os prazos que devem ser obedecidos para o bom
andamento de um programa de pós-graduação, durante o processo de elaboração de uma tese
de doutoramento, são relativamente curtos, fato que obriga a escolher a primeira opção
apresentada, ou seja, submeter os textos ao tratamento da Crítica Textual Moderna. Mesmo
optando por este recorte, faz-se ainda necessário delimitar o objeto de estudo. O material já
reunido de Gumes consta de alguns textos que merecem e devem receber o tratamento
científico da Crítica Textual Moderna. Editar todo o conjunto demanda muito tempo, por isso,
elegeu-se o romance O sampauleiro porque esse texto, na perspectiva da Crítica Textual, é o
64
que apresenta as melhores condições para serem aplicados os procedimentos metodológicos
concernentes à preparação de uma edição crítica.
3.2 PARA UMA EDIÇÃO CRITICA DE O SAMPAULEIRO
A Crítica Textual Moderna procura editar a última versão de um texto. O seu
material de trabalho são os textos de autores modernos, cuja tradição é marcada pela variação
dos originais manuscritos ou das edições avaliadas pelo autor. A possibilidade de estudar
estes novos objetos levou os editores de textos modernos a rever alguns comportamentos,
reformular alguns instrumentos teóricos e metodológicos e criar outros. E,
conseqüentemente, abriu também novas possibilidades de estudo: fazer a edição crítica com
texto-base autógrafo ou autorizado pelo autor (Critica Textual Moderna), e estabelecer a
dinâmica do processo criativo a partir das marcas de correções de vários tipos deixadas pelo
autor nos seus manuscritos (Crítica Genética).
A Crítica Textual Moderna tem procurado estabelecer parâmetros científicos em
conformidade com o texto moderno, definido por sua organização interna e pelas
determinações contextuais. Impõe-se como questão relevante observar o modo de proceder
em relação à organização da produção regionalista de um escritor cuja obra foi produzida ao
longo de algumas décadas. Conforme já se disse, a necessidade de resgatar o patrimônio
cultural de um povo não é uma preocupação da modernidade, sua origem remonta aos gregos.
Nesse sentido as duas disciplinas, a Crítica Textual e a Crítica Genética, atuariam
conjuntamente em favor do texto editado, analisando-se tanto os procedimentos da
49 Cf. João GUMES. Os analphabetos, citado à n. 3, p.8.
65
organização textual como a recepção do texto, apresentando-os como traços que devem
fornecer subsídios para uma teoria geral do processo de criação.
A filologia textual tem revelado o quanto é importante estudar o processo de
criação do texto artístico, partindo-se dos resquícios que sobrevivem no trabalho de
construção do discurso. Um estudo desta natureza reverte, sem dúvida, em benefício para o
estabelecimento crítico do texto. Almulh Grésillon,50 por exemplo, defende que os editores e
os geneticistas devem trabalhar juntos. Estes ocupando-se do processo de criação, aqueles
estabelecendo o texto definitivo, mas ambos comungando do objetivo de dar relevo à
textualidade literária.
Tavani também compartilha de tal idéia. Segundo ele,51 a colaboração da Crítica
Genética para a Crítica Textual pode ser muito mais preciosa do que a tradicional colaboração
entre editores e historiadores. Em outro trabalho,52 aponta a Crítica Genética e a
Manuscriptologia como duas disciplinas que muito contribuem para o estabelecimento do
texto.
Tavani ainda aponta a necessidade de definir princípios teóricos gerais e critérios
básicos rigorosamente científicos, mas flexíveis e adaptáveis às particularidades de cada
situação textual, para que a subjetividade exerça influência. Diz que, numa edição crítica, o
objetivo deve estar na fixação do texto e que, quando se leva em consideração o processo de
criação literária, se está buscando atender à exigência de fixar um texto, de restituí-lo em sua
integridade, de estabelecer a realidade planejada e realizada pelo autor.
50 Cf. Almuth GRÉSILLON. Eléments de critique génetique: lire les manuscrits modernes. Paris: PUF, 1994. p.202 51Cf. G. TAVANI. Los textos del siglo XX. In: LITTERATURE LATINO-AMERICAINE ET DES CARAÏBES DU XX SIÈCLE: THÉORIE ET PRATIQUE D’ EDITION CRITIQUE. Roma: Bulzoni, 1988. p.55-56. 52 Cf. G. TAVANI. Le Texte: son importance, son intangibilité. In: LITTERATURE LATINO-AMERICAINE ET DES CARAÏBES DU XX SIÈCLE: THÉORIE ET PRATIQUE D’ EDITION CRITIQUE. Roma: Bulzoni, 1988. p. 34.
66
Luiz Fagundes Duarte, em Prática de edição: onde está o autor?,53 diz que,
dependendo do material de que o filólogo dispõe, uma edição crítica de textos modernos deve
ser crítico-genética. Enquanto crítica, procura estabelecer o texto mais próximo da intenção
final do autor; enquanto genética, busca documentar o percurso seguido pelo escritor na
construção de seu texto. Aquele que recebe o tratamento critico-genético terá, portanto, a sua
fixação mais autorizada e um aparato crítico-genético ou genético- crítico. O aparato crítico
registra as variantes da tradição impressa e o aparato genético reconstitui de modo codificado
a evolução da escrita de uma determinada passagem do texto.
Duarte apresenta algumas situações com as quais o editor pode se deparar.
Enquanto o editor crítico deve trazer à tona o texto que contém a última vontade do autor e
limpá-lo das adulterações introduzidas pela tradição, partindo-se do postulado de que a obra,
quando foi elaborada por seu autor, tinha como objetivo primeiro ser lida por outra pessoa; o
geneticista deve lidar com o manuscrito autógrafo trabalhando com as obras publicadas sob as
vistas do autor ou com as obras não terminadas ou deixadas inéditas. As informações
genéticas são preciosas porque permitirão ao geneticista identificar o modus faciendi
característico do autor e deduzir uma matriz estilística. Diz ainda que cabe ao editor crítico
genético a tarefa de apresentar ao leitor um texto legível, não como o texto final, mas como o
nível máximo a que conduziu o processo. Entretanto, não sendo possível estabelecer a vontade
derradeira do autor, deve-se considerar a pluralidade de vontades que se manifesta entre o
primeiro jato de escrita e o nível terminal do manuscrito.
Telê Porto Ancona Lopez54 assinala a impossibilidade de se relacionarem
manuscritos a uma edição crítica sem recorrer ao auxílio da Crítica Genética. O manuscrito
53 Cf. Luiz Fagundes DUARTE. Prática de edição: onde está o autor? In: ENCONTRO INTERNACIONAL DE PESQUISADORES DO MANUSCRITO E EDIÇÕES, 4. GÊNESE E MEMÓRIA. Org. Philippe Willemart. Anais... São Paulo: ANNABLUME, 1995. p. 335-376. 54 Cf. Telê Porto Ancona LOPEZ. Manuscrito: dimensões. Manuscrítica, 7. São Paulo, p. 39, mar. 1998.
67
moderno caracteriza-se por ser um texto marcado por alterações de toda ordem, substituições,
deslocamentos, acréscimos e supressões que expressam vontades do autor. O texto artístico,
resultado de uma cultura, dita o comportamento a ser adotado pelo editor, podendo ser
analisado em diferentes ângulos: narratologia, psicanálise, semiótica, poética etc.
As reflexões que aqui foram expostas definem os procedimentos que poderão ser
adotados também na edição dos textos do escritor baiano João Antônio dos Santos Gumes.
Desse modo far-se-á o uso de estratégias metodológicas que procurem englobar a elaboração
de edições críticas de textos modernos, orientando-se pelos princípios teóricos preconizados
pela Crítica Textual Moderna, considerando que editar criticamente um texto de autor
moderno leva, na medida do possível, a um tratamento genético de seus manuscritos.
O nosso objeto – o texto de João Gumes – tem-se apresentado sob formas
diferentes, completo, incompleto, inacabado, em prosa, com muitas ou poucas correções
lingüísticas e estilísticas, consubstanciadas em supressões, substituições e acréscimos. Os
autógrafos apresentam uma quantidade razoável de dados materiais, contabilizáveis e
comparáveis, reveladores de manipulação do texto pelo autor.
A leitura dos autógrafos de João Gumes oferece elementos que nos permitem
inferir: o escritor deixa marcas lingüísticas que revelam o seu usus scribendi, fato que
particulariza o seu modus faciendi diante de outros escritores. É através dessas marcas
deixadas nos manuscritos e da escolha vocabular que o autor expressa sua visão de mundo e
sua intenção poética, além disso, dialoga com as obras que o precedem, ao tempo que elabora
seu texto pressionado pela tradição literária.
A partir do estudo dos manuscritos do escritor que tenham versões diferentes de
um mesmo testemunho, poder-se-ia apresentar a gramática estilística de João Gumes. Para
68
tanto, procura-se seguir o método lingüístico aplicado por Luiz Fagundes Duarte55 aos
autógrafos de Eça de Queiroz, fazendo-lhes, é claro, os ajustes necessários de acordo com os
manuscritos de Gumes.
O método demonstrado por Luiz Fagundes Duarte tem como objetivo definir a
peculiar estrutura gramatical que está subjacente a cada um dos momentos de escrita,
reescrita, correção, e correção a correção. Constitui-se de seis etapas, a saber: 1) constituição
de uma amostra representativa do corpus, abarcando todos os testemunhos disponíveis; 2)
marcação dos níveis e momentos de todas as transformações textuais; 3) classificação por
classe gramatical, 4) elaboração de cálculos estatísticos acerca da distribuição de cada classe
em termos tipográficos; 5) elaboração de probabilidade; 6) matriz de probabilidade de
ocorrências.56
É possível encontrar no espólio de João Gumes textos em que se podem notar as
marcas que se registram ao longo da produção textual. O autor põe em confronto diversos
materiais lingüísticos, que vai testando, pondo em prática mecanismos de recusa, substituição,
acréscimos, até encontrar ou não aqueles que melhor servem para as suas representações da
realidade.
Nesses documentos autógrafos, pode-se observar que, na tentativa de alcançar o
texto "perfeito", mais elaborado, procede a leituras, releituras e reformulações da linguagem.
Essas reformulações consistem em reorganizações locais limitadas ao texto, manifestadas na
pontuação, na ordem das palavras, nas construções sintáticas, nas escolhas de termos
gramaticais e lexicais.
55 Cf. Luiz Fagundes DUARTE. A fábrica dos textos: ensaios de crítica textual acerca de Eça de Queiroz. Lisboa: Cosmos, 1993. 56 A professora Dra Rosa Borges Santos Carvalho, em sua tese de doutorado defendida em 2001, na Universidade Federal da Bahia, analisou exaustivamente os textos relativos ao mar que compõem a Coletânea poemas do mar do poeta baiano Arthur de Sales, aplicando-lhes o método demonstrado por Fagundes Duarte. O seu trabalho é excelente modelo de aplicação desse método a autores brasileiros. Cf. CARVALHO, Rosa Borges Santos.
69
Mas o editor da obra de Gumes não poderá perder de vista o que se subentende da
leitura de sua obra: seu desejo em tornar público os seus romances, único meio, segundo ele,
de contribuir para divulgação da cultura local e da dissiminação do conhecimento livresco na
região onde vivera. Tendo isso como ponto de referência, o editor crítico deve, antes de
realizar qualquer outro trabalho com a obra do escritor baiano João Gumes, trazer à tona o
texto que contém a última vontade do autor e limpá-lo das adulterações introduzidas pela
tradição, partindo do postulado de que a obra, quando fora elaborada, tinha como objetivo
primeiro ser lida.
Por isso, não consistirá meta desta tese identificar e interpretar, sistemática e
estatisticamente, as marcas reveladoras do processo de construção do discurso de João
Gumes, nem se terá como propósito último traçar o matrizamento da sua gramática estilística,
como fizera Fagundes Duarte em A fábrica dos textos57. Aqui, pelo contrário, oferecerá
elementos para que os geneticistas e/outros especialistas, que têm como objeto de trabalho os
manuscritos literários, sobre eles se debrucem e realizem as suas análises e conclusões.
Constitui como pretensão propor apenas a elaboração de uma edição crítica para o segundo
volume do romance O Sampauleiro, pelas razões acima apresentadas.
Edição crítico-genética dos "Poemas do mar" de Arthur de Salles. 2001. 901f. Tese de Doutorado orientada por Dr. Nilton Vasco da Gama, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1999. Cf. Luiz Fagundes DUARTE. A fábrica dos textos: ensaios de crítica textual acerca de Eça de Queiroz. Lisboa: Cosmos, 1993.
70
3.2.1 O Sampauleiro: do manuscrito ao texto definitivo
3.2.1.1 Descrição
O Sampauleiro, romance em dois volumes, concluído em 8 de
dezembro de 1929, apresenta três testemunhos: um manuscrito
autógrafo contendo apenas os últimos capítulos do segundo volume; e
dois éditos: uma publicação em folhetim em A Penna e outra em livro,
sendo uma cópia xerox do primeiro volume e um exemplar do segundo.
(Cf. item 2.1 A OBRA)
GUMES, João Antonio dos Santos. O Sampauleiro. Caetité, 1929.
O manuscrito, autógrafo, de texto não definitivo, apresenta um número
significativo de emendas autorais. Mancha escrita lançada no recto e no verso do papel
almaço amarelado, desidratado, pautado, em tinta azul. Letra regular, bem traçada. Encontra-
se incompleto, desordenado, assinado e datado. Agentes químicos externos, cola e tinta,
prejudicam a leitura de algumas partes. Números arábicos no ângulo superior direito indicam
a numeração dos fólios.
GUMES, João Antonio dos Santos. O Sampauleiro. A Penna, Caetité, 1918- 1929.
71
Testemunho publicado em edições quinzenais no jornal A Penna. Alguns
exemplares não podem ser manuseados devido ao estado físico do suporte: papel desidratado,
decompondo-se ao simples toque das mãos. Os números que se acham em condições de
manuseio apresentam dificuldade de leitura ora pela impressão de má qualidade ora pelas
condições materiais do papel: rasgões nas bordas, furos provocados pela ação de insetos e
produtos químicos, e pela ação do homem que recorta, rasga, risca. Os capítulos do romance
estão distribuídos em 3 ou 4 colunas das páginas do jornal A Penna, com a indicação do título
da obra: O SAMPAULEIRO, do capítulo em algarismos romanos: XX, seguida da expressão
Continuação, quando for o caso. Após o texto, vem a indicação da autoria de João Gumes.
GUMES, João Antonio dos Santos. O sampauleiro: romance de costumes sertanejoos. Caetité: A Penna, 1929. 2v.
Primeira publicação textual completa, editada pela Tipografia D’A Penna- Gumes
& Filhos, Caetité, Bahia. Composta em dois volumes, formato 10 cm x 14 cm, com capa dura,
vermelha. O primeiro e o segundo volumes trazem na folha de rosto: o nome do autor, JOÃO
GUMES, em tipo de letra diferente e maior, o título e subtítulo, O SAMPAULEIRO.
Romance de costumes sertanejos, a indicação da casa publicadora e local, TYP. D’A
PENNA – Gumes & Filhos – CAETITÉ – BAHIA. Volume 1: contém um A Modo de
Prefácio e três partes, a saber, O Sampauleiro, subdividido em capítulos I e II; SEGUNDA
PARTE, Sr. Seraphim, sem subdivisão em capítulos; TERCEIRA PARTE, Maria da
Conceição, subdividida em 29 capítulos, perfazem um total de 292 páginas. Volume 2:
dividido em duas grandes partes, a saber, QUARTA PARTE, Migração, subdividido em 11
capítulos; QUINTA PARTE, Abilio em acção, subdividido em 23 capítulos; e uma conclusão
intitulada PARA FINALIZAR, totaliza 384 páginas.
72
3.2.1.2 Enredo
Gumes, no primeiro volume do romance O Sampauleiro, trata do funcionamento
dos garimpos em Diamantina das Lavras, do abandono das atividades agrícolas em busca de
fortuna rápida, através da extração de pedras preciosas e do ciclo econômico, social e cultural
na região do Alto Sertão Baiano. Descreve as atividades agrícolas e vegetação da região. No
segundo volume, estuda a migração no Alto Sertão Baiano, apontando os principais fatores e
as conseqüências do fenômeno. A seguir, apresenta-se o enredo dos dois volumes do
romance.
V. 1
A história é narrada pelo amigo do Sr. M. que, depois de dias cavalgando
pela região do Alto Sertão Baiano, com o amigo param em uma modesta e asseada casa
a que pedem pouso. São gentilmente recebidos, têm sua refeição preparada e se
encantam com o tratamento que lhe foi dispensado e com a beleza da respeitosa dona da
casa. Após a refeição e o merecido descanso, continuam a viagem, mas, como não
conhecem as estradas, tomam uma direção errada que os leva à casa do Senhor Serafim.
Este dá abrigo aos dois. Durante a estadia, os viajantes, através do professor Serafim,
descobrem que aquela generosa senhora era mais uma vítima do processo de emigração
instalado naquela região que obrigava muitos bons pais de famílias a abandonarem seus
lares em busca do Eldorado em São Paulo.
73
O amigo do Sr. M., após ouvir o professor Serafim, narra a história de vida
do mestre-escola, como ele chegou a Caetité e como conheceu os personagens principais:
a sua comadre Maria da Conceição, o esposo João Lopes e o malvado Abílio que,
fazendo-se de amigo, praticava muitas crueldades contra o jovem casal.
Serafim, filho de uma mulata e de um português, nasce em São Felix do
Paraguaçu e ainda criança perde os pais e tudo que possui em uma enchente. Revoltado
com o infortuito que a vida lhe reservou, parte sem destino. Anda vários dias sem rumo
até que chega a Diamantina das Lavras, cidade para onde todos corriam em busca de
diamantes. Não lhe restando outra opção e motivado pela esperança de encontrar uma
boa e grande pedra preciosa, resolve também se dedicar à atividade de extração de
pedras preciosas. O esforço de seu arduo trabalho no garimpo rende-lhe poucos frutos.
Certo dia, o seu bom e fiel escravo, após seguir seu rastro por todos os lugares por onde
passara, o encontra. Movido pelo dever de ajudar o amo a obter riquezas, lança-se ao
ofício de garimpar em regiões muito perigosas. Durante uma gananciosa e perigosa
tentativa de encontrar uma “boa pedra” sofre um acidente e tem uma de suas pernas
amputada. Não agüenta o sofrimento da perda da perna e a infecção que se alastra em
seu corpo e morre. O jovem novamente sozinho, abalado, isolado e passando fome,
conhece um caixeiro-viajante que, penalizado pela situação em que o encontra, o
convida para acompanhá-lo em sua viagem de regresso a Caetité, prometendo trazê-lo
de volta a Diamantina das Lavras, caso não se adapte na sua propriedade.
Serafim, já nas propriedades do novo amigo, se encanta com as belezas
naturais da região, faz novas amizades, trabalha na lavoura, torna-se mestre-escola,
economiza algum pecúlio, compra pequena fazendola e constitui família. Conhece João,
Maria da Conceição e Abílio ainda crianças e, como mestre dos mesmos, tem
74
oportunidade de estudar o comportamento, o caráter e os sentimentos de seus
discípulos: Abílio é rico, mas de mau caráter, mesquinho e capaz de praticar a mais vil e
baixa ação para alcançar os seus objetivos (contrair matrimônio com Maria); João, ao
contrário, é um rapaz pobre, honesto, puro, ingênuo e trabalhador; e Maria, uma
mulher virtuosa, pura, honesta, formosa, que amava João. O mestre-escola acompanha
o crescimento de seus discípulos e os sentimentos que os jovens nutrem pela bela Maria.
Certo dia, Abílio resolve pedir a mão de Maria em casamento a seu pai. Mas este,
mesmo desejando proceder conforme os costumes da época – casar a filha por conveniência
social e interesses financeiros –, quando conhece os sentimentos da filha, permite que ela
escolha o seu pretendente. Ao receber a recusa do pedido de casamento, Abílio sente-se
ofendido e desprestigiado, sentimentos que lhe despertam a vontade de vingança e atiçam
ainda mais a paixão que nutre e o desejo de conquistar a sua amada. Abílio, na tentativa de
denegrir a imagem de Maria para que a família de seu escolhido não permita a união, falsifica
cartas em que a jovem declara seu amor por ele. Com a ajuda de sua mãe dona Úrsula, as
cartas falsificadas chegam ao conhecimento de Dona Senhorina, a mãe de João Lopez. A
notícia deixa dona Senhorinha muito triste, chegando a adoecer, mas, mesmo assim, a
bondosa mãe nada revela ao filho. A empregada da casa, Umberlina, ouve a conversa a
respeito da carta e comenta com a empregada de Serafim. O esperto Serafim descobre e
desfaz as armações de Abílio e de sua mãe. Maria finalmente se casa com João Lopez e vai
morar na casa da sogra. Após o casamento, o pai de Maria “arrebanha” um bom número de
sertanejos e emigra para São Paulo, levando consigo a comitiva de sampauleiros. O perverso
Abílio desconfia que a mexeriqueira Umberlina tenha roubado a carta falsificada e a tenha
entregue ao professor Serafim e, por isso, ele espanca a velha praticamente até à morte.
75
O professor Serafim, na tentativa de neutralizar novas investidas de Abílio, o
procura e lhe revela ter conhecimento das crueldades que praticara contra o jovem casal e do
espancamento de Umberlina para que ela confessasse ter roubado a carta. Abílio revela ao
professor ser ainda apaixonado por Maria, mas promete esquecê-la, uma vez que irá para São
Paulo.
V. 2
Abílio chega a São Paulo, faz amizade com pessoas de caráter duvidoso, arquiteta
novo plano para denegrir a imagem de Maria e separá-la de João e retorna para sua fazenda
em Caetité a fim de pôr em prática o seu plano. Fingindo-se de amigo do casal, aproxima-se,
oferece ajuda financeira. Com a colaboração de sua mãe, envenena a sogra de Maria,
deixando João vulnerável. Sem que ninguém saiba, faz com que João perca quase tudo que
herdara, inclusive a casa em que mora, em despesas de contendas judiciais. Compra algumas
letras promissórias na mão de alguns credores de João para que este lhe fique devedor e,
conseqüentemente, ele possa colocar em prática a segunda parte do seu plano. João, pobre e
sem condições de saldar sua dívida com o amigo e sentindo-se humilhado resolve migrar para
São Paulo e lá permanecer somente o tempo necessário de obter o pecúlio suficiente para
quitar sua divida, recuperar sua dignidade e tocar sua pequena propriedade.
Durante a longa viagem até São Paulo, João conhece Calisto, homem simples,
honesto e trabalhador, por quem desenvolve longa e fiel amizade. Os dois amigos trabalham
juntos, economizam tudo quanto podem e, à medida que João obtém pecúlio suficiente para ir
saldando as letras, envia-as a Maria. Enquanto isso, Abílio faz investidas no intuito de lograr
76
o afeto de Maria, mesmo que para isso manche a reputação da esposa fiel e virtuosa. Como
não consegue alcançar seus propósitos, intercepta todas as correspondências enviadas por
João a sua esposa. Descobre o paradeiro de João. Falsifica as letras promissárias e aumenta o
valor para que João continue seu devedor, o que tornará mais fácil obter o objeto do seu
desejo. O Professor Serafim desfaz o mal-entendido e quita o débito de João. Incorformado
com a situação, Abílio insufla um meeiro de João a cometer um atentado contra Serafim,
porque, sem o “anjo protetor” no seu caminho o vigiando e guardando o casal, poderá atuar
com mais liberdade. Mas seu plano de tirar a vida do professor falha. Viaja novamente a São
Paulo, assume outra identidade, envia cartas ao pai de Maria, denegrindo a imagem da filha,
contrata um homem para manchar a imagem de João na fazenda onde trabalha e insuflar um
irmão de Maria a pronunciar-se contra a dignidade de sua irmã, de João e do professor
Serafim. As informações que abalam a honra e fidelidade de Maria chegam ao conhecimento
de João. Este regressa a Caetité para apurar os fatos, mas, durante a longa viagem, é vítima de
emboscada encomendada por Abílio.
O Professor Serafim, como conhecia a fundo o caráter de Abílio e tinha artes de
detetive, associa todos os acontecimentos ocorridos na Bahia e em São Paulo que apontam
Abílio como o responsável por tudo.
77
3.3 EDIÇÃO DOS TEXTOS: NOTAS FILOLÓGICAS 3.3.1 Estrutura da Edição
A obra de João Antônio dos Santos Gumes é composta de textos éditos e inéditos. Os éditos dividem-se em edição textual, isto é, publicação completa em livro, e pré-textual, publicação em jornal. A inédita é composta de manuscritos autógrafos. Toda a sua produção, seja literária ou não-literária, conforme dito anteriormente, encontrava-se dispersa, na eminência de ser destruída definitivamente.
Daí ter-se apontado como uma das possibilidades de estudo a preparação de
edições críticas, quando for o caso de textos literários e jornalísticos de versão única e édita.
As edições crítico-genéticas incidem sobre os inéditos (o drama Abolição, Mourama e o
romance inacabado Seraphina) ou a parte do romance O Sampauleiro na qual se encontram
autógrafos. O corte atual inclui apenas a edição crítica do segundo volume do romance O
Sampauleiro, aplicando-lhes os critérios da Crítica Textual.
3.3.2 Metodologia
No estabelecimento crítico dos textos de João Gumes serão seguidos os princípios
que fundamentam a Crítica Textual Moderna preconizados tanto no Brasil como em Portugal,
respeitando-se, todavia, as particularidades de cada um deles, pois, como se sabe, cada texto
78
tem sua problemática específica e, em Crítica Textual, não há uma fórmula que possa ser
universalmente aplicada a todos os textos.
As normas estabelecidas para a edição crítica da Obra de João Gumes seguirão as
aquelas que vêm sendo preconizadas para as edições de textos modernos tanto no Brasil58,
principalmente aquelas que vêm sendo praticadas pelo Grupo de Crítica Textual da
Universidade Federal da Bahia,59 como em Portugal, especialmente os da Obra de Eça de
Queirós60 e da Equipa Pessoa61.
58 Vejam-se, entre outras, as edições de Memórias de um sargento de milícias (Cf. Cecília de LARA Introdução. In: Manuel Antonio de ALMEIDA. Memórias de um sargento de milícias. Ed. crítica por Cecília de Lara. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1979. 368p.), As Três Marias (Cf. Marlene Gomes MENDES. Edição crítica em uma perspectiva genética de As Três Marias, de Raquel de Queiroz. Niterói: EDUFF, 1998. 325 p.), de Macunaíma (Cf. Telê Porto Ancona LOPEZ. Introdução. In: Mario de ANDRADE. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Ed. crítica coord. por Telê Porto Ancona Lopez. São Paulo: CNPq, 1988. LII + 480 p. il. (Arquivos, 6)) e Poesias completas de Mario de Andrade (Cf. Mário de ANDRADE. Poesias completas. Ed. crítica de Diléa Zanotto Manfio. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: EDUSP, 1987.). Vejam-se também Célia Marques TELLES. No caminho de uma edição crítico-genética. Qvinto Império, Salvador, n. 11, p.29-37, agost. 1999; Célia Marques TELLES. A crítica textual no Brasil. Estudos Lingüísticos e Literários, Salvador, n. 21-22, 39-58, jun. – dez. 1998. 59 Os trabalhos desenvolvidos pelo Grupo tiveram início em 1977, sob orientação do prof. Dr. Nilton Vasco da Gama, que preparou a edição crítica do Prólogo e da primeira parte do poema regional Sangue- mau. Neste mesmo ano, criou-se, no Instituto de Letras da UFBA, o Grupo de Edição Crítica de Textos. A seguir, estabeleceram-se os critérios a serem adotados na edição crítica da obra do poeta baiano, e iniciou-se a preparação da edição do poema Sangue- mau que teve sua publicação em 1981. Veja-se a propósito: Arthur de SALLES. Sangue- mau. Edição crítica sob a direção de Nilton Vasco da Gama. Salvador: UFBA, 1981. xiii + 332p. il. Alguns dos resultados obtidos representam trabalhos desenvolvidos pelos estudantes do Programa de Pós-graduação em Letras e Lingüística. Célia Goulart de Freitas TAVARES, Hilda Maria de Melo FERREIRA, Silvia Rita OLINDA. Edição crítica do poema Sub-Umbra. Estudos Lingüísticos e Literários, Salvador, n. 3, p.57-68, jul. 1985. Apresentação de Albertina Ribeiro da Gama; Rosa Borges Santos CARVALHO. O poema “Anchieta” de Arthur de Salles: tentativa de edição. Hyperion Letras, Salvador, n. 4, p. 53-66, jul. 1992; Rita de Cássia Ribeiro QUEIROZ. Sonetos de Arthur de Salles: tentativa de edição crítica. Dissertação de Mestrado, orient. por Nilton Vasco da Gama- Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia, 1995 239 f. ; Rosa Borges Santos CARVALHO. Poemas do Mar de Arthur de Salles: tentativa de edição crítica. Dissertação de Mestrado, orient. por Nilton Vasco da Gama- Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia, 1995. 226f.; Maria da Conceição S. REIS. O Ramo da fogueira obra regional de Arthur de Salles: proposta de edição crítica: Dissertação de Mestrado, orient. por Albertina Ribeiro da Gama - Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia, 1996.150f; CARVALHO, Rosa Borges Santos. Edição crítico-genética dos "Poemas do mar" de Arthur de Salles. 2001. 901f. Tese de Doutorado orient. por Dr. Nilton Vasco da Gama, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2001. 60 Cf. QUEIRÓS, Eça de. Alves e Ca. Ed. crítica de Luiz Fagundes Duarte e Irene Fialho. Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1994.; QUEIRÓS, Eça de. Textos de Imprensa. VI (da Revista de Portugal). Ed. crítica de Maria Helena Santana. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1995. 147p. (Edição crítica das Obras de Eça de Queirós); QUEIRÓS, Eça de. A Capital!:começos duma carreira. Ed. crítica de Luiz Fagundes Duarte. Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1992. (Edição crítica das Obras de Eça de Queirós) 61 Entre outros trabalhos, Cf. Ivo CASTRO. Edição crítica de Pessoa: o modelo editorial adoptado. In: UM SÉCULO DE PESSOA; ENCONTRO INTERNACIONAL DO CENTENÁRIO DE FERNANDO PESSOA, 1988. p. 30-39.; Ivo CASTRO. Editar Pessoa. Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1990. 116 p. (Edição crítica de Fernando Pessoa, Estudos, 1); PESSOA, Fernando. Poemas de Álvaro de Campos. Ed. de Cleonice
79
Os critérios norteadores de uma edição de textos impressos de versão única,
publicada em vida do autor e aos próprios cuidados do escritor requer do filólogo uma postura
diferente daquela que deveria ser adotada ao editar textos marcados por uma tradição
complexa: a presença de testemunhos diversos e de versões diferentes. O primeiro volume do
romance O sampauleiro é versão única, publicado em vida e em um periódico fundado e
administrado pelo próprio autor. Essa situação textual em que inexistem tanto as variantes
autorais como as textuais resultantes de sua tradição desautoriza o editor a preparar uma
edição com o rótulo de crítica. Em seu lugar seria mais coerente a elaboração de uma edição
fac-similar, via fotografia digital.
Embora a situação textual do primeiro volume conduza a uma edição fac-similar,
o mesmo será submetido a uma leitura para eliminar do texto as gralhas, os erros óbvios e
sofrerá atualização ortográfica, para que possa ser lido pelo leitor moderno não especialista.
Essa decisão de editá-lo aplicando as normas já preconizadas para a fixação de textos críticos
foi motivada, principalmente, pelas condições materiais internas e externas do texto, pelos
custos altíssimos que a operação de uma edição fac-similar acarretaria, e pelo fato de ser
imperioso a sua divulgação, dada a riqueza de informações históricas, culturais e lingüísticas
que a obra armazena e que é urgente “o seu tornar público” não só para o leitor especialista,
mas, sobretudo, para o leitor comum, pois a finalidade de um trabalho de resgate do
patrimônio espiritual produzido por uma comunidade, em uma dada época, é trazê-lo a lume,
disponibilizando-o às gerações futuras.
Adverte-se que, devido à exigüidade do tempo e ao fato de não ser facultado ao
editor crítico o direito de cometer deslizes na preparação de uma edição com o rótulo de
crítica, porque, apenas, lhe resta o acerto ou o erro, optou-se, para o momento, apresentar
Berardinelli. Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1990. 573 p.il. (Edição Crítica de Fernando Pessoa,
80
uma edição via reprodução xerocopiada do primeiro volume, pois seria muito temerário, no
afã de concluir os trabalhos, apresentar um produto com falhas.
O segundo volume apresenta três testemunhos: manuscrito, pré-textual, textual. O
manuscrito está incompleto, o pré-textual é o texto publicado em forma de folhetim no jornal
A Penna, e o textual teve como editor-tipográfico o próprio João Gumes. Os três testemunhos
representam, portanto, versões autorais, atropeladas pelas reduzidas possibilidades oferecidas
pela linotipia, ou pela montagem tipo a tipo, que leva a inúmeras gralhas no texto impresso.
O segundo volume do romance O Sampauleiro, objeto de estudo da presente tese
de doutoramento, terá seu texto depurado dos erros de imprensa mais visíveis e das
incongruências microtextuais seguramente não atribuíveis a particularidades do estilo do
autor, e será acompanhado de aparato crítico onde serão registradas as variantes autorais,
textuais e as observações crítico-filológicas feitas pelo pesquisador-editor, conforme as
espeficidades do texto.
Apesar de se comungar com aqueles que defendem que as características lingüísticas e
estilísticas do texto objeto de uma edição crítica sejam respeitadas conforme o usus scribendi
do escritor e da época que foi escrito, adota-se aqui uma postura modernizadora porque
acredita-se que se o objetivo fim do trabalho de resgate é divulgar a obra de João Gumes,
conforme dito anteriormente, e, ao lado do texto crítico, apresenta-se o aparato de variantes,
no qual são registradas as interferências do editor, não se justificaria oferecer um texto que
apresente ao leitor moderno dificuldades de leitura.
O modelo de edição adotado permite ao leitor ter, à esquerda, acesso ao texto que se
quer crítico, à direita, ao aparato de variantes que lhe possibilita fazer as suas próprias análises
sobre a tradição e as particularidades ortográficas da obra, abaixo, às notas de rodapé
Série Maior, 2); PESSOA, Fernando. Poemas de Ricardo Reis. Ed. crítica de Luiz Fagundes Duarte Lisboa:
81
contendo esclarecimentos do vocabulário e, quando for o caso, informações sobre
divergências entre o testemunho manuscrito e os testemunhos impressos.
3.3.2.1 O texto de base
A preparação de um texto que represente o ânimo autoral exige o cumprimento de
determinadas etapas preliminares, como, por exemplo, a recensio, a collatio, a eliminatio,
para que se escolha o texto de base.
Alguns critérios definem a escolha do texto de base. Para um texto de testemunho
único, este será o texto de base, pois não há possibilidade de escolha. Para o texto com mais
de um testemunho, conforme as normas já utilizadas pelos especialistas em crítica textual,
tanto brasileiros como estrangeiros, faz-se a opção pelo testemunho mais recente. No caso
específico do romance O Sampauleiro, o texto de base é a publicação textual, porque os
demais testemunhos, além de serem anteriores, estão incompletos; o manuscrito não tem
características de texto "acabado", e o pré-textual foi publicado em folhetim em A Penna, tipo
de publicação passível de sofrer enganos advindos as limitações do espaço, da linotipia ou da
montagem tipo a tipo.
3.3.2.2 A ordenação dos textos
Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1994. 481 p.il..
82
Na descrição, as versões serão apresentadas na seguinte seqüência: o manuscrito
autógrafo, a versão pré-textual e a versão textual, obedecendo à cronologia. No aparato crítico
e /ou crítico-genético, as versões também se encontram organizadas de acordo com a sua
cronologia de publicação ou de momento textual, conforme for o caso.
Oferece-se a edição crítica e o aparato crítico do segundo volume de O Sampauleiro e, em anexo, a edição via reprodução xerocopiada do primeiro.
3.3.2.3 Os aparatos: variantes autorais e textuais
O aparato crítico figura ao lado direito do texto criticamente estabelecido, em
fonte menor. Nele se encontram registradas as variantes autorais/textuais.62 As alterações
realizadas relativamente ao texto-base, assim como quaisquer esclarecimentos do editor
figurarão em itálico, entre parêntesis ( ) .
3.3.2. 4 As normas adotadas no estabelecimento dos textos
Na edição crítica do segundo volume do romance O Sampauleiro buscam-se
manter as particularidades do texto de base, mas atualiza-se63 a ortografia segundo as normas
62 Como o romance O Sampauleiro e as crônicas tiveram sua composição gráfica na oficina tipográfica de propriedade de João Gumes, provavelmente, foi executada pelo próprio Gumes ou sob sua supervisão. Sendo autor-editor de seus textos, as variantes textuais são também de sua responsabilidade. 63 O editor tem uma postura conservadora, só intervém no texto quando os procedimentos metodológicos lhe permitem: corrigir os erros óbvios de gralha, proceder à atualização e à normatização ortográfica, segundo as normas vigentes, resolver alguns problemas de pontuação para diminuir as peturbações provocadas pela falta de uma vírgula.
83
vigentes, uniformizam-se a grafia de algumas palavras em conformidade com o percentual de
ocorrências.
Casos de oscilação. Respeitam-se as variantes gráficas. As formas grafadas com
apóstrofe são, sempre que possível, atualizadas por contração (d’um > dum, n’um> num).
As consoantes duplas. Simplificam-se todos os casos de grafia dupla: tanto nomes
comuns como os próprios (bella> bela, Anna > Ana).
Maiúsculas. Aplica-se, como critério geral, a norma vigente.
Formas variantes. Utilizam-se as formas empregadas pelo Autor, mesmo quando
essas não se encontram registradas nos dicionários.
Pontuação. Mantém-se a pontuação original, mesmo quando esta não obedece às
normas atuais. Apenas altera-se em situações de manifesto lapsus calami ou gralha
tipográfica, em que a omissão ou troca de sinais perturba a construção do texto. A emenda do
editor é indicada no aparato.
Palavras estrangeiras. Mesmo nos casos em que foram adaptadas à fonética e à
ortografia portuguesa, conserva-se a grafia original, pondo-as em itálico para uniformizá-las
conforme comportamento normal do autor e indicando a grafia “correta” em notas de rodapé.
Acentuação. Introduzem-se os acentos de acordo com as normas vigentes.
84
Erros. Salvo em casos duvidosos, os erros explicáveis por lapsus calami ou gralha
tipográfica simplesmente são corrigidos, com indicação no aparato crítico.
Opções tipográficas. Respeita-se o seccionamento dos textos (parágrafos), bem
como as opções tipográficas do autor no que diz respeito à utilização de aspas e sublinhado,
salvo nos casos de palavras estrangeiras ou que representem formas da língua oral.
Registradas no texto-base em maiúsculas e sublinhadas no manuscrito autógrafo, serão
apresentadas no texto crítico em itálico, como era intenção do autor ao pô-las em destaque,
em maiúsculas, o que se deve aos parcos recursos tipográficos da época. Numera-se o texto,
linha por linha, indicando a numeração de cinco em cinco, desde a primeira linha do texto e
reiniciando em cada capítulo.
3.3.2.5 As siglas remissivas para as versões
Na descrição, no aparato crítico e nos estemas, as versões estão representadas por
siglas referentes ao documento, isto é, livro e jornal onde foram publicadas ou manuscrito
original.
Seguem-se as siglas para as versões dos textos do romance O Sampauleiro:
SP O Sampauleiro, manuscrito.
SP1 O Sampauleiro, publicação textual de 1929.
SPF O Sampauleiro, publicado no Jornal A Penna.
85
3.3.2.6 Classificação estemática
A leitura e transcrição de SP revelam que entre ele e SP1 e SPF deve ter existido
outro manuscrito contendo a redação final que originou as versões impressas. A hipótese da
existência de outro testemunho manuscrito deve-se a cinco razões, a saber: 1) SP apresenta
um número expressivo de emendas autorais. O primeiro jato de tinta, em algumas passagens é
interrompido à medida que vai se materializando conforme é concebido virtualmente na
mente do seu autor. Outras vezes, Gumes revisita seu texto procedendo a acréscimos e
supressões. 2) Localizou-se em alguns capítulos a construção de uma narrativa divergente da
dos impressos. 3) O número de emendas de SP é significativo, deixando a leitura de algumas
passagens confusa. Seria pouco provável que o tipógrafo utilizasse para a composição dos
folhetins uma cópia com muitas emendas e borrões, mesmo que este fosse o próprio Gumes.
4) Outro fato importante é que, quando da elaboração de seus textos, Gumes organizava os
cadernos de papel almaço que julgava serem necessários para o seu projeto de texto,
consturando-os em pequenos blocos e/ou livros. O próprio SP tem os cadernos organizados e
costurados antes da mancha escrita ter sido lançada sobre o papel. Sobram muitas folhas sem
mancha escrita, evidenciando esse tipo de comportamento. 5) Gumes, ao elaborar, por
exemplo, o drama Abolição, submete-o a pelo menos a três intervenções: uma campanha de
escrita e duas de correção,64 e, mesmo não sendo um texto passado a limpo, tem os cadernos
de papel almaço costurados. Em Seraphina, romance inacabado, muitos cadernos de papel
estão em branco, revelando a forma de proceder do escrito.
64 A1 - texto-base, com correções feitas em curso de redação, algumas supressões e substituições, tanto por sobreposição como por substituição na entrelinha superior, com um x ou não nos lugares emendados. A2 - correções por supressões, substituições, acrescentamento, quase sempre localizados na entrelinha superior do texto-base. A3 - correções por supressões realizadas em uma terceira releitura do texto. Cf. Maria da Conceição Souza REIS. Características lingüísticas na obra de Gumes. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DA ABRALIN, n.2, Anais... Fortaleza: Imprensa Universitária, 2003, p. 467-71
86
Daí, na classificação estemática para o segundo volume do romance O
Sampauleiro, incluir X, testemunho manuscrito do qual SP1 e SPF são cópias. O stemma
codicum representativo da árvore genealógica do texto em questão é o seguinte:
SP ↓ X ↓
SPF ↓
SP1
Fig. 12: Classificação estemática do segundo volume do romance O sampauleiro.
A edição crítica do segundo volume de O Sampauleiro tem o seguinte stemma
codicum:
SP1 → Texto Crítico
Fig. 13: Classificação estemática da edição crítica do romance O sampauleiro.
87
3.3.3 O Sampauleiro: o texto crítico e aparato de variantes autorais e da tradição impressa
QUARTA PARTE
MIGRAÇÃO
I
5
10
João e sua esposa eram felizes, tanto quanto
podem desejar criaturas modestas, simples em suas
aspirações, tendo por base da sua felicidade a paz e a
tranqüilidade de espírito. As suas almas singelas e boas
viam realizada a ventura que sonhavam, e haviam criado
para si um paraíso na residência de dona Senhorinha,
porque esta boa senhora não quis por forma alguma que
o jovem casal dela se separasse.
SPF, SP1: creaturas
SPF, SP1: tranquillidade; espirito
SPF, SP1: realisado
SPF, SP1: creado; paraiso;
residencia; d. Senhorinha
SPF, SP1: quiz
SPF, SP1: joven; della
15
20
A fortuna que o senhor Oliveira aspirava para
sua filha com um casamento rico não coadunava com as
modestas aspirações de Maria, cuja alma simples tinha
horror ao luxo estardalhante e ostentativo que se procura
impor pelo prestígio e que não conquista corações, mas
cria um ambiente de lisonja e adulação. As conquistas
que realizam a bondade, a ternura e o carinho são
firmadas sobre alicerces indestrutíveis; têm como
fulero65 a virtude. Assim não pensava o senhor Oliveira
que, embora bom, tinha saudades do aparatoso trato em
que fora criado por seus afortunados pais, e desejava-o
SPF, SP1: prestigio
SPF, SP1: crea
SPF, SP1: realisam
SPF, SP1: indescuctiveis
SPF, SP1: apparatoso; paes
65 Fulero: sem valor, insignificante. Palavra espanhola da qual originou fuleiro em português.
88
para sua filha.
25
30
35
O pobre homem, como sucede a todos os ricos
que caíram em pobreza, mesmo por muito desejar o bem
de sua querida filha, só no seu casamento com Abílio
antevia o ressurgimento do esplendor que circundaria a
sua família tornando-a uma das mais conceituadas e
veneradas desde os seus antepassados. Mesmo por ser
bom, mas dessa bondade irrefletida e, podemos dizer,
inocente e infantil, que julga os outros por si próprio,
Oliveira não fazia acepção entre bons e maus, não
estudava a fundo os caracteres e, deixando-se explorar,
decaíra do antigo conceito que gozava, porque ficou
pobre.
SPF, SP1: succede
SPF, SP1: cahiram
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: resurgimento; circumda
SPF, SP1: familia
SPF, SP1: d’essa; irreflectida
SPF, SP1: innocente; proprio
SPF, SP1: accepção
SPF, SP1: dechaira; gosava
40
Entre João e Abílio, aquele o tabaréu grosseiro
que outra aspiração não tinha a não ser a labuta rural,
este fidalgote, ativo, inteligente, de maneiras corteses e
delicadas, não havia que escolher; o último nada
deixava a desejar aos planos e aspirações de Oliveira.
Em um dos seus momentos de fraqueza, maior do que a
que lhe era ordinária, não pôde resistir ao visível
sofrimento de sua filha, e cedeu.
SPF, SP1: Abilio; aquelle; tabareo
SPF, SP1: activo; intelligente;
cortezes
SPF, SP1: ultimo
SPF, SP1: ordinaria; visivel
SPF, SP1: soffrimento
45
Cedeu para logo depois se arrepender, mas sem
coragem de revogar a concessão feita a Maria. Só lhe
restava depois disso mudar-se para o Estado de São
SPF, SP1: arrepender-se
SPF, SP1: d’isso; S. Paulo
89
50
Paulo, pelas razões que o leitor já conhece e, além delas,
por sentir-se atraído pelo esplendor, riqueza e
magnificência que lhe constava ali encontrar, com a
possibilidade de tornar-se rico e adquirir a posição
social que havia perdido.
SPF, SP1: ja; alem; d’ellas
SPF, SP1: attrahido
SPF, SP1: magnificencia; alli
SPF, SP1: adequerir
55
Entretanto, Maria sentia-se feliz com o seu eleito
e satisfeita no ambiente modesto que escolhera, e que
lhe era preferido aos meios faustosos e brilhantes para
os quais acorrem os vícios, os enganos, a lisonja e a
hipocrisia, atraídos pelo pingue pábulo66 que neles
encontram.
SPF, SP1: Entretanto ( , )
SPF, SP1: quaes; accorrem; vicios
SPF, SP1: hypocrisia; attrahidos;
n’elles
60
65
Sabia a criteriosa filha de Oliveira que Abílio, o
fidalgote pretensioso, cujo gênio conhecia desde o seu
condiscipulado, procuraria agradá-la cercando-a de todo
o luxo e grandeza que a sua fortuna poderia facultar-lhe
sem que fosse abalada; mas, avessa por índole às
pompas e suntuosidades, preferiu a simplicidade de
João, os hábitos de dona Senhorinha, a quem conhecia e
venerava desde a sua infância pela sua bondade sem
estardalhaços, pela sua modesta e sincera amizade. Os
hábitos simples e honestos desta boa senhora e seu filho
atraíam-na em flagrante contraste com a tolice
pretensiosa de dona Úrsula e a dissimulação de Abílio
que, embora inteligente, não podia, debalde tentando-o,
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: pretencioso; genio
SPF, SP1: agradal-a
SPF, SP1: indole; ás pampas
SPF, SP1: sumptuosidades
SPF, SP1: habitos; d. Senhorinha
SPF, SP1: infancia
SPF, SP1: habitos; d’esta
SPF, SP1: attrahiam-n-a
SPF, SP1: d. Ursula; Abilio
66 Pingue pábulo: algo ou local fértil que serve de motivo ou assunto à maledicência.
90
70
75
que, embora inteligente, não podia, debalde tentando-o,
ocultar aos olhos da bela menina o seu orgulho mau
como o seu caráter ardente e apaixonado que muitas
vezes explodira, quando ele em criança ainda não
dispunha dos meios de contê-los como logo que a razão
se lhe desenvolveu.
SPF, SP1: intelligente
SPF, SP1: occultar; bella; máu
SPF, SP1: caracter
SPF, SP1: elle; creança
SPF, SP1: contel-os
80
85
A afinidade, essa lei suprema que tudo rege no
universo físico, também é um elemento de suma
preponderância no mundo dos espíritos. É ela que faz a
felicidade dos seres pensantes, religando-os pela
cordialidade. É também ela que congrega os maus, os
pertubadores da harmonia que devera imperar absoluta
na humanidade. Por ela atraímos as “forças ocultas” –
que não são mais que seres inteligentes que pululam67
nos espaços em torno do planeta, invisíveis e
imponderáveis, numa constante permuta entre os de lá e
os desta vida de relação. O mal ainda predomina lá e cá
assombrosamente. Conforme as nossas tendências e
pensamentos, atraímos de lá bons ou maus elementos
que sejam afins com os nossos.
SPF, SP1: Affinidade
SPF, SP1: physico; tambem; summa
SPF, SP1: preponderancia; espiritos;
ella
SPF, SP1: presentes ( , )
SPF, SP1: tambem; elle; máus
SPF, SP1: ella; attrahimos; occultas
SPF, SP1: intelligentes; pullulam
SPF, SP1:invisiveis
SPF, SP1: imponderaveis; n’uma
SPF, SP1: tendencias
SPF, SP1: attrahimos; la
SPF, SP1: affins
90 Entretanto, há entre nós espíritos de eleição –
posto que raros em faces de maldosos, – os quais, pelas
virtudes e inquebrantabilidade, conseguem resistir à
tentação, tornando-a ineficiente.
SPF, SP1: Entretanto ( , ); espiritos
SPF, SP1: quaes
SPF, SP1: á tentação
67 Pululam: multiplicam.
91
tentação, tornando-a ineficiente. SPF, SP1: inefficiente
95
100
Maria era um desses espíritos privilegiados. Por
cada dia que se passava, dona Senhorinha descobria
mais uma preciosa qualidade no tesouro inexaurível que
era o coração de Maria, repositório dos mais nobres e
apreciáveis dotes de sentimento, e mais se sentia atraída
por aquele belo espírito. Maria, a esposa ideal, dava a
dona Senhorinha o doce nome de mãe e esta, encantada,
tinha-a como sua filha estremecida e não deixava um
momento sequer de render graças a Deus pela mercê
que lhe concedeu e a seu filho.
SPF, SP1: d’esses; espiritos
SPF, SP1: d. Senhorinha
SPF, SP1: thesouro; inexhaurivel
SPF, SP1: repositorio
SPF, SP1: apreciaveis; attrahida
SPF, SP1: aquelle; bello; espirito;
Maria ( , ); idéal;
SPF, SP1: d. Senhorinha
SPF, SP1: siquer
105
110
Maria era laboriosa e, apesar das constantes
reclamações de Pulquéria, que também fazia parte
daquele pequeno e aprazível mundo e assumira a função
de cozinheira, auxiliada pela filha de Umbelina, atirava-
se a todo e qualquer serviço doméstico, às vezes
invadindo as atribuições da velha crioula. Inteligente,
metódica e arrumadeira, a jovem esposa tudo punha em
ordem e asseio, não se esquecendo das coisas as mais
insignificantes. Como era apaixonada pelas flores,
tomou a seu cargo tratar do jardim de João, aumentou-o,
melhorou-o, dando às flores uma certa disposição e
harmonia, pelas cores, forma e dimensões das plantas,
que revelam seu gênio artístico e paciência. Cultivava e
SPF, SP1: apezar
SPF, SP1: Pulcheria; tambem
SPF, SP1: d’aquelle; aprazivel
SPF, SP1: funcções; Umbellina
SPF, SP1:domestico; ás vezes
SPF, SP1: attribuições; creoula
SPF, SP1: methodica; joven
SPF, SP1: cousas
SPF, SP1: augmentou-o
SPF, SP1: m elhorou-o ( , ); ás flores
92
115
120
que revelam seu gênio artístico e paciência. Cultivava e
tratava o jardim com esmero e não se esquecia de colher
todas as manhãs as flores suas prediletas, que dispunha
em dois vasos de porcelana conservados desde o lar
paterno. Tudo isso era um encanto para dona
Senhorinha, que se rejubilava, considerando aquelas
flores a imagem da candura e virtudes trescalantes68 de
sua querida filha.
SPF, SP1: genio; artistico; paciencia
SPF, SP1: predilectas
SPF, SP1: dous
SPF, SP1: d. Senhorinha
SPF, SP1: aquellas
125
130
135
Serafim, o amigo sincero e constante de todos os
tempos, estimado e acatado por todos, freqüentava a
casa de dona Senhorinha quase todos os domingos, ora
só, ora acompanhado de sua senhora. Então a alegria
redobrava naquela feliz vivenda. O velho amigo sempre
alegre, comunicativo sempre, enchia com sua
jovialidade o dia. A sua agradável conversação nunca
deixava de ser condimentada com o tique sentencioso e
a gargalhada peculiar do nosso velho conhecido. À
tarde, quando se retirava, todos se sentiam saudosos e
pediam-lhe com insistência que voltasse no seguinte
domingo trazendo sua “dona.”
SPF, SP1: Seraphim
SPF, SP1: d. Senhorinha; quasi
SP1: aiegria (Erro óbvio.)
SPF, SP1: n’aquella
SPF, SP1: communicativo
SPF, SP1: agradavel
SPF, SP1: Á tarde; sentiam-se
SPF, SP1: insistencia
Voltando de São Paulo, Abílio insistiu com sua
mãe para que freqüentasse a família de dona
Senhorinha, reprovando que não o tivesse feito durante
a sua ausência. A velha mostrou-se avessa a isso, não só
SPF, SP1: S. Paulo; Abilio
SPF, SP1: por que (Emendou-se.);
familia; d. Senhorinha,
SPF, SP1: não tivesse (Emendou-
se.)
68 Trescalante: exalando cheiro forte.
93
140
145
a sua ausência. A velha mostrou-se avessa a isso, não só
por despeitada pela taboca69 pregada por Maria, bem
como por considerar indigna das suas relações aquela
gente forreca70. Conseguiu, porém, convencê-la Abílio
dizendo-lhe que, afastando-se de lá, tê-la-iam por
despeitada e a ele também, o que seria ridículo para os
dois. Que o teriam por “de cabeça inchada” pela perda
de um partido tão vantajoso, carregando com ironia
estas três últimas palavras.
SPF, SP1: ausencia
SPF, SP1: aquella
SPF, SP1: porem; convencel-a;
Abilio
SPF, SP1: la; tel-a-iam
SPF, SP1: elle; tambem; ridiculo
SPF, SP1: dous
SPF, SP1: tres; ultimas
150
155
Dona Úrsula, a fidalga orgulhosa e toleirona,
aceitou a imposição de seu filho e, lá uma vez por
semestre, aparecia em casa de dona Senhorinha. Embora
afetando em suas visitas um ar bondoso e certa
cordialidade, a hipócrita velhota não inspirava confiança
à boa família. Levava a sua mentida generosidade a
ponto de desculpar a dona Senhorinha o não pagar71 as
suas visitas, o que não arrefeceria por forma alguma a
sua velha amizade. Entretanto, apesar das
recomendações do filho, levava o tempo a conversar
sobre riquezas, prosápias72 e quejandas73 grandezas
entremeadas de tolices que, aos espíritos perspicazes,
SPF, SP1: D. Ursula
SPF, SP1:acceitou; la
SPF, SP1: apparencia; d. Senhorinha
SPF, SP1: affectando
SPF, SP1: hypocrita
SPF, SP1: á boa familia
SPF, SP1: ao ponto de (Emendou-
se); d. Senhorinha; PAGAR
SPF, SP1: apezar
SPF, SP1: recommendações
SPF, SP1: prosapias
SPF, SP1: epiritos
69 Taboca: negativa, recusa. O mais usual é a expressão “passar taboca”, que significa romper noivado para casar com outrem. 70 Forreca: indivíduo insignificante, sem importância. 71 Pagar: retribuir visitas. 72 Prosápia: linhagem. 73 Quejandas: semelhantes; que tem a mesma natureza ou qualidade de outrem.
94
160
deixavam perceber o seu gênio frívolo e jactancioso, e,
aos simples, antipatia e enfado.
SPF, SP1: genio; frivolo
SPF, SP1: antipahtia
165
Dirigindo-se a Maria com ares maternais, dizia-
lhe dona Úrsula toda risonha que não lhe perdoava ser
tão esquiva a ponto de não ir à sua casa; mas isso não a
inibia de continuar sua amiga dedicada e admiradora de
sua formosura.
SPF, SP1: matternaes
SPF, SP1: d. Ursula
SPF, SP1: ao ponto (Emendou-se.);
á sua
SPF, SP1: inhibia
170
175
Nesse dia a modesta família de dona Senhorinha
via-se numa dobadoura74 e sentia-se constrangida,
porque, pelos modos de dona Úrsula, pelas
autogabações, pelo referir-se aos seus gostos refinados e
hábitos de fidalga, exigia um trato especial. Não
diremos que a gabolas75 isso fizesse como exigência;
mas involuntariamente assim deixava compreender. Era
então preciso que saíssem à luz os mais preciosos
aparelhos, as toalhas da mais fina lençaria e tudo quanto
as nossas famílias sertanejas de certo trato conservam
guardado cuidadosamente para ocasiões solenes. Além
disso os acepipes76 deviam ser escolhidos e preparados a
capricho para que a visita não se desagradasse.
SPF, SP1: N’esse; familia; d.
Senhorinha
SPF, SP1: n’uma; dobadôra
SPF, SP1: d. Ursula; auto-gabações
SPF, SP1: habitos
SPF, SP1: exigencia
SPF, SP1: comprehender
SPF, SP1: sahisse; á luz
SPF, SP1: apparelhos
SPF, SP1: familias
SPF, SP1: occasiões
SPF, SP1: solemne; Alem; d’isso
180
Em ocasiões tais Pulquéria via-se em uma roda
viva. Maria e dona Senhorinha, obrigadas a fazer sala à
velha pretenciosa, não podiam ir a cozinha para ao
SPF, SP1: occasiões; taes; Pulcheria
SPF, SP1: d. Senhorinha; á velha
74 Dobadoura: variante de dobadoira; roda-viva. 75 Gabolas: quem se gaba a si mesmo. 76 Acepipes: petiscos.
95
185
190
195
velha pretenciosa, não podiam ir a cozinha para ao
menos determinarem qual devia ser o cardápio, ficando
à velha crioula a incumbência de arranjar o almoço e o
mais de um modo que dona Úrsula não tivesse ocasião
de fazer reparo. Pulquéria nada deixava a desejar à visita
pois era emérita na arte de preparar os pitéus77 e
guloseimas. Se já não soubéssemos que dona Úrsula,
nos seus modos de agradar grosseiramente, fazia as suas
apreciações da boca para fora, diríamos que tudo aquilo
excedia à sua expectativa e causava-lhe muita
satisfação, tão rasgados elogios fazia à família e à
cozinheira pelo arranjo que notava, repetindo os gabos a
cada bocado que tragava, ao mesmo tempo que
Pulquéria, que a espiava, esconjurava o “diabo da velha
prosa” ardendo por vê-la pelas costas.
SPF, SP1: cardápio; á velha
SPF, SP1: creoula; incumbencia
SPF, SP1: d. Ursula; occasião
SPF, SP1: Pulcheria; á visitar
SPF, SP1: emerita; pitéos;
gulozeimas; Si
SPF, SP1: soubessemos; d. Ursula
SPF, SP1: bocca; diriamos; aquillo;
á sua
SPF, SP1: satisfacção
SPF, SP1: á familia; á cozinheira
SPF, SP1: boccado
SPF, SP1: Pulcheria
SPF, SP1: vel-a
200
Abílio vinha também à casa visitar o casal
mostrando-se muito amigo de João, a quem fazia
protesto de sincera afeição e oferecimentos; mas nunca
com sua mãe. Tendo voltado de São Paulo, não pense o
leitor que a sua longa ausência houvesse apagado a sua
ardente paixão que lhe conhecemos e que prometera a
Serafim esquecer. Pelo contrário, essa ausência como
que aumentou o incêndio passional que lavrava o seu
peito e o ardente desejo de possuir Maria, – aquele ente
SPF, SP1: Abilio; tambem; á casa
SPF, SP1: affeição
SPF, SP1: S. Paulo
SPF, SP1: ausencia
SPF, SP1: prometteu (Emendou-se.)
SPF, SP1: Seraphim; contrario;
ausencia
SPF, SP1: augmentou; incendio
77 Pitéus: petiscos.
96
205
peito e o ardente desejo de possuir Maria, – aquele ente
singular, – mesmo que, para alcançá-la, lhe fosse preciso
lançar mão dos meios os mais reprováveis e ominosos.78
SPF, SP1: aquelle
SPF, SP1: alcançal-a
SPF, SP1: reprovaveis
210
215
220
No seu jeito já conhecido pelo leitor, o astuto
mancebo aparentava uma calma que bem longe estava
do seu espírito. Até com sua mãe Abílio aguardava uma
absoluta reserva sobre seus sentimentos e projetos em
relação à Maria e seu esposo. Leviana como era dona
Úrsula, sabia que tudo transtornaria e, quando a velha
tocava em tão melindroso assunto, referia-se à má
escolha feita pela filha do Senhor Oliveira, procurando
deprimir o feliz pretendente, pondo-o em contraste com
seu filho e, com isso, acordando despeitos nascidos da
embófia79 e pretensões que a animavam, Abílio
repreendia-a e enaltecia o caráter de João e as virtudes
de Maria, confessando-se amigo dedicado e
intransigente de ambos.
SPF, SP1: geito; ja
SPF, SP1: espirito; Abilio
SPF, SP1: projectos
SPF, SP1: a Maria; d. Ursula
SPF, SP1: assumpto
SPF, SP1: á má
SPF, SP1: accordando
SPF, SP1: embofia; pretenções;
Abilio
SPF, SP1: reprehendia-a; caracter
SPF, SP1: Maria ( , )
225
Afinal convenceu-se dona Úrsula de que seu
filho havia varrido de sua idéia toda e qualquer
pretensão sobre Maria, e que era amigo sincero de seus
antigos condiscípulos. Isso a desgostava, é certo, porque
suas idéias baixas e infames julgavam possível ainda
uma conquista mesmo com prejuízo da honra e boa
SPF, SP1: d. Ursula
SPF, SP1: idéa
SPF, SP1: pretenção
SPF, SP1: condiscipulos;
desgostava-a
SPF, SP1: idéas; possivel
SPF, SP1: prejuizo
78 Ominoso: execrável; detestável. 79 Embófia: orgulho vão, soberbo.
97
230
fama da virtuosa esposa. Essa conquista seria a
revelação da superioridade da sua estirpe sobre aquela
família reles que, se conseguisse uma lícita ligação com
a sua, viria enxovalhá-la.
SPF, SP1: aquelle; familia
SPF, SP1: licita
SPF, SP1: enxovalhal-a
235
240
O leitor deve lembrar-se que dona Úrsula,
quando malograda a pretensão de seu filho, sentia-se
despeitada e prazerosa. Despeitada pelo desaforo
daquela gente, que refugou80 um partido como Abílio, e
prazerosa porque lhe repugnava vincular o seu nome ao
de Oliveira e sua gente. Então, desejando que seu filho
fosse satisfeito em sua paixão, somente achava em seu
bestunto81 um meio conciliatório: Abílio tomar a jovem
por amante.
SPF, SP1: d. Ursula
SPF, SP1: mallograda; pretenção
SPF, SP1: d’aquella; Abilio
SPF, SP1: conciliatorio; Abilio;
joven
245
Afagada a vaidade da velha fidalga caricata por
seu filho, que bem a conhecia, dispôs-se ela a reatar
relações com dona Senhorinha e sua família; não só pelo
desejo de satisfazer a Abílio, como também para dar
pasto à sua bisbilhotice.
SPF, SP1: ella; dispoz-se
SPF, SP1: d. Senhorinha; familia
SPF, SP1: Abilio; tambem
SPF, SP1: á sua
250
Dois anos depois do casamento de João, o jovem
casal havia sido abençoado com dois filhinhos, que o
leitor já conhece: – Corina e João, este de meses.
Sobreveio então um ano crítico no qual os gados foram
SPF, SP1: Dous; annos; joven
SPF, SP1: mezes
SPF, SP1: anno; critico
80 Refugar: rejeitar; desprezar. 81 Bestunto: cabeça de curto alcance, ou estúpida.
98
255
260
atacados de uma terrível epizootia82 que o dizimou em
grande porcentagem. Como é geralmente sabido entre
nós, os nossos criadores, em sua maioria, atribuem a
mortandade do gado vacum a causas que não são
verdadeiras. A peste, como é geralmente denominada
toda e qualquer doença dos irracionais, por coincidir as
mais das vezes com as maiores secas, tem por causa
exclusiva, como supõem, a escassez de pastagens,
quando é certo que isso apenas concorre para a
recrudescência do mal.
SPF, SP1: terrivel
SPF, SP1: maioria ( ,.); attribuem
SPF, SP1: vaccum
SPF, SP1: irraccionaes
SPF, SP1: SECCAS
SPF, SP1: suppõem
SPF, SP1: recrudescencia
265
270
João lançou mão de todos os meios e recursos
em uso nos nossos sertões, os quais consistem na
retirada dos armentos para os campos gerais, onde
existem fontes perenes e pastagens naturais. Essa
medida muito concorre para a propagação do mal, pois
as levas de gado em grande número põem em contato os
animais sãos com os atacados do mal e, além disso, dão
lugar a grandes prejuízos pelo extravio dos gados e
outros inconvenientes. Ademais os agricultores mais
pobres, ocupados com isso, descuidam-se das
plantações, ou não podem fazê-las e tratá-las em tempo.
Entre nós não existem veterinários competentes, e os
SPF, SP1: quaes
SPF, SP1: GERAES
SPF, SP1: perennes; naturaes
SPF, SP1: numero; contacto
SPF, SP1: animaes; alem; d’isso
SPF, SP1: prejuizos
SPF, SP1: occupados
SPF, SP1: fazel-a; tratal-as
SPF, SP1: veterinarios
82 Epizootia: doença que ataca numerosos animais ao mesmo tempo e no mesmo lugar.
99
nossos alveitares83, quase todos de uma crassa84
ignorância, não acertam com a verdadeira causa do mal.
SPF, SP1: quasi; ignorancia
275
280
Dos poucos animais que João possuía escapou
um número resumidíssimo, a sua lavoura pouco
produziu, e o pobre mancebo viu-se a braços com sérias
dificuldades porque, tendo contraído compromissos que
esperava solver com os produtos da agricultura, não
poderia satisfazer em tempo aos seus credores. Para
cúmulo de males dona Senhorinha adoeceu rapidamente
e faleceu de um dia para outro, sem que se pudesse
saber qual a causa nem tomar providências que a
salvassem.
SPF, SP1: animaes; possuia
SPF, SP1: numero; resumidissimo
SPF, SP1: serias
SPF, SP1: difficuldades; contrahido
SPF, SP1: productos
SPF, SP1: creadores
SPF, SP1: cumulo; d. Senhorinha
SPF, SP1: falleceu
SPF, SP1: podesse; providencias
285
290
295
A dor que experimentaram os jovens esposos
pode ser avaliada pelo leitor. Aquela perda irreparável,
além do que o vinha afligindo, muito desanimou a João.
Maria, a heroína que conhecemos na prosperidade como
na desventura, procurando consolar e reanimar a seu
esposo, apenas conseguia que este aparentasse
tranqüilidade para consolá-la. O pobre rapaz chorava às
ocultas a perda de um ente que lhe era tão caro. Apesar
disso, Maria, que era perspicaz, sentia-se aflita e
intranqüila, notando o retraimento de João, o seu
forçado sorrir quando lhe procurava despertar a antiga
SPF, SP1: esposos, (Emendou-se a
pontuação.)
SPF, SP1: Aquella; irreparavel
SPF, SP1: alem; afflingindo
SPF, SP1: heroina
SPF, SP1: apparentasse;
tranquillidade; consolal-a; ás
occultas
SPF, SP1: Apezar; d’isso
SPF, SP1: afflicta; intranquilla
SPF, SP1: retrahimento
83 Alveitares: curandeiro de doenças de animais. Figurativamente usado como médico inábil. 84 Crassa: intensa, grande.
100
alegria, ameigando-o e desviando habilmente a sua
atenção do quadro desolador que a ambos se afigurava.
SPF, SP1: alegria ( , )
SPF, SP1: attenção
300
305
Serafim, o amigo de sempre, acompanhou-os na
amarga conjuntura que lhes sobreveio, não cessando de
vir ao sítio, e procurando animar o mancebo,
lembrando-lhe as responsabilidades que lhe
sobrevinham como pai, ainda maiores naquela
emergência. Consolava-o com a certeza de que sua mãe,
mesmo de lá onde estava, não deixaria de vir acalentá-lo
com o mesmo carinho e desvelo. Lembrava-lhe as
virtudes da boa senhora e o prêmio a que fizera jus pelos
seus dotes especiais e pelo que sofreu.
SPF, SP1: Seraphim
SPF, SP1: conjunctura
SPF, SP1: sitio; mancebo ( , )
SPF, SP1: pae
SPF, SP1: n’aquella; emergencia
SPF, SP1: acalental-o
SPF, SP1: premio; jús; especiaes
SPF, SP1: soffreu
310
315
320
Dona Úrsula e Abílio vieram apresentar as suas
condolências ao jovem casal, previamente tendo sido
recomendada a velha de como devia proceder. A visita
dos dois, para não incomodar a família, não foi
demorada; mas dona Úrsula teve tempo para chorar
abraçada a Maria, memorando as singulares virtudes da
morta. Abílio mostrou-se amigo carinhoso, afligiu-se
muito com os revezes que sobrevieram aos seus antigos
condiscípulos e, em particular, fez oferecimentos a João
exigindo bondosamente que não procurasse outro
quando necessitasse de dinheiro ou outro qualquer
auxílio.
SPF, SP1: D. Ursula; Abilio
SPF, SP1: condolencia; joven
SPF, SP1: recommendada
SPF, SP1: dous; incommodar;
familia
SPF, SP1: d. Ursula
SPF, SP1: Maria ( , )
SPF, SP1: Abilio; affligiu-se
SPF, SP1: condiscipulos;
offerecimentos
SP: ontro (Erro óbvio.)
SPF, SP1: auxilio
101
325
330
335
340
João, o homem bom e de boa fé, sentiu-se
enternecido e, agradecendo a espontaneidade dos
generosos oferecimentos, comprometeu-se a procurá-lo
quando se sentisse em aperturas. O pobre João ignorava
os precedentes de Abílio no que tocava às suas
pertensões sobre Maria e os fatos que se deram entre ele
e Serafim, porque este julgou de bom aviso guardar
reserva sobre a má e repreensível conduta do
pretendente malogrado, e Maria, também discreta,
considerou que tal revelação enublaria a paz do lar sem
que disso adviesse proveito a seu esposo. Seria isso
fomentar dissídios entre os dois mancebos, impróprio do
caráter honesto da esposa carinhosa, e muito mal a
recomendaria. Seria a sua indiscrição uma leviandade e
desmentido caráter, rebaixando-a às proporções de
enredadora e intrigante; um elemento de perturbações e
desordem. Por isso a criteriosa esposa chegou a
recomendar insistentemente a Pulquéria que, nem de
leve, deixasse escapar a quem quer que fosse o que
sabia respeito às pretensões de Abílio.
SPF, SP1: expontaneidade
SPF, SP1: offerecimentos;
comprometteu-se; procural-o
SPF, SP1: Abilio; ás suas
SPF, SP1: pretenções; factos; elle
SPF, SP1: Seraphim
SPF, SP1: reprehensivel; conducta
SPF, SP1: mallogrado; tambem
SPF, SP1: ennublaria
SPF, SP1: d’isso
SPF, SP1: dissidios; dous; improprio
SPF, SP1: caracter
SPF, SP1: recomendaria;
indiscreção
SPF, SP1: caracter (,)
SPF, SP1: ás proporções
SPF, SP1: recommendar; Pulcheria
SPF, SP1: ás pretenções; Abilio
Diz-se que muitas vezes se perde por falar e
outras por não falar. No caso de João e Abílio eram
aplicáveis a negativa e a afirmativa deste adágio.
Serafim considerava que “abrir os olhos” a João seria
SPF, SP1: Abilio; applicaveis
SPF, SP1: adágio
SPF, SP1: Seraphim
102
345
350
afligi-lo e pôr em dúvida o caráter de Maria à apreciação
de seu esposo, que, cego como todos os que amam em
extremos, nem ao menos consentiria que o objeto de sua
afeição fosse desejado por outro. João bem poderia,
desde que soubesse da pretensão de Abílio, conhecendo-
lhe o gênio ardente e pertinaz, tomar-se de ciúmes ao
pensar que algum dia sua esposa dedicou o seu afeto a
outro que não ele e que das cinzas desse amor
resurgisse, como a fênix, um amor reprovável.
SPF, SP1: affligil-o; duvida;
caracter; á apreciação
SPF, SP1: objecto; affeição
SPF, SP1: pretenção; Abilio
SPF, SP1: genio
SPF, SP1: ciumes
SPF, SP1: affecto; elle
SPF, SP1: phenix; reprovavel
355
360
O ciúme é a carcoma85 do amor. Trabalhando
insidiosamente, aquela paixão desagrega as mais íntimas
afeições, envenena os sentimentos os mais puros,
dissocia os bons elementos que, atraíndo-se
irresistivelmente, constituem o fundamento da paz, da
tranqüilidade, da harmonia, que fazem a felicidade da
família ou da sociedade.
SPF, SP1: ciume
SPF, SP1: aquella; desaggrega;
intimas
SPF, SP1: affeições
SPF, SP1: atrahindo-se
SPF, SP1: tranquillidade
SPF, SP1: familia
365
A confiança que João tinha na sua eleita, que
bem a merecia pelas suas virtudes, era calma como a
superfície serena de águas tranqüilas, que nem a mais
leve bafagem enrugasse. Bastava, porém, que os zelos
assoprassem aquele espelho onde se refletiam a paz, o
sossego e a ventura, para que ele se agitasse oscilando
entre a luz fugace da confiança, e as sombras dos
receios, das dúvidas e das inquietações.
SPF, SP1: superficie; aguas;
tranquillas
SPF, SP1: porem
SPF, SP1: aquelle; reflectiam
SPF, SP1: socego; elle; oscillando
85 Carcoma: corrosão, destruição lenta.
103
receios, das dúvidas e das inquietações. SPF, SP1: duvidas
370
375
Entre os dois alvitres que lhe sugeria um caso tão
melindroso conforme o adágio, Serafim preferiu o de
calar-se e vigiar sem descanso, porque, por mais sincera
que fosse a promessa que lhe fez Abílio de esquecer
Maria, o sagaz mestre-escola considerou que aquele
movimento generoso da sua alma era momentâneo; que
a raiz daquela violenta paixão não estava extirpada e
que a reflexão posterior dar-lhe-ia novo alento auxiliada
pelo despeito e pelo orgulho.
SPF, SP1: dous; suggeria
SPF, SP1: adagio; Seraphim
SPF, SP1: descanço
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: aquelle
SPF, SP1: momentaneo
SPF, SP1: d’aquella
380
385
Entretanto, o arguto espírito de Abílio, depois de
um demorado exame de todas essas circunstâncias e
conveniências, como que adivinhando o que pensava
Serafim, sentia-se seguro pela sua discrição e de Maria
e, com receio da vigilância de seu velho mestre,
procurava levar-lhe as lampas,86 trabalhando com mais
cuidado e dissimulação no sentido de conseguir os seus
maldosos intentos.
SPF, SP1: Entretanto (,); espirito;
Abilio
SPF, SP1: circunstancias
SPF, SP1: conveniencias
SPF, SP1: Seraphim; discreção
SPF, SP1: vigilancia
SPF, SP1: lampas (,)
86 Levar as lampas: levar vantagem a.
104
II
5
10
Morta dona Senhorinha, João, não só pelo
abatimento e tristeza que este inopinado acontecimento
lhe causou, como porque não se lembrou dessa
imposição legal, não tratou de requerer em juízo, dentro
dos trinta dias da lei, fosse feito o inventário dos bens do
casal. Além disso, alheio às coisas de foro, com o qual
nunca esteve em contato, mesmo que cogitasse de tal
coisa, não suporia que, sendo ele o único sucessor de
sua mãe, fosse indispensável essa formalidade judicial
para que entrasse na posse dos bens.
SPF, SP1: d. Senhorinha
SPF, SP1: Juizo
SPF, SP1: inventario
SPF, SP1: Alem; d’isso; ás causas
SPF, SP1: contacto
SPF, SP1: cousa; supporia; elle;
unico
SPF, SP1: successor; indispensavel
15
20
Entretanto, alguém, como que de espreita,
despertou os funcionários do foro, logo decorrido o
prazo, e João foi citado ex-offício. Embora contrariado,
não quis desobedecer, e compareceu perante o Juízo no
dia assinado. Por esse tempo os processos desse gênero
eram muito simplificados e não se impunham
formalidades que exigem advogado para acusar citações
e falar em juízo; mas aconselharam-lhe que convinha
constituir procurador para tratar do feito em seu lugar,
pois assim poderia voltar tranqüilo para o sítio a cuidar
dos seus afazeres, e não lhe seria preciso perder na
cidade dias e dias à espera da terminação do feito.
SPF, SP1: alguem
SPF, SP1: funccionarios
SPF, SP1: ex-officio
SPF, SP1: quiz; Juizo
SPF, SP1: assignado
SPF, SP1: d’esse; genero
SPF, SP1: accusar
SPF, SP1: Juizo
SPF, SP1: tramquillo; sitio
SPF, SP1: affazeres
SPF, SP1: á espera
O conselho pareceu razoável a João e aceitou-o, SPF, SP1: razoavel
105
25
30
tanto mais que nada sabia daquilo. Contratou um
procurador, deu-lhe os necessários poderes e instruções
que lhe exigiram e voltou tranqüilo para sua residência,
onde aguardaria o resultado de tamanha maçada que
amedronta o pobre roceiro e muita vez fá-lo passar por
desgostos, vexames e contrariedades.
SPF, SP1: acceitou-o; d’aquillo
SPF, SP1: Contractou; necessarios;
instrucções
SPF, SP1: tranquillo; residencia
SPF, SP1: fal-o
35
Passados muitos dias, recebeu João uma carta do
procurador na qual era informado de que todo o trabalho
fora perdido, tendo o mandatário o cuidado de dizer-lhe
que o culpado fora o próprio João que, nas instruções,
não informara que, por morte de seu pai e, até, de seus
avós, não se fez inventário nem se partilhou os bens,
como foi provado em juízo por outros interessados.
SPF, SP1: mandatario
SPF, SP1: proprio; instrucções
SPF, SP1: pae
SPF, SP1: inventario
SPF, SP1: Juizo
40
45
Lá foi João de novo à cidade, onde pintaram-lhe
o caso como muito intrincado, e, aproveitando-se da sua
ingenuidade e boa fé, enleiaram-no nas malhas da
tarrafa87 judiciária. Os interessados eram herdeiros de
seus avós, que já se achavam na posse das suas
legítimas desde muitos anos sem que se processe às
diligências ou formalidades judiciais. João protestou,
mas esses sucessores adventícios provaram com
certidões negativas que se não fizeram as partilhas, e
ameaçaram levantar litígio no qual provariam que se
SPF, SP1: La; á Cidade
SPF, SP1: enleiaram-n-o
SPF, SP1: judiciario
SPF, SP1: legitimas; annos; ás
deligencias
SPF, SP1: judiciaes
SPF, SP1: successores; adventicios
SPF, SP1: litigio
87 Tarrafa: armadilha para pegar algo ou alguém. Normalmente, o instrumento é muito utilizado na prática de pescaria amadora.
106
achavam prejudicados.
50
55
60
65
Estabeleceu-se uma balbúrdia, os tais herdeiros
apresentaram listas de bens semoventes em cópia, que
alegaram não terem recebido; atribularam o pobre João
dizendo-o responsável por esses bens, por terem ficado
com seus pais, apresentando escrituras antigas, e
estavam prontos ao que desse e viesse. Foi então que
Abílio, todo maneiroso e delicado, mostrou-se amigo
dedicado de João e interessado por ele, aconselhou-lhe
que melhor lhe seria em avença pacífica entre ele e os
outros herdeiros, porque as demandas são ruinosas.
Convenceu-o de que a sua conhecida honradez corria
perigo naquela contenda, porque os herdeiros
adventícios tinham provas documentais e testemunhais
esmagadoras. Não havia dúvida que venceria no pleito
e, afinal, teriam dúvidas sobre sua honestidade, dando-o
como sonegador de bens do casal. Abílio mostrou-se tão
amigo de João, usou de tais argumentos, e tanto
procurou conciliar os ânimos exaltados daquela malta de
herdeiros, que, por fim, o filho de dona Senhorinha
esteve por tudo quanto quiseram.
SPF, SP1: balburdia; taes
SPF, SP1: copia; allegaram;
attribularam
SPF, SP1: responsavel
SPF, SP1: paes; escripturas
SPF, SP1: promptos; désse
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: elle
SPF, SP1: pacifica; elle
SPF, SP1: n’aquella
SPF, SP1: adventicios; documentaes
SPF, SP1: testemunhaes; duvida
SPF, SP1: duvidas
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: taes; animos
SPF, SP1: d’aquella; porgim
SPF, SP1: d. Senhorinha
SPF, SP1: quizeram
70
Findo o processo e homologado pelo juiz,
achava-se o pobre João reduzido à extremidade, porque
teve que despender muito. Foi-lhe preciso vender as
SPF, SP1: á extremidade
107
75
terras e a parte que lhe tocou na casa onde nasceu e
passou a sua infância e mocidade. Restava-lhe, depois
de tudo concluído, um trato de terra vestido de capoeiras
e uma pequena faixa de mato virgem, da legítima que
coube a Maria por morte de sua mãe, e poucos animais.
SPF, SP1: infancia
SPF, SP1: concluido; tracto
SPF, SP1: matto; legitima
SPF, SP1: animaes
80
85
João entristeceu-se porque nem ao menos tinha
um casebre onde se abrigar com a família daí a dois
meses, prazo que lhe foi concedido para desocupar a
casa de seus pais; mas Serafim, o amigo de todos os
tempos, animou-o aconselhando-o a construir uma casa
modesta nas terras que lhe ficaram, prontificando-se a
ajudá-lo com seus filhos. Maria mostrou-se animada até
o heroísmo, sempre disposta e risonha, comprometendo-
se a prestar o seu concurso nos traballhos projetados,
tanto quanto lhe fosse possível. Assim, João não gastaria
o restante pecúlio de sua reserva.
SPF, SP1: familia; d’ahi; dous
SPF, SP1: desoccupar
SPF, SP1: paes; Seraphim
SPF, SP1: promtificando-o
SPF, SP1: ajudal-o
SPF, SP1: heroismo;
compromenttendo-se
SPF, SP1: projectados
SPF, SP1: possivel
SPF, SP1: peculio
90
95
Antes dos dois meses a casa estava construída,
embora não estivesse toda aparelhada. Todos
trabalharam com afã e boa vontade, sendo Serafim o
pedreiro e carpinteiro. Eram poucos os compartimentos,
os estritamente necessários; mas de futuro podiam ser
aumentados em número. João para ela mudou-se e
preparou cômodos para os seus animais, antes mesmo
de concluir o aparelhamento interior e exterior, que foi
SPF, SP1: dous; construida
SPF, SP1: apparelhada
SPF, SP1: afan; Seraphim
SPF, SP1: estrictamente; necessarios
SPF, SP1: augmentada; numero; ella
SPF, SP1: commodos; animaes
SPF, SP1: apparerelhamento
108
realizado depois. SPF, SP1: realisado
100
O que é certo é que, antes da estação das chuvas,
estava acomodado com todos os seus e já havia
preparado terreno para fazer as suas plantações. Na
parte posterior da casinha, uma larga baixa era cortada
pelo ribeiro, que se prestava a irrigá-la em toda a sua
extensão. Nela seriam cultivados o arroz e a cana de
açúcar. Como a baixada fosse extensa e João
considerasse que ele só não poderia cultivá-la, deu-a em
grande parte a meeiros, reservando para si a parte que
era mais próxima da casa.
SPF, SP1: accomodado
SPF, SP1: irrigal-a
SPF, SP1: N’ella; canna
SPF, SP1: assucar
SPF, SP1: elle; cultival-a
SPF, SP1: proxima
105
110
Entretanto, via-se João embaraçado porque não
lhe foi possível solver alguns compromissos, e isso
muito intraqüilizava o seu espírito de homem honesto,
que sempre foi pontual no cumprimento da sua palavra.
Trabalhando muito e economizando a rigor, calculava
que, mesmo em um ano, não poderia libertar-se dos seus
credores. Como era muito conhecida a sua probidade,
poderia conseguir uma mora. Isso, porém, muito o
afligia e envergonhava.
SPF, SP1: Entretanto (,)
SPF, SP1: possivel
SPF, SP1: intranquilizava; espirito
SPF, SP1: anno
SPF, SP1: porem
SPF, SP1: affligia
115
Abílio veio visitar o seu antigo condiscípulo logo
depois da sua mudança para a nova morada. Preferiu um
domingo para não interrompê-lo nas suas ocupações
rurais. Era a primeira vez que ia encontrá-lo na sua nova
SPF, SP1: Abilio; condiscipulo
SPF, SP1: interrompel-o; occupações
SPF, SP1: ruraes; encontral-o
109
residência. João não estava em casa, e Maria veio
recebê-lo.
SPF, SP1: residencia
SPF, SP1: recebel-o
120
125
A esposa, na aparência, era a mesma formosa
donzela, de uma beleza cativante que justificava o nome
que Serafim lhe escolheu quando menina. O leitor pode
bem calcular que impressão causou a Abílio aquela
mulher a quem ainda adorava apaixonadamente. De pé
em frente de Maria, enleiado pelo olhar daquela visão
empolgante, o mancebo, coato88, como fascinado,
assemelhava-se a um tímido colegial em frente do
severo pedagogo.
SPF, SP1: apparencia
SPF, SP1: donzella; belleza;
captivante
SPF, SP1: Seraphim
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: aquella
SPF, SP1: d’aquella
SPF, SP1: coacto;
SPF, SP1: timido; collegial
130
Foi preciso que Maria, contra todas as regras da
etiqueta, o saudasse em primeiro lugar com a maior
naturalidade estendendo-lhe a mão, convidasse-o a
assentar-se e tomasse-lhe o chapéu, que ele, indeciso,
conservava na mão, para que Abílio fosse readquirindo
uma calma relativa e, pouco a pouco, tomasse posse de
si.
SPF, SP1: chapeu; elle
SPF, SP1: Abilio
135
–Está um calor sufocante, minha senhora! –
disse Abílio por fim, enxugando o rosto com o lenço.
SPF, SP1: suffocante
SPF, SP1: Abilio; porfim
–O senhor quer banhar o rosto? – perguntou
Maria delicadamente, sem denunciar que conhecia a
causa daquela perturbação.
SPF, SP1: d’aquella
88 Coato: coagido.
110
140 –Não senhora, dona Maria. Graças a Deus aqui
está mais fresco. Eu desejava ver a João.
SPF, SP1: d. Maria
–Ele saiu, mas está perto e volta já. Posso
mandar chamá-lo.
SPF, SP1: Elle; sahiu
SPF, SP1: chamal-o
145
–Não o incomode; eu o aguardarei. Só hoje pude
sair de casa, tantas atrapalhações me apareceram. Vim
fazer-lhes uma visita um pouco tardia em sua nova
morada, e peço desculparem-me.
SPF, SP1: incommode
SPF, SP1: sahir; appareceram
150
–Não há de que desculpar. Sabemos que a vida
do campo quase não nos dá tempo para cumprirmos as
nossas obrigações sociais.
SPF, SP1: quasi
SPF, SP1: sociaes
155
160
–Ainda bem que o sabe. Hoje, principalmente,
que escasseiam entre nós os recursos e os abraços,
lutamos com sérias dificuldades. E o pobre João,
coitado! Calculo como não se viu embaraçado com
tantas atrapalhações que lhe sobrevieram! Como sabe,
minha senhora, João é o meu mais íntimo amigo desde a
infância e muito me interesso por ele. Por isso, vendo-o
em apuros e explorado miseravelmente na cidade, tomei
a peito defender os seus interesses e consegui salvá-lo
de piores consequências.
SPF, SP1: luctamos; serias;
difficuldades
SPF, SP1: Calcúlo
SPF, SP1: intimo; infancia
SPF, SP1: elle
SPF, SP1: era explorado
SPF, SP1: salval-o; peores
SPF, SP1: consequencias.
–Somos-lhe muito gratos – agradeceu Maria,
conhecendo a intenção do visitante.
SPF, SP1:Maria ( , )
–Entretanto, João não me procurou quando teve SPF, SP1: Entretanto ( , )
111
165
que construir a sua nova instalação apesar de oferecer-
lhe com insistência o meu auxílio em tudo que lhe fosse
prestável!
SPF, SP1: installação; apezar;
offerecer-lhe
SPF, SP1: insistencia; auxilio
SPF, SP1: prestavel!
–Guardam-se os amigos para as ocasiões de
maior aperto.
SPF, SP1: occasião
170
–Podia haver ocasião mais apertada do que esta
que felizmente ele venceu?
SPF, SP1: occasião
SPF, SP1: elle
–O compadre Serafim veio oferecer-se para
ajudar-nos no trabalho das construções e, como sabe,
ele trabalha de pedreiro e carpinteiro. Só ele poderia
prestar-nos esse concurso.
SPF, SP1: Seraphim; offerecer-se
SPF, SP1: construcções
SPF, SP1: elle; elle
175
180
185
Estas palavras de Maria pareceram a Abílio um
remoque ou leve censura ao seu procedimento. Nelas
eram postos em confronto o espontâneo oferecimento do
velho mestre-escola e o modo de proceder do mancebo
quando a família se achava abarbada dia e noite para
que tivesse um abrigo. Abílio sentiu doer-lhe o espinho
da sutil arguição que lhe fazia a jovem, porque era justo
o que delicadamente lhe censurava. Se era o amigo
dedicado de João, como não lhe apareceu quando este se
via a braços com a maior das dificuldades? É que Abílio
era desses que acodem os amigos quando o seu auxílio
já se tornou dispensável. “Largas salas e estreitas
camarinhas” como diz o vulgo. Entretanto, o mancebo
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: N’ellas
SPF, SP1: expontaneo; oferecimento
SPF, SP1: familia
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: subtil; joven
SPF, SP1: Si
SPF, SP1: appareceu
SPF, SP1: difficuldades; Abilio;
d’esses
SPF, SP1: auxilio; dispensavel
SPF, SP1: Entretanto ( , )
112
não se desconcertou e disse calmamente:
190
–Sabe, minha senhora, que eu, na
impossibilidade de prestar os meus serviços do oficial
obreiro, pois de ofícios não entendo, somente poderia
auxiliar a João com algum pecúlio. E, por mais de uma
vez, pus a minha bolsa à sua disposição.
SPF, SP1: official
SPF, SP1: officios; sómente
SPF, SP1: peculio
SPF, SP1:puz; á sua
195
–João é muito escrupuloso como o senhor sabe;
por isso tem receio de contrair dívidas que não possa
solver com pontualidade. Mesmo que lhe restava algum
dinheiro escapo89 das grandes despesas.
SPF, SP1: contrahir; dividas
SPF, SP1: despezas
Estavam nesse ponto da conversação quando
João chegou.
SPF, SP1: n’esse
200 –Estávamos aqui conversando a seu respeito,
João – disse Abílio todo carinhoso e risonho, depois de
cumprimentarem-se cordialmente.
SPF, SP1: Estavamos
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: cordealmente
–De que se trata?
205
–Pois você vê-se em dificuldades e não me
procura, a mim, seu amigo da infância, seu vizinho?
SPF, SP1: difficuldades
SPF, SP1: mim(,); infancia; visinho?
210
–Procurá-lo, Abílio, quando, mesmo por causa
do aperto em que me achava, vi-me forçado a trabalhar
dia e noite para que não esgotasse o prazo que me deram
para entregar a minha casa – a casa onde nasci e fui
criado – ,sem que tivesse um abrigo para minha família?
SPF, SP1: Procural-o; Abilio (,)
SPF, SP1: exgottasse
casa, Emendou-se.)
SPF, SP1: familia
89 Escapo: livre de obrigações.
113
–Podia escrever-me. Sei que se acha em sérias
dificuldades, e por mais de uma vez franqueei-lhe o
meu auxílio.
SPF, SP1: difficuldades
SPF, SP1: auxilio.
–Quais essas dificuldades? SPF, SP1: Quaes; difficuldades
215
–Soube há bem poucos dias; mas deixemos isso
porque, graças à minha intervenção, pode você ficar
tranqüilo. Tudo, como amigo, irei remediando.
SPF, SP1: á minha
SPF, SP1: tranquillo
–Sou-lhe muito grato, Abílio, pelo interesse que
liga à minha situação presente...
SPF, SP1: Abilio (,)
SPF, SP1: á minha
220 –Como liguei quando o perseguiam há pouco. SP1: ha
–É certo, e não pense que esqueço disso. Mas...
graças a Deus já consegui aplainar os maiores
embaraços que me sobrevieram.
SPF, SP1: d’isso
225
–Não tanto, pois sei que ainda não se extinguiu
por completo a perseguição que moveram contra você.
–Que! Pois ainda se lembram de fazer-me mal?
–Acalme-se, amigo! Não estou eu aqui para
defendê-lo dos seus vis perseguidores?
SPF, SP1: defendel-o
–Mas que novos males inventam contra mim?
230 –Não se aflija, nem é preciso que você saiba do
que há, porque logo me pus a campo em sua defesa e
mais uma vez fui feliz.
SPF, SP1: afflija
SPF, SP1: puz-me
–É preciso, porém, que eu, o verdadeiro
interessado, saiba de tudo.
SPF, SP1: porem
114
235
–Já me arrependo de ter-lhe falado nisso! Pois já
não lhe disse que fui feliz? Não crê no seu amigo?
SPF, SP1: n’isso
240
–Creio muito: mas tenho o direito incontestável
de saber que nova ordem de perseguições movem
contra mim. Vivo aqui a laborar sem descanso, não
incomodo a quem quer que seja, nem ao menos vou à
cidade desde que de lá saí enojado...
SPF, SP1: incontestavel
SPF, SP1: incommodo; á Cidade
SPF, SP1: sahi
–É mesmo por isso, pelo seu retraimento, que se
dão certas coisas ignoradas por você.
SPF, SP1: retrahimento
SPF, SP1: cousas
–Mas quais são elas? Insisto por saber e estou
certo que Maria também.
SPF, SP1: quaes; ellas
SPF, SP1: tambem
245
250
–Já que insiste, meu amigo, direi, com a
condição de não se agastarem comigo por ter me
intrometido nisso sem primeiro consultá-los. Não havia
tempo para isso; você não aparece em Caetité há meses
para que fosse informado diretamente a tempo de se
defender e eu, que me interesso por sua honra e créditos
firmados, como de sobejo tenho provado, só agindo logo
poderia afastar o perigo, e não poderia entrar com o meu
bom amigo em confabulação a respeito antes de se
realizar o negócio.
SPF, SP1: commigo
SPF, SP1: intromettido; n’isso;
consultal-os
SPF, SP1: Caitete; apparece
SPF, SP1: directamente
SPF, SP1: creditos
SPF, SP1: realisar; negocio
255
–Deixe de parte tudo isso que já sei de sobra,
Abílio, e vamos ao caso, que estou em brasas.
SPF, SP1: Abilio; brazas
–Pois bem. Você não tem compromissos a
115
solver?
–Tenho, mas por vencerem.
260
265
–Embora seja assim, a insídia propalou entre os
seus credores que você está insolvente. Como me viram
à frente de seus interesses combatendo os seus
perseguidores, vieram a mim os seus credores
desanimados queixando-se de prejuízos possíveis e
fazendo péssima idéia dos seus créditos. Não houve
argumentos que os convencessem, e o único meio que
achei de acreditarem no que eu asseverava, foi resgatar
as letras. Esse meio era o único que aceitavam, como
declararam positivamente.
SPF, SP1: insidia
SPF, SP1: viram-me (Emendou-se
ênclise para próclise.)
SPF, SP1: a frente (Emendou-se.)
SPF, SP1: prejuizos; possiveis
SPF, SP1: pessima; idéa; creditos
SPF, SP1: unico
SPF, SP1: lettras; unico; acceitavam
–Nesse caso é você afinal o meu único credor? SPF, SP1: N’esse; unico
270
–Não há dúvida; mas você sabe que comigo não
tem que se incomodar. Dar-lhe-ei fogo morto; pagar-
me-á quando lhe for possível e sem embaraço de outro
qualquer interesse.
SPF, SP1: duvida; commigo
SPF, SP1: incommodar
SPF, SP1: possivel
275
João, entretanto, sentiu-se de alguma sorte
desgostoso com o procedimento de Abílio, embora não
denunciasse o pesar que lhe ia pelo ânimo de ver-se
colocado em plano inferior. O seu orgulho bom de
homem honesto não admitia que alguém duvidasse das
suas intenções de homem honrado, e acudiu-lhe à mente
que, por mais bem intencionado que fosse o amigo que
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: pezar; animo
SPF, SP1: collocado
SPF, SP1: admittia; alguem
SPF, SP1: á mente
116
280
285
tão generosamente corria em defesa do seu crédito e
dignidade, isso o feria profundamente. Pelo menos esse
amigo tê-lo-ia em conta de insolvente senão naquela
ocasião, pelo menos de futuro e era testemunha, embora
única, do estado precário em que se achava. Como fugaz
relâmpago passou pelo seu pensamento a idéia de ir a
São Paulo como outros que ali somente encontraram
fáceis meios de ganhar quanto lhes bastasse para
restabelecerem o seu crédito e melhorarem a sua
situação.
SPF, SP1: credito;
SPF, SP1: feria-o (Emendou-se
ênclise para próclise.)
SPF, SP1: tel-o-ia; sinão; n’aquella;
SPF, SP1: occasião; testemunha (,)
SPF, SP1: unica; precario
SPF, SP1: relampago
SPF, SP1: idéa; S. Paulo
SPF, SP1: alli; faceis
SPF, SP1: credito
290
Todos esses pensamentos desfilaram diante da
mente do mancebo em poucos momentos. Depois,
erguendo a fronte que havia curvado, disse a Abílio:
SPF, SP1:deante
SPF, SP1: Abilio
295
300
–Agradeço-lhe, Abílio, o que fez por mim, e sei
que assim praticou em boa intenção e como amigo
sincero; mas observo-lhe que foi um tanto leviano,
desculpe-me a franqueza de amigo. As minhas letras
não estavam vencidas e só uma vencer-se-á em poucos
dias. Para o resgate dessa já tenho o pecúlio com alguma
sobra e quanto às outras três, espero em Deus que as
resgatarei. Que poderiam fazer esses meus credores
contra mim antes de vencido o prazo!
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: lettras
SPF, SP1: d’essa; peculio
SPF, SP1: ás outras; tres
–Não fui leviano, João. Se é certo que você em
tempo coseguirá solver as suas dívidas nos prazos
SPF, SP1: Si
117
305
tempo coseguirá solver as suas dívidas nos prazos
estipulados, não pode contestar que isso levará a efeito
mediante um moirejar90 mortificante. Os recursos do
nosso meio são por demais escassos e problemáticos
para que consigamos vencer as grandes dificuldades que
vêm inesperadamente. As que lhe vieram há bem pouco
tempo não são prova disso?
SPF, SP1: dividas
SPF, SP1: effeito
SPF, SP1: problematicos
SPF, SP1: difficuldades
SP1: ha
SPF, SP1: d’isso?
310
–Já sei que você abunda nas idéias que correm a
respeito do meu crédito.
–Não pense isso, João, que você me ofende.
SP1: Ja; SPF: idéas
SPF, SP1: credito
SPF, SP1: offende
315
–Desculpe-me; mas ouça. Não seria melhor que
você aguardasse o desenrolar dos fatos? Você não sabia
se eu estava ou não em estado de pagar, pelo menos a
letra que se vencerá em primeiro lugar. Não seria mais
vantajoso que eu fizesse o pagamento diretamente ao
credor? Assim não conseguiria eu demonstrar que eu
não estou insolvente como pensam?
SPF, SP1: factos
SPF, SP1: si
SPF, SP1: lettra
SPF, SP1: directamente
320
Diante de uma lógica tão apertada Abílio sentiu-
se embaraçado; mas não era homem que se desse por
vencido e não achasse uma saida airosa.91
SPF, SP1: Deante; logica; Abilio
SPF, SP1: désse
SPF, SP1: sahida
–Confesso que, realmente, fui um pouco
afobado, meu amigo; mas que quer? Não havia tempo
para consultá-lo, fiquei nervoso e indignado e procedi
SPF, SP1: consultal-o
90 Moirejar: variante de mourejar. Trabalhar incessantemente. 91 Airosa: elegante.
118
325 assim quase inconsideradamente, em vista da urgência
do caso. Se o desagradei, João se lhe não é agradável
dever a mim, peço-lhe mil desculpas e a dona Maria.
Sabe que o que vale é a intenção.
SPF, SP1: quasi; urgencia
SPF, SP1: Si; si
SPF, SP1: agradavel; d. Maria
330
–Não já lhe disse que creio firmemente ser boa a
sua intenção? Não se zangue comigo. O que está feito
não está por se fazer. Somos e seremos sempre amigos
leais. Ainda mais, se eu precisar de dinheiro, já sei que o
encontrarei em sua mão.
SPF, SP1: commigo
SPF, SP1: leaes; si
335
–E, procurando-me, causar-me-á muito prazer.
Desejo ser-lhe prestável em tudo quanto estiver no meu
alcance.
SPF, SP1: prestavel
–Reconheço, Abílio. SPF, SP1: Abilio
340
–Deixemos isso de negócios que surgiu
incidentemente em nossa conversação. Vim apenas
visitá-lo, que há muito tempo não o vejo.
SPF, SP1: negocios
SPF, SP1: visital-o
SPF, SP1: ha
–Como já sabe, as minhas ocupações nem me
deixam tempo para cumprir os meus deveres sociais.
Você bem avalia e por certo me desculpará.
SPF, SP1: occupações
SPF, SP1: sociaes
345
–Que dúvida, meu amigo! Entre nós não deve
haver etiquetas. Sou mesmo refratário a exagerados e
meticulosos cerimoniais entre amigos.
