revista +soma #23
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Nesta edição: Alexandre Vianna, Jarbas Mariz, Luisa Ritter, Koudlam, Edu Monteiro, Justin Bartlett, Alexandre Colchete, Adriana Marto, Bárbara Malagoli. Flor Menezes, Orelha Negra, Hallogallo, Macaco Bong, Brendan Canning, DonCesão, Daniel Tamenpi, Adriano Lemos, MZK, Nik Neves, Rafael Campos, John Coltrane, A Tribe Called Quest.TRANSCRIPT
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+SOMA . #23
“ERRO E RISCO FAZEM PARTE DE TODA OBRA RADICAL”, lembra Flo Me-
nezes, professor e compositor de música erudita experimental brasileira. Na
música e na arte, como na vida, a relação da sociedade ocidental com o
dissonante e o feio é antiga, controversa e passou por fases distintas. Por
séculos, as notas que causavam ruído nas escalas musicais diatônicas foram
evitadas pela tradição musical europeia, por serem consideradas literalmente
a manifestação de forças diabólicas, sempre à espreita, procurando o me-
nor sinal de fraqueza para quebrar a harmonia do homem com Deus. Na
arte, se o Renascimento significou o começo do fim das trevas medievais,
implicou também o abandono da iconografia perturbadora de uma série de
pintores pré-renascentistas, que passariam a ser vistos como “primitivistas”,
em detrimento do resgate de um conceito estético apolíneo clássico. Mas o
feio, como todo vaso ruim, nunca quebra. Nesta edição, duas entrevistas de
pontos distintos da cultura tratam, à sua maneira, das interferências na arte
causadas por elementos fora dos padrões do belo. FLO MENEZES fala sobre
como a música eletroacústica radicalizou a ideia de instrumento musical para
se apropriar de todo e qualquer som. Mais do que uma aula sobre composi-
ção contemporânea, sua entrevista é um convite ao conhecimento e a uma
compreensão musical além dos limites do senso comum.
O artista gráfico estadunidense JUSTIN BARTLETT, mais conhecido como
VBERKVLT, passa em revista anos de trabalho como ilustrador de dezenas de
discos de metal, de todas as vertentes possíveis. Uma entrevista marcada por
4JARBAS MARIZ POR FERNANDO MARTINS FERREIRA
seu senso de humor inteligente, de quem fala do diabo com a intimidade de
quem dá um pescotapa em um amigo da escola. Ao lado de Tom Zé, Jackson
do Pandeiro e outros gênios, JARBAS MARIZ também explorou como poucos
os caminhos tortuosos da música brasileira. Em entrevista rara a um veículo
de imprensa do país, Mariz deitou em sua banheira psicodélica e narrou epi-
sódios perdidos nas entranhas da nossa cultura. Quase contemporâneo de
Mariz, MICHAEL ROTHER borrou contornos no rock do outro lado do Atlântico,
em bandas como Neu! e Harmonia. Em passagem pelo Brasil com seu projeto
Hallogallo, ele enfrentou uma gripe para contar sua história. No ensaio de
fotos, EDUARDO MONTEIRO abre mão de sua identidade para encarnar o feio
em máscaras perturbadoras. A SOMA 23 ainda traz a pintora LUÍSA RITTER, o
mestre da nova música eletrônica francesa KOUDLAM, o hip-hop instrumental
português do ORELHA NEGRA, o rock instrumental brasileiro do MACACO BONG
e o rap circense de DON CESÃO.
VIRE A PÁGINA, QUE O RESTO É RUÍDO.
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4JARBAS MARIZ POR FERNANDO MARTINS FERREIRA
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+CONTEÚDO
SHUFFLE . ALEXANDRE VIANNA
JARBAS MARIZ
LUISA RITTER
KOUDLAM
ENSAIO DE FOTOS . AUTORRETRATO SENSORIAL
VBERKVLT
ENTRE (OUTROS)
FLO MENEZES
ORELHA NEGRA
HALLOGALLO
MACACO BONG
BRENDAN CANNING
DONCESÃO
QUEM SOMA . DANIEL TAMENPI
SELETA . ELETRODOMÉSTICOS
QUADRINHOS
OBRAS PRIMAS . LOVE IS IN THE AIR
REVIEWS
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4ILUSTRAÇÃO POR JUSTIN BARTLETT
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O PROJETO +SOMA É UMA INICIATIVA DA KULTUR, ESTÚDIO CRIATIVO COM SEDE EM SÃO PAULO.
PARA INFORMAÇÕES ACESSE: MAISSOMA.COM
KULTUR STUDIO . SOMA
Rua Fidalga, 98 . Pinheiros
05432 000 . São Paulo . SP
kulturstudio.com
REVISTA SOMA #23 . MAIO 2011
Fundadores . KULTUR
ALEXANDRE CHARRO, FERNANDA MASINI, RODRIGO BRASIL e TIAGO MORAES
Editor . MATEUS POTUMATI
Editor Site . AMAURI STAMBOROSKI JR.
Revisão . ALEXANDRE BOIDE
Fotografia . FERNANDO MARTINS FERREIRA
Projeto gráfico . FERNANDA MASINI
Direção de Arte . RODOLFO HERRERA e JONAS PACHECO
Conteúdo áudio-visual . ALEXANDRE CHARRO, FERNANDO STUTZ e
FERNANDO MARTINS FERREIRA
Colunistas . TIAGO NICOLAS, RICARDO “MENTALOZZZ” BRAGA, DR. JACOB PINHEIRO GOLDBERG,
PEDRO PINHEL, RAFAEL CAMPOS, MZK e NIK NEVES.
GOSTARÍAMOS DE AGRADECER A SESC, Leonardo Franco e Thiago “Índio” Silva, Ana Ferreira Adão.
a todos os nossos colaboradores de texto, foto e arte, aos que enviaram material para resenha,
anunciantes e aos pontos de distribuição da revista. Muito obrigado!
Agradecimento especial a todos que direta ou indiretamente colaboram
para que a revista se tornasse realidade e nos apoiam desde o início.
Todos os artigos assinados e fotografias são de responsabilidade única de
seus autores e não refletem necessariamente a opinião da revista.
Publicidade . CRISTIANA NAMUR MORAES . [email protected]
Para enviar sugestões e material para review, entre em contato
através do e-mail [email protected].
Periodicidade . Bimestral
Distribuição . Gratuita em lojas, restaurantes, galerias de arte, museus, centros
culturais, shows, eventos e casas noturnas.
Veja os endereços em: www.maissoma.com/info
Impressão . Prol Gráfica
Tiragem . 10.000 exemplares
2CAPA . THE SECRET . VBERKVLT
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2CAPA . THE SECRET . VBERKVLT
artes visuais
educação, cultura e artejornalismo cultural
Promovemos reflexão
Estão abertas as inscrições para professores e estudantes de jornalismo e comunicação social.
Estudantes podem se inscrever com reportagens sobre o universo cultural. Professores, com ensaios sobre as possíveis relações entre instituições de ensino e jornalísticas. Os selecionados participarão de programas de aprimoramento e desenvolverão projetos com apoio financeiro. Participe!
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itaucultural.org.br twitter.com/itaucultural youtube.com/itaucultural facebook.com/itaucultural
Rumos Itaú Cultural Jornalismo Cultural 2011-2012
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anuncio_IC_rumos2011_soma_AF.pdf 1 4/19/11 5:41 PM
Daniel Tamenpi
Jornalista, pesquisador musical
e DJ especializado em soul, funk
e hip-hop. Escreve o blog Só
Pedrada Musical, onde apresenta
lançamentos e clássicos da
música negra.
Raquel Setz
Jornalista musical apaixonada
por barulhos, experimentações
e esquisitices em geral - e por
melodias bonitas também, porque
não tenho coração de pedra.
Velot Wamba
Velot Wamba, 32, é a favor do
céu pelo clima e do inferno pelas
companhias. The Ex, João Antonio,
Tina Modotti, Robert Crumb e
Jackson Pollock - tudo junto e
misturado. Crê que as ideias são
imprescindíveis, os rostos não.
Michaël Patin
Tem 29 anos e é mestre em
sociologia das mídias. É também
crítico musical e realiza entrevistas
para a revista francesa Magic,
cuja especialidade é o pop
contemporâneo, desde 2003.
+COLABORADORES
Lauro Mesquita
Jornalista, foi vocalista e guitarrista
do Space Invaders. Nas horas
vagas escuta um som e aproveita
a vida em Belo Horizonte, Pouso
Alegre e na idílica Heliodora.
Apesar de negar com veemência,
é roqueiro brasileiro nato.
Helena Sasseron
Produtora e stylist nascida em SP,
acredita no “cada um com seu
cada qual”. Filmes e arte sempre
que sobra um tempo.
Música o tempo todo.
Vakka
Death Banger profissional formado
pela Uni-Led Slay e pós-graduado
em Death Metal Oldschool por
diversos cursos online e livros de
procedência duvidosa. Empresário
fracassado, mantém um site para
intimação online, o Intervalo Banger,
alimentando assim a chama do Rei
das Sete-Coroas.
Fotonauta
O Coletivo Fotonauta é: Andrea
Marques, Daryan Dornelles e
Eduardo Monteiro.
Debora Pill
Jornalista, produtora e
investigadora musical. Em pleno
processo de desenvolvimento do
ouvido de dentro. Acredito no
caminho do bem e ainda ouço
rádio.
Marina Mantovanini
Nascida em São Paulo, pindense
de coração. O lado hippie sempre
pensa em arrumar as malas e viver
na praia, mas os shows e a vida
agitada da metrópole ainda falam
mais alto.
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DISCO TRILHA SONORA
DA ÉPOCA DE OURO DA
DIRTY MONEY
Gil Scott Heron – The
Revolution Will Not
Be Televised. Quando
resolvi fazer o vídeo de
skate Dirty Money, em 1991, queria que o vídeo
tivesse o título “The Revolution Will Not Be
Televised, Brother”. Por algum motivo que não
lembro mais, acabei ficando com Dirty Money
mesmo. Mas as palavras do Gil Scott Heron,
naquela época de ouro dos anos 90, sempre
me levantavam da cama mais inspirado.
DISCO QUE CONSEGUE
TRANSPOR ESSA
ÉPOCA PRA HOJE
Twinpines – Niagara
Falls. Hoje em dia sou
muito influenciado
pelo sentimento e pela
verdade que o ser humano por trás das obras
transmite, seja nas artes plásticas, na fotografia,
no skate ou na música. O Twinpines é uma
banda nova, e seus integrantes me transmitem
bastante o sentimento dos anos 90.
DISCO QUE VOCÊ
LEVAVA PRA CORRER
NOS CAMPEONATOS
OU PRA FAZER DEMOS
Fugazi – Repeater. Teve
muitas fases, mas esse
nunca podia faltar.
DISCO DE QUEM FAZ
SNOWBOARD
Shawn Lee’s Ping Pong
Orchestra – Moods
and Grooves. Grande
parte da minha escola
musical é através de
vídeos, e no snowboard não foi diferente. Os
vídeos de snowboard também têm trilhas
sonoras bem elaboradas.
DISCO PRA DERRUBAR
SEU ARQUIRRIVAL
NUMA VOLTA
O skate pra mim
sempre foi meio de
superação individual.
Meu arquirrival sempre
foi o meu próprio corpo: os músculos doloridos
do dia anterior ou um medo não dominado
dentro da mente. Principalmente a cabeça
desconcentrada da ressaca de uma boa balada.
Pra derrubar a ressaca: Joanna Newsom – The
Milk-Eyed Mender.
DISCO QUE VOCÊ
MAIS GOSTOU DE
TER FEITO A FOTO
DA CAPA
De Menos Crime –
De Menos Crime. Nada
de estúdio, armas de
brinquedo ou balas de festim.
EXTRAORDINARIAMENTE, A MINHA ESCOLHA
DESTA VEZ É MAIS UMA PERGUNTA. E
DAS DEZ PERGUNTAS QUE FIZ A QUE EU
MAIS CHAPEI FOI ESTA: DISCO QUE TÁ
NO SEU PASSAPORTE, QUE REVELA SUA
VERDADEIRA NACIONALIDADE
Garotos Podres – Mais Podres do que Nunca.
Nasci em Teerã, no Irã, mas fui registrado
na embaixada brasileira para ser, de fato,
brasileiro nato. Saí do Irã com um ano de idade
e não tenho nenhuma ligação com o país ou
sua cultura. Sou brasileiro por opção, e não
por fatalidade!
DISCO SOLO DE UM
SKATISTA
Tommy Guerrero – Loose
Grooves and Bastard
Blues. Em meados
dos anos 90, tive a
oportunidade de fazer
uma sessão de street com o Tommy Guerrero
em San Francisco e ganhei um CD com as
músicas que ele estava compondo. Era ainda
um CD demo, sem gravadora. Em 1998 o disco
foi oficialmente lançado, e impulsionou a
carreira dele como músico.
DISCO PRA OUVIR
ENGESSADO EM CASA
Silversun Pickups – Pikul.
Quanto mais energia na
música e quanto mais
alto o volume, melhor
pra qualquer momento
de recuperação do corpo e da alma.
DISCO QUE VOCÊ
MAIS GOSTOU DE TER
RESENHADO
Dinosaur Jr – Green
Mind. Pela foto da
capa! E pelo rock. Por
ter fotografado várias
imagens de capa de discos ao longo dos anos
– e por ter comprado diversos discos (também)
pela foto da capa.
POR TIAGO NICOLAS
Ele nasceu quase em Belém, e o pobrezinho dropou no Brasil pra fazer história e contar a história do skate nacional. ALEXANDRE VIANNA sempre foi envolvido e inteirado com toda a cultura do skate, e continua no jogo, disparando seus flashes e recentemente estreando o emocionante Dirty Money. Como o Alê também edita a revista 100%Skate, foi bem solidário e generoso nas respostas. Confiram:
FOTO POR FERNANDO MARTINS FERREIRA
COM ALEXANDRE VIANNA
2TIAGO NICOLAS É 1/3 DA ESPARRELA
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JARBAS MARIZ é um camarada de sorte. Nasceu roqueiro, mas o dom do ritmo o levou a passear por onde ele bem entendesse: psicodelia, forró, baião, eletrônico, xote, post-rock, coco, indie, xaxado, ciranda e por aí vai. Paraibano prestes a completar seis décadas de vida, tem muita história pra contar. Mais do que isso: tem história que merece ser conhecida. Viveu capítulos com os maiores criadores da música popular brasileira, como a santíssima trindade Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro e João do Vale. Há vinte anos, Jarbas é parceiro das aventuras musicais de Tom Zé. É também um dos artistas mais inventivos do nosso tempo. Coisa de gente enxerida e arretada. 1
POR DEBORA PILL . FOTOS POR FERNANDO MARTINS FERREIRA
PSICODELIA FOR ALL
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Você teve algumas bandas de baile e depois foi
tocar com o Zé Ramalho. Conta essa história.
Pra mim, a música da Paraíba é antes e depois
de Zé. Foi ele que trouxe, no começo dos 70, um
show profissional, com estrutura. Era o “Atlântida,
o Continente Desaparecido”.
Era Zé Ramalho e os Filhos de Jacó, e eu era um
dos filhos. Tocava guitarra base, percussão e fazia
vocal com ele. Foi nessa época que o Zé conheceu
o pessoal de Recife, e queria me levar pra lá de
qualquer jeito. Ele falava: “Bicho, participei de umas
gravações com esses caras pro disco do Marconi
Notaro”. Quando o disco ficou pronto, ele me levou
pra Recife. Foi aí que eu conheci Lula [Côrtes],
Alceu [Valença], todo o pessoal… Foi nessa época
que saíram os clássicos Satwa, Marconi Notaro no
Sub-reino dos Metazoários e Paebirú.
Você tocou no Paebirú, né?
Eu fiz berimbau, mas nem tocava! Eu tinha ido à
Bahia pra aprender a tocar. E, como eles queriam
berimbau de todo jeito, acabei tocando na
“Não Existe Molhado Igual ao Pranto”. Depois disso
fizemos o Rosa de Sangue, do Lula, que eu toquei
também, em três faixas. Mas esse disco nunca saiu
aqui – eu tenho uma fita aqui que gravei lá
na Rozenblit.
Isso foi antes de você lançar seu primeiro
compacto.
É. Depois disso fui pra Belém visitar meu
irmão. Só que sofri um acidente lá e acabei
ficando mais tempo. Então resolvi procurar
uma gravadora que estava de olho em artistas
novos. Eu tinha uma fita de um show que tinha
gravado com o Zé lá em João Pessoa, que era
o “Três Aboios Diferentes”. Todas composições
minhas, só a “Paragominas” eu fiz em Belém.
Levei pra Erla, a gravadora de lá. O cara
achou estranho, eles tinham uma pegada mais
carimbó, sirimbó, samba. Mas um maestro lá
convenceu o dono que era importante ter um
som diferente. E o cabra acabou investindo no
meu primeiro compacto.
Conta mais do Transas do Futuro.
A gente fez o disco em 78. As letras das
canções tinham muito a ver com a época. Era
uma linguagem que hoje em dia não tem mais
validade. Mas as pessoas não têm noção, tem
loucuras bem legais ali. Eu gosto de dizer que,
quando é verdadeiro, me dá o direito. Por
exemplo, na música “Eu Quero Jogar Cartas com
a Humanidade”, em que falo “Eu traço planos com
a mente, eu carrego nas costas seus discípulos.
Por isso não tente me enganar, a verdade está
naqueles que a sabem usar”.
E a gravação?
Era tudo ao vivo. A gente gravava a base e
depois botava uma voz – às vezes a voz-guia
já valia. Eram as condições da época. A gente
sabe que o disco é mal gravado e tal, mas o
barato está aí. Eu gosto de ouvir esse som hoje
em dia. É um som verdadeiro demais. Naquela
época era tudo na luta, você ensaiava até
morrer… E um, dois, três, ninguém podia errar.
Essa garra toda aparece nas letras também.
Tem muita coisa otimista, tipo “Tudo que vem
da natureza merece ser curtido”. Pode até ser
ingênuo, mas é de verdade. Outra coisa que
eu falo que merece ser ouvida é a “Valsa dos
Cogumelos”, mas nesse caso estou falando de
uma música do primeiro disco do Lula, o Satwa.
O Lula me deu o disco, eu me identifiquei e
coloquei nessa letra.
Lula, grande mestre que nos deixou há pouco…
Vou sentir muito a falta dele. Eu inclusive queria
regravar essa música e ia pedir pro Lula, tem
a cara dele. Além de ser criativo pra caralho,
era um ser humano da porra. E não parava
um minuto. Bicho elétrico! Aquele quadro ali,
grandão, verde, é dele. Maluco pra caramba:
um relógio de madeira abandonado na beira de
um pântano, que de tanto tempo que ficou lá
acabou brotando.
E depois de Belém?
Voltei pra João Pessoa, chamei Lula pra ser
convidado especial no meu show, tem inclusive
um cartaz que eu guardei. Os meninos (DJ Nuts
e Craifer, da Mopho Discos) ficaram malucos
quando viram isso.
Foi nessa época que você tocou com Jackson
do Pandeiro?
Foi logo depois. Eu estava no Rio com Catia
de França gravando, e a gente foi chamado
pra fazer o Pixinguinha (projeto que promovia
shows a preços acessíveis). Os convidados eram
Jackson do Pandeiro e Anastasia. Tudo acabou
sendo uma surpresa pra mim, porque eu estava
chegando ao Rio todo matuto…
Eu sou autodidata, não tinha aquela manha de altos acordes, de estudar música profundamente. Minha coisa era mais simples, mais de emoção mesmo.
4CONCEITO ORIGINAL E A VERSÃO FINAL DA CAPA DE TRANSAS DO FUTURO
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aquelas bonecas de pano, que você puxa, roda
pra cá e pra lá. Eu aconselho a ir ver baião de
verdade, lá em Caruaru, Campina Grande ou
João Pessoa, onde o couro come. Aqueles
zabumbeiros, o bacalhau, que é a varinha que
toca na zabumba embaixo, o contraponto. Os
cabras tocam aquilo de uma forma que você
fica maluco! Pega os discos da Marinês, é uma
pauleira só! Forró lá é pra lascar, por isso se fala
“a poeira subiu, o chinelo arrastou”. O Jackson
falava: “É um baião apressado demais!”. E a
quadrilha? É mais rápido ainda! Uma vez fui
tocar aqui e me falaram: “Meu irmão! Aqui é o
pessoal da melhor idade! Você quer matar os
velhinhos?” (risos). Eu tive que tocar mais lento.
E o Luiz Gonzaga?
Conheci quando Marinês gravou uma música
minha. Ela tocava triângulo com ele, com um
suingue que você não acredita! A gente foi
fazer uma homenagem a Luiz Gonzaga no
programa de Walmor Chagas e tocamos juntos.
Além da cozinha de Gonzagão, os convidados
especiais eram Marlene, Ivon Curi, Marinês
e Altamiro Carrilho na flauta. Só isso! E Luiz
Gonzaga cantando “Asa Branca”, é claro!
Conta sobre as suas experimentações com o
eletrônico.
Foi o M4J que veio com essa ideia. Os meninos
da minha banda entortaram a cara, não
achavam que ia dar certo.
