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Revista da AJUFERGS

ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES FEDERAISDO RIO GRANDE DO SUL

10 - 2018

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Revista da AJUFERGSPublicação oficial da ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES

FEDERAIS DO RIO GRANDE DO SUL - AJUFERGS

Diretor Cultural da RevistaLademiro Dors FIlho

Conselho EditorialGerson Godinho da Costa

Rafaela Santos Martins da RosaLademiro Dors Filho

Maria Helena Rau de SouzaAna Raquel Pinto de Lima

Assessoria EditorialFranciane da Silva Barbosa

CapaFernanda Goudinho Azevedo

RevisãoEloah Kegler

EditoraçãoFábio A. T. dos Santos

ImpressãoGráfica DataCerta LTDA

As opiniões expressas nos trabalhos são de responsabilidade dos Autores.Não são devidos direitos autorais ou qualquer remuneração

pela publicação dos trabalhos nesta Revista.

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ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES FEDERAISDO RIO GRANDE DO SUL

Fundada em 08 de dezembro de 2001

CONSELHOS

Conselho Executivo

PresidenteGERSON GODINHO DA COSTA

Vice-presidente AdministrativoGIOVANI BIGOLIN

Vice-presidente de Patrimônio e FinançasALESSANDRO DUTRA LUCARELLI

Vice-presidente Cultural e da ESMAFERAFAELA SANTOS MARTINS DA ROSA

Vice-presidente de Assuntos InstitucionaisALEX PÉRES ROCHA

Vice-presidente de Assuntos JurídicosJOSÉ LUIS LUVIZETTO TERRA

Conselho Fiscal

ALTAIR ANTONIO GREGORIOANDREI PITTEN VELLOSO

ROGER DE CURTIS CANDEMIL

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DIRETORIA AJUFERGS

Diretor CulturalLADEMIRO DORS FILHO

Diretora Administrativa da ESMAFE/RSANA RAQUEL PINTO DE LIMA

Diretor de Ensino da ESMAFE/RSMARIA HELENA RAU DE SOUZA

Diretora Social e de BenefíciosDENISE DIAS DE CASTRO BINS SCHWANCK

Diretor de EsportesEZIO TEIXEIRA

Diretor de Assuntos do Interior do EstadoMARCELO FURTADO PEREIRA MORALES

Diretor de Assuntos LegislativosADEL AMERICO DIAS DE OLIVEIRA

DIRETORIA ESMAFE/RS

Diretor-Geral da ESMAFE/RSRAFAELA SANTOS MARTINS DA ROSA

Diretor Administrativo da ESMAFE/RSANA RAQUEL PINTO DE LIMA

Diretor de Ensino da ESMAFE/RSMARIA HELENA RAU DE SOUZA

Diretor Cultural da ESMAFE/RSLADEMIRO DORS FILHO

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Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul AJUFERGS

Biênio Jun/2016 - Jun/2018

Rua dos Andradas, 1001, conjunto 150390020-007 - Porto Alegre, RS

(51) 3226.7057 - www.ajufergs.org.br

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SUMÁRIO

TEORI ALBINO ZAVASCKI – AGRADECIMENTO PELA HOMENAGEM .................................................................... 13Liliana Maria Prehn Zavascki

CONTINUE CONOSCO, EM SUA HUMANIDADE, ALEGRIA E FELICIDADE; E OLHAI POR NÓS ...................... 17José Antonio Dias Toffoli

DISCURSO PROFERIDO PELO DESEMBARGADOR FEDERAL CARLOS EDUARDO THOMPSON FLORES LENZ, VICE-PRESIDENTE DO TRF DA 4ª REGIÃO, EM 21.03.2017, EM PORTO ALEGRE, NA HOMENAGEM PRESTADA PELA ESCOLA DA ADVOCACIA--GERAL DA UNIÃO AO MINISTRO TEORI ZAVASCKI .................. 21Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz

COM TEORI ZAVASKI EM MOMENTOS DE TENSÃO .............. 25Vladimir Passos de Freitas

TEORI ALBINO ZAVASCKI PESSOA SIMPLES, CORDIAL, AMIGA E JURISTA DE ESCOLA ............................ 27Vilson Darós

SOBRE TEORI ZAVASCKI ........................................................... 35Lademiro Dors Filho

INEXIGIBILIDADE DE SENTENÇAS INCONSTITUCIONAIS ...... 39Teori Albino Zavascki

INTERPRETAÇÃO JUDICIAL: EXAME CRÍTICO DOS VIESES .................................................................................... 57Juarez Freitas

O PARECER GMF 05/2017 DA AGU E A CONSTITUIÇÃO ..... 85Manoel L. Volkmer de Castilho

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OS LIMITES DA PRESUNÇÃO PARA CONFIGURAÇÃO DA MULTA FISCAL QUALIFICADA ........................................... 115Ricardo Nüske

OS EFEITOS VINCULANTES NO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS NO BRASIL ............ 129Fábio Vitório Mattiello

TOMBAMENTO E PRECAUÇÃO.............................................. 183Gabriel Wedy

REFLEXÕES SOBRE A FRAUDE À EXECUÇÃO NO CPC DE 2015 ............................................................................ 203Maria Helena Rau de Souza

A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E A ATUAL INTERPRETAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ........................................ 231Gerson Godinho da Costa

TRIBUNAL DE JUSTICIA AMBIENTAL EN AMÉRICA LATINA: ALTERNATIVA JURÍDICA RESPONSABLE PARA PREVENIR DESASTRES ECOLÓGICO. .......................................................... 259Edgardo Torres López

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EDITORIAL

A Revista da AJUFERGS chega enfim ao seu décimo número. E visando celebrar esta especial edição, decidiu-se por dedicá-la ao saudoso Ministro Teori Albino Zavascki.

Por oportunidade desta homenagem é que a Revista se dissocia um pouco do espírito que orientou os volumes anteriores. Não deixa de apresentar estudos jurídicos inéditos, alguns dedicados ao Ministro Teori ou relacionados a temas de sua preferência, mas publica também depoimentos e dedicatórias.

Sua filha, Liliana Maria, o Ministro Dias Toffoli, o Presidente do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, e os Desembargadores Federais Vladimir Passos de Freitas e Vilson Darós, seus colegas e amigos, bem como o Diretor Cultural da AJUFERGS, Lademiro Dors Filho, contribuíram com depoimentos emocionantes.

Os anteriores Presidentes da AJUFERGS, sem exceção, Ricardo Nüske, Paulo Paim da Silva, Adel Américo Dias de Oliveira, Carla Evelise Justino Hendges, Gabriel de Jesus Tedesco Wedy, José Fran-cisco Andreotti Spizzirri, Rodrigo Machado Coutinho e Fábio Vitório Mattiello, igualmente se manifestaram sobre a pessoa do Ministro Teori, seja mencionando o homem, o magistrado ou o professor.

Em relação à parte científica, considerou-se adequado republicar trabalho da lavra do próprio Ministro Teori, veiculada no terceiro número, tratando de tema de seu especial agrado, a “Inexigibilidade de Sentenças Inconstitucionais”.

O eminente Professor Juarez Freitas, em tributo ao Magistrado Teori, dedicou-lhe o estudo “Interpretação Judicial: exame crítico dos vieses”, enquanto seu afetuoso amigo e colega no Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, Manoel Lauro Volkmer de Castilho, apresentou o trabalho “Parecer GMF 05/2017 da AGU e a Constituição”.

Os associados e os ex-presidentes da AJUFERGS Ricardo Nüske, Fábio Vitório Mattiello e Gabriel de Jesus Tedesco Wedy, disponibilizam

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ao público especializado, respectivamente, os escritos “Os Limites da Presunção para Configuração da Multa Fiscal Qualificada”, “Os Efeitos Vinculantes no Controle Difuso de Constitucionalidade das Leis no Brasil” e “Tombamento e Precaução”.

Prosseguindo, a Diretora de Ensino da Esmafe, ilustre Professora de Direito Processual Civil, Maria Helena Rau de Souza, contribuiu com o artigo “Reflexões sobre a Fraude à Execução no CPC de 2015”. Já o atual Presidente da Associação, Gerson Godinho da Costa, consagrou ao Ministro Teori o ensaio “A Presunção de Inocência e a Atual Interpretação do Supremo Tribunal Federal”.

Encerrando o volume, o trabalho do jurista peruano Edgardo Torres, “Tribunal de Justicia Ambiental en América Latina: alternativa jurídica responsable para prevenir desastres ecológicos”.

Segue então esta edição especial, uma singela homenagem à memó-ria do Ministro Teori Albino Zavascki. Prosaico tributo, mas, sincero e afetuoso, reverenciando destacado e inesquecível homem público.

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PALAVRA DA DIRETORIA

... ou melhor, do Presidente. Numa manobra ostensivamente autoritá-ria, tomo para mim a missão de escrever este texto. Por uma razão muito simples, que, penso, convencerá meus colegas de Diretoria acerca dessa drástica medida, ou melhor, as minhas amigas e meus amigos de gestão. Ao motivo, pela primeira vez, esta Revista adota um caráter pessoal, ao dedicar singela, porém sincera, homenagem a um prócer do Direito, o Ministro Teori Albino Zavascki. Essa especial deferência recomenda ou exige também um texto introdutório pessoal. Penso...

Além disso, esta edição é especial, por ser a de número 10. Para nós, brasileiros, o número da camiseta usada por Pelé. Será preciso dizer mais? Numa sociedade em que o futebol se pronuncia menos como modalidade esportiva do que como fator cultural? O futebol é a pauta do dia a dia, nas mesas dos botecos, nos escritórios, nos lares. Tanto nos separa – vide a propósito as grenalizações, neologismo tão caro aos gaúchos e tão rico de significação – quanto nos une, via seleção brasileira, especialmente neste ano de Copa do Mundo. E para quem não aprecia o esporte, o número tem outras acepções, como nota máxima, símbolo da perfeição, representação da harmonia, a contentar teístas, incréus, cabalistas, esotéricos, inclusive os críticos, que podem se sentir à vontade de censurar a opção.

Mas por que falar de futebol numa revista jurídica que deseja ho-menagear proeminente autoridade pública? Porque foi tendo o futebol por assunto que travei um dos diálogos mais folclóricos de minha vida, com ninguém menos que o Ministro Teori.

Estávamos numa efeméride qualquer quando dele me aproximei para proferir a seguinte pérola: “Ministro, sendo o senhor uma pessoa tão influente e respeitada, sócio do nosso amado Grêmio Futebol Porto--Alegrense, não teria como se empenhar na substituição da atual diretoria do clube, responsável pela nossa má fase futebolística?”. Claro que aqui edulcoro minhas expressões. Não as lembro exatamente. Mas com certeza foram versadas mais coloquialmente. O problema é que mal sabia eu que o presidente da tal diretoria era um dos melhores amigos do Ministro...

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Era o ensejo para o experiente magistrado dar uma lição no guri de toga... Mas qual nada! O Ministro Teori, inabalável, agiu como o Teori de sempre, de todos conhecido, respondendo com voz suave, pacífica, professoral, num tom carregado de sapiência: “Vamos ter calma. Vai melhorar! Vai melhorar!”

Jamais esquecerei essas palavras. Estavam acompanhadas por um circunspecto sorriso. Comedido, sim, mas carregado de significações, como do tipo, tu precisas ser mais prudente quando falar. Foi uma lição. Discreta, mas importantíssima, inolvidável. Daquelas cuja simplicidade da manifestação não encontra paralelo no tamanho da contribuição para o aperfeiçoamento pessoal do interlocutor.

Atualmente, o clube de coração do Ministro tem obtido conquistas contundentes: os tão almejados títulos têm chegado com frequência inaudita. Estava certo, pois, o Ministro Teori. Melhorou! E muito! Te-nho a impressão de que, estivesse ele vivo, e acaso se lembrasse dessa conversa, acabaria por me reservar aquele mesmo discreto sorriso, agora traduzindo algo do tipo: “viu guri, eu não falei...”.

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TEORI ALBINO ZAVASCKI AGRADECIMENTO PELA HOMENAGEM

LILIANA MARIA PREHN ZAVASCKIFilha de Teori Albino Zavascki e advogada.

Passado mais de um ano do dia que em que meu pai Teori Albino Zavascki partiu de forma tão repentina e prematura, ainda é muito difícil para eu falar publicamente sobre ele. Talvez porque tenha a sensação de que tudo o que eu diga será insuficiente para sequer resumir o que vi e vivi com ele nesses anos, talvez porque a dor ainda latente simplesmente não me permita.

Portanto, as palavras que ora deixo registradas não pretendem traduzir nem meu amor nem minha admiração por ele, muito menos a grandeza da sua obra como advogado, professor, doutrinador e ma-gistrado.

De toda sorte, justamente nos passos do que vi e vivi com meu pai, não poderia furta-me de dizer que se a ele fosse dado a saber desta home-nagem em algum lugar da eternidade (e espero que isto possa acontecer), sentir-se-ia muito feliz e honrado em saber que as sementes que plantou seguirão dando frutos e que não será esquecido por homens e mulheres de bem que buscam a Justiça fundamentada no Direito.

Posso igualmente testemunhar, e certamente não seria a única testemunha, da importância que meu pai sempre deu às revistas de Direito e aqueles que dedicavam seu tempo a escrever artigos. Posso dizer que tinha apreço especial por aqueles que buscavam “de forma abstrata” e “de antemão” observar onde poderiam surgir os problemas normativos ainda não identificados, ou de que forma resolver os pro-blemas já encontrados, “facilitando assim de sobremaneira a atividade dos operadores do Direito”, palavras dele ditas a mim quando eu ainda estudante de Direito.

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REVISTA DA AJUFERGS / 1014

Desde pequena convivi com as revistas de Direito. Eram para ele uma preciosidade. Nem sempre para ele foi fácil adquiri-las, mas elas já estavam lá no seu primeiro escritório que mantinha com minha mãe, Liana.

E naquela época muito as consultava. Para petições, aulas, livros, votos, tudo o que vi e acompanhei então e depois nessa trajetória de muito amor e dedicação ao que fazia, sempre havia lá, junto aos livros, as revistas de Direito.

Acho que a homenagem se torna ainda mais significativa quando estamos falando de uma revista da AJUFERGS. Isto porque uma parte do meu pai nasceu no berço da Justiça Federal, que, em muitos aspectos, ele ajudou a moldar. De fato, foi quando ele tomou posse Tribunal Re-gional Federal da Quarta Região que ele nasceu como Magistrado e fez uma carreira brilhante que culminou com sua ida ao Superior Tribunal de Justiça e, posteriormente, ao Supremo Tribunal Federal.

Assim é que a Justiça Federal da Quarta Região entra na vida do meu pai, dando-lhe vida como Magistrado.

Muitos foram os passos do pai nessa jornada. Muita jurisprudência consolidada, enorme experiência como Juiz, na administração do Tribu-nal como Vice-Presidente e como Presidente. Uma enormidade de feitos deixados para tornar a Justiça Federal melhor e mais efetiva. Isto sem falar na aquisição pessoal com convivência de profissionais de altíssima qualidade e amigos muito queridos dos quais jamais se esqueceu.

Sua dedicação ao trabalho, empenho pelo justo, postura reta e guarda da lei e da Constituição eram-lhe características que se poderia dizer quase que inatas e sua vida uma conseqüência disto. Por onde passou deixou suas marcas. Mas não sem muito esforço. Este reconhecimento muito emociona.

A leitura foi o seu maior instrumento de trabalho. Era um leitor contumaz: apaixonado por livros e bibliotecas, lia tudo e o quanto lhe fosse possível. Uma mente incrível que parecia harmonizar uma biblio-teca inteira de princípios, teses, leis, fatos, história e assim por diante. Homenageá-lo de forma ligada ao estudo profundo do Direito, tal qual ele fez a vida inteira, deixa a certeza de que seus passos não foram em vão.

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15DEPOIMENTO

Meu pai nasceu e morreu acreditando na Justiça. Na Justiça e não em “justiciamento”. Na Justiça institucionalizada, organizada, na Justiça das leis e da Constituição.

Como disse uma vez: “O padrão civilizatório de um povo se mede pela sua capacidade de observar as normas naturalmente”.

Para se atingir um alto padrão civilizatório de um povo, não há dúvida, necessitamos de que muito estudo, muita leitura seja estimulada e praticada. Necessitamos muitas revistas e muitas bibliotecas. Assim, cada dia mais a Justiça em nosso País ocorrerá de forma mais natural.

Em nome de meu para sempre querido e amado pai Teori Albino Zavascki, de meus irmãos Alexandre e Francisco, dos seus netos (Alice, Bruna, Mariana Isabela e Theodoro), venho agradecer esta belíssima homenagem prestada pela AJUFERGS.

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CONTINUE CONOSCO, EM SUA HUMANIDADE, ALEGRIA E FELICIDADE;

E OLHAI POR NÓS.

JOSÉ ANTONIO DIAS TOFFOLIMinistro e vice-presidente do Supremo Tribunal Federal

Eu conheci o Ministro Teori Zavascki, em 2004, quando ele foi nomeado Ministro do Superior Tribunal de Justiça e se mudou, então, de Porto Alegre, onde atuava no Tribunal Regional Federal. Eu era ad-vogado àquela época, atuando na subchefia para assuntos jurídicos da Presidência da República.

Durante sua atuação no Superior Tribunal de Justiça, passei a conhecê-lo melhor. Ainda em 2004, lembro, por exemplo, de um Con-gresso da Associação dos Juízes Federais (AJUFE) realizado em Recife/Pernambuco. Lá, já tive a grata oportunidade de conhecer a pessoa do Teori, descontraída, tomando uma caipirinha na piscina, conversando a respeito da vida e também do Direito.

O Ministro Teori de paletó, gravata e com a toga passava uma imagem de uma pessoa fechada, de poucas palavras, uma pessoa completamente econômica do ponto de vista de contatos. Fora do trabalho, sempre foi uma pessoa totalmente diferente, expansiva, so-ciável, extremamente afável - uma pessoa prazerosa de se estar perto. Sempre o foi para mim, desde o momento em que tive a oportunidade de ter um contato pessoal com ele, em 2004, até sua triste passagem, seu falecimento.

Quando o Ministro Teori tomou posse no Supremo Tribunal Fe-deral, ele vivia uma situação pessoal extremamente difícil, que era a doença de sua esposa. No período, ele acompanhava o tratamento dela em São Paulo e, algumas vezes, saímos para almoçar e fumar um cha-ruto na Charutaria Ranieri, nos Jardins, São Paulo. Após o falecimento da esposa, ele ficou sozinho em Brasília. Então, passamos a ter uma convivência muito próxima. Era muito comum eu e a minha esposa

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REVISTA DA AJUFERGS / 1018

Roberta sairmos com ele para restaurantes e para eventos com amigos comuns. Ele sempre gostou muito de charuto e várias vezes fazíamos jantar lá em casa, fumávamos um charuto e conversávamos por horas. Nossa convivência se aprofundou, ainda mais, na época que atuamos na Justiça Eleitoral. Ele gostava muito de direito eleitoral. No Tribu-nal Superior Eleitoral, participamos de várias missões internacionais. O Ministro Teori acompanhou várias eleições, como as da Argentina e do Uruguai. Estivemos juntos, em 2016, na eleição norte-americana, que Trump disputou com a Hillary Clinton. Em 2016, tivemos um evento internacional, organizado pelo Tribunal Superior Eleitoral, que envolveu todo o Poder Judiciário eleitoral, os organismos eleitorais das Américas, com a participação de todos os países da América do Norte - Estados Unidos, Canadá, México -, de vários países da Amé-rica Central e do Caribe e de todos os países da América do Sul. Esse evento foi organizado num navio no Rio Negro, em Manaus. Foram três dias de intensos debates. Durante o dia, participávamos dos debates, trocávamos experiências sobre temas como democracia, representação, problemas de cada país, dentre outros. À noite, após o jantar, havia os momentos de descontração. Lembro de um fato muito curioso. Um violeiro que tocava lá, no último dia - portanto, já no final do evento -, chegou para mim e falou: “olha, muito bacana o senhor etc. e tal; foi muito bom esse encontro, conheci muita gente, gente de tudo quanto é país, mas eu queria fazer um pedido ao senhor, eu queria mesmo era conhecer aquele Ministro, o Teori Zavascki, eu queria conhecer ele, eu sou fã do Ministro Teori Zavascki”. Aí eu virei para ele e falei: “olha, é aquele que está de boné, exatamente atrás de você, e que cantou com você várias vezes aqui durante esses três dias”. Isso ilustra exatamente o que já falei: quem via o Ministro Teori com o paletó, a gravata e a toga e o via fora do trabalho tinha uma percepção bem diferente. O violeiro, fã do Teori, conviveu com ele três dias sem notar que ele era o Ministro Teori Zavascki. Eles ficaram batendo papo lá, o violeiro e o Teori.

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19DEPOIMENTO

Nos julgamentos do Plenário do Supremo, o Ministro Teori sempre se destacou pela firmeza e pela elegância com que expunha seus argu-mentos. Divergir do Ministro Teori sempre foi muito difícil, exatamente pelos robustos fundamentos técnico-jurídicos de seus julgamentos. Nas vezes em que divergia dele, nosso diálogo sempre fluía de uma maneira bastante tranquila. Ele sempre foi muito aberto a divergências e a refletir melhor. Na maioria das vezes, eu o acompanhava em grandes casos. Casos extremamente importantes e, até certo ponto, dramáticos, envolvendo, por exemplo, a prisão do então Senador Delcídio Amaral, em que a Turma referendou a decisão dele; o afastamento do presidente da Câmara dos Deputados, o Eduardo Cunha, em que ele também tomou a decisão ad referendo do Plenário – depois, o Plenário referendou sua posição. Ele tinha uma visão de defesa do Estado, do patrimônio público, sempre preocupado com o impacto de suas decisões, sem deixar de ser justo e correto. Em matéria tributária e fiscal, ele sempre se destacava pelo rigor técnico-jurídico e pela convicção de suas firmes posições. A solidez de sua cultura jurídica era extraordinária. Ele realmente dominava o Direito como um todo, era um juiz completo.

No que diz respeito à Operação Lava a Jato, por exemplo, o Mi-nistro Teori foi fundamental na manutenção e no avanço da operação. Ele teve um peso extremamente importante no desdobramento dessa grande operação em vários locais do país afora e no Supremo Tribunal Federal. Mesmo com todo o peso dos casos referentes à Lava a Jato, ele era extremamente tranquilo em seus momentos de descontração, em seus momentos de estar com amigos, com as pessoas de que ele gostava. Era realmente muito fácil e prazeroso conviver com ele.

Não há como explicar a ausência do Ministro Teori. É uma tristeza interminável, é uma tristeza permanente. Há uma frase muito marcante do escritor e cineasta francês Marcel Pagnol. Ele diz o seguinte: “a vida é feita de alegrias passageiras e de tristezas inesquecíveis”. E uma das tristezas que eu carrego é a perda do Ministro e amigo Teori Zavascki.

O trabalho no Supremo é extenuante e sair do trabalho e poder ter a companhia de um grande amigo, de um bom bate-papo, de poder des-contrair, contar uma piada, dar risadas juntos sempre foi um privilégio.

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REVISTA DA AJUFERGS / 1020

Ele realmente seduz: seduz na conversa, seduz no silêncio. Vejam que agora eu falo dele no presente, porque, para mim, ele sempre estará presente. Assim, minha dedicatória a ele é esta: continue conosco, em sua humanidade, alegria e felicidade; e olhai por nós.

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DISCURSO PROFERIDO PELO DESEMBARGADOR FEDERAL CARLOS EDUARDO THOMPSON FLORES LENZ,

VICE-PRESIDENTE DO TRF DA 4ª REGIÃO, EM 21.03.2017, EM PORTO ALEGRE,

NA HOMENAGEM PRESTADA PELA ESCOLA DA ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO

AO MINISTRO TEORI ZAVASCKI.

CARLOS EDUARDO THOMPSON FLORES LENZDesembargador Federal Vice-Presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região

Prezado Professor Juarez Freitas,

Autoridades presentes,

Familiares do Ministro Teori Zavascki,

Senhoras e Senhores:

Atendendo ao honroso convite que me foi formulado pela Escola da Advocacia-Geral da União para falar nesta solenidade, faço-o com o maior prazer associando-me às merecidas homenagens prestadas ao já saudoso Ministro Teori Zavascki, recentemente falecido.

O Ministro Teori Zavascki percorreu, de forma exitosa, todos os caminhos percorríveis por quem se dedicar possa à carreira das letras jurídicas: Advogado, Professor de Direito Processual Civil e Magis-trado e as exerceu com o brilho de sua inteligência e a honradez do seu passado.

A essas qualidades da personalidade do saudoso Ministro Teori Zavascki, aliam-se outras de caráter pessoal: cordial e amável no trato com seus colegas, advogados e membros do Ministério Público.

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REVISTA DA AJUFERGS / 1022

No Supremo Tribunal Federal, última etapa de sua brilhante judica-tura, restou demonstrada, em votos memoráveis, a sua cultura jurídica expressa na palavra fluente ao proferir os seus votos em linguagem clara e segura.

Quando ainda integrante do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, testemunhei a sua preocupação com a busca da verdade e da Justiça, pois é preciso ter presente que o Magistrado que não deseja trair a confiança dos seus jurisdicionados deve, sempre, como advertia Renard1, ao exa-minar os pleitos, começar por julgá-los de acordo com o Direito Justo, ou seja, com equidade. Posteriormente, pesquisará os precedentes da jurisprudência, a doutrina, tudo o que se lhe deparar favorável ao cami-nho indicado pela sua consciência jurídica, liberta do domínio cego de entidades puramente lógicas ou abstratas.

Essa arte superior de julgar decorre de uma personalidade forte e culta, mediadora entre as fórmulas abstratas e a realidade dos fatos decorrentes da vida em sociedade.

Já afirmara Celso, no Digesto: “Neque omne quod scriptum est, jus est; neque quod scriptum non est, jus non est. Prior atque potentior est quam vox, mens dicentis”.

Em uma de suas obras mais conhecidas, Chesterton2 diz-nos que todos os homens da história que fizeram algo pelo futuro tinham os olhos fixos no passado.

Por tudo que representou o saudoso Ministro Teori Zavascki, do-tado de uma cultura sólida e de um pensamento jurídico consistente, impregnado de seriedade e dedicação à causa da justiça, podemos dizer com segurança que o seu exemplo servirá de inspiração à Magistratura brasileira.

1 Renard, Georges. Le Droit, La Justice et La Volonté, Recueil Sirey, Paris, 1924, p. 68. Nesse sentido, também, Pierre Bouchardon, in Le Magistrat, Librairie Hachette, Paris, 1926, p. 119; e Jean Carbonnier, in Flexible Droit, 10ª édition, L.G.D.J., Paris, p. 8.2 Chesterton, G.K., What’s Wrong whit The World, Dover Publications, Inc., New York, 2007, p. 22.

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23DEPOIMENTO

Permita-me, estimado Professor Juarez Freitas, concluir a presente oração, com estas palavras de Ruy Barbosa3 que resumem, tenho certeza, o credo do nosso homenageado, que dedicou toda a sua fecunda vida profissional ao serviço do Direito e da Justiça, verbis:

“Eu creio na lei, e não creio senão nela, mas na lei em sua verdade, em sua inteireza, em seu espírito desinteressado, sem cumplicidades com as conveniências dos amigos, nem capitulações ante as exigências do poder. De uma ditadura, que dissolve o Con-gresso Federal, apoiando-se na fraqueza dos governos locais, para outra, que dissolve os governos locais, apoiando-se no Congresso restabelecido, não há progresso apreciável. As reações são como os crimes, de que falava o moralista romano, em que cada atentado conduz inevitavelmente a outros atentados: Per scelera semper aceleribus certum iter est.

Creio no desenvolvimento da República, se ela se estribar na legalidade; mas vejo a legalidade profundamente viciada pelos estilos do Congresso e pelo arbítrio do Executivo. Vejo, em vez da forma presidencial, do regime americano, uma híbrida procriação da ditadura com o parlamentarismo, cujo resultado vem a ser a nulificação do corpo legislativo e a confusão de todos os poderes nas mãos de quem está hoje a República, visse para onde o arras-tam, faço-lhe a justiça de crer que o seu patriotismo retrocederia desse caminho.

Creio que a República irrompeu das queixas imemoriais do país contra a centralização imperial, e considero, portanto, insensatas as invasões da autoridade federal na autonomia dos Estados. Ora, dessa autonomia só resta hoje o que à vontade soberana do centro apraz conceder-lhes. Pois ainda agora não se acaba de nomear chefe de polícia para a Bahia, encartando-se me uma organização constitucional perfeitamente consumada, um parasita da ditadura central?

Creio que é necessário consolidar a União pelas simpatias dos Estados. Mas agora mesmo pouco anunciar, como plano definitivo do governo, a continuação sistemática da campanha das deposições,

3 In Obras Completas de Rui Barbosa – Discursos Parlamentares, Ministério da Edu-cação, Rio de Janeiro, 1947, v. XIX-1892, t. I, pp. 287/9.

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que é a escola e o embrião da guerra civil. E cada vez mais me convenço de que, se sacudimos a centralização bragantina, não foi para substituí-la pela centralização pretoriana.

Creio que a ordem não pode florescer, senão no seio da estabili-dade e da justiça. Mas vejo os depositários da ordem respirarem deli-ciosamente na agitação, animando-a, promovendo-a, propagando-a, e sinto empolarem-se, cada vez mais acirradas, as paixões políticas, em que a vida oficial parece comprazer-se.

Creio de dia em dia mais urgente um apelo a todas as forças vivas da nação, a todos os elementos válidos e sinceros do patrio-tismo brasileiro. Mas vejo a política tender de dia em dia mais à subdivisão, ao personalismo, ao espírito de grupo.

E já não sei como acabo por descrer. Mas não descreio; porque da própria intensidade destes males há de nascer a regeneração, em um movimento da consciência nacional, recuando ante o caos demagógico e a anarquia militar, que nos ameaçam.

Que esse movimento se opere pela ação das forças consti-tucionais será o caráter da sua legitimidade e a condição da sua eficácia: com a lei, pela lei e dentro na lei; porque fora da lei não há salvação.”

Muito obrigado.

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COM TEORI ZAVASKI EM MOMENTOS DE TENSÃO

VLADIMIR PASSOS DE FREITASDesembargador Federal aposentado do Tribunal Regional Federal da 4ª Região

Eu, como todos os outros convidados para participar do livro em homenagem ao Ministro Teori Albino Zavaski, poderia encher muitas folhas com elogios sobre suas qualidades. Contudo, com estima e res-peito, optei por narrar uma passagem em que ele revelou estabilidade e controle emocional.

Foi em Porto Alegre, dezembro de 2004, em dia próximo do Natal. Eu, então presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª. Região, fui fazer uma visita ao amigo Teori Zavaski, então ministro do Superior Tribunal de Justiça. O dia estava nublado e quente, a rua Coronel Lucas de Oliveira, onde eu morava, vazia. Acionei meu Monza verde musgo e parti em direção à rua Pedro Ivo, residência da sua então namorada, Maria Helena, onde Teori se encontrava.

Anunciei minha chegada ao interfone e subi de elevador. Ao abrir a porta, encontrei Maria Helena com cara de assustada e recebi uma ordem de um homem moreno, traços delicados, cerca de 35 anos que, apontando-me a arma sentenciou: “entra”.

Obedeci. Maria Helena à frente, eu em seguida e, atrás, ele. Talvez por influência dos filmes de mocinho e bandido que vi na infância, le-vantei os braços. Tomei uma bronca: “baixa esses braços que vão ver do apartamento em frente”. Mais uns passos e vejo Teori deitado no chão, de bruços. O assaltante decretou: “deita ao lado dele”. E lá fui eu para o chão. Sentia um estranho frio na espinha, certamente fruto do medo de levar um balaço.

Além do moreno, que era o chefe, outros dois o auxiliavam. Tran-quilizei-me um pouco quando o chefe, em tom profissional, falou: “Não façam nada. Nós estamos fazendo o nosso trabalho, tal como vocês fazem os seus”. Teori respondeu: “nós compreendemos, não se preocupe”.

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Mas a tranquilidade durou pouco. É que um dos comparsas, procu-rando dinheiro encontrou a carteira funcional de Maria Helena e disse: “Chefe, ela é juíza”. A resposta foi: “era só o que faltava”. Mas Maria Helena, de pronto, esclareceu: “eu sou juíza de Vara Previdenciária, só cuido dos velhinhos, dos que querem pensão do INSS”. Ele pareceu aceitar a explicação.

Eles continuaram na busca por dinheiro. Por sorte, nem eu nem Teori estávamos com nossas carteiras funcionais. Dois deles desceram em diligência no andar de baixo, sem sucesso. Então o moreno, levando nosso dinheiro, ordenou a retirada e alertou-nos: “não se comuniquem com ninguém por 30 minutos”.

Ao nos vermos livres, respiramos fundo, aliviados. Teori procurou uma garrafa de uísque e brindamos, comemorando o resultado favorável. Saí de lá ainda sob os efeitos do susto. Ele, que se manteve o tempo todo calmo, tomou todas as providências junto à Polícia.

Da ocorrência, pudemos tirar uma lição: estamos todos, independen-temente do cargo ou posição, sujeitos às vicissitudes da vida.

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TEORI ALBINO ZAVASCKI, PESSOA SIMPLES, CORDIAL, AMIGA

E JURISTA DE ESCOLA

VILSON DARÓSDesembargador Federal aposentado do Tribunal Regional Federal da 4ª Região

Tudo começa pequeno nessa vida; e só cresce se a permitimos”.

(Pe. Fábio de Melo)

Conheci Teori Albino Zavascki em 1980 quando se iniciou uma sólida e fraterna amizade que perdurou até o seu inesperado e trágico falecimento, ocorrido em 19/01/2017, em decorrência de acidente aéreo ao se dirigir para Paraty, no litoral do Rio de Janeiro, para um merecido descanso de fim de semana. Foram mais de trinta e cinco anos de conví-vio, sendo, num primeiro momento muito próximo, trabalhando lado a lado, inicialmente como advogados do Banco Central do Brasil-BACEN (ele como Coordenador dos Serviços Jurídicos no Departamento do Rio Grande do Sul/sede em Porto Alegre) e posteriormente como membros do Tribunal Regional Federal da 4ª Região-TRF4 e, ultimamente, um pouco mais afastados fisicamente, já que Teori passou a atuar como Mi-nistro do Superior Tribunal de Justiça-STJ (08/05/2003) e Ministro do Supremo Tribunal Federal –STF (29/11/2012), tribunais superiores com sede em Brasília/DF. Embora a distância, continuava acompanhando sua brilhante carreira, aplaudindo suas conquistas e lamentando eventuais críticas que injustamente lhe eram feitas.

O primeiro contato com Teori deu-se por telefone e por iniciativa dele. Não nos conhecíamos pessoalmente ainda. Explico. Havíamos participado do 1º concurso público para provimento do cargo de advogado do BACEN. Ambos logramos êxito. Teori, 2º classificado, tomou posse em 14/12/1976 e em pouco tempo assumiu a Coordenação dos Serviços Jurídicos do banco

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em Porto Alegre. Pouco tempo antes de esgotar-se o prazo de validade do concurso surgiram duas vagas em decorrência de aposentadoria dos ocu-pantes. Teori, atento e diligente, cônscio da necessidade de supri-las tendo em conta os compromissos do jurídico que cresciam exponencialmente, numa decisão de verdadeiro gestor da coisa pública, entrou em contato com cada um dos candidatos aprovados na ordem de classificação para saber do interesse em assumir. Diante da recusa de dois, o telefone tocou para o 10º classificado, no caso eu. Atendi e do outro lado identificou-se Teori Albino Zavascki, dando conta da razão da ligação. Assenti de imediato. Diante disso, informou-me que tomaria todas as providências adminis-trativas necessárias para a nomeação e posse. E assim foi, tendo no dia 01/09/1980 tomado posse como advogado do BACEN e conhecido pes-soalmente Teori. Depois do ato, junto com os demais colegas, mantivemos um bate-papo informal e descontraído, quando Teori mostrou-se aquela pessoa simples e cordial que caracterizou sua personalidade.

Na mesma oportunidade Teori informou-me as atribuições que me caberiam e, sabedor que minha banca de advocacia de mais de dez anos era voltada preponderantemente à área trabalhista, foi direto e pragmático: “reclamatórias trabalhistas serão de tua inteira responsabilidade, só me mantenha a par. Vais, também, auxiliar nos processos administrativos da área agrária e em outros conforme as necessidades”. Está aí mais uma qualidade de Teori, saber aproveitar a experiência adquirida pelo profissional no exercício de sua profissão por largo tempo, valorizar essa experiência e delegar atribuições sem perder o controle das mesmas, o que pressupõe responsabilidades e compromissos recíprocos.

Teori também tinha consciência que o advogado é um profissional e não deixa de o ser mesmo quando exerce essa função no serviço público. Nessas condições, dele se exige o cumprimento das tarefas inerentes ao cargo mais que simplesmente o atendimento do expediente normal fixado. Além disso, é importante que possa, sem prejuízo das atividades do cargo, atuar em banca privada, sua ou não, o que lhe possibilita o crescimento profissional através do contato com outros operadores do direito (magistrados, membros do Ministério Público, advogados, ser-vidores) e se manter atualizado.

