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  • 8/6/2019 Roger Behrens Dialetica Negativa e Negacao Deter Min Ada Em Adorno

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    1

    A DIALTICA NEGATIVA DA NEGAO DETERMINADA.

    ALGUMAS IMPLICAES ESTTICAS NA TEORIA CRTICA DA SOCIEDADE DE

    THEODOR W. ADORNO1

    Roger Behrens

    A dialtica negativa como negao determinada no um trao aparente na teoria crtica de Theodor W.

    Adorno, mas forma a arquitetura de sua filosofia. No que se segue, eu gostaria de mostrar em que

    sentido o projeto adorniano de uma dialtica negativa no apenas d contorno a diferentes aspectos de

    seu pensamento, mas pe esses mesmos aspectos em constelao, como anti-sistema. Sobretudo, deve

    ser demonstrado que embora a teoria crtica de Adorno seja moldada, desde sempre, segundo uma

    dimenso esttica, as implicaes estticas de sua teoria s se deixam compreender como aguamento de

    uma crtica dialtica da sociedade contempornea e suas condies.

    A toalha de mesa

    O pster deste congresso nos mostra uma ilustrao de Marta Neves cest quil y a un jeu dans les

    mots: nela reconhecemos algo que se assemelha a uma toalha de mesa em que, ao centro, sobre fundo

    azul, desponta um buqu de rosas; esse, por sua vez, est rodeado por pimentas inteiras que esto como

    que deitadas sobre a toalha de mesa, a cobrir a superfcie que resta, servindo-lhe de moldura. As rosas,

    dispostas no centro da composio, parecem ter sido descobertas. Uma vez que, em princpio, a

    ilustrao no parece ter algo a ver com Adorno, fiquei a ponderar como se poderia relacion-la com a

    sua filosofia. O que se procura mediao e acho que a ilustrao de Neves deixa-se relacionar, ao

    menos, com o processo de aguamento a que eu aludi acima: me vem memria a frase hic Rhodus, hic

    salta aqui est a rosa, dance aqui, como Hegel a traduziu. 2 A rosa flor da bela aparncia, emblema

    de uma manifestao esttica que se v aqui rodeada pela teoria aguada, apimentada. Mas, como se

    1 Die negative Dialektik der bestimmten Negation. Einige sthetische Implikationen in Theodor W. Adornos kritischer

    Theorie der Gesellschaft. Traduo de Eduardo Soares Neves Silva.2 O autor se refere a uma clebre passagem que, traduttore, traditore, acabou por fazer parte do anedotrio filosfico.Originalmente, a frase citada era hic Rhodus, hic saltus, traduo latina da epgrafe de uma fbula de Esopo, sobre umatleta falastro que, ao afirmar ter dado um salto formidvel em Rodes, ouve o desafio: aqui () Rodes, aqui (d o seu)

    salto. O que era a concluso de uma fbula, que afirmava que a ao vale mais que a palavra, se torna um provrbio pelasmos dos latinos e, pouco a pouco, um produtivo mal-entendido quando Hegel, ao procurar adaptar o provrbio lido emErasmo, apresenta a traduo aqui est a rosa, dance aqui. As aproximaes Rhodus/rhodon (Rodes/rosa) e saltus/salta(salto/salte!dance!) feitas por Hegel perdem o sentido quando Marx, ao retomar o provrbio, apresenta a frase latina hicRhodus, hic salta, resultado da composio das duas verses dadas por Hegel, e a traduz por aqui est a rosa, danceaqui, cristalizando essa forma ambgua e sua traduo errnea, uma vez que a frase apresentada por ele deveria se traduzir

    por aqui Rodes, dance aqui. Seja como for, e por mais que se conteste o latim tanto de Hegel quanto de Marx, o fato que essa srie de tropeos se tornou mais um ponto de disputa entre hegelianos, marxistas e adversrios, tendo sidorecuperada posteriormente por pensadores das vrias tradies, como Rosa Luxemburg, Karl Popper, Isaiah Berlin e EricHobsbawm. A inteno do autor aqui justamente aludir ao inesperado potencial terico que se esconde em um engano. (N.do T.)

    2

    sabe, as rosas tm espinhos. Por isso, Marta Neves acrescentou ainda ao buqu algumas flores de

    camomila, uma planta que suaviza, ameniza, acalma (como contraste rosa excitante, impulsiva e

    luminosa) sou tentado a interpretar essa composio como sendo a situao da arte na indstria

    cultural. E assim se pode dizer: preciso sempre redescobrir a esttica; ela o fundamento sobre o quala teoria crtica em toda a sua agudeza se constitui... talvez a ilustrao de Neves possa ser compreendida

    nesses termos, de modo que eu gostaria agora de discutir as dimenses da teoria crtica de Adorno, com

    respeito s suas implicaes estticas.

    ltima filosofia

    A filosofia tem a tarefa de conhecer o que , diz Hegel. Para Adorno, em contrapartida, a filosofia tem a

    tarefa de conhecer o que no mais, ou seja, de descobrir por que foram vedadas as possibilidades

    segundo as quais seria possvel instituir uma vida melhor aqui e agora, respondendo por que a

    humanidade, como se l no comeo daDialtica do Esclarecimento , em vez de entrar em um estado

    verdadeiramente humano, est se afundando em uma nova espcie de barbrie.3 Esse no apenas o

    diagnstico fundamental da teoria crtica, mas simultaneamente sua fundamentao, o que significa que

    fundamentao e crtica esto conciliadas como crtica imanente. Nela j est implicada a perspectivade transformao, por conseguinte, uma filosofia que no se contenta com a interpretao do mundo e se

    concentra em sua possibilidade de emancipao. Esse o motivo central da teoria crtica, tal como