Eu sou autodidata, não tinha aquela
manha de altos acordes, de estudar música
profundamente. Minha coisa era mais simples,
mais de emoção mesmo. Aí no ensaio o
Jackson olhou pra mim e falou “Ô nego! Você
não vai tocar comigo?”. E eu respondi, tímido
pra caramba: “Não, eu vim tocar com a Catia”.
E ele, “Eu tô vendo que você é bom de rrritmo,
venha tocar comigo, o Severo vai lhe passar
as harrrmonias”. Ele falava muito explicado, o
Jackson, bem assim com o “r” puxado. Eu fui.
Comecei a pegar minha célula rítmica, peguei
as harmonias com Severo e fiquei fazendo os
vocais. Tocava com Catia e com ele, fazia todos
os vocais e a viola base.
Você tem registro disso?
Tenho tudo documentado. Tenho muito
material dessa época, Jackson, Catia, Elba,
João do Vale…
Fala do João.
Ah, ele era aquela figura forte. Tomava
uma cachaça boa! Chegava no teatro todo
arrumado, de camisa. Começava a tomar uma,
outra, ia abrindo a camisa, ficando suado...
Chegava a hora do show e ele tava no ponto!
Tirava o sapato, ficava com a camisa aberta e
mandava brasa. Era uma figura.
Foi na década de oitenta que saiu o Bom
Shankar Bolenath.
Esse disco saiu em 89. Foi a minha fase mais
criativa com o Lula. A gente ficou muito
amigo, ele me apresentou muito músico daqui,
Roberto Lazzarini, Bocato… Esse disco é como
se fosse uma versão do Satwa, com Lula no
tricórdio e Lailson na viola de doze. Aqui era
ele no tricórdio e eu na viola de doze, só que
com a tecnologia da época. Esse disco quer
dizer “Acordemo-nos Deuses e Deusas à nossa
própria divindade”. Só saiu em vinil, e é um
instrumental diferente. Porque muitas vezes
instrumental brasileiro tem aquela pegada jazz,
um entrega pro outro solar e tal. Esse disco não.
É uma viagem, a gente gravou todo mundo e
depois foi mixar.
O Lula era o Oriente e eu o Ocidente. A gente fez
uma coisa bem diferente. Tem um baião, o “Forró
pro Mundo Inteiro”, que no lugar da zabumba
a gente colocou tabla. O produtor achava que
estava jogando dinheiro fora. A velha história da
lucidez e da loucura, ou da loucura lúcida, não sei.
E a homenagem ao Jackson?
Foi uma responsabilidade danada. Eu tive essa
ideia e fui pesquisar o repertório, porque queria
misturar músicas conhecidas e desconhecidas.
O mais importante era não perder a célula
rítmica do Jackson, o suingue dele, era um
compromisso meu. Se ele fazia na introdução
uma coisa simples com sanfona, a gente fazia
com metais mas com sanfona também, sem
perder aquela cozinha do triângulo, agogô,
zabumba e pandeiro. Sempre tendo essa linha
da base do violão, e mais alguns arranjos.
Vários amigos participaram: Bocato, Mestre
Ambrósio, Chico César, Ferragutti.
Qual a diferença entre forró e baião?
Na minha concepção é o seguinte: dentro
do forró tem baião, xote, xaxado, coco. Nos
discos antigos, de Marinês, Jackson, Gonzagão,
eles davam o ritmo da música em cada faixa.
Por isso eu acredito que todos esses ritmos
formam o forró. Mas muita gente confunde.
Aqui em São Paulo tem mais xote que baião, o
povo dança mais devagar. Vai lá no Nordeste
ver essas bandas tocar! O baião é que nem
4JARBAS COM JIMMY PAGE
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O Manoel veio aqui em casa, levou os discos
de Geraldo Mouzinho e Cachimbinho, de dois
emboladores de coco, gravou uns pontilhados
de repentista também. Levou pro estúdio,
sampleou e gravou o primeiro disco. Aí a Trama
gostou da investida, e no segundo disco eles
me procuraram. Gravei triângulo, pandeiro,
um monte de percussão, cantei uma música
inédita…. E “Forró com F”, que foi bem gravada
por aí, eles cortaram no computador, ficava
Fo…Ff..Ff… Engraçado foi eu aprender a cantar
isso ao vivo assim, todo cortado!
Outra experimentação foi com o Tortoise.
Isso. O David Byrne juntou as duas coisas
porque achava que o som do Tortoise era
estranho e do Tom Zé também! (risos) A gente
fez uma turnê com eles por várias cidades
nos EUA. Mas foi duro, eu passei quinze dias
na casa do John McEntire. Tinha que ensinar
aquele samba troncho e aqueles arranjos
malucos pros caras! Eu ficava com as pernas
tremendo, eram oito horas por dia de ensaio.
Mas eles são bem versáteis, tocam todos
os instrumentos. Um sai da bateria, pega
o teclado, outro pega o vibrafone, outro a
percussão…
Falando em instrumento, conta sua história
com eles.
Eu vim da escola de baile, como já te falei.
Mas sempre toquei de palheta, desde pequeno.
Não aprendi com violão de nylon, já comecei
com guitarra base. Essa é minha parada.
Aí, quando assumi sair dos bailes e virar Jarbas
Mariz, tive que escolher um instrumento que
pudesse tocar com palheta. E escolhi a viola
de doze, porque não dá pra dedilhar. Até dá,
mas não é minha praia. Minha praia é ritmo,
e eu acabei me aperfeiçoando em cima da
minha mão direita. No começo, eu tinha muita
influência da bossa e da tropicália, mas a
maioria das pessoas estudava música.
E, como eu sou um autodidata, me safei com
minha mão direita.
E se safou mesmo?
No começo eu ficava cismado, porque achava
que tinha que ir além dos acordes simples,
tinha que fazer aquele negócio dissonante.
Aí depois eu entendi que pra fazer suingue,
que era o estilo que eu gostava de fazer, esses
acordes simples eram uma maravilha! Se eu
fizesse acordes dissonantes jamais seria um
ritmista. Sou cantor, compositor e, antes de
mais nada, um ritmista, porque minha mão é
percussiva.
E a sua história com o Tom Zé?
Foi justamente por conta disso que entrei na
banda de Tom Zé. Eu toco percussão, cordas,
meu bandolim é percussivo. Eu peguei toda
minha bagagem de ritmo e coloquei nesses
instrumentos pra trabalhar com o Tom Zé.
E acabou dando certo. Quando cheguei aqui
em São Paulo, no final da década de 80,
conheci Tom Zé. Estou com ele há vinte anos.
É um casamento danado!
E sigo gravando meus discos em paralelo
ao trabalho com ele. Este ano deve sair uma
coletânea dos meus seis discos.
Tem mais novidades na área?
Eu passei pela vida desse pessoal todinho:
Jackson, João do Vale, Catia, Zé, Quinteto
Violado, Lula… E levei todo esse material pro
rapaz da gravadora Discobertas. Ele vai lançar
tudo. Eu pensei: “Vou guardar pra quem? É
melhor deixar pras pessoas ouvirem.” Demorei
um tempo pra entender que era assim. Meus
amigos falavam que eu era doente. Eu dizia:
“Rapaz, eu não sei disso, não. Tudo que acho
bonito eu guardo”. Depois comecei a entender
que é bom pra mim e pras pessoas que vão
pesquisar um dia isso aí. Eu fico feliz que os
meninos estejam começando a se identificar
com esse tipo de trabalho. 3
2SAIBA MAIS
jarbasmariz.com.br
4JARBAS COM OS SELENITAS
20
AS
R E L Í Q U I A S
DE
L U Í S A R I T T E RPOR MARINA MANTOVANINI . RETRATOS POR SAMUEL ESTEVES
COM UM CONHECIMENTO matemático sobre suas pinceladas, LUÍSA
RITTER consegue revelar suas obras em detalhes sem nos fazer perder o encanto por seus quadros impressionistas e nostálgicos. Figuras e cores, ambas ofuscadas por tinta acrílica e outros materiais como lápis grafite, aparecem repetidamente em suas telas e formam uma cena familiar com cheiro de algo antigo, que já ficou para trás. Sem se intimidar com as agruras de viver de arte no Brasil, a artista plástica gaúcha mudou-se para São Paulo em 2008. Desde então, divide um apartamento no bairro de Pinheiros com mais dois artistas de seu estado natal, Carla Barth e Luciano Scherer – amigos impor-tantes para o amadurecimento artístico de Luísa. “Foi em São Paulo que comecei a me preocupar com o meu portfólio. Isso aconteceu quando larguei a publicidade e resolvi me dedicar ao meu trabalho. Eu queria ter alguma coisa autoral para apresentar e até então tinha um banco de dados de vários estudos, uma produção intensa de mui-tas coisas, mas nada pronto”, conta. 1
4DETALHE DA OBRA - LENÇOL TURQUESA/22, TÉCNICA MISTA SOBRE LENÇOL ANTIGO . 2010
21
AS
R E L Í Q U I A S
DE
L U Í S A R I T T E R
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4BLUMENAU, MAS PARECE TÓQUIO, TÉCNICA MISTA SOBRE CAPA DE DISCO . 2010
23
Durante o período de produção e de organiza-
ção do portfólio, Luísa foi conquistando espaço
no acanhado circuito artístico brasileiro, e hoje
tem suas obras representadas pela galeria pau-
listana Emma Thomas. “Tudo começou a mudar
depois de participar de uma revista de arte e
moda, a Gudi. Uma das curadoras, a Juliana
Freire, era uma das sócias da Galeria Emma
Thomas. Foi aí que recebi o convite para parti-
cipar de duas exposições no final de 2009, no
antigo espaço da Galeria”, relembra. Hoje ela
segue em direção ao reconhecimento pelo seu
trabalho autoral, em que o diferencial fica por
conta do modo como representa o que vê e
transforma suas histórias pessoais em relí-
quias do passado.
Você sempre desenhou?
A minha infância foi privilegiada, era repleta de
natureza, sensações de estar livre para se diver-
tir. Meus irmãos e primos sempre estavam juntos
na casa do meu avô materno. Passávamos boa
parte do tempo no pátio, íamos descobrindo
por todo canto algo para se divertir. Criávamos
um mundo que ia se abrindo conforme desco-
bertas eram feitas – livros, objetos e fotos guar-
dados despertavam a curiosidade de saber a
história que estava por trás dessas memórias.
Sempre via meu irmão mais velho desenhando,
e sempre o acompanhava para ajudar. Mesmo
que ele fosse até o telhado desenhar, eu ia atrás.
Via também meu pai desenhar umas casas de
campo em papéis quadriculados, isso me cha-
mava muito a atenção. Junto com as milhares de
tralhas que meu pai ia acumulando lá em casa,
se criou um universo muito rico de materiais. Fo-
ram os meus primeiros contatos com a arte, de
uma forma básica e espontânea, sem a menor
pretensão. Além de ter na escola a arte como
uma das únicas matérias em que me interessava.
Sempre me via desenhando no caderno.
Você disse que a faculdade abriu novos ca-
minhos na sua arte, e que a Cláudia Barbisan
(artista plástica gaúcha) foi a figura central.
Em que pontos ela é referência em suas telas?
Comecei a frequentar um curso semanal de
desenho, orientado pela Cláudia, que passou
a me dar dicas e a me orientar informalmente.
Algumas vezes ia visitar o ateliê dela e pegava
emprestado algum livro de arte. A Cláudia che-
gava a cada aula trazendo uma mala repleta de
livros, uma seleção de apresentações de formas
de criar, que foi evoluindo junto com o curso
de desenho que ela dava. A influência sempre
vai existir. Ela deixou presença em espaços que
ainda estavam sendo construídos. Era o olhar
de alguém que levantava questões, alternativas
para encaminhar o seu trabalho. Sempre vejo
pequenos detalhes na minha pintura – existem
VEJO O TEMPO PASSADO COMO RELÍQUIAS . HOJE SÃO POUCAS AS COISAS QUE RESISTEM AO TEMPO. ESSAS RARIDADESDO PASSADO ME FASCINAM .
encontros de pinceladas feitas com movimentos
intensos, como nas pinturas da Cláudia. É uma
coisa feita involuntariamente.
Como você cria?
Na verdade, meu processo de criação nunca é
pré-definido, tudo depende do que for aconte-
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cendo, de como estará o dia, a minha disposição
e o nível de concentração. Meu trabalho começa
primeiro na busca de referências, na soma de
motivação, estímulos e inspiração, que surgem
a partir da pesquisa diária em livros, na internet,
no convívio com outros artistas, no comparti-
lhamento de conhecimentos, desde pintura até
música. Já pintei doze horas seguidas, mas per-
cebi que era necessário sair para ver o que es-
tava fazendo, observar mais. Hoje tento acordar
cedo sempre, e usar a luz do dia, pintando de
quatro a sete horas. É sempre difícil, é preciso
estar presente diariamente para poder evoluir. É
uma obrigação que me dou, e que segue pelo
convívio diário com os outros artistas com quem
divido o ateliê, um empurra o outro.
Um ponto forte do seu trabalho é a reflexão
subjetiva do seu mundo interior na reutilização
de fotos antigas de família. É a partir delas que
você recria imagens deformadas da realidade.
Foi procurando em minhas referências que en-
contrei um mundo muito rico de imagens, fotos
e filmes em Super 8 produzidos ao longo da vida
pela minha família. Vejo o tempo passado como
relíquias. Hoje são poucas as coisas que resistem
ao tempo. Essas raridades do passado me fasci-
nam. Não tanto como algo saudosista, mas para
poder reutilizar de uma nova forma, mais criativa,
resgatar um lado mais orgânico. Levo [as antigas
fotografias] como inspiração para criar, fotogra-
fando e filmando de forma experimental, com
câmeras analógicas e em Super 8.
Resgato essas lembranças que vejo nas fotos de
uma forma quase cronológica. É uma experiên-
cia de resgatar o passado. Quem dera poder vol-
tar no tempo com toda essa bagagem já vivida.
Certamente, iríamos deixar mais lembranças de
momentos bem vividos, registrando os mesmos
passos para serem vistos no futuro.
Ao mesmo tempo que têm características
expressionistas, as suas pinceladas retomam
também o Impressionismo – tanto na textura
como na composição de cores. Como é essa
relação com as duas escolas artísticas?
Para mim é impossível não ter visionários como
eles entre minhas principais referências, assim
como os pré-rafaelitas e os pós-impressionistas.
Os expressionistas manifestavam-se ao mostrar
subjetivamente a natureza e o ser humano, prio-
rizando os sentimentos. Com uma visão metafí-
sica que defendia uma liberdade individual, de-
formando a realidade, uma abertura ao mundo
interior. Foi naturalmente que encontrei essas
duas escolas. A cultura que veio dos primeiros
imigrantes alemães permaneceu com o tempo
nos costumes e hábitos de toda uma região do
Sul do Brasil, que trouxe na bagagem aconteci-
mentos históricos vividos na Europa. À medida
que fui desenvolvendo e avançando o meu de-
senho, cada vez mais acentuava os traços dessa
herança cultural.
Você sempre fala sobre a importância de sua
herança cultural e do convívio com a natureza
em Montenegro (cidade próxima a Porto Ale-
gre) na concepção de suas telas.
Eu cresci sabendo a história do meu estado. Era
algo muito vivo nas famílias, nas escolas, apren-
der a cantar o hino rio-grandense e a história do
Rio Grande do Sul fazia parte da educação. Nas-
ci e cresci numa cidade com forte influência ale-
mã, com pequenas colônias de imigrantes no in-
terior, onde minha família viveu. Até os oito anos
de idade o meu avô paterno só falava alemão.
Era comum nos dois lados da família ouvir pe-
quenas palavras do dialeto, tanto no Ritter como
no Zimmer. Os imigrantes europeus deram uma
importante contribuição à formação do gaúcho.
A ética do trabalho, o cultivo da terra, os vá-
rios pratos da nossa culinária, cucas (pão/bolo
doce) com schimier (doce de frutas) e nata, e na
salada com maionese que acompanha um ver-
dadeiro churrasco gaúcho, com costela de gado
e uma bela ovelha. É uma educação que se tem
junto à natureza, à terra, nos seus devidos valo-
res. Não tem como se desvincular disso.
. . . MEU PROCESSO DE CRIAÇÃO NUNCA É PRÉ-DEFINIDO, TUDO DEPENDE DO QUE FOR ACONTECENDO, DE COMO ESTARÁ O DIA, A MINHA DISPOSIÇÃO E O NÍVEL DE CONCENTRAÇÃO.
Os seus desenhos já foram parar em um clipe
da música “Antes de Você”, dos Titãs. Como foi
essa experiência?
Uma amiga de Porto Alegre que mora aqui em São
Paulo lembrou de mim quando estava trabalhando
na produção. Ela perguntou se eu estava a fim de
pintar uns sacos de papel para um trabalho.
No primeiro momento, confesso que achei es-
tranho e disse que não. Em seguida ela me con-
tou que era para o clipe dos Titãs. Foi algo bem
informal mesmo, as pessoas que estavam fazen-
do os outros desenhos eram da própria equipe
da produtora. No mesmo dia em que recebi o
convite, comecei a produzir com uma pequena
ajuda de custo para os materiais. A reação deles
foi bem positiva. Não imagino o que eles espe-
ravam, se algo mais simples de canetão, mas a
pintura em camadas, bem expressiva, eu sabia
que iria se destacar. Queria tirar aquele padrão
de saco de papel. Fiz bem tranquila, não tinha
ideia de como estaria inserido no clipe, e o
quanto iria repercutir a minha pequena partici-
pação na produção.
Como você enxerga os trabalhos mais comerciais?
É importante ter liberdade de escolha, fazer tudo
em seu estilo. Levei o meu trabalho a sites na
internet desde que entrei na faculdade e come-
cei a desenhar. Ia salvando no Flickr, o primeiro
passo para publicar em revistas e ilustrar jornais.
É um passo para começar a se movimentar pelo
mundo, um portal para referências e contatos,
para aprender e evoluir. Passei a criar a partir de
briefing em São Paulo, quando as oportunidades
foram surgindo. Aos poucos produzia minhas
telas e ao mesmo tempo ilustrava para revistas
e jornais. A reação de quem vai receber a minha
arte faz parte da decisão de fazer ou não um
trabalho, mas sei que de alguma maneira sou
retribuída, tendo oportunidades posteriores,
convites para entrevistas e exposições. É preciso
saber a importância do trabalho, se vale a pena
unir a sua imagem com a marca em questão.
A melhor forma de enxergar essas oportunidades
é ver o trabalho como um desafio, uma chance
de ser reconhecia. Atualmente tenho o apoio
da agência Möve para trabalhos comerciais.
Lá tenho a chance de querer ou não, e o contato
com o cliente fica intermediado por eles, solucio-
nando várias questões burocráticas em que não
preciso me envolver.
Defina o seu trabalho.
Acredito estar sempre evoluindo, modificando
a forma de me expressar e fazendo com que
vários pontos aleatórios se unam. Mostro algo
realista mas obscuro, sem entregar totalmente
a imagem, deixando somente rastros e lem-
branças que fazem sentido combinados com
outras formas. 3
2SAIBA MAIS
flickr.com/photos/luisaritter
25
4LITTLE JOY, TÉCNICA MISTA SOBRE TELA . 2010
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k o u d l a m
Com sabor de eletrônico mundial, Koudlam instaura sua visão monumental do techno world no coração da nossa ofegante civilização pós-milênio. Após o inesgotável Goodbye (2009, relançado em formato digital este ano) e antes de um novo EP chamado Alcoholic’s Hymns, previsto para maio, tentamos compreender por que sua música nos faz fantasiar tanto. Uma obra de origem marginal também pode encontrar formidável repercussão em sua época. 1
A obra de Koudlam cultiva já há cinco anos essa capa-
cidade. Apaixonado por paisagens, monumentos,
culturas, ritos, a alteridade sob todas as for-
mas, ele perscruta nossa pós-modernidade
cansada de si mesma e impõe sua gran-
de visão do eletrônico neste mundo de
mensagens tão vazias. E faz isso com
ares de conquistador e xamã; de he-
rói, enfim. Emergido das ruínas, pro-
jeta sobre elas os fantasmas con-
temporâneos que o ultrapassam.
Intimado a encarná-los, quiçá pre-
encher ele mesmo essas lacunas,
Koudlam esforçou-se para guardar
um certo mistério sobre si mesmo –
uma forma de mostrar que ainda não
está pronto para levar sua arte à altura
do homem, o que incomoda, fascina e
impõe respeito. É por isso que sentimos
uma certa pressão antes de encontrá-lo
pela primeira vez. O sentimento é de que nada
conseguiremos tirar desse encontro. Atitude exa-
gerada, humor violento, silêncio sepulcral? Por já ter-
mos nos deparado com sua silhueta passiva-agressiva
nas casas de show, temíamos nos chocar contra uma
armadura de cinismo na superfície do gênio. Por sorte,
bastava ouvir sua música novamente – que além do
citado inclui Nowhere (2006) e Live At Teotihuacán
(2008) – para que a vontade de confrontá-lo voltasse.
Tentamos, então, elaborar o interrogatório da melhor
forma possível, a fim de revelar um pouco de íris por
debaixo dos óculos escuros.
Descemos ao segundo subsolo de um prédio do déci-
mo-primeiro arrondissement de Paris, um labirinto de
portas idênticas que davam para os porões. Avista-
mos Arthur, jovial patrão da gravadora Pan European
Recording. “Você não teve problemas para nos achar?
