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  • rita ferro

    uma mulherno chora

    janeiro de 1998

  • nunca se ama como nas histrias: nus e para sempre.amar lutar constantemente contra milhares de

    forasescondidas que vm de ns ou do mundo.

    contra outros homens. contra outras mulheres.

    jean anouilh

  • esta uma obra de fico.qualquer semelhana entre personagense figuras da vida real pura coincidncia.

  • i

  • sa de casa nessa noite com a sensao dramtica que nada de extraordinrio me iria acontecer.

    pode parecer ftil, mas nenhuma outra coisa me to difcil de suportar.

    tinha-me falado a mafalda para me desafiar para uma borla no tivoli. no era teatro, desta vez, mas uma orquestra de cmara tocando no sei o qu de beethoven.

    nessa poca, fugia dos clssicos sempre que podia.obrigavam-me a ceder a uma coisa mais forte do que eu

    e era possvel que no tivesse nascido com humildade para isso.

    talvez o gnio me fizesse sentir inferior, no fao ideia.a verdade que experimentava sempre a mesma

    relutncia em abdicar de mim mesma para me entregar a todos aqueles sons portentosos que me comoviam como a uma criana e me imobilizavam como um colete de foras.

    s os concertos a meio da tarde me aliciavam. dissolviam-me a ansiedade aos primeiros acordes e, s vezes, faziam-me dormir profundamente.

    fui ter a casa da mafalda com meia hora de atraso; a pilar j chegara.

    era um junho quente e ambas tinham calado meias de vidro, como mandam as noites de gala.

    vendo-me chegar com uma saia de sarja e uma camisola de linha verde-claro, desataram aos gritos, furiosas, dizendo que aquela minha figura as tornava patticas.

    tive de concordar, ainda que o contrrio fosse mais verdade - aquilo no tivoli era uma estreia.

    desculpei-me com um dia absolutamente masculino que comeara s seis da manh e que, pelos vistos, ainda no tinha terminado.

    estava assim vestida desde que me levantara e nem me

  • ocorrera mudar de roupa.impressionada com o meu desmazelo, pedi mafalda:- empresta-me um vestido, depressa, mas nada de

    espampanante! no quero nem encarnados nem verdes, que ainda me ponho para ali a chorar... interessaram-se vagamente: - o que que tens? - estranhou a pilar. - que tal este azul? - props a mafalda, abrindo o armrio e puxando de um cabide.

    ainda nos rimos porque foi o cabo dos trabalhos encontrar um vestido que me servisse. logo por azar, a mafalda tinha o corpo exactamente contrrio ao meu: ancas largas e peito pequeno.

    escolhi um vestido de linho caf-com-leite com casaqueta igual, de bandas brancas, no por ser o mais bonito, mas por ser o nico que me cabia em trs metros de roupeiro.

    - o fecho est estragado, mas com o casaco disfara contemporizei, endireitando as costas ao espelho e disfarando o cansao. - o que dizem vocs, minhas paspalhos?

    - o pior de tudo so os sapatos... - disse a pilar, chumbando-os sem complacncias. - esses sapatos no vm a propsito...

    tinha razo.os sapatos eram de salto alto e de rfia azul, impossveis

    de combinar com aquele bege.- estpidas - gritei, nervosa. - de que que esto espera

    para chamar um txi?- j chammos - sossegou-me a mafalda a remexer numa

    arca. e logo a seguir, magnnima: - experimenta estes...eram lindos, italianos, forrados e frgeis os sapatos que

    ela me convidava a provar. no havia muitas mulheres capazes de emprestar sapatos.

    - servem-te? - perguntou.- espera... - pedi, enfiando a custo o p direito.- ento?- ento, nada. no me cabem.- leva os teus, ningum repara! - simplificou a pilar. e j

    da janela da sala: - o txi chegou, despachem-se!

  • tnhamos oito minutos para descer dois andares a p, chegar ao teatro, pagar a corrida e entrar na sala, mas nenhuma delas me censurou pelo atraso.

    era o que faltava: todas as mulheres do mundo fazem o mesmo.

    antes de entrar no txi a mafalda escorregou na calada e, para no se estatelar no cho, colocou mal um dos ps e partiu um salto.

    o motorista estava impaciente porque um coro de buzinas furiosas zurrava atrs de si.

    com a pressa, a pilar fez uma malha na meia com a garra do anel, ao pousar a carteira no cho, e eu, assim que entrei no carro, verifiquei que naquele pequeno trajecto tinha perdido um brinco de ouro.

    passei o resto da viagem a enfiar as mos nos estofos, cheia denojo, para ver se o encontrava, e por isso nem tempo tive de perguntar o que ia ouvir. quando chegmos, estava com medo de que algum reparasse, por debaixo do bolero da mafalda, no fecho-clair desapertado. contra tudo isto, beethoven?

    adormecemos as trs, no por o concerto ser mau, mas por ser bom demais; acordmos com as luzes a trespassarem-nos as plpebras e uma profunda estranheza. a mafalda at tinha pregas volta dos olhos, como quem acorda numa cama verdadeira. rmo-nos. ramos tambm daquela pressa de viver, que nem o cansao vergava. estvamos ali, as trs, juntas, e talvez nos lembrssemos do que isso valia. - e agora? vamos j para casa? - vamos jantar! - onde? pedimos bifes. - a partir da meia-noite j ningum faz dieta! - disse eu, proibindo os escrpulos. - nem pode. nesta cidade, as batatas fritas so obrigatrias!

  • era indiferente o que se dizia. havia coisas mais importantes que se trocavam ao mesmo tempo.

    * * *

    a mafalda conhecia os jornalistas da mesa ao lado e eu reconheci apenas um deles.

    - aquele no o ... ?- . no digas o nome. cala-te. no fales alto...- achas que ele ... ?- de certeza. no se v logo pelo gestos? assim a conversa das mulheres: rpida, cifrada,

    inclemente.- e o outro?- espera....- no aquele que escrevia crnicas de cozinha no...?citaram-se trs jornais.nenhuma de ns conseguia lembrar nem o nome da

    coluna, nem o do jornal, nem o do autor, e muito menos h quanto tempo fizera ele crnica gastronmica.

    este tipo de pormenores no importante para as mulheres. podia ter sido h dois anos ou h dez. o homem fizera sucesso

    s isso. tudo de que precisvamos para o passar a pente fino. a pilar disse que ele no sabia escrever; a mafalda, que

    lhe faltavam maneiras; e eu, como se no bastasse, acrescentei que a gravata era obscena.

    nada que, realmente, lhe retirasse interesse.- est a olhar imenso para ti... - disse mafalda.- no olhes - rogou ela. - no ds confiana...rindo, concordvamos que apesar da gravata de um e dos

    trejeitos do outro, estaramos receptivas a uma abordagem qualquer.

    * * *

    foi o cronista quem primeiro se levantou para nos cumprimentar. disse qualquer coisa que nenhuma ouviu muito bem. estava ali. nas nossas mos. e a excitao era

  • essa.perguntou se podia sentar-se. depois, sem sair da nossa

    mesa, apresentou-nos o amigo que tinha ficado na dele. o amigo juntou-se a ns e, com ele, um terceiro cavaleiro que chegara mais tarde e me chamou a ateno por ser escuro, distrado e absolutamente desconhecido.

    fixei-me nesse.sempre que deparava com um estranho minha frente

    apetecia-me imediatamente dizer-lhe: obrigada! obrigada por seres uma cara nova e eu nunca te ter visto! nem calculas como te estou agradecida! nem sonhas como bom saber que vocs no acabam, que quando se pensa que acabam h sempre mais!

    falou-se de jornais, de revistas, de artigos de opinio.dissemos coisas que outras pessoas j tinham dito. mesmo assim, os cavalheiros pareciam agradados.

    - tenho de me ir embora - disse a pilar levantando-se. - a terceira noite que me deito tarde. e quem paga so os meus alunos!

    talvez estivesse sentida por nenhum deles se lhe dirigir directamente. perdia em relao a ns e nenhuma mulher aguenta.

    - professora? - interessou-se um.- sim, de jornalismo... - respondeu ela, recuperando o

    sorriso. e voltando a sentar-se: - mas no me gabo...mais meia hora a falar de educao, de poltica, de

    ninharias.a mafalda e eu disfarmos bem que no percebamos

    nada do assunto. to bem que eles ficaram balbuciantes ao p de ns, impressionados.

    por muito que se evolua, os homens continuam a espantar-se com mulheres espertas.

    era, alis, uma das nossas perfdias mais tpicas: fingirmos que sabamos mais do que sabamos, e demonstrar-lhes que os conhecimentos deles de pouco valiam ao p da nossa intuio.

    no era sempre verdade, mas com alguma experincia at parecia.

    comearam as anedotas.

  • primeiro de alentejanos, depois de irlandeses, a seguir de belgas, e teriam comeado as de africanos se eu no me tivesse insurgido:

    - cuidado! no a mesma coisa...concordaram e eu ganhei pontos pelo meu carcter um

    verdadeiro brinde com que no contava.

    * * *

    era estpido. os estranhos no eram melhores do que os outros. nem piores. mas enquanto durava a dvida valia a pena acreditar.

    - ol!- ol, boa noite...- costuma vir aqui?- quase nunca. j reparou que a sala no tem uma nica

    janela?que bom que era!poder comear do zero a qualquer momento, fazer tbua

    rasa de todas as imperfeies, e tentar uma verso mais depurada junto de algum que no andava, porque no podia, atrs de mim de espelho em punho.

    - como que se chama?- vasco.- vasco?- sim, vasco. e voc?- eu chamo-me ana. mas no sou ana maria, nem ana

    cristina, nem ana teresa. sou s ana...era curiosa aquela minha capacidade de me reinventar atravs

    dos outros, de estrear uma personalidade nova aos olhos de algum que acreditava apenas no que via e no que ouvia at lhe provarem o contrrio.

    - ela est na defensiva, percebe? desde pequena que detesta o nome que tem!

    fora a mafalda que falara, mas poderia ter sido a pilar. ao lado de um homem novo, qualquer uma se transfigura.

    - verdade - concordei sem afinar. - ana um nome curto demais e sem qualquer mistrio...

  • mas o vasco dizia, cavalheiro:- eu gosto do seu nome, sinceramente. tenho uma av

    chamada ana que sabe fazer arroz-doce como ningum...ns e a culinria: um estigma de que nunca nos livraramos.- no calcula a ternura que me faz ver-me associada sua

    av... - brinquei. - no se importa de, a partir de agora, passar a chamar-me av ana? tem outro peso especfico...!

    e enquanto o vasco sorria, prestando-se com mansido quele jogo, a mafalda reincidia:

    - e a verdade que j podias ser av!os conhecidos, esses sim, imobilizavam-me.inibiam-me de arriscar outras ideias, de recrutar outras

    facetas, de me libertar de uma vez por todas do estigma empedernido das minhas caractersticas.

    bastava-me olhar as minhas amigas para me aperceber do risco que havia nas velhas relaes: qualquer tentativa que implicasse novidade de atitude era acolhida com desconfiana, tomada por pose ou exibio e invariavelmente punida.

    havia pessimistas que sustentavam que o contacto com os outros era pura perda de tempo, mas eu nunca achara. para suportar os velhos amigos, precisava ciclicamente de renovar o meu cardpio de relaes para me oxigenar em pessoas novas.

