revista reticências n. 05 2015.1

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MODELOS ALTERNATIVOS DE ENSINO Conheca escolas com metodos pedagogicos diferentes EDUCAÇÃO SEXUAL & QUESTÕES DE GÊNERO Ensino e Ressocialização Juvemtude que vive às margens da educação e da sociedade CONHECIMENTOS POPULARES Saberes culinários que passam de geração em geração Estudante africana fala da experiência de viver no Brasil As mudanças na lei em relação ao ensino religioso Relato de abusos sofridos em ambiente escolar

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Revista elaborada pelos alunos da turma de Jornalismo Impresso I, da Universidade Federal do Ceará, como parte de suas atividades avaliativas.

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Page 1: Revista Reticências N. 05 2015.1

MODELOS ALTERNATIVOS DE ENSINO

Conheca escolas com metodos pedagogicos diferentes

EDUCAÇÃO SEXUAL & QUESTÕES DE GÊNERO

Ensino e Ressocialização

Juvemtude que vive às margens da educação e da sociedade

CONHECIMENTOS POPULARESSaberes culinários que passam de geração em geração

Estudante africana fala da experiência de viver no Brasil

As mudanças na lei em relação ao ensino religioso

Relato de abusos sofridos em ambiente escolar

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2015.12 RETICÊNCIAS

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32015.1 RETICÊNCIAS

RETICÊNCIASRevista produzida pelos alunos de Jornalismo Impresso I do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

EXPEDIENTE

TURMA ALAN KITILALINE MEDEIROSANA BEATRIZ LEITEANA RUTE RAMIRESÁVILA SOUZA OLIVEIRACAIO VITORCARLOS EDUARDO FREITASCAROLINA MELOCLARYCE OLIVEIRADANIEL DUARTEDIEGO BARBOSAFILIPE PEREIRAFLÁVIA OLIVEIRA

INGRID OLIVEIRAISABELA ARRAIS IURY FIGUEIREDOJULIA IONELEKAMYLLA KARENLARISSA PEREIRAMARCELO MONTEIROMICHEL MIRONNÍCOLAS PAULINORAFAEL BASTOSTHEYSE VIANATÚLIO CARVALHO

PROFESSORDANIEL DANTAS LEMOS

PROJETO GRÁFICOYURI LEONARDO

CAPAÁVILA SOUZA OLIVEIRA

dIAGRAMAçãOÁVILA SOUZA OLIVEIRAANA BEATRIZ LEITEDANIEL DUARTEFILIPE PEREIRAINGRID OLIVEIRANÍCOLAS PAULINOTHEYSE VIANA

REITORHENRY DE HOLANDA CAMPOS VICE REITORCUSTÓDIO LUÍS SILVA DE ALMEIDA

dIRETOR dOINSTITUTO dE CULTURA E ARTE (ICA)SANDRO THOMAZ GOUVEIA

COORdENAdOR dO CURSO dE JORNALISMORAFAEL RODRIGUES DA COSTA

2015

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2015.14 RETICÊNCIAS

SUMÁRIO

OS "3 IDIOTAS" E SEUS SABERES

REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENALNA PÁTRIA EDUCADORA

TEMPEROS E TRADIÇÕES

REFLEXÕES DE UM CRISTAL TRANSPARENTE

A LUTA LGBT PARA PERMANECERDENTRO DO ÂMBITO EDUCACIONAL

AUTODIDATA: O SABER MOLDADOCOM AS PRÓPRIAS MÃOS

MAR DE GENTE

SABERES ALÉM-FRONTEIRA

EDITORIAL ARTIGO

REPORTAGEM

ENTREVISTA

REPORTAGEM

PERFIL

ENSAIO

PERFIL

6 19

14

26

8

12

21

30

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52015.1 RETICÊNCIAS

HISTÓRIAS A FIOENSAIO34

JUVENTUDE DO LADO DE LÁ:AS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVASE A MAIORIDADE PENAL

REPORTAGEM38

INCLUIR PARA EDUCAR,EDUCAR PARA INCLUIR

REPORTAGEM44

MÉTODOS PEDAGÓGICOSDE AVALIAÇÃO

REPORTAGEM49

O SAGRADO É DE TODASAS RELIGIÕES

ENTREVISTA52

VIDA NA IGREJAENSAIO54

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2015.16 RETICÊNCIAS

Há seis semestres, a disciplina de Jornalismo Impresso I oferece, a mim e aos alunos, um desafio. Trata-se de uma disciplina teórico-prática – e nossa tentativa é dar esse viés, mais prático, ao conteúdo proposto.

Desse modo, surgiu a partir de um diálogo com a turma de 2012.2 a ideia de criarmos uma revista – a Reticências –, na qual a turma poderia experimentar todas as etapas da produção de um veículo impresso, além de realizar a possibilidade de escrever textos em diferentes gêneros do jornalismo.

A partir de então, o desafio mudou de figura: conseguir terminar a edição da Reticências seguindo parâmetros que permitam à UFC sua publicação. Em 2015.1, chegamos novamente diante do dilema e do desafio.

Como regra na produção, apenas o formato. Cabe aos alunos definirem tema e pautas a partir de um filme assistido em sala. Nos últimos semestres, em vez de uma decisão unilateral do professor, a escolha do filme também coube aos alunos – a partir de uma lista com três opções.

A edição atual da revista Reticências traz como tema geral “Saberes”. Sua escolha se deu a partir do lindo e doce filme indiano “3 idiotas”.

O longa discute os modelos de educação possíveis a partir da experiência de três amigos, Rancho, Fahran e Raju, em uma faculdade de engenharia indiana. A faculdade impõe sobre os alunos seu modelo de disputa

Bem mais que três idiotas

EDITORIAL

filme indiano de comédia lançado em 2009, dirigido por Rajukmar Hirani. O longa é uma adaptação do romance “Five Point Someone” de Chetan Bhagat

A película já possui um remake, lançado três anos depois, tão grande o seu sucesso. O original quebrou o recorde indiano de vendas na estreia e guardou a maior bilheteria do primeiro fim de semana em cartaz. É um dos poucos filmes a ostentar a média de 100% de críticas favoráveis em todo o mundo, pelo site Rotten Tomatoes.

“3 idiotas” conta a história de três colegas que superam os desafios da vida pessoal e escolar juntos na faculdade de Engenharia e alcançam muitas conquistas através de sua amizade.

‘3 IdIOTAS’ É UM

PORDaniel Dantas Lemos

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72015.1 RETICÊNCIAS

Fahran, Rancho e Raju em aula na Universidade

Imperial de Engenharia (Imperial College of

Engineering, ICE)

3 IdIOTAS (2009)

e competição. Rancho conduz seus amigos a uma experiência libertadora de aprendizagem. No fim, “tudo está bem”.

Mas “3 idiotas” é, acima de tudo, um afetuoso filme sobre amizade e amor, que também emergem como valores fundamentais para o ensino-aprendizagem. Em uma sociedade milenar como a indiana, os saberes mais antigos, aliados à inovação e à cooperação, são enfatizados ao longo de toda película.

É daí que partiram os estudantes para a escolha do tema e das pautas deste número de Reticências. E você, como eu, vai se emocionar com histórias de superação de marcas e traumas pessoais, com experiências de auto-aprendizagem, com cada um dos belos ensaios fotográficos, com os relatos de aprendizado em comunidades da periferia, espaços de luta e até mesmo dentro dos “aconchegantes” ônibus urbanos da cidade de Fortaleza.

Esta revista resulta da atividade prática da turma do 4º semestre do curso de Jornalismo da UFC. Uma turma que, com todo o seu afeto, carinho e amizade, me propiciou muito prazer em nossa experiência de ensino e aprendizagem. Um turma que me ensinou muito mais do que eu jamais poderia ser capaz de ensinar.

Bem mais que três idiotas, levo no coração Ranchos, Fahrans e Rajus.

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2015.18 RETICÊNCIAS

REPORTAGEM

PORAlan KitilAline MedeirosIsabela Arrais MedeirosIury FigueiredoTúlio Carvalho

FOTOIsabela Arrais Medeiros A luta LGBT para

permanecer dentro do âmbito educacional

O sistema educacional brasileiro, tanto público quanto privado, enfrenta diversos problemas

de assistência a estudantes LGBT.

O sistema educacional bra-sileiro vigente já não con-

templa mais os interesses de uma parcela significativa daqueles que compõe esse setor. Segundo pes-quisa realizada pelo Ibope para a Fundação Victor Civita, 94% dos professores alegam que a dificul-dade de aprendizagem dos alunos são advindas da falta de assistên-cia e acompanhamento familiar; 89% citam o desinteresse e a falta de esforço do aluno; 84% dizem ser decorrente do meio em que o aluno vive. Apenas 7% dos profes-sores acreditam que parte dos alu-nos entrará em uma universidade. O sistema educacional público, seja na educação supe-rior ou na escola inicial, enfrenta diversos problemas acerca da

assistência e permanência dos estudantes. Ao tratar-se de es-tudantes LGBTs, esses problemas aumentam. Estas pessoas sofrem diariamente com preconceitos e discriminações pela sociedade em diferentes fases da vida. Durante a vida estudantil não é diferente. Por estarem inseridas na socie-dade, as escolas e as universidades podem se tornar ambientes que perpetuam opressões e outros preconceitos. O sistema e as de-mais pessoas que compõem esses ambientes não estão preparados para entender, conviver e aux-iliar pessoas com outras identi-dades de gênero e sexualidade. Diferenças entre o sistema público e o sistema privado de en-sino podem ser percebidas. “Eu não posso dizer a razão, mas eu

digo que em instituições privadas a expressão LGBT não acontece ou acontece muito menos do que na pública. Inclusive eu já trabal-hei em colégios regulares, particu-lares, e eu noto que aqueles que são gays são mais discretos. As razões eu não posso dizer porque eu não estou no mundo deles. Mas foi isso que eu notei”, afirmou o professor Otávio Martins, que tra-balha em uma instituição privada e é ex-aluno de escola pública. As dificuldades também são sentidas quando se passa da escola para a universidade, por exemplo. “Por incrível que pareça, na faculdade foi mais difícil que na escola. Na escola, toda a minha trajetória escolar foi acompanhada por pessoas que cresceram junto comigo, que pas-saram vários anos juntos comigo. Quando eu cheguei na universi-dade as pessoas não sabiam da

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92015.1 RETICÊNCIAS

minha trajetória, então não tinha como elas terem a mesma relação de respeito. Então as pessoas achavam que eu era um gay andrógino, que eu era um gay com traços femini-nos muito fortes, que mais parecia uma mulher, mas que se vestia como um menino”, declarou a estudante de Letras da Universidade Federal do Ceará, Sílvia Cavalleire. Sílvia é transexual e foi candidata a depu-tada estadual nas últimas eleições. Segundo o escritor Pedro Sammarco, o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais, sendo a expectativa de vida des-sas de 35 anos. Sammarco é autor do livro “Travestis Envelhecem?”, que aborda a temática. Além disso, 90% desse grupo se prostitui de acordo com a Antra (Associação Na-cional de Travestis e Transexuais). Isso porque muitas são expulsas de casa e não conseguem termi-

nar os estudos. Além disso, sofrem com o fato de, a príncipio, não se compreenderem. Isso se deve pelo julgamento feito pela sociedade.

“A nossa sociedade simples-mente faz de conta que não existe, que não interessa, da mesma forma que a violência contra a mulher é ba-nalizada, e assim, trinta anos é um absurdo. É uma vida de trinta anos que você não teve oportunidade de nada; trinta anos e você não teve nem seu nome garantido, você morre sem nenhum direito, muitas vezes morre como indigente, a família não vai pegar o corpo. Mas é esse contexto que a sociedade constrói. Ao mesmo tempo em que a pessoa não conseg-ue estudar lá na infância, ela vai ser alvejada na rua e morta como uma indigente, porque ela nunca teve nen-huma oportunidade”, afirma Lú Sou-sa, assistente social e mulher trans.

O período es-colar e universitário é extremamente marcante para a vida de todos, mas nem sempre guarda boas lembranças. Para Lú Sousa, foi a fase mais difícil de ser enfren-tada em sua vida. “A escola, com certeza, foram os piores anos. Se você é gorda você sofre precon-ceito, se você é tímido você sofre preconceito, se você é negro você sofre preconceito. E no primeiromomento nenhum transexual vai so-frer um preconceito transfóbico, vai sofrer uma homofobia. Porque na es-cola as pessoas não sabem o que é transgênero, então primeiro precon-ceito é sempre oriundo do precon-ceito homofóbico. Sofri muito pre-conceito por parte dos professores. Os professores são os maiores re-produtores da heteronormatividade e do binarismo, porque eles reafir-mam isso em sala de aula. A escola não tem espaço para o diferente”.

Se você é gorda você sofre preconceito, se você é tímido você

sofre preconceito, se você é negro você

sofre preconceito. E no primeiro momento um transexual vai sofrer

uma homofobia.

Reconhecer a pessoa trans é reconhecer a cidadania

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2015.110 RETICÊNCIAS

Questões que podem parecer banais, como o simples fato de utilizar os banheiros nas escolas e nas universidades, passam a ser um desafio para pessoas transexuais. “O maior conflito foi quando eu fui usar o banheiro feminino. Era dia do meu aniversário de 18 anos, eu escolhi ir travestida para a uni-versidade por que aquilo tinha muito significado pra mim. Eu estava atingindo a maioridade e poderia expressar o desejo de ser quem eu era, que era ser uma mulher. Só que algumas meninas da faculdade se sentiram inco-modadas com a minha presença quando eu adentrei no ban-heiro”, conta Sílvia Cavalleire. O sistema educacional não parece ter abertura para as discussões LGBTs. Otávio Mar-tins, que afirma ter estudado em uma escola que possuía um horário reservado para a au-las de educação sexual, identi-fica falhas nesses estudos: “A questão é que só foi exposta apenas a relação heterossexual. Só era visto reprodução, relação sexual entre homem e mulher... Eu tive que descobrir a homo-ssexualidade sozinho”, diz o professor. Na escola em que tra-balha, Martins afirma que “pon-tualmente, em algumas páginas do material didático que corre-sponde ao nível intermediário para avançado, que já são idades entre treze anos e idade adul-ta, existem algumas aborda-gens, mas coisas superficiais.”

Assim como nos meios educacionais, os ambientes de trabalho são intimidadores e re-pressores. Segundo um levan-tamento feito pela consultoria Santo Caos, 40% dos trabal-hadores LGBTs já sofreram al-gum tipo de preconceito dentro do espaço de trabalho. Dentre esses profissionais estão os da educação. Ou seja, não só os alunos sofrem por sua orien-tação sexual ou identidade de

gênero, mas também os profes-sores e profissionais da área de educação. O relato de Otávio deixa claro que constrangimen-tos acontecem até na relação entre os próprios educadores:

“O que aconteceu exata-mente foi que eu estava numa mesa, na sala dos professores, contanto algumas coisas sobre mim, sobre gostos musicais e tudo mais, e uma pessoa que es-tava presente lá e que não tem vínculo social comigo a não ser esse do trabalho comentou com outra pessoa dentro do mesmo ambiente. E, devido o meu com-portamento ali naquele momento existia alguma coisa que ela es-taria confirmando naquela hora. Ela cutucou uma pessoa e disse: ‘olha, ta vendo aquilo que eu disse? Pois é, não tem como ne-gar.’ Então, através disso, ela es-tava insinuando que eu sou homo-ssexual sendo que ela não tinha perguntado diretamente a mim.”