    Horkheimer a desenvolveu, tendo como referncia seu fundador, Karl Marx. A teoria crtica acrescenta

    ao programa de uma crtica da economia poltica, de modo antiprogramtico, elementos da teoria do

    conhecimento kantiana, momentos da lgica e da filosofia da histria hegelianas, bem como aspectos da

    doutrina psicanaltica freudiana acerca da dinmica do inconsciente. Como filosofia, a teoria crtica

    persegue sistematicamente a questo que Kant legou com a quarta de suas perguntas fundamentais: o

    que o homem? Adorno alude a uma antropologia negativa toda imagem do humano ideologia,

    salvo a negativa, o que se l em Sobre a relao entre sociologia e psicologia. 4 Somente uma

    antropologia negativa seria capaz de dar contorno a uma possvel resposta. A resposta de Adorno parte

    de uma intensificao crtica da pergunta, ela consiste na reviso das trs outras perguntas: o que posso

    saber?, o que devo fazer?, o que posso esperar? Por reviso, se entende a reflexo que vai alm da

    disciplina da filosofia e se torna sociologia, psicologia e esttica. Com respeito a isso, a teoria crtica,

    programa de pesquisa do Instituto de Pesquisa Social, ultrapassa ainda a interdisciplinaridade: o que se

    tenta, em vista da diviso de trabalho determinada tambm nas cincias, reconstruir a sistemtica da

    3 Sempre que possvel, as citaes seguiro as tradues em portugus, acompanhadas da referncia ao texto original; emqualquer outro caso, a responsabilidade da traduo da citao cabe ao tradutor do artigo. No caso, Theodor W. Adorno eMax Horkheimer, Dialtica do Esclarecimento: fragmentos filosficos, Rio de Janeiro, Zahar, 1985, p.11; Dialektik der

    Aufklrung,in Theodor W. Adorno Gesammelte Schriften, Frankfurt a.M., Suhrkamp, 1997 (doravante AGS, seguido donmero do volume e da pgina), 3, p.11. (N. do T.)4 Adorno, Zum Verhltnis von Soziologie und Psychologie, AGS, 8, p.67.

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    totalidade social como contexto geral de trabalho [Arbeitszusammenhang].5 Em todo caso, do mesmo

    modo que seria falso, distorcido, reduzir a teoria crtica pessoa de Adorno, tambm falso tomar a

    teoria crtica de Adorno em cada aspecto isolado. Em certa ocasio, em uma conferncia radiofnica,

    Adorno se nomeou filsofo. O que ele visava ento era o sentido da ltima filosofia: consciente de quea construo de um sistema sobretudo um hermtico no mais possvel, Adorno, no obstante,

    reconhecia no poder abdicar da categoria sistemtica da totalidade. Com isso, h que se ressaltar,

    especialmente, que a esttica, a filosofia da msica e a teoria da arte no podem ser atribudas obra

    tardia de um pessimista filosfico ou encaradas como representantes de algo como uma segunda faceta

    de sua carreira acadmica. Ao contrrio, elas pertencem a um esforo filosfico sistemtico, anlogo ao

    da filosofia de Kant ou Hegel, porm sob condies que no permitem mais que um anti-sistema o que

    faz com que sobretudo a esttica, em conseqncia, se torne um momento reflexivo do problema da

    sistemtica filosfica. Logo, as questes sociolgicas ou psicolgicas e, antes de tudo, as dimenses da

    esttica e da arte com as quais Adorno se ocupa no devem ser generalizadas como formao escolstica,

    ao contrrio, elas devem ser encaradas em si mesmas como campos da inteno filosfica filosofia

    como anti-sistema.

    O que Adorno desdobra como anti-sistema em sua obra principal, Dialtica Negativa, no o metdicomanual de instrues da dialtica negativa, sua astcia filosfica ou coisa semelhante, mas o que

    corresponde construo fundamental de uma teoria crtica sob as condies contemporneas, a

    tentativa de realizar uma crtica social no capitalismo tardio. Esse anti-sistema se encontra do mesmo

    modo, por exemplo, noHomem Unidimensional de Marcuse e tambm no esboo do Capitalde Marx, o

    que certamente teria que ser demonstrado em separado. O anti-sistema caracteriza, para todos os

    efeitos, a obra de Adorno como um todo, e ele talvez tenha, como nenhum outro terico crtico, tornado

    transparente essa necessidade da teoria filosfica.

    Anti-sistema, dialtica negativa como teoria crtica

    O anti-sistema indica como os momentos isolados da teoria crtica de Adorno se imbricam

    dialeticamente e, mais precisamente, como se imbricam a partir do motivo da superao perdida da

    filosofia, motivo em relao ao qual o sistema filosfico hegeliano desde sempre foi pensado. Assim, a

    categoria de anti-sistema implica em imbricar os problemas filosficos da totalidade, da identidade e do

    sujeito e objeto e as questes estticas acerca da mmesis, da autenticidade e do contedo de verdade,

    bem como as anlises sociolgicas e psicolgicas das relaes entre sociedade e indivduo, consciente e

    inconsciente.

    5 Como muitos dos conceitos utilizados pelo autor j encontraram uma traduo cristalizada em portugus, sero mantidosentre colchetes apenas aqueles poucos termos utilizados no texto que ainda so objeto de controvrsia significativa entreestudiosos da obra de Adorno no Brasil. (N. do T.)