SPF, SP1: duvida
SPF, SP1: refractario
SPF, SP1: ceremoniaes
A conversação dos dois derivou para este e
outros assuntos sem importância, tomando Maria parte
SPF, SP1: dous
SPF, SP1: assumptos; importancia
119
350
nela. Abílio, sempre delicado ao extremo, mesmo
cativante no seu modo de expor, mostrando-se o amigo
dedicado da família, pondo em prática uma estudada
delicadeza e habilidade que mal encobriam à jovem
esposa a afetação tendenciosa que tinham por
fundamento.
SPF, SP1: n’ella; Abilio
SPF, SP1: captivante
SPF, SP1: familia; pratica
SPF, SP1: a joven
SPF, SP1: affectação
355
Pulquéria espiava-o esconjurando-o; mas teve
que deixar o seu ponto de observação para servir o café.
Horas depois se retirou a visita pedindo a João que
frequentasse sua casa com dona Maria, que isso seria
muito do agrado de sua mãe.
SPF, SP1: Pulcheria
SPF, SP1: retirou-se (Emendou-se
ênclise para próclise.)
SPF, SP1: d. Maria
III
5
10
João, apesar de dar crédito às reiteradas
afirmações de Abílio e de tê-lo como amigo sincero e
dedicado, não só por seu gênio bondoso e boa fé, como
por ignorar os precedentes de que o leitor está inteirado
desde o dia daquela visita tornou-se triste e
meditabundo.92 Sentia-se como depreciado aos olhos da
sociedade e, como obsedado por uma idéia fixa, muitas
vezes, quando não o distraía o trabalho, ou quando à
noite a insônia o atribulava, sentia percorrer-lhe o corpo
um frêmito de terror.
SPF, SP1: apezar; creditos; às
retiradas
SPF, SP1: affirmações; Abilio; tel-o
SPF, SP1: genio
SPF, SP1: inteirado; (Emendou-se.)
SPF, SP1: d’aquella
SPF, SP1: idéa
SPF, SP1: destrahia; á noite
SPF, SP1: insomnia; attribulava
SPF, SP1: fremito
92 Meditabundo: pensativo.
120
15
Até então, se bem considerasse arriscada e
aflitiva a sua situação de comprometido por dívidas que
muito excediam os seus recursos ordinários, sentia-se
forte e animado, contando que, com um moirejar
incessante e uma economia severa, conseguiria tudo
pagar em tempo.
SPF, SP1: si
SPF, SP1: afflictiva; compromettido;
dividas
SPF, SP1: ordinarios
SPF, SP1: severa ( , )
20
25
30
Então, Maria, que nada ignorava dos seus
negócios e compromissos, ajudava-o com o seu
conselho e labor. Agora, porém, como que se lhe abriam
os olhos diante de um abismo incomensurável que
ameaçava tragar a sua dignidade, os seus reconhecidos
foros de homem de bem, o seu bom nome. Sobretudo
amargurava-o sentir-se como tutelado de Abílio, que se
arvorava em seu protetor, como que a pôr em confronto
a sua posição de fidalgo endinheirado com a de amigo
pobre e arruinado. Não passava pelo pensamento de
João que o procedimento de Abílio algo contivesse de
tendencioso, não; tanto mais quanto cria firmemente que
o seu condiscípulo fora constragindo a assim proceder
com o louvável e generoso fito de pôr e resguardar a
honra e os créditos do amigo.
SPF, SP1: negocios
SPF, SP1: porem
SPF, SP1: deante; abysmo;
incommensuravel
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: proctetor
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: condiscipulo; foi
SPF, SP1: louvavel
SPF, SP1: credito
35
Entretanto, sentia-se colocado em posição muito
inferior, e incapaz de corresponder, como desejava, a
um rasgo de tamanha liberalidade. Mesmo que fosse
SPF, SP1: collocado
121
40
pontual na solvência de seus compromissos, só Abílio
seria testemunha da sua pontualidade e, por mais que
este asseverasse em público a probidade e retidão do
amigo, diriam os maldizentes que o rico mancebo se
sacrificara para salvar a honra daquele a quem era
dedicado, com uma generosidade digna de tantos
elogios quanto tinha de depreciativa do caráter do
protegido.
SPF, SP1: solvencia; Abilio
SPF, SP1: publico; rectidão
SPF, SP1: d’aquelle
SPF, SP1: caracter
45
50
Nesse ponto o louvável orgulho de João impelia-
o a lançar mão de recurso extremo. Qual esse recurso?
Achava-se agora convencido de que o seu trabalho, por
mais afanoso que fosse, que a sua economia, por mais
estrita que a pusesse em prática, tinham contra si o
futuro, todo problemático, que muitas vezes traz consigo
embaraço e até obstáculos que o esforço humano não
pode vencer.
SPF, SP1: N’esse; louvavel; impellia-
o
SPF, SP1: trabalho (,) SPF, SP1: fosse; (,) SPF, SP1: estricta; puzesse; pratica
SPF, SP1: problematico; comsigo
SPF, SP1: obstaculos
55
Como o naúfrago que, desalentado e quase sem
esperança de salvar-se, bracejando na superfície
encapelada do mar, tem a morte diante dos olhos, João
avistou uma taboa93 de salvação: – o estado de São
Paulo. Como asseveravam muitos baianos que lá
estiveram e trabalharam, o dinheiro corria ali a rodo e o
trabalho era magnificamente remunerado. Já muitas
testemunhas que lhe mereciam fé haviam-lhe informado
SPF, SP1: naufrago; quasi
SPF, SP1: encapellada; deante
SPF, SP1: S. Paulo; bahianos; la
SPF, SP1: alli; rôdo
SP1: Ja
93 Taboa: variante de tabua.
122
60
65
testemunhas que lhe mereciam fé haviam-lhe informado
o quanto esplendorosos eram o progresso, a riqueza e o
desenvolvimento industrial e comercial do opulento
estado do Sul, sem que conseguissem abalar-lhe o
ânimo e sugestioná-lo como a muitos baianos honestos
que, depois de procurarem aqui, debalde, meios de
livrar-se de aperturas como as que presentemente o
afligiam, somente lá haviam conseguido o pecúlio de
que tanta necessidade tinham para solver compromissos,
sobrando-lhes ainda com que dessem desenvolvimento à
sua fazenda...
SPF, SP1: commercial
SPF, SP1: animo; suggestional-o;
bahianos SPF, SP1: affligiam; la conseguiram;
peculio
SPF, SP1: déssem; á sua
70
75
80
“Com trabalho, inteligência e economia, só não é
rico quem não o quer ser” lera João algures e adotara
como postulado que devemos todos ter presente à nossa
memória. É certo que essa sentença não mencionava,
além dos três fatores lembrados, a eventualidade e o
imprevisto; mas o nosso mancebo considerava que os
fatores enunciados, sendo puramente humanos, eram os
únicos que estão ao nosso alcance, tendo Deus
reservado para si os outros, dependendo afastar a sua
influência quando prejudicial, de uma fé profunda na
Providência; de seguir-se sempre, sem desfalecimentos,
o caminho reto do bem; de termos uma conduta
irrepreensível; de não nos esquecermos um só momento,
SPF, SP1: intelligencia
SPF, SP1: adoptara
SPF, SP1: á nossa
SPF, SP1: memoria
SPF, SP1: alem; tres; factores
SPF, SP1: factores; são
SPF, SP1: unicos
SPF, SP1: influencia
SPF, SP1: Providencia;
desfallecimentos
SPF, SP1: recto; conducta
SPF, SP1: irreprehensivel
123
85
dando-lhe graças que do Céu nos vem o auxílio em toda
e qualquer circunstância, quando agimos com indefesa
energia e coragem, arrimados à confiança nAquele que
jamais deixa de estender a mão à boa vontade e
intenção.
SPF, SP1: Céo; auxilio
SPF, SP1: circumstancia
SPF, SP1: á confiança; n’Aquelle
SPF, SP1: á boa
90
95
100
105
Um homem honesto e laborioso, de aspirações
modestas, que tenha como sagrados os seus deveres de
unidade social que deve trabalhar tanto para si como
para o bem da coletividade; que seja respeitador
daqueles a quem se subordina, que seja bom cidadão,
bom esposo; bom pai; um homem de bem, em suma, em
um meio opulento como o do estado de São Paulo, em
menos de um ano conseguirá ali uma fortuna que, se
para o rico estado é modesta, para nós, os atrasados
sertões, será de encher as vistas. Tanto pensou João
nisso, guardando absoluta reserva, sem revelar, nem
mesmo a Maria, as idéias que o iam progressivamente
dominando sem procurar conselho de quem quer que
fosse; que por elas foi subjugado, chegando por fim à
definitiva resolução de emigrar como muitos outros,
tomado da esperança de, no estado leader94 da União,
encontrar os recursos de que tinha tanta necessidade
para solver os seus compromissos e melhorar a sua
situação.
SPF, SP1: collectividade
SPF, SP1: d’aquelles
SPF, SP1: pae; summa
SPF, SP1: Estado de S. Paulo
SPF, SP1: anno; alli; si
SPF, SP1: Estado; atrazados; nós(,)
SPF, SP1: sertões (,)
SPF, SP1: n’isso
SPF, SP1: idéas
SPF, SP1: dominando;
SPF, SP1: fosse; (Emendou-se a
pontuação.); ellas
SPF, SP1: LEANDER
94 Leander: líder.
124
situação.
IV
5
10
15
20
Eis como se forma atualmente o caráter do
sampauleiro honesto, bem intencionado e digno que, por
si, toma a deliberação de emigrar, por um lado premido
por circunstâncias adventícias, por outro atraído por
aquele centro de movimento e riqueza. Destes que
constituem uma classe, podemos asseverar que
dificilmente se abalam do nosso meio, levando no seu
coração a dor e no pensamento as mais dolorosas
reminiscências de uma vida até então tranqüila no seio
amorável da terra querida onde abriram os olhos a esta
existência, onde passaram a infância e a mocidade;
levando a saudade, essa amargura adulçorada pela
esperança de retorno e pela imagem da esposa, dos
inocentes filhinhos, dos parentes, dos amigos que atrás
deixaram, a quem tanto amou e por quem são capazes
de todos os sacrifícios, e que se estampa na sua
retentiva, risonha, em uma objetividade acariciadora que
os anima incitando-os a prosseguir a despeito de tudo,
como a ampará-los com angelical doçura e carinho que
constitui uma segura promessa.
SPF, SP1: actualmente; caracter
SPF, SP1:circumstancias;
adventicias; attrahido
SPF, SP1: aquelle; D’estes
SPF, SP1: difficilmente
SPF, SP1: reminiscencia; tranquilla
SPF, SP1: amoravel
SPF, SP1: existencia; infancia
SPF, SP1: innocentes; atraz
SPF, SP1: sacrificios
SPF, SP1: ampararal-o
125
25
30
35
40
Arrastando-se pela via dolorosa que uma como
fatalidade abrigou-os a trilhar, vergados ao peso da triste
conjuntura que os impele com o seu poderoso aguilhão
– cruel, porque impõe com inexorabilidade; meigo e
suave, porque indica uma finalidade risonha e feliz –
não se esquecem, um momento sequer, da gleba que,
desde os seus maiores, vêm, pacífica e tranqüilamente
arroteada,95 para desabotoar os seus tesouros em ótimos
frutos; do arroio96 perene e murmuroso onde os seus
nédios97 rebanhos vão dessedentar-se98 e que, obediente
à sua inteligente direção, vai umedecer as plantações
para emprestar-lhes o viço que verdeja como a
esperança; da colina que a primavera floreja com seus
opulentos tesouros de bela e atraente policromia; do
tanque, vasto espelho cristalino, que reflete as
encantadoras ribas vestidas de uma vegetação
luxuriante, que guarda o piscoso alimento e atrai um
variado mundo de aves aquáticas, a sua alma sonante e
buliçosa que enche o ambiente com uma rumorosa e
esquisita harmonia; dos bosques, dos prados, das
árvores vetustas que os viram nascer; dos rochedos e
penhascos impassíveis, como austeros vigias da
SPF, SP1: conjunctura; impelle
SPF, SP1: siquer
SPF, SP1: tranquillamente
SPF, SP1: thesouros; optimos
SPF, SP1: fructos; perenne
SPF, SP1: á sua intelligente;
direcção; vae; humedecer
SPF, SP1: collina
SPF, SP1: thesouros; bella;
attrahente; polycromia
SPF, SP1: crystalino; reflecte
SPF, SP1: atrahe
SPF, SP1: acquaticas
SPF, SP1: exquisita
SPF, SP1: arvores
SPF, SP1: impassiveis
95 Arroteada: cultivada. 96 Arroio: pequeno curso de água. 97 Nédio: lustroso; brilhante. 98 Dessedentar: saciar, matar a própria sede.
126
45
50
eternidade no tempo, pacientemente enredados, mas não
vencidos, pelas lianas99 floridas, cobertos de musgos e
coroados de cactus; enfim do brilhante sol tropical que,
se caustica e flagela nas grandes estiagens, é um
indispensável elemento de vida, dessa vida estuante e
opulenta que maravilha e delicia os advenas dos outros
países.
SPF, SP1: cactus; emfim
SPF, SP1: si cauticas; flagella
SPF, SP1: indispensavel; d’essa
SPF, SP1: paizes.
A essa classe pertencem outros que são
constrangidos ao exílio por circunstâncias diferentes das
que impeliam João ao expátrio, mas tão peníveis como
elas.
SPF, SP1: exílio; circunstancias;
differentes
SPF, SP1: impelliam; expatrio;
peniveis
SPF, SP1: ellas
55
60
65
Quantos pobres baianos destes altos sertões que
viviam tranqüilos, trabalhando, em seguida aos seus
antepassados, no campo que lhes pertence de fato e de
direito, vítimas de clamorosas injustiças, perseguidos
por poderosos, espoliados de sua fazenda em favor de
vizinhos invejosos da sua modesta propriedade, ou de
inimigos gratuitos que lhe movem demandas e
processos-crimes, caluniados por testemunhas adrede100
arranjadas, não se vêm por fim obrigados a fugir sob a
ameaça dos mandões, a arrastar-se penosamente por
centenares de léguas, sofrendo privações, lutando com
inúmeras dificuldades, tendo como última esperança,
SPF, SP1: bahianos; d’estes
SPF, SP1: tranquillos
SPF, SP1: facto
SPF, SP1: victimas
SPF, SP1: visinhos
SPF, SP1: calumniados
SPF, SP1: porfim
SPF, SP1: leguas; soffrendo; luctando
SPF, SP1: innumeras; difficuldades;
ultima
99 Liana: trepadeira lenhosa, geralmente de grande tamanho, semelhante a cipó. 100 Adrede: intencional.
127
como seguro amparo, escravizar-se aos ricos
fazendeiros paulistas e seus subordinados!
70
75
80
Levando o coração torturado pela dor e pela
saudade de sua terra, muita vez conduzindo a esposa e
os filhos que os sobrecarregam de maiores embaraços e
privações, chegam ao termo da sua viagem nús e
famintos, são tratados como “retirantes” que fogem às
faladas “secas” e à fome que por cá não existem, são
recebidos com soberano desprezo, e assim concorrem
indiretamente para o descrédito da Bahia, por lá
considerada estéril, adusta101 e inóspita, quando,
entretanto, deixaram atrás fartas messes102, o solo
umedecido pela chuva benéfica, os campos cobertos de
verdura. Os que escapam a essas injustas perseguições,
ou que por ora se acham esquecidos dos tiranetes,103 são
um atestado do que afirmamos, e prova irrefragável de
que entre nós, mesmo nas maiores estiagens, jamais nos
faltaram os recursos instalados pela subsistência.
SPF, SP1: ás faladas
SPF, SP1: “seccas”; á fome
SPF, SP1: indirectamente; descredito
SPF, SP1: esteril; inospita
SPF, SP1: atraz; SP1: mésses
SPF, SP1: humedecido; benefica
SPF, SP1: tyrannetes
SPF, SP1: attestado; affirmamos;
irrefragavel
SPF, SP1: subsistencia
85
Há ainda a classe dos iludidos por promessas
falaciosas, aliciados por hipócritas e exploradores.
Nunca tinham ido a São Paulo, ouviam falar-se na
riqueza e esplendor daquele estado; mas tinham dúvidas
a respeito do que lhes informavam, tanto mais quanto
SPF, SP1: illudidos
SPF, SP1: fallaciosas; alliciados;
hypocritas
SPF, SP1: S. Paulo
SPF, SP1: d’aquelle; duvidas
101 Adusta: queimada, abrasada. 102 Messes: seara em bom estado de se ceifar 103 Tiranete: aquele que oprime os que dele dependem.
128
90
95
a respeito do que lhes informavam, tanto mais quanto
viam voltarem alguns desiludidos e pobres. Os
aliciadores, porém, acham meios de convencê-los,
prometem colocações vantajosas e, embora sejam
baianos, não se envergonham de desacreditar a sua terra
para conseguirem os seus fins, que são: arrebanhar essa
nova espécie de escravos, que já têm contratados a tanto
por cabeça e locupletar-se104 com o trabalho dos
ingênuos que lhes caem nas garras de aves rapaces105.
Quantos desses por lá perambulam desiludidos e
impossibilitados de voltarem!
SPF, SP1: alliciadores; porem;
conhecell-os
SPF, SP1: promettem; collocações
SPF, SP1: bahianos
SPF, SP1: especie; contractados
SPF, SP1: ingenuos; cahem
SPF, SP1: d’esses; desilludidos
100
105
110
Há muitos emigrados baianos que, abandonando
mulher e filhos, esquecem-se das pessoas que lhes
deviam ser caras. Atraídos, como a falena106, pelo brilho
da civilização paulista, por tantas magnificências que lá
encontram e aqui nunca viram, deixam-se mais levar
pelo esplendor contínuo que presenciam e que para eles
é uma festa permanente, e desperdiçam levianamente o
que em São Paulo conseguiram ganhar. Renegam o seu
estado natal, como renegam os seus mais íntimos
parentes; envergonham-se de serem baianos e chegam a
constituir naquelas terras longínquas nova família, ilícita
se ainda lhes resta algum escrúpulo, aparentemente legal
SP1: Ha; SPF, SP1: bahianos
SPF, SP1: Attrahidos; phalena
SPF, SP1: civilisação; magnificencias
SPF, SP1: continuo; elles
SPF, SP1: S. Paulo
SPF, SP1: intimos
SPF, SP1: bahianos
SPF, SP1: n’aquellas; longinquas;
famillia; illicita
104 Locupletar-se: tornar-se rico, enriquecer-se. 105 Rapaces: raptadoras. 106 Falena: espécie de borboleta noturna, mariposa.
129
115
se ainda lhes resta algum escrúpulo, aparentemente legal
por meio de um consórcio anulável, quando são
desabusados e audazes. A pobre esposa e os filhos,
abandonados por cá, passam pelas mais cruéis e
angustiosas dificuldades. Esperando indefinidamente o
chefe do casal, rodeados de inocentes criancinhas, é
dolorosa a sua situação. Se é honesta e criteriosa, a
esposa vale-se do trabalho incessante, indefeso, para
salvar a prole.
SPF, SP1: escrupulo
SPF, SP1: apparentemente;
consorcio; annullavel
SPF, SP1: crueis
SPF, SP1: difficuldades
SPF, SP1: innocentes creancinhas
SPF, SP1: Si
120
125
130
Quantas dessas pobres mártires, se
compreendem as responsabilidades que lhes cabem
como esposas, velando pelo seu bom nome, guardando a
sua virtude como uma vestal, exaurem-se no labor,
sacrificam a sua saúde ou a sua vida, ocultas, ignoradas
do mundo, no humilde gineceu107 que lhes coube por
uma sorte mofina, e conseguem, depois de anos de uma
luta estiolante, formar o caráter de um filho que vem a
substituir no lar o seu desalmado progenitor! Quantas
ingênuas, incapazes de lutar até o fim, sem nítida
compreensão dos seus deveres sagrados, arriscam-se a
procurar um protetor estranho, – muitas vezes um
hipócrita e filaucioso108 compadre que favoreceu a
emigração do marido, que até forneceu-lhe dinheiro para
SPF, SP1: d’essas; martyres; si
SPF, SP1: comprehendem
SPF, SP1: exhaurem-se
SPF, SP1: saude; occultas
SPF, SP1: gyneceu
SPF, SP1: annos
SPF, SP1: lucta; caracter
SPF, SP1: ingenuas; luctar; nitida
SPF, SP1: comprehenção
SPF, SP1: protector; extranho
SPF, SP1: hypocrita; philaucioso
107 Gineceu: parte da habitação grega destinada às mulheres. 108 Filaucioso: egoísta.
130
135
a viagem, com o infame propósito de apartá-lo como
impecilho que era aos seus desejos reprováveis! Neste
caso, a incauta vem a cair no abismo da perdição.
SPF, SP1: proposito; apartal-o
SPF, SP1: reprovaveis!, N’este
SPF, SP1: caso (,); incauta, (Erro
óbvio.) cahir; abysmo
140
145
E assim desorganiza-se a família no meio pobre
do proletariado baiano-sertanejo, porque heroínas como
as que acima descrevemos são raras. Destas mesmas, se
a prole é feminil, ou se, exaustas pelo trabalho, morrem
ou, pela enfermidade, tornam-se impossibilitadas de
continuar a sua faina debilitante, algumas, conservando-
se puras, não conseguem salvar os filhos que, sem uma
segurança direção honesta, perdem-se enxurros dos
vícios, dos prostíbulos, das vilezas.
SPF, SP1: familia
SPF, SP1: bahiano-sertanejo;
heroinas
SPF, SP1: D’esta; si
SPF, SP1: si; exhaustas
SPF, SP1: direcção
SPF, SP1: vicios; prostibulos
150
155
O leitor não tome por exagerado o quadro
desolador que aqui delineamos. Quiséssemos ilustrá-lo
com fatos, deles encontraríamos facilmente em cópia;
estão no conhecimento de todos nós. Basta que se visite
e examine o cenário onde se passam esses horrores, para
que sinta o coração confrangido e se avalie, –
comparando a feracidade do nosso território e a sua
opulência em propriedades naturais para um grande
desenvolvimento econômico – que uma causa poderosa
que não são as “secas” e a “fome” tão faladas, arrastou-
nos à mais triste das situações. E, se, quem visitá-lo e
observá-lo, já o conheceu há quarenta anos atrás como
SPF, SP1: Quizessemos; illustral-o
SPF, SP1: factos; d’elles; copia
SPF, SP1: scenario
SPF, SP1: territorio
SPF, SP1: opulencia; naturaes
SPF, SP1: economico,
SPF, SP1: “seccas”
SPF, SP1: á mais; si; visital-o
SPF, SP1: observal-o; annos; atraz
131
nós, mais convencido ficará do que aqui acertamos. SPF, SP1: assertamos.
160
165
170
Conhecemos grandes casas de campo,
verdadeiras habitações senhoriais, que foram
construídas no primeiro quartel do século passado por
fazendeiros ricos, com vastas dependências que, pelas
suas dimensões, equivaliam às atuais casas de fazenda.
Os currais, mangas de pasto, barragens que retiram as
águas, e outras construções indispensáveis a uma
fazenda de criação de gados, eram de grandes
proporções e feitas com solidez. Algumas dessas antigas
habitações campestres, quando erguidas nos contrafortes
da serra e próximas de ribeiros perenes, tinham ao lado
grandes pomares, extensas plantações de cana e outras
culturas que dependem de irrigação. Nesse caso havia
aquedutos, engenhocas, moinhos movidos por água e
outros benefícios.
SPF, SP1: senhoriaes
SPF, SP1: construidas; seculo
SPF, SP1: dependencias
SPF, SP1: ás actuaes
SPF, SP1: curraes
SPF, SP1: construcções;
indispensaveis
SPF, SP1: d’essas
SPF, SP1: proximas; perennes
SPF, SP1: canna
SPF, SP1: N’esse
SPF, SP1: acqueductos água
SPF, SP1: beneficios.
175
180
Muitas dessas grandes habitações, depois de
passarem a herdeiros de duas gerações, foram
traspassadas a estranhos que as demoliram para vender
os materiais. Hoje, quem visitar essas situações
agrícolas, onde ainda alcançamos um grande
movimento, verá escombros, restos de alicerces, paredes
esboroadas109. Enormes madeiros que restam dos currais
e cercas apodrecem sob a ação da chuva. Nos terrenos
SPF, SP1: extranhos
SPF, SP1: materiaes
SPF, SP1: agricolas
SPF, SP1: curraes
SPF, SP1: acção
109 Esboroada: desmoronada.
132
185
190
e cercas apodrecem sob a ação da chuva. Nos terrenos
planos ainda se percebem sinais das valetas onde faziam
as plantações de rega; os aquedutos, em completo
abandono, não mais conduzem a água; as árvores de
pomar que restam, mas resistentes, vencidas pelas
parasitas, são emaranhadas nas silvas e plantas
indígenas que reconquistam pouco a pouco os seus
domínios. E sobre tudo isso paira o silêncio e a tristeza,
contrastando com o antigo ruído e alegria que
conhecemos ali, que nos atraíam e empolgavam,
naqueles tempos que já se foram e dos quais guardamos
uma saudosa reminiscência.
SPF, SP1: si; signaes
SPF, SP1: acqueductos; réga
SPF, SP1: água; arvores
SPF, SP1: emmaranhadas
SPF, SP1: indigenas
SPF, SP1: dominios; silencio
SPF, SP1: ruido
SPF, SP1: alli; attrahiam
SPF, SP1: naquelle; quaes
SPF, SP1: reminiscencia.
195
200
Falta-nos, entretanto, dar ao leitor o
conhecimento do sampauleiro típico, de cuja informação
fomos afastados pela digressão acima. Ele não pertence
às classes que acima descrevemos. O sampauleiro
característico é o homem forte e destemido que já tem
feito reiteradas viagens ao opulento estado do Sul. Ele já
o conhece de sobejo; já sabe quais as melhores
oportunidades de ir ali ganhar dinheiro; já se acha
familiarizado com muitos fazendeiros; já se acreditou
pela sua probidade como jornaleiro; já conhece os
perigos que por lá podem ameaçá-lo e sabe evitá-los.
SPF, SP1: typico
SPF, SP1: Elle
SPF, SP1: ás classes
SPF, SP1: caracteristico
SPF, SP1: Elle
SPF, SP1: quaes
SPF, SP1: opportunidades; alli
SPF, SP1: ameaçal-os; evital-os.
133
205
210
215
220
Para esse tipo, – que se assemelha ao cule
hindustânico ou chinês, – as viagens quase anuais, que
faz a São Paulo e de retorno à sua terra, onde deixou
esposa, filhos, parentes e amigos de quem se não
esquece, são um brinco; para ele a enorme distância que
por mais de uma vez transpôs parece diminuir por cada
dia que se passa. Está habituado de tal forma a essa
viagem, que diz com ênfase aos timoratos110: “Para mim
São Paulo está ali detrás da porta.” E só, ou
acompanhado de outros da sua têmpera, continua desde
muitos anos a sua vida de andejo. Entretanto, é esse
sampauleiro um dos mais perigosos propagandistas da
emigração, se bem que indireto, pelo exemplo e pelos
modestos proveitos que lhe têm advindo das suas
viagens; porque justamente os fortes e resolutos, que
seriam aqui um valioso elemento para o nosso
desenvolvimento econômico, sentem-se incitados a
seguir a mesma vida de aves de arribação.
SPF, SP1: typo; kuli
SPF, SP1: indostanico; chinez,; quasi;
annuaes
SPF, SP1: S. Paulo; á sua
SPF, SP1: elle; distancia
SPF, SP1: transpoz,
SPF, SP1: emphasis
SPF, SP1: S. Paulo; alli; detraz
SPF, SP1: tempora
SPF, SP1: annos; Entretanto ( , )
SPF, SP1: si; indirecto
SPF, SP1: economico
110 Timorato: medroso.
134
V
5
10
Ainda nos recordamos de como se iniciou o
atual movimento emigratório do baiano desta região;
fomos testemunhas do seu começo e conhecemos-lhe as
causas mediatas e imediatas. Estas, mais próximas no
tempo, ainda se acham vivas na memória de muitos
velhos que, como nós, são delas testemunhas; aquelas
porém, mais remotas, conhecemos, parte por tradição e
parte por documentos que compulsamos e estudamos
com interesse.
SPF, SP1: iniciou-se
SPF, SP1: actual; migratorio; bahiano
SPF, SP1: immediatas; proximas
SPF, SP1: memoria
SPF, SP1: d’ellas; aquellas
SPF, SP1: porem
15
20
É sabido que a Bahia, por ser primitivamente a
sede do governo geral do país, tornou-se desde o meado
do século XVI, o empório mais importante do tráfico de
escravos africanos no Brasil, favorecido pelo governo
para evitar a escravização do nosso íncola. O nosso
desenvolvimento econômico dependeu sempre do
escravo negro. Numerosas escravarias deram entre nós
um grande impulso à agricultura a começar da sede da
capitania e, tais foram os resultados conseguidos por
esse meio de progresso, posto que ilícito e de más
consequências futuras, que não foram previstas, e que se
propagou por todo interior logo que os nossos sertões
foram desbravados. Viviamos do negro, trabalhador
resistente e submisso.
SPF, SP1: séde; paiz
SPF, SP1: seculo 16º (Emendou-se.);
emporio; trafico
SPF, SP1: incola
SPF, SP1: economico
SPF, SP1: á agricultura; séde
SPF, SP1: taes
SPF, SP1: postoquê; illicito
SPF, SP1: consequencias; futuras ( , )
SPF, SP1: propagou-se
135
25
30
35
40
Caetité, um dos mais antigos e importantes
meios da região sertaneja do Sul baiano desde o fim do
século XVI, tornou-se por sua vez um empório
secundário desse comércio. Quando Minas do Rio de
Contas e o Norte de Minas preocupavam-se quase
exclusivamente com a mineração, Caetité e a vasta
região que o circunda procuravam desenvolver a
indústria pecuária e o amanho111 das suas terras ferazes,
desde cedo compreendendo que mais vantajosa e segura
é a indústria agrícola. A imigração portuguesa trouxe-
nos logo depois uma colônia avultada, que entre nós
repetia os processos de cultura do seu país, pondo-a de
acordo com a dos naturais e admitindo a lavoura extensa
nos uberosos latifúndios que se estendiam desertos,
vestidos de carrascos e caatingas, desde o vale do alto
São Francisco até a orela das riquíssimas matas, então
ainda inexploradas, que demoram na região da
Conquista.
SPF, SP1: Caitete
SPF, SP1: bahiano
SPF, SP1: seculo 16º (Emendou-se.);
emporio
SPF, SP1: secundario; d’esse;
commercio
SPF, SP1: quasi
SPF, SP1: Caitete
SPF, SP1: industria; pecuaria
SPF, SP1: comprehendendo
SPF, SP1: industria; agricola;
portugueza
SPF, SP1: colonia; SP1: entré (Erro
óbvio.)
SPF, SP1: paiz
SPF, SP1: accordo; naturaes
SPF, SP1: latifundios
SPF, SP1: S. Francisco; orella;
riquissimas; mattas
45
O africano, mesclado depois com os indígenas e
com os brancos, engedrou uma raça forte que, sendo
apta para todos os grosseiros trabalhos agrícolas, era,
entanto mais resoluta e destemida. Os mamalucos112 são
um frisante exemplo do destemor, resolução e valor na
SPF, SP1: indigenas
SPF, SP1: agricolas
SPF, SP1: emtanto
111 Amanho: cultivo. 112 Mamaluco: variante de mameluco.
136
50
formação da nossa pátria territorialmente considerada, e
os mulatos, também valorosos e de cerebração potente,
são os que têm mais concorrido para a organização
política da nossa nacionalidade. Nas nossas
“escravarias” estes mestiços de negro e branco
predominavam em número.
SPF, SP1: patria
SPF, SP1: tambem
SPF, SP1: tem
SPF, SP1: politica
SPF, SP1: mistiços
SPF, SP1: numero.
55
60
O assomo, o atrevimento, desenvolvida
inteligência dos mulatos, cabras e outros mestiços de
africanos e brancos em diversos graus, eram uma
ameaça contra a servidão. Daí a necessidade de quebrar-
lhe os estímulos por meio de sevícias; de privá-los,
enquanto sob o julgo servil, de desenvolverem e
aproveitarem as suas aptidões intelectivas a não ser
naquilo que concernisse a trabalhos grosseiros. O
escravo, no modo de ver dos seus senhores, não devia
ser mais que uma máquina de carne e osso.
SPF, SP1: intelligencia
SPF, SP1: d’ahi
SPF, SP1: estimulos; prival-os
SPF, SP1: emquanto
SPF, SP1: intellectivas
SPF, SP1: n’aquillo
SPF, SP1: machina
65
70
Resultou disso a degenerescência dos nossos
costumes, quanto à compreensão dos direitos do
homem, na classe numerosíssima e predominante dos
nossos meios populares, especialmente dos campos. Daí
o tão falado analfabetismo, a crassa ignorância que
medra entre nós, derivados, não somente da falta de
escolas, mas também, e como causa perniciosa que pede
um estudo acurado, a aversão que tem a maioria do
SPF, SP1: d’issso
SPF, SP1: comprehensão
SPF, SP1: numerossisima
SPF, SP1: D’ahi
SPF, SP1: analphabetismo;
ignorancia
SPF, SP1: tambem
137
nosso povo, principalmente rural, ao conhecimento o
mais rudimentar das letras.
SPF, SP1: lettras.
75
80
85
Além desses inconvenientes, o contato imediato
do proletário pobre com a classe obnóxia113 abastardou
o caráter do povo, arrastou-o em geral a uma lastimável
degradação, ao servilismo abjeto, à adulação vil, a uma
prejudicialíssima subordinação, que é a causa de tantos
males que nos afligem. Conhecemos na mocidade
muitos agregados, jornaleiros e vaqueiros que, residindo
nas terras do domínio de ricos proprietários, pouco
diferiam dos escravos. Freqüentavam as senzalas à
noite, muitas vezes com as famílias em estreitas relações
com os escravos; chegavam a ser deles dependentes
como dos senhores; com eles transigiam a sua dignidade
e de pessoas por cuja honra eram responsáveis; tratavam
ilícitas e indignas combinações e desciam à mais baixa
abjeção por interesses inconfessáveis. Assim formou-se
o caráter do nosso proletariado rural.
SPF, SP1: Alem; d’esses; contacto;
immediato
SPF, SP1: proletario
SPF, SP1:caracter; lastimavel, SP1:
(Erro óbvio.)
SPF, SP1: á adulação; abjecto
SPF, SP1: prejudicalissima
SPF, SP1: affligem
SPF, SP1: aggregados
SPF, SP1: dominio; proprietarios
SPF, SP1: differiam; á noite
SPF, SP1: familias
SPF, SP1: d’elles
SPF, SP1: elles
SPF, SP1: responsaveis
SPF, SP1: illicitas; a mais
SPF, SP1: abjecção; inconfessaveis
SPF, SP1: caracter
90
Ao mesmo tempo em que a agricultura do Sul
do país, mesmo no antigo regime, acarinhada pelo
gorverno central, adquiria grande desenvolvimento e
necessitava de maior número de braços: a nossa,
altamente produtora, impossibilitada de exportar as
superabundâncias, à falta de fáceis meios de transportes,
SPF, SP1: tempo que
SPF, SP1: paiz
SPF, SP1: adqueria
SPF, SP1: numero
SPF, SP1: productora
113 Obnóxia: servil.
138
95
100
105
110
superabundâncias, à falta de fáceis meios de transportes,
falecia progressivamente no sertão. Infelizmente as
classes dirigentes, desanimadas, consideravam bastante
o que produzíssemos para o consumo local. Foi então
que, do Sul de Minas e de São Paulo, vieram-nos
traficantes de escravos, e começou em 1850 e tantos,
impedida a importação de africanos, a emigração
forçada do elemento negro. Os compradores instalavam-
se em Caetité, considerada então o centro mais
importante da região sertaneja do Sul da Bahia, e daí,
em viagens continuadas pelas fazendas, compravam os
escravos por preços vantajosos e convidativos. Tivemos
entre nós um tal Cunha, que era um terrível algoz dos
negros, um Antonino Carvalho e um Luiz Vieira, além
de outros menos dinheirosos, que aqui permaneceram,
por algum tempo arrebanhando grande número de
escravos.
SPF, SP1: superabundancias; á falta;
facies
SPF, SP1: fallecia
SPF, SP1: S. Paulo
SPF, SP1: installavam-se
SPF, SP1: Caitete
SPF, SP1: d’ahi
SPF, SP1: terrivel
SPF, SP1: Antonyno; alem
SPF, SP1: numero
115
O grande desenvolvimento desse comércio
execrado trouxe a Caetité um florescimento estupendo
que não podia deixar de ser transitório. O dinheiro corria
à farta, davam-se pomposas festas religiosas e cívicas
que atraiam ricos visitantes, mesmo da nossa capital; a
jogatina quase diuturna entre os ricos e potentados era
SPF, SP1: d’esse; commercio
SPF, SP1: Caitete
SPF, SP1: transitorio
SPF, SP1: á farta; civicas
SPF, SP1: attrahiam
SPF, SP1: quasi
139
120
125
desenfreada, e o lagsquenet114, então em uso, arruinou
muitos homens de fortuna modesta. O luxo em bailes,
recepções, bodas e diversões era deslumbrante; os
impostos de exportações de escravos rendiam
anualmente centenares de contos, e o povo sentia-se
feliz e jubiloso, dessa felicidade e júbilo efêmeros que
nos arrastam à triste desilusão e tristeza. Pois não
previam os loucos daqueles tempos que a mercadoria
afinal viria a esgotar-se?
SPF, SP1: LAGSQUENET
SPF, SP1: annualmente
SPF, SP1: jubilo; ephemeros
SPF, SP1: á triste; desillusão
SPF, SP1: d’aquelles
SPF, SP1: exgottar-se
130
135
De fato, quando se procedeu em 1871 à
matrícula dos escravos deste Município de Caetité como
determinava a lei, embora ainda fosse muito extensa
esta circunscrição, a população servil recenseada foi
somente de sete mil unidades cerca. O tráfico continuou,
já sob a direção de baianos, a sangrar os municípios
sertanejos, e, ao proceder-se à segunda matrícula anos
depois, restavam apenas dois mil escravos no de Caetité,
que ainda tinham quase a mesma extensão. Entretanto, a
nossa agricultura ainda produzia muito mais do que o
necessário ao consumo local. O ano de 1887 foi tão
abundante que os nossos produtos da primeira e
imediata necessidade baixaram de preços a cotações
mais que ridículas.
SPF, SP1: facto; á matricula
SPF, SP1: d’este; Município; Caitete
SPF, SP1: circumscripção
SPF, SP1: trafico
SPF, SP1: direcção; bahianos;
municipios
SPF, SP1: á segunda; matricula;
annos
SPF, SP1: Caitete
SPF, SP1: quasi; Entretanto ( , )
SPF, SP1: necessario; anno
SPF, SP1: productos
SPF, SP1: immediata
SPF, SP1: ridiculas.
114 Lagsquenet: lasquenet.
140
140
145
150
A lei de 13 de maio de 1888 ainda encontrou-
nos em boas condições; mas, abolida a escravidão, os
ex-escravos restantes, não só por gozarem do inesperado
benefício que lhes era concedido, como porque os
antigos senhores em sua maioria os repeliam e não lhes
consentiam trabalhar em suas terras, mesmo pagando
renda, entraram a vagabundear. Raros deles
conseguiram estabelecer-se. Os fazendeiros e grandes
lavradores retiravam-se do campo, removendo-se para
as cidades e outros centros populosos e abandonando a
lavoura por completo. Podemos dizer que fecharam a
sete chaves os seus enormes latifúndios – ainda vestidos
de matos – ao trabalho do pequeno lavrador.
SPF, SP1: Maio
SPF, SP1: gosarem
SPF, SP1: beneficio
SPF, SP1: repelliam
SPF, SP1: d’elles
SPF, SP1: latifundios,
SPF, SP1: mattos
155
160
Em 1889, além de que a lavoura se achava
reduzidíssima, entregue a poucos agricultores que
trabalhavam em pequenas glebas da sua propriedade, ou
posses em terrenos de condomínio, as chuvas foram
escassas, resultando disso a fome de 1890, que atingiu
grande número de ex-escravos e de famílias
paupérrimas que, em outras épocas semelhantes, sempre
resistiram às crises econômicas semelhantes.
SPF, SP1: alem; achava-se (Emendou
-se ênclise para próclise.)
SPF, SP1: reduzidissima
SPF, SP1: condominio
SPF, SP1: escassas(,); d’isso; attingiu
SPF, SP1: numero; familias
SPF, SP1: pauperrimas; epochas
SPF, SP1: á crises; economicas
Além das terríveis causas do flagelo acima
apontadas, a mudança das instituições políticas, que
trouxe grandes vexames à população pobre dos campos,
SPF, SP1: Alem; terriveis; flagello
SPF, SP1: politicas
141
165
170
175
180
trouxe grandes vexames à população pobre dos campos,
foi um fator importante que em muito concorreu para o
sofrimento do povo. Aqueles que conseguiram salvar-se,
passada a crise, abriram caminho à emigração. Minas
Gerais, depois São Paulo, foram os pontos colimados. A
baixa do câmbio, o encilhamento como sua variedade de
papel-moeda, eram um chamariz tentador. Os primeiros
emigrados incitaram a cobiça de agiotas que
emprestavam dinheiro aos emigrantes a juros de 50 e
100 por cento; a exploração dos avarentos e levava-os a
aconselhar aos incautos o expátrio; muitos baianos
tornaram-se aliciadores do pobre povo trabalhador, que
arrebanhavam por meios de lisonjeiras promessas e
levavam em numerosos grupos para São Paulo. Assim
iniciou-se a corrente emigratória que até hoje está no
vezo115 do nosso povo dos campos, ora tomando grande
intensidade, ora diminuindo, conforme as
circunstâncias.
SPF, SP1: a população
SPF, SP1: factor
SPF, SP1: Aquelles
SPF, SP1: á emigração
SPF, SP1: Geraes; S. Paulo;
collimados
SPF, SP1: cambio
SPF, SP1: expatrio; bahianos
SPF, SP1: alliciadores
SPF, SP1: S. Paulo
SPF, SP1: emigratoria
SPF, SP1: veso
SPF, SP1: circumstancias.
Eis a gêneses desse flagelo constante que há
perto de quarenta anos estiola as forças econômicas do
nosso rico e futuroso Estado. Eis a origem do
sampauleiro.
SPF, SP1: genesis; d’esse; flagello
SPF, SP1: annos; economicas
115 Vezo: costume vicioso ou criticável.
142
VI
5
10
João, depois de ter assentado definitivamente a
São Paulo, refletiu com mais calma e, como era
criterioso e honesto, ateve-se logo, e em primeiro lugar,
ao meio de realizar os seus negócios de modo que, na
execução do seu plano, não ficasse sua esposa
sobrecarregada de dificuldades. Era preciso, como logo
considerou, que o pagamento de suas dívidas fosse feito
ao vencer dos títulos, para que o seu crédito ficasse de
pé, mesmo à apreciação de Abílio, embora o tivesse
como seu amigo sincero, ou mesmo por isso, para que
lhe não fosse preciso pedir mora a quem já tinha sobre
ele ganho uma tal ou qual superioridade que lho
repugnava.
SPF, SP1: S. Paulo; reflectiu
SPF, SP1: realisar; negocios
SPF, SP1: difficuldades
SPF, SP1: dividas
SPF, SP1: titulos; credito
SPF, SP1: á apreciação; Abilio
SPF, SP1: móra
SPF, SP1: elle
15
20
Com essa idéia, afervorou-se no trabalho e
reduziu ainda mais os seus gastos de acordo com Maria,
a esposa criteriosa que vibrava em consonância os
sentimentos e escrúpulos de João. Como avarentos
incorrigíveis, adotaram os dois um regime de estreita
frugalidade, aproveitavam os vestidos ao extremo e não
descançavam um momento. À noite, de dias em dias,
davam balanço em suas economias, que aumentavam
mais ou menos satisfatoriamente. Quantas ânsias não
afligiam aquele pobre casal apossado dessa idéia fixa!
SPF, SP1: idéa
SPF, SP1: accordo
SPF, SP1: consonancia
SPF, SP1: escrupulos
SPF, SP1: incorrigiveis; adoptaram;
dous; regimem
SPF, SP1: A’ noite
SPF, SP1: augmentavam
SPF, SP1: satisfactoriamente; ancias
SPF, SP1: affligiam; aquelle; d’essa;
idéa
143
25
Quanta tristeza não se apossava dele quando Serafim
fazia-lhe a sua visita aos domingos e deixavam de
apresentar àquele amigo dedicado e leal um trato digno
dele!
SPF, SP1: d’elle; Seraphim
SPF, SP1: áquelle
SPF, SP1: d’elle!
30
35
O velho Professor notava aquele modo de viver
dos seus queridos e simpáticos amigos; mas, sempre
discreto e criterioso, não dava a perceber quanto o
aquilo o afligia, convencido de que a miséria tocava
aquele lar que lhe era tão afeiçoado. Por seu turno, os
jovens esposos não deixavam transparecer no seu
semblante a menor sombra de tristeza. Entretinham
alegre palestra com o jovial visitante, que sempre
achava desculpas por não vir acompanhado da família,
como reiteradamente lhe pediam João e Maria.
SPF, SP1: aquelle
SPF, SP1: sympaticos
SPF, SP1: aquillo; afflingia; miseria;
aquelle
SPF, SP1: affeiçoado
SPF, SP1: familia
40
45
Entretanto, muito delicadamente, Serafim e a
família não deixavam de mandar presentes a Maria e
aos seus, o que não lhes devia ser estranho, porque era
um hábito antigo. Muitas vezes Serafim instava116 com
seus discípulos para que fossem passar o domingo em
sua casa e fingia-se zangado com João por negar-se a
isso, alegando que estava apertado por dívidas, que
desejava solver em tempo, sendo-lhe preciso trabalhar
sem descanso.
SPF, SP1: Seraphim
SPF, SP1: familia
SPF, SP1: extranho
SPF, SP1: habito; Seraphim
SPF, SP1: discipulos
SPF, SP1: allegando (,); dividas (,)
116 Instar: insistir.
144
–Não vê como vamos vivendo, Professor? –
observava João – É preciso muito trabucar117 e
economizar para que eu consiga o meu intento.
50
Serafim oferecia ajudá-lo emprestando-lhe
algum dinheiro das suas economias; mas o outro achava
meios de convencê-lo da desnecessidade disso, entanto
mostrando-se grato ao Professor, a quem muito
estimava e sabia sincero na sua generosa proposta.
SPF, SP1: Seraphim; offerecia;
ajudal-o
SPF, SP1: convencel-o; d’isso;
emtanto
55
60
Entretanto, João e Maria, acompanhados de
Pulquéria e dos meninos, não deixavam, de vez em
quando, de ir aos domingos à casa de Serafim, onde
eram acolhidos com muito prazer e carinho. Então
reinava grande alegria no lar do Professor, as duas
crianças eram cumuladas de carícias e andavam de mão
em mão. Passeavam por todo o sítio, visitavam os
humildes agregados vizinhos, sendo acolhidos por todos
com muita consideração e verdadeira estima.
SPF, SP1: Entretanto ( , )
SPF, SP1: Pulcheria
SPF, SP1: á casa; Seraphim
SPF, SP1: creancas; caricias
SPF, SP1: sitio
SPF, SP1: aggregados; visinhos
65
Balanceando os seus haveres em espécie quando
se aproximava o resgate da letra que primeiro venceria,
João verificou haver uma sobra apreciável que, com
mais algum pecúlio, daria de sobejo para o pagamento
da segunda. Logo no dia do vencimento o mancebo
resgatou a letra primeira vencida, recebendo de Abílio o
título da dívida. Isto muito animou o jovem casal,
SPF, SP1: especie
SPF, SP1: approximava; lettra
SPF, SP1: apreciavel
SPF, SP1: peculio
SPF, SP1: lettra; Abilio
117 Trabucar: trabalhar com grande afã.
145
70
75
título da dívida. Isto muito animou o jovem casal,
ficando demonstrado o quanto vale o trabalho
perseverante e uma cerrada economia; mas nem por isso
João abandonou a idéia de viajar a São Paulo logo
terminasse as colheitas de sua lavoura e recebesse dos
meieiros a parte que lhe tocava.
SPF, SP1: titulo; divida; joven
SPF, SP1: idéa; S. Paulo
80
A safra naquele ano foi satisfatória. Recolhido
ao celeiro o que João considerava preciso à manutenção
da família por um longo prazo, foi o mais levado aos
mercados e reduzido a espécie. Pôde então o mancebo
resgatar a segunda letra e reservar ainda pecúlio que
daria para as despesas da viagem e para necessidades
imprevistas que sobreviessem, em sua ausência, a
Maria.
SPF, SP1: n’aquelle; anno;
satisfactoria
SPF, SP1: celleiro; a manutenção
(Emendou-se.)
SPF, SP1: familia
SPF, SP1: á especie (Emendou-se.)
SPF, SP1: lettra; peculio
SPF, SP1: despezas
SPF, SP1: ausencia
85
90
João, entregando à sua esposa o pecúlio, só
então lhe revelou francamente a sua resolução de ir a
São Paulo, alegando que, sendo de maior vulto as duas
dívidas restantes, só conseguiria solvê-las, fazendo esse
sacrifício. Os prazos eram alongados bastante para o
resgate das letras e, dentro dele, esperava o mancebo no
rico estado obter com sobra o pecúlio preciso para o
pagamento.
SPF, SP1: a sua (Emendou-se.);
peculio
SPF, SP1: revelou-lhe (Emendou-se
ênclise para próclise.)
SPF, SP1: S. Paulo; allegando
SPF, SP1: dividas; solvel-as (,)
SPF, SP1: sacrificio
SPF, SP1: lettras; d’elle
SPF, SP1: Estado, (Emendou-se.);
peculio
Avalia o leitor a dolorosa surpresa que uma tal
notícia causou à jovem. Entretanto, pôde conter-se e
SPF, SP1: surpreza
SPF, SP1: noticia; á joven; Entretanto
( , )
146
95
conservar-se superior a um golpe tão profundo. João,
mirando-a enternecido, advinhava o que ia pelo coração
de sua querida esposa. Ah! Se fosse possível – pensava
ele, – eu não empreenderia semelhante viagem; mas é
preciso, é indispensável.
SPF, SP1: si; possivel, (Emendou-se.)
SPF, SP1: elle(,); emprehenderia
SPF, SP1: indispensavel
100
105
110
115
O pobre mancebo também sofria; sentia rasgar-
se-lhe o coração ao ver a atitude de sua querida Maria,
que, sem um gesto, sem uma lágrima, parecia meditar.
Considerava que, quando a dor chega ao extremo, é
assim que se manifesta. Desejava ouvir da sua esposa
uma palavra de aprovação ou reprovação da medida
extrema que ia tomar. No primeiro caso, viajaria mais
confortado; no segundo como que obcecado, dominado
pela idéia que o escravizava, incapaz de ceder a uma
influência contrária, acharia argumentos convenientes
que provassem a Maria quanto era urgente dela separar-
se por algum tempo, a fim de pôr sua honra e os seus
créditos a resguardo sem que, entanto, o seu amor por
seus queridos arrefecesse; antes pelo contrário, esse
amor e o interesse pela esposa e pelo futuro de seus
filhos, eram o móvel principal que o impelia ao expátrio
temporário a que se expunha.
SPF, SP1: tambem
SPF, SP1: attitude
SPF, SP1: lagrima
SPF, SP1: approvação
SPF, SP1: idéa
SPF, SP1: influencia; contraria
SPF, SP1: d’ella
SPF, SP1: afim de
SPF, SP1: creditos; emtanto
SPF, SP1: contrario
SPF, SP1: movel; impellia; expatrio
SPF, SP1: temporario
Por fim abalançou-se João a inquirir de sua
querida qual a sua opinião a respeito.
SPF, SP1: Porfim
147
–Ah! Que posso eu dizer, João? Tu assim
pensas, é porque mais esse sacrifício nos é
indispensável.
SPF, SP1: sacrificio
SPF, SP1: indispensavel
120 –Entretanto, desejo que me digas com toda a
franqueza se achas bom ou mau o que tenho decidido.
–Não refletiste sobre os bons ou maus resultados
que te podem advir da tua ausência?
SPF, SP1: reflectiste
SPF, SP1: ausencia
125
–Tudo pensei, tudo medi e calculei, concluindo
que, sem esse enorme sacrifício, não poderei alcançar a
tranqüilidade feliz que gozávamos e que a fatalidade
veio transtornar.
SPF, SP1: concluindo
SPF, SP1: sacrificio
SPF, SP1: tranquillidade; gosavamos
130
–Então? Por mais dolorosa que me seja essa
separação, só posso é conformar-me com ela e, velando
por nossos filhos e pela boa ordem dos nossos recursos,
pedir sempre a Deus pela tua felicidade como pela
nossa.
SPF, SP1: ella
135
–Tudo isso já sei, Maria, e sabes que não ponho
em dúvida; mas, desculpa-me, minha querida, não estás
sendo franca. Eu desejo que me digas se achas bom ou
mau que eu viaje. Tu tens juízo, e sabes que um
conselho muito vale em tais circunstâncias. A ninguém
revelei esse projeto. Abro-me contigo em primeiro lugar
porque assim devia ser, e muito confio em teu critério.
SPF, SP1: duvida
SPF, SP1: taes; circumstancias;
ninguem
SPF, SP1: projecto; comtigo
SPF, SP1: criterio
140
–João, ninguém pode fazer cálculos seguros SPF, SP1: ninguem; calculos
148
145
150
sobre o futuro; mas quem se escravizar exclusivamente
a essa idéia, nada conseguirá; sempre irresoluto,
indeciso sobre o caminho que deve seguir, sem fé na
Providência, que nunca deixa de auxiliar a nossa boa
vontade, nunca poderá remediar a sua situação quando
precária. Sei que és honesto, laborioso e confiante em
Deus. Vai, pois, a São Paulo como tens deliberado, pois
sei que a isso te resolves para o nosso bem, e que aqui
deixas preso o teu coração. Coragem e fé em Deus. Eu
cá farei o que puder para corresponder à confiança que
depositas em tua mulher.
SPF, SP1: idéa
SPF, SP1: Providencia
SPF, SP1: precaria
SPF, SP1: Vae; S. Paulo
SPF, SP1: podér; á confiança
155
–Obrigado. Maria, e fica certa de que não me
esquecerei de ti e dos nossos filhinhos um só momento.
Traduziste perfeitamente o meu modo de pensar. Outra
pessoa depois de ti merece-me inteira confiança...
–O professor Serafim – atalhou Maria.
–Ele mesmo. Não posso tomar uma semelhante
resolução sem comunicar-lhe. Deixar de o fazer seria
falta imperdoável. Quanto a Abílio...
SPF, SP1: Elle
SPF, SP1: imperdoavel; Abilio...
160 –Quanto a este, deves apenas despedir-te –
atalhou de novo Maria.
–Certamente. Sei que me oferecerá dinheiro para
viagem...
SPF, SP1: offerecerá
–E tu aceitarás ? SPF, SP1: acceitaras
149
165
–Não. Se mesmo para pagar-lhe o que devo vou
empreender esta viagem! Depois, Maria, digo-te com
franqueza: em negociações, Abílio é daqueles de quem
se diz “Negócios, negócios; amigos à parte.”
SPF, SP1: Si
SPF, SP1: emprehender
SPF, SP1: Abilio; d’aquelles
SPF, SP1: Negocios, negocios; á
parte
170
–Entretanto, João, Abílio generosamente pagou
as tuas dívidas – aventurou Maria com alguma malícia e
ironia.
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: dividas; malicia
175
180
185
–Retira esse “generosamente”, minha querida. É
certo que Abílio se tem mostrado meu amigo; que me
prestou alguns serviços por ocasião do malfadado
inventário, embora, com o seu gênio conciliador, muito
favorecesse aos meus parentes intrusos, mas, como
sabes, é agiota; é desses que “não pregam prego sem
estopa”. Pode ser engano meu, não gosto de fazer
juízos temerários, principalmente quando se trata de um
amigo da infância; mas quem sabe se Abílio, pagando
minhas dívidas antes do vencimento das letras –
certamente com desconto –, não teve em vista, além de
prestar-me um serviço, ter lucro nessa transação? Se
esse seu gesto prova que ele tem confiança no mau
caráter, e que tem como certo pagamento, não deixou de
desgostar-me porque me colocou, pobre roceiro, em
posição de protegido de um homem rico que goza de
conceito como fidalgo de estirpe. É por tudo isso, minha
SPF, SP1: “generosamente” (,)
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: occasião
SPF, SP1: inventario; genio
SPF, SP1: intruzos
SPF, SP1: estopa
SPF, SP1: juizos; temerarios
SPF, SP1: infancia; Abilio
SPF, SP1: dividas; lettras
SPF, SP1: alem
SPF, SP1: transacção; Si
SPF, SP1: elle; caracter
SPF, SP1: collocou
SPF, SP1: gosa
150
190
195
querida, que me submeti ao enorme sacrifício no qual tu
me foste um auxiliar valioso. Ultimamente, porém,
tenho receio de não conseguir levar a fim o meu
propósito, porque as duas dívidas restantes montam a
quantia tão avultada, que considerei não bastar o
trabalho e a economia que temos levado até aqui; é
preciso mais, e, como os prazos dar-me-ão tempo,
resolvi emigrar, bem à contragosto, confesso. Sei
quanto é arriscado o passo que vou dar, mas a minha
dignidade assim o exige.
SPF, SP1: submetti; sacrificio
SPF, SP1: porem
SPF, SP1: proposito; dividas
SPF, SP1: a contra-gosto (Emendou-
se.)
200
Maria, que durante a longa exposição do marido,
ouvia-o atenta e silenciosa, apesar de sentir o coração
despedaçar-se, heróica como sempre, superior às
provanças que lhe vinham e ao seu querido, com
aparente serenidade de ânimo, aprovou a deliberação do
marido.
SPF, SP1: attenta; apezar
SPF, SP1: heroica; ás provanças
SPF, SP1: apparente; animo;
approvou
205
210
–Compreendo, João; já o compreendia antes que
me desse esta exposição. Sei que a tua resolução vem ao
encontro dos nossos interesses e da nossa dignidade.
Deus jamais deixou de auxiliar propósitos tão dignos.
Tenho inteira fé nEle e espero que, afinal, a vitória será
nossa. Vai, meu amigo, e serás guardado por Jesus e
pela sua Santíssima e Bondosa Mãe.
SPF, SP1: Comprehendo;
comprehendia
SPF, SP1: propositos
SPF, SP1: n’Elle; victoria
SPF, SP1: Vae
SPF, SP1: Santissima
João, no dia seguinte, que era domingo, foi logo
151
215
220
225
230
235
cedo à casa de Serafim e expôs-lhe a sua nova
resolução. Ao ter conhecimento dela, o velho mestre-
escola surpreendeu-se a princípio; mas depois,
refletindo sobre a extrema pobreza a que supunha ter
chegado aquela pobre família, considerou que o seu
antigo discípulo achava-se tocado da “moléstia” – que
assim denominava a emigração dos sertanejos baianos
para São Paulo – que se propagou desde muitos anos
nestes sertões com intermitentes intensificações e
arrefecimentos. Mas, expostas por João, com
minuciosidade, como já o fizera a Maria, as razões que
o levavam contrariado a tão arriscada aventura, chegou
a desconfiar que o mancebo estava informado da velha
pretensão de Abílio à posse de Maria. Por fim, no correr
da conversação, convenceu-se da realidade da situação:
o nobre orgulho de homem honesto e zeloso da sua
honra e independência era o único móvel que impelia o
seu antigo discípulo a tão aventurosa viagem.
Compreendeu que a indigência que notara no jovem
casal era o esforço econômico da dignidade da tão
honrada gente, e que o ressentimento de João não tinha
por origem ridículo ciúme, pois compreendeu que o
mancebo não sabia da antiga pretensão de Abílio.
Admirou o heroísmo daquele simpático casal e a
SPF, SP1: á casa; exppoz-lhe
SPF, SP1: della
SPF, SP1: surprehendeu-se; pincipio
SPF, SP1: reflectindo; suppunha
SPF, SP1: aquella; familia
SPF, SP1: discipulo; molestia
SPF, SP1: bahianos
SPF, SP1: S. Paulo; annos
SPF, SP1: intermittentes
SPF, SP1: Pretenção; Abilio; á posse;
Porfim
SPF, SP1: independencia; unico;
movel; impellia
SPF, SP1: discipulo
SPF, SP1: comprehendeu; indigencia;
joven
SPF, SP1: economico
SPF, SP1: ridiculo; ciume;
comprehendeu
SPF, SP1: pretenção; Abilio
SPF, SP1: heroismo; daquelle;
sympatico
152
resignação e coragem de Maria que, varonil como uma
espartana, antepunha ao seu amor a salvação do crédito
e da honra do seu estremecido esposo.
SPF, SP1: credito
240
Enternecido à franca exposição que o mancebo
lhe fez dos enormes sacrifícios a que se submetera para
não ficar indignamente sob a dependência, quase tutela,
do filho de dona Úrsula Serafim chegou a comover-se.
SPF, SP1: á franca
SPF, SP1: sacrificios; submettera
SPF, SP1: dependencia; quasi
SPF, SP1: D. Ursula; Seraphim;
commover-se
245
–Meu filho – disse com certa solenidade, – estou
velho e quase nada mais valho; porém aqui fico em tua
ausência; basta que assim te diga.
SPF, SP1: solemnidade
SPF, SP1: quasi; porem
SPF, SP1: ausencia
250
255
–Eu conto muito com a sua dedicação e sincera
amizade. Por isso mesmo é que o procurei, depois de
Maria, para tudo expor como expus. Vou tranqüilo,
porque aqui fica aquele em quem mais confio, em quem
deposito a confiança que tenho em minha querida, meu
tesouro, aquela que Deus me deu por companheira. Mas
a mulher, por mais forte e varonil que seja, necessita de
um amparo visível; tem a necessidade de quem a proteja
contra a maledicência e os maus juízos, quando isolada
no seu lar, alheia ao que possam pensar os
murmuradores a seu respeito.
SPF, SP1: expuz; tranquillo
SPF, SP1: aquelle
SPF, SP1: thesouro; aquella
SPF, SP1: visivel
SPF, SP1: malidicencia; juizos
260
–Quantas vítimas de injustas apreciações não
conhecemos entre nós, meu professor, quando os seus
esposos ou os seus pais se acham ausentes em longas
SPF, SP1: victimas
SPF, SP1: paes
153
viagens!
265
–Tudo isso é certo; mas – fé em Deus – tua
esposa terá em mim um dedicado e defensor em toda e
qualquer circunstância. Vai sossegado, João, e eu, como
já disse, aqui fico.
SPF, SP1: circumstancia; Vae;
socegado; João (,)
270
–Tenho mais que lhe pedir. Logo que eu remeter
a Maria o dinheiro preciso para o pagamento pontual
das minhas dívidas, o senhor me fará o obséquio de
incumbir-se do resgate das letras. Dar-lhe-ei escrita uma
nota dos prazos estipulados e do mais preciso.
SPF, SP1: remetter
SPF, SP1: dividas; obsequio
SPF, SP1: lettras; escripta
Nesse dia reuniram-se as duas famílias em casa
de João, sendo providenciado tudo quanto preciso para
a sua viagem e ausência, ficando assentado que o
mancebo seguiria o seu destino oito dias depois.
N’esse; familias
SPF, SP1: ausencia
VII
5
Na véspera da viagem de João, já tudo disposto,
foi ele despedir-se de Abílio, mesmo para que seu
credor ficasse ciente que sua dívida seria paga em
tempo e não fizesse mau juízo a seu respeito. Abílio
mostrou-se altamente surpreendido ao ter ciência de que
seu amigo tomara esse alvitre para poder pagar-lhe no
prazo prefixo.
SPF, SP1: vespera
SPF, SP1: elle: Abilio
SPF, SP1: sciente; divida
SPF, SP1: juizo; Abilio
SPF, SP1: surprehendido; sciencia
154
10
–Pois que! – dizia fingindo-se triste – Por minha
causa você abalança-se118 a isso?
–Então? É meu amigo e deve considerar justo o
meu propósito. Faço distinção entre o amigo e o credor,
mesmo porque é generoso comigo.
SPF, SP1: proposito; distincção
SPF, SP1: commigo
15
–Prova-me antes não ter confiança em seu velho
amigo.
–Não pense em tal, Abílio. Com essa minha
resolução quero antes corresponder à generosidade que
me dispensou. Não quero ficar por baixo – acrescentou
sorrindo.
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: á generosidade
20 –Se sou eu o seu único credor! Se a minha única
idéia foi ser-lhe útil!
SPF, SP1: Si; unico; Si; unica
SPF, SP1: idéa; util
–Não desejo abusar da sua gentileza.
–Abusar! Supõe que me possa passar isso pelo
pensamento?
SPF, SP1: Suppõe
25 –Não passará pelo seu pensamento, estou certo;
mas pelo daqueles que, como disse, vieram afobados
procurá-lo, supondo-me um devedor insolvável.
SPF, SP1: d’aquelles
SPF, SP1: procural-o; suppondo-me;
insolvavel
–Ninguém saberá dos nossos negócios. SPF, SP1: Ninguem; negocios
–Pior. SPF, SP1: Peor.
30 –Quando me perguntarem sobre isso, direi que
estamos quites.
118 Abalançar-se: aventurar-se.
155
–Nesse caso obrigo-o a asseverar uma
inexatidão; repousa a minha dignidade sobre uma falsa
informação.
SPF, SP1: N’esse
SPF, SP1: inexactidão; SP1: á minha
(Suprimiu-se crase.)
35 –Será sempre você um cabeçudo incorrigível. SPF, SP1: incorrigivel
–Seja. Bem sabe que, quando se me encasqueta
uma idéia, não há quem dela me demova.
SPF, SP1: idéa; della
40
–Pois bem, seu teimoso. Ofereço-lhe os meus
préstimos. Terá quanto dinheiro for preciso à sua
viagem, cartas para amigos que tenho em São Paulo e a
segurança de que a sua família nada faltará em sua
ausência.
SP1: SEU; SPF, SP1: Offereço-lhe
SPF, SP1: prestimos; á sua
SPF, SP1: S. Paulo
SPF, SP1: familia
SPF, SP1: ausencia.
45
–Para a viagem já tenho o pecúlio preciso, e
deixo a Maria quanto baste para lhe assegurar a
subsistência e de nossos filhos. Quanto às cartas, aceito-
as.
SPF, SP1: peculio
SPF, SP1: subsistencia; acceito-as.
50
Como João tivesse que viajar no dia seguinte
cedo, Abílio tratou logo de escrever as cartas que
entregou ao condiscípulo. Eram credenciais dirigidas a
fazendeiros de pontos diversos do Estado de São Paulo,
as quais faziam linsonjeiras referências ao mancebo e
recomendavam-no como honesto e capaz de dirigir
qualquer serviço, como executá-lo com as suas próprias
mãos.
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: condiscilo; credenciaes
SPF, SP1: S. Paulo
SPF, SP1: quaes; referencias
SPF, SP1: recommendavam-n-o
SPF, SP1: execultal-o; proprias
55
João retirou-se não se esquecendo, porém, de SPF, SP1: porem
156
60
procurar dona Úrsula, de quem se despediu. A velhota
mostrou-se muito interessada pela feliz viagem do
jovem sampauleiro, usando de seus recursos de
dissimulação e hipocrisia, como logo patenteou quando
viu o rapaz pelas costas em tal distância que não
pudesse ouvi-la.
SPF, SP1: d. Ursula
SPF, SP1: joven
SPF, SP1: hypocrisia
SPF, SP1: distancia
SPF, SP1: podésse; ouvil-a
–Muito bem! – disse logo a Abílio. – Está a tal
Maria no campo como muitas outras. Eis em que deu a
fidalguia dos Oliveiras.
SPF, SP1: Abilio
65 –Mãe, tenha compaixão daquela pobre gente;
não critique os males alheios, que bem podem recair
sobre nós.
SPF, SP1: d’aquella
SPF, SP1: rechair
70
75
–Quem mandou aquela desmiolada preferir
aquele bolas a um homem de família como tu? São
sempre assim; conheço a geração daquele casal de
forrecas. A tal moça bonita é bisneta da Rosa que, de
tanto cheirar a torto e a direito, foi crismada pelos filhos
da Candinha com o nome Cheirosa. Era casada, meu
filho; mas... cala-te boca! – e a velha tapava a boca com
a mão. – Do outro, o tal João-ninguém, conheci muito
os pais e os avós; eram uns tabaréus chapados sem
nome nem importância.
SPF, SP1: aquella
SPF, SP1: aquelle; familia
SPF, SP1: d’aquelle
SPF, SP1: chrismada
SPF, SP1: cal’-te; bocca; bocca
SPF, SP1: bocca; João-ninguem
SPF, SP1: paes; tabaréos; SP1: sem
sem (Erro óbvio.)
SPF, SP1: importancia
–Mãe, não convém isso de estar se vangloriando
diante do sofrimento do próximo.
SPF, SP1: convem
SPF, SP1: deante; soffrimento;
proximo.
157
80 –E eu estou me vangloriando? Quem fala a
verdade não merece castigo.
–Mas nem todas as verdades convém se dizer. A
senhora gostaria que assim criticassem os nossos
parentes?
SPF, SP1: convem
85
90
–Os nossos parentes! Tu bem sabes que meu avô
foi um capitão-mor que, naqueles tempos, valia mais
que um coronel de hoje. Teu pai era de uma das
principais famílias do baixio. Era irmão de um padre,
tinha um primo doutor e vinha de uma fidalga de
Portugal. Além disso eram todos ricos fazendeiros.
SPF, SP1:capitão-mór; n’aquelles
SPF, SP1: pae
SPF, SP1: principaes; familias
SPF, SP1: Alem; d’isso
–Mas o povo conta coisas horríveis do tal
capitão-mor.
SPF, SP1: cousas; horriveis
SPF, SP1: capitão-mór.
–Inveja, pura inveja de maledicentes.
95
–Assim, também o que dizem da tal Rosa pode
ser invenção da maledicência.
SPF, SP1: tambem
SPF, SP1: maledicencia.
–O que! Pois se eu ainda a conheci! Estava
idosa, mas ainda descarada.
SPF, SP1: si
SPF, SP1: edosa
–Admito que seja verdade, mas dona Maria é
uma senhora virtuosa.
SPF, SP1: Admitto; d. Maria
100
–Virtuosa! É porque ainda não chegou o tempo
de mostrar-se. Meu filho, é certo que “filho de peixe é
peixinho”. A tal Maria não passa de uma sonsinha. O
pai, um banana que não sabia governar a filha, depois
SPF, SP1: pae
158
105
de cair na miséria e desprestígio, deu-lhe uma boa
mestra, a Virgínia, que misturada com tal virtuosa
menina, ensinou-lhe bem boas coisas.
SPF, SP1: cahir; miseria; desprestigio
SPF, SP1: Virginia
SPF, SP1: cousas
–Cuidado com a sua língua, minha mãe.
–Estamos em família; não há perigo.
–Mas as paredes têm ouvidos.
SPF, SP1: lingua
SPF, SP1: familia
110 –Olha, Abílio; não faz mal que eu te diga: a
Maria é o retrato vivo da Rosa, e não posso negar que é
um peixão como foi a bisavó. Em breve os concorrentes
aparecerão, e, antes que outro vá adiante...
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: apparecerão; adeante
115
120
125
E a velhota, fazendo reticências com seu riso
cínico peculiar, sabia que o filho, habilíssimo em
contrafazer como ela os seus planos e idéias,
compreenderia aquela ignóbil sugestão. O filho, que por
sua vez, compreendendo-a, se guardava um certo recato
diante de sua mãe e com ela não concordava
expressamente, era porque o retinha um resto de
respeito, podemos dizer instintivo, em relação àquela
que lhe deu o ser. A bronca dona Úrsula, ao vê-lo
silencioso e impassível às suas veladas e infames
insinuações, supunha que o “ingênuo menino” não a
compreendia e mesmo, se chegasse a compreendê-la,
era um tímido e medroso.
SPF, SP1: reticencias
SPF, SP1: cynico; habilissimo
SPF, SP1: contra-fazer; ella; idéas
SPF, SP1:comprehenderia; aquella;
ignobio; suggestão
SPF, SP1: comprehendendo-a; si
SPF, SP1: deante; ella
SPF, SP1: instinctivo; áquella
SPF, SP1: d. Ursula; vel-o
SPF, SP1: impassivel; ás suas
SPF, SP1: suppunha; ingenuo
SPF, SP1: comprehendia;
comprehendel-a
SPF, SP1: timido
E era essa mãe, que devia ser o anjo da guarda
159
130
135
de seu filho para encaminhá-lo ao dever de uma conduta
moral, quem o incitava a praticar uma infâmia, a
realizar uma idéia reprovável, encorajando-lhe os mais
infames propósitos cujos germes sabia existirem no seu
ânimo perverso e repulsivo! Adivinhando o ardente
desejo de Abílio, a paixão desenfreada que laborava em
seu sentimento e pensamento, vinha ao seu encontro a
satânica e má mulher, chegando a ponto de revelar um
crime, que seu filho ignorava, e planos criminosos que
ainda tinha em mente.
SPF, SP1: encaminhal-o; conducta
SPF, SP1: infamia
SPF, SP1: realisar; idéa; reprovavel
SPF, SP1: propositos
SPF, SP1: animo
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: satanica; ao ponto de
(Emendou-se.)
140
–Abílio, vocês, moços, são uns moleirões; são
uns maricas que desmentem o valor dos antigos. O
caminho vai se abrindo dia a dia para tua conquista, e
eu já consegui afastar a velha do teu caminho. Deu-me
trabalho mas foi-se andando...
SPF, SP1: Abilio, vocês (,); moços (,)
SPF, SP1: vae
–Que... Foi a senhora??!! – Exclamou Abílio
como estarrecido.
SPF, SP1: Abilio
145 –Que dúvida! – obtemperou a infame velha com
o seu sorriso – Era preciso...
SPF, SP1: duvida
–Mãe ...mãe! ...
–Que tem isso? Não foi tão bom para ti? Foi-se
ela, agora vai o João... mais tarde irá mais outro...
SPF, SP1: ella; vae
150
–Mãe, isso é uma imprudência que acaba nos
comprometendo. Pense bem. Certamente houve um
SPF, SP1: Mãe (,); imprudencia;
compromettendo
160
intermediário... SPF, SP1: intermediario…
155
–Qual filho! Eu sei fazer as coisas. Não dizem
que os presentinhos alimentam as amizades? Os
presentinhos não falam e, quando se quer, alimentam
outras coisas...
SPF, SP1: cousas
SPF, SP1: allimentam
SPF, SP1: allimentam; cousas
E dona Úrsula, no seu hábito, sorria de boca
fechada como quem se reconhecia vitoriosa.
SPF, SP1: d. Ursula; habito; bocca
SPF, SP1: victoriosa
160
–Compreendo, mãe – disse Abílio mais
tranqüilo – mas esses presentinhos, que não falam,
quantas vezes não têm sido uma prova, um testemunho
do crime? Não convém continuar com esses processos
perigosos para quem recebe os presentes como para
quem os manda.
SPF, SP1: Comprehendendo; Abilio;
tranquillo
SPF, SP1: convem
165
–Ora! Alguém ao menos desconfiou que a velha
Senhorinha embarcou119 antes do tempo? O mesmo
Serafim, que era um sabichão, comeu a peta120. O João,
esse coitado! é um banana. Não é ele tão amigo teu?
Não foi o caso tão bom para ti?
SPF, SP1: Alguem
SPF, SP1: EMBARCOU
SPF, SP1: Seraphim
SPF, SP1: elle
170
–É certo; mas se no caso de dona Senhorinha
fomos felizes, em outro podemos fracassar. Não faça de
agora por diante sem me consultar.
SPF, SP1: si; d. Senhorinha
SPF, SP1: deante
–A gente vai mudando. Hoje por uma forma;
amanhã por outra.
SPF, SP1: vae
119 Embarcou: morreu. 120 Peta: mentira.
161
175
–Bem; mas de outra vez não se meta em tais
enrascadas sem me ouvir.
SPF, SP1: metta; taes
180
185
Abílio já conversava com o ânimo algum tanto
serenado quanto ao caso de dona Senhorinha; mas ainda
receava, temendo que sua mãe se metesse em outra
empresa como essa, porque, como pensava, “tantas
vezes vai o cântaro121 à água, que por fim se quebra”.
Conhecia o gênio de sua mãe aliado a uma grande
ignorância dos modernos meios de conseguir-se
eliminações como a de dona Senhorinha. Quando
menos, temia ser desmascarado como se deu por
ocasião da carta falsa. Sendo ele o principal interessado
nesse negócio, afinal recaíriam as culpas sobre sua
pessoa, e por forma alguma lhe convinha denunciar a
cúmplice ou principal criminosa, que, em todo caso, era
sua mãe.
SPF, SP1: Abilio; animo
SPF, SP1: d. Senhorinha
SPF, SP1: mettesse
SPF, SP1: empreza
SPF, SP1: vae; á agua; porfim
SPF, SP1: genio; alliado
SPF, SP1: ignorancia
SPF, SP1: d. Senhorinha
SPF, SP1: occasião; elle
SPF, SP1: n’esse; negocio
SPF, SP1: recahiriam; convinha-lhe
(Emendou-se ênclise para próclise.)
SPF, SP1: cumplice
190
195
Dona Úrsula herdava o caráter de seu avô,
capitão-mor, cuja fama de temível e autoritário mandão
que cometeu impune toda a sorte de atrocidades chegou
a tornar-se lendária e ainda causa horror aos modernos
que ouvem o seu relato. Mas o capitão-mór viveu nos
tempos ominosos122 em que prepotentes como ele
podiam agir às escâncaras sem que alguém lhes fosse às
SPF, SP1: D. Ursula; capitão-mór
SPF, SP1: temivel; autoritario
SPF, SP1: commetteu; attrocidades,
(Emendou-se.)
SPF, SP1: elle
SPF, SP1: ás escáncaras;alguem; ás
mãos
121 Cântaro: vaso grande bojudo. 122 Ominiso: nefasto.
162
mãos. Hoje, pensava, consegue-se o mesmo, mas por
caminhos outros, ocultos pela astúcia e insídia. Mesmo
assim, é preciso muita habilidade e vigilância.
SPF, SP1: occultos; astucia; insidia
SPF, SP1: vigilancia
200
205
210
215
Abílio, cauto ao exagero quando urdia os seus
planos de maldade, era capaz – que perversidade não
lhe faltava – de pôr em execução atos nefandos como o
envenenamento de dona Senhorinha. O leitor disso não
duvidará, recordando-se da cena trágica que se deu
entre ele e a mulata Umbelina; mas era inteligente, mais
ou menos instruído, conhecia intimamente a sociedade
dos grandes centros civilizados e os modernos
processos de iludir, agir às ocultas e fazer o mal ao
próximo sem ser pressentido. Além disto tinhas relações
estreitas com cavalheiros distintos que o tinham como
honesto e incapaz de cometer atos indignos e
reprováveis. Tinha, como se diz, uma reputação a zelar,
e temia perdê-la. Por isso era escrupuloso nos seus
processos de insídia, e receiava que sua mãe, grosseira e
violenta, ainda alheia aos costumes modernos, e
imbuída de antigos preconceitos de fidalguia e riqueza,
cometesse uma leviandade fiada na sua posição, que
supunha torná-la imune à ação da Justiça e, quando
menos, ao repúdio da opinião. O digno filho de dona
Úrsula, somente quando bem firme e seguro no que de
SPF, SP1: – Abilio
SPF, SP1: actos
SPF, SP1: d. Senhorinha
SPF, SP1: duvidará (,); scena; tragica
SPF, SP1: elle; intelligente
SPF, SP1: instruido
SPF, SP1: illudir; ás occultas
SPF, SP1: proximo; presentido;
Alem; d’isto
SPF, SP1: distinctos
SPF, SP1: commeter; actos;
reprovaveis
SPF, SP1: prendel-a
SPF, SP1: insidia
SPF, SP1: imbuida
SPF, SP1: commettesse
SPF, SP1: suppunha; tornal-a
SPF, SP1: immune; á acção
SPF, SP1: repudio; d. Ursula
SPF, SP1: ante-mão
163
220
antemão preparava pacientemente, poderia praticar uma
violência, assim mesmo valendo-se de algum
instrumento que agisse inconscientemente como se
tratasse dos seus próprios interesses.
SPF, SP1: violencia
SPF, SP1: proprios
225
230
235
Retirando-se para o seu gabinete, ia meditativo.
O receio que a princípio o assaltara ao saber do crime
de sua mãe, receio que assumiu as proporções do temor,
desapareceu do seu espírito logo que teve explicação do
meio empregado, e calmamente estudou as
conseqüências dele, que, antes, fora-lhe vantajoso, pois
conseguira uma tal ou qual escravização do esposo de
Maria, a quem reduzira a pobreza e condição de seu
devedor a ponto de emigrar. Vangloriava-se de ter, por
sua habilidade, sabido “agarrar a ocasião pelos
cabelos”, de conseguir tanto, conservando a antiga
amizade do seu condiscípulo e, até, a sua gratidão por
serviços que lhe prestara e que, na realidade, eram mais
em favor do protetor do que do protegido.
SPF, SP1: principio
SPF, SP1: desappareeceu; espirito
SPF, SP1: consequencias; d’elle
SPF, SP1: ao ponto de (Emendou-se
conforme regência.)
SPF, SP1: occasião
SPF, SP1: condiscipulo
SPF, SP1: protector
240
Tudo ia bem, e o golpe dado por sua mãe foi
aproveitado. Restava-lhe agora o futuro, e era preciso
trabalhar para a conquista da esposa abandonada, o
ponto culminante dos seus ardentes desejos. Lembrou-
se então de um meeiro que trabalhava no sítio de João e
fora ali admitido sob sua recomendação. Era um sujeito
SPF, SP1: sitio
SPF, SP1: alli; admittido;
recommendação
164
245
250
ignóbil, servil e que sempre se lhe mostrou muito
dedicado. Quando Abílio o apresentou a João, alegando
ser o tipo um bom trabalhador e honesto, fê-lo
maliciosamente esperando que algum dia ser-lhe-ia útil.
Sempre taciturno, trabalhando sempre com afã, esse
meeiro conquistou a confiança de João porque
desempenhava o seu trabalho com perícia e, por ocasião
de pagar a renda, foi de uma correção a toda prova.
Tinha, pois, Abílio um bom intermediário que lhe
serviria a olhos fechados.
SPF, SP1: ignobil
SPF, SP1: Abilio; allegando
SPF, SP1: typo; fel-o
SPF, SP1: util
SPF, SP1: afan
SPF, SP1: pericia; occasião
SPF, SP1: correcção
SPF, SP1: Abilio; intermediario
255
260
265
Chegara o tempo de aproveitar aquele homem,
que não deixava de aparecer aos domingos e dias de
guarda na sua residência, mostrando-se-lhe muito grato
pela colocação que lhe dera e pela amabilidade com que
era tratado. Algumas vezes procurara-o pedindo-lhe
dinheiro emprestado, e Abílio, como se tratava de
pequenas quantias, não deixou de servi-lo, entanto
estudando-lhe o caráter por meio de ligeiras palestras e
habilidosas indagações. Convenceu-se, pois, que
dispunha de um maleável que muito lhe servia,
restando-lhe somente procurar o meio de servir-se dele
para os seus fins.
SPF, SP1: aquelle
SPF, SP1: apparecer
SPF, SP1: residencia (,)
SPF, SP1: collocação
SPF, SP1: abilio
SPF, SP1: sevil-o; emtanto
SPF, SP1: caracter
SPF, SP1: maleavel
SPF, SP1: d’elle
Era preciso primeiro aproximar-se muito de
Maria sob qualquer pretexto. A ausência de João
SPF, SP1: approximar-se
SPF, SP1: ausencia
165
270
275
autorizava-o a freqüentar sua esposa, como amigo
dedicado que era do seu condiscípulo para fazer-lhe
oferecimento de seus ofícios em caso de necessidade. O
único tropeço que ainda existia no seu caminho era o
velho mestre-escola; mas Serafim morava distante de
João e, além disso, não teria que estranhar que um
amigo da casa visitasse a senhora e procurasse prestar
os seus serviços em caso de necessidade. Serafim era
arguto; mas ele também o era. Enfim, veria Abílio o que
devia fazer depois de um estudo acurado e de traçado o
seu plano.
SPF, SP1: frequentar
SPF, SP1: condiscipulo
SPF, SP1: offerecimento; officios
SPF, SP1: unico
SPF, SP1: alem; extranhar
SPF, SP1: elle; tambem; Emfim;
Abilio
VIII
5
10
À noite Serafim foi com a família mais uma vez
dizer adeus ao seu querido discípulo e amigo que
viajaria de madrugada. Já o bondoso mestre-escola
havia insistido com João que não viajasse a pé,
chegando a oferecer-lhe uma boa mula arreada; mas o
mancebo por forma alguma aceitou a sua proposta,
alegando que seria o animal um trabalho que retardaria
as suas marchas diárias; que se sentia bem disposto para
vencer as etapas e, mesmo, que um sampauleiro deve
chegar em São Paulo com os trajos característicos,
mostrando logo que é um homem disposto ao trabalho e
SPF, SP1: Á noite; familia
SPF, SP1: discipulo
SPF, SP1: offerecer-lhe
SPF, SP1: acceitou
SPF, SP1: allegando
SPF, SP1: diarias
SPF, SP1: S. Paulo; caracteristicos
166
mostrando logo que é um homem disposto ao trabalho e
às dificuldades da vida, como os antigos bandeirantes.
SPF, SP1: ás difficuldades
15
20
25
30
Apesar da grande tristeza que invadira o lar,
Maria, a nossa conhecida heroína, conservava-se
aparentemente calma; mas quem a conhecia como João
e Serafim, bem avaliava quanta dor a pobre Maria
sopitava em seu coração de esposa e mãe. Serafim, não
comunicativo como sempre, conservava-se sério, e
limitava-se a conversar sobre a viagem do seu bom
amigo, a quem dava proveitosos conselhos de homem
prático que, através de sua existência, tinha provado
amarguras e dificuldades que o haviam retemperado
para as lutas da vida. Não se esqueceu de uma só das
coisas e preocupações indispensáveis em tão extensa
viagem como a que seu antigo discípulo ia empreender;
mas João tinha sido previdente e fez uma resenha de
tudo quanto levava. Notou, porém, Serafim que ao
viajante era preciso uma boa arma para sua defesa; pois
quem atravessa tão grandes e desconhecidos territórios,
pode encontrar indivíduos malvados e tem que se
defender de agressões injustas.
SPF, SP1: apezar
SPF, SP1: heroina
SPF, SP1: apparentemente
SPF, SP1: communicativo; serio
SPF, SP1: pratico; atravéz; existencia
SPF, SP1: difficuldades; retemperaram
SPF, SP1: luctas; cousas
SPF, SP1: indispensaveis
SPF, SP1: discipulo; emprehender
SPF, SP1: previdente,
SPF, SP1: porem
SPF, SP1: territorios
SPF, SP1: individuos
SPF, SP1: aggressões
–Levo uma boa arma, professor: a prudência –
disse João possuído de fé em Deus e na sua conduta.
SPF, SP1: prudencia
SPF, SP1: conducta.
35
–Não basta, João – retorquiu Serafim. – Há
167
indivíduos que só atendem a um argumento positivo e
material, e que somente respeitam a quem traz um Broly
na cinta. Pensa bem.
SPF, SP1: individuos; attendem
SPF, SP1: BROLY
40
–Nesse caso, como fazer, se não tenho uma arma
nessas condições?
SPF, SP1: N’esse; si
SPF, SP1: n’essas
–Tenho duas e cedo-te uma que sempre trago
comigo, às vezes que saio de casa.
SPF, SP1: commigo
João aceitou o conselho e a arma que seu mestre
lhe ofereceu com a suplementar provisão de cargas.
SPF, SP1: acceitou
SPF, SP1: offereceu
45
50
55
Serafim retirou-se com a família, mas prometeu
vir assistir à saída do mancebo. João dormiu mal e, logo
às três horas da madrugada, estava de pé. Pulquéria, que
andava muito triste deste que soube da resolução do
“senhor moço”, já se achava na cozinha preparando a
refeição que o viajante devia tomar. A boa velha não
sabia ocultar como Maria o grande pesar que sentia e,
como todos os males que vinham à família desde a
morte de dona Senhorinha atribuía a Abílio, aquele
“traste123 ruim” a quem votava antipatia, não deixava de
esconjurá-lo e volta e meia resmungando impropérios.
SPF, SP1: familia; prometteu
SPF, SP1: á sahida
SPF, SP1: ás tres
SPF, SP1: Pulcheria
SPF, SP1: occutar; pezar
SPF, SP1: á familia
SPF, SP1: d. Senhorinha;attribuia;
Abilio
SPF, SP1: aquelle; antipathia
SPF, SP1: esconjural-o
SPF, SP1: improperios.
–Ô coisa ruim! – dizia. – Não foi senão ele que
meteu isso na cabeça de ioiô; mas Deus não dorme.
Deixa estar, que eu apronto aquele sem vergonho.
SPF, SP1: sinão; elle
SPF, SP1: metteu; Yoyô
SPF, SP1: aprompto; aquelle;
SEMVERGONHO.
123 Traste: pessoa de mau caráter, sem préstimo.
168
60
65
70
75
80
E a pobre preta terminava seu sermão
derramando lágrimas copiosas. O ódio instintivo que
votava a Abílio e que naquele momento recrudescia,
não impedia de preparar a capricho a refeição destinada
ao viajante. Era a sua despedida; que não sabia por
quanto tempo não prepararia um quitute para “sinhô
João.” Ela bem sabia que São Paulo era “um fim de
mundo” pois, quando moça, teve parente e conhecidos
que foram vendidos para as “matas do café” e nunca
mais tivera notícias deles. Quantos pobrezinhos não
foram chorando “barra a fora” deixando pai, mãe,
irmãos! Quantas mães apanhavam a força o caminho
daquela terra, levando os filhinhos encanchados, outras
deixando-os cá! Quantas não morreram! Ah! Justiça do
Céu! Esses mesmos brancos que não tiveram dó dos
seus negros; que os vendiam como gado, hoje estão
pagando em seus filhos e netos que vão no mesmo
caminho, sofrendo como fizeram sofrer, passando por
toda sorte de calamidades para, na terra do café, serem
governados como escravos. O castigo está aí, e não o vê
quem não quer.
SPF, SP1: lagrimas; odio; instictivo
SPF, SP1: Abilio; n’aquele
SPF, SP1: Ella; S. Paulo
SPF, SP1: mattas
SPF, SP1: noticias; delles
SPF, SP1: pae
SPF, SP1: a força; d’aquella
SPF, SP1: Céo
SPF, SP1: soffrendo; soffrer
SPF, SP1: para (,)
SPF, SP1: ahi
169
85
–Sinhô João, coitadinho! Tão bom, tão caridoso,
nunca fez dessas coisas com os pobres dos negros; nem
ao menos era nascido naquele tempo; mas seu avô fez
muito mal, surrou e vendeu muito negro, para agora o
pobrezinho estar pagando. Seu Abílio também vem a
pagar o que sua mãe, seu pai e ele mesmo fizeram. Se
não estão pagando agora, é porque o tempo ainda não
chegou. –Todos estes pensamentos amarguravam a
pobre crioula.
SPF, SP1: cousas
SPF, SP1: n’aquelle
SPF, SP1: mau
SPF, SP1: Abilio; tambem
SPF, SP1: pae; elles (Erro óbvio.); Si
SPF, SP1: creoula
90
´95
100
Servida a refeição, chegou Serafim. Vinha triste
e meditativo. Quase não dormira pensando nas muitas
dificuldades que poderiam sobrevir a Maria e seus
filhinhos na ausência do chefe do casal. Vinha-lhe à
idéia o dito popular; “Sabe-se quando se sai, ignora-se
quando se volta.” Quantos como João correram atrás da
fortuna que anteviam em São Paulo, esperando voltar
munidos dos meios que desejavam adquirir para porem
em ordem os seus negócios, e não conseguiram ao
menos recursos para a viagem de retorno, ou tiveram
que voltar piores do que foram! Quantos lá chegaram
em ocasião inoportuna e, perambulando pelas fazendas
sem encontrar colocação, e afinal reduzidos à miséria,
doentes e paupérrimos em terra estranha, só alcançaram
uma desilusão terrível que os arrastou ao desespero!
SPF, SP1: Quasi
SPF, SP1: difficuldades
SPF, SP1: ausencia; á idéa
SPF, SP1: sahe (,)
SPF, SP1: atraz
SPF, SP1: S. Paulo
SPF, SP1: pôrem
SPF, SP1: negocios
SPF, SP1: peores
SPF, SP1: occasião; inopportuna
SPF, SP1: collocação; á miseria
SPF, SP1: pauperrimos; extranha
SPF, SP1: desillusão; terrivel
170
105
110
Quantos de ânimo bondoso, de uma boa fé e
liberalidade como João, não foram explorados naquele
meio por astutos e maliciosos! Quantos ainda, voltando
com o resultado pecuniário do seu rude maiorejar, não
foram assaltados na estrada e perderam o seu dinheiro e
às vezes a vida!
SPF, SP1: animo
SPF, SP1: n’aquelle
SPF, SP1: pecuniario
SPF, SP1: ás vezes
115
De fatos semelhantes estava Serafim inteirado
por inquéritos que fazia com segurança, ouvindo
testemunhos que lhe mereciam inteira fé. Homem
prático que era, tanto amava o seu discípulo e amigo e
conhecia-lhe o gênio, que temia o futuro da sua
odisséia. Conversando com João no momento da sua
partida, todos os inconvenientes que lhe vinham à idéia,
lembrava-lhe a puridade, para não afligir Maria,
aconselhando-lhe precauções mais severas.
SPF, SP1: factos; Seraphim
SPF, SP1: inqueritos
SPF, SP1: pratico; discipulo
SPF, SP1: genio
SPF, SP1: odysséa
SPF, SP1: á idéa (,)
SPF, SP1: á puridade; afflingir
120
125
Afinal chegou o momento da separação. Ao
alcear o saco às costas, João abraçou a sua querida
esposa, mal retendo ambos a torrente de lágrimas que
procurava romper a sua energia. Pulquéria, de joelhos,
abraçou as pernas do seu “sinhô moço” lavada em
lágrima, sem poder proferir uma palavra. Serafim,
apesar de forte, tinha os olhos úmidos, conseguindo mal
se conter diante do quadro que presenciava, e evitando
falar para não denunciar o que lhe ia pelo coração.
SPF, SP1: sacco; ás costas
SPF, SP1: lagrimas
SPF, SP1: Pulcheria
SPF, SP1: lagrima
SPF, SP1: apezar; humidos
SPF, SP1: conter-se; deante
171
130
–Meus filhos! – exclamou João. – Quero
despedir-me também deles.
P1, SPF: tambem; delles
135
As criancinhas foram trazidas, estremunhantes, a
Corina com os olhos de espantada diante do estranho
quadro que se lhe apresentava; o João, o menor, a
choramingar por ter sido desperto às pressas.
Estreitando-os nos seus braços, o pobre pai não pôde
conter as lágrimas.
SPF, SP1: creanças
SPF, SP1: deante; extranho
SPF, SP1: ás pressas
SPF, SP1: pae
SPF, SP1: lagrimas
140
145
–Adeus, meus queridos anjinhos! – dizia
soluçando. – Deixo-vos, meu precioso tesouro, à guarda
do anjo de bondade que, para mim, representa Deus na
terra: minha querida companheira. Professor, Pulquéria,
Maria, peçam a Deus por mim, vocês em quem eu
confio. – Todos choravam; as lágrimas, como punhos,
romperam os diques das conveniências, brotando
copiosas dos olhos de todos os assistentes dessa tocante
cena.
SPF, SP1: thesouro; á guarda
SPF, SP1: Pulcheria
SPF, SP1: lagrimas
SPF, SP1: conveniencias (,)
SPF, SP1: d’essa
SPF, SP1: scena
150
Parecerá ao leitor exageramos. Não é assim,
porém. Para muitos sampauleiros já por estarem afeitos
à extensa viagem que João ia empreender, já por terem
o coração pouco ou nada afetivo, quebrados os
sagrados laços que os prendem ao seu berço, à sua
esposa, aos seus filhos, a uma viagem destas não causa
emoção alguma; podemos até avançar que
SPF, SP1: porem; afflitos
SPF, SP1: á extensa; emprehender
SPF, SP1: affectivo
SPF, SP1: á sua
SPF, SP1: d’estas
172
155
160
165
emoção alguma; podemos até avançar que
experimentam certa alegria estes últimos, considerando-
se, desde que se ausentam do lar, isentos das
responsabilidades e deveres domésticos que até então
pesavam sobre os seus ombros. Estes infelizes
degenerados são tais por ignorância, ausência de uma
educação regular, nenhuma compreensão dos deveres
sociais e a péssima influência mesológica derivada dos
tristes exemplos de indolência, desídia e indiferença das
classes que se colocam à frente da sociedade para
tirarem proveito, para exercerem o mando mais
reprovável de senhores medievais, para acumularem
grandes fortunas, pouco se lhes dando que se
desorganize a família humilde, do poviléu124,
justamente da classe a mais numerosa da qual depende
o progresso econômico e a felicidade do meio.
SPF, SP1: ultimos
SPF, SP1: se (,)
SPF, SP1: domesticos
SPF, SP1: hombros
SPF, SP1: taes; ignorancia; ausencia
SPF, SP1: comprehensão
SPF, SP1: sociaes; pessima; influencia,
mesologica
SPF, SP1: indolencia; desidia;
indifferença
SPF, SP1: collocam; á frente
SPF, SP1: reprovavel; mediavaes;
accumularem
SPF, SP1: familia; poviléo
SPF, SP1: economico
170
João arrancou-se dos braços de sua esposa e dos
seus queridos, temendo fraquejar, e sumiu-se no escuro
da madrugada, tendo como testemunha da sua dor o
firmamento ainda enegrecido como uma crepe125
tauxiada de fúlgidos brilhantes.
SPF, SP1: ennergecido
Maria, prostrada, não pôde reter o pranto. Então
é que a realidade da sua situação mostrava-se-lhe mais
124 Poviléu: ralé. 125 Crepe: fita ou tecido negro que se usa em sinal de luto.
173
175
180
clara e patente. A esperança, que nos mantém mais ou
menos firme, antes de realizar-se o que tememos, apesar
de vacilante, como que se esvai por fim em casos como
este. Pulquéria, acocorada a um canto, contemplava sua
“iaiazinha” através das lágrimas que lhe ensopavam o
rosto cor de ébano, brilhante à luz da candeia. Serafim,
por fim, disse:
SPF, SP1: mantem
SPF, SP1: realisar-se
SPF, SP1: apezar; vacillante; esvae;
porfim
SPF, SP1: Pulcheria; accocorada
SPF, SP1: “yayazinha”; atravéz;
lagrimas
SPF, SP1: ebano; á luz; Seraphim
SPF, SP1: porfim (,)
185
190
195
–Minha comadre, sei que tem coragem para
encarar com heroísmo a soledade que fica. Ela,
entretanto, tenho fé em Deus, é o preparo rude do futuro
regozijo, quando João voltar tendo colhido bom
resultado da aventurosa viagem que hoje encetou. João
é honesto, inteligente e laborioso, qualidades que em
São Paulo são muito apreciadas no baiano, como estou
informado. A saudade que nos deixou é muito justa e
muito natural; mas Deus, que não deixa de auxiliar as
boas e louváveis intenções de suas criaturas, amparará o
nosso querido ausente, pois são nobres e dignos os seus
propósitos. Se outros têm sido infelizes em São Paulo, é
sempre por sua própria culpa. Uns conduzem-se mal e
desacreditam-se; outros trabalham e ganham, mas são
esbanjadores. Um homem laborioso e econômico como
João não deixará de ganhar e fazer um bom fundo de
reserva que muito lhe servirá no futuro para garantir a
SPF, SP1: heroismo; Ella
SPF, SP1: regosijo
SPF, SP1: intelligente
SPF, SP1: S. Paulo; bahiano
SPF, SP1: louvaveis; creaturas
SPF, SP1: propositos; Si; S. Paulo
SPF, SP1: propria
SPF, SP1: economico
174
200
205
independência almejada. Além de honesto e laborioso
que é, como eu já disse, ele já deu provas a minha
comadre de que tem a força de vontade precisa para
gastar somente o estritamente preciso; é econômico.
Conversei bastante com ele a respeito da sua viagem e
vi que tomará as precauções precisas para que o seu
intento não fracasse, chegando até a escrever como a
senhora talvez saiba, a norma de vida que seguirá na sua
ausência.
SPF, SP1: independencia; Alem
SPF, SP1: é (,); elle
SPF, SP1: estrictamente
SPF, SP1: economico; elle
SPF, SP1: ausencia
–De tudo isso quanto diz estou certa; mas o
futuro?... ah! o futuro!
210
215
220
–O futuro pertence a Deus. Não podemos prevê-
lo exatamente; mas calculá-lo aproximadamente, tendo
por estudos os antecedentes e por complemento esse
mesmo Deus, que é a Bondade, o Amor e a Justiça.
Tenhamos confiança em Deus e pratiquemos o bem
entregando-nos inteiramente a Ele, que nunca deixa de
recompensar o merecimento. Deixemos, porém, este
assunto. Seja qual for o futuro, confiantes em Deus e
em nós próprios, aguardêmo-lo tranqüilos e façamos o
que nos compete. Minha comadre tem inteira confiança
nos seus meeiros durante a ausência do seu marido?
SPF, SP1: prevel-o; exactamente;
calculal-o; approximadamente (,)
SPF, SP1: Elle
SPF, SP1: porem
SPF, SP1: assupmto
SPF, SP1: proprios; aguardemol-o;
tranquillos
SPF, SP1: ausencia
–Sempre mereceram a confiança de João. São
laboriosos, honestos nas suas prestações e nunca
175
225
tivemos que lhes exprobar falta alguma. Há
especialmente um, o Roberto, que prima pela sua
sinceridade e exação.
SP1: exacção
–Conheço-os a todos três, e justamente o que
menos me parece agradável é o que a comadre
reconhece como o mais sério e honesto.
SPF, SP1: tres
SPF, SP1: agradavel
SPF, SP1: serio
–Oh! Logo esse?!
230
–É sério de mais. O homem sério que me agrada
é aquele que apesar de sisudo, mostra-se alegre e
comunicativo. O Roberto é mudo como uma pedra, não
sorri...