Uma criança de cinco anos já é vítima de pre-conceito dentro de uma escola se ela quiser brin-car com um brinquedo que é do sexo feminino

e o oposto também.

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Otávio, que afirma não esconder de ninguém a sua sexu-alidade, diz ter se sentido descon-fortável diante dessa situação pelo fato das pessoas estarem dis-cutindo a sua identificação sexual sem antes perguntar a ele. “Eu não tenho esse tipo de problema, quando as pessoas perguntam para mim eu falo.” diz o educador.

“Eu sou educador? Sou. Sou uma pessoa bilíngue? Sou. Sou respeitado no lugar onde eu trabalho? Sou. Mas eu também sou gay. E eu usei até um con-traste, eu usei ‘mas’, não é? Eu teria que adicionar: E sou gay também. Porque ser gay não é algo que contraste com todas as habili-dades e qualidades que eu tenho na vida. A minha ideia é essa”, diz Otávio. E quando questionado sobre como melhorar a educação para o público LGBT mesmo di-

ante de tantas dificuldades, ele defende: “A minha ideia é: se você não pode falar com todas as letras, aja como você age em qualquer lugar. Não mude a sua atitude para que as pessoas que tiverem essa percepção e tiverem esse discernimento de identificar através de trejeitos ou aspectos culturais aprendam a respeitar vendo isso tudo. Vendo que a pes-soa além de qualquer outro fator você está ali cumprindo o seu papel independente de qualquer preferência ou orientação.” Para Lú, a solução está na formação dos educadores. “Hoje isso é falado em sala de aula e as pessoas não fazem nada. Isso é compreendido enquanto uma con-dição humana e você não vê nin-guém fazendo nada. O que pode-ria ser feito? Se a escola formasse professores que compreendessem

isso desde o pré, porque não é pre-ciso você estar em um processo de hormonização pra você sof-rer preconceito, uma criança de cinco anos já é vítima de precon-ceito dentro de uma escola se ela quiser brincar com um brinquedo que é do sexo feminino e o oposto também. Então, o maior desafio é a formação do professor, se ele quer realmente estar formado, se ele quer realmente entender. E aí vamos ter n elos, é a formação, é a questão familiar, são os princí-pios desse professor, porque, muitas vezes, ele vai colocar o que ele pensa diante do outro, o que ele pensa, ele leva pra sala de aula e reproduz isso”, conclui.

Não mude a sua atitude para que as

pessoas que tiverem essa percepção e

tiverem esse discernimento de

identificar através de trejeitos ou aspectos

culturais aprendam a respeitar vendo

isso tudo.

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POR Alan KitilCaio VitorDaniel DuarteFlávia Oliveira Rafael BastosTúlio Carvalho

PERFIL

Tudo começou quando tra-balhava produzindo arte ser-igráfica em camisetas. Junto

com uma amiga, decidiu se lançar no mundo do couro para aprender os primeiros passos da confecção pela internet, em vídeos e artigos. A amiga desistiu, mas Panassol continuou.

A internet é essencial para seus tra-balhos. Não apenas onde começou, mas é, ainda hoje, o principal meio de divulgação de sua arte e seus produtos. O sucesso de Diego é exemplo de que o impulso em-preendedor e o esforço artístico são poderosos aliados. O mercado, como conta Panassol, deu espaço para que ele descobrisse seu lugar profissional e a expressão como artista. Torna-se um ciclo de con-hecer o consumidor, o ambiente e a si mesmo.

Diego, quais são suas principais especialidades e como você con-seguiu desenvolvê-las?

Ao longo do caminho, fui estu-dando e construindo minha marca. Tenho a preocupação estética e física das peças, mas também ten-ho a preocupação com o processo da gestão e da comunicação.

AutodidataDiego Panassol, 24, já passou pela universidade,

mas seu trabalho, formação e experiência técnica devem muito pouco à academia, segundo o próprio. Diego é designer autodidata e ganhou destaque no cenário cearense e brasileiro com a confecção de artigos de couro, especialmente sapatos e bolsas

com traços e características regionais.

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Autodidata

Na labuta você aprende novas técnicas, desenvolve ferramen-tas, aprende também sobre valor de mercado, valor de produtos e custo de mão de obra. Já sobre comunicação, aprendi a exercitá-la e amarrar os pontos de diálogo e transferência de informação.

Como é seu processo de produção e quem é seu público alvo?

É preciso preparar modelagens em uma fôrma e transferi-las para o corte no couro, costurar o cabedal do sapato e depois pas-sar para a parte de colar a peça. A produção das peças é variável, há dias que chego a concluir 20 pares, por isso o trabalho chega ao limite da exaustão. Sobre o público, no geral, direciono minha produção para o público feminino, entre 20 e 40 anos

Como a internet faz parte do processo de aprendizado auto-didata e do aprimoramento do seu trabalho?

A internet foi o começo do meu aprendizado, sem essa plataforma talvez eu não teria começado. Ela faz tanto efeito na minha produção que, por ora, é meu único canal de divulgação e de vendas. O conhecimento está aí, dando sopa no universo, o que resta é a gente correr atrás e pegar. Quais as referências artísti-cas que te ajudam a compor seu trabalho? Eles trilharam caminhos parecidos?

O ato de criar, como diria Her-chcovitch, é expor ao mundo um sentimento. Daí a criação vem da tua bagagem cultural: dos liv-ros, dos filmes, cores, perfumes. Eu venho das artes e isso me in-fluencia bastante. Tive também um apreço enorme por aspectos da arte, como o desenvolvimen-to e uso de texturas e de como as coisas sob função de curadoria e experiência agregam valores in-críveis. O ser por si só é criativo, o que diferencia de fato a criação é o próprio criador.

O ser por si só é criativo, o que

diferencia de fato a criação é o próprio criador.

O que você acha do processo acadêmico tradicional?Eu não consigo seguir esse tradicionalismo de ir para a fac-uldade todo dia. Nas Universi-dades, o ensino ainda segue o método tradicional: um media-dor vomitando informações de alguns teóricos sobre os alunos. Se vê pouco debate, pouco ques-tionamento, pouca construção, já passei por isso em dois anos de curso na Unifor. Mas eu tam-bém sei que o ensino superior público tem uma pegada mais teórica e aprofundada, diferente do particular.

Você ainda tem planos de fazer alguma universidade?Eu abandonei Publicidade e Propaganda e fui estudar Mar-keting. Esse semestre tive que trancar os estudos por conta da produção, mas pretendo voltar ainda esse ano. Queria ter um contato mais técnico na área calçadista mesmo. Existe um curso pelo Senai SP, em Franca. Tem outro curso em Milão que andei dando uma olhada, mas também existe na França, Nova Iorque. Lá fora, as pessoas en-tendem moda como investimen-to pessoal e mantém a cultura de se pensar, debater e produzir moda com qualidade e coerên-cia.

O que você diria para as pes-soas que pretendem seguir o mesmo caminho de aprendi-zado?

Seguir o próprio caminho é mui-to difícil. Pensar com a própria cabeça é o mais corajoso dos atos. Não sei se consigo passar uma receita ou uma lista, pois tudo pode ser extremamente variável. Porém, se você deixar de olhar para as dificuldades de maneira negativa, você poderá ver que cada uma delas podem se transformar em plataformas de aprendizado. Tudo é custoso, sim, mas nada impossível, mas apenas talento não é suficiente.

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2015.114 RETICÊNCIAS

CRÔNICA

TEXTONome Sobrenome

FOTONome Sobrenome

Temperos e

Tradições

REPORTAGEM

PORAna Beatriz Leite Carlos Eduardo FreitasCarolina MeloIngrid OliveiraMarcelo Monteiro

FOTOSCarlos Eduardo Freitas

Em várias famílias do Ceará, é comum encontrar uma receita de um bolo, uma carne, ou qualquer outro prato que é repassado de geração à geração.

Esses pratos costumam ser a estrela dos banquetes em família, em que alguns conseguem tanta fama que ultrapassam os limites sanguíneos e viram um sucesso regional. Isso foi o que aconteceu com o Seu Manuel Martins, mais conhecido como “Seu Manuel do Quebra-Queixo”, famoso em toda a cidade de Jaguaruana. Ele conta que ficou conhecido na região por causa do doce, receita que aprendeu ainda jovem. “Eu era solteiro e trabalhava com um senhor aqui, o Xandoca, ele fazia esse quebra-queixo e não ensinava a ninguém, mas eu lutando com ele, consegui aprender”, explica.

Em um momento de necessidade financeira, Seu Manuel decidiu utilizar a iguaria para conseguir dinheiro. “Quando fez um ano que casei, eu estava desempregado, sem nada. Então me lembrei do doce, consegui arranjar uns cocos e açúcar e fiz o quebra-queixo. Foi o primeiro que eu fiz, isso em 1962, há 53 anos”, revela o doceiro. O sucesso foi tanto que ele não deixou mais de fazer a receita e continuou a vendê-la nas ruas da cidade, nas escolas e até a domicílio, garantindo uma freguesia fiel que começou a buscar o doce até na sua casa. “Eu faço duas vezes na semana”, diz Manuel. “São dez quilos de açúcar, cinco de cada vez que eu faço. Eu coloco aqui, e o povo já sabe, vem comprar aqui mesmo”, conta.

Seu Manuel ainda garante que não existe quebra-queixo mais gostoso que o dele em todo o estado do Ceará. “Uma vez, em Fortaleza, eu conheci um senhor

O sabor do momento é acompanhar os festivais de comida, visitar food trucks e avaliar as novas tendências da comida gourmet. Mas, apesar disso, a tradição na alimentação ainda

continua viva nos pratos cearenses.

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152015.1 RETICÊNCIAS

que vendia quebra-queixo da 13 de Maio para a Praça da Sé. O quebra-queixo dele era muito alto e muito tostado, duro. Em Aracati, eu conheci um que fazia, mas era muito mole.”, relembra o jaguaruanense.

Com uma receita simples que leva apenas quatro ingredientes, Seu Manuel conquistou o paladar dos cearenses. Açúcar, coco ralado, suco de limão e uma pitadinha de tempero de erva doce completam o manjar mais disputado de Jaguaruana, desejo até de mulheres grávidas. “Quem mais perturba por esse quebra-queixo é mãe gestante. Já chegou aqui gente dez horas da noite pedindo pra eu vender”, conta o doceiro.

Mesmo depois de todos esses anos, Seu Manuel continua a produzir o doce, apesar da desaprovação dos filhos, que zelam pela sua saúde, mas já aderiram à tradição da família. “Agora com a minha idade, meus meninos não querem mais que eu faça, porque é meio trabalhoso, mas eu gosto de fazer. O meu menino faz e faz bem. Quando eu estava doente, há uns dias atrás, meu filho disse que viria aqui raspar os cocos e ajudar. Ele mesmo fez tudo completo”, relata orgulhoso.

O quebra-queixo virou tradição não

só na família de Seu Manuel, mas também em toda a região da cidade de Jaguaruana. O prato é um exemplo de saber culinário que é transmitido através de gerações. E se engana quem pensa que a culinária está restrita somente ao lugar da cozinha e à mesa onde a comida é servida. A antropóloga Peregrina Capelo, professora aposentada da Universidade Federal do Ceará (UFC), explica que “a forma como a gente come, a forma como a gente prepara os alimentos, a forma como a gente cria os animais, abate esses animais, os vegetais, as frutas e os legumes, tem tudo a ver com a cultura em que as pessoas estão imersas”.

Saberes e sabores

De acordo com a antropóloga, cultura é toda forma de pensar, agir e sentir de um povo, e a gastronomia não poderia ser deixada de fora. “O que se come está diretamente relacionado com a história e as condições em que um povo está inserido e, mesmo com as mudanças nos contextos sociais e econômicos, os hábitos familiares continuam a ser reproduzidos através das gerações”, explica. Ela diz que “os filhos apreendem o saber de seus pais”, que, por sua vez, o apreenderam de seus avós e assim sucessivamente, surgindo as tradições familiares, que muitas vezes ultrapassam esse âmbito e se tornam tradições locais.

A culinária que hoje conhecemos como típica do Nordeste foi extremamente influenciada pelos portugueses. Segundo Peregrina, eles “fizeram uma verdadeira revolução agrícola no mundo. Trouxeram plantas, animais, legumes e grãos”. Ela complementa que “a criação de gado também não era costume dos indígenas, mas sim algo que foi trazido pelos europeus e que se tornou de extrema importância na formação do nosso paladar”. O gado era um de nossos produtos mais importantes: funcionou como fator de ocupação, alimentação e até religioso, como é o caso do bumba meu boi, um folguedo típico da região Nordeste do Brasil.

De acordo com Peregrina, essa valorização do

A principal característica do doce é a sua difícil mastigação

QUEBRA-QUEIXO

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2015.116 RETICÊNCIAS

A antropóloga aponta essa mudança nos hábitos alimentares

dos brasileiros como “resultado da

globalização”.

animal não é à toa, afinal, “dele se aproveita tudo: a carne, os chifres, o couro, os ossos”, entre outras partes. Surgiu, portanto, toda uma arte alimentícia a partir das diferentes carnes do boi, que foi combinada com as diversas outras culinárias que já existiam aqui. “Elas vieram se juntando e formaram todo esse caldo cultural, que tem toda uma superestrutura econômica de produzir juntamente com o poder”, comenta a pesquisadora ao relacionar as culturas portuguesa, indígena e africana.

Além da criação do gado, também herdamos dos portugueses técnicas de conservação de alimentos através da gordura, da farinha e do açúcar. A professora cita o exemplo de conservação do queijo, alimento extremamente gorduroso, através da farinha: “Os queijos eram guardados o ano inteiro dentro de caixas de farinha para manter o frescor deles. Todas as casas tinham essas caixas enormes cheias de farinha, que era a farinha que a família fazia. Porque dentro da farinha o queijo respirava”.

Os fazeres herdados dos portugueses, porém, foram reinventados e se transformaram em algo típico da região Norte e Nordeste do Brasil. O hábito de usar farinha é até hoje mantido por diversas famílias, como é o caso da família da antropóloga. “Quando eu chego na casa de uma filha minha, por exemplo, eu encontro farinha de milho pra fazer o pão-de-milho. Todos os meus filhos são loucos por farinha” revela. Da farinha de mandioca, típica da região Nordeste, derivou a tapioca, e as farinhadas, então, ganharam um propósito diferente.

A vendedora Vanuza dos Santos conta que, ao fim das farinhadas em sua família, a tapioca maior era prêmio para a filha que fizesse o melhor trabalho. “A gente arrancava a mandioca, raspava e, pra fazer a tapioca, éramos nós, as mulheres, que espremíamos a massa para fazer a goma. A nossa mãe até brincava que, quem espremesse mais, ganhava a tapioca maior, que tinha no final das farinhadas”.