    - fuma?- no fumo.- nunca fumou?- sim, durante dez anos.- e tem saudades?a verdade que a pessoa nova podia no me aceitar to

    incondicionalmente, mas revitalizava-me por isso mesmo; no me conhecia e esperava tudo de mim, no me exigia coerncia porque no podia conferi-la, no se surpreendia porque nunca fora desapontada, trazia-me notcias de outros mundos e de outros moldes de vida e, mesmo que me desiludisse, acrescentava-me sempre qualquer coisa.

    * * *

  • olhava para ele e a minha expectativa aumentava. tinha cabea, tronco e membros como os outros, mas qualquer coisa me dizia que lutava para sobreviver massificao dos corpos e das palavras e resistia. talvez estivesse ali para se fingir parecido. a normalidade importante, sobretudo quando se pretende conservar secreta uma qualquer dissidncia. mais segura. mas tambm era possvel que estivesse ali para aprender a ser igual. no sabia, nem poderia comprov-lo. naquele momento, sabia apenas que ele no se ria como os outros nem dizia tantas coisas. - se tenho saudades de fumar? - sim? - s vezes. depois de um bom jantar. no era bonito nem feio, mas trazia os dentes em bom estado e as calas engomadas. da, eu s podia depreender que no se tratava de um delinquente ou de um artista. era pouco. isolei-me da conversa para o observar, e as minhas amigasacharam que eu no estava to divertida como parecia ao principio; mas eu precisava do tempo que levaria a desmenti-las. disse-lhes apenas: - estou s calada. sem querer, comeava a ajustar o meu comportamento ao de algum que, sem fazer nada por isso, se impunha aos meus olhos e exaltava a minha curiosidade. mais bonita - voc - segredou-me ele de repente. - mais bonita do que as suas amigas...

    no sou - neguei, corando. e chegando a boca ao seuouvido: - mas voc s vai descobrir quando eu deixar...

    podia no ser uma atraco vulgar.de vez em quando acreditava que o ser humano era capaz de

    encerrar e transmitir coisas mais fecundas do que o sexo, e que a pele, quanto muito, podia servir de ponte para o

  • descobrir.quando o olhar deficiente, o tacto pode ajudar alguma coisa. amigo deles? - perguntei, com a voz diferente.talvez - respondeu ele. - hoje em dia exige-se to pouco

    de uma amizade...podia ser esta frase, ou outra mais breve ainda, mas eu

    fascinava-me sempre ao verificar que dez palavras escolhidas podiam significar muito mais do que dez palavras quaisquer - a resposta do homem lanava-me uma escada. dei comigo a hesitar. devia acender um cigarro para reprimir a tentao de subir o primeiro degrau, mas no resisti e levantei o copo que tinha nas mos. - gosta disto? - no bebo. as palavras eram as mesmas de tantos outros, mas eu apostava que, dessa vez, os motivos poderiam ser mais interessantes; mas no sabia se era esperana ou intuio, nunca se sabe nada. ignorava se ele era abstmio, se cumpria uma desintoxicao, ou se, pelo contrrio, tinha fibra suficiente para se sentir desfasado num stio e aguentar, sem lcool, esse desajuste. sem querer, dei comigo a observ-lo com os olhos muito abertos. - por que me olha assim? - perguntou, admirado. - no sei - balbuciei, apanhada em flagrante. - s vezes olhamos para as pessoas, outras vezes isso no basta... e atrapalhada: - nunca lhe acontece? mas ele no respondia; limitava-se a suspirar com o ar esquivo de quem acha que no vale a pena, e eu lastimava que a anterioridade das pessoas fosse um pas to distante. por muito que me esforasse, nunca conseguiria desbravar aquele homem em to pouco tempo. - deixe l - disse, para o safar. - tenho a mania de me aventurar, mas ainda no sou boa nisto... dizia-o renunciante, derrotada mesmo, com um profundo

  • desgosto de me sentir incapaz de comunicar com aquele ser. mas ele fez-me uma festa na cabea naquele momento, meiga e inesperada como um prmio de consolao, e a conversa soltou-se de repente. j no havia embarao, mas a chave do mistrio deixara subitamente de ser tangvel. - gosta de cinema? - adoro! - j viu o ltimo lynch? - deus me livre! agora falvamos e ramo-nos como os outros, mas fugiramos juntos, certamente, daquela sala impropcia. - acredita em deus? - no. acredito na minha me que me jurou que ele existia! se tudo corresse bem, j poderia sair com ele durante anos, viver a seu lado, ter filhos seus, mas o que ficara por dizer naquela noite no voltaria a ser aflorado; deixara fugir a nica oportunidade de auscultar aquela alma porque o esforo que ele faria para me agradar naquela noite continha o de me desagradar no futuro. e isso turvava as guas, impedia-me de as ver transparncia... - voc tem umas mos bonitas. - voc tambm. - est a brincar. as minhas, so de lenhador! - por isso mesmo. que alguma coisa vos tenha ficado! agora, sim. poderia vir a am-lo no pelas coisas que ouviria da sua boca, mas por essas outras que estivera prestes a ouvir e que, por acidente ou incapacidade, no lhe conseguira arrancar. era importante, at porque sabia que me poderia limitar a amar uma suspeita e a entregar corpo e alma a uma probabilidade sem confirmao. no me apetecia, mas j no ia a tempo. ao contrrio dos pesadelos, que parecem durar noites inteiras e que demoram instantes, h momentos da realidade que se esboroam em segundos e nos podem iludir para sempre.

  • * * *

    comeavam todos a olhar para os relgios quando arranjei coragem:

    - apetece-lhe ir a outro stio? no tenho sono nenhum... com a vida tem de ser assim: incit-la e esperar pela reaco. - danar? - perguntou ele, alarmado. - passear! - propus cheia de energia. a mafalda e a pilar olhavam uma para a outra, cruzando cdigos, mas eu abordei-as sem tirar os olhos dele: - alguma de vocs quer vir connosco? exclua os outros, que me no interessavam, e dava-lhes a elas uma hiptese cnica de me acompanharem. felizmente, nem uma nem outra se lembrou de me dar uma lio. poderia voltar-se contra elas e no estiveram para isso. - no. ns vamos indo... os outros surpreenderam-se por uma to rpida debandada.ainda no tinham percebido que eu estragara tudo. - tm carro? querem boleia para algum lado? mas elas j nem os ouviam: - foi ptimo este bocadinho! - continue a escrever para ns continuarmos a engordar! e esses dois, que se tinham levantado por cortesia quando a mafalda e a pilar saram, olharam para ns e desanimaram. a tal ponto que j no tiveram coragem de se voltar a sentar. despediram-se. um deles ainda amargou, levemente despeitado, referindo-se ao meu acompanhante: - tome cuidado com esse a, que no flor que se cheire... e eu logo: - e a sua? a que cheira a sua flor? a frase no tinha intencionalidade alguma, mas soara mal. despediram-se num esgar, to gorados quanto elas, e eu tinha pesado tudo antes de fazer o que fiz. confessei-lhe logo: - desculpe esta maldade mas, de toda esta gente, sinceramente, apeteceu-me ficar sozinha consigo... pacincia. j l ia o tempo em que era capaz de prescindir

  • de tudo s com medo de uma avaliao desfavorvel. - ora, que importa isso! - disse ele, com um sorriso terno. - houve uma seleco natural.... muitas vezes, demasiadas vezes, preocupara-me em no fugir s expectativas dos outros, cobarde em contrariar os seus veredictos, desmoralizada pelo seu cepticismo, acorrentada sua aprovao, como se o gozo da vida no fosse explor-la permanentemente e a todo o custo e ela prpria no fosse um trabalho para se ir corrigindo.

    - voc tambm pensou o mesmo? tambm lhe apeteceu ficar sozinho comigo?

    ele riu-se, contagiado por tanto ardor, e eu tambm, espantada com a minha audcia. provocara toda aquela situao e agora tinha um pouco de medo do que se iria passar.

    reparando na minha expresso perdida, ele sondou: - estarrependida ou com medo de mim?

    - no, no - disse eu. - mas confesso que essa pergunta me sossegou. pelo menos, tem sensibilidade...

    e sem querer pensar mais:- pessoa para me levar praia a esta hora? tem carro?

    gostava tanto de ouvir o barulho do mar...e atordoando-o:- est uma noite bonita, no est?mas estava era com medo de que ele achasse que eu era

    daquelas destrambelhadas que se encontram noite, com apetites extravagantes.

    e no era?mas ele no pensava nada disso, que mania a nossa. sem

    que eu esperasse, olhou-me nos olhos para me perguntar se eu acreditava no destino.

    a pergunta era to antiquada que cheguei a alarmar-me: o homem seria parvo?

    - sei l. prefiro no acreditar...quis perceber e eu expliquei-lhe: ainda que houvesse um

    sortilgio divino, uma conjugao astral ou um qualquer poder misterioso que fixasse de modo irrevogvel o curso das nossas vidas, reagia sempre com a maior rebeldia a tudo aquilo que pudesse fazer de mim uma folha ao vento.

  • e ele riu-se, tacteando: ento por uma questo de orgulho que no acredita no

    destino?- no - neguei, frustrada. - que para alm da morte, da

    doena, ou quanto muito do escrpulo, o que lhe posso dizer que ainda no conheci nada de verdadeiramente inevitvel nesta vida...

    - nunca? - estranhou ele.- nunca - sustentei. - chame-me simplria, se quiser, mas

    acredito sinceramente que no existe fora superior da nossa vontade...

    e ressalvando:- se voc me disser que o meu destino deste dia foi t-lo

    conhecido e ter gostado de si, nessa altura eu rendo-me sem resistncia. mas s depois de voc me provar que isso estava traado na palma da minha mo, compreende?

    ele ria-se, eu defendia-me:- repare: se houve um destino nisto, foi s porque eu

    arregacei as mangas e colaborei!ele meditou durante um instante para condescender

    sorrindo:- talvez. talvez que para o homem livre o destino j no

    passe de uma proposta facultativa. mas...- mas, o qu? - perguntei, curiosa.- e tudo o resto que determina a existncia? os acasos,

    as coincidncias, as circunstncias e os infortnios que juntam ou separam as pessoas?

    - tudo isso - disse-lhe -, longe de expressar um sentido oculto, tem pelo contrrio uma total coerncia...

    e agarrando-lhe na mo, sem dar por isso: - no destino, vida!ele no insistiu e eu reparei que parecia cansado quando

    pagou a conta e se levantou, respondendo a algo de que j me esquecera por completo:

    - tenho carro. mas temos de encontrar uma bomba aberta, porque eu no imaginava que ia partir de viagem...

    perguntei por instinto:- no casado, pois no?- sou - disse ele. e notando o meu ar petrificado. assustei-

  • a?- no, no... - fiz eu.mas naquela atrapalhao revelei mais do que queria

    revelar; no estava desapontada por ele no representar uma companhia plausvel, mas por implicar mais trabalho do que imaginara.