SPF, SP1: serio; serio
SPF, SP1: aquelle; apezar; sizudo
SPF, SP1: communicatrivo
235
–Mas cumpre todos os seus deveres e obrigações
com uma lisura digna de louvores.
–Desculpe o que digo a respeito do Roberto. São
caturrices de velho e não desejo que por ora as tome ao
sério.
SPF, SP1: serio
240
–Por ora? – inqueriu Maria, percebendo a
sutileza de Serafim.
SPF, SP1: Seraphim
–Sim por ora; porque desde que se ausentou
João, podem as coisas mudar de aspecto. Entanto,
ponhamo-nos de observação, e não mude o modo de
tratar esses rendeiros. Serei vigilante como um argos.
SPF, SP1: cousas; Emtanto
245
Roberto era o meeiro colocado no sítio de João
mediante pedido e recomendação de Abílio. Serafim
SPF, SP1: collocado; sitio
SPF, SP1: recommendação; Abilio
176
250
255
260
sabia disso e, quando João teve que admiti-lo, consultou
o mestre-escola que, sempre desconfiado, não quis,
entretanto, aconselhar desastradamente. Contudo
procurou conhecer o novo agregado, cuja seriedade
exagerada e taciturnidade achou singulares e dignas de
um estudo discreto e minucioso. Conhecedor que era do
gênio astucioso e hipócrita de Abílio, como dos seus
antecedentes quando pretendente à mão de Maria, o
velho mestre-escola achou nestas razões e na
apresentação do meeiro Roberto uma coincidência
muito significativa, e, desde logo, desconfiou do
apresentado e do apresentante. Procurando com
habilidade conhecer o meeiro, debalde tentou conseguir
dele próprio informações sobre os seus antecedentes; o
homem respondia por monossílabos quando era
abordado, chegando às vezes a denunciar, por leves e
quase imperceptíveis gestos, uma certa má vontade. A
desconfiança de Serafim mais se acentuou.
SPF, SP1: d’isso; admittil-o
SPF, SP1: quiz
SPF, SP1: Comtudo
SPF, SP1: aggregado
SPF, SP1: genio; hypocrita; Abilio
SPF, SP1: á mão
SPF, SP1: coincidencia
SPF, SP1: d’elle; proprio
SPF, SP1: monosylabos
SPF, SP1: ás vezes
SPF, SP1: quasi; imperceptiveis
SPF, SP1: accentuou-se (Emendou-se
ênclise para próclise.)
265
270
Ao demais, como pensava o mestre-escola, se
Abílio descobria em Roberto as boas qualidades que o
recomendavam, porque, em lugar de colocá-lo em suas
terras – pois também ele admitia meeiros e agregados, e
possuia grandes tratos de terreno ótimos para cultura –
vinha pedir a João admiti-lo como seu meeiro?
SPF, SP1: si
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: recommendava; collocal-o
SPF, SP1: tambem; elle; admittia;
aggregados
SPF, SP1: tractos; optimos
SPF, SP1: admittil-o
177
275
280
285
Serafim nem de leve tocou nisso com alguém;
guardou consigo no maior sigilo as conjecturas que lhe
vieram à idéia quanto a Roberto e quem o recomendava.
A primeira vez que se arriscou a falar sobre o assunto
foi esta, com sua comadre, que guardaria reserva, estava
certo. Maria ignorava as falcatruas usadas por Abílio
quando pretendente à sua mão, nem talvez lhe passase
pela mente a idéia de que sua paixão ainda persistisse.
Serafim, que, como dissera, era um argos, adivinhava
que o mancebo malogrado não abrira mão de todo às
suas antigas pretensões, e, trazendo-o de vista, estudava
as suas relações de amizade com o antigo rival. Ora,
ausente João, não seria possível que Abílio, apaixonado
e perverso como era, tentasse qualquer coisa no sentido
de possuir Maria ou vingar-se do seu repúdio?
SPF, SP1: n’isso alguem (Emendou-se
acrescentando com.)
SPF, SP1: comsigo; sygillo;
SPF, SP1: a idéa; recommendava
SPF, SP1: assumpto, (Emendou-se.)
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: á sua
SPF, SP1: idéa
SPF, SP1: mallogrado; ás suas
SPF, SP1: pretenção
SPF, SP1: possivel; Abilio
SPF, SP1: cousa
SPF, SP1: repudio
Esses pensamentos muito atribulavam o espírito
do velho mestre-escola, que se tinha como responsável
pela segurança da pobre esposa e da integridade de sua
honra, ainda mais tendo sido recomendado por João.
SPF, SP1: attribulavam; espirito
SPF, SP1: responsavel
SPF, SP1: recommendado
178
IX
5
10
Em dois dias de marcha o nosso sampauleiro
conseguiu chegar a Lençóis de Minas. Nunca tendo
feito tão longa tirada, João chegou muito estrompado126
àquele povoado. Por essa ocasião o êxodo dos nossos
sertanejos havia tomado grande incremento e
numerosos grupos de emigrados de pontos diversos do
sertão baiano seguiam o mesmo destino do nosso
sampauleiro, que a nenhum deles se incorporou por ser
marinheiro de primeira viagem e temer não pudesse
viajar com a rapidez dos outros antes de treinado.
SPF, SP1: dous
SPF, SP1: Lencóes
SPF, SP1: áquelle; occasião; exodo
SPF, SP1: bahiano, (Emendou-se.)
SPF, SP1: d’elles
SP1, SPF podesse
15
20
Em Lençóis teve João que demorar muitas horas
e pernoitar e, com assombro, soube do número
incalculável de baianos que ali passavam em grupos em
demanda do opulento estado do Sul. Também por ali
passavam alguns de retorno ao seu lar, mas em número
menor. Estes traziam notícias contraditórias, afirmando
uns que a baixa do café dera lugar a uma grande
quebradeira a ponto de não poderem os fazendeiros
pagar aos jornaleiros, e os empreiteiros verem-se na
contingência de passarem letras aos trabalhadores.
Outros, porém, asseverando que aquilo por lá era um
paraíso; que dinheiro naquela terra se podia catar no
chão como mamona nas capoeiras da Bahia.
SPF, SP1: Lencóes
SPF, SP1: assombro(,); numero
SPF, SP1: incalculavel; bahianos; alli
SPF, SP1: Tambem; alli
SPF, SP1: numero
SPF, SP1: noticias; contracdictorias;
affirmando
SPF, SP1: ao ponto de (Emendou-se
conforme regência.)
SP1: jonaleiros (Erro óbvio.)
SPF, SP1: contigencia; lettras
SPF, SP1: porem; aquillo
SPF, SP1: paraiso; n’aquella
126 Estrompado: muito cansado.
179
chão como mamona nas capoeiras da Bahia.
25
30
35
40
João estudava criteriosamente o que ouvia dos
moradores do arraial e de alguns sampauleiros que
naquele dia ali encontrou regressando. Por tudo o
quanto lhe veio ao conhecimento, quer direta, quer
indiretamente, concluiu que, se havia verdade nas
informações que lhe davam, a gabada riqueza de São
Paulo não era generalizada em todo o Estado como
afirmavam muitos que de lá voltavam; que muitos dos
informantes nada conseguiram, talvez por serem
levianos e dissipadores, por não terem procurado as
zonas mais prósperas, por serem de má conduta ou por
outras quaisquer circunstâncias que não dependiam
daquele meio e sim do próprio informante. Tudo isso
que ouvia, entretanto, eram instruções que muito lhe
serviam e o convenciam da necessidade que tinha de um
cicerone que o guiasse naquele país para ele estranho;
mas era preciso que esse guia fosse homem fidedigno,
experiente e honesto. Onde encontrá-lo, porém? A
Providência reservava-lhe um, como o leitor vai ver.
SPF, SP1: n’aquelle; alli
SPF, SP1: directa
SPF, SP1: indirectamente; si
SPF, SP1: S. Paulo
SPF, SP1: generalisada
SPF, SP1: affirmava
SPF, SP1: prospera; conducta
SPF, SP1: quaesquer; circumstancias
SPF, SP1: d’aquelle; proprio
SPF, SP1: instrucções
SPF, SP1: n’aquelle; paiz; elle;
extranho
SPF, SP1: encontral-o; porem
SPF, SP1: Providencia; vae
45
Dois dias depois, quando João se aboletava em
um arraial insignificante que depois soube ser o
“Papagaio”, foi alcançado por um pequeno grupo de
emigrantes que ali pernoitou com ele. Eram todos gente
SPF, SP1: Dous
SPF, SP1: “Papagaio”(,)
SPF, SP1: alli; elle
180
50
55
do seu distrito, alguns dos quais já tinha visto de relance
na feira de Caetité; mas entre eles já um seu conhecido
com quem já tinha feito transações, cuja fisionomia era
simpática e insinuante. Com ele não tinha entretido
relações muito estreitas nem sabia do lugar onde residia,
mas tinha o seu nome. Deram-se a conhecer, e o
Calisto, que conhecia bem e sempre o via nos mercados
trajando como pessoa de qualidade, mostrou-se
admirado de vê-lo agora, seguindo viagem a pé, de saco
às costas.
SPF, SP1: districto; quaes
SPF, SP1:Caiteté; elles
SPF, SP1: transacções; physionomia
SPF, SP1: sympathica; elle
SPF, SP1: Calixto
SPF, SP1: vel-o; sacco
SPF, SP1: ás costas
60
65
Calisto era comunicativo e alegre. Também se
simpatizava desde muito com o mancebo. Entraram a
conversar e explicar-se reciprocamente, vindo afinal a
ligar-se por essa amizade que muitas vezes brota
espontânea entre dois indivíduos, máxime quando se
encontram fora de sua terra e nas condições em que
aqueles dois se achavam. Ficou assentado que João
viajaria incorporado ao grupo, afirmando-lhe Calisto
que os outros companheiros, embora fossem homens
ignorantes e rudes, eram honestos e pacíficos.
SPF, SP1:Calixto; communicativo;
Tambem
SPF, SP1: sympathisava-se
SPF, SP1: expontenea; dous;
individuos; maxime
SPF, SP1: aquelles; dous
SPF, SP1: affirmando-lhe; Calixto
SPF, SP1: pacificos
70
Calisto, que já orçava por quarenta anos de idade
como se via, pelo seu aspecto, conhecia São Paulo
palmo a palmo como informou ao novo amigo. Contou-
lhe que em 1893 fez a sua primeira viagem para o Sul;
SPF, SP1: Calixto; annos; edade
SPF, SP1: S. Paulo
181
75
80
85
90
porém, como se estava em revolução, foi recrutado e
incorporado às forças legalistas que Floriano colocou
em defesa contra os revoltosos do Rio Grande, temendo
que se incorporassem à gente de Custódio de Melo. Fez
toda a campanha, e muito aproveitou naquela vida rude.
Como sempre teve uma conduta exemplar e fosse um
soldado obediente, mereceu a confiança dos seus
comandantes, chegando a galgar o posto de sargento
apesar de pouco saber ler. Pacificando o país, conseguiu
a sua baixa e voltou para Bahia, onde continuou a
trabalhar na lavoura. Morrendo seu pai, ficaram a viúva
e os filhos na pobreza. Constava a prole do casal
paterno de duas filhas e Calisto que, como o mais velho,
tomou a direção da casa. Naquele tempo a lavoura do
sertão baiano estava em grande decadência à falta de
braços, em conseqüência da abolição do cativeiro e da
emigração do nosso sertanejo. Contudo, a esforços
incríveis, conseguiu Calisto fazer alguma coisa e juntar
algum pecúlio que lhe serviu para voltar a São Paulo e
deixar sua mãe e irmãs com a subsistência garantida na
sua ausência.
SPF, SP1: porem; estava-se (Emendou-
se ênclise para próclise.)
SPF, SP1: ás forças; collocou
SPF, SP1: Grande (,)
SPF, SP1: á gente; Custodio; Melle
SPF, SP1: n’aquella
SPF, SP1: conducta
SPF, SP1: commandantes (,)
SPF, SP1: apezar; paiz
SPF, SP1: pae; viuva
SPF, SP1: Calixto
SPF, SP1: direcção; N’aquelle
SPF, SP1: bahiano; decadencia; á falta
SPF, SP1: consequencia; captiveiro
SPF, SP1: Comtudo
SPF, SP1: incriveis; Calixto; cousa
SPF, SP1: peculio; S. Paulo
SPF, SP1: subsistencia
SPF, SP1: ausencia
95
Calisto foi feliz nessa segunda viagem. Corria
muito dinheiro de papel em São Paulo, os jornais eram
SPF, SP1: Calixto; n’essa
SPF, SP1: S. Paulo; jornaes
182
100
105
110
convidativos e os fazendeiros instavam127 por
trabalhadores para estabelecerem novas plantações.
Voltando à sua terra com farta economia, fez a
arrumação de suas duas irmãs e pôde desenvolver a sua
lavoura. Desde então quase todos os anos fazia uma
viagem a São Paulo. Os anos críticos de 1898 e 1899
deram-lhe grande prejuízo e obrigaram-no a contrair
compromissos que ia amortizando de ano a ano com o
que ganhava em São Paulo. Tendo-se casado,
aumentadas a sua família e responsabilidades, já
resgatados os antigos compromissos, contraiu uma
dívida maior para dar impulso à sua agricultura, e agora
ia de novo ao grande estado a fim de ganhar com que
pagá-la. Conhecia um fazendeiro que não deixaria de
lhe dar trabalho e, até, adiantar-lhe dinheiro; pois era
homem que o tinha em muita boa conta. Assim
informado, João conheceu que a Providência dava-lhe
um ótimo cicerone, em quem, por cada dia que
passava, descobria qualidades apreciáveis.
SPF, SP1: á sua
SPF, SP1: ARRUMAÇÃO
SPF, SP1: quasi; annos
SPF, SP1: S. Paulo; annos; criticos
SPF, SP1: prejuizo; contrahir
SPF, SP1: anno; anno
SPF, SP1: S. Paulo
SPF, SP1: augmentadas; familia
SPF, SP1: contrahiu
SPF, SP1: divida; á agricultura
SPF, SP1: afim de
SPF, SP1: pagal-a
SPF, SP1: adeantar-lhe
SPF, SP1: Providencia
SPF, SP1: optimo
SPF, SP1: apreciaveis
115
João seguiu, pois, com o grupo através do
Estado de Minas; mas embora a todos tratasse com tal
afabilidade e fosse geralmente estimado e considerado
pelos outros, conversava mais e amiúde com Calisto,
que era o único inteligente e capaz de informá-lo de
SPF, SP1: atravéz
SPF, SP1: affabilidade
SPF, SP1: a meude; Calixto
127 Instar: solicitar.
183
120
que era o único inteligente e capaz de informá-lo de
tudo quanto lhe era estranho do costume que ia
encontrar.
SPF, SP1: unico; intelligente; informal-
o
SPF, SP1: extranhos
125
130
135
Para os sampauleiros pedestres Mucoca era uma
espécie de ante-sala do estado de São Paulo. Parece-nos
que a necessidade de viajarem em grupos para a comum
defesa, levava-os sempre juntos até ali, de onde
somente tomava cada um a direção que mais lhe
convinha, de acordo com as suas conveniências e
conhecimentos que tinham. João e Calisto, ao chegarem
ali, separaram-se dos companheiros e seguiram rumo de
Cravinhos em procura do rio Mojiguaçu, em cuja bacia,
nas proximidades desse rio, estava situada a fazenda
que Calisto achava mais conveniente procurarem,
porque conhecia o fazendeiro, um cavalheiro que lhe
merecia confiança, e para quem já havia trabalhado
muitas vezes.
SPF, SP1: especie; S. Paulo
SPF, SP1: comum
SPF, SP1: alli
SPF, SP1: direcção
SPF, SP1: accordo; conveniencias
SPF, SP1: Calixto
SPF, SP1: alli
SPF, SP1: Mogyguassú; baccia
SPF, SP1: d’esse
SPF, SP1: Calixto
140
João encantava-se diante da luxuosa perspectiva
que aquele solo feracíssimo apresentava-lhe nas matas,
nas caudais128 e no resultado do trabalho desenvolvido
do homem fazendo brotar da terra os opulentos tesouros
que ela encerra. Calisto, como emérito e inteligente
cicerone que era, ia chamando a atenção do novel129
SPF, SP1: deante
SPF, SP1: aquelle; ferracismo; mattas
SPF, SP1: caudaes
SPF, SP1: thessouros
SPF, SP1: ella; Calixto; intelligente
SPF, SP1: attenção; nóvel
128 Caudal: cachoeira. 129 Novel; inexperiente.
184
145
150
155
sampauleiro para o cenário que se desdobrava às suas
vistas e tudo explicava e informava miudamente. Aqui
avistavam lindas vivendas campestres cercadas de
variadas culturas; ali extensas pastagens onde se viam
rebanhos e armentos aproveitando tranqüilamente o
pingue pábulo; acolá trechos de mata em derribada,130
incipientes plantações de cafeeiros, construções em
começo; mais além grandes cafezais riscando o solo,
trepando as colinas e os suaves aclives, em pleno
desenvolvimento. Toda aquela região, relativamente
nova no seu desbravamento e cultura, era movimentada
por um formigueiro de trabalhadores. Das estradas
ouvia-se um zumzum de colméia, percebendo-se uma
ou outra palavra do nosso idioma ou da algaravia
estrangeira, nesta sobressaindo o italiano em maior
número ou o brado álacre131 do operário nacional, típico
do nosso trabalhador quando na faina rude.
SPF, SP1: scenario; ás suas
SPF, SP1: alli
SPF, SP1: tranquillamente
SPF, SP1: mattas
SPF, SP1: construcções
SPF, SP1: alem; cafezaes
SPF, SP1: collinas
SPF, SP1: aquella
SPF, SP1: colmeia
SPF, SP1: n’esta; sobresahindo; máior
SPF, SP1: numero; operario; typico
160
Os nossos dois viajantes tiveram que atravessar
trilhos de via-férrea, transpor pontes, vadear ribeiros,
pernoitar em galpões mediante paga e quase sempre
vendo gente a trabalhar ou em viagem. Também
atravessaram povoados nascentes que em breve seriam
cidades movimentadas. Afinal conseguiram, depois de
SPF, SP1: dous
SP1, SPF: via-ferrea
SPF, SP1: quasi
SPF, SP1: Tambem
130 Derribada: colocada no chão; desmatada. 131 Álacre: alegre; entusiasmado.
185
165
170
175
alguns dias, chegar à fazenda colimada que, para João,
era uma esplêndida instalação; mas para Calisto, que
conheceu a antiga côlonia Dumont e depois muitas e
enormes instalações modernas do mesmo gênero, como
as fazendas do alemão Schmidt e a Santa Gertrudes do
conde Prates, – para mencionarmos as mais
importantes, – a instalação do coronel Paulino não
passava de uma fazendola de classe inferior. Assim
manifestou Calisto ao seu companheiro o seu razoável
modo de pensar. Entretanto João, que já vinha
admirando algumas instalações agrícolas mais ou
menos do porte desta, quais avistou de relance da
estrada que vinha percorrendo, ao ver de mais perto e
detidamente a do coronel Paulino, como que se sentiu
deslumbrado.
SPF, SP1: á fazenda; collimada
SPF, SP1: installação; Calixto
SPF, SP1: colonia
SPF, SP1: installações; genero
SPF, SP1: installação
SPF, SP1: Calixto; razoavel
SPF, SP1: installações; agricolas
SPF, SP1: d’esta; quaes
180
185
–É aqui o nosso paradeiro, senhor João.
Conheço muitas fazendas mais opulentas; mas prefiro
esta porque o coronel Paulino, para quem tenho
trabalhado muitas vezes e que me conhece de sobra, é
um homem bom, honesto e tratável com quem podemos
conversar diretamente. É um pouco esquisito e
desagrada à primeira vista; mas depois se conhece que
se trata de gente correta e agradável.
SPF, SP1: tratavel
SPF, SP1: directamente; exquisito
SPF, SP1: á primeeira; conhece-se
SPF, SP1: correcta; agradavel
186
190
195
200
205
Da estrada avistava-se em meia encosta de uma
extensa colina a linda residência do coronel, uma alta
construção feita com arte, cuja frente era ornada de
varandas e pavilhões simetricamente colocados a um e
outro lado do vestíbulo erguido no centro e que
constava de um largo patim132 defendido na frente por
uma balaustrada artística e aberto pelos lados para
escadas com corrimões. O patim e os dois pavilhões das
extremidades da linha da frente eram salientes e
ornados de belas pilastras que iam ao teto, e o conjunto
sobranceava um largo pátio plantado com arte de
arbustos e árvores de ornato, abaixo do qual estendia-se
o terreiro de seca do café. Viam-se, além da residência,
fileiras de galpões e casas modestas para alojamento
dos trabalhadores bem como as casas das máquinas e
depósitos. Depois de tudo isso Calisto mostrar e
explicar a João, tomaram ambos o caminho da casa,
mas, ao aproximar-se dela, aquele deixou João à espera
e foi ao coronel, que avistou no patim, assentado em
uma cadeira, a fumar cigarros e contemplar o cair da
tarde.
SPF, SP1: collina; residencia
SPF, SP1: construcção
SPF, SP1: symetricamente; collocados
SPF, SP1: vestibullo
SPF, SP1: artistica
SPF, SP1: dous
SPF, SP1: bellas; tecto; conjucto
SPF, SP1: pateo
SPF, SP1: arvores
SPF, SP1: sécca; alem; residencia
SPF, SP1: machinas
SPF, SP1: depositos; Calixto
SPF, SP1: approximar-se d’ella;
aquelle; á espera
SPF, SP1: cahir
210
A colina onde se achava situada aquela fazenda
era um dos contrafortes que rematam para Este as
vertentes que derramam para o Moji-Guaçu, à sua
SPF, SP1: collina; aquella
SPF, SP1: E’ste
132 Patim: pequeno patamar.
187
215
vertentes que derramam para o Moji-Guaçu, à sua
esquerda. Do ponto onde João ficou à espera de Calisto
avistavam-se as alturas que demoram entre São Carlos e
Araraquara, confundido o seu azul diáfano com o do
firmamento. Destas maiores alturas, que chegam a mais
de 2000 metros, o solo vai declinando para Araraquara.
Jabuticabal e Bebedouro até encontrar, em rumo de
Noroeste, as planícies de Barretos, já na larga bacia do
rio Grande ou Paraná.
SPF, SP1: Mogy-Guassú; á sua
SPF, SP1: á espera; Calixto
SPF, SP1: S. Carlos
SPF, SP1: diaphano
SPF, SP1: vae
SPF, SP1: Noroéste; planicies; Barretos
220
225
Em plano mais próximo João via o ondulado do
solo e as colinas listradas de filas de cafeeiros, traçadas
a capricho, mas perto, destacados, patenteando o viço e
o lustroso verdor das frondes, mas em distância
confundindo-se sem solução de continuidade e, lá para
os confins do horizonte, tomando a aparência de telas
afustuadas. Aqui e ali via largos traços de mata intensa,
sobrepujando-os gigantescos jequitibás como os reis da
floresta e êmulos das soberbas araucárias. Via pelas
baixadas lindos canaviais e arrozais e pelas encostas
extensas culturas forragíneas.
SPF, SP1: proximo
SPF, SP1: collinas; caféeiros
SPF, SP1: distancia
SPF, SP1: horisonte; apparencia
SPF, SP1: alli; matta
SPF, SP1: emulos; araucarias
SPF, SP1: canaviaes; arrozaes
SPF, SP1: forragineas
230
Todo esse conjunto risonho, virente como a
esperança, que se estendia por todos os lados a perder
de vista, entrançado aqui e ali de fios dágua que
cintilavam à luz do sol poente, absorvia o espírito do
SPF, SP1: conjeuncto
SPF, SP1: alli; d’agua
SPF, SP1: scintillavam; á luz; espirito
188
235
240
245
250
255
nóvel sampauleiro, que o contemplava perplexo. O
ruído da natureza que ia entrar em repouso, quando as
aves, feito o repasto diurno, procuravam asilo na
espessura das frondes, despedindo-se alacremente do
dia com os cantos, trilos e chilrear variadíssimos; o
rumor das águas escachoantes de uma torrente próxima,
o vozear dos operários ocupados no beneficiamento dos
produtos da farta lavoura, e todos os mais sons que se
entrecruzavam nos arredores, eram para João uma
estranha harmonia que, pouco a pouco, lhe despertava a
saudade da terra querida que deixou, e dos seus
queridos que lá ficaram. Então como o seu espírito,
voando, vencia a enorme distância que o separava da
sua vivenda modesta. Parecia-lhe ouvir Maria, a sua
querida, falando-lhe com aquela meiga voz que para ele
era uma deliciosa melodia; o papaguear da sua
Corinazinha; ver o seu Joãozinho a sorrir-lhe
estendendo-lhe os bracinhos rosados, e ouvir a
gargalhada alegre do seu velho professor. Parecia-lhe
tê-los ao pé de si, abraçá-los, sentindo aquele afeto
sincero que impregnava o seu coração saudoso e bem
formado. Estava nesta funda abstração, quando foi
desperto por Calisto que só conseguiu acordá-lo depois
de chamá-lo mais de uma vez e tocá-lo com a sua mão.
SPF, SP1: novel
SPF, SP1: ruido
SPF, SP1: asylo
SPF, SP1: variadissimos
SPF, SP1: águas; proxima
SPF, SP1: operarios; occupados
SPF, SP1: productos
SPF, SP1: extranha
SPF, SP1: espirito
SPF, SP1: distancia
SPF, SP1: aquella; elle
SPF, SP1: tel-os; abraçal-os(,); aquelle;
affecto
SPF, SP1: n’esta
SPF, SP1: abstracção; Calixto
SPF, SP1: accoral-o; camal-o
SPF, SP1: tocal-o
189
–Já estive com o coronel, senhor João. – disse
Calisto. – Com ele conversei, e deseja vê-lo.
SPF, SP1: Calixto; elle; vel-o
260
265
E seguiram ambos para a casa da fazenda. O
Coronel viu-os quando se aproximavam, mas não se
mexeu da cadeira, a cavaleiro do pátio, de modo que, se
os dois viajantes se aproximassem muito, não poderiam
vê-lo. Era um homem alto, esgrouviado,133 de fartos
bigodes; mas denunciando saúde e vigor. Calisto
aproximou-se o mais que lhe foi possível e de certa
distância, enquanto o coronel soprava uma baforada de
fumo do cigarro, fez a seu modo a apresentação do
companheiro.
SPF, SP1: approximavam
SPF, SP1: cavalleiro; pateo
SPF, SP1: dous; aproximassem;
muito(,)
SPF, SP1: vel-o
SPF, SP1: saude; Calixto
SPF, SP1: approximou-se; possivel
SPF, SP1: distancia; emquanto
270 –Aqui está o homem, senhor coronel.
–Sim – respondeu o coronel voltando o rosto
pachorrento e, mirando João dos pés à cabeça, depois de
alguma demora, perguntou-lhe: – Está acostumado com
o nosso trabalho?
SPF, SP1: á cabeça
275 –É a primeira vez que venho a São Paulo, senhor
coronel – respondeu João.
SPF, SP1: S. Paulo
–É a primeira vez que vem a São Paulo... mas
em sua terra não se trabalha? O que fazia o senhor
então?
SPF, SP1: S. Paulo
280 –Nasci e vivi trabalhando em lavoura.
133 Esgrouviado: magro e alto de cabelo desgrenhado. Variante de esgrouvinhado.
190
–Nasceu e viveu trabalhando em lavoura. Mas a
lavoura da sua terra não é como a nossa.
–Já sei; estou informado.
285
–Já sabe, está informado. Não bastam, porém,
informações, meu moço. Por cá o trabalho é realizado
com mais método e disciplina do que por lá.
SPF, SP1: porem
SPF, SP1: realisado
SPF, SP1: methodo
–Estou certo disso, senhor coronel.
–Está certo disso.
SPF, SP1: d’isso
SPF, SP1: d’isso.
–O senhor Calisto já me informou tudo. SPF, SP1: sr. Calixto
290 –O senhor Calisto já o informou de tudo. Mas o
senhor Calisto não lhe disse que sou um sujeito
impertinente e aborrecido.
SPF, SP1: sr. Calixto
SPF, SP1: Calixto
–Pelo contrário, senhor coronel, disse-me muito
bem de vossa senhoria.
SPF, SP1: contrario
295 –Pelo contrário, disse-lhe bem de mim. E o
senhor acreditou?
SPF, SP1: contrario
–Certamente, porque o senhor Calisto me
merece confiaça.
SPF, SP1: calixto
300
–Certamente, porque o senhor Calisto lhe
merece confiança. Hoje, meu baianito, a confiança anda
muito barata.
SPF, SP1: Calixto
SPF, SP1: Hoje(,); bahianito
–Não entre homens de bem, senhor coronel.
–Não entre homens de bem. O senhor então é
um homem de bem como o senhor Calisto.
SPF, SP1: Calixto
191
305 –Vossa Senhoria o saberá depois.
–Eu o saberei depois. Como se chama? É
casado?
–João Lopes. Sou casado e tenho dois filhinhos. SPF, SP1: dous
–João Lopes. É casado e tem dois filhinhos. SPF, SP1: dous
310
315
O coronel fazia esse interrogatório com pachorra
como um juiz de instrução, e como que ia ditando à sua
consciência, que o registrava na retentiva. Era um sestro
do coronel, a que talvez se habituasse como funcionário
policial. João já se achava aborrecido com aquele
repetir as suas palavras como eco; mas Calisto fazia-lhe
ver por mímicas que convinha ter paciência, mas de
modo que o coronel Paulino não o visse.
SPF, SP1: interrogatorio
SPF, SP1: instrucção; dictando; á sua
SPF, SP1: consciencia; séstro
SPF, SP1: funccionario
SPF, SP1: aquelle
SPF, SP1: echo; Calixto
SPF, SP1: mimica; paciencia
320
–Senhor coronel – disse por fim Calisto com
certo desplante, – nós estamos muito cansados,
viajamos hoje muitas léguas.
SPF, SP1: Calixto
SPF, SP1: desplante(,); cançados
SPF, SP1: leguas
–Estão muitos cansados, viajaram muitas léguas.
Naturalmente querem descansar.
SPF, SP1: leguas; cançados
SPF, SP1: descançar
–Queremos descansar e pedimos ao senhor
alojamento na colônia.
SPF, SP1: descançar
SPF, SP1: colonia.
325 –Pedem alojamento na colônia. Procurem um
daqueles galpões que você já conhece e lá se aboletem.
Lá mandarei mais tarde o meu encarregado.
SPF, SP1: Colonia
SPF, SP1: d’aquelle
Os dois saudaram o coronel e Calisto levou SPF, SP1: dous; Calixto
192
330
consigo o companheiro. João ia aborrecido com a
pachorra do coronel Paulino.
SPF, SP1: comsigo
–Que coronel esquisito! – dizia João – Põe-se do
alto do seu trono a interrogar e repetir como eco o que
ouve como se fora um príncipe!
SPF, SP1: exquisito
SPF, SP1: throno; echo
SPF, SP1: principe
335
–Mas é um homem bom, senhor João – disse
Calisto.
SPF, SP1: Calixto
–Porém trata a gente em ar de resto. SPF, SP1: Porem
340
345
–Isso é de todos eles, meu amigo; é costume dos
da terra conosco, quando são dinheirosos e
independentes. Ah! Senhor João! Eu conheço outros
fazendeiros que, intratáveis, malcriados e incivis,
metem ódio à gente do nosso pano. Há muitos deles que
são liberais e bondosos, mas que, à primeira vista, nos
desagradam. Conheço o velho Schmidt, para o qual já
trabalhei. É o rei do café; mas ninguém mais tratável e
singelo. Não procuro uma das suas fazendas porque são
tantas que ele não pode diretamente dirigi-las e, quanto
aos seus empregados, nem sempre tratam a gente como
o velho. Este coronel que o senhor viu, é tal qual o
velho Schmidt, com a diferença da exagerada pachorra.
SPF, SP1: elles
SPF, SP1: comnosco
SPF, SP1: intrataveis
SPF, SP1: mettem; odio; á gente;
panno; delles
SPF, SP1: liberaes; á primeira
SPF, SP1: ninguem; tratavel
SPF, SP1: elle; directamente; dirigil-as
SPF, SP1: differencça
350 –Mas porque aquela indiferença e majestade? SPF, SP1: aquella; indifferença;
magestade
–Ah! meu amigo! Aquilo é nada. Tenhamos
paciência e estudemos os homens como eles nos
SPF, SP1: Aquillo
SPF, SP1: paciencia; elles
193
355
360
365
estudam. A culpa da desconfiança que há entre os
paulistas contra nós é dos nossos patrícios que têm
praticado ações indignas que desacreditaram os baianos.
Eu sei do pouco caso que fazem de nós em geral; mas
também sei que, ganhando-se a confiança dos
fazendeiros por meio de uma conduta exemplar, tem-se
tudo quanto se queira. O senhor foi feliz em vir comigo.
O que – não digo por me gabar – influiu para que fosse
logo admitido no trabalho. Levemos tudo com paciência
sem adular, mostrando-nos sempre superiores aos
canalhas e tudo nos correrá bem. Verá. Eu já fui
soldado, cheguei a sargento, nunca adulei a diabo
nenhum e consegui, pela minha paciência e prontidão
em executar tudo quanto me ordenavam, ser elogiado
em ordem do dia.
SPF, SP1: patricios
SPF, SP1: acções; bahianos
SPF, SP1: tambem
SPF, SP1: conducta
SPF, SP1: commigo
SPF, SP1: paciencia
SPF, SP1: paciencia; promptidão
Assim conversando, chegaram os dois
sampauleiros à colônia de imigrantes.
SPF, SP1: dous
SPF, SP1: á colonia; immigranres
X
5
A colônia, como vulgarmente denominam os
imigrantes o agrupamento de acomodações que os
fazendeiros paulistas destinam aos seus trabalhadores,
era, na fazenda do coronel Paulino, um arruamento de
casas modestas e largos galpões, aquelas destinadas a
SPF, SP1: colonia
SPF, SP1: immigrantes;
accommodações
194
casas modestas e largos galpões, aquelas destinadas a
famílias estes ao alojamento de homens solteiros que ali
viviam em comum, às vezes em tal camaradagem que
aquilo tomava a afeição de uma república.
SPF, SP1: aquellas
SPF, SP1: familia; alli
SPF, SP1: commum; ás vezes
SPF, SP1: aquillo; affeicção;
REPUBLICA
10
15
Calisto e João chegaram já sol posto no galpão
por aquele escolhido, justamente quando voltavam do
serviço os trabalhadores da fazenda, cada qual
procurando o cômodo que ocupava, tocando ao
alojamento dos nossos dois companheiros um certo
número deles.
SPF, SP1: Calixto
SPF, SP1: aquelle
SPF, SP1: commodo; occupava
SPF, SP1: dous
SPF, SP1: numero; d’elles
20
25
Logo ao chegarem em frente ao arruamento de
cômodos que lhes eram destinados, antes de se
acomodarem, ouvia-se um rumor contínuo, um vozear
incessante do centro do qual se destacavam palavras,
gargalhadas, juras e diálogos gritados, em todos os
diapasões, em calão brasileiro do norte, em italiano, em
português estropiado pelos estrangeiros, percebendo-se
que mulheres, crianças e varões faziam parte dos
magotes134 que se aproximavam destacados como vagas
de uma torrente.
SPF, SP1: commodos
SPF, SP1: accomodarem; continuo
SPF, SP1: dialogos
SPF, SP1: portuguez; extrangeiros
SPF, SP1: creanças
SPF, SP1: approximavam
O galpão preferido por Calisto já era por ele
conhecido. Era um recinto espaçoso que media cerca de
oitenta metros quadrados de superfície com pavimento
SPF, SP1: Calixto; elle
SPF, SP1: superfície
134 Magote: grande quantidade de pessoas.
195
30
35
40
45
de terra socada, aqui e ali lajeada em pequenos círculos
que serviam de lareira. Fechado ao fundo por paredes
que subiam até os frechais,135 era na frente defendido
por uma meia tapagem de adobes sobre a qual
repousava uma balaustrada tosca que a completava até o
cimo e tendo, bem ao meio, a larga porta que dava
acesso ao interior. O amplo teto de telhas vãs,
sustentado por enormes asnas,136 que se apoiavam sobre
grossas vigas, tinha por suporte potentes esteios
fincados no solo. O dormitório constava de esteiras ao
longo das paredes, acima de cada uma das quais cada
um dos jornaleiros pendurava em tornos grosseiros os
sacos e bornais137 onde guardavam as roupas, e
prateleiras toscas nas quais depositavam diversos outros
objetos. Quando tinham de preparar as suas refeições ou
garantir-se contra o frio quando intenso, reuniam-se em
grupos, aqueles que se acamaradavam, em torno de
lareiras, mesmo os que não tivessem de fazer cozinha,
por terem a bóia por contrato. Muitos deles preferiam
dormir ao pé da lareira.
SPF, SP1: alli; lageada; circulos
SPF, SP1: frechaes
SPF, SP1: accesso
SPF, SP1: tecto
SPF, SP1: supporte
SPF, SP1: dormitorio
SPF, SP1: quaes
SPF, SP1: saccos; bornaes
SPF, SP1: quaes; objectos
SPF, SP1: aquelles
SPF, SP1: boia
SPF, SP1: contracto; d’elles
50
João, a exemplo de Calisto, acomodou-se ao seu
lado junto a uma das lareiras, e já acendiam lume para o
preparo da sua refeição, quando os trabalhadores que ali
SPF, SP1: Calixto; accomodou-se
SPF, SP1: accendiam
135 Frechal: viga de madeira na qual se pregam os barrotes, à beira do telhado. 136 Asna: tesoura. 137 Bornal: saco de pano ou couro, utilizado a tiracolo, para transportar roupas, ferramentas.
196
55
60
65
70
preparo da sua refeição, quando os trabalhadores que ali
se arranchavam entraram de roldão ruidosa e
alacremente. Calisto percebeu entre eles dois baianos já
seus antigos conhecidos e chamou-os a fazerem parte
do seu grupo. Foi um alegrão para os dois ao verem
Calisto, vindo outros também se incorporarem ao
rancho, uns por que já tinham preferência por aquela
lareira, outros por simples curiosidade, fazendo parte
deles um italiano já conhecido ali. As atenções
voltavam-se para os novos vindiços, os baianos
ansiosos por terem notícias da sua terra. Calisto, que já
conhecia os hábitos dos seus patrícios, e, por sua vez,
desejava informar-se do estado dos jornais e outra
coisas, deu logo conta de sua odisséia e do que se
passava nos sertões da Bahia, havendo permuta de
notícias e informes que muito importavam a uns e
outros, estabelecendo-se logo familiaridade entre todos
que, em grupo, circulavam a lareira. João ficou logo
conhecido como bom companheiro e recebeu
comprimentos até do italiano, que já falava alguma
coisa da nossa língua entressachando-a de maior
número de palavras e frases do calão napolitano.
SPF, SP1: alli
SPF, SP1: Calixto; elles; dous;
bahianos
SPF, SP1: dous
SPF, SP1: Calixto; tambem;
encorporarem-se (Emendou-se
ênclise para próclise.);
preferencia; aquella
SPF, SP1: d’elles; alli; attenções
SPF, SP1: bahianos
SPF, SP1: noticias; Calixto
SPF, SP1: habitos; patricios
SPF, SP1: jornaes
SPF, SP1: cousas; odyséa
SPF, SP1: noticias
SPF, SP1: algumma
SPF, SP1: cousa; língua; numero
SPF, SP1: phases
Mais tarde entrou o encarregado do coronel
Paulino acompanhado de pessoas que conduziam a
197
75
Paulino acompanhado de pessoas que conduziam a
pitança138 que devia ser distribuída com aqueles
jornaleiros que a ela tinha direito por contrato.
SPF, SP1: distribuida; aquelles
SPF, SP1: ella; contracto
–O senhor Melquíades! – exclamou Calisto ao
ver o encarregado. –Folgo muito por ainda ser o
encarregado do patrão.
SPF, SP1: Melchiades; Calixto
80 –O senhor Calisto! – respondeu Melquíades. –
Bons olhos os vejam. Eu já sabia pelo coronel que era
dos nossos. Temos que conversar; mas espere que eu
conclua cá o meu serviço.
SPF, SP1: Calixto; Melchiades
85
Feita a distribuição das rações naquele galpão,
Melquíades foi fazê-la nos outros, depois do que voltou
ao rancho de Calisto.
SPF, SP1: n’aquelle
SPF, SP1: melchiades; fazel-a
SPF, SP1: Calixto
90
–Soube que trouxe consigo um companheiro –
disse o encarregado a Calisto. – Já sei que se trata de
boa gente, porque o amigo nunca nos trouxe senão ouro
da lei.
SPF, SP1: comsigo
SPF, SP1: Calixto
SPF, SP1: sinão
–É certo. –E fez a apresentação do seu
companheiro.
–É o senhor João Lopes? – disse Melquíades
dirigindo-se a João.
SPF, SP1: Melchiades
95 –Sou, sim senhor.
–Já sei que é casado, que tem dois filhinhos e
que é a primeira vez que vem a São Paulo. Em que
SPF, SP1: dous
138 Pitança: ração diária; pensão.
198
que é a primeira vez que vem a São Paulo. Em que
serviço quer o senhor ocupar-se?
SPF, SP1: S. Paulo
SPF, SP1: occupar-se
100
–Em qualquer trabalho de lavoura. Sei roçar,
derribar, plantar, capinar...
–Bem; mas nós por cá temos trabalho que na
Bahia não se usa, como apanhar café, derriçar139, arruar
e... tutti quanti – concluiu Melquíades já um pouco
enfronhado na língua ausônica.
SPF, SP1: TUTTI QUANTI
SPF, SP1: Melchiades
SPF, SP1: lingua ausonica
105 –De tudo isso me acho informado – observou
João – e estou disposto a pôr em prática.
SPF, SP1: acho-me
SPF, SP1: pratica
–Quer trabalhar a seco ou a molhado? SPF, SP1: secco
–Quanto a isto, guio-me pelo senhor Calisto. SPF, SP1: Calixto
–Guia-se muito bem – obtemperou Melquíades. SPF, SP1: Melchiades
110 –Preferimos trabalhar a molhado, senhor
Melquíades – disse Calisto.
SPF, SP1: melchiades; Calixto
115
–A bóia, como os senhores chamam, não é um
jantar ou almoço como talvez o senhor Lopes esteja
acostumado a tomar; mas garanto que lhe é asseada e
satisfatória.
SPF, SP1: satisfactoria
–De tudo já estou informado pelo meu
companheiro – disse João.
–Também informo aos senhores que o coronel
está disposto a dar um grande serviço de empreitada,
SPF, SP1: Tambem
139 Derriçar: tirar os frutos dos galhos do cafeeiro, correndo a mão de cima para baixo e deixando-os cair no cesto.
199
120 porque talvez prefiram este contrato. SPF, SP1: contracto
–É coisa para já, senhor Melquíades? – inquiriu
Calisto.
SPF, SP1: cousa; Melchiades;
inqueriu
SPF, SP1: Calixto
–Há tempo para pensarem e tomarem as suas
medidas.
125 –Nesse caso, iremos trabalhando a jornal, e
depois, conforme...
SPF, SP1: N’esse
130
–Estamos entendidos quanto a isso. –E
Melquíades concluiu acertando com os novos
trabalhadores a respeito ao jornal vigente e qualidade do
serviço. Quanto a horários e outras circunstâncias não
lhe era preciso entrar em combinações, porque Calisto
já tinha conhecimento disso até as minudências140 e
tudo informaria ao seu companheiro.
SPF, SP1: á isso (Emendou-se.)
SPF, SP1: Melchiades
SPF, SP1: horarios;
circumstancias
SPF, SP1: Calixto
SPF, SP1: d’’isso; ás minudencias
(Emendou-se.)
135
–Que tal achou o senhor Melquíades? –
perguntou Calisto ao mancebo ao sair o encarregado.
SPF, SP1: Melchiades
SPF, SP1: Calixto; sahir
–Não pode ser melhor a impressão que me
deixou.
140
Os outros jornaleiros conversavam entre si nos
diversos grupos, logo feita a refeição. João, apesar de
tudo o quanto lhe ia satisfazendo o desejo de alcançar
meios seguros de ganhar o preciso para melhorar as
suas finanças e levar meios que lhe facilitassem na
Bahia o desenvolvimento da sua agricultura e a
SPF, SP1: apezar
140 Minudência: pormenor, miudeza.
200
145
150
155
160
Bahia o desenvolvimento da sua agricultura e a
comodidade daqueles que lhe eram tão queridos, sentia-
se deslocado naquele meio estranho. Tendo, desde
criança, gozado de uma abastança em sua terra, nunca
passou pela sua idéia o pensamento de ver-se reduzido
à condição de jornaleiro, de viver misturado com toda a
sorte de gente num comunismo que lhe parecia perigoso
e degradante. Achava-se agora rebaixado à condição de
reles camarada, a serviço de um patrão, como servo que
devia respeitar exageradamente até os prepostos dele,
para que não fosse expulso e arrastado a estado ainda
mais desprezível; para que não perdesse o seu crédito e
a sua honra não fosse nodoada. Era-lhe preciso
confraternizar com todos os seus companheiros de
trabalho, sem escolha, sem procurar saber da sua
condição, da sua índole, da sua educação. Era este o
único e mais seguro meio de chegar aos seus fins;
melhorar a sorte de sua querida esposa e de seus
inocentes filhinhos.
SPF, SP1: commodidade;
d’aquelles
SPF, SP1: n’aquelle; extranho
SPF, SP1: creança; gosado
SPF, SP1: idéa
SPF, SP1: á condição; mixturado
SPF, SP1: n’um; communismo
SPF, SP1: á condição
SPF, SP1: réles
SPF, SP1: d’elle
SPF, SP1: desprezivel; credito
SPF, SP1: indole
SPF, SP1: unico
SPF, SP1: innocentes
165
Então lhe vinham ao pensamento aqueles entes
queridos que se achavam tão longe, afastados do seu
imediato carinho por uma distância que lhe parecia
incomensurável. O que pensava, o que fazia naquele
momento aquela a quem uniu para sempre o seu
SPF, SP1: vinham-lhe; aquelles
SPF, SP1: immediato; distancia
SPF, SP1: incommensuravel;
n’aquelle
201
170
185
190
momento aquela a quem uniu para sempre o seu
destino? Sabia-a de ânimo varonil; mas também
avaliava quanta tristeza invadia o seu espírito; quanta
dor apuava141 aquele coração tão terno e afetuoso. E,
através do espaço mediante entre esses dois espíritos
que, desde a infância, se concertavam nos mesmos
sentimentos, na mesma vontade, no mesmo afeto –
espaço intransponível à pesada indúvia carnal – parecia
fundirem-se em um só. Caindo em funda abstração, o
pobre mancebo tentava, por um enorme esforço de
concentração – parecendo-lhe que o conseguia – ver o
que se passava no seu lar naquele momento. Calisto,
compreendendo-o, porque já passara por situação como
a do seu companheiro, fitava-o compadecido como
quem vela o sono reparador de pessoa querida.
SPF, SP1: aquella
SPF, SP1: animo; tambem
SPF, SP1: espirito
SPF, SP1: aquelle; affectuoso
SPF, SP1: atravéz; dous; espiritos
SPF, SP1: infancia
SPF, SP1: affecto
SPF, SP1: intransponivel; á
pesada;
SPF, SP1: Cahindo; abstracção
SPF, SP1: concentracção,
SPF, SP1: n’aquelle; Calixto
SPF, SP1: comprehendeu-o
SPF, SP1: somno
195
Quando João mais imerso achava-se naquele
sonho, ouviu o canto suave e melodioso de uma voz
impregnada de ternura nostálgica, que lhe parecia vir
dos céus, como se fora um acusmata142 que o
acalentasse e somente a ele se dirigisse. As palavras do
canto eram-lhe incompreensíveis; mas tão suave era a
melodia; tal encanto emprestava-lhe a voz do cantor,
quase infantil, límpida e argentina; tal ritmo, e a toada,
SPF, SP1: immerso; n’aquelle
SPF, SP1: nostálgica
SPF, SP1: si; acúsmata
SPF, SP1: sómente; elle
SPF, SP1: incomprehensiveis
SPF, SP1: quasi
SPF, SP1: limpida; rythimo
141 Apuar: torturar. 142 Acusmata: alucinação auditiva.
202
200
que se assemelhava ao balançar sereno sobre águas
levemente agitadas pela brisa; que somente a música,
como romanza, bastava para impressionar-lhe
agradavelmente os sentidos e avultar docemente a
saudade da sua terra e dos entes queridos que lá deixara.
SPF, SP1: o balanço (Emendou-se
conforme regência.); aguas
SPF, SP1: sómente; musica
SPF, SP1: ROMANZA
SP1: la
205
210
215
220
Era o italiano, um mancebo imberbe e
simpático, que cantava. A sua voz lembrava pelo timbre
o tanger de sinos de cristal. Denunciava-se, a quem
percebesse o seu idioma, pelas leves asperezas do calão,
que em nada alteravam a maviosidade do idioma, filho
do Meio-Dia da Itália e, pelo motivo do canto, genuíno
napolitano, embora natural de Sorrento, o alvo ninho
alcandorado da rocha à beira do abismo, a cavaleiro do
lindo e tranqüilo mar e em frente da penhascosa e
virente Capri que se eleva como encantadora corbelha
de verdura; Sorrento, o encantador miradoiro de onde se
avista o Vesúvio, gigantesco, empenachado de fumo de
dia e à noite coroado por uma chama como se a
Natureza, que foi ali tão pródiga, quisesse dotar o sítio
de um farol eterno e imponente, cintado de jardins e
ridentes aldeias. Por todos os lados bosques de
limoeiros, romeiras e olivedos; por todos os lados
penhascos abruptos emergindo da verdura, vinhedo,
brilhantes lavas cristalizadas rebrilhando em cambiantes
SPF, SP1: sympathico
SPF, SP1: crystal
SPF, SP1: Meio dia; Italia
SPF, SP1: genuino
SPF, SP1: á beira; abysmo;
cavalleiro
SPF, SP1: tranquillo
SPF, SP1: Vesuvio
SPF, SP1: empennachado; á noite
SPF, SP1: chamma; si; alli
SPF, SP1: prodiga; quizesse; sitio;
pharol
SPF, SP1: crystalizadas; á luz
203
225
à luz do sol. E o mar sereno, como vasto espelho azul-
claro, quase opalino, refletindo os tufos de verduras que
emergem das ilhotas, as velas dos barcos de pesca, o
casario das cidades, as colinas, os templos e a rudeza
natural do cenário terrestre.
SPF, SP1: quasi; reflectindo
SPF, SP1: collinas
SPF, SP1: scenario
230
Às últimas notas do canto João foi despertado do
seu enlevo por uma voz feminina que, apesar de meiga
e argentina, contrastava com a melodia de romanza.
SPF, SP1: Ás ultimas
SPF, SP1: apezar
SPF, SP1: ROMANZA
–Ah! Mio Genarino! – dizia – Diacino de
cantore incantevole!
SPF, SP1: AH! MIO
GENARINO! DIACINO DE
CANTARE INCANTEVOLE!
–Zito, grazioza bambina! Il diavolettino tenta! –
disse Genaro sorrindo.
SPF, SP1: ZITO, GRAZIOZA
BAMBINA! IL DIAVOLETTINO
TENTE!
235
240
Por alguns momentos os dois entretiveram em
seu idioma um interessante diálogo que revelava
recíproca inclinação amorosa; mas nenhum dos
circunstantes entedia o derriço pelo que ouvia; mas os
esgares eram tão expressivos que João e Calisto bem
percebiam do que se tratava no colóquio.
Repentinamente uma voz de mulher que partia da
casinhola vizinha interrompeu os dois namorados.
SPF, SP1: dous
SPF, SP1: dialogo
SPF, SP1: reciproca
SPF, SP1: circumstantes
SPF, SP1: Calixto
SPF, SP1: colloquio
SPF, SP1: visinha
SPF, SP1: dous
–Giuditta! Civetta svergognata – gritou a voz. SPF, SP1: GIUDITTA! CIVETTA
SVERGOGNATA
–Per la madona! È mamma! SPF, SP1: PER LA MADONA! E
MAMMA!
245
E tocando nos lábios os dedos em feixe,
transmitiu de longe, a sorrir, um beijo a seu Genarino, e
SPF, SP1: labios
SPF, SP1: transmittiu
204
250
fugiu dizendo: “addio!” repetidas vezes. João
escandalizado, estranhou a desenvoltura da rapariga;
mas Calisto sorria fazendo-lhe ver que aquilo era
comum naquela gente e não afetava os créditos da
donzela. Os pais somente reclamam, dizia, quando o
casamento é desvantajoso quanto ao interesse
econômico e financeiro.
SPF, SP1: “ADDIO”
SPF, SP1: extranhou
SPF, SP1: Calixto; aquillo
SPF, SP1: commum; n’aquella;
affectava; creditos
SPF, SP1: donzella; paes
SPF, SP1: economico
255
260
– “Cantam na primavera as cigarras – continuou
Calisto – e brotam as flores; chega o verão, perdem o
brilho, despontam os frutos; o outono tudo amadurece;
o inverno tudo desfaz.” Quando estavamos acampados
nas imediações de Itararé, assim dizia um velho e
pachorrento oficial do meu batalhão, ao ver um moço
alemão atrair com seu canto uma sua linda patrícia com
quem namorava. Isso se dava perto do acampamento
num pequeno arraial de mercadores que por ali se
formou.
SPF, SP1: Calixto
SPF, SP1: fructos
SPF, SP1: immediações
SPF, SP1: official
SPF, SP1: allemão; attrahir;
patricia
SPF, SP1: dava-se (Emendou-se
ênclise para próclise.)
SPF, SP1: n’um; alli
265
João achou espírito no que dizia o velho militar,
vindo-lhe à memória sua querida Maria e seus filhinhos,
que considerava o florejar da sua existência.
SPF, SP1: espirito
SPF, SP1: á memoria
SPF, SP1: existencia.
205
XI
5
10
15
No dia seguinte João e Calisto achavam-se
colocados na fazenda como jornaleiros; mas aquele,
esperançado de mais tarde tomar uma empreitada
vantajosa, de parceria com seu companheiro, que dia a
dia mais se revelava judicioso, prático e bom e leal
amigo digno de sua inteira confiança. Embora o nosso
herói, pelas informações que Calisto lhe dera
detidamente, já conhecesse bem os costumes adotados
nas fazendas, nem por isso deixou de surpreender-se ao
ver o formigueiro de trabalhadores de ambos os sexos
que enchia as ruas de cafeeiros que se estendiam a
perder de vista fazendo a colheita do fruto, que já se
achava em meio, ou derriçando as plantas já despidas
dele. Aos dois novos jornaleiros couberam outros
trabalhos que não a apanha143.
SPF, SP1: Calixto
SPF, SP1: collocados; aquelle(,)
SPF, SP1: pratico
SPF, SP1: heróe; Calixto
SPF, SP1: adoptados
SPF, SP1: surprehender-se
SPF, SP1: caféeiros
SPF, SP1: fructo
SPF, SP1: d’elle; dous
SPF, SP1: APANHA.
20
Por todo aquele oceano de verdura, estriado em
toda a extensão de verdadeiras avenidas
caprichosamente traçadas em plano levemente inclinado
e retas impecáveis, via-se e ouvia-se um movimento e
burburinho constantes, mais ou menos distintos
conforme a distância do lugar onde se davam. Estas
manifestações de vida e progresso estimulavam os
SPF, SP1: aquelle
SPF, SP1: rectas; impeccaveis
SPF, SP1: distinctos
SPF, SP1: distancia; logar
143 Apanha: ato de colher os frutos da lavoura; colheita.
206
25
trabalhadores que azafamados, em porfia, procuravam
vencer-se reciprocamente no desempenho do que estava
a seu cargo realizarem.
SPF, SP1: realisarem
30
Como os exércitos em ação comunicam-se o
valor entre todos os combatentes, qual mais inusitado
pelo entusiasmo comum e esperança de colher vitória;
assim, nesse ajuntamento de operários, os mais
diligentes emprestam aos mais fracos e tardigrados o
que de um para outros sobra em atividade, força e
operosidade.
SPF, SP1: exercitos; acção;
communicam-se
SPF, SP1: enthusiasmo; commum;
Victoria
SPF, SP1: n’esse; operarios
SPF, SP1: actividade
35
40
Nas lutas cruentas o empenho é de morte e
destruição; nas do trabalho é de vida e construção.
Naquelas nem sempre há nobreza; nestas o empenho é
sempre nobre, digno e honesto. Naquelas é o solo
ensopado de sangue e de lágrimas; nestas o suor do
pacífico moirejar umedece a gleba como uma benção. A
guerra tala os campos cultivados, dá lugar ao terror, ao
desespero, à miséria; o trabalho pacífico cobre-o do
verdor da esperança, da alegria poética, da riqueza e
prosperidade.
SPF, SP1: luctas
SPF, SP1: construcção
SPF, SP1: N’aquellas; n’estas
SPF, SP1: N’aquellas
SPF, SP1: lagrimas; n’estas
SPF, SP1: pacifico; humidece
SPF, SP1: á miseria; pacifico
SPF, SP1: poetica
45
João sentiu-se animado, mesmo distraído das
amarguras da saudade, fortalecido na confiança do
futuro e alegre com a esperança de colher proveito da
humilde e penosa condição a que se submeteu por amor
SPF, SP1: destrahido
SPF, SP1: submetteu
207
50
55
dos seus queridos que lá deixara tão longe. Lembrando-
se de sua esposa e filhinhos, já experimentava algum
contentamento antecipado, prevendo como certo o
regozijo que experimentara quando, de regresso ao seu
lar, levasse, a entes a quem tanto amava e por quem se
sacrificava, com a sua presença, meios de subsistência,
a tranqüilidade, a independência. Todas às más
eventualidades que, na calma, lhe afligiam o espírito,
esvairam-se das suas cogitações para deixar-lhe uma
confiança radicada que se estendia pelo futuro em fora
como um clarão que se projeta do presente.
SP1: la
SPF, SP1: regosijo
SPF, SP1: subsistencia
SPF, SP1: tranquillidade;
independencia; ás más
SPF, SP1: affligiam; espirito
SPF, SP1: esvahiram-se
SPF, SP1: extendia
SPF, SP1: projecta
60
65
Não há espírito, por mais criterioso e refletido
que seja, que em certos momentos da vida, não
experimente como João essas antecipadas alegrias. Essa
faculdade, que Deus nos concedeu carinhoso e paternal,
é um forte incitativo que nos impele aos mais difíceis e
custosos empreendimentos. Não fora ela, o progresso
humano ficaria paralisado, a humanidade cairia em uma
seqüência de incalculáveis prejuízos e não avançaria um
passo em busca das conquistas que a têm elevado ao
surpreendente e assombroso progresso que
presenciamos nos tempos modernos.
SPF, SP1: espirito; reflectido
SPF, SP1: impelle; difficeis
SPF, SP1: emprehendimentos; ella
SPF, SP1: paralysado
SPF, SP1: cahiria; incalculáveis;
prejuizos
SPF, SP1: surprehendente
70
Por mais de dois meses João, trabalhando a
jornal, só se preocupava com seu labor afanoso,
SPF, SP1: dous; mezes
SPF, SP1: preoccupava
208
75
80
discreto, bom amigo de todos, aceitando, sem a menor
objeção, todo e qualquer serviço que lhe fosse
determinado. Era o primeiro a erguer-se do leito rude,
ao ouvir o sinal da sineta, sem temer o frio e as
asperezas da intempérie, e a seguir para o seu moirejar
diurno. Aos domingos raramente saía da fazenda, apesar
de o convidarem a ir com eles a passear, alguns dos
seus companheiros de trabalho, que procuravam os
povoados mais próximos, onde havia diversões e muitos
onde gastavam as férias até o último vintém, voltando
alguns meio embriagados. Calisto, que era regrado e
econômico, era o exemplo que nosso herói seguia.
SPF, SP1: acceitando (,)
SPF, SP1: objecção
SPF, SP1: signal
SPF, SP1: intemperie
SPF, SP1: sahia; apezar de
SPF, SP1: elles
SPF, SP1: proximos
SPF, SP1: ferias; ultimo; vintem
SPF, SP1: Calixto
SPF, SP1: economico; heróe
85
90
O encarregado do coronel Paulino, que era um
sujeito perspicaz, notava a conduta regular de João,
convencendo-se por fim que Calisto lhe trouxera ouro
de lei, como dissera a princípio. A seriedade de João o
seu afã no trabalho, a sua solicitude em desempenhar –
e desempenhar bem, – todo e qualquer trabalho que lhe
fosse cometido, muito acreditaram o mancebo no
conceito de Melquíades, que, admirado da sua exação
no cumprimento dos seus deveres, teve-o como a pérola
dos seus trabalhadores e considerou-o digno de inteira
confiança, o que fez ver ao coronel.
SPF, SP1: conducta
SPF, SP1: Calixto
SPF, SP1: principio
SPF, SP1: afan
SPF, SP1: commettido
SPF, SP1: Melchiades; exacção
SPF, SP1: perola
95
Obrigado a uma economia restrita, João, até o SPF, SP1: restricta
209
seu vestuário de trabalho, que já se achava bastante
estragado, lavava ele próprio, remendava e consertava
nos dias de descanso.
SPF, SP1: vestuario
SPF, SP1: elle; proprio
100
Desconfiado uma feita que Calisto reparava-o a
miúde e talvez o tomasse por um avarento repugnante,
foi franco com seu amigo, que já o era até à intimidade,
e referiu-lhe as tristes circunstâncias que o obrigaram a
deixar a sua família, e quanto lhe importava solver os
seus compromissos para ser livre.
SPF, SP1: Calixto
SPF, SP1: meude
SPF, SP1: á intimidade
SPF, SP1: circumstancias
SPF, SP1: familia
105 Calisto abraçou-o com afeto dizendo-lhe: SPF, SP1:Calixto; afecto
110
–Até nisso, amigo há semelhança na nossa
situação. Se bem que eu não fosse casado, nem tivesse
filhos, vim aqui forçado por circunstâncias iguais à sua.
É preciso, para realizarmos o que desejamos, que
tomemos uma empreitada. O Melquíades já me falou de
novo sobre o projeto do coronel, e creio que este não
demorará em propô-la. Se quiser, podemos nós
contratá-la. Isso de jornais não nos aproveita como em
trabalho de avanço.
SPF, SP1: n’isso
SP1: Sibem
SPF, SP1: filhos(,);
circumstancias; eguaes; á sua
SPF, SP1: realisarmos
SPF, SP1: Melchiades
SPF, SP1: projecto
SPF, SP1: propol-a; Si; quizer
SPF, SP1: contractal-a; jornaes
115 –Se quero! Autorizo-o a contratar para nós
ambos.
SPF, SP1: Si; auctorizo-o;
contractar
Dias depois Calisto conversou com Melquíades
sobre o que lhe dissera sobre o projeto do coronel
Paulino e ficou ciente de que estava de pé a idéia da
SPF, SP1: Calixto; Melchiades
SPF, SP1: projecto
SPF, SP1: sciente; idéa
210
120
125
empreitada, que consistia no desbravamento de muitos
alqueires de terreno ainda vestido de floresta intonsa e
pujante, no qual queria o coronel formar um cafezal em
continuação do que já possuía. Calisto, aproveitando um
domingo foi em companhia de João visitar e examinar a
mata a derribar, tudo mostrou e explicou o companheiro
e, como mais prático e entendido, calculou o valor da
empreitada.
SPF, SP1: FORMAR
SPF, SP1: Calixto
SPF, SP1: matta
SPF, SP1: pratico
130
135
140
Dias depois foi combinado o contrato, discutido
o caso com o coronel, que procurava avaliar em menos
os cálculos feitos por Calisto; mas este, que já calculava
o regatear144 do fazendeiro, havia dado uma demasia na
importância a pedir, mesmo que havia feito a avaliação
a olho aproximadamente. Depois da discussão,
acordaram as partes contratantes. Os empreiteiros
começariam o trabalho três meses depois, e obrigavam-
se a dar o cafezal pronto em três anos, sendo
ressalvados casos imprevistos que não fossem
ocasionados pelos empreiteiros. O coronel financiaria o
dinheiro preciso para as primeiras despesas com
ferramentas e aquisições de operários em número
suficiente, pagaria por prestações a importância da
empreitada à medida que fosse sendo realizado o
trabalho, levando-se em favor dos empreiteiros os
SPF, SP1: contracto
SPF, SP1: coronel (,)
SPF, SP1: calculos; Calixto;
este(,)
SPF, SP1: importancia
SPF, SP1: approximadamente
SPF, SP1: accordaram;
contractantes
SPF, SP1: tres; mezes
SPF, SP1: prompto; tres; annos
SPF, SP1: occasionados
SPF, SP1: acquisições; operarios;
numero
SPF, SP1: sufficiente;
imoportancia
SPF, SP1: á medida; realisado
144 Regatear: questionar acerca do preço de, para comprar mais barato; pechinchar.
211
145
150
155
trabalho, levando-se em favor dos empreiteiros os
prejuízos da plantação motivados pela intempérie, mas
ficando sempre parte reservada para garantia ou caução.
Afora a roçada, derribada e outros trabalhos
preliminares, o que tudo era calculado à parte, os
cafeeiros eram pagos por unidade. Os empreiteiros
tinham direito a um pequeno trato de terreno para sua
instalação provisória até o final do trabalho, feita a
roçagem dele por sua conta, podendo edificar o rancho,
acomodação de animais e engorda de cevados e
galináceos, e outras dependências; e podiam fazer para
si plantação de cereais, horta, etc., mesmo em todo
terreno destinado ao cafezal, contanto que esse não
fosse prejudicado no seu desenvolvimento.
SPF, SP1: prejuizos; intemperie
SPF, SP1: á parte
SPF, SP1: caféeiros
SPF, SP1: tacto
SPF, SP1: installação; provisoria
SPF, SP1: d’elle
SPF, SP1: accomodação; animaes
SPF, SP1: gallinaceos;
dependencias
SPF, SP1: cereaes
SPF, SP1: cafesal; comtanto
160
Tudo assim assentado, entrou Calisto a
arrebanhar145 trabalhadores baianos, entre os que já
estavam em São Paulo e escrevendo para a Bahia a
conhecidos seus que desejassem trabalhar ali mediante
bons jornais que lhe garantia.
SPF, SP1: Calixto
SPF, SP1: bahianos
SPF, SP1: S. Paulo
SPF, SP1: alli
SPF, SP1: jornaes
O que é certo é que no fim de três meses
assinados no contrato, meteram os empreiteiros mãos à
obra. João e Calisto à frente de um exército de
trabalhadores, que foram divididos em turmas sobre a
direção de escolhidos e tiveram as suas tarefas
SPF, SP1: tres; mezes
SPF, SP1: assignados; contracto;
metteram; á obra
SPF, SP1: Calixto; á frente;
exercito
145 Arrebanhar: recolher.
212
165
direção de escolhidos e tiveram as suas tarefas
delimitadas, tanto trabalhavam com afã como
revezavam-se, fazendo uma geral fiscalização.
SPF, SP1: direcção
SPF, SP1: afan
SPF, SP1: faziam (Emendou-se)
170
175
180
Há reais perigos no desbravar aquelas selvas,
como bem sabe a maior parte dos trabalhadores baianos
dos nossos sertões, por isso eram tomadas sérias
precauções no sentido de evitá-los. As picadas dos
insetos venenosos, o morso de uma grande variedade de
serpentes, que, entanto poderiam inocular miasmas
mortíferos ou ocasionar uma instantânea morte, eram
menos temerosos, no entender dos rudes jornaleiros do
que a queda de árvores possantes, mesmo de suas
enormes pernadas, que podiam de um momento para o
outro esmagar um machadeiro menos cauteloso. Daí
serem mais bem remunerados, como incentivo, os
jornaleiros que se ocupavam com a roçagem e
derribadas.
SPF, SP1: reaes; aquellas
SPF, SP1: bahianos
SPF, SP1: serias
SPF, SP1: evital-os
SPF, SP1: insectos
SPF, SP1: mortiferos; occasionar;
intantanea
SPF, SP1: arvores
SPF, SP1: D’ahi
SPF, SP1: occupavam
185
Quanto às feras, que deviam existir em grande
cópia naquelas florestas quando das suas primitivas
explorações, já eram raras naquele trecho, mais ou
menos afugentadas pelos desbravamento e culturas
realizadas nos arredores. Entretanto, não deixavam de
estar atentos os trabalhadores contra aquelas que por ali
pudessem aparecer, armados e munidos para o que
SPF, SP1: ás féras
SPF, SP1: copia; n’aquellas
SPF, SP1: n’aquelle
SPF, SP1: realisadas; Entretanto
(,)
SPF, SP1: attentos; aquellas; alli
SPF, SP1: podessem; apparecer
213
190
desse e viesse. A caça, apesar de esquiva e atemorizada
pelo estrépito do trabalho, não raro aparecia para o
proveito e regalo daquela gente nas horas de descanso.
SPF, SP1: désse; apezar
SPF, SP1: apparencia
SPF, SP1: d’aquella; descanço
195
200
João, como todos os nossos sertanejos desta
região quase toda povoada de carrascos e catingas,
quando viam pela primeira vez aquelas matas soberbas,
achou-se a princípio tomado de surpresa diante daquela
magnificência natural; mas por fim acostumou-se,
afincando-se ao trabalho, sem mais se preocupar com
ela, como os mais experientes trabalhadores. Havia,
porém, trabalhadores baianos das nossas zonas
florestais da Bahia que não se surpreendiam à vista das
matas de São Paulo, que não são mais majestosas do
que as nossas.
SPF, SP1: d’esta
SPF, SP1: quasi
SPF, SP1: aquellas; mattas
SPF, SP1: principio; deante;
surpreza; d’aquella
SPF, SP1: magnificencia; porfim
SPF, SP1: affincando-se;
preoccupar-se (Emendou-se)
SPF, SP1: ella
SPF, SP1: porem; bahianos
SPF, SP1: Bahia, (Emendou-se.);
surprehendiam; á vista
SPF, SP1: mattas; S. Paulo;
magestosas
205
210
Como precaução contra a perigosa queda das
árvores mais possantes, entre as quais o jequitibá era
considerado o rei das florestas, para derribá-las
armavam jiraus146 que as mantinham de pé mesmo
decepadas, depois de despidas de sua galhada. Muitos
desses mejestosos espécimes vegetais eram derribados
por empreitadas depois de feita a roçagem e desbastada
a floresta das árvores de porte menor e de corte mais
fácil.
SPF, SP1: árvores; quaes
SPF, SP1: derribal-as
SPF, SP1: GIRAUS; ás
mantinham (Emendou-se.)
SPF, SP1: especimes; vegetaes
SPF, SP1: arvores
SPF, SP1: facil
146 Jiraus: armação de madeira em forma de estrado ou palanque.
214
215
220
225
Alguns meses depois, em meio da geral
devastação, viam-se ali pilhas enormes de possantes
madeiros que seriam retirados e desde logo conduzidos
para o aproveitamento industrial, para lenha aquelas que
para isso somente serviam, e para as serrarias os que
deviam ser reduzidos a taboas, pranchões ou outras
espécies aplicadas às construções e objetos de
marcenaria ou carpintaria. As queimadas eram feitas
com muita cautela para que se evitassem incêndios
prejudiciais, sendo feitas parcialmente, insuladas por
largos aceiros, e, de preferência, sobre os tocos que
deviam ser destruídos, não convindo para arrancá-los
armarem engenhos apropriados que demorariam o
trabalho e torna-lo-iam mais dispendioso. Em tudo isso
a atividade e experiência de Calisto iam adiante da boa
vontade de João, que não dispensava o seu conselho e
direção
SP1: Alguna (Erro óbvio.); SPF,
SP1: mezes
SPF, SP1: alli
SPF, SP1: aquellas
SPF, SP1: especies; applicadas; ás
construcções; objectos
SPF, SP1: incendios
SPF, SP1: prejudiciaes
SPF, SP1: preferencia; tócos
SPF, SP1: destruidos; arrancal-os
SPF, SP1: tornal-o-iam;
despendioso
SPF, SP1: actividade; experiencia;
Calixto; adeante
SPF, SP1: João (,)
SPF, SP1: direcção
215
QUINTA PARTE SP: Quinta parte (sublinhado)
ABÍLIO EM AÇÃO SP: Abilio em acção; SPF, SP1:
ABILIO; ACÇÃO
I
5
10
João, sempre e desde que lhe foi possível, quer
caminho do exílio, quer de São Paulo, não deixava de
trazer Maria e seu velho mestre informados de tudo
quanto lhe ocorria. Assim, achavam-se as pessoas que
lhe eram tão queridas, cientes de tudo quanto vimos
narrando desde a sua saída do lar. Além disso, fazia
recomendações sobre recomendações respeito os seus
negócios, quer a um quer a outra.
SP, SPF, SP1: possivel
SP, SPF, SP1: exilio; S. Paulo
SP, SPF, SP1: occoria; achavam-se
pessoas (Emendou-se.)
SP, SPF, SP1: scientes
SP, SPF, SP1: sahida; Alem;
d’isso(,)
SP, SPF, SP1: recommendações;
recommendações
SP, SPF, SP1: negocios; a outra
15
20
Quando faltava cerca de um mês para o
vencimento e resgate da terceira letra que se achava
com Abílio, recebeu Serafim o dinheiro preciso para o
pagamento dela e da última, que poderia ser resgatada
com desconto, ficando, portanto, João livre do seu
credor e podendo daí por diante acumular meios que
lhe facilitassem melhorar o futuro de sua família. Se
isso muito contentamento trouxe a Maria, por outro
lado, a notícia de que seu marido teria que prolongar a
sua ausência não deixou de entristecê-la.
SP, SPF, SP1: mes
SP, SPF, SP1: lettra
SP, SPF, SP1: Abilio; Seraphim
SP, SPF, SP1: d’ella; ultima
SP, SPF, SP1: d’ahi; deante;
accumular
SP, SPF, SP1: familia; Si
SP, SPF, SP1: lado (,)
SP, SPF, SP1: noticia
SP, SPF, SP1: ausencia; entristecel-
a
Nunca uma ventura é completa, pensava Maria
considerando que dois anos mais ou menos faltavam
SP, SPF, SP1: dous; annos
216
25
30
35
para que tivesse a dita a ver e abraçar seu querido
esposo. E tinha razão, porque não era somente a
saudade que a afligia. Ausente João, a sua fazenda ia
deteriorando-se a olhos vistos, pois os meeiros não
cuidavam com interesse da conservação dos
tapumes147, e às vezes deixavam de cultivar parte do
terreno; e os poucos animais que o casal possuía não
podiam ser zelados e tratados a tempo e hora como se
fazia mister. Serafim, como prometera, vinha
constantemente ali, e mostrava-se solícito e
prestimoso; mas era tão atarefado nos seus trabalhos
de lavoura, que Maria deixava de procurá-lo
constantemente temendo vexá-lo; só em casos de
maior importância recorria ao seu auxílio e conselho.
SP, SPF, SP1: affligia
SP, SPF, SP1: ás vezes
SP, SPF, SP1: animaes; possuia
SP, SPF, SP1: Seraphim;
promettera; alli
SP, SPF, SP1: solicito
SP, SPF, SP1: procural-o
SP, SPF, SP1: vexal-o; importancia
SP, SPF, SP1: auxilio
40
Serafim, recebida a incumbência de João, logo
no domingo seguinte, procurou Abílio em sua casa
para realizar os pagamentos mesmo antes da data dos
vencimentos; mas, recebido por dona Úrsula,
informou-lhe ela que seu filho havia viajado e
demoraria mais de um mês ausente.
SP, SPF, SP1: Seraphim;
incumbencia; seguinte (,)
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: realisar
SP, SPF, SP1: d. Ursula
SPF, SP1: ella
SP, SPF, SP1: mes
45
–Nesse caso a senhora pode receber o dinheiro
que eu lhe trouxe, passando-me uma ressalva148.
SP, SPF, SP1: N’esse
SP, SPF, SP1: resalva
–Abílio nada me recomendou sobre seus SP, SPF, SP1: Abilio;
recommendou
147 Tapume: vedação provisória de um terreno feita com madeiras ou silvas. 148 Ressalva: documento para garantia de alguém.
217
negócios. SP, SPF, SP1: negocios
50
A nenhuma objeção ou pedido do velho
professor atendeu a velha, chegando a zangar-se com a
insistência dele. Não passou pela idéia de Serafim que
a viagem do filho e a teimosia de sua mãe fossem
calculadas; mas podemos garantir que havia propósito
da parte do mancebo, como passaremos a demonstrar.
SP, SPF, SP1: objeçcão
SP, SPF, SP1: attendeu
SP, SPF, SP1: insistencia; d’elle;
idéa; Seraphim
SP, SPF, SP1: temosia
SP, SPF, SP1: proposito
SP, SPF, SP1: mancebo (,)
55
60
65
70
Desde que João viajou, era empenho de Abílio
saber onde ele pararia em São Paulo e, tomado dessa
idéia, freqüentava quase sempre o correio de Caetité,
logo que calculou terminada a sua viagem. Veio, por
fim, a encontrar na estação postal uma das cartas que o
seu condiscípulo endereçava a Serafim e ofereceu-se
para levá-la, pois o destinatário era seu vizinho, o que
conseguiu. Em casa violou-a de modo que pudesse
fechá-la de novo e ninguém viesse a suspeitar da sua
ação indigna. A letra era-lhe conhecida bastante desde
os tempos escolares, por isso estava certo de ser do
próprio João. Aberta a do professor e lida com
atenção, a curiosidade levou-o a violar e ler a de
Maria. Rejubilando-se porque ficou inteirado do
paradeiro de seu condiscípulo e de tudo quanto lhe
convinha quanto aos seus negócios e esperanças, repôs
as cartas no estado em que estavam e fez a entrega no
SP, SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: elle; S. Paulo; d’essa
SP, SPF, SP1: idéa; frequentava;
quasi
SP, SPF, SP1: porfim
SP, SPF, SP1: condiscipulo;
Seraphim; offereceu
SPF, SP1: leval-a; destinatario;
visinho
SP, SPF, SP1: podésse
SPF, SP1: fechal-a; ninguem;
viesse
SP, SPF, SP1: acção; lettra
SP, SPF, SP1: proprio
SP, SPF, SP1: attenção
SP, SPF, SP1: condiscipulo
SP, SPF, SP1: negocios; repoz
218
dia seguinte. Não lhe convinha repetir a miúdo esses
processos e, quando vinham cartas de João com valor
declarado, se por ventura as encontrava, negava-se a
levá-las ao seu destino.
SP, SPF, SP1: miudo
SP, SPF, SP1: si
SP, SPF, SP1: leval-as
75
80
85
Estava, pois, ciente Abílio por esta, e por uma
ou outra carta simples que conseguiu violar depois, da
insistência com que João se referia ao pagamento das
suas letras, prometendo realizá-lo logo que recebesse
do fazendeiro uma das prestações da empreitada. Em
uma delas João prefixava a data da remessa do
dinheiro preciso para o pagamento das duas últimas
letras, uma com antecipação do prazo estipulado.
Ciente disso, viajou logo que calculou mais ou menos
chegar o dinheiro às mãos de Serafim, recomendando
a dona Úrsula que não recebesse dinheiro algum
durante a sua ausência.
SP, SPF, SP1: sciente; Abilio
SP, SPF, SP1: insistencia
SP, SPF, SP1: lettras (,);
promettendo; realisal-o
SP, SPF, SP1: d’ellas
SP, SPF, SP1: ultimas
SPF, SP1: lettras
SP, SPF, SP1: Sciente; d’isso
SP, SPF, SP1: ás mãos;
Seraphim(,); recommendando
SP, SPF, SP1: D. Ursula
SP, SPF, SP1: ausencia
90
Por que e por que Abílio assim procedia?
João, confiado no sigilo epistolar, por mais de uma vez
revelara à sua esposa e ao seu velho mestre o desejo
ardente de libertar-se de Abílio pagando-lhe o que lhe
devia sem que entrasse em minudentes explicações do
motivo dessa sua idéia, dizendo apenas ligeiramente
que, tanto Maria como Serafim, bem sabiam porque.
Isso levou o filho de dona Úrsula a matutar sem
SP, SPF, SP1: Porque; Abilio
SP, SPF, SP1: sigillo
SP, SPF, SP1: a sua
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: d’essa; idéa
SP, SPF, SP1: Seraphim
SP, SPF, SP1:d. Ursula
219
95
100
105
110
descanso. Desejava decifrar o enigma, saber porque
João desconfiava do seu antigo condiscípulo e rival.
Estava convencido de que Serafim não havia revelado
a João nem a Maria a sua infame conduta anterior;
pois, estudando o caso e estabelecendo confrontação,
atilado como era, conhecendo desde a infância o gênio
de João que, se era manso e superficialmente humilde,
em contraste, possuía um fundo de orgulho e
susceptibilidade irredutíveis, capaz de ações violentas,
concluiu que, se ele soubesse de alguma coisa, teria
rompido franca e violentamente os laços de amizade
que os prendiam, antes de sua viagem. Estava, pois,
convencido de que não era esse o motivo da
desconfiança que João revelava a seu respeito em mais
de uma carta, dizendo francamentre que era “sua
aspiração libertar-se de Abílio pelas razões que o
professor e Maria bem conheciam.”
SP, SPF, SP1: condiscipulo
SP, SPF, SP1: Seraphim
SP, SPF, SP1: conducta
SP, SPF, SP1: infancia; genio
SP, SPF, SP1: si
SP, SPF, SP1: possuia
SP, SPF, SP1: irreductiveis; acções
SP, SPF, SP1: si; elle
SP, SPF, SP1: cousa
SP, SPF, SP1: Abilio
SP1: conheciam.(”)
115
Estas palavras eram o móvel da questão e
causavam-lhe uma espécie de ciúme e de ódio
recrescentes que em seu ânimo tomavam proporções
na altura da sua desmesurada e inconsiderada paixão
por Maria. Estava certo de que Serafim não havia
revelado aos jovens consortes, senão por bem dele
Abílio, mas pela tranqüilidade e harmonia que
SP, SPF, SP1: movel
SP, SPF, SP1: especie; ciume; odio
SP, SPF, SP1: animo
SP, SPF, SP1: Seraphim
SP, SPF, SP1: sinão; d’elle
SP, SPF, SP1: Abilio;
tranquillidade
220
120
desejava com ardoroso interesse existisse sempre no
seio daquele casal, por quem daria a vida e a quem
muito mais estimava do que a ele, pobre repudiado e
relegado a um desprezo que o professor mal podia
encobrir.
SP, SPF, SP1: d’aquelle
SP, SPF, SP1: elle (,)
125
130
135
140
Afinal chegou a admitir, como único e
possível meio usado por Serafim para afastá-lo do
venturoso casal, a informação lenta e cautelosa, mas
sintética, em modo geral, sem que fosse precisado um
fato, apontada uma falta, indicada uma jaça149, – do
caráter daquele que considerava um perigo iminente,
uma ameaça à felicidade dos seus protegidos, daqueles
dois entes que estremecia e pelos quais seria capaz de
sacrificar a ele Abílio. Fora Serafim, e não outro que
prevenira João falando-lhe em modo geral do seu
caráter, do tendencioso dos seus modos polidos e
delicados e outros predicados maus que lhe emprestou
condimentando-os com algumas qualidades boas que
eram sobrepujadas pelos defeitos. O velho professor
era inteligente e experimentado bastante para
conseguir que João se premunisse contra ele sem
declarada inimizade.
SP, SPF, SP1: unico
SP, SPF, SP1: possivel; Seraphim;
afastal-o
SP, SPF, SP1: synthetica
SP, SPF, SP1: facto; um jaça
(Emendou-se para uma jaça.)
SPF, SP1: caracter; d’aquelle;
imminente
SP, SPF, SP1: á felicidade;
d’aquelles
SP, SPF, SP1: dous; quaes
SP, SPF, SP1: elle; Foi Abilio;
Seraphim
SP, SPF, SP1: previniu
SP, SPF, SP1: caracter
SP, SPF, SP1: intelligente
SP, SPF, SP1: elle
Um ódio terrível contra Serafim brotou no
coração de Abílio arrastando aquele espírito
SP, SPF, SP1: odio; terrivel;
Seraphim
149 Jaça: mancha, falha.
221
145
150
coração de Abílio arrastando aquele espírito
apaixonado a uma espécie de alucinação. O despeito, o
ciúme, o desejo insopitável de possuir Maria a todo o
transe açulavam aquele espírito enfermo contra o
velho mestre que, como um argos, vigiava-o a todo o
momento, estudava todos os movimentos, chegava a
adivinhar os seus mais íntimos pensamentos; que,
como atalaia150 incansável, era-lhe um embaraço e,
como um cérbero151, guardava o que ele mais
ambicionava: Maria. Era preciso, indispensável,
inutilizar, mesmo eliminar aquele homem.
SP, SPF, SP1: Abilio; aquelle;
espirito
SP, SPF, SP1: especie
SPF, SP1: allucinação; ciume;
insopitavel
SP, SPF, SP1: aquelle; espirito;
emfermo
SP, SPF, SP1: advinhar; intimos
SP, SPF, SP1: incançavel
SP, SPF, SP1: cèrbero; elle
SP, SPF, SP1: indispensavel
SP, SPF, SP1: aquelle
155
160
Restava-lhe achar o meio eficiente, mas um
meio que não despertasse desconfianças nem lhe
prejudicasse os cálculos. Era preciso um instrumento
dócil que agisse por si próprio convencido de que não
trabalhava para outrem, e Abílio o possuía em
Roberto, o meeiro de João, o taciturno a que Serafim
se referira quando conversava com Maria. O refalsado
amigo de João vinha desde muito tempo estudando o
caráter de Roberto, que somente com ele se abria,
somente para ele sorria, mas com esse sorriso que
denuncia uma alma perversa e capaz de tudo para o
mal, embora fosse manifestação de alegria, dessa
SP, SPF, SP1: efficiente
SP, SPF, SP1: calculos
SP, SPF, SP1: docil; proprio
SP, SPF, SP1: possuia; Abilio
SP, SPF, SP1: Seraphim
SP, SPF, SP1: caracter; elle
SP, SPF, SP1: sómente; elle
SP, SPF, SP1: d’essa
150 Atalaia: vigia, guarda. 151 Cérbero: guarda ou porteiro intratável, grosseiro.
222
165
alegria malsã que é o regozijo dos maus quando
vencida ou planeada uma das suas empreitadas com
probabilidades de vitória. Era, em suma, o ricto da
besta fera.
SPF, SP1: regosijo
SP, SPF, SP1: victoria; summa;
rictus
170
175
180
185
Abílio, estudando a fundo aquele caráter
esquisito e perigoso, simpatizou-se com ele, pode-se
assim dizer, porque a sua alma afinava-se pela dele,
apenas com a diferença de, pela sua inteligência
bastante desenvolvida, e pela cultura e trato com a boa
sociedade, saber e conseguir ocultar os seus maus
desígnios e conter os seus movimentos impulsivos. Por
meio de uma grande liberdade que dispensava a
Roberto em favores e deferências152 em particular,
procurando sempre se colocar a cavaleiro de tão abjeta
criatura, conseguiria que o seu protegido o obedecesse
até o servilismo e chegasse a ser-lhe dedicado como
um rafeiro153. Restava-lhe aguardar uma oportunidade
que ele saberia preparar cautelosamente por meio das
suas conhecidas astúcias para chegar ao negregado fim
que tinha em vista, ou aproveitar um incidente
qualquer que lhe oferecesse azo154 para efetivar o que
desejava.
SP, SPF, SP1: Abilio; aquelle;
caracter
SP, SPF, SP1: exquisito;
sympathizou-se; elle
SP, SPF, SP1: d’elle
SP, SPF, SP1: differença;
inteligencia
SP, SPF, SP1: occutar
SP, SPF, SP1: designios
SP, SPF, SP1: deferencias
SP, SPF, SP1: collocar-se;
cavalleiro; abjecta
SP, SPF, SP1: obedessesse
SP, SPF, SP1: opportunidade
SPF, SP1: elle
SP, SPF, SP1: astucias
SP, SPF, SP1: offerecesse; aso;
effectivar
152 Deferências: consideração, acatamento, respeito. 153 Rafeiro: cão treinado para guardar o gado. 154 Azo: motivo, ensejo.
223
190
195
200
Esse ensejo chegou. Quando, feita a colheita
do arroz, teve Roberto que entregar a Maria a parte
que lhe competia. Serafim, a pedido dela, achava-se
presente, como era de mister, porque o velho professor
era prático nisso, e Maria nenhuma experiência tinha a
respeito, nem poderia fazer qualquer reclamação que
fosse precisa porventura. Os dois outros meeiros foram
corretos, mas Roberto não. O arroz não estava
convenientemente soprado, isto é ventilado a fim de
separar o bom grão do palhiço155 e dos chochos,156 de
sorte que, se de novo fosse ventilado, ficaria reduzido
quase à metade. Serafim observou-lhe que não podia
receber, tanto mais que os outros meeiros haviam
trazido toda a sua colheita, bem limpa, para ser medida
e partilhada e ele não, o que levantava desconfiança
quanto à honestidade de Roberto.
SP, SPF, SP1: colheta
SP, SPF, SP1: Seraphim; d’ella
SP, SPF, SP1: pratico; experiencia
SP, SPF, SP1: dous
SP, SPF, SP1: correctos
SP: soprado; SPF, SP1:
SOPRADO; afim de
SP, SPF, SP1: si; quasi
SP, SPF, SP1: á metade; Seraphim
SP, SPF, SP1: colheta
SP, SPF, SP1:elle; á honestidade
–Eu não sou ladrão! – disse Roberto com certo
azedume e ar de exprobração157.
SP, SPF, SP1: exprobacção
205
–Nem eu estou dizendo que você o seja.
–Se você não receber, eu trago todo e não
quero mais saber desta...
SP, SPF, SP1: Si
SP, SPF, SP1: d’esta
E o malcriado, sem respeitar o velho e a
senhora, terminou com uma palavra porca e indecente
155 Palhiço: palha traçada ou moída. 156 Chocho: infrutífero, peco. 157 Exprobração: acusação.
224
210
senhora, terminou com uma palavra porca e indecente
que nos pesa aqui escrever.
–Mais respeito! – exclamou Serafim, escarlate
de indignação.
SP, SPF, SP1: Seraphim
–Você mesmo anda de propósito comigo –
vociferou o atrevido fremindo de ódio.
SP, SPF, SP1: proposito; commigo
SP, SPF, SP1: odio
215 –Você! Sou um velho a quem deve respeitar.
Não quero discussões.
220
Roberto saiu pisando duro e resmungando
impropérios. Os outros meeiros, indignados diante
daquela conduta irregular e insolente, ofereciam-se
para desancar o patife; mas Serafim nada quis que lhe
fizessem.
SP, SPF, SP1: sahiu
SP, SPF, SP1: improperios; deante
SP, SPF, SP1: d’aquella; conducta;
offereciam-se
SP, SPF, SP1: Seraphim; quiz
–Deixá-lo! É um pobre e miserável
degenerado. –E, voltando-se para Maria: –Eu não lhe
disse comadre?
SP, SPF, SP1: miseravel;
desgenerado
225
Os dois restantes meeiros informaram então
que já tinham ciência de que Roberto era um patife e
que, por isso, não queriam relações com ele. Chegaram
a referir fatos que demonstravam quanto ele era
insolente e de maus costumes.
SP, SPF, SP1: dous
SP, SPF, SP1: sciencia
SP, SPF, SP1: elle
SP, SPF, SP1: factos ; elle
230 –Que Deus se compadeça dele – observou o
professor com fleuma158.
SP, SPF, SP1: d’elle
SP, SPF, SP1: phleugma
158 Fleuma: severidade.
225
Nesse dia Roberto desapareceu. SP, SPF, SP1: N’esse;
desappareceu
II
5
Era quase noite fechada quando Roberto
chegou à casa de Abílio; mas este ainda não tinha
voltado da sua viagem. Dona Úrsula, que muito o
conhecia, viu-o de pé à frente da casa e, curiosa, já
farejando alguma novidade, pois o camarada só ali
aparecia aos domingos, veio à porta.
SP, SPF, SP1: quasi
SP, SPF, SP1: á casa; Abilio
SP, SPF, SP1: D. Ursula
SP, SPF, SP1: á frente
SP, SPF, SP1: alli;
SPF, SP1: apparecia; á porta
–O que quer? – perguntou a velha com os seus
modos de senhora, que Roberto já conhecia de sobra.
10 –Estou desempregado, patroa – respondeu
Roberto descobrindo-se e mostrando-se servil diante
da velha, que considerava uma generosa fidalga da
gema – e vim procurar a proteção do patrão.
SP, SPF, SP1: deante
SP, SPF, SP1: gemma; protecção
–Botaram você pra fora? SP, SPF, SP1: pr’a
15 –Que dúvida! Tanto monta! SP: Tanto monta!, SPF, SP1:
duvida;TANTO MONTA!
–O que houve, então? – inquiriu a velha
ansiosa pela novidade.
SP, SPF, SP1: inqueriu
SP, SPF, SP1: anciosa
–Eu não posso aturar um velho pernóstico que
por lá anda metendo o nariz em tudo.
SP, SPF, SP1: pernóstico
SP, SPF, SP1: la; mettendo
20 –É um tal Serafim? SP, SPF, SP1: Seraphim
226
–Esse mesmo, patroa. Aquilo é um
malcriadão.
SP, SPF, SP1: Aquillo
–Que fez ele? SP, SPF, SP1: elle
–Me pôs de ladrão por mór do arroz da
meia159.
SP, SPF, SP1: poz; ‘mor
25 –E agora?
–Deixei lá tudo de esmola pra aqueles
famintos e vim ficar aqui.
SP, SPF, SP1: la; p’ra; aquelles
–É assim mesmo, meu filho. Quem se mete
com porcos...
SP, SPF, SP1: mette
30 –Só come o farelo. SP, SPF, SP1: Sò
–Abílio não está aqui, mas chega nestes dois
dias. Fique por aí até a chegada dele. –E deu-lhe a
chave de um quarto de arranchamento de camaradas.
SP, SPF, SP1: Abilio; SP: dous
SP, SPF, SP1: ahi; delle
–Eu trago muita fome, patroa.
35 –Descanse que disto não morrerá aqui. Mais
tarde conversaremos melhor.
SP, SPF, SP1: Descance
Roberto foi aboletado160 e teve ceia farta.
40
No dia seguinte, dona Úrsula achou jeito de
conversar detidamente com o ex-meeiro de João e
saber do que se deu minudentemente. É bem certo que
o informante alterou a verdade quanto lhe pareceu
necessário para que a razão ficasse de seu lado e fosse
SP, SPF, SP1: seguinte (,); d.
Ursula; geito
SP, SPF, SP1: necessario
159 Por mór do arroz da meia: por modo do arroz de meia. 160 Aboletado: instalado; alojado.
227
45
50
55
ele uma vítima da injustiça do velho mestre-escola.
Dona Úrsula, não se esquecendo das reiteradas
recomendações de seu filho, ia cautelosamente
emitindo a sua opinião a respeito de Serafim, a quem
muito odiava; mas sempre de modo que açulasse161 o
rancor do seu novo protegido e acendesse em seu
espírito uma vingança que já se delineava nele, como
ela percebeu no correr da conversação. Tanto quanto
lastimava a injustiça praticada contra Roberto, ainda
mais por fim, mostrava-se carinhosa com a vítima, e
chegando a despir-se dos seus hábitos arrogantes de
fidalga empafiosa e soberba. Roberto sentia-se
lisonjeado e agradecido, pois a velha conseguiu
enxugar lágrimas de crocodilo ao ouvir sua narração.
SP, SPF, SP1: elle; victima
SP, SPF, SP1: D. Ursula
SP, SPF, SP1: recommendações
SP, SPF, SP1: emittindo; Seraphim
SP, SPF, SP1: accendesse
SP, SPF, SP1: espirito; n’elle
SP, SPF, SP1: ella
SP, SPF, SP1: porfim; victima
SP, SPF, SP1: habitos
SP, SPF, SP1: lagrimas
60
Terminado o colóquio entre aqueles dois
patifes, conseguiu dona Úrsula que Roberto se
conservasse oculto de modo que ninguém soubesse do
seu paradeiro até que Abílio, que estava a chegar,
dissesse-lhe o que tinha de fazer e qual o destino que
devia tomar; pois calculou que não convinha soubesse
Serafim que o meeiro expulso ali se achava.
SP, SPF, SP1: colloquio; aquelles
dous
SP, SPF, SP1: d. Ursula
SP, SPF, SP1: ninguem
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: Seraphim; alli
65
Abílio chegou no terceiro dia à noite. Dona
Úrsula achava-se tão ansiosa por dar a seu filho a
grande novidade que, mesmo durante a ceia, foi-lhe
SP, SPF, SP1: Abilio; á noite; D.
Ursula
SP, SPF, SP1: anciosa
SP, SPF, SP1: novidade, que
( l l 161 Açular: provocar, estimular.
228
grande novidade que, mesmo durante a ceia, foi-lhe
dizendo:
mesmo (Deslocou-se a vírgula
separando o adjunto adverbial.)
–Alvíssaras162, Abílio! O seu Serafim brigou
com o Roberto e pô-lo fora das terras da Maria.
SP, SPF, SP1: Alviçaras; Abilio;
Seraphim
SP, SPF, SP1: pôl-o
70
–É certo? Como sabe, minha mãe? – inquiriu
Abílio já alvoraçado e calculando o proveito que desse
incidente poderia tirar.
SP, SPF, SP1: inqueriu
SP, SPF, SP1: Abilio; ja; d’esse
75
–Como sei? Pois se o Roberto está aqui desde
anteontem à tua espera! Recomendei-lhe que se
ocultasse até a tua vinda, porque achei que assim
muito convinha.
SP, SPF, SP1: si
SP, SPF, SP1: ante-hontem; á tua;
Recommendei-lhe
SP, SPF, SP1: occultasse
–Obrou com acerto. Amanhã verei o que se
faz.
80
–Agora, Abílio, o que vais fazer? Continuas
amigo do tal Serafim, que foi tão desatencioso
despedindo o teu recomendado? Isso não foi uma
desfeita do grosseirão?
SP, SPF, SP1: Abilio; vaes
SP, SPF, SP1: Seraphim;
desattencioso
SP, SPF, SP1: recommendado
–Nenhum juízo podemos adiantar sobre isso.
Não se sabe ao certo o que se deu.
SP, SPF, SP1: juizo; adeantar
85
–Não se sabe! Estou bem informada. O velho
malcriado pôs o rapaz de ladrão, insultou-o e botou-o
para fora com as mãos vazias, ficando com tudo
quanto lhe pertencia. Um rapaz honesto e trabalhador
como o Roberto! Pode-se aturar uma coisa destas?
SP1: rapoz (Erro óbvio.); SP, SPF,
SP1: poz
SP, SPF, SP1: p’ra; vasias
SP, SPF, SP1: cousa; d’estas
162 Alvíssara: interjeição utilizada para anunciar boas novas.
229
como o Roberto! Pode-se aturar uma coisa destas?
90
–Deixe isso, minha mãe; trataremos do que
mais importa. Diga-me: o professor veio?
–Ora se veio! Como um feixinho de lenha. SP, SPF, SP1: si
–E o que fez a senhora?
95
–O que me recomendaste. O maldito
esbravejou, disse o diabo... não sei como não me
bateu! Mas não quis receber o dinheiro nem lhe
mostrei as letras.
SP, SPF, SP1: recommendaste
SP, SPF, SP1: quis
SP, SPF, SP1: lettras
100
Abílio bem sabia que tudo aquilo era
inventivas de sua mãe, que bem conhecia como
embusteira163 e maldosa; mas aparentou dar fé à
informação, embora estivesse certo de que o velho
mestre-escola era incapaz de proceder assim.
SP, SPF, SP1: Abilio; aquillo
SP, SPF, SP1: apparentou; á
informação
105
–Andou mal o pobre velho; mas devemos
perdoar-lhe essas imprudências. O essencial é não ter
resgatado as letras no prazo. A senhora andou bem,
obrou com juízo. Assim é que eu quero que minha mãe
proceda.
SP, SPF, SP1: imprudencias
SP, SPF, SP1: lettras; praso
SP, SPF, SP1: juizo
110
Dona Úrsula ficou em extremo lisonjeada com
os gabos propositais do filho e, considerando que já
merecia a inteira confiança dele, supôs que pudesse
penetrar o segredo dos seus planos.
SP, SPF, SP1: D. Ursula
SP, SPF, SP1: propositaes
SP, SPF, SP1: d’elle; suppoz
163 Embusteira: qualidade atribuída às pessoas que costumam mentir.
230
115
–O que eu não posso compreender, Abílio, é
para que te sujeitas a ter um grande prejuízo deixando
de receber o teu dinheiro! Aquela gente não é graça,
meu filho. Quem tem o passarinho na mão não deve
dizer “chô”.
SP, SPF, SP1: comprehender;
Abilio
SP, SPF, SP1: prejuizo
SP, SPF, SP1: Aquella
–Deixe estar, minha mãe; logo saberá. É um
capricho que tomei.
–Um capricho que dará lucro à tal Maria mais
o Serafim. Comem o teu cobre e ficam fanfando164.
SP, SPF, SP1: á tal (Retirou-se a
crase.)
SP, SPF, SP1: Seraphim
120
125
–João possui terras e propriedades que bem
garantem a dívida. Andou por aí dizendo que era o
meu escravo porque me devia e que ia tratar de
libertar-se. Quero por capricho conservá-lo preso à
minha gaveta. Ofendeu-me em dizer isso e provou que
não é um amigo leal.
SP, SPF, SP1: possue
SP, SPF, SP1: divida; ahi
SP, SPF, SP1: conserval-o; á minha
SP, SPF, SP1: Offendeu-me
130
–Eis aí o que são os tais amigos. Em todo o
caso, como a dívida está garantida pelos teres165 dessa
gente, acho que a tua idéia é boa. Não faz mal que
fiquem na miséria e sem um rancho para se
acomodarem. E a Maria...hum!
SP, SPF, SP1: ahi; taes
SP, SPF, SP1: divida; d’essa
SP, SPF, SP1: idéa
SPF, SP1: miseria
SPF, SP1: accommodarem
Ao ouvir esta última interjeição que dona
Úrsula acompanhou de um gesto e o seu rir peculiar de
zombaria, receiou Abílio que ela achasse a ponta da
SPF, SP1: ultima; d. Ursula
SPF, SP1: Abilio; ella
164 Fanfando: alardeando. 165 Teres: posses, bens.
231
135
140
145
meada dos seus planos e deu por terminada a conversa
alegando estar cansado da viagem. Não desejava
alongar o diálogo, temendo lhe escapasse uma outra
palavra que esclarecesse a velha, o que lhe não
convinha por forma alguma, pois dona Úrsula já não
lhe merecia a confiança de antes, principalmente
quando o assunto lhe parecia de certa gravidade. Se
nem sempre a maldosa velha, em sua leviandade e
bisbilhotice, cometia imprudências, era porque temia o
filho, que sobre ela havia adquirido grande autoridade
e já, por muitas vezes, chegara a repreendê-la
severamente quando a apanhava em faltas.