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O passar dos dias demonstrou ser Teori um fraterno amigo e dileto colega. Surgia uma empatia entre nós, que hoje atribuo ao fato de termos tido uma origem parecida e estarmos a buscar objetivos semelhantes. Veja-se: herdamos de nossos pais e familiares uma sólida formação cristã; saímos de cidades de pequeno porte do interior, onde as oportunidades de crescimento pessoal, cultural e profissional eram escassas, ele de Faxinal dos Guedes/SC e eu de Vila Maria/RS, rumo à cidade grande, Porto Alegre, tendo ambos estacionado por um tempo em estabelecimento de ensino religioso cristão, ele no Seminário Diocesano de Chapecó/SC e eu nos Irmãos Maristas, onde nossa formação e nosso caráter foram burilados e forjados em princípios morais e éticos, no valor do trabalho e no respeito às pessoas, às instituições e à hierarquia. E os objetivos não eram outros que obtermos um lugar ao sol e sermos felizes!

Teori foi bem sucedido em suas múltiplas atividades e seu sucesso e prosperidade foi fruto de muito empenho, trabalho duro, estudo e dedi-cação, não tendo faltado muitos sacrifícios e privações. Não descurava, porém, dos colegas e amigos, ao contrário, incentivava, animava, mostra-va caminhos e oportunidades. A comprovar, em 1985, o Tribunal Federal de Recursos abriu concurso público para provimento de cargo de Juiz Federal. Teori logo deu-nos a notícia e incentivou que nos inscrevêsse-mos. Lembro que houve resistências. Ele insistiu por várias vezes, até que um dia declarou o óbvio, “para ser aprovado é necessário inscrever-se e participar do certame”. Dispensado dizer que, diante dessa derradeira reiteração, vários advogados do jurídico do BACEN, Departamento de Porto Alegre, efetivaram a inscrição e lograram aprovação, nesse e, posteriormente, em outros: Para a magistratura federal: Marga Inge Barth Tessler (1988), Ivo Tolomini (1988) e eu (1987); para o Ministério Público Federal: Derocy Giacomo Cirillo da Silva (1989).

A gestão era outra preocupação de Teori. O poder público não pode ficar inerte diante da evolução tecnológica da sociedade. É preciso que se atualize, acompanhe os novos tempos, seja eficiente para alcançar a eficácia desejada pela sociedade na qual atua. E o Judiciário não pode ficar alheio como se não lhe dissesse respeito. A sociedade quer o judiciário mais eficiente, menos moroso, mais efetivo. Teori sempre

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demonstrou preocupação com essa temática. Muitas ideias claras e inovadoras, reflexões desafiadoras, foram postas por ele em suas aulas, palestras, conferências, trabalhos jurídicos, livros, ... A efetividade da jurisdição, o combate à morosidade e as medidas de urgência estiveram em sua constante visão de doutrinador e magistrado, sendo certo que, entre tantas outras iniciativas, ao lado do Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior e outros especialistas, o dedo de Teori esteve presente na formu-lação das primeiras medidas administrativas e processuais necessárias à implementação dos Juizados Especiais Federais-JEFs, micro sistema que privilegia a oralidade, a informalidade, a celeridade, a conciliação e, por consequência, a eficiência e a efetividade da jurisdição.

De igual sorte, é de Teori a ideia inovadora e, ao mesmo tempo, desafiadora de criação do programa que oportunizou o Peticionamento Eletrônico, gênese do Processo Eletrônico Judicial-E-Proc, nascido no âmbito do TRF4 e que hoje se encontra consagrado pelo judiciário brasi-leiro como o melhor, mais simples e mais efetivo sistema, consoante tem proclamado a maioria absoluta dos operadores do direito. Lembro os fatos.

Estávamos no ano da graça de 2002. Teori era Presidente do TRF4 e eu Coordenador dos JEFs na 4ª Região. A instalação dos JEFs estava em pleno andamento. Em 12/09/2002, encontrávamo-nos em Rio Grande, cidade marítima localizada no sul do Brasil (e que foi a primeira Vara Federal instalada no interior do Rio Grande do Sul, em 16.05.1987), para inaugurar a Vara Federal do JEF naquela Subseção, já que o exis-tente havia sido instalado como Adjunto à 1ª Vara Federal (14.01.2002). O ato solene de inauguração encerrou-se com o discurso de Teori, que, após os agradecimentos e palavras de praxe nessas ocasiões, lançou um repto aos presentes: “em trinta dias quero desenvolvido e pronto para ser utilizado o programa que oportunize o Peticionamento Eletrônico nos processos do JEF”. E concluiu: “O Tribunal não dispõe de recursos financeiros para seu desenvolvimento”.

A ideia desafiadora, a exemplo da semente, estava lançada, cabia--nos abraçá-la ou não.

Encerrada a cerimônia, imediatamente, como Coordenador dos JEFs que era, contatei com o Juiz Federal Sérgio Renato Tejada Garcia,

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também presente, e o convidei a abraçarmos a causa. Ele aquiesceu de pronto. Superados vários contratempos e resistências no desen-volvimento do programa, que deixo de detalhar por não ser objetivo deste depoimento, apresentamos o projeto pronto. O prazo havia sido excedido em pouco, mas o custo financeiro foi ZERO, já que foi desen-volvido por servidores, tendo como coordenador o Juiz Federal Tejada e o gerente executivo o servidor José Carlos Costa Abelaira Filho. O novo sistema entrou em funcionamento na Vara do JEF do Rio Grande em 08/11/2002.

A semente lançada por Teori não podia ficar restrita ao Peticionamento Eletrônico. A terra era fértil, bastava cultivar, e traba-lhadores competentes e diligentes não faltavam. Foi, então, que soli-citei a Tejada que coordenasse o grupo de trabalho e desse um passo à frente rumo ao desenvolvimento do processo eletrônico do JEF, mais simples, menos complexo que o processo judicial comum. Evidente que o desafio foi aceito, surgindo, em pouco tempo, o processo eletrônico do JEF (e-proc). Sua instalação, em caráter experimental, ocorreu em 28/07/2003, nas seguintes Varas piloto: Rio Grande/RS, Florianópolis/SC, Blumenau/SC e Londrina/PR. Tendo em conta que a experiência foi bem sucedida e o novo sistema aprovado pelos operadores do direito, deu-se prosseguimento com a instalação em todas as Varas de JEF no âmbito da 4ª Região (RS, SC e PR).

A semente devia completar seu ciclo. A ideia de Teori frutificara, mas podia e devia alcançar seu apogeu. E isso ocorreu.

Em 22/06/2009, quando assumi a Presidência do TRF4, decidi implantar o processo eletrônico também na jurisdição comum, comple-mentando, assim, a ideia desafiadora lançada por Teori, o que se tornou realidade em 20/10/2009, quando instalei na Subseção do Rio Grande/RS o e-proc v2, desenvolvido mais uma vez pela equipe de informática do TRF4, sob a coordenação do Juiz Sérgio Tejada. Paulatinamente foi sendo implantado nas demais Subseções da 4ª Região, de modo que em fevereiro de 2010 o e-proc v2 estava adotado de forma obrigató-ria em toda a região. Não é demais repetir, sem custos financeiros e com a colaboração no seu desenvolvimento dos operadores do direito

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(magistrados, membros do MPF, advogados públicos e privados, servi-dores), a quatro mãos, portanto, os quais, com suas sugestões, críticas e demais contribuições auxiliaram na construção e aperfeiçoamento do pioneiro e, sem dúvida, melhor, mais simples e efetivo processo eletrônico judicial conhecido em nosso país e que está sendo adotado por outros Tribunais.

Enfatizo: Tudo começou com Teori, que, ao lançar o repto inova-dor e desafiador, acendeu a centelha. Nós apenas abraçamos a ideia e transformamos a centelha em luz brilhante a iluminar a atividade judicial brasileira.

Teori teve uma carreira brilhante, tanto na advocacia quanto no magistério, na magistratura e como jurista. Na primeira, atuou com bri-lhantismo em banca privada; no jurídico do BACEN, onde desempenhou por largo tempo a coordenação; e como superintendente jurídico do Banco Meridional do Brasil. No magistério foi professor, mestre e doutor pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde lecionou Direito Processual Civil; foi professor de Introdução ao Estudo do Direito na UNISINOS e de Direito Processual Civil na Faculdade de Direito da Uni-versidade de Brasília. Na magistratura teve atuação exemplar e brilhou em todos os escalões. Atuou no TRF4, onde foi Vice-Presidente (1997/1999) e Presidente (2001/2003); no STJ como Ministro (2003/2012) e no STF como Ministro (2012/2017). Não foi juiz de primeira instância porque não quis, já que foi nomeado, após aprovação em concurso público para provimento de cargo de Juiz Federal, em 14/09/1979, mas deixou de tomar posse. E como jurista pontificou, tendo deixado vasta e densa obra jurídica, representada por diversos livros e inúmeros artigos e outros escritos sobre os mais diversos temas jurídicos.

Teori era uma pessoa simples, cordial, amigo, metódico, discreto mas não arredio, técnico, corajoso, dono de uma carreira sólida na área jurídica. Tinha um saber jurídico vastíssimo, basta ver sua extensa produção intelectual e a qualidade e profundidade dos alentados votos proferidos nos Tribunais que abrilhantou (TRF4, STJ e STF). Foi uma grande alma, sempre aberto, sincero e jovial, em suma, um dileto amigo e um grande profissional. Foi e sempre será um exemplo, não apenas para

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os que com ele conviveram, mas para toda a sociedade brasileira, que lamentou seu trágico e prematuro falecimento e que, ao vê-lo relator no STF da operação denominada Lava Jato, reacendeu a esperança de que efetivamente a corrupção em nosso país seria de vez apurada e punida, e seus autores devidamente responsabilizados.

Teori não era apenas dado ao trabalho e ao estudo. O lazer também fazia parte de seu dia a dia. Era desportista, não era craque, mas gostava de praticar esportes, com preferência o futebol. Era gremista, torcedor fervoroso e, por muitos anos, Conselheiro do clube. Lembro, quando colegas de BACEN, reuníamos em fins de semana na casa dele, na minha, ou na da Drª Marga, do Dr. Derocy, da Drª Marisa para confraternizar, com a companhia dos filhos na época ainda pequenos. A convivência com os filhos, genro e nora (Alexandre; Liliana e Fernando Zandoná; Francisco e Micheli) e com os netos (Bruna, Mariana, Alice, Isabela, Theodoro) era prazerosa para Teori. Com eles e outros parentes e amigos Teori sentia-se à vontade, a conversa rolava solta, as brincadeiras eram constantes, o bom humor era lugar comum. Não era dado a contar, mas gostava de ouvir boas piadas. Enfim, Teori era uma pessoa simples, agradável, gente deste planeta, a despeito de ser notável jurista e ocupar altos cargos, tais quais o de Desembargador e Presidente do TRF4, de Ministro do STJ, de Ministro do STF.

Por seu trabalho, sua dedicação e seu exemplo, Teori recebeu inú-meras e merecidas homenagens, das quais destaco: Ordem do Mérito Judiciário do Trabalho, no Grau de Grande Oficial, 2003; Ordem do Mérito Militar, no Grau de Comendador, 2004; Ordem do Mérito Naval, no Grau de Grande Oficial, 2005; Ordem do Mérito Aeronáutico, no Grau de Comendador, 2006; Ordem do Mérito de Defesa, no Grau de Grã-Cruz, 2008; Colar do Mérito Judiciário do Amapá, 2009; Ordem do Mérito Judiciário Militar, no Grau de Alta Distinção, 2012; Ordem Honorífica de Magistrado Exemplar, homenagem póstuma do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul ao associado que prestou relevante contribuição à sociedade, 23/11/2017.

Por comungar dos mesmos sentimentos, encerro o presente de-poimento com as palavras de dois Ministros do STF, colegas de Teori,

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manifestadas por ocasião da trágica morte: Ministro Luís Roberto Barroso: “Teori tinha a simplicidade das pessoas profundas. O senso de humor de quem é verdadeiramente sério. A desafetação intelectual de quem sabe do que está falando”. Ministra Cármen Lúcia, na época Presidente da Corte: “O Ministro Teori representa um dos pontos altos da história da nossa justiça. O seu trabalho permanecerá para sempre, e a sua presença e o seu exemplo ficarão como um rumo do qual não nos desviaremos, cientes de que as pessoas morrem, suas obras e seus exemplos, não”.

Teori, na dimensão em que te encontras, obrigado pela oportunida-de e felicidade de conviver contigo por longos anos. Foste um fraterno amigo, um dileto colega e um exemplo de vida.

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SOBRE TEORI ZAVASCKI

LADEMIRO DORS FILHOJuiz Federal da Justiça Federal da 4ª Região e Diretor Cultural da AJUFERGS

O impacto da trágica morte do Ministro Teori Zavascki, ocorrida no começo do ano de 2017, ainda está para ser mensurado. Era exata-mente naquele momento de graves e profundas inquietações em nosso país que se exigia a presença de um magistrado corajoso, competente, com notável senso de Justiça e reconhecida independência, tendo em vista o abalo sísmico que nossas instituições sofriam por conta das revelações advindas da operação policial denominada de Operação Lava-Jato. No entanto, os brasileiros estavam confiantes, pois aquele Ministro que relatava e conduzia os processos oriundos da famosa operação era um jurista reconhecido pela comunidade jurídica como um profundo conhecedor do Direito. Além disso, era um Magistrado sério e discreto que apenas se manifestava nos autos e quando o fazia, era ouvido atentamente por todos.

De fato, Teori Zavascki foi um Magistrado de escol e exemplo para todos os profissionais do Direito. Muito embora tenha sido aprovado em Concurso Público de Provas e Títulos, no cargo de Juiz Federal (D.O.U. de 14/9/1979) não tomou posse por questões particulares. Entretanto, ingressou na magistratura federal pelo quinto constitucional, na classe dos Advogados, sendo nomeado Juiz Federal (depois denominado De-sembargador Federal) na primeira composição do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, onde permaneceu de 30/03/1989 a 8/5/2003, quando foi nomeado Ministro do Superior Tribunal de Justiça, e, após (a partir de 29/12/2012), Ministro do Supremo Tribunal Federal. Foi uma carreira impecável, deixando valorosas e inestimáveis lições nos julgados que proferiu. Foi a figura ideal do verdadeiro Juiz, como pontificou o Ministro Celso de Mello do Supremo Tribunal Federal, no discurso proferido na abertura do Ano Judiciário de 2017. Ou, como proclamou o eminente Ministro Ari Pargendler do Superior Tribunal de Justiça, no

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discurso de despedida do Ministro Teori daquela Corte para assumir uma das cátedras do Supremo Tribunal Federal, ele se tornou um dos maiores juízes do País.

Aliás, outro componente daquela Corte de Uniformização Infra-constitucional também foi preciso na qualificação do Ministro Teori. O saudoso Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira (1939-2013) na apre-sentação da primeira edição da já clássica obra Antecipação da Tutela, referiu que o “Prof. Teori Albino Zavascki é por todos considerado um excelente juiz: pela postura serena e segura, pela operosidade e pela qualidade dos seus julgamentos, nos quais alia sensibilidade e aprofundado conhecimento do Direito.”

Assim, resta a plena certeza que a Toga lhe caiu muito bem, tornando--se o Ministro Teori um dos melhores juízes do Brasil. Depois, segundo aquele dito popular, já devidamente musicado, morre o homem, fica a fama. No caso do Ministro Teori Zavascki, ficou muito mais. Restou um modelo de comportamento e comprometimento com o nobre ofício de julgar que deveria ser observado por todos os Magistrados deste país.

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37FRASES DE EX-PRESIDENTES DA AJUFERGS

“O Ministro Teori Albino Zavascki deixou profundas marcas no exercício da judicatura. Com sua dedicação e clareza de visão sempre primou pela busca da essência nos seus julgamentos. Um exemplo a ser seguido.”

Ricardo Nüske

“A primeira grande lembrança que tenho do Ministro Teori é como examinador na prova do meu concurso de ingresso na magistra-tura. Um professor tranquilo, com perguntas objetivas e precisas, que tratava com muito respeito e atenção os candidatos. Ali estava o grande magistrado que veio a deixar sua marca não apenas no Poder Judiciário, mas em toda a sociedade. É um exemplo a ser sempre lembrado e seguido, como pessoa, como mestre, como Juiz.”

Paulo Paim da Silva

“O Ministro Teori, como Magistrado, sempre mostrou três qualida-des que são essências para um bom julgador: conhecimento pro-fundo da matéria, clareza nas decisões e firmeza no cumprimento das mesmas.”

Adel Americo Dias de Oliveira

“Tive a sorte de ter como professor o Ministro Teori. Desde os bancos da faculdade, nutria grande admiração por sua pessoa, além de muito gentil, profissional dedicado e comprometido que nunca se negava, de forma aberta e generosa, compartilhar seus conheci-mentos. Sua presença permanecerá sempre entre nós.”

Carla Evelise Justino Hendges

“Foi uma honra presidir a nossa gloriosa e aguerrida AJUFERGS no biênio 2008-2010. A AJUFERGS é uma entidade que ocupa uma posição de destaque nos grandes debates envolvendo a Justiça e a Sociedade, tão necessários, em especial nestes tempos em que, mais do que nunca, precisamos de um Poder Judiciário indepen-dente e de um juiz com prerrogativas constitucionais preservadas e fortalecidas.”

Gabriel De Jesus Tedesco Wedy

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REVISTA DA AJUFERGS / 1038

“O Ministro Teori Zavascki foi homem que se distinguia pela grande inteligência e elevado espírito público, atributos que o credencia-ram à brilhante carreira como Magistrado, para a qual, em verdade, sempre foi vocacionado. Seu precoce desaparecimento abriu impor-tante lacuna na mais alta Corte da República, mas a inspiração de seu pensamento permanece a nos orientar, como seguro farol, na quadra de incertezas pela qual atravessa a sociedade brasileira e o próprio estado democrático de direito.”

José Francisco Andreotti Spizzirri

“O saudoso Ministro Teori Zavaski foi e continuará sendo um grande exemplo para a magistratura federal, pois, com a sua discrição e vasto conhecimento, mostrou a exata medida da função do julgador e do papel do Poder Judiciário.”

Rodrigo Machado Coutinho

“O cantor italiano Andrea Bocelli declarou certa vez que quando sua voz quebra o encantador silêncio dos campos da Toscana, o faz para homenagear sua gente e sua terra. O Ministro Teori Zavascki, em sua vida, homenageou seus alunos com suas aulas; a comunidade jurídica com suas obras; e o mundo do Direito como Magistrado. De fala mansa e inteligência ímpar, sua vida é um legado para os que vivem, sonham e se alimentam de Justiça.”

Fábio Vitório Mattiello

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INEXIGIBILIDADE DE SENTENÇAS INCONSTITUCIONAIS

TEORI ALBINO ZAVASCKI Ministro Ministro do Supremo Tribunal Federal e Professor

SUMÁRIO. 1. O tema 2. As diversas posições doutrinárias a respeito 3. Exegese do dispositivo: constitucionalidade e alcance 4. Especifi-cidade das sentenças inconstitucionais sujeitas a rescisão por embar-gos 5. Pressuposto indispensável: a existência de precedente do STF 6. A questão do direito intertemporal: inaplicabilidade da norma às sentenças transitadas em julgado em data anterior à da sua vigência 7. Aplicação subsidiária às ações executivas lato sensu 8. Suma conclusiva

1 O tema A teor do § 1º do art. 475-L, com a redação dada pela Lei 11.232/05,

“para efeito do disposto no inciso II do caput deste artigo, considera--se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supre-mo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal”. Redação idêntica foi atribuída ao parágrafo único do art. 741 do CPC, alterando, no particular, com pequenas modificações, a redação que lhe fora dada pela Medida Provisória 2.180-35/2001. Os dispositivos, como se percebe, estabelecem uma causa de inexigibilidade (inibindo, portanto, a exeqüibilidade) dos títulos executivos judiciais, aqui referidos generi-camente como sentenças. O presente estudo visa a investigar o sentido e o alcance desses dispositivos.

2 As diversas posições doutrinárias a respeitoDesde o seu surgimento em nosso direito positivo, na sua primitiva

redação constante do parágrafo único do art. 741 do CPC, a matéria

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gerou polêmica na doutrina e na jurisprudência. Por um lado, há os que simplesmente consideraram o dispositivo inconstitucional por ofensa ao princípio da coisa julgada1. É posicionamento que tem como pressupos-to lógico – expresso ou implícito – a sobrevalorização do princípio da coisa julgada, que estaria hierarquicamente acima de outros princípios constitucionais, inclusive o da supremacia da Constituição, o que não é verdadeiro. Se o fosse, ter-se-ia de negar a constitucionalidade da própria ação rescisória, instituto que evidencia claramente que a coisa julgada não tem caráter absoluto, comportando limitações, especialmente quando estabelecidas, como no caso, por via de legislação ordinária.

Há, por outro lado, corrente de pensamento situada no outro extremo, dando prevalência máxima ao princípio da supremacia do Constituição e, por isso mesmo, considerando insuscetível de execução qualquer sentença tida por inconstitucional, independentemente do modo como tal incons-titucionalidade se apresenta ou da existência de pronunciamento do STF a respeito, seja em controle difuso, seja em controle concentrado. Eis, sumariadas, as razões de Humberto Theodoro Jr., defensor dessa corrente:

“A inconstitucionalidade não é fruto da declaração direta em ação constitutiva especial. Decorre da simples desconformidade do ato estatal com a Constituição. O STF apenas reconhece abstrata-mente e com efeito erga omnes na ação direta especial. Sem esta declaração, contudo, a invalidade do ato já existe e se impõe a reco-nhecimento do judiciário a qualquer tempo e em qualquer processo onde se pretenda extrair-lhe os efeitos incompatíveis com a Carta Magna. A manter-se a restrição proposta, a coisa julgada, quando não for manejável a ação direta, estará posta em plano superior ao da própria Constituição, ou seja a sentença dispondo contra o preceito magno afastará a soberania da Constituição e submeterá o litigante a um ato de autoridade cujo respaldo único é a res judicata, mesmo que em desacordo com o preceito constitucional pertinente. A ação direta junto ao STF jamais foi a única via para evitar os inconve-

1 Nesse sentido: NERY JÚNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado, 8ª ed., SP, RT, 2004, p. 1156; DALLAZEM, Dalton Luiz. Execução de título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo STF, Revista Dialética de Direito Processual – RDDP, 14:21.

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nientes da inconstitucionalidade. No sistema de controle difuso vigorante no Brasil, todo o juiz ao decidir qualquer processo se vê investido no poder de controlar a constitucionalidade da norma ou ato cujo cumprimento se postula em juízo. No bojo dos embargos à execução, portanto, o juiz, mesmo sem prévio pronunciamento do Supremo Tribunal Federal, está credenciado a recusar execução à sentença que contraria preceito constitucional, ainda que o trânsito em julgado já se tenha verificado”2.

Também essa corrente merece críticas. Ela confere aos embargos à execução (ou, se for o caso, à impugnação do devedor) uma eficácia rescisória muito maior que a prevista nos dispositivos ao início referidos, eficácia essa que, para sustentar-se, haveria de buscar apoio não nesses dispositivos infraconstitucionais, mas diretamente na Constituição. Ademais, a se admitir a ineficácia das sentenças em tão amplos domí-nios, restaria eliminado, de modo completo, pelo menos em matéria constitucional, o princípio da coisa julgada, que também tem assento na Constituição. Comprometer-se-ia também um dos escopos primordiais do processo, o da pacificação social mediante eliminação da controvérsia, eis que se daria oportunidade à permanente renovação do questionamento judicial de lides já decididas. Ensejar-se-ia que qualquer juiz, simples-mente invocando a inconstitucionalidade, negasse execução a qualquer sentença, inclusive as proferidas por órgãos judiciários hierarquicamente superiores (tribunais de apelação e mesmo tribunais superiores). Em suma, propiciar-se-ia, em matéria constitucional, a perene instabilidade do julgado, dando razão à precisa crítica de Barbosa Moreira:

“Suponhamos que um juiz, convencido da incompatibilidade entre certa sentença e a Constituição, ou da existência, naquela, de injustiça intolerável, se considere autorizado a decidir em sentido contrário. Fatalmente sua própria sentença ficará sujeita à crítica da parte agora vencida, a qual não deixará de considerá-la, por sua vez, inconstitucional ou intoleravelmente injusta. Pergunta-se: que

2 THEODORO JÚNIOR, Humberto. “A reforma do processo de execução e o problema da coisa julgada inconstitucional”, Revista Brasileira de Estudos Políticos, 89, jan.-jun. 2004, Belo Horizonte (MG), p. 94/95.

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impedirá esse litigante de impugnar em juízo a segunda sentença, e outro juiz de achar possível submetê-la ao crivo de seu próprio entendimento? O óbice concebível seria o da coisa julgada; mas, se ele pode ser afastado em relação à primeira sentença, porque não poderá sê-lo em relação à segunda?”3

In medio virtus. Entre as duas citadas correntes (que, com suas posições extremadas, acabam por comprometer o núcleo essencial de princípios constitucionais, o da supremacia da Constituição ou o da coisa julgada) estão os doutrinadores que, reconhecendo a constitucionalidade da norma, buscam dar-lhe o alcance compatível com o seu enunciado. Mesmo entre esses, todavia, há divergências. Há quem sustenta que a inexigibilidade do título executivo judicial seria invocável apenas nas restritas hipóteses em que (a) houver precedente do STF (b) em controle concentrado de constitucionalidade, (c) declarando (ainda que sem re-dução de texto) a inconstitucionalidade do preceito normativo aplicado pela sentença exeqüenda4. E há quem vê no texto normativo um domí-nio maior, abarcando não apenas as situações referidas, mas também (a) quando a sentença exeqüenda der aplicação a preceito normativo declarado inconstitucional pelo STF em controle difuso e suspenso por resolução do Senado (CF, art. 52, X); e também (b) quando a sentença exeqüenda nega aplicação a preceito normativo declarado constitucional pelo STF, em controle concentrado.5 Ambas as correntes – e nisso mere-cem crítica – embasam suas conclusões apenas na eficácia subjetiva das decisões em controle de constitucionalidade, só admitindo o cabimento da inexigibilidade das sentenças judiciais nos casos em que o precedente do STF em sentido contrário tenha eficácia erga omnes, direta (em ações de controle concentrado) ou indireta (por via de resolução do Senado).

3 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. “Considerações sobre a chamada ‘relativiza-çao’ da coisa julgada material, Revista Dialética de Direito Processual – RDDP, n. 22, p. 108/9. 4 Nesse sentido, v.g: ASSIS, Araken de. “Eficácia da coisa julgada inconstitucional”, Revista Dialética de Direito Processual – RDDP 4:9-27.5 Nesse sentido, v.g.: TALAMINI, Eduardo. “Embargos à execução de título judicial eivado de inconstitucionalidade (CPC, art. 741, par. ún.)”, RePro 106:38-83.

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3 Exegese do preceito normativo: constitucionalidade e alcance A constitucionalidade da norma iserta no parágrafo único do art. 741

do CPC e no § 1º do art. 475-L do CPC decorre do seu significado e da sua função. Trata-se de preceito normativo que, buscando harmonizar a garantia da coisa julgada com o primado da Constituição, veio apenas agregar ao sistema um mecanismo processual com eficácia rescisória de certas sentenças inconstitucionais. Até o seu advento, o meio apropriado para rescindir tais sentenças era o da ação rescisória (art. 485, V). Agora, para hipóteses especialmente selecionadas pelo legislador, conferiu-se força semelhante à impugnação e aos embargos à execução. Não há inconstitucionalidade alguma nisso.

Para estabelecer, mediante exegese específica, o conteúdo e o alcance desse novo instrumento, duas premissas essenciais devem ser conside-radas: (a) a de que ele não tem aplicação universal a todas as sentenças inconstitucionais, restringindo-se às fundadas num vício específico de inconstitucionalidade; e (b) a de que esse vício específico tem como nota característica a de ter sido reconhecido em precedente do STF.

4 Especificidade das sentenças inconstitucionais sujeitas a rescisão por embargos

Realmente, os preceitos normativos comentados não têm a força e nem o desiderato de solucionar, por inteiro, todos os possíveis conflitos entre os princípios da supremacia da Constituição e da coisa julgada. É que a sentença pode operar ofensa à Constituição em variadas situa-ções, que vão além das que resultam do controle da constitucionalidade das normas. A sentença é inconstitucional não apenas (a) quando aplica norma inconstitucional (ou com um sentido ou a uma situação tidos por inconstitucionais), mas também quando, por exemplo, (b) deixa de aplicar norma declarada constitucional, ou (c) aplica dispositivo da Constituição considerado não-auto-aplicável, ou (d) deixa de aplicar dispositivo da Constituição auto-aplicável, e assim por diante. Em suma, a inconstitucionalidade da sentença ocorre em qualquer caso de ofensa à supremacia da Constituição, e o controle dessa supremacia,

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pelo Supremo, é exercido em toda a amplitude da jurisdição consti-tucional, da qual a fiscalização da constitucionalidade das leis é parte importante, mas é apenas parte.

A solução oferecida pelo § 1º do art. 475-L e pelo parágrafo úni-co do art. 741 do CPC, repita-se, não é aplicável a todos os possíveis casos de sentença inconstitucional. Trata-se de solução para situações especiais, e, conseqüentemente, não afasta a necessidade de, eventual-mente, trilhar outros caminhos (ordinários ou especiais) quando houver sentença com vícios de inconstitucionalidade neles não especificados. Não se esgota, portanto, o debate, hoje corrente sob o rótulo da “re-lativização da coisa julgada”, com posições ardorosas em sentidos diferentes, uns favoráveis à “relativização”6 e outros negando-a peremp-toriamente7. Admitindo-se, em casos graves em que isso seja inevitável, a necessidade de fazer prevalecer, sobre a coisa julgada, o princípio constitucional ofendido pela sentença, não se descarta a adoção, para tanto, dos mecanismos processuais estabelecidos nos dispositivos aqui comentados, mesmo que a hipótese extrapole dos limites neles estabe-lecidos. É que, para essas situações excepcionais, não há procedimento previsto em lei, devendo ser adotado – por imposição do princípio da instrumentalidade - o que melhor atende ao fim almejado, de defender a Constituição. Porém, não é essa a utilização a que, ordinariamente, se destinam os referidos mecanismos.

6 V.g.: DELGADO, José Augusto. “Efeitos da coisa julgada e princípios constitucio-nais”, in “Coisa Julgada Inconstitucional” – Coord.. Carlos Valder do Nascimento, RJ, América Jurídica, 2002; THEODORO JÚNIOR, Humberto e FARIA, Juliana Cordeiro de. “A coisa julgada inconstitucional e os instrumentos processuais para seu controle”, in “Coisa Julgada Inconstitucional” – Coord.. Carlos Valder do Nascimento, cit., p. 83; DINAMARCO, Cândido. “A nova era do Processo Civil”, Malheiros, 2003, p. 220-266; WAMBIER, Tereza Arruda Alvim e MEDINA, José Miguel Garcia. “O Dogma da Coisa Julgada – Hipóteses de relativização”, RT, 2003.7 V.g.: BATISTA DA SILVA, Ovídio A. “Coisa julgada relativa?”, RDDP 13:102-112; BARBOSA MOREIRA, José Carlos. “Considerações sobre a chamada ‘relativizaçao’ da coisa julgada material, Revista Dialética de Direito Processual – RDDP, n. 22, p. 91-111; MARINONI, Luiz Guilherme. “O princípio da segurança dos atos jurisdicio-nais (a questão da relativização da coisa julgada material)”, Gênesis – Revista de Direito Processual Civil 31: 142-162).

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A inexigibilidade dos títulos judiciais, se refere, conforme expressa o texto normativo, a “(...) título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal”. São apenas três, portanto, os vícios de inconstitucionalidade que permitem a utilização do novo mecanismo: (a) a aplicação de lei inconstitucional; ou (b) a aplicação da lei a situação considerada inconstitucional; ou, ainda, (c) a aplicação da lei com um sentido (= uma interpretação) tido por inconstitucional.

Há um elemento comum às três hipóteses: o da inconstitucionali-dade da norma aplicada pela sentença. O que as diferencia é, apenas, a técnica utilizada para o reconhecimento dessa inconstitucionalidade. No primeiro caso (aplicação de lei inconstitucional) supõe-se a declaração de inconstitucionalidade com redução de texto. No segundo (aplicação da lei em situação tida por inconstitucional), supõe-se a técnica da de-claração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto. E no terceiro (aplicação de lei com um sentido inconstitucional), supõe-se a técnica da interpretação conforme a Constituição.

A redução de texto é o efeito natural mais comum da afirmação de inconstitucionalidade dos preceitos normativos em sistemas como o nosso, em que tal vício importa nulidade: se o preceito inconstitucional é nulo, impõe-se seja extirpado do ordenamento jurídico, o que leva à conseqüente “redução” do direito positivo.

Há situações, todavia, em que a pura e simples redução de texto não se mostra adequada ao princípio da preservação da Constituição e da sua força normativa. A técnica da declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto é utilizada justamente em situações dessa natureza, em que a norma é válida (= constitucional) quando aplicada a certas situações, mas inválida (= inconstitucional) quando aplicada a outras8. O reconheci-mento dessa dupla face do enunciado normativo impõe que a declaração

8 BITTENCOURT, Lúcio. O controle de constitucionalidade das leis, 2ª ed., RJ, Forense, 1968, p. 128.

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de sua inconstitucionalidade parcial (= aplicação a certas situações) se dê sem a eliminação (= redução) do enunciado positivo, a fim de que fique preservada a sua aplicação na parte (= às situações) tida por constitucional.

É assim também a técnica de interpretação conforme a Constituição, que consiste em “declarar a legitimidade do ato questionado desde que interpretado em conformidade com a Constituição”.9 Trata-se de instituto hermenêutico “visando à otimização dos textos jurídicos, mediante agre-gação de sentidos, portanto, produção de sentido”,10 especialmente para preservar a constitucionalidade da interpretação “quando a utilização dos vários elementos interpretativos não permite a obtenção de um sentido inequívoco dentre os vários significados da norma. Daí a sua formulação básica: no caso de normas polissêmicas ou pluri-significativas, deve dar-se preferência à interpretação que lhe dê um sentido em conformi-dade com a Constituição”.11 Também nessa técnica ocorre, em maior ou menor medida, declaração de inconstitucionalidade: ao afirmar que a norma somente é constitucional quando interpretada em determinado sentido, o que se diz, implícita mas necessariamente, é que a norma é inconstitucional quando interpretada em sentido diverso. Não fosse para reconhecer a existência e desde logo repelir interpretações inconstitucio-nais, não haveria necessidade de utilização dessa técnica. Bastaria que se declarasse, simplesmente, a constitucionalidade da norma, julgando improcedente (e não, como o faz acertadamente o STF, procedente em parte) a ação direta de inconstitucionalidade12.

Isso fica bem claro quando se tem em conta que a norma nada mais é, afinal, do que o produto da interpretação. “A interpretação”, escreveu Eros Grau, “é um processo intelectivo através do qual, partindo de fórmu-

9 MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha, 4ª ed., SP, Saraiva, p. 317.10 STRECK, Lênio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica ao direito”, 2ª ed., RJ, Forense, 2004, p. 580.11 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2ªed., Almedina, p. 1099.12 Sobre o tema, que não é pacífico na doutrina, ver: AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Incidente de Argüição de Inconstitucionalidade, SP, RT, 2002, p. 101-103.

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las lingüísticas contidas nos textos, enunciados, preceitos, disposições, alcançamos a determinação de um conteúdo normativo. (...) Interpretar é atribuir um significado a um ou vários símbolos lingüísticos escritos em um enunciado normativo. O produto do ato de interpretar, portanto, é o significado atribuído ao enunciado ou texto (preceito, disposição)”.13 E observou, mais adiante: “A interpretação, destarte, é meio de expres-são dos conteúdos normativos das disposições, meio através do qual pesquisamos as normas contidas nas disposições. Do que diremos ser – a interpretação – uma atividade que se presta a transformar disposi-ções (textos, enunciados) em normas. Observa Celso Antônio Bandeira de Mello (...) que ‘(...) é a interpretação que especifica o conteúdo da norma. Já houve quem dissesse, em frase admirável, que o que se aplica não é a norma, mas a interpretação que dela se faz. Talvez se pudesse dizer: o que se aplica, sim, é a própria norma, porque o conteúdo dela é pura e simplesmente o que resulta da interpretação. De resto, Kelsen já ensinara que a norma é uma moldura. Deveras, quem outorga, afinal, o conteúdo específico é o intérprete, (...)’. As normas, portanto, resultam da interpretação. E o ordenamento, no seu valor histórico-concreto, é um conjunto de interpretações, isto é, conjunto de normas. O conjunto das disposições (textos, enunciados) é apenas ordenamento em potência, um conjunto de possibilidades de interpretação, um conjunto de normas potenciais. O significado (isto é, a norma) é o resultado da tarefa interpre-tativa. Vale dizer: o significado da norma é produzido pelo intérprete. (...) As disposições, os enunciados, os textos, nada dizem; somente passam a dizer algo quando efetivamente convertidos em normas (isto é, quando – através e mediante a interpretação – são transformados em normas). Por isso as normas resultam da interpretação, e podemos dizer que elas, enquanto disposições, nada dizem – elas dizem o que os intérpretes dizem que elas dizem (...)”14. À luz dessas considerações é que se tem como certo que a interpretação conforme a Constituição constitui também, em

13 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito, 2ª ed., SP, Malheiros, 2003, p. 78.14 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito, op. cit., p. 80.