    - desiste? - desafiou ele.- no sei... - disse, desalentada. - mas tem de me

    incentivar um bocadinho, porque as minhas pernas j no me obedecem...

    era verdade.tinha dito o que realmente me ia no corao, mas isso no

    constitua, em si, virtude alguma. queria muito ir passear com ele, mas aquela histria j me fora contada tantas vezes que j lhe sabia o fim de cor e salteado.

    era uma anedota que eu j conhecia.- a minha mulher no est na cama minha espera, se

    isso que a preocupa - disse ele. - est a divertir-se a esta hora, com um grupo de amigos, e s volta para casa de madrugada...

    mas no era a mulher que me preocupava:- porque no foi com ela?ele no respondeu e eu aprovei. ningum percebe coisas

    to depressa.

    * * *

    j no carro ele falou, num tom que no pretendia comprometer-me:

    - sabe? vocs hoje em dia so muito mais despachadas do que ns! quando me juntei vossa mesa, nem me passou pela cabea ter hipteses com alguma de vocs...

    - hipteses?- no, no o que est a pensar. - disse ele, aflito. e

    explicando: - hipteses de vos despertar qualquer espcie de curiosidade... - porqu? - provoquei eu. - no costuma fazer sucesso com as mulheres? mas ele no tinha acabado:

  • - ... ns no podemos saber, percebe? se vocs tm namorado, se gostam de ns, se embirram com a nossa gravata, se no nos gozam nas costas. e essas vossas alianas so tudo menos erticas, sabia? - tem medo de levar tampas? - abreviei, muito prtica. - justamente - confessou ele. - muito desagradvel levar uma tampa. ficamos assim, desajeitados, como se no percebssemos nada a vosso respeito... e rematando: - ningum gosta de fazer figura de parvo!

    * * *

    estava perante um homem possvel, via-se logo. - voc querido, voc no abusa... - disse-lhe, descendo o espelho. - s se voc no deixar. . confessou ele, expedito. mas o diagnstico acabara, j no tinha medo dele.- deixe l as coisas correrem, isto no nenhuma urgncia! - no ? - no. voc casado, no ?- sou - disse ele. - mas tenho a mesma urgncia que voc tem...- de qu?- de que algum me ajude a sentir bem!- mesmo isso?e ele confessou, infantil:- para j o que eu sinto, desculpe. voc desafia-me a imaginao, no tenho culpa...gostara daquela resposta. revelava aquela incapacidade de mentir com eficcia, to prpria dos homens, por que qualquer de ns era capaz de se apaixonar.nem era bem incapacidade; era falta de empenho e, por muito que os motivos nos rebaixassem, pareciam-me, naquele momento, mais nobres do que os nossos.toquei-lhe com os dedos no pescoo, sem querer, e ele encostou imediatamente berma. j tnhamos passado a ponte.- tem a noo do que est a fazer? - confirmei, prudente.

  • no me referia exactamente berma, e ele percebeu ao que eu aludia:

    32

    - tanta como voc..,e eu ri-me, para disfarar:

    - a verdade que, at agora, voc no fez nada que me levasse a arrepender de ter tomado a iniciativa...era quase sempre assim a conversa de uma mulher que acabava de descobrir um homem: tctil, jocosa, elaborada..no ouvi mais nada, e, contudo, falmos ainda durante algum tempo. mas ele escutava-me a tocar-me na cabea e na cara ao mesmo tempo e os ouvidos no devem funcionar muito bem nessas alturas.e enquanto falava, puxava-me a cabea para o peito e encostava a boca aos meus cabelos:- bom estarmos aqui, no ? olha se eu no tenho ido jantar fora!..- olha se eu no tenho ido ao beethoven! - falei baixinho. e alarmada por a sua mo me estar a chegar s costas: no v por a! tenho o fecho encravado!

    - como vamos resolver isso? - perguntou ele. - no sei - disse eu. - no quero saber... e dei-lhe exactamente o beijo que me apetecia.- linda. voc linda... - sussurrou-me ele, como se a beleza fosse o que ele sentira

    - estamos s escuras - lembrei. - como pode saber?

    * * *

    no hotel aquela cama impositiva, enorme, de uma parede outra, constrangedora. - quer ir primeiro casa de banho? ele, muito atento a coisas que no se viam nos filmes, a coisas necessrias. - obrigada, demoro um minuto... e agora? despia-me ali e aparecia nua, assim, sem mais nem menos? ou saa vestida da casa de banho e aproveitava

  • para me despir quando ele fosse? eram questes diplomticas, numa primeira noite. no queria despintar-me, queria era tomar banho. depois do banho, a pele fica menos submissa... abri a porta da casa de banho e arrisquei: - apetecia-me tomar banho... ele j estava nu, claro; to nu que me fez baixar os olhos. tinha um pouco de barriga, mas estava-se nas tintas. s esta atitude desculpa as fealdades. os complexos nada tm de atraente, de facto.

    - j toma, venha c... - disse ele, com uma expresso cmica.acedi e, ainda vestida, apaguei algumas luzes do quarto. depois sentei-me na cama e, chegando-me a ele de costas, pedi-lhe que tentasse desencravar o fecho.

    - no o estrague mais - implorei, sem lhe contar que o vestido no era meu.

    h tantas coisas que os homens no sabem a nosso respeito. nem querem. nem precisam de saber. no entanto, ns pretendemos saber tudo acerca deles. e enquanto eles reconhecem o nosso mistrio e o temem, ns contornamos o deles como se fossem desalmados.

    desencravou o fecho com um despacho que me banzou. pensei na mulher dele. no pensei mais na mulher dele. queria fazer perguntas. j no queria fazer perguntas. ele resolveu o assunto, estendendo-me na cama para conhecer o meu corpo. - eu no lhe dizia que voc era bonita? eu vejo s escuras, sabia? - no voc, so as suas mos... - talvez. mas elas acabam de descobrir que voc perdeu um brinco!

    - verdade. desde ontem que ando s com um...- dorme com eles?- com o qu, com os brincos?

    - sim? - s vezes - respondi. - quando me esqueo de os tirar... mas aproximava-se a prova de fogo, o preservativo, e no podia distrair-me desta vez. tinha de me apressar ou seria

  • obrigada a fazer o teste novamente. mais cinco minutos e seria tarde demais. - tem medo da sida? - comecei. - medo da sida? - sim, medo da sida. eu tinha. revoltava-me que a doena comeasse a revestir-se de um estatuto de imoralidade concludente, com vantagem dos sedentrios sobre os errantes, mas sabia que me bastava arriscar uma nica vez na vida para estar to sujeita a contra-la como um promscuo qualquer. no queria correr riscos. - quer dizer - suspirou ele, esfriado. - no um fantasma que me persiga constantemente ... e percebendo finalmente a aluso: - quer que eu ponha aquilo, isso? melhor... - disse-lhe,penitente. e fechei os olhos. doravante, todas as minhas relaes estariam condenadas ao desespero da noiva que beija o namorado na priso com um vidro espesso a separ-los. - tem a certeza? - tentou ele, em agonia. era natural. assistia com uma certa perplexidade ao conformismo das pessoas em geral, como se aquela manga de plstico escorregadia e traioeira no comportasse a mnima possibilidade de afectar o desempenho do homem ou desfalcar o prazer dos amantes. - tenho - sustentei, ao v-lo s voltas com aquilo. e animando-o: - sabe que isso que voc est a fazer no to pouco romntico como parece? - no ? - duvidou ele. - no - disse eu. - devia at ser encarado como um gesto do mais belo e nobre cavalheirismo! ele riu-se sem vontade: - assim como devolver o leno a uma senhora? - no - expliquei. - assim como estender a capa no cho para ela no molhar os pezinhos... ele fechou os olhos por instantes, interrompido no seu transe, e eu fiquei com a sensao de que, apesar de todo o

  • meu esforo civilizacional, o mais certo seria ele tomar-me por chata ou hipocondraca. - pronto, j est! nos primeiros encontros as coisas ou so muito fluidas, ou um pouco penosas. o que vale que toda aquela descoberta mtua era ainda, por enquanto, mais excitante do que o sexo. - vamos ver como me porto. se no desiludo esta menina... e s depois quis saber: - casada? tem namorado? e eu disse que gostara muito, claro, sem pensar no sexo propriamente dito. a verdade que gostara dele. do sexo j no me lembrava muito bem.

    * * *

    seguia a meio de um cruzamento quando uma ambulncia apitou atrs de mim. - atrs? no sabia se era atrs, se frente, se ao lado. s sei que parecia silvar dentro de mim. - minha senhora, afaste-se! no v que uma urgncia? lembro-me agora. levava no carro a minha sobrinha leonor e perguntei-lhe, assarapantada: - leonor, v l se consegues perceber donde vem a ambulncia... a mida rodou a cabea at poder, mas tambm no percebeu. e eu, transida por tanta presso, ia afrouxando o acelerador e piorando as coisas. estava atrs de mim, afinal. quando me dei conta de que aquela hesitao provocara uma densa fila de trnsito, virei dali em sentido contrrio direita esquina de um passeio; e, apesar de estar em contramo, s me deu para travar e desligar o carro. os condutores que passavam eram obrigados a curvar drasticamente para no bater no meu carro, atravessando assim, no meio da rua. os insultos e as buzinadelas no me afectaram. a leonor era muito parecida comigo. no meio da confuso toda que eu criara e do perigo a que a sujeitava tambm,

  • dizia-me: - a tia perdeu um brinco. ou s usa um de propsito? e eu, sem responder, sabia que aquele rio na minha cabea nada tinha que ver com o homem que conhecera na vspera e me deixara em casa ainda h bem pouco tempo. era cansao, um cansao absoluto, e h muito que eu vivia acima das minhas possibilidades. - a minha cabea que no est bem. no normal, na minha idade... e preocupada: - tenho de ir ao mdico... e a leonor, achando que eu me referia assimetria de brincos, julgava-me a delirar: - no exagere, tia, a mim tambm j me aconteceu! que querida, a leonor. tinha-a levado estao para ir ter com o namorado. pedira-me dinheiro emprestado para o bilhete e eu dera-lho sem sacrifcio nem mrito. um sucesso como se lhe tivesse oferecido uma viagem ao brasil: - a tia tem a noo de que acaba de me fazer a pessoa mais feliz do mundo? - sabes? - disse-lhe eu, contagiada. - eu ontem conheci uma pessoa... deu um grito como se acabasse de ser assaltada e lhe encostassem uma pistola nuca: - no acredito! - e rogando, agarrada mim: - conte, tia, conte-me tudo! - tudo, no posso - disse-lhe. - ainda no cheguei ao tudo... - ainda no? - perguntou, desconfiada. - ainda no aconteceu nada de extraordinrio - disse eu. e suspirando, desanimada: - e, no entanto, todo o extraordinrio j aconteceu! - a cama? - transgrediu ela. - no - ri-me eu. - a expectativa! - j sabe tudo a respeito dele? - desconfiou a mida, lpida a seguir-me, mas apesar de tudo mais nova. - j - e estranhando-me: - j estou cansada dele e s sei que se chama vasco... - vasco?