    4

    A complexo do conceito na teoria crtica tambm deve ser entendida aqui como anti-sistemtica, ou

    seja, como se todas as categorias positivas do filosofar sistemtico no pudessem ser determinadas que

    no de modo negativo, o que afetaria, enfim, a construo do prprio filosofar sistemtico. O anti-

    sistema a ltima filosofia aquela que, como sistema, se nega, emudece. O rascunho de uma dialticanegativa corresponde no apenas metodicamente, mas estruturalmente totalidade negativa da

    sociedade, lgica conceitual do no-idntico [Begriffslogik des Nichtidentischen] e, antes de tudo,

    utopia negativa i.e. sem imagem e esttica negativa: a dialtica negativa da arte recobre e perpassa

    todo o anti-sistema porque na arte a dialtica negativa do prprio anti-sistema tem expresso. Por um

    lado, a arte a linguagem adequada da negao, a experincia por ela mediada negativamente negada e,

    portanto, a arte , por assim dizer, a arma da crtica enquanto conhecimento; por outro lado, a totalidade

    negativa se cristaliza na arte, o conhecimento negativo procede da negao da arte. E justamente essa

    figura representa a dialtica do emudecimento [ Dialektik des Verstummens].6 Ela pode ser tomada

    exemplarmente no prprio anti-sistema, em claro contraste com as grandes filosofias sistemticas de

    Kant e Hegel: Kant pergunta pelas condies de possibilidade do conhecimento, j para Adorno esto

    em jogo as condies que impedem o conhecimento; Hegel descreve o caminho escarpado da

    conscincia-de-si, enquanto Adorno procura descobrir porque esse caminho junto ao si conduz

    menoridade. Acima de tudo, o anti-sistema implica na virada materialista do sistema idealista. O mundoconcebido pelo sistema hegeliano confirmou-se satanicamente somente hoje, cento e vinte e cinco anos

    depois, como, literalmente, um sistema, qual seja, o de uma sociedade radicalmente socializada. 7 Ao

    mesmo tempo, o projeto contrrio do anti-sistema permanece historicamente mediado, e por isso

    Adorno tambm se dedica naDialtica Negativaao ltimo sistema filosfico, a ontologia fundamental de

    Heidegger. Para o anti-sistema de Adorno a anlise existencial de Heidegger constitui o plo

    diametralmente oposto: enquanto Heidegger pergunta sobre o sentido do ser, a ateno de Adorno se

    dirige primeiramente para trazer algum sentido ao mundo. Nesse ponto, Adorno cerca a ontologia de

    Heidegger com os dois tabus da doutrina heideggeriana do ser a utopia e a dialtica: em face da

    possibilidade concreta da utopia, a dialtica a ontologia do estado falso [ falschen Zustandes]. Um

    estado correto estaria livre da dialtica porque no seria sistema, tampouco contradio, ele afirma na

    Dialtica Negativa.8

    O anti-sistema sistemtico medida que atravs do fragmento tenta se apoderar da totalidade, no de

    modo arbitrrio, mas rigorosamente. A estrutura do anti-sistema a de uma mediao determinada:

    anlises modelares [Modellanalysen] correlativas a um pensamento em constelaes. Por isso Adorno

    pode por vezes formular de modo apodctico, sem dogma ou programa: teoria indispensavelmente

    crtica,9 logo, teoria sempre teoria crtica. Como tambm pode afirmar: a relao da teoria crtica e da

    6 Cf. Roger Behrens, Verstummen. ber Adorno, Laatzen, Wehrhahn, 2004.7 Adorno, Drei Studien zu Hegel, AGS, 5, p.273.8 Adorno,Negative Dialektik, AGS, 6, p.22.9 Adorno, Soziologie und empirische Forschung, AGS, 8, p.197.

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    arte de afinidade eletiva, e teoria crtica teoria esttica. Ou formular: a teoria esttica uma teoria da

    esttica e uma teoria estruturada segundo aspectos estticos. Ou ainda: arte prxis esttica, e teoria

    crtica , enquanto crtica, tambm prxis. E assim por d iante. Em Lio sobre a dialtica negativa,

    Adorno afirma que de um modo geral pode-se dizer que, em tese, a dialtica negativa essencialmente omesmo que uma teoria crtica. Eu diria que ambos os termos, teoria crtica e dialtica negativa, significam

    algo idntico.10 Adorno acrescenta: talvez, para ser exato quanto a uma diferena, teoria crtica

    significa realmente apenas o lado subjetivo do pensamento, por conseguinte a teoria, enquanto dialtica

    negativa indica no apenas esse momento, mas igualmente a realidade que por ela atingida.11

    Quando na passagem citada Adorno fala da realidade, refere-se ao duplo carter do sistema, tese de que

    sistema no apenas designa o pensamento filosfico, mas tambm o contexto estrutural da realidade

    social. No obstante, esses dois conceitos de sistema ou mesmo realidades sistmicas [ Systemrealitten]

    esto conciliados: o anti-sistema da dialtica negativa resulta, por assim dizer, da dialtica negativa da

    sociedade. O que o esforo filosfico-crtico de Adorno rene no complexo da lgica da identidade

    aponta justamente para a anlise e crtica social da lgica da troca, entendida como prxis instrumental e

    reificada [verdinglichte] do pensamento identificante e reificante:

    O princpio da troca, a reduo do trabalho humano ao conceito universal abstrato do tempo

    mdio de trabalho, protoparente do princpio de identificao. Esse princpio tem seu modelo

    social na troca e ela no existiria sem ele; atravs dela os indivduos e desempenhos no-idnticos

    se tornam comensurveis, idnticos. A ampliao do princpio constrange o mundo inteiro

    identidade, totalidade.12

    Totalidade, modelo, sociedade

    A dialtica negativa como anti-sistema no implica em filosofar assistematicamente, ela aspira, na

    verdade, a um sistema que no desemboca no hermetismo da identidade fechada em si mesma. Sua

    categoria fundamental a da mediao que no pode mais contar com nenhuma imediatidade e

    completude. Como filosofia, ela corresponde ao fragmento e ao modelo:

    A submerso no particular, a dialtica imanente levada ao extremo, demanda como um de seus

    momentos tambm a liberdade de sobressair ao objeto, privada pela pretenso de identidade.