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alguma medida, uma técnica de declaração de inconstitucionalidade: ao reconhecer a constitucionalidade de uma interpretação o que se faz é (a) afirmar a constitucionalidade de uma norma (= a que é produzida por interpretação segundo a Constituição) mas, ao mesmo tempo e como conseqüência, (b) declarar a inconstitucionalidade de outra, ou de outras normas (= a que é produzida pela interpretação repelida).

O que se busca evidenciar, em suma, é que as três hipóteses figura-das no art. 475-L, § 1º e no art. 741, parágrafo único do CPC, supõem a aplicação de norma inconstitucional: ou na sua integralidade, ou para a situação em que foi aplicada, ou com o sentido adotado em sua aplicação.

5 Pressuposto indispensável: a existência de precedente do STFPor outro lado, a segunda característica qualificadora da inconstitu-

cionalidade que dá ensejo à aplicação dos citados preceitos normativos é a de que ela tenha sido reconhecida pelo STF. Já se disse que o novo mecanismo visa a solucionar, nos limites que estabelece, situações concretas de conflito entre o princípio da supremacia da Constituição e o da estabilidade das sentenças judiciais. E o fez mediante inserção, como elemento moderador do conflito, de um terceiro princípio: o da autoridade do Supremo Tribunal Federal. Assim, alargou-se o campo de rescindibilidade das sentenças, para estabelecer que, sendo elas, além de inconstitucionais, também contrárias a precedente da Corte Supre-ma, ficam sujeitas a rescisão por via de impugnação ou de embargos, dispensada a ação rescisória própria. A existência de precedente do STF representa, portanto, o diferencial indispensável a essa peculiar forma de rescisão do julgado15.

Aliás, a inserção desse elemento diferenciador não é novidade em nosso sistema. Ela representa mais uma das várias hipóteses de valorização dos precedentes já consagradas no direito positivo, acom-panhando uma tendência evolutiva nesse sentido percebida e anotada

15 TALAMINI, Eduardo. “Embargos à execução de título judicial eivado de inconsti-tucionalidade (CPC, art. 741, par. ún.)”, op. cit., p. 57.

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pela doutrina16. Também na ação rescisória em matéria constitucional o princípio da supremacia da Constituição, aliado ao da existência de precedente do STF, constituem um referencial significativo, conforme reconheceu o STJ em várias oportunidades, como, v.g., em precedente em que se destacou:

“Na interpretação do art. 485, V, do Código de Processo Civil, que prevê a rescisão de sentença que ‘violar literal disposição de lei’, a jurisprudência do STJ e do STF sempre foi no sentido de que não é toda e qualquer violação à lei que pode comprometer a coisa julgada, dando ensejo à ação rescisória, mas apenas aquela especialmente qualificada. (...) Ocorre, porém, que a lei constitucional não é uma lei qualquer, mas a lei fundamental do sistema, na qual todas as demais assentam suas bases de validade e de legitimidade, e cuja guarda é a missão primeira do órgão máximo do Poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal (CF, art. 102). (...) Por essa razão, a jurisprudência do STF emprega tratamento diferenciado à violação da lei comum em relação à da norma constitucional, deixando de aplicar, relativa-mente a esta, o enunciado de sua Súmula 343, à consideração de que, em matéria constitucional, não há que se cogitar de interpretação apenas razoável, mas sim de interpretação juridicamente correta. (...) A orientação revela duas preocupações fundamentais da Corte Suprema: a primeira, a de preservar, em qualquer circunstância, a supremacia da Constituição e a sua aplicação uniforme a todos os destinatários; a segunda, a de preservar a sua autoridade de guardião da Constituição. (...) Assim sendo, concorre decisivamente para um tratamento diferenciado do que seja ‘literal violação’ a existência de precedente do STF, guardião da Constituição. Ele é que justifica, nas ações rescisórias, a substituição do parâmetro negativo da Sú-mula 343 por um parâmetro positivo, segundo o qual há violação à Constituição na sentença que, em matéria constitucional, é contrária a pronunciamento do STF”17.

16 V.g.: TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito, SP, RT, 2004, p. 282.17 Resp 479909, 1ª Turma, Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 23.08.2004, ementa completa é a seguinte: “PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO RESCISÓRIA (CPC, ART. 485, V). MATÉRIA CONSTITUCIONAL. INAPLICA-BILIDADE DA SÚMULA 343/STF. EXISTÊNCIA DE PRONUNCIAMENTO DO

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Pouco importa, para efeito de inexigibilidade da sentença exeqüenda, a época em que o precedente do STF em sentido contrário foi editado, se antes ou depois do trânsito em julgado. Tal distinção não foi estabe-lecida pelo legislador. A tese de que somente se poderia considerar os precedentes supervenientes à sentença exeqüenda não é compatível com o desiderato de valorizar a jurisprudência do Supremo. Se o precedente já existia à época da sentença, fica demonstrado, com mais evidência, o desrespeito à sua autoridade.

STF, EM CONTROLE DIFUSO, EM SENTIDO CONTRÁRIO AO DA SENTENÇA RESCINDENDA. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO DE RESCISÃO. 1. Na interpretação do art. 485, V, do Código de Processo Civil, que prevê a rescisão de sentença que “vio-lar literal disposição de lei”, a jurisprudência do STJ e do STF sempre foi no sentido de que não é toda e qualquer violação à lei que pode comprometer a coisa julgada, dando ensejo à ação rescisória, mas apenas aquela especialmente qualificada. 2. Na esteira desse entendimento, editou-se a Súmula 343/STF, segundo a qual “Não cabe ação rescisória por ofensa a literal dispositivo de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”. 3. Ocorre, porém, que a lei constitucional não é uma lei qualquer, mas a lei fundamental do siste-ma, na qual todas as demais assentam suas bases de validade e de legitimidade, e cuja guarda é a missão primeira do órgão máximo do Poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal (CF, art. 102). 4. Por essa razão, a jurisprudência do STF emprega tratamento diferenciado à violação da lei comum em relação à da norma constitucional, deixando de aplicar, relativamente a esta, o enunciado de sua Súmula 343, à consideração de que, em matéria constitucional, não há que se cogitar de interpretação apenas razoável, mas sim de interpretação juridicamente correta. 5. Essa, portanto, a orientação a ser seguida nos casos de ação rescisória fundada no art. 485, V, do CPC: em se tratando de norma infraconstitucional, não se considera existente “violação a literal disposição de lei”, e, portanto, não se admite ação rescisória, quando “a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais” (Súmula 343). Todavia, esse enunciado não se aplica quando se trata de “texto” constitucional. 6. A orientação revela duas preocupações fundamentais da Corte Suprema: a primeira, a de preservar, em qualquer circunstância, a supremacia da Constituição e a sua aplicação uniforme a todos os destinatários; a segunda, a de preservar a sua autoridade de guardião da Constituição. Esses os valores dos quais deve se lançar mão para solucionar os problemas atinentes à rescisão de julgados em matéria constitucional. 7. Assim sendo, concorre decisiva-mente para um tratamento diferenciado do que seja “literal violação” a existência de precedente do STF, guardião da Constituição. Ele é que justifica, nas ações rescisórias, a substituição do parâmetro negativo da Súmula 343 por um parâmetro positivo, segundo o qual há violação à Constituição na sentença que, em matéria constitucional é contrária a pronunciamento do STF. 8. Recurso especial provido”.

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É indiferente, também, que o precedente tenha sido tomado em controle concentrado ou difuso, ou que, nesse último caso, haja re-solução do Senado suspendendo a execução da norma. Também essa distinção não está contemplada no texto normativo, sendo de anotar que, de qualquer sorte, não seria cabível resolução do Senado na declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto e na que decorre da interpretação conforme a Constituição. Além de não prevista na lei, a distinção restritiva não é compatível com a evidente intenção do legislador, já referida, de valorizar a autoridade dos precedentes ema-nados do órgão judiciário guardião da Constituição, que não pode ser hierarquizada em função do procedimento em que se manifesta. Sob esse enfoque, há idêntica força de autoridade nas decisões do STF em ação direta quanto nas proferidas em via recursal, estas também com natural vocação expansiva, conforme tivemos oportunidade de mostrar em sede doutrinária18. A recomendação da doutrina clássica - de que a eficácia erga omnes das decisões que reconhecem a inconstitucio-nalidade, ainda que incidentalmente, deveria ser considerado “efeito natural da sentença”19, está ganhando campo no plano legislativo e jurisprudencial. É assim na ação rescisória em matéria constitucional, conforme já se referiu, onde os precedentes do STF atuam com idên-tica força, pouco importando a natureza do processo do qual emanam. É assim também para os fins do art. 481, parágrafo único do CPC, que submete os demais Tribunais à eficácia vinculante das decisões do STF em controle de constitucionalidade, indiferentemente de terem sido tomadas em controle concentrado ou difuso.

18 ZAVASCKI, Teori Albino. Eficácia das Sentenças na Jurisdição Constitucional, SP, RT, 2001, p. 25.19 BITTENCOURT, Lúcio. O Controle Jurisdicional da Constitucionalidade das Leis, cit., p. 143; CASTRO NUNES, José. Teoria e Prática do Poder Judiciário, Rio de Janeiro, Forense, 1943, p. 592.

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Deve-se aplaudir essa aproximação, cada vez mais evidente, do sistema de controle difuso de constitucionalidade ao do concentrado, que se generaliza também em outros países20 e que, entre nós, está conduzindo, no plano do direito infraconstitucional, ao reconhecimento da idêntica força de autoridade às decisões do STF, em qualquer das circunstâncias processuais em que são proferidas. Não é por outra ra-zão, aliás, que vozes importantes se levantam para sustentar o simples efeito de publicidade das resoluções do Senado previstas no art. 52, X, da Constituição. É o que defende, em doutrina, o Ministro Gilmar Ferreira Mendes, para quem “não parece haver dúvida de que todas as construções que se vêm fazendo em torno do efeito transcendente das decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Congresso Nacional, com o apoio, em muitos casos, da jurisprudência da Corte, estão a indicar a necessidade de revisão da orientação dominante antes do advento da Constituição de 1988”21.

6 A questão do direito intertemporal: inaplicabilidade da nor-ma às sentenças transitadas em julgado em data anterior à da sua vigência

O parágrafo único do art. 741 do CPC foi introduzido pela Medida Provisória 2.180-35, de 24.08.2001 e o art. 475-N pela Lei 11.232/05. Sendo normas de natureza processual têm aplicação imediata, alcan-çando os processos em curso. Todavia, não podem ser aplicadas retro-ativamente. Como todas as normas infraconstitucionais, também elas estão sujeitas à cláusula do art. 5º, XXXVI da Constituição, segundo

20 SOTELO, José Luiz Vasquez. “A jurisprudência vinculante na ‘common law’ e na ‘civil law’”, in Temas Atuais de Direito Processual Ibero-Americano, Rio de Janeiro, Forense, 1998, p. 374; SEGADO, Francisco Fernandez. La obsolescência de la bipolaridad ‘modelo americano-modelo europeo kelseniano’ como critério nalitico del control de constitucionalidad y la búsqueda de una nueva tipología explicativa”, apud Parlamento y Constitución, Universida de Castilla-La Mancha, Anuario (separata), nº 6, p. 1-53.21 MENDES, Gilmar Ferreira. “O papel do Senado Federal no controle de constituciona-lidade: um caso clássico de mutação constitucional”, Revista de Informação Legislativa, n. 162, p. 165.

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a qual “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Em observância a essa garantia, não há como supor legítima a invocação da eficácia rescisória dos embargos à execução relativamente às sentenças cujo trânsito em julgado tenha ocorrido em data anterior à da sua vigência. É que nesses casos há, em favor do beneficiado pela sentença, o direito adquirido de preservar a coisa julgada com a higidez própria do regime processual da época em que foi formada.22

7 Aplicação subsidiária às ações executivas lato sensuOs embargos constituem instrumento processual típico de oposição

à ação de execução. É o que estabelece o art. 736 do CPC: “O devedor poderá opor-se à execução por meio de embargos, que serão autuados em apenso aos autos do processo principal”. Portanto, não cabem em-bargos se não houver ação autônoma de execução, na forma disciplinada no Livro II do Código de Processo.

22 É nesse sentido a jurisprudência do STJ, como se pode ver, v.g., dos seguintes pre-cedentes: Resp 667.362/SC, 1ª T., Min. José Delgado, julgamento em 15.02.2005; Resp 651.429/RS, 5ª T., Min. José Arnaldo da Fonseca, D.J. 18.10.2004; Resp 718432, 1ª T., Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 02.05.2005, com a seguinte ementa: “PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. FGTS. CORREÇÃO MONETÁRIA. DIFEREN-ÇAS. ART. 741, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CPC, COM REDAÇÃO DADA PELA MEDIDA PROVISÓRIA 2.180-35/01. AÇÕES AJUIZADAS ANTES 24.08.2001. INA-PLICABILIDADE. 1. O parágrafo único do art. 741 do CPC, introduzido pela Medida Provisória nº 2.180-35/2001, criou hipótese excepcional de limitação da coisa julgada, passível de invocação em embargos do devedor, com eficácia rescisória da sentença de mérito, a exemplo do que já existia no inciso I do art. 741 do CPC; 2. Independente-mente do questionamento sobre a constitucionalidade e o alcance da nova disposição normativa, o certo é que, como todas as leis, ela não pode ter efeito retroativo. Também as normas processuais, inobstante terem aplicação imediata, alcançando os processos em curso, devem respeito à cláusula constitucional que resguarda o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, formados em data anterior. Por isso mesmo, a orientação do STJ vem se firmando no sentido de considerar inaplicável o parágrafo único do art. 741 às sentenças transitadas em julgado em data anterior à sua vigência (24.08.2001). 3. Recurso especial a que se nega provimento”.

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Ocorre que, no atual regime processual, em se tratando de obrigações de prestação pessoal (fazer ou não fazer) ou de entrega de coisa, as senten-ças correspondentes são, segundo a linguagem da doutrina, “executivas lato sensu”, a significar que o seu cumprimento se operacionaliza como simples fase do próprio processo cognitivo original. Dispõe, com efeito, o art. 644 do CPC, na redação dada pela Lei 10.444/02, que “a sentença relativa a obrigação de fazer ou não fazer cumpre-se de acordo com o art. 461, observando-se, subsidiariamente, o disposto neste Capítulo”. E o art. 461, por sua vez, estabelece que “na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determina-rá providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento”, providências essas que serão cumpridas desde logo, independentemente da propositura de ação de execução. Para tanto, pode o juiz “impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do au-tor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo razoável para o cumprimento do preceito” (§ 4º) e, ainda,”... determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial” (§ 5º). Esse mesmo regime é aplicável às obrigações de entregar coisa, a teor do que prevê o art. 461A do Código.

Todavia, isso não significa que o sistema processual esteja negando ao executado o direito de se defender, nesses casos. Com efeito, não se pode descartar que, na prática de atividades executivas de sentença rela-tivas a obrigações de fazer, não fazer ou entregar coisa, haja excessos ou impropriedades ou outras das hipóteses elencadas no art. 475-L ou no art. 741 do CPC. Se não se assegurasse ao demandado o direito de se opor a tais medidas, estar-se-ia operando ofensa ao princípio constitucional da ampla defesa (CF, art. 5º, LV). Ao contrário de negar o direito de se defender, o atual sistema o facilita. É que, inexistindo ação autônoma de execução, a defesa do devedor pode ser promovida e operacionalizada como mero incidente do processo, dispensada a propositura da ação de embargos. Bastará, para tanto, simples petição, no âmbito da própria

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relação processual em que for determinada a medida executiva. Terá o devedor, ademais, a faculdade de utilizar as vias recursais ordinárias, notadamente a do agravo, quando for o caso.

Quanto à matéria suscetível de invocação, seus limites são os mes-mos estabelecidos para a impugnação e para os embargos à execução fundada em título judicial, de que tratam os já referidos artigos 475-L e 741 do CPC, aí incluída a hipótese de inexigibilidade do título, prevista no parágrafo único. É inevitável e imperioso, no particular, que, nos termos do art. 644 do CPC, haja aplicação subsidiária desses dispositivos às ações executivas lato sensu.23

8 Suma conclusiva Em suma, a inexigibilidade dos títulos executivos judiciais, prevista

no §1º do art. 475-L e no parágrafo único do art. 741 do CPC, está sub-metida aos seguintes pressupostos: a) que a sentença exeqüenda esteja fundada em norma inconstitucional, seja por aplicar norma inconstitu-cional (1ª parte do dispositivo), seja por aplicar norma em situação ou com um sentido tidos por inconstitucionais (2ª parte do dispositivo); e (b) que a inconstitucionalidade tenha sido reconhecida em precedente do STF, em controle concentrado ou difuso, independentemente de re-solução do senado, mediante declaração de inconstitucionalidade com redução de texto (1ª parte do dispositivo), mediante declaração de incons-titucionalidade sem redução de texto ou, ainda, mediante interpretação conforme a Constituição (2a parte). Estão fora do âmbito material dos referidos embargos, portanto, todas as demais hipóteses de sentenças inconstitucionais, ainda que tenham decidido em sentido diverso da orientação do STF, como, v.g, quando o título executivo: a) deixou de aplicar norma declarada constitucional (ainda que em controle concen-trado); b) aplicou dispositivo da Constituição que o STF considerou sem auto-aplicabilidade; c) deixou de aplicar dispositivo da Constituição que o STF considerou auto-aplicável; d) aplicou preceito normativo que o

23 Nesse sentido decidiu o STJ, no Resp 738.424, 1ª T, julgado em 19.05.2005, relator para o acórdão Min. Teori Albino Zavascki.

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STF considerou revogado ou não recepcionado, deixando de aplicar ao caso a norma revogadora.

Também estão fora do alcance daqueles preceitos normativos as sentenças, ainda que eivadas da inconstitucionalidade neles referida, cujo trânsito em julgado tenha ocorrido em data anterior à da sua vigência. Os dispositivos, todavia, podem ser invocados para inibir o cumprimento de sentenças executivas lato sensu, às quais têm aplica-ção subsidiária.

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INTERPRETAÇÃO JUDICIAL: EXAME CRÍTICO DOS VIESES

JUAREZ FREITASProfessor Titular do Mestrado e Doutorado em Direito da PUCRS, Professor Associado

de Direito Administrativo da UFRGS, Presidente do Conselho Científico do Instituto Brasileiro de Altos Estudos de Direito Público, Autor de várias obras (entre as quais A Interpretação

Sistemática do Direito. Malheiros Editores), Medalha Pontes de Miranda da Academia de Letras Jurídicas por sua obra Sustentabilidade: Direito ao Futuro.

RESUMO: A interpretação judicial tende a ser profundamente iluminada pelos achados científicos sobre os vieses (“biases”), onipresentes na tomada da decisão. Refletir sobre os atalhos rápidos e hábitos mentais, tratando de substituí-los deliberadamente por melhores, mais virtuosos e evoluídos, enseja à magistratura a oportunidade de ultrapassar as teorias normativistas, bem como de refutar abordagens que perdem o foco no essencial: o bom julgador deve, sem prejuízo da alteridade do sistema objetivo, nutrir boas predisposições.

ABSTRACT: Judicial interpretation tends to be profoundly illuminated by scientific findings on biases that are ubiquitous in making human deci-sions. Reflecting on biases and mental habits, taking care of deliberately replacing them with better and more evolved ones, gives the judge the opportunity to overcome insufficient theories, as well as to refute visceral and erroneous arguments that lose focus in the essential: the good judge must have good predispositions.

KEY WORDS: Mental Habits – Biases – Legal interpretation – Judge

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. O Poder dos Juízes sobre os Vieses. 2.1 Bons Juízes, Boas Predisposições. 2.2. Predisposições moldam a in-terpretação judicial: força aprimorá-las deliberadamente. 3. Conclusões.

O presente estudo é homenagem a um dos melhores magistrados que tive a honra de conhecer: o Ministro Teori Albino Zavaski, que ilustra emblematicamente a predisposição de julgar bem e, ao mesmo tempo, de manter viva e incessante a busca do aprimoramento de hábitos mentais.

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1 IntroduçãoA hermenêutica jurídica terá que ser profundamente redesenhada

em face de recentes achados científicos sobre o funcionamento da men-te humana. Mercê de notáveis descobertas, estimo que mitos pueris, discussões ociosas e apegos a categorias fósseis cedam lugar a estudos sobre temas capitais como ilusões cognitivas, vieses, hábitos mentais e (des)enviesamento dos juízos.

A pouco e pouco, a ciência comportamental e o humanismo parecem dar as mãos, esboçando uma aliança extremamente promissora.1 Ascen-dem tópicos relevantes à obtenção da escolha justa, tais como (a) a tomada da decisão com suporte em avaliação “ex ante” e multidimensional dos impactos sistêmicos, (b) a nova fundamentação jurídica, com a oferta explícita e congruente de evidências, (c) o tratamento científico de males como a desonestidade e a violência e (d) a resolução, na raiz, dos onero-síssimos conflitos patrocinados pela mentalidade adversarial dominante.

Nesse panorama, o livre-arbítrio do julgador, ao que tudo indica, experimenta ressignificação para se traduzir, antes de mais, como poder de veto sobre os impulsivismos (endógenos e exógenos) não-universa-lizáveis, haja vista a constatação de que milésimos de segundos antes da consciência racional, a decisão já está tomada.2 Vai daí que os julgadores avisados reconhecem a importância-chave do socrático investimento na formação de boas predisposições, em vez do refúgio estéril no discurso de mero acatamento mecânico dos comandos heterônomos, mais ou menos ambíguos, da ordem jurídica.

1 Vide, em sua proposta de conjugar ciência e humanismo, embora com algumas ressal-vas, Steven Pinker in Enlightment Now. The Case for Reason, Science, Humanism and Progress, NY: Penguin Random House, 2018. Para enfoque alternativo, mas também instigante, vide Robert Sapolski in Behave. The Biology of Humans at our Best and Worst. NY: Penguin Press, 2017. 2 Vide Benjamin Libet in Do we have free will? Journal of Consciousness Studies; 6, ns. 8-9, 1999, pp 47-57. O fato de o processo volitivo iniciar, com milésimos de segundo, antes da tomada de consciência, não exclui a liberdade como poder de veto. Observa, com propriedade: “The volitional process is therefore initiated unconsciously. But the conscious function could still control the outcome; it can veto the act. Free will is therefore not excluded.”

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Desse modo, a primeira medida consiste em inserir na pauta her-menêutica, com proeminência, o estudo dos vieses e hábitos mentais.3 Merecem, de fato, ser incorporados como matéria-prima para a recons-trução teórica e empírica da interpretação/aplicação4 do Direito, de ordem a desvelar tanto aquelas predisposições indutoras dos erros sistemáticos (cognitivos e não-cognitivos) como as que favorecem os juízos equili-brados, comedidos e proporcionais.

Crucial, nessa perspectiva, ter em mente que o intérprete judicial aparece, num retrato autenticado pelas pesquisas de ponta, como aquele que, quando enviesado, corre o risco de inadvertidamente confirmar as crenças iniciais;5 alguém que pode estar influenciado, ostensiva ou subliminarmente, pela polarização de grupo, pelo contágio social6 e pela força de falsidades que se propagam mais rapidamente do que as verdades na rede;7 alguém que, se não adotar as pertinentes cautelas, pode restar obnubilado pela miopia temporal e pelos estereótipos e vie-ses implícitos8 (como sucede, de modo emblemático, na contraposição

3 Vide Jerry Kang et al. in “Implicit Bias in the Court,” UCLA 59, 2012, pp. 1125-1186. Vide, ainda, Chris Guthrie, Jeffrey Rachlinski e Andrew Wistrich in “Blinkling on The Bench: How Judges Decide Cases” Cornell Law Faculty Publications, Vol. 93, Paper 917, 2007, p.9: “Our model, in short, views judges neither as the purely deductive de-cision makers envisioned by the formalists nor as the intuitive rationalizers envisioned by the early realists. Rather, it views judges as ordinary people who tend to make intui-tive, System 1 decisions, but who can override their intuitive reactions with complex, deliberative thought.”4 Vide, para ilustrar abordagem científica que permite aprimorar a aplicação do Direito Administrativo e Penal, no combate à desonestidade, Neil Garrett, Stephanie Lazzaro, Dan Ariely e Thali Sharot in “The brain adapts to dishonesty,” Nature Neuroscience vo-lume19, 2016, pp1727–1732.5 Vide Raymond Nickerson in “Confirmation Bias: A Ubiquitous Phenomenon in Many Guises.” Review of General Psychology, 1998, Vol. 2, pp. 175-220.6 Vide, como introdução ao tema das cascatas sociais, da polarização de grupo e das assi-milações tendenciosas, Cass Sunstein in On Rumors. NY: Farrar, Straus and Giroux, 2009.7 Vide, sobre motivos viscerais para o preocupante fenômeno, Soroush Vosoughi, Deb Roy, Sinan Aral in “The spread of true and false news online.” Science, Vol. 359, Issue 6380, março, 2018, pp. 1146-1151.8 Vide Keith Payne, Laura Niemi e John Doris in “How to Think about ‘Implicit Bias,’” Scientific American, março, 2018.

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extremada entre textualistas e “purposivists”); 9 enfim, alguém que, pelo só fato de ser humano, possui o pendor de simplificar demais e de reduzir ambiguidades,10 com o eventual sacrifício da correção dos juízos e da homeostase social,11 em sentido amplo.

Quer dizer, o primeiro passo para a “cura” dos automatimos ten-denciosos é o diagnóstico correto e sincero, com a sindicabilidade dos males trazidos pelas metáforas equivocadas,12 as quais, vivenciadas rapidamente e sem reflexão, obnubilam os juízos (jurídicos e de valor) e toldam a reta percepção das coisas.

Não há como fingir que as predisposições automáticas ou os vieses (“biases”)13 não existam. O cérebro do julgador, como o de qualquer outro ser humano, ostenta inclinações que afetam a qualidade global de suas decisões interpretativas. A cegueira voluntária, perante o quadro, de nada adianta. Ao revés, piora tudo. É o que ocorre com quem se fia nas suposições formalistas/normativistas e nas subsunções “seguras” da ponderação, a despeito das flagrantes contradições axiológicas da ordem estatal.

O que se passa, no mundo da vida, é que não existe criatura in-teiramente imune à atuação inercial de automatismos no manejo de regras,14 princípios e valores. À proporção que progridem as pesquisas comportamentais, caem por terra várias ingenuidades. Para ilustrar, a

9 Vide, sobre estereótipos relativos ao pensamento de juízes, descortinados pela pesquisa de campo, mostrando escassa relevância de várias etiquetas e polêmicas, Abbe Gluck e Richard Posner in “Statutory Interpretation on the Bench: A Survey of Forty-Two Jud-ges on the Federal Courts of Appeals.” Harvard Law Review, Vol.131, março de 2018, pp. 1298-1373.10 Vide Daniel Farber e Suzanna Sherry in Desperately Seeking Certainty. Chicago e Londres: The University Chicago Press, 2004.11 Vide, sobre a homeostase em sentido amplo, Antonio Damasio in The Stranger Order of Things. NY: Penguin Random House, 2018.12 Vide, sobre metáforas equivocadas, Alan Jacobs in How to Think . NY: Currency, 2017.13 Vide Paul Litvak e Jennifer Lerner in “Cognitive bias”, The Oxford Companion to Emotion and the Affective Sciences. Oxford: Oxford University Press, 2009, p. 90. 14 Vide, sobre regra “against bias”, Mark Elliot, Jack Beatson e Martin Mattews in Administrative Law. 4ª ed., NY: Oxford University Press, 2011, pp. 292-341.

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noção de que a mente opera sozinha, de modo solipsita, já não faz o menor sentido. Como observa Richard Nissbett, “nosso entendimento do mundo é sempre uma questão de perspectivação conceitual – de in-ferência e interpretação.”15 Dito de outro modo, a hermenêutica jurídica está desafiada a assimilar esses “insights” e, na sequência, recomendar postura hábil a formar hábitos mentais que funcionem como autênticos anteparos reflexivos contra as predisposições nefastas.

De fato, embora os argumentos linguísticos, sistêmicos e consequen-ciais16 (para evocar a classificação de Neil MacCormick) soem, à primeira vista, como suficientes para o trabalho cotidiano do juiz, especialmente quando aplicados de maneira cumulativa e eclética, veiculam opções inconscientes.17 Escolhas cujo caráter oculto representa forte embaraço ao poder de veto da racionalidade18intersubjetiva.

Não por mero acaso, observadas as múltiplas teorias sobre como o juiz pensa, verifico que, sem negar a valia de poliédricas correntes explicativas (teorias atitudinais, legalistas, sociológicas, pragmáticas, estratégicas, organizacionais, econômicas, psicológicas e fenomenoló-gicas - para citar a tipologia de Richard Posner -),19 todas, sem exceção,

15 Vide Richard Nisbett in Mindware. Ferramentas para um pensamento mais eficaz. Rio: Objetiva, 2018, p. 23. Além disso, assinala: “as situações em que nos encontramos afetam pensamentos e determinam comportamentos com muito mais intensidade do que imaginamos.” (p.23) Emtretanto, alerta de maneira judiciosa: “ Mas o fato de que tudo é inferência não significa que todas sejam igualmente justificáveis.” (p. 297) 16 Vide a tipologia de Neil MacCormick in Rethoric and the rule of law. Oxford: Oxford University Press, 2005, pp. 121-143. 17 Vide Leonard Mlodinow in Subliminar. Como o inconsciente influencia nossas vidas. Rio: Zahar, 2013.18 Vide Steven Pinker in Os anjos bons da nossa natureza. SP: Cia. das Letras, 2013, p. 892: “é a razão que pode sempre prestar atenção às imperfeições dos exercícios de raciocínios anteriores, renovando-se e aprimorando-se em resposta.” 19 Vide, sobre essas grandes teorias, Richard Posner in How Judgens Think. Cambridge: Harvard University Press, 2010, pp. 19-42. E observa que não se devem negar instâncias de vieses como: “Conscious falsification”, “Priors shaped by experience, temperament, ideolo-gy, or other personal, non legalist factors”, “Cognitive Illusions”, “Priors shaped by irrelevat reactions, such as dislike of a lawyer (...) reactions that have no place in judicial decision making”, “Twisting the facts to minimize the likelihood of being reversed” (pp.69-70).

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descrevem angulações do processo interpretativo, que só adquirem im-pregnante força descritiva/prescritiva se elucidadas pela compreensão holística do papel dos vieses.

Eis o ponto. São precisamente os vieses (“biases”) que levam o intérprete às atitudes conduzidas por uma espécie de segunda natureza. Tais predisposições, se não forem calibradas e criticadas pelo sistema reflexivo, têm o condão de converter as regras de ouro da hermenêutica em ouro falso, notadamente em situações estressantes.

Naturalmente, o herdeiro tardio da jurisprudência dos conceitos, em desespero de causa, esgrimirá com a fundamentação em “leis”, fórmulas rígidas e mágicas. Postula, desse modo, operar no reino do inteiramente racional. Nada mais onírico, enganoso e autoenganador.

O que pretendo ressaltar é que tentativas similares de conferir solu-ções demasiado simples (e erradas) para questões complexas situam-se em completo desalinho com a cientificidade contemporânea. É, pois, me-lhor o desassossego da verdade do que a quimera da falsa tranquilização.

Não descarto que possa e deva ser buscada, no âmbito da decisão interpretativa, uma hierarquização axiológica20 consistente e congruente, como ideal regulador. Todavia, a observação fria e serena leva a duvidar da escala de seu sucesso e reclama sábia dúvida metódica no tocante à correção dos juízos expostos ao penetrante influxo de sugestões e influências.21

Nessa medida, sem endossar a postura “pirronista” que renega a racionalidade intersubjetiva, lanço a hipótese de que, se o julgador se mantiver atento aos vieses e hábitos mentais, será capaz de reunir forças e elementos para resistir a tais condicionamentos (internos e contextuais),

20 Vide, sobre hierarquização axiológica, Juarez Freitas in A Interpretação Sistemática do Direito. 5ª ed., SP: Malheiros, 2010.21 Vide, sobre influências sociais, Richard Davidson e Bruce McEwen in “Social in-fluences on neuroplasticity: Stress and interventions to promote well-being”. Nature Neu-roscience, 15(5), 2012, pp. 689-95. Vide, como ilustração das influências até na relação entre gosto e atributos físicos do recipiente, Betina Piqueras-Fizman e Charles Spence in “The influence of the color of the cup on consumer´s perception of a hot beverage”, Journal of Sensory Studies. Vol. 27, outubro de 2012, pp. 324-331.

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63INTERPRETAÇÃO JUDICIAL: EXAME CRÍTICO DOS VIESES

forjados pela gama contagiosa de preconceitos explícitos e implícitos.22 Preconceitos que, não raro, derivam de áreas cerebrais primitivas, avessas às justificações sensatas.23

A boa notícia é que se encontra disponível, no mercado das ideias, o remédio para as patologias cognitivas e não-cognitivas, sem prejuízo das técnicas consagradas de argumentação jurídica:24 trata-se de, com apoio no entendimento do modo pelo qual operam os circuitos neurais, produzir substituições de “biases”,25 mediante instalação voluntária de rotinas mentais virtuosas, distintas daquelas que, por um motivo ou outro, sucumbem no processamento de con-textos sociais e emocionais.26

Aí está o desiderato do estudo: de uma parte, arrolar os prin-cipais vieses que irrompem na interpretação/decisão judicial e, de outra, sugerir soluções preventivas, mitigadoras ou compensatórias

22 Vide, sobre preconceitos implícitos e o papel do endosso de outras pessoas, Janetta Lun, Stacey Sinclair, Erin R. Whitchurch e Catherine Glenn in “(Why) Do I Think What You Think? Epistemic Social Tuning and Implicit Prejudice”, Journal of Personality and Social Psychology, 2007, Vol. 93, nº. 6, pp. 957–972.23 Vide, sobre a inevitabilidade de justificações externas, Cass Sunstein in The Partial Constitution. Cambridge: Harvard University Press, 1993.24 Vide, sobre formas concretas de argumentos, Robert Alexy in Teoria da Argumentação Jurídica. SP: Landy, 2005, pp.230-244. 25 Vide, sobre como lidar juridicamente com os vieses implícitos, Christine Jolls e Cass R. Sunstein in “The Law of Implicit Bias”, California Law Review, Vol. 94, 2006, p. 969. Observam, à p. 996: “We have suggested the importance of distinguishing between two responses to implicit bias. Sometimes the legal system does and should pursue a strategy of insulation—for example, by protecting consumers against their own mistakes or by banning or otherwise limiting the effects of implicitly biased behavior. But sometimes the legal system does and should attempt to debias those who suffer from consumer er-ror—or who might treat people in a biased manner. In many domains, debiasing strategies provide a preferable and less intrusive solution. In the context of antidiscrimination law, implicit bias presents a particularly severe challenge; we have suggested that several existing doctrines now operate to reduce that bias, either directly or indirectly, and that these existing doctrines do not on that account run into convincing normative objections”. 26 Vide Elizabeth Phelps e Peter Sokol-Hessner in “Social and emotional factors in decision--making: appraisal and value” in Dolan, R.J., & Sharot, T. (eds), Neuroscience of Preference and Choice: Cognitive and Neural Mechanisms. London: Academic Press, 2011, pp. 207-222.

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para os desvios cognitivos e não-cognitivos, na expectativa de, tudo considerado, alcançar o julgamento universalizável e intertemporal-mente adequado.

2 O Poder dos Juízes sobre os Vieses

2.1 Bons Juízes, Boas Predisposições A hermenêutica jurídica reconhece, há muito, a força das crenças

que determinam, modulam e condicionam as interpretações. A novidade? Trata-se da possibilidade de lidar cientificamente com os vieses e hábitos mentais, alterando-os e reformatando-os, quando apropriado fazê-lo. Nesse horizonte, recorro a preciosos trabalhos27 que começam a des-cortinar o cérebro de quem interpreta e estabelece as escolhas jurídicas, preordenadas inevitavelmente por vieses (“biases”) e atalhos heurísticos. Como advertem Keith Stanovich e Richard West, esses pontos cegos resistem até aos pensamentos mais sofisticados.28 Sem dúvida, quem pretende negar a presença dos vieses, aí mesmo é que se deixa enviesar.