  • - sim, vasco - e insegura, eu que j perdera toda a distncia para julgar aquele homem: - um nome estpido? - no, no - sossegou-me a mida. voltava a ligar o carro, mas s porque avistara um polcia. podia estar ali a tarde toda com os homens aos palavres minha volta que no me faria diferena. nem minha sobrinha. se fosse minha filha, no seria mais parecida.

    * * *

    a mafalda telefonara no dia seguinte, a sondar o que se passara: - ontem. acabou em romance? - no exactamente - respondi. - era simptico? - por acaso at era... desligou quase a seguir, despeitada com a minha reserva. o vasco falara depois, estranhssimo como todos os homens. no me pedira o nmero de telefone, procurara na lista: - est l? - estou, quem fala? - sou eu. tpica dos homens, esta convico absoluta na sua exclusividade. - viva, bom dia! - gostou da noite de ontem? to directo que, instintivamente, levei a mo carteira para procurar um cigarro. a ns, mulheres, -nos sempre difcil a naturalidade. de tal forma que chegamos a acreditar que nesta primeira fase, dbil, uma frase mal colocada pode deitar tudo a perder. - noite? que noite? - brinquei. - no me lembro de noite nenhuma... ele riu-se e perguntou: - ento, foi tudo sonho? - tudo no - ri-me. e desafiando-o: - adivinhe o que no foi sonho... - o fecho encravado? - no, o brinco! encontrei o brinco!

  • e logo ele, aproveitando: - ento, temos que festejar! quer jantar esta noite? era sempre possvel encontrar uma monotonia, mesmo em coisas daquelas. - se no se importar de jantar tarde, s saio com os meus filhos encaminhados... - por mim est ptimo - disse ele. e sem transio: vou busc-la? enquanto lhe rezava a morada pensei na mulher dele. quis perguntar-lhe se ele sabia o que estava a fazer, mas era uma questo para colocar a mim mesma. - dez horas tarde? - propus. - um bocado - achou ele. e logo a seguir, tornando-me cmplice da sua conspirao conjugal: - no faz mal. o pior que me pode acontecer jantar duas vezes... fingi que no percebi porque no queria jogar aquele jogo. que chato. ele desconhecia os meus bices e eu fazia teno de o poupar a todos. castiguei-o desligando bruscamente, o que o deve ter desconcertado. mal poisei o auscultador, tocou a leonor: - ento? o seu namorado falou-lhe? - no tenho namorado - respondi. e era verdade: o substantivo no se aplicava.

    * * *

    na manh seguinte o vasco voltou a falar-me, a querer agarrar-se ao pouco que houvera entre ns. se no fosse ele, tinha a certeza, as coisas no teriam sequncia. - foi bom, no foi? - o qu? - perguntei para chatear. - ns. ontem. l. - no lhe digo. s lhe digo quando me perguntar onde achei eu o brinco... - na sua carteira? - como adivinhou? - est sempre l tudo. as carteiras das mulheres so labirintos escarninhos, pelo menos o que tenho ouvido...

  • - gostei - disse, respondendo quando eu queria e no quando ele queria. - gostei imenso, foi bom. - e eu queria voltar a ver-te - disse ele, estreando aquele tu que nos excita. - hoje tambm... engoli em seco para desprender a voz: - eu tambm gostava, mas... ele seguia-me, ansioso: - mas ... ? - mas numa tasca qualquer porque no me apetece trocar de roupa. quero ir como estou... e testando-o, como se o dia seguinte dependesse da sua resposta: - importas-te? mas os homens so mansos, enquanto no lhes chega a indiferena ou a vontade de nos punirem. desde que no nos achem feias ou velhas, tudo o resto indiferente: - importo-me s se no vieres. no quero saber dessas coisas... era verdade, via-se que era verdade, e eu comecei a gostar dele a, precisamente, a partir daquela resposta. como se explicava isto a algum? que me apaixonara por ele graas a uma resposta que traduzia algum desprendimento? e ainda por cima era relativo esse desprendimento que eu lhe atribua. naquele momento havia prioridades, isso sim. e, para o vasco, ter o meu corpo despido era, por enquanto, mais importante do que ter o meu corpo bem ou mal vestido. - ento, est bem. vou contigo... - que bom - disse ele. - bom estarmos juntos! - bom - concordei. era verdade, mas no interessava muito. tambm era bom ir ao cinema, ou comprar um vestido, ou ler um livro, ou estar com as minhas amigas. antes do amor, as prioridades baralham-se. - at logo, mida - disse ele, embalado. - at logo - devolvi eu, despindo a frase de qualquer vibrao. espantoso. toda a dissimulao que ns fazamos no podia ser seno

  • sobrevivncia. muitas vezes, aquele nosso discurso obscuro e absurdo, composto de avanos e retrocessos, paradoxal e enlouquecedor para qualquer homem e com poder suficiente para o enfeitiar e exasperar, mais no do que uma manobra feminina inconsciente com dois sentidos ocultos: preservao e desforra.

    * * * estava a ver televiso quando desaguou na minha alma uma tristeza completa, calamitosa. via o filme pandora, com a bisset e o michael york, uma gravao da cabo que eu trouxera do ltimo jantar da iga e onde tudo me parecera inveno: as pessoas, os aventais, os relvados, os penicos. era tudo falso, para variar, e toda aquela beleza me entristecera como quando se descobre um dos pais a mentir. via-se um filme de trs horas e meia, ou lia-se um livro de seiscentas pginas, e agarrava-se, quanto muito, uma ideia. apenas uma ideia. o filme era sobre uma casa que no merecia as pessoas e s essa eu fixaria. falou-me a pilar, e ainda duas ou trs vozes inspidas para a minha filha adolescente. e at nisso eu cumpria, caramba! como se a minha voz, ao telefone, desamparada de gestos e expresses, precisasse de ser enfatizada para demonstrar alguma idoneidade aos amigos da minha filha. - fala mais tarde. correu-te bem o teste? quando que apareces? j tiraste os pontos do joelho? os teus pais tiraram-te a moto? era isso. eu era me de todas aquelas crianas, a iga tinha razo. as crianas eram de todas, pertenciam a todas, eram todas nossos filhos, sadas dos nossos teros. ningum tinha autoridade para dizer meu, a no ser que as amasse como eu. mas a minha tristeza grande, completa. sugestionada pelo filme, olhei para a minha casa e tive saudades de tudo, no caso de perder tudo. as coisas estavam

  • ali e eu senti, de repente, medo de as perder. pensei nos santos e em todo o seu despojo. pensei que cristo nunca falava no amor pelas coisas, como se no existisse e existia. era um amor como outro qualquer. era o que de mais constante tnhamos, que diabo, as minhas coisas, as minhas testemunhas, as minhas fases! para quem no tinha grande memria do passado - ou o enterrava como eu - as coisas adquiriam uma importncia crucial. vieram-me lgrimas aos olhos. eu era infeliz? no, no era infeliz, era assim. como toda a gente, alis: menos infeliz do que supunha. h anos que me agarrava s adversidades para justificar a relao penosa que tinha com a vida, mas, olhando para trs, com ou sem problemas, fora sempre assim. e a minha me? dava-me ternura, ou era eu, afinal, que lha dava a ela? no interessava. agora, eu tambm sabia que tudo podia ser mais prioritrio do que os filhos. os filhos s eram prioridade na medida em que ameaavam as nossas prioridades. e as minhas, no fundo de tanto mimo e ateno para com eles, afinal, nunca eram eles. via-se isso, claramente, nos divrcios. um para cada lado e deixava-se de ir missa, de comer mesa, de hidratar a pele, de lhes falar nos pssaros e de deus. o arqutipo era demasiado forte. os filhos eram a famlia, infelizmente, no valiam por eles e para valerem era preciso muito esforo. j sabia como era. a prioridade era algum que dormisse connosco, entrasse na nossa casa de banho, nos amasse e nos deixasse voar para onde quisssemos. talvez injusta, mas essa. tinha lgrimas nos olhos e a certeza absoluta de que me poderia desatar a rir com verdadeira vontade no prximo telefonema que me fizessem. era assim a minha infelicidade: sempre preparada para a

  • felicidade. e s aparecia nos intervalos.

    * * *

    - sim? - novo telefonema, outra vez do vasco. - vasco? no me digas que queres estar comigo outra vez, isto comea a arrastar-se... eu tambm no gostava daquilo. viver simultaneamente a amar, a defender a pele, a vingar as mes e a ajustar contas era uma coisa cansativa. mas era assim que eles nos obrigavam a viver: a despertar neles, constantemente, a necessidade de nos conservarem. e o vasco tacteava, corajoso: - mas, como que foi com os outros? tambm eram assim? descartveis? - depende - disse eu. incrvel: centenas de livros lidos, de viagens, de discusses, de demanda pessoal, csmica e universal para, nestas alturas, s valeram as patacoadas e tudo o resto ser suprfluo? quer dizer: eu estava-me nas tintas para a reaco dele. era uma espcie de operao-suicida, de um bluff em que poderia ganhar ou perder tudo e p-lo a fugir a sete ps. um afecto de uma mulher logo nos primeiros dias algo de aterrador para qualquer homem. veramos como reagiria este. apetecia-me dizer-lhe gosto de ti porque era quase verdade, mas no lhe disse porque me comprometeria a dizer mentiras a partir desse instante. alm disso, estava com uma dor de cabea desde manh que tornava tudo relativo. eu no o amava, mas estava-lhe agradecida. estava cheia de ternura, sim. no fundo, era isso: eu amava-o, amava-o com todas as minhas foras, que eram nenhumas. assim, muitas vezes, a cabea das mulheres: todas as contradies possveis no mesmo sentimento.desde pequena que os paradoxos da vida me atormentavam. no sabia se aquilo era geral e se se passava com toda a gente, mas eu tomava-o como um karma pessoal

  • persecutrio.desconhecia at se era um vcio meu, se da prpria vida

    que estava minada deles e se podia subverter em todas as situaes. ser e no ser. amar e no amar. poder e no poder. existir sempre razo numa realidade e no seu contrrio.

    mudei de ideias. resolvi experimentar o vasco, no tinha nada a perder. sentia-me masculina e feminina ao mesmo tempo - uma deusa sem precedentes na mitologia:

    - sabes? eu gosto de ti!ele calava-se, eu insistia:- a srio! conheci-te h dois dias e j gosto de ti ...e preservando-me:- quer dizer, no amor-amor, mas tambm amor,

    percebes? ouve: ns demos beijos, adormecemos agarrados um ao outro, que diabo! se isto no amor, ento o que ? achas possvel dar-se beijos a algum de quem no se goste?

    e a isto, a que tantos chamam perversidade, dever-se-ia em rigor chamar prudncia; no significa que no amemos os homens, mas antes que o que mais desejaramos no mundo era poder, tal como eles, entregarmo-nos sem arriscar a vida.

    as palavras eram importantes para mim e ele j o tinha percebido. a sua voz estava portanto lenta, assustada. mas l conseguiu dizer:

    - eu... eu no sei muito bem. talvez seja cedo de mais para garantir, mas eu acho que tambm gosto de ti...

    nenhuma mulher aguentaria aquilo. falava assim, com uma sinceridade escrupulosa que me comovia, e ganhava-me a olhos vistos.