    Hegel teria repreendido tal liberdade: ele se fiava na completa mediao nos objetos. Na prxis do

    conhecimento, na soluo do insolvel, vem luz o momento dessa transcendncia do

    pensamento pelo fato de que ela, como atividade microlgica, dispe somente de meios

    10 Adorno, Vorlesung ber Negative Dialektik,Nachgelassene Schriften , v.16, Frankfurt a.M., Suhrkamp, 2003, p.36.11 Id., p.37.12 Adorno,Negative Dialektik, AGS, 6, p.149.

    6

    macrolgicos. A exigncia de rigor sem sistema a exigncia de modelos de pensamento

    [Denkmodellen]. Esses no so apenas do tipo monadolgico. O modelo encontra o especfico e

    mais que o especfico, sem se evaporar em seu conceito superior mais genrico. Pensar

    filosoficamente equivalente a pensar em modelos; a dialtica negativa um ensemble de anlisesmodelares.13

    Ao fim e ao cabo, os conceitos da teoria crtica de Adorno se igualam na anlise modelar. Tais conceitos,

    tomados como modelos, no representam apenas o rigor sem sistema estruturado como anti-sistema,

    mas so sobretudo a tentativa de, mediante a teoria crtica, apreender o todo do contexto sem que a

    totalidade seja imediatamente acessvel. Dialtica negativa a mediao da totalidade, rememorao

    [Eingedenken] do no-idntico.

    A unidade resultante da mediao entre totalidade, sistema e fragmento determina tambm a sociedade

    definida atravs da troca. A totalidade social no se sustenta essencialmente por via do imediato estar

    junto, mas por via da relao abstrata da troca. Com efeito, tal relao abstrata permanece exterior s

    relaes humanas: ela se sustenta na falsa imediatidade, na falsa concretude das relaes cotidianas, pelo

    fato de que sua formao social a de produtos e consumidores, no de homens. Apenas por fora dessaauto-referncia alienada que ns podemos produzir at mesmo a unidade que percebemos como

    totalidade social compreensvel, a qual, de mais a mais, se constitui primeiramente de mecanismos de

    separao, como antagonismos de classe, dominao e autocontrole. Trata-se de uma dialtica de

    integrao e desintegrao que talvez possa vir a se agravar at o terror fascista, mas que pode tambm

    ser amortecida atravs da auto-regulamentao democrtica dos s ujeitos. Como mostra Adorno,

    recuperando Marx, esse processo estrutura a sistemtica da sociedade burguesa que se manifesta

    simultaneamente como dialtica radical:

    os desequilbrios cada vez maiores que se formam nessa sociedade, nomeadamente, desde os de

    ordem econmica at as despropores entre os setores isolados, so tais que, atravs deles, o

    sistema como um todo deve ser atingido. Segundo essa teoria, [...] a lei do sistema implica seu

    prprio naufrgio e no sua ratificao ou autoconservao. Em conseqncia, pode-se chamar o

    sistema marxista de um sistema negativo ou crtico, uma teoria inteiramente crtica. 14

    Ou seja, no anti-sistema cristaliza-se a figura fundamental da filosofia de Adorno, segundo a qual o todo

    o no-verdadeiro [das Unwahre]: o mundo na verdade um sistema, porm ele o sistema que

    imposto aos homens, de modo heternomo, como algo estranho a eles; ele um sistema enquanto

    13 Id., p.39.14 Adorno,Philosophische Terminologie , v.1, Frankfurt a.M., Suhrkamp, 1974, p.262.

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    aparncia, nada tem a ver com a liberdade dos homens. Ele um sistema enquanto ideologia, e o todo,

    que para Hegel deve ser a verdade, seria no interior da teoria marxista um no-verdadeiro.15

    O nexo entre dialtica e totalidade foi desenvolvido por Georg Lukcs, nos anos 20, em Histria eConscincia de Classe: a categoria de totalidade, a dominao geral e determinante do todo sobre as

    partes, constitui a essncia do mtodo que Marx recebeu de Hegel e que transformou, de modo original,

    no fundamento de uma cincia inteiramente nova. [...] O domnio da categoria da totalidade o

    portador [Trger] do princpio revolucionrio da cincia.16 Isso demanda considerar a categoria de

    totalidade como histrica e, respectivamente, compreender a histria como totalidade real, concreta:

    apenas neste contexto em que os fatos singulares da vida social integram uma totalidade,

    como momentos do desenvolvimento histrico que um conhecimento dos fatos se torna

    possvel enquanto conhecimento da realidade. [...] Essa totalidade concreta no de modo algum

    dada imediatamente ao pensamento. [...] A real diferena das etapas do desenvolvimento

    histrico se manifesta de modo bem menos claro e simples nas transformaes a que esto

    sujeitos esses momentos parciais, singulares e isolados, do que nas transformaes que eles