Tem que tomar cuidado, tem um clube SM hardcore
logo ali em cima.” Ele não estava brincando. No es-
túdio, um forte cheiro de maconha toma conta da at-
mosfera, indicando que chegamos ao nosso destino.
POR MICHAËL PATIN, DE PARIS . TRADUÇÃO DE ANA FERREIRA ADÃO4FOTO POR ALICE KNIGHT
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É aqui que Koudlam prepara seu novo EP, assim
como seu terceiro álbum. Logo no início da con-
versa, as nossas antigas apostas caem por terra:
palavras generosas e calmas de um jovem abra-
çando plenamente a vida de artista. Sem piadas
internas para os descolados, sem literatura de
slogan, mas atitudes e engajamentos que con-
firmam seu papel de desbravador.
A trajetória de Koudlam não poderia ser con-
vencional. Depois de uma passagem forçada
pelo conservatório durante a infância, montou
grupos de rock e foi rapidamente iniciado por
seu irmão mais velho no manejo de instru-
mentos eletrônicos. Ao ingressar no mundo
das raves hardcore, despejou sua “música de
guerra” por quase dez anos, antes de ser aco-
metido pelo cansaço (“muitas drogas, muitos
babacas violentos”). Daquele período, ele
conservou o apelido (Koudlam é uma corrup-
tela de “coup de lame”, ou “golpe de lâmina”)
e o gosto pelos sons que atacam o cérebro
das multidões. Nowhere, seu primeiro sinal
de vida, foi criado como questão de urgên-
cia. “Produzi o Nowhere sozinho, porque as
músicas estavam se acumulando e eu queria
passar pra outra coisa. Pra dizer a verdade, eu
temia na época que o mundo estivesse com-
pletamente fodido e que ninguém se interes-
sasse pela minha música.” Nesse álbum, sua
música já estava poderosamente formulada:
um tecnho world entre transe, raiva, caos e
iluminação. “Esse álbum é um massacre”, re-
conhece hoje. Mas o estalo viria de outro lu-
gar, de uma galáxia aparentemente distante: a
arte contemporânea. Em uma temporada no
Vietnã, encontrou-se com o artista plástico
Cyprien Gaillard, que lhe abriu portas para no-
vas e extraordinárias perspectivas. Uma forte
e recíproca admiração entre dois artistas, en-
tão desconhecidos, que pensam grande. “Nós
trabalhamos juntos no Desniansky Raion, um
vídeo para o qual eu compus uma trilha sono-
ra de trinta minutos e que levei meses e meses
para criar. Teve também o Crazy Horse, que
fala dos índios e de suas montanhas dinami-
tadas por um escultor polonês. Eu fiz essas
performances em lugares que correspondiam
à nossa estética, quando era possível e quan-
do nos proporcionavam os meios. Terraços de
prédios, topos de guindastes, pirâmides, flo-
restas, teatros italianos, ruínas e precipícios
pelo mundo inteiro.”
Enquanto seu sócio entrava no rol dos grandes
(prêmio Marcel Duchamp em 2010, com vendas
chegando aos cem mil euros), Koudlam execu-
tava seu número de ginasta com uma
desenvoltura desconcertante. “Eu
não via isso como um desvio
muito grande. Na época,
estava convencido de que
a minha carreira artísti-
ca funcionaria melhor
na pintura. Mas me
dei conta de que,
sem dúvidas, eu era
melhor nas melodias
e no canto, que eu
devia fazer só isso.”
Como Serge Gains-
bourg já havia feito
antes, Koudlam deixou
de lado os pincéis para
abraçar uma “arte menor”. O
talento da composição, que ele
evoca modestamente, conta muito
para o sucesso de seu diálogo com imagens
e paisagens, talvez ainda mais que a performan-
ce dos instrumentos eletrônicos que usa. Seu
desejo, atualmente, é ser ouvido pelo máximo
possível de pessoas e de abrir novos horizontes
a todos, uma ilusão que ele endossa com espíri-
to cavalheiresco. “A dimensão monumental me
agrada, mas acho que a minha música é de fácil
acesso. Muitas das minhas canções são bastan-
te universais, leves e envolventes.” Goodbye,
seu disco mais bem finalizado até hoje, prova
que ele tem razão: de amplitude e clareza ra-
ras, ouvimos esse disco como se estivéssemos
sonhando com um mundo outro, que devemos
(re)povoar juntos.
LIVE AT TEOTIHUACAN Um segundo momento fundador é seu encontro
com Arthur Peschaud, um ano antes da criação
da Pan European Recording. Fiel a sua primeira
intuição, Peschaud publica o EP-vinil Live At Teo-
tihuacan como primeira referência da gravadora
“NÃO ME CONSIDERO UM
ARTISTA PARISIENSE, NEM MESMO FRANCÊS.
TRABALHO EM PARIS HÁ ALGUNS ANOS, MAS MEU
CORAÇÃO E MINHA CULTURA NÃO SÃO DAQUI. EU ME SINTO
MAIS EM CASA NA ÁFRICA OCIDENTAL, NO MÉXICO OU NOS ALPES FRANCESES QUE
EM PARIS, AINDA QUE EU GOSTE MUITO DESTA
CIDADE.”
4FOTO POR CYPRIEN GAILLARD
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lançada em 2008. No mesmo ano, os violinos sin-
téticos ansiosos de See You All encontram um lu-
gar digno na trilha original do filme Un Prophète
(2009), obra-prima de Jacques Audiard, que re-
cebeu muitas premiações. Koudlam continua, no
entanto, a cultivar sua singularidade, alheio aos
efeitos de modas e clãs, escapando de todos os
atalhos estéticos ou geográficos. “Não me consi-
dero um artista parisiense, nem mesmo francês.
Trabalho em Paris há alguns anos, mas meu co-
ração e minha cultura não são daqui. Eu me sinto
mais em casa na África Ocidental, no México ou
nos Alpes Franceses que em Paris, ainda que eu
goste muito desta cidade.”
Esse nomadismo materializado
é a chave para entender o
impacto de suas criações.
Se ele se furta de exibir
uma atitude reacionária
em vista da tecnolo-
gia (não há culto ao
sintetizador vintage,
o que faz dele uma
exceção até mesmo
em sua gravadora),
furta-se também de
chafurdar nas facilida-
des permitidas por ela.
“Quando comecei a fazer
música eletrônica, comprei
um monte de máquinas enor-
mes – samplers, sintetizadores,
mesas de mixagem… Quando vieram
os plug-ins e o PC se tornou um home-studio
por si só, eu nem hesitei em vender meu an-
tigo material. Eu perdia na qualidade do som,
mas ganhava na liberdade de movimentos, o
que, pra mim, é o mais importante.” Tirando o
melhor do nomadismo em sua acepção tradi-
cional (gosto pela aventura, antissedentaris-
mo) e pós-moderna (essas tecnologias que,
paradoxalmente, permitem que as pessoas fi-
quem imóveis diante da tela do computador),
ele repõe o risco no centro de sua abordagem,
evidenciando esse paradoxo contemporâneo.
Nos tempos atuais, o artista deve ser móvel;
ele se reapropria do território para comba-
ter a ilusão de estar em todos os lugares ao
mesmo tempo. “Estou em guerra contra o
desaparecimento da cultura e das línguas, a
decadência da nossa civilização, contra o bom
pensamento, que está em todo lugar. Acho
que devemos defender a sociedade, mas en-
fim, eu sou só um músico.”
Esse último traço de modéstia nos espanta; ele,
que ainda recentemente imaginávamos um me-
galômano descomplexado. “A verdade é que eu
tenho, ao mesmo tempo, a maior e a mais mise-
rável autoestima. Um grande clássico.” Franque-
za e lucidez em vez de autoficção e autofelicita-
ção. E o controle drástico que ele parece impor
a sua imagem? Nada mais que a expressão de
uma necessidade de independência. “Se você
deixa os outros fazerem as coisas por você, pode
acabar cheio de plumas enfiadas no rabo, ves-
tido de Hugo Boss. Sempre tem uns diretores
artísticos, uns estilistas cujo estilo você odeia.
Eu tento evitar isso, mesmo que o meu agente
não fique muito feliz. Também procuro conser-
var uma opacidade para deixar a minha música
viver, não limitar a sua extensão dando explica-
ções. A música supera o artista, ela provém de
estados mentais que lhe escapam.” Ele persevera
nessa posição a cada dia que Deus, o Diabo, ou
a Serpente Cósmica, lhe oferecem, sem se pre-
ocupar com as fronteiras físicas ou midiáticas.
“Eu terminei há pouco uma trilha original para
um documentário gravado no Senegal, dirigido
por dois austríacos. Quase terminei o EP que sai
em maio e estou avançando no meu próximo ál-
bum, previsto para fim de novembro. Depois da
minha temporada na Bolívia e de algumas idas a
Londres, suspendi todos os meus shows, porque
quero preparar um novo live, em que certamente
estarei acompanhado. Também tenho em vista
um projeto de vídeo experimental que vai se pas-
sar nas montanhas com o Frederik Jacobi, que
era alpinista. Sou apaixonado por alpinismo e fiz
com que ele voltasse ao seu antigo ambiente…
A mulher dele deve me detestar.”
Uma última e breve gargalhada e ele enfim nos
convida a ouvir suas novas demos. Na sua cabi-
ne de espaçonauta, o som é imenso. As chuvas
de melancolia arpoam nosso peito, os prédios
desmoronam em ondas, uma alegria pegajosa se
instala. Aliviados dos fantasmas redutores que
concernem ao homem, é tempo de declarar nos-
so amor incondicional ao artista Koudlam. Pelo
que ele cumpre e quer cumprir, seus combates
e suas visões, por todas as majestosas vertigens
– musicais e ontológicas – que ele oferece ao
homem do terceiro milênio. Um gosto doloroso
de paraíso no coração do nosso inferno. 3
“ESTOU EM GUERRA CONTRA O
DESAPARECIMENTO DA CULTURA E DAS LÍNGUAS, A DECADÊNCIA DA NOSSA
CIVILIZAÇÃO, CONTRA O BOM PENSAMENTO, QUE ESTÁ EM
TODO LUGAR. ACHO QUE DEVEMOS DEFENDER A
SOCIEDADE, MAS ENFIM, EU SOU SÓ UM MÚSICO.”
2SAIBA MAIS
koudlam.com
4FOTO POR CYPRIEN GAILLARD
Tal qual um homem-bomba, que abre mão da sua identida-de em nome de uma ideologia, Edu Monteiro esconde o rosto sob máscaras, obscurecendo sua condição humana à medida que se transforma em um ser híbrido. A diferença, entretanto, reside na poética que o artista alcança, brutal por um lado, re-
pleta de humor por outro.
As texturas que o fotógrafo busca em
elementos orgânicos – plantas, pimen-
tões e carvões – aproximam sua pes-
quisa daquilo que Archimboldo fazia
na pintura: retratos que confundem os
sentidos ao deturpar a própria natureza.
Já as imagens que ele obtém através da
fusão do corpo humano com o corpo ar-
tificial – cigarros e bichinhos de pelúcia –
remetem a um futuro sombrio ou deca-
dente, habitado por criaturas mutantes.
De uma forma ou de outra, a carga
política é intrínseca ao trabalho do
artista, seja nas mutações orgânicas
que suscitam discussões ecológicas,
seja naquelas em que o consumo se
sobrepõe ao indivíduo, modificando
suas feições, como se houvesse adul-
terado sua carga genética.
Os híbridos construídos na série de au-
torretratos são tão plurais quanto ex-
cludentes, evidenciando e ocultando
as complexas facetas que forjam e tão
bem caracterizam a espécie humana.
BERNARDO JOSÉ DE SOUZA
2S
AIB
A M
AIS
foto
nau
ta.c
om
.br
42
V B E RK V L T
POR THIAGO VAKKA . FOTOS ACERVO DO ARTISTA
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45
é um artista com traço particular e facilmente reconhecível. Além de ter produzido ilustrações para bandas como Sunn O))), Boris, Moss e Trap Them, entre toneladas de outras, tem no portfólio coisas como o rótulo de um vinho e um comercial para
a marca de roupas Anti Sweden. E exposições, inúmeras delas. Na entrevista a seguir, Bartlett fala sobre assuntos diversos como seu processo criativo, briefings comerciais, materiais que usa, o dilema arte digital x arte manual, sua relação com o guitarrista Stephen O´Malley e outros designers que admira. Tudo com um puta
bom humor. Ah, sim: ele também fala sobre metal. Pra caralho. 1
J U S T I N B A R T L E T T ,
O U V B E R K V L T ,
Justin, Qual foi seu primeiro trampo pra uma
banda? Como aconteceu?
O primeiro trabalho de verdade foram a capa/
layout dum disco do Cadaver Inc., chamado Dis-
cipline, de 2001, saiu pela Earache e tal. Antes
disso, tinha feito alguns outros trampos pra eles,
mas esse foi o primeiro álbum completo que fiz
para um selo e que me rendeu pagamento. Dei um
jeito de entrar em contato com o Anders Odden,
meio que o chefão do Cadaver, lá pelos idos de
98, quando soube que a banda
estava voltando. A primeira vez
que ouvi o Cadaver foi naquela
compilação Grindcrusher e de-
pois em Hallucinating Anxient
e In Pains, muitos anos antes,
e eles me impressionaram pra
cacete, por serem diferentes
da maioria de seus contem-
porâneos. De qualquer forma,
Anders tocava no Apoptygma
Berzerk e no Magenta e sen-
tiu uma necessidade de tocar
metal de novo. Aí, junto com
o Lasse [Johansen], do Dis-
gusting, mais o Agressor e o Apollyon, do Aura
Noir, ressucitaram o Cadaver como Cadaver Inc. e
lançaram uma puta demo dum death metal ultra-
-rápido/voivodiano/grindeiro chamada Primal.
Fiz toda a arte dela e do morbidamente bem-
-humorado cadaverinc.com, que era um site de
mentira promovendo um serviço de limpeza de
cenas de crime e remoção de cadáveres. A polícia
norueguesa conduziu uma investigação sobre isso
e caiu até no MTV2 News! Como você pode ima-
ginar, fiquei do lado dos caras e fiz a arte do de-
but deles, Discipline, bem como uma porrada de
camisas, coisas pra web e também o outro disco,
Necrosis, que é um negócio do além!
Em uma outra entrevista sua que li, você afir-
mava que não desenhava fazia tempo, que
costumava criar aleatoriamente, apesar de seu
trabalho ser muito detalhado. Algum dia você
imaginou que poderia vender essas artes?
Eu desenhava demais quando era moleque e
também fiz parte dos “artistas” responsáveis
pelo anuário do 2º grau por uns dois anos.
Larguei tudo no último ano, porque os caras
eram uns cretinos arrogantes. Além disso,
também estudei na classe
mais avançada de artes da
minha escola (que era uma
piada). Nunca levei muito a
sério o que fazia. Uns anos
depois, mudei da faculdade
de biologia pra design gráfi-
co e senti aquela vontade de
desenhar de novo. Construir
ilustrações digitais através
de outros materiais ou fazer
colagens meio que deixava a
desejar, em termos de criati-
vidade. Acabei fazendo um
curso de desenho, que era
requerimento para me formar. Após retomar
o contato com artes, foi natural voltar a dese-
nhar. Houve um lapso de tempo enorme, coisa
de uns 13 anos, entre desenhar nos tempos de
escola e o que faço atualmente, o que já dura
uns cinco ou seis anos. Nunca desenvolvi um
estilo ou aprimorei minhas habilidades, tudo
simplesmente fluiu assim. Também não levei
em consideração a parte de “negócios” do meu
trabalho ou sequer pensava em vendê-lo até
recentemente, o que é bacana. Meio que vivo
das minhas ilustrações e ainda faturo um extra
vendendo os originais.
4PRIMEIRA CRIA
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Você recebe algum briefing ou tem liberdade
total pra criar?
Em pouquíssimas vezes houve um briefing cria-
tivo, digamos, oficial. Um deles foi pra marca de
jeans Anti Sweden, outro foi para o rótulo dos vi-
nhos Wongraven (sim, do vocalista do Satyricon).
Ainda assim, era tudo bem livre. Quando se é um
ilustrador relativamente conhecido, os clientes
vêm até você por conta do seu estilo e já têm
uma ideia pré-estabelecida do que você fará – ao
menos em termos de técnica. Eu diria que planejo
o direcionamento visual na maioria dos trampos
que faço. Tudo baseado nas letras de música, no
nome do disco ou na temática envolvida, mas
são minhas interpretações da ideia de terceiros.
Como vou fazer é domínio exclusivo meu. Alguém
me pede pra desenhar um bode, mas não aceito
instruções específicas a menos que estejam me
pagando e tratando tudo num nível estritamente
profissional, o que dificilmente acontece quando
você lida com o mundo da música.
Você poderia nos falar um pouco do seu proces-
so de trabalho? Normalmente, quanto tempo se
passa entre seu primeiro contato com o cliente
e a entrega da arte?
Após a ingestão de uma saudável mistura de
sangue podre de porco e veneno fermentado
de cobra, medito sob um eclipse de lua cheia.
As imagens surgem do vácuo negro do centro
de minha mente. Transmutando-se através de
barreiras físicas de carne, o sangue negro pu-
trescente de bodes pretos emana das pontas
de minhas canetas, feitas de bicos de corvos e
passadas a papel colhido de pinheiros transil-
vanos de 666 anos de idade. Não há forma de
expressar a duração de meus projetos através
de convenções humanas como espaço e tempo.
Vi alguns rascunhos no seu blog e deu pra sacar
que você usa bastante nanquim. Poderia falar
um pouco mais do seu “arsenal”?
Nanquim? Nunca ouvi falar de tal coisa. Em con-
junto com os bicos de corvo, tinta de sangue de
bode e papel ancião, costumo usar lápis com
pontas de chumbo minadas das mais profundas
e obscuras tumbas abaixo do Gólgota.
Boa parte do seu trabalho tem alguma relação
com Stephen O’Malley (Sunn O))), Burning Wi-
tch) e vice-versa. E todos sabemos que o rapaz,
além de músico, também é um artista com vá-
rias grandes criações em seu portifólio. Como
foi trabalhar com ele? Ficou preocupado em
receber alguma crítica negativa?
Conheço o Stephen há uns doze anos e somos
amigos – não melhores-amigos-desde-a-infância,
mas saímos juntos quando nossos caminhos se
cruzam. Nos falamos muito pela internet, trocan-
do alguns dos trabalhos em progresso e mp3, coi-
sa e tal. Quando voltei a desenhar, mandei pra ele
uns desenhos que tinha feito e ele me pediu pra
fazer a capa do EP La Mort Noir, do Sunn O))).
Nada mal para um primeiro projeto. Já conhecia o
Stephen fazia algum tempo, então não foi nada de
outro mundo, como se um deus do design/drone
me resgatasse das profundezas da internet. Mui-
ta da suposta “aura” ao redor de várias bandas e
músicos foi desmistificada comigo. Então nem me
preocupei com qualquer forma de crítica negativa
que poderia receber dele. O rapaz conhecia o meu
trabalho, e eu quase sempre faço tudo certinho.
Somente uma vez desenhei algo que nós dois de-
cidimos não usar. Sempre faço um rascunho preli-
minar das minhas ideias e passo pros clientes.
Ainda sobre sua parceria com o SOMA (nome
artístico de O’Malley), muito do que você faz se
relaciona com doom/drone. São gêneros que
você escuta? O que você acha de ligarem seu
trampo a isso?
Sim, há uma parte do meu trabalho que tem a ver
com drone, como Sunn O))) e outros como Gra-
vetemple, Pentemple, Locrian e Detritivore (devo
estar esquecendo de alguma coisa, então me per-
doe se você ler isso), mas também trabalhei com
vários outros gêneros. Mas parece mesmo que
meu trabalho se fixa em drone e também “hardco-
re metálico” (seja lá o que isso for!). Curiosamente,
não escuto nenhum dois com frequência. Através
dos anos, explorei (creio) quase tudo que é forma
de música underground que você possa imagi-
nar: eletrônico, noise, punk. Em termos de metal
extremo, tudo começou com death metal. Apa-
rentemente, retornei às minhas raízes musicais.
Apesar de curtir muito black metal, algo de drone,
hardcore, punk e noise, eu AMO death metal.
Não essas bandas mega punheteiras lixo
moshcore ou death metal ultrabrutal. Falo dos
sons da velha guarda, death sueco (mais pra
Estocolmo e não Gotemburgo!), death/black
bárbaro feito por homens das cavernas, qual-
quer coisa que soe como ou faça referência a
Incantation, Autopsy, Carcass, Morbid Angel,
Cadaver, Bolt Thrower, Repulsion, VON, Entom-
bed... E também Discharge, Motörhead, Sodom,
Voivod, Mercyful Fate e Slayer.
“ A p ó s a i n g e s t ã o d e u m a
m i s t u r a d e s a n g u e p o d r e d e
p o r c o e v e n e n o f e r m e n t a d o
d e c o b r a , m e d i t o s o b u m
e c l i p s e d e l u a c h e i a . A s
i m a g e n s s u r g e m d o v á c u o
n e g r o d a m i n h a m e n t e .