Para facilitar a identificação dos desvios cognitivos, recorro, em sin-tonia com a abordagem de Daniel Kahneman, à ficção de dois sistemas de pensamento, no campo da interpretação jurídica: o sistema I (pensamento automático) e o sistema II (controle racional).29 O sistema I é aquele que opera automática e rapidamente, tomando a maior parte das decisões por

27 Vide, para ilustrar, Law and Neuroscience. Michael Freeman (eds.). NY: Oxford University Press, 2011.28 Vide Richard West, Russell Meserve e Keith Stanovitch in “Cognitive sophistication does not attenuate the bias blind spot”. Journal of Personality and Social Psychology, Vol. 103 (3), Setembro 2012, pp. 506-519.29 Vide Daniel Kahneman in Thinking, Fast and Slow. London: Penguin Books, 2012, p. 13: “Fast thinking includes both variants of intuitive thought – the expert and the heuristic – as well as the entirely automatic mental activities of perception and memory, the operations that enable you to know there is a lamp on your desk or retrieve the name of the capital of Russia.”

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65INTERPRETAÇÃO JUDICIAL: EXAME CRÍTICO DOS VIESES

impulso, sem maior senso de controle voluntário,30 ao passo que o sistema II diz respeito àquelas áreas do cérebro mais novas, responsáveis pelo esforço de calcular, pela concentração,31 pelo monitoramento e controle das sugestões formuladas pelo sistema I. Isto é, o sistema II responde pela intencional atenção32regulatória, em que pese, com desafortunada assiduidade, revelar-se confinado à lei do menor esforço.33

Antes de ir adiante, esclareço que, ao adotar essa distinção, não retomo, nem de longe, o menor vestígio do dualismo cartesiano,34 completamente defasado. Reconheço, sem hesitar, que ambos sistemas interagem o tempo todo, entre si e com o ambiente, descartando qualquer “localizacionismo” estrito. Mais: a velha disputa entre razão e emoção não encontra guarida nos dias que correm, perante a comprovação ir-refutável da integração, sobremodo em zonas pré-frontais do cérebro.35

O que pretendo dizer é que o sistema automático, escassamente examinado na teoria da interpretação judicial, funciona como industriosa usina de enviesamentos, com resíduos tóxicos: distorções cognitivas, acrítica “emotional selection” 36 e cascatas informacionais perigosíssi-mas. Em outras palavras, o sistema I manipula os dados, longe do abrigo

30 Vide Daniel Kahneman in ob.cit., p. 20. 31 Idem: ob.cit., p. 21.32 Idem: ob.cit., p. 22. 33 Idem: ob.cit., p. 35.34 Vide, para uma crítica ao “cogito” cartesiano, António Damásio in Descartes’ Error: Emotion, Reason and the Human. NY: Avon Books, New York, 1999. 35 Vide André Palmini in “Violência na perspectiva neurocientífica dos afetos e das decisões: por que não devemos simplificar os determinantes do comportamento humano”, Revista Brasileira de Psicoterapia, 2010; 12(2-3): p. 211: “não faz mais sentido discutir--se razão versus emoção como uma disputa entre regiões corticais versus estruturas subcorticais, mas sim a integração entre razão e emoção em diversas estruturas cerebrais, particularmente nas regiões pré-frontais.” 36 Vide Chip Heath, Chris Bell e Emily Steinberg in “Emotional Selection in Memes: The Case of Urban Legends,” Journal of Personality and Social Psychology, Vol. 81, n. 6, 2001, p. 1040: “Emotional selection is theoretically interesting because it tells us that informational selection is not the only process at work in the marketplace of ideas. However, emotional selection may also be practically important because it has the po-tential to alter social and community relationships.”

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seguro da prudência e incorre em inconsistências fatais. Como acentua Daniel Kahneman, o sistema primitivo confunde facilidade cognitiva com verdade, abusa das heurísticas e simplifica demais, especialmente ao substituir questões difíceis por fáceis, a par de inventar causas.37 Sim, inventa causas e produz memórias fantasiosas.38 Sofre de comprovada aversão à perda, com desmesurada reação às perdas na comparação com os ganhos.39 Exagera, hiperbolicamente, a coerência emocional e é predisposto a confirmar as impressões iniciais, quaisquer que sejam, vendo somente aquilo que quer ver.40

Aí está, com a limpidez das ressonâncias, a natureza biológica do sistema antigo do cérebro. Não obstante ser programável pelo sistema mais novo da racionalidade (o córtex pré-frontal), o sistema automático permanece preordenado a economizar energia, cobrando preço extorsi-vo, ao tropeçar em questões que envolvem o exercício da lógica e do discernimento a propósito do que realmente leva ao bem-estar41 durável. Sede funcional da memória,42 simplifica para se contentar com respostas atraentes e fáceis (apesar de insatisfatórias), tudo para não enfrentar o penoso trabalho suscitado pela dúvida e para não ter que problematizar as crenças preliminares.43

37 Vide Daniel Kahneman in ob.cit., p. 105.38 Vide Elizabeth Loftus in “Our changeable memories: legal and practical implications”, Nature Reviews/Neurosciece, Vol. 4, 2003, pp 231-234.39 Vide Daniel Kahneman in ob.cit., p.105: “responds more strongly to losses than to gains (loss aversion).”40 Idem: p. 105: “is biased to believe and confirm.” 41 Vide, sobre bem-estar, Daniel Kahneman, Ed Diener e Norbert Schwartz in Well Being. Russel Sage Foundation, 1999. Vide, ainda, Ed Diener, Richard Lucas, Ulrich Schimmack e John Helliwel in Well-Being for Public Policy. NY: Oxford University Press, 2009.42 Vide Daniel Kahneman in ob.cit., p. 46: “Memory function is an attribute of System 1. (…) The extent of deliberate checking and search is a characteristic of System 2, which varies among individuals”. 43 Vide António Damásio in E o cérebro criou o homem. SP: Cia. das Letras, 2011, p. 169: “Nossas memórias sobre certos objetos são governadas por nosso conhecimento prévio de objetos comparáveis ou de situações semelhantes. (...) são preconceituadas, no sentido estrito do termo, pela nossa história e crenças prévias.”

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Convém não esquecer que o próprio sistema reflexivo, mormente quando debilitado44 ou exaurido, apresenta-se vulnerável e libera vastos territórios mentais para o domínio opressivo dos estereótipos,45 dos juízos epidérmicos e das falácias. Não raro, o sistema reflexivo deixa de funcionar (ou funciona mal) em termos de autocontrole, com ex-pressivos e pesados danos à qualidade intertemporal dos sopesamentos jurídicos.

De outra parte, como atesta o experimento de Walter Mischel e Ebbe Ebbesen sobre os efeitos da incapacidade de adiar gratificações, sobrevém do automatismo a séria dificuldade de realizar escolhas sustentáveis, ao longo do tempo. Para agravar o quadro, impulsos e atalhos mentais são explorados à exaustão por aproveitadores inescrupulosos,46 no leilão das crenças,47 em especial nessa era de hiperconsumismo e de sucessivas bo-lhas especulativas, na qual o sujeito parece convertido numa mercadoria desejável, como diagnosticou Zygmunt Bauman.48

44 Vide Daniel Kahneman: in ob.cit., p. 41.45 Vide, para ilustrar a ameaça dos estereótipos (“stereotype threat”), Claude Steele in “A threat in the air: How stereotypes shape intellectual identity and performance”, American Psychologist, Vol. 52(6), Jun 1997, pp. 613-629.46 Vide Robert Cialdini in Influence. 4ª ed., Boston: Allyn e Bacon, 2001. Entre as ilusões cognitivas ou vieses, mostra a crença de quanto mais caro, melhor. A racionalidade sabe, com facilidade, que nem sempre é assim. Contudo, o sistema impulsivo sequer duvida. Outros vícios mentais arrolados, para ilustrar, são o de confiar cegamente no argumento do especialista, desconhecer o efeito contraste e ignorar as influências da reciprocidade, todos ardilosamente explorados pelo marketing. Vide, para perspectiva crítica, Michael Sandel in What a money can´t buy. The moral limits of market. NY: Farrar, Straus and Ginoux, 2012. Vide, sobre a realidade das ilusões cognitivas, Daniel Kahneman e Amos Tversky in “On the reality of cognitive illusions,” Psychological Review Vol. 103 (3), 1996, pp. 582-91. 47 Vide Eduardo Gianetti in O mercado das crenças. SP: Cia. das Letras, 2003.48 Vide Zygmunt Bauman in Vida para consumo. A transformação das pessoas em mercadoria. Rio: Zahar, 2008, p. 22: “Numa sociedade de consumidores, tornar-se uma mercadoria desejável e desejada é a matéria de que são feitos os sonhos e os contos de fadas.”

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Nesse passo, o que almejo destacar é que, na interpretação jurídica, argumentos e ponderações coexistem, na mente humana,49 com a trama facciosa de impulsões (fenômeno evidenciado pelos experimentos de John Bargh50 sobre a força dos estereótipos). Assim, convivem o sistema I e o sistema II em crispadas batalhas entre a recompensa imediata e o pensamento de longo prazo, semelhantes às clássicas lutas das dietas. São, no fim das contas, as impulsões (sem freios) que costumam solapar ou contaminar as modulações intertemporais,51 mormente as endereçadas ao longo prazo,52 adensando a vulnerabilidade ao contágio emocional53 e à ignorância pluralística.54 O antídoto? Autoconhecimento e autocontrole o tempo inteiro. Tomar ciência dos vieses e dos hábitos mentais é condição

49 Vide André Palmini e Victor Geraldi Haase in “‘To do or not to do’? The neu-robiology of decision-making in daily life”, Dementia & Neuropsychologia 2007; 1: pp.10-17. Observam (p. 15): “The crucial issue is that in practice, in real life, several stimuli – appealing differently to the subcortical reward and to the prefrontal systems - coexist in time. In other words, in practice, there are several stimuli with prospectively dis-tinct levels of immediate versus delayed gratification demanding a behavioral response.”50 Vide John Bargh, Mark Chen e Lara Burrows in “Automaticity of Social Behavior: Direct Trait Construct of Stereotype Activation on Action”, Journal of Personality and Social Psychology 71 (1996): 230-244. Por exemplo, compor uma frase sobre idosos faz com que as pessoas, logo a seguir, inconscientemente, passem a andar mais devagar. 51 Vide, sobre a questão intertemporal, André Palmini e Victor Geraldi Haase in “‘To do or not to do?’ The neurobiology of decision-making in daily life,” ob.cit, p.12: “Ines-capably, making decisions is a constant demand upon our brains, and there is always the dichotomization between the more immediate rewards and the more delayed gratifications (without the immediate rewards).” 52 Vide Juarez Freitas in Sustentabilidade: Direito ao Futuro. 3ª ed., BH: Fórum, 2016, notadamente no Capítulo sobre falácias. Vide, ainda, James Salzman e Barton Thompson in Environmental Law and Policy. NY: Foundation Press, 2010, pp. 24-26.53 Vide, sobre a emoção como fenômeno comportamental, social e psicofisiológico e sobre o automatismo do contágio, Elaine Hatfield, John Cacioppo e Richard Rapson in Emotional Contagion. University of Cambridge, 1994. 54 Tendência de agir mais quando está só, numa situação emergencial, do que em grupo, no qual resta preso à inércia. Vide, sobre a ignorância pluralística, Dale Miller e Cathy McFarland in “Pluralistic ignorance: When similarity is interpreted as dissimilarity”. Jour-nal of Personality and Social Psychology, Vol. 53(2), Aug 1987, pp. 298-305. Vide, sobre a influência do tamanho do grupo sobre a capacidade de agir em emergência, Bibb Latane e Steve Nida in “Ten Years of Research on Group Size and Helping”. Psychological Bulletin 1981. Vol. 89, nº. 2, pp. 308-324.

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primordial para viabilizar a performance adequada dos juízes, sem cair na deferência à autonomia do objeto, que infirma a interconexão que transcende, desde sempre, a dicotomia entre sujeito e sistema normativo.55

Em outras palavras, se a magistratura estiver vigilante, deixará de acreditar piamente na determinação do mundo pré-dado e não se deixará capturar, grosseira ou sutilmente, pelas pré-compreensões de má índole. Ao passo que se estiver distraída ou confiante demais, converte-se em verdadeiro títere no jogo conjuntural, no rumo de decisões tingidas por influências (internas e externas), que nada ostentam de fundo impessoal, dado que gravitam em torno de idiossincráticas oscilações na percepção dos riscos56 e de grupos especiais.

Antecipo que defenderei, mais adiante, que é perfeitamente factível filtrar e trocar predisposições equivocadas. A pedra de toque, nessa senda,57 radica, antes de mais nada, em não confiar cegamente no sistema de impulsos (próprios e alheios), nem no domínio simplificador das regras ou das máxi-mas canônicas, porquanto, formalismos à parte, não convém negligenciar que os hábitos mentais estabelecem, na maior parte das vezes, intensidades contrastantes, no manejo dos critérios jurídicos e extrajurídicos.

Por ora, reitero que as predisposições podem conduzir a erros impor-tantes de avaliação58 e atribuição causal,59 ainda mais quando combinadas

55 Vide a polêmica entre Emilio Betti, com o seu cânone da autonomia do objeto, in Teoria Generale de la Intepretazione. Milão: Giuffré, 1955 e, com acerto maior, no ponto, Hans-Georg Gadamer, com ênfase para o papel das pré-compreensões, in Verdade e Método. Petrópolis: Vozes, 1997. 56 Vide Armando Freitas da Rocha e Fábio T. Rocha in Neuroeconomia e Processo Decisório. Rio: LTC, 2011, pp. 11-95.57 Hermenêutica jurídica é a ciência (mais do que arte) descritiva do processo interpretativo, em seus mecanismos conscientes e inconscientes, condicionadores da produção normativa de significados pelos intérpretes do sistema jurídico. Trata-se de interpretação tópica e sistemática, ao mesmo tempo, como preconizo in A Interpretação Sistemática do Direito, 5a ed., op.cit. 58 Vide Daniel Kahneman, ob.cit., p. 58.59 Vide, sobre a tendência de ignorar os fatores situacionais em detrimento de fatores disposicionais, o texto dos organizadores de Psicologia social: principais temas e verten-tes. Cláudio Vaz Torres e Elaine Rabelo Veiga (orgs.) Porto Alegre: Artmed, 2011, p. 50.

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à força do contexto.60 Modelam os discursos interpretativos, mesmo que o sistema reflexivo assegure figurar no controle. Tudo se passa como se vieses mal escolhidos conspirassem contra o melhor julgamento,61 desde dentro, por assim dizer. O irracionalismo arbitrário resulta desse predo-mínio - como se constata em históricos julgamentos infames62 - que o sistema primitivo confere às inferências nefastas que confirmam perversas convicções preliminares,63 incorrendo no enviesamento da confirmação.64

Logo, é temerário - para dizer o mínimo - subestimar a circunstância de que o sistema primitivo gratifica-se pela coerência (falsa) das estórias que consegue criar,65 nada importando a quantidade e a qualidade dos dados coligidos. Ou seja, a coerência pode ser cúmplice da perpetuação de erros66 tenebrosos, via predisposições subalternas de má qualidade.

Justamente por esse motivo de fundo, se o aplicador não estiver compenetrado em checar a si mesmo e aos dados factuais,67 a coerência jurídica, tão valorizada (por relevantes considerações, que incluem o combate à volatilidade ocasionada por súbitas reviravoltas interpre-tativas) tende a não encontrar o menor respaldo no sistema reflexivo, eclipsado pelo sistema primitivo, inundado pela excessiva confiança

60 Vide, para explanação didática sobre o poder do contexto, Malcon Gladwell in O ponto de virada. Rio: Sextante, 2009, pp. 139-143.61 Vide Veronika Denes-Raj e Seymour Epstein in “Conflict between intuitive and rational processing: When people behave against their better judgment”. Journal of Personality and Social Psychology, 66, 1994, pp. 819-829.62 Vide, sobre julgamentos infames, Erwin Chemerinsky in The Case Against The Supreme Court. NY: Viking, 2014.63 Vide Daniel Gilbert in “How Mental Systems Believe”, American Psychologist, vol. 46, n.2, fev, 1991, pp. 107-118. Aí sugere, à p. 116, que a aceitação temporária de uma proposição é parte do processo não voluntário de sua compreensão. 64 Vide Daniel Kahneman in ob.cit., p. 81: “The operations of associative memory contribute to a general confirmation bias.” 65 Idem: ob.cit., p. 85.66 Vide Robert Cialdini in ob.cit., p.119.67 A rigor, sem niilismo, conhecemos somente narrativas, não os fatos propriamente.

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nas próprias inclinações.68 Vítima também da ojeriza à dúvida69 e da propensão de suprimir incertezas por decreto, no mau vezo de só inferir o que deseja.

Não é de estranhar que o emprego de cânones jurídicos, converta--se, com assiduidade, no singelo fruto da chamada correspondência de intensidade (“intensity matching”),70 operação levada a cabo pelo sistema primitivo, mais do que resultante, como seria de esperar, dos conselhos judiciosos do sistema reflexivo. Numa frase: no íntimo do intérprete jurídico, indispensável vigiar constantemente para que os módulos pri-mitivos da mente não engolfem as partes modernas do cérebro, em ter-mos evolucionários. Então, fortalecer as boas predisposições é requisito essencial para que os juízes exerçam, com êxito, o poder sobre os vieses.

2.2 Predisposições moldam a interpretação judicial: força aprimorá-las deliberadamente

Os desvios cognitivos estão presentes em toda atividade humana, sem que a interpretação judicial represente exceção, por maior prestí-gio que se atribua à teoria do discurso ou aos comandos heterônomos que prescrevem a imparcialidade e a fundamentação minuciosa, quase exauriente. É que intervém os atalhos heurísticos,71 conforme aversões e preferências, ao sabor de saltos infundados, que culminam em julga-

68 Vide Daniel Kahneman in ob.cit., p. 87: “The confidence that individuals have in their beliefs depends mostly on the quality of the story they can tell about what they see, even if they see little. We often fail to allow for the possibility that evidence that should be critical to our judgment is missing – what we see is all there is.” 69 Idem: ob.cit, p. 114: “System 1 is not prone to doubt. It suppresses ambiguity and spontaneously constructs stories that are as coherent as possible. Unless the message is immediately negated, the associations that it evokes will spread as if the message were true.”70 Idem: ob.cit., p. 93.71 Vide Paul Slovic, Melissa Finucane, Ellen Peters e Donald G. MacGregor in “The affect heuristic” in Heuristics and Biases. Thomas Gilovich, Dale Griffin e Daniel Kahneman (Eds.). Cambridge: Cambridge University Press, 2002, pp. 397-420.

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mentos72 distorcidos. Donde segue a premência de arrolar os principais vieses (“biases”) que espicaçam a isenção e o balanceamento virtuoso da interpretação judicial, selecionados entre os (provavelmente) mais assíduos. Ei-los:

(a) o viés da confirmação:73 a predisposição de optar por dados e informações que somente confirmam as crenças e impressões preliminares, sem passar pelo crivo apurado do sistema refle-xivo, em que pese o risco da seleção adversa.74 Ocorre, por exemplo, quando o intérprete-juiz, fatigado ou estressado, fixa inclinação inicial e seleciona provas e argumentos interpretativos que confirmem esse apriorismo, afastando tudo aquilo que se colocar em dissonância. Desnecessário assinalar que a crença de partida pode estar rotundamente equivocada, inclusive pela escassez de dados disponíveis. A mente julgadora, ao pretender confirmar a qualquer custo, funciona rápido demais e se fecha perigosamente a opções distintas. Nessa seara, o melhor é rever continuamente as inclinações e os precedentes (vinculantes ou não), mantendo a mente o mais aberta possível.

(b) o viés da falsa coerência: a predisposição de negar a (incômoda) dúvida e de suprimir artificialmente a ambiguidade (não menos incômoda), inventando narrativas coerentes.75 Coerência fre-

72 ide Daniel Kahneman in ob.cit., pp. 103-105.73 Idem: ob.cit., p. 81: “System 1 is gullible and biased to believe, System 2 is in charge of doubting and unbelieving, but System 2 is sometimes busy, and often lazy. Indeed, there is evidence that people are more likely to be influenced by empty persuasive messages, such as commercials, when they are tired and depleted.”74 Vide, acerca do viés confirmatório, Antonio José Maristrello Porto e Lucas Thevenard Gomes in “Economia comportamental e contratos de adesão,” in Revista de Direito Empresarial, BH, ano 9, n.1, jan/abril 2012, p. 69: “O viés confirmatório é uma predisposição de um indivíduo para a seleção adversa de informações que confirmem suas hipóteses ou preconceitos anteriormente estabelecidos, independentemente de a informação ser ou não verdadeira.”75 Vide Daniel Kahneman in ob.cit., p. 114: “System 1 is not prone to doubt. It sup-presses ambiguity and spontaneously constructs stories that are as coherent as possible. (…) System 2 is capable of doubt, because it can maintain incompatible possibilities at the same time.”

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quentemente fictícia. Ocorre, por exemplo, quando a mente do julgador “lê” textos normativos como se estivessem escoimados de opções interpretativas conflitantes, valorizando mais ou menos arbitrariamente determinados elementos semânticos, sintáticos ou pragmáticos. Nesse caso, o intérprete superestima a coerência daquilo que lhe é exposto ou76 apresenta invencível propensão de, em face da incerteza, preferir a via da deferência excessiva ao consenso77 ou ao texto original ou ao argumento eleito “ad hoc.” Imagino que dose moderada de ceticismo e desapego à conformi-dade decisionista seja o remédio correto contra o enviesamento, cujas raízes repousam na confusão entre a aspiração legítima de homeostase social e a estabilidade obtida a qualquer preço.

(c) o viés de aversão à perda:78 a predisposição de valorizar mais as perdas do que os ganhos (o dobro, em média).79 Trata-se de fenômeno que possui, como os demais, convincente explicação evolucionária. O ponto é que, embora útil na vida selvagem, predispõe à inércia conservadora e autocentrada, e sabota trans-formações necessárias, encaradas como ameaças, até de exclusão social.80 O medo da perda, com frequência, toma conta e paralisa.

76 Idem: ob.cit., p. 114: “we are prone to exaggerate the consistency and coherence of what we see.” 77 Vide Gretchen Sechrist e Charles Stangor in “When are intergroup attitudes based on perceived consensus information?” Social Influence. vol. 2, Issue 3, 2007, pp. 211-235.78 Vide Cass Sunstein e Richard Thaler in Nudge. Rio: Elsevier, 2009, pp. 36-37: “De maneira geral, a tristeza pela perda é algo duas vezes maior do que a alegria proporcionada pelo ganho dessa mesma coisa. (...) A aversão à perda ajuda a produzir inércia, ou seja, um forte desejo de não mexer no que você possui neste momento.” 79 Vide Richard Nisbett in ob.cit., p.109. Observa: “Temos a tendência de evitar desistir daquilo que possuímos, mesmo em situações nas quais uma análise de custo-benefício conclui que deveríamos abrir mão do que temos em troca da perspectiva clara de con-seguir algo melhor.”80 Vide Jaak Panksepp in “Feeling the pain of social loss”. Science 2003; 302: pp. 237-239. Vide, ainda, Social Pain: Neuropsychological and Health Implications of Loss and Exclusion. Geoff MacDonald and Lauri A. Jensen-Campbell (Eds.), Washington: American Psychological Association, 2011.

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REVISTA DA AJUFERGS / 1074

Pode ocorrer, por exemplo, na sobrevalorização desmedida dos perigos, por temor exacerbado. Manifesta-se ainda na inércia que deixa de tomar providências emancipatórias, na ânsia sim-plista de tudo preservar. E aparece na propensão de valorizar exageradamente os itens já possuídos (“endowment effect”).81 O antídoto, em todas situações, está em regular as impulsões, de modo a escrutiná-las com raciocinado senso de moderação, não mobilizando apegos e temores ancestrais.

(d) o viés do “status quo:”82 a predisposição de manter as escolhas feitas, ainda que disfuncionais, anacrônicas, iníquas e obsoletas. Ocorre, por exemplo, quando julgadores, tendo adotado deter-minada linha de orientação, resignam-se a mantê-la, mesmo que o precedente não reencontre, na atualidade, os pressupostos de sua consolidação. É o típico vício dos partidários do movimento originalista radical (com suas variantes83 e vicissitudes lógicas84) e daqueles que rejeitam o senso de adaptação (incremental ou de fundo) perante inovações tecnológicas e culturais. O viés do “status quo”85 tende a introduzir atroz ativismo regressivo que zomba da dignidade, como se verificou, no contexto brasileiro,

81 Vide Brian Knutson, G. Elliott Wimmer, Scott Rick, Nick G. Hollon, Drazen Prelec e George Loewenstein in “Neural Antecedents of the Endowment Effect”, Neuron 58, June 12, 2008, pp. 814-822.82 Vide William Samuelson e Richard Zeckhauser in “Status Quo Bias in Decision Making”, Journal of Risk and Uncertainty, 1: p.8 (1988): “This article reports the results of a series of decision-making experiments designed to test for status quo effects. The main finding is that decision makers exhibit a significant status quo bias. Subjects in our experiments adhered to status quo choices more frequently than would be predicted by the canonical model”. 83 Vide, por exemplo, Robert Bork in The tempting of America. NY: Touchstone, 1991. 84 Vide, para ilustrar a crítica ao originalismo, David Strauss in The Living Constitution. NY: Oxford University Press, 2010, pp. 7-31, apontando, entretanto, as razões de sua sobrevivência, entre as quais figura à de p. 31: “despite the force of the criticism, is that originalism is not actually a way of interpreting the Constitution. It is a rhetorical trope.” 85 Vide, por exemplo, Antoinette Nicolle, Stephen M. Fleming, Dominik R. Bach, Jon Driver e Raymond J. Dolan in “A Regret-Induced Status Quo Bias”, The Journal of Neuroscience, 2 March 2011, 31(9): pp. 3320-3327.

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75INTERPRETAÇÃO JUDICIAL: EXAME CRÍTICO DOS VIESES

na tardança aviltante em abolir a cruel escravatura.86 O remédio consiste em perceber que o melhor modo de preservar é avançar e, ao mesmo tempo, que o novo é mais facilmente metabolizável quando vestido em trajes familiares.

(e) o viés do enquadramento: a predisposição de interpretar à de-pendência do modo pelo qual a questão é enquadrada.87 Ocorre quando o juiz, exímio especialista no assunto em discussão,88 deixa de perquirir, por falta de tempo ou outro motivo, se en-quadramento diverso da matéria conduziria à resposta mais aceitável sistemicamente. Como anota Steven Pinker, uma limitação da racionalidade “é o fato de que nossa capacidade de enquadrar um fato de diversas formas faz com que troquemos de ângulo no decorrer de uma ação, dependendo de como a ação é descrita.”89 Os sofistas de todos tempos têm sido eficientes na técnica maliciosa do enquadramento, utilizada para ludibriar. O melhor, aqui, está em saber variar os enquadramentos, gerando alternativas virtuosas e universalizáveis, desconfiando do modo pelo qual as questões são formuladas.

(f) o viés do otimismo90 excessivo: a confiança extremada guarda conexão estreita com as previsões exageradamente seguras

86 Tardança que se manifesta também na inaceitável mora de regulamentação do art. 243 da Constituição. 87 Vide Cass Sunstein e Richard Thaler in Nudge, ob.cit., p. 39: “Até mesmo os especia-listas estão sujeitos a efeitos do enquadramento. Ao ouvir que ‘90 em 100 estão vivos’, os médicos têm mais probabilidade de recomendar a operação do que se ouvirem que ‘10 em 100 estão mortos.’” 88 Vide, sobre a dificuldade de especialistas aceitarem o erro, Philip Tetlock in Expert political judgement. Princeton: Princeton University Press, 2005. Vide, do mesmo autor e Dan Gardner in Superprevisões. Rio: Objetiva, 2016. 89 Vide Steven Pinker in Do que é feito o pensamento. SP: Cia. das Letras, 2008, p. 448.90 Vide, sem deixar de reconhecer os benefícios do otimismo racional, Tali Sharot in “The Optimism Bias,”Current Biology, Vol. 21, Issue 23, December 2011, pp. 941-945. Vide, ainda, Taly Sharot in The optimism bias. New York: Pantheon, 2011.

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(e negligentes),91 ligadas a erros nem sempre inocentes.92 A so-lução, nesse caso, é adotar dose moderada de otimismo, pois o excesso de confiança deturpa os julgamentos e alija os cuidados inerentes à prevenção e à precaução.93 O melhor é se abster de julgar até recuperar o estado emocional equilibrado. Extremismo nunca será boa predisposição.

(g) o viés da preferência pelo presente (“present-biased preferences”):94 trata-se da tendência de hipervalorizar os re-sultados imediatos, sem perquerir sobre os efeitos de longo espectro, causando prejuízos de toda ordem (inclusive à saúde pública), por falhas graves nas escolhas intertemporais.95 O remé-dio consiste em pretender, no sentido forte, o desenvolvimento sustentável, o bem-estar duradouro e a justiça intergeracional,96 mirando gratificações continuadas, em nome de benefícios lí-quidos consistentes.97

91 Vide Daniel Kahneman in ob.cit., pp. 249-254.92 Vide John Keneth Galbraith in A economia das fraudes inocentes. SP: Cia. das Letras, 2004.93 Vide, sobre otimismo excessivo, David Dejoy in “Optimism bias and traffic safety, “Proceedings of the Human Factors and Ergonomics Society Annual Meeting, September, vol. 31, n.7, 1987, pp. 756-759.94 Vide Stephan Meier e Charles Sprenger in “Present-Biased Preferences and Credit Card Borrowing”, American Economic Journal: Applied Economics, vol. 2, nº 1, 2010, pp. 193-210. Observam: “The finding that directly measured present bias correlates with credit card borrowing gives critical support to behavioral economics models of present--biased preferences in consumer choise. This paper opens up a number of avenues for future research”.95 Vide Shane Frederick, George Loewenstein e Ted O´Donoghue in “Time Discoun-ting and Time Preference: A Critical Review”, Journal of Economic Literature, vol. 40, nº 2, 2002, pp. 351-401. 96 Vide, para ilustrar, Axel Gosserie in Pensar a Justiça entre as Gerações. Coimbra: Almedina, 2015.97 Também se manifesta como viés relacionado à “miopia da tristeza” (“myopic misery”), que suscita impaciência e preconceitos que afastam as decisões dos objetivos de longo alcance, além de envolver altos custos potenciais. Vide, sobre o aumento da impaciência causado pela tristeza, Jennifer Lerner, Ye Li e Eike Weber in “The Financial Costs of Sadness”, Psychological Science, January 2013, vol. 24, pp. 72-79.

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77INTERPRETAÇÃO JUDICIAL: EXAME CRÍTICO DOS VIESES

Como tais vieses ilustram (além de outros, como o da disponibili-dade – “availability bias,”98 que distorce estimativas de probabilidade, ou o da ancoragem),99 é fundamental identificar, em nosso processo de percepção,100 aqueles mecanismos enganadores que inclinam a encontrar respostas rápidas, mas errôneas, para perguntas difíceis.101 Com efeito, a interpretação judicial será amplamente beneficiada se reconhecer a onipresença dos vieses e se atentar à possibilidade de, apesar das precau-ções, ser vítima de armadilhas mentais. Parece-me que os bons julgadores identificam vieses e tratam de produzir hábitos mentais alternativos para automatizar escolhas sábias, com acurácia e senso de proporção.

Por certo, nada resolve o singelo apelo à regra formal, nem a de-fesa do passivismo como saída, ignorando erros crassos do utilitarismo de regras, desnudados por Bernard Willians.102 Não deixa, aliás, de ser sintomático que determinadas lesões cerebrais só façam aumentar o utilitarismo no âmbito do julgamentos morais.103

98 Vide, sobre tal viés que superestima a probabilidade de eventos em função da faci-lidade como que são evocáveis em nossa mente, Amos Tversky e Daniel Kahneman in “Availability: A Heuristic for Judging Frequency and Probability,” Cognitive Psychology, 5, 1973, pp. 207-232. 99 Vide, sobre ancoragem - nem sempre detectada -, Fernando Leal e Leandro Molhano Ribeiro in “O Direito é sempre relevante? Heurística de ancoragem e fixação de valores indenizatórios em pedidos de dano moral em Juizados Especiais do Rio de Janeiro,” Direitos Fundamentais & Justiça. BH: ano 10, n.35, jul/dez/2016, pp. 253-284. 100 Vide, sobre percepções equivocadas coletivas, Perils of Perception Survey 2017, Paris: Ipsos, 2017. 101 Vide Daniel Kahneman in ob.cit., p. 98: “The technical definition of heuristic is a simple procedure that helps find adequate, though often imperfect, answers to difficult questions. The word comes from the same root as eureka.”102 Vide Bernard Williams in Moral. SP: Martins Fontes, 2005, p. 159: “O utilitarismo das regras, enquanto tentativa de se agarrar a algo caracteristicamente utilitarista e ao mesmo tempo aparar as suas arestas mais toscas, a mim me parece um fracasso.” 103 Vide M. Koenings, L. Young, R. Adolphs, D. Tranel, F. Cushman, M. Hauser e A. Damásio in “Damage to the prefrontal cortex increases utilitarian moral” in Nature, vol. 446, 2007, pp. 908-911. Para uma hipótese de que os sentimentos pró-sociais é que são reduzidos, nesses casos da lesão, vide Jorge Moll e Ricardo de Oliveira Souza in “Primeiro sentimos, depois julgamos”. Mente e Cérebro. Especial “O Segredo da Decisão”, n. 35, 2013, p. 55.

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REVISTA DA AJUFERGS / 1078

Insofismável que, perante recentes descobertas científicas sobre como opera o cérebro humano, as teorias normativistas não merecem prosperar. Já a tentativa de derivar a interpretação do sistema jurídico de modo especial e intrínseco é outro canto de sereia, que destoa, por inteiro, do conhecimento sobre como a mente funciona. Realmente, qualquer solução unidimensional engendra abordagens deficitárias. Também não servem as fórmulas abstratas de ponderação, por mais sedutoras que sejam, uma vez que até as tentativas matemáticas, como a fórmula de Daniel Bernouill,104 são de debilidade manifesta. É que, como observa com clarividência, Antonio Damásio,105 a própria memória, nas suas evocações, depende de pré-compreensões.

Cabe, nessa medida, consolidar boas predisposições, cerne dos futuros estudos da interpretação106 judicial. Lógico, tudo sugere aban-donar fantasias como a autonomia do objeto, sonhada por Emilio Bet-ti.107 Impõe-se o cuidado realista contra as simplificações dos cânones hermenêuticos, por melhores que tenham sido os anelos inaugurais. É que ignoram que a mente combina razão e emoção (tanto nos casos “fáceis” como nos “difíceis”), condição para não extraviar os sentimentos morais.108 A rigor, sem emoções (filtráveis), os julgamentos resultariam simplesmente impraticáveis.

Eis ponto fulcral, desconsiderado pelas abordagens reducionistas do jogo hermenêutico, que não enxergam a perfomance de regiões ances-trais, comprometendo o julgamento racional, entendido como a “corre-lação entre certas ações e consequências benéficas.”109 Como enfatizei,

104 Vide Daniel Kahneman in ob. cit., pp. 272-277.105 Vide António Damásio in E o cérebro criou o homem. SP: Cia. das Letras, 2011, p. 169.106 Vide Juarez Freitas in A Interpretação Sistemática do Direito. 5ª ed., ob.cit. 107 Vide Emilio Betti in Teoria generale dell´interpretazione. Milano: Giuffrè, 1955.108 Vide Jorge Moll e Ricardo de Oliveira Souza in “Primeiro sentimos, depois julga-mos”. Mente e Cérebro. Especial O Segredo da Decisão, n. 35, 2013, pp. 48-55.109 Vide António Damásio in Em busca de Espinosa, ob.cit., p. 161. Vide, ainda, António Damásio in Self comes to mind. NY: Vintage Books, 2012, com destaque para o papel dos neurônios (p. 41 e ss).

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79INTERPRETAÇÃO JUDICIAL: EXAME CRÍTICO DOS VIESES

a mente humana, às voltas com os desvios cognitivos, tende, na média, a valorar velozmente demais. À conta disso, o intérprete maduro mantém o autocontrole para exorcisar os erros sistemáticos, marcadamente no tocante à eleição de premissas.

Para dizer de modo frontal, os automatismos inibem a imparcia-lidade, a compaixão racional (de que fala Paul Bloom110) e a justiça recíproca.111 O significado normativo, por sua vez, pode resultar afetado pela desconsideração do futuro e112 pela polarização de grupo.113 Os há-bitos mentais, como frisei, moldam as escolhas interpretativas, mediante triangulação “estímulo-recompensa-rotina” que opera em “loop”,114 no qual o cérebro tenta agir com o menor esforço possível. Os aludidos erros sistemáticos irrompem exatamente quando automatismos se aliam à racionalidade pouco laboriosa, de sorte a embargar a atuação inibidora de rotinas superiores.115

110 Vide Paul Bloom in Against Empathy. The Case por Rational Compassion. London: The Boldon Head, 2016.111 Vide, sobre “homo reciprocans” e vantagens da reciprocidade positiva, Armin Falk, Thomas Dohmen, David Huffman e Uwe Sunde in “Homo Reciprocans: Survey Eviden-ce on Behavioral Outcomes”, Economic Journal, vol. 119, March 2009, pp. 592-612.112 Vide, sobre os vieses que interferem na racionalidade administrativa, Thomas Bateman e Scott Snell in Administração. SP: Atlas, 2011, pp. 79-80. Vide, sobre o viés do desconto hiperbólico, Vieses do Poupador, Vol. 3. Série CVM Comportamental. Rio: CVM, 2016, p. 19.113 Vide, sobre a polarização de grupo, Cass Sunstein in Going to extremes: How like minds unite and divide. NY: Oxford University Press, 2009, pp. 1-20. Vide, ainda, Daniel Insenberg in Group Polarization: A critical review and meta-analysis. Journal of Personality and Social Psychology, vol. 50(6), Jun 1986, pp. 1141-1151.114 Vide, para relato das pesquisas sobre o hábito, Charles Duhigg in O Poder dos Há-bitos. SP: Objetiva, 2012, p. 36: “Esse processo dentro dos nossos cérebros é um loop de três estágios. Primeiro há uma deixa, um estímulo que manda seu cérebro entrar em modo automático, e indica qual hábito ele deve usar. Depois há a rotina, que pode ser física, mental ou emocional. Finalmente, há uma recompensa, que ajuda seu cérebro a saber se vale a pena memorizar este loop específico para o futuro.”115 Idem: pp. 38-39, 64-79.