    - ouve - disse-lhe, nas tintas para o recato. - sabes onde moro, no sabes? ests a trabalhar, no ests? ento sai da neste momento, desse escritrio repetitivo, e vem ter comigo agora. a srio, queria tanto que viesses aqui. e agora mesmo, pode ser? logo pode ser diferente, no prometo nada. vem j, tem de ser j... falava depressa, para o aturdir a ele e no me ouvir a mim mesma: - vens, no vens?

  • - eu vou - resolveu ele. estava louco, ele tambm estava louco. deixar o escritrio assim sem mais nem menos era arriscado. de um momento para o outro poderia voltar-se contra mim. - queres mesmo, querido, queres? - confirmei, vacilando. mas depois perdi-me naquilo. no me aguentava em jogos por muito tempo. - ou ser que ests com medo? eu gostei de ti, caramba! isso no to esquisito assim, pois no? eu gostei de ti, tens um corpo quente, uma pele de mido, colaste bem a mim, quando abri os olhos fazias-me festas nos cabelos, pagaste o hotel sem que eu me apercebesse, mandaste-me descer s depois de te certificares de que no havia ningum na recepo, s sensvel e eu apetece-me amar-te! neste momento a mesma coisa, entendes? ele respirou fundo, no aguentando o meu flego, a minha vibrao e o meu discurso torrencial, espera de uma brecha para perguntar: - moras no terceiro esquerdo? e ainda acrescentou qualquer coisa ao desligar. pareceu-me seja o que deus quiser, mas no tive a certeza.

    * * *

    deitei-me no sof, a ferver de febre. queria-o dentro de mim outra vez, pela primeira vez. era uma histria nova, tudo recomeava ali, naquele instante, e ao novo no se resiste. no era casada, nem tinha ningum determinante no momento, mas mesmo que tivesse talvez no pudesse resistir quilo. e distorcia tudo, para me absolver. cus, a fidelidade! o que podia ter de asfixiante, e de letrgico, e de redutor, detantas outras cargas negativas a grilheta da fidelidade para o resto da vida...

    devia ser proibida, condenada como um genocdio, deliravaeu.

  • e a transgresso podia ser uma coisa higinica, convencia-me. qualquer dia os ecologistas teriam de o reconhecer. os cardiologistas diriam que fazia bem ao colesterol e hipertenso arterial, e os oncologistas tambm acabariam por dizer que a paixo, qualquer paixo, criava defesas contra as clulas cancergenas. e, mais tarde ou mais cedo, acabariam por reconhecer que o prprio evangelho, levado letra, diminua a esperana de vida das pessoas.

    a religio no poderia comportar esse contra-senso to grande por muito mais tempo e o prprio papa haveria de vergar com o axioma.

    afinal no, que estupidez: que sentido faria uma transgresso consentido? mas, no s a transgresso: a mentira era tambm importante. ser sincero a todo o preo era uma coisa desumana...

    * * *

    tocaram porta. eu sabia que era ele, no o conhecia bem ainda, mas sabia que era ele. o toque, o mesmo toque da campainha do primeiro dia. o mesmo toque dentro de mim. era ele, s podia ser ele... era ele. vinha arquejante de subir as escadas a correr, com uma aflio tal que me agarrou a cabea. depois, tirou-me a camisa, puxou-me o soutien para cima sem calma para o desapertar, rebentou-me o fecho das calas ao tentar desc-las, balbuciou onde o teu quarto? estamos sozinhos? e ia-se despindo ao mesmo tempo. deitava-me no cho enquanto eu lhe dizia ali, mas no esperava, arrancava a gravata, arrancava os botes da camisa e das calas, e eu ria-me vais sair daqui esfarrapado, sempre quero ver como vais tu sair daqui, tudo muito depressa, sem tempo para nos envergonharmos um do outro, melhor, muito melhor do que no hotel, e, de repente, o telefone a tocar ali ao lado e eu estpida, to estpida a atend-lo:

  • - sim? como? do colgio? aconteceu alguma coisa ao meu filho? caiu? j o trataram? e o vasco a perceber que no era nada de grave e a beijar-me o corpo inteiro, a percorr-lo com os dedos, j a cheirar a suor, a descer por mim abaixo, pra!, gritava eu, pra!, e a mulher sem perceber, no era consigo, minha senhora, a minha outra filha est a passar por aqui neste momento com um tabuleiro nas mos e vai entornar os copos todos, meu deus, pra!. - vou busc-lo agora mesmo, obrigada. mas ele est mesmo bem, ou est-me a esconder alguma coisa? e o vasco a continuar, e eu a odi-lo, e a mulher a estranhar, e eu a gritar-lhe: - diga ao afonso que eu vou busc-lo agoramesmo!

    ficmos como mortos, esgotados, fuzilados sobre o tapete.

    no conseguia levantar-me. levantei-me. ele ficou no cho, fez-me uma festa na perna e disse-me estamos feitos, isto vai ser um sarilho, tu s linda, linda ... , como se no sexo estivesse a verdadeira beleza, e eu fui-me arranjar, aflita, a pensar no mido.

    tirei as meias, estavam rotas, tirei as cuecas que me pendiam de um p e arrastavam pelo cho, estavam hmidas, corri a cortina, entrei para o duche, fechei os olhos, deixei a gua correr, ele quis entrar por ali dentro ainda meio vestido e eu disse-lhe s tonto, s maluco de todo? como vais sair daqui nessa figura? no vs que tenho de ir buscar o mido ao colgio?, e ele disse-me no interessa, no interessa, isto para ns muito mais raro do que vocs podem imaginar ... , e quis voltar a ter-me ali, debaixo da gua que corria...

    mas a vida feita de histrias, as pessoas precisam de histrias para se sentirem vivas, e eu j poderia viver daquela por algum tempo, uns meses talvez...

    e ele a dizer-me s linda, julguei que gostava dela e afinal no, s lixada, acabas de me estragar a vida e eu estou-te to agradecido, mas to agradecido ... , e eu, furiosa pela aluso, a empurr-lo do duche e da minha vida:

    - tenho de me ir embora, no percebes? agora, chega! o

  • meu filho mais importante do que tu, desculpa l...

    * * *

    fui buscar o afonso ao colgio sem ter braos nem pernas, a garganta estrangulada, o suor a escorrer, uma batida to forte no corao que receei que ele a ouvisse. - ol, meu querido, que susto, anh? como que foi? foi a jogar bola? e ria, apesar de tudo ria sem parar. as mos tremiam-me ainda, todo o gozo estava ainda ali, intacto, a comprometer-me. ele olhava-me espantado, muito espantado, de que que a me se est a rir, pode-me dizer? e amuado, nos seus nove anos cheios de razo: - acha graa a eu estar assim? com esta ferida? arregaou as calas at o joelho, mostrou-me o golpe que eu ainda no vira, era grande e fundo, inofensivo, e eu ria, ria num esgar desenquadrado que magoava a criana e me desvirtuava aos seus olhos pensando que era duro, muito duro viver com pessoas to pequenas que no nos podiam perdoar.

    * * *

    filhos. o jantar da iga tinha sido quase todo a falar deles. havia um jos maria, junto com uma lusa h menos de seis meses, a transferir a paternidade de um filho perdido num divrcio para os filhos da sua nova mulher. as coisas que ele dissera. o que eu me rira com o sistema que inventara para que as crianas no chamassem a me mais de seis vezes por dia, distribuindo cartes a cada uma, e do estratagema da mais nova que os poupava tarde para depois, uma vez deitada, chamar a me seis vezes seguidas durante o filme da noite. fora depois destes pequenos prosaicos que a conversa resvalara para assuntos incmodos, como a desordem dos midos, espelho da nossa, ou o gosto pelo feio, pelos

  • brinquedos-monstros-armados em vez dos pinquios, grilos e sininhos da nossa infncia, ou pelos vdeoclips com cantores vestidos de templrios, com cruzes ao pescoo e dentes escorbticos, em vez da julie andrews a cantar just a spoon full of sugar helps the medicine go down ... aquilo era srio, e era grave, quase to grave como um poente que um dia me apanhara desprevenida e me deixara de rastos. - por que que eles agora gostaro do feio? - perguntava eu, como se o belo tivesse que ser s a harmonia e logo por sorte a minha. - porque o feio que eles testemunham em ns, no percebes? nas nossas discusses com maridos e ex-maridos, no nosso exemplo a contrastar com os nossos sermes, na nossa batota toda, no que os usmos para retaliao, a troc-los por fagueiros e camilhas, a negociar as idas ao pai com verbas para livros, remdios e calado... no tnhamos, de facto, o direito de lhes roubar a infncia s porque andvamos nervosos e perdidos. no tnhamos? e alternativa, tnhamos? e o z maria, e a lusa, e eu, e a iga, todos de olhar perdido a duvidarmos da nossa responsabilidade, sem querermos confessar a nossa impotncia para lhes ensinar o belo, a nossa impossibilidade, melhor dizendo, para lhes transmitir qualquer espcie de espiritualidade ou de maravilhoso ou de fantstico ou de esperana ou de verdade.

    - mas tu, por exemplo, s ptima me... - dizia-me a iga.ptima me? - estranhava eu. - ptima me, ou me

    simplesmente?e tinha dvidas, claro.s vezes, sentia-me desconfortada com as consideraes

    demasiado poticas que se teciam a respeito das mes em geral, como se uma me no fosse uma transgressora como outra qualquer, e, sobretudo, como se esse estatuto tantas vezes involuntrio bastasse para nos absolver de todas as faltas e quase santificar.

    definitivamente, uma me no a desesperada da enfermaria seis que expulsa aos berros uma massa ensanguentada - essa ainda no me, mas candidato -,

  • nem to pouco a indigitada que vigia o sono, d o peito a beber, muda as fraldas do recm-nascido incontinente: qualquer ama capaz de fazer isso, por afecto ou por dinheiro.

    uma me , quanto muito, para alm da sua condio de hospedeira acidental, programada, imposta, resignada, relutante ou babada de um futuro ser pensante, algum com coragem suficiente para investir a fundo perdido em desconhecidos. desconhecidos, sim: o que so os filhos seno desconhecidos, que podem um dia vir a negar-nos, bater-nos, esquecer-nos, roubar-nos, ou ainda, na melhor das hipteses, amortalhar-nos em vida juntamente com outras mmias?

    e vivia com aquela dvida. seria que, como me, eu tentava corresponder a esse modelo de generosidade e desinteresse por verdadeiro amor, ou apenas para tentar merecer o tal estatuto inimputvel que se concedia indiscriminadamente a todas as mes do mundo? no agiria eu, na maior parte das vezes, por sujeio a comportamentos morais institudos e legtimo pavor da desclassificao social?

    sim: o que seria dos filhos, sem a censura do mundo? no, no era isso: no fundo, no que eu no acreditava era que houvesse, que alguma vez pudesse existir uma prova material que distinguisse a boa me da geratriz briosa, tcnica ou galincea, ou seja algo que nos conseguisse demonstrar, preto no branco, se uma me, quando triunfa, o consegue por amor, por orgulho ou por bambrrio. - me. me! me, no me ouve? a verdade que fossem as mes as mais generosas, abnegadas e altrustas personagens desta vida ou as mais dspotas, perversas e castrantes criaturas do universo, o mundo conceder-lhes-ia sempre um benefcio de dvida ao abrigo do qual elas poderiam cometer os crimes mais hediondos. - ouo, meu querido, ouo-te sempre... mas, no importava.