    sofrem emsua funono processo geral da histria, na sua relao com o todo da sociedade. [...]Essa considerao dialtica da totalidade [...] na verdade o nico mtodo capaz de reproduzir e

    apreender a realidade em pensamento. A totalidade concreta , portanto, a prpria categoria da

    realidade.17

    Em sua conferncia acadmica inaugural sobre A atualidade da filosofia, de 1931 (a publicao, que

    no se realizou, deveria ser dedicada a Benjamin), Adorno j havia destacado em que medida a totalidade

    deve ser concebida como problema-chave de uma teoria crtica: quem hoje elege por ofcio o trabalho

    filosfico deve renunciar, desde o incio, iluso pela qual os projetos filosficos antes iniciavam: a de

    que seja possvel agarrar a totalidade do real por fora do pensamento.18 E exatamente no sentido de

    seu projeto filosfico, Adorno liga essas palavras introdutrias concluso de sua palestra: a

    produtividade do pensamento s capaz de se afirmar dialeticamente na concreo histrica. Ambas

    [arte e filosofia RB] chegam comunicao nos modelos.19 Com a referncia aos modelos, Adorno

    antecipa no apenas o motivo da Dialtica Negativa, mas, formalmente, o modelo lingstico do ensaio.

    Neste sentido, no ensaio se repete o problema da totalidade porque ele

    15 Id., p.262-263.16 Georg Lukcs, Geschichte und Klassenbewusstsein, Darmstadt, Luchterhand, 1976, p.94.17 Id., p.69-70.18 Adorno, Die Aktualitt der Philosophie, AGS, 1, p.325.19 Id., p.343.

    8

    se transformou, de uma forma da grande filosofia, em uma forma menor da esttica, em cuja

    aparncia ainda assim se refugia uma concreo da interpretao, da qual a filosofia propriamente

    dita, nas grandes dimenses de seus problemas, j h muito no dispe. Se com a decadncia de

    toda a certeza na grande filosofia a tentativa fez sua entrada, se com isso ela se vincula sinterpretaes limitadas, esboadas e nada simblicas, ento isso no me parece condenvel no

    caso da escolha correta dos objetos: no caso deles serem verdadeiros. Pois o esprito no capaz

    de produzir ou conceber a totalidade do real; mas ele capaz de penetrar no mnimo, de fazer

    romper no mnimo as medidas do meramente existente.20

    Muito mais tarde, na assim chamada Querela do Positivismo [Positivismusstreit], Adorno argumenta na

    controvrsia com Popper: a totalidade no constitui uma categoria afirmativa, mas sim crtica. A crtica

    dialtica se prope a ajudar a salvar ou restaurar o que no est de acordo com a totalidade, o que se lhe

    ope ou o que, como potencial de uma individuao que ainda no , est em formao [...] A totalidade,

    numa formulao provocativa, a sociedade como coisa em si, provida de toda carga de reificao.21

    Adorno critica no positivismo o fato de que ele meramente subsume os estados de coisa isolados

    [Einzelsachverhalte] no continuum lgico da totalidade, ao passo que na teoria dialtica o conceito de

    totalidade pretende ser objetivo, isto , ser aplicvel a qualquer constatao social singular. 22Adorno explicita o que isso significa em uma outra conferncia dos anos 60, intitulada Introduo

    sociologia:

    seria uma abstrao m e idealista se, em nome da estrutura do todo, a possibilidade de melhoria

    no quadro das relaes existentes fosse tratada como bagatela ou mesmo se [...] fosse acentuada

    negativamente. Ali se encontraria um determinado conceito de totalidade que no se importa com

    os interesses dos homens singulares, vivos aqui e agora, e que faz parte de uma espcie de

    confiana abstrata no curso da histria mundial, confiana que eu, em todo caso, simplesmente

    no sou capaz de depositar nessa figura.23

    E continua:

    eu gostaria ainda de acrescentar que exatamente por isso, a saber, porque a completude ou a

    totalidade da sociedade no se conserva viva, de modo solidrio, a partir de um sujeito social

    coletivo, mas apenas atravs dos interesses antagnicos dos homens por isso, nessa sociedade

    20 Id., p.343-344. Cf. tambm: Adorno, Der Essay als Form, AGS, 11, p.9-33.21 Adorno, Introduo controvrsia sobre o positivismo na sociologia alem, Textos Escolhidos, So Paulo, Abril,1975, p.223 (traduo corrigida); Einleitung zum Positivismusstreit in der deutschen Soziologie, AGS, 8, p.292.22 Id., p.225; p.294.23 Adorno, Einleitung in die Soziologie,Nachgelassene Schriften , v.16, Frankfurt a.M., Suhrkamp, 2003, p.52.

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    racional de troca, se chega a um momento de irracionalidade que constitutivo, a partir de seu

    ponto radical, e que, na verdade, ameaa irromper a cada instante. 24

    Uma sociologia que se afirme teoria crtica, como Adorno chega a concluir mais frente na conferncia,no deve perder de vista justamente a produo social e a reproduo da vida como um todo; se algo

    uma relao social, ento isso precisamente essa totalidade.25

    Linguagem, indstria cultural, metafsica

    Na minha opinio, o motivo decisivo de Adorno est caracterizado assim: por via do projeto de uma

    dialtica negativa como anti-sistema, uma ltima filosofia se v reconciliada com uma teoria crtica da

    sociedade. Alm disso, esse exatamente o fundo em relao ao qual os demais aspectos da teoria crtica

    de Adorno deixam-se dispor em constelao: a crtica da indstria cultural, por um lado, e a teoria

    esttica do moderno, por outro, so precisamente dois lados do anti-sistema, so anlises modelares.