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Pois bem. Assentadas as bases neurais dos juízos116 jurídicos, existe solução (árdua, é verdade) para a vitória dos juízos imparciais e íntegros. Consiste em, via livre-arbítrio,117 trocar voluntariamente de hábitos men-tais, neutralizando predisposições negativas. Nessa linha, proponho essa troca deliberada. Em vez do hábito da discriminação negativa, o hábito da igualdade includente e da imparcialidade aberta.118 Em lugar do há-bito do imediatismo imprevidente, o hábito da prospecção de impactos multidimensionais (sociais, ambientais, econômicos, éticos e jurídico--políticos). Em substituição do hábito da inércia crônica e omissivista, o hábito louvável da intervenção motivada e providencial. Em troca do hábito de ódio, inveja e ressentimento, o hábito da simpatia racional. Em troca do hábito de capturas plutocráticas, o hábito seguro de pretender o bem universalizável. Em lugar do hábito da simplificação mutiladora, o hábito de apreciar a riqueza da interconexão de tudo. Em vez do hábi-to de antropocentrismo estrito, o hábito de valorizar e respeitar o valor intrínseco dos seres vivos.

De fato, andou bem Francis Bacon, não apenas ao destacar o ele-vado poder dos hábitos (os mais dominantes adquiridos na infância), como ao recomendar a estratégia de deixar as mentes predispostas ao aprimoramento.119 Mais do que nunca, o julgador tem que manter viva essa percepção de que as escolhas interpretativas espelham o conjunto das rotinas existenciais, das epidérmicas às mais enraizadas.

116 Vide Jorge Moll, Roland Zahn, Ricardo Oliveira Souza, Frank Krueger e Jordan Grafman in “The neural basis of human moral cognition”. Nature Reviews Neuroscience 6, 2005, pp. 799-809. 117 Vide, sobre o livre-arbítrio na espécie humana, Jaak Panksepp in Affective Neuroscience: The Foundations of Human and Animal Emotions. NY: Oxford, 1998, p. 329.118 Vide, sobre a imparcialidade aberta, Amartya Sen in The Idea of Justice. London: Penguin Books, 2010.119 Vide Francis Bacon in Ensaios sobre moral e política. SP: Edipro, 2001, p. 135.

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81INTERPRETAÇÃO JUDICIAL: EXAME CRÍTICO DOS VIESES

A propósito, seria injusto não evocar Aristóteles120 e Platão,121 numa convergência rara sobre o papel decisivo dos hábitos. Portanto, os juízes, se quiserem evitar condicionamentos viciosos e perseguir resultados apropriados, republicanos e impessoais, têm o condão de fazê-lo, via troca planejada e consciente dos hábitos mentais. Força eleger as rotinas do pen-samento sustentável,122 redirecionando-o123 para patamares mais elevados.

Com esse fito, o intérprete judicial “desliga” o hábito de pensar exclusivamente o imediato, incorporando as lentes da visão prospectiva. Nutre o hábito de desconfiar das próprias crenças, por mais aliciantes que sejam, ciente do viés de confirmação. Revela-se atento ao viés de aversão à perda e cultiva a mentalidade avaliativa “ex ante” de custos e benefí-cios (diretos e indiretos), sem descurar da emergência de externalidades negativas. Em vez da confiança excessiva e da miopia temporal, esposa uma postura de vigilância contra estados alterados (excitações, fadigas e arroubos e desencantos radicais). Pratica o discernimento de diferir gratificações.124 Evita o viés do “status quo”, contrapondo-lhe o hábito de tudo pensar como perfectível. Em síntese, para cada enviesamento, adota uma rotina universalizável.

À base do articulado, hábitos mentais são elementos nevrálgicos para requalificar a interpretação judicial, numa combinação harmonio-sa de habilidades cognitivas e não-cognitivas (salientadas por James

120 Vide Aristóteles in The Nichomachean Ethics of Aristotle. London: Bohn, 1850, pp. 33-34: “The virtues, then, are produced in us neither by nature nor contrary to nature, but, we being naturally adapted to receive them, and this natural capacity is perfected by habit”. 121 Vide, sobre o hábito, a assertiva de Platão: “the character is engrained by habit” in Laws, Livro VII, 792e, The Dialogues of Plato, Oxford: Clarendon Press, 1953, vol. IV, p. 359.122 Vide Juarez Freitas in Sustentabilidade in ob.cit., Cap.X.123 Vide Timothy Wilson in Redirect. London: Penguin, 2011.124 Vide, sobre a resistência às tentações em favor de objetivos de longo alcance, Walter Mischel, Ozlem Ayduk, Marc Berman, B. J. Casey, Ian H. Gotlib, John Jonides, Ethan Kross, Theresa Teslovich, Nicole L. Wilson, Vivian Zayas e Yuichi Shoda in “Willpo-wer over the life span: decomposing self-regulation”, Social Cognitive and Affective Neuroscience Advance Access, Oxford University Press, set., 2010, pp. 1-5.

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Heckman).125 A interpretação judicial sugerida é, pois, aquela voltada a produzir significados normativos liquidamente benéficos, em termos multidimensionais. Inversamente, a má interpretação será o fruto de vieses, cognitivos e motivacionais, patológicos.

3 ConclusõesA modo de resumo, a interpretação judicial, empreendida com a

crescente consciência dos vieses e da força de hábitos mentais, é en-riquecida sobremaneira. Não é tarefa fácil ou trivial. Supõe ir fundo e perscrutar a alma de quem decide e o conjunto dos seus hábitos mentais, acima dos estreitos domínios da dogmática jurídica. Claro que há perigo nessa abordagem: o desavisado poderia supor que os condicionamentos são fatais e inelutáveis. Não são. Espero ter deixado claro que isso não é verdade. O que há de alentador é a plausibilidade de atuar nos bastidores mais íntimos da produção dos significados normativos.

Ademais, não nego a serventia evolucionária dos vieses, nem o peso das intuições. Tampouco pretendo dizer que toda predisposição seja si-nônimo de erro. Longe disso. Bem lidar com as predisposições implica fazer com que deixem de funcionar como fontes de erros sistemáticos e passem a favorecer decisões acertadas sistematicamente. Em breve recapitulação, sublinho as ideias centrais do presente estudo:

a) Os condicionamentos prévios e as predisposições habitam o núcleo das escolhas interpretativas em geral. Hábitos mentais determinam, para o bem ou o mal, o resutado da interpretação jurídica, por maior que seja o respeito à alteridade do texto normativo. Em que pese essa constatação irretorquível, grifo que, em virtude do livre--arbítrio (aptidão de vetar os impulsos que não se universalizam satisfatoriamente), os vieses não são sinônimo de fatalidade.

125 Vide James Heckman, ao realçar a prioridade do desenvolvimento das chamadas “soft skills” in “The technology and neuroscience of capacity formation, Proceedings of the National Academy of Sciences, 104(3): pp. 13250-13266. Vide, ainda, James Heckman e Yona Rubinstein in “The Importance of Noncognitive Skills: Lessons from the GED Testing Program.” American Economic Review 91(2), pp. 145-49.

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83INTERPRETAÇÃO JUDICIAL: EXAME CRÍTICO DOS VIESES

b) É crucial que o intérprete judicial se compenetre de suas rotinas mentais, das simples às mais elaboradas. Nesse quadro, o escru-tínio dos vieses (“biases”) sobe de ponto, de ordem a filtrar não apenas os aspectos cognitivos, mas os acervos de motivações subjacentes.

c) Em lugar do normativismo estrito, no seu suposto apreço às re-gras preexistentes, avulta o antídoto da reformatação deliberada de hábitos mentais. Nessa ordem de considerações, não faz o menor sentido postular que o “background” do intérprete possa ou deva ser cancelado.

d) O esclarecimento dos vieses não representa, por si, garantia de bom julgamento. No entanto, auxilia poderosamente no sentido da conformação deliberada de hábitos mentais aptos a conciliar o presente e o prospectivo, a razão e a intuição, o jurídico e o extrajurídico. Dito de outra forma, nenhum intérprete consistente e congruente pode ignorar a força das predisposições, próprias e do sistema normativo.

e) Com o emprego de técnicas comportamentais, sem prejuízo das ferramentas argumentativas, a magistratura ultrapassa, com vantagens, o mito da autonomia metafísica do objeto normativo, admitindo o peso da formação axiológica de qualidade. São, desse modo, insuficientes as teorias hermenêuticas que não tratam dos vieses, especialmente o da confirmação, o do “status quo”, o da aversão à perda, o do enquadramento, o do otimismo irrealista e o da miopia temporal. Não é inteligente prosseguir na ignorância de tais desvios (cognitivos e não-cognitivos) que comprometem, por ação ou omissão, a aceitabilidade e a juri-dicidade das consequências sociais, ambientais, econômicas e éticas da decisão judicial.

f) A simplificação das heurísticas, conquanto funcione bem às ve-zes, é temerária, porque inibe prognoses confiáveis e meditadas. Então, nas hipóteses de conflito entre os dois sistemas apontados (o automático e o reflexivo), o prudente é hierarquizar de ordem a evitar os sequestros límbicos.

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g) Merecem louvores os magistrados que reúnem condições de regulação e autocontrole para não ceder ao arrastamento dos vieses, próprios ou exógenos.

h) Por todo exposto, resulta cristalino que uma das maiores in-cumbências da hermenêutica jurídica, no século em curso, será a de mapear e escoimar os erros sistemáticos de julgamento, oriundos dos vieses implícitos e explícitos. Por derradeiro, sem negar a alteridade do sistema jurídico, importa cultivar hábitos superiores (moral e juridicamente), no intuito de produzir normas concretas que permitam uma atmosfera propícia ao bem-estar duradouro. Viés não é destino fatal. Em suma, os bons juízes sabem cultivar, com ciência e humanidade, as boas predisposi-ções.

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O PARECER GMF 05/2017 DA AGU E A CONSTITUIÇÃO

MANOEL L. VOLKMER DE CASTILHOJuiz aposentado do TRF/4, Ex-Consultor-Geral da União

O Supremo Tribunal Federal no julgamento da Petição 3.388/RR – o famoso caso Raposa Serra do Sol – ao julgar parcialmente procedente ação popular em face do ato administrativo de demarcação das terras indígenas respectivas, editou veredicto no qual, por suges-tão do Ministro Direito, fez inserir as chamadas 19 salvaguardas ou condicionantes que acabaram por constituir um elenco de diretivas a serem adotadas pela Corte e pela jurisprudência nacional em matéria semelhante.

I

No Processo Administrativo nº 00400.002203/2016-01 – interessada a Casa Civil da Presidência da República – a Advogada-Geral da União, acolhendo parecer de sua Consultoria-Geral, a partir desse aresto adotou como orientação para a Administração Pública Federal em todo o país as considerações então exaradas pela Corte Suprema e submeteu-as à aprovação do Senhor Presidente da República nos termos do art. 41 da lei Complementar nº 73 de 10 de fevereiro de 1993 (“Consideram-se, igualmente, pareceres do Advogado-Geral da União, para os efeitos do artigo anterior, aqueles que, emitidos pela Consultoria-Geral da União, sejam por ele aprovados e submetidos ao Presidente da República.”) para os efeitos do art. 40 § 1º da referida lei complementar (“O parecer aprovado e publicado juntamente com o despacho presidencial vincula a Administração Federal, cujos órgãos e entidades ficam obrigados a lhe dar fiel cumprimento”) tendo em vista a relevância da matéria e a necessidade de padronização.

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Com o aprovo presidencial em 17 de julho de 2017 e a publicação oficial (Parecer GMF 05/2017, DOU de 20 de julho de 2017, Seção 1, p. 7 e ss.) a matéria passou a ter força normativa e vinculante para “a Administração Federal, cujos órgãos e entidades ficam obrigados a lhe dar fiel cumprimento” (art. 40, § 1º, e, no caso, por aprovação de parecer da Consultoria-Geral pelo Advogado-Geral, nos termos do art. 41 da LC 73/93: “[c]onsideram-se, igualmente, pareceres do Advo-gado-Geral da União, para os efeitos do artigo anterior, aqueles que, emitidos pela Consultoria-Geral da União, sejam por ele aprovados e submetidos ao Presidente da República”) também são impositivas as considerações exaradas.

Ao aprovar o parecer da AGU, portanto, o Presidente da República no exercício de sua autoridade conferiu às conclusões do parecer em questão força normativa vinculante com isso caracterizando-o como “ato normativo federal” que, nessa linha se sujeita, nos termos do art. 102, I, ‘a’ da Constituição, ao controle jurisdicional do Supremo Tribunal Federal via de Ação Direta de Inconstitucionalidade.

Consta da ementa do ato normativo referido a seguinte orientação a que ficam obrigados os próprios advogados públicos e os órgãos e entidades da Administração Federal, verbis:

I. O Supremo Tribunal Federal, no acórdão proferido no julgamento da PET 3.388/RR, fixou as “salvaguardas institucionais às terras indígenas”, as quais constituem normas decorrentes da interpreta-ção da Constituição e, portanto, devem ser seguidas em todos os processos de demarcação de terras indígenas.

II. A Administração Pública Federal, direta e indireta, deve obser-var, respeitar e dar efetivo cumprimento, em todos os processos de demarcação de terras indígenas, às condições fixadas na decisão do Supremo Tribunal Federal na PET 3.388/RR, em consonância com o que também esclarecido e definido pelo Tribunal no acórdão proferido no julgamento dos Embargos de Declaração (PET-ED 3.388/RR).

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O que o parecer normativo da AGU dispôs, em face dessa redação, é que as “salvaguardas institucionais às terras indígenas” fixadas na decisão do STF (Pet. nº 3.388/RR) constituem normas que decorrem da interpretação da Constituição então adotada e que em razão disso a Administração Pública Federal deve observá-las, respeitá-las e dar-lhes efetivo cumprimento “em todos os processos de demarcação de terras indígenas”.

É que, justifica-se, “em razão de todos os problemas relacionados à forma da Portaria AGU n. 303/2012 [que aprovara parecer anterior em termos semelhantes então adotado pelo AGU, mas mais tarde suspenso], faz-se premente e necessário que o seu conteúdo normativo, que simples-mente reproduz a decisão do STF na PET n. 3.388/RR, seja incorporado por parecer jurídico emanado desta Advocacia-Geral da União, o qual, uma vez aprovado pelo Presidente da República, possa ter os devidos efeitos vinculantes em relação a todos os órgãos da Administração Pública Federal.”. O próprio parecer historia os antecedentes de sua edição.1

1 “Nos autos do processo n. 00692.003281/2014-15, a Consultoria-Geral da União conduziu, no ano de 2014, um estudo comparativo entre as salvaguardas mantidas pelo acórdão dos embargos e as disposições da Portaria AGU nº 303/2012, do qual decorreu-lhe percepção de que em seu mérito esta continuaria - s.m.j. - coadunada ao conjunto dos referidos acórdãos do STF, porém, passaria a ter seu efeito vinculativo relativizado pela última decisão. De seu turno, também contribuindo para o mesmo estudo, no processo 00400.000605/2015-82, a Secretaria-Geral de Contencioso, em pronunciamento exteriorizado ainda no ano de 2014, depois mantido na Nota AGU/SGCT/ADZIN n. 28/2015 (16/07/2015), posicionou-se como segue: a) apenas porque proferida em sede de ação popular, meio processual inidôneo para controle abstrato de normas, é que a decisão do STF, embora para o caso concreto esteja do-tada de eficácia contra todos (“erga omnes”), não operaria efeitos vinculantes e nem obrigatoriedade formal (“formally binding”) para todas as demais situações símiles, visto que desprovida de vinculação automática para outros casos; b) sem embargo disso, seus efeitos de precedente persuasivo da mais elevada Corte Judiciária do País tendem a nortear o critério decisório em futuras demarcações, consoante se denota dos julgamentos do RMS nº 29.087 (j. 16.09.2014, red. p/ o acórdão o Min. Gilmar Mendes) e do RMS nº 29.542 9 (j. 30.09.2014, rel. Min. Carmen Lúcia); c) já constam inclusive da parte dos Ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello manifestações favoráveis à conveniência do restabelecimento da Portaria AGU nº 303/2012, que reputam impor-tante contribuição para pacificação do tema (RMS nº 29.087, 2ª Turma, j. 16.09.2014, Dl de 14.10.2014, p. 72); d) a análise determinada pela Portaria AGU nº 27/2014 não

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Para a adequada compreensão da norma em jogo, vale reproduzir partes da ementa do julgado na Petição nº 3.388/RR (na verdade uma Ação Popular em que Estado e União tinham interesses opostos, sendo Rel. Min. Britto, Plenário, maioria, j. 19.03.2009, DJe 01.07.2010):

[...] REVELAÇÃO DO REGIME CONSTITUCIONAL DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL COMO ESTATUTO JURÍDICO DA CAUSA INDÍGENA. A DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS COMO CAPÍTULO AVANÇADO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. IN-CLUSÃO COMUNITÁRIA PELA VIA DA IDENTIDADE ÉTNICA. VOTO DO RELATOR QUE FAZ AGREGAR AOS RESPECTIVOS FUNDAMENTOS SALVAGUARDAS INSTITUCIONAIS DITADAS PELA SUPERLATIVA IMPORTÂNCIA HISTÓRICO-CULTURAL DA CAUSA. SALVAGUARDAS AMPLIADAS A PARTIR DE VOTO--VISTA DO MINISTRO MENEZES DIREITO E DESLOCADAS PARA A PARTE DISPOSITIVA DA DECISÃO.

[...] 5. AS TERRAS INDÍGENAS COMO PARTE ESSENCIAL DO TERRITÓRIO BRASILEIRO. 5.1. As “terras indígenas” versadas pela Constituição Federal de 1988 fazem parte de um território estatal-brasileiro sobre o qual incide, com exclusividade, o Direito nacional. E como tudo o mais que faz parte do domínio de qualquer das pessoas federadas brasileiras, são terras que se submetem unicamente ao primeiro dos princípios regentes das relações internacionais da República Federativa do Brasil: a so-berania ou “independência nacional” (inciso I do art. 1º da CF). 5.2. Todas as “terras indígenas” são um bem público federal (inciso XI do art. 20 da CF), o que não significa dizer que o ato em si da demarcação extinga ou amesquinhe qualquer unidade federada. Primeiro, porque as unidades federadas pós-Constituição de 1988 já nascem com seu território jungido ao regime constitucional de preexistência dos direitos originários dos índios sobre as terras por

demanda considerações quanto à conveniência e oportunidade acerca da manutenção, alteração ou revogação da Portaria AGU nº 303/2012, próprios da autoridade com-petente; e) no que concerne à compatibilidade de conteúdos jurídicos entre a Portaria AGU nº 303/2012 e a decisão integrada proferida pelo STF na Petição nº 3.388-STF, e à vista da minuta de sugestões propostas pela CGU, em caso de eventual decisão pela manutenção da Portaria nº 303/2012 far-se-iam necessárias que a minuta agregasse as exíguas adequações formuladas na sua manifestação.”

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eles “tradicionalmente ocupadas”. Segundo, porque a titularidade de bens não se confunde com o senhorio de um território político. Nenhuma terra indígena se eleva ao patamar de território político, assim como nenhuma etnia ou comunidade indígena se constitui em unidade federada. Cuida-se, cada etnia indígena, de realidade sócio-cultural, e não de natureza político-territorial.

[...] 7. AS TERRAS INDÍGENAS COMO CATEGORIA JURÍ-DICA DISTINTA DE TERRITÓRIOS INDÍGENAS. O DESABO-NO CONSTITUCIONAL AOS VOCÁBULOS “POVO”, “PAÍS”, “TERRITÓRIO”, “PÁTRIA” OU “NAÇÃO” INDÍGENA. Somente o “território” enquanto categoria jurídico-política é que se põe como o preciso âmbito espacial de incidência de uma dada Or-dem Jurídica soberana, ou autônoma. O substantivo “terras” é termo que assume compostura nitidamente sócio-cultural, e não política. A Constituição teve o cuidado de não falar em territórios indígenas, mas, tão-só, em “terras indígenas”. A traduzir que os “grupos”, “organizações”, “populações” ou “comunidades” indígenas não constituem pessoa federada. Não formam circuns-crição ou instância espacial que se orne de dimensão política. Daí não se reconhecer a qualquer das organizações sociais indígenas, ao conjunto delas, ou à sua base peculiarmente antropológica a dimensão de instância transnacional. Pelo que nenhuma das comunidades indígenas brasileiras detém estatura normativa para comparecer perante a Ordem Jurídica Internacional como “Nação”, “País”, “Pátria”, “território nacional” ou “povo” independente. Sendo de fácil percepção que todas as vezes em que a Constituição de 1988 tratou de “nacionalidade” e dos demais vocábulos aspeados (País, Pátria, território nacional e povo) foi para se referir ao Brasil por inteiro.

[...] 11. O CONTEÚDO POSITIVO DO ATO DE DEMAR-CAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. 11.1. O marco temporal de ocupação. A Constituição Federal trabalhou com data certa – a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) – como insubstituível referencial para o dado da ocupação de um deter-minado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene; ou seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. 11.2. O marco da tradicionalidade da ocupação. É preciso que esse estar coletiva-

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mente situado em certo espaço fundiário também ostente o caráter da perdurabilidade, no sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica. A tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios. Caso das “fazendas” situadas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, cuja ocupação não arrefeceu nos índios sua capacidade de resistência e de afirmação da sua peculiar presença em todo o complexo geográfico da “Raposa Serra do Sol”. 11.3. O marco da concreta abrangência fundiária e da finalidade prática da ocupação tradicional. Áreas indígenas são demarcadas para servir concretamente de habitação permanente dos índios de uma determinada etnia, de par com as terras utilizadas para suas atividades produtivas, mais as “imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar” e ainda aquelas que se revelarem “necessárias à reprodução física e cultural” de cada qual das comunidades étnico-indígenas, “segundo seus usos, costumes e tradições” (usos, costumes e tradições deles, indígenas, e não usos, costumes e tradições dos não-índios). Terra indígena, no imaginário coletivo aborígine, não é um simples objeto de di-reito, mas ganha a dimensão de verdadeiro ente ou ser que resume em si toda ancestralidade, toda coetaneidade e toda posteridade de uma etnia. Donde a proibição constitucional de se remover os índios das terras por eles tradicionalmente ocupadas, assim como o reconhecimento do direito a uma posse permanente e usufruto exclusivo, de parelha com a regra de que todas essas terras “são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis” (§ 4º do art. 231 da Constituição Federal). O que termina por fazer desse tipo tradicional de posse um heterodoxo instituto de Direito Constitucional, e não uma ortodoxa figura de Direito Civil. Donde a clara intelecção de que OS ARTIGOS 231 E 232 DA CONSTI-TUIÇÃO FEDERAL CONSTITUEM UM COMPLETO ESTATUTO JURÍDICO DA CAUSA INDÍGENA. 11.4. O marco do conceito fundiariamente extensivo do chamado “princípio da proporciona-lidade”. A Constituição de 1988 faz dos usos, costumes e tradições indígenas o engate lógico para a compreensão, entre outras, das semânticas da posse, da permanência, da habitação, da produção econômica e da reprodução física e cultural das etnias nativas.

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O próprio conceito do chamado “princípio da proporcionalidade”, quando aplicado ao tema da demarcação das terras indígenas, ganha um conteúdo peculiarmente extensivo.

12. DIREITOS “ORIGINÁRIOS”. Os direitos dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam foram constitucionalmente “reconhecidos”, e não simplesmente outorgados, com o que o ato de demarcação se orna de natureza declaratória, e não propria-mente constitutiva. Ato declaratório de uma situação jurídica ativa preexistente. Essa a razão de a Carta Magna havê-los chamado de “originários”, a traduzir um direito mais antigo do que qualquer outro, de maneira a preponderar sobre pretensos direitos adqui-ridos, mesmo os materializados em escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não-índios. Atos, estes, que a própria Constituição declarou como “nulos e extintos” (§ 6º do art. 231 da CF).

[...] 18. FUNDAMENTOS JURÍDICOS E SALVAGUARDAS INSTITUCIONAIS QUE SE COMPLEMENTAM. Voto do relator que faz agregar aos respectivos fundamentos salvaguardas institu-cionais ditadas pela superlativa importância histórico-cultural da causa. Salvaguardas ampliadas a partir de voto-vista do Ministro Menezes Direito e deslocadas, por iniciativa deste, para a parte dispositiva da decisão. Técnica de decidibilidade que se adota para conferir maior teor de operacionalidade ao acórdão.

Adiante, a ementa esclarecedora do julgado nos Embargos Declara-tórios (Rel. Min. Luiz Roberto Barroso, Plenário, j. 23.10.2013):

Ementa: EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. AÇÃO POPU-LAR. DEMARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL.

[...] 3. As chamadas condições ou condicionantes foram consideradas pressupostos para o reconhecimento da validade da demarcação efetuada. Não apenas por decorrerem, em es-sência, da própria Constituição, mas também pela necessidade de se explicitarem as diretrizes básicas para o exercício do usufruto indígena, de modo a solucionar de forma efetiva as graves controvérsias existentes na região. Nesse sentido, as condições integram o objeto do que foi decidido e fazem coisa

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julgada material. Isso significa que a sua incidência na Reserva da Raposa Serra do Sol não poderá ser objeto de questionamento em eventuais novos processos.

4. A decisão proferida em ação popular é desprovida de força vinculante, em sentido técnico. Nesses termos, os fundamentos adotados pela Corte não se estendem, de forma automática, a outros processos em que se discuta matéria similar. Sem prejuízo disso, o acórdão embargado ostenta a força moral e persuasiva de uma decisão da mais alta Corte do País, do que decorre um elevado ônus argumentativo nos casos em se cogite da superação de suas razões.

Como referido, no curso do julgamento pela Corte Suprema por sugestão do voto do Ministro Menezes Direito foram adotadas as denominadas salvaguardas institucionais com o proposito de ordenar determinadas providências e medidas relacionadas com a disciplina própria da matéria indígena visto que na discussão do tema que estava em debate – no caso a Terra Indígena Raposa Serra do Sol – surgiram diversas peculiaridades que poderiam se repetir em outros questiona-mentos semelhantes.

Daí a Corte entendeu de, adotando-as, incorporar seus termos ao dispositivo do acórdão respectivo na seguinte forma:

“... o Tribunal julgando [a ação] parcialmente procedente, nos termos do voto do Relator, reajustado segundo as observações constantes do voto do Senhor Ministro Menezes Direito, declarando constitucional a demarcação contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e determinando que sejam observadas as seguintes condições:

(I) o usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos exis-tentes nas terras indígenas (art. 231, § 2º, da Constituição Federal) pode ser relativizado sempre que houver, como dispõe o art. 231, § 6º, da Constituição, relevante interesse público da União, na forma de lei complementar; (II) o usufruto dos índios não abrange o aproveitamento de recursos hídricos e potenciais energéticos, que dependerá sempre de autorização do Congresso Nacional;

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(III) o usufruto dos índios não abrange a pesquisa e lavra das riquezas minerais, que dependerá sempre de autorização do Congresso Nacional, assegurando-se-lhes a participação nos resultados da lavra, na forma da lei; (IV) o usufruto dos índios não abrange a garimpagem nem a faiscação, devendo, se for o caso, ser obtida a permissão de lavra garimpeira; (V) o usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da política de defesa nacional; a instalação de bases, uni-dades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o res-guardo das riquezas de cunho estratégico, a critério dos órgãos competentes (Ministério da Defesa e Conselho de Defesa Nacional), serão implementados independente-mente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à FUNAI; (VI) a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal na área indígena, no âmbito de suas atribuições, fica assegurada e se dará independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à FUNAI; (VII) o usufruto dos índios não impede a instalação, pela União Federal, de equipamentos públicos, redes de comu-nicação, estradas e vias de transporte, além das construções necessárias à prestação de serviços públicos pela União, especialmente os de saúde e educação; (VIII) o usufruto dos índios na área afetada por unidades de conservação fica sob a responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade; (IX) o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiver-sidade responderá pela administração da área da unidade de conservação também afetada pela terra indígena com a participação das comunidades indígenas, que deverão ser ouvidas, levando-se em conta os usos, tradições e costumes dos indígenas, podendo para tanto contar com a consultoria da FUNAI;

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(X) o trânsito de visitantes e pesquisadores não-índios deve ser admitido na área afetada à unidade de conservação nos horários e condições estipulados pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade; (XI) devem ser admitidos o ingresso, o trânsito e a perma-nência de não-índios no restante da área da terra indígena, observadas as condições estabelecidas pela FUNAI; (XII) o ingresso, o trânsito e a permanência de não-índios não pode ser objeto de cobrança de quaisquer tarifas ou quantias de qualquer natureza por parte das comunidades indígenas; (XIII) a cobrança de tarifas ou quantias de qualquer natu-reza também não poderá incidir ou ser exigida em troca da utilização das estradas, equipamentos públicos, linhas de transmissão de energia ou de quaisquer outros equipamentos e instalações colocadas a serviço do público, tenham sido excluídos expressamente da homologação, ou não; (XIV) as terras indígenas não poderão ser objeto de arrenda-mento ou de qualquer ato ou negócio jurídico que restrinja o pleno exercício do usufruto e da posse direta pela comunidade indígena ou pelos índios (art. 231, § 2º, Constituição Federal, c/c art. 18, caput, Lei nº 6.001/1973);(XV) é vedada, nas terras indígenas, a qualquer pessoa estra-nha aos grupos tribais ou comunidades indígenas, a prática de caça, pesca ou coleta de frutos, assim como de atividade agropecuária ou extrativa (art. 231, § 2º, Constituição Fe-deral, c/c art. 18, § 1º, Lei nº 6.001/1973); (XVI) as terras sob ocupação e posse dos grupos e das comu-nidades indígenas, o usufruto exclusivo das riquezas naturais e das utilidades existentes nas terras ocupadas, observado o disposto nos arts. 49, XVI, e 231, § 3º, da CR/88, bem como a renda indígena (art. 43 da Lei nº 6.001/1973), gozam de plena imunidade tributária, não cabendo a cobrança de quaisquer impostos, taxas ou contribuições sobre uns ou outros; (XVII é vedada a ampliação da terra indígena já demarcada; (XVIII) os direitos dos índios relacionados às suas terras são imprescritíveis e estas são inalienáveis e indisponíveis (art. 231, § 4º, CR/88); e

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(XIX) é assegurada a participação dos entes federados no procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas, encravadas em seus territórios, observada a fase em que se encontrar o procedimento.

Essas considerações deliberativas do STF, embora não tenham sido editadas em procedimento judicial de cuja decisão surgisse desde logo eficácia vinculante ou efeitos erga omnes posto que se originasse de uma Ação Popular com inúmeros incidentes que a descaracteriza-ram, consumaram-se em uma Petição e foram formalmente editadas e incluídas na proclamação em juízo, dotando assim o dispositivo dessa importância jurisdicional por ato do próprio Tribunal.

Ante essas manifestações da Corte Suprema a Advocacia-Geral da União no exercício do seu poder de disciplinar e padronizar o compor-tamento judicial e extrajudicial das questões jurídicas de sua responsa-bilidade, isto é, de assessorar o Poder Executivo e em juízo defender os interesses da União, emitiu o parecer de que se cogita e assumiu a iniciativa e a determinação de estabelecer, de par com a decisão judicial do STF nos precedentes ditados, também para a Administração Publica Federal com força vinculante e normativa para seus órgãos e entidades, uma orientação diretiva com as mesmas “condicionantes”.

Forte nessa perspectiva, portanto, o parecer em exame se reveste inequivocamente de caráter normativo tanto pela forma que lhe empresta o aprovo presidencial quanto pelo conteúdo expressamente referente ao julgado da Corte Suprema, ele mesmo, repita-se, auto dotado de caráter objetivamente vinculante.

IIAs razões de que lançou mão a Advocacia-Geral da União para

formular o juízo administrativo vinculante, particularmente relacionado às salvaguardas que pretende igualmente vinculantes no âmbito admi-nistrativo da União, podem ser seguidas através dos excertos respectivos adiante reproduzidos:

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“As salvaguardas institucionais são resultado de uma constru-ção dialética, porém no bojo de um processo judicial, o que não requer, impreterivelmente, a observância do requisito participativo indígena, na conceituação e na dimensão significativa presentes na Convenção n. 169/OIT. Isso se aplica tanto à construção judicial das salvaguardas institucionais, efetivada pelo colegiado do STF, como à definição normativa de algumas das condicionantes institu-cionais que elas representam, que dispensaram essa participação e, a critério do próprio Tribunal, não implicaram qualquer ofensa aos ditames da referida convenção internacional. Assim, não se pode afirmar que a definição dessas condicionantes às demarcações de terras ocorreu sem qualquer tipo de participação das comunidades indígenas. Subordinada às limitações institucionais próprias dos procedimentos judiciais, a participação indígena se efetivou con-dicionada aos atos e formas do processo jurisdicional, assim como a definição em si das salvaguardas institucionais, como atestado pela própria Corte, não implicou violação ao direito de partici-pação indígena previsto no documento internacional. Ademais, como também consolidado pelo STF, a importância da participação indígena “não significa que as decisões dependam formalmente da aceitação das comunidades indígenas como requisito de validade”. Assim, como deixou registrado o Ministro Luiz Roberto Barroso, “os índios devem ser ouvidos e seus interesses devem ser honesta e seriamente considerados. Disso não se extrai, porém, que a deliberação tomada, ao final, só possa valer se contar com a sua aquiescência. Em uma democracia, as divergências são normais e esperadas. Nenhum indivíduo ou grupo social tem o direito subje-tivo de determinar sozinho a decisão do Estado. Não é esse tipo de prerrogativa que a Constituição atribuiu aos índios.”

[...]“Assim era de se esperar, tendo em vista o conturbado histórico

de quase três décadas de infindáveis conflitos em torno da terra indí-gena, um complicado contexto social e político que tornou premente e necessária a construção interpretativa, a partir do texto constitu-cional, das dezenove salvaguardas institucionais às terras indígenas, no intuito de definir um quadro normativo constitucional que pudesse oferecer segurança jurídica aos processos de demarcação das terras e, assim, efetivar os direitos fundamentais dos índios.”

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[...]Na prática, sua inserção no acórdão pode ser lida da seguinte

forma: se o fundamento para se reconhecer a validade da demar-cação é o sistema constitucional, a Corte achou por bem explicitar não apenas esse resultado isoladamente, mas também as diretrizes desse mesmo sistema que conferem substância ao usufruto indígena e o compatibilizam com outros elementos igualmente protegidos pela Constituição”.

[...]Portanto, na qualidade de normas que serviram de premissas ou

garantias para a decisão, as salvaguardas institucionais não repre-sentam nenhuma anomalia no comportamento judicial ou qualquer extravagância em um processo natural e comum de interpretação e aplicação da Constituição por parte do STF, seguindo um iter interpretativo e argumentativo de comum estrutura. A sua inserção e destaque na parte dispositiva da decisão apenas revela a intenção da Corte de fixá-las definitivamente como normas definidoras de um regime jurídico para a demarcação de terras indígenas.

[...]Os materiais que hoje podem ser coletados na jurisprudência

do STF fornecem claros e precisos fundamentos para se concluir que, de fato, o Tribunal fixou as denominadas salvaguardas insti-tucionais com a deliberada intenção de que elas pudessem definir um verdadeiro regime jurídico, formado por normas constitucionais decorrentes da interpretação dos artigos 231 e 232 da Constituição, que estabelecesse uma série de condicionantes não apenas para a solução do caso Raposa Serra do Sol, mas igualmente para todo e qualquer processo de demarcação de terras indígenas no Brasil.

[...]A aplicabilidade geral das salvaguardas institucionais, portan-

to, decorre de seu próprio processo de construção interpretativa, no qual, como alegado e esclarecido pelos próprios Ministros, foi guiado por esse intuito de estabelecer um regime jurídico para todas as demarcações. As condicionantes institucionais por elas estabelecidas compõem um verdadeiro sistema normativo, fundado nos artigos 231 e 232 da Constituição, que pode fornecer um parâ-metro seguro para os processos demarcatórios das terras indígenas.