  • desde que fossemos sabendo que o exerccio da maternidade comeava s depois daqueles nove meses de enjoo e lgrima fcil e no se restringia ao acto de dar luz naquela hora pequenina, mas at morte de um filho, era possvel que, um dia, aprendssemos a controlar melhor o nosso instinto de lobas para podermos merecer, ento, talvez, todas essas qualidades hiperblicas que os midos nos dedicam em verso ou em prosa em cartes com laos e coraes comprados em cima da hora nos centros comerciais, e que, por vezes, s servem para embaraar as mais honestas. - ento, fomos ns? - perguntava o z maria, aflito, como se tivesse pensado nisso pela primeira vez e j no fosse a tempo de reparar a distraco. - ser mesmo por nossa causa que eles esto assim? - a culpa do sculo - garantia a iga. - neste sculo passou-se tanta coisa que no nos foi possvel digerir. para nos adaptarmos, tivemos de os lesar a eles... e eu a concordar, angustiada: - e tudo isto que agora lhes reprovamos e tentamos inverter sem sucesso, esta droga da televiso, dos cd, dos jogos electrnicos e dos computadores, tudo isso fomos ns que inventmos para que os midos nos deixassem dormir pelo menos ao sbado! e de repente o meu filho ali, a fazer beicinho: - a me no ligou nada minha ferida... e eu a lembrar-me do vasco a encostar berma e da empregada da secretaria a falar ao mesmo tempo, e da minha sobrinha a perguntar, de certeza, no dia seguinte, e agora? j me pode contar do seu namorado? e eu a encostar outra vez num stio estpido, com os carros a apitarem novamente atrs de mim, zangados, pensando que havia poucos desastres, que afinal havia muito poucos desastres e em como seria possvel que as pessoas no endoidecessem todas ao volante ou chocassem de frente umas com as outras, e na nossa inconscincia em conduzir no meio de tanta gente desesperada ou distrada, no meio de tanta gente em suspenso como eu naquele momento que poderia matar o primeiro cego que encontrasse por causa de

  • meia dzia de viagens num tapete de kilim. - meu querido. a tua ferida uma coisa importantssima. a me est-se a rir porque no grave e sabe que s corajoso! vamos lanchar para eu te poder dar todos os bolos da pastelaria. quantos queres? dez? doze? a me esqueceu-se de trazer a carteira, mas vai roub-los para ti, queres? vai ser uma aventura! tu ficas a vigiar se h algum empregado a olhar, e a me rouba, num instante, seis bolas de berlim para ti e seis palmiers-recheados para a mana! e sedutora: - queres, meu querido? e o meu filho a ceder, enfim, no fundo agradecido por eu no me parecer como as mes dos seus amigos que se levantavam s cinco da manh para lhes refogar as marmitas e lhes perguntavam tarde lanchastes, filho? dessas. que bordam toalhas enquanto os maridos se cosem com outras, com a casa num brinco e todo o corpo, incluindo o pouco que eles beijam na cama, a cheirar a lixvia, e o vasco a desaparecer do horizonte como que por encanto, sem consistncia ainda para entrar na minha vida, sem contextura para rivalizar com o meu filho, e eu a convencer-me, e eu a estranhar, quem o vasco, no conheo nenhum vasco, no existe vasco nenhum, afinal.

    * * *

    - tia! agora j me pode contar do seu namorado? - conta-me tu do teu: ouvi dizer que est doente... - tem uns caroos no pescoo e ningum sabe o que .mandaram-no repetir as anlises. tia ... ? est-me a ouvir, tia?

    eu estar, estava. mas no tinha corao para aquilo e fingi que o telefone se desligara. quando a mida voltou a falar e no atendi, deixou-me o seguinte recado no gravador:

    tia. percebi perfeitamente que desligou e que por esta altura j deve estar com remorsos. mas compreendo-a to bem que no me zango consigo. adoro-a!

  • v l, a minha sobrinha desculpava-me. ainda bem, porque havia alturas em que nem os problemas dos mais chegados conseguiam seduzir a minha generosidade. solucei at os meus filhos me perguntarem se eu me tinha zangado com o nuno. - nuno? que nuno? - perguntei, esquecida. e foi s nessa altura que me lembrei que tinha um namorado relativamente estvel que deveria chegar nessa noite para jantar. fui despintar-me rapidamente, e, quando o telefone tocou, no fim do meu dia, apanhou-me desfeita. era o nuno, claro, a querer combinar as coisas, mas eu no era capaz de falar mais nem de trair ningum. antes no lhe mentira porque nem sequer me lembrara dele, mas a partir dali, sim, estaria a faz-lo. e falei tudo muito explicadamente porque j era tarde, conhecia o temperamento dos homens desde o princpio dos tempos e, sobretudo no tinha flego para nenhuma rplica. era preciso que o discurso fosse suficiente e inapelvel: - ouve: tenho uma coisa para te dizer. conheci uma pessoa que me impressionou. no sei o que , nem me interessa, mas h qualquer coisa. aguenta-te. vocs vo para a tropa para qu? que entre isto e andar a mentir-te achei prefervel dizer-te. e no me perguntes se eu ainda gosto de ti e essas perguntas tipo sim-ou-no, porque as mulheres no funcionam assim. digo-te j que no sei, e nem sei se vou saber to cedo. gosto de ti porque foste meu, e gosto de ti porque poders voltar a s-lo um dia, se quiseres ou achares que vale a pena. agora no gosto tanto, porque como penso noutra pessoa no tenho conscincia de mais nada. no o deixava falar de propsito, e fugia para a frente, apavorada. o drama era dele, mas o cansao era meu e naquela altura valiam o mesmo. - isto dura h trs dias. no comeces j a perguntar-te se j se passava h mais tempo, nas tuas costas. aconteceu h trs dias, compreendes? no estavas c, estavas fora. desculpa-

  • me, se puderes... o drama era dele? talvez que esta nova cincia da matemtica difusa, que ensaia novas valoraes para as coisas at agora no mensurveis, como o amor ou a dor, me possa um dia esclarecer sobre o que que custa mais: deixar ou ser deixado. ser deixado custa mais no momento, mas deixar custa o resto da vida e talvez seja isso o envelhecimento. na verdade, se a idade das pessoas se medisse pelo nmero de abandonos s casas, s coisas, s pessoas e aos sonhos eu talvez j pudesse ser centenria. o telefone voltou a tocar, enquanto eu desafiava o espelho para ver se me seria possvel rasgar um sorriso alegre enquanto estava com a alma num frangalho. e era possvel, santo deus! eu podia rir-me, fazer brilhar os olhos, afectar tranquilidade em toda a minha expresso, enquanto recolhia ao quarto, nessa noite, a desejar que deus, ou o meu crebro, ou ambos, no me retivessem lcida depois dos sessenta. mas no era o nuno, era o vasco, e a enxaqueca latejava. - chato falar a esta hora? - - aproveitei, baixando o tom. - mandei o afonso para a cama e agora no d muito jeito... claro que as crianas dormiam as duas a sono solto e que o vasco no poderia suspeitar que aquela fmea de h poucas horas era a velha senhora que, antes de morrer uma vez mais, ainda arranjaria coragem para preparar novo penso para colar no joelho do neto sem o acordar.

    * * *

    estvamos todos em casa da mafalda, no campo, e eu babava-me de gozo a olhar para as minhas amigas.

    a mafalda com toda aquela leveza imoral, velha e nova, antiga e moderna, eterna, a assumir a sua casta como nunca vira a ningum desde a revoluo, de vison por cima da camisa de noite, redentora.

    e a pilar, exprimindo-se naquele discurso articulado que

  • era to bonito como um quadro ou uma paisagem, um quadro imensamente belo, destes cheios de pormenores subtis para se admirarem, mas que levam tempo a encontrar-se, sustentando a uma iga queixosa: - essa entrega toda que tu fazes aos homens ainda no amor! amor outra coisa muito diferente! isso significa apenas que queres muito ser amada, isso no amor! e apaixonada, como se estivesse zangada, quase histrica e comas mos a tremer:

    - alis, quando uma mulher encontra o homem da sua vida ela j ama h que tempos! e ama mais e com mais ardor por que o seu dfice antigo! e capaz de amar qualquer coisa - uma casa, um vestido, um homem - porque precisa de, melhor ou pior, ir debelando o seu crdito! e comovida: - sabes quem me ensinou a amar? sabers por acaso quem me ensinou a amar? no foi o manuel nem o joo, foi o meu filho henrique que tem seis anos e anda na primeira classe! e prosseguindo, exaltada: - alm disso um homem no se escolhe por ser inteligente, menina, e tu no podes profanar as hierarquias! - hierarquias? - perguntava a iga, perdida. - no sei de que ests a falar... e a mafalda a ouvir do corredor e a abrir a porta, solcita, para lhe recitar a cartilha: - primeiros os santos, depois os heris... mas a pilar obstinada, a levar aquilo a srio: - vocs no podem esperar tudo do amor, caraas! o amor no d o que a pessoa no tem! e incrdula: - ser que nunca vais perceber isso? e ela ainda, pujante, solar e apaixonada a desistir, estafada: - sabes o que te digo? sabes o que te digo? eu, agora, de h uns tempos a esta parte, s discuto quando no tenho razo! e a mafalda a rend-la para chocar a iga, de propsito: - e fica a saber que raramente escolhemos, menina! na maior parte das vezes, o amor no mais do que fogo nem os

  • homens mais do que lenha: mata, ou capim, arde tudo o que estiver ao lado! e a iga a esconder a cara, derrotada, traduzindo toda a sua incapacidade de se justificar, e a pilar a agarr-la mesmo assim e a suster-lhe os soluos para lhe dizer:

    - adoro-te, iga, adoro-te, ainda bem que choras. caramba: h

    quanto tempo no choravas tu?e o eduardo e a isabel, nico casal presente, defronte da

    lareira a olhar o fogo como se vissem televiso, embrutecidos, fartos da vibrao do mulherio, e o mesmo eduardo a levantar os olhos ao cu para prevenir a mulher:

    - sabes? este desassossego todo est-me a cansar e eu vou-me deitar...