    Adorno no apenas um dos poucos tericos do sculo vinte a se ocupar simultaneamente, de modo

    refletido e crtico, com o fenmeno da cultura de massa e com as questes de uma esttica

    contempornea e da situao da arte ele , em larga medida, o nico filsofo que concebeu tanto acrtica da indstria cultural quanto a teoria esttica como elementos de uma filosofia aps Auschwitz, o

    que eu tomo como determinante para o valor relativo do anti-sistema de uma ltima filosofia. Com isso,

    a meu ver, de importncia secundria decidir se Adorno estava certo em sua crtica ao Jazz, em sua

    compreenso da arte ou mesmo em sua avaliao da televiso; o decisivo aqui a premente indicao de

    que uma cultura, como a que temos hoje, no pode ser isolada do contexto histrico e principalmente

    no pode ser separada da calamidade [Unheil] histrica, que ao mesmo tempo seu produto e seu

    resultado. Ora, tal anlise remonta ao conceito crtico de histria e sociedade. A sociedade burguesa

    escreve sua prpria histria como histria dos vencedores e, como tal, permanece presa ao progresso: a

    cultura se gera hoje por meio de uma mlange liberal e esclarecida de alta cultura e cultura pop

    [Popkultur]26 e nela que a idia de um progresso contnuo encontra sua expresso, alis atravs de

    meios que remontam e se consolidam no sculo dezenove, mesma poca em que a idia burguesa do

    progresso passa a ser a representao da histria. O que se afirma com a cultura po p contempornea a

    inveno de uma linguagem que capaz de lidar conscientemente com a histria. Aqui se encontra, a meuver, uma outra indicao decisiva da articulao dos momentos da teoria crtica de Adorno como anti-

    sistema. Quando ele critica a indstria cultural, no se trata de uma condenao da estupidez das massas,

    mas essencialmente de afirmar que a indstria cultural ou, hoje, a cultura pop priva as massas

    24 Id., p.78.25 Id., p.237.26 A obra do autor est marcada pela tentativa de repensar a teoria crtica da indstria cultural luz das transformaesestruturais contemporneas. Em sua anlise, o conceito de cultura pop [Popkultur] tem uma funo importante e deve sercompreendido como marcadamente distinto do conceito tradicional de cultura popular [populre Kultur], seguindo, alis, aindicao de Adorno: a fim de excluir de antemo a interpretao que agrada aos advogados da coisa. (N. do T.)

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    daquilo que ela ao mesmo tempo persiste em prometer. O veredicto da estupidez das massas dado

    pela prpria indstria cultural: elas so muito modestas frente oportunidade de uma maior felicidade,

    que continuamente prometida a elas. NaDialtica do Esclarecimento se afirma logo no prefcio:

    nas condies atuais, os prprios bens da fortuna convertem-se em elementos do infortnio.

    [...] o progresso converte-se em regresso. O fato de que o espao higinico da fbrica e tudo o

    que acompanha isso, o Volkswagen e o Palcio dos Esportes, levem a uma liquidao estpida da

    metafsica, ainda seria indiferente, mas que eles prprios se tornem, no i nterior do todo social, a

    metafsica, a cortina ideolgica atrs da qual se concentra a desgraa real no indiferente. Eis a

    o ponto de partida de nossos fragmentos.27

    Segundo me parece, essa crtica da ideologia como metafsica e a crtica da metafsica como ideologia na

    concluso da Dialtica Negativadevem ser compreendidas como concatenadas, no sentido reivindicado

    por Adorno como solidariedade com a metafsica no instante de sua queda.28 No se trata de uma

    defesa conservadora da metafsica e nem mesmo de sua destruio, igualmente conservadora, mas da

    necessidade metafsica do homem, ponto em que tocam igualmente a indstria cultural e a teoria crtica:

    trata-se da tentativa de dar sentido vida, o que absolutamente no se tornou mais fcil aps asexperincias histricas do sculo vinte. Justamente em funo deste aspecto, alis, Adorno retorna ao

    seu ponto de partida materialista: os interesses metafsicos do homem necessitariam da observao

    integral de seus interesses materiais.29 O que j preordenado, como se disse acima, a pergunta pelo

    homem.

    No debate sobre a indstria cultural, tal discusso concentra-se na pergunta acerca de seus mecanismos

    de funcionamento, acerca do que constitui o seu ntimo. A indstria cultural desemboca em publicidade

    propaganda do mundo, como ele . Em seus primeiros textos, como O esquema da cultura de massa,

    pensado como continuao do captulo sobre indstria cultural, Adorno desenvolve esse ponto: a

    prpria publicidade absorvida na informao. Como em Jargo da Autenticidade, embora ali s se

    refira filosofia e, por assim dizer, alta cultura, Adorno formula aqui uma crtica da linguagem em que

    se trata da possibilidade do conhecimento, isto , de suas condies enquanto experincia histrica.

    Conhecimento e experincia, no entanto, foram completamente separados. Isso acontece na cultura demassa monopolista. Trs nveis deixam-se diferenar no desdobramento da dominao sobre a

    necessidade: publicidade, informao, comando.30

    27 Adorno e Horkheimer,Dialtica do Esclarecimento , p.15;Dialektik der Aufklrung, AGS, 3, p.15-16.28 Adorno,Negative Dialektik, AGS, 6, p.400.29 Id., p.391.30 Adorno, Das Schema der Massenkultur, AGS, 3, p.323-324.