T r a n s m u t a n d o - s e a t r a v é s d e
b a r r e i r a s f í s i c a s d e c a r n e ,
o s a n g u e n e g r o p u t r e s c e n t e
d e b o d e s p r e t o s e m a n a d a s
p o n t a s d e m i n h a s c a n e t a s ,
f e i t a s d e b i c o s d e c o r v o s e
p a s s a d a s a p a p e l c o l h i d o
d e p i n h e i r o s t r a n s i l v a n o s d e
6 6 6 a n o s d e i d a d e . N ã o h á
f o r m a d e e x p r e s s a r a d u r a ç ã o
d e m e u s p r o j e t o s a t r a v é s d e
c o n v e n ç õ e s h u m a n a s c o m o
e s p a ç o e t e m p o . ”
4VINHO DO VOCALISTA DO SATYRICON
49
Do outro lado do espectro musical, pós-punk e
eletrônico como The Cure, Joy Division, Depe-
che Mode, Death In June, Swans... São esses os
dois “reinos” de música que mais aprecio.
Sobre relacionarem minha arte ao drone? Não
me incomoda, é melhor do que ser associado ao
nu-metal ou emo ou brutal death metal super
retardado com partes mosh louconas e vocais
de porquinho e breakdowns. Acho que, como o
estilo e mesmo a fluidez da música é meio va-
porosa e difícil de definir, combina com minhas
criações. Pelo jeito, meu trabalho transcende vá-
rios gêneros, enquanto os artistas que conheço
trabalham apenas em um tipo de música (o que
é ok, aliás). Tenho um projeto bem old-school
vindo por aí, na veia do metal que escuto... Tô
bem empolgado com isso.
Hoje em dia, boa parte do processo relaciona-
do à produção do artwork de bandas é feito
digitalmente. Você gosta de trabalhar dessa
forma? Em algum momento o processo digital
te atrapalha ou incomoda?
Há arte digital boa e arte digital ruim. Todo ar-
twork atual é digitalizado em algum grau. Sim,
sei que algumas bandas continuam fazendo
tudo 100% analógico e kvlt, com xerox, colagens
em fitas k-7, mas creio que seja uma porcenta-
gem muito, muito pequena. Até coisas old-scho-
ol são, em algum momento, escaneadas e ma-
nipuladas através de software e transformadas
“ S o b r e r e l a c i o n a r e m m i n h a
a r t e a o d r o n e ? N ã o m e
i n c o m o d a , é m e l h o r d o q u e
s e r a s s o c i a d o a o n u - m e t a l o u
e m o o u b r u t a l d e a t h m e t a l
s u p e r r e t a r d a d o c o m p a r t e s
m o s h l o u c o n a s e v o c a i s d e
p o r q u i n h o e b r e a k d o w n s .
A c h o q u e , c o m o o e s t i l o e
m e s m o a f l u i d e z d a m ú s i c a
é m e i o v a p o r o s a e d i f í c i l d e
d e f i n i r , c o m b i n a c o m m i n h a s
c r i a ç õ e s . ”
50
em PDF. Trabalho digital bom tem sua origem
em formato analógico. Fotos escaneadas, pin-
turas, desenhos, texturas alteradas e fodidas no
Photoshop – ainda assim com origem no mundo
real. Arte digital ruim é normalmente criada em
algum renderizador 3D com muito brilho, efeitos
cromados e fogo (risos).
Sinceramente, a questão é artistas bons x artis-
tas ruins. Computadores e pincéis são apenas
ferramentas – se você é ruim, cria merda inde-
pendentemente do que está usando. Tem uma
tonelada de discos que usa artwork tradicional
e fica um lixo horrendo (cópias de Mark Riddick,
por exemplo) e por outro lado existem discos
com maior uso de software que são foda (Sel-
don Hunt, Travis Smith, Stephen O’Malley, Kevin
Yuen, Broken Press). Ainda assim, se encontram
porcarias como umas capas do Monstrosity e
do OV HELL, ugh!
E sobre o vinho lá do Satyr, como foi o pro-
cesso criativo? Vocês já se conheciam? Você
provou o vinho?
Não sei ao certo quanto tempo e esforço foram
necessários antes do meu envolvimento com
esse lance do vinho. Só fui chamado para de-
senhar o rótulo, quase no final. Martin Kvamme,
o designer norueguês responsável pelos logos,
texto e embalagem teve meio que um bloqueio
na hora de fazer a ilustração. Aí ele mostrou
uma lista com vários ilustradores pro Sigurd
(Wongraven, nome de batismo de Satyr) e
acabei sendo escolhido pra desenhar o bestial
mascote. Foi tudo bem direto, o Sigurd queria
um sátiro, basicamente, não muito malvado ou
metal, mas algo entre fantástico e assustador.
Claro que há alguma referência a Labirinto do
Fauno, mas não creio que seja tão derivativo
assim. Se você prestar atenção, pode ver o S do
Satyricon ali, num pingente de colar, por trás
dos braços e cabelo... Foi ideia minha! E não,
não provei o vinho.
Há alguma banda que você acredita casar com
sua arte e com a qual você gostaria de traba-
lhar, mas ainda não teve a oportunidade?
Voivod ou Rudimentary Peni? (risos) Não
pensei muito nisso, mas sempre tive esse pro-
jeto, que planejo há anos e ainda vai demorar
pra cacete pra acontecer mesmo, então não
vejo por que diabos não falar sobre ele ago-
ra... Recentemente, o Darkthrone lançou um
concurso para que os fãs refizessem a arte
do relançamento de Goatlord (demo de 1991
lançada em 1997). É um dos meus discos favo-
ritos e já penso há um tempo em criar um de-
senho pra cada faixa do disco e lançar como
uma espécie de tributo. O que caga tudo é
51
Posso dizer que sou leitor assíduo do seu blog,
e você parece ter muitos vinis, alguns inclusive
à venda no eBay. Você se considera um colecio-
nador? Há algum disco que você não passaria
pra frente de forma alguma?
Acho que sou um colecionador, sim, talvez não
tão ávido quanto antes. Não tenho frescura em
admitir que baixaria um CD ou daria um jeito de
ouvi-lo online antes de decidir comprar.
Tem muita música por aí hoje em dia, e o aces-
so é cada vez mais fácil. Cá entre nós, 80% do
que é lançado é uma bosta ou completamente
redundante. Até metal! Existem bandas demais.
Prefiro música country/pop a metal ruim, sério!
Caralho, a maioria dos filmes, programas de TV,
artes e até pessoas são lixo.
Durante os anos, juntei uma quantidade razoá-
vel de discos, EPs e CDs e acabei chegando à
conclusão de que o que importa é qualidade e
não quantidade. Quero uma vida mais simples
e com menos cacarecos, então algumas coisas
tiveram que ir. Tem um monte desses mesmos
cacarecos que eu não vendo de forma alguma,
a não ser que seja um caso de vida ou morte.
Vendi meu boxset do Burzum há uns seis anos
pra poder pagar o aluguel, depois de ter voltado
a estudar e estar desempregado por uns meses.
Não que eu fique chorando toda noite porque
não posso ouvir o Filosofem em vinil, mas seria
bom ainda tê-lo na minha coleção. E por falar
nisso, vendi meu Black Earth do Bohren und der
Club of Gore e uns Assück e Autopsy que preci-
so readquirir! (risos)
Uma curiosidade, ainda sobre o seu blog: um
tempo atrás, o seu gato Dio participou de uma
espécie de concurso, e, como também tenho ga-
tos, votei nele (risos). Como terminou a votação?
(Risos) Não sei, nunca recebi nenhum e-mail
ou aviso sobre qualquer coisa, mas pra mim ele
sempre será um campeão. (risos)
Justin, agradeço pelo seu tempo, agora o espaço
o final é seu pra dizer o que bem entender pra
quem estiver lendo esta entrevista.
Bem, valeu por me entrevistar… Só queria mandar
aquele alô pra Jesus Cristo, porque sem ele nada
disso seria possível! 3
que mal tenho tempo pro meu trabalho de
fato e ainda nem consegui mandar nenhum
desenho pro concurso, entende? Bem, talvez
daqui um ano eu consiga terminar minha pe-
quena homenagem a Goatlord.
Há algum trabalho seu que você considera um
favorito e outro que não curta tanto?
Não fico ruminando sobre o que eu gosto
mais ou não. Na real, eu penso nas coisas que
mais gosto e tento desenvolver essas ideias.
Digamos que, quando você trabalha como
designer ou ilustrador em período integral
(no meu caso, não é um extra ou coisa do
tipo), tem que aceitar projetos com os quais
não vai se empolgar muito. Sabe como é, con-
tas, aluguel e comida te fazem trabalhar só
pelo dinheiro mesmo. Tento dar meu melhor,
ainda assim.
“ S ó q u e r i a m a n d a r a q u e l e
a l ô p r a J e s u s C r i s t o ,
p o r q u e s e m e l e n a d a d i s s o
s e r i a p o s s í v e l ! ”
2SAIBA MAIS
vberkvlt.com
E N T R E ( o U t r o s )
entre (oUtros)
ENTRE (OUTROS) CONTA COM O APOIO DA NIKE, QUE, ASSIM COMO A SOMA, NASCEU DA TÍPICA ENERGIA E PAIXÃO QUE
MOTIVAM JOVENS NO MUNDO TODO A CORRER ATRÁS DE SEUS SONHOS. UM ESPAÇO DEMOCRÁTICO QUE CELEBRA A
ARTE, TRAZENDO A CADA EDIÇÃO NOVOS ARTISTAS E IDEIAS QUE INSPIRAM.
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da sua arte em baixa resolução (72dpi) e torça para ser selecionado!
4FLAVORS.ME/ALEXANDRECOLCHETE
ALEXANDRE COLCHETE
Nascido em Campinas e criado no Rio de Janeiro, ALEXANDRE COLCHETE, de 24 anos,
chegou a flertar com o graffiti quando era adolescente, mas foi mergulhar de verdade
no mundo da arte apenas mais tarde, influenciado pela cultura musical do remix e por
artistas como Basquiat e Manet. “Macacus”, abaixo, é um dos poucos trabalhos em tela
do artista, que costuma usar tinta acrílica, papel e materiais menos tradicionais em suas
composições.
54
4WWW.FLICKR.COM/PHOTOS/ADRIANAMARTO
ADRIANA MARTO
A arquiteta paulistana ADRIANA MARTO, de 23 anos, desenha desde que ganhou sua
primeira caixa de lápis de cor, aos 4 anos. Influenciada pelas linhas finas e hachuras de
M. C. Escher e pelo realismo de Audrey Kawasaki e Renzo Piano, faz suas ilustrações
ultradetalhadas em papel Canson utilizando o mais fino bico de nanquim possível
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4WWW.FLICKR.COM/PHOTOS/BABYC
BÁRBARA MALAGOLI
A ilustradora BÁRBARA MALAGOLI, de 21 anos – natural de Santos e radicada em São Paulo
– começou a rabiscar com desenhos da Disney. Buscando influências em nomes como
Junko Mizuno, Mark Ryden e Naoko Takeuchi (e sob a inspiração da irmã mais velha
Bruna, que tinha seu próprio fanzine), baby c. trabalha com lápis de cor, nanquim e tinta
acrílica para criar desenhos no bom e velho papel Canson creme.
58
fLO MeNezes
4CRASE, PARTITURA PÁGINA 27
POR ALEXANDRE CHARRO . FOTOS POR FERNANDO MARTINS FERREIRA
E ARQUIVO PESSOAL
Se pensarmos sobre quais são os sentidos do corpo mais relevantes para nossas relações de afeto, em primeira análise, podemos dizer que todos. Mas, ao estabelecermos uma hierarquia de acontecimentos, a visão é geralmente mais importante a princípio, num momento em que tudo é incerteza, e só depois “ouvimos” (um pouco) os outros sentidos. Muito, e de maneira imperativa, dedica-se ao olhar, mesmo sem conseguir ver. O pesquisador e crítico musical Joachim-Ernst Berendt, em seu livro Nada Brahma, afirma que “as pessoas que sabem ouvir são mais receptivas, ao passo que as pessoas que olham quase sempre são mais agressivas”. O que aconteceria então se nos dedicássemos mais à escuta?
O professor e compositor de música erudita
experimental brasileira Flo Menezes, 49, dedica
sua vida à música, ao som e à filosofia, e procura
a raiz dessas questões. Ficou anos fora do Brasil,
estudou com Pierre Boulez, Luciano Berio e
Karlheinz Stockhausen. Em 1994 fundou o Studio
PANaroma, junto com a UNESP de São Paulo,
para suas experimentações radicais de música
eletroacústica. Criou o Concurso Internacional
da Música Eletroacústica de São Paulo (Cimesp)
e a Bienal Internacional de Música Eletroacústica
(Bimesp), entre tantos outros projetos. Um
criador que recoloca o papel do pensamento
do som como uma reflexão acerca do sentido
musical, um campo de ações da subjetividade,
criadoras de sentido. 1
Música para Ouvir (e Ver)
59
60
61
“Radical é um termo que implica considerar
as coisas pela raiz, mergulhar fundo e buscar
onde as coisas estão realmente nascendo para
poder brotar. Confunde-se muito ‘radicalismo’ com
‘sectarismo’.”
Impossível passar ileso por uma experiência num
concerto de música eletroacústica. Na câmara,
o espaço é escutado e preenchido por uma
simultaneidade de sensações que alimentam
uma escuta imagética. Experiência que radicaliza
e estimula o desenvolvimento de outras formas
de percepção para a apreciação da música.
O que é ser radical?
Radical é um termo, como o próprio nome
diz, e como Karl Marx dizia, que implica
considerar as coisas pela raiz, mergulhar
fundo e buscar onde as coisas estão
realmente nascendo para poder brotar.
Confunde-se muito “radicalismo” com
“sectarismo”. Sectário é quando você, sem
levar às últimas conseqüências questões
específicas que colocam dúvidas sobre você,
isola seu comportamento dos demais a
partir de algum julgamento predeterminado,
seccionando as coisas. Já o radical é aquele
que vai fundo, se pergunta, se questiona o
tempo todo. Um tipo de busca pela essência
das coisas que tem a ver com uma índole
especulativa muito profunda.
Num texto seu você diz que uma escritura
musical seria o resultado de elaboração e “labor”
na raiz dessa atitude diante dos sons. Então,
a prática desse labor seria necessária para
conseguir atingir, talvez, a profundidade da raiz...
Algo que se questiona na música eletroacústica
é o fato de ela não ter uma escrita, uma
notação. Entretanto, uma coisa é a escrita, com
seus símbolos convencionais, que veiculam a
processualidade da composição, e outra é a
processualidade em si. Desde os primórdios
da escrita musical, que se deu a partir da Ars
Nova na Idade Média, tem-se a possibilidade do
registro do pensamento musical pela notação,
para que isso seja decodificado e refeito em
diversas circunstâncias. Essa escrita possibilitou
o desenvolvimento do pensamento musical,
mas não se confunde com ele! E precisamente
essa processualidade é o que chamamos de
escritura: elaboração que se aloja na escrita, mas
que independe dessa mesma escrita. Ela nasce
mediada pela notação, mas toma independência
como essência do próprio pensamento
musical. E a música eletroacústica, num certo
sentido, leva ao apogeu essa independência.
Prescinde da notação, mas não do pensamento
musical! Por isso disse certa vez que na música
eletroacústica existe uma apoteose da escritura:
ela é levada às últimas consequências, sem
mediação da escrita. Você até pode ter uma
“escrita” (uma partitura de realização ou uma
áudio-partitura), mas na realidade a escritura se
dá na cabeça e nos sons.4L’ITINÉRAIRE DES RÉSONANCES, PARTITURA PÁGINA 4 E
FLO NO ESTÚDIO KOELN, 1987.
P ara entender a música eletroacústica,
é preciso vivenciar um concerto
repleto de caixas acústicas. Mas
podemos dizer que é uma música criada em
estúdio a partir da manipulação dos sons de
instrumentos musicais ou eletrônicos, e sua
difusão é feita por uma orquestra de alto-
falantes, que privilegiam a espacialidade e
a espectralidade dos sons em uma sala de
concerto. Como diz Flo em um de seus livros,
Música Maximalista – Ensaios Sobre a Música
Radical e Especulativa: “A eletroacústica liberta
o compositor das imposições articulatórias de
cunho métrico-rítmico”. Ao ouvinte presencial,
permite uma viagem sinestésica. “Para tanto,
o único pré-requisito é abrir os ouvidos e a
cabeça: deixar que os sons e seus itinerários
internos (espectros sonoros) e externos
(espaciais) conduzam a mente a uma espécie
de hipnose, em que se duvida do que se ouve
e de seu próprio estado: se está dormindo e
sonhando, ou sonhando acordado.”
E a discussão vai além dos conceitos da música,
provocando uma reflexão mais profunda: a
relação com o sonoro em geral e com a gama
de significados gerados pela escuta. Uma
filosofia não só da música, mas do próprio som,
já que “na percepção da espacialidade dos sons,
percebe-se que o ritual da performance ocupa
todo o espaço; o nosso corpo toma parte de um
tempo corrido e de um espaço percorrido, em
permanente e caleidoscópica transformação.
Por tal viés, almejo a beleza, pelas vias de uma
sublime abstração”, completa Flo.
62
Tenho uma questão sobre atitudes musicais
com lógica capitalista voltada ao mercado
como meio e como fim. O que te incomoda
nisso? Você acha que existe uma maneira de
não fazer concessões na arte?
A música não tem que se voltar ao mercado.
Estratégias de difusão de nossas ideias são
necessárias, porque somos seres sociais. Adorno
falava que “o discurso mais solitário de um
artista vive do paradoxo de falar aos homens”;
você pode estar na sua torre de marfim, mas
estará pensando numa interlocução, o que é
natural e salutar. Mas dialoga-se com as pessoas
que sabem dialogar com você. Essa ideia do
Público, no singular, é uma ideia capitalista,
típica da indústria de massas. Toda arte que se
destina a um consumo de massa não merece
nem ser chamada de Arte: é uma concessão ao
fácil, ao vendável. Busco uma autenticidade de
meus ouvidos pensantes para veicular minha
música, mediante elos afetivos, às pessoas que
têm esse pensamento aberto para mergulhar
fundo comigo em coisas que eu não sei, que
descubro, não as que eu sei! Se eu achasse que
“soubesse”, estaria fazendo meus padrõezinhos.
A concessão obrigatória que se faz no
capitalismo é de ordem profissional, necessária
para a sobrevivência. Se você me perguntar
se sou “compositor” profissionalmente,
diria que não! Sou, profissionalmente,
professor universitário de composição. Se a
Universidade acabar, perco a minha profissão
e meu emprego. Mas o ato, existencial, de ser
compositor, desse não consigo me desvincular:
é uma necessidade interna, de minha alma.
Portanto, um tipo de concessão é a do ganha-
pão; outra é a que diz respeito à linguagem
musical. Mas esta é uma concessão mais sem
vergonha, porque não é a da sobrevivência,
é a do lucro, do reconhecimento, dinheiro,
inserção em mídia, públicos, pro ego ficar
bem alimentado... Todo compositor tem o
ego inflamado, mas prefiro que o meu seja
alimentado em decorrência de uma profunda
especulação, sem concessão musical. Quem
vier ao encontro de minha obra é por ter se
interessado pelo que faço e acredito.
A eletroacústica, como música erudita, não
acaba se tornando inatingível às pessoas que
não têm um certo domínio sobre os aspectos
técnicos da composição?
A questão da
acessibilidade da música
é sobretudo econômica
e social. Obviamente
também depende de
uma sensibilidade e de
interesses individuais,
mas em primeira
instância depende
de infraestruturas
e superestruturas
ideológicas. O ser
humano precisaria ser
educado e ter acesso
à tecnicidade da arte
desde pequeno, e isso
envolvendo todas as
artes e a filosofia. Mas a música é, admitamos,
a mais difícil das artes: vive de um jogo
interno muito específico e não alça voos
extramusicais sem que se baseie em questões
eminentemente técnicas da linguagem
musical, às quais se deveria ter acesso
desde o ensino básico, em graus distintos
de profundidade. Não é, portanto, somente
a música eletroacústica que é “inacessível”;
é também o caso de todo o saber mais
profundo, inacessível às pessoas “normais”,
espoliadas por um sistema produtivo.
Você fala constantemente de entidades e de
arquétipos na música. Poderia discorrer um
pouco sobre isso?
Ao longo da história da música, sempre se
produziu uma dialética entre a instituição de
novas ideias e sua cristalização. Isso é muito
claro no domínio harmônico. Existem tanto
recursos quanto instituições harmônicas, que
ora são formações harmônicas locais, ora são
recursos do tempo, do discurso musical, que
vão se instituindo como entidades. A entidade
é o delineamento de alguma singularidade que
passa a ser nomeada e que se distingue de um
pano de fundo geral como uma particularidade
muito clara. Quando é recorrente, verte-se em
arquétipo e passa a fazer parte de um legado,
de um repertório. Diria que toda entidade
tende a se tornar um arquétipo, na medida
em que essa entidade passa a ser repetida e
se firma como algo quase coletivo. Por sua
insistência e reiteração, começa a fazer parte
de um arsenal mítico da cultura musical.
Com relação, por exemplo, aos acordes tonais
maior, menor e mesmo diminuto, eles fazem
emergir alguma emoção, algum sentimento.