SPF, SP1: allegando; cançado
SPF, SP1: dialogo
SPF, SP1: d. Ursula
SPF, SP1: assumpto
SPF, SP1: Si
SPF, SP1: commettia;
imprudencias
SPF, SP1: ella; auctoridade
SPF, SP1: reprehendel-a
150
É triste que não nos inspire confiança uma
pessoa a quem devemos o ser e todo o nosso amor e
carinho; mas, infelizmente, não é rara esta aberração
dos mais nobres preceitos e sentimentos morais,
quando pais e filhos não são dotados de bons
sentimentos, ou não receberam uma educação regular
e conforme aos bons preceitos da ética.
SPF, SP1: mas (,)
SPF, SP1: moraes
SPF, SP1: paes
155
Perto de dez horas da noite vamos encontrar
Abílio trancado no seu gabinete. Assentado em frente
à sua secretária, examinava, pela translucidez em
frente de um candeeiro belga, quatro notas
promissórias impressas e cheias nos seus intervalos a
SPF, SP1: Abilio;
SPF, SP1: á sua; examinava (,)
SPF, SP1: promissorias; intervallos
232
160
165
170
175
manuscrito, as quais eram superpostas duas a duas
para a minuciosa verificação que fazia. A caligrafia
das duas via-se, pela transparência, coincidia
perfeitamente em todos os seus traços, concluindo-se
daí que se tratava de sua falsificação. Era de fato.
Tratava-se das letras passadas por João, às quais o
mancebo aumentara os valores inscritos. O falsário
aproveitou quanto possível o que estava escrito à mão,
cobrindo a sombra pela transparência do papel; mas as
importâncias, quer por extenso, quer por algarismos,
foram feitas por outro processo. As assinaturas e datas,
como eram apostas sobre estampilhas que lhe
tornavam opaco o papel, foram aproveitadas na parte
que excedia dos selos pelo primeiro processo, sendo o
restante inteirado por meio de outro papel como se via
pelos modelos que ali estavam. Terminado o exame
pela transparência, Abílio mostrou-se satisfeito; porém
é de crer que o restante deixou para examinar à luz do
dia.
SPF, SP1: manuscripto; quaes
SPF, SP1: caligraphia
SP, SPF, SP1: transparencia
SPF, SP1: d’ahi; facto
SPF, SP1: lettras; ás quaes
SPF, SP1: augmentara; falsario
SPF, SP1: possivel; escripto; a mão
SPF, SP1: transparencia
SPF, SP1: importancias,
SPF, SP1: appostas
SPF, SP1: sellos
SPF, SP1: alli
SPF, SP1: transparencia; Abilio;
porem
SPF, SP1: á luz
180
A viagem por ele empreendida teve por fim
assegurar a sua tratada como passamos a explicar. O
primeiro credor de João, um pobre homem ignorante,
simplório e paupérrimo, foi um achado que Abílio
soube aproveitar tendenciosamente para a realização
SPF, SP1: elle; emprehendida
SPF, SP1: simplorio; pauperrimo;
Abilio
SPF, SP1: realisação
233
185
190
195
200
205
do que tinha em vista, e que veio à idéia como parte do
seu programa. Foi mais um elemento que a sua
habilidade encontrou por acaso e considerou precioso
como auxílio do todo dos planos que engendrara.
Protegendo-o às ocultas por ocasião do inventário de
dona Senhorinha, conseguiu captar-lhe a confiança e
gratidão. Aguçando-lhe a ambição de indivíduo pobre
e sem iniciativa que desejava enriquecer-se sem
esforço e para quem um conto de réis é uma fortuna
invejável, recomendava-lhe o maior sigilo para que o
seu negócio não fosse por água abaixo. Ao mesmo
tempo o astuto mancebo pintava-lhe o estado de São
Paulo como um país ideal onde o pax-vobis, com o
resultado da herança que pleiteava, viria a adquirir
uma enorme fortuna, pondo ao seu dispor os seus
préstimos quando deles tivesse necessidade para
emigrar. De tais argumentos e lábias valeu-se Abílio,
que tudo conseguiu à medida dos seus negregados
desejos. Conseguindo que João passasse duas letras
logo que realizado o negócio e, sob o mesmo segredo
recomendado, negociou-as com desconto. O pobre
homem, de posse de grande fortuna, deslumbrado,
esteve por tudo quanto Abílio quis. Como era solteiro
e não tinha ligações estreitas no meio, seguiu logo para
SPF, SP1: á idéa
SPF, SP1: programma
SPF, SP1: auxilio
SPF, SP1: ás occutas; occasião;
inventario
SPF, SP1: individuo
SPF, SP1: invejavel;
recommendava-lhe
SP, SPF, SP1: negocio; agua
SPF, SP1: S. Paulo
SPF, SP1: paiz
SPF, SP1: prestimos; d’elles
SPF, SP1: taes; labias; Abilio
SPF, SP1: á medida
SPF, SP1: lettras
SPF, SP1: realisado; negocio
SPF, SP1: recommendado
SPF, SP1: Abilio; quiz
234
São Paulo influído pelo seu protetor que muito lhe
recomendou dar-lhe notícias suas para que, mesmo de
cá, continuasse a dispensar-lhe a sua proteção.
SPF, SP1: S. Paulo; influido;
proctetor
SPF, SP1: recommendou; noticias;
que (,)
SPF, SP1: protecção
210
215
220
Entretanto o protegido de Abílio, por descuido
ou desídia, não deu notícias de si, e isso muito afligia o
tendencioso protetor, que ardia por saber do seu
paradeiro, se se resolvera a voltar, se lá permanecia.
Aproximando-se o vencimento das letras, o ardiloso
filho de dona Úrsula empreendeu a sua última viagem
para fazer indagações sobre o emigrado, pois alguns
dos seus companheiros de bando já tinham regressado
e poderia dar notícias do seu companheiro de viagem.
O falsificador temia que o pobre homem, procurando o
seu antigo devedor, descobrisse a sua tratantada166.
Compreendia Abílio que isso lhe transtornaria os
cálculos e mais punha às claras o seu caráter.
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: desidia; noticias
SPF, SP1: proctetor
SPF, SP1: si; si; la;
SPF, SP1: Approximando-se;
lettras
SP, SPF, SP1: d. Ursula;
emprehendeu; ultima
SPF, SP1: noticias
SPF, SP1: Comprehendia; Abilio
SPF, SP1: calculos; ás claras;
caracter
225
Tudo o que se dava no espírito do astucioso
mancebo era uma inquietação, uma espécie de suplício
a que se submetia, que o afligia como um aviso
constante da Providência, que lhe mostrava o transvio
em que estava e prevenia-o de que maiores
sofrimentos, maiores dores experimentaria realizando
o mau intento. Podemos dizer que era uma graça
proveniente que Deus lhe dispensava solícito e
SPF, SP1: espirito
SPF, SP1: especie; supplicio
SPF, SP1: submettia; aflingia
SPF, SP1: Providencia
SPF, SP1: soffrimentos; realisando
SPF, SP1: solicito
166 Tratandada: burla.
235
230
235
proveniente que Deus lhe dispensava solícito e
carinhoso; mas o infeliz que, no seu procedimento
irregular, antes relevava ignorância e cegueira do que
atilamento e sagacidade, marchava incauto em
caminho da perdição supondo, em seu orgulho de mau,
que ninguém, mais do que ele, possuía critério e
melhor sabia guiar-se.
SPF, SP1: ignorancia
SPF, SP1: suppondo
SPF, SP1: ninguem; elle; possuia;
criterio
240
Ah! Quantos desses enfatuados167, supondo
trabalharem seguramente para a sua felicidade com
desprezo manifesto dessa influência invisível e
poderosa que tudo vê, que em tudo nos auxilia quando
para o bem, ou para o mal, influência que,
infelizmente, bem poucos reconhecem, trabalham para
a sua perda!
SPF, SP1: d’esses; suppondo
SPF, SP1: influencia; invisivel
SPF, SP1: influencia
245
250
Abílio, depois de alguns dias de viagem por
lugares diversos, a pretexto disto ou daquilo,
conseguiu saber de mais de um dos sampauleiros de
retorno que o pascácio168 que tanto o amedrontava
conseguira colocar-se, que se achava deslumbrado
com a riqueza e progresso de São Paulo e, rumando
para zona de Bauru, não mais regressaria à sua terra
natal.
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: d’isto; d’aquillo
SPF, SP1: pascacio
SP, SPF, SP1: collocar-se
SPF, SP1: S. Paulo
SPF, SP1: á sua
167 Enfatuado: cheio de de si, presumido. 168 Pascácio: tolo, idiota. Forma documentada no léxico de Guimarães Rosa, Cf. Nilce Sant’Anna MARTINS. O léxico de Guimarães Rosa. 2 ed. São Paulo:Editora da Universidade de São Paulo, 2001. p.373.
236
255
Ciente de tudo isso, considerando-se seguro
nos seus cálculos, Abílio, entretanto, tinha receio de
Serafim que, além de perspicaz, já o conhecia como
falsário. Para ele o velho mestre-escola era o espectro
de Banquo.169 Era uma necessidade afastá-lo do seu
caminho. Mas a falsificação da carta? Só um meio
havia de livrar-se dele, e esse meio, que não valeu a
Macbeth, pensava o mancebo que lhe serviria à
medida dos seus desejos.
SPF, SP1: Sciente
SPF, SP1: calculos; Abilio
SPF, SP1: Seraphim; alem;
perpicaz
SPF, SP1: falsario; elle
SPF, SP1: Bancquo; afastal-o
SPF, SP1: d’elle
SPF, SP1: á medida
III
5
10
Abílio despertou cedo. Achava-se bem disposto e
satisfeito com os resultados que ia colhendo em caminho da
realização do seu ardente desejo. A sua satisfação era tal que
chegava a relegar do seu pensamento a idéia de Serafim estar
vigilando170 como argos os seus planos insidiosos. Fez as suas
abluções171 matinais, vestiu-se, tomou café como dos hábitos
sertanejos, sempre tomado da sua idéia fixa, numa introspecção
tal que, ao papaguear constante de dona Úrsula, mal respondia lá
uma ou outra vez com um monossílabo ou um gesto quase
imperceptível. Isso não inquietava a velha, que já conhecia os
modos do filho quando preocupado com os seus negócios.
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: realisação
SPF, SP1: satisfacção
SPF, SP1: idéa; Seraphim
SPF, SP1: matinaes; habitos
SPF, SP1: idéa; n’uma
SPF, SP1: d. Ursula
SPF, SP1: la
169 Banquo: fantasma de Banquo. Governador da Escócia, séc. XI, permaneceu espectador mudo do assassino de seu senhor por Macbeth, e posteriormente, tornou-se suspeito do homicídio, o que o levou a suicidar-se no meio de um banquete. 170 Vigilando: vigiando, velando. Forma não dicionarizada. 171 Ablução: banho de todo o corpo, ou de parte dele, com esponja embebida em água ou com toalha molhada.
237
modos do filho quando preocupado com os seus negócios. SPF, SP1: monosyllabo; quasi;
imperceptivel
SPF, SP1: preoccupado; negocios
15
20
25
30
Em certa altura, ouvindo de sua mãe uma qualquer
referência a Roberto, voltou ao presente, pois o seu espírito até
então adejava172 pelo risonho futuro que se lhe afigurava. Bastou
isso para que ele se lembrasse de Serafim, voltasse-lhe o receio
da sua vigilância e a necessidade de tolher-lhe todo e qualquer
movimento que impedisse o seu avanço no caminho que vinha
trilhando. O único alvitre que lhe sugeria o espírito
desescrupuloso era a eliminação do velho; mas para consegui-la,
era-lhe indispensável um instrumento que, inconsciente, supondo
agir no seu próprio interesse, prestasse-lhe esse repugnante
serviço. O incidente que se deu entre Roberto e o velho,
aproveitado habilmente, daria um resultado satisfatório. O ex-
meeiro, entretanto, não lhe era perfeitamente conhecido, máxime
quanto à capacidade exigida como indispensável ao desempenho
de obra tão nefanda. Era preciso sondar-lhe o caráter, verificar
até que ponto achava-se despeitado e encaminhá-lo jeitosamente,
caso fosse aproveitável, ao fim colimado.
SPF, SP1: referencia
SPF, SP1: espirito
SPF, SP1: elle
SPF, SP1: Seraphim
SPF, SP1: vigilancia
SPF, SP1: unico
SPF, SP1: suggeria; espirito
SPF, SP1: conseguil-a; indispensavel
SPF, SP1: suppondo
SPF, SP1: proprio
SPF, SP1: satisfactorio
SPF, SP1: maxime; á capacidade
SPF, SP1: indispensavel
SPF, SP1: caracter
SPF, SP1: encaminhal-o
SPF, SP1: geitosamente; aproveitavel
SPF, SP1: collimado
35
Depois de ter examinado de novo, à luz do dia e por
uma lupa, os documentos falsificados em confronto com os
verdadeiros, resultando daí ficar tranqüilo quanto a essa parte do
seu diabólico programa, organizou Abílio um plano de estudo de
SPF, SP1: á luz
SPF, SP1: d’ahi
SPF, SP1: tranquillo; diabólico
172 Adejava: voava.
238
40
Roberto e do modo por que devia conduzi-lo ao fim dos seus
propósitos.
SPF, SP1: programma; Abilio
SPF, SP1: conduzil-o
SPF, SP1: propositos
45
Roberto dormia a sono solto, ressonando ruidosamente,
quando o mancebo chegou ao limiar da porta do seu esconderijo;
mas, ouvindo os seus passos, despertou rapidamente. Isso para
Abílio, foi um movimento apreciável: o sujeito era vigilante,
possuía ouças de felino que o isentavam de surpresas.
SPF, SP1: somno; resomnando
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: apreciavel; possuia
SPF, SP1: surprezas
50
55
60
Abílio observou-lhe que não se achava recatado como
era de mister, e poderia ser visto por alguém e denunciado.
Roberto desenhou na catadura173 o seu ricto de celerado174,
afirmando numa fanfarronada que não era homem para ter medo;
que se o patrão tinha... O patrão estranhou a liberdade do seu
futuro assecla175; mas julgou conveniente aparentar que não a
percebera. Jeitosa e, podemos dizer, amistosamente, aconselhou
ao patife fazendo-lhe ver que ter prudência não é ter medo; que
os homens os mais valorosos eram precatados. Afagando a
vaidade do celerado, ia habilmente guiando-o como era o seu
desejo e incitando-o à prática da vingança, como justa e
consentânea com o direito e a razão. Nos seus conselhos e
maldosas insinuações usava Abílio uma linguagem que o
camarada compreendesse perfeitamente.
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: alguem
SPF, SP1: ricto; scelerado; affirmando;
n’uma
SPF, SP1: extranhou
SPF, SP1: apparentar
SPF, SP1: Geitosa
SPF, SP1: prudencia
SPF, SP1: scelerado
SPF, SP1: á pratica
SPF, SP1: consentanea
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: comprehendesse
65
Depois, sem tocar no nome de Serafim, procurou saber
porque tinha Roberto deixado as terras de dona Maria, uma
senhora tão distinta. Foi isso pôr fogo à mecha. O ex-meeiro, por
SPF, SP1: Seraphim
SPF, SP1: d. Maria; disctincta
173 Catadura: aparência; disposição de ânimo. 174 Celerado: criminoso, perverso, mau. 175 Assecla: partidário.
239
70
75
80
senhora tão distinta. Foi isso pôr fogo à mecha. O ex-meeiro, por
entre pragas e palavrões grosseiros e indecentes, bolçou um ódio
irrefreável contra Serafim. Começou historiando o porquê saiu
das terras de João; mas o fez ao seu modo, atribuindo ao velho
professor o motivo disso, adulterando os fatos e dizendo-se
vítima de uma clamorosa injustiça. Serafim era descrito por ele,
na sua linguagem grosseira e entremeada de insultos, um sujeito
miserável, um caráter baixo capaz das maiores infâmias; um
ladrão que lhe roubou o suor do rosto e queijandas calúnias e
mentiras que Abílio ouvia silencioso como quem desse crédito,
embora soubesse que tudo aquilo eram invencionices do
miserável que, quanto mais explicava o que se dera, mais
provava, em suas contradições, em favor do honrado velho a
quem emprestava tão más qualidades.
SPF, SP1: á mecha
SPF, SP1: odio
SPF, SP1: irrefreavel; Seraphim
SPF, SP1: porque; sahiu
SPF, SP1: attribuindo; d’isso
SPF, SP1: factos; victima
SPF, SP1: Seraphim; descripto; elle
SPF, SP1: miseravel; caracter
SPF, SP1: infamias
SPF, SP1: calumnias; Abilio
SPF, SP1: credito
SPF, SP1: aquillo; miseravel
SPF, SP1: contradicções
85
90
Abílio conhecia de sobra o caráter de Serafim e era
arguto bastante para avaliar as mendazes176 informações do
despeitado meeiro; mas convinha-lhe mostrar-se crédulo,
cogitando criminosamente tirar proveito do incidente que veio ao
encontro dos seus desejos gerados pela antipatia que lhe
inspirava a austeridade do velho professor; como lhe serviria de
subsídio, em caso extremo, aos seus trabalhos de sapa177,
arredando178 aquele embaraço do caminho, aquele miserável
celerado.
SPF, SP1: Abilio; caracter; Seraphim
SPF, SP1: argúto
SPF, SP1: credulo
SPF, SP1: antipathia
SPF, SP1: subsidio
SPF, SP1: aquelle
SPF, SP1: aquelle; miseravel; scelerado
176 Mendaz: mentirosa, hipócrita, desleal. 177 Sapa: abertura de fossos, trincheiras, galerias subterrâneas, normalmete, próximo ao pé de um muro, para derrubá-lo. 178 Arredando: afastando, desviando.
240
95
100
105
A muitos políticos modernos sucede assim nestes vastos
sertões e, quiçá, em meios que se proclamam mais adiantados em
civilização do que o nosso. Lançando mão de elementos iguais a
Roberto, que lhes têm preço, para seu engrandecimento social, se
não odeiam a virtude, nem se manifestam francamente contra ela,
por temerem-na como um tropeço aos seus desígnios,
perseguem-na e desacreditam-na de sorrelfa179. Bem se vê que
Abílio era talhado para político de aldeia, dos mais desabusados,
e Roberto seria um jagunço de primeira qualidade.
SPF, SP1: politicos; succede
SPF, SP1: adeantados; civilisação
SPF, SP1: eguaes
SPF, SP1: si; odeam
SPF, SP1: ella; temerem-n-a
SPF, SP1: designios; perseguem-n-a
SPF, SP1: desacreditam-n-a; Abilio
SPF, SP1: politico
110
115
120
Roberto, à proporção que falava, ia exaltando-se.
Gesticulava, arrotava valentias, fazia juras e tornava-se feroz,
bestial, terrível, mostrando-se tal qual era: um celerado de marca.
Transfigurado, transmudando o rosto em catadura de tigre
assanhado, tendo em seu semblante o rito dos assassinos
congêneres, com os olhos injetados de sangue, em sua figura de
energúmeno tornou-se horrível a ponto de causar terror ao seu
patrão, a quem, como louco, sem mais acatar como dantes,
tocava com a mão crispada, apertava o braço irreverentemente,
emburrava e chegava a maltratar, procurando mostrar-lhe como
faria a qualquer que o provocasse. Era o homo delinquente de
Lombroso, um perigoso neurótico, produto, sem dúvida, de
ascendentes degenerados pelo alcoolismo.
SPF, SP1: á proporção
SPF, SP1: terrivel
SPF, SP1: scelerado
SPF, SP1: rictus
SPF, SP1: congeneres; injectados
SPF, SP1: energumeno; horrivel; ao ponto
(Emendou-se.)
SPF, SP1: d’antes
SPF, SP1: irreverentemente (,)
SPF, SP1: HOMO
SPF, SP1: DELINQUENTE; nevrotico
SPF, SP1: producto; duvida (,)
Abílio, pálido, silencioso, já arrependido de ter SPF, SP1: Abilio; pallido
179De sorrelfa: diz-se daquele que age dissimuladamente, sonsamente.
241
125
130
provocado aquele miserável que o amedrontava, pôde somente
falar-lhe com muito jeito, com estudada doçura e promessas,
quando o sujeito, exausto, a arquejar, não mais era vítima da
violenta crise intensa de ferocidade que o assaltava e, rilhando180
os dentes numa espécie de trismo181, apenas proferia uma ou
outra palavra. O mancebo conseguiu acalmá-lo para que nada lhe
faltasse, pedindo-lhe, quase suplicante, que se resguardasse até
que lhe desse uma colocação, que lhe garantiu seria boa.
SPF, SP1: aquelle; miseravel
SPF, SP1: geito
SPF, SP1: esausto
SPF, SP1: victima
SPF, SP1: especiem
SPF, SP1: acalmal-o
SPF, SP1: quasi; supplicante
SPF, SP1: désse; collocação
135
140
145
Retirando-se meditativo, ia Abílio tomado de susto e
receios, seguindo outra ordem de idéias que lhe sugeria a crise de
Roberto. A impressão que lhe deixou no espírito aquele espécime
de teratologia moral, fez-lhe ver que o instrumento, por ele
escolhido como auxiliar dos seus planos em execução, excedia
em muito à sua expectativa, tornando-se perigosíssimo. Além de
indiscreto e capaz de tomar o freio nos dentes, poderia, num
daqueles momentos assassiná-lo, ou comprometer a sua
reputação e prestígio, cometendo às escâncaras um crime e
confessando-se garantido pelo patrão. Era um paranóico a quem
não poderia o mancebo guiar e que, por uma simples palavra mal
interpretada, mesmo por um gesto, poderia revoltar-se contra
quem quer que fosse, pertencesse mesmo às classes as mais
elevadas que conseguem dominar essa gente servil.
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: idéas
SPF, SP1: suggeria
SPF, SP1: espirito; aquelle; especimen
SPF, SP1: elle
SPF, SP1: á sua
SPF, SP1: perigosissimo; Alem
SPF, SP1: n’um; d’aquelles
SPF, SP1: assassinal-o; comprometter
SPF, SP1: prestigio; commettendo; ás
escancaras
SPF, SP1: paranoico
SPF, SP1: gesto (,)
SPF, SP1: ás classes
180 Rilhando: rangendo os dentes. 181 Trismo: alteração motora dos nernos trigêmeos, que impossibilita a abertura da boca, constituindo sinal característico e precoce de tétano.
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160
165
170
O medo sobrepujava em Abílio o gênio artimanhoso e
causava-lhe um grande embaraço, pois considerava dificílima,
senão impossível, a solução do intricado problema que, ao sondar
mais profundamente a alma de Roberto, seguiu-lhe
inopinadamente diante do espírito. Aproveitar aquele sujeito ou
rejeitá-lo despedindo-o seria uma rematada imprudência.
Aproveitá-lo não convinha porque o seu caráter oferecia duas
faces inteiramente opostas: uma, a primeira, que o iludiu a
princípio fazendo-lhe crer que se tratava de um indivíduo
discreto, capaz de realizar automaticamente o que lhe fosse
determinado e guardar reservas, era a seriedade taciturna, que
apenas denunciava pelo ricto, gênio perverso que sem hesitação,
executaria as piores empresas criminosas; a outra era a explosão
que se deu denunciando o desastrado que, em seu acesso de
vesânia182, a ninguém atendendo, não guardaria conveniências,
tudo poria a perder, tanto mais quanto contava com um protetor
que supunha capaz de garanti-lo em todos os atos que praticasse,
e que denunciaria procurando garantir-se na idéia de que o patrão
era intangível e invulnerável à ação da justiça.
SPF, SP1: Abilio; genio
SPF, SP1: difficilima; sinão; impossivel
SPF, SP1: deante; espirito, aquelle
SPF, SP1: reigeital-o
SPF, SP1: imprudencia; Apriveital-o
SPF, SP1: caracter; offerecia; oppostas
SPF, SP1: illudiu; principio
SPF, SP1: individuo
SPF, SP1: realisar
SPF, SP1: ricto; genio
SPF, SP1: peores; emprezas
SPF, SP1: vesania; ninguem
SPF, SP1: attendendo; conveniencias
SPF, SP1: protector
SPF, SP1: suppunha; garantil-o; actos
SPF, SP1: idéa; intangivel; invuneravel; á
acção
175
Ademais, convenceu-se Abílio de que Roberto, quando
calmo, fazia cálculos egoísticos; que a sua seriedade calculada
era tendenciosa, como a dedicação servil, a modo de gratidão
pela liberalidade que se lhe dispensasse e de que Abílio lançara
mão chegando a dispensar-lhe favores gratuitos e, até, fornecer-
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: calculos; egoisticos
SPF, SP1: Abilio
182 Vesânia: loucura, denominação comum às várias espécies de alienação mental.
243
180
185
lhe dinheiro com calculada generosidade, procurando captá-lo e
previamente preparando-lhe o espírito em seu favor. Concluiu
desse último raciocínio que bastava o patrão negar-se a uma das
suas exigências, por mais simples que fosse, para que o celerado
se revoltasse contra ele furibundo183, convertendo-se em seu
inimigo acérrimo, e inimigo dessa natureza era uma ameaça
constante e perigosa.
SPF, SP1: captal-o
SPF, SP1: espirito; d’esse; ultimo
SPF, SP1: raciocinio
SPF, SP1: exigencias,
SPF, SP1: scelerado; elle
SPF, SP1: acerrimo
SPF, SP1: d’essa
190
195
Em conclusão, resumindo o seu estudo sobre o caso,
chegou Abílio a pensar que a única saída que lhe restava, do
aperto em que se achava, era a eliminação do miserável, porque
retê-lo em homizio,184 nas condições em que estava, a inação e o
tédio fermentariam no espírito de Roberto idéias perigosas,
lembrar-lhe-iam exigências mais descabidas do que era de se
temer, leva-lo-iam a procurar saber por que era retido como um
detento e a uma exasperação perigosa; colocá-lo na sua lavoura
como agregado ou meeiro seria denunciar-se seu protetor e
levantar suspeitas no espírito do perspicaz professor Serafim.
SPF, SP1: Abilio; unica; sahida
SPF, SP1: miseravel; porque: (Emendou-
se.);retel-o
SPF, SP1: inacção; tedio
SPF, SP1: espirito; idéas
SPF, SP1: exigencias;
SPF, SP1: leval-o-iam;
SPF, SP1: collocal-o; aggregado
SPF, SP1: proctetor
SPF, SP1: espirito; Seraphim
200
205
Estava Abílio nesse cogitar martirizante, justo castigo
que lhe infringia a consciência maldosa, quando ouviu o
estampido de um tiro, um brado e passos de animal cavalgado.
Correu à janela e viu Serafim que, apeando-se do animal, tinha
na mão uma arma curta como quem estivesse disposto a
defender-se de uma agressão. Pálido, aterrado, Abílio recuou
para o interior antes que o professor o visse, adivinhando mais ou
SPF, SP1: Abilio; n’esse; martyrizante
SPF, SP1: consciencia;
SPF, SP1: SPF, SP1: á janella
SPF, SP1: Seraphim
SPF, SP1: aggressão; Pallido; Abilio
183 Furibundo: furioso, enfurecido. 184 Homizio: esconderijo.
244
menos o que se deu. Depois, saiu resoluto para o terreiro. SPF, SP1: sahiu
IV
5
10
Depois que se retirou Abílio, Roberto, que se tinha
acalmado exteriormente, continuou, entanto, exaltado no seu
íntimo. Fervia ali um vulcão de ódio. O veneno que continha
àquela alma endemoniada era inesgotável em seus meios de
elaboração como o vírus do crótalo. Nos intervalos das suas
explosões de cólera, ferviam como caldeira em alta pressão, as
profundezas daquele ente repulsivo, vibrando no seu exterior em
esgares,185 leves gestos e tremores, pelo franzir dos sobrolhos e
pelo ricto e arreganhar os dentes que o semelhavam aos dentes de
um tigre acuado.
SPF, SP1: Abilio
SPF: emtanto (Erro óbvio.)
SPF, SP1: intimo; alli; odio
SPF, SP1: endemoniada, (Emendou-se.);
aquella
SPF, SP1: inexgottavel; virusdo
(Emendou-se.)
SPF, SP1: intervallos
SPF, SP1: colera
SPF, SP1: d’aquelle
SPF, SP1: ricto
15
Estava reclinado em seu catre,186 mas às vezes o impulso
do fervor de ódio era tal naquela alma danada que a levava a uma
como resolução. Então se assentava, mirava uma espingarda que
jazia encostada a um canto, parecia refletir e, depois de
momentos, voltava à primeira posição parecendo procrastinar187 o
que tinha em mente executar.
SPF, SP1: ás vezes
SPF, SP1: odio; n’aquella; damnada
SPF, SP1: assentava-se
SPF, SP1: reflectir
SPF, SP1: á primeira
20
A preocupação de Roberto, verdadeira obsessão, era
vingar-se de Serafim, contra quem ideava uma terrível desforra
depois da sua confabulação com Abílio, que soube açulá-lo
SPF, SP1: preoccupação
SPF, SP1: Seraphim
SPF, SP1: terrivel
185 Esgares: gestos de escárnio. 186 Catre: leito tosco e pobre. Normalmente é uma cama de lona dobrável, utilizada em viagens. 187 Procrastinar: adiar.
245
25
manhosamente, falando-lhe em geral da legitimidade da vingança
e afirmando-lhe que a emboscada é lícita quando não é possível
sem ela conseguir-se o desagravo de uma injúria.
SPF, SP1: Abilio; açulal-o
SPF, SP1: affirmando-lhe
SPF, SP1: licita; possivel; ella
SPF, SP1: desaggravo; injuria
30
Usando dos seus recursos habituais, e com a habilidade
que lhe era peculiar, o perverso mancebo conseguira inocular na
alma do celerado, já predisposta recebê-la, maior dose de vírus do
que ela continha, ou soprar o incêndio que nela apenas começava
a atear-se.
SPF, SP1: habituaes
SPF, SP1: scelerado
SPF, SP1: recebel-a; virus
SPF, SP1: incendio; n’ella
35
40
45
50
Roberto estava convencido de que, fosse qual fosse o
crime que cometesse, teria a proteção de Abílio no sentido de
torná-lo impune. Assim sucede a muitos indivíduos ignorantes
que desconhecem o que é justo e tornam-se temíveis bandidos, tão
malvados como covardes; que tudo são capazes de executar
sugestionados por chefes políticos que sobrepõem a força ao
direito e gabam-se do apoio que lhes prestam indivíduos
miseráveis que lhes guardam as costas inconscientemente
supondo-se guardados e garantidos pelos patrões. Assim fazem
política por estes sertões em fora indivíduos que se impõem pelo
terror e blasonam-se homens de legítima influência no meio onde,
sendo odiados, mandam e são obedecidos pelas massas pacíficas,
pelos elementos conservadores que querem, mas não podem
concorrer para a nossa prosperidade na paz, na ordem e na
harmonia. Se é certo que possuímos legítimos e honestos
influentes, são raros e quase sempre esquecidos dos altos poderes
da nação, os quais por sua vez garantem condottieri de preferência
porque, só esse meio, derramando a cornucópia188 das graças,
esvaziando as arcas do tesouro em benefício de nulidades,
conseguem subir até os últimos degraus da governança. O povo
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: tornal-o; succede
SPF, SP1: individuos
SPF, SP1: temiveis
SPF, SP1: suggestionados; politicos
SPF, SP1: individuos; miseraveis
SPF, SP1: suppondo-se
SPF, SP1: politica
SPF, SP1: blazonam-se; individuos
SPF, SP1: legitima; influencia
SPF, SP1: pacificas
SPF, SP1: Si
SPF, SP1: possuímos; legítimos
SPF, SP1: quase
SPF, SP1: quaes; CONDOTIERI;
188 Cornucópia: corno mitológico, atributo da abundância, símbolo da agricutura e do comércio.
246
55
60
65
conseguem subir até os últimos degraus da governança. O povo
honesto e laborioso, que é a verdadeira força, escorchado,189
perseguido injustamente, despossado dos seus teres, sentindo mal
segura a sua situação, já cansado de sofrer, pelo menos nestes
vastos e ubérrimos sertões, foge em multidão para os estados do
Sul, onde espera as garantias que aqui lhe faltam, sujeitando-se à
escravização e talvez aos mesmos inconvenientes que entre nós
deixou; porque o país todo está contaminado; por todo ele a
exploração da política nefasta vigente, a escorcha do fisco em
proveito dos grandes, que nadam em dinheiro à custa do
trabalhador, são a nota do dia.
SPF, SP1: preferencia; sò
SPF, SP1: cornucopia; thesouro
SPF, SP1: beneficio; nullidades
SPF, SP1: ultimos
SPF, SP1: cançado
SPF, SP1: soffre; n’estes
SPF, SP1: á escravização
SPF, SP1: paiz
SPF, SP1: elle; política
SPF, SP1: á custa
70
75
Roberto não era mais que um desses tipos fanfarrões e
desalmados que, à voz de um patrão, congregam-se para as
empreitadas reprováveis, ilícitas e perniciosas que nos infelicitam
em proveito de um ou de outro ambicioso que, sem mérito algum
pessoal, deseja galgar posição de relevo na sociedade. Não
confundamos, porém, esse tipo repelente e desprezível com o
nosso valente e destemido homem do povo. Este, homem
laborioso, pacífico e prudente, verdadeiramente dedicado a
homens de valor, acha-se pronto, ao menor rebate, a reunir-se em
torno daquele, a quem eleger pelos seus reais merecimentos, em
defesa dos mais sãos princípios.
SPF, SP1: d’esses; typos
SPF, SP1: á voz; patrão (,)
SPF, SP1: reprovaveis; illicitas
SPF, SP1: merito
SPF, SP1: porem; typo; repellente;
desprezivel
SPF, SP1: pacifico
SP1: delicado
SPF, SP1: prompto; d’aquelle
SPF, SP1: reaes
189 Escorchado: explorado, roubado.
247
SPF, SP1: principios
80
85
90
Infelizmente estes últimos são as mais das vezes
relegados ao desprezo, são esquecidos e, quando feridos em sua
dignidade ou seus interesses pelos vis e miseráveis protegidos de
certos poderosos, procuram garantir os seus direitos, são repelidos
injustamente e perseguidos como turbadores da paz e harmonia
sociais, são espoliados das suas terras, dos agros que vêm tratando
e conservando desde os seus antepassados. São eles que,
insultados por toda a sorte de males, impotentes diante dos
poderosos e da malta indigna que os rodeia, procuram outros
estados, senão, por um ato de desespero, se tornam
verdadeiramente criminosos e caem sob a ação das leis penais.
SPF, SP1: ultimos
SPF, SP1: miseraveis
SPF, SP1: repellidos
SPF, SP1: sociaes
SPF, SP1: elles
SPF, SP1: deante
SPF, SP1: rodea; sinão
SPF, SP1: acto
SPF, SP1: cahem; acçaõ; penaes
95
100
105
Estava Roberto nos seus maldosos pensamentos de
vingança e exagerado ódio, quando ouviu o ruído de passadas de
cavalgadura que se aproximava. Por curiosidade talvez, ou mesmo
receio, como sempre se acha a pessoa criminosa ou de maus
instintos, espiou cautelosamente. O que viu, transmudou-lhe
repentinamente a feição, carregando-a de uma terrível expressão
de ódio que fuzilava em seus olhos e fazia-lhe rilhar os dentes.
Repentinamente, como louco, correu ao canto do aposento,
apanhou a espingarda e aproximou-se da porta. Receando ser
visto por Serafim que chegava afastou-se um pouco se apoiando
na ombreira por traz do portal, aperrou a arma, fez ponto e deu no
gatilho. A cápsula estalou. O miserável, contrariado, ia voltando a
arma para de novo escová-la, quando se deu o estampido, já a
espingarda retirada do alvo. Roberto, no maior auge do desespero,
atirou a arma no chão vociferando colérico.
SPF, SP1: odio
SPF, SP1: ruido
SPF, SP1: approximava
SPF, SP1: instinctos
SPF, SP1: terrivel; odio
SPF, SP1: Seraphim; SPF, SP1: apoiando-
se (Emendou-se ênclise para próclise.)
SPF, SP1: capsula
SPF, SP1: miseravel
SPF, SP1: escoval-a;
248
110
SPF, SP1: desepero; colerico
–Ah! O diabo tem mendraca; tem o corpo fechado! Esta
arma nunca falhou.
Serafim, ouvindo o disparo, prontamente sacou a sua
arma da cinta, avançou para o interior.
SPF, SP1: Seraphim; desparo
promptamente
115 –Ah! Miserável! – brandou o professor – Valeu-me
Deus, que falhou o teu intento.
SPF, SP1: Miseravel
120
Roberto, vendo falha a sua tentativa, mostrou-se tão
cobarde quanto malvado. Atarantado, ocultou-se num recanto do
quarto, por traz do seu leito rudimentar, cobrindo-se com a esteira
que lhe servia de colchão. A esse tempo Abílio desceu ao terreiro.
Vinha trêmulo e pálido.
SPF, SP1: occultou-se
SPF, SP1: n’um
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: tremulo; pallido
–O que houve?! Escapei de ser assassinado de
emboscada em sua casa.
125 –Quem cometeria essa infâmia?! – perguntou Abílio. SPF, SP1: commetteria; infamia
P1, SPF: Abilio
130
–Um tal Roberto, o meeiro que você recomendou a João
– E, dizendo assim, o velho mestre-escola firmava o seu olhar
límpido e investigador no semblante do mancebo.
SPF, SP1: recommendou
SPF, SP1: limpido
–Ah! Recomendei-o supondo tratar-se de um homem
honesto.
SPF, SP1: SPF, SP1: Recommendei-o;
suppondo
–Você é pouco perspicaz, meu Abílio. SPF, SP1: Abilio
135
A esse tempo chegaram em casa. Abílio mostrava-se
contrariado e requintava as suas demonstrações de interesse pelo
seu velho mestre. Não supunha que Roberto fosse capaz de
tamanha perversidade, ainda mais quanto não lhe constava que ele
fosse inimigo de Serafim. Aparecera ali na sua ausência dizendo a
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: suppunha
SPF, SP1: elle
249
140
145
fosse inimigo de Serafim. Aparecera ali na sua ausência dizendo a
dona Úrsula que não continuava meeiro de dona Maria; mas sem
demonstrar a menor contrariedade ou ódio contra quem quer que
fosse. Acolhido por sua mãe, porque pediu que lhe desse pouso
até a sua chegada, ainda não tinha com ele estado. Sabia apenas,
por lhe ter dito sua mãe, que Roberto deixara as terras de João,
prestadas as suas contas em boa paz, sendo até gabado por dona
Maria, que se mostrou pesarosa com a sua retirada.
SPF, SP1: Seraphim; alli
SPF, SP1: ausencia; d. Ursula
SPF, SP1: d. Maria
SPF, SP1: odio
SPF, SP1: elle
SPF, SP1: d. Maria
SPF, SP1: pezarosa
150
–Tudo mentiras, Abílio, – disse Serafim, ouvindo tudo
isso. E passou a referir o que se deu.
SPF, SP1: Abilio; Seraphim
Abílio mostrou-se altamente indignado contra o biltre190
e asseverou ao professor que ia tomar sérias providências contra
Roberto, que devia ser preso e processado por crime de tentativa.
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: serias
SPF, SP1: providencias
155
–Nada disso convém. Não desejo nem quero escândalos
que de alguma forma podem prejudicá-lo em sua reputação,
Abílio. Deixe o diabo solto, que a verdadeira Justiça o punirá.
SPF, SP1: convem
SPF, SP1: escandalos; prejudical-o
SPF, SP1: Abilio
–Mas o professor não teme outra emboscada?
160
165
–Temer um patife daquela ordem! – exclamou Serafim
com uma das suas habituais gargalhadas. – Sou cachoeirano, meu
amigo. Sou descendente daqueles que fizeram o 25 de Junho. Que
venha ele, e terá a sua conta, ainda mais agora, que estou
prevenido. Depois, tenho filhos e amigos que darão a vida por
mim.
SPF, SP1: d’aquella
SPF, SP1: Seraphim; habituaes
SPF, SP1: d’aquelles
SPF, SP1: elle
–Conte-me no número deles, professor. SPF, SP1: numero; d’elles
–Agradecido. Estou certo disso – afirmou Serafim muito
seriamente.
SPF, SP1: d’isso; affirmou;
SPF, SP1: Seraphim
190 Biltre: homem vil, abjeto, infame.
250
170
–Deve estar certo, porque sempre muito considerei o
meu velho professor – tornou Abílio com disfarçada acrimônia.
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: desfarçada; acrimonia
175
–É justamente por esta consideração que eu tenho
certeza da sua amizade. Deixemos, porém, de rasgar sedas por
coisa que não nos adianta. Vim aqui a negócio logo que soube da
sua chegada.
SPF, SP1: porem
SPF, SP1: cousa; adeanta
SPF, SP1: negocio
–Do que se trata, professor? – perguntou Abílio fingindo
ignorar.
SPF, SP1: Abilio
–Dona Úrsula nada lhe disse? SPF, SP1: D. Ursula
–Não.
180
–Vim aqui outro dia resgatar as letras de João, que é o
desejo dele pagar pontualmente antes de vencidos juros.
SPF, SP1: lettras
SPF, SP1: d’elle
–Minha mãe nada me disse; naturalmente esqueceu-se.
Eu mesmo não me lembrava disso.
SPF, SP1: d’isso
185 –Pois vim em tempo, mas a senhora sua mãe não quis
receber o dinheiro. João, portanto, não está em falta.
SPF, SP1: quiz
190
–João é corretíssimo, bem sei, e por isso mesmo é que
não me preocupo com a sua dívida, nem tampouco me lembro do
prazo.
SPF, SP1: correctissimo
SPF, SP1: divida
SPF, SP1: tampouco
–Tratemos, pois, de concluir esse negócio. Veja as letras. SPF, SP1: negocio
SPF, SP1: lettras
195
200
Abílio pediu licença a Serafim para ir ao seu gabinete
em busca das letras. Por esforço enorme pôde conservar-se calmo
e aprumado à vista do professor; mas achava-se tomado de grande
emoção por temer mais uma vez que Serafim descobrisse a sua
tratantada. Entrando no seu gabinete, embora bem soubesse onde
se achavam guardados os documentos, demorou-se perplexo e
irresoluto convencido de que o professor atribuísse a sua
prolongada ausência motivada pela procura deles.
SPF, SP1: Abilio; Seraphim
SPF, SP1: lettras
SPF, SP1: á vista
SPF, SP1: Seraphim
251
SPF, SP1: attribuisse; ausencia
SPF, SP1: d’elles
205
210
215
Não era o pesar de cometer uma ação indigna que
ocasionava a perturbação em que se achava Abílio na sua
irresolução. Era o temor daquele terrível agros que, nas suas
palavras, deixaram ver uma tal ou qual desconfiança a seu
respeito quanto ao grave incidente que se deu com Roberto
poucos momentos antes. O seu espírito vacilava entre apresentar
as letras falsas ou as verdadeiras, tendo-as todas em suas mãos e
mais uma vez examinando-as cuidadosamente a fim de verificar
se por um traço, um descuido ou qualquer falha, seria descoberta a
falsificação. Era, entretanto, urgente que se decidisse, porque
também isso daria lugar a desconfianças. Por fim decidiu-se a não
levá-las e declarar que debalde as procurou.
SPF, SP1: pezar; commetter; acção
SPF, SP1: occasionava; Abilio
SPF, SP1: d’aquelle; terrivel
SPF, SP1: palavras (,)
SPF, SP1: espirito; lettras
SPF, SP1: afim de
SPF, SP1: si
SPF, SP1: tambem
SPF, SP1: Porfim; leval-as
–Ora, professor, – disse Abílio quando voltou à sala, –
não pude encontrar as letras. Procurei-as num mar de papéis e foi
debalde.
SPF, SP1: Abilio; á sala
SPF, SP1: sala (,); lettras, n’um
SPF, SP1: papeis
220
225
–Nesse caso, passe-me um recibo com as declarações
indispensáveis a fim de ser salvaguardada a minha
responsabilidade como encarregado, e para que fique pago o
débito. Trago aqui um conto e duzentos mil réis, em quanto orçam
os dois documentos; mas o último não vence agora e João tem
direito a desconto.
SPF, SP1: N’esse
SPF, SP1: indispensaveis; afim de
SPF, SP1: debito
SPF, SP1: reis; dous
SPF, SP1: ultimo
–Creio haver engano, professor. A letra vencida absorve
toda essa quantia. Com ela não ficam pagas as duas.
SPF, SP1: lettra
SPF, SP1: ella
230
–O que?! – exclamou Serafim – Se há engano é de sua
parte, Abílio. A letra mais antiga é de 800$000 e a última de
400$000.
SPF, SP1: Seraphim; Si; ha
SPF, SP1: Abilio; lettra
SPF, SP1: ultima
252
400$000.
–Não. A primeira é de 1:200$000 e a outra de 600$000.
235
–E esta! Será possível?! Procure essas letras; é preciso
que esse engano seja desfeito. Vá! Vá! Eu terei paciência para
esperar.
SPF, SP1: possivel; lettras
SPF, SP1: paciencia
240
245
Abílio voltou ao gabinete contrariadíssimo. Não contava
com essa exigência do professor, que, aliás, era razoável. Na sua
indecisão alguma coisa parecia soar na sua consciência
ameaçando-o de um perigo futuro. Serafim amedrontava-o com a
sua fleuma e seriedade. Que fazer? Veio-lhe a idéia apresentar a
letra verdadeira de maior quantia e a menor falsificada. Em todo
caso era preciso demorar alguns minutos à pretexto de procurá-
las. Passava por seu cérebro diversos pensamentos e idéias de
medo e perversidade.
SPF, SP1: Abilio; contrariadissimo
SPF, SP1: exigencia
SPF, SP1: razoavel
SPF, SP1: consciencia
SPF, SP1: Seraphim
SPF, SP1: phleugma; idéa
SPF, SP1: lettra
SPF, SP1: á pretexto; procural-as;
SPF, SP1: cerebro; idèas
250
255
260
O medo era o sentimento que lhe infundia o professor
com a sua calma denunciativa de desconfiança contra o antigo
discípulo, a quem ele bem conhecia desde criança. A perversidade
com um princípio de rancor consistia na idéia que, desde muito
tempo, o preocupava: ver-se livre daquele espírito vigilante e
perspicaz que lhe era um terrível Cabrião. Ah! Se Roberto não
fosse um desastrado e imprudente; se não tivesse escolhido sua
casa para emboscar-se; se, mesmo assim imprudente, tivesse
conseguido o seu malvado intento, estaria ele fora de perigo,
poderia agir desembaraçadamente. Estava tudo perdido. Roberto,
aquele miserável idiota, pusera uma travanca nos seus planos tão
bem estudados e delineados. Era-lhe preciso recompor tudo
quanto vinha planejado. Um ódio profundo emergia da sua alma
negregada contra o velho mestre-escola e, quanto a Roberto, que
SPF, SP1: discípulo; elle
SPF, SP1: creança
SPF, SP1: principio; idéa
SPF, SP1: preoccupava; d’aquelle; espirito
SPF, SP1: terrivel; Si
SPF, SP1: si
SPF, SP1: si
SPF, SP1: intento; (,); elle
SPF, SP1: aquelle; miseravel; puzera
SPF, SP1: odio
253
265
se constituiu um perigo à sua segurança, vinha-lhe a idéia de
consumi-lo, fazê-lo desaparecer fosse como fosse.
SPF, SP1: á sua; idéa
SPF, SP1: desapparecer
270
Passados muitos minutos, Abílio apresentava-se a
Serafim com as duas letras. O velho achava-se calmo e sereno;
mas o mancebo, por mais procurasse aparentar serenidade de
ânimo, não conseguia ocultar a perturbação em que estava.
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: Seraphim; lettras
SPF, SP1: animo; occutar
275
–Estão aqui as letras, professor. Tive grande trabalho
procurando-as. Realmente a mais antiga, cujo prazo se venceu, é
de 800$000 e a outra de 600$000. Veja.
SPF, SP1: lettras
280
Serafim examinou-as e, sem se alterar, mas com uma
seriedade e frieza que causaram impressão ao mancebo disse:
SPF, SP1: Seraphim
285
290
–Sempre houve um pequeno engano, decerto do João,
que me diz ser de quatrocentos mil réis o débito por vencer. –E,
recebendo as duas letras, pagou-as ambas inteirando a soma dos
títulos apresentados. Abílio queria fazer o desconto, mas Serafim
dispensou. Era tão insignificante a importância dele, dizia o velho,
e João devia tantos obséquios ao credor, que não valia a pena
aproveitar essa migalha. Abílio insistiu, mas o professor
observou-lhe que o desconto ficava em compensação dos juros
vencidos nos dias excedentes do prazo da maior letra.
SPF, SP1: debito; lettras
SPF, SP1: somma; titulos;
SPF, SP1: Abilio; Seraphim
SPF, SP1: importancia; d’elle
SPF, SP1: obsequios
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: lettra
Serafim despediu-se de Abílio e, ao montar-se, sacou a
sua arma da cinta, preparando-se assim para defender-se de nova
agressão; mas Roberto bem longe estava da idéia de nova
SPF, SP1: Seraphim; Abilio
SPF, SP1: aggressão
254
295
300
tentativa, temendo até ser visto pelo professor, cuja agilidade que
mostrou, procurando defender-se, deixou uma funda impressão no
espírito cobarde do celerado. Mal desapareceu o velho mestre-
escola, Abílio, certificado de que por ele não seria visto,
encaminhou-se para o esconderijo do seu protegido que, assentado
no recanto mais escuro, não fugiu porque a quadra só tinha a porta
da frente.
SPF, SP1: idéa
SPF, SP1: espirito
SPF, SP1: scelerado; desappareceu
SPF, SP1: Abilio; elle
–Roberto! – chamou Abílio por não vê-lo logo. SPF, SP1: Abilio; vel-o
–Ah! É o patrão! Não me faça nada, patrão.
305 –Não tenha receio de coisa alguma por ora. Mas... que
diabo foi isso?
SPF, SP1: cousa
Ah! Eu perdi a cabeça quando vi aquele diabo! Patrão,
aquilo é mendraqueiro, ou então tem carta de arma.
SPF, SP1: aquelle
SPF, SP1: aquillo; d’arma
310 –Por que? Porque (Emendou-se corrigindo conforme
regra de uso do porque.)
–Esta arma – falou com soberba – nunca falhou tiro.
–Mas o tiro saiu, que eu ouvi. SPF, SP1: sahiu
315
–Quebrou a escorva, mas o fogo não pegou logo.
Quando eu vou voltando a arma para consertar, o tiro disparou
fora do ponto e quase me mata. Por um tiquim escapei. Pois o
demônio do velho, não está se vendo que tem reza ou corpo
fechado?
SPF, SP1: p’ra
SPF, SP1: desparou; quasi
SPF, SP1: TIQUIM; demonio
320
325
Roberto revelava-se supersticioso ao extremo, o que
mais convenceu a Abílio de que lhe não servia para a realização
dos seus desígnios. Era indispensável, fosse por que meio fosse,
pelas razões que lhe vieram ao pensamento logo depois da
violenta crise verdadeiramente epiléptica que demonstrou ser o
miserável um paranóico incapaz de refletir calmamente no
momento mais preciso de serenidade e superexcitando-se tanto,
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: realisação; designos;
indispensavel
SPF, SP1: epileptica
SPF, SP1: miseravel; paranoico; reflectir
255
transformando-se em fera que a ninguém atenderia, quanto depois
se mostrava cobarde e supersticioso.
SPF, SP1: superexcitando-se
SPF, SP1: ninguem; attenderia; mostrava-
se (Emendou-se ênclise para próclise.)
330 –Agora, o que vai fazer? –perguntou por fim Abílio
depois de alguns momentos de reflexão.
SPF, SP1: vae; porfim
SPF, SP1: Abilio
–Vou-me embora para São Paulo. Já estive lá uma vez.
Não fico mais aqui.
SPF, SP1: Vou-m’embora; S. Paulo; la
335
Abílio resfolegou. Ia ficar livre daquele trambolho. SPF, SP1: Abilio; d’aquelle
–O patrão é meu protetor, e há de me dar algum dinheiro
para viagem e ficar com os trens que eu deixei lá nas terras
daquela gente.
SPF, SP1: proctetor
SPF, SP1: p’ra
SPF, SP1: la; d’aquella
–Está dito. É bom seguir logo viagem.
340 –Amanhã mesmo, de madrugada.
–Quanto precisa de dinheiro?
–O patrão dê o que quiser. SPF, SP1: quizer
345
No dia seguinte, no escuro da madrugada, Roberto
tomou o caminho de São Paulo. Além de dar-lhe algum dinheiro,
Abílio e sua mãe forneceram-lhe um saco com algumas munições
de boca. A velha lastimava não ter o meeiro dado cabo do
canastro do velho Serafim.
SPF, SP1: S. Paulo; Alem
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: sacco; bocca
SPF, SP1: Seraphim
350
–Que pena escapar aquele maldito! –exclamava. –Pode
aparecer outro...
SPF, SP1: aquelle
SPF, SP1: apparecer
V
Serafim, voltando para a sua casa, ia pensando em SPF, SP1: Seraphim
256
5
10
15
Abílio. Tudo concorria em seu espírito para suspeitas que lhe
pareciam bem próximas da verdade. Conhecia de sobra o seu
antigo discípulo para que tivesse elementos fartos no seu estudo
ocasional daquele birbante.191 Abílio era hipócrita, mentiroso,
refalsado e capaz de todas as infâmias e perversidades. Quando
da falsificação da carta depreciativa do caráter da donzela, ainda
restava ao professor uma leve esperança de conseguir a
regeneração daquele degenerado; mas os fatos vieram depois
patentear à sociedade que o rapaz era um caso perdido, digno da
sua progenitora, que também Serafim conhecia desde a sua
mocidade como mexeriqueira, refalsada, capaz de praticar as
maiores indignidades.
SPF, SP1: Abilio; espirito
SPF, SP1: proximas
SPF, SP1: discipulo
SPF, SP1: occasional
SPF, SP1: d’aquelle; Abilio; hypocrita
SPF, SP1: infamias
SPF, SP1: caracter; donzella
SPF, SP1: d’aquelle
SPF, SP1: factos; á sociedade
SPF, SP1: tambem; Seraphim
20
25
A tocaia de Roberto na própria casa do seu patrão e o
aumento da dívida de João ofereciam ao espírito arguto do velho
mestre-escola farta messe para o estudo do caráter de Abílio.
Tudo repousava sobre indícios e conjecturas, é certo; mas como
rastrear a obra dos dissimulados senão por aí? O conjunto de
tantos e tão veementes indícios, estudado pelo velho com o
confronto daquele caráter quando na infância, quando a criança
ainda possui em gérmen192 apenas as suas más tendências e não
sabe ocultá-las, segundo apreciava o seu espírito perspicaz,
aproximava agora tanto a conjectura da verdade, que chegava a
confundir a dúvida com a certeza.
SPF, SP1: propria
SPF, SP1: augmento; divida; offereciam
SPF, SP1: espirito
SPF, SP1: caracter; Abilio
SPF, SP1: indicios
SPF, SP1: sinão; ahi
SPF, SP1: conjuncto; vehementes;
indicios
SPF, SP1: d’aquelle; caracter
SPF, SP1: infancia; creança; possue
SPF, SP1: germen; tendencias; occutal-as
SPF, SP1: espirito
SPF, SP1: approximava
SPF, SP1: duvida
Serafim, honesto e escrupuloso em excesso, temia fazer SPF, SP1: Seraphim
191 Birbante: patife, tratante. 192 Gérmen: variante de germe.
257
30
35
juízos temerários; mas o fato da carta falsa, crime confesso de
Abílio, do qual lançou mão o mestre-escola procurando afastar o
criminoso do caminho mau que seguia, procedendo com ele
generosamente, era um precioso elemento de modo que provava
até que ponto era baixo o caráter do seu antigo discípulo.
“Cesteiro que fez um cesto...”
SPF, SP1: juizos; temerarios; facto
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: elle
SPF, SP1: caracter
SPF, SP1: discipulo
40
45
50
O caso da carta era uma fresta por onde ele devassava
bem claramente até que ponto ia a capacidade de Abílio em fazer
mal a outrem para o seu proveito, não desprezando os meios mais
infames e reprováveis. E o anexim193 adaptava-se perfeitamente
ao caso, dando lugar a que Serafim estivesse quase certificado de
que a nota promissória de valor aumentado era mais uma
falsificação feita pelo hábil cesteiro de antanho. Ia examiná-la
cuidadosamente para tirar uma conclusão que se não se afasta da
verdade em sua inteireza. Para que Abílio lançaria mão de meio
tão ignóbil para prejudicar ao seu antigo condiscípulo? Ganância
de lucro? Que valiam duzentos mil réis para um moço rico,
apaixonado, capaz de sacrificar quantia muitas vezes superior
para satisfazer os seus caprichos?
SPF, SP1: elle
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: reprovaveis; annexim
SPF, SP1: Seraphim; quasi
SPF, SP1: promissoria
SPF, SP1: augmentado; habil
SPF, SP1: examinal-a
SPF, SP1: afasta-se (Emendou-se.)
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: ignobil
SPF, SP1: condiscipulo; Ganancia
55
Depois se lembrava o mestre-escola que a princípio lhe
dissera Abílio que somente o débito maior já vencido, montava a
um conto e duzentos. Dir-se-ia que a letra relativa a este débito
também fora falsificada? Se o fora, por que o mancebo não a
apresentara? Então lhe vinha à idéia tudo quanto presenciara
quando liquidava o negócio: o atarantamento de Abílio quando,
SPF, SP1: lembrava-se (Emendou-se.)
SPF, SP1: principio; Abilio; debito
SPF, SP1: ja
SPF, SP1: lettra; debito; também foi
SPF, SP1: Si o foi; porque
SPF, SP1: apresentou; vinha-lhe
(Emendou-se.); á idéa
SPF, SP1: precenciou; negocio
SPF, SP1: Abílio
193 Anexim: adágio, ditado, provérbio.
258
60
65
ao voltar do gabinete, informava não ter encontrado os
documentos, à exigência peremptória que lhe fez de procurá-los
de novo, a qual arrancou ao mancebo um gesto quase
imperceptível de contrariedade; a sua demora na segunda busca,
e tantos outros incidentes para outro insignificantes, mas para ele
de certo valor, enfeixados, pode-se dizer ajustados, como peças
de uma máquina que se reconstitui, tomava feição de prova
inconcussa.
SPF, SP1: á exigencia; peremptoria
SPF, SP1: procural-os
SPF, SP1: gesto; quasi; imperceptivel
SPF, SP1: elle
SPF, SP1: machina; reconstitue
70
75
Pensou Serafim que Abílio, tendo falsificado ambas as
letras, atrapalhado, indeciso às exigências apertadas do momento,
ou aterrorizado ao ver a serenidade severa com que era apertado,
não teve coragem de apresentar as duas. Tudo isso estava a pedir
um demorado estudo.
SPF, SP1: Seraphim; Abilio
SPF, SP1: lettras; ás exigencias
80
85
Quanto à emboscada, o que pensar? Roberto foi
colocado, a pedido de Abílio, nas terras de João, como meeiro.
Porque o não colocou nas suas, que mais vantagens ofereciam ao
seu protegido? Em torno dessas e outras muitas circunstâncias
girava ao pensamento do velho professor, procurando uma
explicação, e só encontrando esta: o meeiro Roberto fora
colocado por Abílio nas terras do seu jovem amigo e antigo
discípulo para a realização de qualquer ação má. Serafim sabia,
como João também, que o meeiro, desde que ali foi colocado
como rendeiro, aos domingos e dias de folga não deixava de ir à
casa de Abílio, onde, às vezes, chegava a demorar durante o dia;
mas era atribuído por João ao reconhecimento que o sujeito
dedicava ao seu protetor. O mestre-escola não se abalançava a
SPF, SP1: á emboscada
SPF, SP1: collocado; Abilio
SPF, SP1: collocou
SPF, SP1: offereciam
SPF, SP1: d’essas; circunstancias; gyrava
SPF, SP1: professor (,)
SPF, SP1: collocado; Abilio; joven
SPF, SP1: discipulo; realisação
SPF, SP1: acção; Seraphim; tambem
SPF, SP1: alli
SPF, SP1: á casa
SPF, SP1: Abilio; onde ás vezes (,)
SPF, SP1: attribuido
SPF, SP1: protector
259
90
95
dedicava ao seu protetor. O mestre-escola não se abalançava a
chamar a atenção de João para isso, não só porque o meeiro, por
um fato, mesmo leve e insignificante, não se tivesse revelado
desonesto, como porque não desejava parecer fautor de
desinteligências entre pessoas que se confiavam como o meeiro e
o seu patrão.
SPF, SP1: attenção
SPF, SP1: facto
SPF, SP1: deshonesto
SPF, SP1: desintelligencias
100
105
110
115
Desde, porém, que o protegido de Abílio, por ocasião de
prestar as suas contas, mostrara uma índole inteira e
diametralmente oposta ao seu anterior procedimento, ficara o
professor convencido de que ele um refinado tratante e que a sua
constante mudez e semblante fechado eram estudados e tinham
fim tendencioso. Um indivíduo bronco e baldo de educação
como ele fez-se conhecer então, levantando uma questão injusta e
rompendo violentamente com pessoas a quem nunca deixara de
respeitar e agora invectivava com palavras indecentes próprias do
canalha o mais ignóbil, era insinuado com certeza por um mestre
hábil, e esse mestre era Abílio. Deixando tudo quanto possuía,
Roberto abandonou o agro, sem recurso algum, e fora
imediatamente acoitar-se em casa do seu protetor e amigo, sendo
acolhido pela boa de sua mãe que, naturalmente, além de dar-lhe
pouso, manteve-o até a chegada do filho, que veio inteirar a
trindade infame e ver que o seu discípulo dedicado ia levando por
diante o que lhe foi recomendado e insinuado.
SPF, SP1: Desde (,); porem; Abiílio
SPF, SP1: occasião; mostrou; indole
SPF, SP1: opposta
SPF, SP1: ficou; elle
SPF, SP1: individuo
SPF, SP1: elle
SPF, SP1: deixou
SPF, SP1: proprias
SPF, SP1: ignobil
SPF, SP1: habil; Abilio
SPF, SP1: possuia
SPF, SP1: foi immediatamente
SPF, SP1: protector
SPF, SP1: alem
SPF, SP1: discipulo
SPF, SP1: deante; reccomendado
260
120
125
130
Para que tudo isso? pensava Serafim. Abílio, o antigo
rival de João, ainda mantinha aceso o incêndio passional que
chegou à prática a mais indigna quando, falsificando uma carta,
procurou compuscar a reputação de dona Maria e precipitá-la do
pináculo da sua virtude no charco imundo das suas pretensões,
impossibilitado como se sabia de elevar-se para possuí-la em tal
altura. Supôs que a sua fortuna pecuniária, deslumbrando a
virtuosa donzela, fosse um meio seguro, uma irresistível tentação
que vencesse a sua repugnância. O casamento, porém, deu por
terra com as pretensões do fidalgote endinheirado e levantou
entre ele e a pretendida um obstáculo: João, a quem ele conhecia
desde a infância como honesto, bem intencionado, mas de uma
excessiva boa fé. Era preciso afastá-lo, e Abílio o conseguiu.
Restava, porém, ele Serafim.
SPF, SP1: Seraphim; Abilio
SPF, SP1: acceso; incendio
SPF, SP1: á pratica
SPF, SP1: d. Maria; precipital-a; pinaculo
SPF, SP1: immundo; pretençoões
SPF, SP1: possuil-a; Suppoz
SPF, SP1: pecuniaria; donzella
SPF, SP1: irresistivel
SPF, SP1: repugnancia; porem
SPF, SP1: pretenções
SPF, SP1: elle; obstaculo
SPF, SP1: elle; infancia
SPF, SP1: afastal-o; Abilio
SPF, SP1: porem; elle; Seraphim
135
140
Ah! Abílio era capaz de todas as infâmias; era mais vil e
abjeto do que lhe parecia, embora já o tivesse em conta de
astucioso e perverso. Para ele não havia embaraço que impedisse
os seus intentos negregados e, se dona Maria não fosse a moça
inteligente e honesta que ele conhecia, já o miserável teria
procurado jeito de apossar-se dela, mesmo por meios violentos.
SPF, SP1: Abilio; infamias
SPF, SP1: abjecto; ja
SPF, SP1: peverso; elle
SPF, SP1: d. Maria
SPF, SP1: intelligente; ja; miseravel
SPF, SP1: jeito; d’ella
145
Neste ponto das suas cogitações Serafim sentiu um
frêmito de horror. Acudiu-lhe à mente a possibilidade de ser
assassinado por Abílio a fim de ser desimpedido o caminho que
ele com pertinácia tentava seguir à conquista da esposa de João;
pois estava convicto de que todas as maranhas que o vil mancebo
tecia, todos os seus planos, urdidos na sombra por ele, tendiam
unicamente a esse fim desonesto e reprovável. Era preciso
SPF, SP1: N’este; Seraphim
SPF, SP1: fremito; á mente
SPF, SP1: Abilio; afim de
SPF, SP1: desempedido; elle; pertinácia,
(Emendou-se.)
SPF, SP1: á conquista
261
150
155
160
unicamente a esse fim desonesto e reprovável. Era preciso
prevenir a pobre senhora e recomendar-lhe a mais severa
vigilância, embora isso fosse perturbar a paz e ingênua segurança
que ela gozava, incapaz, pela sua boa fé e candura, de calcular
que o seu antigo pretendente fosse tão infame a esse ponto. O
pobre velho sentia-se profundamente abalado, ansiava como se o
perigo que se lhe afigurava fora iminente, estivesse por horas.
Esporeou o animal e, por um atalho, chegou à casa de sua
comadre. Chegou mais calmo e, tendo refletido sobre este último
passo que lhe veio à idéia, julgou conveniente não alarmar a
pobre senhora; mas preveni-la com prudência contra o malicioso.
SPF, SP1: elle
SPF, SP1: deshonesto; reprovavel
SPF, SP1: recommendar-lhe; vigilancia
SPF, SP1: ingenua
SPF, SP1: ella; gosava
SPF, SP1: anceava; si
SPF, SP1: imminente
SPF, SP1: á casa
SPF, SP1: reflectido
SPF, SP1: ultimo; á idea
SPF, SP1: prevenil-a; prudencia
165
Maria acolheu o seu velho mestre com a satisfação e a
alegria de sempre; entanto, inteligente, e até certo ponto
perspicaz, notou em seu semblante um quer que fosse de
alteração e inusitada preocupação; mas aguardou que Serafim lhe
dissesse o que o levava ali.
SPF, SP1: emtanto; intelligente
SPF, SP1: preoccupação
SPF, SP1: Seraphim
SPF, SP1: alli
170 –Minha comadre – foi logo informando o professor
quando se achava na sala, – ninguém nos ouve?
SPF, SP1: comadre, (Emendou-se.)
SPF, SP1: sala (, –); ninguem
–Estamos sós – respondeu Maria meio alvoroçada. – O
que há?
SPF, SP1: alvoraçada; ha
175 –Não se assuste. Acabo de escapar de boa. Roberto
acha-se homiziado194 na casa de Abílio. O miserável procurou
outro da sua igualha195 a quem protege e garante.
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: miseravel; egualha
–Calculei logo que Roberto fosse ter com ele. SPF, SP1: elle
194 Homiziado: escondido, refugiado. 195 Igualha: identidade de feito, na maneira de pensar.
262
180 –É natural, porque, sendo Abílio o seu protetor, só por
lá poderia acomodar-se; mas o meu juízo não pára nisso, Deus
me perdoe. Roberto é um instrumento do seu protetor para fins
perversos. Andam-nos moiros na costa.
SPF, SP1: Abilio; protector
SPF, SP1: la; accommodar-se
SPF, SP1: juizo; pára n’isso; perdôe
SPF, SP1: protector; peversos
185 –Descobriu alguma coisa? SPF, SP1: cousa
190
–Venho descobrindo há muito tempo; mas sempre
guardando reserva porque não desejo sobressaltá-los. Desde que
o Roberto aqui se apresentou como recomendado por Abílio,
venho desconfiando do protegido e do protetor, dignos um do
outro.
SPF, SP1: sobresaltal-os
SPF, SP1: recommendado; Abilio
SPF, SP1: protector
–Ah! Meu Deus! Isso é grave – exclamou aflita a pobre
moça.
SPF, SP1: afflicta
195
–Não tenha receio. Veio a tempo de tomar-se
precauções a última descoberta que fiz.
SPF, SP1: ultima
–Mas que há, meu Deus! SPF, SP1: ha; SP: meu Deus!? Succedeu-
lhe alguma cousa?
–Não se assuste. Escapei de ser assassinado na própria
casa de Abílio.
SP, SPF, SP1: propria; Abilio
200
–Meu Deus! Abílio tentou contra a vida do senhor? SPF, SP1: Abilio; SP: -Oh!! mas isso é
horrivel! Abilio tentou contra a vida do
senhor?!
–Abílio não; mas o Roberto. Refiro-lhe o fato, mas peço
a maior reserva; não convém que alguém saiba disso, mesmo
pessoa de sua família.
SP, SPF, SP1: Abilio; facto
SP, SPF, SP1: convem; alguem
SP, SPF, SP1: d’isso; familia
205
E Serafim referiu como se deu a tentativa de Roberto, o
malogro dela, a cobardia do miserável, as explicações de Abílio,
que se mostrou contrariadíssimo e até quis prender o agressor, o
que ele, o professor, não consentiu.
SP, SPF, SP1: Seraphim
SP, SPF, SP1: mallogro; d’ella; miseravel
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: contrariadissimo; quiz;
aggressor
SP, SPF, SP1: elle
210
–Nesse caso, Abílio não é responsável pelo atentado. SP, SPF, SP1: N’esse; Abilio; responsavel
SP, SPF, SP1: attentado
–Na aparência, minha comadre. SP, SPF, SP1: apparencia
–Mas há motivo algum para que assim julgue? SP, SPF, SP1: ha
263
215
220
–Mais tarde saberá. Ainda não estou de posse de todos
os fios da trama urdida por Abílio; apoio o meu juízo em meras
conjecturas que, entretanto, aproximam-se bem da verdade.
Deixemos isso, e tratemos dos negócios de João. Resgatei as
duas letras, que aqui lhe trago. Ei-las. – E entregou a Maria os
dois títulos resgatados pedindo-lhe que os examinasse.
SP, SPF, SP1: Abílio
SP, SPF, SP1: juizo
SP, SPF, SP1: approximam-se
SP, SPF, SP1: negocios
SP, SPF, SP1: lettras; Eil-as
SP1: dous; titulos
SP, SPF, SP1: examinasse (.)
–Mas como é isso!? – exclamou Maria, admirada depois
do exame. –A letra menor de seiscentos mil réis.
SP, SPF, SP1: lettra
–Estão ambas pagas.
225 –Mas o dinheiro mandado por João não dava para o
pagamento.
–Inteirei. Naturalmente João enganou-se.
230
–Não, professor. Estou bem certa de que o total era um
conto e duzentos mil réis,196 e tenho nota disso. Depois, sei,
porque conheço o negócio desde a sua origem, que há um
acréscimo de duzentos mil réis.
SP1: eram; SP, SPF, SP1: um conto e
quatrocentos mil reis, (Emendou-se.);
negocio
SP, SPF, SP1: ha; accrescimo
235
240
–O que é interessante é que Abílio, antes de apresentar-
me as letras, asseverou-me ser o total do débito da importância de
1:800$000. Achei demais. O rapaz procurou no seu gabinete os
dois títulos e voltou dizendo-me que foi debalde; que não os
achou. Exigi com calma que os procurasse de novo, o que o
contrariou bastante; mas da segunda vez voltou com estes.
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: lettras
SP, SPF, SP1: debito; importancia
SP, SPF, SP1: dous; titulos
–Neste caso... o que pensar? SP, SPF, SP1: N’este
–Acode-lhe ao pensamento que as letras foram SP: Acho que uma das lettras foi
falsificada.; SP1; SPF: lettras
196 Os três testemunhos apresentam erro óbvio “um conto e quatrocentos meil reis” em vez de “um conto e duzentos mil réis”, confira capítulo IV, linhas 224 – 235.
264
falsificadas?
245
–Pelo menos uma. Mas, se o foi, o falsificador é
habilíssimo.
SP: Não so uma, segundo me diz quanto á
primeira informação de memoria dado por
Abilio.; SPF, SP1: si; habilissimo
250
–É o que me parece197. Convém, entretanto, que
guardemos a maior reserva, porque só assim poderemos
descobrir alguma coisa. Quanto ao mais, procurarei por meio de
um pretexto qualquer, pôr os seus restantes meeiros de
sobreaviso; usarei de um estratagema qualquer a fim de não dar
rebate e alarmá-los. Fique tranqüila, minha boa comadre, e tenha
confiança nAquele que é a nossa guarda e proteção segura.
SP: Parece-me que sim...; SPF, SP1:
Convem
SPF, SP1: cousa
SP, SPF, SP1: afim de
SP, SPF, SP1: alarmal-os; tranquilla
SP, SPF, SP1: n’Aquelle
SP, SPF, SP1: protecção
255 E, despedindo-se, Serafim198 seguiu para a sua
residência.
SP: Seraphim despediu-se...; SPF, SP1:
Seraphim
SP, SPF, SP1: residencia
VI
5
10
Dois dias depois do que se passou entre Abílio e o seu
velho professor apeou o mancebo à tardinha, já o sol posto, em
frente da casa de dona Maria que, ouvindo os passos da
cavalgadura, veio à porta. Não deixou de surpreender-se à vista
dessa visita inopinada a tão adiantada hora; mas recebeu-a sem
demonstrar estranheza no semblante. Inteirada como se achava,
por pessoa que tanta confiança lhe merecia como o velho mestre-
escola, o leitor bem pode avaliar que pobre moça só poderia
recear à visita desse hóspede importuno, cujo caráter infame era
SP: Dias depois (...) entre Abilio, Roberto
e o professor, foi Maria SP: surprehendida
á tardinha, já sol posto, por uma visita de
Abilio.; SPF, SP1: Dous; Abilio; á
tardinha; ja; d. Maria
SP, SPF, SP1: susprehender-se; d’essa; á
vista
SP, SPF, SP1: adeantada
SP, SPF, SP1: extranheza
197 SP: Parece-me que sim; mas não comprehendo porque Abilio me apresentou estas somente. (...) Lançarei mão de qualquer meio para isso, para não chamal-os ao ponto de espalharem noticias do facto que se deu commigo, o que não convem. Quanto ao Abilio, estou certo que guardará segredo no seu proprio interesse. Fique... 198 Seraphim despediu-se mostrando-se confiante, mas no seu intimo, achava-se receioso por si e por sua comadre.
265
15
20
recear à visita desse hóspede importuno, cujo caráter infame era
capaz de tudo praticar de mal. Só agora podia avaliar o perigo
que corre a segurança e até a honra de uma mulher que reside em
lugar ermo, ausente o esposo e qualquer pessoa que a possa
defender, mas, enérgica como era dona Maria, zelosa da sua
integridade moral e dos seus créditos, apelou para Deus e,
fervorosamente pediu-Lhe, por intermédio de Jesus e de sua Mãe
Santíssima, a proteção que lhe falhava no mundo visível.
SP, SPF, SP1: á visita; d’esse; hospede
SP, SPF, SP1: caracter
SP, SPF, SP1: energica
SP, SPF, SP1: d. Maria
SP, SPF, SP1: creditos; appellou
SP, SPF, SP1: intermedio
SP, SPF, SP1: Santissima; protecção
SP, SPF, SP1: visivel
25
Veio-lhe à idéia que Abílio, o pretendente malogrado à
sua mão, refalsado como era, bem capaz seria de uma ação
indigna e violenta, conferindo as suas anteriores idéias a respeito
com o que lhe referiria o velho e perspicaz mestre-escola, homem
honesto e sensato que nunca avançava um conceito sem bases
seguras sobre o seu julgamento.
SPF, SP1: Veio lhe; á idéa; Abilio
SP, SPF, SP1: mallogrado; á sua
SP, SPF, SP1: acção
SP, SPF, SP1: idéas
30
O que queria Abílio àquela hora em sua casa? Todos
estes pensamentos passaram rápidos pelo seu espírito; mas, firme
e confiada no auxílio da Providência, acolheu o visitante como
devia. Uma vez na sala, o mancebo expôs o que ali o levava
como motivo ou pretexto.
SP, SP1, SPF : Abilio; aquella
SP, SPF, SP1: rapidos
SP, SPF, SP1: espirito; auxilio
SP, SPF, SP1: Providencia
SP, SPF, SP1: expoz; alli
35 –Minha senhora, vim comunicar-lhe que o Roberto,
retirando-se daqui, não querendo absolutamente voltar apesar das
minhas insistências vendeu-me tudo quanto aqui possui e seguiu
viagem.
SPF, SP1: senhora (,); communicar-lhe
SP1, SPF: d’aqui
SP1, SPF: apezar; insistencias
SPF, SP1: possue
40
–Estou ciente, e o senhor poderá mandar buscar o que
lhe pertenceu. Quanto ao Roberto, ainda que voltasse, eu não
mais o aceitaria em minhas terras, porque procedeu
SP, SPF, SP1: sciente
SP, SPF, SP1: acceitaria
266
mais o aceitaria em minhas terras, porque procedeu
pessimamente.
45
–Oh! muito sinto, dona Maria. Sabe que sempre lhe
dediquei o maior afeto e muito me interesso pela sua felicidade e
por João, ainda mais por ser seu esposo.
SPF, SP1: d. Maria; sinto (,)
SPF, SP1: affecto
50
Maria fez-se desentendida à segunda intenção contida
nas palavras de Abílio. Inteligente como era, e ainda mais
prevenida contra o seu antigo pretendente viu nele um começo de
talvez mais graves e frisantes alusões a uma paixão reprovada
que – quem sabe? – queria trazer à tona da conversação
aproveitando-se de se acharem a sós.
SPF, SP1: á segunda
SPF, SP1: Abilio; Intelligente
SPF, SP1: n’elle; frizantes
SPF, SP1: allusões
SPF, SP1: á tona
55
–Obrigado por João – respondeu Maria
intencionalmente.
–Mas... supus que o Roberto tivesse saído
daqui em paz...
SPF, SP1: suppuz; sahido
SP, SPF, SP1: d’aqui
–Em paz saiu: pessoa alguma ofendeu. SP, SPF, SP1: sahiu; offendeu
60
–Soube depois que andou mal, o que muito
senti. Quando o apresentei parecia-me um sujeito
sério e honesto. Nada me disse nem queixou.
SPF, SP1: serio
–O senhor devia logo ver que, quando ele
não quis voltar em procura do que era seu, alguma
coisa devia ter havido.
SPF, SP1: elle
SPF, SP1:quiz; cousa
65
–Não me passou isso pela idéia, tão
placidamente se me apresentou ele. Não quis
voltar, disse-me, porque precisava de algum
dinheiro para viajar, pediu-me que lhe comprasse
ti h i S i f ? S i
SPF, SP1: idéa
SPF, SP1: elle; quiz
SPF, SP1: Sahiu-me
267
70 o que tinha aqui. Saiu-me caro, mas que fazer? Sei
que a senhora anda em dificuldades, por isso peço-
lhe aceitar para si o que ele deixou.
SPF, SP1: difficuldades; pesso-lhe;
acceitar
SP1, SPF: elle
–Absolutamente não posso aceitar, nem
estou em dificuldades. João não se tem esquecido
de mim.
SPF, SP1: acceitar
SPF, SP1: difficuldades
75
80
–Oh! Não me faça isso, dona Maria. Se
comprei tais objetos, foi mesmo para servi-la
temendo que estranhos viessem incomodá-la.
Quanto a João, sei que tem passado sem recursos
em São Paulo. O pobre trabalhador baiano ali,
quando não conhece o meio, vê-se em apuros. Para
acudir a familia que cá ficou, vê-se obrigado a
contrair empréstimos, quando é o homem probo
como João.Tenho lá amigos a quem o recomendei,
e constantemente procuro saber do seu estado e
recursos.
SPF, SP1: d. Maria; Si
SPF, SP1: taes; objectos; servil-a
SPF, SP1: vinhessem; incommodal-a
SPF, SP1: S. Paulo
SPF, SP1: bahiano; alli
SPF, SP1:meio (,); à familia (Emendou-
se.)
SPF, SP1: contrahir; emprestimos
SPF, SP1: la
85 –Não é o que João me informa.
90
–É que ele não quer intranqüilizá-la, dona
Maria. Posso asseverar-lhe que é exato o que eu
afirmo. João não poderá voltar cá tão cedo como
pensa porque, apenas vai solvendo um
compromisso, tem necessidade de contrair outro.
Se ao menos o senhor Oliveira pudesse servi-lo;
SPF, SP1: elle; intranquillizal-a; d. Maria
SPF, SP1: asserverar-lhe; exacto; affirmo
SPF, SP1: ca
SPF, SP1: vae
SPF, SP1: contrahir; Si; sr.; servil-o
SP1, SPF: podesse
268
mas não pode absolutamente, como sei.
–Entregou-me a Deus e, confiada nEle,
aguardou o futuro.
SPF, SP1: nElle
95 –Há muito tempo desejava eu expor-lhe
tudo isso e pôr-me inteiramente à sua disposição. A
senhora não me procurou apesar de que a João
prometi socorrê-la quando lhe faltassem recursos.
SPF, SP1: Ha
SPF, SP1: á sua
SP1, SPF: apezar
SPF, SP1: prometti; soccorrel-a
100
–Não me está bem procurar o amparo de
estranhos na ausência de meu marido, senhor.
SPF, SP1: extranhos; ausencia
–Entretanto socorre-se do velho Serafim. SPF, SP1: soccorre-se; Seraphim
–Do professor! de um velho respeitado e
honesto que desde criança conheço como digno da
maior veneração e confiança.
SPF, SP1: creança
105 –Também me conhece desde criança e sabe
das minhas disposições a seu respeito – observou
Abílio com certo azedume.
SPF, SP1: Tambem; creança
SPF, SP1: Abilio
–Ignoro quais fossem essas disposições. SPF, SP1: quaes
110
–É uma memória muito fraca, dona Maria!
–disse Abílio com um sorriso canalha. – Por ter
sido repelido, rejeitado com desdém, não supunha
que eu tenha a memória fraca que os meus
pensamentos deixassem de atuar nas minhas
tendências afetivas.
SPF, SP1: memoria; d. Maria
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: repellido; regeitado; desdem;
suppunha
SP1, SPF: memoria
SPF, SP1: actuar; tendencias; affectivas
115
–Respeite-me, senhor. Não posso admitir
que a cobardia se aproveite de estarmos sós
SPF, SP1: admittir
269
que a cobardia se aproveite de estarmos sós.
–Em que a desrespeitei, senhora? Há atrito somente
porque a minha cobardia enfrenta um orgulho desmedido.
SPF, SP1: Ha; attrito
–Orgulho bem entendido.
120 –É porque não sabe o que assoalham por aí em fora. SPF, SP1: ahi
–Só podem assoalhar contra mim e contra a honestidade
de uma esposa recatada miseráveis como o senhor.
SPF, SP1: miseraveis
125
130
–Pode insultar-me como quiser, pode odiar-me, nada
disso me fará esquecê-la e querer-lhe mal. Creia, dona Maria,
tanto mais veemente se torna a paixão que tenho por aquela a
quem adoro. O seu orgulho, embora honesto como diz, a sua
irredutibilidade, o desprezo que me vota, são acendalhas que atira
à fogueira que arde em meu peito. Estamos sós. Pois bem,
atenda-me e terá a fortuna, será riquíssima, gozará de uma
opulência que contrastará com a miséria a que chegou.
SPF, SP1: quizer
SPF, SP1: d’isso; esquecel-a
SPF, SP1: d. Maria; vehemente
SPF, SP1: aquella
SPF, SP1: irreductibilidade
SPF, SP1: accendalhas; á fogueira
SPF, SP1: attenda-me
SPF, SP1: riquissima; gosará; opulencia
SPF, SP1: miseria
135 –Infame! Miserável! E é esse o amigo dedicado do meu
querido esposo! É esse o homem de bem que vive há tantos anos
armando emboscadas contra a honra do seu amigo da infância!
SPF, SP1: Miseravel
SPF, SP1: ha; annos
SPF, SP1: infancia
140
–Sabe que a paixão nos arrasta à loucura. A senhora há
de ser minha, por um dia que seja.
SPF, SP1: á loucura
SPF, SP1: ha
145
Dona Maria ergue-se em toda a sua estatura física e
moral. Era capaz de tudo pôr em prática na defesa de sua honra
imaculada. Os seus olhos brilharam de indignação, o seu belo
rosto transformava-se no semblante do anjo vingador, e parecia
que em seu punho flamejava a espada da justiça. Com império,
como uma rainha que manda, fremindo e resoluta, indicou a
porta a Abílio.
SPF, SP1: d. Maria
SPF, SP1: physica; pratica
SPF, SP1: immaculada
SPF, SP1: bello
SPF, SP1: flammejava
SPF, SP1: imperio
SPF, SP1: Abilio
270
150
–Saia, senhor. Não continue um instante mais no lar
honesto que procura compuscar.
SPF, SP1: compurcar
155
–Não saio. – E, atrevidamente avançou para a pobre
esposa; mas quando ia tocá-la com a sua mão impura, sentiu nos
lombos uma tremenda e dolorosa cacetada que a voz de Pulquéria
acompanhava destas palavras:
SPF, SP1: tocal-a
SPF, SP1: Pulcheria; d’ estas
–Toma, sem vergonha!
Voltou-se rápido rugindo de ódio. SPF, SP1: rapido; odio
160
–Miserável! – E viu, por traz da negra velha os dois
meeiros armados de cacetes; silenciosos e prontos a executarem o
que lhe determinassem.
SPF, SP1: Miseravel
SPF, SP1: dous; promptos
–Retirem este homem daqui! – ordenou-lhes dona
Maria.
SPF, SP1: d’aqui: (!)
SPF, SP1: d. Maria
165
170
Os dois camaradas, cada qual por seu lado, seguraram
Abílio pelos braços e foram-no levando para o terreiro ao mesmo
tempo em que Pulquéria o empurrava pelas costas. Abílio não
resistiu. Montou na sua besta e sumiu-se nas sombras da noite.
Quando não mais ouviram o tropel da mula, entraram na sala
Pulquéria e os dois meeiros. Dona Maria, prostrada em sua
cadeira, achava-se lavada em pranto.
SPF, SP1: dous
SPF, SP1: Abilio; foram-n-o
SP1, SPF ao mesmo tempo que
(Emendou-se conforme regência.);
Pulcheria
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: Pulcheria; dous; D. Maria
175
A explicação desse desenlace é a seguinte: Pulquéria,
ouvindo conversação na sala, sempre atenta e desvelada por sua
filha de leite, veio espreitar e ouvir. Conhecendo Abílio, com
quem se antipatizava e cujas façanhas já conhecia, teve
desconfianças e, mais que depressa, foi chamar os dois meeiros,
que já estavam prevenidos por Serafim para acudir a senhora em
qualquer conjuntura desagradável. Os dois homens armaram-se
de cacetes como Pulquéria e vieram emboscar-se no escuro da
SPF, SP1: d’esse
SPF, SP1: Pulcheria; attenta
SPF, SP1: Abilio; antipathizava
SPF, SP1: ja
SPF, SP1: dous; ja
SPF, SP1: Seraphim
SPF, SP1: conjunctura; desagradavel;
dous
271
180
noite no interior da casa com a negra, que se arvorou em
comandante da escolta e tudo determinou como o mestre-escola
instruiu-a, guardando absoluto mutismo. No momento preciso
entraram os três e deu-se o que viu o leitor.
SPF, SP1: Pulcheria
SPF, SP1: commandante
SPF, SP1: tres
VII
5
Retirando-se, Abílio levava em sua alma de
moço orgulhoso e fidalgo, um despeito que chegava
às proporções do furor que, em sua insânia, vota
um ódio irrefreável a tudo quanto esteja presente à
vista e às reminiscências. Sentia-se vulnerado em
seus brios de homem da melhor sociedade,
honrado e intangível em seus foros de endinheirado
e, por isso, insuspeito. Entretanto, fôra enxotado199
SP: Retirando-se da casa de d.
Maria, Abilio; SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: ás proporções;
insania; odio
SPF, SP1: irrefreavel; á vista; ás
reminiscencias
SPF, SP1: intangivel
SPF, SP1: edinheirado
SP1, SPF: Etretando (,); SP:
enxotado de um casebre a que
deu a honra da sua visita
199 O manuscrito apresenta estrutura narrativa diferente dos impressos: “Entretanto fora enxotado de um casebre a que deu a honra da sua visita, por gente pobre, miseravel, sem compostura nem educação, desconhecida e que nenhuma consideração merece, como si elle fosse um cão desprezivel da egualha de tal gente ordinaria! E porque? Pela simples razão de, como homem da sociedade, usar gentilezas com uma mulher orgulhosa, esposa de um tabaréo grosseiro e chapado a que preferiu por capricho e talvez... ou mais certo, por ser mais robusto... N’este ponto das suas cogitações o vil despeitado teve um sorriso satirico, que mais parecia a carranca de um demonio, lembrando-se do autor d’ “A Carne” seu antigo mestre no collegio paulista e cujas torpes e immundas palestras ouviu muitas vezes. As absurdas e immoraes theorias de Julio Ribeiro encontraram no seu espirito terreno fecundo para o seu cultivo e desenvolvimento. Para o infame discipulo a virtude feminil não passa de uma convenção; o casamento é egual ao concubinato; a mulher uma propriedade reconhecida pelas leis humanas, uma posse garantida pelo direito que o egoismo dos masculos dominadores do mundo [↑forjou]; um instrumento de goso ou de luxo que, para se conter dentro dos limites da tão preconizada quão contida virtude, é preciso que o seu proprietario ou posseiro afogue, satisfaça em seus desenfreados appetites, em seus caprichos e vaidades de desmioladas. O marido d’aquella mulher orgulhosa satisfazi-a em tudo isso? Estava certo que não. Si, porventura, ella mostrava-se irredutivel e supunha-se uma Lucrecia fanatica e idiota que preferisse a morte ao que suppunha deshonra, era porque Seraphim, o atrazado e pretencioso mestre-escola da roça, com a sua austeridade piegas de cérbero guardados d’aquell[es] thesouro de virtudes, impunha-lhe aquelle modo de proceder até que o seu legitimo dono – segundo o seu modo de pensar idiota – voltasse rico e capaz de satisfazer à virtuosa em seus desejos e caprichos. D’ahi... quem sabe? – continuava a pensar, de novo com o seu sorriso de
272
10
15
da casa de uma mulher que o devia ter em melhor
conta, a quem levava a afirmação de grande afeto
que lhe votava e a quem em nada ofendera; pois
revelar-lhe a admiração que os seus dotes físicos
despertavam-lhe, oferecer-lhe os seus ofícios na
situação apertada em que estava, antes devia ser
motivo para o seu contentamento e gratidão.
SPF, SP1: affirmação; affecto
SPF, SP1: offendera
SPF, SP1: physicos; offerecer-
lhe
SPF, SP1: officios
20
25
Virtude! Suponha-se ela, em seu orgulho
desmarcado, um ente privilegiado? A tal virtude tão
preconizada não passa de uma convenção. Bem o
dizia seu mestre, o grande filósofo paulista Júlio
Ribeiro, com quem esteve em contato por três anos, e
cujas sábias lições ficaram gravadas na sua retentiva
como uma verdade incontestável. A mulher não passa
de um animal de estimação que se afeiçoa a quem
melhor lhe satisfaz os apetites. Falhe esse alimento,
como também o afago às suas vaidades pueris, o afeto
estiola-se, resseca como a planta descurada e não
umedecida, para renascer vivaz quando outro
SPF, SP1: Suppunha-se; ella
SPF, SP1: philosopho
SPF, SP1: contacto; tres; annos
SP1, SPF: sabias
SPF, SP1: incontestavel
SPF, SP1: affeicôa
SPF, SP1: appetites; Fa-lhe
SPF, SP1: tambem; ás suas;
affecto
SPF, SP1: resécca
SPF, SP1: humedecida
demonio despeitado – Há segredos insondaveis n’esses ninhos de virtudes que se conservam irredutiveis na apparencia. O que se passa n’aquele tabernaculo onde dizem que a// tão falada virtude teve assento? O velho guarda dos thesouros alheios tem filhos, marmanjos robustos... Aqui demorava em suas cogitações odiosas e satanicas fazendo um esgar de contentamento. E Abilio, no seu odio de energumeno, avançava as mais torpes e indignas <apreciações> [↑aproprições acerca] do caracter de d. Maria, carregando de uma ironia acerba as palavras que acima sublinhamos. Si aquella hypocrita– continuava elle comsigo– não estivesse prevenido por aquelle aza, cederia; mas o velho infame, mais uma vez quando fazer praça de honesto e tornar conhecida a sua intrasigencia hypocrita de terrivel e invencivel guardador da honra alheia, soube preparar o espirito da outra contra um possivel assalto d’aquelle a quem votava antipathia e má vontade.”
273
30
desvelado cultor vem em seu auxílio. E se muitos por
ela se desvelam com igual carinho, sabe a hipócrita a
todos compensar o cuidado que lhe prestam.
SPF, SP1: auxilio; si
SPF, SP1: ella; egual; hypocrita
35
O sentimento da mulher em nada difere do
ondular das águas ao sabor dos ventos. Saiba-se soprá-
la, e as suas faculdades sentimentais avivar-se-ão
conforme a impulsão que se lhes der, para amortecer-
se quando lhe faltar a extrínseca influência.
SPF, SP1: differe
SPF, SP1: águas; sopral-a
SPF, SP1: sentimentaes
SPF, SP1: extrinseca; influencia
40
45
Por que aquela mulher, às suas primeiras
palavras, revoltou-se como zelosa da sua honra,
acastelada nos cediços200 direitos estabelecidos pela
convenção social, e que estava no papel de uma
Lucrécia?201 É porque Serafim, o austero e atrasado
mestre-escola da roça, constituído pelo proprietário
daquele tesouro de virtudes o seu guarda fiel, uma
espécie de cérbero ou dragão que o vigiava como se
conta nas lendas antigas, soprava e, como uma
vestal,202 mantinha acesa aquela virtude. E Abílio
carregava de uma ironia acerba e impregnada de um
terrível rancor os pensamentos que acima
sublinhamos. Se aquela mulher não estivesse
SPF, SP1: Porque; aquella; ás
suas
SPF, SP1: acastellada; sediços
SPF, SP1: Lucrecia;
Seraphim(,); atrazado
SPF, SP1: constituido;
proprietário
SPF, SP1: d’aquelle;
THESOURO DE VIRTUDES
SPF, SP1: especie
SPF, SP1: vestal; acceza
aquella; VIRTUDE; Abilio
SPF, SP1: terrivel
SPF, SP1: Si; aquella
200 Cediço: sabido de todos, muito velho. 201 Lucrécia: dama romana que se matou em 509 a.C., depois de ter sido ultrajada por um filho de Tarqüínio, o soberano. 202 Vestal: Sarsedotisa de Vesta, deusa do fogo dos romanos. Mulher muito honesta.
274
50
prevenida por aquele asa-negra,203 pensava Abílio,
cederia: mas o velho infame, mais uma vez desejando
proporcionar a sua honestidade, a sua intransigência
de terrível guardador da honra alheia, preparava o
espírito da ingênua contra o possível assalto daquele a
quem – estava agora convencido – votava antipatia e
má vontade.
SPF, SP1: aquelle; aza negra;
Abilio
SPF, SP1: intransigencia
SPF, SP1: terrivel
SPF, SP1: espirito; INGENUA;
possivel; d’aquelle
SPF, SP1: antipathia
55
60
65
Absorvido por estes e outros pensamentos,
qual mais infame e calunioso, o miserável debuxava
em linhas gerais um plano terrível de vingança. O
ódio refervia em seu coração como líquido que,
hermeticamente fechado em caldeira, por fim
explodiria contra a primeira pessoa que se lhe
apresentasse em frente, ainda mesmo que, inocente,
não lhe desse motivo para a deflagração; que o
motivo, esse, já existia intenso naquela alma danada,
por cada momento que passava mais violento: a
vingança do desorientado que se conhece por ora
impotente, e procura um meio de desabafar-se.
Serafim, dona Maria e, até, os dois meeiros e
Pulquéria eram o seu alvo e, desde o fracasso,
poderiam contar com a espada de Dâmocles204
SP, SPF, SP1: miseravel
SP, SPF, SP1: geraes; terrivel
SP, SPF, SP1: odio; liquido
SP, SPF, SP1: porfim
SP, SPF, SP1: innocente
SP, SPF, SP1: désse; deflagação
SP, SPF, SP1: n’aquella;
damnada
SP, SPF, SP1: Seraphin; d.
Maria; dous
SP, SPF, SP1: Pulcheria
203 Asa-negra: pessoa que prejudica ou embaraça outra constantemente. 204 Dâmocles: cortesão de Dionísio (século IV a. C.) que invejava a felicidade dos tiranos. Para fazê-lo compreender quão frágil é a felicidade dos tiranos, durante um banquete, Dionísio ordenou que ficasse suspensa sobre a cabeça de Dâmocles uma pesada espada mantida por um fio de crina de cavalo.
275
70
suspensa sobre a sua cabeça, ameaçadora e terrível, se
pudessem penetrar os escuros meandros daquela alma
negra que, como o crótalo205 hórrido, já armava o seu
bote traiçoeiro e mortífero.
SP, SPF, SP1: Dámocles
SP, SPF, SP1: terrivel; si
SP, SPF, SP1: podessem;
d’aquella
SP, SPF, SP1: horrido
SP, SPF, SP1: mortifero
75
80
Abílio chegou em casa, eram nove horas da
noite, nesse estado de exaltação. Dona Úrsula
esperava-o ansiosa, não tendo sabido aonde ele fora.
Enfim era mãe e, embora o leitor já a conheça como
uma má mulher, capaz de praticar as maiores
indignidades, idolatrava o filho que, único, absorvia
todo o seu afeto, todos os seus desvelos e cuidados
sem que restasse algum bom sentimento que ela
dispensasse sinceramente a outra pessoa qualquer. A
fera também ama a seus cachorrinhos, ameiga-os e
afronta a morte e os maiores perigos em sua defesa.
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: n’esse; D. Ursula
SP, SPF, SP1: anciosa; elle
SP, SPF, SP1: Emfim
SP, SPF, SP1: unico
SP, SPF, SP1: afecto
SP, SPF, SP1: ella
SP, SPF, SP1: tambem
SP, SPF, SP1: affronta
85
– Ah! meu filho! – foi a velha dizendo
risonha e carinhosa. – Por onde andou? Eu estava
tão aflita!
SP, SPF, SP1: filho(,)
SP, SPF, SP1: afflicta
–Que tem a senhora de saber? – respondeu
Abílio grosseiramente e de semblante carrancudo, –
Está de contíinuo a considerar-me criança de mama!
SP, SPF, SP1: Abilio;
carrancudo (,)
SP, SPF, SP1: mamma
–Não é isso, meu filho. Não jantou... saiu sem SP, SPF, SP1: sahiu
205 Crótalo: gênero de cobras muito venenosas que têm na cauda um guizo que chocalha quando elas rastejam ou batem com a cauda. No Brasil, a cobra mais comum dessa família é a cascavel.
276
90 dizer aonde ia...
–Fui aonde bem quis! Não quis e não quero
jantar.
SP, SPF, SP1: quiz; quiz
95
–Mas não é preciso zangar-se por tão pouca
coisa – E, procurando amigá-lo risonha, acrescentou:
– Por que vem com quatro pedras na mão contra mim?
Em que te ofendi?
SP, SPF, SP1: cousa; amigal-o
SP, SPF, SP1: Porque
–Em muito com seus aborrecimentos e
importunações. As quatro pedras são poucas; eu devia
responder-lhe com oito. Que importa à senhora saber
de minha vida?!
SP, SPF, SP1: á senhora
100 –Sou mãe, e tenho interesse por ti.
–Qual interesse, qual nada! A senhora não é
mais do que uma curiosa importuna.
–Oh... – ainda disse a velha procurando sorrir.
– Está hoje nos azeites?
SP, SPF, SP1: O... ; sorrir(.)
105 –Que azeites!?
–Decerto andou por aí a sofrer alguma
contrariedade, não é?
SP, SPF, SP1: ahi; soffrer
–Quem lhe disse isso? – perguntou Abílio
alvoroçado.
SP, SPF, SP1: Abilio
110 –Estou vendo.
–Está botando verdes.
–Nunca ti vi assim! Agora, briga lá com os SP, SPF, SP1: la
277
outros, e eu que pague as favas que o burro comeu.
115
–Eu sou burro!? – exclamou Abílio exaltando-
se. – Que favas comi?
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP: exaltando-se (.)
–Espera, meu filho. Isso é um ditado velho,
todo o mundo conhece.
SP, SPF, SP: velho (,)
120
–Não estou agora para ouvir chufas206. Vá-se
embora, senhora; deixe-me!
SP, SPF, SP1: Va-s’embora
–Eu não digo? – dizia a velha a sorrir – Está
com raiva de mim, meu filho? Fica com raiva antes de
alguma das tuas queridas. Eu não tenho culpa de te
abandonarem.
125 Abílio empalideceu. Sua mãe lhe deu no vinte;
até que adivinhava. Contudo fez semblante de quem
não ligou importância, e tomou a resolução de
recolher-se no gabinete.
SP, SPF, SP1: Abilio;
empallideceu
SP, SPF, SP1: Comtudo
SP, SPF, SP1: importancia
130
–Espera, Abílio – pediu dona Úrsula
procurando atalhá-lo. – Vem ao menos tomar uma
xícara de chá ou café.
SP, SPF, SP1: Abilio; d. Ursula
SP, SPF, SP1: atalhal-o (.)
SP, SPF, SP1: chicara
–Não quero! – e Abílio repeliu a velha. SP, SPF, SP1: Abilio; repelliu
–Isso tem jeito, meu filho? SP, SPF, SP1: geito
–O que não tem jeito é a sua teimosia. SP, SPF, SP1: geito
135 –Não é teimosia, Abílio. Pois é possível ficar
assim sem tomar alguma coisa. Deixa para lá a tua
ingrata e trata de beber ou comer alguma coisa.