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[...]Apesar de terem sido construídas para desenvolver aplicabi-

lidade geral, as salvaguardas institucionais e, em suma, a parte dispositiva da decisão na PET n. 3.388/RR, formalmente só pro-duzem efeitos vinculantes para o caso Raposa Serra do Sol. Foi o que afirmou o próprio Supremo Tribunal Federal no julgamento dos Embargos de Declaração, reconhecendo que, por se tratar de uma ação popular e, dessa forma, de um processo de caráter sub-jetivo submetido a regras e procedimentos específicos, os efeitos do acórdão somente poderiam ter incidência para a solução do caso concreto, os denominados efeitos inter-partes.

[...]Foi essa a intenção manifestada pelo próprio Tribunal ao escla-

recer o significado de sua própria decisão no caso Raposa Serra do Sol. Essa natural vis expansiva, inclusive, integra todas as decisões de uma Corte Suprema em casos emblemáticos ou leading cases como esse. Como afirmou contundentemente o Ministro Roberto Barroso, em seu voto condutor da decisão da Corte nos Embargos de Declara-ção na PET n. 3.388, seria equivocado “afirmar que as decisões do Supremo Tribunal Federal se limitariam a resolver casos concretos, sem qualquer repercussão sobre outras situações. Ao contrário, a ausência de vinculação formal não tem impedido que, nos últimos anos, a jurisprudência da Corte venha exercendo o papel de construir o sentido das normas constitucionais, estabelecendo diretrizes que têm sido observadas pelos demais juízos e órgãos do Poder Público de forma geral”. O Ministro Cezar Peluso também deixou expressa essa conclusão em seu voto na PET n. 3.388, ao afirmar que “a postura que esta Corte está tomando hoje não é de julgamento de um caso qualquer, cujos efeitos se exaurem em âmbito mais ou menos limitado, mas é autêntico caso-padrão, ou leading case, que traça diretrizes não apenas para solução da hipótese, mas para disciplina de ações futuras e, em certo sentido, até de ações pretéritas, nesse tema”.

[...]É nessa conjuntura que se renova a importância do Decreto

n. 2.346, de 10 de outubro de 1997, o qual consolida normas de procedimentos a serem observadas pela Administração Pública Federal em razão de decisões judiciais do STF, que permanecem vigentes até os dias atuais. Editado em uma época na qual ainda não

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existiam os institutos da repercussão geral e da súmula vinculante, e sequer havia as Leis n. 9.868 e n. 9.882, ambas do ano de 1999, suas normas visam precipuamente implementar, no âmbito da Administração Pública Federal, uma cultura jurídica em torno do dever funcional de observar, respeitar e fazer aplicar as decisões do Supremo Tribunal Federal.

[...]“Art. 1º. As decisões do Supremo Tribunal Federal que fixem,

de forma inequívoca e definitiva, interpretação do texto constitu-cional deverão ser uniformemente observadas pela Administração Pública Federal direta e indireta, obedecidos os procedimentos estabelecidos neste Decreto”.

[...]Assim, para cumprir os objetivos traçados pelo Decreto

n. 2.346/1997, o Presidente da República poderá aprovar parecer elaborado pela Consultoria-Geral da União e aprovado pela Advo-gada-Geral da União, o qual, uma vez publicado juntamente com o despacho presidencial, consubstanciará parecer normativo que, sob o aspecto formal, vinculará todos órgãos da Administração Pública Federal, que ficarão submetidos à autoridade da interpretação da Constituição definida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento de casos concretos.

[...]O presente parecer é elaborado com esse objetivo e tem em

vista a premente necessidade de fazer com que as “salvaguardas institucionais às terras indígenas”, fixadas pelo STF no acórdão da PET n. 3.388 e posteriormente esclarecidas pelo próprio Tribunal no julgamento dos Embargos de Declaração nesse mesmo processo, constituam um regime jurídico para todos os processos de demar-cação de terras indígenas, efetivamente vinculante para a atuação dos órgãos da Administração Pública Federal direta e indireta.

[...]Como se vê, a Corte Suprema tem entendimento muito conso-

lidado a respeito de dois tópicos fundamentais para a demarcação das terras indígenas: 1) a data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988, como marco temporal de ocupação da terra pelos índios, para efeito de reconhecimento como terra indígena; 2) a vedação à ampliação de terras indígenas já demarcadas.

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O primeiro ponto está bem delineado no acórdão da PET n. 3.388, onde o Tribunal assentou que “a Constituição Federal trabalhou com data certa - a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) - como insubstituível referencial para o dado da ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene; ou seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmen-te ocupam”. Assim, a Corte afirma que “é preciso que esse estar coletivamente situado em certo espaço fundiário também ostente o caráter da perdurabilidade, no sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica”. E que, “a tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios”.

Quanto ao segundo ponto, o da vedação à ampliação de terra indígena (salvaguarda institucional n. XVII), o Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade, no julgamento dos Embargos de Declaração (PET-ED n. 3.388/RR), de tecer alguns aclaramentos essenciais para a sua compreensão. No voto do Ministro Luís Roberto Barroso, Relator dos embargos, foram realizados três esclarecimentos principais, reproduzidos a seguir.

[...]Estas são as razões pelas quais se conclui que a Administração

Pública Federal deve observar, respeitar e dar efetivo cumprimento à decisão do Supremo Tribunal Federal que, no julgamento da PET n. 3.388/RR, fixou as “salvaguardas institucionais às terras in-dígenas”, determinando a sua aplicação a todos os processos de demarcação de terras indígenas, em consonância com o que também esclarecido e definido pelo Tribunal no acórdão proferido no julga-mento dos Embargos de Declaração (PET-ED n. 3.388/RR) e em outras de suas decisões posteriores, todas analisadas neste parecer (ex.: RMS n. 29.087/DF; ARE n. 803.462/MS; RMS n. 29.542/DF).

Portanto, nos processos de demarcação de terras indígenas, os órgãos da Administração Pública Federal, direta e indireta, deverão observar as seguintes condições:

[...] (listadas as condicionantes)

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Esse é o conteúdo normativo expresso no parecer de que se cogita, ficando manifesta a deliberação de impor aos órgãos da Administra-ção Pública Federal, em especial a Fundação Nacional do Índio – Funai, a orientação assim indicada com a explícita fundamentação no julgado da Corte Suprema a dizer que a orientação ora determinada assim é porque segundo seu juízo assim foi deliberada pelo Supremo Tribunal Federal.

Ocorre que se ao STF cabe de fato editar as deliberações de ordem judicial em “precípua” guarda e interpretação da Constituição (art. 102, caput), a Administração Pública Federal não pode invocar o julgado como justificação para uma orientação normativa administrativa, ao suposto de que é isso que foi deliberado, indo adiante do que a Corte precipuamente (principalmente, essencialmente, no léxico) resolveu e assim dando a entender que o que se exige administrativamente foi o que se deliberou judicialmente.

III

O parecer além de estimar uma interpretação fechada e vinculante impede que outra seja desenvolvida e, como se auto afirma decorrente de uma interpretação constitucional, cabe avaliar se tem ela efetivamente a necessária compatibilidade com a Constituição e em especial com o veredicto da Corte Suprema.

O parecer menciona como exemplos da absorção normativa do Caso Raposa Serra do Sol – que justificariam e demonstrariam o seu caráter vinculante – alguns julgados do Supremo Tribunal Federal que, nesse sentido, teriam aplicado as “condicionantes” a demonstrar que o juízo editado na Pet. 3388/RR realmente passou a ser o padrão de interpreta-ção de acordo com o qual a Advocacia-Geral da União, daí por diante, teria de se pautar.

Vale revisitar esses precedentes.No Recurso em Mandado de Segurança nº 29.087 (Rel. Min.

Lewandowski, Red. para o acórdão Min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, 16.09.2014), consta da ementa:

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DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS. O MARCO RE-FERENCIAL DA OCUPAÇÃO É A PROMULGAÇÃO DA CONSTI-TUIÇÃO FEDERAL DE 1988. NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA DAS SALVAGUARDAS INSTITUCIONAIS. PRECEDENTES. 1. A configuração de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, nos termos do art. 231, § 1º, da Constituição Federal, já foi pacifi-cada pelo Supremo Tribunal Federal, com a edição da Súmula 650, que dispõe: os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto. 2. A data da promulgação da Cons-tituição Federal (5.10.1988) é referencial insubstituível do marco temporal para verificação da existência da comunidade indígena, bem como da efetiva e formal ocupação fundiária pelos índios (RE 219.983, DJ 17.9.1999; Pet. 3.388, DJe 24.9.2009). 3. Processo demarcatório de terras indígenas deve observar as salvaguardas institucionais definidas pelo Supremo Tribunal Federal na Pet 3.388 (Raposa Serra do Sol). 4. No caso, laudo da FUNAI indica que, há mais de setenta anos, não existe comunidade indígena e, portanto, posse indígena na área contestada. Na hipótese de a União entender ser conveniente a desapropriação das terras em questão, deverá seguir procedimento específico, com o pagamento de justa e prévia indenização ao seu legítimo proprietário. 5. Recurso ordinário provido para conceder a segurança.

E nos Embargos declaratórios (Rel. Min. Gilmar Mendes, v.u. em 08.03.2016):

Embargos de declaração em embargos de declaração em recurso ordinário em mandado de segurança. 2. Demarcação de terras indígenas. 3. Marco temporal para verificação da ocupação fundiária pelos índios. 4. Salvaguardas institucionais definidas pelo Supremo Tribunal Federal na PET 3.388. 5. Representação da comunidade indígena pela FUNAI. 6. Ausência de omissão, contra-dição ou obscuridade. Caráter protelatório. 7. Efeitos infringentes. Impossibilidade. 8. Embargos de declaração rejeitados.

No Recurso em Mandado de Segurança 29.542 DF (Rel. Min. Cármen Lúcia, 30.09.2014, 2ª T) a ementa consignou:

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EMENTA: RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. TERRA INDÍGENA DEMARCADA NA DÉCADA DE 1970. HOMOLOGAÇÃO POR DECRETO PRESIDENCIAL DE 1983: REVISÃO E AMPLIAÇÃO. PORTARIA N. 3.588/2009 DO MINISTRO DE ESTADO DA JUSTIÇA. ALEGADOS VÍCIOS E IRREGULARIDADES NO PROCESSO DEMARCATÓRIO PRECEDENTE. DELIMITAÇÃO DE ÁREA INFERIOR À REIN-VIDICADA. ADEQUAÇÃO AOS PARÂMETROS DE POSSE TRADICIONAL INDÍGENA (ART. 231 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA): IMPOSSIBILIDADE. CASO RAPOSA SERRA DO SOL (PETIÇÃO N. 3.388/RR). FIXAÇÃO DE REGIME JURÍDICO CONSTITUCIONAL DE DEMARCAÇÃO DE TERRAS IDÍGENAS NO BRASIL. DESATENDIMENTO DA SALVAGUARDA INSTITU-CIONAL PROIBITIVA DE AMPLIAÇÃO DE TERRA INDÍGENA DEMARCADA ANTES OU DEPOIS DA PROMULGAÇÃO DE 1988. RECURSO ORDINÁRIO PROVIDO.

No Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com Agravo 803.462/MS (Rel. Min. Teori, 2ª Turma, 09.12.2014):

EMENTA: CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. TERRA INDÍGENA “LIMÃO VERDE”. ÁREA TRADICIONALMENTE OCUPADA PELOS ÍNDIOS (ART. 231, § 1º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL). MARCO TEMPORAL. PROMULGAÇÃO DA CONSTI-TUIÇÃO FEDERAL. NÃO CUMPRIMENTO. RENITENTE ESBU-LHO PERPETRADO POR NÃO ÍNDIOS: NÃO CONFIGURAÇÃO. 1. O Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Pet 3.388, Rel. Min. CARLOS BRITTO, DJe de 1º/7/2010, estabeleceu como marco temporal de ocupação da terra pelos índios, para efeito de reconhecimento como terra indígena, a data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988. 2. Conforme entendi-mento consubstanciado na Súmula 650/STF, o conceito de “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios” não abrange aquelas que eram possuídas pelos nativos no passado remoto. Precedente: RMS 29.087, Rel. p/ acórdão Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, DJe de 14/10/2014. 3. Renitente esbulho não pode ser confundido com ocupação passada ou com desocupação forçada, ocorrida no passado. Há de haver, para configuração de esbulho, situação de efetivo conflito possessório que, mesmo iniciado no passado,

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ainda persista até o marco demarcatório temporal atual (vale dizer, a data da promulgação da Constituição de 1988), conflito que se materializa por circunstâncias de fato ou, pelo menos, por uma controvérsia possessória judicializada. 4. Agravo regimental a que se dá provimento.

A decisão agravada tem a seguinte redação:

Decisão: 1. Trata-se de agravo contra decisão que inadmitiu recurso extraordinário interposto em ação declaratória. O Tribunal Regional Federal da 3ª Região decidiu, em suma, que (a) “ainda que os índios tenham perdido a posse por longos anos, têm indiscutível di-reito de postular sua restituição, desde que ela decorra de tradicional (antiga, imemorial) ocupação” (fl. 2824); (b) “a perícia encontrou elementos materiais e imateriais que caracterizam a área como de ocupação Terena, desde período anterior ao requerimento/titulação dessas terras por particulares” (fl. 2830 - verso); (c) inaplicável a Súmula 650/STF ao caso, visto que “não consta que a área objeto desta ação seja área de extinto aldeamento indígena, ou seja, não consta tenham os indígenas deixado de ocupá-la algum dia, por vontade própria e em passado remoto, ali retornando após o decurso de tempo suficiente para justificar o título de domínio defendido pelo autor nestes autos” (fl. 2831); (d) “restando comprovado, nos autos, o renitente esbulho praticado pelos não índios, inaplicável à espécie, o marco temporal aludido na PET 3388 e Súmula 650 do Supremo Tribunal Federal” (fl. 2832). No recurso extraordinário, a parte recorrente aponta, com base no art. 102, III, “a”, da Constituição Federal, violação ao art. 231 da CF/88, pois, (a) segundo a firme jurisprudência do STF, para que seja considerada tradicional, a posse indígena deve ser verificada na data em que promulgada a Carta Magna; (b) não houve esbulho renitente por parte do recorrente, visto que a convivência com os índios Terena foi pacífica desde 1950 até 1996, quando iniciado o processo de demarcação da Aldeia Limão Verde; (c) o Tribunal de origem concluiu pela existência de “eventual prática de esbulho” apenas com base em três reclamações genéricas elaboradas pelos índios Terena em 1982, 1984 e 1989, nenhuma das quais se referia diretamente à Fazenda Santa Bárbara. Em contrar-razões, os recorridos postulam, preliminarmente, o não conheci-mento do recurso, em razão da (a) ausência de prequestionamento;

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(b) fundamentação deficiente; (c) ofensa constitucional reflexa; (d) não demonstração da repercussão geral da matéria; (e) neces-sidade de reexame probatório. No mérito, pedem o desprovimento do recurso. A Procuradoria-Geral da República opinou pelo des-provimento do agravo, ao entendimento de que o provimento do recurso extraordinário demandaria o revolvimento do conjunto fático-probatório dos autos, o que é vedado pela Súmula 279/STF. 2. Correto o aresto impugnado ao afastar a incidência da Súmula 650/STF. O entendimento consubstanciado no referido enunciado foi firmado no julgamento do RE 249.705, Rel. Min. MARCO AURÉ-LIO, Tribunal Pleno, DJ de 1/10/1999, em que a União postulava o reconhecimento da propriedade de áreas ocupadas no passado por aldeamentos indígenas extintos, argumentando que, com o abandono do local, a propriedade de tais terras foi devolvida àquele ente fede-rativo. Trata-se, como se vê, de caso totalmente diverso do presente, em que a Corte de origem consignou o seguinte: “não consta que a área objeto desta ação seja área de extinto aldeamento indígena, ou seja, não consta tenham os indígenas deixado de ocupá-la algum dia, por vontade própria ou em passado remoto, ali retornando após decurso de tempo suficiente para justificar o título de domínio defendido pelo autor nestes autos” (fl. 2831). Saliente-se, ademais, que infirmar essas conclusões do acórdão recorrido demandaria o reexame de fatos e provas, o que é incabível na presente via recursal, em razão do disposto na Súmula 279/STF. 3. O Plenário do STF, no julgamento da Pet 3.388, Rel. Min. CARLOS BRITTO, DJe de 1/7/2010, assentou a orientação de que, embora o marco temporal de ocupação de um determinado espaço geográfico por determinada etnia aborígene, para fins de reconhecimento de que se trata de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, seja a data da promulgação da Carta Magna (5 de outubro de 1988), o renitente esbulho por parte de não índios não é hábil a descaracterizar a tradicionalidade da posse nativa. Na hipótese em exame, o Tribunal a quo decidiu a controvérsia nos seguintes termos: Na hipótese, restou incontroverso que, à época da promulgação da Constituição Federal de 1988, os índios da etnia Terena não estavam na posse da área reivindicada, posteriormente demarcada e homologada pelo Decreto Presidencial. Importa saber, portanto, se dela foram os índios desalojados em virtude de renitente esbulho praticado por não índios. Acerca desta

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questão, o laudo pericial explica exatamente como os silvícolas foram desalojados do local onde viviam. (fl.1100): “Como indicamos nos itens 2.1 e 2.2, e depois nos itens 4.1 e 4.2 deste laudo, o processo de colonização da região da bacia do Aquidauana se intensifica especialmente depois do término da Guerra do Paraguai. Na região em questão, existiam diversos aldeamentos indígenas, como Ipegue na planície e o Piranhinha nos morros, como são registrados nos documentos já citados, pelo menos desde 1865-66. A partir de 1892 inicia-se um processo de colonização conduzido por um grupo de coronéis (apesar de que antes da aquisição de terras por esse grupo, já existiam posseiros na região, como é o caso de João Dias Cordei-ro) por meio da constituição vila de Aquidauana e de propriedades rurais e urbanas. Pelos documentos localizados, a partir de 1895 em diante inicia-se um processo de titulação em terras localizadas entre o Córrego João Dias, o Morro do Amparo e o Aquidauana que se choca com as terras de ocupação indígena em diversos pontos. Isso caracteriza um choque entre o poder local e a economia agropecuária e a sociedade Terena. Esse choque de interesses sobre as terras e os recursos ambientais está registrado nos diversos documentos anali-sados e citados no laudo, e resultará na titulação das terras para o município em 1928 e depois na criação da Colônia XV de Agosto em 1959, incidentes na área depois identificada como indígena. Assim, consolida-se o processo ocupação nos territórios em questão. Com relação às terras da fazenda Santa Bárbara, podemos indicar que existiu ocupação indígena (no sentido de uso para habitação) até o ano de 1953, quando em meio ao processo de demarcação houve a expulsão dos índios da área, mas a ocupação (como uso de recursos naturais e ambientais) permanece até os dias de hoje, uma vez que os índios praticam a caça e coleta na serra.” (grifei). Além disso, o MM. Juiz sentenciante constatou na inspeção judicial que, a partir do ano de 1953, os índios, não por vontade própria, ficaram impedidos de utilizar as terras da área litigiosa. Confira-se o seguinte trecho da r. sentença: “Por ocasião da inspeção que realizei na área em litígio constatei que a Fazenda Santa Bárbara tem divisa bem definida com as terras indígenas. Além da divisa natural, representada pelo paredão da Serra de Amambaí, tornando difícil o acesso entre as glebas, existem cercas em todo o perímetro da fazenda. Essas cercas remontam à época que antecedeu a passagem do agrimensor Camilo Boni (1953).” - (fls. 2417) Diante disso, restando comprovado, nos

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autos, o renitente esbulho praticado pelos não índios, inaplicável à espécie, o marco temporal aludido na PET 3388 e Súmula 650 do Supremo Tribunal Federal. Ademais, não vislumbro como afastar as conclusões do laudo oficial, considerando que nem mesmo os argumentos que foram deduzidos pelo assistente técnico do autor conseguiram desconstituir a conclusão a que chegou o perito judicial, de reconhecida idoneidade e competência. (fl. 2831/2832) Assim, re-futar as conclusões do aresto atacado demandaria a reapreciação do conjunto fático-probatório dos autos, o que não é cabível em sede de recurso extraordinário, conforme dispõe a Súmula 279/STF. 4. Diante do exposto, conheço do agravo para, desde logo, negar seguimento ao recurso extraordinário. Publique-se. Intime-se. Brasília, 4 de agosto de 2014. Ministro Teori Zavascki Relator

O acórdão, inobstante as razões agravadas, deu provimento ao Agra-vo Regimental para conhecer do Agravo de instrumento e dar provimento ao Recurso Extraordinário julgando procedente o pedido, recusando o renitente esbulho que fora reconhecido pelo acórdão local.

Tais pronunciamentos foram citados pelo parecer normativo como corolário da tese defendida de que a Corte Suprema teria com a sua edi-ção indicado que os padrões das salvaguardas seriam obrigatoriamente adotados naqueles casos. Ao contrário, porém, a referência e remissão a estes julgados – assim como poderia a outros tantos que pudessem ser mencionados – mostram que para a deliberação dos casos concretos e especiais o Tribunal teve de exercer juízo de deliberação próprio a partir das características e circunstancias de cada caso em particular. Ou seja, mesmo tendo como indicativo as salvaguardas o Tribunal neles analisou e examinou os casos para verificar se se submetiam ao padrão jurispru-dencial e considerou-as “vinculante” ao caso sob julgamento porque as circunstancias fáticas o sugeriam e não porque seriam obrigatórias.

Em outros termos, quando editados pelos órgãos da Corte Suprema no exercício da jurisdição que a Constituição lhe confere, os acórdãos têm absoluta primazia e prevalência sobre qualquer outra interpretação judi-cial ou administrativa que se venha a oferecer, vedando-se, por evidente que possa esta última sobrepor-se ou prevalecer em face daquela. É o próprio Tribunal, na exegese do art. 102 da Constituição, que estabelece:

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A FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA E O MONOPÓLIO DA ÚLTIMA PALAVRA, PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, EM MATÉRIA DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL. - O exercício da jurisdição constitucional - que tem por objetivo preservar a supremacia da Constituição - põe em evidência a dimensão essencialmente política em que se projeta a atividade institucional do Supremo Tribunal Federal, pois, no pro-cesso de indagação constitucional, assenta-se a magna prerrogativa de decidir, em última análise, sobre a própria substância do poder. No poder de interpretar a Lei Fundamental, reside a prerrogativa extraordinária de (re)formulá-la, eis que a interpretação judicial acha-se compreendida entre os processos informais de mutação constitucional, a significar, portanto, que “A Constituição está em elaboração permanente nos Tribunais incumbidos de aplicá-la”. Doutrina. Precedentes. A interpretação constitucional derivada das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal - a quem se atri-buiu a função eminente de “guarda da Constituição” (CF, art. 102, “caput”) - assume papel de essencial importância na organização institucional do Estado brasileiro, a justificar o reconhecimento de que o modelo político- -jurídico vigente em nosso País confere, à Suprema Corte, a singular prerrogativa de dispor do monopólio da última palavra em tema de exegese das normas inscritas no texto da Lei Fundamental. (Adin 3345/DF Rel. Min. Celso de Mello, j. 25.08.2005, Plenário, DJe 20.08.2010)

Mas, à toda evidencia, essa qualidade das decisões do STF não implica na inevitabilidade da aplicação das salvaguardas. Recorde-se do voto do Ministro Barroso nos Embargos declaratórios do caso Raposa Serra do Sol:

“A decisão proferida em ação popular é desprovida de força vinculante, em sentido técnico. Nesses termos, os fundamentos ado-tados pela Corte não se estendem, de forma automática, a outros processos em que se discuta matéria similar. Sem prejuízo disso, o acórdão embargado ostenta a força moral e persuasiva de uma decisão da mais alta Corte do País, do que decorre um elevado ônus argumentativo nos casos em se cogite da superação de suas razões.”

A prevalecer essa compreensão que é a que objetivamente resulta do aresto principal e seguramente é a mais ajustada ao espirito e conteúdo constitucional das regras que disciplinam o regime jurídico dos índios na

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Constituição de 1988, o congelamento normativo das diretivas constantes do acórdão citado ora proposto no Parecer GM 05/2017 tanto é controver-so quanto incompatível com boa e devida a interpretação constitucional.

Controverso porque de fato o parecer parece precipitado na extração do sentido do acórdão e equivocado pela errônea compreensão da visível modulação dos seus termos à vista do caso concreto. É que os termos do veredicto não se aplicam “de forma automática” a outros processos em que se discuta matéria semelhante, afirmação que assim desmente o caráter normativo por ele pretendido.

Incompatível com a Constituição porque o regime de proteção aos índios dela vertente claramente oferece um estatuto de princípios que logica e tecnicamente exclui essa suposta força vinculante.

Demais, as salvaguardas editadas no julgamento do caso Raposa Serra do Sol – possivelmente influenciadas pela enorme repercussão e reação negativa de proprietários e do agronegócio – são inteiramente inadequadas enquanto padrão de definição de políticas públicas ou com-portamentos administrativos pelo país afora, cujos órgãos além do mais são dotados de competência própria, discricionariedade e autonomia para a consecução dos fins públicos. E dada a notória diversidade de etnias, culturas e hábitos próprios de cada qual, de resto prerrogativas acolhidas pela Constituição que não só tolera como protege a multiculturalidade e diversidade étnica, a homogeneização capitulada no parecer constitui por si só uma violação oblíqua do texto maior.

Ora bem, mesmo que alguns precedentes – como os acima referidos – tenham sido editados à luz do desfecho do caso Raposa Serra do Sol, e porventura em dissonância com os termos essenciais do dito julgado, mes-mo daí não resulta manifesta a instituição de um padrão de interpretação capaz de assegurar ao Parecer GMF-05/2017 substancia de ato normativo consentâneo com o regime constitucional declarado pelo STF, ainda quan-do abandonando a teoria do indigenato em favor do fato indígena2 pelo qual se sustenta a salvaguarda apenas da posse em 5 de outubro de 1988.

2 No Recurso Extraordinário 219.983-3 o Ministro Nelson Jobim que compôs a tese vencedora afirma em seu voto que a tese do reconhecimento de terras indígenas por posse imemorial foi amplamente rejeitada pela Assembleia Nacional Constituinte substituindo a do indigenato pela teoria do fato indígena.

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Pelo contrário, em critica bem apetrechada3 a Subprocuradoria-Geral da República mostra com clareza a contradição que se instalou no voto do Ministro Direito, autor das assertivas que redundaram nas mencionadas salvaguardas, pois o magistrado sustentou decididamente a necessidade de identificação das terras para assegurar aos índios a preservação dos recursos ambientais de que precisam para a sua sobrevivência, reprodução física e cultural ao mesmo tempo em que paralisou a história em 5 de outubro se não fosse efetiva a presença indígena (que considerou subjetivamente) nessa data ou se não se evidenciasse a hipótese de renitente esbulho que a privasse de modo contemporâneo. Como diz a autora “não faz muito sentido ver em uma Constituição de viés emancipatório, que trata com tamanho cuidado as terras indígenas [o que o voto expressamente reconhece], a desconsideração dos direitos territoriais adquiridos validando expulsão e esbulho”.

Não fosse isso, a internalização formal das normas internacionais da Convenção 169 da OIT4 fez por prevalecer no ordenamento nacional a centralidade da terra como fator identitário dos grupos indígenas sob o aspecto cultural, de costumes, de modo de reprodução física e preserva-ção de seus bens e direitos. Tais circunstancias, largamente valorizadas no julgamento do caso Raposa Serra do Sol, vão certamente em sentido contrário da proposição pretendida no Parecer GMF 05/2017 que apa-rentemente ocupou-se apenas da fixação dos efeitos normativos na data de 5 de outubro de 1988.

Embora assentando o acórdão que uma vez transitada em jugado as sentenças de mérito proferidas em ação popular (é o caso da Petição 3.388 RR) são oponíveis erga omnes, o relator assim discorreu (itens 51 a 55 do voto) quanto às objeções do Ministério Público Federal em face das ditas condicionantes e seus efeitos:

3 O Marco Temporal de 5 de outubro de 1988 – TI Limão Verde, Duprat. Déborah, (http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr6/documentos-e-publicacoes/artigos/docs_artigos/marco-temporal-1.pdf) acessado em 11.03.2018, com extensa recuperação da orientação jurisprudencial da Corte Suprema ao longo dos sucessivos períodos constitucionais.4 Na Adin 5.905-RR, o Estado de Roraima (Rel. Min. Fux) impugna a Convenção 169 da OIT de vulneração da soberania nacional brasileira e pede a declaração de inconstitucionalidade das disposições do art. 6, 1, ‘a’, 2; do art. 13.1 e 2; do art. 15.2 da normativa internacional que considera ofensivas do art. 1ª, I e IV; artigo 4ª, I; do art. 20, XI; do art. 21, IX; do art. 43, caput; do art. 48, IV; do art. 58, § 2º, VI; do art. 170, I e VII e do art. 231 da CF.

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52. As condições em tela são elementos que a maioria dos Ministros considerou pressupostos para o reconhecimento da de-marcação válida, notadamente por decorrerem essencialmente da própria Constituição. Na prática, a sua inserção no acórdão pode ser lida da seguinte forma: se o fundamento para se reconhecer a validade da demarcação é o sistema constitucional, a Corte achou por bem explicitar não apenas esse resultado isoladamente, mas também as diretrizes desse mesmo sistema que conferem substân-cia ao usufruto indígena e o compatibilizam com outros elementos igualmente protegidos pela Constituição.

53. Na esteira da proposta do Ministro Menezes Direito, a maioria entendeu que não era possível pôr fim ao conflito fundiário e social que lhe foi submetido sem enunciar os aspectos básicos do regime jurídico aplicável à área demarcada. Nesse sentido, as condições integram o objeto do que foi decidido e fazem coisa julgada material. Isso significa que a incidência das referidas di-retrizes na Reserva da Raposa Serra do Sol não poderá ser objeto de questionamento em outros processos. Não foi por outra razão, aliás, que o Tribunal substituiu a improcedência do pedido pela procedência parcial. Como observou a Ministra Cármen Lúcia, o que se fez foi acolher o pleito para interpretar os atos impugnados à luz das disposições constitucionais pertinentes ao tema.

54. Essa circunstância, porém, não produz uma transforma-ção da coisa julgada em ato normativo geral e abstrato, vinculante para outros eventuais processos que discutam matéria similar. No atual estado da arte, as decisões do Supremo Tribunal Federal não possuem, sempre e em todos os casos, caráter vinculante. [...]

55. Dessa forma a decisão proferida na Pet 3.388/RR não vincula juízes e tribunais quando do exame de outros processos, relativos a terras indígenas diversas. Como destacou o Ministro Carlos Ayres Britto, “a presente ação tem por objeto tão-somente a Terra Indígena Raposa Serra do Sol” (fl. 336). Vale notar que essa linha já vem sendo observada pelo Tribunal: foram extintas monocraticamente várias reclamações que pretendiam a extensão automática da decisão a outras áreas demarcadas (Rcl 8.070 MC/MS, dec. Min. Carlos Ayres Britto [RI/STF, art. 38, I], DJe 24.04.2009; Rcl 15.668/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 13.05.2013; Rcl 15.051/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 18.12.2012; Rcl 13.769/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 28.05.2012).

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IVÉ inquestionável assim que a Corte Suprema longe de estabelecer

a data de 5 de outubro de 1988 como a data limite para determinadas realidades também não impôs aos tribunais inferiores como padrão de jurisprudência que as salvaguardas constituam direção hermenêutica obrigatória e vinculante.

Para além disso vale mencionar em face da tese do marco temporal (e outras decorrentes), a qual o Parecer pretende seja adotado em caráter vinculante, que do ponto de vista antropológico esse e outros diferentes eventos podem vir a conflitar com as salvaguardas e sujeitar tribunais e juízos e a própria técnica de interpretação a difíceis impasses. São disso exemplo como aspectos derivados de realidade cultural, sócia, religiosa e outros a resultar no crescimento vegetativo das comunidades; na neces-sidade de expansão de sua área de perambulação; na caracterização de imprecisão territorial ou de mobilidade física tradicional, e assim por diante, eles mesmos fatores de corte constitucional reconhecido pelo acórdão.

Alias, se a Core Suprema pode assentar precedentes ou sumulas a partir da natureza de seu desempenho jurisdicional não é simétrica a atuação da advocacia pública. Isto é, se o tribunal pode acomodar seus precedentes ao caso concreto porque tem liberdade para deliberar de acordo com a convicção motivada do julgador, a representação da parte pública não a tem. Assim, tomar emprestado juízo casuísta do tribunal para convertê-lo em norma de atuação administrativa inflexível pode constituir equivoco técnico e afirmação errônea de que é essa, ou aquela, a interpretação obrigatória quando a Corte não o fez com esse escopo. E pode constituir afronta ao tribunal ou, no limite, à própria Constituição.

Recentemente, por exemplo, o fenômeno antropológico do ressur-gimento étnico ou etnogênese – isto é, a recuperação de sua identidade étnica, física ou cultural, foi objeto de apreciação por sentença judicial perante a 2ª Vara Federal de Santarém PA5. À parte a previsível reper-

5 Processos nº 2010.39.02.000249-0 e 2091-80.2010.4.01.3902, Ações Ci-vis Públicas: Autor – Ministério Público Federal, Associação Intercomunitá-ria de Trabalhadores Agroextrativistas de Prainha e Vista Alegre do Rio Maró

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cussão negativa junto às comunidades envolvidas ante a improcedência da ação civil pública proposta pelo MPF local, do ponto de vista jurídico acabou proposto um difícil problema consistente em ter de reconhecer a exclusão desse fato da previsão constitucional – mesmo depois de 5 de outubro de 1988 – quando relacionado com comunidades indígenas afastadas de suas terras pela expulsão histórica que não se acomoda na criativa cláusula do renitente esbulho ou porque com o advento desse novo constitucionalismo indígena populações de índios estão a recuperar sua identidade e agora reivindicam legitimamente suas terras.

Fatos citados como o reconhecimento antropológico da ocupação indígena anterior, ou a necessidade de expansão das comunidades, assim como o ressurgimento das etnias, propõem questões jurídicas que o pa-recer em referencia não só afasta a priori contra o sentido e significado constitucional como à sombra de um suposto efeito vinculante inflexível investe contra a própria responsabilidade constitucional da União de proteger e resguardar os direitos e interesses das comunidades indígenas (art. 231, caput e art. 20, XI da Constituição).

Ante tais evidências, a proposição de parecer com efeitos obrigató-rios para todos os órgãos da administração pública federal não tem base no aresto invocado e ao torná-lo vinculante quando não o é na Corte termina por violar também o veredicto do STF pois faz dele paradigma de interpretação que não é dele. Se é certo que a dicção constitucional que se revela objetivamente prevalecente é a que o Supremo Tribunal Federal dita no exercício da jurisdição que lhe compete, o Parecer GMF 05/2017 AGU tornando obrigatória aos entes administrativos inteligência diversa incorre em manifesta oposição à Constituição. Em outras pala-vras, cuida-se de orientação normativa inconstitucional.

Brasília, 14 de março de 2018.

e outros; Réus – Fundação Nacional do Índio e União. A controvérsia, para o ponto, está localizada na discussão antropológica exposta na tese de doutora-do que considerou precisamente o caso dos autos de Floriano Vaz Almeida Filho (A Emergência Étnica de Povos Indígenas no Baixo Rio Tapajós, Amazônia)

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OS LIMITES DA PRESUNÇÃO PARA CONFIGURAÇÃO DA MULTA FISCAL

QUALIFICADA

RICARDO NÜSKEGraduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Público, atuando principalmente

na área do Direito Tributário. Exerceu a função de Assessor da Presidência no Tribunal Administrativo de Recurso Fiscais - TARF - da Secretaria da Fazenda do Estado do Rio Grande

do Sul, até 1994. Exerce a função de Juiz Federal vinculado ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região - TRF4, desde 1994, com atuação nas Varas Federais de Rio Grande,

Novo Hamburgo e Porto Alegre, Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais do Rio Grande do Sul e na Turma Regional de Uniformização do Tribunal Regional Federal da 4ª Região - TRF4, nas áreas de Direito Penal, Direito Previdenciário e Direito Tributário. Atualmente é Juiz Federal na titularidade da 13ª Vara Federal da Subseção de Porto Alegre, especializada

em Direito Tributário. Com especialização em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul / Instituto de Estudos Tributários. Especialização em Direito Constitucional pela Universidade de Pisa na Itália e Mestrando em Filosofia no Programa de Pós-graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Infrações à Legislação Tributária e Sanções Tributárias. Sua aplicação com a obrigatória observância dos Princípios da Administração Pública e Constitucionais. 2.1. As espécies de sanções tributárias. 2.2. A aplicação das sanções tributárias; a interpretação do Art. 136 do Código Tributário Nacional. Teoria da Responsabilidade Subjetiva e Teoria da Responsabilidade Objetiva Imprópria ou por Culpa Presumida. 2.3. A Responsabilidade Objetiva Imprópria (Impura) ou por Culpa Presumida. 3. Do conceito e dos elementos necessários para aplicação da presunção como meio de prova nas sanções não qualifica-das. 3.1. Dolo e Culpa para fins de aplicação de sanção fiscal agravada deverá ser comprovada sempre. 3.2. A inversão do ônus da prova em caso de lançamento por presunção frente a exigência da motivação dos atos administrativos. A exigência de que o fisco sempre comprove os fatos alegados para efetivação do lançamento fiscal. 4. Considerações finais.