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    A linguagem, na verdade, a pedra fundamental do sistema filosfico e tambm do anti-sistema da

    dialtica negativa (antes de tudo, naturalmente, em funo da questo acerca do conceito identificante).

    Tambm sob este aspecto a concepo fundamental remete aos primeiros trabalhos de Adorno. Em suas

    dez Teses sobre a linguagem dos filsofos, do incio dos anos trinta, ele escreve: a pretensacompreensibilidade da linguagem filosfica deve ser hoje totalmente desvelada como logro. Ou ela

    banal e estabelece ingenuamente, como dados e vlidos, termos que teriam na verdade relao

    problemtica com o objeto; ou ela no-verdadeira medida que ela procura ocultar aquela

    problemtica.31 Segundo me parece, isso demarca do mesmo modo o padro da informao na indstria

    cultural, como Adorno o concebe. A informao, como jargo da autenticidade, absorve a imediatidade,

    porm essa absoluta imediatidade no est mais disponvel. Para a linguagem da teoria crtica permanece

    como material [...] a runa das palavras, 32 posto que a linguagem filosfica hoje implica pensar

    unicamente de modo dialtico.33 Aqui a filosofia j converge para a arte, embora, ao mesmo tempo,

    para a crtica da reificao.

    Adorno explicitou, primeiramente, esse aspecto do problema da linguagem filosfica ao se situar em

    relao assero wittgensteiniana de que o homem deve calar-se sobre aquilo de que no pode falar.34

    A razo da linguagem no poder ser fundamentada em alguma imediatidade no pode se reduzir ao fatode que hoje ns tenhamos que lidar com um mundo complexo e incompreensvel, pelo contrrio, isso se

    d porque a prpria linguagem foi avariada e entretanto no dispe mais sobre o conceito, com o qual

    deveria dizer imediatamente o que se passa e porque. A filosofia hoje no mais mera interpretao de

    um mundo progressivamente menos transparente, e sim ela se exprime na necessidade de deixar o

    sofrimento [Leiden] vir a ser eloqente [beredt].35

    Arte, prxis, teoria crtica como postura

    J em sua Metacrtica da Teoria do Conhecimento, Adorno formulava:

    essa salvao, rememorao do sofrimento que se sedimenta nos conceitos, aguarda pelo

    instante de sua queda. Tal a idia da crtica filosfica. Ela no tem outra medida que a queda da

    aparncia. Se j passada a era da interpretao do mundo e o que vale transform-lo, afilosofia, ento, se despede e na despedida os conceitos se detm e se tornam imagens. Quisesse

    a filosofia, como semntica cientfica, traduzir a linguagem em lgica, ento a ela ainda restaria,

    31 Adorno, Thesen ber die Sprache des Philosophen, AGS, 1, p.36 8.32 Id., p.368.33 Id., p.369.34 Cf. Adorno, Negative Dialektik, AGS, 6, p.21; Ludwig Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus, So Paulo,Edusp, 1994, aforismo 7, p.280-281. (N. do T.)35 Adorno,Negative Dialektik, AGS, 6, p.29.

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    como especulativa, levar a lgica a falar. No tempo da filosofia primeira, mas de uma

    ltima.36

    A ltima filosofia no apenas a nica que ainda possvel, ela tambm a restante, tardia ou atrasada:ela alude, como utopia, ltima arte. Somente ela ainda concede algum conhecimento, a saber, nenhum

    como o que uma prima philosophia produz, mas apenas aquele que aponta para alm do anti-sistema. O

    ltimo aforismo da Minima Moralia alude a isso:

    A filosofia, segundo a nica maneira pela qual ela ainda pode ser assumida responsavelmente

    em face do desespero, seria a tentativa de considerar todas as coisas tais como elas se

    apresentariam a partir de si mesmas do ponto de vista da redeno. O conhecimento no tem

    outra luz alm daquela que, a partir da redeno, dirige seus raios sobre o mundo: tudo o mais se

    exaure na reconstruo e permanece uma parte da tcnica. Seria produzir perspectivas nas quais

    o mundo analogamente se desloque, se estranhe, revelando suas fissuras e fendas, tal como um

    dia, indigente e deformado, aparecer na luz messinica. 37

    No sistema idealista, a religio ocupa a posio central; no anti-sistema de Adorno, ela vem de fora, messinica, ou como na imagem benjaminiana do autmato que joga xadrez ela est dentro, mas

    escondida.38 Que essa virada quase religiosa esteja sob o ttulo Para terminar decisivo para a

    concepo da ltima filosofia. O que est em jogo tambm o fim de um perodo da era burguesa, que

    culmina no terror. Assim como a ltima filosofia fala por imagens, esse conhecimento luz da redeno

    tem a forma de uma percepo esttica: ele recorre ao carter de conhecimento da obra de arte, ao seu

    teor de verdade [Wahrheitsgehalt].

    Em uma nota de rodap da Filosofia da Nova Msica, encontra-se o programa esttico de Adorno de

    modo concentrado:

    Como instncia de conhecimento [erkennendes], porm, a obra de arte torna-se crtica e

    fragmentria. O que hoje nas obras de arte tem uma chance de sobreviver, sobre isso esto de

    acordo Schnberg e Picasso, Joyce e Kafka e mesmo Proust. E isso permite talvez de novo aespeculao histrico-filosfica. A obra de arte fechada a burguesa, a mecnica pertence ao

    fascismo, a fragmentria indica, no estado da completa negatividade, a utopia. 39

    36 Adorno,Zur Metakritik der Erkenntnistheorie, AGS, 5, p.47.37 Adorno, Minima Moralia: reflexes a partir da vida danificada, So Paulo, tica, 1992, p.215-216; Minima Moralia,AGS, 4, p.283.38 Cf. Walter Benjamin, Sobre o conceito da histria, Obras Escolhidas, v.1, So Paulo, Brasiliense, 1993, p.222. (N.do T.)39 Adorno,Filosofia da Nova Msica, So Paulo, Perspectiva, 1989, p.101-102 (traduo corrigida); Philosophie der neuenMusik, AGS, 12, p.120.