SP, SPF, SP1: Abilio; possivel
SP, SPF, SP1: cousa; p’ra la
206 Chufas: dito trocista, caçoada.
278
ingrata e trata de beber ou comer alguma coisa. SP, SPF, SP1: cousa
Abílio assustou-se de novo e assentou-se. Sua
mãe, curiosa como era, já tinha desconfianças!
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: ja
140 –Então quer, meu filho? – indagava a velha
suplicando. – Anda, diz. Vou fazer o chá.
SP, SPF, SP1: suplicando (.)
–Quero, para me ver livre da senhora.
–Oh! meu filho! – exclamou magoada a velha.
– Não faça assim com sua mãe.
SP, SPF, SP1: maguada; velha
(.)
145 –Vá fazer o chá.
150
155
160
Dona Úrsula, apesar do seu corpanzil, saiu
apressada. Lembrou-se em caminho que tinha frito uns
bolinhos e, enquanto preparava o chá ela mesma, –
concessão que só ao filho faria –, aqueceu de novo a
fritada de que se lembrou, solícita por agradar ao filho
e vencer o seu mau humor e, tudo preparado, foi ela
própria levar à sala. Em outras circunstâncias menos
aflitivas, dona Úrsula chamava os criados bradando
com império, porque não estava bem se ocupar com
serviços próprios deles; mas agora que eles dormiam,
estimava até dar a Abílio uma prova de quanto se
interessava por ele. Este, entanto só e a meditar,
lembrou-se do seu recente fracasso e do desacato que
sofreu porque, ao sentar-se no sofá, uma leve pontada
nas costas, no sítio da cacetada de Pulquéria,
SP, SPF, SP1: D. Ursula;
apezar; sahiu
SP, SPF, SP1: emquanto; ella;
mesma, (Emendou-se.)
SP, SPF, SP1: faria, - (-,)
SP, SPF, SP1: ella
SP, SPF, SP1: propria; á sala;
circunstancias
SP, SPF, SP1: afflictivas; d.
Ursula
SP, SPF, SP1: imperio; occupar-
se;
SP, SPF, SP1: proprios; delles;
agora, (Emendou-se.); elles
dormiam; (,); Abilio
SP, SPF, SP1: elle; emtanto
SP, SPF, SP1: soffreu
SP, SPF, SP1: sitio; Pulcheria(,)
279
reacendeu o seu rancor vago e doentio pronto a
extravasar-se em cólera violenta.
SP, SPF, SP1: reaccendeu;
prompto
SP, SPF, SP1: colera
165
170
Estava nesse estado quando dona Úrsula, toda
contente, risonha e serviçal, trouxe-lhe o chá e todo o
serviço necessário em uma antiga salva de prata. Bem
que ouvisse as passadas de sua mãe e o ruído da louça
quando colocada em uma banca, Abílio não se mexeu,
continuando cabisbaixo e o rosto apoiado sobre as
mãos. Lançando um olhar de esguelha sobre ele, a
pobre velha, tímida e receosa, preparou o serviço
procurando evitar ruídos incômodos ao filho para que
se não destemperasse de novo; depois aproximou-se
com a chávena207 e um prato com os bolos.
SP, SPF, SP1: n’esse; d. Ursula
SP, SPF, SP1: necessario
SP, SPF, SP1: ruido
SP, SPF, SP1: collocada; Abilio
SP, SPF, SP1: cabixbaixo
SP, SPF, SP1: elle
SP, SPF, SP1: timida; receiosa
SP, SPF, SP1: ruidos;
incommodos
SP, SPF, SP1: approximou-se
SP, SPF, SP1: chavena
175
–Aqui está o chá, meu filho. – Abílio
conservou-se mudo e quieto. Dona Úrsula animou-se
a tocá-lo de leve com um dos cotovelos e chamou-o de
novo com voz meiga.
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: D Ursula; tocal-o
–Irra! – bradou o filho sacudindo os ombros. –
Está hoje apostada em me infernar!
SP, SPF, SP1: ombros (.)
180 –O que é isso, meu filho!
–Não me deixa sossegado um momento! SP, SPF, SP1: socegado
–Tem paciência. Anda; toma o chá. SP, SPF, SP1: paciencia
E dona Úrsula, cada vez mais procurando
ameigar a voz, e como que suplicando, apresentava ao
SP, SPF, SP1: d. Ursula
SP, SPF, SP1: supplicando
207 Chávena: xícara ou taça para chá, café e outras bebidas quentes.
280
185
190
ameigar a voz, e como que suplicando, apresentava ao
filho a chávena e o prato de bolos cada qual em uma
das mãos. Abílio levantou o rosto enfarruscado,
recebeu com mau modo o chá e repeliu o prato com
tal violência, que este caiu no soalho espatifando-se
em mil cacos, e os bolinhos espalharam-se por todos
os lados no pavimento.
SP, SPF, SP1: chavena
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: mau; repelliu
SP, SPF, SP1: violencia; cahiu
Está! – exclamou desgostosa a velha
acocorando-se para catar os cacos e os bolos. Depois,
em voz mais baixa, como repreensiva disse: – Em que
deu a má-criação dele!
SP, SPF, SP1: reprehensiva
SP, SPF, SP1: macriação; d’elle
195
200
Abílio ouviu e retrucou asperamente.
Procurava um pretexto para se azoar e achou-o no chá
dizendo-o mal preparado e atirando a xícara
estouvadamente na banca, de modo que, derramando-
se o líquido, alastrou-se e escorreu nas costas da
velha.
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: chicara
SP, SPF, SP1: liquido
–Isso é chá? – disse ele com furor. – A
senhora nem isso sabe fazer?
SP, SPF, SP1: elle; furror (.)
–Pois o que é, meu filho?
–É uma garapa desenxabida. Para os diabos! SP, SPF, SP1: P’ros
205 –Já se viu coisa assim? – exclamou dona
Úrsula tristemente. – Ah! filho!
SP, SPF, SP1: Ja; cousa; d.
Ursula tristemente (.)
281
210
215
220
Abílio ergueu-se do sofá e, sem lançar os
olhos sobre a velha, sem despedir-se dela como
costumava ao recolher-se, dirigiu-se para o seu
gabinete contíguo à alcova. Dona Úrsula
acompanhou-o levando as mãos reluzentes de gordura
e alguns cacos da louça e bolo que apanhou. Mais uma
vez queria chamá-lo à razão detendo-o para ouvir o
que ele queria em lugar do chá, pronta a servi-lo de
novo, tal o seu empenho de abrandá-lo. Abílio,
entretanto, mais lesto208, chegou primeiro que sua mãe
diante da porta do seu tabernáculo, destrancou-o e,
quando sua mãe aproximou-se com as mãos ocupadas
procurando detê-lo, o mau filho deu-lhe um safanão e
desapareceu trancando a entrada à velha sem respeito
à idade e gratidão ao desvelo daquela que lhe deu o
ser.
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: d’ella
SP, SPF, SP1: contíguo; á
alcova; D. Ursula
SP, SPF, SP1: chamal-o; á razão
SP, SPF, SP1: elle; logar
SP, SPF, SP1: prompta; servil-
o; abrandal-o; Abilio
SP, SPF, SP1: lésto
SP, SPF, SP1: deante;
tabernaculo; destrancou-o (,)
SP, SPF, SP1: approximou-se;
occupadas
SP, SPF, SP1: detel-o; máu
SP, SPF, SP1: desappareceu; á
velha
SP, SPF, SP1: á edade;
d’aquella
225
Dona Úrsula caiu sentada no soalho, e os
cacos e bolos espalharam-se-lhe ao redor. Com o
coração angustiado, sentindo-se ferida em sua
ternura de mãe e, ainda mais, sentido doer-lhe o
velho corpo em conseqüência da queda violenta e
perigosa sobre o assento, dona Úrsula pôs-se a
chorar silenciosamente. Era mãe de um único filho
que era o seu ídolo, por quem tudo daria para que
SP, SPF, SP1: D. Ursula cahiu
SP, SPF, SP1: consequencia
SP, SPF, SP1: d. Ursula poz-se
SP, SPF, SP1: unico; idolo (,)
208 Lesto: rápido.
282
230
235
que era o seu ídolo, por quem tudo daria para que
sempre o visse satisfeito, contente e alegre. Como
bem raras vezes, o seu coração achava-se
sensibilizado ao extremo; mas quando lhe sucedia
um desgosto tamanho causado por estranhos, tinha
o filho para consolá-la, para varrer tristezas do seu
coração, e se causado pelo próprio filho, este logo
voltava arrependido a tratá-la com mais amor e
carinho.
SP, SPF, SP1: succedia
SP, SPF, SP1: extranhos;
consolal-a
SP, SPF, SP1: si; proprio
SP, SPF, SP1: tratal-a
240
245
Dona Úrsula era má como sabemos; mas no
charco penitencial dos seus maus sentimentos, como
soe acontecer nos pantanais, nascera única uma planta
que, viçosa e atraente, florescia esplêndida e bem
alimentada. Era a planta do afeto por uma única
pessoa neste mundo sem que sobejasse amor sincero
dedicado a outrem. Agora se compreendia desprezada,
mesmo odiada pelo objeto único dos seus extremos;
por aquele filho que nunca a tratara com tal violência,
desprezo e mesmo ódio.
SP, SPF, SP1: D. Ursula
SP: Petilencial; SP, SPF, SP1:
máus
SP, SPF, SP1: pantanaes; unica
SP, SPF, SP1: attrahente;
florecia
SP, SPF, SP1: affecto; unica;
SP, SPF, SP1: n’este
SP, SPF, SP1: comprehendia-se
(Emendou-se ênclise para
próclise.); objecto; unico
SP, SPF, SP1: aquelle; violencia
SP, SPF, SP1: odio
250
Dona Úrsula, apesar das reiteradas
reclamações de seu marido, nunca deixou de satisfazer
os desejos, por mais desarrazoados que fossem,
daquele filho que era o seu encanto. Desde a infância
SP, SPF, SP1: D. Ursula; apezar
SP, SPF, SP1: d’aquelle;
infancia
283
255
260
265
de Abílio, sua mãe perdia-o com as suas bajoujices209
e seu pai, que era um homem criterioso, logo que
Serafim deu-o por pronto em curso primário, levou-o
para São Paulo, não só para seguir o curso de
humanidades e entrar para a faculdade, como para
afastá-lo do lar, onde o bajoujo210 e adulação punham-
no a perder. Dona Úrsula, logo que viúva, não mais
consentiu o filho ausente e cortou-lhe a carreira.
Abílio voltou com sua índole aperfeiçoada naquele
meio culto; as suas tendências achavam-se mais
desenvolvidas, e os recursos de dissimulação
aumentados. Em casa era um tirano, e, como dona
Úrsula continuasse a mesma, tornou-se ridícula para o
filho, que entrou a dominá-la.
SP, SPF, SP1: Abilio; bajujices
SP, SPF, SP1: pae
SP, SPF, SP1: Seraphim;
prompto
SP, SPF, SP1: primario; S.
Paulo
SP, SPF, SP1: afastal-o; bajojo;
punham-n-o;
SP, SPF, SP1: D. Ursula; viuva
SP, SPF, SP1: Abilio; indole;
n’aquelle
SP, SPF, SP1: tendencias
SP, SPF, SP1: augmentados;
tyranno; d. Ursula
SP, SPF, SP1: ridicula
SP, SPF, SP1: dominal-a
270
Dona Úrsula conservou-se assentada alguns
momentos; depois, desenganada de ser socorrida,
levantou-se com dificuldade. Sentia-se num
abandono aterrador, e desiludida do filho. Este
havia desaparecido e não dava sinal de si, o que
para a velha era mais que a morte. Sentindo-se
numa soledade que jamais experimentara, com o
coração torturado por uma dor moral intensíssima
SP, SPF, SP1: D. Ursula
SP, SPF, SP1: soccorrida
SP, SPF, SP1: difficuldade
SP, SPF, SP1: disilludida; Este,
(Emendou-se.)
SP, SPF, SP1: desapparecido;
signal
SP, SPF, SP1: n’uma
SP, SPF, SP1: intensissima; d.
Ursula
209 Bajoujice: bajulação, adulação. 210 Bajoujo: que ou quem lisonjeia ridiculamente.
284
275
280
é que dona Úrsula, depois de esperar alguns
momentos o socorro daquele que devia vir em seu
auxílio, conseguiu com dificuldade, tendo todas as
articulações doloridas e ainda com as mãos
engorduradas, levantar-se lentamente, vacilando
para um e outro lado, e seguiu cambaleante para a
sua alcova segurando-se às paredes e móveis.
SP, SPF, SP1: soccorro;
d’aquelle
SP, SPF, SP1: auxilio;
difficuldade
SP, SPF, SP1: vacillando
SP, SPF, SP1: ás paredes;
moveis
VIII
5
Abílio, ainda de pé quando sua mãe caiu, bem
percebeu o desastre pelo baque e tinido dos cacos de
louças; mas levantando os ombros num gesto
expressivo que denunciava o seu descaso,
encaminhou-se para a sua secretária. “Quem manda
aquela velha ser teimosa!” – pensava ele – “Que vá
dormir e me deixe em paz.”
SP, SPF, SP1: Abilio; cahiu
SP, SPF, SP1: n’um
SP, SPF, SP1: secretaria
SP, SPF, SP1: aquella; elle
10
O mau filho entrava em outra fase do seu
caráter. Precisava de calma relativa para pensar na sua
nova situação e friamente delinear os seus planos de
vingança. Por um grande esforço conseguiu, como o
felino que, recolhidas as garras no seu natural estojo,
dormita espreitando paciente a presa que se ocultou
SP, SPF, SP1: máu; phase
SP, SPF, SP1: caracter
SP, SPF, SP1: occultou
285
15
em lugar para ele inaccessível, conciliar o ódio com a
faculdade que lhe era peculiar de artimanhoso que, das
sombras, atira o golpe contra o inimigo a quem sorri.
Recolheu o mau sentimento e a faculdade meditativa,
cada qual no seu compartimento, ambos funcionando
ao mesmo tempo.
SP, SPF, SP1: logar; elle;
inaccessivel; odio
SP, SPF, SP1: máu
SP, SPF, SP1: funccionando
20
25
30
35
Esta simultaneidade de ação, resultante de sua
forte contenção do espírito, dava lugar a que o ódio,
reprimido e, como que constrangido a agir
metodicamente, subordinado à pressão de cogitar,
ganhasse em intensidade como vapor, ou os gazes,
preso em limitado espaço, e ameaçava explodir, sendo
preciso que Abílio, de momentos em momentos, se
levantasse do assento e passasse pelo gabinete para, –
permita-se-nos avançar esta comparação – abrir as
válvulas de escapamento e deixar que extravasasse o
excesso que lhe prejudicava e baralhava as idéias.
Então fazia gestos de ameaça, aqui esmurrava um
móvel, ali atirava um objeto qualquer que lhe
estivesse à mão, e chegava a monologar em voz surda,
cavernosa, a rilhar os dentes e traçar no semblante
esgares terríveis, ameaçadores ou irônicos. Depois lhe
voltava a calma relativa, assentava-se, meditava,
delineava planos de vingança e anotava-os em um
SP, SPF, SP1: acção
SP, SPF, SP1: espirito; odio
SP, SPF, SP1: methodicamente; á
pressão
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: permitta-se-nos
SP, SPF, SP1: valvulas;
extravassasse
SP, SPF, SP1: idéas
SP, SPF, SP1: movel; alli; objecto
SP, SPF, SP1: á mão
SP, SPF, SP1: terriveis; ironicos
SP, SPF, SP1: annotava-os
286
delineava planos de vingança e anotava-os em um
canhanho211 que tinha guardado a sete chaves.
40
45
55
60
A rebusca que fazia no seu arsenal de
maldades, muito trabalhosa, ia pouco a pouco dando
vitória à faculdade de pensar e lugar a uma espécie de
simbiose entre as duas faculdades, uma tal ou qual
tranqüilidade aparente que, podemos dizer, era o
acordo entre os dois princípios até então heterogêneos.
A dor violenta dos seus lombos a qualquer movimento
mais rápido que Abílio fizesse era como que uma
reclamação que o ódio lhe fazia para não ser
esquecido nas suas cogitações. Lembrava-se ele então
do que sofrera na residência de dona Maria, e os seus
pensamentos ativeram-se mais à idéia de vingança,
particularizando cada uma das vítimas e vindo em
auxílio dos maus movimentos do coração. Avivados
assim os seus pensamentos, considerava Abílio
indispensável, para o seu inteiro proveito, realizar o
que desejava contra a esposa de João, não já pelo
desejo passional que alimentava a princípio; mas com
a idéia vil de vingar-se maculando a sua honra de um
modo irremediável que acendesse o furor do marido
ultrajado.
SP, SP1, SPF : victoria; á
faculdade; especie
SP, SPF, SP1: symbiose
SP, SPF, SP1: tranquillidade;
apparente
SP, SPF, SP1: accordo; dous;
principios; heterogeneos
SP, SPF, SP1: rapido; Abilio;
fizesse, (Emendou-se.)
SP, SPF, SP1: odio
SP, SPF, SP1: elle
SP, SPF, SP1: soffrera; residencia;
d. Maria
SP, SPF, SP1: á idéa
SP, SPF, SP1: victimas
SP, SPF, SP1: auxilio
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: indispensavel;
realisar
SP, SPF, SP1: principio
SP, SPF, SP1: idéa
SP, SPF, SP1: irremediavel;
accendesse
211 Canhanho: caderneta para registro de lembranças. Variante de canhenho.
287
65
70
Essa mulher era o eixo da questão,
compreendia ele, restando-lhe achar o meio de chegar
ao ignóbil fim almejado. Quanto a Serafim, o
cérbero212 que montava guarda àquela humaitá, na
impossibilidade de eliminá-lo para desimpedir o
caminho, contanto que fosse bem dirigida a
campanha, quando viesse a saber da queda que levaria
a mulher virtuosa que se achava sob o seu patrocínio,
nenhum jeito mais poderia dar à situação.
SP, SPF, SP1: comprehendia; elle
SP, SPF, SP1: ignobil; Seraphim
SP, SPF, SP1: áquella; humaytá;
SP, SPF, SP1: eliminal-o;
desempedir
SP, SPF, SP1: comtanto
SP, SPF, SP1: VIRTUOSA;
patrocinio
SP, SPF, SP1: gjeito; á situação
75
80
Era preciso, em primeiro lugar – sugeria-lhe o
ódio –, afastar os dois meeiros e entre os diversos
alvitres que eram lembrados, um somente mereceu-lhe
detida atenção: inventar um crime qualquer que fosse
atribuído aos pobres homens e os levasse a uma prisão
imediata. A Pulquéria, essa, não era defesa que lhe
oferecesse uma séria resistência, e facilmente seria,
mesmo in loco, inutilizada por qualquer maneira.
SP, SPF, SP1: logar, (Emendou-
se.); suggeria-lhe
SP, SPF, SP1: odio, - (-,); dous
SP, SPF, SP1: somente
SP, SPF, SP1: attenção
SP, SPF, SP1: attibuido; á uma
(Emendou-se retirando a crase.)
SP, SPF, SP1: immediata;
Pulcheria
SP, SPF, SP1: offerecesse; seria;
resistencia
SP, SPF, SP1:inutilisada; IN
LOCO
85
Desde 1890, com a vinda para o sertão, logo,
após a proclamação da república, de legiões de
soldados de polícia sob o comando de capitães, a
quem o governo provisório do Estado, por um decreto
despótico e antiliberal, deu poderes discricionários,
ficou estabelecido um tal poder das autoridades
administrativas, que os delegados e subdelegados da
SP, SPF, SP1: republica
SP, SPF, SP1: policia; commando
SP, SPF, SP1: provisorio; deccreto
SP, SPF, SP1: despotico; anti-
liberal; discrecionarios
212 Cérbero: cão mostruoso que guarda a porta do inferno.
288
90
95
100
105
administrativas, que os delegados e subdelegados da
polícia passaram a intervir em tudo quanto é da
competência dos funcionários e magistrados cíveis e
judiciários. Essas funções extralegais, que muito
servem aos politiqueiros reles, com o andar dos
tempos foram consagradas pelo consuetudinarismo, de
sorte que qualquer sujeito que figure na melhor
sociedade e tenha maus bofes consegue por uma
simples denúncia, sem provas nem formalidades
legais, prender inocentes, levá-los aos tribunais depois
mediante testemunhos falsos, até sentenciá-los. As
autoridades policiais ainda vão além: arvoram-se em
árbitros nas questões cíveis, impõem avenças ruinosas
contra honestos trabalhadores rurais em favor de
miseráveis ociosos que são do peito dos tiranos. Isso
muito tem concorrido para o êxodo do nosso
proletário e, conseqüentemente, para a ruína da nossa
agricultura e empobrecimento do nosso meio.
SP, SPF, SP1: policia
SP, SPF, SP1: competencia;
funcionarios; cíveis
SP, SPF, SP1: judiciarios;
funcções; extra-legaes
SP, SPF, SP1: bofes, (Emendou-se.)
SP, SPF, SP1: denuncia
SP, SPF, SP1: innocentes; legaes;
leval-os; tribunaes
SP, SPF, SP1: sentencial-os
SP, SPF, SP1: policiaes; alem
SP, SPF, SP1: arbitros; civeis
SP, SPF, SP1: ruraes
SP, SPF, SP1: miseraveis;
tyrannos
SP, SPF, SP1: exodo
SP, SPF, SP1: proletario;
consequentemente; ruina
110
Ora, Abílio era considerado na cidade um
cavalheiro distinto; freqüentava a melhor sociedade,
que o acolhia como cidadão honesto e digno de
acatamento, tão maneiroso se apresentava e tão rico
era para enfileirar-se entre aqueles que dispõem da tão
falada posição pecuniária. No regime plutocrata que
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: distincto;
frequentava
SP, SPF, SP1: aquelles
SP, SPF, SP1: pecuniaria; regimen
289
115
mentidamente se diz liberal e democrata, o que não
conseguiria um moço tão distinto? Tão consciente
estava ele disso, que tinha como certo conseguir o que
tivesse em vista contra os dois meeiros, mas
prontamente, de súbito, antes que Serafim e sua
protegida viessem a ter conhecimento da medida
tomada.
SP, SPF, SP1: distincto
SP, SPF, SP1: elle; d’isso
SP, SPF, SP1: dous
SP, SPF, SP1: promptamente;
subito; Seraphim
120
A mulher orgulhosa seria rebaixada ao
enxurro213, seria arrastada à lama dos prostíbulos; a
sua tão falada virtude dobrar-se-ia ao peso do
vilipêndio.214 Em torno dessas idéias o miserável
ideou os meios secundários e subsidiários do grande
meio que o levaria ao fim colimado.
SP, SPF, SP1: á lama; prostibulos
SP, SPF, SP1: vilipendio
SP, SPF, SP1: d’essas; idéas;
miseravel; idéou
SP, SPF, SP1: secundarios;
subsidiarios
SP, SPF, SP1: collimado
125
130
Abílio esteve até a madrugada tramando essas
insídias215 e criminosos planos, lendo e relendo notas
que tomava, para corrigi-las de modo que, saindo a
lume os resultados do que projetava, o seu autor
pudesse escapar ileso sem que ao menos contra ele
fosse levantada a mais leve suspeita. Iria agir de
sorrate, sempre “atirando a pedra e escondendo a
mão”, como era de seus hábitos inveterados e
maquiavélicos.
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: insidias
SP, SPF, SP1: corrigil-as; sahindo
SP, SPF, SP1: projectava; podesse
SP, SPF, SP1: illeso; elle
SP, SPF, SP1: mão (,); habitos
SP, SPF, SP1: machiavelicos
213 Enxurro: refugo social, ralé. 214 Vilipêndio: Desprezo. 215 Insídia: emboscada, cilada.
290
135
140
145
150
Já eram nove horas da manhã quando ele saiu
de seu gabinete. Estava pálido, com os olhos pisados e
circulados de olheiras muito pronunciadas que
atestavam o seu mal passar durante a noite, insone ou
dormindo pouco ou mal. Era costume, quando ele saía
da alcova, encontrar sua mãe que, solícita e risonha,
trazia-lhe logo uma chávena de café; mas debalde
esperou por isso. As janelas, que dona Úrsula tinha o
hábito de abrir antes do seu aparecimento, achavam-se
cerradas, sendo preciso abri-las para arejar e iluminar
a sala. Nervoso e contrariado, sem considerar que sua
mãe poderia estar doente, nem avaliar que fosse de
graves conseqüências o que se dera na noite anterior,
entrou pela sala de jantar. Encontrou a mesma solidão,
as janelas fechadas e apenas aberta a porta que dava
para o exterior, seguramente pela cozinheira, que
sempre dormia no interior da casa. Repugnava-lhe
dirigir-se a criados; mas pensou que só a ama, que já
estava na cozinha, poderia dar-lhe informações sobre
dona Úrsula, e, chegando à porta da cozinha,
perguntou:
SP, SPF, SP1: Ja; elle; sahiu
SP, SPF, SP1: pallido
SP, SPF, SP1: attestavam; mau;
insomne
SP, SPF, SP1: costume (,); elle;
sahia
SP, SPF, SP1: solicita
SP, SPF, SP1: chavena
SP, SPF, SP1: janellas; d. Ursula
SP, SPF, SP1: habito;
apparecimento
SP, SPF, SP1: abril-as; illuminar
SP, SPF, SP1: consequencias
SP, SPF, SP1: janellas
SP, SPF, SP1: ja
SP, SPF, SP1: d. Ursula; á porta
155 –Então! Hoje me serve o café?
–Iaiá ainda está na cama. SP, SPF, SP1: Yiaiá
–É ela quem me prepara o café, demônio? – SP, SPF, SP1: ella; demonio
291
berrou Abílio. SP, SPF, SP1: Abilio
–Inhor, não; mas é ela qui distrimina.216 SP, SPF, SP1: Inhor (,); ella
160
165
170
–Para os diabos que te carreguem. – E voltou
à sala ainda mais contrariado. Mas o que estaria
fazendo sua mãe? – pensou e foi espiar dona Úrsula,
pela fresta da fechadura. A velha ainda se achava no
leito sem se mover. Bateu de leve na porta e chamou
sem resultado e sem resposta. Pálido e trêmulo ainda
mais, tornou a espreitar, bateu, chamou em voz mais
alta e de novo colocou o olho na fresta e aplicou o
ouvido. Dona Úrsula mexeu-se, falou em voz fraca e
imperceptível e tentou assentar-se cambaleante, mas
caiu sobre os travesseiros.
SP, SPF, SP1: P’ra; á sala
SP, SPF, SP1: d. Ursula
SP, SPF, SP1: Pallido; tremulo
SP, SPF, SP1: collocou; applicou
SP, SPF, SP1: D. Ursula
SP, SPF, SP1: imperceptivel
SP, SPF, SP1: cahiu
–Está doente, mãe? – perguntou Abílio com
voz trêmula.
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: tremula
–Hum? – resmungou a velha.
–Doente?
175
180
–Já vou! Já vou – respondeu com voz débil
dona Úrsula. E, fazendo um esforço, desceu do leito,
mas escorregando, caiu em cheio no chão. Notou
Abílio que sua mãe estava vestida e, temendo que a
velha não pudesse erguer-se, pois fazia esforços para
isso sem o conseguir, lembrou-se que a alcova era
servida por outra porta mais fraca que abria para um
SP, SPF, SP1: Ja; Ja; debil
SP, SPF, SP1: d.Ursula
SP, SPF, SP1: cahiu
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: podesse
216 Qui distrimina: que determina.
292
185
servida por outra porta mais fraca que abria para um
quarto desocupado. Procurou-a, abriu-a facilmente e,
ajudado por uma criada, repô-la no leito. Dona Úrsula,
há anos, sofria insuficiência mitral e estivera em
tratamento dando-se por curada. Será essa moléstia
que de novo a atacou? Pensou Abílio.
SP, SPF, SP1: desoccupado
SP, SPF, SP1: criada (,); repol-a;
D. Ursula(,)
SP, SPF, SP1: ha; annos; soffria;
insufficiencia; esteve
SP, SPF, SP1: molestia
SP, SPF, SP1: Abilio
–A senhora está sentindo alguma coisa, mãe?
– inquiriu Abílio, procurando ameigar a voz.
SP, SPF, SP1: cousa
SP, SPF, SP1: Abilio
–Sei lá? –E prorrompeu em desabalado pranto.
190
–O que é isso?! Está chorando?! Diga: sente
dores?
–Dores? O corpo todo...
–Decerto cometeu alguma das suas
costumadas imprudências.
SP, SPF, SP1: commetteu
SP, SPF, SP1: imprudencias
–Foi a queda.
195 –Qual queda? – perguntou Abílio fazendo-se
desentendido.
SP, SPF, SP1: Abilio
–Ontem de noite... – E pôs-se a chorar. SP, SPF, SP1: Hontem; poz-se
–Não é preciso chorar, mãe. A senhora caiu? SP, SPF, SP1: cahiu
Dona Úrsula afirmou com um gesto. SP, SPF, SP1: Ursula; affirmou
200 –Porque não me chamou?
–Não quis incomodar... SP, SPF, SP1: quiz; incommodar
–Essa é boa! É meu dever acudi-la. SP, SPF, SP1: acudil-a
–Pensei que tu ouviu.
293
205
–Como eu havia de ouvir, se a senhora não me
chamou? Eu estava muito cansado e com a maldita
dor de cabeça, e fui logo dormindo...
SP, SPF, SP1: si
SP, SPF, SP1: cançado
–Foi quando tu fechou a porta. – E dona
Úrsula disparou a chorar de novo.
SP, SPF, SP1: d. Ursula
SP, SPF, SP1: desparou
210
–Nada de chorar. Deixe-me ver se tem febre. –
E tomou o pulso de sua mãe. – Mas o que é isto? Está
com a mão besuntada.
SP, SPF, SP1: si
–É a gordura dos bolos. – E o pranto
recresceu.
–De bolos? Que bolos, mãe?
215
220
225
Dona Úrsula não respondeu, e continuava a
chorar mostrando-se tão sentida e desgostosa, que
Abílio, apesar de, a esforços, aparentar serenidade,
sentiu-se incomodado. Aquele pranto desabalado.
Aquele silêncio proposital de sua mãe, faziam-lhe mal
aos nervos. Embora dona Úrsula não declarasse
francamente a causa daquela grande dor moral que a
afligia, não lhe restava dúvida que aquilo e as
respostas que conseguira obter eram uma justa
exprobação à sua conduta da véspera. Sua mãe estava
decerto convencida de que ele ouvira o baque da sua
queda e tratara-a com a maior indiferença, com o
desprezo o mais mortificante. Na velha a dor moral
SP, SPF, SP1: D. Ursula
SP, SPF, SP1: Abilio; apezar
SP, SPF, SP1: incommodado;
Aquelle
SP, SPF, SP1: Aquelle; silencio
SP, SPF, SP1: d. Ursula
SP, SPF, SP1: d’aquella
SP, SPF, SP1: affligia; duvida;
aquillo
SP, SPF, SP1: á sua conducta;
vespera
SP, SPF, SP1:elle
SP, SPF, SP1: indifferença
294
230
sobrepujava de muito o sofrimento físico. Bastava que
Abílio se arrependesse, que fosse sensível diante de
dor tamanha, e pedisse perdão àquela que estremecia,
e a calma voltaria a dona Úrsula. Bem, o mancebo
compreendia isso, mas o orgulho, de mãos dadas com
o egoísmo, era-lhe um obstáculo a um gesto tão
generoso.
SP, SPF, SP1: soffrimento;
physico
SP, SPF, SP1: Abilio; sensivel;
deante
SP, SPF, SP1: áquella; extremecia
SP, SPF, SP1: d. Ursula; Bem (,)
SP, SPF, SP1: comprehendia
SP, SPF, SP1: egoismo; obstaculo
235
240
245
250
Confessar uma falta cometida, reconhecer-se
culpado... descer a pedir perdão!! Oh! Isso para Abílio
seria rebaixar-se, deslustrar-se, mostrar uma fraqueza
que o prejudicaria demasiado. O orgulhoso mancebo,
entretanto, não deixava de perceber que só assim
resgataria a falta cometida, e que a sua orgulhosa
deliberação poderia sacrificar a saúde e até a vida de
sua mãe; mas, acastelado no seu mal entendido
positivismo que supunha isentá-lo de
responsabilidades morais, afeito ao convencionalismo
que maior valia dá as exterioridades, dizia com os seus
botões: “Que fazer! Eu, moço, com um largo futuro
diante de mim, não hei de sacrificá-lo com pieguices
de devotos e supersticiosos. Ela tem talvez o seu
tempo completo e eu estou na florescência da vida. É
o seu estado uma fatalidade a que todos nós
chegaremos mais ou menos dolorosamente de acordo
SP, SPF, SP1: commetida
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: sò
SP, SPF, SP1: comettida
SP, SPF, SP1: saude
SP, SPF, SP1: acastellado
SP, SPF, SP1: suppunha; isental-o
SP, SPF, SP1: moraes; affeito
SP, SPF, SP1: deante; sacrifical-o
SP, SPF, SP1: Ella;
SP, SPF, SP1: florescencia
SP, SPF, SP1: accordo
295
com o prévio preparo que fazemos.” SP, SPF, SP1: previo
255
–Vamos, mãe – disse ele por fim. – Aclare217
essa história de queda, bolos... que estou intrigado.
Para mim tudo isso é mistério.
SP, SPF, SP1: elle; porfim
SP, SPF, SP1: historia
SP, SPF, SP1: mysterio
–Que mistério! Isso não te interessa. O que
sucedeu, passou, acabou-se. – E a velha fez um gesto
com a mão esquerda como quem varre para o olvido o
que se deu, dando tudo por acabado.
SP, SPF, SP1: mysterio
SP, SPF, SP1: succedeu
260
265
270
Abílio tornou-se pálido e amedrontado.
Aquelas palavras continham uma ironia amarga, uma
como vaga sentença que o condenava como um
monstro, um filho ingrato e desnaturado; e o gesto
afigurou-se-lhe uma sinistra separação, como se a mão
esquerda, decerto utilizada casualmente por dona
Úrsula, cortasse os vínculos que ligavam intimamente
os corações de mãe e filho. Compreendeu que sua mãe
afinal penetrara, com uma clarividência
extraordinária, os mais ocultos refolhos de sua alma e
caíra numa completa desilusão a seu respeito; que o
seu entranhado amor maternal agonizava com a velha.
SP, SPF, SP1: Abilio; pallido
SP, SPF, SP1: Aquellas
SP, SPF, SP1: condemnava
SP, SPF, SP1: d. Ursula
SP, SPF, SP1: vinculos
SP, SPF, SP1: Comprehendeu
SP, SPF, SP1: clarividencia
SP, SPF, SP1: extraordinaria;
occultos
SP, SPF, SP1: cahira; n’uma;
desillusão
O único amor de dona Úrsula era a sua
dedicação ao filho e, mesmo por causa dessa
unicidade, adquirira um vigor surpreendente.
Orgulhava-se de ter um filho que, à sua imagem e
SP, SPF, SP1: unico; d. Ursula
SP, SPF, SP1: d’essa
SP, SPF, SP1: adqueriu;
surprehendente
SP, SPF, SP1: á sua
217 Alacrar: lacrar. Neologismo variante de lacra; forma não dicionarizada.
296
275
280
285
Orgulhava-se de ter um filho que, à sua imagem e
semelhança, chegara a ultrapassá-la em malícia e
dissimulação; mas jamais pensara que essa feitura se
voltasse contra quem a modelara nas suas entranhas e
depois a aparelhara para tomar os caminhos escusos e
tenebrosos que, segundo a sua compreensão, eram os
melhores a seguir-se para a conquista do bemestar e
da felicidade. Agora, revendo o seu passado, que
desfilava diante do seu conspecto como fita
cinemática, sentia-se arrependida das faltas que
cometera por amor do filho, entre as quais avultava o
envenenamento de dona Senhorinha.
SP, SPF, SP1: ultrapassal-a;
malicia
SP, SPF, SP1: pensou
SP, SPF, SP1: apparelhara
SP, SPF, SP1: comprehensão
SP, SPF, SP1: deante
SP, SPF, SP1: cinematica
SP, SPF, SP1: commetteu; quaes
SP, SPF, SP1: d. Senhorinha
290
295
Então, superexcitada pela febre, sentia-se
aterrada a pensar no inferno com as suas chamas
inextinguíveis, nas torturas a que os pecadores são
eternamente submetidos, nos demônios, feios e
bestiais, a impeli-la para o braseiro crepitante onde os
réprobos contorciam-se a vociferar impropérios na
desesperança de salvação. Abílio, ao seu lado, pensava
e, de vez em quando, tentava debalde obter uma
palavra de sua mãe que, completamente absorvida
pelos seus pensamentos, parecia-lhe dormitar218 e
passar por terríveis pesadelos, tais os esgares e
trejeitos que a velha fazia. Era uma espécie de delírio,
SP, SPF, SP1: superexcitada
SP, SPF, SP1: chammas
SP, SPF, SP1: inextinguiveis;
peccadores
SP, SPF, SP1: submettidos;
demonios; bestiaes
SP, SPF, SP1: impellil-a; brazeiro
SP, SPF, SP1: reprobos;
improperios
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: terriveis
SP, SPF, SP1: taes; tregeitos;
i d li i 218 Dormitar: ficar meio adormecido; dormir levemente.
297
300
trejeitos que a velha fazia. Era uma espécie de delírio,
segundo o modo de pensar de Abílio. Tomou-lhe o
pulso para avaliar a intensidade da febre, e dona
Úrsula, estremecendo, abriu os olhos que estavam
semicerrados e mirou-o como quem não o conhecesse
ou lhe fosse indiferente.
especie; delirio
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: d. Ursula
SP, SPF, SP1: indifferente
305
–Está sentido-se melhor, mãe? – perguntou
Abílio, dando à sua voz uma intenção de ternura e
carinho.
SP, SPF, SP1: Abilio (,); á sua
–Manda chamar o padre hoje mesmo –
respondeu dona Úrsula ainda atuada219 pela
introversão220 por que passava.
SP, SPF, SP1: d. Ursula; actuada
310 –Para que, mãe?
–Quero me confessar.
–Ora, mãe! Não pense nisso. O seu estado não
é grave.
SP, SPF, SP1: n’isso
–Manda! Manda! – insistiu a velha.
315 –Vou antes chamar o médico. SP, SPF, SP1: medico
–Pois que venham um e outro já.
–Ainda mais esta! – dizia Abílio consigo,
levantando-se do assento, apertando os dedos e dando
estalos, com eram-lhe habitual quando preocupado ou
impaciente.
SP, SPF, SP1: Abilio; comsigo(,)
SP, SPF, SP1: preoccupado
219 Atuada: sob influência de. 220 Introversão: exame íntimo da consciência
298
320 –Nada de demoras – continuou dona Úrsula. SP, SPF, SP1: d. Ursula
325
330
335
Abílio saiu atarantado221 da alcova de sua
mãe, que ficou guardada por uma velha serviçal da
casa. Repugnava ao mancebo chamar o padre, não só
porque era avesso às causas da religião, como por
temer que sua mãe revelasse em confissão alguma
coisa que o comprometesse e o mostrasse tal qual era,
pelo menos na apreciação do padre. Quanto ao
médico, estaria presente ao exame e indagações,
tomando a dianteira quanto às informações que dona
Úrsula devia ministrar, de modo que não fosse
descoberta a causa mais recente do estado da velha
doente. Refletiu demoradamente andando abaixo e
acima e, afinal resolveu satisfazer o pedido de sua mãe
para que depois não dissessem que ela morrera à
mingua de tratamento e sem os socorros da religião,
que seriam de proveito à sua memória e, de alguma
forma, reflexamente, a ele. Saberia encaminhar o
espírito da velha, antes da confissão, de modo que não
houvesse perigo para a sua reputação.
SP, SPF, SP1: sahiu
SP, SPF, SP1: ás causas
SP, SPF, SP1: cousa;
compromettesse
SP, SPF, SP1: medico;
indagações(,)
SP, SPF, SP1: deanteira; ás
informações; d. Ursula
SP, SPF, SP1: Reflectiu
SP, SPF, SP1: ella; morreu; á
mingua
SP, SPF, SP1: á sua memoria
SP, SPF, SP1: para elle
SP, SPF, SP1: espirito
340
O médico chegou mais cedo, à tarde, e foi
acolhido com todas as atenções e agrados que Abílio
sabia dispensar aos hóspedes, com delicadeza fidalga
e cativante. Viu logo a doente, examinou-a
SP, SPF, SP1: medico; á tarde
SP, SPF, SP1: attenções; Abilio
SP, SPF, SP1: captivante
221 Atarantado: perturbado, atrapalhado.
299
345
e cativante. Viu logo a doente, examinou-a
detidamente, fez demoradas indagações que Abílio em
grande parte respondeu e explicou ao seu talante.222
Voltando à sala de visitas, o clínico foi franco: o
estado da doente era desesperador e nada havia a
fazer.
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: á sala
SP, SPF, SP1: clinico
350
–A senhora sua mãe é cardíaca, e sofreu um
terrível abalo moral, segundo suponho. A queda que,
como disse, ela deu, por si só, foi de más
conseqüências chegando a dar origem a uma
mielite223; mas não apressaria o desenlace que prevejo
para muito breve.
SP, SPF, SP1: cardiaca; soffreu
SP, SPF, SP1: terrivel; supponho
SP, SPF, SP1: ella
SP, SPF, SP1: consequecias;
myelite
355
360
–Realmente, doutor – obtemperou Abílio
capciosamente, – minha querida mãe, não sei se por
causa da doença, tornou-se muito impaciente. Ontem
se exaltou discutindo com uma criada; esta respondeu
com desaforos e minha mãe entendeu de realizar ela
própria o que lhe determinara, embora lhe fosse quase
impossível. Na sua exaltação, quando descia um
degrau da escada, caiu sobre o assento.
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: capciosamente(,); si
SP, SPF, SP1: Hontem
SP, SPF, SP1: exaltou-se
(Emendou-se ênclise para
próclise.); realisa; ella
SP, SPF, SP1: propria; quasi
SP, SPF, SP1: impossivel
SP, SPF, SP1: cahiu
–É isso: o abalo moral foi de maior influência
no caso. Não devemos contrariar os cardíacos,
especialmente quando de idade avançada.
SP, SPF, SP1: influencia
SP, SPF, SP1: cardiacos
SP, SPF, SP1: edade
222 Talante: vontade, desejo. 223 Mielite: inflamação da medula espinhal.
300
365
–Mas, doutor, não haverá alguma esperança,
mesmo fraca? – perguntou Abílio mostrando-se
consternado e suplicante.
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: supplicante
370
–Meu amigo, console-se; arme-se de coragem
e resignação. Posso estar enganado, não sou infalível;
é bom até consultar outro médico; mas...
SP, SPF, SP1: infallivel
SP, SPF, SP1: medico
–Ah, doutor! Não avalia quanto isso é
doloroso! – E conseguiu chorar.
–Paciência. Se quer, posso receitar qualquer
coisa para consolar a senhora.
SP, SPF, SP1: Paciencia; Si
SP, SPF, SP1: cousa; á senhora
(Emendou-se conforme regra de
regência.)
375 –É bom, doutor; é bom.
O médico receitou uma tisana224 que o próprio
Abílio poderia preparar. Nesse mesmo dia viajou.
SP, SPF, SP1: medico; proprio
SP, SPF, SP1: Abilio; N’esse
380
385
O padre chegou à tardinha, já tendo Abílio
preparado jeitosamente o espírito de sua mãe para que
a confissão dos seus pecados não lhe fosse prejudicial.
Depois de confessada e comungada, dona Úrsula
entrou em uma calma relativa, ainda mais porque o
sacerdote muito a animou quanto ao seu estado físico,
depois de garantir que o estado da sua alma nada
deixava a desejar. Disse-lhe que não há quem seja
isento de pecados veniais; que ela, como todo o
mundo, os tinha, mas a confissão e a comunhão a
SP, SPF, SP1: á tardinha; Abilio
SP, SPF, SP1: geitosamente;
espirito
SP, SPF, SP1: commungada; d.
Ursula
SP, SPF, SP1: physico
SP, SPF, SP1: ha
SP, SPF, SP1: peccados; venaes;
ella
SP, SPF, SP1: communhão
deixaram-n-a pura.
224 Tisana: cozimento de cevada.
301
haviam deixado pura.
390
395
–A senhora é uma mulher feliz. Conheço-a:
foi esposa exemplar, é mãe carinhosa, um espírito
devoto dado às coisas santas; nunca fez mal a
alguém... que mais quer para quando morrer, que não
será agora, estou certo. Entrar no reino da Glória e
gozar o prêmio das suas virtudes?
SP, SPF, SP1: espirito
SP, SPF, SP1: ás cousas
SP, SPF, SP1: alguem
SP, SPF, SP1: Gloria; gosar
SP, SPF, SP1: premio
400
Vê-se por estas palavras que dona Úrsula
deixou no tinteiro o caso de dona Senhorinha, talvez
convencida de que a absolvição que recebeu
compreendia também os pecados não revelados. Além
disso, tendo recebido Nosso Senhor em espécie, este
acabara por torná-la limpa e pura como os bem
aventurados. A pobre velha, sobretudo, não sabia fazer
distinção entre culpas veniais e pecados mortais.
SP, SPF, SP1: d. Ursula
SP, SPF, SP1: d. Senhorinha
SP, SPF, SP1: comprehendia
SP, SPF, SP1: tambem; Alem;
d’isso
SP, SPF, SP1: especie
SP, SPF, SP1: tornal-a;
bemaventurados
SP, SPF, SP1: veniaes; mortaes
405
410
Como era noite, não podia o padre viajar, o
que talvez fosse um pretexto, sendo a razão ou real
motivo considerar que o estado da doente inspirava-
lhe receio e requereria em breve a sua presença. Dona
Úrsula, além disso, mostrou desejo de ouvir uma
missa, com o que concordou o sacerdote, que tinha
trazido o sacristão e o que para a celebração fosse
indispensável. Abílio tomou logo todas as
providências para que fosse satisfeito o desejo de sua
SP, SPF, SP1: D. Ursula
SP, SPF, SP1: alem d’isso
SP, SPF, SP1: sachristão
SP, SPF, SP1: indispensavel;
Abilio
SP, SPF, SP1: providencias
302
mãe.
415
420
425
430
435
Alta noite o estado de dona Úrsula agravou-se
de tal maneira que todo o pessoal da casa pôs-se em
polvorosa para acudir à doente com os paliativos que
ocorriam ao padre e a Abílio. Eram panos quentes no
ventre, garrafas com água quente nos pés, que
gelavam, tisanas e tudo quanto lembrado naquela
aflição. De madrugada a velha entrou no período da
agonia e foi ungida. Deixou de existir pela manhã,
sendo mais uma vez absolvida. Abílio, logo após o
desenlace daquele drama que antes o maçava do que
comovia, compreendeu que, achando-se presente um
sacerdote, testemunha muito valiosa pela sua posição
social, convinha-lhe dar uma demonstração
estardalhante de entranhado amor filial. Abraçou-se ao
cadáver de sua mãe e, num berreiro atroador,225 como
possesso, bradava por sua “mãe querida” pedindo a
Deus que o levasse também para o outro mundo. O
pobre padre viu-se apertado diante daquele espetáculo,
que o comovia deveras, e, com dificuldade, procurava
acalmar aquela dor que à sua boa fé e ingenuidade
parecia sincera e inconsolável. Com muito trabalho,
conseguiu afastar Abílio do leito mortuário, usando de
expressões brandas e carinhosas em nome de Jesus,
SP, SPF, SP1: d. Ursula;
aggravou-se
SP, SPF, SP1: Poz-se
SP, SPF, SP1: á doente;
palliativos
SP, SPF, SP1: occorriam; Abilio;
pannos
SP, SPF, SP1: n’aquella
SP, SPF, SP1: afflição; periodo
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: d’aquelle
SP, SPF, SP1: commovia
SP, SPF, SP1: comprehendeu
SP, SPF, SP1: cadaver; n’um
SP, SPF, SP1: tambem
SP, SPF, SP1: deante; d’aquelle;
espetaculo; commovia
SP, SPF, SP1: devéras;
difficuldade
SP, SPF, SP1: á sua; aquella
SP, SPF, SP1: inconsolavel;
trabalho (,)
SP, SPF, SP1: Abilio; mortuario
(,)
225 Atroador: estremecedor.
303
440
445
450
455
expressões brandas e carinhosas em nome de Jesus,
que muito mais sofreu para nosso consolo como
exemplificação e promessa de compensações na
verdadeira vida. É bem certo que as exortações do
bondoso sacerdote não tinham no ânimo de Abílio o
efeito desejado por ele e entravam-lhe por um ouvido
e saíam por outro, como se diz vulgarmente; mas
serviram de pretexto ao exortado para entrar na calma
pela qual ansiava porque a sua espetaculosa exibição
já excedia do prazo. Momentos depois, o “amoroso”
filho de dona Úrsula conversava serenamente com o
padre, a quem ainda pediu que, não sendo possível à
sua “santa mãe” ouvir a missa que pediu, fosse ela
celebrada de corpo presente naquela mesma manhã. O
padre satisfê-lo no que lhe pediu e, edificado com a
bondade e amor filial do mancebo, cuja profunda
mágoa tanto o consternava, ofereceu os seus ofícios a
Abílio no tocante às exéquias226 da defunta, cujo
cadáver seria sepultado em Caetité. Abílio aceitou o
oferecimento e, pelo padre, escreveu a um seu
correspondente para preparar o que fosse necessário
ao funeral, que desejava tivesse a maior solenidade.
SP, SPF, SP1: soffreu
SP, SPF, SP1: exhortações
SP, SPF, SP1: animo; Abilio
SP, SPF, SP1: effeito; elle
SP, SPF, SP1: sahiam; outro (,)
SP, SPF, SP1: anciava;
espectaculosa; exhibição
SP, SPF, SP1: depois; (,)
SP, SPF, SP1: d. Ursula
SP, SPF, SP1: possivel; á sua
SP, SPF, SP1: ella
SP, SPF, SP1: n’aquella
SP, SPF, SP1: satisfel-o
SP, SPF, SP1: magua; offereceu;
officios
SP, SPF, SP1: Abilio; ás exequais
defuncta; cadaver
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: offerecimento
SP, SPF, SP1: necessario
O padre seguiu logo viagem, e só depois de
algumas horas seguiu o cadáver conduzido em uma
SP, SPF, SP1: cadaver
226 Exéquias: honras fúnebres, cerimoniais.
304
460
algumas horas seguiu o cadáver conduzido em uma
rede, acompanhando Abílio os condutores. O enterro
de dona Úrsula foi solene, havendo convites e grandes
concorrências ao luzido saimento.
SP, SPF, SP1: Abilio; conductores
SP, SPF, SP1: d. Ursula; solemne
SP, SPF, SP1: concorrencia;
sahimento
IX
5
10
15
A morte de dona Úrsula só foi conhecida no
distrito da sua residência, tão inopinada227 se deu, pelo
alarido228 que faziam os condutores do seu cadáver
quando seguiam estrada a fora a caminho da cidade. É
costume entre os moradores do campo, quando
conduzem um cadáver para o povoado, ou para os
cemitérios que existem fora dele, e que constam
apenas de toscos recintos cercados, construídos à beira
das estradas, irem bradando por socorro e marchando
céleres,229 dois, que se revezam de minuto a minuto,
acompanhados de vizinhos que, ouvindo o brado
peculiar e bem conhecido, sentem-se na obrigação de
acompanharem pressurosos230 para prestarem o
caritativo auxílio solicitado. O grupo avoluma-se e
vence o caminho rapidamente. Quando isso se dá à
SP, SPF, SP1: d. Ursula; sò
SP, SPF, SP1: districto; residencia
SP, SPF, SP1: conductores;
cadaver
SP, SPF, SP1: cadaver
SP, SPF, SP1: cemiterios; d’elle
SP, SPF, SP1: construidos; á beira
SP, SPF, SP1: soccorro
SP, SPF, SP1: celeres; dous
SP, SPF, SP1: visinhos
SP, SPF, SP1: auxilio
SP, SPF, SP1: á noite
227 Inopinado: não esperado, imprevisto. 228 Alarido: choradeira, lamentação. 229 Céleres: diligente. 230 Pressuroso: zeloso.
305
noite, tem seu tanto ou quanto de lúgubre, e assusta as
pessoas nervosas, especialmente mulheres e crianças.
SP, SPF, SP1: lugubre
SP, SPF, SP1: creanças
20
25
Serafim, ouvindo o bradado dos condutores de
dona Úrsula, deixou o trabalho e foi com os dois
filhos ajudar os condutores, ao menos por um trecho
da longa caminhada. Outro tanto aconteceu aos dois
meeiros de dona Maria. Só então souberam que se
tratava da mãe de Abílio, o que muita surpresa lhes
causou, pois ninguém sabia que essa senhora estivesse
doente.
SP, SPF, SP1: Seraphim;
conductores
SP, SPF, SP1: d. Ursula; dous
SP, SPF, SP1: conductores
SP, SPF, SP1: dous
SP, SPF, SP1: d. Maria
SP, SPF, SP1: Abilio; surpreza
SP, SPF, SP1: ninguem
30
35
40
Dona Maria, além da surpresa que esse funesto
acontecimento lhe causou, não deixou de notar a
coincidência dele com o que se deu em sua residência
entre ela e o filho da morta. Há certas idéias que nos
penetram no cérebro e nele se fixam teimosamente
como verdades, embora queiramos varrê-las do nosso
pensamento, quando, aconselhados pelo bom senso,
consideramos que não devemos ter por verdade o que
não está evidentemente provado. Foi o que sucedeu a
dona Maria. Haveria ligação entre os dois fatos?
Abílio, de gênio impetuoso como era, chegando em
casa furioso pelo que sofreu, descarregaria sua cólera,
como de outras vezes, na pobre velha, ocasionando o
mal ou agravamento de sua enfermidade antiga?
SP, SPF, SP1: D. Maria; surpreza;
alem
SP, SPF, SP1: coincidencia; d’elle
SP, SPF, SP1: residencia; ella;
Ha; idéas
SP, SPF, SP1: n’elle; cerebro
SP, SPF, SP1: varrel-as
SP, SPF, SP1: succedeu; d. Maria
SP, SPF, SP1: dous; factos;
Abilio; genio
SP, SPF, SP1: soffreu
SP, SPF, SP1: colera
SP, SPF, SP1: occasionando
306
45
Lastimava dona Maria que assim fosse e, ainda mais,
por ter sido de alguma sorte comparte na causa da
morte da velha. Isso a afligia, tão compassiva era.
Pulquéria veio ao encontro dessa idéia, mas sob outro
modo de considerá-la.
SP, SPF, SP1: d. Maria
SP, SPF, SP1: affligia
SP, SPF, SP1: Pulcheria; d’essa
SP, SPF, SP1: Idea; consideral-a.
–Tá231 vendo, iaiazinha? – dizia a velha ama.
Deus não drome. Aquele demonho foi acabano de
fazê o qui fêis e pagou logo.
SP, SPF, SP1: ‘Tá; yayazinha
SP: dorme; SPF, SP1: DROME;
Aquelle; SP: demonho; acabano,
SPF, SP1: DEMONHO;
ACABANO; SP: qui; fêis; SPF,
SP1: fazê; QUI FÊIS
50
–Ora, mãe velha! Não pense nisso. Dona
Úrsula não tem culpa no que o filho fez.
SP, SPF, SP1: n’isso; Ursula
–Ora! Tão bem é o fio cum a mãe.232 SP: fio cum’a; SPF, SP1: FIO
CUM’A
–Deixemos a pobre velha. Já morreu, vamos
pedir a Deus por ela.
SP, SPF, SP1: ella
55
–Quem?! Eu?! Pru233 mim... –E Pulquéria
levantou os ombros num gesto expressivo.
SP: pru; SPF, SP1: PRU;
Pulcheria
SP, SPF, SP1: n’um
–É mau isso. O bom cristão perdoa ao inimigo. SP, SPF, SP1: christão
–Nem tanto, minha iaiazinha! Sê bom assim...
o qui vancê tem sofrido, agora? Sê bom assim é
demais.
SP, SPF, SP1: yayazinha; SP: sê
SP: o qui vancê; SPF, SP1: SÊ; O
QUI VANCÊ; soffrido; SÊ
60
–Olhe, mãe velha; você é boa, eu sei, e é por
mim que diz assim; mas eu fico triste porque você está
me desagradando com isso.
231 Ta : está. 232 Fio cum a mãe: filho como a mãe. 233 Pru mim: por mim.
307
–Me perdoa, minha iaiá; me perdoa... SP, SPF, SP1: yayá; SP: me;
SPF, SP1: ME
65
–Ah!... – disse dona Maria sorrindo. –
Conheceu, mãe velha, que a gente, quando erra,
precisa de perdão?
SP, SPF, SP1: d. Maria
–Oi, eu não entendo língua de branco. Eu não
quero é desagradá minha fia do coração; mas aquela
véia danada... tesconjuro!
SP, SPF, SP1: língua
SP: desagrada; fia; SPF, SP1:
DESAGRADÁ; FIA; SP, SPF,
SP1: aquella; damnada; SP: véia;
t’esconjuro; SPF, SP1: VÉIA;
T’ESCONJURO
–E você continua! SP, SPF, SP1: continúa
70
–Tá bom! Deixa isso pra lá. Não falo mais
naquela... não sei quê.
SP: tá; p’ra SPF, SP1: TÁ; P’RA;
SP, SPF, SP1: n’aquella
75
80
Como Pulquéria, de cuja palestra damos aqui
amostra do modo de pensar de muitos acerca de dona
Úrsula, a maioria dos humildes daquela redondeza não
fazia bom juízo a respeito dela. Ignorante, metida a
fidalga, pretensiosa e murmuradora, dona Úrsula
nunca encontrou pessoa digna, honesta e boa, a não
ser uma ou duas mulheres que por cálculo e adulação,
afinavam o seu diapasão pelo dela e, de vez em
quando, ali apareciam para “desenferrujarem a língua”
e fazerem jus a dádivas insignificantes, a vestidos já
usados e objetos já imprestáveis. Reunidas,
constituíam uma espécie de tribunal onde a pele do
próximo era atassalhada234 impiedosamente. Essas
raras amigas eram indispensáveis a dona Úrsula na sua
SP, SPF, SP1: Pulcheria
SP, SPF, SP1: d. Ursula
SP, SPF, SP1: d’aqulla
SP, SPF, SP1: juizo; d’ella;
mettida
SP, SPF, SP1: pretenciosa d.
Ursula
SP, SPF, SP1: digna (,)
SP, SPF, SP1: calculo
SP, SPF, SP1: d’ella
SP, SPF, SP1: alli; appareciam;
lingua
SP, SPF, SP1: jús; dadivas; ja
SP, SPF, SP1: objectos; ja;
imprestáveis
SP, SPF, SP1: constituiam;
especie; pelle;
SP, SPF, SP1: próximo
SP, SPF, SP1: indispensaveis; d.
l 234 Atassalhar: fazer em pedaços, lacerar, dilacerar, despedaçar.
308
85
90
95
raras amigas eram indispensáveis a dona Úrsula na sua
tristeza e isolamento desde que, extinta a escravidão,
foi em muito diminuindo o movimento que se dava
incessante na fazenda por ocasião das plantações,
colheitas e beneficiamento dos produtos da lavoura;
quando das vaquejadas se reuniam negros, agregados
e amigos por dias e dias e as escravas, em grande
número, cuidavam nos labores internos da casa. É
verdade que o marido de dona Úrsula não quis, como
outros fazendeiros o fizeram, retirar-se para a cidade,
convencido que de mais lhe convinha continuar na
profissão de agricultor, cujos trabalhos entrou a fazer
por meio de jornaleiros pagos e meeiros; mas estes
residiam fora.
Ursula
SP, SPF, SP1: extincta
SP, SPF, SP1: occasião
SP, SPF, SP1: productos
SP, SPF, SP1: quando, (Emendou-
se.); vaqueijadas; aggregados
SP, SPF, SP1: numero
SP, SPF, SP1: d. Ursula; quiz
100
Dos escravos só permaneceram com dona
Úrsula a velha Felicidade, que era sua colaça235 e a
afeiçoada, e duas filhas, as quais encarregavam-se da
cozinha, da lavanderia e de outros serviços como este.
SP, SPF, SP1: d. Ursula
SP, SPF, SP1: collaça
SP, SP1, SPF affeiçoada; quaes
SP, SPF, SP1: cosinha
105
Morta a dona Úrsula, mais triste e silenciosa
tornou-se a casa de Abílio; na soledade236, é que pôde
avaliar quanto sua mãe era útil apesar do seu gênio
balofo237 e indiscreto, que lhe desgostava, não vendo
nela o que aproveitasse aos seus planos de insídia. Por
SPF, SP1: d. Ursula
SPF, SP1: Abilio, (;)
SPF, SP1: util; apezar; genio
SPF, SP1: n’ella; insidia
235 Colaça: pessoa amamentada pela mesma mulher, embora filhas de mães diferentes. 236 Soledade: tristeza característica de quem se acha só ou abandonado. 237 Balofo: muito grande.
309
110
115
nela o que aproveitasse aos seus planos de insídia. Por
mais que procurasse esquecer a velha, um momento
sequer podia relegá-la ao olvido. Recordava-se a todos
os momentos dos seus hábitos, das suas tolices e das
cenas que se deram nos últimos dias da sua vida,
reconhecendo-se o causador da sua morte inesperada.
Era uma obsessão martirizante que o desesperava, sem
que, no isolamento a que chegara, pudesse distrair-se.
Andava pelos matos em caçadas, e não trazia uma ave
ou outro qualquer animal, não dava um tiro, nem se
lembrava que levava uma arma. Ia à cidade, não
encontrava o alívio almejado. Procurava ler, não
conseguia fixar a atenção no livro.
SPF, SP1: siquer; relegal-a
SPF, SP1: habitos; scenas
SPF, SP1: ultimos
SPF, SP1: obcessão; martyrizante
SPF, SP1: podesse; destrair-se
SPF, SP1: mattos
SPF, SP1: á cidade
SPF, SP1: allivio
SPF, SP1: attenção
120
125
A displicência que o dominava adoecia-lhe o
corpo como a alma, que era o motor desse estado.
Entrou a pensar que lhe era indispensável admitir no
lar uma mulher, não como esposa legítima, mas que se
sujeitasse a um casamento de mão esquerda. Para isso,
entretanto, era mister que fizesse uma escolha
rigorosa; pois a desejava tal que em tudo o servisse e
auxiliasse, até nos seus planos maldosos.
SPF, SP1: displicencia
SPF, SP1: d’esse
SPF, SP1: indispensavel; admittir
SPF, SP1: legitima
SPF, SP1: desejava-a (Emendou-
se ênclise para próclise.)
130
Estava nisso quando o surpreendeu uma
distração, se bem que desagradável. Não tendo no
prazo legal requerido se fizesse o inventário dos bens
SPF, SP1: n’isso; surprehendeu
SPF, SP1: distracção; sibem;
desagradavel
SPF, SP1: praso; inventario
310
135
140
do casal de sua mãe, foi intimado a comparecer em
Juízo em dia e hora assinados. Zangou-se deveras com
isso, que era uma desconsideração à sua importância
social de moço rico, membro da classe privilegiada
que dirige o rebanho popular; mas não encontrou
pretexto que o isentasse disso; era preciso obedecer.
Abrandou-se e entrou a organizar a lista dos bens e
fazer cálculos, não se esquecendo dos seus interesses e
de procurar reduzir quanto possível os gastos em tal
negócio.
SPF, SP1: Juizo; assignados;
devéras
SPF, SP1: á sua; importancia
SPF, SP1: d’isso
SPF, SP1: calculos
SPF, SP1: possivel
SP, SPF, SP1: negocio
X
5
Serafim andava triste e meditabundo desde
que dona Maria o informou do que se deu entre ela e
Abílio. Receava nova tentativa do audaz mancebo, e
por isso havia tomado sérias providências de
prevenção de acordo com a comadre. Sabendo que
Abílio, citado em Juízo, achava-se preocupado com o
inventário, nem por isso afrouxou a vigilância que
guardava.
SPF, SP1: Seraphim
SPF, SP1: d. Maria; ella
SP, SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: serias; providencias
SPF, SP1: accordo
SPF, SP1: Abilio; Juizo;
preoccupado
SPF, SP1: inventario; vigilancia
10
Passados dias depois da intimação feita a
Abílio, apareceu-lhe Pulquéria informando que
estavam trabalhando nos matos pertencentes a João, e
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: appareceu-lhe;
Pulcheria
SPF, SP1: mattos
311
15
estavam trabalhando nos matos pertencentes a João, e
que sua iaiazinha lhe pedia que fosse à sua casa. Foi
verificar o que havia, já desconfiado que ali estava o
dedo do mancebo. Indagando dos trabalhadores,
certificou-se de que assim era. Nada pois com os
mandatários da turbação238 e, sem tardança, procurou
o mandante.
SPF, SP1: yayazinha; á sua
SPF, SP1: alli
SPF, SP1: mandatarios
20
25
30
Abílio, recebendo-o amável e respeitoso como
sempre, disse ao professor que aquelas terras haviam
sido inventariadas como pertencentes a dona Úrsula e
agora eram suas legitimamente por herança. Debalde o
professor procurou convencê-lo do seu engano,
alegando que as terras foram herdadas por dona Maria
e que tinham estremas239 definidas. Que, além disso,
eram encravadas em fazenda antiga que se estremava
como aquela que pertencia a Abílio, o que se provava
com documentos antigos, irrefutáveis. O mancebo
alegou ter comprado as posses de Roberto; mas
Serafim rebateu essa alegação, dizendo-lhe que o
meeiro não possuía terras; era um simples agregado.
SPF, SP1: Abilio; amavel
SPF, SP1: aquellas
SPF, SP1: d. Ursula
SPF, SP1: convencel-o; engano (,)
SPF, SP1: allegando; d. Maria
SPF, SP1: extremas; alem
SPF, SP1: extremava
SPF, SP1: aquella; Abilio
SPF, SP1: irrefutaveis
SP, SPF, SP1: allegou
SPF, SP1: Seraphim; allegação(,)
SPF, SP1: possuia; aggregado
Afinal Serafim, considerando quanto seria
dispendiosa uma ação de demarcação, que talvez
absorvesse, em custas e outras despesas, o valor da
SPF, SP1: Seraphim
SPF, SP1: acção
SPF, SP1: despezas
238 Turbação: pertubação. 239 Estrema: marco divisório de propriedades rústicas.
312
35
gleba, concordou em comprar as pretensas posses de
Roberto e decidir o mais da contenda por meios de
árbitros, o que Abílio aceitou prometendo suspender a
roçagem240 até que os árbitros dessem o seu veredito.
SPF, SP1: arbitros; Abilio;
acceitou; promettendo
SPF, SP1: arbitros; veredicto
40
45
50
Escolhidos árbitros por ambos os interessados
entre pessoas qualificadas da cidade, no dia
consignado, compareceram no local, onde também se
reuniram testemunhas, pessoas velhas que conheciam
desde muitos anos as extremas, que foram fincadas
pelo velho Ambrósio quando dividiu a sua fazenda
entre os filhos, como o leitor estará lembrado.
Examinando tudo, verificaram algumas testemunhas
que um dos marcos, e logo um essencial, não mais
existia e, decerto, fora arrancado havia muito tempo.
Levantou-se larga discussão entre as testemunhas
apresentadas por Abílio e as outras sem que se
pudesse chegar a um acordo. Quanto ao exato lugar
onde havia o marco, diziam uns que era este, outros,
naturalmente industriados por Abílio, que era aquele.
SPF, SP1: arbitros
SPF, SP1: Cidade
SPF, SP1: tambem; consignado
(,); reuniram-se (Emendou-se
ênclise para próclise.)
SPF, SP1: annos
SPF, SP1: Ambrosio
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: podésse; accordo
SPF, SP1: exacto
SPF, SP1: Abilio; aquelle
55
Serafim apresentou os documentos, informou
por sua vez e não conseguiu que prevalecesse a
verdade.
SPF, SP1: Seraphim
Em resumo, com a aquiescência do professor, SPF, SP1: acquiescencia
240 Roçagem: processo de derrubada de árvores e/ou corte de vegetação para preparar o terreno para realizar plantio de capim ou para receber as sementes.
313
60
ficou assentada uma nova limitação proposta pelos
árbitros e aceita por Abílio por sair à medida dos seus
desejos, pois a nova linha da extrema apanhava a
cerca do sítio de João em um trecho de cerca de vinte
metros.
SPF, SP1: arbitros; acceita;
Abilio; sahir; á medida
SPF, SP1: sitio
65
70
75
80
Questões como esta, que dariam em pleitos
ruinosos entre os nossos agricultores, pela melhor, são
resolvidas assim, quando, não o sendo prudentemente,
terminam em lutas e inimizades quase sempre.
Dizemos “pela melhor” porque casos de usurpação se
dão entre potentados e fracos lavradores. Quantos
pobrezinhos, honestos proletários do campo, não têm
sido espoliados das suas casas, culturas e servidões
por indivíduos ricaços e poderosos em favor dos seus
protegidos, ou em proveito dos próprios protetores! Se
procuram o Juízo, os testemunhos comprados ou
obtidos por ameaças, a habilidade sofística241 dos
chicanistas242 e outros meios reprováveis dão quase
sempre ganho de causa à injustiça e à iniqüidade.
Damos aqui esse caso como demonstração da causa da
decadência da nossa agricultura e do êxodo dos
baianos que a movimentavam tranqüila e
perseverantemente aqui há quarenta e tantos anos.
SPF, SP1: melhor (,)
SPF, SP1: luctas; quasi
SPF, SP1: proletarios
SPF, SP1: individuos
SPF, SP1: proprios; protectores;
Si; Juizo
SPF, SP1: sophistica
SP, SPF, SP1: reprovaveis; quasi
SPF, SP1: á injustiça; á iniquidade
SPF, SP1: decadencia; exodo
SPF, SP1: bahianos; tranquilla
SPF, SP1: ha; annos
241 Sofística: diz-se daquele que que é um hábil falcificador, adulterador. 242 Chicanista: diz-se daquele que pratica sutileza capciosa, em questões judiciais. Equivalente a trapaceiro.
314
Poderíamos registrar aqui inúmeros casos como este,
mediante provas; mas não o fazemos por alongar este
capítulo.
SPF, SP1: Poderiamos; innumeros
SPF, SP1: capitulo
85
90
95
Abílio agia caprichosamente tendo em vista
um fim. Estabelecida e segura a convenção por meio
de árbitros, os trabalhadores reencetaram243 a roçagem
que faziam e que se limitava, por um lado, com o
tapume do sítio de João na parte que servia de extrema
e, por outro, com os matos. Terminada a roçagem,
feita a derribada e picada e retirada a madeira
aproveitável, foi feito o aceiro em torno do trabalho;
mas era tão estreito, que os meeiros de dona Maria
reclamaram. Abílio mandou alargá-lo, mas tão pouco
que não deixava de haver perigo, salvo sendo
escolhido para queimada um dia próprio.
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: arbitros
SPF, SP1: limitava(,); lado (,)
SPF, SP1: sitio
SPF, SP1: mattos
SPF, SP1: aproveitavel
SPF, SP1: d. Maria
SPF, SP1: Abilio; alargal-o,
SPF, SP1: proprio
100
Em casos tais, depende da direção do vento e
outras circunstâncias a segurança dos matos e culturas
que estiverem próximas do incêndio e, mesmo
tomadas essas cautelas, ainda assim são avisados os
vizinhos e interessados, que se munem dos meios
indispensáveis à defesa e vão pessoalmente vigilar
pelos seus interesses ajudando na queimada.
SPF, SP1: taes; direcção
SPF, SP1: circumstancias; mattos
SPF, SP1: proximas; incendio
SPF, SP1: visinhos
SPF, SP1: indispensaveis; á defesa
SPF, SP1: QUEIMADA
Entretanto, quando menos se esperava, foi
posto fogo à roçada sem prévio aviso à gente de dona
SPF, SP1: á roçada; previo; á
d i 243 Reencetrar: recomeçar concentramente naquela atividade.
315
105
110
posto fogo à roçada sem prévio aviso à gente de dona
Maria. Somente quem reside no campo e assistiu a
essa rude operação dos nossos lavradores, pode avaliar
o que seja uma queimada de roça. Na “Vida
Campestre”, nosso trabalho ainda infelizmente
inédito, já fizemos uma demorada descrição desses
incêndios.
gente; d. Maria
SPF, SP1: Sòmente
SPF, SP1: QUEIMADA
SPF, SP1: Campestre” (,)
SPF, SP1: inedito; discripção
d’esse
SP, SPF, SP1: incendios
115
120
Ao avistarem as chamas e a fumarada e
ouviram o crepitar e fragor do incêndio, os agregados
de dona Maria e muitos vizinhos, entre os quais
Serafim, que morava distante, acorreram ao local. A
“cama da roçada”, como o lavrador denomina o
aglomerado de ramas, gravetos e folhiço destinados à
queima, era alta, espessa e bem trabalhada, oferecendo
farto alimento ao fogo. As labaredas elevaram-se a
uma altura descomunal e inclinavam-se ora para um,
ora para outro lado conforme a direção do vento, que
estava “bandoleiro”,244 e lambiam tudo quanto lhes
estava próximo mesmo além dos aceiros.
SPF, SP1: chammas
SPF, SP1: incendio; aggregados
SPF, SP1: visinhos; quaes
SPF, SP1: Seraphim; accorreram
SPF, SP1: agglomerado
SPF, SP1: á queima
SPF, SP1: offerecendo
SPF, SP1: descommunal
SPF, SP1: direcção
SPF, SP1: “bandoleiro” (,)
SPF, SP1: proximo; alem
125
Apesar do ativo trabalho dos meeiros e dos
seus auxiliares, o incêndio propagou-se nos matos
vizinhos e ganhou os tapumes aproximando-se das
culturas dos agregados de dona Maria, sendo estas
crestadas em grande parte e muito prejudicadas. A
SPF, SP1: activo
SPF, SP1: incendio; mattos
SPF, SP1: visinhos;
approximando-se
SPF, SP1: aggregados; d. Maria
244 Bandoleiro: diz-se do vento que sopra para todas as direções.
316
130
135
crestadas em grande parte e muito prejudicadas. A
água que conduziam com dificuldade e as ramas
verdes com que batiam os matos miúdos e macega
foram importantes, e somente foi vencido o fogo
porque o vento tomou direção oposta por uns
momentos, voltando-se para o lado já queimado. Do
tapume só escaparam as extremidades, sendo o mais
reduzido a cinza e carvão, e dos matos vizinhos
escaparam os troncos das árvores mais robustas com o
córtice carbonizado e a folhagem destruída.
SPF, SP1: água; difficuldade
SPF, SP1: meudos
SPF, SP1: direcção; opposta
SPF, SP1: mattos; visinhos
SPF, SP1: arvores
SPF, SP1: cortice; destruida
140
145
Abílio, ao ter notícias do desastre, exultou-se.
O miserável desde muito tempo não experimentava
jubilo tamanho; mas guardou-se de manifestar o seu
contentamento a quem quer que fosse, reservando-se
para se defender, lançando tudo à conta dos seus
trabalhadores. Chegou a visitar o local, onde já não se
achava o velho professor como esperava, para, à sua
visita, mostrar-se compungido e defender-se caso
procurasse culpá-lo. Tudo saiu à medida dos seus
desejos e cálculos, e ele procuraria fazer que a
responsabilidade recaísse sobre os ignorantes
trabalhadores, quando lhes viessem reclamações.
Estas não tardaram.
SPF, SP1: Abilio; noticias
SPF, SP1: miseravel
SPF, SP1: á conta; defender (,)
SPF, SP1: á sua
SPF, SP1: culpal-o; sahiu; á
medida
SPF, SP1: calculos; elle
SPF, SP1: rechaisse
SPF, SP1: trabalhadores (,)
317
160
165
170
175
Serafim, indignado diante do que presenciou,
atribuiu logo que mais uma vez Abílio era o inspirador
maldoso do procedimento dos seus operários. Bem
conhecia o velho mestre-escola o gênio malicioso do
seu antigo discípulo e o ódio que votava a dona Maria,
máxime depois do incidente que esta lhe referira;
portanto, considerou não julgar temerariamente
lançando a culpa ao antigo rival de João. A mediada
da prudência estava cheia, e Serafim entendeu que
deveria agir com mais energia, uma vez que
argumentos e meios suasórios245 não conseguiriam
abalar aquela índole endemoninhada. Era urgente usar
com Abílio uma franqueza severa que o atemorizasse,
procurando entanto evitar escândalo que envolvesse o
nome e a reputação da honesta esposa de João. Talvez
Abílio não se demovesse dos seus maus propósitos,
supondo que fosse temido por sua tão proclamada
posição de moço fidalgo e endinheirado.
SPF, SP1: Seraphim; deante
SPF, SP1: attribuiu; Abilio
SPF, SP1: operarios
SPF, SP1: genio
SPF, SP1: discipulo; odio; d.
Maria
SPF, SP1: maxime; referiu
SPF, SP1: portanto
SPF, SP1: prudencia; Seraphim
SPF, SP1: suasorios
SPF, SP1: aquella; indole;
endemoinhada
SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: emtanto; escandalo
SPF, SP1: Abilio; propositos (,)
180
Nessa disposição de ânimo, o velho professor
apresentou-se logo em casa de seu negregado
discípulo, que o recebeu como sempre, mostrando-se
afável e respeitoso, talvez ainda a mais do que das
outras vezes, por notar a fisionomia carregada do
velho. Esta recepção, por exagerada nos modos e
SPF, SP1: N’essa; animo
SPF, SP1: discipulo
SPF, SP1: affavel
SPF, SP1: physionomia
245 Suasório: persuasivo.
318
185
velho. Esta recepção, por exagerada nos modos e
meneios do mancebo, convenceu a Serafim de que as
suas desconfianças convertiam-se em certeza.
SPF, SP1: Seraphim
–Aqui estou, – foi logo dizendo o professor –
não como visitante; mas como reclamante por parte de
minha comadre Maria da Conceição.
190
–De que se trata, professor? – inquiriu Abílio
procurando guardar serenidade, mas empalidecendo.
SPF, SP1: inqueriu; Abilio
SPF, SP1: empallidecendo
–Então não sabe o que se deu?
–Não posso adivinhar.
195
–Não é preciso ser adivinho para saber o que
se deu quase às suas portas, previamente planeado e
combinado, e pela sua gente executado.
SPF, SP1: quasi; ás suas portas (,)
previamente
–É estranho o que me diz. Minha gente! Que
gente?!
SPF, SP1: extranho
–É muito inocente!... – exclamou Serafim com
acerba ironia. – Chega mesmo a ser ingênuo.
SPF, SP1: innocente; Seraphim
SPF, SP1:ironia (.); ingenuo
200
–Meu caro professor, está hoje enigmático. Já
não é aquele homem franco e decisivo que sempre
conheci.
SPF, SP1: enigmatico
SPF, SP1: aquelle
–Nem sempre fui franco como devera. Antes o
fosse, porque então talvez encolhesse as suas garras.
SPF, SP1: devêra
SP1: encolhesee (Erro óbvio.)
205
–Oh!! – exclamou Abílio. – Passa a insultar-
me?
SPF, SP1: Abilio
319
–Não é insulto; é dar o seu ao seu dono.
–Estou em minha casa.
–Eu o sei bem.
210
–Porventura o ofendi em alguma coisa?
Algum dia deixei de respeitá-lo como pessoa que
sempre me mereceu estima?
SPF, SP1: offendi-o ( Emendou-se
ênclise para próclise.); cousa
SPF, SP1: respeital-o
–Na aparência, não. SPF, SP1: apparencia
–É demais! Ofendeu-me profundamente. SPF, SP1: Offendeu-me
215 –Exigiu que eu fosse franco.
–Entretanto, está com circunlóquios... SPF, SP1: Entretanto (,);
circumloquios
220
–Porque você já sabe do que se trata, e eu sei
que você já viu com os seus próprios olhos. Eu é que
devia exigir-lhe franqueza. Não a exigi porque sei que
não a conseguiria.
SPF, SP1: proprios
–Já disse ao professor que não adivinho. SPF, SP1: Ja
–E eu que lhe não é preciso adivinhar, porque
sabe ao que vim aqui e finge ignorar.
225
–O que lhe fiz eu, professor, para dizer-me
isso?
–Esquece-se, porventura, que eu, há poucos
momentos, lhe disse estar aqui em nome de minha
comadre?
SPF, SP1: ha
320
230
–Ah! É isso? Não ofendi a essa senhora em
coisa alguma. Sei que ela é o seu ai-jesus246, e por isso
vem me acusar e ofender por esta maneira.
SPF, SP1: offendi
SPF, SP1: cousa; ella; aijesú
SPF, SP1: accusar; offender
–Ela não é o meu ai-jesus. Se tomo interesse
por sua causa, é porque João, quando viajou, muito
ma recomendou.
SPF, SP1: Ella; Si; aijesú
SPF, SP1: m’a; recommendou
235
–A mim também; pois João, como sabe é meu
amigo.
SPF, SP1: tambem
–É de muita força! – disse Serafim fitando
Abílio com ar de enojado. – E o que tem feito pela
pobre senhora? Diga.
SPF, SP1: Seraphim; Abilio
240
–Quando a procurei oferecendo os meus
serviços, repeliu-me com orgulho dizendo-me que de
nada precisava. Sei que ela, sim, tem propósitos contra
mim.
SPF, SP1: offerecendo
SPF, SP1: repelliu-me
SPF, SP1: ella; propositos
245
–Ela não tem propósito contra quem quer que
seja; é incapaz disso como sabe. É antes vítima das
suas pirraças.
SPF, SP1: Ella; proposito
SPF, SP1: d’isso; victima
–Pirraças! Tirou o dia para insultar-me sem
me apontar o motivo disso, sem conceder-me defesa.
Julga arbitrariamente, quando sempre o tive em conta
de um homem sério e criterioso.
SPF, SP1: d’isso
SPF, SP1: serio
250 –Hoje, por certo, já não sou esse homem sério SPF, SP1: ja; serio
246 Ai-jesus: queridinho predileto.
321
e criterioso, não?
–Pois se não posso saber porque sou acusado! SPF, SP1: accusado
255
–Pois bem; vou dizer-lhe, embora saiba que é
chover no molhado. Já, na ocasião do convenio que
fizemos, concordei para evitar disputas em juízo.
Estou plenamente convencido de que o marco foi
arrancado e consumido proposital e
tendenciosamente...
SPF, SP1: Ja; occasião
SPF, SP1: desputas; Juizo
–Por quem?
260
–Quem sabe melhor do que o senhor? Quem
nisso tinha interesse?...
SPF, SP1: n’isso
Abílio calou-se e Serafim, depois de fitá-lo
seriamente, continuou.
SPF, SP1: Abilio; Seraphim; fital-
o
265
270
–O marco era bem conhecido e, quando o
senhor nasceu, já estava ali fincado no centro do
carrasco247. Quando eu cheguei nesta terra, já ele
existia e, quando eu e Carlos andávamos em caçada
pelos matos, muitas vezes descansamos ao seu pé, à
sombra de uma árvore frondosa que lá está ainda e
bem serve para indicar o lugar onde ele estava
fincado.
SPF, SP1: ja; alli
SPF, SP1: n’esta; ja; elle
SPF, SP1: andavamos
SPF, SP1: mattos; descançamos; á
sombra;
SP1, SPF arvore; la
SPF, SP1: elle
–Mas a escritura não menciona essa árvore.
Além disso, o professor não me lembrou isso nem
SPF, SP1: escriptura; arvore
SPF, SP1: Alem; d’isso
247 Carrasco: formação vegetal nordestina, mais rala, enfezada e áspera do que a caatinga.
322
tampouco reclamou.
275
–Não era preciso, porque você a conhece
desde criança. Além disso, uma testemunha referiu-se
à árvore e foi contestado o seu testemunho por outras,
talvez ali dizendo o que lhe recomendavam.
SPF, SP1: creança; Alem; d’isso
SPF, SP1: á arvore
SPF, SP1: alli; recommendavam
Abílio calou-se de novo, e Serafim continuou. SPF, SP1: Abilio; Seraphim
280
–Quando combinamos nos novos limites, não
pude perceber que você levava o propósito de, além de
usurpar a terra e matos de João, preparar novas
perseguições a minha comadre.
SP1: conbinamos (Erro óbvio.)
SPF, SP1: proposito; alem
SPF, SP1: mattos
–Eu!? Oh! O senhor...
285
–Acabe. Quer dizer que me excedo ou que
estou mentindo? A sua consciência, para a qual apelo,
fará o julgamento.
SPF, SP1: consciencia; appello
–Tenho a consciência tranqüila. SPF, SP1: consciencia; tranquilla
–Diga antes que ela está dormente. SPF, SP1: ella
–Professor!...
290
295
–Deixemos, porém, isso; o que combinamos
está combinado. Agora é que atinei com o seu plano
insidioso. Ficou bem próximo dos matos e culturas de
minha comadre para mandar a sua gente incendiar
cercas, plantações e matos que lhe não pertencem.
Sabe agora do que se trata?
SPF, SP1: porem
SPF, SP1: proximo; mattos
SPF, SP1: mattos
–Professor, eu não sou culpado da SPF, SP1: imprudencia
323
imprudência dos meus agregados, nem responsável
pelo que se deu.
SPF, SP1: aggregados;
responsavel
–Não é responsável! SPF, SP1: responsavel
300 –Os tais camaradas trabalhavam por sua
própria conta e puseram fogo na roça sem nada me
dizerem. Tenho eu culpa disso?
SPF, SP1: taes; propria
SPF, SP1: puzeram
SPF, SP1: d’isso
305
310
–Vim aqui apenas certificá-lo do seguinte: há
muito tempo sei do que tem feito e tenciona fazer,
fiado na sua posição de homem rico e fidalgo que tem
o proletariado como um rebanho de escravos. Por isso
supunha que o meu silêncio e prudência eram medo
do seu poderio. Não sou escravo nem me arreceio de
você, é o que desejo se convença. Quanto aos estragos
feitos nos matos e cercas de João, como não é você
responsável, não falemos mais nisso; ninguém mais
me ouvirá sobre o assunto. Tratarei de tudo remediar.
Fique com a sua consciência tranqüila! – rematou
Serafim ironicamente.
SPF, SP1: certifical-o; ha
SPF, SP1: suppunha; silencio;
prudencia
SPF, SP1: mattos
SPF, SP1: responsavel; n’isso;
ninguem
SP1, SPF assumpto
SPF, SP1: consciencia; tranquilla
SP1, SPF Seraphim
315
320
–Professor – disse Abílio contendo a custo,
receoso e hesitante, o ódio violento que fervia em sua
alma, – sempre muito o respeitei e estimei como é do
meu dever. Para mim o senhor é sagrado, pois devo-
lhe os alicerces que construi em minha alma para
sustentáculo da pequena instrução que adquiri e
SPF, SP1: Professor, (Emendou-
se.); Abilio
SPF, SP1: receioso; odio
SPF, SP1: sustentaculo; instrucção
324
formação do meu caráter... SPF, SP1: carater
–Livra! – pensou Serafim resmoneando248. SPF, SP1: Seraphim
325
–Ninguém mais me merece do que o meu
velho mestre, depois de meus pais. Por tudo isso eu
perdôou sinceramente tudo quanto me disse agora, a
injusta apreciação que acaba de fazer da minha
conduta. Continuarei o mesmo...
SPF, SP1: Ninguem
SPF, SP1: paes
SPF, SP1: conducta
–Disto estou certo – resmoneou o velho
interrompendo Abílio.
SPF, SP1: D’isto
SPF, SP1: Abilio
330 –O que, professor?
–Nada; é cá outra coisa. Continue. SPF, SP1: cousa
–Mas o senhor disse ?
335
–Que estou certo de que continuará o mesmo,
como assevera – respondeu Serafim com toda a
seriedade.
SPF, SP1: Seraphim
–Mas o mesmo como pensa que sou.
–Certo que será como é segundo me assevera,
no que mostra merecer-me fé.
340
Abílio não achou o que responder, tomados
todos os caminhos por onde poderia escapar à
habilidade do velho mestre-escola.
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: á habilidade
–Concluamos isso. Vim aqui na suposição de
que era responsável pelos prejuízos que sofreu aquela
que eu represento, e que remediaria a situação; mas
SPF, SP1: supposição
SPF, SP1: prejuizos; responsavel;
soffreu; aquella
248 Resmoneando: falando por entre os dentes e com mau humor. Equivale a resmungar.
325
345
que eu represento, e que remediaria a situação; mas
como não é, retiro-me disposto a fazer o que me for
possível em favor de minha comadre ajudando-a a
reconstruir a cerca. Quanto aos matos incendiados, é
impossível repô-los no antigo estado; o remédio é
ficarem como estão. Desculpe-me, e adeus.
SPF, SP1: possivel
SPF, SP1: mattos
SPF, SP1: impossivel; repol-os;
remedio
350
–Não; professor. Não quero que me suponha
um testudo. Quero auxiliá-lo na reconstrução da cerca.
SPF, SP1: supponha
SPF, SP1: auxilial-o;
reconstrucção
355
–Também não sou testudo. Por minha
comadre, dispenso. Não é responsável, e seria uma
injustiça aceitar o que considero fazer apenas por me
contentar. Depois, seria isso feio, e as más línguas
diriam que minha comadre recebe favores ou esmolas
de estranhos.
SPF, SP1: Tambem
SPF, SP1: responsavel
SPF, SP1: acceitar
SPF, SP1: más; linguas
SPF, SP1: extranhos
–Oh! Professor! Não sabe que eu muito me
interesso por João?
–É mas continuo a dizer que não convém. SPF, SP1: convem
360
–Não é favor de estranho. Primeiro, não sou
estranho a João, meu antigo condiscípulo e amigo
dileto. Depois, pensando melhor, digo que, se não sou
responsável direto pelo que se deu, sou indiretamente,
e as suspeitas já levantadas contra mim serão levadas
às fronteiras da verdade marcando minha reputação.
SPF, SP1: extranho
SPF, SP1: extranho; condiscipulo;
dilecto
SPF, SP1: responsavel; directo;
indirectamente; ja
SPF, SP1: ás fronteiras
365 –Continuo a dizer, “não! não!” As mesmas
326
línguas más a que alude dirão que o constrangi
injustamente, e os meus créditos seriam abalados. E
basta.
SPF, SP1: linguas; allude
SPF, SP1: creditos
370
E o velho mestre, sem dar tempo a Abílio de
retrucar os seus argumentos ou com eles concordar,
despediu-se mais uma vez ligeiramente e retirou-se
mais convencido da hipocrisia do seu antigo discípulo,
da sua habilidade em procurar iludir, da sua infame
conduta enfim.
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: elles
SPF, SP1: hypocrisia; discipulo
SPF, SP1: illudir
SPF, SP1: em fim
375
380
Abílio, por sua vez, procurando acalmar o seu
despeito, meditou longamente sobre a confabulação
que tivera com Serafim, reconheceu que não poderia
vencer porque em seu poder havia provas
inconcussas249 do seu infame procedimento e, cobarde
como são todos os indivíduos que procuraram as
sombras e emboscadas para perseguirem aqueles a
quem odeiam, tomou uma resolução que desde logo
começou a pôr em prática.
SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: Seraphim
SPF, SP1: individuos
SPF, SP1: aquelles
SPF, SP1: pratica
385
No dia seguinte, quando Serafim se dispunha a
realizar o trabalho da reconstrução da cerca, já os
trabalhadores de Abílio, desde o romper do dia,
tinham cortado, nos matos deste, muita madeira e,
começado o serviço a que seu patrão se negara fazer
inteiramente por si. Inquiridos pelos meeiros de dona
SPF, SP1: Seraphim
SPF, SP1: realisar; reconstrucção;
ja: SP: trababalho (Erro óbvio.)
SP1, SPF Abilio
SPF, SP1: mattos; d’este
SPF, SP1: Inqueridos; d. Maria
249 Inconcusso: incontestável; irrefutável.
327
390
inteiramente por si. Inquiridos pelos meeiros de dona
Maria, informaram eles que, desde o dia anterior,
tinha-lhes Abílio determinado que disso tratassem de
preferência a outro qualquer serviço.
SPF, SP1: elles
SP1, SPF Abilio
SPF, SP1: preferencia
XI
5
Já mais de dois anos se tinham escoado do
contato de João e Calisto com o coronel Paulino, e o
cafezal estava bem desenvolvido e seguro na maior
parte, pondo em evidência a competência, operosidade
e boa conduta dos empreiteiros. O coronel, tendo
visitado algumas vezes o serviço, achava-se
satisfeitíssimo.
SPF, SP1: Ja; dous; annos
SPF, SP1: contacto; Calixto
SPF, SP1: cafézal
SPF, SP1: evidencia; competencia
SPF, SP1: conducta
SPF, SP1: satisfeitissimo
10
15
Os empreiteiros tornam-se muito estimados
pelos jornaleiros que, em grande número, reuniram
para levarem a fim o contrato sem que inconveniente
nenhum os embaraçasse, e que eram tratados com
muita brandura e cordialidade pelos dois baianos. No
tempo decorrido, a faculdade de cultivarem cereais,
engordarem cevados e realizarem outros trabalhos
agrícolas para o seu próprio proveito, foram de muita
valia a João e Calisto, que, aproveitando os produtos
SPF, SP1: numero
SPF, SP1: contracto;
inconvenieste
SPF, SP1: dous; bahianos
SPF, SP1: cereaes
SPF, SP1: realisarem
SPF, SP1: agricolas; proprio
SPF, SP1: Calixto; productos
328
20
para a subsistência própria e para certos arranjos que
conseguiram, vendendo o excesso das produções,
ofereciam-lhes a vantagem de irem poupando e
economizando o que lhes cabia do contrato em
pecúlio.
SPF, SP1: subsistencia; propria
SPF, SP1: producções
SPF, SP1: offereciam-lhes
SPF, SP1: contracto
SPF, SP1: peculio
25
30
35
Por esse tempo mais ou menos, o coronel teve
necessidade de um secretário que se encarregasse da
escrita dos seus negócios e da sua correspondência. O
que ele tinha não lhe satisfazia, não por desonesto,
mas porque havia dado lugar a equívocos, pois não
tinha bem competência para o caso e a sua caligrafia
era às vezes ilegível, aumentando o embaraço com a
sua má ortografia. Era certo que o coronel não estava
no caso de julgar o seu empregado no que concernia
ao modo de redigir o que escrevia; mas vieram-lhe
reclamações, ora verbais, ora escritas, mostrando-lhe a
conveniência de arranjar outro. Como, porém,
estimava o moço, que era de conduta exemplar e fora-
lhe recomendado por um amigo, sentia-se o fazendeiro
embaraçado, tanto mais que pensava ser-lhe difícil
encontrar um substituto com os requisitos essenciais
para o caso.
SPF, SP1: menos (,)
SPF, SP1: secretario
SPF, SP1: escripta; negocios;
correspondencia
SPF, SP1: elle
SPF, SP1: equivocos
SPF, SP1: competencia;
calligraphia
SPF, SP1: ás vezes; illegivel;
augmentando
SPF, SP1: orthographia
SPF, SP1: verbaes; escriptas
conveniencia
SPF, SP1: porem
SPF, SP1: conducta
SPF, SP1: recommendado
SPF, SP1: difficil
SPF, SP1: essenciaes
40
Afinal o próprio moço pediu dispensa do
cargo, e que o coronel o recomendasse ao seu amigo
SPF, SP1: proprio
SPF, SP1: recommendasse
329
45
50
55
obter-lhe uma colocação que ele pudesse mais
facilmente desempenhar. O coronel prometeu
satisfazê-lo depois de regressar de Ribeirão Preto,
aonde ia tratar de certos negócios. Uma vez naquela
cidade, uma das suas preocupações foi procurar um
substituto recomendável e competente para o lugar do
seu secretário. Achou num jovem baiano inteligente,
instruído e honesto que lhe recomendaram, e depois
de sindicâncias, conseguiu encontrá-lo e contratá-lo.
Vindo para a fazenda, foi instalado no serviço sem que
por isso ficasse o substituído mal servido nem se
mostrasse de má vontade com o seu substituto, que era
um jovem insinuante, de educação regular e trato
cativante.
SPF, SP1: elle; podesse
SPF, SP1: prometteu
SPF, SP1: satisfazel-o
SPF, SP1: negocios; n’aquella
SPF, SP1: preoccupações
SPF, SP1: recommendavel
SPF, SP1: secretario; n’um; joven;
bahiano; intelligente;
SPF, SP1: instruido
SPF, SP1: syndicancias;
encontral-o; contractal-o
SPF, SP1: installado
SPF, SP1: substituido
SPF, SP1: joven
SPF, SP1: captivante
60
O coronel obteve para o desempregado o lugar
de administrador de uma fazenda, para a qual teria de
seguir um mês depois. Nesse ínterim os dois rapazes
afeiçoaram-se e tomaram uma sincera amizade entre
si.
SPF, SP1: N’esse; interim; dous
SPF, SP1: affeiçoaram-se
65
Melquíades, por sua vez, sentiu-se inclinado
para o novo secretário, com quem tinha que se
entender constantemente. A novidade propagou-se
logo aos colonos, que logo desejaram conhecer o
senhor. Aristides, especialmente os baianos, que
SPF, SP1: Melchiades
SPF, SP1: secretario
SPF, SP1: bahianos
330
70
75
tinham curiosidade de saber de onde era, porque
talvez fosse conhecido seu na Bahia; mas o secretário
raras vezes se punha em contato com os jornaleiros.
Entretanto, Aristides, que, nas casas onde tinha
servido, procurava sempre se tornar agradável a todas
as classes desde as mais humildes, estava aflito por
conhecer aquela gente e escolher no meio um círculo
de amizades que fossem dignas de apreço pelo caráter,
não queria que o tomasse por um pretensioso que, por
orgulho, se afastasse dos humildes.
SPF, SP1: secretario
SPF, SP1: põe; contacto
SPF, SP1: Enquanto (,)
SPF, SP1: tornar-se (Emendou
ênclise para próclise.); agradavel
SPF, SP1: afflicto; aquella
SPF, SP1: circulo
SPF, SP1: caracter
SPF, SP1: pretencioso
Assim conseguira sempre deixar boa nota por
onde passara e residira, adquirindo prática da vida,
tomando conhecimento dos altos e baixos da
sociedade e aprendendo a viver com todos geralmente.
SPF, SP1: conseguiu
SPF, SP1: passou; residiu; pratica
80
85
Vê-se que Aristides era criterioso, porque,
procedendo assim, estudando os caracteres diversos
com que lidava, sabia dar a cada um o trato que
convinha, impunha-se ao respeito e estima e teria
sempre, como era o seu critério, quem proclamasse as
suas preciosas qualidades e o defendesse de intrigas e
calúnias que, porventura, como infelizmente se dá, por
inveja ou má apreciação, se levantassem e fomentando
os mal-intencionados.
SPF, SP1: criterio
SPF, SP1: calumnias
SP1: invejaou (Erro óbvio.)
Já, pelo seu porte, discreto modo de tratar e
331
90
95
100
semblante, impunha-se Aristides; mas a desconfiança,
que é a característica das classes humildes e
ignorantes relativamente àquelas que pelo modo de
tratar-se, trajar e ares superiores, consideram
enfatuadas, bem sabia o jovem que dificilmente se
submete sinceramente à guia e direção destas. A
familiaridade demasiada entre umas e outra é
inconveniente, e a severidade excessiva fere o amor
próprio do humilde. É preciso, pois, que quem se
propunha a tornar-se respeitado e, ao mesmo tempo,
querido das massas ignorantes e humildes, concilie o
ar autoritário com o carinho e bondade sem excesso.
SP, SPF, SP1: è; caracteristica
SP, SPF, SP1: áquellas
SP, SPF, SP1: joven;
difficilmente; submette
SP, SPF, SP1: á guia; direcção;
d’estas
SP, SPF, SP1: proprio
SP, SPF, SP1: autoritario
105
110
No domingo seguinte à sua posse no cargo,
posto em ordem ao seu jeito o serviço que lhe
competia, Aristides, depois do almoço, empreendeu
um passeio pela colônia para conhecê-la e a alguns
dos jornaleiros de quem já tinha notícia. A primeira
casa que avistou, pela sua colocação, foi a do velho
Marcos, pai de Giudita, que já vira de longe algumas
vezes e de quem tinha boas informações. O velho
achava-se assentado em um mocho à frente da
casinhola fumando pachorrentamente um cachimbo de
comprida chupeta. Avistando o moço, o velho
desbarretou-se numa respeitosa mesura erguendo-se
SP, SPF, SP1: á sua
SP, SPF, SP1: geito
SP, SPF, SP1: emprehendeu
SP, SPF, SP1: collonia; conhecel-
a
SP, SPF, SP1: noticia
SP, SPF, SP1: collocação pae
SP, SPF, SP1: Giuditta; ja
SP, SPF, SP1: a frente (Emendou-
se acrescentado crase.)
SP, SPF, SP1: n’uma
332
do assento.
115 –É o senhor Marco? – perguntou Aristides.
–Le son servo, curunè. SP: le son servo, curunè; SPF,
SP1: LE SON SERVO, CURUNÈ
–Não sou coronel, desculpe-me. Sou um
simples empregado do senhor coronel.
–Signor Aristide. SP: signor aristide; SPF, SP1:
SIGNOR ARISTIDE.
120 –Um criado ao seu serviço.
125
Na acanhada saleta Giudita amassava farinha
em um alguidar250 e sua mãe folhava-a e preparava os
macheroni, mostrando-se ambas amestradas nesse
serviço. Genarino, assentado a um canto, não tirava os
olhos da linda mocinha, a quem sorria a furto, quando
lhe era possível, sendo correspondido pela ragazza
quando a velha se distraía da sua vigilância de Argos.
SP, SPF, SP1: Giuditta
SP: macheroni SPF, SP1:
MACHERONI
SP: ragazza; SPF, SP1: possivel;
RAGAZZA; SPF, SP1: distrahia;
vigilancia
130
Marco chamou a mulher e a filha, que vieram
acompanhadas por Genarino, e fez em regra a
apresentação do jovem secretário, dizendo depois,
aparte à mulher, que se tratava de um giovine elegante
digno de respeito e muita consideração.
SP, SPF, SP1: joven; secretario
SP, SPF, SP1: á mulher; SP:
giovine elegante; SPF, SP1:
GIOVINE ELEGANTE
–Sua esposa e filhos, não? – inquiriu Aristides.