Dentro de uma composição complexa, como
aconteceria essa sensação?
Às vezes brinco e causo risos quando me refiro
ao “arrepio tonal” que sinto em certas passagens
de minha obra musical: a tensão e relaxamento
que são muito bem feitos no sistema tonal,
talvez o mais genial sistema de referência
comum que jamais existiu, tendo vigorado por
cerca de trezentos anos! E com muita sabedoria:
uma sabedoria que não era, claro, tanto do
sistema, mas mais de quem o reinventava! Uma
invenção coletiva muito genial, mas que foi
superada, se alargou, se transformou, e hoje,
de alguma maneira, ainda existe como um
dos ramos no meio de um bosque muito mais
complexo e expandido. Esse tipo de sensação –
tensão e relaxamento – é totalmente possível em
outros tipos de harmonia, contanto que alguns
elementos estejam presentes, como por exemplo
a direcionalidade, ou seja, como se conduz
a escuta de um estado sonoro para outro.
Os fenômenos de tensão e relaxamento não
dependem apenas de acordes tonais. Podem
existir em vários outros contextos, de modo bem
semelhante ao que ocorria com a música tonal.
4LUCIANO BERIO E FLO MENEZES EM SALZBURG, 1987
63
4P
UL
SA
RE
S, PA
RT
ITU
RA
PÁ
GIN
A 1
57
“Erro e risco fazem parte de toda obra radical. A diferença da política com relação à arte é que o erro, na política, é a morte.
Na ciência, o erro se traduz em perda de tempo, mas aí, às vezes, o erro pode ocasionar uma descoberta involuntária. Já na arte, às vezes almeja-se o próprio erro, dialoga-se com ele,
avaliam-se as imperfeições, enaltecem-se as ‘rugosidades’, os pequenos desvios. A imprevisibilidade é um elemento
fundamental na música.”
64
Como você se apropria dos sons em suas obras?
A música eletroacústica radicalizou a noção de
instrumento musical, ainda que o instrumento
tradicional continue mais vivo do que nunca.
Luciano Berio falava que um instrumento
possui uma “história psicológica”, porque lida
com estados de afeto e de elaboração que se
cristalizaram em seu repertório ao longo dos
tempos. Entretanto, a música eletroacústica
estendeu e radicalizou essa noção, a ponto
de você se apropriar, salutarmente, de todo e
qualquer som. Todo som pode ser incorporado
como veículo expressivo na elaboração
do afeto e da linguagem musical. Mas,
dependendo do som e do tipo de tratamento
que você dá a ele, tem-se uma maior ou
menor referencialidade embutida no objeto
sonoro, e essa referencialidade, quando é
“A concessão obrigatória que se faz no capitalismo é de ordem profissional, necessária para a sobrevivência. Se
você me perguntar se sou ‘compositor’ profissionalmente, diria que não! Sou,
profissionalmente, professor universitário de composição. Se a Universidade acabar, perco a minha profissão e meu emprego. Mas o ato,
existencial, de ser compositor, desse não consigo me desvincular: é uma necessidade
interna, de minha alma.”
65
muito literal, reporta a uma situação anedótica
que é, a meu ver, pouco interessante para a
música. As realizações eletroacústicas mais
interessantes são aquelas mais distantes do
caráter anedótico, quando então os sons
adquirem um potencial radicalmente abstrato.
Quando isso ocorre, o som não se reporta
a nada, mas ao mesmo tempo também não
provém de nenhum instrumento reconhecível.
Aí, sim, instaura-se uma situação acusmática:
termo proveniente da escola pitagórica –
os “acusmáticos”, que procuravam ouvir e
perceber as palavras do mestre e entender
seus ensinamentos sem olhar para as causas
materiais dos sons. Atingia-se assim uma
alta concentração na abstração dos sons e,
quando se dá essa situação, algo da ordem da
sinestesia acontece, não propriamente ligado a
uma situação visual ou ambiental. E esse é um
transe muito interessante, porque você começa
a penetrar de fato na escuta do âmago dos
espectros, podendo ser induzido a situações de
concentração quase hipnóticas, num estado que
chamo de intertensão, de dentro dos sons, bem
distante das distrações dos entretenimentos...
No nosso estúdio temos conversado sobre
a questão da improvisação e do jazz.
Você poderia fazer alguma relação entre a
improvisação de um free jazz, por exemplo,
e a que ocorre numa música complexa,
como a eletroacústica?
A questão da improvisação é delicada. Berio
disse certa vez, com pertinência, que “a
improvisação pode chegar no máximo a uma
articulação silábica, enquanto na composição
escrita chega-se a uma articulação fonêmica”.
A improvisação está para o fracionamento
do gesto especulativo assim como a não-
improvisação e a composição estão para
um tempo dilatado dos gestos, em que,
paradoxalmente, o fracionamento do sonoro
pode atingir estágios ainda mais radicais,
já que se entra nos meandros dos poros da
composição, até sua articulação fonêmica,
trabalhando no nível dos detalhes, não da
superfície. Há, contudo, situações específicas
na composição em que perderíamos um tempo
enorme e faríamos os intérpretes sofrerem para
que se atingisse um resultado muito parecido ou
mesmo pior do que o que atingiríamos pelas vias
de uma “improvisação dirigida”. Nesses casos,
lançamos mão da improvisação, desde que
regulada por um controle minucioso do sonoro.
Quanto do erro da improvisação existe no seu
processo de composição?
O erro independe da improvisação. Erro e
risco fazem parte de toda obra radical. A
diferença da política com relação à arte é
que o erro, na política, é a morte. Trotsky
podia ter eliminado Stalin na década de 1920,
deixou barato, e acabou levando a picaretada
na cabeça no México, em 1940. Na ciência, o
erro se traduz em perda de tempo, mas aí, às
vezes, o erro pode ocasionar uma descoberta
involuntária, como por exemplo foi o caso
com a descoberta da penicilina. A ciência
busca acertar o tempo todo, mas às vezes
acerta através de um erro impremeditado.
Já na arte, às vezes almeja-se o próprio
erro, dialoga-se com ele, avaliam-se as
imperfeições, enaltecem-se as “rugosidades”,
os pequenos desvios. A imprevisibilidade é
um elemento fundamental na música. Aí, a
previsibilidade é que é a morte! Schoenberg
dizia, no Tratado de Harmonia, que o erro
tem, na música, um lugar de honra, porque
sem o erro alcançaríamos a Verdade, e
seria insuportável se a conhecêssemos. E
realmente, imagine se soubéssemos o que
é a Verdade... O ser humano move-se por
espirais, e o mais gostoso da vida é poder
ressignificar as coisas! Reler as coisas,
revisitar os afetos, rever suas convicções pelo
prisma do já vivido, do ainda por viver e do
já vivido por outras vidas. Acendemos nossas
lanternas e, naqueles eixos espiralados das
curvas que fazemos, lançamos novos jatos
de luz, que se refletem nas bordas de várias
espirais de outros tempos. Espirais lá de
baixo refletem nas curvas mais atuais. É
esse pensamento espiralado que move tudo.
Estamos falando e não falando as mesmas
coisas o tempo todo! Stockhausen tem uma
frase interessante: “Ao passear na Lua, será
mais interessante encontrar uma maçã do
que uma pedra lunar”. A maçã, ali, é tudo: é o
antigo no ambiente novo, e esse olhar é uma
ressignificação. Porque poder redizer
as coisas é um dos exercícios mais
deliciosos que existe!
Você é um aficionado pelas palavras...
Bem, talvez a maior invenção coletiva das
civilizações sejam mesmo as línguas, que
para mim são como composições coletivas,
como músicas impuras. Por isso domino seis
línguas, e ainda acho pouco; as estudei com
enorme prazer, como se estivesse estudando
uma partitura de Beethoven. Da mesma forma
como a maior invenção coletiva na música foi a
orquestra, em que os planos de simultaneidade
foram expandidos na maior radicalidade
possível, a maior invenção monofônica da
humanidade foi a língua falada. E nela temos um
curioso paradoxo: falar, como disse antes, é um
ato de monofonia; você fala com todos porque
fala uma linguagem de todos, mas ao mesmo
tempo fala sozinho o tempo todo, porque do
contrário ninguém te entenderia! Essa dicotomia
entre o polifônico e o monofônico, na orquestra
e nas línguas, muito me intriga... 3
“A música eletroacústica radicalizou a noção de instrumento musical,
ainda que o instrumento tradicional continue mais vivo do que nunca. Todo
som pode ser incorporado como veículo expressivo
na elaboração do afeto e da linguagem musical.”
2SAIBA MAIS
Leia a entrevista na íntegra no maissoma.com
flomenezes.mus.br
66
Formado por músicos e produtores que ditam tendência na música europeia atual, a banda Orelha Negra é uma das melhores novidades vindas de Portugal nos últimos anos. Os gajos foram escolhidos a dedo para acompanhar a turnê do último álbum de Sam The Kid (o rapper mais famoso e bem-sucedido de Portugal) e, durante os ensaios e jams, surgiu a ideia de uma banda instrumental que passeasse entre o funk, soul, rock e eletrônico, tendo o hip-hop como base, mas com uma identidade local, usando samples, colagens e vozes populares da cultura lusitana. O grupo conta com Sam The Kid, DJ Cruzfader, Fred Ferreira (Buraka Som Sistema), Francisco Rebelo e João Gomes (ambos da banda Cool Hipnoise), e seu álbum de estreia homônimo foi um dos mais vendidos de Portugal em 2010, rendendo uma indicação ao MTV Europe Music Awards e shows por toda a Europa. O baterista Fred Ferreira falou um pouco sobre o projeto, a cultura dos sleevefaces, a parceria com o artista plástico Vhils e a recém-lançada mixtape. 1
O Orelha Negra reúne grandes nomes da música
portuguesa contemporânea. Como aconteceu
essa união e como rolou a ideia da banda?
Aconteceu quando estávamos fazendo a turnê
do Sam the Kid. Nós já éramos a banda dele nas
apresentações ao vivo e durante as passagens
de som íamos fazendo muitas jams. Quando
terminaram as apresentações, combinamos uns
ensaios para curtir um som juntos e começou a
nascer a Orelha Negra.
E o nome, como surgiu?
Também em um ensaio. Foi muito rápida a de-
cisão. Achamos o nome muito bom e fazia todo
o sentido com a música que estávamos fazen-
do, já que a nossa principal fonte de inspiração
é a black music.
Confesso que, na primeira vez em que escutei
o álbum, me lembrou muito o som do RJD2 e
de produtores que usam o hip-hop como base
para criar um som mais abrangente. Essa foi a
intenção de vocês?
Nunca pensamos muito dessa forma. Claro
que quando fazemos música o objetivo é che-
gar ao máximo de pessoas possível. Ficamos
contentes de termos chegado a muita gente,
mas o objetivo principal é sempre criar um
som com que nos identificamos, e realmente
gostamos do som que estamos criando. Tal-
vez tu sintas que isso acontece porque, de
fato, somos um grupo bastante heterogêneo,
e há várias influências e percursos diferentes
entre os músicos da banda, mas o hip-hop é o
ponto de partida. Talvez até uma técnica, mais
que uma estética.
Portugal tem uma das melhores cenas hip-hop
da Europa. Vocês acham que o Orelha Negra
está abrindo espaço também para o lado ins-
trumental da música urbana portuguesa?
Realmente em Portugal não existem muitas ban-
das de hip-hop instrumental, mas ainda assim
temos nomes como o DJ Ride, o Bling Project
e alguns outros que também têm uma vertente
instrumental dentro do hip-hop. Nós somos mais
um a representar o nosso país e estamos tentan-
do levar a nossa música o mais longe possível.
As músicas trazem muitos elementos: samples,
arranjos, colagens. Além de usarem influências
de diversos estilos como funk, soul e rock. Como
funciona a composição das músicas para vocês?
Varia muito. Tem muitas músicas que surgem
de uma base do Sam the Kid na MPC, outras se
iniciam com os instrumentos, mas acaba sendo
tudo criado com os cinco na sala tocando por
cima de ideias de cada um.
Vocês imaginavam que iriam ter um dos álbuns
mais vendidos de Portugal, além da indicação
ao MTV Europe Awards? Acha que é um sinal de
mudança positiva na música popular europeia?
Foi uma grande alegria para todos nós esse reco-
nhecimento e sucesso do nosso primeiro álbum.
Permitiu que fizéssemos shows em muitos lugares,
levando a nossa música a muita gente. Temos tido
um feedback muito grande não só de Portugal,
mas de vários países da Europa, Estados Unidos
e, agora, do Brasil também. Talvez haja muitas pes-
soas que estão fartas do mainstream atual na mú-
sica e procure coisas novas, novas direções. Uma
banda de hip-hop instrumental, cheia de groove,
samples e vozes em português pode ser a solução!
“ S o m o s u m g r u p o b a s t a n t e h e t e r o g ê n e o , e h á v á r i a s
i n f l u ê n c i a s e p e r c u r s o s d i f e r e n t e s e n t r e o s m ú s i c o s d a b a n d a , m a s o h i p - h o p é o p o n t o d e p a r t i d a .
T a l v e z a t é u m a t é c n i c a , m a i s q u e u m a e s t é t i c a . ”
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O R E L H A N E G R A
A V i a g e m I n s t r u m e n t a l P o r t u g u e s a
POR DANIEL TAMENPI . FOTOS DIVULGAÇÃO
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Além da ótima música, outro grande destaque
é a capa do álbum, em que a banda toda apa-
rece em sleevefaces. Como surgiu a ideia e por
que esconder o rosto de vocês, que são artistas
conhecidos na cena portuguesa? Teve alguma
segunda intenção nisso?
A ideia do sleeveface foi sendo desenvolvida ao
mesmo tempo em que íamos fazendo o disco.
Convidamos o nosso amigo Pedro Claudio, que
fez um trabalho incrível nas fotos e chegou ao
resultado que queríamos. Decidimos aparecer
dessa forma nas fotos para que a música falasse
mais alto. Não queríamos que fizessem nenhum
tipo de julgamento pelos músicos que estavam
ali, apenas pela música. Também queríamos fa-
zer uma homenagem ao vinil, como represen-
tante da época do analógico, da era de ouro da
música soul, funk e do nascimento do hip-hop.
Sendo o nosso primeiro disco, teria que repre-
sentar quem somos na essência. Daí optamos
por essa técnica de que somos grandes fãs.
Uma coisa muito interessante foram os samples
de nomes da música portuguesa como Fer-
nando Tordo, além de nomes populares como
Henrique Mendes e Julio Isidro. Isso criou um
diferencial no som de vocês, dando uma iden-
tidade local forte. Foi proposital?
Foi intencional no sentido de criar uma identi-
dade nossa, do Orelha Negra, porque tínhamos
consciência de que o universo da música portu-
guesa não é devidamente explorado pelos pro-
dutores de hip-hop daqui, o que não faz muito
sentido, já que é uma das principais referências
em termos de cultura urbana para a nossa gera-
ção, e também a dos nossos pais. São os discos
que mais se encontram nas feiras de discos e
sebos. São os samples que estão à nossa dis-
posição e com os quais todos, pelo menos em
Portugal, se identificam. Esse pode ter sido um
dos segredos para o nosso som ter tido uma
aceitação tão transversal.
Percebe-se coisas da música brasileira também.
Qual a relação de vocês com a nossa música?
Em Portugal existe uma grande ligação com a
música brasileira. Todos nós já tivemos experi-
ências com músicos brasileiros como o Marcelo
Camelo – fazemos inclusive uma versão de um
tema dele (“Saudade”) no nosso disco –, o Kas-
sin, o Marcelo D2, a Orquestra Imperial, entre
outros. E todas essas boas influências e boas ex-
periências que passamos serviram de inspiração
para o processo de criação do álbum.
Como começou a parceria com o Vhils? Além
do clipe, vocês estão com outros planos juntos?
O Vhils é uma pessoa que já conhecíamos de
outros trabalhos e é nosso amigo há muito tem-
po. No ano passado surgiu a oportunidade de
tocarmos em um grande festival daqui (Festival
Sudoeste) e propusemos ao Vhils participar da
nossa apresentação. A parceria foi perfeita, to-
dos ficamos muito contentes e com vontade de
fazer mais coisas juntos. Logo em seguida sur-
giu a hipótese de fazer o clipe da “M.I.R.I.A.M”
(lançado em fevereiro de 2011) e neste momento
ainda estamos desfrutando desse novo trabalho
em conjunto, mas já estamos pensando em algo
especial para um futuro próximo também.
E como são as apresentações ao vivo da banda?
Seguem um pouco o formato do disco, já que,
pelo fato de compormos as músicas em grupo,
como uma banda de rock, conseguimos tocar em
tempo real todos os sons, vozes, loops e efeitos
que você ouve no disco. A diferença é que temos
liberdade para interpretar os temas como uma
música instrumental, sem ser sequenciada como
no álbum. Temos também vários momentos em
que homenageamos nossos heróis em clássicos
do hip-hop e outros estilos, com versões e va-
riações sobre breaks e samples clássicos. Como
não temos um vocal, esse papel se complementa
com o DJ Cruzfader e o Sam The Kid com vozes e
colagens através da MPC e scratches. E, por esse
mesmo motivo, investimos bastante também na
parte cênica e visual do show.
Agora vocês lançaram a mixtape com diversos
remixes e versões rimadas e cantadas com gran-
des MCs como Valete, Xeg, NBC, além de nomes
de fora do hip-hop como Lucia Moniz e Orlando
Santos. Vocês sentiam uma necessidade de letrar
os instrumentais?
Não sentíamos propriamente necessidade, mas
fomos recebendo algumas músicas nossas com
letras do pessoal daqui e decidimos então fazer
uma mixtape. São vários cantores amigos nossos,
e é uma pena não termos conseguido colocar to-
das as músicas que recebemos, ficaram coisas
muito boas de fora. É muito bom ouvir a interpre-
tação que cada um faz ao ouvir a nossa música.
Demos total liberdade a todos para fazerem o
que quisessem, e o resultado foi muito bom. 3
“ T e m o s t i d o u m f e e d b a c k m u i t o g r a n d e n ã o s ó d e
P o r t u g a l , m a s d e v á r i o s p a í s e s d a E u r o p a , E s t a d o s U n i d o s e , a g o r a , d o B r a s i l
t a m b é m . T a l v e z h a j a m u i t a s p e s s o a s q u e e s t ã o
f a r t a s d o m a i n s t r e a m a t u a l n a m ú s i c a e p r o c u r e
c o i s a s n o v a s , n o v a s d i r e ç õ e s . U m a b a n d a d e h i p - h o p i n s t r u m e n t a l ,
c h e i a d e g r o o v e , s a m p l e s e v o z e s e m p o r t u g u ê s p o d e
s e r a s o l u ç ã o ! ”
2SAIBA MAIS
myspace.com/orelhanegra
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KRAUTPARA O
FUTURO
POR AMAURI STAMBOROSKI JR. . FOTOS POR FERNANDO MARTINS FERREIRA
Para um ídolo do rock alternativo, citado como influência crucial por artistas tão díspares como LCD Soudsystem e Simple Minds, Michael Rother parece bem tímido e até mesmo pouco consciente de sua importância na história da música pop.
N o final do ano passado, em meio a sua turnê pelo
Brasil com o Hallogallo – projeto completado pelo
baixista Aaron Mullan (Tall Firs) e pelo baterista
Steve Shelley (Sonic Youth) –, o guitarrista alemão, ex-
-membro dos grupos Neu! e Harmonia, confessou que
assistiu a seu primeiro show de um Beatle no dia anterior,
quando viu Paul McCartney no estádio do Morumbi. “Eu era
muito fã dos Beatles nos anos 60, foi incrível ver Paul ao
vivo”, ele contou nos camarins do teatro do SESC Vila Ma-
riana, em São Paulo. No palco, o Hallogallo funciona como
um relógio, tocando faixas dos grupos anteriores de Rother,
além de material inédito, sempre impulsionado pela bateria
de Shelley, inspirada no ritmo constante criado por Klaus
Dinger (a outra metade do Neu!, morto em 2009) e apelida-
do de “motorik” pela crítica britânica nos anos 70. Em uma
conversa de 20 minutos – Rother estava com febre e queria
descansar antes da apresentação – o pioneiro do krautrock
rejeitou o rótulo de “lenda” e lembrou da companhia nem
sempre agradável de Dinger, além das dificuldades em re-
produzir a música do Neu! ao vivo no início da carreira. Ao
revelar seus planos para o futuro, ele parece descrever as
paisagens intermináveis de músicas como “Für Immer” e
“Negativland”, que estão entre as melhores produções do
Neu!: “Quero apenas seguir em frente”. 1
Quando você achou que era hora de revisitar a
música que fez com o Neu! e com o Harmonia
nesse novo projeto?
Eu tenho feito coisas próximas a esse tipo de
música há um bom tempo, então não foi algo
que apareceu do nada, que eu acordei pensan-
do um dia. Durante a reunião do Harmonia em
2007, com Hans-Joachim Roedelius e Dieter
Moebius, eu me senti um pouco limitado no
que poderia fazer, porque o equilíbrio entre
nós três era maior, cada um tinha a sua linha de
pensamento. Na verdade eu sempre quis vol-
tar a tocar as músicas do Neu!, mas meu foco
foi mudando ao longo dos anos, e acho que
vou seguir mudando. Há momentos em que eu
quero fazer algo experimental, lento, tranquilo,
mas agora não quero ser tão tranquilo – pelo
contrário, quero criar algo dinâmico com esses
dois grandes músicos.