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    Logo, nessa virada, a esttica no s ponto de fuga, mas simultaneamente o horizonte da utopia. A

    obra de arte fechada espelha-se na filosofia idealista do sistema fechado; a obra de arte fragmentria tem

    afinidade eletiva com a dialtica do esclarecimento. Concluda ao lado de Horkheimer, em 1944, aDialtica do Esclarecimento trouxe primeiramente o ttulo Fragmentos Filosficos. No captulo sobre a

    indstria cultural, Adorno e Horkheimer expem de modo concreto, atento dimenso sociolgica,

    aquilo que antes havia sido preparado filosoficamente. O segmento sobre a indstria cultural ainda

    mais fragmentrio do que os outros.40 A anlise desenvolvida nesse captulo no deve, portanto, ser

    tomada hermeticamente: ela trata do mundo totalmente administrado, enquanto tenta, no s entido dado

    pelo anti-sistema, se esquivar do ditame da administrao total. A abertura do anti-sistema, entretanto,

    no nenhuma incompletude ou lacuna, mas a formalizao daquela liberdade, cuja possibilidade

    Adorno ainda via na arte. A obra aberta passa a ser o sinal do anti-sistema. Quanto mais total a

    sociedade, quanto mais integralmente ela se reduz a um sistema unvoco, tanto mais as obras, que

    armazenam a experincia desse processo, se transformam no seu outro.41

    determinante aqui reconhecer de que maneira a utopia negativa est mediada pelo elemento utpico na

    dimenso esttica do anti-sistema. Esse passo explicita, finalmente, a dialtica negativa como negaodeterminada [bestimmte Negation], a saber, de modo concreto: por um lado, nem as condies para uma

    satisfao existencial de todos os homens esto dadas aqui e agora, nem a fundao do estado humano

    poderia implicar em qualquer renncia substantiva; por outro lado, os homens concentram

    energicamente uma grande parte de suas foras e bens de modo a fazer com que tudo permanea como

    est e nada se modifique essencialmente. Na prpria teoria crtica, esses plos podem ser

    compreendidos em anti-sistema apenas por fora de sua mediao refletida: a teoria esttica um

    momento da teoria crtica da sociedade; a teoria crtica da sociedade se cristaliza na anlise da indstria

    cultural. A arte que aponta para a teoria esttica e por ela tenta pr a descoberto seu carter de

    conhecimento hoje tambm um momento da indstria cultural. Nem a arte nem a prpria teoria

    crtica dispem de uma posio fora do sistema, porm permanece possvel para a prxis crtica romper

    com o contexto de violncia do sistema, seja atravs da arte, seja atravs da teoria: por ora, na

    reconstruo do anti-sistema permanece, enquanto plano, a possibilidade da prxis transformadora, que

    no deveria se deixar dirigir por nenhuma presso dos fatos [ Sachzwang], por nenhuma necessidadepoltica real [realpolitischen Notwendigkeit] ou pela urgncia da interveno social em uma situao de

    crise. Porm, conforme afirma Adorno, a prxis, adiada por tempo indeterminado, no mais a

    instncia de protesto contra a especulao auto-suficiente.42 Por ora, a prxis permanece sendo o

    pensamento crtico, no menos: o objetivo de uma prxis justa seria sua prpria supresso [...] uma

    40 Adorno e Horkheimer,Dialtica do Esclarecimento , p.16;Dialektik der Aufklrung, AGS, 3, p.17.41 Adorno, Teoria Esttica, Lisboa, Edies 70, s.d., p.44;sthetische Theorie, AGS, 7, p.53.42 Adorno,Negative Dialektik, AGS, 6, p.15.

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    prxis oportuna seria unicamente a do esforo de operar a sada da barbrie.43 A nuance decisiva: se a

    prxis, fundamentada terico-criticamente, fosse vedada, ento seria ao mesmo tempo cinismo e escrnio

    recolher-se posio terica, recusar a prxis onde a urgncia da situao a requer. O anti-sistema no

    capaz de alterar isso, porm, ele condio radical para que no se d uma submisso cega e irrefletida presso dos fatos em uma capitulao terica ou prtica. Esse o sentido da teoria crtica como postu ra

    [Haltung]. Nesse ponto, ela se refere fantasia esttica da prxis concreta: como negao determinada

    do estado falso.

    Roger Behrens professor associado na Bauhaus-Universitt Weimar e docente na Universitt Hamburg

    e na Universitt Lneburg. Suas ltimas publicaes so Verstummen. ber Adorno (2004), Die

    Diktatur der Angepassten. Texte zur kritischen Theorie der Popkultur(2003), Krise und Illusion.

    Beitrge zur kritischen Theorie der Massenkultur(2003), Adorno-ABC (2003), Kritische Theorie

    (2002). Ele redator daZeitschrift fr kritische Theorie e vive em Hamburg e Weimar.

    43 Adorno, Notas marginais sobre teoria e prxis,Palavras e Sinais: modelos crticos 2 , Petrpolis, Vozes, 1995, p.214(traduo corrigida); Marginalien zu Theorie und Praxis, AGS, 10.2, p.769.