1 IntroduçãoO presente trabalho busca apresentar elementos que facilitem a

compreensão do regramento que trata da aplicação das sanções tributá-rias frente a ocorrência de infrações a legislação tributária, com especial

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observância dos ditames contidos no artigo 136 do Código Tributário Nacional e aplicação da presunção como meio de prova no Direito Tributário.

O trabalho tem, num primeiro momento, seu centro de análise na interpretação, do artigo 136 do CTN estatuindo que “Salvo disposição de lei em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação tributária independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato.”

Após adentrar a Teoria da Responsabilidade Subjetiva e da Teoria da Responsabilidade Objetiva Imprópria ou Impura ou Teoria da Culpa Presumida como melhor interpretação aos ditames contidos no artigo 136 do Código Tributário Nacional apresentaremos os requisitos necessários para que seja aplicada a presunção como meio de prova bem como os elementos necessários para que seja afastada o convencimento produzido pela presunção como meio de prova.

Na aplicação das sanções fiscais por infrações à legislação tributária sempre se impõe a prova direta para a produção de provas de dolo e culpa do agente que permitam a motivação do auto de lançamento.

Dolo de culpa para fins de aplicação de multa agravada sempre deverão ser comprovadas por meio direto sendo afastada a hipótese de presunção. Tal critério é essencial para que não seja violado o princípio Constitucional da Ampla Defesa com Contraditório e garantida aplicação do Principio da Responsabilidade Subjetiva na comprovação do dolo e culpa do agente.

Por fim, dentro deste contexto, ganham especial relevo os limites e os elementos necessários para aplicação da presunção por parte dos agentes fiscais bem como da impropriedade da utilização da inversão do ônus da prova como consequência obrigatória ao contribuinte para afastar as conclusões produzida por presunção na aplicação das multas qualificadas.

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2 Infrações à Legislação Tributária e Sanções Tributárias. Sua aplicação com a obrigatória observância dos Princípios da Administração Pública e Constitucionais.

No direito tributário o descumprimento do dever estipulado na re-gra matriz de incidência caracteriza a hipótese de Infração à Legislação Tributária que impõe ao infrator sanções fiscais a serem aplicadas ao descumpridor da regra.

Neste contexto Regina Helena Costa nos enfatiza que “...o Código Tributário Nacional, por cuidar de normas gerais, não aponta os tipos inflacionais, agindo do mesmo modo em relação as sanções, ficando este regramento a cargo do legislador de cada pessoa política.”

(Regina Helena Costa em Curso de Direito Tributário; Editora SARAIVA; 5 Edição p. 309.)

Tais preceitos de natureza sancionatória estão subordinados aos princípios constitucionais da legalidade; da irretroatividade; da presun-ção de inocência; da verdade material; da razoabilidade; da vedação de confisco e outros. Subordinados ao princípios constitucionais nos seus atos abstratos e principalmente nos seus atos concretos.

O regramento das Infrações à Legislação Tributária e suas sanções estão diretamente subordinadas aos ditames contidos nos Princípios Constitucionais especialmente aqueles que mandam observar o Con-traditório com ampla defesa em esfera administrativa. A aplicação de sanções fiscais sem a observância dos limites constitucionais torna o ato administrativo passível de anulação e a responsabilização do agente publico pelos danos daí advindos.

Aqui ainda registra Regina Helena Costa que “a Lei 9784, de 1999, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, abriga diretrizes a serem observadas em toda atuação admi-nistrativa. Em seu art. 2º caput, preceitua que ‘a Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, mo-tivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência’.”

(Regina Helena Costa em Curso de Direito Tributário; Editora SARAIVA; 5ª Edição; p. 313).

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Devemos registrar que a observância de tais diretrizes atinge todos os atos praticados em esfera administrativa federal. Assim as Instruções Normativas da Secretarias da Receita, assim como todos os atos de lan-çamento fiscal e aplicação de sanções tributária estarão subordinados aos princípios e diretrizes legalmente estabelecidos. A inobservância das di-retrizes estabelecidas pelo legislador para observância da Administração Publica Federal levara a nulidade dos atos praticados e responsabilização dos agentes pelos danos daí decorrentes.

2.1 As espécies de sanções tributárias O legislador brasileiro estabeleceu associou uma diversidade de

sanções as infrações à legislação tributária que podem ser assim ar-roladas, deforma não taxativa: a) penalidades pecuniárias; b) multas de oficio; c) multas punitivas ou por infração; d) multas isoladas; e) multas agravadas (qualificadas); f) multas de mora; g) juros de mora; h) acréscimos legais; i) correção monetária; j) apreensão de mercadorias e documentos; k) apreensão de veículos; l) suspensão de regime fiscal especial, ou outros.

Este tópico tem caráter meramente indicativo das muitas san-ções aplicadas por infração à legislação fiscal. O presente trabalho tem por objeto todas as sanções fiscais que decorrem das normas que configuram infração à Legislação Tributária especialmente no que tange ao conteúdo probatório das infrações que tenham conteúdo subjetivo.

2.2 A aplicação das sanções tributárias; a interpretação do Art. 136 do Código Tributário Nacional. Teoria da Respon-sabilidade Subjetiva e Teoria da Responsabilidade Objetiva Imprópria ou por Culpa Presumida.

O Código Tributário Nacional dispôs nos artigos 136, 137 e 138 os ditames gerais sobre a Responsabilidade por Infrações à Legislação Tributária.

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Na aplicação das regras punitivas, descrevendo a ocorrência de Infrações à Legislação Tributária,o Código Tributário Nacional, em seu artigo 136, definiu a modalidade de Responsabilidade a ser adotada na aplicação das sanções tributárias dispondo que “Salvo disposição de lei em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação tributária independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato.”

Dentro do contexto do presente trabalho fica a questão de qual teoria da responsabilidade foi adotada pelo legislador com a disposição contida no artigo 136 do Código Tributário Nacional.

O elemento central do dispositivo esta na expressão “independe da intenção do agente ou do responsável “afastando a comprovação do DOLO como elementos da responsabilidade do agente para sua validade. Registre-se que a intenção do agente somente é considerada na com-posição do dolo. Na culpa a intenção do agente não é considerada. Sob este contexto não se pode interpretar o dispositivo para aplicação da responsabilidade objetiva pura em matéria tributária. O dispositivo indica, assim, com clareza que a responsabilidade por infração à legislação tributária tem natureza subjetiva (subjetiva propriamente dita ou subjetiva por presunção).

Registre-se que o artigo 136 do Código Tributário Nacional ao afastar a intenção do agente infrator para apuração da responsabi-lidade esta a indicar a natureza subjetiva da responsabilidade. Isto significa que o legislador adotou a Teoria Subjetiva ou, num campo mais restrito a Teoria Objetiva Imprópria ou Impura que admite a comprovação da culpa por presunção

Na linha de entendimento da Teoria Subjetiva propriamente dita Regi-na Helena da Costa enfatiza que “A polêmica concernente à interpretação desse dispositivo gira em torno da expressão segundo a qual a responsa-bilidade por infração à legislação tributária ‘independe da intenção do agente.’ Dessa cláusula muitos extraem a conclusão de que se cuida de responsabilidade objetiva. Entretanto, parece-me equivocada tal interpre-tação. Isto porque responsabilidade objetiva é aquela que prescinde da ideia de culpa, em seu sentido amplo, vale dizer, a abranger tanto o dolo

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quanto a culpa em sentido estrito (negligencia, imprudência e imperícia). Ora quando a lei declara que a responsabilidade por infrações à legislação tributária independe da intenção do agente, há que se entender estar afastado tão somente o dolo, e não a culpa em sentido estrito. Logo tal responsabilidade não exige dolo para sua configuração. Mas por evidente, exige a culpa do infrator, como é a regra em matéria de direito sancionató-rio, o que demonstra tratar-se de autêntica responsabilidade subjetiva.”

(Regina Helena Costa em Curso de Direito Tributário; Editora SARAIVA; 5ª edição; pp. 314 e 315.)

Enquadrando a responsabilidade por infração à legislação tributária como subjetiva no seu caráter puro resta necessária a comprovação direta da presença do elemento culpa (em sentido lato – dolo ou culpa) como requisito para aplicação das sanções tributárias qualificadas.

Adotada a Teoria Subjetiva para enquadrar a Responsabilidade por Infração a Legislação Tributária resta evidenciado que o elemento volitivo do agente deverá ser devidamente comprovado para caracterização do ilícito que permita a aplicação de sanção qualificada por dolo ou culpa. Na hipótese caberá ao fisco demonstrar a presença dos elementos subjetivos que configu-rem o ilícito e o nexo causal entre o comportamento volitivo e os resultados atingidos pelo contribuinte. Como dolo e culpa devem ser provados sempre na Teoria da Responsabilidade Subjetiva resta prejudicada a aplicação da presunção em tal tipo de comprovação já que culpa e dolo devem necessariamente ser comprovados por quem aplica a sanção agravada. (Aqui não de fala em responsabilização por presunção).

A Teoria da Responsabilidade Objetiva Imprópria ou Impura (nos casos em que não tivermos hipóteses de dolo e culpa) que ad-mite a presunção como meio de prova para aplicação de sanções tributárias será abordada no próximo tópico.

2.3 A Responsabilidade Objetiva Imprópria (Impura) ou por Culpa Presumida

Adotando uma interpretação mais restritiva, classificando Respon-sabilidade por Infração à Legislação Tributária como Objetiva Imprópria

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ou Impura estaríamos também acolhendo a responsabilidade que acolhe a culpa presumida (TEORIA OBJETIVA IMPRÓPRIA OU IMPURA OU TEORIA DA CULPA PRESUMIDA) em que o agente fiscal fica desincumbido de comprovar (PROVA DIRETA) o dano causado para aplicação da sanção fiscal.

Tanto na hipótese da exigência da comprovação do elemento cul-pa em sentido lato na classificação da responsabilidade por infração a legislação tributária como subjetiva ou na hipótese da responsabilidade por infração tributária ser classificada como objetiva imprópria, em que se admite a utilização da presunção, a produção da prova também se impõe ao fisco. Na primeira hipótese a prova direta e na segunda hipótese a prova indireta, por presunção).

Seguindo a teoria da culpa presumida (Objetiva Imprópria ou Im-pura) o agente fiscal deverá comprovar a ação do agente infrator; o dano sofrido pelo Estado bem como os elementos que justifiquem a adoção do mecanismo da presunção como elemento de prova. Este é o caminho para a comprovação dos fatos que justifiquem a aplicação de sanções não qualificadas.

Relativamente à adoção da Teoria Objetiva Impróprio ou da Culpa Pre-sumida pelo legislador no artigo 136 do Código Tributário Nacional Otavio Alves Forte enfatiza que “considerando a culpabilidade requisito essencial à incidência de toda norma repressiva, conclui-se pelos argumentos expos-tos, que o artigo 136 não adotou, nem poderia adotar, a responsabilidade objetiva, mas sim a presunção relativa de culpa do infrator, invertendo-se o ônus da prova.” Na sequência do trabalho o autor conclui afirmando que “o artigo 136 é verdadeira adoção da teoria da culpa presumida, que tem como consequência a inversão do ônus da prova....”

(Otavio Alves Forte no trabalho - Responsabilidade Tributária Objetiva.)

Na hipótese o autor admite a inclusão da comprovação da culpa do agente por presunção excluindo apenas o dolo. Penso que a Teoria da Responsabilidade Subjetiva deveria ser estendida também a comprova-ção direta da culpa para aplicação de sanções qualificadas. Possibilitar a comprovação da culpa por meios indiretos de prova traria serio com-

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prometimento aos limites constitucionais da Presunção de Inocência e comprometeria a segurança jurídica.

Assim o agente fiscal teria dois caminhos para aplicação das san-ções fiscais em razão de infração à legislação tributária. Uma, seguindo a Teoria da Responsabilidade Subjetiva, com a comprovação direta da culpa do agente (dolo ou culpa) pela infração praticada pelo contribuinte e outra, seguindo a Teoria Objetiva Impura ou por Culpa presumida, adotar a hipótese da culpa presumida em que o agente fiscal deve cumprir obrigatoriamente os elementos exigidos para utilização da presunção como meio de prova. Nesta ultima hipótese o caminho para aplicação de sanções não qualificadas.

Em ambos os casos se impõe a apresentação de motivação com a respectiva comprovação que justifique a aplicação da sanção tributária por infração à legislação tributária.

Registre-se que seguindo a Teoria Subjetiva propriamente dita o dolo e a culpa sempre deverão ser comprovado de forma direta para que sejam aplicadas sanções qualificadas. A comprovação do DOLO e CULPA, para fins de aplicação de sanções qualificadas não pode se dar de forma indireta, ou seja por presunção. A aplicação de sanções qualificadas deverão ser sempre motivadas e devidamente comprovadas (prova direta) quanto a presença do dolo ou culpa do contribuinte. Na impossibilidade da comprovação de dolo ou culpa do contribuinte não poderá o Fisco aplicar qualquer sanção qualificada.

3 Do conceito e dos elementos necessários para aplicação da presunção como meio de prova nas sanções não qualificadas.

Para adentrar a compreensão do conceito de presunção trazemos a manifestação de Iso Chaitz Scherkerkewitz enfatizando que “presunção é a suposição da existência de um fato desconhecido que é tido como verdadeiro e consequente de outro fato conhecido. O fato desconhecido carece de produção probatória, apoiando-se no fato conhecido já provado. Para que seja tido como verdadeiro o fato desconhecido utiliza-se do conceito de verdade provável da consequência tirada do fato conheci-

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do. ... Deve haver uma causalidade entre o fato conhecido e o fato desconhecido”. Portanto, na base da presunção deve haver sempre um fato, provado e certo, uma vez que o direito não tolera que se presuma o fato e dele se induza a presunção, nem admite que se deduza a presunção da presunção.

Nesta linha o autor nos traz os ensinamentos de Aguilera de Paz colacionado por Moacir Amaral Santos no sentido de que “... é indis-pensável que o fato base da presunção (o fato auxiliar, o indicio) esteja plenamente provado e isso é da essência e fundamento das presunções, porque estas, qualquer que seja a sua classe, necessitam partir de um fato conhecido, vale dizer de um fato provado, do qual possa se inferir o fato desconhecido havido como certo pela presunção. Ora, – continua o mesmo autor – se o fato base tem que ser provado, não pode haver duvida alguma de que sua prova compete ao favorecido pela presunção, o qual terá de produzi-la para poder beneficiar-se dela. “(Prova judiciá-ria no Cível e no Comercial Volume V. Exames periciais, presunções e indícios. São Paulo. Ed. Max Limonad, 1949. p. 383.).

(Iso Chaitz Scherkerkewitz em Presunções e Ficções no Direito Tributário NE no Direito Penal Tributário; Editora RENOVAR; 2002; pp 25 e 26)

Do conceito de presunção podemos constatar que o Fisco deverá estar sempre atento de que sua aplicação não constitui a prova propriamente dita mas deverá estar alicerçada em prova, de fato antecedente, produzida no processo administrativo que permita a dedução do fato consequente que pretende ser comprovado. Sempre importante lembrar que o fato a ser comprovado pela presunção deverá ter um nexo de causalidade com o fato antecedente de onde partiu a aplicação da presunção para com-provar a partir do mecanismo da presunção. O fato antecedente deverá ser devidamente comprovado nos autos do processo administrativo fiscal sob pela de nulidade do lançamento fiscal produzido em que a culpa do agente é comprovada por presunção.

A mera aplicação da presunção como forma de comprovação de fato que pretenda relacionar o fato praticado ao contribuinte está eivado de vício que leva necessariamente à nulidade do lançamento fiscal. A apli-

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cação da presunção como prova desborda da configuração da presunção como meio de prova e não como prova propriamente dita.

Na hipótese da aplicação da presunção como meio de prova, sem a observância dos elementos que permitam tal procedimento de presunção, e a produção da prova do fato antecedente em esfera administrativa, estará o ato de lançamento viciado podendo ser anulado em esfera judicial. Em juízo poderá ser reconhecida a impropriedade da presunção adotada pelo Fisco com a consequente anulação do Lançamento Fiscal.

3.1 Dolo e Culpa para fins de aplicação de sanção fiscal agra-vada deverá ser comprovada sempre.

As infrações à Legislação Tributária decorrentes de elementos subjetivos do agente que deram causa ao descumprimento da norma de incidência sempre deverão ser comprovadas diretamente. O dolo e a culpa do agente não poderão ser comprovados em decorrência de presunção para fins de aplicação de sanções fiscais em decorrência de infrações a Legislação Tributária de natureza subjetiva

Dolo e Culpa deverão ser provadas de forma direta sempre. A prova indireta por presunção não deve ser admitida para compro-vação de dolo ou culpa para embasar sanção qualificada.

Além da comprovação do dolo e da culpa também deverá ser com-provada a ligação entre a conduta do sujeito passivo e o dano causado ao Estado. Sem a comprovação direta deste “liame consequencial” não poderá ser aplicada sanção de natureza qualificada.

Nenhuma sanção qualificada poderá ser aplicada em decorrência de presunção de dolo ou culpa. Nas infrações que levam em conta a conduta do agente a aplicação de sanções exigirá a comprovação direta do dolo ou da culpa do agente. A produção probatória direta deverá ser produzida pelo Fisco.

Nesta linha de entendimento Paulo de Barros Carvalho nos enfatiza que “nos autos de infração o agente não pode limitar-se a circunscrever os caracteres fáticos, fazendo breve alusão ao cunho doloso ou culposo

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da conduta do administrado. Isto não basta, há de provar, de maneira inequívoca, o elemento subjetivo que integra o fato típico, com a mes-ma evidencia que demonstra integração material da ocorrência fática. É justamente por tais argumentos que as presunções não devem ter admissibilidade no que tange as infrações subjetivas. ...O dolo e a culpa não se presumem, provam-se.”

(Paulo de Barros Carvalho em Curso de Direito Tributário; Editora SARAIVA; 26 edição 2014; fl. 475 e 476).

Enfatizando a impossibilidade da aplicação da presunção como meio de prova para comprovar a existência de dolo ou culpa do agente nas sanções qualificadas, nos termos até aqui expostos Florence Haret nos apresenta que “é inconstitucional toda forma presuntiva produzida pelo aplicador do direito com o intuito de constituir a ilicitude. É por esta razão que presunções ...são proi-bidas no campo das ilicitudes tributárias. Ademais, também como decorrência do inciso supracitado, cumpre dizer, no mesmo sentido que é proibido ao aplicador interpretar analógica ou extensivamen-te o fato ilícito alegado para fins de imposição de multas e outras penalidades tributárias. Os conceitos postos na lei que caracterizam os ilícitos devem ser interpretados de forma restritiva, além do que o fisco deve seguir sempre exegese mais benéfica ao contribuinte. Esta é uma consequência direta do postulado “in dúbio pró réu” também caracterizado pelo texto no inciso XL do artigo 5 da CF/88.

(Florence Haret em Teoria e Prática das Presunções no Direito Tributário. Editora NOESES; São Paulo; 2010; p. 533.)

3.2 A inversão do ônus da prova em caso de lançamento por presunção frente a exigência da motivação dos atos adminis-trativos. A exigência de que o fisco sempre comprove os fatos alegados para efetivação do lançamento fiscal.

A exigência de que todos os atos administrativos sejam motivados com suas conclusões devidamente comprovadas trazem ao lançamento fiscal o observância de tais ditames legais e constitucionais.

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No lançamento fiscal as alegações que levam a configuração de infrações a legislação tributária deverão ser sempre comprovadas para atender a exigência da motivação dos atos administrativos.

A ausência de comprovação das alegações pelo fisco viola o dever de motivação do ato de lançamento fiscal e acarreta a violação do principio constitucional do contraditório com ampla defesa que deve ser sempre observado em esfera administrativa e judicial. A ausência de fundamen-tação do ato fiscal impede o direito de defesa do contribuinte e viola de forma absoluta o Texto Constitucional.

A ausência de demonstração da observância dos permissivos legais para aplicação de sanções tributárias, qualificadas ou não, também configura hipótese de falta de comprovação de alegações pelo Fisco bem como trará prejuízos grave a configuração da motivação do ato administrativo praticado.

A presunção indevidamente aplicada para comprovação do ato fiscal traz prejuízos graves a necessária comprovação dos fatos que levaram ao lançamento fiscal, A presunção adotada sem amparo na boa técnica processual trará prejuízos a motivação do ato administrativo praticado e efetiva possibilidade de observância do contraditório com ampla defesa que deve sempre ser permitida ao contribuinte em seu conceito material.

Nas hipóteses em que se busca a comprovação do dolo e da culpa para aplicação de sanções qualificadas mediante o uso da presunção como meio de prova se estará frente a violação do principio do contraditório com a ampla defesa. Na hipótese a limitação do ampla defesa ficará nítida pois não será possível ao contribuinte a ampla defesa uma vez que tal hipótese fica prejudicada em caso adoção de prova indireta.

Relativamente a inversão do ônus da prova como consequência da adoção da Teoria da Responsabilidade Objetiva Impura ou Culpa Presumida tenho que a adoção de tal mecanismo de prova indireta pode vir acompanhada de cerceamento de defesa ao contribuinte. A prova indireta somente deverá ser adotada em casos excepcionais em que a prova indireta se mostrar impossível em casos onde não se busque na comprovação de dolo ou culpa do agente para aplicação de sanções qua-

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lificadas. Sempre que houver indícios de cerceamento de defesa e houver sido aplicada a presunção como meio de prova o ato restará viciado por violação ao principio constitucional da ampla defesa com contraditório.

4 Considerações finais Em conclusão podemos afirmar que o Código Tributário Nacional

no seu artigo 136 adotou a teoria objetiva impura ou da culpa presumida e da Teoria Subjetiva para aplicação de sanções tributárias por Infração à Legislação Tributária.

A adoção da Teoria Objetiva Impura ou Teoria da Culpa Presu-mida para a generalidade dos casos em que não seja possível a adoção de prova direta dos fatos para efetivação do lançamento fiscal e da Teoria Subjetiva Propriamente Dita para as situações em se fizerem neces-sárias a comprovação do dolo ou culpa do agente em caso de sanções qualificadas.

A adoção do diferencial apontado é essencial para a preservação da segurança jurídica e observância dos princípios Constitucionais. Este diferencial é de excepcional importância para a atividade fiscal bem como para a atividade jurisdicional na preservação da atividade estatal e da segurança jurídica do co

ntribuinte. Com tal diferencial restaram preservados o principio do contraditório com ampla defesa e motivação que permitirá a segurança jurídica com principio básico a nortear a aplicação das regras tributárias.

No campo das presunções igualmente o amplo conhecimento dos requisitos para sua aplicação se impõem. Tanto no âmbito administrativo como no âmbito judicial a aferição dos requisitos utilizados para ado-ção das presunções como meio de prova se mostram da essência para o funcionamento do bom direito.

A adoção regular dos elementos para utilização da presunção como meio de prova que justifique o lançamento fiscal nos casos em que não se busque a comprovação de dolo ou culpa do agente, constitui elemento basilar de preservação do principio constitucional do contraditório com ampla defesa em esfera administrativa e judicial.

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5 Referências bibliográficasCOSTA, Regina Helena; Curso de Direito Tributário; 5ª edição; São Paulo; Editora SARAIVA; 2015.

CARVALHO, Paulo de Barros; Curso de Direito Tributário; 26ª edição; São Paulo; Editora SARAIVA; 2014.

FERRAGUR, Maria Rita; Presunções no Direito Tributário; 2ª edição; São Paulo; Editora Quartier Latin do Brasil; 2005.

FORTE, Otavio Alves; Responsabilidade Tributária Objetiva; Artigo.

HARET, Florence; Teoria e Pratica das Presunções no Direito Tributário; São Paulo; Editora NOESES; 2010.

PAULSEN, Leandro; Responsabilidade e Substituição Tributárias; Porto Alegre; Livraria do Advogado; 2012.

SHERKERKEWITZ, Iso Chaitz; Presunções e Ficções no Direito Tribu-tário e no Direito Penal Tributário; São Paulo; Editora RENOVAR; 2002.

TOMÉ, Fabiana Del Padre; A Prova no Direito Tributário; Editora NOESES; 2005.

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OS EFEITOS VINCULANTES NO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE

DAS LEIS NO BRASIL

FÁBIO VITÓRIO MATTIELLO Juiz Federal

RESUMO: Aborda o controle difuso de constitucionalidade das leis no direito brasileiro, a fim de saber se as decisões nele proferidas comportam a atribuição de efeitos vinculantes. Investiga os mecanismo que outorgam efeitos vinculantes nas decisões proferidas pelo Supremo Tribunal no controle difuso de constitucionalidade. Examina o papel do Senado nesse contexto, seu valor histórico e atual, bem como a função das Súmulas Vinculantes. Trata da Eficácia Transcendente dos Motivos Determinantes da Decisão, seus antecedentes, suas justificativas e as dificuldades de sua operacionalização.

PALAVRAS-CHAVE: Controle difuso de Constitucionalidade – Efeitos Vinculantes – Senado Federal – Súmula Vinculante – Eficácia Transcen-dente dos Motivos Determinantes

ABSTRACT: Addresses the diffuse control of constitutionality of laws under Brazilian law, in order to know whether the decisions made there include the assignment of binding effects. Investigates how the control of constitutionality was treated in the Brazilian constitutions, and verify the binding mechanism to give effect to decisions made by the Brazilian Supreme Court in diffuse control of constitutionality. Examines the role of the Senate in that context, its historical and current, and the function of binding overviews. This Transcendent of the Effectiveness of the decision’s holding, their background, their reasons and difficulties in its operationalization.

KEYWORDS: Diffuse control of constitutionality - Effects binding - Senate - Summary binding - Transcendent Effectiveness of the decision’s holding

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO.1 O CONTROLE DE CONSTITU-CIONALIDADE NO BRASIL. 1.1 O controle de constitucionalidade nas Constituições Republicanas Brasileiras. 1.2 O controle de constitu-cionalidade na Constituição Federal de 1988. 1.3 O controle difuso de constitucionalidade 1.4 O Controle concentrado de constitucionalidade. 2 OS EFEITOS VINCULANTES NO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE NO BRASIL. 2.1 A suspensão da efi-

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cácia pelo Senado (art. 52, inciso X, da CF) 2.2 A Súmula Vinculante. 2.3 A vinculação pela Eficácia Transcendente dos Motivos Determi-nantes da Decisão (Ratio Decidendi ou Holding). 2.3.1 Antecedentes históricos. 2.3.4 Efeito Vinculante e Eficácia Contra Todos (erga omnes). 2.3.3 A aproximação entre os sistemas difuso e abstrato de controle de constitucionalidade no Brasil. 2.3.4 A dispersão de votos e a congruência entre as súmulas e os julgados em que se fundam. CONCLUSÕES. OBRAS CONSULTADAS.

O tema da eficácia da jurisdição constitu-cional esteve sempre presente na obra de Teori Albino Zavascki, seja como professor, seja como jurisconsulto, seja como Magistrado. Ofereço esse artigo (que é fruto de minha pós graduação na URI – Universidade Regional Integrada, campus de Santo Ângelo) em sua homenagem.

INTRODUÇÃO O presente artigo aborda o controle difuso de constitucionalidade

das leis no direito brasileiro, a fim de saber se as decisões nele proferidas comportam a atribuição de efeitos vinculantes. O controle de constitucio-nalidade das leis e dos atos do Poder Público está diretamente vinculado ao princípio da supremacia da Constituição. O pressuposto necessário da interpretação constitucional é o da supremacia da Constituição sobre todos os demais atos normativos.

O sistema de controle de constitucionalidade dos atos do Poder Público nasceu de um problema político a ser solucionado nos Estados Unidos da América. O famoso caso, decidido por Marshal, foi o precur-sor do que hoje se entende por controle de constitucionalidade das leis. O sistema americano de controle de constitucionalidade é, essencialmen-te, o difuso. No entanto, declarada a inconstitucionalidade da lei pela Suprema Corte, ela vincula a todos os órgãos judiciários. É o conhecido princípio do stare decisis.

Na Alemanha, desde a criação do Bundesverfassungsgericht (Tri-bunal Constitucional Alemão) pela Lei Fundamental de Bonn (1949) o controle que existe é o concentrado de constitucionalidade, baseado no

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modelo de Kelsen para a Constituição Austríaca de 1920. Esse modelo é seguido, também, na Itália, onde os juízes de primeiro grau não podem exercer o controle da constitucionalidade das leis.

No Brasil convivem dois tipos de controle de constitucionalidade: o concentrado e o difuso. No controle concentrado são amplamente acei-tos a eficácia erga omnes e os efeitos vinculantes das decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal. Todavia, no controle difuso, a recusa a efeitos vinculantes é bastante expressiva, não obstante a existência da fórmula histórica da suspensão da execução da lei inconstitucional pelo Senado da República e da recente adoção da chamada súmula vinculan-te. Além dessas duas fórmulas expressas no Texto Constitucional, será examinada uma nova possibilidade que a jurisprudência do Supremo Tribunal tem aventado: a equiparação dos efeitos vinculantes das decisões do controle abstrato ao controle difuso, tema bastante atual, que envolve a vinculação das Cortes inferiores à chamada eficácia transcendente dos motivos determinantes da decisão.

O trabalho é dividido em dois capítulos. No primeiro se investiga como o controle de constitucionalidade foi tratado em cada uma das Constituições Republicanas, até o advento da atual Carta Magna, onde se explica, resumidamente, o funcionamento dos controles de constitu-cionalidade que convivem no Brasil: o difuso e o abstrato.

O segundo capítulo é dedicado ao enfrentamento do problema dos efeitos vinculantes das decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal no controle difuso de constitucionalidade. O capítulo é divido em três partes, sendo a primeira delas dedicada ao exame do papel do Senado Federal no controle, sua importância histórica e atual. Na segunda parte, examina-se a chamada súmula vinculante, cuja autorização para edição de verbetes está expressa na Constituição Federal. Finalmente, parte-se para o exame da nova possibilidade que tem ocupado a jurisprudência da Corte Suprema: a cha-mada eficácia transcendente dos motivos determinantes da decisão. Nesse particular, o estudo contemplará os antecedentes históricos, o conceito de efeito vinculante, a aproximação entres os dois sistemas de fiscalização de constitucionalidade e o problema da dispersão de votos nos acórdãos, que dificulta a identificação do holding (ou ratio decidendi) do julgado.

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1 O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS NO BRASIL

O Brasil não conheceu verdadeiro controle de constitucionalidade das leis no período do Império (1824 a 1889). A Constituição de 1824 não contemplava qualquer sistema que se assemelhe aos modelos de fiscalização de constitucionalidade atuais. O Parlamento era soberano, já que além de fazer as leis, tinha poderes para interpretá-las, suspendê--las ou revogá-las e, ainda, velar pela guarda da Constituição (art. 15, n. 8 e 9). 1 Nesse período, a função de equilíbrio entre os Poderes ficava a cargo do Poder Moderador (art. 98), o qual tinha poderes para suspender os magistrados (art. 101 da Constituição do Império).

Com a promulgação da República, em 1889, o Governo Provisório convidou Rui Barbosa para redigir um projeto do que viria a ser a nova Ordem Normativa. Como Rui sabia que o modelo de então era incom-patível com os valores republicanos, buscou, na fórmula americana, que a essas alturas já tinha quase cem anos de tradição, a inspiração para o controle de constitucionalidade dos atos normativos2.

A Constituição do Império não dotou o Poder Judiciário do poder de anular as leis incompatíveis com a Constituição. O Brasil teve de esperar o nascimento da República para a incorporação desse valor às Constituições. Todavia, embora tenha conhecido tardiamente esse po-der, observa-se, nas várias Constituições Republicanas, uma crescente ampliação desse controle, com exceção da Carta de 1937. As maiores inovações, contudo, vieram com o advento da Constituição de 1988 (e de suas Emendas), quando se observa uma ampliação nunca vista antes nos meios de fiscalização da constitucionalidade das leis, seja no controle difuso (realizado por todos os Juízes e Tribunais), seja no concentrado (aos cuidados do Supremo Tribunal Federal).

1 MENDES, Gilmar Ferreira, Controle de Constitucionalidade. Aspectos Jurídicos e Políticos. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 169. 2 MARMELSTEIN, George. Quando Tudo Começou: o surgimento da jurisdição constitucional no Brasil. Disponível em Disponível em <http://direitosfundamentais.net/2008/04/13/quando-tudo-comecou-o-marburyvs-madison-brasileiro>. Acesso em 06.05.2009.

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1.1 O controle de constitucionalidade nas Constituições Repu-blicanas Brasileiras

O Brasil conheceu, inicialmente, o controle difuso de constitu-cionalidade das leis, copiado do modelo americano. O modelo foi consagrado no § 10º do art. 13 da Lei nº 221, de 20 de Novembro de 1894:

Os juízes e tribunais apreciarão a validade das leis e regulamen-tos e deixarão de aplicar aos casos ocorrentes as leis manifestamente inconstitucionais e os regulamentos manifestamente incompatíveis com as leis ou com a Constituição.

Ao estabelecer que o poder dos juízes ficaria vinculado aos “casos ocorrentes” fica claro que se trata de exame de constitucionalidade con-creto, no bojo de uma ação judicial.

A Constituição de 1934 manteve o sistema difuso de controle de constitucionalidade, mas agregou a regra de que os Tribunais depen-deriam de reserva de Plenário para declararem a inconstitucionalidade das leis. Ainda, estabeleceu a competência do Senado para suspender a execução do texto normativo objeto de declaração de inconstitu-cionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, agregando efeitos erga omnes às suas decisões (art. 91, inciso IV, e art. 96 da CF de 1934). Todavia, observa Mendes (1990, pág. 176) que, talvez a mais fecunda e inovadora alteração produzida por essa Máxima Carta tenha sido a introdução da ação específica de declaração de inconstitucionalidade para evitar a intervenção federal, a chamada representação interventi-va, instituto no qual o autor enxerga a gênese do controle abstrato de constitucionalidade no Brasil.

A Carta Constitucional do Estado Novo (1937) representou um re-trocesso no sistema de controle de constitucionalidade no Brasil. Apesar de manter o sistema difuso, o princípio da reserva de plenário, introdu-ziu uma modalidade de revisão das decisões de inconstitucionalidade pelo Chefe do Poder Executivo (art. 96, parágrafo único). Também foi excluída a possibilidade do Senado suspender a execução da lei decla-rada inconstitucional pelo Supremo e, tampouco, dava atribuição ao

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Procurador-Geral da República para a defesa dos chamados princípios constitucionais sensíveis.3

A Constituição de 1946 restaura a tradição do controle judicial, pois manteve a competência para o Supremo julgar as questões consti-tucionais em grau recursal, preservou o princípio da reserva de plenário e manteve a atribuição do Senado para a suspensão da execução da lei declarada inconstitucional. Segundo Mendes,4 a Constituição de 1946 emprestou nova conformação à ação direta de inconstitucionalidade, via representação interventiva, ação constitucional em que o Supremo aceitou a tese de que estava julgando a lei em tese (Representação Interventiva nº 94, de 1947).

A Emenda Constitucional nº 16/65 instituiu, ao lado da represen-tação interventiva, o controle abstrato de normas estaduais e federais. Consagrou, também a possibilidade dos Tribunais de Justiça declararem a inconstitucionalidade de lei ou ato Municipal em conflito com a Cons-tituição do Estado.5

A Constituição de 1967/1969 não trouxe grandes inovações no sistema de controle de constitucionalidade. Manteve o controle difuso e o abstrato, no modelo da EC 16/65; a representação interventiva foi ampliada para assegurar, também, a execução da lei federal, além da preservação dos princípios constitucionais sensíveis. A Emenda 1/69 previu, expressamente, o controle de constitucionalidade da lei municipal em face da Constituição Estadual, para fins de intervenção no Município (art. 15, § 3º, d).6 A Emenda 7/77 introduziu a representação para fins de interpretação de lei ou ato normativo federal ou estadual (art. 119, I, e), para fixar a imediata exegese da lei.

3 MENDES, Gilmar Ferreira, Controle.... p. 179 e 181. 4 Idem, p. 182 5 Idem, p. 192 6 Ibidem, p. 192

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1.2 O controle de constitucionalidade na Constituição Federal de 1988

A Constituição Federal de 1988 trouxe inovações profundas no sis-tema de controle de constitucionalidade. Manteve o sistema difuso (art. 97; art. 102, inciso III, alíneas “a” e “c”; art. 105, inciso II, alíneas “a” e “b”) e a possibilidade do Senado da República suspender a execução da lei federal (art. 52, inciso X). A novidade veio no sistema abstrato de controle, que quase se transformou numa ação popular de inconstitucio-nalidade. De fato, ao lado da ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual (art. 102, I, a, da CF), foi criada a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, § 2º, da CF) a fim de tornar efetiva norma constitucional. Criou-se, ainda, a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (Parágrafo Único do art. 102 do Texto original da CF 1988). Surgiu, também, um defensor do texto legal impugnado nas ações diretas de inconstitucionalidade: a Advocacia--Geral da União, criada pela Constituição de 1988 (art. 103, § 3º).