135 –Figlia, solamente la ragazza. SP: figlia, solamente la ragazza;
SPF, SP1: FIGLIA,
SOLAMENTE LA RAGAZZA
–Linda come une fiore! – observou Aristides SP: linda come une fiore; SPF,
SP1: LINDA COME UNE FIORE
250 Alguidar: vaso de barro ou de metal, baixo, em forma de tronco de cone invertido, e com diversos usos domésticos.
333
com bondade.
140
Genarino franziu os sobrolhos, o que não
passou desapercebido ao jovem secretário. Este que
compreendeu haver um idílio entre os jovens
napolitanos, procurou reparar logo a imprudência que
cometeu:
SP, SPF, SP1: joven; secretario
SP, SPF, SP1: comprehendeu;
idyllio
SP, SPF, SP1: imprudencia
SP, SPF, SP1: commetteu
–É, por certo, noiva do senhor Genarino, não?
145
150
Marco, apenas por um gesto, informou que por
ora não. Os amantes sorriram, mas a velha Maria
Giuseppa, por sua vez, com cara de poucos amigos,
empurrou Giuditta para o alguidar repreendendo-a em
sua língua e chamando-a ao cumprimento do seu
dever e são cuidado no serviço que estava fazendo.
SP, SPF, SP1: reprehendendo-a
SP, SPF, SP1: lingua
155
160
Cá fora, enquanto as mulheres trabalhavam,
assentou-se Aristides em um mocho e os dois italianos
acomodaram-se como melhor puderam, encetando
uma larga conversação, o secretário em bom
português e os dois estrangeiros estropiando a nossa
língua ou misturando-a com palavras e frases da sua.
Afinal achavam-se os colonos encantados com o
jovem Aristides, que conseguiu captar a confiança dos
outros.
SP, SPF, SP1: emquanto
SP, SPF, SP1: dous
SP, SPF, SP1: accommodaram se;
poderam
SP, SPF, SP1: secretario
SP, SPF, SP1: portuguez; dous;
extrangeiros
SPF, SP1: língua; mixturando-a;
phrases
SP, SPF, SP1: joven
Marco informou que eram, ele, Gennarino e os
seus, naturais dos arredores de Nápoles, mas que seu
SP, SPF, SP1: elle
SP, SPF, SP1: naturaes; Napoles;
pae
334
165
170
175
pai era Benevento e serviu no exército quando da
campanha da unificação, alistando-se sob o comando
de Garibaldi, embora súbdito de Pio IX, o que lhe
valeu ser perseguido pelos pontificais e considerado
herege. Terminada a guerra, o velho casou-se com
uma siciliana vindo residir em Castellamare, onde
Marco foi criado, educado e casou-se por fim com
Maria. Teve outros filhos, mas sendo família muito
pobre, emigraram com um tio para a América,
restando-lhe a Giudita, a mais moça. Lutando com
dificuldades em sua terra, Marco, com os seus,
incorporou-se a uma leva de emigrantes e veio ter em
São Paulo.
SP, SPF, SP1: exercito
SP, SPF, SP1: commando
SP, SPF, SP1: subdito
SP, SPF, SP1: pontificaes
SP, SPF, SP1: porfim
SP, SPF, SP1: familia
SP, SPF, SP1: America
SP, SPF, SP1: Luctando
SP, SPF, SP1: difficuldades
SP, SPF, SP1: encorporou-se
SP, SPF, SP1: S. Paulo
180
185
Aristides informou que era baiano sertanejo.
Tendo falecido sua mãe, muito criança ainda, foi
tomado a si por uma tia casada que pouco depois veio
para São Paulo trazendo-o consigo. Recebeu uma
regular instrução que muito lhe serviu, pois conseguiu
empregar-se como escriturário. Seu pai também, já
viúvo duas vezes, tendo casado a filha que tinha
consigo, emigrou para São Paulo, procurando
restabelecer a modesta fortuna que possuía e,
infelizmente, não conseguiu o que desejava.
SP, SPF, SP1: bahiano
SP, SPF, SP1: fallecido; creança;
ainda (,)
SP, SPF, SP1: S. Paulo; comsigo
SP, SPF, SP1: instrucção
SP, SPF, SP1: escripturario pae
tambem
SP, SPF, SP1: viuvo
SP, SPF, SP1: comsigo; S. Paulo
(,)
Na longa palestra que entretinham, Maria e
335
190
195
Genarino referiram-se a João Lopes, um baiano
honesto e laborioso que entretinha amistosas relações
com a família de Marco. Aristides mostrou-se muito
interessado em conhecer esse João Lopes, cujo nome
vira no contrato que ele e o Calisto fizeram com o
coronel Paulino. Esse nome despertou-lhe grande
interesse por coincidir com o de pessoa que estava
ligada à sua família, e o jovem desejou conhecer
pessoalmente o empreiteiro.
SP, SPF, SP1: bahiano
SP, SPF, SP1: familia
SP, SPF, SP1: contracto; elle;
Calixto
SP, SPF, SP1: á sua; família;
joven
Marco disse ser-lhe fácil vê-lo, porque todos
os domingos João e o companheiro vinham à sua casa.
SP, SPF, SP1: facil; vel-o
SP, SPF, SP1: á sua
200
205
210
Aristides continuou o seu passeio com a idéia
de voltar à casa de Marco logo que João aí estivesse.
Os galopes estavam quase todos desertos, ouvindo-se
aqui e ali um som de sanfona ou uma conversação
pouco animada, e nas casinhas algumas famílias nelas
alojadas tinham ausentes os chefes, ficado somente as
mulheres e crianças. O jovem secretário aproximou-se
de algumas dessas habitações provisórias sob algum
pretexto, mas não sentiu atração ali, mesmo que o
olhavam com alguma indiferença, sem um sinal de
agrado e hospitalidade. Andavam os trabalhadores em
passeios e caçadas, em sua maior parte, aproveitando a
folga domingueira.
SP, SPF, SP1: idea
SPF, SP1: á casa; ahi
SP, SPF, SP1: quasi
SP, SPF, SP1: alli; samphona
SP, SPF, SP1: familias; n’ellas
SP, SPF, SP1: chefes (,)
SP, SPF, SP1: creanças; joven;
secretario; approximou-se;
d’essas; provisorias
SP, SPF, SP1: attracção; alli
SP, SPF, SP1: indifferença; signal
SP, SPF, SP1: caçadas (,.)
336
Voltando à casa de Marco, logo depois aí
chegaram João e Calisto. Marco fez a apresentação e,
trocados os comprimentos do estilo, acomodaram-se
todos na saleta já desocupada.
SP, SPF, SP1: á casa; ahi
SP, SPF, SP1: Calixto
SP, SPF, SP1: estylo,
accommodaram-se
SP, SPF, SP1: ja; desoccupada.
215
220
225
João, ao ver Aristides, sentiu-se
impressionadíssimo. A fisionomia do jovem secretário
recordava-lhe pessoa muito querida para que não se
sentisse abalado até o mais profundo de sua alma.
Quem seria esse moço; qual a sua origem e
naturalidade? À sua mente vieram essas interrogações,
que o marido de dona Maria não explicou logo por
palavras porque teve acanhamento; mas, ansioso por
inteirar-se do que lhe passava pela idéia, achou meio
de, circunlóquios jeitosamente encaminhados, saber
que Aristides era baiano da mesma região sertaneja
que ele.
SP, SPF, SP1:
impressionadissimo; physionomia;
joven; secretario
SP, SPF, SP1: naturallidade; Á
sua
SP, SPF, SP1: d. Maria
SP, SPF, SP1: ancioso
SP, SPF, SP1: idéa;
circumloquios; geitosaménte
SP, SPF, SP1: bahiano
SP, SPF, SP1: elle
230
Por sua vez Aristides, que já alguma coisa
sabia, desejava abrir-se francamente com o outro; mas
havia motivos que lhe impunham a necessidade de
uma confabulação reservada entre os dois. Quais
seriam esses motivos o leitor saberá; porém para
melhor explicá-los é preciso que em outro capítulo
recuemos a nossa narração por alguns meses.
SP, SPF, SP1: ja; cousa
SP, SPF, SP1: dous; Quaes
SP, SPF, SP1: porem
SP, SPF, SP1: explical-os;
capitulo
Afinal o secretário não se pôde ter e disse a SP, SPF, SP1: secretario
337
235 João:
–Tenho grande necessidade de conversar com
o amigo em sua casa a sós. Acha-lo-ei à tarde?
SP, SPF, SP1: Achal-o-ei; á tarde
240
–Espera-lo-ei com prazer, até podemos
fornecer-lhe uma cavalgadura, porque daqui lá é um
bom estirão.251
SP, SPF, SP1: Esperal-o-ei
–É tão distante assim?
–Mais de dois quilômetros. SP, SPF, SP1: dous; kilometros
–Ora! É um passeio que muito me deleitará, e
desejo fazê-lo a pé.
SP, SPF, SP1: fazel-o
245
Assim, ficou assentada a visita de Aristides,
ficando João em brasas por saber em que consistia
uma revelação rodeada de tanto mistério.
SP, SPF, SP1: brazas
SP, SPF, SP1: mysterio
250
Ainda por algum tempo conversaram todos em
comum sobre diversos assuntos depois se separaram.
SP, SPF, SP1: commum;
assumptos
XII
5
Abílio, depois que o vimos a última vez,
tomou novos propósitos de maldade e, pertinaz na sua
idéia de perseguir dona Maria e o velho professor,
eclipsou-se. Encerrado a maior parte do tempo,
trabalhava com afã no seu gabinete, como um antigo
SP, SPF, SP1: Abilio; ultima
SP, SPF, SP1: propositos
SP, SPF, SP1: idéa; d. Maria
SP, SPF, SP1: afan
251 Estirão: boa distãncia.
338
10
alquimista, escrevendo, corrigindo, meditando, sempre
orientado pela sua idéia fixa: – enodoar a reputação da
esposa do seu antigo condiscípulo, e ao mesmo tempo
desacreditar o velho Serafim, que ele sabia ser um
homem honrado. Para chegar aos fins que tinha em
mira, já sabemos que o infame dispunha da sua
perícia, como falsário, em disfarçar a sua caligrafia e
imitar a alheia.
SP, SPF, SP1: alchimista
SP, SPF, SP1: idéa; ennodoar
SP, SPF, SP1: condiscipulo
SP, SPF, SP1: Seraphim; elle
SP, SPF, SP1: pericia; falsario
SP, SPF, SP1: calligraphia
15
20
Esse tredo252 recurso supunha-o Abílio muito
seguro, não só porque a sua habilidade conseguira
aperfeiçoá-lo mediante demorados e repetidos
exercícios, como por ter-se em conta de um homem
considerado e conhecido na alta sociedade por
honesto, probo253 e incapaz de cometer infâmias tais.
Considerava que, se Serafim ou outro qualquer se
abalançasse a denunciá-lo em público, seria tido como
um infame caluniador e, levado aos tribunais, com
certeza nada poderia provar e perderia a partida.
SP, SPF, SP1: suppunha-o; Abilio
SP, SPF, SP1: aperfeiçoal-o
SP, SPF, SP1: exercicios
SP, SPF, SP1: commetter;
infamias; taes; si; Seraphim
SP, SPF, SP1: denuncial-o;
publico
SP, SPF, SP1: calumniador;
SP, SPF, SP1: tribunaes
25
Depois de tudo preparado como planeara,
viajara a São Paulo, onde contava ainda mais obter
contra as suas vítimas. Lá conhecia indivíduos capazes
de auxiliá-lo, mediante paga, na sua obra nefanda, ou
conseguiria alcançar o seu objetivo por meios que já ia
SP, SPF, SP1: S. Paulo
SP, SPF, SP1: victimas; La;
individuos
SP, SPF, SP1: auxilial-o
SP, SPF, SP1: objectivo; ja
252 Tredo: falso. 253 Probo: de cárater íntegro, reto, justo.
339
30 delineando contando com as eventualidades que, como
já sabemos, sabia aproveitar.
35
40
45
O nosso herói conhecia o paradeiro do senhor
Oliveira, tendo conseguido, por abuso de confiança,
interceptar as cartas que aquele dirigia a sua filha e a
João, as quais arquivava quando lhe convinha ou
destruía. De sorte que dona Maria não tinha notícia de
seu pai. Lá uma outra vez recebia uma, falsificada por
Abílio, que aproveitava o invólucro e dava
informações que desorientassem os destinatários. Uma
vez João em São Paulo, a sua prática era mais ou
menos a mesma em relação às cartas destinadas a
Maria e Serafim, salvo quando traziam pecúlio. Neste
caso achava meio de abri-las para verificar o texto e
modificar aquelas notícias que pudessem prejudicar os
seus planos; feito o que, relacrava-as com habilidade e
entregava ou remetia aos destinatários se nada visse
que o prejudicava.
SP, SPF, SP1: heróe
SP1: canfiança (Erro óbvio.)
SP, SPF, SP1: aquelle
SP, SPF, SP1: quaes; archivava
SP, SPF, SP1: distruia; d. Maria;
noticia
SP, SPF, SP1: pae; La
SP, SPF, SP1: Abilio; envolucro
SP, SPF, SP1: destinatarios
SP, SPF, SP1: S. Paulo; pratica
SP, SPF, SP1: ás cartas; Seraphim
SP, SPF, SP1: peculio; N’este
SP, SPF, SP1: abril-as; aquellas
SP, SPF, SP1: noticias; podessem
SP, SPF, SP1: remettia
SP, SPF, SP1: destinatarios; si
50
Vamos, pois, encontrar Abílio em Ribeirão
Preto, importante cidade das mais modernas do Estado
de São Paulo, na qual não o conheciam, pois era a
primeira vez que a visitava. Ao demais, sabia que
Oliveira residia em lugar muito distante dali. Sempre
precauto com quem quer que fosse, andando como
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1:S. Paulo
SP, SPF, SP1: d’alli
340
55
60
65
atarefado quando em público, guardando absoluta
reserva, constantemente de pé atrás e examinando a
furto a quem visse, quando lhe parecia pessoa
conhecida sua. Procurava, ou lugares solitários onde
tivesse certeza de garantia do seu incógnito, ou então
onde houvesse multidão aglomerada no meio da qual
pudesse confundir-se e examinar sem ser examinado.
Nos trajos, no corte dos cabelos, na conservação da
barba, no tratamudear que, de antemão, se exercitou,
desfigurou-se por completo, de modo que, mesmo a
pessoa mais sua conhecida, se enganaria ao vê-lo.
Depois de muito procurar um alojamento que
conviesse aos seus planos, encontrou de ordem muito
inferior onde apenas se achavam dois pobres
estrangeiros que mal pronunciavam uma ou outra
palavra da nossa língua.
SP, SPF, SP1: publico
SP, SPF, SP1: atraz
SP, SPF, SP1: solitarios
SP, SPF, SP1: incognito
SP, SPF, SP1: agglomerada
SP, SPF, SP1: podesse
SP, SPF, SP1: ante-mão
SP, SPF, SP1: vel-o
SP, SPF, SP1: dous; extrangeiros
SP, SPF, SP1: lingua
70
75
Entretanto, sabendo, pelas cartas que
interceptara, residir nas imediações de Ribeirão Preto,
um irmão de Maria, procurava vê-lo sem fazer
imprudentes indagações nem denunciar o seu desejo.
Uma feita encontrou Aristides e ficou
impressionadíssimo com a sua fisionomia, pois no
rosto do mancebo encontrou traços muito
pronunciados de sua irmã. Desde então jurou aos seus
SP, SPF, SP1: immediações
SP, SPF, SP1: vel-o
SP, SPF, SP1:
impressionadissimo; physionomia
341
80
deuses infernais não o perder de vista, seguindo-o sem
descanso por toda a parte, como um policial astuto, a
fim de ouvi-lo e colher alguma informação que lhe
escapasse em conversação com outros.
SP, SPF, SP1: infernaes
SP, SPF, SP1: descanço; afim
SP, SPF, SP1: ouvil-o
85
90
95
Andando assim como a sombra de Aristides,
que não sabia ser objeto de tão tenaz vigilância, viu
que o mancebo entrou em uma casa de pasto ordinária
mas decente e logo em seguida ali entrou e pediu
almoço vendo que o seu perseguido também o pediu.
Estavam alguns rapazes da casa e conhecidos do irmão
de dona Maria, assentados em torno de uma grande
mesa na qual se fazia o serviço. Abílio apenas saudou
os circunstantes com uma mímica e tomou assento.
Conservando-se taciturno e cabisbaixo, parecia
preocupar-se apenas com o repasto, mas tendo os
ouvidos apurados, porque os outros entretinham uma
conversação alegre e amistosa da qual tomava parte.
Contudo, temendo que o tomassem por algum
indivíduo suspeito, já desejava que o abordassem,
quando um dos circunstantes falou-lhe:
SP, SPF, SP1: objecto; vigilancia
SP1: mancedo (Erro óbvio.);
ordinaria
SP, SPF, SP1: alli
SP, SPF, SP1: d. Maria
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: circumstantes;
mimica
SP, SPF, SP1: preoccupar-se
SP, SPF, SP1: Comtudo
SP, SPF, SP1: individuo
SP, SPF, SP1: circumstantes
–O amigo é novo na terra?
100
–Sou mi...mineiro do...do...do Norte –
respondeu o meliante gaguejando e fazendo esgares,
com tal habilidade que causaria hilaridade, não fosse o
342
receio dos rapazes de desagradá-lo. SP, SPF, SP1: desagradal-o
–Mas reside aqui? – perguntou outro.
105
110
115
–Na... nã... não. Estou... tou...de pass...
ss...sagem.
Deixaram-no em paz e continuaram a
conversar entre si. Abílio, em silêncio, como
indiferente à palestra, ia colhendo informações que
muito lhe eram precisas. Pelo que ouviu, ficou ciente
de que o jovem era o mesmo Aristides Oliveira que ele
procurava; que se achava desempregado, mas esperava
empregar-se já, por aqueles dias como secretário do
coronel Paulino, fazendeiro, graças à indicação e
recomendação de um seu amigo da elite de Ribeirão
Preto. Entre os circunstantes havia alguns baianos e
paulistas. Abílio, a esta colheita, exultou; pois sabia
que João se achava na fazenda do coronel Paulino, e o
encontro dos dois era inevitável.
SP, SPF, SP1: Abilio; silencio
SP, SPF, SP1: indifferente; á
palestra
SP, SPF, SP1: sciente
SP, SPF, SP1: joven; elle
SP, SPF, SP1: ja
SP, SPF, SP1: aquelles; secretario
SP, SPF, SP1: á indicação
SP, SPF, SP1: recommendação
SP, SPF, SP1: circumstantes;
bahianos
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: dous; inevitavel
120
No dia seguinte, Abílio arrumou as malas e no
primeiro trem viajou, procurando afastar-se o mais que
lhe fosse possível da zona de Jabuticabal e Bebedouro,
onde sabia residir Oliveira, com quem não desejava
encontrar, temendo ser reconhecido. Por precaução,
entretanto, desde muitos meses, conservava a barba
intonsa e muito crescida, deixava a cabeleira sem
SP, SPF, SP1: Seguinte (,), Abilio
SP, SPF, SP1:viajou (,)
SP, SPF, SP1: possivel
SP, SPF, SP1: cabelleira
343
125
corte, estopetada e sem trato, pelo menos aparente, e
trajava-se sem apuro como qualquer simples caipira.
Em tudo procurava disfarçar a sua legítima
personalidade.
SP, SPF, SP1: apparente
SP: caipira; SPF, SP1: CAIPIRA
SP, SPF, SP1: legitima
130
135
Em diversas estações por onde passava,
rumando para o Sul mais ou menos, deixava o
maldoso patife, onde houvesse serviço postal, cartas
destinadas a Oliveira e pessoas outras do seu
conhecimento. Afinal parou em uma estação
secundária de ferrovia nas proximidades de Faxina,
onde conhecia um terrível maroto da sua espécie com
quem já de outras vezes, entretiveram relações para
fins ilícitos.
SP, SPF, SP1: secundaria
SP, SPF, SP1: terrivel
SP, SPF, SP1: especie; ja
SP, SPF, SP1: illicitos
140
Felizmente para as suas infames maquinações,
encontrou Abílio outro, que o recebeu de braços
abertos depois que ele se fez reconhecer
cautelosamente sob nome de Rufino, por que o outro
já o conhecia. O outro meliante não o reconheceu logo
por causa das barbas crescidas e cabelos emaranhados;
logo que Abílio se deu a conhecer, mostrou-se alegre e
comunicativo.
SP, SPF, SP1: machinações
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: elle
SP, SPF, SP1: Rufino (,)
SP, SPF, SP1: ja
SP, SPF, SP1: cabellos;
emmaranhados,(;)
SP, SPF, SP1: Abilio; conhecer (,)
SP, SPF, SP1: communicativo
145
–Então? – foi logo inquirindo risonho. –
Temos algum negocinho?
SP, SPF, SP1: inquerindo
–Há. Terá duzentos mil réis para ir já a
344
Ribeirão Preto. Dar-lhe-ei as instruções. SP, SPF, SP1: instrucções
–E as passagens?
–Por minha conta todas as despesas. Quer? SP, SPF, SP1: despezas
150 –Tenho outro negocinho, que me rende mais,
para de hoje a quinze dias, e receio perdê-lo.
SP, SPF, SP1: perdel-o
–Há tempo para tratar dos dois. SP, SPF, SP1: Ha; dous
–Conforme. O outro me rende trezentos mil
réis, como disse...
155 –Livre de despesas? SP, SPF, SP1: despezas
–Não tenho que viajar; o negócio é por aqui
mesmo.
SP, SPF, SP1: negocio
–Em todo o caso o meu é mais vantajoso.
160
–Ainda não sei do que se trata. Essas
vantagens que me oferece por fora do caso... É preciso
que a gente saiba dos perigos que corre no
desempenho do serviço.
SP, SPF, SP1: offerece
–É muito simples. Trata-se de um certo
Aristides Oliveira.
165
–Conheço muito um tipo desse nome. É um
baianito moço, metido a fidalgo e bonitote254. É para
despachá-lo? Teria eu muito gosto nisso, porque o tal
sujeito me causa certa antipatia.
SP, SPF, SP1: typo; d’esse
SP, SPF, SP1: bahianito; mettido
SP, SPF, SP1: despachal-o; n’isso
SP, SPF, SP1: antipathia
–Nada de despachá-lo. Está em Ribeirão Preto,
e por estes dias é bem fácil que viaje. Você irá à
SP, SPF, SP1: despachal-o
SP, SPF, SP1: facil; á Cidade
254 Bonitote: um tanto bonito ou formoso.
345
170 e por estes dias é bem fácil que viaje. Você irá à
Cidade. É lá muito conhecido?
–Quem? O tal?
–Não. Você.
175
–Sou e não sou. Sou, porque tenho lá dois
companheiros do oficio, rapazes de confiança. Não
sou, porque lá não sabem de onde sou, o que faço e
como me chamo, etc.
SP, SPF, SP1: dous
SP, SPF, SP1: officio
–Está a calhar; mas há ainda uma circunstância
que muito importa ao bom êxito do nosso negócio.
SP, SPF, SP1: ha; circumstancia
SP, SPF, SP1: exito; negocio
180 –Qual é?
–Você conhece o Aristides bem; ele conhece
bem você?
SP, SPF, SP1: elle
185
–Isto é que não. A minha arte exige que
conheçamos muito aos outros, mas sejamos
desconhecidos.
–Até aqui vamos bem. Decida agora se quer. SP, SPF, SP1: si
–Depende de você. Chegue ao menos mais uns
cinqüenta mil réis.
SP, SPF, SP1: cincoenta
190
–Com os duzentos e as despesas creio que já
fica bem pago.
SP, SPF, SP1: despezas; ja
–Qual! É preciso que eu me apresente na
Cidade com certa decência e mude de trajo à volta e
meia, conforme as circunstâncias e necessidade do
SP, SPF, SP1: descencia; á volta
SP, SPF, SP1: meia (,);
circumstancias
346
195
trabalho. É preciso também às vezes oferecer um
almoçozinho, uma pinga ou outro agrado...
SP, SPF, SP1: tambem; ás vezes;
offerecer
–Está bem. Dou-lhe os duzentos e cinqüenta,
contanto que siga no primeiro trem.
SP, SPF, SP1: cincoenta
SP, SPF, SP1: comtanto
200
–Essa condição já me é imposta pelo desejo de
bem desempenhar a incumbência. Contratado o
negócio, é só receber os cobres como de costume e
abalar.
SP, SPF, SP1: incumbencia;
Contractado
SP, SPF, SP1: negocio
–Como de costume sempre dei os cobres pela
metade.
205
–Isso já está entendido, além de mais alguma
coisa para despesas porque, como sabe, não se arranja
nada fiado nas estradas e nos pousos. –Diga-me agora
o que tenho de fazer do moço bonito.
SP, SPF, SP1: alem
SP, SPF, SP1: cousa; despezas
–É simples.
210
215
E os dois tratantes entraram a conversar sobre
o que deveria o mandatário realizar. Abílio expôs-lhe
que Aristides tinha uma irmã casada no estado da
Bahia, que o marido lá a deixou na miséria, vindo
afinal a perder-se com o filho de um vizinho. Que o
marido estava em São Paulo trabalhando na fazenda
do coronel Paulino, e ignorava o que por lá pela Bahia
se dava. Que a pobre decaída chegara a ter um
filhinho, que foi sacrificado no momento de vir à luz.
SP, SPF, SP1: dous
SP, SPF, SP1: mandatario;
realisar; Abilio; expoz-lhe
SP, SPF, SP1: la; miseria
SP, SPF, SP1: visinho
SP, SPF, SP1: S. Paulo
SP, SPF, SP1: la
SP, SPF, SP1: decahida
SP, SPF, SP1: á luz
347
220
Deu os nomes dos personagens desse enredo calunioso
e recomendou ao seu assecla fazer tudo isso chegar ao
conhecimento de Aristides; mas de modo que este não
soubesse que lhe davam a informação diretamente.
SP, SPF, SP1: d’esse; calumnioso
SP, SPF, SP1: recommendou
SP, SPF, SP1: directamente
225
–Sei muito como isso se faz – disse o meliante
contratado – Arma-se uma conversação com outros na
presença do tal...
SP, SPF, SP1: contractado
–É isso; mas é preciso muita habilidade.
230
–Estou prático nisso. Já embarquei duas com
estas; mas posso garantir que se corre muito risco,
porque às vezes o que ouve a história quer
explicações, provas que se não pode dar de momento,
insulta de arma em punho; é preciso que se o repila...
É o diabo mesmo! É o diabo!
SP, SPF, SP1: pratico; n’isso; Ja
SP, SPF, SP1: ás vezes; historia
SP, SPF, SP1: repilla
–Qual!... O Aristides é manso.
235
–Sei eu lá?! Boi manso, cornada certa. Você já
brigou com ele?
SP, SPF, SP1: elle
–Não; mas já tive ocasião de vê-lo insultado na
cara, e não perdeu a paciência.
SP, SPF, SP1: occasião; vel-o
SP, SPF, SP1: paciencia
–Sempre é bom que eu leve o meu revólver. SP, SPF, SP1: revolver
–Como quiser; mas deve recear a polícia. SP, SPF, SP1: quizer; policia
240
–Dessa não tenho eu medo. Meto-a num
chinelo. Pois o famoso tenente Galinha não me pôde
vencer, quanto mais esses idiotas. Discuti com o
SP, SPF, SP1: D’essa; Metto-a;
n’um
SP, SPF, SP1: Gallinha
348
245
tenente de tal maneira que se tornou meu amigo.
Polícia de São Paulo, o mais é a fama. – E, por aí a
fora, auto-elogiava-se, fanforronando, o miserável.
SP, SPF, SP1: Policia; S. Paulo;
ahi
SP, SPF, SP1: auto-elogiava-se;
miseravel
250
255
260
Realizado o pacto indecente dos dois
miseráveis, o instrumento vil de Abílio pôs-se logo a
preparar viagem do outro que, por segurança, a
pretexto de camaradagem e de repetir-lhe
recomendações, acompanhava-o fiscalizando
rigorosamente. Depois, examinando o seu canhenho
para verificar se não faltava alguma nota essencial, o
que fez de combinação com Abílio, o meliante dispôs-
se a viajar, estando tudo pronto e aproximando-se a
hora da partida do trem. Neste ponto Abílio entregou-
lhe o dinheiro do contrato e mais um agrado para
cigarros como disse procurando ainda mais captar a
confiança do seu assecla a quem abraçou
carinhosamente, dando-lhe nas costas palmadinhas
amistosas e fazendo-lhe promessas de mais agrados
realizada a empreitada, caso o negócio saísse ao seu
contento.
SP, SPF, SP1: Realisado; dous;
miseraveis
SP, SPF, SP1: Abilio; poz-se
SP, SPF, SP1: recommendações
SP, SPF, SP1: si
SP, SPF, SP1: Abílio; dispoz-se
SP, SPF, SP1: prompto;
approximando-se
SP, SPF, SP1: N’este; Abílio
SP, SPF, SP1: contracto
SP, SPF, SP1: palmadinhas
SP, SPF, SP1: realisada; sahisse;
negocio
265
–Que seja feliz, meu caro Felipe. Conte
comigo em toda e qualquer circunstância. Tenho
amigos de grande valor tanto aqui como na Bahia e em
Minas.
SP, SPF, SP1: Felippe
SP, SPF, SP1: commigo;
circumstancia
349
–Eu sei, seu Rufino, e sou muito agradecido.
Farei o que puder por ser-lhe útil e desempenhar a
contento a sua comissão.
SP, SPF, SP1: util
SP, SPF, SP1: commissão
–Estou certo disso meu amigo.
270
E nesse teor procuravam os dois tratantes,
começando por ocultar os seus verdadeiros nomes,
enganar um ao outro.
SP, SPF, SP1: n’esse; dous
SP, SPF, SP1: occultar
XIII
5
10
Poucos dias depois do que narramos no
capítulo anterior, andava Felipe pelas ruas de Ribeirão
Preto ostentando o porte de homem da boa sociedade,
bem trajado, de flor escarlate na lapela e gingando
com certos ares de importância. Farejava como
perdigueiro em procura de Aristides e de outro
qualquer negócio que pudesse surgir de repente, do
qual pudesse tirar proveito. Dizia entre si: “Enquanto
se descansa, carrega-se pedra. Um pão e um pedaço,
pão e meio.”
SP, SPF, SP1: capitulo
SP, SPF, SP1: Felippe
SP, SPF, SP1: lapella
SP, SPF, SP1: importancia
SP, SPF, SP1: negocio; podesse
SP, SPF, SP1: podésse; Emquanto
SP, SPF, SP1: descança
Quando o gajo asseverou a Abílio conhecer a
vítima das suas maranhas,255 não foi exato na sua
informação. É certo que já o tinha visto e realmente
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: victima; exacto
SP, SPF, SP1: ja
255 Maranha: pacto, teia.
350
15
20
informação. É certo que já o tinha visto e realmente
sabia o seu nome; mas, como logo percebeu que era
pobre e não poderia oferecer as vantagens que outros,
tanto mais que desconfiou que se tratava de um rapaz
inteligente que se não deixaria levar tão facilmente e
cair nos seus enliços, não ligou grande importância à
caça tão desprezível, onde encontraria preás que lhe
ofereceriam muito maiores lucros. Por isso não
guardara com interesse os seus traços fisionômicos
mais expressivos.
SP: não lhe poderia; SP, SPF, SP1:
offerecer
SP, SPF, SP1: intelligente
SP, SPF, SP1: cahir; imprtancia; a
caça
SP, SPF, SP1: desprezivel; preas
SP, SPF, SP1: offereceriam
SP, SPF, SP1: physionomicos
25
30
Em todo o caso não deixaria de cumprir
exatamente as cláusulas do seu contrato com o suposto
Rufino; que nisso vai a honestidade dos patifes.
Assim, procurou a pensão indicada por Abílio, à hora
da segunda refeição. A sala estava cheia de fregueses,
em maior número do que quando Abílio lá estivera. O
maroto saudou com ar sorridente e modos de
cavalheiro a todos os presentes, alguns dos quais já o
conheciam.
SP, SPF, SP1: exactamente;
clausulas; contracto; supposto
SP, SPF, SP1: n’isso; vae
SP, SPF, SP1: Abilio; á hora
SP, SPF, SP1: freguezes
SP, SPF, SP1: numero; Abilio
SP, SPF, SP1: quaes; ja
35
–É o coronel Norberto – informou um dos
circunstantes ao vizinho, ao ver tão galante e distinto
figurão.
SP, SPF, SP1: circumstantes;
visinho; distincto
–De onde?
–Sei eu lá?
351
40
45
Os fregueses, notando que o recém chegado
desejava tomar assento, apertaram-se entre si, cada
qual querendo ter a honra de ficar vizinho de um
cavalheiro tão distinto e galante que, afinal, teve
dificuldade em fazer a escolha, para não desagradar
com uma preferência que parecia proposital. O
pretenso coronel, de pé, braços cruzados, sorrindo
bondosamente a um e a outro, parecia hesitar.
SP, SPF, SP1: freguezes; recen
chegado
SP, SPF, SP1: visinho
SP, SPF, SP1: distincto
SP, SPF, SP1: difficuldade
SP, SPF, SP1: preferencia
–Meus bons amigos, em que ficamos? – disse
sorrindo com amabilidade. – Não quero incomodá-los
nem dar preferência a este ou àquele lugar. O melhor é
que eu aguarde outra ocasião.
SP, SPF, SP1: incommodal-os
SP, SPF, SP1: prefeerencia; áquelle
SP, SPF, SP1: occasião
50 –Não, coronel, – disse aquele que informara ao
vizinho, – escolha o lugar à sua vontade, que nenhum
de nós se zangará.
SP, SPF, SP1: aquelle
SP, SPF, SP1: visinho(,); á sua
–Apoiado! – bradaram diversos.
55
–Não, meus amigos. Eu desejo satisfazer a
todos; não tenho preferência como disse.
SP, SPF, SP1: preferencia
–Há mais de um lugar vago – disse um dos
circunstantes indicando-os.
SP, SPF, SP1: Ha
SP, SPF, SP1: circumstantes
60
–Mas... – continuou o pretenso coronel a sorrir
– pareceria que eu estabeleço deferências que podem
desagradar...
SP, SPF, SP1: deferencias
352
–Coronel – aventou um magrizela,256 cara de
fuinha, – escolha à sua vontade, que todos nós nos
sentiremos honrados. Não acham, meus senhores?
Creio que ninguém se zangará por isso.
SP, SPF, SP1: -Coronel, (Emendou-
se.)
SP, SPF, SP1: fuinha (,); á sua; nòs
SP, SPF, SP1: ninguem
65
–Decerto – observou um rapaz sério que
parecia já enojado com aquela comédia.
SP, SPF, SP1: serio
SP, SPF, SP1: aquella; comedia.
–Que escolha à sua vontade – aprovaram
alguns enquanto outros nada diziam.
SP, SPF, SP1: á sua; approvaram
SP, SPF, SP1: emquanto
70
–Então... com licença, meus amigos – decidiu
o presumido Felipe assentando-se ao lado do cara de
fuinha que, a um sinal, só perceptível ao malandro, foi
por este reconhecido como um dos seus velhos
colegas de malandrice.
SP, SPF, SP1: Felippe
SP, SPF, SP1: signal; perceptivel
SP, SPF, SP1: colleges
75
80
Restabelecida a ordem, ou, melhor diríamos,
caído o pano, terminada a força, Felipe foi servido, e
aqueles que se haviam interrompido para dar atenção
ao farsante continuaram a refeição. Recomeçou a
alegre palestra dos moços que, quando a jantar nos
hotéis, sentem-se em plena liberdade e isentos das
formalidades da etiqueta.
SP, SPF, SP1: diriamos
SP, SPF, SP1: cahido; panno(,);
Felippe
SP, SPF, SP1: aquelles; attenção
SP, SPF, SP1: farçante, (,)
SP, SPF, SP1: hoteis
–Então, coronel – perguntou o cara de fuinha
ao recém chegado, – tem feito algum negócio?
SP, SPF, SP1:coronel, (Emendou-
se.)
SP, SPF, SP1: recem chegado(,);
negocio
–Oh! Conhece-me? – inquiriu o pretenso
coronel, simulando não conhecer o outro.
SP, SPF, SP1: inqueriu
SP, SPF, SP1:coronel (,)
256 Magrizela: variante de magricela.
353
coronel, simulando não conhecer o outro.
85
–Não se lembra que esteve comigo em Franca?
Até comprei-lhe alguns objetos.
SP, SPF, SP1: commigo
SP, SPF, SP1: objectos
–Lembro-me agora. O amigo tem bem
conhecimento! Cheguei aqui hoje.
–Traz bom sortimento?
90
–Trago restos. Vendi quase tudo e volto a
buscar novo sortimento nos sertões de Minas e Bahia.
SP, SPF, SP1: quasi
–Aquilo é uma mina, heim? SP, SPF, SP1: Aquillo
–O sertão baiano, bem entendido. Por ser
nortista muito pobre, faz-se alguma coisa.
SP, SPF, SP1: bahiano
SP, SPF, SP1: cousa
95 –Por ser pobre?...
–Sim. O amigo bem sabe que aquele povo,
especialmente do sertão meridional do seu Estado...
SP, SPF, SP1: aquelle
–E o coronel – dizia o cara de fuinha com
certo sarcasmo – também não é baiano?
SP, SPF, SP1: tambem; bahiano
100 –Livra! Sou alagoano, da capital.
105
–Bem sabe, porque é de lá, quais são as
indústrias daquele povo: rendas feitas em almofadas,
trabalhos de ferro e latão, calçados ordinários, o que
tudo vende por preços ridículos. E todos esses
artefatos são muito apreciados pelos biribas,257 que os
compram a peso de ouro, pode-se dizer.
SP, SPF, SP1: la; quaes
SP, SPF, SP1: d’aquelle
SP, SPF, SP1: ordinarios
SP, SPF, SP1: ridículos
SP, SPF, SP1: artefactos
SP, SPF, SP1:ouro (,)
257 Biriba: natural de São Paulo.
354
–E que tal vai minha terra? SP, SPF, SP1: vae
110
–Venho dos municípios de Caeteté, Rio de
Contas, Condeúba, Bom Jesus, Monte Alto e outros.
Aquilo vai numa pasmaceira que causa lástima.
SP, SPF, SP1: municipios
SP, SPF, SP1: Candeuba
SP, SPF, SP1: Aquillo; vae n’uma;
lastina
115
120
O falso coronel mentia a todo o pano. Notando
que o moço sério a que nos referimos acima, e que se
achava quase em frente dele, prestava atenção com
grande interesse às informações que ele dava ao cara
de fuinha, examinava-o a furto, daí vindo-lhe à idéia
que poderia ser o Aristides Oliveira. Na fisionomia do
mancebo ia achando alguns traços de que se recordava
per fas et per nefas,258 entendeu o meliante de entrar
em jogo conforme contratara com Abílio, e continuou
a conversar com o seu parceiro, encaminhado-se ao
seu fim indigno.
SP, SPF, SP1: panno
SP, SPF, SP1: serio
SP, SPF, SP1: quasi; d’elle(,);
attenção
SP, SPF, SP1: as informações
(Emendou-se acrescentando crase.);
elle; d’ahi; á idéa
SP, SPF, SP1: phisionomia
SP: per fas et per nefas; SPF, SP1:
PER FAS ET PER NEFAS
SP, SPF, SP1: contractara; Abilio
SP, SPF, SP1: parceiro(,)
125
–Os sertanejos baianos chegam ao último grau
de decadência. A gente válida foge para aqui
desprezando suas lavouras e o que não pode vender,
para emigrar. Os maridos abandonam as mulheres;
estas, caindo na miséria, entregam-se à prostituição...
SP, SPF, SP1: bahianos; ultimo
SP, SPF, SP1: decadencia
SP, SPF, SP1: cahindo; miseria; á
prostituição
–Estão no seu direito – disse o cara de fuinha
sorrindo.
SP1: sorrindo- (Restaurou-se a
pontuação substituindo travessão
por ponto.)
–Não duvido.
258 Per fas et per nefas: per fas et nefas.
355
130
–Eu mesmo, enfarado259 de uma que me
arrumaram nas costas, deixei-a lá com a ninhada.
Decerto tomou o rumo das outras, e tratou da vida.
Não faltam mulheres por toda a parte.
135
E o miserável cara de fuinha ria-se
desfaçadamente como se o que praticara fosse a coisa
a mais simples e lícita do mundo.
SP, SPF, SP1: miseravel
SP, SPF, SP1: si; praticou; cousa
SP, SPF, SP1: licita
–Agora mesmo – continuou o outro – deixei
em voga em Caetité um caso interessante.
SP, SPF, SP1: Caeteté
–Mais uma bateu asa e voou, não? SP, SPF, SP1: aza
140
145
–Não voou; apenas passou a outro dono. O
caso é o seguinte: –Um sujeito rico, um tal Oliveira –
e o miserável espiava de esguelha o jovem –, ficando
pobre, casou a filha com um tal João Lopes, que era
filho único e possuía alguma coisa e veio para São
Paulo. João Lopes, endividando-se, abandonou a
mulher com dois filhinhos na miséria e também
emigrou para São Paulo, deixando a mulher entregue a
um velho Serafim, que tem dois filhos rapazes. O
velho maganão260, que é compadre da casa, passados
tempos, sabe o que fez?
SP, SPF, SP1: Oliveira, (Emendou-
se.)
SP, SPF, SP1: miseravel; joven,- (-,)
SP, SPF, SP1: unico; possuia;
cousa; S. Paulo
SP, SPF, SP1: miseria; tambem
SP, SPF, SP1: S. Paulo (,)
SP, SPF, SP1: Seraphim;
SP, SPF, SP1: tempos (,)
150 –Tomou conta da comadre mais intimamente.
–Nada. Deu-a ao filho mais velho, que andava
259 Enfarado: aborrecido. 260 Maganão: indivíduo de baixa extração.
356
de água no bico, a comadre Maria da Conceição. O
resultado disso foi um netinho para Serafim.
SP, SPF, SP1: agua
SP, SPF, SP1: d’isso; nettinho;
Seraphim
–Esse netinho intruso foi uma dos diabos. SP, SPF, SP1: nettinho
155
–Qual!! Reuniram-se e deram fim a esse
documento vivo do escandaloso caso tornando-o
morto. Eu poderia referir centenários de casos deste;
mas preferi-o porque é interessantíssimo.
SP, SPF, SP1: centenares; d’este
SP, SPF, SP1: interessantissimo
160
165
O perverso, referindo esse caso calunioso de
pura invenção de Abílio, espiava o resultado que
produziria no jovem. Este, pálido, trêmulo e suarento,
não continuou a refeição. Suspenso, indeciso, não
sabendo que resolução tomar, continuou com os
talheres na mão, involuntariamente denunciando-se o
próprio irmão da vítima daquela insidiosa calúnia. O
falso coronel exultou, o cara de fuinha ria-se
descaradamente fazendo comentários do caso em
termos tais que fariam corar um frade de pedra.
SP, SPF, SP1: calumnioso
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: joven; pallido;
tremulo
SP, SPF, SP1: tomasse (Emendou-se
concordando tempo verbal.)
SP, SPF, SP1: proprio; victima
d’aquella; calumnia
SP, SPF, SP1: commentarios
SP, SPF, SP1: taes
170
175
O desejo de Aristides era esganar os dois
biltres; mas lembrou-se a tempo que isso seria pior.
Depois, quem sabia se isso era uma verdade? Maria da
Conceição, como estava informado, era uma senhora
virtuosa, e o velho Serafim um homem honesto digno
de acatamento. Quem sabe, porém, se as dificuldades
da vida, em um meio pobre como aquele, não levara a
SP, SPF, SP1: dous
SP, SPF, SP1: peor
SP, SPF, SP1: si
SP, SPF, SP1: Seraphim
SP, SPF, SP1: porem; si;
difficuldades
SP, SPF, SP1: aquelle
357
180
pobre senhora à perdição? Não conhecia João Lopes
pessoalmente; mas Oliveira tinha-o em conta de probo
e laborioso, como diversas vezes disseram-lhe,
queixando-se apenas de não obter resposta de uma
carta sequer das que lhe escrevera, revelando-se por
fim a deixar de escrever-lhe e à sua filha.
SP, SPF, SP1: á perdição
SP, SPF, SP1: siquer; porfim
SP, SPF, SP1: á sua
185
190
Entretanto Serafim, sendo tal como informara-
lhe seu pai, devia ser zeloso pela família que fora
confiada à sua guarda e proteção. Dispondo de
recursos, como Oliveira dizia, se consentira que dona
Maria, caída em penúria com os filhinhos, se visse
obrigada a dar um passo errado, era responsável e
tanto mais indigno quanto deixar que seu filho fosse o
causador de tamanha e tão vergonhosa desgraça. E
João Lopes, o homem de bem, segundo dizia Oliveira,
onde parava? Por que não acudia sua mulher e seus
filhinhos na triste conjuntura a que chegaram? Por que
não escrevia ao seu sogro quando se achava na Bahia?
Por que, vindo para o Estado de São Paulo, procurou?
SP, SPF, SP1: Seraphim
SP, SPF, SP1: pae; familia; foi
SP, SPF, SP1: á sua; protecção
SP, SPF, SP1: consentiu; d. Maria
SP, SPF, SP1: cahida; penúria; viu-
se
SP, SPF, SP1: responsavel
SP, SPF, SP1: Porque
SP, SPF, SP1: conjunctura; Porque
SP, SPF, SP1: Porque; S. Paulo
195
Todos estes pensamentos revoluteavam no
cérebro do pobre moço, que não achava uma
explicação para os tristes acontecimentos que aquele
tipo noticiava. Era preciso, era indispensável
conversar com aquele homem em reserva para que
SP, SPF, SP1: aquelle
SP, SPF, SP1: typo; indispensavel
SP, SPF, SP1: aquelle
358
200
205
esclarecesse menudamente o caso, como dele foi
informado e porque o tomou como paradigma ali o
referindo de preferência ao tipo ordinário com quem
conversava de igual para igual, sendo, entanto, um
homem de boa aparência e trato, quando o outro, pela
cara, pelo rir, pelas indecências que proferiu,
denunciava-se um sujeito da pior espécie.
SP, SPF, SP1: delle
SP, SPF, SP1: alli; referindo-o
(Emendou-se ênclise para próclise.)
SP, SPF, SP1: preferencia; typo;
ordinario
SP, SPF, SP1: egual; egual; emtanto
SP, SPF, SP1: apparencia
SP, SPF, SP1: indecencias
SP, SPF, SP1: especie
210
Neste ponto Aristides teve a seguinte idéia: –
Será que o narrador das desgraças alheias o conhecia e
propositalmente dera aquela notícia em sua presença?
Seria possível, mas, para que assim fosse, era preciso
que soubesse da ligação que existia entre ele, Oliveira
e Maria da Conceição, e que conhecesse toda a família
e os antecedentes.
SP, SPF, SP1: N’este; idéa
SP, SPF, SP1: aquella; noticia
SP, SPF, SP1: possivel
SP, SPF, SP1: elle
SP, SPF, SP1: familia
215
220
O falso coronel Norberto, notando o ar
abstrato de Aristides, sentia-se contente pelo feliz
resultado da insidiosa insinuação que lançara a esmo e
conseguira alcançar o fim almejado logo no começo
da sua diligência. Estavam ganhos os seus duzentos
mil réis; a semente da intriga foi lançada em bom
terreno e monção, e germinaria por certo. O infame
notava que, além de Aristides e do cara de fuinha,
alguns outros dos circunstantes que estavam mais
próximos prestavam atenção com malicioso interesse
SP, SPF, SP1: abstracto
SP, SPF, SP1: pello
SP, SPF, SP1: diligencia
SP, SPF, SP1: alem
SP, SPF, SP1: circumstantes;
proximos
359
225
ao conto, alguns sorrindo, outros lhe dirigindo gestos
de agrado, destes sujeitos que farejam escândalos com
prazer. Por isso o narrador procurou dar mais vulto ao
episódio inventado, exagerando o caso em reiterados
comentários ou palavras maliciosas que o
condimentassem tratando-o agradável e atraente.
SP, SPF, SP1: d’estes; escandalos
SP, SPF, SP1: episodio
SP, SPF, SP1: commentarios
SP, SPF, SP1: agradavel; attrahente
230
Aristides, entretanto, ficou taciturno, à espera
de poder conversar a sós com o noticiador do
escândalo que lhe feria profundamente o coração e
conturbava o espírito.
SP, SPF, SP1: emtretanto(,)
taciturno (,); á espera
SP, SPF, SP1: escandalo
SP, SPF, SP1: espirito
235
240
245
Afinal os fregueses foram retirando-se um a
um. Quando o falso Norberto erguia-se para fazer o
mesmo, o jovem levantou-se. O pseudocoronel
demorou-se palestrando com o cara de fuinha em voz
baixa. Sobre o que confabulavam os dois? Ainda
tratavam de comentar e explicar o fato narrado?
Aristides prestava atenção e, como na sala estivesse
restabelecido o silêncio, pôde, por uma ou outra
palavra que o cara de fuinha proferira em voz
esganiçada, perceber que os dois já eram conhecidos e
faziam qualquer combinação. O mancebo foi postar-se
na porta da saída do edifício onde aguardou o falso
coronel. Quando este apareceu alguns minutos depois,
Aristides, resoluto, aproximou-se.
SP, SPF, SP1: freguezes
SP, SPF, SP1: joven; pseudo
coronel
SP, SPF, SP1: dous
SP, SPF, SP1: facto
SP, SPF, SP1: attenção
SP, SPF, SP1: silencio
SP, SPF, SP1: dous
SP, SPF, SP1: sahida; edificio
SP, SPF, SP1: appareceu
SP, SPF, SP1: approximou-se
360
–Cavalheiro – disse-lhe, – tenho necessidade
de conversar com o senhor onde e quando lhe for
possível dar-me essa honra.
SP, SPF, SP1: Cavalheiro, - disse-
lhe(,) - tenho
SP, SPF, SP1: possivel
250
–A honra será toda minha – respondeu o
birbante261 com um sorriso amável, apesar de sentir-se
um pouco receoso.
SP, SPF, SP1: amavel; apezar
255
–Obrigado. Como ouvi vossa senhoria referir
um fato dado no sertão baiano, meu querido berço,
desejo ouvi-lo sobre ele mais circunstanciadamente.
SP, SPF, SP1: facto; bahiano
SP, SPF, SP1: ouvil-o; elle;
circumstanciadamente
–Mas ... se vossa senhoria veio de lá, deve
saber a respeito tanto como eu.
SP, SPF, SP1: si; la
260
–Vim de lá em criança. É verdade que, quando
vim, já tinha a consciência um pouco desenvolvida.
Recordo-me com saudade da terra querida onde nasci.
SP, SPF, SP1: la; creança
SP, SPF, SP1: consiciencia
265
–Eu também sou nortista. Nasci em Alagoas, a
terra gloriosa que deu à Pátria os heróicos Fonsecas e
Floriano. Deste último sou parente próximo e, até,
conheci-o pessoalmente e dele recebi muitos
obséquios.
SP, SPF, SP1: tambem; Alagôas
SP, SPF, SP1: á Pátria; heroicos
SP, SPF, SP1: D’este; ultimo;
proximo
SP, SPF, SP1: d’elle
SP, SPF, SP1: obsequios
–Eu, pelo contrário, sou filho de pais modestos
e obscuros que não passaram de agricultores.
SP, SPF, SP1: contrario; paes
–São as contradições deste mundo. Nem todos
têm a sorte que eu tive.
SP, SPF, SP1: contradicções; d’este
261 Birbante: patife, tratante.
361
270
275
280
O maroto, além das outras qualidades, era um
reles gabolas que mentia com a maior desfaçatez.
Receando que Aristides abordasse o escabroso assunto
da sua narração ao cara de fuinha, pois bem sabia com
quem tratava, ia fazendo obstrução – como se diz e
usa nos parlamentos – elogiando-se e à sua “gloriosa
terra”. O cara de fuinha, considerado sem interesse
para si a longa palestra, foi se escafedendo, com o que
muito se alegrou Aristides, que não desejava falar
sobre o caso em presença de testemunha tão antipática
e sórdida.
SP, SPF, SP1: alem
SP, SPF, SP1: assumpto
SP, SPF, SP1: obstrucção
SP, SPF, SP1: á sua
SP, SPF, SP1: antiphatica
SP, SPF, SP1: sordida
Aproveitando uma ligeira folga, procurou o
mancebo encaminhar a conversa ao fim que tinha em
vista.
285
–Vossa senhoria, desculpe-me. Disse que
desejo falar-lhe... não se recorda?
SP, SPF, SP1: senhoria (,)
–Sobre o que? – indagou o falso coronel
fazendo-se esquecido.
–Sobre o fato que há pouco relatava. SP, SPF, SP1: facto; ha
290
–O fato deu-se como já referi e o senhor
ouviu.
SP, SPF, SP1: facto; ja
–Não se trata disso. Desejo saber quem o
inteirou desse escândalo.
SP, SPF, SP1: d’isso
SP, SPF, SP1: d’esse; escandalo
–Não posso me lembrar. Demais, que interessa
362
295
isso a vossa senhoria? Se é por amor de sua terra, bem
sabe que em toda terra dão-se fatos como o que relatei.
Salvo se....
SP, SPF, SP1: Si
SP, SPF, SP1: factos
SP, SPF, SP1: si
– Salvo se o que? SP, SPF, SP1: si
–Se se trata de parentes ou amigos de vossa
senhoria.
SP, SPF, SP1: Si
300 –Pois bem, declaro-lhe francamente que me
interesso pelas pessoas que figuram no episódio que
relatou.
SP, SPF, SP1: episodio
305
–Perdeu o seu tempo, meu caro senhor. Se são
amigos, digo-lhe, como mais experimentado, que
amigos modernamente nada valem. Quando parentes
andam sem cotação alguma...
SP, SPF, SP1: Si
–Entretanto, ainda a pouco vossa senhoria
gabava-se de parente do marechal.
SP, SPF, SP1: Entretanto (,); ha
(Erro óbvio.)
310
–Ah!... Mas o Floriano era um homem
eminente cujo parentesco muito me honra, e o
cavalheiro disse-me que é de origem muito modesta.
–A modéstia é uma virtude, senhor! SP, SPF, SP1: modestia
–Virtude! O senhor! Ainda é muito ingênuo! SP, SPF, SP1: ingenuo
315
–Desculpe-me; mas conceda-me dizer-lhe que
me admira um homem da sociedade culta, como se
proclama, externar conceitos dessa ordem. Se a
modéstia dos meus ascendentes é por vossa senhoria
SP, SPF, SP1: d’essa; Si
SP, SPF, SP1: modestia
363
320
considerada sem valia, aplicada como deseja essa
apreciação à sociedade em geral... ainda uma vez peço
desculpa – então vossa senhoria... – E Aristides
hesitou.
SP, SPF, SP1: applicada
SP, SPF, SP1: á sociedade
–Acabe, senhor.
–Então vossa senhoria... não é virtuoso.
325
–Homem essa! Ah! Ah! Ah! – exclamou o
biltre rindo-se a bandeiras despregadas. – Sou
virtuoso; mas sigo a virtude moderna. Não dou para
frade pregador.
SP, SPF, SP1: Hom’essa
–Nem eu tampouco, senhor! – exclamou
Aristides com azedume.
330
335
–Chegou a minha vez de pedir a vossa
senhoria que me desculpe a brincadeira. É que muito
me simpatizei com o meu jovem interlocutor e, com
os bons que considero, meto-me a brincalhão. Sei que
a virtude, a verdadeira virtude ainda existe; mas
soterrada sob a espessa camada dos interesses e
ambições pessoais.
SP, SPF, SP1: sympathizei; joven;
interlocultor
SP, SPF, SP1: metto-me
SP, SPF, SP1: pessoaes
–Mas respira, tem vida e surgirá por fim. SP, SPF, SP1: porfim
–Tenho minhas dúvidas a respeito; sou um
pouco cético.
SP, SPF, SP1: duvidas
SP, SPF, SP1: sceptico
–Seja como for, as pessoas que figuram no
episódio narrado por vossa senhoria são da minha
SP, SPF, SP1: episodio
364
340
estima, e, por isso desejo saber se o fato narrado é uma
verdade.
SP, SPF, SP1: si; facto
–Sou incapaz de mentir: O senhor ofendeu-me. SP, SPF, SP1: offendeu-me
–Em que? Vossa senhoria é testemunha
ocular?
345 –Não; mas ouvi de pessoas acima de qualquer
suspeita.
–O caso é tão grave que exige uma
sindicância. Vossa senhoria terá a bondade de
mencionar o nome dessas pessoas.
SP, SPF, SP1: syndicancia
SP, SPF, SP1: dessas
350 –Para que? Quererá ir a Bahia por amor disso?
–Se tanto for preciso, lá irei. SP, SPF, SP1: Si
–Mostra um interesse fora do comum por um
caso tão banal.
SP, SPF, SP1: commum
–Banal?! – exclamou Aristides quase irritado. SP, SPF, SP1: quasi
355 –Banal, sim; porque nos seus sertões isso é
comum.
SP, SPF, SP1: commum: (.)
360
–Entre infames e desclassificados. Entretanto,
como já disse, trata-se de pessoas dignas de todo o
respeito que talvez mereçam mais conceito, embora
modestas, do que os informantes que diz vossa
senhoria. Desejo saber o nome destas.
SP, SPF, SP1: d’estas
–Não posso me lembrar assim do pé para a
mão.
365
365
–Isso muito me admira. Sabe vossa senhoria
que são os informantes dignos de fé e, portanto,
pessoas classificadas entre os da alta camada social, e
não se lembra dos seus nomes!
370
375
–É fácil de compreender o que lhe parece
incompreensível, meu jovem senhor. Pelo fato de
serem os informantes pessoas de destaque como
concluiu, não se segue que retenhamos na memória os
seus nomes. Ouvi-as em uma reunião seleta para a
qual fui convidado sem que eu, entretanto, me
interessasse pelo assunto, nem sobre ele fizesse
indagação. Interessou-me somente o caso no geral,
isto é, no que diz respeito à decadência daquele meio
social. Entre essas pessoas eu só conhecia uma, minha
amiga, que concorreu para o meu convite.
SP, SPF, SP1: facil; comprehender
SP, SPF, SP1: incomprehensivel;
joven; facto
SP, SPF, SP1: memoria
SP, SPF, SP1: selecta
SP, SPF, SP1: assumpto; elle
SP, SPF, SP1: á decadencia;
d’aquelle
–E esse quem é?
380 –O capitão Rufino. Conhece-o?
–Conheço muitas pessoas de Caetité pelo
nome; mas esse capitão Rufino é-me estranho.
SP, SPF, SP1: extranho
385
–Por minha vez admiro-me; pois o capitão é
um moço da mais alta sociedade de Caetité. Muito
rico, filho único de uma viúva rica, tem vindo muitas
vezes a São Paulo. Esteve mesmo estudando na capital
deste Estado.
SP, SPF, SP1: unico; viuva
SP, SPF, SP1: S. Paulo
366
–Não se lembra de outro? Fazendo um esforço
de memória, pode ser que se lembre.
SP, SPF, SP1: memoria
390
–Desejo ser-lhe agradável; mas, por mais que
me esforce... – dizia naturalmente o maroto como
quem procurasse recordar-se. – Ah! sim! – concluiu. –
Lembro-me do coronel Ambrósio, do major Febrônio.
SP, SPF, SP1: agradavel
SP, SPF, SP1: Ambrosio; Febronio
395
400
Estes o falso coronel inventou de momento
para iludir. Desenganado de obter mais informações,
Aristides agradeceu ao falso coronel as que conseguiu
e despediu-se; mas o biltre, ainda mostrando-se gentil,
quis saber qual o grau de parentesco existente entre o
jovem e a senhora contra quem caía a imputação da
falta noticiada. Essa curiosidade muito desgostou a
Aristides.
SP, SPF, SP1: illudir
SP, SPF, SP1: quiz
SP, SPF, SP1: joven; cahia
–É parenta próxima, – informou o moço, –
basta que lho diga; mas não a conheço senão por
informações que me merecem fé.
SP, SPF, SP1: proxima
SP, SPF, SP1: lh’o; sinão
405
E retirou-se para não ser abordado pelo
maroto, que, embora lhe parecesse pessoa importante,
desconfiou que era leviano e poderia repetir o episódio
aumentando com o que conhecesse sobre o
parentesco.
SP, SPF, SP1: episodio
SP, SPF, SP1: augmenttando
410
O miserável instrumento de Abílio ainda
permaneceu ali alguns minutos a fazer cálculos sobre
SP, SPF, SP1: miseravel; Abilio
SP, SPF, SP1: alli; calculos
367
415
os resultados que colheu ou colheria na sua
confabulação com Aristides, pondo em ordem tudo e
preenchendo alguns claros de maneira que o mandante
lhe desse mais alguma gorjeta.
SP, SPF, SP1: gorgeta
XIV
5
10
Aristides retirou-se levando o coração muito
angustiado. Embora fosse um moço inteligente e
atiçado, faltavam-lhe a necessária prática e
experiência para conhecer que o falso coronel era um
biltre miserável e caluniador. Honesto como era,
julgava os demais por si, e apenas admitia que o
coronel fosse um pouco leviano e frívolo sem más
intenções. Se era certo o que aquele homem ouvira de
outrem e referira em segunda mão, a honra de sua
família havia derruído262 com a queda da esposa de
João, sua irmã, considerada como um modelo de
virtudes.
SP, SPF, SP1: intelligente
SP, SPF, SP1: necessaria;
pratica
SP, SPF, SP1: experiencia
SP, SPF, SP1: miseravel;
calumniador
SP, SPF, SP1: admittia
SP, SPF, SP1: frivolo
SP, SPF, SP1: Si; aquelle
SP, SPF, SP1: familia; derruido
15
Lembrou-se de seu pai, que se referia sempre
àquela filha querida que constituía a sua glória, com
orgulho, mas um orgulho santo e nobre que lhe enchia
o coração de contentamento em sua velhice e
SP, SPF, SP1: pae
SP, SPF, SP1: áquella;
constituia; gloria
262 Derruído: desmoronado.
368
20
o coração de contentamento em sua velhice e
decadência. O que seria de Oliveira quando soubesse
desse triste desmontar de sua honra, dessa vergonha
inominável que caia sobre o seu nome, golpe
tremendo desfechado por aquela a quem tanto amava?
Quem sabe, porém, se Oliveira já não sabia desse
triste acontecimento? Era preciso, sondá-lo e, em caso
de estar ciente da ignomínia263 que a sua querida
atirava-lhe às cãs,264 procurar consolá-lo e levantar-lhe
o ânimo.
SP, SPF, SP1: decadencia
SP, SPF, SP1: d’esse; d’essa
SP, SPF, SP1: inominavel;
cahia
SP, SPF, SP1: aquella; porem;
si; d’esse
SP, SPF, SP1: sondal-o
SP, SPF, SP1: sciente;
ignominia
SP, SPF, SP1: ás cãs; consolal-
o; animo
25
Havia tempo bastante para a sua ida e volta
antes de vencido o prazo a realização do seu contrato
com o coronel Paulino; e Aristides embarcou logo no
dia seguinte em direção a Bebedouro.
SP, SPF, SP1: realisação;
contracto
SP, SPF, SP1: direcção
30
35
Fazia cerca de três meses que Aristides
estivera com seu pai, que encontrou relativamente
alegre e satisfeito na sua modesta vivenda campestre.
Agora o encontrou pálido, desfeito e com um ar triste
que debalde procurava ocultar sob um sorriso forçado
e manifestações de fingido. Não quis o mancebo
abordar logo, mesmo indiretamente, o assunto que o
levara ali, não só por ter receio de passar por delator
da vergonhosa condição a que sua irmã caíra, como
SP, SPF, SP1: tres
SP, SPF, SP1: pae
SP, SPF, SP1: encontrou-o
(Emendou-se ênclise para
próclise.); pallido; occultar
SP, SPF, SP1: quiz
SP, SPF, SP1: indirectamente;
assumpto
SP, SPF, SP1: alli
SP, SPF, SP1: cahira
263 Ignomínia: grande desonra. 264 Cãs: cabelos brancos.
369
40
por esperar que seu pai o informasse. Oliveira,
entretanto, durante o dia, limitava-se a tratar com seu
filho sobre assuntos de lavoura e economia, isso
mesmo em poucas palavras, percebendo Aristides que
ele, o pouco que conversava espontaneamente, levava
em vista desviar o filho de qualquer indagação.
SP, SPF, SP1: pae
SP, SPF, SP1: assumptos
SP, SPF, SP1: elle
expontaneamente
45
Afinal, à tardinha, quando davam um passeio
pela chácara, Aristides abalançou-se a falar sobre
Maria.
SP, SPF, SP1: á tardinha
SP, SPF, SP1: chacara
–Meu pai tem tido notícias da Bahia?–
perguntou.
SP, SPF, SP1: pae; noticias
50
Oliveira como que sobressaltou-se a essa
interrogação, procurou conter-se e, mirando seu filho
com certa indecisão, perguntou-lhe:
–Por que me perguntas isso? Sabes de alguma
novidade por lá?
SP, SPF, SP1: Porque
55
–Tenho lido algumas gazetas da Capital e vejo
que a política...
SP, SPF, SP1: politica
–E dos sertões?
–A seca do ano passado... SP, SPF, SP1: secca; anno
60
–Dessa já tive informação por alguns
imigrantes que casualmente encontrei. Fica certo, meu
filho, que a tão falada seca dos nossos sertões baianos
não é a causa do atraso do nosso querido Estado. A
SP, SPF, SP1: D’essa;
immigrantes
SP, SPF, SP1: secca; bahianos
SP, SPF, SP1: atrazo
370
65
verdadeira causa da decadência da Bahia são os
políticos ambiciosos e o desleixo do governo, que não
dota os nossos ricos e vastos sertões de boas estradas,
que não fomenta as indústrias, que não trata de
aproveitar as enormes riquezas que lá estão à espera
de quem as explore.
SP, SPF, SP1: decadencia
SP, SPF, SP1: poiticos
SP, SPF, SP1: industrias
SP, SPF, SP1: á espera
–E de Maria nada sabe? – arriscou Aristides.
70
–Sei, meu filho, – respondeu Oliveira
procurando por um grande esforço ocultar a emoção
de que se possuiu. – E tu também sabes, percebo.
SP, SPF, SP1: occultar
SP, SPF, SP1: tambem
Ambos ficaram silenciosos por alguns
momentos andando por entre as árvores sem coragem
de fitarem-se. Depois Aristides rompeu o silêncio.
SP, SPF, SP1: arvores
SP, SPF, SP1: silencio
75
–Mas pai conhece em Caetité o capitão
Rufino, o coronel Ambrósio e o major Febrônio?
SP, SPF, SP1: pae
SP, SPF, SP1: Ambrosio
–Não. Devem ser pessoas que lá chegaram
depois da minha saída. Por que desejas saber desses
homens?
SP, SPF, SP1: sahida; Porque
80 –É cá por certas razões...
–Que me queres ocultar, não? SP, SPF, SP1: occultar
–Há coisas, meu pai, que realmente nos
tornam indecisos e pesa-nos referir, tão dolorosas e
irremediáveis são.
SP, SPF, SP1: Ha; cousas; pae
SP, SPF, SP1: irremediaveis
85 –Já sei do que se trata, e bem avalias como me SP, SPF, SP1: Ja
371
acho. À primeira vista parece-me um pesadelo terrível
o que veio ao meu conhecimento. Será possível, meu
filho, que se desse isso?
SP, SPF, SP1: A’ primeira;
terrivel
SP, SPF, SP1: possivel
–Como soube, meu pai? SP, SPF, SP1: pae
90
95
100
Ambos, pai e filho, estavam certos do que
cada um deles pensava. Evitavam pronunciar o nome
daquela que, para ele foi sempre o símbolo da virtude,
da honra e da dignidade, e que agora era o cadáver
putrefato de tudo isso. Ainda se achavam indecisos
diante da figura subjetiva de Maria, que lhes parecia
sorrir com o seu ar de bondade e candura protestando
contra a imputação que caía sobre o seu caráter.
Oliveira não respondeu ao filho. Tirando da algibeira
um papel dobrado entregou-o a Aristides, que,
abrindo-o, leu pausadamente entremeando a leitura de
passageiros momentos de meditação.
SP, SPF, SP1: pae
SP, SPF, SP1: delles
SP, SPF, SP1: daquella; elle;
symbolo
SP1: eadaver (Erro óbvio.)
SP, SPF, SP1: putrefacto
SP, SPF, SP1: deante
SP, SPF, SP1: subjectiva
SP, SPF, SP1: cahia; caracter
SP, SPF, SP1: intermeando
SP, SPF, SP1: medittação
105
Era uma carta concebida nestes termos: “Meu
bom e velho amigo. Sinto uma grande hesitação ao
escrever esta, que comecei há três dias, irresoluto de
remetê-la ao seu destino, tão grave é o que nela refiro.
Sou e serei sempre seu dedicado amigo e, entre o
receio de perpetuar-lhe a tranqüilidade de espírito e o
dever de lamentar a terrível desgraça que caiu sobre a
sua felicidade, escolhi a franqueza e lealdade. Dona
SP, SPF, SP1: n’estes
SP, SPF, SP1: ha; tres
SP, SPF, SP1: remettel-a; nella
SP, SPF, SP1: tranquallidade;
espirito
SP, SPF, SP1: terrivel; chaiu
SP, SPF, SP1: D. Maria
372
110
115
120
Maria, sua filha dileta, abandonada pelo marido, do
qual nem notícia tem, caiu em tal estado de indigência
e miséria que... (perdoe-me, amigo) poupe-me referir-
lhe as dolorosas conseqüências disso. Um filho do
velho Serafim, abusando da confiança que o marido
ausente depositava no seu velho mestre, meteu-se
dentro... O velho, sabendo do caso, a princípio
procurou negar o fato quando caiu no conhecimento
da opinião pública. Não o conseguindo, quis atribuí-lo
a um homem conceituado e digno de toda a
consideração, mas foi pior. Houve atrito entre os dois,
o escândalo foi vergonhoso.”
SP, SPF, SP1: dilecta
SP, SPF, SP1: noticia; cahiu;
indigencia
SP, SPF, SP1: miseria; perdôe-
me
SP, SPF, SP1: consequencias;
d’isso
SP, SPF, SP1: Seraphim (,)
SP, SPF, SP1: metteu-se
SP, SPF, SP1: principio
SP, SPF, SP1: facto; cahiu
SP, SPF, SP1: publica; quiz;
attribuirl-o
SP, SPF, SP1: peor; attrito
SP, SPF, SP1: escandalo
125
“Quando soube disso, apesar de residir longe,
procurei sindicar o fato com reserva e remediá-lo
como velho amigo da família, nada conseguindo
senão verificar a triste realidade. Tenha paciência,
meu amigo, e desculpe-me inteirá-lo disto ferindo-lhe
o bondoso coração de pai, que sei quanto ama a sua
filha dileta. Aceite um apertado abraço do seu velho e
sincero amigo S.”
SP, SPF, SP1: d’isso; apezar
SP, SPF, SP1: syndicar; facto;
remedial-o
SP, SPF, SP1: familia
SP, SPF, SP1: sinão; paciencia
SP, SPF, SP1: inteiral-o; d’isto
SP, SPF, SP1: pae
130
A carta não estava assinada senão por uma
letra inicial. Aristides dobrou-a e entregou a seu pai.
SP, SPF, SP1: sinão; lettra
SP, SPF, SP1: pae
–A carta – informou Oliveira – não me veio da
Bahia. No envelope trazia o carimbo do correio de
SP, SPF, SP1: -A carta, (-)
SP, SPF, SP1: enveloppe
373
135
Curvelo, o que me faz crer que aquele que a escreveu
não está na Bahia.
SP, SPF, SP1: Curvello;
aquelle
–E vosmecê a quem atribui? SP, SPF, SP1: attribue
–Não pude descobrir quem é esse amigo.
–Amigo anônimo. Meu pai conhece a
caligrafia desse amigo?
SP, SPF, SP1: anonymo; pae;
calligraphia
SP, SPF, SP1: d’esse
140 –Por ela não posso saber quem seja. SP, SPF, SP1: ella
145
–Há uma ciência, da qual já li alguma coisa,
pela qual se conhece o caráter do indivíduo pelo tipo
da sua letra. Também, além desta, há outra, a
grafognomia, pela qual se conhece, como pretendem,
quem é o autor da escrita. Muita vez, examinando a
carta, poder-se-á, mesmo sem o auxílio dessas
pretendidas ciências, chegar a algum resultado.
SP, SPF, SP1: sciencia; cousa
SP, SPF, SP1: caracter;
individuo; typo
SP, SPF, SP1: lettra; Tambem;
alem; d’esta
SP, SPF, SP1: graphognomia
SP, SPF, SP1: escripta
SP, SPF, SP1: auxilio; d’essas
SP, SPF, SP1: sciencias
–Pois bem: examina a carta demoradamente e
poderás talvez conseguir alguma coisa.
SP, SPF, SP1: cousa
150
155
Chegando em casa, Aristides de novo leu a
carta e pôs-se a examiná-la cuidadosamente, embora
seu pai julgasse isso dispensável como lhe parecia,
porque talvez não tivesse fé no resultado. O mancebo,
entretanto, depois de demorado exame, concluiu que a
letra era disfarçada; que quem escreveu procurou
ocultar a sua verdadeira caligrafia, pois que em muitos
passos da escrita, talvez por causa da pressa,
SP, SPF, SP1: poz-se;
examinal-a
SP, SPF, SP1: pae; dispensavel
SP, SPF, SP1: lettra
SP, SPF, SP1: occultar;
calligraphia
SP, SPF, SP1: escripta
374
160
escapavam letras que muito diferiam do geral adotado.
Oliveira, porém, de boa fé, desculpou o amigo que lhe
escrevera. Não fez isso por mal; apenas não quis
denunciar-se temendo ser tomado por algum
intrigante.
SP, SPF, SP1: lettras;
differiam; adoptado
SP, SPF, SP1: porem
SP, SPF, SP1: quiz
165
–Não, meu pa,;– observou-lhe Aristides.– Se é
um verdadeiro amigo, devia ter confiança em vosmecê
e ser-lhe inteiramente franco.
SP, SPF, SP1: pae;(,); Si
–Seja como for, o que devemos fazer agora?
170
–Se me fosse possível, eu iria ao sertão baiano
tirar isso a limpo. O velho professor Serafim é um
homem de bem como vosmecê mesmo mais de uma
vez tem me afirmado, e é incapaz de praticar uma
ação tanto indigna quão infame.
SP, SPF, SP1: Si; possivel;
bahiano
SP, SPF, SP1: Seraphim
SP, SPF, SP1: affirmado
SP, SPF, SP1: acção
175
–De acordo; mas certamente os filhos, que não
sabemos quem são, não haviam de consultar ao velho
sobre o que fizeram. Serafim por sua vez, realizada a
infâmia, não há de vir em público condenar o filho e
desacreditá-lo.
SP, SPF, SP1: accordo;
SP, SPF, SP1: Seraphim
SP, SPF, SP1: infamia; publico;
condemnar
SP, SPF, SP1: desacredital-o
–A casa dos pais é a escola dos filhos como
diz o vulgo. Os exemplos de honestidade e boa
conduta dos pais é a melhor escola.
SP, SPF, SP1: paes
SP, SPF, SP1: conducta; Paes
180
–É o que te parece, meu filho. Quantos filhos
perversos e degenerados não tenho eu visto, oriundos
375
185
de famílias honestas e conceituadas! Entre irmãos que
procedem corretamente, continuando as tradições de
uma família honrada e os exemplos de pais
honestíssimos, eu conheço um sujeito que é a
vergonha da sua família. É um ente desprezível, abjeto
e repelido por todos quantos o conhecem.
SP, SPF, SP1: familias
SP, SPF, SP1: correctamente
SP, SPF, SP1: familia; paes
SP, SPF, SP1: honestissimos
SP, SPF, SP1: familia;
desprezivel; abjecto
–Exceções, pai. SP, SPF, SP1: Excepções; pae
–Como se explica isso?
190
195
–É que, quando um espírito torna-se
emperrado no mal, permite Deus que se encarne no
seio de uma família boa e honrada para se treinar no
bem e ao mesmo tempo provar até que ponto vai a
paciência e ânimo caridoso da boa família escolhida.
A lenda bíblica de Job põe bem às claras os desígnios
da Providência em casos tais.
SP, SPF, SP1: espirito
SP, SPF, SP1: permitte
SP, SPF, SP1: familia
SP, SPF, SP1: vae
SP, SPF, SP1: paciencia;
animo; familia
SP, SPF, SP1: biblica; ás
claras; designios
SP, SPF, SP1: Providencia; taes
200
–Isso é assunto que eu considero invenção dos
modernos. São idealismos que eu não compreendo
nem trato de estudar. Vejamos antes o que devemos
fazer.
SP, SPF, SP1: assumpto
SP, SPF, SP1: comprehendo
–Se eu pudesse, iria in loco verificar o que há
de verdade no caso de Maria, pois ainda não me
convenci por completo.
SP, SPF, SP1: Si; podesse; SP:
in loco; SPF, SP1: IN LOCO
205
–Escrevamos a um amigo ou conhecido de
confiança.
376
–Ninguém, a não ser o Serafim, me convém;
porém este é suspeito.
SP, SPF, SP1: Ninguem;
Seraphim; convem
SP, SPF, SP1: porem
–Sendo, como é, um homem de bem, não
deixará de responder alguma coisa.
SP, SPF, SP1: cousa
210
–Emfim, faz o que melhor entenderes, mas
tendo grande precaução para evitar escândalos.
SP, SPF, SP1: escandalos
215
220
Assim assentado, nesse mesmo dia Aristides
esboçou uma carta ao professor, estudou, emendou-a,
corrigiu-a e, antes de copiá-la, submeteu-a à
apreciação de seu pai que, depois de algumas
sugestões e correções, deu-lha. Copiada e assinada
pelo pai, Aristides encarregou-se de mandar ao seu
destino segura pelo registro postal. Dias depois o
mancebo encontrou-se em Ribeirão Preto com o
coronel Paulino e, fechado o seu contrato, seguiu para
a fazenda. Antes disso procurou saber do coronel
Norberto e do cara de fuinha; mas ninguém pode
informar-lhe sobre os dois tipos, que haviam
desaparecido.
SP, SPF, SP1: n’esse
SP, SPF, SP1: copial-a; á
apreciação
SP, SPF, SP1: pae
SP, SPF, SP1: suggestões; deu-
lh’a; assignada
SP, SPF, SP1: pae
SP, SPF, SP1: contracto
SP, SPF, SP1: d’isso
SP, SPF, SP1: ninguem; poude
SP, SPF, SP1: dous; typos
377
XV
5
10
15
Conforme havia combinado, Aristides foi de
tarde ao rancho de João. Era um passeio agradável para
quem, como o jovem secretário, possui o dom de
analisar as belezas naturais desde as filigranas sutis da
relva pontilhada de flores mínimas que matizam o seu
verde tapete com uma diversidade incontável de cores
brilhantes e variadas, até a gigantesca e variada
vegetação das pomposas florestas que se estendem
como um “belo sermão” pelo nosso país; atestando a
majestade do Criador; desde o arroio cristalino que se
estende como fio de prata polida e cintilante, até o
caudal possante que espelha o conjunto do painel,
chamalotando-o e movimentando-o ao sopro leve da
brisa, desde o inseto de élitros265 dourados, até as aves
altivolantes de plumagem cambiante.
SP, SPF, SP1: agradavel
SP, SPF, SP1: joven; secretario;
possue
SP, SPF, SP1: analysar; bellezas;
naturaes; subtis
SP, SPF, SP1: minimas
SP, SPF, SP1: incontavel
SP, SPF, SP1: paiz; attestando
SP, SPF, SP1: magestade;
Creador; crystallino
SP, SPF, SP1: scintillante
SP, SPF, SP1: briza; insecto;
elytros
20
Aristides ia, pois, alma de poeta, embevecido,
caminhando pausadamente pela estrada, esquecido das
misérias desta vida, como que remontando a Deus, que
via na sua exponência só por espíritos como o seu
perceptíveis, da bondade, do carinho, do desvelo que o
Criador dispensa a todas as suas criaturas nesta vida
semeada de dores, desilusões e amarguras, para
suavizá-la e dar-nos a conhecer quantas e maiores
SP, SPF, SP1: miserias
SP, SPF, SP1: exponencia;
espiritos
SP, SPF, SP1: perceptiveis
SP, SPF, SP1: Creador; creaturas;
n’esta
SP, SPF, SP1: desillusões
SP, SPF, SP1: suavizal-a; dae-
265 Élitro: asa anterior dos coeóoteros, sem nervuras e de consistência córnea.
378
25
30
suavizá-la e dar-nos a conhecer quantas e maiores
delícias nos são reservadas na outra que, no pensar do
mancebo, é a vida normal e verdadeira. Aristides era
cristão convicto; mas cristão espírita que, por outra
manifestações da bondade do Pai Celestial, sentia-se
consolado e convencido da Verdade que se havia por
vezes demonstrado por meio de provas flagrantes e
incontestáveis.
nos
SP, SPF, SP1: delicias
SP, SPF, SP1: christão; espirita
SP, SPF, SP1: Pae
SP, SPF, SP1: incontestaveis
35
40
45
Entrou, por fim, o jovem secretário no campo
das culturas. O novo cafezal estendia-se a perder de
vista listrando de verde as inclinações do solo, em
linhas de uma retidão impecável, vigoroso e são, e
demonstrando o cuidado e competência dos seus
empreiteiros. Conhecido bem do assunto, pelo que via,
avaliava que raros empreiteiros tenham realizado o que
João e Calisto haviam conseguido. Concluiu por aí que
o seu cunhado e o seu companheiro eram homens
laboriosos, inteligentes e caprichosos. Em geral os
cafeeiros ostentavam-se luxuriantes, quais em ponto de
darem a primeira florescência, que já ia abrolhando em
viçosos botões. A replanta das poucas mudas que não
pegaram distinguia-se pelo porte menor, mas também
se desenvolvia soberba e promissora.
SP, SPF, SP1: porfim; joven;
secretario
SP, SPF, SP1: rectidão;
impecavel
SP, SPF, SP1: competencia
SP, SPF, SP1: assumpto; via (,)
SP, SPF, SP1: realizavam
SP, SPF, SP1: Calixto; ahi
SP, SPF, SP1: intelligentes
SP, SPF, SP1: quaes
SP, SPF, SP1: florescencia
SP, SPF, SP1: tambem
SP, SPF, SP1: desenvolvia-se
(Emendou-se ênclise para
próclise.)
Nas proximidades do arranchamento dos
379
50
55
empreiteiros ainda teve Aristides que se admirar das
plantações de cereais e outras culturas anuais, algumas
já em colheita, da propriedade de João e Calisto; da
ordem, do asseio, do bom trato; das acomodações da
criação miúda e mesmo da casinhola onde os dois
contratantes se acomodavam e que, embora de ligeira
construção de tabique, era cômoda, higiênica e bem
cuidada. Tudo isso impressionou agradavelmente a
Aristides, que foi logo fazendo uma idéia lisonjeira de
seu cunhado e de Calisto.
SP, SPF, SP1: cereaes; annuaes
SP, SPF, SP1: Calixto
SP, SPF, SP1: accomodações
SP, SPF, SP1: meuda; dous
SP, SPF, SP1: contractantes;
accomodavam
SP, SPF, SP1: construcção;
commoda; hygienica
SP, SPF, SP1: idéa; lisongeira
SP, SPF, SP1: Calixto
60
João estava só, porque o seu companheiro e
amigo havia saído discretamente, por compreender que
os dois iam conversar reservadamente. Acomodado na
saleta, Aristides não quis desperdiçar o tempo e
abordou logo o assunto que ali o levava.
SP, SPF, SP1: sahido;
comprehender
SP, SPF, SP1:dous;
Acommodado
SP, SPF, SP1: quiz; disperdiçar
SP, SPF, SP1: assumpto; alli
65
–Senhor Lopes,– disse, – vi casualmente, nos
registros a meu cargo, o seu nome e, como existe um
homem desse nome, que se acha intimamente ligado à
minha família, desconfiei logo que esse homem é o
senhor.
SP, SPF, SP1: Sr Lopes (,); disse
(,)
SP, SPF, SP1: d’esse; á minha
SP, SPF, SP1: familia
70
–Por minha vez, – disse João, – já desconfiei
dessa ligação, notando na sua fisionomia traços muito
pronunciados de pessoa que muito me é querida.
SP, SPF, SP1: vez(,); João (,)
SP, SPF, SP1: d’essa;
physionomia
–Sua esposa, não?
380
–Justamente. O senhor é o fiel retrato de Maria.
–Pois saiba que eu sou irmão de Maria. Sou
filho de Oliveira.
75
Por mais prevenido que os dois estivessem para
esse desenlace, não se puderam conter, e estreitaram-se
em fraternal e afetuoso amplexo aqueles dois corações
bem formados.
SP, SPF, SP1: dous
SP, SPF, SP1: poderam
SP, SPF, SP1: affectuoso;
aquelles; dous
80
85
90
João mostrou-se tão jubiloso e comovido, tão
sincero era o movimento da sua alma, que Aristides
compreendeu ignorava a imputação que caia sobre a
honra de sua esposa. No jubilo expansivo e emoção de
seu cunhado viu que este era um homem de caráter são
e um esposo terno e bom. Como, pois, ferir o
melindroso assunto sem anuviar essa alegria, sem
envenenar essa ternura conjugal? Entretanto, era
preciso, era indispensável abrir os olhos de João, quer
se tratasse de uma verdade cruel; quer de uma calúnia,
em ambos os casos nodoantes da honra de uma esposa;
porque, pensava Aristides, mesmo mentirosa, uma
grave imputação como a que se dava, era uma pecha
que os maldosos, sempre em maioria, procurariam
reavivar quando o bom senso e a justiça tratassem de
destruí-la.
SP, SPF, SP1: commovido
SP, SPF, SP1: comprehendeu;
cahia
SP, SPF, SP1: caracter
SP, SPF, SP1: assumpto;
annuviar
SP, SPF, SP1: indispensavel
SP, SPF, SP1: calumnia
SP, SPF, SP1: tratasse
(Emendou-se.); destruil-a
95 –Tem tido recentes notícias de Maria? – SP, SPF, SP1: noticias
381
perguntou Aristides.
100
–Recentes, não. Há mais de dois meses não
recebo cartas da Bahia. Pelas do professor, e mesmo de
Maria, que apenas são respostas as que lhes dirijo
remetendo dinheiro, estou convencido de que as que
lhes mando sem essas remessas pecuniárias não
chegam ao seu destino.
SP, SPF, SP1: dous
SP, SPF, SP1: ás (Emendou-se.)
SP, SPF, SP1: remettendo
SP, SPF, SP1: pecuniarias
–É singular isso, meu João. Meu pai também se
queixa de nunca ter recebido cartas suas e de Maria.
SP, SPF, SP1: pae; tambem;
queixa-se (Emendou-se ênclise
para próclise.)
105
–Como poderia eu escrever ao senhor Oliveira
se, desde que para aqui veio, nunca nos escreveu um
bilhete sequer? Não sei onde ele pára.
SP, SPF, SP1: si; siquer; elle
110
–Oh!! isso mais singulariza o caso – exclamou
Aristides. – Garanto-lhe que meu pai, desde que aqui
chegou, tem-lhe escrito e a Maria. Não tendo recebido
respostas de uma só de suas cartas, desenganou-se
afinal e cessou de escrever-lhes supondo que, decerto,
vocês tinham algum capricho ou propósito nisso.
SP, SPF, SP1: pae
SP, SPF, SP1: escripto
SP, SPF, SP1: suppondo
SP, SPF, SP1: proposito; n’isso
115
–Não podíamos, como deve compreender,
tomar propositalmente essa resolução, porque, tanto eu
como Maria, não temos queixa alguma de pessoa que
muito nos merece como seu pai.
SP, SPF, SP1: podiamos;
comprehender
SP, SPF, SP1: pae
–João, aqui há tratantada de quem quer que
382
120 seja.
–Com que interesse? Como sempre recebo
cartas em resposta às que vão com dinheiro? Sei se
trata de um tratante, pode-se dizer que é um tratante
honesto, permita-me essa idéia antinômica e absurda.
SP, SPF, SP1: ás; Si
SP, SPF, SP1: permitta-me; idéa;
antinomica
125
–É que outro é o interesse de quem intercepta a
correspondência.
SP, SPF, SP1: correspondencia
–Qual esse interesse?
–Cortar as relações entre meu pai e vocês, entre
vocês e seus amigos.
SP, SPF, SP1: pae
130
135
–Se fosse assim, não receberíamos a resposta
das cartas com valor porque elas, embora não tenham o
fim de noticiar especialmente outras coisas, ao menos
provam que estou vivo, que vou ganhando, e que
trabalho para o bem dos que me são caros. Que
interesse é esse outro? Para que e por quê?
SP, SPF, SP1: Si; receberiamos
SP, SPF, SP1: ellas
SP, SPF, SP1: porque
–Sei eu lá, João? O caso é digno de estudo.
Diga-me: o professor Serafim é digno da sua inteira
confiança?
SP, SPF, SP1: Seraphim
140
–Isso não se discute. Ali está a probidade a
mais acentuada, a amizade sincera e leal até a
dedicação...
SP, SPF, SP1: Alli;
SP, SPF, SP1: accentuada
–E dos filhos o que diz?
–São meninos de uma conduta exemplar. SP, SPF, SP1: conducta
383
145
Conheço-os desde crianças. Além da sua boa índole
sempre manifesta, os exemplos dos pais e a educação
carinhosa que receberam acabaram de formá-los
homens de conduta exemplar.
SP, SPF, SP1: creanças; Alem;
indole
SP, SPF, SP1: paes
SP, SPF, SP1: formal-os
SP, SPF, SP1: conducta
–Meu pai ou você não tem algum inimigo
acirrado em fazer-lhe mal?
SP, SPF, SP1: pae
150
155
–Que me conste, não. Seu pai é o gênio brando
e, até, um pouco bonacheirão, desculpe que lhe
conhecemos. Por minha parte, sempre vivi retraído nos
meus trabalhos rurais, nunca ofendi a quem que fosse a
ponto de açular ódios encarniçados contra mim.
“Louvor em boca própria é vitupério”; mas não tenho a
pretensão de me louvar; apenas me justifico. Tenho
defeitos como quase todo o mundo, é certo; mas
procuro conter-me e emendar-me.
SP, SPF, SP1: pae; genio
SP, SPF, SP1: bonacheirão (,)
SP, SPF, SP1: retrahido
SP, SPF, SP1: ruraes; ao ponto
de (Emendou-se.)
SP, SPF, SP1: odios
SP, SPF, SP1: bocca; propria;
vituperio
SP, SPF, SP1: quasi
160
165
Aristides pôs-se a refletir por alguns
momentos. Serão – pensava – inimizades contraídas
em outra existência? Que interesse poderia levar
alguém a criar uma situação tão intrincada e misteriosa
contra João e sua esposa? Vingança? Inveja? A
vingança parte de quem recebeu uma ofensa grave e a
inveja não podia ser provocada por João e seu pai, tão
invejáveis não são as suas circunstâncias e fortuna
pecuniária, únicos motivos que dão lugar comumente a
SP, SPF, SP1: pôz-se; reflectir
SP, SPF, SP1: existencia
SP, SPF, SP1: alguem; crear;
mysteriosa
SP, SPF, SP1: offensa
SP, SPF, SP1: pae; invejaveis
SP, SPF, SP1: circumstancias
SP, SPF, SP1: pecuniaria, unicos;
commumente
384
170
essa ruim paixão. A não ser uma antipatia congênita.
Depois Aristides lembrou-se que outra paixão – o
ciúme – poderia ser o móvel da perseguição.
SP, SPF, SP1: antipathia;
congenita
SP, SPF, SP1: ciume; movel
–Maria casou-se com você por sua vontade? –
perguntou.
–Desde crianças nos afeiçoamos, e nunca uma
nuvem de desgosto empanou o nosso afeto.
SP, SPF, SP1: creanças;
affeiçoamos
SP, SPF, SP1: empannou; affecto
175
–Não houve algum outro pretendente
malogrado na sua pretensão?
SP, SPF, SP1: mallogrado
180
–Se houve, decerto não chegou a solicitar a sua
mão. E, se houvesse e Maria o preferisse, eu, bem a
meu pesar, renunciaria à minha mais ardente aspiração,
que eu considerei sempre a minha felicidade. Fui feliz,
Aristides, porque Maria excedeu em virtudes, em
carinho, em bondade, a tudo quanto já eu esperava.
Mas... aonde quer você chegar?
SP, SPF, SP1: Si
SP, SPF, SP1: si
SP, SPF, SP1: pezar; á minha
SP, SPF, SP1: Aristides (,)
185
–João, coragem! Tenho cousas gravíssimas a
revelar-lhe e é preciso que você as conheça, embora
me seja doloroso referir-lhas. Tenha calma... quer
parecer-me que se trata de calúnias.
SP, SPF, SP1: cousas;
gravissimas
SP, SPF, SP1: referir-lh’as
SP, SPF, SP1: calumnias
190
João, pálido e trêmulo, como que adivinhando
uma desgraça, emudeceu com o olhar fito em seu
cunhado, como que procurando devassar o que ainda
lhe restava dizer.
SP, SPF, SP1: pallido; tremulo;
advinhando
SP, SPF, SP1: emmudeceu
385
195
–Vou ser-lhe franco, meu querido irmão.
Alguém assoalha torpezas contra a reputação de minha
irmã e sua esposa – continuou Aristides – Ouvi em
Ribeirão Preto, casualmente, de um tipo, que parece da
boa sociedade, que em Caetité é corrente que Maria se
perdeu.
SP, SPF, SP1: Alguem
SP, SPF, SP1: typo
200
–Ah! – exclamou João indignado, vindo-lhe a
reação, e com os olhos marejados. – E você não
esbofeteou o miserável!
SP, SPF, SP1: miseravel
205
–Seria pior. O escândalo dava-se em uma casa
de pasto onde se acharam muitas pessoas estranhas, e
o informante dirigia-se a outro. Aguardei-o à saída e
interpelei-o, sem denunciar-me irmão da vítima. No
dia seguinte fui a meu pai sondá-lo e saber o que havia.
Já ele estava ciente por uma carta que um anônimo lhe
dirigiu de Minas.
SP, SPF, SP1: peor; escandalo
SP, SPF, SP1: extranhas
SP, SPF, SP1: á sahida
SP, SPF, SP1: victima
SP, SPF, SP1: pae; sondal-o
SP, SPF, SP1: elle; sciente;
anonymo
210
E João ouviu de Aristides uma relação
circunstanciada dos fatos procurando conter-se; mas
sentindo-se profundamente ferido em sua honra e
vulnerado no seu sensível e amorável coração.
Desorientado, não podia firmar-se em um juízo
razoável, e o seu espírito atribulado agitava-se entre a
possibilidade da perda de um ente a quem tanto amava
e o ser possível uma perseguição que não tinha razão
SP, SPF, SP1: circumstanciada;
factos
SP, SPF, SP1: sensivel; amoravel
SP, SPF, SP1: juizo
SP, SPF, SP1: razoavel; espirito;
attribulado; agittava-se
SP, SPF, SP1: possivel
386
215
e o ser possível uma perseguição que não tinha razão
de ser. Por fim, acalmando-se, firmou-se na idéia de
que se tratava de um aleive266 criado e propalado
simplesmente pelo ódio que os maus tributam à
virtude.
SP, SPF, SP1: Porfim; idéa
SP, SPF, SP1: creado
SP, SPF, SP1: odio; á virtude
220
–Ah! – exclamou – Quem será o miserável
caluniador!
SP, SPF, SP1: miseravel
SP, SPF, SP1: calumniador
–Quem sabe, meu João?
225
–Embora convencido de que se trata de uma
calúnia, nem por isso posso ficar tranqüilo. É-me
preciso ir já à Bahia.
SP, SPF, SP1: calumnia;
tranquillo
SP, SPF, SP1: á Bahia.
230
–Essa idéia tive eu; mas, tendo de vir para esta
fazenda, contrato fechado, era-me impossível fazer
essa longa viagem. Tomei outro alvitre: sugerir a meu
pai a idéia de escrever ao velho professor, e a carta foi
remetida logo. Aguardemos, portanto a resposta. Você
conhece o capitão Rufino e outros residentes em
Caetité, dos quais disse o informante que eu ouvi,
como lhe disse, ter colhido a notícia do escândalo?
SP, SPF, SP1: idéa
SP, SPF, SP1: contracto;
impossivel
SP, SPF, SP1: suggerir; pae
SP, SPF, SP1: idéa
SP, SPF, SP1: remettida
SP, SPF, SP1: quaes
SP, SPF, SP1: noticia; escandalo
235
–Não. Nunca ouvi se pronunciarem tais nomes,
e posso assegurar-lhe que são pessoas inventadas pelo
caluniador.
SP, SPF, SP1: taes; pronunciar-se
SP, SPF, SP1: calumniador
–É certo. Por isso e por outras circunstâncias
que notei, cheguei à conclusão de que tudo não passa
SP, SPF, SP1: circumnstancias
SP, SPF, SP1: á conclusão
266 Aleive: calúnia, injúria.
387
que notei, cheguei à conclusão de que tudo não passa
de uma inventiva.
240
–Em todo caso, o nome de Maria anda pela
boca de miseráveis que, por não terem honra nem
escrúpulos, não prezam a honra alheia. Vou à Bahia.
SP, SPF, SP1: bocca
SP, SPF, SP1: miseraveis;
escrupulos
SP, SPF, SP1: á Bahia
–Aguarde a resposta do professor.
–O professor foi inteirado do fato? SP, SPF, SP1: facto
245
250
255
–Não, João. A carta foi escrita por mim
cuidadosamente e assinada por meu pai. Nela procurei
saber o que há por lá sem precisar fato algum. Pedi ao
velho explicar a razão de não escreverem para cá,
saber se há alguma perseguição contra Maria e se
existe algum mal intencionado que deseje fazer-lhe
mal. Em resumo, fi-la de modo tal, que o professor,
que é um homem criterioso e prático da vida,
desconfiará que é indispensável responder logo e
francamente, pois perceberá que alguma razão
interessante a nós assim o exige.
SP, SPF, SP1: escripta
SP, SPF, SP1: assignada; pae;
N’ella
SP, SPF, SP1: facto
SP, SPF, SP1: si; si
SP, SPF, SP1: fil-a
SP, SPF, SP1: pratico
SP, SPF, SP1: indispensavel
260
–Mas, ainda assim, é-me preciso ir tratando de
concluir os meus negócios e preparar minha viagem de
retorno à minha terra. Quando eu não tenha concluído
por cá os meus interesses e negócio com o coronel
quando vier a resposta, tenho você para, em meu lugar,
concluí-los ajudando o Calisto, que é meu amigo e um
SP, SPF, SP1: negocios
SP, SPF, SP1: á minha;
concluido
SP, SPF, SP1: negocio
SP, SPF, SP1: concluil-os;
Calixto
388
homem honesto e digno.
–Com muito gosto aceitarei a incumbência,
João. Farei por você o melhor que puder.
SP, SPF, SP1: acceitarei;
incumbencia
SP, SPF, SP1: pudér
265
–Obrigado, Aristides. Sei que os meus
negócios ficarão bem amparados.
SP, SPF, SP1: negocios
XVI
5
10
Abílio, entretanto, não descansava. Na faina
de apossar-se de Maria, não já somente levado pela
paixão que, a princípio, o dominava, impregnada de
desejos concupiscentes, embora parecesse um amor
razoável; mas também pelo espírito de vingança a que
dera motivo a atitude varonil da virtuosa senhora
expulsando-o da sua residência como bem e
justamente devia proceder, – andava abaixo e acima
pelas fazendas, casais, povoados e outras situações,
onde não fosse conhecido, em procura de um
instrumento que lhe servisse a contento aos fins
desonestos que tinha em vista.
SP, SPF, SP1: Abilio; descançava
SP, SPF, SP1: principio;
dominava (,)
SP, SPF, SP1: concupicentes
SP, SPF, SP1: razoavel; tambem;
espirito
SP, SPF, SP1: attitude
SP, SPF, SP1: residencia
SP, SPF, SP1: casaes
SP, SPF, SP1: deshonestos
15
Nessa reprovável diligência apresentava-se
como negociante ambulante que fazia compras aqui
para vender acolá. Afinal encontrou o que desejava:
SP, SPF, SP1: N’essa; reprovavel;
deligencia
389
20
um sujeito que, para outro qualquer que fosse alguma
coisa honesto, seria um indesejável. Foi por ele notado
de passagem, fez-se encontradiço com o meliante
porque notou os seus modos desconfiados, estudou-o
de perto e tomou-o ao seu serviço como camarada. Era
um sujeito de semblante agradável, modos humildes,
risonho; em suma, tão atraente e simpático que
angariaria a outro menos perspicaz do que Abílio.
SP, SPF, SP1: cousa; indesejavel;
elle
SP, SPF, SP1: agradavel
SP, SPF, SP1: summa; attrahente;
simpatico
SP, SPF, SP1: Abilio
25
30
35
Tão bondoso, até bonacheirão, mostrou-se
Abílio ao sujeito e tendo como verdades as suas
queixas e lamúrias e logo generosamente,
dispensando-lhe favores e dádivas pecuniárias, que
ganhou a sua confiança. Tomás, como ele se deu a
conhecer por um nome falso, mostrou-se agradecido, e
fez juras de uma dedicação que tocava as raias do
exagero e davam a conhecer e denunciavam a Abílio o
submetido que elas continham e o gênio inventivo
desse precioso achado, que era astucioso e servido por
uma inteligência regular cultivada na prática de
perversidades e atos reprováveis aprendidos
certamente na grei267 dos vagabundos e mandriões.
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: dadivas;
pecuniarias
SP, SPF, SP1: Thomaz; elle
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: ellas; genio
SP, SPF, SP1: d’esse
SP, SPF, SP1: intelligencia
SP, SPF, SP1: pratica; actos;
reprovaveis
Abílio, notando que o seu camarada era
tagarela e fanfarrão, embora guardasse a compostura
de patrão e se mostrasse reservado, prestava atenção
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: attenção
267 Grei: congregação.
390
40
45
50
de patrão e se mostrasse reservado, prestava atenção
com ar bonachão à prosa de Tomás, a quem dava trela
por meio de um sorriso aprobativo que o camarada
tinha por ingenuidade do patrão. Supondo ser-lhe
agradável, Tomás pouco a pouco foi ganhando certa
familiaridade e mostrando-se tal qual era: gabolas, de
uma dedicação servil, capaz das ações as mais
ignóbeis e refalsado; predicados estes que muito
agradavam a Abílio; mas, para que fosse conseguido o
préstimo do camarada, era preciso saber levá-lo, e o
astucioso mancebo sabia como se haver para alcançar
o que desejava.