    e a isabel, a leste, excluda daquelas cenas apenas por ser casada e ter todas as vantagens e todas as perdas decorrentes, a levantar-se para atear o fogo da lareira para que ela no se extinguisse antes de admitir a impresso que as mulheres divorciadas, exibindo todo aquele luxo de disponibilidade para o novo e o imprevisto, lhe causavam, e a repisar, azeda: - largam os maridos porque pensam que vai ser melhor, no ? agora no se queixem, bolas! foram vocs que quiseram, no foram? e a mafalda a cair sobre ela, demolidora: - ouve, menina: o casamento no ir igreja trocarmo-nos por eles e sair de l contentes! e depois a iga no quarto, e a pilar no mesmo, com duas camisas de noite to brancas como as colchas da cama, a lembrarem as gmeas da enid blyton no colgio de santa clara, absolutamente virgens com aquela idade, absolutamente iguais apesar de uma ser morena e a outra no, irresistveis para qualquer homem naquele momento mas sem a presena de um nico, esbanjando para ningum toda a sua feminilidade: - a mim no me interessa, pilar! no me interessa o mundo, nem a cultura, nem a carreira, nem as paixes, nem nada, percebes? o que me interessa voltar atrs, todos os dias dar um pequeno passo para voltar atrs, com uma cautela

  • infinita para no me enganar nem tropear, todos os dias dar um pequeno passo atrs at regressar barriga da minha me que foi o nico stio - o nico stio, entendes? - o nico stio onde fui feliz! e a pilar a sorrir com a mesma idade aparente, mas infinitamente mais velha e cheia de pregas na alma, a perceb-la e a proteg-la ao mesmo tempo: - nada disso bem como tu dizes. mas eu percebo que tu ests nervosa e esgotada e a compreenso das coisas no interessa muito nestas alturas. o que tu querias era chorar e s vezes isso s se consegue custa de muita asneira, no ? e a iga grata pilar, to grata por ela no se lembrar de rever as palavras e os significados como as mestras de provncia, e fazer aquilo que s alguns sabem fazer, que ler os livros ao contrrio e procurar a verdade por detrs das coisas de grande efeito que se escrevem e se dizem, e desmontar a forma como a mentira se alojou no exerccio dirio da fala e da vida, por vezes oposto a tudo o que realmente se sente. - obrigada, desculpa, olha: se calhar, aproveitei isto para chorar a morte do meu pai, admira-te! e insistindo, depois de um pequeno soluo que lhe devolvia a infncia: - mas apetecia-me provar isabel que sou mais feliz do que ela que tem um homem ao lado, percebes? eu choro, eu sofro, eu luto e arrependo-me de tudo em todos os dias da minha vida, e ela no faz nada disso, mas apesar de tudo eu posso estar mais pacificada do que ela, e viva, e inteira, e completa, e ela tem de perceber isso e parar de ter pena de ns para no ter pena de si prpria porque isso nos magoa, entendes? e ainda a pilar, enternecido, a apoi-la: - muito mais pela lstima que inspiramos do que pelo nosso suposto desamparo que nos sentimos to tristes, no ? e a mafalda ali de novo, a interromper, desdenhosa: - os homens so pases e a isabel nunca saiu do bairro onde vive! no pode saber isto porque no v mais nada, mas a verdade que um pouco mais de mundo s lhe faria bem... e reflectindo, absorta:

  • - mas no h dvida de que ela tambm tem a sua razo... - qual? - duvidava a pilar, - a partir de certa altura a gente perde o direito de chorar... e olhando a iga, com dureza: - porque que deixaste o teu marido? - mafalda, ests doida? - porque que o deixaste? - tu sabes... - no, no sei. ele batia-te? - no, mafalda, no batia... - tinha outras? - no, no tinha outras, mafalda. - ento bebia, era isso? - mafalda: queres parar com isso? - responde! - nem sequer bebia lcool! - o que que ele te fazia, ento? - fazia, como? - em que que ele te chateava, porra?! - sei l. deixava o cho da casa de banho encharcado, por exemplo... - e depois? - e depois eu no gostava, achava aquilo humilhante! - e o que que lhe dizias, exactamente, nessas alturas? - mafalda, no me tortures! - o que que lhe dizias? faz um esforo para te lembrares, que importante! - dizia: joo, voltaste a alagar o cho! - e o que que ele te respondia? - respondia: custava-te muito apanhar a gua? - a tens! - a tens, o qu? - tudo! - gritava a mafalda, enervada. e insistindo: d outro exemplo! - outro exemplo, como? - outro exemplo do teu desencontro com ele! - no sei. a nossa comunicao era estranhssima... - estranhssima, como? - eu dizia-lhe: joo, eu j te pedi tantas vezes que no

  • atirasses a roupa suja para o cho..! - e ele, o que que te respondia? - respondia: e tu? no chegaste ontem atrasada a casa? - voil! - voil, o qu? - na maior parte das vezes no o amor que falha... - o qu, ento? - o sistema nervoso! e a pilar gorada, a salvar aquilo: - mas tu tambm tens que perceber, mas tu tambm tens que perceber... e a iga alarmada: - o qu, agora? - que a paixo emoo e que o amor sentimento, e que, ao princpio, toda a gente faz a mesma confuso! - ento... - digeria ela, insegura. - ento o que que interessa classificar as coisas se no fim se mistura tudo e ningum d pela diferena? e a isabel a ouvir tudo isto antes de recolher ao quarto, silenciosa, e a fechar a porta imediatamente para que no ouvssemos os roncos do marido porque a metfora era bvia demais e a humilhava. uma isabel a formular mentalmente, para nos dar jeito: - ganharam. vocs sofrem mais, mas tambm se divertem e se calhar crescem mais depressa. eu confesso que trocaria de boa-vontade a minha comodidade pelo vosso sofrimento e pela vossa possibilidade de ainda poder esperar tudo da vida, se no fosse o medo de lutar sozinha... e eu, eu a varrer a lareira e a arrumar os tarolos, a olhar para os cinzeiros que transbordavam e a verificar que, na vida, mesmo entre amigos se fuma o dobro, e a pensar, uma vez mais a pensar que a solido-mesmo, sem homens e sem ningum, ainda ia sendo a melhor forma de nos aguentarmos sem fumar e sem morrer. e foi assim, debruado sobre as achas que a isabel no conseguira atear e com a cabea j em brasa, a varrer as ltimas cascas de castanhas, que eu descobri - sim, que eu descobri, porque felizmente na vida de quem anda a marrar contra a parede desde que nasceu se descobrem todos os

  • dias coisas novas -, que eu descobri que precisava dos homens, sim, mas para continuar a viver sozinha. e a mafalda a sair da casa de banho para se aliar a mim naquele momento impartilhvel, a tentar devassar a minha impossibilidade de falar sobre o que se passara, com a pilar e a iga ainda a chorarem no quarto abraados uma outra, porque j se ouviam tambm os soluos da pilar, e a isabel a tentar dormir apesar dos roncos do eduardo, e ela, mafalda, ainda de vison, a chegar-se a mim para me subornar: - reparaste no estado de abatimento total em que a isabel recolheu ao quarto? at agora, a nossa infelicidade servia-lhe para se contentar com a sua vida, mas a partir de hoje isso j no lhe vai ser possvel, viste? e eu a rir, para no chorar: - somos ento trs mulheres felizes? - no somos - disse ela. - mas somos mais do que ela e isto tambm foi importante para ns porque acabmos de o descobrir! e assumindo toda a sua incoerncia de uma forma herica: - e eu c nem sou como vocs: eu persigo a paixo!e eu em agonia de repente, com uma esganada urgncia de lhe perguntar: - mas a gente gosta de homens, caramba, no gosta?- claro que gosta - respondeu ela para me sossegar. s que gostamos mais de ns e no nos podemos amar a ns, compreendes?e eu sempre a querer mergulhar mais fundo, mais fundo, mesmo sem oxignio: - porque que ento no nos podemos amar a ns? e a mafalda a dar-se tempo para pensar, acendendo um cigarro. era enternecedora aquela nossa necessidade de nos exprimirmos com correco, escolhendo sempre, ao contrrio da isabel e da iga que se perdiam invariavelmente nos nossos xeques-ao-rei, o substantivo prprio, o adjectivo exacto, briosas nas palavras como se fossem a superioridade visvel da nossa emancipao, e pudessem, de certa forma, atenuar as barbaridades que trocvamos: - no nos podemos amar umas s outras porque nos

  • percebemos demasiado bem. e como se descobrisse a plvora: - ns no gostamos deles por eles, percebes? gostamos deles pelo mistrio que encerram, pelo trabalho inacabado que comportam, pela sua incapacidade de nos perceberem, pelo repto intelectual que nos garantem at ao resto da vida!

    e rindo-se, maliciosa: - uma mulher no nos d isso e tu sabes muito bem! e eu a desatar a chorar porque era verdade e a verdade, assim descoberta, mesmo que fosse efmera, provisria ou falaciosa, comovia-me sempre: - mafalda! nem calculas o peso que me tiras de cima! - claro - ria-se ela. - ou julgavas que a gente no ia para a cama umas com as outras s porque no ramos fufas? e eu a rir-me, a gaja era lixada, as mulheres eram tramadas e eu nunca na vida poderia am-las porque elas percebiam as nossas coisas antes mesmo do que ns e s os homens que tinham, de facto, humildade para se deixarem esventrar.

    e a iga de novo ali, ouvindo tudo, escandalizada: - ento por isso que vocs gostam dos homens? e eu aflita por ela, ressalvando logo: - no faas caso, iga. a gente sabe l o que o amor! e a mafalda lembrando-lhe, escusadamente: - duma coisa podes estar certa, menina: todo o amor interesseiro! - e o amor a deus? - perguntava a iga, incrdula. o amor a deus tambm interesseiro? e a mafalda logo, antes de mim, precipitando-se: - promete-nos a vida eterna, caramba, queres mais interesseiro do que isso?

    * * *

    ao deitar-me, quando os seis telemveis retemperavam cordas nos recarregadores espalhados pelas tomadas da casa inteira, tive, como todos temos, aquele pensamento sem nenhum valor esttico ou intelectual, daqueles que servem apenas para nos interromper o transe e despojar-nos das ansiedades do dia:

  • - quando chegar a casa vou lavar a despensa, que j precisa. o afonso entornou cacau nas prateleiras e aquilo est que no se pode...

    e adormeci com a almofada dobrada em duas, porque embora soubesse que dormir to alta assim me fazia mal s costas ainda sentia a factura dos quarenta to longe como dos meus dezoito anos.

    e s muito depois, a meio da noite, ao acordar com uma sede enorme por causa da porcaria do radiador que deixara ligado por distraco na temperatura mxima e me levantei para ir beber gua cozinha, que ouvi, enfim, as lgrimas que a isabel s assim, sem testemunhas, pudera enfim chorar. e foi ento que lhe bati porta do quarto muito delicadamente para lhe perguntar: - isabel? queres vir sala fumar um cigarro? isto j s cinco da manh, com aquela preocupao to pouco viril de saber como passam as nossas vtimas, aflita por ela, ouvindo os soluos do outro lado a calarem-se por dignidade, e tudo aquilo a lembrar-me que o sofrimento solitrio e silencioso e que as testemunhas s o podem prolongar. quem fumou o cigarro fui eu, sozinha, de olhos perdidos nas brasas sobreviventes, a pensar que a vida era extenuante e a perguntar-me admirada porque que os outros tambm no se matavam como eu naquele dia e em todos, ponderando, ao mesmo tempo, na sade que poderia haver naquele ltimo cigarro fumado na maior lucidez.