Os saberes culinários eram passados de mãe para filha, conta Vanuza. “A gente tinha que fazer mesmo, pois as mães da gente saíam pras casas de farinha, pra roça, e a gente tinha que fazer comida. A mãe ensinava pra mais velha e a mais velha ia ensinando pras outras filhas”, lembra. A partir da alimentação, necessidade básica do ser humano, as tradições culinárias se instauram e, mesmo com sua simplicidade, se propagam através das gerações. Como qualquer forma de cultura, porém, a gastronomia é fluida e as formas de cozinhar mudam de acordo com a época. “Não faço do jeito que a minha mãe fazia, hoje não tem mais como fazer”, revela a vendedora.

Pratos do dia

A antropóloga fica animada ao explicar

sobre práticas alimentares.

PEREGRINA

Vivemos em uma era de espetacularização da alimentação. Reality shows de comida,Food Trucks, gourmetização, etc. É preciso que o alimento posto no prato tenha uma boa apresentação para que seja fácil fotografá-lo e compartilhar o resultado nas redes sociais. Conhecido por fotos mais trabalhadas, o Instagram pode oferecer uma galeria de pratos decorados, onde dificilmente são vistas fotos do nosso velho feijão com arroz. A antropóloga Peregrina aponta essa mudança nos hábitos alimentares dos brasileiros como “resultado da globalização e da urbanização”;

Ao relembrar o passado, ela afirma que no mercado dos Pinhões “tudo era fresco”. “Hoje você entra nesses supermercados, cheios de coisa congelada: os hambúrgueres, os kibes, as carnes, os frangos”, lamenta. Peregrina explica que isso ocorre “porque o capital hoje, para se reproduzir, precisa de pressa”, e complementa que a relação vendedor-freguês é “mais difícil”. “Você não tem mais a relação direta com seu freguês, com quem você compra a carne a vida inteira, com quem você compra milho, feijão... Hoje se encontra tudo isso no supermercado”, diz.

A professora cita ainda o fenômeno dos fast food,cujo próprio nome que se dá a essas redes já faz referência à rapidez vital do capitalismo. “Essas empresas que estão em toda parte proporcionam alternativas ao paladar das pessoas, que, por não possuírem tempo suficiente para se alimentar, deixam de lado comidas típicas dos seus lugares de origem e dão espaço a esses produtos”, explica. Por causa disso, segundo Peregrina, alimentos como carne do sol e a coalhada “as pessoas não têm mais consumido tanto assim”. “No máximo, a gente come tapioca, que agora tem em tudo quanto é lugar, até em lugares chiques. Tapioca, que é tupi-guarani!”, explica a antropóloga relatando o processo de gourmetização que atinge até os alimentos tradicionais e os reinventa a partir de uma nova fórmula de venda.

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a criminalidade e as drogas e deixando a escola de lado. Para o conselho, reprovar Douglas só o desistimularia mais e o faria desistir da escola, se envolvendo cada vez mais na criminalidade.

Ainda, nem tudo é negativo na vida de Douglas, este se envolve com projetos culturais de música, sobretudo de raiz africana, para os professores isso pode ser sua salvação. O aluno também fala de seus sonhos, como entrar no colégio do exército, garantindo, assim, uma melhora para sua vida.

A terceira escola já mostra uma realidade melhor. Localizada em Itaquaquecetuba (SP), os alunos fazem parte de uma classe média/baixa. No entanto, ainda se apresentam problemas bem comuns em outras escolas públicas, como falta de professores, falta de interesses os alunos. Além disso, percebe-se a dificuldade financeira, como na tentativa de montar um cinema para os alunos, que acaba não dando certo. Uma das partes mais marcantes e mais corretas dessa parte é a frase: “Tá todo mundo cansado de ouvir os problemas da educação, mas ninguém faz nada.”

O Colégio Santa Cruz é, com certeza, o mais diferente de todos. Colégio particular localizado no bairro Alto de Pinheiros (SP) traz uma estrutura de primeiro mundo e alunos da elite paulista. Nesta parte, irá mostra mais a vida pessoal dos alunos, suas concepções de mundo, relacionamentos amorosos, estudos, relações com os pais, mostrando dificuldades cotidianas de adolescentes como que universidade escolher, a solidão, problemas psicossomáticos, entre outros.

A última é, de fato, a mais problemática. A Escola Levi Carneiro (SP) é pública, porém, além dos problemas estruturais presentes nas escolas do Brasil, a criminalidade nesta é um fator marcante. No filme, relata-se a morte de uma aluna, causada por uma briga. Isto, segundo os professores, tem relação direta com os pais.

Dessa forma, o filme nos faz imergir no cotidiano das mais diferentes escolas do Brasil. Trouxe as mais diversas experiências e, através da história contado pelos próprios alunos e professores, traz a reflexão de para onde segue a educação brsileira.

PORAline Medeiros

RESENHA

O documentário Pro Dia Nascer Feliz (89 min) do diretor João Jardim foi lançado em 2006 e fala da

já tão debatida educação brasileira. No entanto, o filme traz uma vivência tanto da parte dos professores quanto dos próprios alunos que compartilham suas histórias de dentro e fora da sala de aula.

João Jardim viaja por escolas do nordeste ao sudeste mostrando as dificuldades particulares de cada uma, passando pela falta de estrutura – como falta de higiene básica e salas de aulas precárias –, pelo desgaste dos professores, que tem que lidar com alunos trabalhosos e um corpo docente insuficiente, e pela falta de interesses dos alunos, dos quais muitos se envolvem com a criminalidade, não respeitam os professores ou sofrem com a falta de estímulos para continuar a estudar.

A primeira, com certeza a mais precária do filme, é a Escola Dias Lima localizada no interior de Pernambuco, em Manari. A baixa qualidade da educação é tão gritante que faltam recursos didáticos, o corpo docente, embora muito esforçado,

não tem uma formação acadêmica necessária para suprir a demanda da educação para os próprios vestibulares. Estruturalmente, falta, na escola, condições básicas de saúde, como banheiros de qualidade, papel higiênico, pias para lavar as mãos. Isto se dá por conta da falta de verba repassada para a manutenção desta. A dificuldade para os alunos se inicia na hora de ir para a escola, que, por ser longe, necessita de um ônibus que os levem até o local, este muita vezes em péssimas condições para a segurança dos alunos. Durante o documentário, fala-se que Valéria – a estudante que estava sendo acompanhada pela equipe –, em duas semanas, só foi para a escola três vezes.

O Colégio Estadual Guadalajara, localizado em Duque de Caxias (RJ) é a segunda escola a ser retratada. Nesta é importante destacar a história de Douglas, um aluno prestes a entrar no ensino médio. Com o ensino fundamental terminando, ele não possui nota suficiente para passar para o Ensino Médio, a partir daí entra o conselho estudantil. Douglas estava começando a se envolver com

Pro Dia Nascer Feliz: A imersão nas escolas brasileiras

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RESENHA

PORRafael Bastos

O italiano Pier Paolo Pasolini notabilizou-se no cenário cinemato-gráfico europeu dos anos 60 e 70 tan-to pela sua ousada narrativa poética (principalmente em suas adaptações para textos clássicos de tragédias gre-gas, em que os planos sucedem-se em belas sequências abstratas e oníricas) quanto por sua ácida crítica e sátira aos costumes da sociedade burguesa e à rigidez clerical que rege até hoje as prerrogativas morais da sociedade europeia.

Notório comunista, apesar de crí-tico do reacionarismo marxista e das repúblicas socialistas totalitárias dos anos da União Soviética, e homosse-xual declarado, Pasolini legou em sua filmografia obras de profundo caráter político e subversivo, com reflexões acerca da liberdade sexual, regimes totalitários e costumes tradicionais da vida civil burguesa.

“Comício de Amor” (1965) é um documentário em que Pasolini atra-vessa a Itália entrevistando do mais simplório italiano a representantes da elite acadêmica italiana sobre coisas relativas a sexualidade, denunciando dessa maneira o extremo pudor mo-ral dominante na sociedade europeia. Clássicos políticos como “Pocilga” (1969) e “Saló ou os 120 dias de So-doma” (1975) trazem profundas refle-xões sobre a relação do capital com regimes totalitários e a desumaniza-ção generalizada que a radicalização desses conceitos pode gerar.

O Cinema de Pier Paolo Pasolini

Pasolini ainda adaptou para o ci-nema renomadas tragédias gregas, como “Medéia” (1969) e “Édipo Rei” (1967), que, junto com o clássico “Te-orema” (1968), formam o início do ápice estético da carreira do cineas-ta, em que o rigor da composição do plano sublima-se numa montagem rítmica desenhando-se em uma es-trutura narrativa poética e erótica so-bre a natureza humana. O Diretor ita-liano soube como ninguém captar o confronto entre os instintos mais pri-mitivos e sexuais do ser humano con-tra a prisão e barreiras dos códigos morais burgueses e clericais. Apesar de “ateu”, a adaptação do diretor para o evangelho de São Matheus é uma das principais obras religiosas de to-dos os tempos, reconhecido inclusive pela Igreja Católica. Suas obras são ambientadas nas mais diversas fases do decurso da humanidade.

No início dos anos 70, com o lan-çamento dos três filmes da renomada “Trilogia da Vida”, Pasolini consegue com primor diluir sua madura retóri-ca política na sua estética poética. A trilogia – dividida em “Decameron “(1971), “Os Contos de Cantebur-ry” (1972) e “As Mil e Uma Noites “(1974) - consiste em adaptações de clássicos da literatura erótica, terreno fértil para que Pasolini desenvolva seu pensamento e ideal cinematográ-fico ao limite de suas possibilidades.

As três obras consistem em narra-tivas anedóticas centradas em classes populares pobres e marginalizadas. Os contos notabilizam-se por seu erotismo e humor satírico, distribuí-dos em histórias de traição, orgias e relações sexuais proibidas. Pasolini

abre o painel de uma sociedade anar-quizada, pautada pela pureza das re-lações sexuais e do amor a todo custo, resistindo ao pudor dos dogmas reli-giosos e preconceitos cristalizados nas hierarquias sociais. Genitálias e cenas de sexo são humanizadas e filmadas em primeiro plano. Para o diretor italiano, não existem tabus e barreiras, apenas a poética do corpo humano entregue aos seus instintos mais primitivos.

Em “As Mil e Uma Noites”, Pa-solini adapta à sua maneira a “estéti-ca do terceiro mundo”, desenvolvida pelo cineasta brasileiro Glauber Ro-cha, em que as nuances e a essên-cia dos países subdesenvolvidos são captadas pela valorização do feio, da sujeira, do indivíduo marginalizado e corrompido pelo caos social. Porém, diferente de Glauber, Pasolini ideali-za o subdesenvolvimento, insuflando o belo e o poético em pessoas que confrontam o ideal de beleza clássica (os personagens são desnutridos, ban-guelos e pobres), dos recantos mais pobres e castigados do mundo árabe. A narrativa é centrada no amor im-possível de dois jovens, que precisam superar as mais diversas barreiras para concretizarem sua união (ana-logias à desumanização das relações capitalistas são claras).

Para o diretor italiano, a sexuali-dade ganha contornos espirituais e a verdadeira liberdade e autoafirmação das classes está na revolução sexual e do amor livre. A exortação ao primi-tivismo do sexo e do amor é o nó que une a humanidade em meio a rigidez das diferenças de classes.

Libertação do Pudor e do Autoritarismo Moral

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ARTIGO

PORIury Figueiredo

A Pátria Educadora não quer mais educar. Como uma mãe que nega seus filhos por suas mal criações sem assumir que a culpa

de tudo isso é dela. E pensar que dizemos, todos os dias, que esta pátria amada é mãe gentil.

Não há gentileza em negligenciar necessidades bá-sicas às crianças de nossa terra. E se tem uma coisa que nosso hino nacional tem razão é que esses filhos não fo-gem à luta. São maltratados diariamente por um sistema opressor, desde que se entendem por gente. Então eles lutam. Lutam com meios que possuem, pelas formas que aprenderam. O nosso estado, os nossos representantes políticos, a nossa elite, ensinaram a violência para estas crianças, e quando elas mostram o mal que aprenderam, todos estes citados anteriormente ficam surpresos.

Privilegiados em seus carros de luxo com suas rou-pas caríssimas, eles gritam do alto de seus prédios que não há mais solução para aqueles jovens. Que eles entra-ram no crime porque querem e que já tem consciência do que fazem. Mais uma vez, o conservadorismo aponta para a vítima de seus males e coloca a culpa nela.

Lembro de propagandas da minha infância que di-ziam que o lugar de criança e adolescente não era na rua, ou trabalhando, e sim na escola. Por que motivo estamos aqui, dez anos depois, cogitando a hipótese de colocar estes indivíduos que ainda estão em formação em celas sujas e em condições de vida muito abaixo do que se

Redução da maioridade penal na Pátria Educadora

pode chamar de precário?E vale lembrar que as nossas leis já possuem um sis-

tema de privação de liberdade para menores infratores, e que, em tese, educa esses jovens para tirá-los da cri-minalidade. Não seria mais importante concentrar estes esforços em tornar funcional estes centros de ressocia-lização? Não seria essa a saída mais inteligente e com maior capacidade de resultado prático?

Mas não é o que a elite conservadora pensa. Isso porque não interessa tanto a eles pensar e discutir tudo isso. Os filhos da elite estão protegidos pelo dinheiro de seus familiares e nunca são punidos (por exemplo, Thor Batista, filho do empresário Eike Batista). Não são os jovens dos prédios de bairros nobres que serão atingidos pela mudança dessas leis. São as crianças de periferia. São os adolescentes negros. São os jovens que a nossa sociedade negligenciou e que agora quer tirar da frente dos nossos olhos, esconder em baixo do tapete os males que criamos. Não se pensa em cuidar daqueles que agre-dimos, mesmo sem ser fisicamente.

É preciso educar mais do que julgar. Porque a educa-ção liberta o que a ignorância quer prender. Precisamos mais de livros do que de grades. Precisamos mais de es-cola do que de cadeias. Precisamos construir um futuro de liberdade e apagar estes pensamentos fechados que clamam por mais prisão.

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PORCarlos Eduardo Freitas

FOTOCarlos Eduardo Freitas

RELATO

Podem até parecer diferentes, ou iguais, e são, ambos. O morador de uma periferia de Fortaleza sempre vai achar um bocadinho da sua em uma outra periferia de Fortaleza. Foi o que aconteceu na primei-ra vez que cheguei ao Titanzinho.

“É o que chamamos de ilha”, essa foi a frase de entrada na área do Cais do Porto do Mucuripe. Aquele pedaço da cidade que só quem vai pra lá é quem realmente tem al-guma coisa para fazer na região. Entre a Praia do Futuro, um ponto turístico, e o finzinho da Beira-Mar, um outro ponto turístico, pasmem: há mais um local para a turista-da. Ou pelo menos deveria haver.

O Farol do Mucuripe, cantado e adorado pelos fortalezenses de na-scença e de vivência está entregue a Deus dará. A maresia, segunda maior do mundo, toma conta do prédio construído há quase duz-entos anos e que representa uma parte viva da história de Fortaleza. Se não fosse o grafite do Grud e

do pessoal do Concreto, dificil-mente o poder público tomaria para si a proposta de revitalização (que até agora não aconteceu). Mas o Farol ainda resiste e a arte urbana pintada nele também.