Como você escolheu o Steve Shelley e o Aaron
Mullan para esse novo projeto?
Conheci o Aaron em 2008, no festival All Tomor-
row Parties, na Inglaterra. Ele estava trabalhando
como engenheiro de som para o festival, e a or-
ganização ofereceu ele para cuidar do show do
Harmonia. Ele sabia como era o nosso som e fez
um ótimo trabalho. Nós começamos a conver-
sar, tomamos umas cervejas e viramos amigos.
Alguns meses depois, ele cuidou do som do All
Tomorrow Parties em Nova York. Ele já havia con-
versado com o Steve sobre a ideia de gravarmos
uma sessão no estúdio do Sonic Youth, o que
acabamos fazendo. Seguimos mantendo conta-
to, conversando sobre a gravação e sobre a pos-
sibilidade de tocarmos ao vivo, e aqui estamos.
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Qual é a diferença entre tocar as mesmas músicas
com Klaus Dinger nos anos 70 e com eles agora?
A gente não tocou muito ao vivo nos anos 70,
esse era um dos maiores problemas que tínha-
mos na época. Éramos completamente depen-
dentes do estúdio para criar os sons que querí-
amos. Tentamos realizar uns seis ou sete shows
em 72 e meio show em 74. Ficamos bastante
frustrados com o resultado, porque era impos-
sível fazer uma música completa apenas com a
bateria de Klaus e a minha guitarra. Tentamos
adicionar mais músicos, mas não funcionou. A
música do Neu! era muito pessoal, e naquele
momento era impossível apresentar isso ao vivo.
E agora, tocando para plateias cheias de pes-
soas que não tinham nem nascido quando o
Neu! lançou seu primeiro disco, você percebe
melhor a influência do que vocês criaram?
O interesse pelo Neu! e pelo Harmonia cresceu
consideravelmente nos últimos anos. Nos anos
80 ninguém parecia interessado em ouvir Neu!
ou Harmonia, estávamos fora de moda. Come-
çou a ficar melhor a partir do meio dos anos
90, quando Julian Cope (escritor e músico bri-
tânico, ex-líder do grupo Teardrop Explodes)
lançou o livro Krautrocksampler, que fez com
que, pelo menos na Alemanha, algumas pesso-
as de repente se sentissem orgulhosas da nossa
música, começassem a pensar sobre ela, a per-
guntar “por que esse cara está tão empolgado
com esses alemães loucos?” (risos). Quando
relançamos os três primeiros álbuns, em 2001,
muita coisa mudou.
Nos anos 70 existia essa ideia, criada
por jornalistas britânicos, de que havia
todo um movimento na Alemanha, que
eles chamavam de “krautrock”, mas
quando lemos entrevistas de músicos
da época percebemos que não era
algo assim tão amplo.
Para mim e para o Klaus existia a ideia de
fazer algo completamente diferente do
que qualquer outra pessoa estivesse fa-
zendo, não queríamos fazer parte de uma
cena. Nós queríamos ser únicos.
E para vocês, Aaron e Steve, como tem
sido tocar com o Michael?
STEVE . É horrível (risos).
AARON . É impossível trabalhar com
ele (risos). Na verdade tem sido bem
divertido, poder viajar pelo mundo e
tocar essa música que amamos. Pas-
samos mais tempo saindo, jantando,
conhecendo as cidades, do que em
cima do palco.
Para um baterista deve ser um pouco
desafiador, não?
STEVE . Isso não é problema. O Neu! foi uma
banda importante para pessoas da minha ida-
de, para as pessoas da idade do Aaron – ele é
um pouco mais novo. Para muita gente, o Neu!
pode ter sido tão importante quanto o Velvet
Underground, o Television, os Stooges. Essa
música underground ajudou a formar muitas
coisas que apareceram depois. Às vezes esta-
mos em algum lugar e ouvimos alguma música
do Joy Division e eu acho que tenho que mos-
trar para o Michael: “Olha, acho que esses caras
eram grandes fãs do Neu!” (risos).
Hoje em dia você tem mais noção do quanto o seu
trabalho influenciou a música contemporânea?
Não é uma boa ideia se concentrar tanto em se
sentir um herói ou uma lenda. Às vezes as pes-
soas me perguntam “como você se sente sendo
uma lenda?”. Se eu não fosse educado, diria “isso
é idiotice”. Fico feliz em saber que a minha mú-
sica segue influenciando as pessoas depois de
tanto tempo, mas sei que as coisas já foram dife-
rentes, e que o futuro também vai ser diferente. É
ótimo ouvir alguém falar coisas boas sobre a mi-
nha música, mas tento não levar isso tão a sério.
Li em algumas entrevistas você afirmando que
a sua relação com o Klaus era um pouco difí-
cil. As diferenças entre vocês eram pessoais
ou artísticas?
Os problemas aconteceram realmente no ní-
vel pessoal. Mesmo no começo, antes de Klaus
começar a ficar afetado pelas substâncias que
usou ao longo dos anos, ele era uma pessoa que
eu não queria ter por perto. Mas era ótimo criar
música com ele. Tive sorte por sua viúva ser uma
pessoa muito amável, que tornou possível o lan-
çamento da caixa. Ela podia ter vetado tudo, in-
cluindo a nova versão do disco Neu! 86 (lançado
por Klaus em 1995 como Neu! 4, sem o consenti-
mento de Michael). O Neu! era uma colaboração
artística, e tocar com um baterista como Klaus
era incrível. Foi a primeira vez que encontrei al-
guém com tanta determinação e vontade. Klaus
era uma força da natureza. Eu sempre me lem-
bro de um incidente: estávamos tocando com
o Kraftwerk no começo da carreira deles, e o
Klaus usava uns pratos quebrados – ele adorava
o som que conseguia tirar daquilo. Ele cortou a
mão em uma das pontas afiadas dos pratos – foi
um corte feio, que espalhava sangue para todo
lado. Eu olhei aquilo e depois vi a plateia, que
estava de queixo caído, e o Klaus não parou de
tocar nem por um instante. Se fosse eu teria pa-
rado, pelo menos para colocar um curativo. Isso
diz muito sobre ele. Ele tinha uma personalidade
muito forte. Isso de certa forma foi bom, porque
adicionou muita beleza e força ao que fizemos.
E depois da turnê, podemos esperar um disco
do Hallogallo?
Não estou muito bem de saúde, preciso descan-
sar um pouco. Não estou reclamando, nunca es-
tive na América do Sul nem no México. Os shows
são ótimos, esse projeto tem me levado por todo
o mundo. Fico surpreso em saber que minha
música chegou tão longe. Na verdade é o con-
trário, acho que ficaria surpreso se a minha mú-
sica fizesse sucesso na Alemanha (risos). Que-
ro descansar bastante e depois vamos ouvir as
gravações que fizemos – estamos gravando al-
guns shows, inclusive –, existe bastante interesse,
algumas gravadoras já fizeram propostas. Acho
que faz sentido registrar algo desse projeto. E
depois seguir em frente, fazendo mais música,
ou então... Não sei, apenas seguir em frente. 3
“Às vezes as pessoas me perguntam ‘como você se sente
sendo uma lenda?’. Se eu não fosse educado, diria ‘isso é idiotice’. Fico feliz em saber que a minha música
segue influenciando as pessoas depois de tanto tempo, mas sei
que as coisas já foram diferentes, e que o futuro também vai ser
diferente. É ótimo ouvir alguém falar coisas boas sobre a minha
música, mas tento não levar isso tão a sério.”
2SAIBA MAIS
michaelrother.de
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M A C A C O
B O N G
MÃO DIREITA
DO ROCK, MÃO
ESQUERDA DO JAZZ
“Música instrumental” é uma expressão que causa calafrios em quem logo imagina um sujeito engomadinho
debulhando escalas de nomes estranhos. Mas, felizmente, há uma nova geração de grupos instrumentais brasileiros que passa
longe desse estereótipo, criando uma música em que o som da banda como um todo é mais importante que a figura do solista – que muitas
vezes sequer existe. O Macaco Bong é um dos principais nomes dessa cena, que também inclui, entre outros, A Banda de Joseph Tourton, Satanique Samba
Trio, Hurtmold e o trabalho-solo de Maurício Takara. 1
Criado em Cuiabá no início de 2005, o
Macaco Bong consolidou a formação
atual no fim daquele ano, com Bruno
Kayapy na guitarra, Ney Hugo no baixo e Ynaiã
Benthroldo na bateria. Desde o começo, a banda
aposta no som instrumental, e as composições
são criadas no esquema jam session: entram no
estúdio, começam a tocar e dali vão surgindo
ideias que depois são encaixadas em outras
ideias. A música do Macaco é bastante fluida
e não se baseia na estrutura padrão da música
popular (estrofe-ponte-refrão ou, no caso da
instrumental, tema-solos-tema), característica
compartilhada pelos grupos do que se
convencionou chamar de pós-rock.
Outro aspecto em comum é a mistura de
estilos e influências, algo que pode ser bem
exemplificado pela guitarra do Macaco Bong,
como explica Bruno Kayapy: “A linguagem da
guitarra no jazz tem aquele lance de tocar os
acordes em bloco, com timbre mais fechadinho,
semiacústico e tal, só que eu faço isso com
drive, com distorção, com a pegada do rock.
Então misturo a mão direita do rock com a
mão esquerda do jazz”. Acrescente alguns
“dedinhos” de world music, heavy metal,
hardcore, música pop e Hermeto Pascoal e já
dá para ter uma ideia do som dos caras. “A
gente gosta de Ray Charles, Dave Mathews
Band a Morbid Angel, Canibal Corpse. Adoro
Pat Metheny, mas considero esteticamente o
Canibal Corpse uma das melhores bandas”,
revela o guitarrista.
Essa geleia geral sonora chamou atenção do
produtor Fabrício Nobre, que em 2008 teve a
ideia de organizar um show com Gilberto Gil
acompanhado pelo instrumental do Macaco
Bong. Como Gil ainda era ministro da Cultura
e estava com a agenda lotada, o projeto foi
abortado. Alguns meses atrás, o plano foi
ressuscitado. O Macaco Bong estreou com
Gilberto Gil no show Futurível, em novembro
de 2010. O resultado do encontro foi intrigante:
alguns clássicos ganharam arranjos mais duros,
sem o suingue e a alegria dos originais – o
que explicitou o conteúdo melancólico antes
encoberto pelo arranjo festivo de “Aquele
Abraço”, canção feita por Gil pouco antes
de se exilar. “Quando fui criar esses arranjos,
procurei entender a letra ao máximo e passar
isso no som, que já é o que a gente faz no
Macaco. A gente não tem vocalista, mas a
guitarra é a voz que diz quando é melancolia,
quando é afeto”, conta Kayapy.
Embora não haja mais datas fechadas para
esse show, o pessoal do Macaco espera repetir
a parceria com Gil mais vezes. “Tem uma
ideia estética e um conceito no show. A ideia
é uma banda de rock tocando com o Gil, o
conceito é a representação de um processo
histórico de renovação, de construção de novas
ordens”, teoriza Ynaiã. E, graças à internet e às
tecnologias digitais, essa nova ordem já está se
formando no mundo artístico, especialmente
o musical, como explica o baixista Ney Hugo:
“Acabou a fórmula, tanto na coisa de fazer o
som, fazer arte, quanto na gestão de carreira.
Antes tinha formulazinha: pagar jabá, ir na
rádio. Hoje a gente tem festivais, tem internet”.
Com uma estrutura de rede ligando coletivos
culturais e associações de música independente
de todo o país, não é mais imperativo o artista
ter contrato com gravadora ou viver em
uma metrópole. O Macaco Bong é um ótimo
exemplo desse processo de descentralização,
já que Ynaiã, Kayapy e Ney se conheceram
por meio do Espaço Cubo. A ideia inicial do
instituto era incentivar a música autoral em
uma época em que o meio musical de Cuiabá
estava dominado pelas infames bandas cover.
A iniciativa deu certo, e logo o Cubo passou
a abrigar outras manifestações artísticas,
como cinema e teatro. Com um espaço para
apresentações (a Casa Fora do Eixo), o festival
Calango e um esquema bem organizado de
troca de serviços entre músicos, produtores,
técnicos de som, fotógrafos etc., o Cubo vem
fomentando a cena cultural da capital mato-
grossense desde 2000. Os três integrantes
do Macaco Bong trabalham no instituto
(Ynaiã com produção de eventos, Bruno com
sonorização e Ney na parte de comunicação) e
acreditam ser importante investir na cena local,
como defende Ynaiã: “Pra consolidar a carreira
e até ter uma força maior se essa mudança
[para um grande centro] for necessária, é
preciso estruturar sua cidade”. 3
POR RAQUEL SETZ . FOTO POR FERNANDO
MARTINS FERREIRA
2SAIBA MAIS
myspace.com/macacobong
espacocubo.org.br
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E N T R E V I S T AC O M
Brendan Canning
do broken social scene
¤
ENTREVISTA POR HELENA SASSERON
FOTO POR D. GILLESPIE
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Com uma lista de integrantes que pode chegar a 25 pessoas – incluindo membros de algumas das principais bandas do indie canadense, como Metric, Stars, Do Make Say Think e a cantora Feist –, o Broken Social Scene poderia reivindicar com folga o título de “maior projeto paralelo de todos os tempos”. Apesar da fama de “supergrupo”, o BSS gira em torno dos seus dois fundadores, Brendan Canning e Kevin Drew. Na verdade, dificilmente mais do que nove pessoas estão envolvidas ao mesmo tempo no trabalho da banda, e as composições, em sua maioria, ficam a cargo dos líderes. Depois de lançar um dos discos de indie rock mais celebrados de 2010, Forgiveness Rock Record, o grupo chegou a ser convidado para se apresentar no Brasil em abril deste ano, mas acabou recusando a oferta – “infelizmente não tocaremos no país em 2011, mas quem sabe em 2012”, explicou Canning em seu perfil no Facebook.
Durante uma rápida passagem por Seattle,
no final do ano passado, nossa colabora-
dora e chick-in-charge Helena Sasseron
foi conferir um show do grupo e levou uma ideia
com Canning. Depois da passagem de som, ele
falou sobre como organizar tantas pessoas para
tocar e compor, gravar com John McEntire (Tor-
toise, Sea and Cake) e sobre as diferentes perso-
nalidades da banda. 1
O Broken Social Scene tem muitos membros e
convidados, que também estão em outros pro-
jetos ou projetos solo. Como vocês se organi-
zam na hora de gravar e sair em turnê?
Nós temos uma banda principal com quem
viajamos. Hoje somos nove pessoas no palco,
mas, quando precisamos, contratamos outros
músicos para tocar com a gente, saxofonis-
ta, percussionista etc. Nessa turnê o Jimmy
[Shaw], do Metric, resolveu vir tocar em alguns
shows... E assim a turnê vai se configurando... A
Feist vai tocar com a gente no México... A gen-
te vai selecionando e a turnê acontece!
E para colocar todo mundo
em estúdio...
A gente não entra todo mundo
em estúdio ao mesmo tempo,
gravamos parte por parte...
Mas vocês não compõem juntos?
Sim, alguns de nós, mas não
oito pessoas tentando compor
uma música... Diferentes for-
mações da banda compõem
cada música.
Como vocês encontram e es-
colhem os artistas convidados
para gravar?
Temos algumas ideias e pensa-
mos em alguém que se encaixe
com elas, ou então um de nós
escolhe de fato uma pessoa
para tocar em determinada
música. Por exemplo, tem o
Doug McComb, do Tortoise,
que assobia em uma das músicas do disco, o Eric
[Claridge], do The Sea and Cake, toca baixo nes-
sa mesma música, mesmo a gente tendo cinco
baixistas na banda...
E essas participações simplesmente aconte-
cem, não são super planejadas e tal...
Sim, nós convidamos as pessoas a participar ou
então tocamos parte de uma música para alguém
e a pessoa de repente tem uma boa ideia para ela...
E o mesmo aconteceu com o Sam Prekop, que
canta em uma faixa do disco?
Sim. Nós gravamos o disco com o John McEntire,
que é o líder do Sea and Cake, e o Sam aparecia
de vez em quando no estúdio e saíamos para jan-
tar... A música já estava escrita, e o Kevin [Drew]
queria que o Sam cantasse nela, e aí rolou.
E como foi gravar o disco com o John McEntire?
Foi ótimo, ele é legal... E começamos uma rela-
ção com ele... Ele teve a habilidade de nos deixar
livres no estúdio, como sempre gostamos de es-
tar, nos deu várias salas e espaço suficiente para
tentarmos diferentes ideias, que pareciam não
“ À S V E Z E S V O C Ê T E M Q U E
F A Z E R U M A C A M P A N H A P O R D E T E R M I N A D A S I D E I A S , G R A V A P A R T E D E U M A
I D E I A P A R A U M A M Ú S I C A . A L G U N S G O S T A M , O U T R O S
N Ã O , E D E P O I S D E U M M Ê S
A I N D A E S T A M O S D I S C U T I N D O S E
V A L E A P E N A M A N T E R E S S A
I D E I A . É U M P R O C E S S O . É C O M O
S E E S T I V É S S E M O S N U M
L A B O R A T Ó R I O . ”
ter sentido no começo, mas no final poderiam ser
peças que estavam faltando no quebra-cabeça.
Ele foi incrível nisso, nos deixou muito à vontade.
Mas depois de tanto tempo, quando você tem
alguma ideia já sabe mais ou menos o que o
resto da banda vai pensar, não?
Mais ou menos... Mas é meio que uma questão po-
lítica... As vezes você tem que fazer uma campa-
nha por determinadas ideias, grava parte de uma
ideia para uma música.
Alguns gostam, outros
não, e depois de um
mês ainda estamos dis-
cutindo se vale a pena
manter essa ideia. É
um processo. É como
se estivéssemos num
laboratório.
Do que você mais gos-
ta no BSS?
Acho que das várias
personalidades... E do
fato de o show ser di-
ferente em relação ao
álbum. O disco pode
soar sério, mas acho
que o show não che-
ga nem perto dessa
seriedade – é uma ce-
lebração, vai por um
caminho diferente.
Que bandas você está ouvindo agora?
Eu compro bastante coisa de bandas anti-
gas, mas gosto das novas também... Comprei
o disco da Budos Band outro dia; gosto do
Michael Leonheart and The Avramina 7, que
foi lançado pelo selo Truth & Soul, que faz um
som meio estranho, funkeado, gosto bastante.
Tem também o Atlas Sound, projeto solo do
cara do Deerhunter.
Quando vocês tocam em festivais, você tenta
ver as outras bandas e conhecer novos artistas?
Sim! [Em 2010] vi uma banda da qual gosto mui-
to, Here We Go Magic – eles são na verdade uma
das bandas novas favoritas. Tocamos juntos em
alguns festivais. Eu vi o Cypress Hill, foi divertido...
Pavement também – tocamos em alguns festivais
juntos esse ano, então os vi tocando algumas ve-
zes. Acho que vi bastante coisa... Nem consigo me
lembrar direito... Ah! Sim! Vi The Specials! Foi bem
legal. E aquele cara árabe, Omar Souleyman. 3
2SAIBA MAIS
brokensocialscene.ca
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“É só o fim do começo, seja bem-vindo ao circo.” Essa frase encerrava o disco Primeiramente, lançado em 2008 por César Tavares, mais conhecido na cena do rap brasileiro como DonCesão. Em sua estreia sonora já dava para perceber um letrista de talento, que contava boas histórias em suas composições. Com novo álbum na praça, Bem Vindo Ao Circo, Cesão se afirma com um trabalho conceitual, permeado por narrativas bem amarradas, usando o imaginário circense como pano de fundo. Um disco que poderia facilmente virar filme. Em um papo rápido com a SOMA, o rapper contou detalhes sobre o trabalho. 1
Sejam bem-vindos ao meu circo
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No fim do seu primeiro disco, Primeiramente,
você já dava o gancho do Bem Vindo ao Circo.
Como surgiu essa ideia, e como foi criado o
conceito nesse meio-tempo?
Quanto terminei Primeiramente, quis criar um
contexto. Foi minha primeira experiência musical,
e pensei “o que fazer a partir daqui?”. A primeira
história que me veio foi o circo. Fui analisando os
personagens e como poderia relacionar eles com
a vida real. Desenvolvi os sons um por um, até
encaixar em uma história completa.
Por que o circo? Qual a sua relação com o tema?
Está no imaginário das pessoas desde a
infância. Cada pessoa tem uma coisa que marca
mais, seja um animal, ou o mágico, então dá pra
fazer várias analogias e gera muito repertório. E
a ideia era render personagens, então o circo já
dava uma história quase pronta.
Você fez algum tipo de pesquisa ou laboratório
pra ficar mais por dentro desse assunto?
Sim. De 2008 pra cá, tudo que eu via
relacionado a circo me interessava. Fui atrás da
história do circo, lendo livros, descobrindo as
origens, me envolvendo no assunto, ouvindo
músicas. Devo ter ido umas seis vezes ao circo
nesse tempo pra buscar inspiração.
O disco tem um conceito meio
cinematográfico, como se fosse um roteiro.