SP, SPF, SP1: á prosa; Thomaz ;
tréla
SP, SPF, SP1: approbativo
SP, SPF, SP1: Suppondo
SP, SPF, SP1: agradavel; Thomaz
SP, SPF, SP1: acções; ignobeis;
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: prestimo; leval-o
55
Um mês depois de ter tomado Tomás ao seu
serviço, já sabia Abílio com quem contava e começou
a entrar em ação. Principiou por informar a Tomás,
aproveitando uma ocasião em que este o gabava com
ênfase, que não era tanto assim, pois tinha um inimigo
figadal.
SP, SPF, SP1: mes; Thomaz
SP, SPF, SP1: Abílio
SP, SPF, SP1: acção; Thomaz
SP, SPF, SP1: occasião; gabava-o
(Emendou-se ênclise para
próclise.); emphasi
60
–O que, patrão!? – exclamou Tomás – Um
homem de bem como vossamecê?... Um homem bom
que não ofende a ninguém; antes serve a todo mundo,
como eu vejo?... Mas quem é esse miserável? Me diga
vossamecê? Que eu tou já no pé dele.
SP, SPF, SP1: Thomaz
SP, SPF, SP1: offende; ninguem
SP: miseravel? Me diga
vossamicê? ‘tou; SPF, SP1:
MISERAVEL; ME DIGA
VOSSAMICÊ? ‘TOU
SP, SPF, SP1: d’elle.
–Para que, Tomás? Deixe lá esse pobre. SP, SPF, SP1: Thomaz
391
65
–Qual! vossamecê há de dizê, que eu quero
conhecê a cara dele.
SP: Vossamicê há de dizê;
conhecê; SPF, SP1:
VOSSAMICÊ; DIZÊ CONHECÊ;
SP, SPF, SP1: d’elle.
–Conhecer a cara dele? Que lhe interessa isso?
Se ele souber que você é gente minha, andará de tal
jeito que você lhe ficará querendo bem.
SP, SPF, SP1: d’elle
SP, SPF, SP1: Si elle
SP, SPF, SP1: geito
70
–E eu sou tolo para dizer que sou gente de
vossamecê? Eu até – vossamecê me perdoe – sou
capaz da falar mal do meu patrão pra o sujeito não
desconfiá.
SP, SPF, SP1: p’ra; SP:
vossamicê, SPF, SP1: p’ra;
VOSSAMICÊ;
SPF, SP1: perdoe; fallar; P’RA;
DESCONFIÁ
–Está perdoado desde já, Tomás – garantiu
Abílio com um sorriso bondoso e significativo.
SP, SPF, SP1: Thomaz
SP, SPF, SP1: Abilio
75
–O diabo é que eu não sei adonde o sujeito
mora e como é o seu nome.
SP: adonde; SPF, SP1: ADONDE
–O nome é João Lopes. É empreiteiro na
fazenda de um tal coronel Paulino, lá para as matas de
Mojiguaçú.
SP, SPF, SP1: mattas
SP, SPF, SP1: Mogy Guassú
80
–Sei muito adonde é essa fazenda, que eu já
passei pru lá faz dois anos. Não quis me empregá lá
pruquê lá pra Ribeirão Preto. Até me alembrá dessa
empreitada.
SP: adonde, SPF, SP1: ADONDE
SP, SPF, SP1: dous; SP;annos,
SPF, SP1: ANNOS; quiz; SP:
empregá; pruquê; pr’a; alembrá,
SPF, SP1: EMPREGÁ; PRUQUÊ
p’ra; ALEMBRA; d’essa
85
–Pois é lá que o João Lopes, de sociedade com
um tal Calisto, pegou uma empreitada de plantação de
café que já está para ser entregue ao fazendeiro.
SP, SPF, SP1: Calixto
–Dinheirão, hem, patrão? Esses empreito é SP: empreito; ganhá, SPF, SP1:
EMPREITO; GANHÁ
392
para se ganhá muito, não é?
90
–Com certeza. Os dois empreiteiros vão
amochar268 um bom cobre.
SP: amochar, SPF, SP1:
AMOCHAR
–Uns conto de réis, não, patrão? SP: conto, SPF, SP1: CONTO
–Que dúvida? SP, SPF, SP1: duvida
–E vão logo se arretirando269 pra Bahia, não? SP: arretirando, SPF, SP1:
ARRETIRANDO; p’ra
–Logo que receberem o dinheiro.
95
–E isso será já? – indagou Tomás com uma
curiosidade que denunciava os seus intentos
reservados.
SP, SPF, SP1: Thomaz
–Isso agora é que eu sei.
–Mas eu há de sabê. SP: ha de sabê, SPF, SP1: HA DE
SABÊ.
100 –Como, Tomás? Para que? SP, SPF, SP1: Thomaz
–Eu, com sua licença, vou trabalhá de jorná
na fazenda do tá coroné.
SP: trabalhá de jorná; tá coroné,
SPF, SP1: TRABALHÁ DE
JORNÁ; TÁ CORONÉ.
–Não é bom, Tomás; isso é uma imprudência.
Depois... o que vai você fazer ao João?
SP, SPF, SP1: Thomaz;
imprudencia
SP, SPF, SP1: vae
105
–Nada; apena puxá as oreia do safado quando
eu achá jeito.
SP: apena puxá as oreia; achá,
SPF, SP1: APENA PUXÁ as
OREIA; ACHÁ; geito
–Se ele não o ofendeu! SP, SPF, SP1: Si; elle; offendeu
–Mas ofendeu o patrão, e um camarada cumo
eu é pra isso.
SP, SPF, SP1: offendeu; SP:
cumo; p’ra, SPF, SP1: CUMO;
P’RA
110 –Não se anda puxando as orelhas dos outros
268 Amochar: guardar ou entesourar avarentamente. 269 Arretirando: retirando, ou seja, indo para a Bahia.
393
com essa facilidade, Tomás. SP, SPF, SP1: Thomaz
–Eu sei como essas coisa é feita. SP: coisa é feita, SPF, SP1:
COISA É FEITA
–E se o outro for valente? SP, SPF, SP1: si
115
–Aí é qui é bom. Indas qui ele seje valente
cuma um queixada270, nós empana.
SP: Ahi; qui; indas qui; elle; seje;
cuma, SPF, SP1: Ahi; QUI;
INDAS QUI; elle; SEJE; CUMA
–Não, Tomás; não vá, que nisso você vai
envolver o meu nome e me complicar.
SP, SPF, SP1: Thomaz; n’isso;
vae
–Eu tou muito acostumado, patrão. Não tenho
medo, já lhe disse.
SP: tou, SPF, SP1: ’TOU
120
–Não convém, Tomás, porque nessa inimizade
também está envolvido o nome de uma mocinha
italiana, que é noiva de seu patrício. Você sabe que
italiano não é para graças.
SP, SPF, SP1: convem; Thomaz;
n’essa
SP, SPF, SP1: patricio
125
–Quá! Eu já tive às vorta com um desses
gringo. Era um valentão, andei os puxavante com ele
e... – vossamecê me perdôe – mandei ele de presente
pros inferno.
SP: Quá; tive; ás vorta; d’esses;
gringo, SPF, SP1: QUÁ; TIVE; ás
VORTA; d’esses; GRINGO
SP, SPF, SP1: os puxavante;
co’elle; VOSSAMISSÊ; perdôe;
elle; PR’OS INFERNO
–Você fez isso, Tomás? E a cadeia? E o
processo?
SP, SPF, SP1: Thomaz
130 –Cadeia e purcesso foi feito p’ros home. SP: purcesso foi feito p’ros home,
SPF, SP1: PURCESSO FOI
FEITO P’ROS HOME.
–Não foi preso?
–Mudei de terra e... – terminou Tomás
hesitando com uma reticência.
SP, SPF, SP1: Thomaz
SP, SPF, SP1: reticencia
270 Queixada: mamífero da família dos taiaçuídeos de coloração negro-pardacenta, pelagem das costas muito longa. Difere do caititu por ter os lábios brancos. Quando acuado, bate forte o queixo e é valentíssimo.
394
hesitando com uma reticência.
–E de nome, não?
135 –Já que vossamecê adivinhou... eu já tinha o
nome mudado.
SP: vossamicê, SPF, SP1:
VOSSAMICÊ; advinhou
–Por causa de outra imprudência? SP, SPF, SP1: imprudencia
–Sim, patrão. Eu confesso porque sei que
vossamecê guarda segredo.
SP: vossamicê , SPF, SP1:
VOSSAMICÊ
140
–Não tenha receio de mim. Eu lhe quero bem,
Tomás; estou muito satisfeito com você e nada tenho
que dizer do seu procedimento a meu respeito.
Acredita?
SP, SPF, SP1: Thomaz
145
–Se acredito! Eu nunca tive um patrão que
entrasse no meu coração cuma vossamecê.
SP, SPF, SP1: Si
SP: cuma vossamicê, SPF, SP1:
CUMA VOSSAMICÊ
–E qual é o seu nome verdadeiro?
–Esta! Isso me pode cumpricá. SP: cumpricá, SPF, SP1:
CUMPRICÁ
–Já vê que você não tem confiança no seu
patrão – observou Abílio, fingindo-se desgostoso.
SP, SPF, SP1: Abilio (,)
150 –Não se azangue, patrão, que eu fico triste. SP: azangue, SPF, SP1:
AZANGUE
155
–Não é por curiosidade, Tomás; é para seu
bem. Muita vez descobrem o seu verdadeiro nome e
querem prendê-lo. Não é bom que eu, como
testemunha, me apresente em sua defesa? Você sabe
que eu tenho valia e amigos para quem o meu dito é
sempre uma verdade.
SP, SPF, SP1: Thomaz
SP, SPF, SP1: prendel-o
SP, SPF, SP1: valla
395
–Lá isso é verdade, patrão. Eu lhe digo: eu
chamava Gi – afirmou Tomás, dando-se outro nome
falso dos muitos que, decerto, já tinha usado.
SP, SPF, SP1: GI; Thomaz (,)
160
–Além do nome que você tomou por último,
não se deu por outros?
SP, SPF, SP1: Alem; ultimo
165
–Home, às vêis a gente percura outro nos
apêrto da puliça. Eu por izemplo, já chamei Migué,
outras vêis Rafaé, mas porém faz muito tempo qui eu
sou Tomás.
SP: home; vêis; percura; apêrto;
puliça; izemplo; Migué; vêis
raphaé; qui;Thomaz; SPF, SP1:
HOME; VÊIS; percura; APÊRTO;
PULIÇA; izemplo; MIGUÉ; VÊIS
RAPHAÉ; QUI;Thomaz.
–E se você for para a fazenda do coronel
Paulino, ainda mudará o nome? – inqueriu Abílio,
dando indiretamente o consentimento pedido pelo seu
camarada.
SP, SPF, SP1: si
SP, SPF, SP1: Abilio (,)
SP, SPF, SP1: indirectamente
180
–Vossamecê acha bom? Eu quando passei lá,
não dei nome nenhum.
SP: vossamicê; quando, SPF, SP1:
VOSSAMICÊ; QUANDO
–Então, pode dar o nome de Tomás. SP, SPF, SP1: Thomaz
185
–E cum essa cunversa o patrão se esqueceu de
me dizê pruquê o tale João ficou cum raiva de
vossamecê.
SP: cum; cunversa dizê pruquê;
tale; cum; vossamicê, SPF, SP1:
CUM;CUNVERSA DIZÊ
PRUQUÊ O TALE; CUM;
VOSSAMICÊ
200
–Foi por uma coisa simples, Tomás. João era
meu amigo e é casado na Bahia. Meteu-se a namorar
uma italianazinha filha de um tal Marco, que trabalha
com a família na fazenda do coronel. Ora, a moça é
noiva de um patrício que também está trabalhando na
SP, SPF, SP1: cousa; Thomaz
SP, SPF, SP1: Metteu-se
SP, SPF, SP1: familia
SP, SPF, SP1: patricio; tambem
396
fazenda. Eu, como amigo, vendo o perigo que João
Lopes corria, meti-me a dar-lhe conselhos reprovando,
o seu procedimento. Foi isto bastante para que ele
rompesse a nossa amizade.
SP, SPF, SP1: metti-me;
reprovando (,)
SP, SPF, SP1: elle
205 –Ah! bandaio! Pois eu vou vê esse negoço. SP: bandaio; vê; negoço, SPF,
SP1: BANDAIO; VÊ; NEGOÇO
–Nada de imprudência, Tomás. Acho bom que
você não se meta com isso.
SP, SPF, SP1: imprudencia(,)
Thomaz
SP, SPF, SP1: metta
–Ora, patrão! Tenha fiúza271 no seu camarada. SP, SPF, SP1: fiuza
–Tenho muita; mas você é moço, é afobado...
210 –Não tenha receio, que eu não faço
estrupiço.272
SP: estrupiço, SPF, SP1:
ESTRUPIÇO
215
Por aí assim ainda os dois miseráveis
conversaram muito; Abílio insinuando esquerda e
astuciosamente ao camarada o seu modo de agir na
fazenda, este continuando a protestar que nada faria
que pudesse comprometer a si e ao patrão.
SP, SPF, SP1: ahi; dous;
miseraveis
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: podesse;
comprometter
XVII
Dias depois do que narramos no capítulo
anterior, Tomás, bem instruído por Abílio que,
inoculando no seu espírito, como vimos, idéias que
SP, SPF, SP1: capitulo
SP, SPF, SP1: Thomaz; instruido;
Abilio
SP, SPF, SP1: espirito; idéas
271 Fiúza: confiança. 272 Estrupiço: estrupício, asneira, dano, prejuízo.
397
5
10
reforçassem as suas propensões para o mal, entanto
parecia encaminhá-lo à prudência e boa conduta; –
apresentou-se a João e Calisto pedindo-lhe colocação
a jornal. Mostrando-se humilde, de aparência
insinuante e agradável, soube iludir aos dois
empreiteiros que, ouvindo as suas lamúrias e queixas
contra o patrão que deixava, condoeram-se dele e
admitiram-no no serviço.
SP, SPF, SP1: emtanto
SP, SPF, SP1: encaminhal-o; á
prudencia; conducta
SP, SPF, SP1: Calixto; collocação
SP, SPF, SP1: apparencia
SP, SPF, SP1: agradavel; illudir;
dous
SP, SPF, SP1: lamurias
SP, SPF, SP1: d’elle; admitiram-
n-o
15
Uma vez servido no que havia pedido, Tomás
tornou-se comunicativo e pôs-se logo a gabar os
novos patrões, comparando-os com o anterior, a quem
depreciava para mais relevo dar aos dois empreiteiros.
Nesse empenho, abriu, sem avaliar a importância dela,
uma falha em sua astúcia. “Quem muito fala, muito
erra”, diz o vulgo.
SP, SPF, SP1: Thomaz
SP, SPF, SP1: communicativo;
pôz-se
SP, SPF, SP1: patrões (,)
SP, SPF, SP1: dous
SP, SPF, SP1: N’esse; importancia
d’ella
SP, SPF, SP1: astucia
20
Tomás, sem calcular que ia fazer um mal a
Abílio, antes supondo que encetava o seu programa
menosprezando-o para evitar desconfianças como
planejara, chegou a pronunciar o seu nome suposto.
SP, SPF, SP1: Thomaz
SP, SPF, SP1: Abilio; suppondo;
programma
SP, SPF, SP1: supposto
25
–Arre! Tou livre daquele peste do capitão
Rufino – disse por fim.
SP, SPF, SP1: ‘Tou; d’aquelle
–Como?! – perguntou João com interesse,
lembrando-se que Aristides lhe falara em um capitão
Rufino envolvido, como uma das mais salientes
398
30
figuras, na triste notícia que lhe chegava de sua
esposa.
SP, SPF, SP1: noticia
35
–Esse capitão Rufino, patrão, era o meu
patrão. Era um home ruim, não me pagava dereito e,
lendes disso, só vivia abaixo e acima. Eu já não podia
agüenta. Larguei ele pra non morrê esbilinguido de
non dormi e non comê.
SP: home; dereito; lendes; d’isso;
aguentá; larguei elle p’ra non
morrê esbilinguido de non dormi e
non comê., SPF, SP1: HOME;
DEREITO; LENDES; d’isso;
aguentá; LARGUEI ELLE P’RA
NON MORRÊ ESBILINGUIDO
DE NON DORMI E NON
COMÊ.
–Onde mora este capitão Rufino? – indagou
João – É algum fazendeiro?
–Quá fazendeiro, patrão? Pois se o home non
esquenta lugá!
SP: quá; home non esquenta lugá,
SPF, SP1: QUÁ; HOME NON
ESQUENTA LUGÁ!
40
45
João foi atalhado por Calisto nas suas
indagações. Como mais prático, considerou
inconveniente dar trela a gente da ordem de Tomás. A
sua boa fé era tal como a do seu companheiro; por isso
interrompeu-o, fazendo-lhe um sinal significativo que
o outro compreendeu.
SP, SPF, SP1: Calixto
SP, SPF, SP1: pratico
SP, SPF, SP1: Thomaz
SP, SPF, SP1: interrompeu-o (,);
signal
SP, SPF, SP1: comprehendeu
50
–Está bem, seu Tomás – disse Calisto. – Já é
de tarde, temos que largar o serviço, e é preciso que
você se acomode na colônia, que aqui os cômodos dão
somente para nós.
Informou ao novo jornaleiro de tudo quanto
era preciso para alojar-se. Tomás esperou os outros
trabalhadores, e com eles tomou o caminho da
SP, SPF, SP1: Thomaz; Calixto
SP, SPF, SP1: accomode; colonia;
commodos
SP, SPF, SP1: sómente
SP, SPF, SP1: Thomaz
SP, SPF, SP1: elles
399
trabalhadores, e com eles tomou o caminho da
colônia, sempre conversando e indagando
maliciosamente para orientar-se no modo de bem
servir a Abílio.
SP, SPF, SP1: colonia
SP, SPF, SP1: Abilio
55
60
65
Ao chegarem os trabalhadores nos
alojamentos da colônia, já Tomás sabia qual era a
residência onde se aboletava Genaro e muitas coisas
mais que lhe serviriam no desenvolvimento do seu
plano maldoso. Tomás procurou o galpão vizinho da
residência de Marco e, no serão escolheu a lareira
preferida por Genaro. Um novo trabalhador é logo
cercado de indagações, por isso muitos dos jornaleiros
vieram formar círculo com os costumados na lareira
onde Tomás se achava, na maior ansiedade de ouvir o
vindiço.
SP, SPF, SP1: colonia; Thomaz
SP, SPF, SP1: Gennaro; cousas
SP, SPF, SP1: Thomaz
SP, SPF, SP1: visinho; residencia
SP, SPF, SP1: Gennaro
SP, SPF, SP1: circulo
SP, SPF, SP1: Thomaz; anciedade
70
Tomás, podemos dizer, foi o conferencista
daquela sessão com ares de solene, e auditório pendia
dos seus lábios, ouvindo as mentiras que borbotavam
a flux da sua boca. Andara por Cecas e Mecas,
conhecia personagens de alta categoria, trabalhara em
um sem número de fazendas, visitara a Capital do
Estado e as principais cidades; enfim, segundo o que
asseverava, era um homem extraordinário, desses que
como dizia o vulgo, “caem do céu por descuido.” Os
SP, SPF, SP1: Thomaz
SP, SPF, SP1: d’aquella; solemne;
auditorio
SP, SPF, SP1: labios (,)
SP, SPF, SP1: bocca
SP, SPF, SP1: numero
SP, SPF, SP1: principaes; emfim
SP, SPF, SP1: extraordinario;
d’esses
SP, SPF, SP1: cahem
400
75
ouvintes, silenciosos, embasbocados, viam em Tomás
um homem precioso, um companheiro simpático que
muito os divertiria ao serão. Até o jovem napolitano
sentiu-se atraído pelos modos e semblante de Tomás,
tanto mais que este a ele se dirigia de preferência.
SP, SPF, SP1: Thomaz
SP, SPF, SP1: sympathico
SP, SPF, SP1: divertirião; joven
SP, SPF, SP1: attrahido, Thomaz
SP, SPF, SP1: elle, preferencia
80
85
–Desculpe-me, Sr. João – disse Calisto logo
que Tomás se retirou. – Eu interrompi a sua
conversação com aquele camarada, porque é um
gabolas desses que querem tomar a mão quando se
lhes dá o pé. O Senhor, que estava entretido, talvez
não notasse o que eu notei.
SP, SPF, SP1: Calixto
SP, SPF, SP1: Thomaz
SP, SPF, SP1: aquelle
SP, SPF, SP1: d’esses
SP, SPF, SP1: Sr.
–A minha conversação com ele tinha um fim:
desde que conversei com Aristides procuro saber
quem é e onde pára um tal capitão Rufino por ele
referido, e só agora ouvi outra referência ao seu nome.
SP, SPF, SP1: elle
SP, SPF, SP1: elle
SP, SPF, SP1: referencia
90 –É seu conhecido?
95
–Não. Alguém, em presença do meu cunhado,
que lhe é desconhecido, referira a outro notícias de
minha família, que ouvira de pessoas diversas em
Caetité, e, entre elas, falou no tal Rufino como o
principal informante dessas notícias. Como em Caetité
nunca ouvi falar-se em tal sujeito, nem o conheço,
pareceu-me a princípio que era um personagem
fantástico, inventado pelo informante. Agora, porém,
SP, SPF, SP1: Alguem
SP, SPF, SP1: noticias
SP, SPF, SP1: familia
SP, SPF, SP1: ellas
SP, SPF, SP1: d’essas; noticias
SP, SPF, SP1: principio
SP, SPF, SP1: phantastico (,);
porem
401
100
convenci-me da existência do capitão Rufino, e ardo
por encontrá-lo.
SP, SPF, SP1: existencia
SP, SPF, SP1: encontral-o.
–Ainda uma vez peço-lhe desculpas. Eu nada
sabia desse seu interesse, senão até o ajudaria; mas,
em todo o caso, procurarei remediar a minha falta
fazendo a inquirição que você desejava fazer.
SP, SPF, SP1: d’esse; sinão
SP, SPF, SP1: inquerição
105
–Muito agradeço, meu amigo, esse serviço que
me vai prestar. Aristides, que tem o mesmo empenho
que eu, será sabedor do que nos disse o Tomás, e
estou certo que me ajudará nisso também.
SP, SPF, SP1: vae
SP, SPF, SP1: Thomaz
SP, SPF, SP1: n’isso; tambem
110
115
Nesse mesmo dia João procurou Aristides e
comunicou-lhe que achara o rastro do capitão Rufino
pelo novo jornaleiro admitido no seu trabalho.
Convencidos de que se não tratava de um personagem
imaginário, João e o seu cunhado, que foi inteirado da
promessa de Calisto, discutiram os meios de que
deviam lançar mão para conseguirem revelações de
Tomás, porém de modo que o camarada não
desconfiasse do interesse que os levava a fazer as
indagações.
SP, SPF, SP1: N’esse
SP, SPF, SP1: communicou-lhe
SP, SPF, SP1: admittido
SP, SPF, SP1: imaginario
SP, SPF, SP1: Calixto
SP, SPF, SP1: Thomaz; porem
120
A providência, porém, reservava a João e
Aristides uma surpresa agradabilíssima que muito os
alegrou: o capitão Rufino foi descoberto e
desmascarado na Cidade do Ribeirão Preto,
SP, SPF, SP1: Providencia; porem
SP, SPF, SP1: surpreza;
agradabilissima; alegrou-os
(Emendou ênclise para próclise.)
402
125
casualmente, e o fato deu brado e foi noticiado pelos
jornais para vergonha de Abílio, que teve o seu
Waterloo, como o leitor verá.
SP, SPF, SP1: facto
SP, SPF, SP1: jornaes; Abilio
130
135
Tomás conseguiu conquistar, mediante os seus
artifícios e refinada hipocrisia, a confiança e estima
dos seus ingênuos companheiros de trabalho, homens
ignorantes que não tratavam, nem o poderiam
conseguir, carente da necessária perspicácia e mesmo
de interesse, de estudar a fundo o caráter do vindiço.
Preocupavam-se apenas com a diversão da noite,
ouvindo os sermões do tagarela e, com as suas
histórias e anedotas, deleitando-se no descanso.
Assentado sempre ao lado de Genaro, dirigia-se-lhe
especialmente mostrando-se risonho e amável, e
dispensando toda a sorte de agrados. Consegui por fim
o seu intento, ganhando a confiança do jovem italiano,
que foi fascinado pela serpente diabólica.
SP, SPF, SP1: Thomaz
SP, SPF, SP1: artifícios
hypoceresia
SP, SPF, SP1: ingenuos
SP, SPF, SP1: necessaria;
perspicacia
SP, SPF, SP1: caracter
SP, SPF, SP1: Preoccupavam-se
SP, SPF, SP1: historias;
anecdotas; descanço
SP, SPF, SP1: Gennaro
SP, SPF, SP1: amavel
SP, SPF, SP1: porfim
SP, SPF, SP1: joven
SP, SPF, SP1: diabolica
140
145
O manhoso instrumento de Abílio, captando a
inteira confiança do mancebo, tornou-se-lhe uma
espécie de mentor; dava-lhe conselhos sobre o modo
de viver naquela terra onde os costumes e hábitos
eram inteiramente diferentes dos da sua. Então
rasgava sedas à raça italiana elogiando a sua
capacidade no trabalho, a sua conduta exemplar, a sua
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: especie
SP, SPF, SP1: n’aquella; habitos
SP, SPF, SP1: differentes
SP, SPF, SP1: á raça
SP, SPF, SP1: conducta
403
honestidade e toda uma porção de bons predicados
que muito se avantajavam dos nossos.
150
–Oia, seu Jinuaro – dizia – eu conheço munto
seus patriço. Um italiano é gente qui não se cumpara
c’os brasilêro. É ouro sem liga.
SP: o’ia, seu jinuaro; munto;
patriço; ataliano; qui; cumapra;
c’os brasilêro, SPF, SP1: O’IA,
SEU JINUARO; MUNTO;
PATRIÇO; ATALIANO; QUI;
CUMAPRA; c’os BRASILÊRO
155
160
165
Passava a ilustrar o que informava com fatos
seus conhecidos, como dizia, que punham em relevo
as altas qualidades dos italianos e deprimiam o caráter
dos nossos patrícios. Genaro, encantado com as
balelas do meliante, tornou-se seu amigo dedicado e ia
aceitando tudo quanto ouvia sem examinar, tão cego
se achava, deslumbrado pelas mistificações e lisonjas
de Tomás. A confiança que o pobre moço entrou a
depositar no seu amigo de fresca data chegou a ponto
de não dispensar Genaro a sua companhia nos
passeios e caçadas que faziam os trabalhadores nos
dias de folga. Então, andando os dois pelas estradas,
culturas e florestas, o napolitano, familiarizado com o
amigo, tornava-se comunicativo e não tinha reservas
no seu conversar. O camarada dava-lhe trela e punha-
se a ouvir, apenas aparentando quando era preciso
emitir um conselho ou dar resposta a uma pergunta do
outro.
SP, SPF, SP1: illustrar; factos
SP, SPF, SP1: caracter
SP, SPF, SP1: patricios; Gennaro
SP, SPF, SP1: acceitando
SP, SPF, SP1: mystificações
SP, SPF, SP1: Thomaz
SP, SPF, SP1: ao ponto
(Emendou-se.)
SP, SPF, SP1: Gennaro
SP, SPF, SP1: dous
SP, SPF, SP1: communicativo
SP, SPF, SP1: emittir
170 Esperava Tomás que o napolitano falasse nos SP, SPF, SP1: Thomaz; fallasse
404
175
180
seus amores, já preparado para envenená-los; mas
nesse assunto Genaro guardava reserva. Muito
estimava e respeitava o velho Marco, com quem viera
da terra e que conhecia como honesto e zeloso pela
honra da sua família, e muito temia o gênio áspero da
velha, que se destemperava à coisa a mais simples, -
para conversar com um estranho, por maior confiança
que nele depositasse, a respeito de Giudita. Marco
muito se agastaria se soubesse que o nome de sua filha
era motivo de comentários entre os trabalhadores.
Isso, além de tudo, prejudicaria a pretensão dos jovens
namorados, certamente se casariam quando Genaro
dispuzesse de algumas economias.
SP, SPF, SP1: envenenal-os
SP, SPF, SP1: n’esse; assumpto;
Gennaro
SP, SPF, SP1: familia; genio;
aspero
SP, SPF, SP1: á cousa
SP, SPF, SP1: extranho
SP, SPF, SP1: nelle; Giuditta
SP, SPF, SP1: si
SP, SPF, SP1: comentarios
SP, SPF, SP1: alem; pretenção
SP, SPF, SP1: Gennaro
185
190
Em um dos seus passeios de domingo, no qual
Tomás levava a sua arma de caça, antiga, de um cano
trochado273 de aço e escovada por cápsula, o
camarada, já bem estudado o meio de encetar o enredo
que planeara de acordo com Abílio e por ele
insinuado, aproveitou-se de se acharem a sós para
lançar a semente ao terreno que vinha preparando.
Desta vez Genaro limitava-se a ouvir e Tomás
comentava os hábitos dos outros trabalhadores,
notando defeitos de glutoneria, de preguiça e outros,
mas dos compatriotas, que dos estrangeiros nada tinha
SP, SPF, SP1: Thomaz
SP, SPF, SP1: trochado; capsula
SP, SPF, SP1: accordo; Abilio;
elle
SP, SPF, SP1: D’esta; Gennaro;
Thomaz
SP, SPF, SP1: commentava;
habitos
SP, SPF, SP1: glotoneria
273 Trochado: diz-se do cano de espingarda feito de uma fita de aço espiralada.
405
195
mas dos compatriotas, que dos estrangeiros nada tinha
que notar de mal: eram sempre honestos, temperantes,
diligentes e dignos de estima. Marco, por exemplo,
dizia na sua linguagem arrevesada, era um homem às
direitas, de pouca conversa, sério e trabalhador, e
tinha uma mulher que era uma fera no trabalho; mas...
SP, SPF, SP1: deligentes
SP, SPF, SP1: as direitas
(Emendou-se acrescentando
crase.); serio
SP: fera, SPF, SP1: FÉRA
200
205
210
Tomás estacou nessa reticência e, sorrindo de
um modo dúbio, aproveitou-se da circunstância de
avistar um mutum pousado no galho de uma árvore
para disfarçar o seu propósito deixando Genaro à
espera da solução daquele “mas” que o camarada
pronunciara “mais” quando, atirada a bonita caça,
pudesse Tomás continuar a conversação. Entretanto, o
tiro explodiu, o mutum274 caiu e foi apanhado e o
camarada, depois de carregar a arma de novo, dispôs-
se a seguir caminho pelo seio da floresta. É bem certo
que o astucioso camarada percebeu a ansiedade do
jovem napolitano, claramente manifesta no seu
semblante triste e pálido, o que examinou logo
olhando o companheiro de esguelha; mas
propositalmente fez-se esquecido.
SP, SPF, SP1: Thomaz; n’essa
reticeencia
SP, SPF, SP1: dubio;
circumstancia
SP, SPF, SP1: arvore
SP, SPF, SP1: proposito; Gennaro;
á espera
SP, SPF, SP1: daquelle
SP, SPF, SP1: podésse; Thomaz;
Entretanto (,)
SP, SPF, SP1: cahiu
SP, SPF, SP1: dispoz-se
SP, SPF, SP1: anciedade; joven
SP, SPF, SP1: pallido
215
Aquele “mas” soava aos ouvidos de Genaro
como um dobre de finados, importuno, infernal que o
SP, SPF, SP1: Aquelle; Gennaro
274 Mutum: nome que se dá a diversas aves galináceas, família dos cracídeos, que habitam as matas do Brasil, geralmente em pequenos grupos.
406
220
225
amargurava. Temia que aquela reticência de Tomás,
que não sabia proposital e insidiosa, contivesse
alguma argüição contra a sua Giudita, ou, antes, ao
seu entranhado amor por ela. Para ele a família de
Marco era como um sacrário no qual guardava o seu
ídolo resplendente na sua beleza, nas suas virtudes,
no seu todo somático de uma formosura encantadora
e no perfume trescalante de uma alma pura e bem
formada; tudo transparecendo em um sorriso que para
ele era uma aurora de venturas.
SP, SPF, SP1: aquella; reticencia;
Thomaz
SP, SPF, SP1: Giuditta
SP, SPF, SP1: ella; elle; familia
SP, SPF, SP1: sacrario
SP, SPF, SP1: idolo; belleza
SP, SPF, SP1: sommatico
SP, SPF, SP1: elle
230
235
240
Tomás havia se referido com seus gabos ao
velho Marco e à sua esposa esbarrando naquele “mas”
que decerto ia ter à única pessoa restante daquela
família, justamente sua querida Giudita, por quem o
jovem ragazzo daria a sua vida se tanto fosse preciso à
sua felicidade. Por fim, quando já haviam caminhado
alguns passos pela floresta, Genaro não se pôde conter
e lembrou ao camarada que não havia terminado o que
ia dizendo havia pouco sobre a família de Marco.
Tomás fez-se esquecido. Não se lembrava do que
dissera. A caçada do mutum distraiu-o. Genaro
avivou-lhe a memória referindo-lhe palavra por
palavra o que ele dissera até o “mas”. Era uma bobage
– disse Tomás, que lhe não convinha dizer. Estava
SP, SPF, SP1: Thomaz
SP, SPF, SP1: á sua; n’aquelle
SP, SPF, SP1: á unica; daquella
SP, SPF, SP1: familia; Giuditta
SP, SPF, SP1: joven; RAGAZZO;
si; á sua
SP, SPF, SP1: Porfim
SP, SPF, SP1: Gennaro; pôde-se
(Emenou-se ênclise para
próclise.)
SP, SPF, SP1: familia; Thomaz
SP, SPF, SP1: distrahiu-o.
Gennaro
SP, SPF, SP1: memoria
SP, SPF, SP1: elle; BOBAGE
SP, SPF, SP1: Thomaz
407
arrependido de ter começado aquilo, porque se tratava
de melindres de família.
SP, SPF, SP1: aquillo
SP, SPF, SP1: familia
245
250
Genaro ainda mais se alvoroçou. Não lhe
restava mais dúvida de que se tratava da sua querida,
segundo já pensava. Apressou-se, embargou o andar
do companheiro e, com ar de súplica, pediu-lhe com
instância que explicasse quais eram esses melindres.
Disse-lhe que se tratava de compatriotas seus, quase
parentes, a quem tinha direito de exigir que o outro lhe
dissesse francamente o que havia. Muita vez tratava-se
de uma calúnia, e ele Genaro estava pronto, fosse em
que terreno fosse, a defender tão honrada gente.
SP, SPF, SP1: Gennaro;
alvoraçou-se (Emendou-se ênclise
para próclise); duvida
SP, SPF, SP1: supplica
SP, SPF, SP1: instancia; quaes
SP, SPF, SP1: quasi
SP, SPF, SP1: calumnia; elle;
Gennaro; prompto
255
–Eu não sou home de calunas, Jinuaro –
reclamou Tomás enfadando-se, – nem arreceio seus
arranco.
SP: home; calumnas, Jinuaro;
Thomaz; arreceio, SPF, SP1:
HOME de CALUMNAS,
JINUARO; Thomaz enfadando-
se(,); ARRECEIO
–Não digo você. Pode ter ouvido de outra
pessoa...
–Eu vi cum estes óio qui a terra tem de cumê. SP: cum estes óio qui; cumê, SPF,
SP1: CUM ESTES ÓIO QUI;
CUMÊ
–Viu o que?
260 –Ocê guarda segredo? SP: Ocê, SPF, SP1: OCÊ
–Guardo – respondeu Genaro depois de
alguma hesitação.
SP, SPF, SP1: Gennaro
–É a mocinha. Eu vi ela namorando. SP: ella, SPF, SP1: ELLA
408
–Giudita?! SP, SPF, SP1: Giuditta
265 –Sim.
–Com quem?
–Com patrão qui vai todo domingo passeá na
casa de seu Marco.
SP: qui; vae; passeá, SPF, SP1:
QUI; vae; PASSEÁ
–Qual deles? SP, SPF, SP1: d’elles
270
–Vou dizê, mais ocê me prometeu guardá
segredo. É o meu patrão, aquele home gordo, branco e
rosado.
SP: dizê, mais ocê; guardá, home,
SPF, SP1: DIZÊ, MAIS OCÊ;
prometteu; GUARDÁ, aquelle;
HOME
–Senhor Joan Lope?
–Tá e quá. SP: Tá; Quá, SPF, SP1: TÁ;
QUÁ.
275
–É... –Genaro ia dizer “é mentira” mas
conteve-se. Estava escarlate de indignação.
SP, SPF, SP1: Gennaro
–É o que? – perguntou Tomás com ar
ameaçador.
SP, SPF, SP1: Thomaz
–É impossível. SP, SPF, SP1: imposivel
280
–Impussive é Deus pecá! Jinuaro, ocê é
menino pra mim. ´Tá cego. Abre os óio, qui moça é
pórva qui ´ta junto de fogo! despois qui tem ocê
co’isso? Se dissesse qui a moça era sua irmã, inda vá.
SP: Impussive; Deus peccá!
Jinuaro; p’ra; ´tá; abre os óio qui;
pórva qui ´ta; despois qui; ocê
co’isso; dissesse qui; irmã, inda
vá., SPF, SP1: IMPUSSIVE;
DEUS PECCÁ! JINUARO;
P’RA; ´TÁ; ABRE OS ÓIO QUI;
PÓRVA QUI ´TA; DESPOIS
QUI; OCÊ co’isso; DISSESSE
QUI; IRMÃ, INDA VÁ.
285
Tomás jogava verdes como diz o vulgo; mas
Genaro, por forma alguma, revelaria a sua inclinação
amorosa. Alegou que se tratava de uma sua
SP, SPF, SP1: Thomaz
SP, SPF, SP1: Gennaro
SP, SPF, SP1: Allegou
409
290
295
compatriota cujos pais muito lhe mereciam. Tomás
mostrou-se bondoso e conselheiro. Que toda moça
namora – disse, – isso em nada prejudica a sua
reputação. Elas namoram por inocência, e mesmo para
irem escolhendo quem lhes agrade, até acertarem. Os
culpados são os homens, que namoram por malícia. O
João, por exemplo, obrava muito mal em estar fazendo
isso. Era um homem casado, e está-se vendo que
queria era perder a pobre mocinha.
SP, SPF, SP1: Paes; Thomaz
SP, SPF, SP1: namora, - (,-)
SP, SPF, SP1: Ellas; innocencia
SP, SPF, SP1: malicia
300
Nesses termos continuou o miserável a açular
o ciúme do jovem napolitano e a soprar no seu ânimo
um ódio entranhado contra João, o que conseguia para
desempenho do seu compromisso firmado com Abílio.
Nesse dia foi todo o trabalho de Tomás incitar o
ciúme e o rancor de Genaro, que o ouvia tristemente e
taciturno acreditando nas calúnias e infames mentiras
do seu falso amigo.
SP, SPF, SP1: N’esses; miseravel
SP, SPF, SP1: ciume; joven;
animo
SP, SPF, SP1: odio
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: N’esse; Thomaz
SP, SPF, SP1: ciume; Gennaro
SP, SPF, SP1: calumnias
305
310
No dia seguinte, convencido de que Genaro
estava preparado como era seu desejo; pois chegou a
manifestar por palavras amargas e impregnadas o
desejo de uma vingança na altura da ofensa que
supunha ter recebido de João, Tomás tomou a
deliberação de abandonar o serviço que fazia na
empreitada e procurar o seu infame patrão a dar conta
SP, SPF, SP1: Gennaro
SP: o seu
SP, SPF, SP1: offensa
SP, SPF, SP1: suppunha; Thomaz
410
315
320
do êxito que conseguiu. Sabia ele que encontraria
naquela data mais ou menos, aquele de quem recebera
a abjeta incumbência. Antes, porém, recomendou
muito a Genaro que não envolvesse o seu nome nesse
negócio, pois João Lopes era seu patrão e podia fazer-
lhe mal. Apresentando-se no terceiro dia a João e
Calisto, Tomás disse-lhes, com a cara a mais
compungida que pôde arranjar, que havia recebido
recado de um irmão que estava à morte e chamava-o
com pressa. Recebeu as sua jornas e viajou.
SP, SPF, SP1: exito; elle
SP, SPF, SP1: naquella; aquelle
SP, SPF, SP1: abjecta;
incumbencia; porem
recommendou; Gennaro; n’esse
SP, SPF, SP1: negocio
SP, SPF, SP1: Calixto; Thomaz;
disse-lhes (,)
SP, SPF, SP1: á morte
XVIII
5
10
15
Decorrido um mês mais ou menos da
entrevista de Aristides com seu pai, recebeu este a
resposta da carta dirigida a Serafim. O velho
professor não esteve mais por meias medidas e
escreveu, em laudas e laudas, um relatório
circunstanciando de tudo quanto Abílio tinha feito
contra Maria e o seu esposo ausente. Começou
lembrando a Oliveira a carta falsa em nome da noiva
de João e seguiu noticiando as outras falsificações
que o perverso fez depois das letras passadas por
João. Não se esqueceu de relatar as perseguições
SP, SPF, SP1: mes
SP, SPF, SP1: pae
SP, SPF, SP1:
Seraphim
SP, SPF, SP1:
relatorio; circumstanciando
SP, SPF, SP1: Abilio
SPF, SP1: outras
falcificação (emendou-se.);
SP, SPF, SP1: lettras
SP, SPF, SP1:
pratica; hypocrita
SP, SPF, SP1:
riciculisou
411
20
25
30
35
40
postas em prática pelo hipócrita mancebo já
procurando seduzir a esposa de João inclusive o
desfecho que o ridicularizou e encheu de rancor, no
qual figuraram a negra velha e os dois meeiros, já
incendiando cercas e culturas, arrancando um marco
e apropriando-se, mediante uma avença, de trecho de
terra que não era seu. Historiou o caso do Roberto,
propositalmente recomendado por ele com um fim
maldoso, como ficou demonstrado afinal com o seu
despropósito e retirada para a casa de Abílio, onde
achou acolhimento bondoso e de onde tentou contra a
vida dele professor. Nada ficou por narrar do que já
se acha inteirado o leitor nos capítulos anteriores.
Franco e leal, deu a razão de não ter há mais tempo
desvendado as patifarias de Abílio. É que não
supunha que ele fosse capaz de chegar a tanto, e
esperava regenerá-lo, pois ia francamente reclamar e
era acolhido com benevolência e respeito achando
sempre um meio de justificar-se ou lançar a culpa a
outro. Os últimos atos de Abílio a contar da frustrada
tentativa de sedução degeneraram o professor, como
informava, de pôr o seu antigo discípulo no bom
caminho. Por isso tomou medidas rigorosas no
sentido de garantir o lar de João e o alvitre de tudo
SP, SPF, SP1: dous
SP, SPF, SP1:
recommendado; elle
SP, SPF, SP1:
desproposito; Abilio
SP, SPF, SP1: d’elle
SP, SPF, SP1:
capitulos
SP, SPF, SP1: ha
SP, SPF, SP1:
Abilio; suppunha
SP, SPF, SP1: elle
SP, SPF, SP1:
regeneral-o,
SP, SPF, SP1:
benevolencia
SP, SPF, SP1:
ultimos; actos; Abilio
SP, SPF, SP1:
seducção
SP, SPF, SP1:
discipulo
SP, SPF, SP1: d’essa
SP, SPF, SP1:
delberação,
SP, SPF, SP1:
desapparecido
SP, SPF, SP1: la; S.
Paulo
412
revelar aos interessados, vindo a carta de Oliveira ao
encontro dessa sua deliberação, fazendo-lhe crer que
o negregado mancebo, que havia desaparecido e
soube-se ter ido para o Estado de São Paulo, por lá
estaria fazendo das suas.
45
50
55
60
65
Terminada a leitura da extensa missiva do
professor, Oliveira conservou-se por horas como
assombrado diante de tanta perversidade do infame a
quem ele fizera questão de dar à sua filha, a criatura a
quem mais amava neste mundo, como esposo.
Chegara a agastar-se com ela por que o repudiou e
pela primeira vez, ferira seu coração sensível e
amorável fazendo-a sofrer e derramar tantas
lágrimas. Martirizara-a, fora um déspota, procurando
constrangê-la a aceitar um companheiro perpétuo que
ela repelia com que instintivamente. Consentira no
seu casamento com o preferido, mas muito a
contragosto, por não magoá-la mais. Entretanto,
dando o seu assenso, considerou-a desarrazoada,275
ficou despeitado e ainda feriu-a enxotando Pulquéria,
a mãe velha, como a um cão, atribuindo-lhe o enredo
quando a pobre preta era a dedicação incondicional,
era a mãe toda ternura e extremos que Maria
conheceu. Maria salvara-se felizmente, mas ele
SP, SPF, SP1: deante
SP, SPF, SP1: elle;
ásua
SP, SPF, SP1:
creatura; n’este
SP, SPF, SP1: ella
SP, SPF, SP1:
sensivel
SP, SPF, SP1:
amoravel; sofffer; lagrimas
SP, SP1, SPF
Martyrisara-a(,) foi; despota;
constrangil-a; acceitar; ella;
repellia; instinctivamente.
SP, SPF, SP1:
magoal-a
SP, SPF, SP1:
Pulcheria
SP, SPF, SP1:
attribuindo-lhe
SP, SPF, SP1: elle
SP, SPF, SP1:
Virginia; comsigo; Virginia
275 Desarrazoada: não razoável, injusta.
413
70
conheceu. Maria salvara-se felizmente, mas ele
abandonou a sua terra e deixou-a privada dos seus
carinhos, ainda por despeito, trazendo Virgínia
consigo, Virgínia a prostituta intrigante e vil que
conseguiu dominá-lo para afinal desprezá-lo em São
Paulo fugindo com um sujeito de sua estofa. Foi bem
castigado; mas o remorso, como a carcoma, corroía-
lhe o coração, agora ainda mais, quando descobria as
péssimas qualidades daquele que seria hoje uma
vergonha para a sua querida Maria; que faria a sua
infelicidade. Oh! como seria triste à sua filha querida
ver-se ligada perpetuamente a um falsário, hipócrita e
infame! A esposa de João preferira para si o modesto
lavrador, que não dispunha da invejável fortuna do
filho único de dona Úrsula, e o seu lar foi abençoado
por Deus; pois ali, naquele resumido paraíso, reinava
a tranqüilidade, a paz, a harmonia e a virtude.
SP, SPF, SP1:
dominal-o; desprezal-o
SP, SPF, SP1: S.
Paulo
SP, SPF, SP1:
pessimas, d’aquelle
SP, SPF, SP1: á sua
SP, SPF, SP1:
falsario;
SP, SPF, SP1:
hypocrita
SP, SPF, SP1:
invejavel
SP, SPF, SP1: unico;
d. Ursula,
SP, SPF, SP1: alli;
n’aquelle
SP, SPF, SP1:
paraiso, tranquillidade
75
80
Depois desses tristes pensamentos que tanto
o afligiam, Oliveira fez um esforço e, como se
acordasse de um sonho mau, caiu na realidade do
presente. Lembrou-se então que lhe era preciso
avistar com Aristides, não só porque não convinha
enviar-lhe a carta, que poderia cair nas mãos do
falsário e inimigo – e o pobre homem via agora
SP, SPF, SP1:
d’esses
SP, SPF, SP1:
afligiam,
SP, SPF, SP1: máu;
cahiu
SP, SPF, SP1: cahir;
falsario
414
85
falsário e inimigo – e o pobre homem via agora
emboscadas por toda a parte – como por ser-lhe
necessário combinar o que deviam fazer. Era-lhe
indispensável ir à fazenda do Coronel Paulino. Não
lhe convindo apresentar-se ao fazendeiro como um
forreca276 que fosse envergonhar a seu filho, Oliveira
desencavou do fundo do baú, os seus mais finos e
vistosos indumentos277 e preparou-se para seguir no
dia imediato.
SP, SPF, SP1:
necessario
SP, SPF, SP1:
indispensavel; á fazenda
SP, SPF, SP1: bahú
SP, SPF, SP1:
immediato
90
95
100
O sítio de Oliveira era muito próximo de
uma estação intermédia da estação de ferro de
Bebedouro a Jabuticabal a encontrar-se com a que, de
Araraquara, segue rumo de Pitangueiras. Informado
por Aristides do itinerário que este seguia vindo ao
seu sítio, Oliveira, antes da alcançar o
entroncamento, apeou do trem e tomou rumo da
fazenda do coronel Paulino. Levava uma mala de
mão e ia bem trajado, mas apresentou-se a pé diante
da morada do coronel. Estava Paulino no seu
varandim278 à tarde, conforme o seu hábito já nosso
conhecido, quando se lhe apresentou o nosso
viajante.
SP, SPF, SP1: sitio;
proximo
SP, SPF, SP1:
intermedia
SP, SPF, SP1:
ittinerario; sitio
SP, SPF, SP1: á
tarde
SP, SPF, SP1: habito
276 Forreca: João-ninguém. 277 Indumento: roupa. 278 Varandim: varanda estreita.
415
105
110
O coronel estranharia o modo de viajar de
Oliveira, se muitos outros viajantes, e mesmo ele,
não já tivessem feito o trajeto entre a sua morada e a
linha férrea, na distância de cerca de dois
quilômetros, nas condições em que o fazia este
visitante, cujo aspecto, modos e trajar fizeram-lhe
crer que se tratava de um cavalheiro distinto.
Convidou-o a subir dispensou-lhe a delicadeza de vir
ao seu encontro descendo muitos degraus da escada.
Depois da troca dos comprimentos, Oliveira pediu
desculpar-lhe o fazendeiro ver-se constrangido a
apresentar-se por si mesmo, e ofereceu-lhe um
cartão-porcelana com o seu nome.
SP, SPF, SP1:
extranharia
SP, SPF, SP1: si;
elle
SP, SPF, SP1:
trajecto
SP, SPF, SP1: ferrea;
distancia; dous; SP1:
kijomentros; SPF: kilometros
SP, SPF, SP1:
offereceu-lhe
115
–Oh! É o pai de meu secretário! – exclamou
Paulino. – Muito folgo em conhecê-lo. Seja bem
vindo. Esta casa é sua.
SP, SPF, SP1: pae;
secretario
SP, SPF, SP1:
conhecel-o
–Oh! Coronel! É muita bondade. Sou-lhe
muito grato.
–Decerto veio em procura do seu filho.
120
–Não só, coronel. Em primeiro lugar
desejava conhecer a vossa senhoria, de quem meu
filho tem feito ótimas referências. É certo muito me
agradaria encontrar o meu Aristides...
SP, SPF, SP1:
optimas; referencias
–Diga nosso, meu amigo. O seu Aristides é
SP, SPF, SP1:
l b i id l
416
125 uma pérola. Peço-lhe o obséquio de considerá-lo meu
também, – observou Paulino sorrindo. – Infelizmente
o nosso Aristides viajou.
perola; obsequio; consideral-o
SP, SPF, SP1:
tambem
Assim conversando, o coronel sobraçou o
hóspede familiarmente e foi conduzindo-o para a sala
das visitas.
SP, SPF, SP1:
hospede
130
–Pediu-me uma licença de dois a três dias –
continuou Paulino – para ir a Ribeirão Preto. Deve
chegar amanhã. O senhor espera-lo-á em nossa casa;
dá-me muito prazer.
SP, SPF, SP1: dous;
tres
SP, SPF, SP1:
esperal-o-a
135
–É muito generoso, coronel. Não sei como
lhe agradecer tanta gentileza e apreciação que faz de
meu filho.
SP, SPF, SP1:
agradecer-lhe (Emendou-se
ênclise para próclise.)
140
–Quanto à apreciação que faço do nosso
Aristides, nada mais é que justiça; não tem que me
agradecer. Quanto à minha generosidade, creia que
entra nela alguma coisa de egoísmo.
SP, SPF, SP1: a
apreciação
SP, SPF, SP1: á
minha
SP, SPF, SP1: n’ella:
cousa; egoismo
A esse tempo instalavam-se na cômoda e
luxuosa sala.
SP, SPF, SP1:
installavam-se; commoda
145
–Egoísmo, coronel?! – indagou Oliveira
ganhando familiaridade. – São inconciliáveis uma
com o outro.
SP, SPF, SP1: -
Egoismo,
SP, SPF, SP1:
inconciliaveis
–Nem sempre, meu caro amigo. Eu me
explico. Dou o cavaco por uma prosa; sou um
SP, SPF, SP1:
d d
417
150
tagarela quando encontro pessoas que condescendam
com esse meu vício, e sei que o senhor Oliveira é
paciente, não só por informações de Aristides, como
pelo que vou descobrindo nos seus modos. Quando
pilho um visitante como o senhor, não mais desejo
soltá-lo. Vai, portanto, sofrer caceteação.
condecendam
SP, SPF, SP1: vicio
SP, SPF, SP1: soltal-
o; Vae
SP, SPF, SP1:
soffrer
155
–Pelo contrário, coronel. Vou descobrindo
que me deleitarei com a sua conversação.
SP, SPF, SP1:
contrario
160
–Veremos – contestou o coronel sorrindo. –
O senhor precisa de descanso, porque vem de viagem
um pouco longa, e eu já estou a amassá-lo apesar de
conhecer isso. Tratemos, antes da maior maçada279
que lhe preparo, do que convém à sua comodidade e
descanso.
SP, SPF, SP1:
descanço,
SP, SPF, SP1:
amassal-o; apezar
SP, SPF, SP1:
convem; commodidade; á sua
SP, SPF, SP1:
descanço
165
170
Oliveira teve um trato fidalgo ao qual nada
faltou das coisas as mais insignificantes. Depois do
banho, o jantar, sendo o pai de Aristides apresentado
à família do coronel ao penetrar a sala destinada a
esse fim. Após a refeição, o hospedeiro convidou o
hóspede a dar um ligeiro passeio pelo vasto terreiro
“para se fazer o quilo”280 como disse o coronel e,
quando o edifício foi rapidamente iluminado a luz
elétrica em todos os seus compartimentos, voltaram
SP, SPF, SP1:
cousas
SP, SPF, SP1: banho
,;pae
SP, SPF, SP1: a
familia
SP, SPF, SP1: chylo;
SP, SPF, SP1:
edificio; illuminado; eletrica
SP, SPF, SP1:
prosa(,)
279 Maçada: amolação. 280 Fazer o quilo: fazer a digestão.
418
ao salão “para a prosa”, como informou Paulino.
175
180
185
190
O coronel Paulino era tão pachorrento como
bondoso. Tinha muita leitura, especialmente sobre
assuntos agrícolas e econômicos e, como a princípio
dissera, dava o cavaco por uma boa prosa, fazendo os
gastos dela de um modo agradável e atraente.
Oliveira não se mostrou alheio aos assuntos tratados
convencendo ao seu hospedeiro que não tinha diante
de si um ignorante tabaréu. No correr da conversação
Oliveira foi informado de que Aristides leu em uma
das gazetas de Ribeirão Preto que um certo Rufino,
inculcando-se de homem de bem, não passava de um
patife disfarçado. Essa descoberta foi um escândalo
que deu brado, a polícia agiu e a opinião alvoroçou-
se porque o tal capitão freqüentava a alta sociedade e
era considerado tal como se inculcava. O secretário
mostrou-se interessado pelo caso dizendo que
desejava conhecer o escandaloso fato, pois tinha
notícia do sujeito e desejava conhecê-lo por ter com
ele contas a ajustar.
SP, SPF, SP1:
assumptos; agricolas;
economicos; principio
SP, SPF, SP1: d’ella;
agradavel; attrahente
SP, SPF, SP1:
assumptos
SP, SPF, SP1: deante
SP, SPF, SP1:
tabaréo
SP, SPF, SP1:
escandalo
SP, SPF, SP1:
policia
SP, SPF, SP1:
frequentava
SP, SPF, SP1:
secretario
SP, SPF, SP1: facto;
noticia
SP, SPF, SP1:
conhecel-o; elle
195
O leitor bem avalia qual a surpresa que essa
notícia causa a Oliveira. Capitão Rufino! Era
justamente a quem ele e Aristides procuravam
descobrir por ser quem figurava em primeiro lugar no
SP, SPF, SP1:
surpreza
SP, SPF, SP1:
noticia
SP, SPF, SP1: elle
SP, SPF, SP1: logar
419
200
205
boato que corria a respeito da esposa de João.
Pensando assim, Oliveira não deu ao coronel a menor
demonstração do interesse que ligava ao fato, porque
lhe seria preciso revelar a vergonha que envolvia o
nome de sua filha e os créditos de sua família. Ao
mesmo tempo sentiu-se desopresso dos cuidados que
afligiam desde que recebeu a carta anônima, porque,
sendo o capitão Rufino um patife que movia a polícia
contra si, é claro que seria capaz de armar uma
calúnia contra Maria.
SP, SPF, SP1:
ínteresse; facto
SP, SPF, SP1:
creditos; familia
SP, SPF, SP1:
desoppresso; affligiam; anoyma
SP, SPF, SP1:
policia
SP, SPF, SP1:
calunia
210
215
220
Quem seria, entretanto, esse capitão Rufino?
Disfarçando-se, como informava a notícia, é claro
que não dava seu próprio nome. Que interesse teria
ele em conspurcar o nome da esposa honesta e digna?
O professor Serafim, que era homem de bem, deixava
claro na sua carta que era Abílio o maior perseguidor
de Maria e João, e que ele havia desaparecido
constatando-lhe ter viajado para São Paulo. Seria ele
o fingido capitão Rufino? Esses pensamentos
passaram rapidamente pelo espírito de Oliveira que,
na sua abstração, ouvia, mais sem lhe prestar atenção,
o que ia mais dizendo o coronel sobre outros
assuntos. Resolveu por fim o pobre pai esperar que
Aristides tudo esclarecesse, pois a sua viagem tinha
SP, SPF, SP1:
noticia
SP, SPF, SP1:
proprio; elle
SP, SPF, SP1:
Seraphim
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: elle;
desapparecido
SP, SPF, SP1: S.
Paulo; elle
SP, SPF, SP1:
espirito
SP, SPF, SP1:
abstracção; attenção;
SP, SPF, SP1:
assumptos
SP, SPF, SP1:
porfim; pae
420
esse empenho.
225
Aristides não chegou nesse dia, mas no outro
logo cedo. O coronel Paulino, que, como dissera,
havia já prosado muito com Oliveira, achou
conveniente deixá-lo só com Aristides. Decerto
tinham de tratar de negócios seus particulares,
pensou: portanto, discretamente pretextou
necessidade de sair por alguns instantes e retirou-se.
SP, SPF, SP1: n’esse
SP, SPF, SP1: ja
SP, SPF, SP1:
deixal-o; negocios
SP, SPF, SP1: sahir
230
–Fiquem a vontade, meus amigos – disse o
coronel. – Não quero privá-los de confabularem
livremente. Vou ali, dar-me-ão licença, e não me
demorarei. Aristides, leva teu pai para o pavilhão; lá
estarão mais a cômodo.
SP, SPF, SP1:
prival-os:
SP, SPF, SP1: alli
SP, SPF, SP1: pae
SP, SPF, SP1:
commodo
235
O pavilhão a que se referia o coronel, ficava
em um dos ângulos da vasta residência. Ali se achava
Aristides comodamente alojado em diversos
compartimentos onde se achavam instalados o
dormitório, o arquivo, uma regular biblioteca e a
quadra onde Aristides trabalhava.
SP, SPF, SP1:
angulos; residencia; Alli
SP, SPF, SP1:
commodamente
SP, SPF, SP1:
installados
SP, SPF, SP1:
dormitorio; archivo; bibliotheca
240
Uma vez lá, Oliveira começou por dar ao
filho a ler a resposta de Serafim, a qual veio trazer
pessoalmente temendo se desencaminhasse. Aristides
inteirado de tudo quanto relatava o professor, tornou-
se rapidamente de júbilo.
SP, SPF, SP1: la
SP, SPF, SP1:
Seraphim
SP, SPF, SP1: jubilo
421
245
250
–Está desvendado o mistério, meu pai. O
miserável falsificador, o infame caluniador, o
incansável perseguidor de Maria; enfim o capitão
Rufino, é o mesmo Abílio.
E passou a referir o que deu em Ribeirão
Preto como, por nossa conta, descreveremos, para
conhecimento do leitor, no capítulo seguinte, não se
esquecendo de informar que João Lopes se achava na
fazenda do coronel Paulino, com quem havia
contratado uma empreitada de parceria com outro
baiano, homem honesto e experiente.
SP, SPF, SP1:
mysterio; pae.
SP, SPF, SP1:
miseravel; calumniador;
incançavel; emfim
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1:
capitulo
SP, SPF, SP1:
contractado
SP, SPF, SP1:
bahiano
XIX
0
Já havia muitos meses que a polícia procurava
pôr a mão em três ou quatro burlões que apareciam ora
nesta, ora naquela cidade paulista ou mineira
praticando atos que, a princípio, causaram
desconfiança, depois uma tal ou qual certeza de que se
tratava de elementos sociais perigosíssimos. Um deles
dava-se como camarada ou jornaleiro e, como tal, não
tinha necessidade de disfarçar-se em homem da alta
sociedade; os outros, porém, afetavam modos e atos de
SP, SPF, SP1: Ja;
policia
SP, SPF, SP1: tres
SP, SPF, SP1:
apparecia
SP, SPF, SP1: n’esta;
n’aquella
SP, SPF, SP1: actos ;
principio
SP, SPF, SP1: sociaes;
perigosissimos; d’elles
SP, SPF, SP1: porem;
affectavam; actos
422
sociedade; os outros, porém, afetavam modos e atos de
gente de alto bordo281; menos um que, se descia à
condição de humilde trabalhador a jornal, não se
propunha à alta posição social: fingia-se profissional
de condição humilde, mas decente.
SP, SPF, SP1: que (,);
si; á condição
SP, SPF, SP1: á alta
5
0
5
0
Notaram as autoridades policiais que havia
uma certa ligação entre esses sujeitos, nunca, porém
encontrados todos juntos em grupo, mas aqui se
juntavam dois, ali também um par, já outros, acolá no
mesmo jeito, sempre havendo troca e mudança,
parecendo haver uma prévia combinação que os
isentassem da desconfiança de quem os pudesse
perseguir. Em Uberaba o camarada cometeu um crime
de vulto, tentando de emboscada contra a vida de um
viajante para roubar e deixando a vítima ferida
gravemente. Verificado o crime depois de sindicâncias,
descoberto o autor, não foi capturado porque fugiu.
Das sindicâncias policiais evidenciou-se que o
criminoso estivera a confabular diversas vezes com o
tipo que acima demos como disfarçado em
profissional, não sendo, porém, apurado que essa
confabulação fosse ligada ao crime, mas que o
profissional suposto era um “indesejável” como hoje se
SP, SPF, SP1:
policiaes
SP, SPF, SP1: porem
SP, SPF, SP1:
juntavam-se
SP, SPF, SP1: dous;
alli; tambem
SP, SPF, SP1: geito, ;
mudança(,)
SP, SPF, SP1: previa
SP, SPF, SP1:
insentasse; podésse; commetteu
SP, SPF, SP1: victima
SP, SPF, SP1:
syndicancias,
SP, SPF, SP1:
syndicancias; policiaes; typo
SP, SPF, SP1: porem,
SP, SPF, SP1:
supposto; “indesejavel”
281 Alto bordo: de alta categoria.
423
diz.
5
0
Mais tarde esse indesejável foi visto várias
vezes em amistosa confabulação com um certo coronel
metido a ricaço, que se aproveitava na sociedade bem
aparelhado, com indumentos finíssimos e jóias de
valor. Isto levantou desconfianças em Ribeirão Preto,
onde se deram os repetidos encontros dos dois, que
segredavam, para se calarem ou mudar de conversa à
aproximação de pessoas estranhas. Chegou-se a
descobrir que o coronel era um mistificador e, talvez,
um desses larápios que preparam contos de vigário.
SP, SPF, SP1:
indesejavel; varias
SP, SPF, SP1: mettido
SP, SPF, SP1:
apparelhado; finissimos; joias
SP, SPF, SP1:
desconfiaças
SP, SPF, SP1: dous,
SP, SPF, SP1: á
approximação
SP, SPF, SP1:
extranhas
SP, SPF, SP1:
mystificador
SP, SPF, SP1: d’esses;
larapios; Vigario
5
0
5
Já a polícia, prevenida de diversos pontos,
informada dos sinais desses sujeitos, havia
estabelecido com as maiores precauções uma teia, que
ramificava por muitas cidades e povoados mineiros e
paulistas, a fim de empolgar esses miseráveis
exploradores que, de um dia para outro, desapareciam
do cenário onde operavam, às vezes deixando atrás de
si um rastro da sua passagem; quando apareceu o
capitão Rufino, um negociante ambulante de grosso
trato, homem tratável e delicado de maneiras, que foi
logo captando a confiança e amizade das pessoas de
consideração e de destaque no meio social.
SP, SPF, SP1: ja;
policia
SP, SPF, SP1: signaes;
d’esses
SP, SPF, SP1: afim de;
miseraveis
SP, SPF, SP1:
desappareciam;
SP, SPF, SP1: cenario;
ás vezes; atraz
SP, SPF, SP1:
appareceu
SP, SPF, SP1: tratavel
A princípio o capitão Rufino não causou SP, SPF, SP1: a
principio
424
0
desconfiança nos meios que freqüentava, tão lisos
eram os negócios que realizava, e tão delicado era o
seu trato, denunciando ser pessoa de fina educação e
estirpe nobre; mas alguém da polícia viu-o algumas
vezes conversando familiarmente com o camarada, que
já se suspeitava ser o criminoso de Uberaba, restando
virem informações complementares que foram pedidas
para o teatro do crime.
SP, SPF, SP1:
frequentava
SP, SPF, SP1:
negocios; realisava
SP, SPF, SP1: alguem;
policia
SP, SPF, SP1: ja
SP, SPF, SP1: theatro
5
0
O leitor talvez já desconfiasse quem eram
esses burlões; mas, em todo o caso, informamos que o
coronel era o Norberto que em Ribeirão Preto, a
serviço de Abílio, lançara o boato da queda de dona
Maria no charco da prostituição, ferindo tão
profundamente o coração de Aristides; o profissional
suposto era aquele sujeito a quem ele se dirigia e que
apresentamos como “o cara de fuinha”282, o camarada
criminoso era o Tomás, tomado por Abílio para o seu
serviço, e o capitão Rufino já sabemos quem é.
SP, SPF, SP1: ja
SP, SPF, SP1: Abilio;
d. Maria
SP, SPF, SP1:
supposto; aquelle
SP, SPF, SP1: elle
SP, SPF, SP1:
Thomaz; Abilio
5
0
Abílio, sem que o soubesse, achava-se vigiado
pelo Argos policial, mas confiado na sua posição, não
supunha que o tomassem por reles e miserável
mandrião283. Pois se negociava francamente julgando
com regulares capitais; freqüentava a melhor
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1:
suppunha; réles; miseravel; si
SP, SPF, SP1:
capitaes; si; frequentava; si
SP, SPF, SP1: n’um;
d 282 Cara de fuinha: diz-se daquele que tem a cara muito pequena. 283 Mandrião: indolente.
425
5
sociedade, se era amigo de autoridades e conservava-se
num aprumo que o elevava acima de quem pudesse
duvidar de seu caráter; se era impossível descobrirem
as suas falcatruas que apenas tinham como ponto de
mira João Lopes, um obscuro tabaréu e sua mulher,
que se achava no sertão baiano; como poderiam
considerá-lo um sujeito de baixa extração? Não
avaliava que, como diz o vulgo, “Deus consente, mas
não para sempre”.
podésse
SP, SPF, SP1:
caracter; si; impossivel
SP, SPF, SP1: tabaréo
SP, SPF, SP1:
bahiano; consideral-o; extracção
SP: “Deus consente,
mas não para sempre”. SPF, SP1:
“DEUS CONSENTE, MAS NÃO
PARA SEMPRE”.
0
5
00
05
Achava-se nesse engano, despreocupado,
quando um dia, almoçando em uma pensão de Ribeirão
Preto, notou que tinha diante de si um homem mais ou
menos da sua idade, que o mirava com certo interesse e
curiosidade. Parecia-lhe tê-lo visto algures em tempo
remoto; mas, por mais que procurasse recordar-se
quem era, não conseguia. Aquele olhar incomodava-o
como se despedisse iterativamente flechas aceradas
que vinham ter ao seu íntimo, certeiras,
propositalmente lançadas para mortificá-lo. Sentindo-
se fascinado, como hipnotizado, não podia mover-se
ou fugir como já desejava. De vez em quando Abílio
lançava um olhar de esguelha sobre o seu mudo
cabrião que, sempre a fitá-lo, notava o seu embaraço e
sorria levemente, o que mais o contrariava. Aquilo
SP, SPF, SP1: n’esse;
despreoccupado
SP, SPF, SP1: deante
SP, SPF, SP1: edade,
SP, SPF, SP1: tel-o
SP, SPF, SP1: Aquelle
SP, SPF, SP1: si
SP, SPF, SP1: intimo
SP, SPF, SP1:
mortifical-o
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: cabrion;
fital-o
SP, SPF, SP1: Aquillo
SP, SPF, SP1: intimo
SP, SPF, SP1: ulceras
SP, SPF, SP1: da
acções; más; quasi
426
parecia devassar-lhe o íntimo, ferir profundamente as
úlceras da sua alma ruim e perversa recordando-lhe a
enfiada das ações más que se estendia por quase toda a
sua vida.
Depois de algum tempo, quando estavam
terminar a refeição, o desconhecido dirigiu-lhe a
palavra.
10 –Não não me conhece, Abílio? SP, SPF, SP1: Abilio
–Eu?! – gaguejou o interlocutado. – Vejo-o
pela primeira vez.
15
–Tens a memória fraca! –Se convivemos em
comum por tanto tempo e, ainda, depois, estivemos
juntos! Não te lembras?
SP, SPF, SP1:
memoria; Si
–Eu me chamo Abílio. O cavalheiro está
enganado.
SP, SPF, SP1: Abilio
20
–Inda mais esta! – retrucou o desconhecido
meneando a cabeça num gesto significativo. –Decerto
foste crismado depois que nos vimos a última vez.
–O gracejo é de muito mau gosto, senhor.
25
–Nem por isso. Não é a primeira vez que
lanças mão do anonimato para a realização das tuas
falcatruas. Eu te conheço como as palmas das minhas
mãos.
–O senhor insulta-me! Eu não sou homem de
427
falcatruas.
–A quem o dizes!
30
Um comensal que estava ao lado de Abílio
prestava atenção ao diálogo com visível interesse.
SP, SPF, SP1:
attenção; dialogo; visivel
35
–O cavalheiro está de certo enganado –disse
este com ar malicioso. –Está tratando com o capitão
Rufino, que é um cidadão conceituado e digno de
respeito.
40
–Qual capitão Rufino, qual nada –disse o
primeiro interlocutor. –Este é Abílio sem lhe tirar nem
pôr. Deixou crescer as barbas, não trata da sua bela
cabeleira, mudou de trajos e de nome; mas não pôde
ocultar um sinal que só eu aqui conheço, nem
contrafazer o modo de falar e os antigos cacoetes.
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: bella;
cabelleira
SP, SPF, SP1:
occultar; signal
–O senhor está zombando comigo, e eu não
me presto ao ridículo.
SP, SPF, SP1:
commigo,
SP, SPF, SP1: ridiculo
45
–Como está fino! Serás sempre o moço
orgulhoso daqueles bons tempos quando éramos
condiscípulos no colégio. Não te lembras do teu colega
Felício? Tens então a memória embotada?
SP, SPF, SP1:
da’quelles; eramos
SP, SPF, SP1:
condiscipulos; collegio
SP, SPF, SP1: collega;
memoria
50
–Não estou para aturá-lo! –exclamou Abílio
aparentando agastamento para ocultar a agitação em
que se achava.
SP, SPF, SP1: atural-o;
Abilio
SP, SPF, SP1:
apparentando; occutar
428
–Pois eu estou, Abílio. Sempre fomos bons
companheiros de estroinices. É verdade que dispunhas
de recursos que raros podiam idear.
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: idéar.
55
60
Os circunstantes, ávidos por escândalos como
sempre sucede, foram aglomerando-se em torno dos
dois. O que estava ao lado de Abílio, parecendo mais
interessado pela discussão, prestava atenção ao diálogo
sem mover-se do lugar. O interpelado sentia-se mal
colocado e, se não procurava retirar-se, era por temer
denunciar-se. Pálido, nervoso e suarento, só por um
esforço enorme afetava indiferença. O primeiro
interlocutor continuava a fitá-lo com ar escarninho que
lhe dava superioridade sobre o pretenso capitão
Rufino.
SP, SPF, SP1: avidos;
escandalos
SP, SPF, SP1: dous;
Abilio
SP, SPF, SP1:
attenção; dialogo
SP, SPF, SP1:
interpellado
SP, SPF, SP1:
collocado
SP, SPF, SP1: Pallido
SP, SPF, SP1:
affectava indifferença
SP, SPF, SP1: fital-o
65
–Então não se recorda também o meu Abílio
daquela sua empreitada no Braz? Nela não te valeu a
astúcia, meu velho. O pai não esteve pelos autos, e tu
ficaste marcado na testa com uma cicatriz que nunca se
desfará nem poderás ocultar.
SP, SPF, SP1:
tambem; Abilio
SP, SPF, SP1:
d’aquella; N’ella
SP, SPF, SP1: astucia;
pae
SP, SPF, SP1: occutar.
70
–Coisas de rapaz, não é, senhor Abílio? –
perguntou o vizinho do lado.
SP, SPF, SP1: cousas;
Abilio?
SP, SPF, SP1: visinho
–O senhor também quer meter-se à bulha
comigo? Eu estou acima dessas aleivosias, ouviu? –
vociferou Abílio.
SP, SPF, SP1:
tambem; metter-se
SP, SPF, SP1:
commigo; d’essas
SP, SPF, SP1: Abilio.
429
75
80
–Será sempre o mesmo o Abiliozinho! –disse
o primeiro interlocutor em ar de zombaria. –Estou
vendo nos seus gestos, no seu modo de falar... em tudo
em suma, o meu antigo colega. Quanto mais ele se
mexe, mas se compromete. Para que esse disfarce?
Será para outra empresa como aquela?
SP, SPF, SP1: summa;
collega; elle.
SP, SPF, SP1: meche;
compromette
SP, SPF, SP1:
empreza; aquella
–Defenda-se, senhor Abílio –aconselhou o
vizinho do lado.
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: visinho
–Defender-me de que?
85
–O senhor ali, que o conhece desde os bancos
escolares, dir-lhe-á de que.
SP, SPF, SP1: alli
–Senhores, há aqui um equívoco daquele
senhor que eu nunca vi nem conheço – disse Abílio,
procurando sorrir e mudar de tática. –Eu lhe perdôo a
insistência.
SP, SPF, SP1: ha;
equivoco; da’quelle
SP, SPF, SP1:
Abilio(,)
SP, SPF, SP1: táctica
SP, SPF, SP1:
insistencia.
90
–Que me perdoas, disso estou certo, porque te
convém, Abílio.
SP, SPF, SP1: d’isso
SP, SPF, SP1:
convem; Abilio
–Obriga-me a retirar-me daqui. SP, SPF, SP1: d’aqui.
–Ainda mais isso te conviria, se não fosse uma
autodenúncia.
SP, SPF, SP1: si;
auto-denuncia.
95
–Vou ensinar-lhe um meio de defesa, senhor
Abílio –disse o do seu lado.
SP, SPF, SP1: Abilio
–Agradeço. Não tenho precisão do seu auxílio. SP, SPF, SP1: auxilio
–Olhe que entendo um pouco de rabulice!...
430
–Ofereça os seus serviços a quem lhos pedir. SP, SPF, SP1:
Offereça; lh’os
00
–Em todo o caso, para que eu não fique de
mentiroso, vá este axioma jurídico: testis unus, testis
nullus.284
SP, SPF, SP1:
juridico; SP: testis unus, testis
nullus, SPF, SP1: TESTIS
UNUS, TESTIS NULLUS.
05
–Peço licença ao cavalheiro – disse o primeiro
interlocutor – que eu cá entendo de jurisprudência e
algo capisco do latim. Testemunhas, da verdade do que
afirmo, posso com alguma demora conseguir.
SP, SPF, SP1:
jurisprudencia; SP: capisco, SPF,
SP1: CAPISCO
–Os senhores estão apostados em importunar-
me. – E Abílio fez movimento para levantar-se da
mesa.
SP, SPF, SP1: Abilio
10
–Já agora –disse seriamente o vizinho do lado
de Abílio – o senhor não pode sair daqui sem
justificar-se. – E, pondo a mão no ombro de Abílio, fê-
lo assentar-se.
SP, SPF, SP1: visinho
SP, SPF, SP1: Abilio;
d’aqui
SP, SPF, SP1: Abilio;
fel-o
–Como quem o senhor me quer tolher a
liberdade? – perguntou Abílio caindo sobre o assento.
SP, SPF, SP1: Abilio;
cahindo
15
–Como... cidadão, se quiser – respondeu o
outro. –Depois, apresentarei as minhas credenciais.
SP, SPF, SP1: si;
quizer
SP, SPF, SP1:
credenciaes
20
Abílio empalideceu e no seu semblante
transpareceu um ligeiro indício de terror. Os
circunstantes, notando isso, cercavam de perto os que
SP, SPF, SP1: Abilio;
empallideceu
SP, SPF, SP1: indicio
SP, SPF, SP1:
circumstantes
284 Testis unus, testis nulus: uma testemunha, nenhuma testemunha. A prova testemunhal exige o depoimento de, no mínimo, duas pessoas.
431
25
30
35
dialogavam e, como sucede quase sempre em ocasiões
como esta, farejando um escândalo, atiravam
dictérios285 ao denunciado, aconselhavam-lhe que seria
melhor confessar a sua duplicidade de nomes, muitos
chegavam a incentivá-lo chamando-o de “encapotado”,
– de “cavalheiro de indústria” – de “escroque”286 e a
vítima do tumulto era tocada com as mãos, impelida
para um e outro lado, e em tal estado que, como
fascinado, a nada se opunha e animava aquela gente a
exaltar-se e dar lugar a um rumor que excedia o
ordinário. Os impropérios, as gargalhadas dos que o
apontavam como um cobarde, um réu confesso,
pegado a jeito, o tripudiar dos circunstantes
aumentaram as proporções daquilo de atraírem quem
passava pela rua e que, com maliciosa curiosidade,
penetrava a sala e vinha dar vulto maior ao escândalo.
O dono da casa veio assustado, e procurava debalde
conter aquela gente.
SP, SPF, SP1:
succede; quasi; occasiões
SP, SPF, SP1:
escandalo; dicterios
SP, SPF, SP1:
incentival-o
SP, SPF, SP1:
industria; escroc
SP, SPF, SP1:
victima; impellida
SP, SPF, SP1:
oppunha
SP, SPF, SP1: aquella
SP, SPF, SP1:
ordinario; improperios
SP, SPF, SP1:
augmentaram
SP, SPF, SP1:
d’aquillo; attrahirem
SP, SPF, SP1:
escandalo
SP, SPF, SP1: aquella
–Uma vergonha! – exclamava o pobre homem
arrependendo-se. –Nunca se deu disso em minha casa!
SP, SPF, SP1: d’isso
40
De repente o salão foi invadido pela polícia,
conduzida por uma autoridade qualquer e comandada
um oficial. O silêncio restabeleceu-se, alguns
SP, SPF, SP1: policia
SP, SPF, SP1:
commandada
SP, SP1, SPF official;
silencio
285 Dictério: troça, zombaria. 286 Escroque: indivíduo que se apodera de bens alheios por manobras fraudulentas.
432
45
conseguiram escafeder-se, mas ainda a polícia
conseguiu impedir a fuga de grande número. O sujeito
que estava ao lado de Abílio, erguendo-se do assento,
fez um sinal só percebido pela autoridade policial, que
o reconheceu como um dos seus espias disfarçados.
Todos foram logo intimados a seguirem para o edifício
das audiências, e saíram escoltados.
SP, SPF, SP1: policia
SP, SPF, SP1: numero
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: signal
SP, SPF, SP1: edificio;
audiencias; sahiram
50
55
60
Inquiridas as testemunhas e ouvido Abílio,
nada foi apurado que concretizasse um crime dos
previstos pelo código, mesmo porque Felício, talvez
arrependido de ter dado lugar a tamanho escândalo
contra o seu antigo colega, e compadecido da situação
a que arrastou, muito concorreu para a sua defesa.
Asseverou que tudo aquilo não passou de uma
brincadeira das costumadas do tempo do seu
coleguismo. Que o escândalo se deu por causa da
incompreensão dos demais presentes, que entenderam
de fazer uma assuada a que não se pode pôr termo.
Que, quanto à duplicidade de nomes e disfarces, era
hábito de todos eles colegiais quando empreendiam
qualquer conquista ou rapaziada, perdoável sempre em
estudantes vadios, como era notório.
SP, SPF, SP1: Abilio,
SP, SPF, SP1: codigo;
Felicio
SP, SPF, SP1:
escandalo; collega,
SP, SPF, SP1: aquillo
SP, SPF, SP1:
colleguismo; escandalo;
incoprehensão
SP, SPF, SP1: a
duplicidade(Emendou-se.)
SP, SPF, SP1: habito;
elles; collegiaes; emprehendiam
SP, SPF, SP1:
perdoável
SP, SPF, SP1: notorio
65
A autoridade, embatucada, depois de muito
indagar e estudar o caso, tomou a resolução de deixar
433
70
livre o acusado; mas não satisfeita com o resultado,
recomendou em particular à polícia que tivesse Abílio
sobre uma redobrada vigilância. Este, entretanto,
apesar do relevante serviço que lhe prestou o antigo
condiscípulo, ferido no seu orgulho e maldoso como
sempre foi, guardou profundo rancor contra o seu
defensor e salvador e jurava consigo vingar-se.
SP, SPF, SP1:
recommendou; á policia; Abilio
SP, SPF, SP1:
vigilancia; apezar
SP, SPF, SP1:
condiscipulo
SP, SPF, SP1: comsigo
XX
5
10
Genaro, desde a sua última conversa com Tomás a
propósito de Giudita, tornou-se triste e sorumbático.287
A influência ancestral do Lazerone e do Corso, dos
quais ele descendia, despertou no ânimo do jovem
napolitano idéias de vingança. Taciturno, com o
semblante mudado, não era mais aquele rapaz alegre
que atraia a atenção e simpatia dos jornaleiros que com
ele se achavam aboletados no galpão. Não mais se
ouviu sua voz de tenor cantar as belezas da sua bela
Nápoles, nem Giudita aparecia, por não ouvi-lo entoar
as belas canções que a atraíam, por ter também, como
Marco e os mais, notado a tristeza e ar sombrio o seu
amado.
SP, SPF, SP1: Gennaro; ultima;
Thomaz
SP, SPF, SP1: proposito; Giuditta;
sorumbarico
SP, SPF, SP1: influencia; SP:
lazerone, SPF, SP1: LAZERONE;
SP, SPF, SP1: quaes; elle; SP:
corso, SPF, SP1: CORSO; SP,
SPF, SP1: animo; joven; idéas
SP, SPF, SP1: aquelle
SP, SPF, SP1: attrahia; attenção;
sympathia
SP, SPF, SP1: elle
SP, SPF, SP1: bellezas; bella
SP, SPF, SP1: Napoles;giuditta;
apparecia; ouvil-o
SP, SPF, SP1: bellas; attrahiam;
tambem
287 Sorumbático: sombrio.
434
15
20
A pobre moça – coitada! – a princípio, depois
da transformação por que passara Genaro, nada notava
de anormal, como sucede aos adolescentes em sua
despreocupação e falta de experiência e perspicácia,
mas uma vez, dirigindo um dos seus gracejos288 ao
ragazzo, este fitou-a com mau modo, proferiu um seco,
“me deixa!” e voltou-lhe as costas.
SP, SPF, SP1: principio
SP, SPF, SP1: Gennaro
SP, SPF, SP1: succede;
adolecentes
SP, SPF, SP1: despreoccupação;
experiencia; perspicacia
SP: ragazzo, SPF, SP1:
RAGAZZO
SP, SPF, SP1: secco
25
30
35
O que havia?! – pensou Giudita. Naquela mudança
de caráter e naquele brusco e grosseiro retraimento do
seu amado alguma coisa de grave devia existir.
Entretanto, por mais que procurasse a jovem amorosa
em a sua consciência, não encontrava nenhuma falta,
um deslize que importasse em ofensa a Genaro tal que
correspondesse em gravidades ao modo por que ele a
repelira. Examinou-se ao espelho minuciosamente,
porque talvez seu físico tivesse sofrido alguma
alteração; mas nada encontrou. Os seus olhos eram os
mesmos, com aquele brilho, com aquelas pestanas
alongadas e regulares na colocação e arqueamento dos
pêlos guardados por uns supercílios, em arco um pouco
abatido, negros, sedosos e bem traçados, – que lhe
lembrava a sua lendária e venerada patrícia Santa
Lúcia; as suas lindas orelhas, de lóbulos polpudos289 e
SP, SPF, SP1: Giudita; N’aquella
SP, SPF, SP1: caracter; n’aquelle;
retrahimento
SP, SPF, SP1: cousa
SP, SPF, SP1: joven
SP, SPF, SP1: consciencia
SP, SPF, SP1: deslise; offença;
Gennaro
SP, SPF, SP1: elle
SP, SPF, SP1: repelliu;
minunciosamente
SP, SPF, SP1: physico; soffrido
SP, SPF, SP1: aquelle; aquellas
SP, SPF, SP1: collocação
SP, SPF, SP1: supercilios,
SP, SPF, SP1: lendaria; patricia;
Lucia
SP, SPF, SP1: lombulos;
nennugeados
288 Gracejo: ditos espirituosos. 289 Polpudo: que tem abundância de carne.
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40
45
50
penugeados como damascos sazonados, nada haviam
perdido da forma e morbidezza; os seus dentinhos
alvos, sãos, regulares e bem tratados, enfileravam-se
com a mesma impecável regularidade nas gengivas de
coral, o geral da cútis do seu rosto conservava a mesma
tonalidade e aveludado, a mesma delicadeza, tão
atraente como dantes; os seus lábios, traçando uma
boca proporcionada dispostos ao sorriso cativante que
convida ao beijo, conservavam o mesmo acarminado
púnico, o mesmo viço da polpa da romã;os seus
cabelos, negros com reflexos doirados, continuavam
ondulantes a escorrer pelos seus ombros com a mesma
graça, formando no seu conjunto um dos seus mais
invejáveis ornatos. O que lhe faltava, pois, para que o
seu querido Genarino a repelisse daquele modo?!
SP: morbizezza; SPF, SP1:
MORBIZEZZA
SP, SPF, SP1: alvos (,)
SP, SPF, SP1: impeccavel
SP, SPF, SP1: cutes
SP, SPF, SP1: avelludado
SP, SPF, SP1: attrahente; d’antes;
labios
SP, SPF, SP1: bocca
SP, SPF, SP1: captivante
SP, SPF, SP1: puniceo
SP, SPF, SP1: cabellos
SP, SPF, SP1: conjuncto
SP, SPF, SP1: invejaveis
SP, SPF, SP1: gennarino;
arrepellisse; d’aquelle
55
No seu triste matutar, foi a jovem napolitana
assaltada290 por uma suspeita. Seria possível que o seu
querido a desprezasse por outra: que alguma brasileira
de tez cor de jambo, de lábios polposos e vermelhos,
de olhar ardente como os fogos tropicais, fascinasse
seu Genarino?
SP, SPF, SP1: joven
SP, SPF, SP1: possivel
SP, SPF, SP1: côr; labios
SP, SPF, SP1: tropicaes
SP, SPF, SP1: Gennarino?
60
Esse pensamento tornou-se insistente no espírito da
jovem como uma obcecação, e levou-a as fronteiras da
SP, SPF, SP1: espirito
SP, SPF, SP1: joven;
290 Assaltada: investida de súbito.
436
certeza, depois de passar pelas dúvidas e ansiedades as
mais peníveis, conduzindo-a ao ciúme, essa forma
egoística e rancorosa do amor que se quer exclusivo.
SP, SPF, SP1: duvidas
SP, SPF, SP1: peniveis; ciume
SP, SPF, SP1: egoistica; SP: (Não
há divisão de parágrafo.)
65
70
75
80
O seu coração, até ali isento desse mau e corrosivo
sentimento que insidiosamente se insinua no outro belo
e fagueiro que faz a felicidade e a alegria dos
adolescentes, era-lhe mais pungente, na sua
incipiência, e maiores preocupações e sustos e anseios
lhe trazia, do que a qualquer outro já afeito às
peripécias que mais comumente advém aos
enamorados. Até então a tranqüilidade e a segurança
que ela experimentava aguardando uma solução
inevitável que dependia somente do assentimento de
seu pai que, estava certa, não o negaria, era o vogar em
plácido mar sem escolhos avistando horizontes
féericos onde se acastelavam nuvens de púrpura e
oiro291. Agora a cerração, a caligem292 que se
desdobrava como um véu, ocultando ameaçadora todo
aquile risonho futuro; era o soçobrar293 iminente no
mar das dúvidas e anseios que, irritando-se,
encapelando-se, ameaçava estragar toda a sua
felicidade.
SP, SPF, SP1: alli, d’esse; máu
SP, SPF, SP1: insinua; bello
SP, SPF, SP1: pugente
SP, SPF, SP1: incipiencia;
preoccupações
SP, SPF, SP1: affeito; ás
peripecias
SP, SPF, SP1: commumente
SP, SPF, SP1: tranquilidade
SP, SPF, SP1: ella
SP, SPF, SP1: inevitavel
SP, SPF, SP1: pae
SP, SPF, SP1: placido; horisontes
SP, SPF, SP1: acastellavam;
purpura
SP, SPF, SP1: véo, occultando;
aquelle
SP, SPF, SP1: sossobrar;
imminente; duvidas; anceios
SP, SPF, SP1: encapellando-se
291 Oiro: variante de ouro. 292 Caligem: escuridão, trevas. 293 Soçobrar: afundar, naufragar.
437
85
90
95
100
Pobre Giudita! O seu pensar angustiado causava-
lhe durante a noite demoradas insônias e, quando
conseguia adormecer, vinham-lhe pesadelos aflitivos
ou, então, sonhos consoladores nos quais se desenhava
a sua anterior visão subjetiva que era o seu enlevo e
alegria, para, ao despertar, cair na triste realidade das
suas dúvidas e suspeitas. Então o seu sentir provocava-
lhe o pranto ardente e amargo da desesperança. Ah!
Genarino era seu, sem partilha com quem quer que
fosse; era uma posse sobre a qual ela tinha direito
inconteste e sagrado. Por que vinham roubá-lo? Dera-
lhe o seu coração em permuta leal, em mútuo consenso
que foi jurado desde a infância dos dois. O seu afeto
recíproco era congênito com razão dos dois, radicara
em seus corações e os aunara.294 Ferir um era ferir ao
outro. Essa que lhe roubava o seu querido, era incapaz
de amá-lo como ela, porque vulnerava dolorosamente
aquele a quem, certamente, jurava um amor
escoimado295 de egoísmo e maldade. Instilava naquele
coração a torva296 letalidade que insidiosa, pouco a
pouco, iria produzindo os seus terríveis efeitos: a morte
de dois corações. Apagava a pira297 vestálica298 que,
SP, SPF, SP1: Giuditta!
SP, SPF, SP1: insomnias
SP, SPF, SP1: afflictivos
SP, SPF, SP1: quaes
SP, SPF, SP1: subjectiva
SP, SPF, SP1: cahir
SP, SPF, SP1: duvidas
SP, SPF, SP1: ella
SP, SPF, SP1: roubal-o?
SP, SPF, SP1: mutuo
SP, SPF, SP1: infancia
SP, SPF, SP1: dous; affecto;
congenito
SP, SPF, SP1: : dous; aúnara
SP, SPF, SP1: amal-o; ella
SP, SPF, SP1: aquelle
SP, SPF, SP1: egoismo; n’aquelle
SP, SPF, SP1: lethalidade
SP, SPF, SP1: terriveis; effeitos
SP, SPF, SP1: dous; pyra; vestalica
294 Aunara: tornara brando. 295 Escoimado: livre. 296 Torva: pertubação, confusão. 297 Pira: fogueira.
438
105
ardente, vivificava um amor santo e puro e que era
entretida com desvelo, para manter um amor tenebroso
que gelaria dois corações que não podiam viver
separados.
SP, SPF, SP1: dous
Assim traduzimos o pensar e sentir da pobre
donzela.
SP, SPF, SP1: donzella
110
115
120
Marco, que já notara a tristeza e retraimento de
Genaro e, procurando saber-lhe a causa, não conseguiu
senão respostas evasivas, veio, por fim, a notar que sua
filha muito perdia das suas cores sadias e também ia
caindo em funda melancolia. Isso levou-o a pensar que
a causa eram os amores de Giudita e que alguma coisa
ou fato desagradável se tinha dado entre os dois
jovens. Um simples arrufo?299 Um rompimento
definitivo? Em todo o caso era preciso que ele, como
pai que amava ao extremo aquela filha que lhe restava;
que tanto estimava Genaro desde a sua primeira
infância, tomasse uma providência qualquer.
SP, SPF, SP1: ja; retrhaimento
SP, SPF, SP1: Gennaro
SP, SPF, SP1: sinão; porfim
SP, SPF, SP1: tambem; cahindo
SP, SPF, SP1: Giuditta; cousa
SP, SPF, SP1: facto desagradavel;
dous
SP, SPF, SP1: elle;
SP, SPF, SP1: pae; aquella
SP, SPF, SP1: Gennaro
SP, SPF, SP1: infancia;
providencia
Nesse pressuposto, Marco conversou com a mulher
a respeito. A velha azougada300 e grosseira, não
possuía a delicadeza de sentimentos do marido; pouco
se lhe dava que a filha estivesse arrufada ou que
Genaro andasse a matutar. Regateirices da Giudita,
SP, SPF, SP1: N’esse;
pressupposto
SP, SPF, SP1: azogada
SP, SPF, SP1: possuia
SP, SPF, SP1: Genaro; Giuditta
298 Vestálica: pura, virginal. 299 Arrufo: ressentimento passageiro entre pessoas que se querem bem. 300 Azougada: colérica.
439
125
Genaro andasse a matutar. Regateirices da Giudita,
aquela namoradeira preguiçosa que, decerto, queria se
casar para fugir ao trabalho doméstico que ainda tinha
obrigação de fazer até os 25 anos.
SP, SPF, SP1: aquella
SP, SPF, SP1: domestico
SP, SPF, SP1: annos.
130
135
Marco bem conhecia a sua cara metade e procurava
sempre evitar discussões com ela que, continuando-as,
viria a destemperar-se.301 Não deixou, porém, de fazer-
lhe objeções com prudência, pedindo-lhe que não
falasse alto. Estavam a sós, e não convinha que a
menina ouvisse o que conversavam a seu respeito.
Giudita estava doente – dizia ele – e cabia-lhes zelar
pela sua saúde. A velha Maria retorquiu que a doença
da jovem era simples manha para mais depressa
apanhar o seu rosignuolo, que só vivia a cantar à noite
para atrair a namoradeira svergognata.
SP, SPF, SP1: ella
SP, SPF, SP1: porem; objecções;
prudencia,
SP, SPF, SP1: fallasse
SP, SPF, SP1: Giuditta; elle
SP, SPF, SP1: saude.
SP, SPF, SP1: joven
SP: rosignuolo SP, SPF, SP1:
RESIGNUOLO; á noite; attrahir;
SP: svergognata, SPF, SP1:
SVERGOGNATA.
140
145
Marco suspendeu o diálogo por inconveniente e,
com calma, foi balancear os seus fundos de reserva
para ver se podia cortar o nó górdio302 da questão
casando a filha, quer a velha concordasse ou não com
isso, porque ele também, quando tomava um propósito,
não cedia às exigências da mulher que, por fim, vinha
a concordar quando percebia que Marco tinha tomado
a peito realizar uma idéia com resolução. Entretanto, se
SP, SPF, SP1: dialogo;
inconviniente
SP, SPF, SP1: gordio
SP, SPF, SP1: elle; tambem;
proposito,
SP, SPF, SP1: ás exigencias;
porfim
SP, SPF, SP1: realisar; idéa; si
301 Destemperar-se: exceder-se em palavras ou ações. 302 Cortar o nó górdio: resolver de maneira rápida, prática e violentamente a questão.
440
visse que podia fazer as despesas das núpcias, era
preciso que conversasse seriamente com Genaro.
SP, SPF, SP1: despezas; nupicias;
Gennaro
150
155
160
Resultou do seu balanço a convicção de que, com
algum sacrifício, poderia fazer o que desejava, e logo
no dia seguinte, procurou Genaro. Este ao ouvir a
proposta que o velho lhe fazia de casar-se com Giudita,
com ar sombrio e semblante carregado, respondeu-lhe
com um simples e bem soante “no”. A princípio Marco
supôs que aquela negativa era devida a escrúpulo por
falta de meios do jovem. Nesse caso objetou-lhe que
não receasse; que ele, Marco, tudo remediaria. Dariam
os seus parcos recursos para um enxoval que, embora
modesto, bastaria ao novo casal. Depois tudo se
arranjaria a contento.
SP, SPF, SP1: sacrificio
SP, SPF, SP1: Gennaro
SP, SPF, SP1: Giuditta
SP: no, SPF, SP1: NO; principio
SP, SPF, SP1: suppoz; aquella
SP, SPF, SP1: escrupulo; joven;
N’esse
SP, SPF, SP1: objectou-lhe;
receiasse; elle (,)
165
Outro simples “no” foi a resposta de Genaro.
“Perchê?” indagou o velho com voz triste que
denunciava a sua surpresa e desgosto. Os dois
amavam-se desde crianças, Giudita estava “malata per
amore” já havia atingido a idade conveniente, já podia
governar uma casa, já tinha prática dos serviços
domésticos.
SP: no, SPF, SP1: NO; SP, SPF,
SP1: Gennaro.
SP: Perchê, SPF, SP1: PERCHÊ
SP, SPF, SP1: surpreza; dous
SP, SPF, SP1: creanças; Giuditta;
SP: malata per amore, SPF, SP1:
MALATA PER AMORE; SP,
SPF, SP1: attingido
SP: ja tinha; pratica
SP, SPF, SP1: domesticos.
170
Genaro, com olhos úmidos e com voz trêmula
impregnada de uma dor ou despeito profundo, disse
resoluto que ela se casasse com o outro. Com o outro!
SP, SPF, SP1: Gennaro; humidos;
tremula
SP, SPF, SP1: impreginada
SP, SPF, SP1: ella
441
175
pensou Marco como se recebesse uma punhalada no
coração. Outro! Quem era esse outro? perguntou. Ela
que o dissesse, respondeu Genaro mal podendo conter
as lágrimas.
SP, SPF, SP1: Ella
SP, SPF, SP1: Gennaro
SP, SPF, SP1: lagrimas
“É preciso conversar com Giudita” – pensou Marco
surpreso e angustiado com essa novidade. E
aproveitando uma oportunidade, a sós com a filha
interpelou-a com voz carinhosa.
SP, SPF, SP1: Giuditta
SP, SPF, SP1: Surprezo
SP, SPF, SP1: opportunidade
SP, SPF, SP1: interpelou-a
180
–Minha filha, – dizia o pobre velho com lágrimas
na voz – como é isso? Não amas mais ao nosso
Genarino? Preferes outro?
SP, SPF, SP1: lagrimas
SP, SPF, SP1: Gennarino
–Eu, pai?! – respondeu a moça surpreendida. SP, SPF, SP1: pae; surprehendida.
–Eu soube por ele próprio. SP, SPF, SP1: elle; proprio.
185 –Oh! Genarino diz isso! SP, SPF, SP1: Gennarino
E a pobre moça, abalada, quase a chorar,
demonstrava no seu semblante e nos seus modos o
amor entranhado que votava ao seu querido, e quanto
lhe era doloroso o que lhe dizia o seu pai.
SP, SPF, SP1: quasi
SP, SPF, SP1: pae.
190
–Genarino negou-se a casar contigo, minha filha.
Disse-me que havia outro preferido, e que tu me
dissesses quem era.
SP, SPF, SP1: Gennarino;
comtigo,
195
Giudita, não mais podendo conter-se, a essas
palavras de Marco, escondeu o rosto no amplo seio do
velho pai desfeita em pranto desabalado. Amava muito
SP, SPF, SP1: Giuditta
SP, SPF, SP1: pae
442
200
aquele bom velho em que depositava toda a sua
confiança, sendo correspondida por ele que procurava
adivinhar os pensamentos para em tudo satisfazê-la,
mesmo nos seus mínimos caprichos. Por isso, somente
ele poderia dar remédio à sua triste situação. Marco,
comovido ao extremo, procurou consolá-la. Se ela não
dava preferência a outro, decerto havia nisso um mal
entendido, mesmo alguma intriga, e breve tudo
passaria.
SP, SPF, SP1: aquelle
SP, SPF, SP1: elle
SP, SPF, SP1: satisfazel-a;
minimos
SP, SPF, SP1: elle; remedio á sua
SP, SPF, SP1: commovido;
consolal-a.
SP, SPF, SP1: Si; ella;
preferencia; n’isso
205
210
Que notara havia dias a sua tristeza e
esmaecimento e, atribuindo isso a receio de não se
casar com Genarino, procurou-o disposto a realizar o
casamento. Que o rapaz acolheu-o de mau modo
dando-lhe a entender que Giudita preferia outro.
Inquirido qual esse outro, respondeu-lhe que ela o
dissesse.