Assim como a comunidade que ali habita. Remoção deve-ria ser o sobrenome do bairro (ou de cada morador dali) se o houvesse. Viver sempre na esp-reita, na tentativa e na esperança de não ser desapropriado, de não ser jogado para um canto e de-pois para um outro, sempre em pé-de-fuga expulsos pela tão fa-mosa especulação imobiliária.

Se o estaleiro caiu, a vontade é de que o Aldeia da Praia também caia. Projeto esse que visa dar à comunidade um suposto lazer em uma área onde o pessoal já cos-tumava viver, surfar e se divertir.

Outro bairro da periferia de Fortaleza que sofre com as re-moções e com a falta de apoio do poder público é onde eu moro, o

Pirambu. As ruas estreitas do Titan são iguaizinhas às do Pirambu: com o povo sentado na rua, conversando miolo de pote e rindo, galhofando; os bares do Piramba são points conhe-cidos que nem os do Titan, e da cri-atividade deles então... nem se fala.

Comunidades que têm uma sim-ilaridade grande entre si e uma relação estreitíssima com o mar. E o Titanzinho foi o cenário per-feito para as histórias que conhe-ci com o Coletivo Audiovisual ao qual atualmente faço parte. Em uma mostra de como a extensão universitária pode produzir saber e aprendizado para, com ela, rela-cionar o meu mundo com o alheio.

O Pirambu e o Titanzinho têm mais similitudes do que qualquer um imagina, e só vivendo, sentin-do e intervindo que faz sentido aprender com o corriqueiro, que muitas vezes é mais diferente do que também qualquer um imagina.

O Titanzinho e o Pirambu

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ENSAIO

PORIsabela Arrais

Mar deGente

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MAR DE GENTEAtirei-me ao mar Mar de gente ondeEu mergulho sem receio Mar de gente onde Eu me sinto por inteiro...

O Rappa

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CRÔNICA

TEXTONome Sobrenome

FOTONome Sobrenome

POR Ana Rute RamiresIsabela ArraisIury FigueiredoJúlia IoneleKamylla KarenLarissa PereiraMarcelo Monteiro

Sair de casa nem sempre significa liberdade. Mais do que independência, essa atitude pode significar a fuga aos abusos sexuais que

podem aprisionar uma criança logo cedo. Isso foi o que aconteceu no passado de uma mulher cuja pele de cristal resistiu com firmeza aos impactos que arriscaram sua tenacidade.

Helena Damasceno, 41, é universitária e autora de “Pele de Cristal”, livro publicado a partir de postagens em um blog homônimo, descrito pela escritora como “resultado de um processo terapêutico”. A terapia, por sua vez, veio após uma vida preenchida de traumas. “Eu tive comprometida toda a infância, toda a adolescência e o início da idade adulta”, revela, complementando que os abusos eram cometidos contra outros membros da família. “Minha família era incestogênica. Eu não fui a primeira e nem a última vítima do mesmo agressor”.

Eu tive comprometida toda a infância, toda a adolescência e o início

da idade adulta

ENTREVISTA

Embora sua antiga casa sempre estivesse cheia de parentes, ela lembra que o agressor era “uma pessoa incontestável”, fator que “alimentava o silêncio da família”. “Ele é um cara acima de qualquer suspeita, com um comportamento reto, equilibrado”, afirma. Além disso, ela diz que “muito da violência acontecia de forma simbólica”. “Entre um olhar ameaçador, uma manipulação genital e um estupro não há diferença alguma”, declarando que “não existe fita métrica pra dor”.

É surpreendente, porém compreensível, o fato de o agressor nunca ter sido denunciado por Helena. Nem mesmo a lei Joanna Maranhão, cuja prescrição começa a contar apenas a partir da data em que a vítima completa 18 anos, pode ampará-la. “Ela não me alcança mais porque só da violência em si já tem 20 anos que não acontece mais, então a lei não me alcança mais”, explica.

Reflexões de um cristal

transparente

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Marcas em silêncio

O silêncio das vítimas é comum em casos de violência intrafamiliar. No entanto, segundo Helena, “uma criança que sofre abuso sexual sempre comunica isso de alguma forma”. “A gente grita, a gente fala o tempo inteiro. Só que a gente fala com outras maneiras, com outras palavras. O corpo fala muito mais do que o que a gente consegue formalizar em uma palavra, uma frase”, complementa.

A escritora relata que, com a exposição do caso, “a família foi convidada a dialogar sobre isso”. Após a publicação do livro, alguns familiares tomaram conhecimento do abuso, pois, apesar de não citar o nome do agressor em nenhuma das páginas, “para um bom entendedor meia palavra basta”. “Todo mundo sabe quem ele é”, afirma. O medo de represálias e da reação dos familiares foi o que levou Helena a procurar ajuda para superar o trauma: “Eu passei mais de dois anos em terapia para entender como é que a família iria lidar com isso”.

Vida de traumas

Em razão do abuso, Helena teve problemas em diversos aspectos da vida desde criança. Ela conta que o abuso sexual “afetava diretamente” o seu rendimento nos estudos, pois “não conseguia aprender”, problema agravado pela falha do sistema educacional. “A escola é um modelo falido que não funciona mais”, declara, afirmando que a instituição “precisa trazer o respeito para dentro da sala de aula”. De acordo com ela, ainda hoje “o debate acontece fora da sala”, fato que impossibilita a responsabilidade e a reflexão. Para que esse quadro mude, ela ressalta que “o diálogo precisa estar na frente”.

Mais de 20 anos depois, Helena consegue

comentar sobre os abusos sem se sentir

mal.

SUPERAçãO

Hoje minha maior vingança é querer

ser feliz

A escritora relata que chegou a escrever uma prova inteira com as palavras ao contrário quando criança. “Eu me sentia burra, muito burra. Eu decorava para a prova, mas depois eu não lembrava mais de nada”. Para superar tais dificuldades, Helena desenvolveu um método de aprendizagem particular. “Eu comecei a achar que aquela palavra tinha que me lembrar de alguma coisa, porque eu conseguiria saber como ela é escrita”, explica. Disciplinas como matemática “eram um inferno”, mas a técnica, após algum tempo, passou a funcionar. “Eu fui fazendo associações para entender”, relembra. Hoje, já com a firmeza e a segurança proporcionadas pela superação, Helena comenta com facilidade sobre o trauma de infância e ajuda mulheres que passam ou passaram pela mesma violência

Helena Damasceno enumera fatos contados ao longo do livro em seus comentários

RELATO

através de palestras e conversas. A relação com sua família “mu-dou completamente” e hoje o convívio é harmônico. Amante e estudante de psicologia, hoje ela reconhece a sua liberdade. “De-morei 16 anos pra poder começar a limpar a sujeira que estava den-tro de mim”, declara firme e certa de si. “Hoje minha maior ving-ança é querer ser feliz”, conclui.

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A forma de saberDe todas as coisas da vida a

que mais encantava Zezé era o saber. Nascido no

interior de São Paulo, o menino de seis anos era um dos cinco filhos de um casal pobre. Era astuto. Entrou na Escola sem dinheiro para o uniforme, era motivo de piada por ter os dedos saindo do sapato, a farda doada pela Instituição. Zezé era sonhador, daqueles que não se contentam com a vida que tem e que querem mudar o mundo.

O menino Zezé era aplicado, filho de analfabetos, mal sabia o que era a vida, mas tinha a vontade de viver. Era uma aula de terça ¬- feira a tarde, a professora do primeiro ano pediu para que cada um escrevesse uma frase para que explicasse aos colegas o significado dela em sua vida. O pobre menino pegou o lápis afiado e pôs-se a escrever a frase.

Ao final da aula, a professora leu atentamente cada uma das frases, e algumas diziam: “O mundo é belo” “ A flor é cheirosa” sem mostrar distinção pelos alunos, mas curiosamente ela leu a frase de Zezé: “Nunca é tarde para aprender.” A professora pediu que

cada um dos alunos discorressem a cerca da frase, foi então que chamou Zezé para explicar a sua. O menino pequeno, franzino, que mal enxergava atrás da mesa, começou:

- Dona Glória, nunca é tarde para aprender.

Todos os alunos se olharam como quem não tivesse compreendido o pensamento do colega. A professora entendendo a surpresa das crianças pediu que Zezé continuasse.

- É professora, nunca é tarde para aprender. Outro dia Cândida, minha irmã mais velha, pegou catapora e vovó Maria não sabia como tratar, foi quando um vendedor lá das bandas do Nordeste do país ensinou que banho de água morna acalmava as feridas, ela não saiba, mas teve paciência e apreendeu.

A professora achou a colocação de Zezé engraçada e pediu para que continuasse

- Minha mãe não sabia como cuidar de crianças, até que casou com o papai e teve seu primeiro filho aos 15 anos, depois disso vieram mais quatro, ela não sabia, mas teve paciência e aprendeu. Ele respirou e continuou.- No nosso último natal, papai

PORJulia Ionele

CRÔNICA

estava desempregado e o dinheiro de mamãe mal dava para sustentar a casa, papai não sabia como nos presentear, mas naquela noite ganhamos um caloroso abraço, ele disse que não sabia amar, mas com paciência, ele também aprendeu. Ninguém ensinou a mulher a conquistar os espaços na sociedade, elas não tiveram preparação de como ser uma astronauta, nem física, mas com competência, elas aprenderam. O remédio não brota do chão, o que existem são as suas matérias primas, ninguém ensinou o farmacêutico a fazer remédio, mas por necessidade, eles aprenderam. A senhora D. Glória nasceu ensinando?E ele prosseguiu:- Eu sei que a senhora não nasceu ensinando, não sabia repassar os seus conhecimentos para os alunos, mas com vontade a senhora também aprendeu.Aprender é a coisa mais importante da vida, se você deixa de aprender, logo você deixa de viver, não adianta viver com a idéia de que aprendeu tudo, sempre tem algo para aprender, seja em casa ou na escola, na alegria e na dor, sozinho ou em grupo, feliz ou triste, no sucesso ou no fracasso, em sorrir ou em chorar, aprender é o maior bem que se pode ter, e ele é como um pássaro, não se pode apenas criar em uma gaiola e proibir que ele faça vôos mais altos e que e passe o saber aos demais, aprender é repassar. A gente ganha muito mais quando ensina do que quando aprende só professora, e nunca, nunca é tarde para aprender.Naquele dia depois da aula, Dona Glória ficou em sala relendo o papel que continha “Nunca é tarde para aprender”. Ela sabia naquele dia tinha confirmado a maior lição: que aprender é necessário.E você? O que aprendeu hoje? Está repassando seus conhecimentos? Já dizia Drummond que “perder tempo em aprender coisas que não interessam, priva-nos de descobrir coisas interessantes.” aprendaa viver cada dia como quem vive o último. Lembre-se: o saber é a maior evolução.

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PORFlávia Oliveira

CRÔNICA

Um golpe de mestreCom a ajuda de professores dedicados, jovens têm a chance de traçar o destino longe da

violência e das drogas, em uma das regiões mais violentas da cidade

“Quero tirar meu filho do judô e do jiu jitsu”, disse certa vez a mãe de um aluno. Moisés Costa, professor da turma de jiu jitsu, remexeu o corpo dentro do quimono azul. “Mas por que, dona?”. “Tá gastando muito. Quase todo mês ele pede R$ 40 pra competir”, justificou a mulher. Moisés não se conteve: “A senhora gasta quanto por mês com as aulas dele aqui?”. “Nada”, respondeu. “E na última viagem que ele fez pra São Paulo, a senhora teve que desembolsar quanto com avião, hospedagem e alimentação?”, perguntou na sequência. “Não gastei nada, pagaram pra ele, né?”. “É, pagaram. E mandou bem no campeonato. O quimono novo que ele recebeu ontem, quanto custou? E olha que tem dois pra competir”. “Não sei”. “Pois custou uns R$ 300. É coisa boa. O que eu quero dizer com isso é que R$ 40 que ele pede para pagar uma inscrição que a gente não conseguiu de doação é muito pouco em benefício de um rapaz que tá conhecendo o Brasil todo pelo próprio esforço. É bem menos do que as carteiras desse cigarro que a senhora tá fumando”, arrematou. Silêncio. É assim, lutando pela permanência dos alunos, que os professores

do dojô Águia, onde funciona o projeto “Ação e Reação”, tentam manter o lugar longe do assédio dos traficantes de drogas, da falta de amor de muitas famílias e das dificuldades financeiras. “Nosso objetivo é mandar algum menino ou menina para treinar nos Estados Unidos, onde mora meu mestre. Eu poderia estar agora em casa com minhas duas filhas, as quais mal vejo durante a semana, mas tô aqui para retribuir o que um dia fizeram comigo. Eu era um menino que vivia procurando confusão, e foi um projeto como esse que me colocou no jiu jitsu”, fala. Do outro lado do tatame, o professor de judô Newton Rocha, dono da academia que cede o espaço para os treinos, confere as unhas e a higiene dos alunos. Quem está sujo, volta para casa. Quem fizer besteira na escola ou na rua, fica assistindo a aula no banco da calçada. “Tem que ter disciplina. Mas é tudo na base do diálogo. Às vezes, o abraço que o aluno ganha aqui é o único que ele vai ter na semana. Não é preciso ignorância, pois isso eles já veem demais. É cuidar, é se importar. Isto faz uma diferença danada”, diz, enfiando os polegares na faixa preta da cintura.

Enquanto Newton fala, o aluno Thalyson de Lima comanda o aquecimento da turma. Com 17 anos, há quatro no judô, ele é um adolescente tranquilo, daqueles com cara de bom moço. Mas nem sempre foi assim. Quando conheceu o projeto, teve que “selecionar as companhias”, como mesmo diz. Nesse tempo, perdeu amigos para o tráfico do Lagamar, uma das regiões historicamente marcadas pela violência na cidade. “A gente cresce aqui no meio da pobreza e de tudo o que é ruim. Como acreditar na gente? Daí as artes marciais são um tipo incentivo, sabe? Porque o pequeno derruba o grande. É tudo questão de jeito e não força”, diz. “Vai, vai, pega ele!”, interrompe para orientar um menino que enfrenta outro um pouco maior do que ele. “Viu?”, fala, apontando com ar de satisfação o garoto se levantando do chão.

Dicionário: Dojô significa “local do caminho” e é o local onde se treinam artes marciais japonesas

ServiçoDojô Águia - Projeto Ação e Reação - Rua Aspirante Mendes, 16 – Aerolândia.

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PORAna Beatriz LeiteClaryce OliveiraDiego BarbosaIngrid OliveiraNícolas PaulinoTheyse Viana

FOTOSIngrid OliveiraTheyse Viana

PERFIL

Saberes além-fronteiraA vida de uma africana que cruzou o oceano para estudar no Brasil – e enfrenta marés de saudade.