Além disso, ainda tem um enredo narrado que
acompanha e complementa as músicas. Como
você definiu essa ideia?
Desde o começo eu penso nisso, roteirizar as
músicas. Primeiro elas têm que fazer sentido uma
por uma. A ideia do narrador foi primordial pra
amarrar tudo. Eu tinha um certo medo de ficar
uma coisa meio abstrata, mas rolou numa boa.
Fala um pouco sobre as participações do álbum.
Encarei como se fosse a minha obra-prima.
Quis trazer pessoas que eu tinha como
influência. Quando estava separando os beats
que queria pro álbum com o DJ Caíque, já iam
surgindo as ideias. "Malabares" tinha a cara
da Lurdez da Luz, "Cego, Surdo & Mudo" tem
tudo a ver com o Elo da Corrente. Ainda tem o
Pizol e o Dr. Caligari, que são meus parceiros da
360 Graus. O Ogi e o Rodrigo Brandão fazem
o encerramento, com "O Show Já Terminou".
O Mi e o Elliot, da Banda Glória, são meus
amigos de infância, e as ideias surgiram de
forma natural. Foi muito legal e importante esse
trabalho com os amigos.
Você brinca com os títulos e os personagens
de uma maneira muito original, relacionando
as atrações circenses com o cotidiano. Fale
um pouco sobre essa analogia.
Contar história em primeira pessoa é legal,
emociona. É como um filme, você vê o que a
pessoa tá vivendo e acaba sentindo um pouco
também. Quando a criancinha fala no começo
do disco e vem a música dos malabares,
você já imagina a criança no farol e toda a
evolução dela. O personagem traz a imagem
na cabeça da pessoa, e eu dou a minha visão
em cima. Às vezes combina, às vezes conflita.
E a ideia era relacionar esses personagens de
uma maneira diferente, sem ser óbvio. Como
o mágico, que é aquela coisa que sempre
dá certo, consegue atos espetaculares. Na
música é uma coisa mais sofrida, de ser um
herói da vida real. Ou o palhaço, que já remete
a brincadeira, tem uma associação fácil. No
caso da música é uma tiração de sarro, porque
ele tomou um pé na bunda da mulher e está
sendo feito de palhaço, saca?
O lançamento do disco vai ser dentro de um
circo, né? Como está sendo montada essa ideia?
Em todo o processo de escrita eu já pensava
nisso. No circo as pessoas vão viver aquilo de
verdade. Eu tô trabalhando muito no visual. Vai
ter atores trabalhando, todos os convidados.
Vamos fazer uma interação bem visual.
Por que você resolveu colocar o álbum
diretamente pra download gratuito? Acha que
o formato de CD e venda já está ultrapassado?
Eu vou fazer uma tiragem em CD, mas só porque
não tenho condição de fazer em vinil. Quero
lançar esse trabalho físico. A música já está
aí, registrada. A gente tem que encarar o rap
como um mercado, e acompanhando o rap lá
fora. Você vê que tem grandes álbuns saindo,
de gente nova como Curren$y, Cool Kids, em
formato de mixtapes lançadas na internet. E eles
ganham o mundo se tornando populares. Então,
se eu lanço o CD e fico segurando o trabalho, o
primeiro cara que comprar vai jogar na internet
e eu não vou conseguir a atenção que consegui
com o download. O que iria se dispersar em
quantidades homeopáticas por meio das pessoas
que fossem comprando ou de downloads piratas,
eu trago direto pro meu nome fazendo uma
promoção maior. Esse é o meu pensamento.
Quem gostar de verdade compra o CD. Vou
fazer uma tiragem a cinco reais e uma especial
acompanhada de um livro e uma camiseta
com preço justo. E, como estou com essa
preocupação visual do show, isso é a parte mais
importante. Vender a arte como um todo.
Dentro dessa analogia que você fez, o que o
circo e o hip-hop têm em comum?
Se o hip-hop fosse um personagem do circo,
seria uma mutação de vários. Tem que ser um
pouco equilibrista pra viver da sua arte. O circo
tem aquela coisa do amor à arte, de fazer com as
próprias mãos. Junta um pessoal, põe as coisas
nas costas e vai de cidade em cidade passando
a mensagem. O hip-hop tem isso também. As
pessoas se juntam pela mensagem. Acho que é
a maior semelhança. É um trabalho árduo e de
longo prazo. Nós temos que fazer as coisas sem
depender de ninguém. Fazer o nosso cirquinho
se transformar no Cirque du Soleil, tá ligado? 3
POR DANIEL TAMENPI . FOTO POR ASSIS176
2SAIBA MAIS
myspace.com/doncesao
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+QUEM SOMA . DANIEL TAMENPI / SÓ PEDRADA MUSICAL . Por Mateus Potumati . Foto por Fernando Martins Ferreira
S orte, sozinha, não resolve nada. Mas va-
mos combinar: ela também não atrapa-
lha. E Daniel Reis da Costa não é exa-
tamente um cara azarado. Nascido no bairro de
Santa Teresa, uma das áreas com maior concen-
tração de artistas por metro quadrado no Rio
de Janeiro, de pais progressistas (ambos profis-
sionais liberais, com histórico de engajamento
contra a ditadura e alta formação universitária),
Daniel teve seu envolvimento com música não
só facilitado, mas incentivado. “Meu pai era
amigo de uma galera da bossa nova, minha mãe
conhecia Novos Baianos, Caetano, Gil. Eu tinha
uma coisa com música desde cedo, eles sempre
apoiaram”, conta. Logo menino, foi estudar na
Escola Senador Correia, em Laranjeiras, reduto
de filhos da geração paz e amor como ele, onde
teve contato precoce com a música. “Com 8, 9
anos eu já tinha noção de flauta, violão, piano
e percussão. Pirei em percussão e meu pai me
deu uma bateria. Com 12 eu já estava tocando
em banda punk rock de moleque.” O espírito
arredio rendeu ao capeta em forma de guri o
apelido de “Pimenta”, que na adolescência vi-
rou “Tamenpi” por causa de uma mania carioca
de inverter as sílabas – especialmente oportuna
quando a molecada do asfalto começou a subir
o morro para frequentar bailes funk.
Mas, a partir de um ponto, algumas coisas sepa-
raram Daniel Tamenpi de ser só mais um garoto
de uma família legal. Unindo uma voracidade
rara para a pesquisa musical a um talento natural
como DJ, ele se tornou não só um dos nomes mais
requisitados da noite paulistana, como está há 5
anos (completados em 14 de maio) à frente de um
dos blogs de referência musical mais acessados
da internet brasileira, o Só Pedrada Musical. Nesse
tempo, o Só Pedrada se firmou como uma fonte
rica de novidades e pesquisas de origens, nota-
damente sobre música negra, que vem formando
novos ouvintes e facilitando a vida de muito ma-
caco velho. O estalo, segundo Tamenpi, veio “lá
por 93, 94, quando, quando ouvi Racionais pela
primeira vez”. “Eu era um moleque meio politiza-
do, meu pai sempre foi do PT e tal. E as letras do
Mano Brown me bolaram”, ele lembra. Começava
ali um caminho sem volta pelas entranhas do rap,
que depois se ramificou exponencialmente. Afe-
tado pelos Racionais, GOG e Thaíde, ele só ou-
via rap brasileiro: “Achava rap gringo uma merda
(risos).” Mudou de opinião anos depois, quando
ares mais esfumaçados trouxeram grupos como
Cypress Hill e Wu-Tang Clan. “Mas a virada mes-
mo veio em 96, quando ouvi The Roots. Aquilo
foi um soco na cara, vi que o rap podia ser muito
musical.” Dali em diante, começou a reparar no
trabalho dos DJs de hip-hop e não demorou mui-
to para decidir que era aquilo que queria fazer.
“SÓ TOMEI UMA NOÇÃO DO TAMANHO QUE TINHA TOMADO QUANDO MUDEI PRA SÃO PAULO. AS PESSOAS ME RECONHECIAM NAS FESTAS, ERA SINISTRO.”
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2SAIBA MAIS
sopedradamusical.com
Vendeu a bateria, comprou dois toca-discos e
começou a praticar em casa. Aos poucos, foi ga-
nhando espaço como DJ na noite carioca.
Paralelamente, a relação com as pickups intensi-
ficou mais ainda sua pesquisa musical. E em se-
guida, claro, veio o Napster. “Imagina como era,
né? Só existia internet discada, e a gente tinha
que entrar depois da meia-noite. Então eu vara-
va noite atrás de música.” Em 2002, finalmente,
Tamenpi resolveu começar a desovar um pouco
do que vinha descobrindo por conta própria.
Nascia ali o embrião do Só Pedrada: “Ainda não
existiam blogs pra baixar música, então abri um
Fotolog onde eu colocava capas de disco, ficha
técnica e escrevia reviews.” Os anos passaram, o
Fotolog virou reduto de gente que gastava mais
dinheiro com tinta de cabelo do que com dis-
cos, mas Tamenpi seguiu em frente. “Comecei
a frequentar blogs gringos e brasileiros como o
Saravá Clube, que abriu muito minha cabeça.
Era ótimo para procurar sample de disco.”
Em 2006, a moda dos blogs para baixar mú-
sica começava a pegar, e o que mais chamava
a atenção do então formando em jornalismo
era a quantidade de blogs dedicados a gêne-
ros específicos. Ele decidiu então abrir a pri-
meira versão do Só Pedrada, adicionando links
de downloads às resenhas. “Muita gente vinha
pedir pra copiar meus discos, aí eu botei tudo
lá no blog.” O que era para ser uma coisa en-
tre amigos ganhou proporções muito além das
imaginadas: o blog registra hoje algo entre 2 e
3 mil visitantes diários. “Só tomei uma noção
do tamanho que tinha tomado quando mudei
pra São Paulo. As pessoas me reconheciam nas
festas, era sinistro.” A vinda para a capital pau-
lista, em 2008, foi um passo fundamental no
caminho do homem-pedrada. “No Rio, eu ga-
nhava uma merreca pra tocar o que eu odiava.
Aqui, toco o que quero e ganho bem”, ele resu-
me, sem esquecer o papel fundamental que o
DJ Primo teve no processo. “Além de me colo-
car no circuito, o Primo fez toda a fita de eu vir
pra cá, me falou qual bairro era mais barato pra
morar, ajudou na mudança”, detalha. “E morreu
1 mês depois.” O choque o fez cogitar voltar
para o Rio, mas os amigos que tinha feito em
São Paulo o impediram. “Me falaram ‘fica aí, faz
tua base aqui que uma hora vai rolar’.” E rolou,
para deleite dos paulistanos e dos fãs de música
boa pelo mundo.
Hoje, aos cinco anos de idade, o Só Pedrada
não posta mais discos para download, mas viu
sua função educativa se ampliar. O volume de
reviews cresceu, surgiram podcasts e mixtapes
semanais e vários projetos musicais estão em
curso. A sorte, agora, é toda nossa.
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Coisas que Gostamos de Guardar
FOTOS POR FERNANDO MARTINS FERREIRA
Parecer do dr. Jacob Pinheiro Goldberg
POR MENTALOZZZ, COM COLABORAÇÃO DO DR. JACOB PINHEIRO GOLDBERG
No colecionismo são vários os motivos que levam uma pessoa a querer guardar objetos. No caso do artista plástico ADRIANO LEMOS, o entrevistado desta edição da Seleta, foi o design que motivou sua paixão por eletrodomésticos. Sua história está profissionalmente ligada ao colecionismo, já que seu principal ganha-pão é restaurar de tudo, de lambretas a móveis, para colecionadores. Mas a conversa com ele revelou também uma tentativa não muito bem-sucedida de produção industrial de toy art no Brasil. Como ele mesmo diz: "Faço de tudo, só não faço dinheiro".
Como começou o seu interesse por
objetos antigos?
O primeiro objeto que chamou minha atenção,
lá na infância, foi o desenho do Fusca, com
suas formas arredondadas. Eu já desenhava
muito, sempre assistia TV com um caderno
na mão e gostava de desenhar Transformers,
mas as linhas arredondadas do Fusca
determinaram uma predileção.
E como chegou aos eletrodomésticos?
Foi quando saí de casa, 15 anos atrás, e tive
que comprar uma geladeira. Acabei adquirindo
um modelo antigo da GE da década de 50
porque tinha os cantos arredondados. Quando
me dei por conta já estava adquirindo outros
eletrodomésticos antigos. Percebi a beleza
do desenho envolvido e também a qualidade
superior e menos descartável deles. Comprei
alguns que eu nem precisava, tipo uma
batedeira da Walita que é também espremedor
de suco, moedor de carne e amolador de facas
– tudo num produto só.
Quantos eletrodomésticos você tem na
sua coleção?
Não sei bem porque estou sempre comprando
trocando e vendendo para outros colecionadores
do Brasil todo. É um mercado bem ativo.
Qual objeto você procura para a sua coleção e
não encontra?
Estou há um tempo buscando exatamente
o amolador de facas para completar minha
batedeira da Walita, mas tá difícil.
Você também tentou desenvolver um
boneco industrializado. Como começou esse
processo?
Sempre pintei quadros de bonecos coloridos
com a temática punk, skate etc., e logo passei
a modelá-los primeiro em epóxi, e depois
em biscuit, técnica que vi na Ana Maria
Braga. Comecei a vendê-los, principalmente
dois gatinhos trepando pintados com tinta
fosforescente. Eles vendiam bem...Isso bem
antes da onda da toy art.
Como resolveu produzir o boneco em vinil?
Eu havia desenvolvido alguns personagens
para a campanha publicitária de uma indústria
de medicamentos, e eles gostaram tanto dos
bonecos que pediram para que eu produzisse
em série. Assim, tive que aprender o processo
de produção industrial de brindes em vinil.
Quando surgiu o conceito de toy art no Brasil,
eu já não aguentava mais fazer manualmente
meus bonecos, porque os pedidos aumentaram,
e foi então que conheci o Munny (boneco
em vinil que pode ser customizado) e resolvi
fazer o Fooze, utilizando o mesmo conceito.
Vendi meu carro e alguns eletrodomésticos
da minha coleção e mandei fazer o molde em
uma indústria que fabricava brindes. Produzi
trezentos bonecos inicialmente.
Você ganhou dinheiro com a venda deles?
Distribuí os bonecos em algumas lojas. Até que,
para a minha surpresa, em uma delas, o dono
me falou que já haviam oferecido o mesmo
boneco para revender, por um preço bem
mais baixo que o meu. Foi então que percebi
que a fábrica estava usando o meu molde e
vendendo o meu boneco por aí. Fui pirateado...
Modelei e paguei o molde para eles... Hoje
brigo na Justiça para reaver meu molde e ser
indenizado, mas essa história ainda deve se
arrastar por um bom tempo.
A Revolução Industrial criou uma relação curiosa
entre a pessoa e o mundo do produto fabricado
em série, e que se torna especialmente
marcante no caso do eletrodoméstico, que virou
um objeto imprescindível, quase uma extensão
da pessoa dentro de casa. Algumas pessoas não
se desfazem de seus eletrodomésticos antigos,
nem ao menos em favor de uma tecnologia mais
moderna e qualificada, porque desenvolvem
carinho e amor pelos aparelhos.
A mesma relação entre a pessoa e o produto
fabricado é a que impulsiona determinados
indivíduos a se tornar empreendedores. Fabricar
produtos pode ser extremamente desanimador
quando se percebe os descompassos e
desencontros do mercado. Tudo isso gera
frustrações, que de forma nenhuma, porém,
devem ser encaradas como derrotas.
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+QUADRINHOS
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John Coltrane . A LOVE SUPREME . IMPULSE!, 1964
Gravado ao final de 1964, A Love Supreme reúne todas as inovações musicais
experimentadas por John Coltrane durante a década anterior aplicadas em
“apenas” três faixas; “A Love Supreme PT. 1 – Acknowledgement”, “A Love
Supreme PT. 2 – Resolution” e “A Love Supreme PT. 3 – Pursuance / Psalm”.
Um dos discos mais espirituais já gravados, ainda que cheio de lógica em sua
composição, A Love Supreme reuniu o Dream Team do jazz em uma formação
de fazer inveja ao USA For Africa: Elvin Jones na bateria, McCoy Tyner no
piano e Jimmy Garrison no baixo, além do sax impecável de Coltrane como fio
condutor. Musicalmente e espiritualmente alinhados, os quatro músicos criaram
uma obra-prima do jazz, e também um dos discos mais celebrados da história
do gênero – alem do LP mais vendido da carreira de JC.
Com seus pouco mais de trinta minutos, A Love Supreme pode ser considerado
um disco de curta duração, embora a história constantemente nos diga o
contrário. Instrumental do início ao fim, influenciou músicos de todos os estilos,
épocas e gerações, provando ser a meia hora mais revolucionária da música
contemporânea. O free jazz (muitas vezes descrito por entusiastas em geral
como avant-garde jazz ou hard bop) tomaria novos rumos a partir de seu
lançamento, e John Coltrane certamente adicionou dois ou três adjetivos ao
significado da palavra “amor” nos dicionários modernos.
Love is in the air, baby.
Não é de hoje que artistas de todos os gêneros musicais conhecidos pelo ser humano falam sobre amor em suas composições. Jazzistas, soul men, rappers, funkeiros, sambistas, pagodeiros e sertanejos costumam destilar paixões, amores, faíscas, lampejos e seus respectivos desdobramentos em seus trabalhos, dos mais simplórios e honestos às supertrilhas vencedoras de Grammys. Artistas tão diferentes quanto John Coltrane e A Tribe Called Quest jamais poderiam ser exceções a uma regra tão clássica. No caso da obra-prima concebida pelo monstruoso saxofonista John Coltrane no distante ano de 1964, o amor em questão se traduz em doses cavalares de espiritualidade que, harmoniosamente distribuídas ao longo de três faixas-operetas, revolucionaram todo um gênero musical, mudando para sempre a forma de pensar, criar e executar um dos estilos mais ricos e
OB
RA
S P
RIM
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A Tribe Called Quest . THE LOVE MOVEMENT . JIVE, 1998
Muito menos espiritual que a obra-prima de Coltrane, The Love Movement é uma
ode dos MCs Q-Tip e Phife Dawg e do produtor Ali Shaheed Mohammad ao amor.
Obviamente, um amor menos requintado, menos metafórico e muito mais objetivo,
visceral e aplicado à vida cotidiana. Em The Love Movement os MCs falam sobre
experiências pessoais, amadurecimento, decepções, frustrações e... mulherada na bota,
obviamente – problema que assola onze entre dez rappers desde que Big Bank Hank
e Wonder Mike escreveram os primeiros garranchos da hoje mitológica “Rapper’s
Delight”. A produção, seca, direta e cheia de timbres perfeitos – evolução natural do
ótimo Beats, Rhymes & Life, de 96 –, garante momentos espetaculares, como a ótima
“Find A Way”, parceria entre o ATCQ e o finado produtor James “Yancey” Dilla, que
tem até sample da Bebel Gilberto, e a sincera “Common Ground”, que descreve com
simplicidade e de forma verdadeira as angústias e as alegrias de um relacionamento
prestes a completar um ano. O flow espetacular e os one-two punches aparentemente
perfeitos entre Tip e Phife escondem uma triste verdade: a relação desgastada entre
os membros do grupo gerou uma prematura separação entre seus membros logo
apos a turnê de The Love Movement, separação que durou até o ano de 2009, quando
os bolsos falaram mais alto que as ideologias e o trio finalmente cogitou voltar a
dividir o mesmo palco, ainda que sem previsão de novos álbuns.
O amor juntou, o amor separou, o amor reagrupou. E o fruto do amor do ATCQ
é um dos melhores discos de rap do final dos anos 90 - um disco sobre amores,
desamores e todos os respectivos estágios intermediários.
complexos da música contemporânea. Menos badalados e muito menos celebrados por especialistas e connoisseurs que discutem verborragicamente as mazelas do jazz, embora tão influentes quanto, o trio de rappers A Tribe Called Quest criou, à sua maneira, uma homenagem bastante sincera ao conceito de amor. Obviamente, o amor cantado por essa rapaziada do Brooklyn (NY) é objetivamente associado à paixão, ao romance, ao sexo e ao sensual rebolado, a.k.a. vai-e-vem, das pessoas do sexo feminino em geral. Espiritual ou carnal, passional ou platônico, o amor se faz presente em discos de diferentes gêneros, em diferentes épocas e com diferentes conotações. Experiências são minuciosamente descritas, divididas, transformadas em melodias, partituras, belas poesias ou rimas cheias de sinceridade. E o maior beneficiado, meu amigo, é você!
2PEDRO PINHEL FAZ O RADIOLA URBANA E O BLOG ORIGINAL PINHEIROS STYLE.
PO
R P
ED
RO
PIN
HE
L
O
AM
OR
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ST
Á
NO
A
R
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Polly Jean Harvey é uma da poucas roqueiras
que consegue se reinventar sem fazer com que
sua obra perca sentido. Desde o primeiro álbum,
Dry, em que predominavam as guitarras cruas
e letras autobiográficas, passando por Stories
From The City, Stories From The Sea, em que fler-
tou com a música pop, ao penúltimo disco White
Chalk, em que encostou as guitarras e assumiu o
piano, PJ vem mostrando novas facetas criativas.