SP, SPF, SP1: attribuindo
SP, SPF, SP1: Gennarino; realisar
SP, SPF, SP1: máu
SP, SPF, SP1: Giuditta
SP, SPF, SP1: inquerido; ella
220
215
Não só pelas palavras de Giudita, mas também
pelas lágrimas em torrente que brotaram dos seus olhos
ao ouvir tão estranha novidade, convenceu-se o velho
napolitano de que sua filha não dava preferência a
outro que não fosse o seu querido Genarino; que o
amor laborava no coração da bela bambina com a
mesma intensidade e ardor que ele já conhecia desde
muito tempo tendo por objeto o mesmo a que se votara
SP, SPF, SP1: Giuditta; tambem
SP, SPF, SP1: lagrimas
SP, SPF, SP1: extranha
SP, SPF, SP1: preferencia
SP, SPF, SP1: Gennarino
SP, SPF, SP1: bella; SP: bambina,
SPF, SP1: BAMBINA
SP, SPF, SP1: elle
SP, SPF, SP1: objecto
443
220 desde a infância. SP, SPF, SP1: infancia
225
230
235
240
Com o coração lacerado e o pensamento a debater-
se diante daquele caso misterioso, o bom velho de
novo abordou Genaro. Amava-o como a um filho,
sabia-o generoso e bom; mas a sua maior preocupação
era salvar a filha que estremecia e que receava adoecer
gravemente, tão apaixonada se achava e ferida no
coração. Genaro, o teimoso, conservava-se no mesmo
propósito, tão habilmente conseguira Tomás ganhar-
lhe a confiança e envenenar o seu coração de jovem
inexperiente e zeloso. Na sua cegueira, muito natural
na maior parte dos moços namorados, entrou a
lembrar-se das visitas de João à casa de Marco e a
analisar as particularidades mais insignificantes. Desse
exame preconcebido resultou parecer a Genaro
confirmado o que lhe dissera o infame e insidioso
instrumento de Abílio. Em gestos sem importância, em
palavras inocentes que a familiaridade e confiança
autorizavam e nada tinham de maldosas, Genarino viu
mais que provada a veracidade do que lhe informara o
miserável caluniador; mas tendo tomado de não revelar
o nome do novo preferido de Giudita, julgava
desonroso fazer uma revelação que prejudicava o
delator.
SP: adebater-se (Erro óbvio.)
SP, SPF, SP1: deante d’aquelle;
mysterioso
SP, SPF, SP1: Gennaro
SP, SPF, SP1: preoccupação;
extremecia
SP, SPF, SP1: receiava
SP, SPF, SP1: Gennaro
SP, SPF, SP1: proposito; Thomaz
SP, SPF, SP1: joven
SP, SPF, SP1: á casa; analysar
SP, SPF, SP1: Gennaro
SP, SPF, SP1: Abilio; importancia,
SP, SPF, SP1: innocents
SP, SPF, SP1: Gennarino
SP, SPF, SP1: miseravel
calumniador;
SP, SPF, SP1: Giuditta;
deshonroso
444
245
250
255
Abordando-o de novo, Marco fez-lhe ver que
Giudita amava-o com o mesmo ardor de antes; que
estava sofrendo muito com a sua repulsa e
desconfiança do seu caráter. Que corria o risco de
adoecer gravemente, tal o pesar que a dominava e a
paixão a que a arrastara a crueldade com que foi
repelida. Genaro, que ainda amava também
entranhadamente à menina – e não fora isso não se
sentiria tão tomado de zelos – chegou a comover-se;
mas, com pertinência, recalcou no seu coração o
movimento de simpatia e compaixão que nele
despontava para continuar nas suas idéias e suspeitas.
SP, SPF, SP1: Giuditta
SP, SPF, SP1: soffrendo
SP, SPF, SP1: caracter
SP, SPF, SP1: pezar
SP, SPF, SP1: repellida.
SP, SPF, SP1: Gennaro; tambem
SP, SPF, SP1: á menina
SP, SPF, SP1: commover-se
SP1: pertinacia, (Erro óbvio); SP1:
perinencia,
SP, SPF, SP1: sympathia; n’elle
SP, SPF, SP1: idéas
260
Genaro firmou-se nisto sem dar a razão por que: –
Não queria casar-se. Marco que se esforçava por
conter-se, pois aquela teimosia estava quase a
impacientá-lo, perguntou-lhe com seriedade, aflição e
dor profunda – que transparecia no trêmulo da sua voz
e nos gestos, – se Giudita não era mais uma menina
digna, pura e virtuosa.
SP, SPF, SP1: n’isso; Gennaro
SP, SPF, SP1: aquella; quasi
SP, SPF, SP1: impaciental-o,
afflicção
SP1: trrnsparecia (Erro óbvio.);
tremulo
SP, SPF, SP1: si; Giuditta
265
Àquela interrogação ex abrupto, para ele uma
grave exprobração, tão severamente foi feita,
acompanhada de sentimentos de profunda tristeza e
amargura que transpareciam no semblante do velho
italiano, Genaro sentiu-se abalado até o íntimo. Estava
SP, SPF, SP1: Áquella; elle ; SP:
ex abupto, SPF, SP1: EX
ABUPTO
SP, SPF, SP1: Gennaro; intimo
445
270
275
em jogo a reputação da sua querida Giudita e de uma
família honesta que venerava desde criança, e a quem
devia gratidão e afeto. Da sua resposta dependia um
rompimento de más conseqüências ou, então, a volta
da antiga tranqüilidade e confiança anteriores. Preferiu
este último alvitre; mas para chegar a bom resultado,
era preciso tudo revelar, tendo ele entretanto dado a
sua palavra a Tomás de guardar reserva.
SP, SPF, SP1: Giuditta; familia
SP, SPF, SP1: creanca,
SP, SPF, SP1: afecto
SP, SPF, SP1: consequencias
SP, SPF, SP1: tranquillidade
SP, SPF, SP1: ultimo
SP, SPF, SP1: elle; Thomaz
Enquanto Genaro assim pensava, Marco, com o
semblante fechado, nele fitava um olhar como nunca
lhe vira, e aguardava silencioso uma resposta qualquer
a que ele não podia se esquivar.
SP, SPF, SP1: Emquanto; Gennaro
SP, SPF, SP1: n’elle
SP, SPF, SP1: elle
280
-Ah! Per la madona di pied di grotta! – disse
Genaro por fim com voz trêmula e toda comoção –
Nunca duvidei da pureza e virtude de Giudita.
SP: Ah! per la madona di pied di
grotta!, SPF, SP1: AH! PER LA
MADONA DI PIED DI
GROTTA!; SP, SPF, SP1:
Gennaro porfim; tremula;
commoção; SP, SPF, SP1: Giuditta
–Então? – perguntou Marco mais animado.
285
O rapaz, trêmulo e titubeante, respondeu que mais
tarde tudo explicaria; que o seu velho protetor e amigo
não se assustasse, pois nada havia no caso que
deslustrasse a honra e crédito de sua família. Marco
não insistiu e retirou-se meditabundo303 procurando
decifrar tão esquisito enigma que já o ia aborrecendo.
SP, SPF, SP1: tremolo
SP, SPF, SP1: protctor
SP, SPF, SP1: credito; familia.
SP, SPF, SP1: exquisito
446
XXI
5
10
São decorridos muitos dias depois do último
colóquio entre Marco e Genaro. Este continua retirado
da sua amada, não mais canta ao serão e anda triste. A
mocinha não é mais aquela criaturinha alegre e
risonha porque não via o seu Genarino; como que lhe
faltava uma parte do seu todo espiritual; que a sua
personalidade está incompleta. Marco está
macambúzio, ora animado pelo que lhe disse o pupilo,
ora aborrecido só a meditar fumando o seu cachimbo à
volta e meia, a esperar indefinidamente a solução que
o mancebo prometeu para mais tarde.
SP, SPF, SP1: ultimo
SP, SPF, SP1: colloquio;
Gennaro
SP, SPF, SP1: aquella;
creaturinha
SP, SPF, SP1: Gennarino
SP, SPF, SP1: macambuzio;
pupillo
SP, SPF, SP1: á volta
SP, SPF, SP1: prometteu
15
20
O jovem napolitano tinha tão enraizada em seu
ânimo a calúnia que Tomás inventara e soubera
insinuar em seu espírito que, mesmo procurando
justificar Giudita, ainda tinha ciúmes; pois paixões
como a dele são de um exclusivismo exagerado.
Giudita era inocente e, como todas as da sua idade,
inexperiente e incauta. Tão hábil foi João Lopes que
conseguiu tornar-se simpático à pobre moça, o que por
forma alguma é admissível por quem, como o jovem
italiano, ama em extremos. Giudita decerto namorava
SP, SPF, SP1: joven
SP, SPF, SP1: animo; calumnia;
Thomaz
SP, SPF, SP1: espirito
SP, SPF, SP1: Giuditta; ciumes;
d’elle
SP, SPF, SP1: Giuditta;
innocente; edade (,)
SP, SPF, SP1: habil
SP, SPF, SP1: sympathico; á
pobre
SP, SPF, SP1: admissivel; joven
SP, SPF, SP1: Giuditta
303 Meditabundo: meditando profundamente, pensativo.
447
25
30
italiano, ama em extremos. Giudita decerto namorava
por diversão; mas o culpado era o miserável sedutor
que conseguiu fasciná-la. Toda a culpa, portanto, da
moça recaia em João, contra quem se voltou todo o
rancor do moço apaixonado e ardente. Sob qualquer
pretexto, Genaro não saía do galpão aos domingos, e
dali espreitava João quando vinha, como lhe era
habitual, em companhia de Calisto, palestrar com o
velho Marco. As mais das vezes Aristides também ali
aparecia, e, como era quem lia, era muito apreciado
pelos demais, pois trazia sempre notícias que muito
interessavam aos circunstantes e tornava a palestra
muito agradável.
SP, SPF, SP1: miseravel;
seductor
SP, SPF, SP1: fascinal-a
SP, SPF, SP1: rechaia
SP, SPF, SP1: Gennaro; sahia
SP, SPF, SP1: d’alli
SP, SPF, SP1: Calixto
SP, SPF, SP1: tambem; alli
SP, SPF, SP1: apparecia
SP, SPF, SP1: noticias
SP, SPF, SP1: circumstantes
SP, SPF, SP1: agradavel
35
40
45
Duas semanas depois do que descrevemos no
capítulo anterior, quando se achavam os habituais
visitantes de Marcos reunidos em frente da casinha do
velho italiano, Aristides também ali chegou, dizendo a
João que trazia notícias sensacionais que muito
interessavam ao seu cunhado, as quais recebera de
Ribeirão Preto por carta de um seu amigo e gazetas
que ele lhe remeteu. Genaro, que espreitava do seu
esconderijo e tudo ouvia, interessou-se como os
outros, por simples curiosidade, pelo que Aristides ia
noticiar, procurando não perder uma palavra do que o
SP, SPF, SP1: capitulo; habituaes
SP, SPF, SP1: tambem; alli
SP, SPF, SP1: noticias;
sensacionaes
SP, SPF, SP1: quaes
SP, SPF, SP1: elle; remetteu;
Gennaro
448
secretário dissesse. SP, SPF, SP1: secretario
50
55
60
–A polícia de Ribeirão, – disse Aristides, –
que andava na pista de Abílio e Tomás, e chegou a
descobrir que os dois mais de uma vez confabularam
em secreto, descobriu afinal uma quadrilha de
gatunos, chefiada por um tal coronel Norberto de
quem já te falei, e que operava neste Estado de Minas.
Norberto é um fino larápio304 que já foi identificado
na Bahia, em Recife e até no Rio e tem o seu
verdadeiro nome registrado nos arquivos policiais
dessas cidades. A matula de velhacos lança mão de
todos os meios, cada um dos sócios agindo
separadamente conforme a sua índole, para obter
dinheiro. O Tomás, por exemplo, cujo verdadeiro
nome é Gil, cometeu em Uberaba o crime de roubo
com tentativa de assassinato, da qual felizmente
escapou a vítima apesar de receber ferimentos graves.
SP, SPF, SP1: policia
SP, SPF, SP1: Abilio; Thomaz
SP, SPF, SP1: dous
SP, SPF, SP1: fallei; n’este
SP, SPF, SP1: larapio
SP, SPF, SP1: archivos; policiaes
SP, SPF, SP1: d’essas
SP, SPF, SP1: socios
SP, SPF, SP1: indole
SP, SPF, SP1: Thomaz
SP, SPF, SP1: commetteu
SP, SPF, SP1: victima; apezar
65
Aristides continuou a referir o caso
impressionante em termos que resumimos. Faziam
parte da súcia, ao que ora se sabe, Tomás e o sujeito
que já apresentamos ao leitor como o “cara de fuinha”,
todos sob o comando do falso coronel, que é o mais
hábil e soube captar confiança e simpatia nos lugares
onde ainda não era conhecido, tais o seu desplante, os
SP, SPF, SP1: sucia; Thomaz
SP, SPF, SP1: commando; habil
SP, SPF, SP1: sympathia
SP, SPF, SP1: taes
304 Larápio: trapaceiro, ladrão.
449
70
onde ainda não era conhecido, tais o seu desplante, os
seus modos fidalgos, o seu trajo apurado e luxuoso e a
sua conversação atraente, que denuncia alguma
cultura e trato de fina educação social.
SP, SPF, SP1: attrahente
75
80
85
Ora, sendo Abílio – o falso capitão Rufino–
encontrado algumas vezes em contato com essa gente,
não podia deixar de ser suspeito. A polícia, que já
podia capturar Tomás, adiou a sua prisão na esperança
de colher toda a quadrilha; mas, como isso demorava,
resolveu lançar mão do camarada, que saindo do
serviço de empreitada, foi procurar o patrão.
Entretanto, quando a polícia lançou mão dele, achava-
se somente em companhia de Norberto e o outro que
também foram presos, escapando Abílio, que estava
ausente e, quando soube da prisão, desapareceu da
cidade sem que se soubesse o rumo que tomou. O
outro não teve tempo de escapulir, porque o coronel
suposto indicou o lugar onde ele achava-se, antes que
pudesse ocultar-se.
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: contacto
SP, SPF, SP1: policia
SP, SPF, SP1: Thomaz
SP, SPF, SP1: sahindo
SP, SPF, SP1: policia; d’elle
SP, SPF, SP1: sómente
SP, SPF, SP1: tambem; Abilio
SP, SPF, SP1: desappareceu
SP, SPF, SP1: supposto; elle
SP, SPF, SP1: podesse; occultar-
se.
90
Tomás, vendo-se perdido, fez revelações que
comprometeram Abílio. Norberto conservou o seu
aprumo de descarado já muito prático em empreitadas
dessa ordem, chegando a dizer que Abílio o havia
logrado no ajuste de contas, que era um sujeito mau
SP, SPF, SP1: Thomaz
SP, SPF, SP1: comprometteram;
Abilio
SP, SPF, SP1: pratico
SP, SPF, SP1: d’essa; Abilio
SP, SPF, SP1: máu
450
95
pagador, por isso não queria mais negócios com ele.
Terminou dizendo que estava regenerando, mas Abílio
conseguiu iludi-lo com histórias falsas que ele repetiu
em público sem má intenção e que deram em
resultado as más conseqüências que ocorriam agora.
SP, SPF, SP1: negocios; elle
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: illudil-o; historias;
elle
SP, SPF, SP1: publico
SP, SPF, SP1: consequencias;
occorriam
100
–Se o falso Tomás deixou aqui o seu rastro –
acrescentou Aristides – é o que ainda ignoramos.
SP, SPF, SP1: Si; Thomaz
SP, SPF, SP1: accrescentou
105
110
115
Todas as notícias que Aristides referiu foram
ouvidas por Genaro do recanto onde estava oculto.
Elas causaram-lhe terror e vergonha. Convencia-se
agora de que Tomás o iludira com hipocrisia
rematada, que esteve na fazenda do coronel a serviço
de Abílio com o fim de perseguir a João Lopes e que
armou aquela intriga odiosa querendo utilizar-se dele
para cometer um crime. Compreendeu logo que o
patife, talvez em conversas no galpão, teria descoberto
os seus amores por Giudita, e prevaleceu-se dessa
circunstância para armar o seu embuste. Em que
perigo se meteu! Quanto era vergonhoso a um moço
como ele ter-se ombreado com um tipo canalha como
aquele, a quem dispensou amizade e confiança
fraternais! Afeiçoado pelo miserável, seria capaz de
cometer um assassinato, tal o ódio que ele infiltrou em
seu coração contra o Lopes, a quem estimava antes
SP, SPF, SP1: noticias
SP, SPF, SP1: Gennaro; occulto
SP, SPF, SP1: Ellas
SP, SPF, SP1: Thomaz; illudira;
hypocresia
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: aquella; d’elle
SP, SPF, SP1: commetter;
Comprehendeu
SP, SPF, SP1: Giuditta; d’essa
SP, SPF, SP1: circumstancia
SP, SPF, SP1: metteu
SP, SPF, SP1: elle; typo; aquelle
SP, SPF, SP1: fraternaes;
miseravel
SP, SPF, SP1: commetter; odio;
elle
451
120
disso pelos seus modos bondosos e pacíficos. Disso
resultaria a sua desgraça, a ruína da família de Marco,
a impossibilidade de um casamento que era a sua mais
doce aspiração, e a sua ligação a uma família que era
credora da sua estima e respeito.
SP, SPF, SP1: d’isso; pellos;
pacificos. D’isso
SP, SPF, SP1:desgraça (,); ruina;
familia
SP, SPF, SP1: familia
125
130
Estes pensamentos martirizavam o pobre
Genaro que, arrependido, com a consciência
remordida, convencia-se da necessidade de uma
urgente reparação. Entretanto, ferira tão fundo o
coração do velho Marco e magoara tanto o da sua
amada, que duvidava conseguir que se restabelecesse
a antiga amizade que reinava entre ele e o seu velho
protetor, e que fosse possível o seu casamento com
Giudita, cuja mão ele recusara de tão mau modo.
SP, SPF, SP1: martyrizavam;
Gennaro
SP, SPF, SP1: consciencia
SP, SPF, SP1: maguara
SP, SPF, SP1: elle
SP, SPF, SP1: protector; possivel
SP, SPF, SP1: Giuditta; elle
135
140
Fosse, porém, como fosse, por maior que fosse
a vergonha e humilhação que ele sofreria com isso, era
indispensável uma franca confissão do que se passara
entre ele e Tomás. Os seus nobres sentimentos assim o
exigiam, e só esse sacrifício enorme do seu orgulho
compensaria o seu procedimento irrefletido que tanto
magoou Marco e Giudita. Nessa disposição de ânimo,
logo que viu Marco sozinho, assentado no rebato da
porta a meditar, a ele se dirigiu resolutamente.
SP, SPF, SP1: porem
SP, SPF, SP1: elle; soffreria
SP, SPF, SP1: indispensavel;
confição
SP, SPF, SP1: elle; Thomaz
SP, SPF, SP1: sacrificio
SP, SPF, SP1: irreflectido
SP, SPF, SP1: maguou; Giuditta;
N’essa; animo
SP, SPF, SP1: elle
Quando Genaro chegou diante da porta, SP, SPF, SP1: Gennaro; deante
452
145
150
curvou-se, beijou respeitosamente a mão do velho e
conservou-se de pé, cabisbaixo e com o rosto
afogueado de vergonha. O bom velho, surpreso, vendo
naquela estranha atitude algo de novidade, nada disse
ou indagou, à espera de dizer ao rapaz o que
significava aquilo. Genaro conservava-se hesitante,
sem saber por onde começasse. No rosto de Marco de
que, entanto, adivinhava naquilo uma íntima ligação
com os fatos ultimamente dados.
SP, SPF, SP1: surprezo
SP, SPF, SP1: n’aquella;
extranha; attitude
SP, SPF, SP1: á espera
SP, SPF, SP1: aquillo; Gennaro
]SP, SPF, SP1: emtanto;
n’aquillo; intima
SP, SPF, SP1: factos
155
160
Passados alguns momentos, Genaro, com voz
trêmula que denunciava o estado da sua alma, disse
que vinha pedir perdão a seu pai adotivo por tê-lo
maltratado, quando era ele digno do seu respeito,
estima e gratidão. Agora, sim, é que não podia casar e
possuir uma noiva muito gentil, tão graciosa, tão pura.
A sua voz tinha tonalidades ternas e plangentes que
comoviam o coração bondoso e paternal do velho que,
estatelado, com os olhos fitos no rapaz, de quem se
compadecia, percorria o passado rapidamente em
pensamentos.
SP, SPF, SP1: Gennaro
SP, SPF, SP1: tremula
SP, SPF, SP1: pae; adoptivo; tel-
o
SP, SPF, SP1: elle
SP, SPF, SP1: plagentes
SP, SPF, SP1: commoviam
165
Genaro fora sua cria e ele muito o amava.
Estava, portanto, ansioso por saber inteiramente o que
houvera, o que tanto fazia sofrer o seu pupilo, o que se
passava na sua alma. Mortos os pais daquele
SP, SPF, SP1: Gennaro; foi; elle
SP, SPF, SP1: ancioso
SP, SPF, SP1: houver; soffrer;
pupillo
SP, SPF, SP1: paes; d’aquelle
453
adolescente, quando ele ainda muito criança, Marco
tomora-o à sua conta, porque uma sua irmã que com
ele ficara, havia casado com um sujeito que lhe impôs
abandonar o irmãozinho.
SP, SPF, SP1: elle;
SP, SPF, SP1: tomou-o á sua
SP, SPF, SP1: elle; ficou; casou-
se logo; impoz
170
175
180
Quando veio a razão ao menino, a quem
encontrou como pai, mas pai carinhoso ao extremo,
foi Marco. O bom e caridoso napolitano era pescador
e, todas às vezes que aparelhava a sua tartana,305 quer
para a pesca, quer para alguma viagem ou passeio de
algum turista, lá estava o orfãozinho, que era
inseparável do seu pai adotivo, esperto, inteligente, a
examinar tudo com interesse e, às vezes, ajudar Marco
naquilo que lhe fosse possível. O pai adotivo de
Genaro, encantado com a viveza do seu pupilo, dizia
que “o menino era aproveitável e poderia vir a ser um
ótimo marítimo.”
SP, SPF, SP1: pae, mas pae
SP, SPF, SP1: as vezes;
apparelhava
SP: turista, SPF, SP1: TURISTA;
la;orphãozinho; inseparavel;
SP, SPF, SP1: pae; adoptivo;
intelligente
SP, SPF, SP1: ás vezes
SP, SPF, SP1: n’aquillo;
possivel; pae; adoptivo
SP, SPF, SP1: Gennaro; pupillo
SP, SPF, SP1: aproveitavel
SP, SPF, SP1: optimo maritimo
185
Marco sabia ler, e nas horas vagas, dava lições
a Genaro, que mostrou uma grande vocação para isso
e vontade insopitável de conhecer os vinte e dois
caracteres do alfabeto italiano e as combinações que
com eles se faz ao infinito. Meses depois Marco,
como era o seu desejo, matriculou o menino em uma
escola regular. Cifrou-se a instrução de Genaro no
SP, SPF, SP1: vagas
(Acrescentou-se vírgula.); licções
SP, SPF, SP1: Gennaro
SP, SPF, SP1: insopitavel; dous
SP, SPF, SP1: alphabeto
SP, SPF, SP1: elles
SP, SPF, SP1: instrucção;
Gennaro
305 Tartana: pequena embarcação mediterrânea, que possuía um só mastro, vela latina e gurupés, usada para transporte ou pesca.
454
190
curso elementar, porque o seu protetor não dispunha
de recursos bastantes para levá-lo a escolas de outros
cursos mais adiantados.
SP, SPF, SP1: protector
SP, SPF, SP1: leval-o
SP, SPF, SP1: adeantados
195
200
Genaro tinha uma voz admirável pelo timbre e
extensão; mas não freqüentou escolas regulares de
música. Como era apaixonado por esta bela arte,
aprendeu de oitiva e era um cantor primoroso que
chegava a improvisar. Vê-se por tudo isso porque
Marco era tão afeiçoado ao seu pupilo que, para
coroar tantos predicados intelectuais, era de uma
conduta exemplar, respeitoso, econômico e de gênio
dócil.
SP, SPF, SP1: Gennaro;
admirável
SP, SPF, SP1: frequentou
SP, SPF, SP1: musica
SP, SPF, SP1: outiva
SP, SPF, SP1: affeiçoado; pupillo
SP, SPF, SP1: intellectuaes
SP, SPF, SP1: conducta;
economico; genio
SP, SPF, SP1: docil
205
Tudo isso passou rapidamente pelo
pensamento de Marco, e intensificou a ternura que o
bom velho votava ao seu querido pupilo. A humildade
com que este lhe falou, o modo por que se apresentava
despertaram no coração de Marco os sentimentos que
sempre manteve acerca de Genaro, do mesmo passo
que varreu do seu espírito os desgostos e amarguras
que lhe causaram os últimos acontecimentos.
SP, SPF, SP1: pupillo
SP, SPF, SP1: Gennaro
SP, SPF, SP1: espirito
SP, SPF, SP1: ultimos
210
Em que Genarino se desmerecera a ponto de
tomar aquela resolução? pensava o velho. É verdade
que se sentiu magoado, não pela recusa da mão de
Giudita, mas pelo modo brusco e insólito que ele usou
SP, SPF, SP1: Gennarino; ao
ponto de (Emendou-se.)
SP, SPF, SP1: aquella
SP, SPF, SP1: maguado; Giuditta
SP, SPF, SP1: insólito; elle;
attribuindo
455
215
220
atribuindo à bambina namoricos com outro.
Refletindo calmamente, considerou ele que o ciúme é
tanto mais violento quanto mais ardente a paixão. Era
e é, ao seu ver, naturalíssima essa manifestação do
amor por uma simples desconfiança, por uma
insignificância. Embora se tivesse aborrecido com
aquele triste incidente, a sua experiência avaliava que
esses zelos exagerados eram passageiros. Os que não
ciúmam não amam; apenas namoram por diversão.
Além disso, Genarino reconheceu a virtude e pureza
da sua amada.
SP: á bambina, SPF, SP1: á
BAMBINA; Reflectindo
SP, SPF, SP1: elle; ciume
SP, SPF, SP1: naturalissima
SP, SPF, SP1: insignificancia
SP, SPF, SP1: aquelle;
experiencia
SP, SPF, SP1: Alem; d’isso;
Gennarino
225
Por alguns momentos conservaram-se ambos
em silêncio, Genaro cabisbaixo a suar de vergonha, e
Marco com uma interrogação debuxada no semblante.
SP, SPF, SP1: silencio; Gennaro
–Vamos, Genarino – disse Marco afinal com
voz meiga e paterna,l – sossegue. O que há?
SP, SPF, SP1: Gennarino
SP, SPF, SP1: socegue
230
235
Animado pelo modo bondoso do velho a
interrogá-lo, Genaro fez um esforço e, com voz
sumida e plangente que pouco a pouco se elevava e
acalmava, referiu francamente o que se deu entre ele e
Tomás; como o miserável conseguira iludi-lo,
mostrando-se seu amigo delicado e dando-lhe
conselhos criteriosos, tais que só o seu velho pai
adotivo poderia dar lhe. Um dia, passados tempos, o
SP, SPF, SP1: interrogal-o;
Gennaro
SP, SPF, SP1: elle; Thomaz
SP, SPF, SP1: miseravel; illudil-
o (,)
SP, SPF, SP1: taes
SP, SPF, SP1: pae; adoptivo
456
240
miserável, que entanto, não sabia da sua inclinação e
do seu interesse por Giudita, em conversação
denunciara João Lopes como namorado da sua eleita.
Cego pela paixão, entrou a espreitá-los e chegou a ver
o que não havia. Agora, porém, achava-se convencido
da infâmia de Tomás, e que ele, querendo fazer mal a
João, procurou utilizar nisso a sua ingenuidade,
fazendo-o seu instrumento para o mal.
SP, SPF, SP1: miseravel; que (,);
emtanto; Giuditta
SP, SPF, SP1: Cégo; espreital-os
SP, SPF, SP1: porem
SP, SPF, SP1: infamia; Thomaz;
elle
SP, SPF, SP1: n’isso ;
ingenuidade (,)
245
250
Marco, tendo-o ouvido calmo e silencioso,
sentiu-se comovido à fraqueza do pobre rapaz, que
mais uma vez se revelava honesto e leal e se
engrandecia aos seus olhos, tornando-se ainda mais
digno, se possível, da sua querida Giudita, de quem
estava certo que faria a felicidade. Observou a Genaro
que o seu maior erro foi não ser franco de princípio e
confiar-se num sujeito desconhecido, um camarada
servil e ignorante.
SP, SPF, SP1: commovido; á
fraqueza
SP, SPF, SP1: si; possivel;
Giuditta
SP, SPF, SP1: Gennaro
SP, SPF, SP1: principio
SP, SPF, SP1: n’um
255
260
Genaro justificou-se dizendo que se
comprometera com Tomás, sob palavra de honra, de
não revelar o que ouviu, porque o camarada estava ao
serviço de João Lopes e temia fosse por ele
perseguido. Marco, em tom paternal, retrucou-lhe que
isso era mais uma prova da hipocrisia de Tomás e da
intriga que armava; que não continuasse a baratear a
SP, SPF, SP1: Gennaro
SP, SPF, SP1: compromettera;
Thomaz
SP, SPF, SP1: elle
SP, SPF, SP1: hypocrisia;
Thomaz
457
265
sua palavra de honra como fez, principalmente
escravizando-a a um indivíduo que não conhecesse
bem de longa data como lealdoso e honesto. A honra,
disse, é um precioso tesouro que devemos guardar
com desvelo a sete chaves para que não se polua ao
contato de gente ignorante e mal educada, que não
compreende o seu valor.
SP, SPF, SP1: individuo
SP, SPF, SP1: thesouro
SP, SPF, SP1: pollua
SP, SPF, SP1: contacto
SP, SPF, SP1: comprehende
270
Tomando estes conselhos da experiência do
velho Marco como uma espécie de exprobação,
Genaro, curvando a fronte, viu confirmada a sua idéia
de ser indigno da bondosa Giudita e, sob esse seu
modo de pensar, externou-se franca e tristemente.
SP, SPF, SP1: experiencia
SP, SPF, SP1: especie
SP, SPF, SP1: Gennaro; idea
SP, SPF, SP1: Giuditta
275
Um “No, figlio mio!” acompanhado de um
sorriso carinhoso de Marco foi a resposta peremptória
que Genaro recebeu. Ele agora se elevava no seu
conceito. “Eu também, disse o velho, fui rapaz
inexperiente e cometi faltas como a de que se argüia o
seu querido pupilo.” E começou a referir a traços
largos a sua vida de moço e como aprendeu a viver.
SP: “No, figlio mio!”, SPF, SP1:
“NO, FIGLIO MIO!”
SP, SPF, SP1: peremptoria
SP, SPF, SP1: Gennaro; Elle;
elevava-se (Emendou ênclise
para próclise.) tambem
SP, SPF, SP1: commetti; arguia
SP, SPF, SP1: pupillo
280
Quando Marco foi entrando na posse da razão,
encontrou a Itália num período de agitação,
dificuldades e tribulações que lhe serviu de escola
proveitosa. A opinião pública vibrava num entusiasmo
fora do comum desejando com ardor e ansiedade o
SP, SPF, SP1: Italia; n’um;
periodo
SP, SPF, SP1: difficuldades
SP, SPF, SP1: publica; n’um
SP, SPF, SP1: enthusiasmo;
commum; anciedade
458
285
290
complemento da unificação do reino. Já a Lombardia
tinha sido conquistada antes que tudo e o reino de
Nápoles era o centro da ação de Vitor Emanuel; mas
Roma ainda estava por vir à posse dos unificadores
porque o Papa era garantido por Napoleão III.
SP, SPF, SP1: Ja
SP, SPF, SP1: Napoles; acção
SP, SPF, SP1: á posse
295
300
A guerra franco-prussiana em 1870 obrigou o
imperador a retirar o apoio que dava a Pio IX e Vitor
Emanuel, aproveitando essa circunstância, atacou a
capital da Itália e deu-se a jornada feliz da Porta Pia.
Marco tinha então 12 anos e, contaminado pelo
entusiasmo geral, quis acompanhar a expedição, no
que foi impedido por seu pai. Não arrefeceu porém o
seu ardor bélico de moço e, chegada à idade própria,
entrou para o exército a prestar o serviço militar
conforme a lei exigia; mas envergou a farda com
muito prazer. Muita coisa restava fazer-se e o novo
soldado via diante de si um futuro todo glória e
felicidade.
SP, SPF, SP1: circumstancia
SP, SPF, SP1: Italia
SP, SPF, SP1: annos
SP, SPF, SP1: enthusiasmo; quiz
SP, SPF, SP1: pae; porem
SP, SPF, SP1: bellico; á idade;
propria
SP, SPF, SP1: exercito
SP, SPF, SP1: cousa; deante
SP, SPF, SP1: gloria
305
A desilusão veio logo, tão apertado é o serviço
das casernas, ainda mais em circunstâncias como as
que se davam na Itália, que tratava de remodelar-se e
garantir-se contra investidas estrangeiras que era fácil
sobrevirem. Os sofrimentos por que passou, a
severidade injusta e ingrata dos seus superiores, a falta
SP, SPF, SP1: desillusão
SP, SPF, SP1: circumstancias
SP, SPF, SP1: Italia
SP, SPF, SP1: facil
SP, SPF, SP1: soffrimentos
459
310
315
de lealdade de muitos de seus companheiros, as
intrigas, a inveja e as más paixões que notou na maior
parte dos seus camaradas; tudo isso muito serviu a
Marco de lição proveitosíssima e fortaleceu-lhe o
ânimo para arrastar as dificuldades da vida e viver em
paz envolvido na sociedade, que entrou a conhecer
como perversa, injusta e desviada em geral das boas
normas.
SP, SPF, SP1: licção
proveitosissima
SP, SPF, SP1: animo;
difficuldades
320
À medida que Marco falava, animava-se
Genaro e sentiu como que um bálsamo infiltrar-se no
seu ânimo varrendo todas as idéias tristes que o
martirizavam. Através de todo aquele sermão, o jovem
percebia a graciosa eleita do seu coração a animá-lo, a
reconhecê-lo o seu preferido, único digno de unir-se
ao seu destino, único capaz de fazer a sua felicidade.
SP, SPF, SP1: A’medida
SP, SPF, SP1: Gennaro; balsamo
SP, SPF, SP1: animo
SP, SPF, SP1: idéas;
martyrizavam; Atravéz; aquelle;
joven;
SP, SPF, SP1: animal-o
SP, SPF, SP1: reconhecel-o;
unico
SP, SPF, SP1: unico
325
Marco terminou abraçando o seu pupilo e
confirmando a confiança e estima que este lhe
merecia. Genaro chorou enternecido e possuído de
uma gratidão que resgatava a falta que cometera e que
tanto o preocupava.
SP, SPF, SP1: pupillo
SP, SPF, SP1: Gennaro; possuido
SP, SPF, SP1: commettera
SP, SPF, SP1: preoccupava
XXII
460
“O diabo ajuda aos seus” diz o vulgo na sua
concisa apreciação filosófica das coisas desta vida
precária, onde fervem os ódios e as vinganças.
SP, SPF, SP1: philosophica;
cousas; d’esta
SP, SPF, SP1: precaria; odios
5
10
15
Abílio, mesmo fugindo covardemente com
receio da polícia, não deixou de alimentar no seu
coração as idéias de rancor e vingança que lhe
conhecemos. Sempre o mesmo perverso, ajuntou
àqueles que se achavam condenados pelos seus juízos
tortuosos, o pobre Felisberto, o seu antigo colega que
o desmascarou. É bem certo que escapara devido à
generosidade do rapaz; porém a gratidão não podia
medrar naquela alma daninha encharcada de ruins
paixões. Felisberto devia pagar com a morte o que ele
considerava sua audácia e desrespeito à posição de um
cavalheiro que lhe era superior em qualidade e
fortuna.
SP, SPF, SP1: Abilio;
cobardemente
SP, SPF, SP1: policia
SP, SPF, SP1: idéas
SP, SPF, SP1: áquelles;
condemnados; juizos
SP, SPF, SP1: collega
SP, SPF, SP1: á generosidade
SP, SPF, SP1: porem
SP, SPF, SP1: n’aquella
damninha
SP, SPF, SP1: elle
SP, SPF, SP1: audacia; á posição
20
25
O orgulho mau – a embófia – era a nota
dominante no conjunto de sentimentos maus que
enchiam até o extravasamento a sua alma de
energúmeno. Escapulindo, ao princípio desorientado,
sem rumo certo, conseguiu Abílio chegar a um
lugarejo insignificante, onde se achou em segurança.
Achava-se nas fronteiras do Triângulo Mineiro, como
veio a saber por meio de cautelosas indagações. Nesse
SP, SPF, SP1: embofia
SP, SPF, SP1: conjuncto; máus
SP, SPF, SP1: energumeno;
principio
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: logarejo
SP, SPF, SP1: Triangulo
SP, SPF, SP1: N’esse
461
30
35
homizio podia tranqüilamente consertar os seus planos
diabólicos, e foi o que ele procurou fazer. O seu
desejo era raspar-se para a Bahia, onde estaria bem
seguro como cria; mas deixaria atrás sem solução
tantas coisas que o seu espírito engendrara, e a que se
via preso. Era preciso pelo menos ferir o seu antigo
rival e vingar-se do seu antigo condiscípulo de
colégio. Para isso faltava-lhe um instrumento e, se não
o encontrasse tal como desejava prontamente, por isso
não retardaria a sua volta à Bahia.
SP, SPF, SP1: tranquillamente
SP, SPF, SP1: diabólicos; elle
SP, SPF, SP1: deixava; atraz
SP, SPF, SP1: cousas; espirito
engendrou
SP, SPF, SP1: condiscipulo
SP, SPF, SP1: collegio; si
SP, SPF, SP1: promptamente
SP, SPF, SP1: á Bahia
40
Um velho vendeiro, homem honesto e pacato,
acolheu-o como pensionista. Abílio achou ótimo o
pouso, porque a casa era situada à beira da estrada, o
modesto negócio do velho era muito procurado pelos
viajantes e, por seu interesse, o bom velho construíra
uma rancharia ao pé da casa para albergue dos
pedestres que dele se quisessem utilizar. Entre tantos
viajantes, de toda a espécie e conduta teria Abílio
onde escolher.
SP, SPF, SP1: Abilio; optimo
SP, SPF, SP1: á beira
SP, SPF, SP1: negocio
SP, SPF, SP1: construira
SP1: alvergue (Erro óbvio.)
SP, SPF, SP1: d’elle; quizessem;
viandantes
SP, SPF, SP1: especie; conducta;
Abilio
45
Abílio, que se dava como negociante
ambulante, conduzia uma pequena mala de mão,
dizendo ao velho dono da casa que o resto das suas
mercadorias ficara na última estação da via férrea; que
naquela mala conduzia algumas jóias e quinquilharias
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: ultima
SP, SPF, SP1: n’aquella; joias
462
50
55
60
65
que esperava vender para não perder tempo.
Pretextando necessidade de descanso e achar-se um
pouco adoentado, demorar-se-ia ali alguns dias. A
verdade é que ele viera ter ali desorientado, apenas
podendo conduzir aquela mala, na qual levava duas
mudas de roupa, algum dinheiro e objetos miúdos. As
duas malas realmente haviam sido despachadas para a
estação a que se referia, e o seu dinheiro de vulto foi
depositado em um banco dos mais acreditados. Abílio
viajou por estrada de ferro que, abandonava aqui e ali
em estações intermediárias quando encontrava outra
qualidade de veículos. Desviando-se assim para um e
outro lado, às vezes viajando a pé, o seu fim era
desorientar quem porventura viesse em sua
perseguição; mas foi feliz porque ninguém em
Ribeirão Preto preocupou-se com ele.
SP, SPF, SP1: descanço
SP, SPF, SP1: alli
SP, SPF, SP1: elle; alli
SP, SPF, SP1: aquella
SP, SPF, SP1: objectos; meudos
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: alli
SP, SPF, SP1: intermediarias
SP, SPF, SP1: vehiculos
SP, SPF, SP1: ás vezes
SP, SPF, SP1: ninguem
SP, SPF, SP1: preoccupou-se;
elle
70
Assim chegou aonde o encontramos por
último. Durante o dia percorria o arraialete oferecendo
e vendendo objetos miúdos, jóias de pequeno valor,
etc. Ao descansar, ficava horas e horas na venda
conversando com os transeuntes ordinários e fazendo
jeitosamente indagações ou então procurava aqueles
que se aboletavam na rancharia. Quando, porventura,
passavam viajantes que lhe parecessem de classe mais
SP, SPF, SP1: ultimo
SP, SPF, SP1: offerecendo
SP, SPF, SP1: objectos; meudos;
joias
SP, SPF, SP1: ordinarios
SP, SPF, SP1: geitosamente;
aquelles
463
75
passavam viajantes que lhe parecessem de classe mais
elevada, Abílio ocultava-se na sua alcova, de onde
ouvia-os conversar com o locandeiro,306 só
aparecendo quando certo de que não havia perigo de
ser reconhecido.
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: apparecendo
80
85
90
95
“O diabo ajuda aos seus” dissemos ao
começar este capítulo. Expliquemos. Já fazia uma
semana mais ou menos que Abílio se achava naquele
pouso, quando foi surpreendido pelo aparecimento do
seu antigo assecla –o Gil ou Tomás – que, ao
reconhecê-lo, parou defronte da locanda. O antigo
patrão de Gil, olho aqui, olho ali, vendo que ambos
estavam a sós, manifestou francamente, se bem que
com a sua costumada discrição, o contentamento que
experimentava. Veio-lhe logo à idéia aproveitar o caso
para que o meliante lhe fosse agradecido. Disse-lhe
que esperava vê-lo porque dera providências a fim de
que o seu camarada conseguisse a livrança.307 Gil,
mostrando-se reconhecido ao patrão, passou a referir
na sua linguagem rude e estropiada que a Justiça de
Uberaba achou que a sua prisão foi ilegal tendo sido
feita sem ser pedida por precatória. Um advogado
tratou disso e conseguiu pô-lo em liberdade apenas
SP, SPF, SP1: capitulo
SP, SPF, SP1: Abilio; n’aquelle
SP, SPF, SP1: surprehendido;
apparecimento
SP, SPF, SP1: Thomaz
SP, SPF, SP1: reconhecel-o
SP, SPF, SP1: alli
SP, SPF, SP1: si
SP, SPF, SP1: discreção
SP, SPF, SP1: á idéa
SP, SPF, SP1: vel-o;
providencias; afim
SP, SPF, SP1: illegal
SP, SPF, SP1: precatoria; d’isso;
pol-o
306 Locandeiro: proprietário de locanda, ou seja, casa de pasto ordinária. 307 Livrança: livramento.
464
por caridade. Tencionava voltar para Ribeirão, mas,
contente por encontrar o seu patrão estava ali às suas
ordens “para a vida e para a morte”.
SP, SPF, SP1: alli; ás suas
100
105
Abílio aconselhou-lhe que se arranchasse ali,
indicando o albergue, deu-lhe uns cobres e disse-lhe
que tinha muito que conversar com ele. O que é certo
é que, desse dia por diante, quando os dois o podiam a
sós, entravam a conversar longamente em ar
misterioso, como dois amigos, cada qual desejando
tirar proveito do outro. Por fim, tudo combinado entre
os dois, Abílio separou-se de Gil fornecendo-lhe certa
quantia e viajou para o Norte e o camarada voltou para
Ribeirão levando certamente recomendações e
promessas de encherem-lhe o olho.
SP, SPF, SP1: Abilio; alli
SP, SPF, SP1: alvergue
SP, SPF, SP1: elle
SP, SPF, SP1: d’esse; deante;
dous
SP, SPF, SP1: mysterioso; dous
SP, SPF, SP1: Porfim
SP, SPF, SP1: dous; Abilio
SP, SPF, SP1: recommendações
110
115
O resultado das confabulações entre Gil e
Abílio, as quais por certo não eram honestas e lícitas,
foi o seguinte: –Quando uma noite Felisberto, – o
antigo colega que descobriu o incógnito de Abílio –
seguia para a sua residência alta noite por uma viela
escusa, foi assaltado por dois embuçados que o
espancaram barbaramente, deixando-o prostrado e
sem sentidos, e desapareceram rapidamente. Debalde
a polícia, que o encontrou neste estado, procurou
descobrir os assaltantes. Felisberto, voltando a si, nada
SP, SPF, SP1: Abilio, as quaes;
licitas (,)
SP, SPF, SP1: collega; incognito;
Abilio
SP, SPF, SP1: residencia viella
excusa
SP, SPF, SP1: dous
SP, SPF, SP1: barbaramente (,)
SP, SPF, SP1: desappareceram;
policia
SP, SPF, SP1: n’este
465
120
informou que adiantasse, e o crime nefando ficou
impune.
SP, SPF, SP1: adeantasse
XXIII
5
Enquanto se davam os fatos que relatamos nos
dois últimos capítulos, João e Calisto, ao aproximar-se
à entrega da empreitada, tratavam de dispor dos
produtos agrícolas que lhes pertenciam pelo contrato e
preparavam-se para realizar os seus negócios com o
coronel Paulino.
SP, SPF, SP1: Emquanto; factos;
dous
SP, SPF, SP1: ultimos; capitulos;
Calixto; approximar-se
SP, SPF, SP1: á entrega
SP, SPF, SP1: productos;
agricolas; contracto
SP, SPF, SP1: realisar; negocios
10
15
Gil, terminada a empresa contra Felisberto, voltou
de Ribeirão para as imediações da fazenda do coronel
conforme combinara com o patrão, e, às ocultas,
procurou descobrir quando os empreiteiros, tudo
concluído, tencionavam voltar para a Bahia. Sem que
o vissem, temendo ser reconhecido por já ter
trabalhado na empreitada, à noite o miserável
aproximava-se da residência dos empreiteiros, ouvia o
que conversavam e combinavam, via-os fazerem as
suas arrumações, mais ou menos percebia quanto iam
SP, SPF, SP1: empreza
SP, SPF, SP1: immediações
SP, SPF, SP1: ás occultas
SP, SPF, SP1: concluido (,)
SP, SPF, SP1: ja
SP, SPF, SP1: á noite; miseravel
SP, SPF, SP1: approximava-se;
residencia
466
apurando dos seus negócios e inteirava-se do tempo
mais ou menos empregado para a viagem.
SP, SPF, SP1: negocios
20
Afinal, tudo concluído, tiveram João e Calisto que
entregar o trabalho realizado.
SP, SPF, SP1: concluido; Calixto
SP, SPF, SP1: realisado
25
30
35
40
O coronel Paulino pessoalmente, acompanhado de
Aristides e Melquíades, foi examinar tudo, contar os
cafezeiros e verificar se em tudo tinham sido
observadas as cláusulas estipuladas no contrato. Em
tudo quanto examinou e verificou ficou cabalmente
demonstrado o escrúpulo e honestidade dos dois
contratantes que chegaram a aumentar quinhentas
plantas sobre o número contratado, para o caso de
sobrevir qualquer contratempo. Desta demasia não
queriam compensação pecuniária dizendo que se
achariam de sobejo indenizados se o coronel estivesse
satisfeito. O coronel, apesar de discreto como são os
ricos e poderosos quando tratam com pessoas que
consideram somenos,308 sorriu bondosamente e
elogiou o trabalho dos dois baianos na impecabilidade
com que traçaram as fileiras e guardaram a distância
exigida pela técnica agrícola entre as plantas. Chegou
mesmo a oferecer os seus ofícios a João e Calisto e
propor-lhes um novo contrato para formação de outro
cafezal, o que deixaram eles de aceitar por ansiarem
SP, SPF, SP1: Melchiades
SP, SPF, SP1: cafeseiros; si
SP, SPF, SP1: clausulas
contracto
SP, SPF, SP1: escrupulo; dous
SP, SPF, SP1: contractantes;
augmentar
SP, SPF, SP1: numero;
contractado
SP, SPF, SP1: D’esta
SP, SPF, SP1: pecuniaria
SP, SPF, SP1: indemnizados; si
SP, SPF, SP1: apezar
SP, SPF, SP1: dous; bahianos;
impeccabilidade
SP, SPF, SP1: distancia
SP, SPF, SP1: techina; agricola
SP, SPF, SP1: offerecer; officios;
Calixto
SP, SPF, SP1: contracto; cafesal
SP, SPF, SP1: elles; acceitar
308 Somenos: infeior, de menor valor que outro.
467
cafezal, o que deixaram eles de aceitar por ansiarem
por chegar em sua terra e no seio amorável das suas
famílias.
SP, SPF, SP1: ancearem;
amorável
SP, SPF, SP1: familias
45
–Os senhores são homens de bem – disse o
coronel. –É pena que não realizem na sua terra o que
aqui vamos fazendo. Dou-lhes, entretanto, razão. Os
senhores são exceção na sua terra sertaneja que,
segundo estou informado, é riquíssima.
SP, SPF, SP1: realisem
SP, SPF, SP1: excepção
SP, SPF, SP1: riquissima
50
–Não somos exceções, senhor coronel – retrucou
João. – Os nossos sertanejos são laboriosos e
procuram arrancar da terra os tesouros que ela guarda.
SP, SPF, SP1: excepções
SP, SPF, SP1: thesouros; ella
–E por que a abandonam para procurarem fortuna
entre nós?
SP, SPF, SP1: porque; nós. (?)
55
–É que os homens que dirigem a Bahia não nos
auxiliam nem fomentam o trabalho como o governo
de São Paulo; porque o nosso sertão é muito vasto e
não dispõe dos meios de transporte que aqui vejo.
SP, SPF, SP1: S. Paulo
60
–Ora governos! Meu amigo, a iniciativa do povo é
que faz o progresso. Viram o nosso crescente
progresso que, daqui a poucos anos, será estupendo.
Convença-se de que ele é devido em primeiro lugar à
nossa iniciativa. Quando os governantes vêm boa
vontade e deliberação no povo trabalhador é que vem
auxiliá-lo no seu labor, e por seu próprio interesse. O
SP, SPF, SP1: aigo (,)
SP, SPF, SP1: d’aqui; annos(,)
SP, SPF, SP1: elle; á nossa
SP, SPF, SP1: auxilial-o; proprio
468
65
próprio Deus ajuda a quem trabalha, e quer que a
iniciativa parta dos homens. Nada esperem dos
poderes públicos; deliberem-se a dotar a sua terra do
progresso que ela bem merece, sejam livres, e os
governos ver-se-ão forçados a vir em seu auxílio.
SP, SPF, SP1: proprio
SP, SPF, SP1: publicos
SP, SPF, SP1: ella
SP, SPF, SP1: auxilio
70
Assim conversando chegaram em casa. As contas
foram ajustadas e os pagamentos feitos, recebendo
João e Calisto vultuosas quantias, que pediram ao
coronel as passassem para a Bahia à sua entrega visto
como a viagem que tinham de fazer era extensa e
cheia de riscos para quem levasse dinheiro.
SP, SPF, SP1: feitos (,)
SP, SPF, SP1: Calixto
SP, SPF, SP1: á sua
75
80
Livres os dois amigos do seu compromisso de
modo satisfatório, e de posse de alguns contos de réis
que para eles era fortuna invejável, não se
preocupavam com as despesas da viagem, porque o
produto da venda de cereais e mais objetos dava com
muita sobra para chegarem em sua terra. Restava-lhes
irem ao sítio de Oliveira e, de regresso, empreenderem
a sua grande viagem de retorno aos sertões baianos.
SP, SPF, SP1: dous
SP, SPF, SP1: satisfactorio; reis
SP, SPF, SP1: elles; invejavel
SP, SPF, SP1: preoccupavam;
despezas
SP, SPF, SP1: producto; cereaes;
objectos
SP, SPF, SP1: sitio;
emprehenderem
SP, SPF, SP1: bahianos
85
Havia contentamento geral entre os amigos de
João e Calisto pelo bom resultado que haviam colhido
e pela conduta exemplar que ali haviam mantido.
Aristides exultava por ficar-lhe demonstrado que João
era um homem de bem que honrava a sua família, e
SP, SPF, SP1: Calixto; colheram
SP, SPF, SP1: conducta; alli ;
mantiveram
SP, SPF, SP1: familia; n’esse
469
90
95
nesse sentido escreveu uma longa carta a seu pai, na
qual apresentava Calisto, fazendo as mais lisonjeiras
referências a seu respeito. Melquíades veio apresentar
os seus parabéns aos dois amigos, a quem ofereceu os
seus préstimos, informando que o coronel Paulino
estava satisfeitíssimo. Marco, Genaro, Giudita e, até, a
velha Maria já sentiam saudades antecipadas quando
se lembravam da retirada dos dois baianos. Como
prova de confiança, os dois amigos, tendo de ir a
Bebedouro, confiaram a Marco, até que voltassem,
todos os objetos e, até, algum dinheiro que lhes era
dispensável nessa pequena viagem.
SP, SPF, SP1: pae
SP, SPF, SP1: Calixto (,)
SP, SPF, SP1: referencias;
Melchiades
SP, SPF, SP1: parabens; dous;
offereceu
SP, SPF, SP1: prestimos
SP, SPF, SP1: satisfeitissimo;
Gennaro; Giuditta
SP, SPF, SP1: dous; bahianos
SP, SPF, SP1: dous
SP, SPF, SP1: objectos
SP, SPF, SP1: dispensavel;
n’essa
200
205
Oliveira acolheu o genro e o seu amigo com a
maior cordialidade. João propôs-lhe ir para a Bahia.
Conheceria seus netinhos e daria com isso muito
prazer a sua filha. Oliveira não se pôs de fora; mas só
iria depois que dispusesse do seu sítio. Estava em
idade avançada e muito só, necessitando viver
tranqüilo no meio dos seus. Quando lhe fosse
possível, avisaria previamente.
SP, SPF, SP1: ao seu (Emendou-
se.)
SP, SPF, SP1: propoz-lhe
SP, SPF, SP1: nettinhos
SP, SPF, SP1: poz
SP, SPF, SP1: sitio
SP, SPF, SP1: edade
SP, SPF, SP1: tranquillo
SP, SPF, SP1: possivel
210
Gil ignorava todas as particularidades que damos
acima, mas do seu esconderijo pôde colher alguma
cousa e ficar ciente que os dois amigos estavam em
véspera de viagem. Por isso preparava-se para segui-
SP, SPF, SP1: sciente; dous
SP, SPF, SP1: vespera; seguil- os
470
los levando consigo más intenções. SP, SPF, SP1: comsigo
215
220
225
João e Calisto foram a Bebedouro, onde fizeram
algumas compras, não se esquecendo de objetos que
deixariam com os amigos como lembrança e sinal de
gratidão. Voltando à fazenda do coronel dias depois,
os dois amigos inseparáveis fizeram a entrega dos
presentes àqueles a quem os destinavam. Ao velho
Marco tocou um belo cachimbo de espuma em estojo,
Genaro uma sanfona, objeto que o rapaz desejava há
muito tempo possuir, a Giudita um vestido em corte,
próprio para noivado, a Aristides uma escrivaninha de
prata cinzelada com os seus pertences, à velha Maria
um vestido em corte, próprio da sua idade, e a
Melquíades um resguardo de casimira para o tempo de
inverno.
SP, SPF, SP1: Calixto
SP, SPF, SP1: objectos
SP, SPF, SP1: signal
SP, SPF, SP1: á fazenda
SP, SPF, SP1: dous; inseparaveis
SP, SPF, SP1: áquelles
SP, SPF, SP1: bello
SP, SPF, SP1: Gennaro;
samphona; objecto
SP, SPF, SP1: Giuditta; córte
SP, SPF, SP1: proprio;
escrevaninha
SP, SPF, SP1: á velha
SP, SPF, SP1: côrte; proprio;
edade
SP, SPF, SP1: Melchiades;
casemira
230
235
Todos esses brindados não sabiam como
agradecer a João e Calisto essa prova de amizade; mas
ninguém manifestou a sua satisfação tão ruidosa e
alacremente como Genarino que, qual criança,
examinava o instrumento tecla por tecla, sorria,
piruetava, andava abaixo e acima e concluiu
executando um pequeno trecho musical, se bem que
não como emérito sanfonista; mas revelando grande
vocação. A velha Maria veio cá fora agradecer o
SP, SPF, SP1: Calixto; ninguem
SP, SPF, SP1: Gennarino;
creança
SP, SPF, SP1: si
SP, SPF, SP1: emerito;
samphonista
SP, SPF, SP1: fóra
471
240
245
presente acompanhando as suas palavras do primeiro
sorriso que os dois amigos viram relampear no seu
semblante. Marco, este, como entendido, abriu o
estojo, examinou o cachimbo e avaliou o seu presente
como um dos mais valiosos, mas consigo,
discretamente, lastimava que o cachimbo não
estivesse bem quilotado. Giudita desfazia-se em
sorrisos de gratidão e contentamento, mostrando a
Maria a fazenda, o bem tecido, a maciez da seda e a
delicadeza dos lavores. O seu contentamento ainda era
maior porque lhe veio despertar a idéia de seu
almejado casamento.
SP, SPF, SP1: dous
SP, SPF, SP1: comsigo
SP: quilotado, SPF, SP1:
QUILOTADO; Giuditta
SP, SPF, SP1: idéa
XXIV
5
Poucos dias depois João e Calisto estavam de
viagem. Entre os colonos da fazenda havia dois baianos
sertanejos que desejavam regressar aos seus sertões em
companhia dos dois amigos, mesmo por temerem os
perigos a que se arriscam os viajantes. Melquíades
recomendou-os como homens honestos que trabalhavam
ali havia mais de um ano sem nota que os desabonasse.
SP, SPF, SP1: Calixto
SP, SPF, SP1: dous; bahianos
SP, SPF, SP1: dois
SP, SPF, SP1: Melchiades
SP, SPF, SP1: recommendou-os
SP, SPF, SP1: alli; anno
472
10
15
Munidos todos de armas curtas, e bem
aprecatados309 contra qualquer perigo, João e o seu amigo,
depois de despedirem-se do coronel, que ainda uma vez
teve elogios ao seu modo de proceder e afirmou-lhes que
se precisassem do seu auxílio, estava às suas ordens;
depois de estarem largos momentos com Aristides, que
escreveu a Maria e ao velho professor; depois de também
afirmarem a Marco e à sua família a simpatia que lhes
votavam e a saudade que deles levavam: alcearam os
sacos e partiram em companhia dos dois outros que se
lhes agregaram.
SP, SPF, SP1: affirmou-lhes
SP, SPF, SP1: auxilio; ás suas
SP, SPF, SP1: tambem
SP, SPF, SP1: affirmarem; á sua
familia; sympathia
SP, SPF, SP1: d’elles
SP, SPF, SP1: dous
SP, SPF, SP1: aggregaram
20
25
30
Gil, já ciente do dia da partida dos dois amigos,
seguiu o mesmo caminho, que eles deviam tomar, dois
dias antes. Que as suas intenções eram más não resta
dúvida: mas vendo que iam mais dois companheiros,
calculou que era arriscadíssimo o que tentava levar a
efeito. Era um contra quatro; mas esperava que, em tão
longa viagem, haveria oportunidade, quando, por qualquer
circunstância ou necessidade, separassem-se do grupo
aqueles que ele visasse ou quisesse evitar. Nessa idéia,
pôs-se a pensar nos meios de separá-los quando,
porventura, não tomasse essa deliberação. Não lhe
convinha reunir consigo companheiros da sua laia porque
assim mais complicada ficaria a realização do seu intento
SP, SPF, SP1: sciente; dous
SP, SPF, SP1: elles; dous
SP, SPF, SP1: duvida; dous
SP, SPF, SP1: arriscadissimo
SP, SPF, SP1: effeito
SP, SPF, SP1: opportunidade
SP, SPF, SP1: circunstancia
SP, SPF, SP1: aquelles; elle;
quizesse; N’essa; idéa
SP, SPF, SP1: poz-se; separal-os
SP, SPF, SP1: comsigo
SP, SPF, SP1: realisação
309 Aprecatado: calçado.
473
assim mais complicada ficaria a realização do seu intento
e, demais, teria ele que contar com concorrentes ao
resultado da obra que projetava.
SP, SPF, SP1: elle; concurrentes
SP, SPF, SP1: projectava
35
40
Os nossos viajantes seguiram rumo de Mococa,
quase já nas fronteiras de Minas, ponto obrigado como
sabia Gil; por isso esse foi esperá-los aqui, não deixando
de tomar muitas precauções a fim de não ser reconhecido.
Durante o dia, ao menor tropel que ouvisse, ocultava-se
nos matos marginais, e à noite, amoitado, observava com
olhos de Lince toda a gente que passasse pela estrada.
SP, SPF, SP1: Mocóca
SP, SPF, SP1: quasi
SP, SPF, SP1: esperal-os
SP, SPF, SP1: afim de
SP, SPF, SP1: occultava-se
SP, SPF, SP1: mattos; marginaes; á
noite
SP, SPF, SP1: Lynce
45
50
No segundo ou terceiro dia de viagem Calisto
notou um rasto de alpercatas que seguia o mesmo rumo
que ele e os companheiros, e calculou que seria um
sampauleiro que voltava para o Norte. “Este sujeito,
pensou ele, não sabe de nós, senão se teria juntado ao
nosso grupo.” Esperava alcançá-lo; mas foi baldado.310
Daí por diante o amigo de João que, como soldado que
foi, adquirira ou aguçara o seu espírito de observação era
reconhecimentos que fizera, foi notando o mesmo rasto e
a mesma direção que tomava.
SP, SPF, SP1: Calixto
SP, SPF, SP1: elle
SP, SPF, SP1: elle; sinão
SP, SPF, SP1: alcançal-o; D’ahi
SP, SPF, SP1: deante; qur(,)
SP, SPF, SP1: adquerira, espirito
Depois de passarem Mococa, as pegadas que ele
notava e que perdeu de vista, reapareceram sempre na
mesma direção, o que lhe confirmou a idéia primitiva de
tratar-se de um migrante que retornava à sua terra. Uma
SP, SPF, SP1: Mocóca; pégadas;
elle
SP, SPF, SP1: direcção; idéa
SP, SPF, SP1: á sua
310 Baldado: frustado, inúltil.
474
55
60
tratar-se de um migrante que retornava à sua terra. Uma
tarde, porém, notou que, em certa altura da estrada, as
pegadas de alpercatas, as mesmas que já bem conhecia,
desviavam-se da estrada real e embrenhavam-se nos
matos marginais. Isso lhe deu que pensar, e ainda mais o
intranqüilizou, porque no dia seguinte a mesma pista
reapareceu seguindo o mesmo norte. A nenhum dos
companheiros Calisto revelou o que observava e a
desconfiança que ia tomando vulto no seu espírito.
SP, SPF, SP1: porem; que (,)
SP, SPF, SP1: pégadas
SP, SPF, SP1: mattos
SP, SPF, SP1: marginaes
SP, SPF, SP1: intranquilillisou
SP, SPF, SP1: reappareceu
SP, SPF, SP1: Calixto
SP, SPF, SP1: espirito
65
70
75
Apreensivo, e observando com mais interesse a
pista do misterioso viajante que seguia adiante de seu
grupo, Calisto sem nada revelar aos companheiros dos
seus receios, dormia pensando no caso e fazendo, mesmo
em sonhos, conjecturas que o acordavam alvoroçado.
Tinha sempre a sua arma aperrada311 e à mão para o que
se desse e viesse. O cuidadoso exame que ia fazendo do
rasto de alpercatas que, ora sumia no interior dos matos
por um lado, ora por outro, convencia o velho soldado da
má intenção do viajante, porque este procurava sempre os
lugares mais solitários para ocultar-se, onde os matos
eram mais espessos e ofereciam mais vantagens para uma
emboscada. Tratava-se de um maquino,312 não havia
dúvida, e era preciso avisar aos companheiros a fim de
SP, SPF, SP1: Apprehensivo
SP, SPF, SP1: mysterioso; adeante
SP, SPF, SP1: Calixto
SP, SPF, SP1: accordavam
SP, SPF, SP1: á mão
SP, SPF, SP1: désse; viésse
SP, SPF, SP1: mattos
SP, SPF, SP1: solitarios; occultar-
se; mattos
SP, SPF, SP1: paes
SP, SPF, SP1: duvida
SP, SPF, SP1: afim de
311 Aperrada: engatilhada. 312 Maquino: conspiração, trama.
475
que todos, unidos, tomassem serias precauções.
80
85
João, entretanto, homem de boa fé que era,
achou exagerados os receios de Calisto. Se se tratava de
um miserável salteador, porque ainda não tinha procurado
realizar o seu intento em muitas passagens da estrada que
ofereciam vantagens a quem se dispusesse a isso? Em
todo o caso procuraram viajar sempre com a claridade do
dia e pernoitar em povoações onde não corressem tanto
riscos como dormindo ao relento.
SP, SPF, SP1: Calixto; Si
SP, SPF, SP1: miseravel
SP, SPF, SP1: realisar
SP, SPF, SP1: offereciam
90
95
100
Viajando assim, Calisto sempre de sobreaviso e
os demais seguindo o seu conselho, por conhecê-lo o mais
prático do grupo, muitos dias de viagem tinham vencido
os nossos viajantes e achavam-se próximos da Cidade do
Tremedal, quase nas fronteiras da Bahia. A ansiedade de
chegarem em sua terra era geral, e mais intensa em João,
que já antegostava o grande regozijo que teria abraçando
os seus mais depressa do que os outros, pois seria o
primeiro a chegar na sua morada. Isso de alguma sorte
varreu mais ou menos do seu espírito de todas as tristes
idéias e receios que Calisto incutira no grupo. O amigo de
João, porém, não deixava de observar o rastro do viajante
de alpercatas, chegando a certificar-se de que as suas
intenções eram más, e que se nada tinha feito segundo o
seu desejo, era por ser covarde e ter receio de perder a
SP, SPF, SP1: Calixto
SP, SPF, SP1: conhecel-o
SP, SPF, SP1: pratico
SP, SPF, SP1: proximos
SP, SPF, SP1: quasi; anciedade
SP, SPF, SP1: regosijo
SP, SPF, SP1: espirito
SP, SPF, SP1: idéas; Calixto
SP, SPF, SP1: porem
SP, SPF, SP1: alpercatas (,)
476
partida.
105
Uma tarde, quando se achavam os nossos
migrantes há cerca de duas léguas de Tremedal, embora
encontrassem um pouso seguro, tomaram a resolução de
viajar, mesmo à noite, para pernoitar na cidade. Estavam
na estação chuvosa, e desde de alguns dias, chovia a
intervalos sem embaraçar a marcha que vinham fazendo.
SP, SPF, SP1: leguas
SP, SPF, SP1: com á noite
(Emendou-se.)
110
115
120
Qual o espírito, por mais rude e ignorante que
seja, que, ao aproximar-se da terra onde nasceu, onde se
acham os seus parentes e amigos, e que tão doces
recordações o acalentam, não sente um prazer indefinido
antevendo o contentamento da família e dos amigos ao
vê-lo depois de uma ausência prolongada!? O seu espírito
não admite pensamento algum alheio a essa preocupação
suave e deliciosa; só ela plena-lhe a alma, absorve-a,
domina-a. É o que se dava com os nossos viajantes mais
ou menos intensamente, e em João com uma
preponderância, com uma força dominadora que o levava
a sonhar acordado e desejar que possuísse asas para
chegar célere junto à sua querida Maria e aos seus
filhinhos.
SP, SPF, SP1: espirito
SP, SPF, SP1: familia
SP, SPF, SP1: vel-o; ausencia;
espirito
SP, SPF, SP1: admitte;
preoccupação
SP, SPF, SP1: ella
SP, SPF, SP1: preponderancia
SP, SPF, SP1: accordado; possuisse
SP, SPF, SP1: á sua
125
A noite veio mais escura e carregada, porque
nuvens grossas e acasteladas iam tomando o céu. Depois
os relâmpagos repetiam-se e uma borrasca estava
SP, SPF, SP1: acastelladas; céo
SP, SPF, SP1: relampagos
477
130
135
os relâmpagos repetiam-se e uma borrasca estava
iminente, razão para que os viajantes estugassem313 o
passo, ansiosos por alcançar a cidade. João, este, por isso
e, mais, pela ardente vontade de chegar mais depressa na
sua querida Bahia, ia na vanguarda marchando com mais
pressa do que os companheiros. Ao clarão repetido dos
relâmpagos é que percebiam o trilho deviam seguir, tal
era a escuridão. Já algumas gotas caíam prenunciando
uma chuva torrencial e como que a incitá-los a andar mais
apresados.
SP, SPF, SP1: imminente
SP, SPF, SP1: anciosos
SP, SPF, SP1: relampagos
SP, SPF, SP1: gottas; cahiam
SP, SPF, SP1: incital-os
140
145
De repente Calisto viu brilhar nas trevas um
clarão seguindo-se logo o estampido de um tiro. O amigo
de João não hesitou e, já com a arma aperrada em punho,
seguiu presto rumo do clarão, exclamando em voz baixa:
“Eu não disse?” Os dois outros, a sua deliberação,
seguiram-no. Estavam distantes poucos passos, quando
um relâmpago iluminou o local. De trás de uma moita
saiu um homem empunhando uma faca ou punhal em
direção de outro que se achava prostrado. Rápido como
pensamento, Calisto desfechou um tiro no assaltante, que
deu um grito e caiu.
SP, SPF, SP1: Calixto
SP, SPF, SP1: dous
SP, SPF, SP1: seguiram-n-o
SP, SPF, SP1: relampago;
illuminou; traz; sahiu
SP, SPF, SP1: direcção
SP, SPF, SP1: Rapido
SP, SPF, SP1: Calixto
SP, SPF, SP1: cahiu
A cena foi mais rápida que o tempo que levamos
a descrevê-la. A noite era escura como pez, o céu velado
por uma nuvem negra que tomava todo horizonte. Como
SP, SPF, SP1: scena; rapida
SP, SPF, SP1: descrevel-a; céo
313 Estugar: apressar; aligeirar o passo.
478
150
por uma nuvem negra que tomava todo horizonte. Como
examinar os feridos e tomar uma providência? Os
relâmpagos a miúde rasgavam as trevas, mas a sua luz era
tão fugaz e de tal contraste com as sombras, que antes,
obumbrava314 a visão dos nossos viajantes, que ouviam
suspiros e gemidos de ambos os feridos.
SP, SPF, SP1: providencia
SP, SPF, SP1: relampagos; meude
155
160
Calisto lembrou-se de seu isqueiro, que era
aceso à gasolina. Era uma luz mortiça e pouco duradoura,
mas em todo o caso serviria. Felizmente as gotas de chuva
não mais caíam e o grosso da borrasca tomou outro rumo,
apenas vendo-se os relâmpagos, seguidos com demora de
trovões surdos ao longe. Um dos companheiros de Calisto
lembrou-se que trazia um rolo, – um pavio de cordão
grosseiro embebido em cera da terra – e, abrindo o saco,
achou-o felizmente. O rolo foi aceso com a chama do
isqueiro.
SP, SPF, SP1: Calixto
SP, SPF, SP1: acceso; á gazolina.
SP, SPF, SP1: gottas
SP, SPF, SP1: cahiam
SP, SPF, SP1: relampagos
SP, SPF, SP1: Calixto
SP: rolo, SPF, SP1: RÔLO
SP: rolo, SPF, SP1: RÔLO;
chamma
165
170
A cena que se desdobrava diante dos olhos de
Calisto e seus companheiros era triste e desoladora. João,
prostrado sobre o saco ainda atado ao seu corpo, tinha o
braço varado por uma bala que entrara entre o músculo e
o osso do úmero esquerdo, e o outro, – o salteador– ainda
com o punhal na mão crispada, achava-se gravemente
ferido no ventre. A luz fumegante e escassa do rolo
SP, SPF, SP1: scena; deante
SP, SPF, SP1: Calixto
SP, SPF, SP1: sacco
SP, SPF, SP1: musculo
SP, SPF, SP1: húmero
SP: rolo, SPF, SP1: RÔLO
314 Obumbrar: cegar, turvar, tornar escuro.
479
estampava ao quadro o mais triste aspecto.
175
180
Mesmo assim, Calisto, resoluto, à frente dos
dois companheiros, tentou tomar uma providência
qualquer em favor dos dois feridos, especialmente de seu
amigo. Conseguiu preparar com musgos verdes e
folhagens cobertos por um cobertor de lã, um leito no qual
foi acomodado João depois de desembaraçado do saco e
mais objetos que se achavam atados ao seu corpo. Depois,
por caridade, apesar da repugnância dos dois
companheiros, conseguiu Calisto acomodar Gil em uma
cama de folhas.
SP, SPF, SP1: Calixto; á frente
SP, SPF, SP1: dous; providencia
SP, SPF, SP1: dous
SP, SPF, SP1: musculos
SP, SPF, SP1: accomodado; sacco
SP, SPF, SP1: repugnancia; dois
SP, SPF, SP1: Calixto; accomodar
185
190
Neste momento, lembrou-se um dos dois que
trazia um frasco com bálsamo ou “óleo de copaíba” que
sempre conduzia consigo desde que conseguiu pronta cura
de um ferimento de ferro cortante quando trabalhava em
São Paulo. Essa lembrança muito agradou Calisto que,
depois de muito trabalho em abrir o saco e remexê-lo
conseguiu, ajudado por seu dono, obter o bálsamo. Não
havia água para um banho das feridas, mas Calisto
conseguiu umedecê-las e refrescá-las com o orvalho que
ia colhendo aqui e ali no folhedo dos matos.
SP, SPF, SP1: N’este; momento (,)
SP, SPF, SP1: balsamo; oleo;
copahiba
SP, SPF, SP1: comsigo; prompta
SP, SPF, SP1: S. Paulo; Calixto
SP, SPF, SP1: sacco; remechel-o
SP, SPF, SP1: balsamo
SP, SPF, SP1: agua; Calixto
SP, SPF, SP1: humidecel-as
refrescal-as
SP, SPF, SP1: alli; mattos
Já despontava o dilúculo315 da manhã e os
nossos viajantes achavam-se nesta faina, quando ouviram
um tropel de animais e, em seguida viram dou cavaleiros
SP, SPF, SP1: animaes; cavalleiros
315 Dilúculo: crepúsculo matutino.
480
195
200
um tropel de animais e, em seguida viram dou cavaleiros
que vinham em sua direção. Eram dois viajantes que
vinham de Montes Claros, como depois informaram.
Vendo o grupo e dois homens prostrados, procuraram
saber o que havia; se porventura houvera luta entre os
figurantes daquela cena de sangue. Calisto informou o que
havia e o embaraço em que se achavam desde a noite
anterior sem um meio de procurar recursos na Cidade,
para onde queiram e não podiam conduzir os doentes.
SP, SPF, SP1: direcção; dous
SP, SPF, SP1: dous
SP, SPF, SP1: lucta
SP, SPF, SP1: d’aquella; scena;
Calixto
205
210
Os dois viajantes, que eram homens de trato,
dispunham de animais à destra, e ofereceram-nos a
Calisto para transporte de João e Gil. Apeando-se,
examinaram os ferimentos, fizeram indagações de João, o
único dos feridos que se mostrava mais calmo e asseverou
que podia montar, contanto que os companheiros o
ajudassem e que viajassem muito devagar. Gil torcia-se
sofrendo dores horríveis, mas era claro que só poderia
locomover-se conduzido em padiola.316
SP, SPF, SP1: dous
SP, SPF, SP1: animaes; á dextra;
offereceram-n-os
SP, SPF, SP1: Calixto
SP, SPF, SP1: unico
SP, SPF, SP1: soffrendo; horriveis
215
Enfim, duas horas depois, João montou, ajudado
pelos companheiros, os dois cavaleiros seguiram adiante a
fim de darem providências e os dois sampauleiros ficaram
guardando Gil a pedido de Calisto, que acompanhou o
amigo.
SP, SPF, SP1: Emfim
SP, SPF, SP1: dous; cavalleiros
SP, SPF, SP1: adeante; afim;
providencias; dous
SP, SPF, SP1: Calixto
316 Padiola: espécie de cama de lona, portátil e desmontável, usada para transportar doentes e feridos.
481
220
225
Na cidade do Tremedal, já prevenido o
Delegado de Polícia e tomadas providências pelos dois
viajantes que haviam seguido adiante, João teve um
alojamento cômodo e decente e Gil, denunciado pelos
outros como maquino e causador de um caso tão triste, foi
entregue à autoridade por ser o mais criminoso e não
dispor de meios para pagar uma pensão ou alugar uma
casa. O Delegado deu-lhe pouso e tratou logo das
providências precisas para o seu tratamento e para realizar
as diligências que lhe competiam.
SP, SPF, SP1: ja
SP, SPF, SP1: Policia;
providencias; dous
SP, SPF, SP1: adeante
SP, SPF, SP1: commodo
SP, SPF, SP1: á autoridade
SP, SPF, SP1: providencias;
realisar
SP, SPF, SP1: deligencias
230
235
240
Calisto, que não abandonava o amigo, procurou
médico para ele e todo o conforto indispensável ao seu
tratamento e comodidades, despendendo o que fosse
necessário para isso. Procedeu-se a corpo de delito e em
seguida foram ouvidos, em inquérito, não só os dois
feridos como os seus companheiros, resultando de tudo
isto que Calisto atirara em Gil em defesa própria. Embora
a justificativa seja um caso jurídico de qual só pode tomar
conhecimento o plenário, o Delegado, como sói317
acontecer nas povoações sertanejas, tomou-o em
consideração para dar liberdade a Calisto, para isso
decidir sendo insistido pela melhor sociedade de
Tremedal, que se manifestou simpática à causa do amigo
SP, SPF, SP1: Calixto
SP, SPF, SP1: medico; elle;
indispensavel
SP, SPF, SP1: commodidades;
dispendendo
SP, SPF, SP1: necessario; delicto
SP, SPF, SP1: inquerito; dous
SP, SPF, SP1: Calixto; propria
SP, SPF, SP1: juridico
SP, SPF, SP1: plenário; sóe
SP, SPF, SP1: Calixto
SP, SPF, SP1: sympathica; á causa
317 Soer: ser comum, ter por costume ou hábito.
482
de João, que de outro modo não devia nem podia proceder
em tão apertada conjectura.
245
João, segundo o parecer do médico, não poderia
viajar senão depois de cicatrizada a ferida e cessada a
febre inflamatória por completo. Como, porém, os dois
Sampauleiros que se haviam agregado ao grupo
estivessem aflitos por seguir viagem, Calisto pediu-lhes
que passassem em casa de dona Maria para dar-lhe notícia
do marido, sendo eles instruídos do caminho que deviam
tomar, etc.
SP, SPF, SP1: medico
SP, SPF, SP1: sinão
SP, SPF, SP1: inflammatoria; dous;
porem
SP, SPF, SP1: SAMPAULEIROS;
aggregado
SP, SPF, SP1: afflictos; Calixto
SP, SPF, SP1: d. Maria; noticia
SP, SPF, SP1: elles; instruidos
250
255
260
Só dois dias depois, quando Calisto se achava
mais desembaraçado, pôde ver Gil, vindo então a
descobrir que o miserável era o mesmo Tomás que
estivera trabalhando na empreitada e que, segundo se
descobria, era um vil instrumento de Abílio contra João
Lopes. Cientificada a autoridade dos maus precedentes de
Gil e dos seus crimes, por telegramas dirigidos a Uberaba
e Ribeirão Preto, noticiou o seu paradeiro, recebendo
depois alguns dias ordem de detê-lo por já ter cometido o
crime de espancamento de que demos notícia. Entretanto
o criminoso refece,318 apesar de tratado e medicado,
faleceu em conseqüência de seu ferimento. Antes, porém,
confessou a sua responsabilidade nos dois últimos crimes
e que agira por conta de Abílio, de quem era mandatário.
SP, SPF, SP1: dous; Calixto
SP, SPF, SP1: desembaraçado (,)
SP, SPF, SP1: miseravel; Thomaz
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: Scientificada
SP, SPF, SP1: telegrammas
SP, SPF, SP1: detel-o; commetido
SP, SPF, SP1: noticia
SP, SPF, SP1: apezar; falleceu
SP, SPF, SP1: consequencia; porem
SP, SPF, SP1: dous; ultimos
318 Refece: de maus sentimentos.
483
e que agira por conta de Abílio, de quem era mandatário. SP, SPF, SP1: Abilio; mandatario
265
270
275
Abílio, reconhecido como um celerado da pior
espécie, escapando furtivamente à vigilância da polícia de
Ribeirão, voltou aos seus penates319 sem abandonar os
seus propósitos de vingança, antes mais odiento por ver
falhos todos os seus planos infames. Chegando na sua
residência, o seu primeiro cuidado foi construir roças e
tapumes nas vizinhanças de João a fim de assegurar as
posses que adquirira indevidamente, não se esquecendo
de ampliá-las em alguns metros. Dona Maria, sabendo
disso tomou o propósito de nada reclamar ou dizer, o que
Serafim achou justo e conveniente. João não demoraria
em chegar, como havia noticiado por carta, e era bom que
visse até que ponto levava a sua audácia e maus instintos
o seu antigo condiscípulo e refalsado amigo.
SP, SPF, SP1: Abilio; scelerado;
peor
SP, SPF, SP1: especie; á vigilancia;
policia
SP, SPF, SP1: propositos
SP, SPF, SP1: residencia
SP, SPF, SP1: visinhanças; afim
SP, SPF, SP1: amplial-as; D. Maria
SP, SPF, SP1: d’isso; proposito
SP, SPF, SP1: Seraphim
SP, SPF, SP1: audacia; instinctos
SP, SPF, SP1: condiscipulo
Para finalizar
5
Lembra-se o leitor que, ao encetarmos esta
despretensiosa narrativa, quando quem a escreve e seu
amigo M.... achávamo-nos hospedados em casa do
professor Serafim, ao acordarmos alta madrugada,
ouvimos conversação na saleta e conhecemos a voz da
velha Pulquéria, que lamentava algo de triste e funesto.
SP, SPF, SP1: despretenciosa
SP, SPF, SP1: achavamo-nos
SP, SPF, SP1: Seraphim;
accordarmos
SP, SPF, SP1: Pulcheria
319 Penates: casa paterna, lar.
484
10
velha Pulquéria, que lamentava algo de triste e funesto.
Isso incomodou-nos o espírito, a ele acudindo a idéia de
ter sucedido algum desastre em casa de dona Maria da
Conceição. Então, ao terminarmos o capítulo daquele
tomo, escrevemos: “o leitor sabê-lo-á”.
SP, SPF, SP1: incommodou-nos;
espirito; elle; idéa
SP, SPF, SP1: succedido; d. Maria
SP, SPF, SP1: capitulo; d’aquelle
SP, SPF, SP1: sabel-o-a
15
20
25
Chegou ao tempo de ser satisfeita a sua
curiosidade, e pedimos desculpar-nos tanta demora. Como
estava próximo o alvorecer, erguemo-nos do leito e
procuramos saber o que havia sucedido. Pulquéria
informava que dois sampauleiros, já tarde da noite,
procuraram a casa de dona Maria para dar-lhe a notícia de
seu marido que ficara em Tremedal com Calisto. Os dois
mensageiros do amigo de João – pois eram os dois que
vieram adiante como o leitor viu – referiram da sua
linguagem franca e grosseira o triste episódio que
narramos no capítulo precedente. Sem tomarem as
precauções que exige a prudência, alvoroçaram a pobre
esposa e Pulquéria dando notícia do ferimento de João e
do seu estado, tal que o impossibilitara de viajar.
SP, SPF, SP1: proximo
SP, SPF, SP1: succedido;
Pulcheria
SP, SPF, SP1: dous;
SAMPAULEIROS (,)
SP, SPF, SP1: d. Maria; noticia
SP, SPF, SP1: Calixto; dous
SP, SPF, SP1: dous
SP, SPF, SP1: adeante
SP, SPF, SP1: episodio
SP, SPF, SP1: capitulo
SP, SPF, SP1: prudencia;
alvoraçaram
SP, SPF, SP1: Pulcheria; noticia
30
Serafim, sem poder avaliar o caso devidamente,
atribuiu logo a manejos de Abílio contra o pobre João, o
que depois nos revelou, e desejando ver sua comadre, e
melhor indagar, pediu-nos licença para ir à residência dela
e que aguardássemos a sua volta, dizendo-nos que
SP, SPF, SP1: Seraphim (,);
attribuiu; Abilio
SP, SPF, SP1: á residencia; d’ella;
aguardassemos
SP, SPF, SP1: estavamos;
i i
485
estávamos em nossa casa e não tivéssemos cerimônias. tivessemos; ceremonias
35
40
Ansiosos por também termos uma notícia bem
fundada do que se dera, aceitamos o alvitre do velho
mestre-escola, que seguiu logo a pé. A senhora do senhor
Serafim e seus filhos esmeraram no trato que nos
dispensaram, com uma delicadeza cativante, de modo que
a ausência do mestre-escola passou para nós quase
desapercebida, embora voltasse ele já sol alto. Vinha com
semblante risonho, o que nos animou. João estava fora de
risco, e com poucos dias estaria com os seus, segundo
pôde ele colher da notícia dos dois viajantes. Em todo
caso no dia seguinte iria ao seu encontro.
SP, SPF, SP1: Anciosos; tambem;
noticia
SP, SPF, SP1: acceitamos
SP, SPF, SP1: Sr. Seraphim
SP, SPF, SP1: captivante
SP, SPF, SP1: ausencia; quasi
SP, SPF, SP1: elle
SP, SPF, SP1: elle; noticia; dous
______
45
Passado um mês mais ou menos, encontramos o
velho Serafim em Caetité. Acolheu-nos alegre, o que
demonstrou na habitual risada que, a trechos, pontuava a
sua conversação. Havia ido ao encontro de João Lopes,
que felizmente chegou na sua residência livre de perigo e
com ferimento quase cicatrizado. Calisto, de uma rara
dedicação, só o deixou quando certo sua cura completa.
SP, SPF, SP1: Seraphim; Caetite
SP, SPF, SP1: residencia
SP, SPF, SP1: quasi; Calixto
50
Abílio – quem o diria? – talvez ignorando que o
seu antigo condiscípulo estava inteirado das suas
patifarias, teve o descoco320 de visitá-lo, mostrando-se o
SP, SPF, SP1: Abilio
SP, SPF, SP1: condisciplo
SP, SPF, SP1: patifarias (,);
descoco; visital-o
320 Descoco: atrevimento, descaramento.
486
55
60
mesmo blandicioso321 refinado hipócrita de todos os
tempos. João, embora a relutância que experimentava não
quis manifestar a repugnância que lhe causava o refalsado
e infame urdidor de tantas e tão vis intrigas e perseguições
àqueles que nunca ofenderam. Respeitou o hóspede
indesejável, mas mostrando-se sério e frio no acolhimento
que lhe fez. Pulquéria é que, não podendo tolerar tamanha
desfaçatez, manifestou, lá pelo interior da casa o seu
desagrado em impropérios e esconjuros que dona Maria
dificilmente conteve.
SP, SPF, SP1: bladicioso; hypocrita
SP, SPF, SP1: reluctancia;
esperimentava
SP, SPF, SP1: repugnancia
SP, SPF, SP1: entrigas
SP, SPF, SP1: áquelles;
offenderam; hospede
SP, SPF, SP1: indesejavel; serio
SP, SPF, SP1: Pulcheria; podemos
SP, SPF, SP1: desfasatez; la
SP, SPF, SP1: improperios; d.
Maria
SP, SPF, SP1: difficilmente
65
70
Dias depois, tomando João conhecimentos de
visu322 dos prejuízos que lhe deu Abílio nas suas
propriedades, escreveu ao usurpador reclamando
indignado e enérgico pronta restituição, demonstrado, à
luz de antigos documentos que aquele bem conhecia, o
incontestável direito que lhe assista. Com rude franqueza
dizia-lhe esperar que Abílio não o obrigasse a ir a Juízo,
onde sairiam à luz provas outras existiam quanto às
perseguições exercidas por ele na sua ausência.
SP: de visu, SPF, SP1: DE VISU
SP, SPF, SP1: prejuizos; Abilio
SP, SPF, SP1: energico; prompta; á
luz
SP, SPF, SP1: aquelle
SP, SPF, SP1: incontestavel
SP, SPF, SP1: Abilio; Juizo
SP, SPF, SP1: sahiriam; á luz; ás
perseguições
SP, SPF, SP1: elle; ausencia
75
Coincidiu essa missiva, com diferença de
poucos dias, com uma carta que um amigo e freguês de
Abílio escreveu-lhe comunicando-lhe de São Paulo que
ele se achava processado em Ribeirão Preto pelo crime de
SP, SPF, SP1: differença
SP, SPF, SP1: freguez
SP, SPF, SP1: Abilio;
communicando-lhe; S. Paulo
SP, SPF, SP1: elle
321 Blandicioso: afetuoso. 322 De visu: por ter visto.
487
80
espancamentos que cometeu em Felício, o qual, como
outros fatos diversos, achava suficientemente provado.
Recomendava-lhe que se acautelasse, pois, achando-se ele
pronunciado, ia ser expedida precatória exigindo a sua
prisão.
SP, SPF, SP1: cometteu; Felicio
SP, SPF, SP1: factos;
sufficientemente
SP, SPF, SP1: Recommendava-lhe;
elle
SP, SPF, SP1: precatoria
85
90
Abílio, aterrado, como que sentiu em torno de si
o estrondo de um descalabro. Conheceu que lhe restava
apenas fugir para um esconderijo longínquo onde
ninguém o pudesse descobrir. Para isso, porém, era
preciso que dispusesse quanto antes dos seus bens.
Lembrou-se de um amigo de Caetité, ao qual dispensara
favores, e que lhe merecia alguma confiança, escreveu-lhe
pedindo-lhe o obséquio de chegar até as sua residência a
negócio importante. Esse amigo foi solícito e recebeu
mandato em regra para dispor de tudo quanto pertencia ao
nosso herói, mesmo bens imóveis.
SP, SPF, SP1: Abilio; si
SP, SPF, SP1: longinquo
SP, SPF, SP1: ninguem; podésse;
porem
SP, SPF, SP1: despuzesse
SP, SPF, SP1: Caetite
SP, SPF, SP1: obsequio; residencia
SP, SPF, SP1: negocio; solicito
SP, SPF, SP1: heróe; immoveis
95
100
Simultaneamente dirigiu-se a João dizendo-lhe
que não obrara de má fé entrando pelas suas terras; que o
fizera por má interpretação de uma nota que possuía. Que
se convencia do direito do seu velho camarada e amigo
com quem não desejava atritos, e por isso restituía-lhe as
propriedades e, até, indenizaria os danos que, porventura,
tivesse causado ao seu amigo da infância, com quem
desejava manter as antigas relações de amizade. E tudo
SP, SPF, SP1: possuia
SP, SPF, SP1: attritos; restituia-lhes
SP, SPF, SP1: damnos
SP, SPF, SP1: infancia
488
foi efetivado nessas condições, chegando Abílio a repor o
marco no seu primitivo lugar, dizendo não ter sido
arrancado por ele nem gente sua. João dispensou as
indenizações por danos.
SP, SPF, SP1: effectivado; n’essas;
Abilio; repôr
SP, SPF, SP1: lugar (,)
SP, SPF, SP1: elle
SP, SPF, SP1: damnos
105
110
115
Reduzido a dinheiro tudo quanto possuía,
gratificado o seu procurador pelo seu serviço prestado,
Abílio desapareceu de uma noite para um dia sem
despedir-se de quem quer fosse, e desapareceu sem que
alguém soubesse que rumo tomou, terminando assim por
cá a sua carreira de crimes e perversidades, e deixando
tranqüilos aqueles a quem perseguia tão
encarniçadamente. Soubemos depois que o nosso maldoso
herói partira para o extremo Norte do país, constando que
por lá conseguiu aumentar a fortuna e ocupar posição de
destaque; mas ignoramos qual o lugar da sua residência.
Escarmentado,323 é possível que por lá soubesse melhor
aproveitar os seus dotes de astúcia e hipocrisia,
convencido, mas não arrependido, de que lhe convinha
sopear324 o orgulho e gênio apaixonado.
SP, SPF, SP1: possuia
SP, SPF, SP1: Abilio; desappareceu
SP, SPF, SP1: desappareceu
SP, SPF, SP1: alguem
SP, SPF, SP1: tranquillos; aquelles
SP, SPF, SP1: heróe; paiz (,)
SP, SPF, SP1: augmentar; occupar
SP, SPF, SP1: residencia
SP, SPF, SP1: possivel
SP, SPF, SP1: astucia; hypocrisia
SP, SPF, SP1: genio
_____
120
João ampliou as suas propriedades territoriais,
aumentou a sua casa, tornando-a mais cômoda e
confortável, e conseguiu que Oliveira voltasse aos sertões
SP, SPF, SP1: territoriaes
SP, SPF, SP1: casa (,); augmentou;
commoda
SP, SPF, SP1: confortavel
323 Escarmentado: sabedor por experiência custosa; escaldado. 324 Sopear: conter.
489
125
baianos onde, residindo com o genro, vive uma velhice
tranqüila, desvelado com carinho por dona Maria e pelos
netinhos, que crescem em número, sendo o encanto de
todos. Serafim continua o mesmo amigo leal da família de
João, trabalhador e honesto, mesmo já bem velho, mas um
velho forte e bem disposto.
SP, SPF, SP1: bahianos
SP, SPF, SP1: tranquilla; d. Maria
SP, SPF, SP1: nettinhos; numero(,)
SP, SPF, SP1: Seraphim; familia
130
135
140
Aristides, continuando em São Paulo, conseguiu
boas colocações e tem vindo à Bahia visitar os seus, mas
não disposto a residir por cá, estando já afeito aos
costumes de São Paulo. Numa dessas visitas encontramo-
lo em Caetité. É um moço simpático, inteligente, de
esmerada educação, que empolga em uma palestra
criteriosa e elevada, como tivemos ocasião de verificar
palestrando com ele. A curiosidade levou-nos a pedir-lhe
notícias de Marco e sua família. Genarino casou-se com
Giudita, realizando assim o seu doirado sonho. Ambos
laboriosos e honestos, parece a Aristides que vão juntando
o seu pé de meia, acalentando outro sonho: voltarem à
terra poética e risonha da qual têm muita saudade.
SP, SPF, SP1: S. Paulo
SP, SPF, SP1: collocações; á Bahia
SP, SPF, SP1: affeito
SP, SPF, SP1: S. Paulo; N’uma;
encontramol-o
SP, SPF, SP1: Caitite; sympathico;
intelligente
SP, SPF, SP1: occasião
SP, SPF, SP1: elle
SP, SPF, SP1: noticias; familia;
Gennarino
SP, SPF, SP1: Giuditta(,);
realisando
SP, SPF, SP1: á terra
SP, SPF, SP1: poetica
145
E Pulquéria? Não nos esquecemos informar que
a velha continua dedicada à sua querida iaiázinha e à
prole do casal, que a festejam e atormentam sem fazê-la
perder a paciência. Pois não são os seus queridos netinhos
brancos?
SP, SPF, SP1: Pulcheria
SP, SPF, SP1: continùa; á sua;
yayazinha; á prole
SP, SPF, SP1: fazel-a
SP, SPF, SP1: paciencia
490
150
155
Sempre que encontramos o velho mestre-escola
em Caetité, pois que se tornou nosso amigo, e dos mais
leais, é um alegrão. Depois de insistirmos muito,
conseguimos que o velho se hospedasse na nossa casa.
Muita coisa nos informou, entrecortando a conversação
com a sua risada final, quando assim era permitido. Por
nossa vez, a seu convite, fomos à sua casa, onde o bom
Serafim e a família nos acolheram com o maior carinho, e
de lá retiramo-nos saudosos.
SP, SPF, SP1: tornou-se (Emendou-
se ênclise para próclise.)
SP, SPF, SP1: leaes
SP, SPF, SP1: cousa
SP, SPF, SP1: permittido
SP, SPF, SP1: á sua
SP, SPF, SP1: Seraphim; familia
160
Calisto raramente não vem à feira de Caetité,
onde quase sempre se encontra com João Lopes em cuja
casa tem ido várias vezes, sendo acolhido como um dos
amigos diletos que se tornou da família. Com ele também
conversamos largamente sobre os fatos que relatamos
nesta parte de nosso trabalho que damos por concluído.
SP, SPF, SP1: Calixto; á feira;
Caetite
SP, SPF, SP1: quasi
SP, SPF, SP1: varias
SP, SPF, SP1: dilectos; familia;
elle; tambem; SP1 couversamos
(Erro óbvio.); SP, SPF, SP1: factos
SP, SPF, SP1: n’esta; concluido
FIM
Terminei este segundo livro do “Sampauleiro”
no dia 8 de Dezembro de 1929, quando os cristãos
manifestam-se com grande veneração à Puríssima
Virgem-Mãe a quem pedimos proteger-nos e amparar-
nos.
SP, SPF, SP1: á Purissima
491
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Acredita-se ter podido trazer, com a edição crítica do segundo volume do romance
O Sampauleiro, uma contribuição mínima, porém relevante, para o projeto de resgate da
memória cultural de Caetité que, através da reunião e edição da obra do escritor baiano João
Antônio dos Santos Gumes, garantirá a sua permanência para as gerações futuras bem como
disponibilizará ao leitor especialista material confiável sobre o qual debruçará, realizando
investigações sob diferentes olhares.
Acredita-se também que ao tentar tornar transparente a produção literária de
Gumes, destacando a importância desta produção, contribui-se para o preenchimento de uma
lacuna da historiografia literária baiana.
Ao propor a edição crítica do romance O Sampauleiro chegou-se às seguintes
constatações sobre a obra do escritor baiano:
a) Alguns manuscritos da obra literária de Gumes como, por exemplo, o drama
Abolição e parte do segundo volume do romance O Sampauleiro são textos que revelam o seu
processo de elaboração, um texto inacabado, com marcas que atestam a sua gênese,
cristalização do processo de construção do discurso narrativo. Observa-se uma preocupação
do autor com a boa distribuição dos elementos no sintagma, na tentativa de ampliá-lo, de
reduzi-lo na busca pela depuração do seu texto. Essas marcas são correções estilísticas
492
funcionais: substituições, supressão, acrescentamentos, e espaciais na entrelinha superior ou
em sobreposição. Estes textos se prestam a uma futura leitura crítico-genética.
b) O romance Os Analphabetos apresenta, até o presente momento, apenas a versão
impressa de 1928, recomendando-se preparar uma edição fac-similar ou em reprodução
eletrônica.
c) Após a microfilmagem da coleção do jornal A Penna, pertencente ao Arquivo
Municipal de Caetité, a reunião e transcrição das crônicas serão concluídas, incluindo as 99
crônicas325, recolhidas e transcritas do mesmo jornal, correspondentes ao período de 19 de
dezembro de 1911 a 01 de setembro de 1916. Essas crônicas deverão ser objeto de uma leitura
seguindo os critérios adotados por Maria Helena Santana na edição de alguns textos de Eça de
Queirós publicados na Revista de Portugal, os Textos de Imprensa VI. 326
d) Os romances Vida Campestre e Pelo Sertão, publicados em folhetim no jornal A
Penna deverão ser transcritos e editados criticamente.
e) Somente após a edição de toda a obra do escritor deverá ser realizado o estudo do seu vocabulário.
325 Cf. a relação dos títulos das crônicas já transcritas na página 49. 326 Cf. Eça de QUEIRÓS. Textos de Imprensa VI (da Revista de Portugal). Edição de Maria Helena Santana. Lisboa: Imprensa Nacional- Casa da Moeda, 1995.
493
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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494
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GUMES, João. O açude da cachoeirinha. A Penna, Caeteté, n. 109, p. 1, 20 abr. 1916. GUMES, João. O anno que vae-se. A Penna, Caeteté, n. 75, p. 1, 31 dez. 1914. GUMES, João. O Caetiteense.Caetité, 25 set. 1896. GUMES, João. O Cobre. A Penna, Caeteté, n. 10, p.1, 10 maio 1912. GUMES, João. O correio. A Penna, Caeteté, n. 77, p.1, 11 fev. 1915. GUMES, João. O correio. A Penna, Caeteté, n. 80, p. 1, 25 mar. 1915. GUMES, João. O emigrante: como se creou o typo entre nós. A Penna, Caeteté, n. 37, p.1, 6 jun. 1913. GUMES, João. O fogo: como meio de amanho da terra. A Penna, Caeteté, n 72, p.1, 26 nov. 1914. GUMES, João. O mercado. A Penna, Caeteté, n 108, p. 1, 6 abr. 1916. GUMES, João. Os mercados publicos. A Penna, Caeteté, n. 117, p. 1, 4 ago. 1916. GUMES, João. Os nossos males. A Penna, Caeteté, n. 104, p.1, 12 fev. 1916. GUMES, João. Os nossos productos. A Penna, Caeteté, n. 112, p. 1, 1 jul. 1916. GUMES, João. Paiz ignoto [continuação]. A Penna, Caeteté, n .22, p. 1, 1 nov. 1912. GUMES, João. Paiz ignoto. A Penna, Caeteté, n. 21, p.1, 18 out. 1912. GUMES, João. Pelo commercio: um problema a resolver. A Penna, Caeteté, n. 66, p.1, 6 ago. 1914. GUMES, João. Pelles: uma riqueza. A Penna, Caeteté, n. 42, p. 1, 29 ago. 1913. GUMES, João. Programma. A Penna, Caeteté, n. 1, p.1-2,19 dez. 1911. GUMES, João. Rainha do sertão? A Penna, Caeteté, n. 96, p. 1, 21 out. 1915. GUMES, João. Rememorando. A Penna, Caeteté, n. 51, p.1, 19 dez. 1913. GUMES, João. Renovação. A Penna, Caeteté, n. 26, p. 1, 3 jan. 1913. GUMES, João. Repatriamento. A Penna, Caeteté, n. 50, p.1, 5 dez. 1913. GUMES, João. Retorno. A Penna, Caeteté, n. 46, p.1, 10 out. 1913. GUMES, João. Riacho de S. Anna versus Caeteté. A Penna, Caeteté, n. 111, p. 2, 18 maio 1916.
498
GUMES, João. Rio Branco. A Penna, Caeteté, p.1, 28 fev. 1912. GUMES, João. Rio Branco. A Penna, Caetité, p.1-2, 15 mar. 1912. GUMES, João. Situação angustiosa: falta-nos tudo. Achamo-nos assediados. Habeas corpus. A Penna, Caeteté, n. 62, p.1, 25 jun. 1914. GUMES, João. Teatro. A Penna, Caeteté, n. 12, p. 1, 7 jun. 1912. GUMES, João. Theatro. A Penna, Caeteté, n. 13, p. 1, 21 jun. 1912. GUMES, João. Theatro. A Penna, Caeteté, n. 17, p.1, 23 ago. 1912. GUMES, João. Theatro. A Penna, Caeteté, n. 18, p. 1, 6 set. 1912. GUMES, João. Theatro. A Penna, Caeteté, n. 15, p.1, 19 jul. 1912. GUMES, João. Theatro. A Penna, Caeteté, n. 16, p.1, 2 ago. 1912. GUMES, João. Theatro. A Penna, Caeteté, n. 14, p. 1, 5 jul. 1912. GUMES, João. Tivemos correio!! A Penna, Caeteté, n. 81, p. 1, 8 abr. 1915. GUMES, João. Triste. A Penna, Caeteté, n. 110, p. 1, 4 maio 1916. GUMES, João. Um quatriennio. A Penna, Caeteté, n. 100, p. 1, 19 dez. 1915. GUMES, João. Unamo-nos. A Penna, Caeteté, n. 119, p. 1, 1 set. 1916.
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