2.653 quilômetros são uma distância relativamente pequena em um país conti-

nental como o nosso. O Oceano At-lântico separa Brasil e Cabo Verde, mas não só uma língua nativa em comum faz com que a distância pareça ainda menor. Entre nações que partilham um mesmo coloniza-dor, há diversos fatores que ajudam a diminuir essas fronteiras. E não é por acaso que o nosso país é um dos principais destinos para cabo- verdianos que desejam estudar fora. Nascida na cidade de Praia, capital de Cabo Verde, a estudante Car-men Fortes é uma dessas pessoas. Ela está em Fortaleza há um ano e meio e conta que cruzar o oceano para estudar em solos estrangeiros já é um fator cultural de seu país: “Em Cabo Verde existem, se eu não me engano, seis universidades. O país é pequeno, formado por il-has, e o Cabo Verde tem muito essa cultura de estudar fora”, explica.

A mudança do litoral da Ilha de Santiago para o litoral do Nordeste brasileiro, porém, não foi premed-itada: Carmen já pensava em trilhar carreira acadêmica fora de Cabo Verde, mas nunca teve o Brasil como opção. A estudante desejava fazer sua graduação em Portugal, mas os pais foram contrários a esse plano. Não abrindo mão de seu son-ho, Carmen decidiu ouvir os con-selhos de uma amiga que veio estu-dar na Universidade de São Paulo (USP) e, aqui no Ceará, acabou encontrando vários outros jovens em situações parecidas com a sua: “Aqui é o estado que mais tem afri-canos no Brasil. Todo mundo pensa que na Bahia tem mais africanos, mas não é. A UFC é a universidade que dá mais vagas para os africa-nos, e ainda há os que estudam nas faculdades privadas”, conta.

Após tomar a decisão de que gostaria de vir estudar em terras brasileiras, Carmen procurou a Embaixada do Brasil no seu país de origem para realizar o proces-so de admissão. Componentes como a nota de desempenho es-colar da solicitante ao intercâmbio e suas condições financeiras e de aprendizagem a fizeram partici-par do PEC-G (Programa de Estu-dantes-Convênio de Graduação), um projeto federal que oferece oportunidades de ensino superior a

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cidadãos de países em desenvolvi-mento com os quais o Brasil mantém acordos educacionais e culturais.

“Tem algumas pessoas que veem como intercâmbio, mas só que o in-tercâmbio é quando você está na uni-versidade do seu país e vem contin-uar seus estudos em outro país. Não, a gente já vem começando desde o início aqui e vai até terminar o cur-so”, relata Carmen ao explicar como funciona o programa que a faz estar atualmente cursando Jornalismo na Universidade Federal do Ceará.

Falando em adaptação, Carmen revela que a sua ambientação à Terra da Luz foi fácil. O clima, alguns costumes locais e o trata-mento das pessoas, sempre muito acolhedor, são semelhanças com o de seu país de origem – que ela faz questão de carregar junto à pele, em um pingente. A maior di-ficuldade mesmo foi quando optou por mudar de curso, de Psicologia para Jornalismo, pois a saída de um ambiente a que ela já havia se adaptado para outro completamente novo foi como um recomeço – tudo novo. De novo. Apesar disso, para ela, o acolhimento dos alunos dos cursos de Ciências Humanas é

um dos melhores e mais abertos. O cotidiano do curso de Jornalis-

mo é bem dinâmico, os professores socializam mais com os alunos e tentam manter um diálogo constan-te com eles, assim como os colegas de classe. Mas, ironicamente, ain-da é difícil para ela falar a mesma língua – Carmen comentou, em um português ainda repleto de traços nativos, que uma das limitações en-contradas é a questão da linguagem usada no ambiente da universidade. As diversas gírias e termos própri-os dificultam a socialização e a in-tegração dos alunos estrangeiros. “Foi um choque cultural”, afirma.

Mesmo com essas limitações, a africana diz que ainda mantém

muitos costumes de sua terra natal. Frequenta a igreja de sua criação, a igreja Mórmon, e sai com seus amigos cabo-verdianos nos fins de semana. Segundo ela, em Cabo Verde, as pessoas têm o costume de interagir com os amigos e con-hecer intimamente uns aos outros, então a visita à casa dos colegas é algo comum e uma tradição manti-da. Conhecer a cidade de Fortaleza e alguns pontos turísticos foi parte da exploração do novo lar – ativ-idade que não entrou na rotina da tímida e reservada estudante.

A saudade de casa é o ponto mais doloroso citado por Carmen. A in-ternet permite que ela fale com seus parentes e amigos de Cabo Verde diariamente, além de con-seguir manter um relacionamen-to à distância com o namorado de longa data. Entretanto, apesar de dividir uma casa com outros ca-bo-verdianos, tentar preservar al-gumas tradições do seu país de origem e se identificar com o curso de Jornalismo, a fala de Carmen Fortes é marcada pelo desejo de voltar para casa. Agora, claro, com uma bagagem culturalmente mais diversificada e cheia de saberes.

O clima e a hospitalidade dos brasileiros foram

fatores importantes para a adaptação de

Carmen ao país.

Carmen assistindo à aula da disciplina de Formação da Sociedade Brasileira

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RESENHA

PORCarolina Melo

Esta produção é resultado das somas de um bom aluno de colégio de classe média em

Buenos Aires, auto-declarado “víti-ma da educação neoliberal da déca-da de 90”, que viu seu país entrar em ebulição com os panelaços e com as frequentes crises econômicas, que posteriormente estudou cinema e educação. Aliado a todos essas premissas, resolveu, aos 21 anos, partir uma viagem pela América Latina pesquisando formas alterna-tivas de educação durante três anos.

“A Educação Proibida” é um do-cumentário argentino dirigido e idealizado por German Doin, que une ativismo e cinema e questiona e problematiza o atual sistema educa-cional. Com uma mistura entre fic-ção e realidade, o diretor utiliza-se de uma linguagem didática e clara que gera questionamentos profun-dos e desestabiliza os espectadores com suas observações pertinentes,

que são invisíveis aos absortos pela cultura sistemática da es-cola como a conhecemos hoje.

Na película são posto em xeque as supostas premissas da educação latino-ocidentais, que pregam que a escola promove a comunidade, igualdade, inclusão e solidarieda-de. Mas que, na verdade, as escolas ensinam e promovem exatamente o contrário. O sistema baseado em exames, notas, castigos e recom-pensas tratam de formar cidadãos competitivos, individualistas e obe-dientes. Em outras palavras, o atual modelo escolar forma para e com o sistema dentro de um ambiente que simula prisões ou grandes fábricas.

Na contramão desse modelo, a Educação Proibida mostra as pos-sibilidades de uma nova escola, livre, que respeita o processo indi-vidual de aprendizagem, a integra-ção, o ensino prático e a constru-ção de uma concepção própria de

mundo desenvolvida pelos alunos, por meio da vontade natural de conhecer e aprender do ser huma-no. Essa nova escola deve apenas motivar e oferecer ferramentas para uma formação cidadã, ao in-vés de mão-de-obra. Todo esse novo modelo de educação deve ser baseado no respeito as dife-renças e, principalmente, no amor.

Apesar de em alguns momentos o filme ser redundante e ser mui-to longo, por volta de 2h e 30min de duração, é uma ótima opção para dar uma quebrada na rotina e também nos dogmas sociais que carregamos. O documentário pode ser assistido na integra com legen-das em português no YouTube.

A Educação Proibida

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CRÔNICA

PORMichel Miron

Epifania

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Você pode dizer muitas coi-sas de um ônibus, menos dizer que vive, enquanto

nele. Quente, abafado e barulhento, muitas vezes você mal tem espaço para sentar, apenas para se manter fir-me, existindo, até a sua parada. Ao meio dia, metade das cadeiras são ba-nhadas pelo sol e as vezes você não tem a opção de onde sentar. Em suma, um pouco mais de meia hora de uma amostra grátis do inferno é o que eu posso esperar sempre que pego um transporte coletivo para a faculdade.

Porém, nem tudo era difícil na-quela gigante máquina de ferro e calor que se movia por explosões, eu ainda podia observar. Pessoas brancas, ne-gras e amarelas. De chinelos, sapa-tos ou até mesmo salto. Carregavam mochilas, bolsas ou sacolas, trazendo livros, mais sacos ou até mesmo co-

mida. Alguns surpreendentemente liam, outros apenas ouviam música.

A questão principal, de todo esse cenário, é que cada um deles tinham algo a ensinar. Não de maneira pro-posital, sempre instintivamente. His-tórias por de trás de cabelos, roupas, preocupações visíveis. Mesmo no calor, na sensação de abafado e pou-ca mobilidade, criar histórias para aquela amálgama de pessoas me en-sinava uma rara constatação. Todas elas tinham dores, bênçãos, alegrias, motivos e razões. Todas elas, em sua mais simples existência, cultivavam dentro de si universos que eu jamais vou conseguir um dia entender em sua totalidade, jamais vai senti-los, apenas imaginá-los.

Em minha mais pura existência simplista, jamais vou aprender a men-surar a totalidade do que são todas as

coisas, todos os mundos, todas as vi-vências, dentro e fora de cada ser hu-mano. E no final das contas realmen-te não importa o quão eu vá achar impossível viver em um ambiente tão inóspito quanto em uma máquina que reverbera o calor de uma cidade que já queima todo o meio dia, sempre vai haver alguém lendo um livro, sorrin-do.

Viver o mundo é entender o quão absurda é sua totalidade. Aprender que sua mais profunda dor, é um pingo no oceano. Que sua maior ale-gria, é um grão que pode reverberar outros. Sentado em um banco vago, sorri. Sereno, percebi que todos nós aprendemos e sofremos no mesmo pedaço de chão.

“Em minha mais pura existência simplista, jamais vou aprender a mensurar a totalidade do que são todas as coisas, todos os mundos, todas as vivências, dentro e fora de cada ser humano.”

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Histórias a FioPOR Marcelo Monteiro

Mais do que instruir teorias ou técnicas de passo a passo, ensinamentos, às vezes, trazem consigo apenas a fluidez de um cadenciado movimento que delineia um costume. No seu desenlace, saltam aos olhos as fibras de linhas tingidas e de enredos de um viver ardente, típico do sertão cearense. No rearranjo destas, vem à tona a rede: com meadas de vida em todas as suas urdiduras.

Em Jaguaruana, cidade do interior do Ceará, sol escaldante e chão de fendas não inibem o viver de suas culturas. Vidas se mantêm férteis em dedos que caminham juntos num bordado que enfeita a paisagem descorada pela seca.

ENSAIO

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Nas mãos atadas pelos punhos que erigem seu balançar, redes são criadas dia a dia num cenário que conserva um passado de tradições arraigadas à rotina. Entretanto, engana-se quem imagina que os ares jaguaranenses não trouxeram o porvir, que fez a pele ceder lugar às máquinas.

Mãos armam a rede que recosta em seu leito corpos esgotados pelo calor do sertão. Corpos estes que são envoltos pelos saberes ensinados e ensaiados de geração para geração dentro dos lares atrás das cercas que sinalizam as más venturas.

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Vêm e vão-se os meios, mas o saber não se desvincula da tradição. Passado, presente e futuro têm suas bainhas unidas aos trançados que carregam sabedorias e sobrevivências. São traços e cores de redes de histórias. Todas escritas a fio.

Mas mesmo o homem moderno não abriu mão do artesanato em suas teceduras; o coser dos teares elétricos e suas ágeis agulhas ajudam a tecer a tradição que ainda hoje o circunda.

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Separados por poucos metros, os adolescentes do North Shopping e os do complexo

que funciona na Rua Tabelião Fabião, no bairro Presidente Kennedy, vivem situações díspares. Enquanto aqueles aguardam animadamente pelas ses-sões de cinema com ingressos nas mãos, estes seguram papéis carimba-dos que podem determinar para sem-pre o enredo de suas vidas.

Para ver de perto o drama que a juventude brasileira protagoniza, principalmente a mais pobre e desas-sistida pelo Estado, basta atravessar o estacionamento do centro de compras e passar pelo portão de grades verdes que guarda o Sistema Integrado de Atendimento. Funcionam no local a Delegacia da Criança e do Adolescen-te (DCA), o Juizado da Infância e da Juventude (JIJ), o Núcleo de Atendi-mento aos Jovens e Adolescentes em Conflito com a Lei (NUAJA) e a Uni-dade de Recepção Luís Barros Mon-tenegro, porta de entrada no sistema de socioeducação de quase todos os adolescentes em conflito com a lei.

REPORTAGEM

PORAna Rute RamiresFlávia OliveiraJúlia IoneleKamilla KarenLarissa Pereira

FOTOS Flávia Oliveira Larissa Pereira Shutterstock

Juventude do lado de lá

Em tempos de discussões acaloradas sobre a possibilidade de redução da maioridade penal, vimos de perto a juventude posta à margem pela sociedade

Sem condições

Após a apreensão, é aberto um in-quérito na DCA. Em até 24 horas, o adolescente precisa ser ouvido, assim como as eventuais testemunhas. Se o promotor decidir formalizar uma re-presentação, ė feito o encaminhamen-to para o JIJ, com acompanhamento da Defensoria Pública, por meio do NUAJA, ou com advogado próprio.

“Em 95% dos processos, os casos são de roubo, furto, porte ilegal de ar-mas e tráfico de drogas. Mas também vemos de tudo: estupro, homicídio, latrocínio”, enumera Aldemar Mon-teiro, defensor público na 5ª Defen-soria da Infância e da Juventude. De acordo com o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), a apreensão só é efetuada se o ato infracional tiver sido praticado com violência ou grave ameaça à pessoa, como roubo, homi-cídio e lesão corporal. Para os casos de furto ou tráfico, é permitida a in-ternação se o adolescente for registra-do três vezes.

“O problema é que a situação nos centros educacionais é muito pior do que no sistema carcerário adulto. Eles simplesmente não têm condições de recuperar os jovens que vão parar lá. Não é à toa que após as visitas que a Defensoria faz nesses lugares, há sempre as interdições”, afirma.

“O que é cela deveria ser um dor-mitório, e o que deveria conter apenas quatro adolescentes, abriga 20. Eles não dormem uma noite inteira porque para descansar, só em sistema de re-vezamento. Deveriam sair dos ‘quar-tos’ durante o dia para participar de cursos, mas têm só 20 minutos fora do ambiente fechado, porque pode ter rebelião”, diz o defensor. “O Es-tado do Ceará não investe nada nos centros educacionais. E se a redução da maioridade passar, o que vai acon-tecer é o aumento do que já estamos vendo no dia a dia: jovens cada vez mais novos, alguns crianças ainda, com dez, doze anos, arregimentados pelo tráfico”, defende.

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Procurada durante três dias pela reportagem, a Secretaria de Seguran-ça Pública e Defesa Social (SSPDS) não quis se manifestar sobre o assun-to.

Bastidores

Você já foi assaltado? Foi agredi-do, pelo simples fato de ter se assusta-do com a abordagem? Eu já passei por tudo isso. Pela lembrança do que já vivi andando pelas ruas de Fortaleza, foi um tanto desconfortável estar na-quela área de espera da DCA, cercada de rapazes e moças vestindo calças de tactel com as iniciais dos centros de internação escritas com caneta preta.