    * * *

    na manh seguinte, tudo parecia resolvido, a mafalda, a pilar e a iga acordaram radiosas porque a infelicidade era uma mentira to duradoura como a felicidade, o eduardo e a isabel pareciam mais prximos um do outro, tambm porque ns queramos que eles parecessem e a isabel tambm devia querer que o pensssemos, e eu disfarava como elas, cismando naquela fatalidade que a mim me parecia generalizada e que consistia em precisarmos de nos destruirmos todas as noites para acordarmos inteiros na

  • manh seguinte. e cada uma de ns, isoladamente, vestiu a sua pele outra vez: - como que era, pilar, aquela frase do malraux? e a pilar, to especial, a aplicar para mim o seu francs:

    un homme n'est pas ce qu'il coche. un homme est ce quil

    fait, car, au fond de nos mes, nous sommes tous un peu les mmes.

    e toda a gente a lembrar-se do que se passara naquela noite e do que se tinha percebido ao todo, apesar da visita ao desfiladeiro e barragem, apesar do requeijo em bola e das trouxas de ovos, apesar da criada que nos fazia as camas nunca nos dizer bom-dia, apesar do esparguete de tomate e da ltima canja bebida em conjunto, apenas esta frase, invocada por mim e proferida pela pilar em bom francs, apenas esta frase ficaria de todo aquele fim-de-semana em que tnhamos gasto cerca de quarenta contos por pessoa sem contar com as portagens e que, mesmo assim, custara uma pechincha.

    * * *

    h alturas, e estas coisas ningum confessa a ningum, em que se vai para a cama com um homem a seguir a uma combinao forada e que depois de nos sondarmos superficialmente chegamos concluso de que no sentimos absolutamente nada e que o vazio que precede esses momentos. num esforo de civilizao e moral, porque a moral nunca foi espontnea, interrogamo-nos como que aquilo possvel, como que aquilo possvel connosco e porque nos sujeitamos ns quilo, pensando que talvez fosse melhor termos ficado em casa a ver televiso porque a emoo seria igual seno maior no caso da programao nos reservar uma surpresa, e damos connosco a averiguar a razo por que fomos ainda assim, mesmo depois de confirmarmos toda aquela gratuitidade humilhante. j uma vez me acontecera.

  • na dificuldade logstica de nos encontrarmos em qualquer das casas, um amigo e eu, querendo ambos encontrarmo-nos para nos deitarmos juntos, andmos semanas e semanas a protelar o encontro sem conscincia nenhuma, pedindo as chaves de apartamentos de amigos e combinando sucessivos locais para as deixarmos - uma vez num caf, outra num restaurante, outra ainda no lado esquerdo do andar em perspectiva -, e diversos chaveiros foram, ao longo de semanas, depostos em lugares estratgicos e retirados dias depois, sem que nenhum dos dois, por uma razo ou por outra, os levantssemos jamais, desmarcando o encontro a todos os pretextos at ao dia em que eu arranjei coragem para parar com aquilo: - v-se que, no fundo, nenhum de ns quer muito estar com o outro. ou seja: quer e no quer, mas no quer mais do que quer e por isso vamos suspender isto, concordas? e como esse abenoara a minha deciso: - ana, ana! pode at ser um dia qualquer! basta que um de ns queira muito e que esse desejo seja to sentido que contagie o outro... eu ri-me, e ele riu-se tambm, e ambos nos sentimos aliviados por no precisarmos de provar que no se tratava de desamor ou desinteresse, porque na realidade no era isso que sucedia, mas a impossibilidade, pressentida por ambos, de estarmos juntos sem a intimidade necessria. ir para a cama sem se querer muito, sabe-se cedo, tem aquele sabor de se comer sem se ter fome que nos faz sentir alarves. a gente despe-se com eles a olhar para ns sempre a leste do que nos vai na alma, o que representa uma solido terrvel, tira a camisa, tira a saia, tira as meias e os sapatos, a matutar at ao ltimo minuto o que nos levou ali apesar do amor que nos liga a todas as pessoas do mundo e a eles tambm, at ao momento preciso em que paramos de pensar e que um animal qualquer nos encarna para viver, ele sim, com todo o direito que os animais que nos habitam tm de viver e de brincar, a legitimar assim tudo o que se viver nesse intervalo. e, ento, torna-se emocionante descobrir como que eles,

  • com os seus braos fortes e cabelos moles e timbres diferentes, quase s por isso e por terem condies anatmicas para nos invadirem, nos vo a pouco e pouco amolecendo at entrega total para logo a seguir nos devolverem a vacuidade. foi nesse esprito preciso que fui ter com o nuno nessa noite, como se lhe devesse uma despedida, com ele desconfiado a pensar que aquele encontro seria absolutamente decisivo para si j que o estaria a pr prova por comparao. e quando, enfim, me rendi aos seus beijos, descobri que tanto se me dava que fosse ele ou o vasco desde que qualquer deles me fizesse esquecer o outro. assim que a gente pensa, muitas vezes, apesar das nossas juras de amor eterno, por razes que passam por outros lugares distantes que nem sempre podemos descortinar e que s raramente tm que ver com o que realmente se passa entre duas almas. isto, ao mesmo tempo em que o nuno me dava repetidos beijos no cabelo e eu lhe dizia, convicta, sers sempre o homem da minha vida. mas o nuno tinha esse defeito terrvel que certos homens tm de no perceberem que na cama, s na cama a gente tem direito a dizer exactamente o que nos vai na cabea, e a ser tudo, e que isso muito importante porque nos ajuda, fora dela, a sermos pessoas verdadeiramente saudveis e fiis. mas ele no percebia, coitado, e digo coitado por saber que isso o vedava a alguma beleza, e tive ento que lhe dar muito mais festas do que o costume, e fingir que estaria a provoc-lo para aumentar o seu desejo, e ele acabou por convencer-se em aderir quilo fechando os olhos e agarrando-me como quem se agarra a si prprio para no se atirar duma ponte abaixo. a cena fora srdida, violenta, desonesta, e eu pensava que o mais estranho de tudo era que nunca o nuno atingira antes um fervor to grande, seno enquanto estava a sentir-se trado como naquela altura, o que me demonstrava sociedade que, no fosse a infraco, haveria com certeza homens e mulheres que morreriam sem grande conhecimento

  • de si prprios o que data me parecia imperdovel. comigo foi diferente porque enquanto ele comprovou naquela noite que me amava s a mim, eu descobri que no o amava a ele nem ao vasco, o que me obrigou a estrear, por circunstncias que tinham contribudo para aquilo e me transcendiam, mais uma semana de desconfortvel indignidade pessoal. o vasco era novo, com tudo o que prometiam as novas possibilidades, e o nuno era velho, e conhecido, como a casa onde me podia estender sem sapatos ou usar um soutien esbambeado na mquina sem que nada disso fosse notado ou punido, o que tambm me era agradvel, seno imprescindvel.

    uma voz qualquer dizia-me que teria de escolher, mas como a minha indiferena aumentava a necessidade de ambos por mim, eu dispunha-me a ficar assim at que o tempo ou qualquer sinal facultado pela vida me demonstrasse claramente se eles prefeririam a privao de minha pessoa escolha de um s ou ao abandono dos dois. no pensava em mim, e o que resultou foi que me voltei a vestir com o mesmo vazio em que me despira, deixando o nuno na ressaca daquele prazer que eu lhe dera e que nada tivera que ver com empenhamento, nem com amor, nem mesmo com desejo, porque nem sempre o que se sente claro ou se pode desmontar facilmente. estava fria quando passado pouco tempo me meti no carro, e s no me senti perdida no trnsito nem com vontade de rir como quando fora buscar o afonso ao colgio, porque toda aquela intensidade no resultara de uma descoberta, mas do luto de uma confirmao. quando voltei para casa, me estendi no sof e liguei a televiso, o vazio instalava-se para, logo a seguir, me restituir uma paz interior maravilhosa por estar de novo ali e saborear aquele repouso luxuoso que sentimos quando, apesar de amadas, sabemos que nenhum homem impor a sua presena continuada nas nossas casas, nas nossas vidas ou junto dos nossos filhos. foi nessa altura que me levantei para, completamente alvoroada pela liberdade que experimentava naquele

  • momento, ainda sem riscos, informar o meu filho que nos meados do sculo xvi portugal s tinha milho e meio de habitantes, e depois, com muito mais entusiasmo, mas isso j deveria ser observado luz de outras filosofias, entregar-me de alma e corao tarefa de arear as pratas que mobilizava todas as minhas redentoras e primitivas qualidades de castel. o vasco ainda me falou para me convidar para jantar no dia seguinte, e eu aceitei apenas por me parecer esse o passo lgico de uma equao que algum haveria de resolver por mim, dizendo-lhe que tambm gostava dele inteiramente convencido de que havia de gostar um dia, apostada naquele investimento a mdio prazo que se faz no incio de qualquer relao. deixei as pratas mais brilhantes do que a minha alma e desafiei o meu filho para um gelado na baixa, que me apetecia mais a mim do que a ele, a pensar que as coisas que lhes dvamos, de ternura ou de cuidados, eram ternuras ou cuidados de que ns precisvamos, como o casaco de malha que os mandvamos vestir quando ns, e no eles, comevamos a sentir frio.

    * * *

    os cimes tinham, para mim, dois problemas gravssimos: alm de entrarem em conflito com certas qualidades que me tinham ensinado a admirar - como o respeito pela liberdade alheia e pela autodeterminao moral do outro -, eram impossveis de controlar nos quadros de insegurana ou de dependncia afectiva que, por si s, desencadeavam.

    era ver os mais slidos e lcidos indivduos chegarem ao homicdio, a negarem pai e me, a desconhecerem os filhos ou a desfazerem vidas laboriosamente construdas movidos por impulsos incontrolveis.

    a soluo poderia passar por uma estratgia que combatesse o cime com o cime, se a inteligncia alguma vez conseguisse subalternizar os vexames e se esses jogos no acabassem sempre por nos degradar.

    invejava as pessoas que os no sentiam, mas no as

  • admirava: eram quase sempre conduzidos a circunstncias caricatas de irresponsabilidade ou negligncia, susceptveis de precipitar, por sua vez, ameaas concretas.

    no era o caso do nuno, para quem o cime era uma via sem regresso, capaz de destruir a sua vida e de desmembr-la com muito mais eficcia do que uma tragdia efectiva.

    a existncia de um vasco na minha vida provocava-lhe um abalo to forte no ego, no amor-prprio, nas convices e nos projectos, que de um momento para o outro se tornou irreconhecvel como ser racional dotado de bom-senso e guiado por leis morais.

    no caso dele, decorria mais da agonia da suspeita do que do golpe da confirmao.

    bastava-lhe projectar no vasco uma qualquer qualidade carismtica susceptvel de me arrebatar, para me permitir assistir, a toda a hora, ao degradante espectculo do seu respeito por mim a transformar-se em desprezo, a ternura em acidez, a paixo em dio, sem que isso comprometesse ou desfalcasse, pouco que fosse, o verdadeiro sentimento que o ligava a mim.

    foi talvez por tudo isto que, nessa noite, o nuno apareceu em minha casa j com as crianas deitadas, e s me lembro distintamente da tareia que me deu