Em Let England Shake, ela manteve a trajetória
com um disco que equilibra as experimentações
dos últimos álbuns e a simplicidade dos primei-
ros. Além disso, ousou temperar as músicas com
vocalizações (quase) eruditas, desafiando a sua
voz em todos os momentos e dividindo as gra-
vações entre uma igreja do século XIX em Dorset
e um estúdio ao vivo. As letras também seguem
um novo caminho: temas concretos que questio-
nam a política de guerras seguida pela Inglaterra
ao longo dos séculos A faixa-título “Let England
Shake” foi a escolhida para iniciar a atmosfera
sombria do álbum. A trinca “The Glorious Land”,
“All and Everyone” e “In The Dark Places” po-
tencializa a escuridão com arranjos pesados e
fortes. Em “The Works that Maketh Murder”, ela
narra as barbáries da guerra em um rock/folk
menos obscuro, trazendo um respiro aos ouvin-
tes. Outra canção que suaviza o peso do disco
é “Written on the Forehead”, composta sobre
samples do reggae “Blood and Fire”, do jamai-
cano Niney The Observer. Os agudos da artista
em “On Battleship Hill” deixam dúvida de como
ela irá se sair ao vivo, mas talvez isso não tenha
tanta importância diante da grandeza de Polly.
3POR MARINA MANTOVANINI
+REVIEWS
Cantora da nova MPB falando sobre sua geração: “O legal é que agora todo
mundo tá se amando”. Corte para álbum de um rapper, se valendo de di-
versos gêneros, com sanha e tino de auteur raro, mandando uma pedrada
soul à la Cassiano cujo refrão é “Não existe amor em SP”. Esse cara é o
Criolo (ex-Doido), mestre do rap paulistano, chutando bundas acomodadas
em seu álbum Nó Na Orelha, com produção de Daniel Ganjaman e Marcelo
Cabral. Trata-se de uma obra com gosto e vocação para falar de seu tempo,
exercendo o que seria caro ao formato canção (o mesmo que perdera razão
de ser com o advento do rap, segundo Chico Buarque), exatamente o que a
tal da nova MPB da primeira frase mais evita. Criolo se expõe, conversa ao
pé do ouvido, denuncia, chora, tudo ao mesmo tempo, vertiginoso.
O álbum é prenhe de palavra, de força de interpretação, mas acolhe escor-
regadelas como o excesso de maneirismo que começa na primeira faixa, o
afrobeat “Bogotá” e finaliza com o sambão “Linha de Frente”. Paradoxal-
mente, é em bolero tomado de referências bregas, radiofônicas, que Criolo
brilha, assim como nas faixas por ora já paradigmáticas, como “Grajauex”,
“Subirusdoitiozin” e “Não Existe Amor em SP”, todas previamente divul-
gadas. Afora sua voz forte, dicção cortante, carregada de interpretação a
cada fonema, Criolo traz, ao domínio da música popular, a sintaxe, objeti-
vidade e virulência do mais curtido rap nacional – aquele que, se excluindo
a atmosfera FM eleita por Criolo, foi amplamente ignorado/execrado pela
audiência classe média que deve lotar seus shows.
Assim como Brown colocou o gangsta na casa dos bacanas através das
ondas do rádio, Criolo coloca parte constituinte do imaginário rap brasileiro
em condições de brigar com a MPB mais deslumbrada Brasil afora. Parece
que a primeira frase dita pelo cantor no álbum baliza a negociação que ele
inflige à audiência: “fique atento, irmão, quando te oferecem o caminho
mais curto”. A epifania vem, mais em uma latente educação pela pedra – e
poucos discos, sendo assim, representam tão fielmente nosso tempo, seja
pelo vigor de sentimento, pela falta de desfaçatez (em “Sucrilhos”: “cantar
rap nunca foi pra homem fraco / saber a hora pra parar é coisa de homem
sábio”), pela fragmentação à moda de uma mixtape. A mais pura Força
Bruta. 3POR VELOT WAMBA
2CRIOLO
NÓ NA ORELHA
Independente
2011
2PJ HARVEY
LET ENGLAND
SHAKE
Island
2011
1DISCOS
93
Depois de dez anos de retração da gigantesca
máquina de marketing das majors, a localização
dos gêneros pop está mais forte do que nunca.
Mais até que o rap, o R&B talvez seja o último
exemplo de música pop global, presente nas rá-
dios de Nova Déli, Seul, Oakland e Niterói. É essa
qualidade ubíqua que parece atrair sensibilida-
des como a de Abel Tesfaye, cantor por trás do
projeto canadense The Weeknd. A mixtape de
estreia do artista, House of Balloons, flerta com
o lado mais melancólico do gênero em um clima
de fim-de-festa confuso, dopado e até perigoso.
As drogas são pesadas, o sexo é um exercício
de estranhamento e poder, e a diversão acabou
de se transformar em arrependimento – é a tri-
lha sonora da sua manhã de ressaca moral. Com
samples de Beach House e Siouxsie & The Ban-
shees, andamento arrastado e letras como “traga
o seu amor, baby, e eu posso trazer a minha ver-
gonha/ traga as drogas, baby, e eu posso trazer a
minha dor” (de “Wicked Games”), a mix é quase
um trabalho de R&B gótico. Mas então vem “The
Morning”, com uma guitarrinha safada de surfista
californiano, e amanhecer na balada não parece
uma má ideia. 3AMAURI STAMBOROSKI JR.
Se o punk partiu de uma necessidade de refletir e sintetizar de maneira
crítica o que até então havia acontecido no rock, nenhuma banda foi tão
efetiva nesse sentido como o Minutemen. Inspirados pelo clássico Pink
Flag, do Wire, o trio partiu para suas longas reflexões sobre a música em
composições de pouco mais de 60 segundos. Coisa que só amigos ob-
cecados por som poderiam fazer. Ao longo da carreira, começaram a ela-
borar esses pequenos fragmentos em composições maiores e em outros
tipos de canção, sempre refletindo sobre o rock e sobre o impacto da
cultura independente na sociedade. D. Boon, guitarrista do Minutemen,
definia o punk, em tradução livre, como qualquer coisa que queremos
que assim seja. Após a sua morte, essa noção de liberdade continuou
permeando as carreiras dos dois remanescentes da banda de San Pedro
– do baixista Mike Watt, principalmente. Sua trajetória errática no cená-
rio independente americano fez com que ele passasse por formações
que vão dos Stooges aos experimentalismos dos Ciccone Youth. Mas,
em seus trabalhos solo, sempre parecia que o baixista mais influente da
música independente americana estava tateando um caminho. Isso até
este incrível Hyphenated-Man.
O disco é chamado por Watt de sua “terceira ópera”, mas não espere uma
narrativa com começo, meio e fim, ou uma interpretação roqueira de al-
gum modelo clássico. Inspirado pelo pintor flamenco do século XV Hyero-
nimous Bosch, o álbum é composto de 30 pequenos fragmentos musicais
(só uma canção tem mais de dois minutos), que soam como se olhássemos
para uma tela cheia de personagens caricaturais e situações bizarras. São
peças com significados particulares – como os personagens-provérbio de
Bosch –, mas que têm um sentido comum entre elas.
É nesse painel que Watt recupera muito do poder de síntese do Minute-
men (são só três instrumentos!), dialogando com a estética que o grupo
construiu nos anos 80 (as canções foram compostas em uma antiga tele-
caster de D. Boon) e com muito da música que formou a sua geração – de
Captain Beefheart e Credence a Wire, Black Flag, Gang of Four. O resul-
tado é esclarecedor para entender um dos personagens que ajudaram a
dar forma ao rock como nós o conhecemos hoje. 3POR LAURO MESQUITA
2MIKE WATT
HYPHENATED-MAN
Org / Clenchedwrench
2011
2THE WEEKND
HOUSE OF
BALLOONS
Independente
2011
94
Obaro Ejimiwe é Ghostpoet, um inglês de 24
anos, de origem nigeriana e dominicana, que deu
as caras em 2010 com o EP digital The Sound Of
Strangers, um cartão de visitas em que mostrava
em quatro faixas um hip-hop experimental e ele-
trônico. O rapaz chamou a atenção de diversos
meios especializados, como The Guardian e URB,
além de conquistar o DJ e radialista Gilles Peter-
son com seu estilo peculiar de rimar/cantar, que
remete a uma mistura entre Roots Manuva e Gil
Scott-Heron. Após assinar com a Brownswood
Recordings (selo de Peterson), o rapaz começou
a arquitetar sua estreia, que chegou agora no ál-
bum Peanut Butter Blues And Melancholy Jam.
O disco é surpreendente, unindo os diversos es-
tilos da música urbana contemporânea inglesa –
desde a semente plantada por Massive Attack e
Portishead nos anos 90, que gerou o trip-hop,
passando pelo hip-hop, grime, crunk, até os dias
atuais do dubstep. As músicas têm diferentes
propostas, mas se encadeiam bem: produções
sombrias e melancólicas desenhadas pela sua
levada spoken word melódica. Ao lado de James
Blake, Ghostpoet é uma das grandes novidades
inglesas em 2011. 3POR DANIEL TAMENPI
+REVIEWS
O revival da música produzida na década de 1990 é provavelmente a “previsão”
mais sopa no mel que poderia ser proposta a respeito da vida cultural ocidental
nos anos 10 – qualquer zé mané pode se gabar de estar por dentro da “regra
dos 20 anos” que dita os ciclos dos revivals musicais e que seria responsável
por todas as belezas e atrocidades cometidas em nome dos anos 80 durante
a primeira década do século XXI. Derivado das teorias que regem o universo
da moda, talvez o axioma não se sustente mais com tanta certeza, uma vez
que os mesmos anos 00 que reavivaram os 80 também trouxeram o MP3, que
legou ao consumidor a escolha de seu revival favorito, ao alcance de qualquer
bom programa de partilha de arquivos. Por outro lado, é certo que não faltam
esforços para reabilitar a década do grunge no imaginário coletivo, e bandas
“menores” no panteão do indie rock do final dos 00 – numa lista que vai do The
Pains of Being Pure At Heart ao Deerhunter – fizeram a sua parte nessa cruza-
da, ajudados especialmente pelas dezenas de reformas de grupos responsáveis
por inúmeros clássicos noventistas. Apesar desse contexto, o álbum de estreia
do Yuck ainda é uma agradável surpresa, um passeio musical que mais parece
uma fita VHS velha com uma edição perdida do Lado B (programa da MTV Bra-
sil dedicado ao indie rock) gravada em 1997. Se a habilidade do grupo britânico
em ser um Black Crowes da geração X, emulando luminares como Superchunk,
Teenage Fanclub, Yo La Tengo e Elliott Smith é o que chama a atenção do ou-
vinte no primeiro momento, é o que eles fazem com essas referências que faz
a audição do disco seguir até o fim e se repetir infinitamente. As características
mais caras ao indie rock da época – a produção lo-fi, a ironia, a obsessão pela
guitarra – poderiam ser reproduzidas facilmente por qualquer outro grupo, mas
o Yuck consegue se sobressair e afirmar sua identidade apesar das referências
aos 90, resgatando aquela fantasmagórica capacidade de evocação emocional
que marca os melhores trabalhos de grupos como Guided By Voices e Buffalo
Tom. Ouvir as melhores faixas do grupo – da sujeira de “Get Away” à fofura de
“Sunday” – é ser transportado diretamente para aquele estado semibeatífico
da adolescência em que nada estava bem, mas também nada estava tão mal,
até porque tudo estava para acontecer e o tempo ainda não havia passado. É o
equivalente sonoro de ser transportado a uma tarde de quarta-feira, matando
aula em algum banco de praça com uma cerveja na mão sob o sol de um outo-
no qualquer. 3POR AMAURI STAMBOROSKI JR.
2YUCK
YUCK
Fat Possum
2011
2GHOSTPOET
PEANUT BUTTER
BLUES AND
MELANCHOLY JAM
Brownswood
Recordings
2011
95
Blubell, nome artístico de Bel Garcia, figura en-
tre as novidades da atual cena musical paulista.
Dona de uma voz meio analasada, mas muito
sensual e doce, ela lançou no começo deste
ano o seu segundo disco, Eu Sou do Tempo Em
Que A Gente Se Telefonava. O título, que já abre
evocando o passado, mantém o tom retrô tanto
nos arranjos como no visual. As canções são ba-
nhadas de melodias de jazz, blues e bossa-nova,
cheias de pianinhos e metais. As letras nonsense
são cantadas em francês, português e inglês e
levam a mente pra longe. A moça assina quase
todas as letras e melodias e conta com os inte-
grantes do grupo de jazz À Deriva para interpre-
tar os arranjos. O álbum coleciona belas canções
como “1,2,3,5”, em que Baby do Brasil (sogra de
Blubell) canta e colore ainda mais a música.
Outra participação muito especial é a de Tulipa
Ruiz em “Good Hearted Woman”, uma das me-
lhores canções do disco. “Mão e Luva” e “Triz”
também merecem atenção pelos arranjos bem
construídos, que se encaixam perfeitamente
com a voz da moça. Um álbum sem pretensões,
muito bem produzido, e que vai na contramão
do que costuma ser feito pelas novas cantoras.
Longe do samba ou da vanguarda paulista, Blu-
bell produz um CD com jeito de noite de cabaré.
3POR MARINA MANTOVANINI
Dois discos e mais de dez anos depois da gru-
denta “Brimful of Asha”, os indo-britânicos do
Cornershop parecem não conseguir fugir do
estigma de one-hit-wonder – mas Cornershop &
The Double O Groove Of, gravado com a can-
tora punjabi Bubbley Kaur, pode ser a garantia
da volta do grupo às pistas de dança em tem-
pos de “global”. Dessa vez nada de guitarrinhas
ou remixes do Fatboy Slim: Double Groove é o
disco mais dançante da música indiana desde a
redescoberta de 10 Ragas To a Disco Beat, de
Charanjit Singh, em 2010. Em vez de proto-acid-
-house, a brincadeira aqui reúne breakbeats de
tabla, ataques de cítara (em “Double Digit” e
“Topknot”) e baixos cavernosos. A voz da es-
treante Kaur (nascida em Nova Déli e criada em
Lancashire) abrilhanta também os momentos
menos balançantes do álbum, como “Double
Decker Eylashes”, que revisita com estilo o amor
da psicodelia sessentista pelo cravo. A melhor
faixa, “The 911 Curry”, é um microcosmo do dis-
co: trilha de Bollywood, sintetizadores analó-
gicos, percussão frenética, um drone de cítara
escondido no fundo de tudo. Econômico, claro,
assobiável, mas ao mesmo tempo soando em
contato direto com as tradições musicais india-
nas, o álbum parece a sua viagem dos sonhos ao
subcontinente. É claro que querer resumir o som
de um país com um bilhão de pessoas em um
único disco é papinho para turista, mas o que
importa em Double Groove é o movimento dos
seus quadris, e dificilmente eles vão querer ficar
parados. 3POR AMAURI STAMBOROSKI JR.
Mais do que seu talento como instrumentista e
compositor, o que sempre me surpreendeu em J
Mascis, nos seus mais de 25 anos de carreira, é a
completa disparidade entre o que ele é capaz de
expressar em suas letras e seu abissal laconismo
pessoal. É quase como se ele guardasse os sen-
timentos que nega revelar ao mundo – aí incluído
seu círculo pessoal – para se expor exclusivamente
em suas músicas. “Several Shades of Why”, primei-
ro disco que o artista assina como solo, leva isso a
um novo limite. Nas 10 faixas do disco, totalmente
acústico a não ser por alguns efeitos fortuitos de
guitarra, é como se Mascis defendesse ao mesmo
tempo uma busca zen pelo seu direito ao silêncio
(“I can’t speak my mind / I can’t even speak / I’m
fine”, ele canta em “Very Nervous and Love”) e
uma abertura completa com seu semelhante (“Can
we be loved / Can we explain / Can we be all these
things and hold the pain?”, em “Not Enough”). Tra-
ta-se de um disco triste e melancólico, como não
poderia deixar de ser no caso de um autor em um
dilema aparentemente insolúvel, mas construído
com beleza comovente. É como se a transparência
cegante de um Robert Smith se harmonizasse ao
vigor de um Neil Young, em um equilíbrio dialético
histórico. Por força de seu talento exímio com o
violão – enriquecido por uma escolha muito feliz
de convidados, que inclui Kurt Vile, Ben Bridwell
(Band of Horses) e a violinista Sophie Trudeau –,
Mascis alcança mais nuances sonoras até do que
um Elliott Smith, ainda que não chegue à profundi-
dade lírica deste. Em um cenário com tantos nova-
tos que já nascem com cara de velhos, é no mínimo
inspirador ver um veterano ousar tanto e alcançar
resultado tão bom. 3POR MATEUS POTUMATI
2BLUBELL
“EU SOU DO TEMPO
EM QUE A GENTE
SE TELEFONAVA”
YB Music
2011
2CORNERSHOP
CORNERSHOP &
THE DOUBLE O
GROOVE OF FEAT.
BUBBLEY KAUR
Ample Play
2011
2J MASCIS
SEVERAL SHADES
OF WHY
Sub Pop
2011
96
Em poucos momentos uma HQ conseguiu unir
poesia e vocação cinematográfica e não soar
como um mínimo denominador de ambas as ar-
tes. Cicatrizes, de David Small, é um momento
privilegiado nesse sentido e, dentro desse subgê-
nero de quadrinhos autobiográficos tão incensa-
dos, uma obra a se observar. O álbum transmite,
com profusão de sugestivas imagens e frases
raras e definitivas, um mundo em eterno estado
de desmoronamento. Nisso, lembra tanto a lite-
ratura de O’ Henry como os filmes de Gus Van
Sant. O drama pessoal vivido por Small não é de
fato tão casual: Edward, o pai do autor, certo de
que poderia curar os problemas respiratórios de
seu filho, o trata com altas doses de radiação, o
que possivelmente causou o seu câncer. Daí ad-
vém toda uma miríade de questões com as quais
nem a família nem o garoto sabem lidar – e nessa
inadequação das partes é onde entra o brilho da
narrativa gráfica, impondo sequências nas quais
a HQ se faz sentir como linguagem e transmite o
mundo interior e exterior do narrador. E em um
mundo de fatos não discutidos, sublimação e anu-
lação de emoções, o autor criou um todo por fim
unificado, amealhando imagens de grande carga
emocional que acabam não por nos levar a uma
catarse redentora, mas à compreensão de atmos-
fera tão hostil. O que seria pesadelo ganha ares de
contos de fada moderno às avessas, realista, gra-
ças ao talento de Small com as imagens, talhado
no universo dos livros infantis, onde fez carreira.
As imagens ternas do quadrinista dão justamente
a noção dessa apreensão mais dilatada e menos
simplista que as crianças de fato têm ao lidar com
situações difíceis. 3POR VELOT WAMBA
+REVIEWS
Não costumo me guiar por releases ou orelhas de livros, mas quando um
álbum como a Fierro Brasil diz que apresentará “o melhor dos quadrinhos
argentinos e brasileiros em 160 páginas” e é isso mesmo que você encon-
tra, faz até com que você releve o proibitivo valor sugerido da publicação.
Semestral, nos faz lembrar do mercado de HQs de meados dos 80, que
permitia aventuras similares nas bancas, a preços convidativos, informan-
do e educando toda uma geração de leitores – provavelmente o público
maior dessa antologia hoje.
Gênios do quadrinho de nossos hermanos como Horacio Altuna, Max Ca-
chimba, Carlos Trillo, El Tomi, Carlos Nine, Copi e Alberto Breccia convi-
vem com novos e fabulosos autores como Lucas Varela, Salvador Sanz,
Gustavo Sala e Kioskerman, por exemplo. Neste primeiro número, o Brasil
está bem representado por Santiago, Fabio Zimbres (este devidamente
apresentado em matéria na mesma revista), Adão Iturrusgarai, Eloar Gua-
zzelli, Gustavo Duarte e Danilo Beyruth – o mais jovem de todos e respon-
sável pelo bom álbum Bando de Dois, publicação da mesma Zarabatana
responsável pela Fierro no Brasil.
Para quem não sabe, a Fierro é uma revista importantíssima no mercado
argentino, tendo circulado de 1984 a 92 e voltado às bancas em 2006. A
se observar certa “tradição” às histórias fantásticas e policiais que deram
ótimos frutos por lá e escasseiam por aqui. Usando o mesmo jargão dos
releases, como o citado no início, o mínimo que você encontra no livro é a
tal da diversão garantida. 3POR VELOT WAMBA
2VÁRIOS AUTORES
FIERRO BRASIL
Zarabatana Books
2011
2CICATRIZES
DAVID SMALL
Barba Negra
2011
1LIVROS
97
+ENDEREÇOS
Agência Möve .
move.art.br
Casa de Costumes .
casadecostumes.com.br
Casa Fora do Eixo .
casa.foradoeixo.org.br
CemPorCento Skate .
cemporcentoskate.uol.com.br
Converse .
converseallstar.com.br
Fotonauta .
fotonauta.com.br
Galeria Emma Thomas .
emmathomas.com.br
Itaú Cultural .
itaucultural.org.br
Jacob Pinheiro Goldberg .
jacobpinheirogoldberg.blogspot.com
Nike Sportswear .
nikesportswear.com.br
Soma .
maissoma.com
Southern Lord Records .
southernlord.com
Vhils .
alexandrefarto.com
Volcom .
volcom.com
98
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99
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