Na sede do NUAJA, um menino que não aparentava ter mais de 13 anos, visivelmente sob efeito de en-torpecentes, aguardava ser atendido pelo defensor. A mãe procurou auxí-lio jurídico porque ele sofria ameaças de morte por parte de policiais. Os funcionários que guardam os portões vivem em constante tensão - em 2013, um adolescente foi assassinado a tiros

quando embarcava em um táxi logo em frente.

No entanto, o que mais me desas-sossegou foi ouvir algumas conversas travadas no lugar, assim como as li-gações de celular. Era possível identi-ficar entre uma gíria e outra promes-sas de vingança e novas ações com as gangues de bairro. E pasmem, tudo falado diante dos pais ou das mães que acompanhavam os rapazes. (Flá-via Oliveira)

Entrevista

Ailton Lopes (Frente Estadual Contra a Redução da Maioridade Penal - Ceará)

Reticências - Tendo em vista o atual nível de violência, gostaría-mos de saber o posicionamento po-lítico da Frente e em que se baseia a ideia de que a proposta da “redu-ção da maioridade penal” não vai ser eficaz para reduzir a violência urbana.

Ailton Lopes - É aumentando o

número de pessoas presas que nós reduzimos a violência? Os dados es-tatísticos apontam que de 1992 até 2013, houve um aumento de mais de 300% da nossa população carcerária. Hoje nós temos mais de 574 mil pes-soas cumprindo pena em presídios, ou seja, mais de meio milhão. É a quarta população carcerária do mun-do. Nos últimos oito anos, houve um aumento de 24% do número de ho-micídios, ou seja, não foi porque nós aumentamos o número da população carcerária que diminuiu a violência. Essa ideia de que “prender mais di-minui a violência”, e de que na ver-dade está havendo impunidade, não é válida. É por isso que a violência está aí? Na verdade, as causas não foram combatidas. A nossa juventude tem uma vida sofrível, principalmente a juventude negra e pobre.

Reticências - Reduzindo a maio-ridade penal, quais serão os maio-res impactos?

Ailton Lopes - Vivemos em uma tragédia social, porque todos os dias o que a gente vê é uma criminaliza-

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REPORTAGEM

Frente Estadual Contra a Redução da

Maioridade Penal - Ceará

TITULO d AíLTON LOPES

ção, uma perseguição das crianças e dos adolescentes, que são apresenta-dos como monstros para a sociedade. E quem é a sociedade se não somos nós mesmos? Quem que é monstro? Que sociedade é essa que coloca uma arma na mão de uma criança? Por que somos nós que estamos colocando a arma na mão da criança, com tudo o que a gente está fazendo. E a tragé-dia social, ela se acumula ainda mais quando: onde é que essas crianças, onde é que esses adolescentes vão fi-car? Aqui no Ceará temos um déficit de 5 mil vagas. Aí agora a gente vai colocar mais um grupamento entre 16 e 18 anos onde? Não há nem para quem está esperando vagas no siste-ma prisional.

Reticências - E esse número de jovens que estão envolvidos com o tráfico, com coisas ilícitas na nossa cidade, será que isso é resultado do nosso sistema educacional que está falido?

Ailton Lopes - Eu sou contra uma visão que responsabiliza e joga todo o peso na educação. Eu acho que a escola tem um papel fundamental, mas achar que só ela resolve é uma visão completamente equivocada. Não adianta você ter uma boa escola e ter todo o contexto social contrário. Então o conjunto de medidas políticas públicas como um todo: educação, saúde, lazer, esporte, cultura, sanea-mento, todas elas têm que estar inte-gradas.

Números

O Estado do Ceará já supera a média nacional do índice de superlo-tação nos centros educacionais. São mais de 1 mil adolescentes cumprin-do medidas socioeducativas

Segundo dados da Secretaria da Justiça e Cidadania (Sejus), por mês, o Ceará gasta até R$ 1,5 mil um preso adulto, enquanto um adolescente in-terno de um centro educacional custa o dobro: R$ 2,9 mil.

Contra1- A redução da maioridade penal

fere uma das cláusulas pétreas (aque-las que não podem ser modificadas por congressistas) da Constituição de 1988. O artigo 228 é claro: “São pe-nalmente inimputáveis os menores de 18 anos”

2- Em vez de reduzir a maioridade penal, o governo deveria investir em educação e em políticas públicas para proteger os jovens e diminuir a vul-nerabilidade deles ao crime. No Bra-sil, segundo dados do IBGE, 486 mil crianças entre cinco e 13 anos eram vítimas do trabalho infantil em todo o Brasil em 2013. No quesito educa-ção, o Brasil ainda tem 13 milhões de analfabetos com 15 anos de idade ou mais.

3- A redução da maioridade iria afetar, principalmente, jovens negros, pobres e moradores de áreas periféri-cas do Brasil, na medida em que este é o perfil de boa parte da população carcerária brasileira.

A favor1- A mudança do artigo 228 da

Constituição de 1988 não seria in-constitucional. O artigo 60 da Cons-tituição, no seu inciso 4º, estabelece que as PECs não podem extinguir direitos e garantias individuais. De-fensores da PEC 171 afirmam que ela não acaba com direitos, apenas impõe novas regras.

2- O Brasil precisa alinhar a sua legislação à de países desenvolvidos com os Estados Unidos, onde, na maioria dos Estados, adolescentes acima de 12 anos de idade podem ser submetidos a processos judiciais da mesma forma que adultos;

3- A maioria da população brasi-leira é a favor da redução da maiorida-de penal. Em 2013, pesquisa realizada pelo instituto CNT/MDA indicou que 92,7% dos brasileiros são a favor da medida. No mesmo ano, pesquisa do instituto Datafolha indicou que 93% dos paulistanos são a favor da redu-ção.

Veja três argumentos contra e a favor da redução

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RESENHA

PORAna Rute Ramires

FOTOCena do filme “Sociedade dos Poetas Mortos”

Educação, vocação, escolhas, paixão. Esses são alguns dos temas que permeiam “Socie-

dade dos Poetas Mortos” (titulo ori-ginal: Deads Poets Society), filme estadunidense de 1989, do gênero drama, dirigido por Peter Weir. O enredo tem como plano de fundo a Academia Welton, escola de segun-do grau na qual os valores tradicio-nais e conservadores predominam através de quatro pilares: tradição, honra, disciplina e excelência. Logo no início do filme, o professor de po-esia John Keating (Robin Willins) começa a trabalhar na instituição, que adota uma concepção didática racionalizada com preparação para formação superior. No entanto, os métodos de aprendizagem e a filosofia de vida ensinada por Keating destoam dos métodos da escola. O professor, ousado e nada ortodoxo, inspira os seus alunos a perseguirem suas paixões individuais e a tornarem suas vidas extraordinárias por meio de reflexões sobre a fragilidade e temporalidade da existência. Leva--os para aulas ao ar livre, pede que façam poesias espontâneas, os in-centiva a pensarem por si próprios

e a terem uma visão crítica, incu-tindo neles o desejo de viver cada momento intensamente. Através de citações de grandes nomes da lite-ratura inglesa, como Henry David Thoreau, Walt Whitman e Lord Byron, ele fomenta a mensagem do Carpe Diem, expressão originária do latim que significa “colha o dia” ou “aproveite o momento”. Alguns de seus alunos co-meçam a viver esses ideais e des-cobrem que na época que Keating estudara na Academia, ele fez parte da Sociedade dos Poetas Mortos, na qual seus membros se reuniam para declamar poesias e expressar suas ideias. Esse grupo de alunos resol-ve recriar a Sociedade nos moldes do passado, realizando seus encon-tros noturnos em uma caverna nas proximidades da Academia. Com o ressurgimento da Sociedade, os alunos envolvidos vivem uma ver-dadeira revolução em suas existên-cias, encontram novos interesses e vocações. Neil Perry, um dos parti-cipantes, começa a viver um confli-to entre o gosto pela dramatização e a vontade do pai em vê-lo formado em medicina. Desacordo que gera a problemática principal do filme.

A quebra dos estereótipos de ensino proposta pelo professor Keating apresenta aos alunos novas possibilidades e pretensões acerca do mundo em que vivem, ou que deveriam viver. O que desperta nos jovens novos sentimentos e inquie-tações, como a quebra de barreiras impostas pela sociedade, família e instituição. Barreiras que priorizam imposições profissionalizantes e ca-pitalistas em detrimento dos anseios individuais. O filme faz uma crítica ao método de educação tradicional, no qual o aprendizado é desenvolvido de forma mecânica: o professor fala, o aluno ouve. O professor Keating quebra esse paradigma e mostra um novo ideal pedagógico no qual a relação entre professor e aluno é interativa, dinâmica e democrática. Também é importante perceber o quanto o papel do educador impac-ta a vida dos jovens, não se restrin-gindo ao âmbito acadêmico. As re-lações entre professor e aluno, pais e filhos, e amigos entre si levam a uma reflexão sobre autoritarismo, liberdade e amizade.

Carpe diem

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Olá, meu nome é...

CRÔNICA

PORClaryce Oliveira

FOTOBigbirdz/Flickr

Sempre fui fã de sorrisos, sempre fui fã de abraços, mas nunca simpatizei com

a ideia de compartilhar certas coi-sas com pessoas que não perten-ciam ao meu mundo. Toda vez que entrei em uma sala de aula tive a sensação de andar em direção ao pelotão de fuzilamento e ficava es-perando, com ansiedade, pelos tiros que me livrariam daqueles olhares, apresentações teatrais e expecta-tivas elevadas. Desconfortável.

Nunca vou esquecer a primeira vez que tive que dizer coisas sobre mim em voz alta, talvez venha daí meu trauma. Senti-me completa-mente fora da caixa e tive em di-versos momentos o ímpeto de sair daquele lugar correndo e pegar o primeiro avião pro Alasca, mas o máximo que minhas pernas faziam eram tremer. Nos boatos que escuto das amigas experientes, toda pri-meira vez deve ter algo constran-gedor, que te marcará para sempre. Queria eu viver de segundas vezes.

Em uma bela tarde de sábado, fa-zia mais calor que o normal e eu

deveria estar às 15h em ponto na igreja. Era o primeiro dia das aulas de catecismo. Eu, garota tímida de voz baixa, deveria me dirigir a uma sala cheia de desconhecidos. Logo na entrada fui recebida por uma professora sorridente que de prontidão me deu uma vela. Quan-do percebeu minha cara de incom-preensão, disse “Usaremos logo logo, querida”. Peguei minha vela, sentei e fitei o chão, pouco depois tomei coragem e olhei ao redor. A sala era pequena, as cadeiras eram de uma madeira, que segundo mi-nha vó, nem cupim estraga e em todas as paredes haviam colagens de orações e “sejam bem-vindos”.

A professora se levantou, olhou para todos, o sorriso não saia da-quele rosto por nada. “Crianças, essa vela em suas mãos representa a luz que vocês podem ter nesse mundo. Vou acendê-las pra vocês e depois cada um vai se apresentar, tá bom?” Eu seria uma das primei-ras. Chegada a hora, comecei a ga-guejar, mas no final todos sabiam que eu me chamava Larisse, Laris-

sa ou qualquer coisa por aí. Quan-do uma das crianças mais inquie-tas e chamativas começou a falar, a cera da vela começou a derreter e a cair nos meus dedos. Quando o menino disse “Eu estou aqui por-que quero ir pro...” eu não conse-gui mais aguentar e soltei um “In-ferno” levemente alto. Todos me olharam e eu sem entender nada só consegui dizer “Essa vela não é de Deus, não é?”. Depois desse dia e de me tocar o que eu tinha feito, durante minha caminhada de volta para casa, passei a guar-dar meus pensamentos para mim.

Lembrei dessa história conver-sando com minha irmã outro dia. Também na sua estreia em au-las de catecismo, algo engraçado aconteceu, ela teve uma crise de espirros durante sua apresenta-ção. “Parecia um rap feito com meu nome” ela disse. Acho que é coisa de família. Mas só para dei-xar registrado, meu nome é Cla-ryce, faço jornalismo e não gosto de velas, apresentações e pesso-as que não gostam de cachorros.

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RESENHA

PORKamylla Carvalho

FOTOCena do filme “Entre les Murs”

Entre les MursIndicado ao Oscar em 2009 na

categoria de melhor filme es-trangeiro e vencedor da Palma

de Ouro em Cannes, o filme fran-cês Entre Les Murs, baseado no li-vro homônimo escrito por François Bégaudeau e dirigido por Laurent Cantet, retrata a trajetória confli-tante vivida pelo próprio François, autor e personagem da história, como docente em uma escola públi-ca localizada na periferia de Paris.

As cenas, que acontecem em sua maioria dentro da sala de aula, ex-pressam uma variedade de proble-mas de ordem política e social en-frentada por alunos com idade entre treze e quinze anos, que estão inse-

ridos dentro de um contexto de di-versidade étnica, gerando conflitos como o racismo, o sexismo, o pre-conceito, a disputa entre nacionali-dades que acabam potencializando as diferenças existentes entre eles.

É possível observar no filme a importância da prática pedagógi-ca como instrumento de mediação desses conflitos, com base na didá-tica adotada pelo professor Fran-çois Marin, que se mostra compro-metido e disposto a enfrentar os desafios propostos por sua turma, fazendo apenas o uso do diálogo. E através desse diálogo ele acaba incentivando os alunos a terem o hábito de refletir de forma mais crí-

tica a respeito dos fatos, promoven-do mudanças na maneira de pensar e não apenas serem instrumentos de reprodução do senso comum.

O mais interessante é que tal re-flexão não está restrita apenas ao contexto cinematográfico, afinal, a obra é baseada em fatos reais que mostram como os valores podem ser construídos dentro de sala de aula, sendo tais valores reflexos das rela-ções que acontecem dentro do âmbi-to familiar, social e também escolar.

Para quem não viu...

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REPORTAGEM

PORCaio VítorClaryce OliveiraDiego BarbosaNícolas PaulinoTheyse Viana

FOTOSDiego BarbosaTheyse Viana

Incluir para educar,

educar para incluir

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São olhares e gestos que in-dicam uma natureza dife-rente, especial. A fala mais

cadenciada, os movimentos ora mais lentos ora mais frenéticos, os sonhos e a determinação para conquistá-los são todos, de uma forma ou de outra, os ingredientes que revelam uma es-sência pura, mágica no falar, encan-tadora no sentir.

Marvin Eduardo, Lívia Castro Silva e Abraão Saraiva fazem parte desse time dos especiais por nature-za. Portadores do autismo, da síndro-me de Down e da síndrome de Len-nox-Gastaut, respectivamente, esses três jovens e suas famílias contaram à Reticências suas experiências es-tudantis em algumas escolas da ca-pital cearense por onde já passaram. Os depoimentos foram uma forma de compreendermos melhor a situ-ação educacional dos mais de 23% da população brasileira que possuem algum tipo de deficiência e outros transtornos de desenvolvimento, se-gundo dados do Censo Demográfico de 2010 do IBGE (Instituto Brasilei-ro e Geografia e Estatística).

Estudantes do Regina Pacis – um colégio privado de Fortaleza que ado-ta o sistema de educação inclusiva, localizado no Montese –, Lívia Cas-tro Silva, 26, e Marvin Eduardo, 17, já passaram por bons momentos em suas trajetórias de vida escolar. Ela, cursando o 2º ano do Ensino Médio, além do acompanhamento semanal de profissionais, tem a agenda lota-da com práticas esportivas, como natação, karatê e zumba. Em meio a tudo isso, ainda há muito tempo para sonhar: “Meu sonho é ser advogada e dirigir, tirar minha carteira, e vou fazer curso para ser terapeuta”. Ele, atualmente cursando o 9ª ano do En-sino Fundamental, desde os 8 anos é acompanhado por fonoaudiólogos, psicólogos e psicopedagogos, o que facilitou o desenvolvimento de sua fala e escrita, além de potencializar o desejo pela prática de esportes. Mar-vin coleciona medalhas de competi-ções até mesmo nacionais de karatê,

e afirma: “Eu gosto muito de karatê, eu vou lá, eu luto e eu ganho”.

Diante da aspiração de ver Mar-vin realizando seus objetivos, seus pais, Francisco Silva e Maria Lúcia, lembram com pesar dos primeiros anos em que o filho estudou em uma escola onde havia desrespeito e des-preparo por parte de alunos e profes-sores com relação à sua deficiência. “O Marvin está bem melhor agora, mas no antigo colégio ele só passou um ano. Ele se sentiu com medo, acu-ado, não queria frequentar as aulas. Os professores não sabiam como li-dar com ele e os outros alunos tam-bém não, o que fez a gente perceber a deficiência dos profissionais da edu-cação no tratamento com as crianças e jovens especiais”, comenta dona Maria Lúcia.

Deficiência profissional esta que Abraão Saraiva, 13, viveu na pele ao passar 3 meses em uma escola pública no bairro José Walter, onde mora. “Lá ele ficou ocupando só um lugar no espaço. Os professores da-vam uma caneta pra ele e ele ficava lá, riscando. Pronto, não fazia nada. As crianças não respeitavam ele e isso fez com que até medo ele sentis-se de ir para o colégio”, conta dona Meuriceia Lima, mãe do Abraão. Sem condições de pôr o filho em uma escola particular, ela, através de uma reunião de pais na antiga escola de Abraão, descobriu que a EEFM Professora Diva Cabral, localizada na Maraponga, possuía uma sala pró-pria para portadores de necessidades especiais, onde eles podiam interagir entre si e, nos intervalos, também com os outros alunos da base regu-lar. “Ele brinca de bola normal com os meninos de lá. Está adorando e eu vejo isso nele”, constata. Ao ser ques-tionada sobre a condição dos docen-tes para lidar com crianças e jovens especiais, dona Mauriceia é convicta: “Eles são despreparados. Quem tem condições até pode colocar em uma escola particular e ter um acompa-nhamento melhor, mas, na escola pú-blica, a criança vai sofrer com o es-quecimento, com a falta de cuidado. E não é por maldade dos professores: é porque eles não são preparados para isso. Graças a Deus, encontrei o Diva [Cabral, escola onde o Abraão estuda hoje] e ficou tudo bem. Mas foi uma sorte. Se eles fecharem, não sei o que eu faço”.

ABRAãO, UMA SíNdROME RARA E AS FERRAMENTAS PARA CONSTRUIR

UM FUTURO

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2015.146 RETICÊNCIAS

REPORTAGEM

Problemas como o enfrentado por Abraão são grandes obstáculos causados pelo desconhecimento do conceito de sistemas realmente in-clusivos – é necessário distinguir educação inclusiva de educação es-pecial. De acordo com o Decreto nº 6.949/2009, baseado na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, em 2006, a edu-cação especial “deve garantir os ser-viços de apoio especializado voltado a eliminar as barreiras que possam obstruir o processo de escolarização de estudantes com deficiência, trans-tornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação”. A educação inclusiva, por sua vez, abrange a educação especial dentro da escola regular.

Não há dúvidas de que incluir para educar é preciso, mas educar para incluir é algo ainda mais ne-cessário. Pais, educadores e colegas de classe devem estar engajados em como acolher corretamente os porta-dores de necessidades especiais, ou abre-se um verdadeiro abismo entre a teoria e a prática da educação in-clusiva e surge uma gama de desafios que, em alguns casos, começam den-tro de casa. “Muitas vezes os pais não admitem que a criança pode ter tal especialidade. Sempre dizem que é normal, dificultando assim o trabalho dos especialistas”, explica Neusa Ma-chado, psicopedagoga e educadora do sistema público de ensino. “Mes-mo quando reconhece, a família vai ajudar ou só fazer da escola um de-pósito, para que a criança possa pas-sar aqueles momentos na sala de aula como um alívio de casa?”. Segundo ela, não basta apenas aceitar a condi-ção especial da pessoa: é preciso fir-mar uma parceria realmente concreta entre família e escola.

Outro problema enfrentado pe-las crianças, jovens ou adultos que possuem tais necessidades é o fator financeiro. “Quando os pais têm me-lhor recurso financeiro, eles podem bancar uma escola particular e os especialistas necessários para acom-panhar essas pessoas. E quando não,

ficam à mercê das políticas públicas, que na prática não funcionam. São muito bonitas no papel, mas na reali-dade não funcionam”, comenta Neu-sa.

Mesmo que consigam vagas no sistema público, os portadores de necessidades especiais ainda podem não encontrar condições ideais de aprendizado, que vão desde a falta de instalações com acessibilidade ao despreparo de muitos profissionais. A psicopedagoga revela que há uma grande defasagem na capacitação dos educadores para lidar com esse públi-co. “Se você quer estudar e melhorar seu desempenho profissional, tem que batalhar e tirar do seu salário, que já é suado, porque o Governo não dá

esse suporte”.

O que efetivamente é posto em prática é um atendimento diferen-ciado paralelo ao ensino regular: no chamado Atendimento Educacional Especializado (AEE), os portadores de necessidades especiais são orien-tados por um profissional especia-lista. Segundo Neusa, o problema é que em muitas escolas há apenas um desses profissionais para lidar com todos os alunos especiais não só da-quelas instituições, mas também de áreas vizinhas. Para a educadora, no cenário ideal deve haver um especia-lista para cada especialidade.

Os professores passam em média quatro horas por dia com as crianças

A Síndrome de Down não é um empecilho para

os sonhos de Lívia. Os estudos são um caminho trilhado constantemente

pela futura advogada.

MARVIN E LíVIA FAZEM PARTE dOS BRASILEIROS COM dEFICIÊNCIA QUE ESTUdAM EM ESCOLAS COMUNS

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Maria Adiléa é fundadora e diretora de uma escola referência em inclusão no Ceará.

Ela tem uma formação inteira voltada à

educação inclusiva.

UMA VIdA dEdICAdA A INCLUIR

É com a necessidade de suprir es-sas demandas que surgem instituições particulares como o Colégio Regina Pacis. Assim como Lívia e Marvin, muitos outros alunos especiais fazem parte dessa instituição de ensino pio-neira na educação inclusiva no Ceará. Fundada no ano de 1970 com o nome de Escola Mirim e apenas um estu-dante deficiente, ela surgiu em um cenário de negação às problemáticas relacionadas às pessoas com necessi-dades especiais, sobretudo quanto à integração delas no âmbito social.

Todas as turmas contam com pelo menos um aluno especial matriculado entre os comuns. Eles são divididos em níveis que respeitam não só as li-mitações cognitivas como também os variados perfis dentro de sala de aula, eliminando possibilidades de segre-gações. Para a coordenadora pedagó-gica Madalena Lopes, essa dinâmica favorece a troca de conhecimento entre os estudantes comuns e os es-peciais, gerando uma relação em que todos aprendem, crescem e, é claro – em que ninguém se sente diferente.

“Na nossa escola incluir não é só receber o aluno especial, incluir é se preparar para receber o outro, traba-lhar de forma que aquele aluno não se sinta diferente.”, esclarece.

Adaptação e cooperação são as palavras-guia para atingir o principal objetivo do sistema: a inclusão. Para obter êxito nesse processo, é preciso

apenas os primeiros passos para que ela se desenvolva adequadamente. “Há toda uma sensibilidade do pro-fissional para que aquela criança se sinta bem na sala de aula e para que os outros alunos possam acolhê-la; dependendo da necessidade, eles até ajudam, como no caso de uma disle-xia, de um autismo leve. Os alunos acabam sendo parceiros do profissio-nal para que o outro tenha uma me-lhor aceitação na sala”, comenta a psi-copedagoga. “O papel do profissional de sala é fazer com que esse aluno adquira confiança e levantar sua au-toestima para que ele se desenvolva naturalmente, e com o tempo consiga viver bem numa sociedade onde infe-lizmente se discrimina qualquer tipo de necessidade especial”, diz Neusa.

e, quando percebem que há algo di-ferente com algum aluno, podem en-viar relatórios para os profissionais da AEE diagnosticando algum tipo de necessidade. Porém, em alguns ca-sos, o AEE simplesmente transcreve o que o educador expôs no relatório sem nem mesmo recomendar exames médicos. Neusa explica que a maioria dos profissionais tem receio de diag-nosticar o aluno e ser responsabiliza-da por isso, porque muitas vezes os pais não querem acreditar que os fi-lhos têm uma especialidade.

Quanto mais cedo uma criança receber o diagnóstico de uma es-pecialidade, tanto melhor será para sua formação. Sentir-se acolhida e ter prazer em frequentar a escola são

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REPORTAGEM

um trabalho conjunto entre comuni-dade, pais e escola – mas o precon-ceito e até o desconhecimento quanto às capacidades de um aluno especial ainda são desafios muitas vezes in-transponíveis por várias famílias.

É devido a variáveis como essas que a manutenção de um sistema de educação inclusiva torna-se difícil. A diretora Maria Adiléa Farias ressalta que a busca pela quebra de barreiras como as di-f iculdades de locomo-ção até à escola e a própria re-sistência da sociedade à diferença é o principal objetivo no processo de construção de um ser inclusivo, aliando-o a um sistema escolar ofe-recido em a m b i e n t e favorável ao desenvol-vimento da socialização e da cons-tante quebra de paradig-mas entre escola e comunidade.

A metodologia usada em sistema de educação inclusiva propicia um aprendizado que influencia no pro-gresso de ambas as partes envolvidas, sendo assim um crescimento que flui em mão dupla. Tanto os alunos que não possuem necessidades especiais se tornam mais autônomos, críticos e pacientes com as dificuldades dos colegas de classe, como os que ne-

cessitam de uma atenção a mais po-dem desenvolver suas capacidades e amadurecer o sentimento de inserção dentro de um cenário social. Além de que os profissionais envolvidos tam-bém estão em um constante proces-so de aprendizado bilateral. Por isso apenas aqueles que têm uma sensi-bilidade mais receptiva e um perfil mais humanístico, segundo Maria Adiléa, se demonstram aptos a atuar

no âmbito da educação inclusiva.A diretora também apontou pro-

blemas constantemente enfrentados pelos alunos para conseguir uma vaga no ingresso do ensino médio. Algumas escolas inclusivas como a Regina Pacis não possuem certi-ficação de ensino médio, surgindo assim a necessidade de transferir os estudantes para outras instituições. A problemática é agravada porque, se-

gundo Adiléa, as grandes escolas não têm suporte para receber os alunos especiais, enfraquecendo as possibili-dades de eles concluírem a formação escolar e fortalecendo a evasão. Na busca por vencer mais esse obstáculo, a diretora procurou apoio do CEJA (Centro de Educação de Jovens e Adultos) e conseguiu firmar uma par-ceria para que os concludentes do en-sino fundamental pudessem garantir

sua formação completa. As aulas aconte-cem no pró-prio espaço da escola, de modo a pre-pará-los para realização das provas do sis-tema básico seguindo os diferenciados ritmos e di-nâmicas de aprendizado.

Um sis-tema tão complexo e sensível às necessidades especiais de cada estudan-te não poderia render melho-res resultados – o quadro de funcionários da escola con-ta, atualmente, com a atuação

de ex-alunos. A inclusão vai muito além do ensino didático.

“Para mim, educação inclusiva é um processo solidário de convivência fraterna, de promoção da condição humana em qualquer condição que ela seja. Acho que a educação inclu-siva é esse processo de construção de uma sociedade, de retroalimentação da existência humana. Você nunca sai menor.”, concluiu Maria Adiléa.

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PORÁvila SouzaDaniel DuarteFilipe PereiraMichel MironRafael Bastos

FOTOSDaniel Duarte

REPORTAGEM

Métodos pedagógicos de avaliação

Como a competição de colégios por vagas novestibular está mudando o ensino

Fortaleza é referência, no Brasil inteiro, de apro-vações em vestibulares

de muito concorridos. A gran-de presença de alunos cearen-ses em cadeiras de institutos como ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica) e IME (Instituto Militar de Engenharia) tornou-se rotina. É comum que cearenses do-minem boa parte do percentual dos alunos provenientes dos maiores vestibulares do país. No ano pas-sado, por exemplo, 71 alunos de Fortaleza foram aprovados no ITA, num total de 170 vagas disponíveis.

Parte desse resultado é consequ-ência da formação de um império de colégio competitivos aqui no Ceará. Com estruturas imponen-tes, sedes em diferentes bairros, e alguns até mesmo com faculdades, essas escolas disputam todo ano pelo maior número de aprovação no ENEM e, consequentemente, Uni-

versidade Federal do Ceará (UFC) e Universidade Estadual do Ceará (UECE). Visando um diferencial na quantidade de aprovados, seus os alunos desses colégios che-gam a ser divididos em “turmas especiais” por critério de desem-penho e rendimento ou através de uma seleção interna,em que os alunos com melhores notas terão um programa de aulas diferen-ciado do restante da mesma série.

O cenário de aprovações é do-minado pelos colégios competi-tivos. A disparidade cresceu tan-to que, a cada ano, torna-se mais difícil encontrar alternativas para Ensino Médio fora desses gran-des centros. A procura é tão con-centrada nos grandes colégios

– que, por consequência, oferecem mais turmas a cada período – que outras institui-ções não se aventuram em ofertar classes para os anos

pré-vestibulares de ensino escolar.Esse domínio, contudo, transfor-

mou o ambiente escolar do estado. A agenda dos colégios que com-petem vaga por vaga é completa-mente dominada por conteúdos de vestibular, já a partir da formação no Ensino Fundamental. Cada hora do período letivo é dedicada exclusivamente ao ensino de ma-térias que compõem as exigências das provas para ensino superior – das quais o ENEM se destaca como mais predominante -, so-brando pouco ou nenhum espaço espaço para outros conhecimentos

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Passamos muito tempo no colégio e, como tudo é para o ves-tibular, a gente acaba sentindo uma certa falta de outros tipos de for-mação, de valores, que são impor-tantes para a vida.Mas acho que não é obrigação do colégio, pra mim, esse tipo de for-mação. O que procuro mesmo é passar no vestibular.”

Tainá Pinho, 16, aluna do colégio Ari de Sá

alternativos, ou mesmo já conhecidos, e até pouco comuns, como disciplinas de Educação Física e Informática. Conhecimentos técnicos e outras formações como filosofia, sociologia e artes, muito comum nos últimos períodos letivos de outros países, foram deixados de lado e não existem mais na esfera de ensino cearense. Mesmo o ensino de línguas é bem restrito e as poucas horas dedicadas a esses são em favor do que é cobrado no ENEM: inglês e espanhol.

Os estudante Leonardo Coelho, 16, é aluno da turma olímpica (o termo era, originalmente, “especial” – mas foi substituído por soar como estratificação) do 3º ano do ensino médio do Colégio Ari de Sá. Para ele, a metodologia do colégio é sim totalmente voltada para vestibulares, mas muitas vezes é isso mesmo que os pais procuram. “É o que a maioria quer, que seus filhos passem no ENEM. Esse é realmente o foco do Ari de Sá, e não tanto em valores, formação de humanidade, sociedade. Os professores são bem solícitos e até tocam nesses assuntos, mas o foco não é esse, e sim um bom resultado no vestibular”, conta Leonardo. Suas colegas de turma Tainá Pinho e Lara Fontenele tem o mesmo pensamento. “O colégio é todo voltado para o vestibular. A sistemática é muito boa e esse é meu objetivo mesmo, passar no vestibular”, diz Tainá. Lara, porém, admite sentir falta de conteúdo diferente no currículo do seu colégio. “Passamos muito tempo no colégio e, como tudo é para o vestibular, a gente acaba sentindo uma certa falta de outros tipos de formação, de valores, que são importantes para a vida”, confessa. Porém, explica: “Mas acho que não é obrigação do colégio, pra mim, esse tipo de formação. O que procuro mesmo é passar no vestibular.”

Lucas Garcia acredita que a turma especial do Colégio Farias Brito para vestibulares no ITA e IME foi essencial para o sucesso que conseguiu alcançar. “O material que eles [falta algo aqui] é bem focado, abrangendo todos os pontos da matéria de maneira sistemática e eles estimulavam bastante a gente a trabalhar em grupo. Posso dizer que aprendi a trabalhar em grupo, diz

Lucas. No caso das turmas ITA e IME, a modificação do currículo e especificação da agenda é bem mais aguda. Muitas matérias importantes no ensino médio, como Biologia e História, são retiradas por não estarem inclusas no programa de vestibular dos institutos pretendidos. “Isso prejudicou totalmente meu julgamento. E o ensino médio tem uma razão para existir, da maneira comum, ele está ali para construir o conhecimento de nível médio. Além disso, ele fecha a cabeça do aluno, ele só estuda, todos os dias, e isso pode acabar prejudicando a vida dele em outros pontos. Porque a vida não é só estudar”, diz.

Modelos tradicionais em contraste

Essa desvinculação da formação humana e social como parte da responsabilidade das escolas é algo novo, e deixou de ser uma das preocupações dos pais e da sociedade aos poucos, quando resultados e competição ganharam mais espaço, de acordo com Fátima Limaverde, diretora da Escola Vila. Os alunos desse tempo se acostumaram a ligar mais as tarefas do colégio àa conteúdo para vestibular e menos àa outras formações técnicas e humanas. “Acredito, sim, que a escola tem esse papel, de formação mais completa. A escola que não exerce esse papel não está agindo com responsabilidade. Hoje, os pais colocam os filhos em uma escola que só geram competitividade, que anulam o conhecimento, sabedoria, e não valorizam o indivíduo”, afirma Fátima. Para a diretora, outras áreas do saber e do conhecimento precisam ser incentivados pelas escolas para a formação de um cidadão, e não para a simples competição. “O que vejo é que essa necessidade de reconhecer os espaços, como a importância

como a importância de trabalhar pelo bem comum, de saber o que é sustentabilidade, conhecer o ambiente, o cuidado com o outro, com pessoas com necessidades especiais. Assim, você está formando um cidadão com a consciência muito mais ampliada e responsável. Educação deveria ser isso, e não competição”, pontua.

O caso é ainda mais agravado no Brasil. Os pais brasileiros estão obrigados, por lei, a matricular os filhos em instituições de ensino público ou particular. Ao contrário de outros países, a educação domiciliar (ou homeschooling, termo pela qual é conhecida) é proibida, como descrito no artigo 246 do Código Penal. Grande parte da responsabilidade de educação recai, fatalmente, sobre as instituições de ensino que se preocupam cada vez menos

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O que a gente vê é que os colé-gios cuidam melhor de uma só turma, a ‘especial’, possuindo 7 ou 8 turmas em cada série de ensino médio. Em turmas ‘regulares’, o professor não está tão preo-cupado em encantar e envolver o aluno como na ‘especial’. É necessário, porém, ir aonde o estudante está, acompanhar mais de perto. Se o aluno não está bem emocionalmente, ele não vai render, seja no âmbito humano ou nos estudos. Deve ser uma preocupação da escola”

Fátima Limaverde, diretora da Escola Vila

menos com formação humana e mais com conteúdo e resultados, e poucas opções restam aos pais.

A medida que crescem os colégios competitivos em resultados, cresce a procura. As escolas, pela demanda, aumentam a oferta. Mas nem sempre conseguem gerenciar bem a quantidade de alunos e dar atenção devida e dirigida a cada um em particular. “Existe uma certa atenção por parte do colégio. Eles disponibilizam pedagogas e psicólogas para conversar, mas muitas vezes tratam o aluno de maneira coletiva, e chegam a assustar. Recentemente, por exemplo, a coordenadora entrou em sala e falou, de repente, a todos, que quem não tivesse bem nas notas iria sair da turma olímpica. Isso assustou um pouco, não entendemos muito”, explica Lara Fontenele.

Para Fátima Limaverde, essa é uma preocupação que muitas escolas não têem mais e que os pais deram espaço para deixar de ser importante. “O que a gente vê é que os colégios cuidam melhor de uma só turma, a ‘especial’,

possuindo setesete ou oito 8 turmas em cada série de ensino médio. Em turmas ‘regulares’, o professor não está tão preocupado em encantar e envolver o aluno como na ‘especial’. É necessário, porém, ir aonde o estudante está, acompanhar mais de perto. Se o aluno não está bem emocionalmente, ele não vai render, seja no âmbito humano ou nos estudos. Deve ser uma preocupação da escola”, alegadefende. Segundo a diretora, existem alternativas no Ceará, e a Escola Vila é uma delas. Há formação técnica desde os primeiros anos do ensino fundamental até o último, o 9º ano, bem como orientações humanas e artísticas. . Os alunos de colégios como o Vila, porém, não ficam para trás nos resultados ao passarem para o ensino médio. “Nossos alunos são sempre muito disputados pelas escolas. É muito comum que recebam bolsas e entrem no quadro de honra já no primeiro bimestre. Não encontram pro-blemas para en-

trentrar na universidade”, afirma a diretora.

Outros métodos despontam na capital, em contrapartida dessa metodologia mais competitiva. É o caso da escola Waldorf Micael, que usa a Pedagofia Waldorf, fundada na Alemanha, que apresenta um programa mais personalista e dedicado a uma formação mais particular do aluno.

O colégio Oliveira Lima utiliza o método psicogenético, criado pelo professor de mesmo nome, e se inspira na teoria da equilibração de Jean Piaget, famoso psicólogo que desenvolveu muitas pesquisas relacionadas à educação, no que ficou mais conhecidoa, posteriormente, como “Epistemologia Genética”. Para o colégio e o método, a inteligência deve ser desenvolvida e trabalhada para comportar a demanda de conhecimento, e não apenas o repasse do conteúdo.

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ENTREVISTA

PORAline MedeirosÁvila SouzaCarlos Eduardo FreitasCarolina MeloFilipe PereiraMichel Miron

A Reticências entrevista o professor Jonas Serafim de Sousa, 53. Graduado em

Ciências da Religião pela Faculdade Católica de Fortaleza, Jonas Serafim é cristão ecumênico e ministra ensino religioso para o nível fundamental em uma escola pública da periferia de Fortaleza. A entrevista tem como base a sua função enquanto professor e a problemática que a envolve devido à laicidade do país e a quantidade majoritária de cristãos.

Jonas Serafim conta que nasceu em uma família muito católica. Seu pai e tios chegaram a ser seminaristas, mas não concluíram os estudos, o que também aconteceu consigo ao fazer boa parte do ensino fundamental e médio no colégio seminarista Seráfico Nossa Senhora do Brasil. “Eu não tinha vocação, mas queria estudar, e o seminário foi bom para mim”, revela o professor.

O aprendizado e a Lei

Jonas Serafim procura trazer em suas aulas uma linguagem que faça o aluno refletir sobre religião e espiritualidade. “É um ensino aberto, é uma linguagem aberta e ecumênica, mais ecumênica ainda porque não ficamos apenas no ensino

O sagrado é detodas as religiões

Professor da Rede Municipal de Fortaleza revela detalhes sobre o ensino religioso e aponta os principais desafios na cidade

cristão, muçulmano, ortodoxo e judaico, nós nos abrimos para todas as religiões”, revela o docente ao afirmar que a escola é um laboratório do pensamento. “Se você quer seguir uma religião, eu digo: ‘vá lá para a igreja na sua comunidade, seu caminho de fé e salvação’, aqui na sala de aula, não é caminho de salvação de ninguém”, relata.

Perguntado sobre os benefícios de que um ensino religioso e plural, que atenda às normas da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), traria a um jovem que inicia seus estudos, o educador relata que poderia mudar a maneira de compreender religiões diferentes “porque a gente não teve o estudo aprofundado sobre a religião indígena, sobre a umbanda, sobre

o candomblé, sobre o sincretismo religioso e as tradições afro-brasileiras aqui no Brasil”, comenta o professor. De acordo com a LDB, o ensino religioso é de matrícula facultativa, mas ao mesmo tempo parte integrante da formação básica do cidadão, assegurando o respeito à diversidade cultural sem a prática de proselitismo.

Ao comentar sobre suas reflexões em sala de aula, o educador destaca como é o seu tratamento no que diz respeito ao fenômeno religioso, que diverge de acordo com as culturas e as subjetividades. “Tem gente que diz para mim que o Sagrado é um prato de comida, eu vou dizer que não é se o menino está com fome? Para ele, um prato de comida é sagrado”, este termo foi tema da pesquisa de sua especialização: O que é o Sagrado para você? “Esse é o termo que a gente trabalha, são saberes e fenômenos religiosos, unir a espiritualidade com a educação. Não existe uma educação completa sem espiritualidade”, afirma.

Dificuldades no ensino religioso

O docente coleciona ao longo de sua carreira inúmeras histórias sobre suas dificuldades em lecionar o

FOTOSFilipe Pereira

“Não existe uma educação completa sem espiritualidade”

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fenômeno religioso para estudantes que muitas vezes não possuem interesse necessário para as aulas. “Esses alunos têm um comportamento agressivo, assistem muita televisão, têm a internet na mão deles, não tem lei que tire isso da mão deles, você não pode mais voltar isso, principalmente em escola pública”. O problema não é apenas estudantil, mas tem maior força “pela ausência dos pais também”, relata.

De acordo com o professor, tal comportamento não é atrelado somente ao ensino religioso, mas também às outras matérias, pois, segundo ele, o problema é generalizado e “não há disciplina que não sofra com tal falta de interesse”.

Outro problema que se soma à questão do ensino religioso no Brasil é a falta de livros didáticos para os alunos, “a gente não tem livro, o governo não passa livro. Nós temos muitos, muitas fontes, mas no ensino religioso nunca teve livro para o aluno, os livros que chegam na biblioteca são para o professor consultar e os alunos consultarem”, lamenta o educador.

Por fim, quando perguntado se as mudanças na lei em relação ao tratamento do ensino religioso nas escolas poderiam ser vistas como consequência da queda do número

de católicos no Brasil (de 73,6% da população em 2000 para 64,6% em 2010, de acordo com o Censo do IBGE de 2010), o professor afirma que vê o fenômeno de forma inversa. “A lei está se adaptando a uma realidade que forçou ela a fazer isso. Porque, hoje ninguém pode dizer como décadas atrás diziam, que o brasileiro é católico e que o Brasil é um país católico, isso não existe mais”, assume.

“A gente não tem livro. Nós temos

muitas fontes, mas no ensino religioso

nunca teve livro para o aluno”

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POR Larissa Pereira

ENSAIOVida na igrejaForça, segurança e vitória

Oração que alcança o céu

Marcas de amor

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Vida na igreja

Cruz Redentora Caminhos da fé

Marcas na história - Recanto do Sagrado Coração

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A história da salvação e a agonia de uma mãe

Sentido e direção de um cristão

Simplicidade

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Saberes coletivos

PORDiego Barbosa

CRÔNICA

De ônibus sempre andei, des-de pequeno. Filhos do as-falto sob quatro rodas, meus

pais sempre tiveram um carro, mas o bendito só era usado para pas-seios em nossas saídas dominicais à casa de minha avó, em intervalos temporais regulares. A distância nos consumia, o relógio mais ainda. O domingo sempre representou, assim, a possibilidade de dar uma volta no possante, além da chance de conhecer o que havia mudado na cidade ao redor. Sem dúvida, era o melhor dia da semana para mim...

Mas, talvez por viver constante-mente dentro de um ônibus – 5 dias da semana durante todo o ano, para ser mais preciso, a transitar pela urbe em busca de uma ida ou de uma volta para o lugar desejado – nunca me imaginei fora daquele espaço. Não por muito tempo. Estranha-mente, até hoje eu acho reconfor-tante estar em contato com outras pessoas, partilhando o mesmo lu-gar, o mesmo desejo de ir ou voltar para ali ou acolá, por onde o destino

nos levar. Dentro da rota prevista, claro. E foi em uma dessas vezes em que eu estava perdido em meus pensamentos de agradecimento por estar ali, naquele ônibus, são, salvo e em movimento, que eu presenciei um dos momentos mais sublimes e marcantes da minha vida, algo que eu nunca vou esquecer.

Eu vinha voltando para casa, sendo eu o único que estava em pé no coletivo. Observava a paisagem, observava as pessoas que ali se en-contravam e via que quase todas estavam fissuradas com o seu celu-lar na mão, rindo com ele, jogando nele, tendo uma vida ali. De re-pente, quando o ônibus parou em um sinal, vi uma velhinha que es-tava encostada no muro de sua casa, protegida por um grosso portão de ferro. Levantando o olhar para as janelas do ônibus, ela olhou para mim e soltou um lindo e espontâ-neo sorriso. Sim, um sorriso sin-cero, tão materno, tão acolhedor... Rapidamente, no entanto, o ônibus soltou um ruído e partiu.

Ele partiu; eu não. Senti-me diferente, feliz. E concluí: acho que se as pessoas se desconectas-sem um pouco dos seus aparelhos eletrônicos e dessem uma chance às mais simples e belas manifestações de amor que às vezes encontramos nas ruas, o mundo seria diferente, mais humano, menos quase robóti-co.

E assim caminha a vida de todos nós, dando voltas, acompanhando o movimento ora lento, ora frenético dos ônibus da existência, sabendo que em todo lugar há uma lição de aprendizado, um saber a ser desvendado. Como eu aprendi ali, naqueles trinta segundos que de-finitivamente mudaram o meu dia e que até hoje ressoam em minha mente como prova de que perceber e dar valor ao que se encontra fora da gente também pode ser um óti-mo exercício de encontro conosco mesmos. Uma oportunidade ganha, mais um saber para a coleção.

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