A ampliação do leque de legitimados à propositura das ações diretas de inconstitucionalidade (art. 103), todavia, é que provocou significa-tiva mudança no sistema de controle brasileiro. Até 1988, apenas o Procurador-Geral da República era legitimado a provocar a jurisdição constitucional por via de ação no Supremo Tribunal Federal. Isso ensejou profundos debates doutrinários sobre a natureza desse poder do Procurador-Geral, se vinculado ou discricionário. Prevaleceu, no Supremo Tribunal Federal, a tese de que o Procurador tinha o poder de decidir se e quando ofereceria a representação para aferição da constitu-cionalidade da lei.7 O Constituinte de 1988 identificou esse poder como abusivo e ofereceu como resposta a ampliação o leque dos legitimados à propositura das ações diretas.

Essa ampliação dos legitimados mudou o panorama de fiscalização de controle da constitucionalidade das leis brasileiro. Se até a Consti-tuição de 1988, o Procurador-Geral da República no monopólio da ação direta não provocou alteração profunda no sistema de controle difuso,

7 MENDES, Gilmar. Controle... p. 74

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a partir daí, as principais controvérsias constitucionais passaram a ser submetidas ao Supremo Tribunal Federal mediante controle abstrato de normas. A conclusão a que chega Mendes (2009, 86 e 87) é que tal me-dida acabou por restringir, de maneira radical, a amplitude do controle difuso de constitucionalidade porque transformou o controle abstrato no principal meio de impugnação judicial da constitucionalidade das leis. É intuitivo lembrar que os novos legitimados à propositura das ações diretas exercem com assiduidade esse poder-dever que a Constituição Federal lhes concedeu.8 Como conseqüência, o controle abstrato é, hoje, o principal meio de fiscalização da constitucionalidade das leis no direito brasileiro.

Posteriormente, em 1993, o Constituinte introduziu a Ação Declara-tória de Constitucionalidade (Emenda Constitucional 3/93), encarregando o Supremo Tribunal Federal de seu processamento e julgamento (art. 102, inciso I, “a”), e com um rol mais restrito de legitimados à sua propositura do que a ação direta de inconstitucionalidade (antigo parágrafo 4º do art. 103). Importante acrescer que a Emenda 3/93 incluiu expressamente no corpo da Constituição Federal (§ 2º do art. 102) aquilo que já era pacífico na doutrina e na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (pelo menos desde 1977): as ações diretas têm eficácia contra todos.9 Ainda agregou efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo.

A reforma mais profunda ao Texto de 1988, no entanto, veio com a Emenda Constitucional nº 45/2004. No âmbito das ações diretas, ampliou-se a legitimação para a propositura da Ação Direta de Constitu-cionalidade, autorizando os mesmos legitimados à propositura da Ação Direta de Inconstitucionalidade à impugnação do texto legal diretamente no Supremo Tribunal Federal. Os efeitos vinculantes dessas ações, por

8 Conforme dados estatísticos (MENDES, Gilmar Ferreira. Controle Concentrado de Constitucionalidade... cit. p. 88 e 89), das 3.998 ações diretas ajuizadas no STF até Dezembro de 2007, 1.031 foram propostas pelos Governadores de Estado, 882 pelo Procurador-Geral da República, 697 por Partidos Políticos e 838 por Confederação Sindical ou Entidade de Classe. 9 MENDES. Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 252.

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determinação expressa do texto (§ 2º do art. 102), passaram a abranger os demais órgãos do Poder Judiciário (conforme já determinava a Emenda 3/93) e também a administração pública direta e indireta nas três esferas de governo. No controle difuso é que houve as mudanças mais signifi-cativas com a introdução do instituto da súmula vinculante (art. 103A), bem como com a introdução de um novo requisito à admissibilidade dos recursos extraordinários: a existência de repercussão geral da matéria discutida nos autos.

Tudo o quanto foi dito demonstra, claramente, que o controle de constitucionalidade brasileiro é misto. Convivem no nosso País os dois sistemas de controle dos atos normativos do Poder Público: o difuso e o concentrado.

1.3 O controle difuso de constitucionalidade O nome difuso decorre da especificidade desse poder ser pulverizado

entre todos os órgãos do Poder Judiciário. O controle difuso, no Brasil, como visto, está presente desde a Constituição Federal de 1891 (art. 53, nº 3º, § 1º, a e b), fruto da proclamação da República. A partir daí, esteve presente em todas as nossas Constituições.

Esse tipo de controle é também chamado de incidental, porque a questão constitucional é, realmente, um incidente no processo. A parte que ingressa com uma demanda pretende ver reconhecida a inconstitucio-nalidade de determinada lei porque o direito que ela supõe ter está sendo ofendido pela “lei inconstitucional” (ou ato normativo). O demandante não tem, nesse sistema, a legitimidade de questionar a inconstituciona-lidade de determinado ato normativo do poder público se esse ato não ferir algum direito seu. O juiz (ou tribunal) não pode, nesse sistema, apreciar causa cujo pedido único seja a declaração ou o reconhecimento da inconstitucionalidade de determinado ato normativo do Poder Público, porquanto a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de uma lei é uma questão que, superada, autoriza o juiz a julgar procedente ou im-procedente o pedido, concedendo ou rejeitando ao autor da ação o bem da vida buscado em juízo.

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O sistema difuso é exercido por todos os Juízes e Tribunais. No que tange aos Tribunais, há necessidade da observância do princípio da reserva de Plenário. Isso significa que, a Turma Julgadora, reconhecendo que existe uma questão constitucional a ser resolvida, deve suspender o julgamento do processo e remeter a questão ao Pleno do Tribunal para ser apreciada. O julgamento vincula a Turma, que passará ao exame do processo considerando o resultado do julgamento do Plenário.

Esse sistema de controle está profundamente arraigado na tradição constitucional brasileira. Até o advento da Constituição Federal atual, como já enfatizado, era o principal modelo de controle de constitucio-nalidade que havia no País. É o modelo sem dúvida mais democrático de tomada de decisões: ouvem-se os advogados, promotores, juízes, desembargadores, procuradores de justiça, ministros. A questão que tramita no controle difuso de constitucionalidade é examinada por todas as instâncias do Poder Judiciário, com a intervenção da sociedade (via Ministério Público) e das partes (via advogados).

A questão constitucional é debatida em várias instâncias judiciais por uma multiplicidade de operadores do direito com infinidade de ar-gumentos contrários e favoráveis ao texto impugnado. Assim, quando o Supremo Tribunal Federal se debruça sobre o recurso extraordinário oriundos das mais diversas localidades do País para examinar a questão constitucional, pode-se afirmar tranqüilamente que a questão já está completamente madura na comunidade jurídica. As dimensões de con-tinente e de população de nosso País facilitam a repetição das questões jurídicas, o que permite ao Supremo Tribunal, no julgamento das questões constitucionais, examinar vários recursos extraordinários que veiculam a mesma questão constitucional antes de dar a palavra final sobre o assunto, interpretando final e conclusivamente o Texto Magno.

Percebe-se, ainda, que esse sistema de controle enseja uma parti-cularidade especial ao texto impugnado: permite que seja feito o teste concreto de sua incidência na vida das pessoas afetadas pelo normativo acoimado de inconstitucional. É possível, ao Supremo Tribunal, quando do exame da questão no controle difuso, avaliar exatamente a extensão dos benefícios e dos prejuízos que a aplicação do normativo acarreta na

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vida das pessoas ou das instituições. É por isso que a decisão do Supre-mo, nesse sistema, deveria ser pacificadora, já que, amplamente ouvida a sociedade, cumpre ao intérprete máximo da Constituição estabelecer o entendimento que melhor se ajusta à Carta Política.

É por isso que não deixa de ser estranha a opção do constituinte, da doutrina e da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (esse último até recentemente) de agregar efeitos tão-somente individuais à decisão que a declara a inconstitucionalidade nesse tipo de fiscalização de constitucionalidade. De fato, de acordo com a tradição brasileira, a única possibilidade da decisão prolatada no caso concreto ser válida para todos é a sua suspensão pelo Sendado. Após o julgamento da matéria pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, pode o Senado da Repúbli-ca suspender os efeitos da lei reconhecida como inconstitucional, com eficácia erga omnes (art. 52, inciso X, da CF). Essa realidade está mu-dando, especialmente após a Emenda 45/2004, que trouxe uma novidade normativa a esse sistema: a edição de súmula, pelo Supremo Tribunal Federal, com efeitos vinculantes (art. 103-A da Constituição Federal). Ainda, outra novidade no campo jurisprudencial nesse controle difuso é a vinculação aos motivos determinantes do julgado da Corte Suprema, conforme será analisado mais adiante.

1.4 O controle concentrado de constitucionalidade O controle de constitucionalidade concentrado no Brasil nasce em

1934 no bojo das chamadas ações interventivas, embora sua previsão constitucional como ação direta se dê apenas com a Emenda Constitu-cional nº 16/65. Pressupõe que a questão constitucional seja apreciada e decidida por um único órgão jurisdicional, no caso, o Supremo Tribunal Federal. A denominação do sistema como concentrado diz com a centra-lização do poder de decidir em um único órgão e a referência a abstrato decorre da inexistência de questão de direito subjacente a ser examinada. O objeto da decisão é, apenas, a declaração da constitucionalidade ou inconstitucionalidade da lei. Aqui, ao contrário do sistema difuso, não existe exame do direito subjetivo, porque não há partes no controle con-

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centrado. O que há são legitimados à propositura da ação no Supremo Tribunal Federal (art. 103 da CF). A decisão da Corte Suprema tem eficá-cia vinculante aos órgãos do Poder Judiciário e efeitos erga omnes. É da essência desse sistema, que não conhece partes, a atribuição dessa eficácia vinculante, sob pena de sua atividade ficar resumida a mero exercício de raciocínio acadêmico dentro da jurisdição constitucional. De fato, se o processo do controle abstrato de normas não conhece partes, a carência de efeitos erga omnes desobrigaria qualquer pessoa ao cumprimento da decisão, já que ninguém ficaria atingido pelos efeitos da coisa julgada.

Não obstante seja amplamente aceita a idéia de que as decisões da Corte tenham essa eficácia vinculante (aliás, como visto, a Constituição Federal deixou isso expresso no seu Texto, com a Emenda 3/93), no pas-sado recente houve questionamentos, os quais foram pacificados apenas a partir de 1974/1975, quando o próprio Supremo começou a definir a sua doutrina da eficácia erga omnes da declaração de inconstitucionalidade prolatada no controle abstrato de normas.10

A maneira de provocar o Supremo Tribunal Federal no sistema con-centrado, já que esse poder não pode ser exercido de ofício pela Corte (princípio da inércia do Poder Judiciário), é através de ações. Os instru-mentos previstos pela Constituição Federal para a realização do controle objetivo de normas são: a Ação Direta de Inconstitucionalidade, a Ação Direta de Consititucionalidade, a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão e, ultimamente, a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, regulamentada pela Lei nº 9.882/99.

Salienta MENDES11 que o controle abstrato de normas nas Cartas Constitucionais de 1946, após a Emenda nº 16/65, e de 1967/1969 preencheu uma função supletiva corretiva do modelo difuso, porque permitiu a fiscalização de constitucionalidade de normas via ação dire-

10 MENDES. Gilmar Ferreira. Moreira Alves e o Controle de Constitucionalidade no Brasil. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2000, p. 37 a 45. 11 MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENDES, Gilmar. Controle Concentrado de Constitucionalidade: comentários à Lei n. 9.868, de 10-11-1999, 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p. 84 e 85.

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ta, que jamais teriam sua constitucionalidade examinada pelo Supremo Tribunal, por não serem aptas a ser submetidas como questão preliminar numa controvérsia concreta. Além disso, aponta a função corretiva que o controle desempenhou no sentido de superar brevemente a situação de insegurança jurídica decorrente da multiplicidade e contrariedade de julgados proferidos por diferentes juízos ou tribunais sobre a mesma matéria. Todavia, salienta o autor:12

O maior mérito da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sob o império das Constituições de 1946 (Emenda nº 16, de 1965) e de 1967/1969, está relacionado com a definição da natureza jurídico--processual do processo de controle abstrato. A identificação da natureza objetiva desse processo, a caracterização da iniciativa do Procurador-Geral da República como simples impulso processual e o reconhecimento da eficácia erga omnes das decisões de mérito proferidas nesses processos pelo Supremo Tribunal Federal confi-guraram, sem dúvida, conquistas fundamentais para o mais efetivo desenvolvimento do controle de constitucionalidade no Brasil.

O característico de todas essas ações é a possibilidade de excluir do ordenamento jurídico determinada lei ou determinados dispositivos normativos por ação de um único órgão julgador. Não é, portanto, um sistema democrático (aberto) de tomada de decisões, como o difuso. Pelo contrário, apenas ultimamente passou-se a admitir a existência de “amicus curiae” e nomeação de peritos nessa espécie de controle (Lei nº 9.868/99, art. 9º). Essas inovações foram importantes porque possi-bilitaram uma abertura que antes não havia nesse sistema de controle: a possibilidade da sociedade ser ouvida no Supremo nas questões que afetam diretamente a vida dos cidadãos.13 Tradicionalmente, laboravam

12 Idem, p. 84 a 85 13 Recentemente, no julgamento da ADPF nº 4-1/DF, que tratou do caso da utilização das células-tronco para fins de pesquisas, o Supremo possibilitou ampla discussão da sociedade mediante audiências públicas nas quais foram ouvidos geneticistas, reli-giosos, deficientes, etc. Mostra a importância do instituto do “amicus curiae” na solução de questões para as quais não se envolve, unicamente, conhecimento jurídico, mas, especialmente, conhecimento científico.

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nesse sistema de controle apenas o Procurador-Geral da República e o Supremo Tribunal Federal. Ninguém mais. A partir da Constituição Fe-deral de 1988 a Advocacia Geral da União também passou a participar do sistema com a obrigação de defender o texto impugnado (art. 103, § 3º, da CF) e o leque dos legitimados à propositura da ação aumentou significativamente (art. 103 da CF).

Todavia, mesmo com a adoção do instituto do “amicus curiae” ou com a possibilidade de serem nomeados peritos, apesar do controle possibilitar essas aberturas para a participação da sociedade, o fato é que apenas em um número extremamente pequeno de ações isso, de fato, acontece. O que comumente ocorre é a decisão monocrática do Relator suspendendo (ou não) a eficácia do texto legal impugnado, ou seja, uma decisão monocrática, sem a oitiva do Plenário do Supremo, sem a oitiva da Advocacia-Geral da União, do Ministério Público Federal, enfim, quase sempre sem a participação da sociedade. Esse sistema de decisões concentradas, como já mencionado, a partir da Constituição Federal de 1988, é o principal meio de controle de constitucionalidade das leis no Brasil. O curioso disso é que, não obstante a quase total ausência de debate nesse sistema concentrado, sejam seus efeitos vinculantes tão pacificamente aceitos pela comunidade jurídica em geral.

Efetivamente, no controle concentrado, ao contrário do difuso, a questão constitucional é levada, imediatamente, ao conhecimento da Corte Constitucional para que a decida com efeitos vinculantes. Inexiste, aqui, aquilo que facilmente se verifica no controle difuso: a multiplici-dade de opiniões a respeito do texto normativo impugnado. A pretexto de pacificar as controvérsias a respeito da aplicação da lei impugnada de inconstitucional, o sistema permite à Corte Suprema que, de maneira açodada, decida desde logo sobre sua constitucionalidade. Não há chan-ces, ao contrário do que ocorre no sistema difuso, do texto impugnado passar pelo teste de aplicabilidade nas relações jurídicas em geral.

Não se advoga, aqui, a extirpação do controle concentrado de cons-titucionalidade. Pelo contrário, o que se busca é apontar a incongruência de não se aceitar efeitos semelhantes ao controle concentrado às decisões tomadas no controle difuso pelo intérprete Supremo da Carta Constitucio-

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nal. A opção parece indiscutivelmente equivocada: em vez de privilegiar com eficácia erga omnes e efeitos vinculantes as decisões em que a socie-dade foi, de fato, ouvida por seus interlocutores (advogados, pareceristas, promotores, juízes, desembargadores) prefere-se agregar tais efeitos, tão somente, às decisões tomadas, no mais das vezes, por um único membro do Tribunal; em vez de conceder aqueles efeitos às decisões tomadas de-pois de amadurecida a questão constitucional no seio da comunidade, com ampla possibilidade de verificação dos efeitos (maléficos ou benéficos) da norma impugnada, alcançam-se efeitos gerais às decisões que afastam, peremptoriamente, a norma impugnada do Ordenamento Jurídico.

2 OS EFEITOS VINCULANTES NO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE NO BRASIL

O sistema de controle de constitucionalidade brasileiro conhece duas possibilidades de concessão de efeitos vinculantes às decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal no controle difuso de constitucionalida-de, quais sejam, a suspensão da eficácia pelo Senado da República e a súmula vinculante. Além dessas duas possibilidades, expressas no Texto Constitucional, doutrina e jurisprudência estão desenvolvendo uma terceira via, qual seja, a chamada eficácia transcendente dos motivos determinantes da decisão. Cada uma dessas modalidades de concessão de efeitos vinculantes será examinada a seguir. Relativamente a essa última modalidade, que é novidade no Brasil, o estudo contemplará os antecedentes históricos, o conceito de efeito vinculante, a aproximação entres os dois sistemas de fiscalização de constitucionalidade e o pro-blema da dispersão de votos nos acórdãos, o que dificulta a identificação do holding (ou ratio decidendi) do julgado.

2.1 A suspensão da eficácia pelo Senado (art. 52, inciso X, da CF) A tradição constitucional brasileira, como já mencionado, con-

templa, entre as competências privativas do Senado da República a suspensão da execução do ato declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Essa suspensão teria o condão, segundo doutrina

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avalizada14, de conferir efeitos erga omnes à decisão da Corte Suprema proferida no caso concreto.

Debateu-se na doutrina e jurisprudência sobre as possibilidades do Senado diante da decisão do Supremo, como por exemplo, se seu poder era vinculado ou discricionário, se poderia revogar o ato que suspendeu a execução da lei, ou se poderia limitar a extensão da decisão do STF. Tais questões ficaram resolvidas ainda no regime da Constituição anterior. Assim, embora se trate de atividade discricionária do Senado Federal, uma vez publicado o ato que suspende a execução da lei não poderia ele voltar atrás e revogar o ato. Ainda, no exercício dessa sua função, deveria a Alta Câmara do Congresso Nacional ater-se à extensão do julgado pela Corte Constitucional, não dispondo de competência para examinar o mérito do decidido, seja para interpretá-lo, para ampliá-lo ou para restringi-lo.15

Já sob a égide da Constituição em vigor, sustenta Mendes (2008, 263) que o instituto tem, hoje, índole exclusivamente histórica. Justifica que a amplitude que a Carta Constitucional de 1988 deu às ações diretas, com possibilidade de suspensão liminar do ato impugnado no controle objetivo de normas, acabou por ocasionar uma verdadeira mutação constitucional (reforma da constituição sem expressa modificação do texto). Sustenta o autor que o instituto da suspensão já não atende adequadamente ao objetivo de assegurar a eficácia erga omnes às decisões da Corte. Isso se daria nos casos em que o Tribunal, por exemplo, fixa uma interpre-tação mais adequada do texto impugnado sem que seja declarada a sua inconstitucionalidade. Ainda, quando restringe o significado de uma expressão literal do texto, utilizando a técnica da interpretação confor-me à constituição. Por fim, quando se declara a inconstitucionalidade parcial sem redução do texto, nos quais se explicita que um significado normativo é inconstitucional, sem que a expressão literal sofra qualquer alteração. Igualmente, nos casos do direito pré-constitucional. Em todas essas situações não haveria espaço para aplicar o histórico instituto.

14 SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 3 ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p. 415. 15 MENDES, Gilmar Ferreira. O papel do Senado Federal no controle federal de cons-titucionalidade. Um caso de mutação constitucional. Revista de Informação Legislativa n. 179, Brasília, 2008, p. 262.

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Outro importante fator que tem ajudado para tornar obsoleto o siste-ma da suspensão da eficácia pelo Senado, segundo o autor, foi a evolução da jurisprudência do Supremo Tribunal que tem, gradativamente, equi-parado os efeitos dos controles concentrado e difuso. Mendes identifica essa particularidade na jurisprudência que se fixou a respeito do art. 97 da Constituição, que trata do princípio da reserva de plenário16. O Su-premo dispensa, desde 1997, as Cortes inferiores de enfrentar a questão constitucional pelo respectivo Plenário quando o Supremo Tribunal já tiver se pronunciado sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da lei questionada. Veja-se o que diz o autor:17

Esse entendimento marca uma evolução no sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, que passa a equiparar, pratica-mente, os efeitos das decisões proferidas nos processos de controle abstrato e concreto. A decisão do Supremo Tribunal Federal, tal como colocada, antecipa o efeito vinculante de seus julgados em matéria de controle de constitucionalidade incidental, permitindo que o órgão fracionário se desvincule do dever de observância da decisão do Pleno ou do Órgão Especial do Tribunal a que se en-contra vinculado. Decide-se autonomamente com fundamento na declaração de inconstitucionalidade (ou de constitucionalidade) do Supremo Tribunal Federal proferida incidenter tantum.

Outras inovações fruto de alterações na legislação processual também contribuem para a não-utilização da cláusula de suspensão da execução da lei inconstitucional pelo Senado. Assim, o art. 557, caput e § 1º-A, do CPC,18 permite ao relator dar provimento ao recurso se a

16 O art. 97 da CF diz o seguinte: “Somente pelo da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconsti-tucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público”. 17 MENDES, Gilmar Ferreira, O papel do Senado ..., p. 266.18 O artigo diz o seguinte: “Art. 557. O relator negará seguimento a recurso manifes-tamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior. § 1.-A. Se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior, o relator poderá dar provimento ao recurso”.

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decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com a jurisprudência dominante do respectivo tribunal ou do STF ou STJ. Aqui também era espaço próprio para aplicação da suspensão da execução pelo Senado, já que se tratam de decisões prolatadas no sistema difuso de constitucionalidade.

Acrescenta, ainda, Mendes (2008, 270), que, recentemente, a juris-prudência do Supremo vem desenvolvendo, relativamente ao controle de constitucionalidade de leis municipais, postura inovadora, ao conferir não apenas ao dispositivo da decisão, mas também aos seus fundamentos, efeitos que ultrapassam a ação individual. E tem feito isso autorizado pelo art. 557, caput e § 1º-A, do CPC, aplicando a decisão do Plenário a outras situações idênticas oriundas de municípios diversos19. Em todos esses casos, cada uma das ações dos mais diversos Municípios deveria ser conhecida e julgada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, mas os Relatores aplicaram, em todos eles, o precedente firmado pelo Plenário em cada uma das matérias objeto dos recursos e julgaram os recursos extraordinários sem levá-los ao Plenário. Conclui o autor20: “Tal procedimento, evidencia, ainda que de forma tímida, o efeito vinculante dos fundamentos determinantes da decisão exarada pelo Supremo Tri-bunal Federal no controle de constitucionalidade do direito municipal. Evidentemente, semelhante orientação só pode vicejar caso se admita que a decisão tomada pelo Plenário seja dotada de eficácia transcendente, sendo, por isso, dispensável a manifestação do Senado Federal”.

A posição defendida por Mendes é firmemente criticada por Lênio Streck21 ao sustentar a participação do Senado da República no controle

19 Gilmar Mendes cita vários julgados do STF em que isso ocorreu: RE 228.884, Rel. Ministro Maurício Correa, DJ de 16-6-1999; RE 221.795, Rel. Min. Nelson Jobim, DJ de 16-11-2000; RE 364.160, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 7-2-203; AI 423.252, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 15-4-2003; RE 345.048, Rel. Min. Sepúlveda Pertende, DJ de 8-4-2004; RE 384.521, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 30-5-2003.20 MENDES, Gilmar Ferreira. O papel do Senado Federal ..... p. 271. 21 STRECK, Lênio Luiz; OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de; LIMA, Marcantonio Mont’Alverne Barreto. A Nova Perspectiva do Supremo Tribunal Federal sobre o Controle Difuso: Mutação constitucional e Limites da Legitimidade da Jurisdição Constitucional. Disponível em <www.leniostreck.com.br>, acesso em 29.04.2009, p. 7 e 8.

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difuso de constitucionalidade como seu legitimador democrático. Ainda, diz que a atribuição de efeitos vinculantes às decisões do STF em con-trole difuso fere os princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, pois “se pretende atingir aqueles que não tiveram garantido o seu direito constitucional de participação nos processos de tomada da decisão que os afetará. (...) Eis, portanto, um problema central: a lesão a direitos fundamentais”. Em outro ponto (p. 19), o autor menciona:

Não se pode deixar de frisar, destarte, que a mutação consti-tucional apresenta um grave problema hermenêutico, no mínimo, assim como também de legitimidade da jurisdição constitucional.

Com efeito, a tese da mutação constitucional é compreendida mais uma vez como solução para um suposto hiato entre o texto constitucional e a realidade social, a exigir uma ‘jurisprudência cor-retiva’, tal como aquela que falava Büllow, em fins do século XIX (vejase, pois, o contexto histórico): uma jurisprudência corretiva desenvolvida por juízes éticos, criadores do Direito (Gesetz und Richteramt, Leipzig, 1885) e atualizadores da constituição e dos supostos envelhecimentos e imperfeições constitucionais; ou seja, mutações constitucionais são reformas informais e mudanças cons-titucionais empreendidas por uma suposta interpretação evolutiva.

E conclui (p. 28 e 29):

Nessa linha, a decisão do Supremo Tribunal Federal, por mais que esteja imbuída de um sentido pragmático e sustentada na me-lhor ciência jurídica, pode (e, certamente assim será) representar uma afirmação do imaginário jurídico que justamente levou àquilo que hoje é combatido: o excesso de recursos e a multiplicação das demandas. Se o Supremo Tribunal Federal pode fazer mutação constitucional, em breve essa “mutação” começará a gerar – como se já não existissem à saciedade - os mais diversos frutos de cariz dis-cricionário (portanto, positivista, no sentido em que Dworkin critica as teses de Hart). Exatamente porque no Brasil cada um interpreta como quer, decide como quer e recorre como quer (e isso parece recorrente na cotidianidade dos fóruns e tribunais da República), é que faz com que cresçam dia-a-dia as teses instrumentalistas do

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processo, como que a mostrar, a todo instante, que as teses de Oscar Von Büllow não foram (ainda) superadas. A solução tem sido essa: corte-se o acesso à justiça. Sob pretexto de agilizarmos a prestação jurisdicional, criamos mecanismos para impedir o processamento de recursos. E quem perde com isso é a cidadania que vê assim negada a jurisdição.

Chama a atenção, no posicionamento de Lênio Streck, o argumento de que o inciso X do art. 52 da Constituição Federal seria o legitimador democrático das decisões do Poder Judiciário. Aceita essa concepção, a conclusão inafastável seria a quase total falta de legitimação democrática das decisões do Poder Judiciário, por quaisquer de seus Órgãos. Isso porque o papel do Senado no controle de constitucionalidade no Brasil, apesar de histórico, nunca foi expressivo22. Pelo contrário, apenas em limitadíssimas questões constitucionais o Senado editou ato suspendendo a eficácia de lei declarada inconstitucional pelo Supremo.

A propósito da inclusão desse instituto da suspensão na Carta Cons-titucional de 1934, ZAVASCKI (2001, p. 31) esclarece quais motivos impulsionaram o Deputado (e, depois, Ministro do Supremo) Prado Kelly a apresentar a proposta:

A jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal nega-va a extensão a outros interessados dos efeitos de suas decisões. O julgado estava, como é de communis opinio, adstrito à questão focalizada pela Corte. Só em habeas corpus (impetrado o primeiro deles pelo Conselheiro Rui Barbosa, para assegurar a liberdade de reunião em praça pública) se admitiu a extensão da medida erga omnes. Então, acudia naturalmente aos estudiosos dos fatos jurídicos a conveniência de instituir-se meio adequado à pronta suspensão

22 Conforme consulta no domínio virtual do Senado, o número de Resoluções editadas com base no inciso X do art. 52 da Constituição Federal de 1988 foi o seguinte: 1989: três; 1990: quatro; 1991: quatro; 1993: três; 1995: doze; 1996: seis; 1997: três; 1999: onze; 2005: quarenta e cinco; 2006: sete; 2007: dezesseis; 2008: quatro. Nos anos de 1992, 1994, 1998, 2000, 2001, 2002, 2003, 204 e 2009 (até 10.05.09): nenhuma. Fonte: <http://www.lexml.gov.br/busca/search?autoridade=Senado%20Federal;tipoDocumento=Resolu%C3%A7% C3%A3o;smode=advanced;f1-date=2009;startDoc=21> Acesso em 10.05.09.

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dos efeitos, para terceiros, das leis e regulamentos declarados in-constitucionais pela Suprema Corte. Foi uma inspiração de ordem prática. Mas a fórmula adotada pelo Constituinte de 1934 obedecia, ainda, a razões de ordem técnica. O regulamento, a lei, podiam provir da União, dos Estados-Membros ou dos Municípios. Se se aguardasse a revogação, para alcance geral, de norma eivada de inconstitucionalidade, escaparia ao Legislador Federal o ensejo, em muitos casos, de corrigir os defeitos estranhos à sua competência, como, por exemplo, os da órbita estadual ou municipal.

Portanto, a adoção do instituto guarda relação com razões de ordem prática e técnica, sem representar, necessariamente, participação popular no processo decisório do Poder Judiciário. É que a legitimação do Po-der Judiciário decorre diretamente da Constituição, como ensinado por Alexander Hamilton há mais de 200 anos, no texto nº 78 dos Federalist Paper’s. Confira-se extrato do texto:

Relativamente à competência das cortes para declarar nulos determinados atos do Legislativo, porque contrários à Constituição, tem havido certa surpresa, partindo do falso pressuposto de que tal prática implica em uma superioridade do Judiciário sobre o Legisla-tivo. Argumenta-se que a autoridade que pode declarar nulos os atos de outra deve necessariamente ser superior a essa outra. Uma vez que tal doutrina é muito observada em todas as Constituições americanas, convém uma breve análise de seus fundamentos.

Não há posição que se apóie em princípios mais claros que a de declarar nulo o ato de uma autoridade delegada, que não esteja afinada com as determinações de quem as delegou essa autoridade. Conseqüen-temente, não será válido qualquer ato legislativo contrário à Constitui-ção. Negar tal evidência corresponde a afirmar que o representante é superior ao representado, que o escravo é mais graduado que o senhor, que os delegados do povo estão acima do próprio povo, que aqueles que agem em razão de delegações de poderes estão impossibilitados de fazer não apenas o que tais poderes não autorizam, mas sobretudo o que eles proíbem.

Se se imaginar que os congressistas devem ser os juízes constitucionais de seus próprios poderes e que a interpretação que eles decidirem será obrigatória para os outros ramos do governo,

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a resposta é que esta não pode ser a hipótese natural, por não ter apoio em qualquer dispositivo da Constituição. Por outro lado, não é de admitir-se que a Constituição tivesse pretendido habilitar os representantes do povo a sobreporem a própria vontade à de seus constituintes. É muito mais racional supor que as cortes foram destinadas a desempenhar o papel de órgão intermediário entre o povo e o legislativo, a fim de, além de outras funções, manter este último dentro dos limites fixados para sua atuação. O campo de ação próprio e peculiar das cortes se resume na interpretação das leis. Uma Constituição é, de fato, a lei básica e como tal deve ser considerada pelos juízes. Em conseqüência, cabelhes interpretar seus dispositivos, assim como o significado de quaisquer resolu-ções do Legislativo. Se acontecer uma irreconciliável discrepân-cia entre estas, a que tiver maior hierarquia e validade deverá, naturalmente, ser a preferida; em outras palavras a Constituição deve prevalecer sobe a lei ordinária, a intenção do povo sobre a de seus agentes.

Todavia, essa conclusão não deve significar uma superioridade do Judiciário sobre o Legislativo. Somente supõe que o poder do povo é superior a ambos; e que, sempre que a vontade do Legis-lativo, traduzida em suas leis, se opuser à do povo, declarada na Constituição, os juízes devem obedecer a esta, não àquela, pautando suas decisões pela lei básica, não pelas leis ordinárias.23

Essa competência privativa do Senado fazia sentido no nosso siste-ma de fiscalização de constitucionalidade quando o modelo difuso era o único existente ou quando o Procurador-Geral da República detinha o monopólio da ação direta de inconstitucionalidade. Daí porque essa fórmula podia, de fato, ser eficaz, para pacificar a questão constitucional já julgada pela Corte Suprema, sem que a ela fosse necessário levar os recursos de todos os interessados. No momento em que o Brasil adota o sistema de constitucionalidade abstrato, o próprio Tribunal Supremo vincula a todos com a sua decisão, independentemente da participação da Alta Casa Legislativa.

23 HAMILTON, Alexander; MADISON, James; e JAY, John. O FEDERALISTA. 2 ed., Campinas: Russel, 2005, p. 471 e 472.

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DAS LEIS NO BRASIL

É certo que a evolução da jurisprudência do Supremo, hoje, pelo que se conhece a respeito das novas técnicas de controle de constitucionalidade,24 apresenta um leque de situações dentro do controle difuso que, ao que parece, a fórmula não mais se ajusta. Ainda, não se pode desconhecer a realidade jurisprudencial brasileira que caminha para a contínua aproximação dos dois tipos de controle de constitucionalidade, o que praticamente esvazia as possibilidades do instituto da suspensão.

Finalmente, a instituição da Súmula Vinculante, instrumento ideali-zado para o sistema difuso de constitucionalidade, igualmente, contribui decididamente para o esvaziamento da fórmula histórica de suspensão da execução pelo Senado. Em vez de comunicar o Senado para a incerta suspensão da execução da lei declarada inconstitucional, o Supremo pode, ele próprio, após decidir reiteradamente determinada questão constitucional, editar enunciado de súmula vinculante.

A obsolescência do instituto se relaciona, portanto, com a sua pou-ca utilização no passado e com a dispensabilidade de sua utilização no presente e isso não se relaciona, de forma alguma, com a legitimação democrática do Poder Judiciário.

2.2 A Súmula Vinculante A chamada Súmula Vinculante se insere dentro do controle difuso

de constitucionalidade e, dentro dele é que deve ser entendida. Como já enfatizado anteriormente, quando o Supremo Tribunal Federal (a corte mais importante do País) julga a questão constitucional que foi recebida via recurso extraordinário (art. 102, inciso III, da CF), está reanalisando a matéria que percorreu todas as instâncias possíveis do Poder Judici-ário e que, nesse percurso, agregou o conhecimento científico de uma multiplicidade de operadores do direito (advogados, juízes, promotores, desembargadores, procuradores de justiça, procuradores da república, ministros). E o absolutamente improvável que aconteça é que o objeto

24 Como já mencionado, o Supremo adota hoje, técnicas que privilegiam a ação do legislador, deixando de anular a lei, por inconstitucional, quando o texto puder ser mantido expurgando as interpretações inconstitucionais que eventualmente ele contenha.

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dessa questão constitucional seja único, num país de dimensões conti-nentais como o Brasil e com grande facilidade de acesso à jurisdição (o número de advogados, juízes e promotores no Brasil é grande, mesmo que o número, proporcionalmente, não seja o adequado ao tamanho da população). Assim, as causas chegam, via controle difuso, às centenas ou aos milhares à Corte Suprema, de sorte que é fácil constatar que, quan-do a Corte Constitucional se debruça sobre uma questão constitucional que foi objeto de centenas ou milhares de recursos extraordinários, essa questão está absolutamente madura no seio da sociedade, pronta para ser definitivamente decidida.

A Súmula Vinculante, assim, objetiva racionalizar os julgamentos do Poder Judiciário relativamente a questões repetitivas, concedendo-se efeitos que superam o caso individual. A alternativa a essa súmula para a concessão de efeitos vinculantes aos julgamentos do Supremo Tribunal Federal no sistema difuso de controle da constitucionalidade, como já afirmado, é a suspensão da eficácia da lei pelo Senado Federal (CF, art. 52, inciso X). Todavia, esse poder, historicamente, não foi exercido pelo Senado, senão em questões pontuais. Além do mais, como já analisado, atualmente, por uma série de conjunturas, entre as quais a própria possibi-lidade de se editar enunciados vinculantes de súmula, o papel do Senado da República no processo de controle de constitucionalidade se tornou obsoleto. A solução da Emenda Constitucional 45/2004 foi a de atribuir ao próprio Poder Judiciário a faculdade de oferecer tais efeitos vinculantes à jurisdição constitucional prestada no controle difuso de constitucionalidade.

Do ponto de vista dogmático, o temor mais sério da comunidade jurídica contrária às chamadas súmulas vinculantes parece ser o do congelamento da jurisprudência.

De fato, as normas jurídicas em geral, e o mesmo acontece com as Constituições, são criadas num determinado momento histórico e tra-zem a marca de seu tempo. É papel da jurisprudência fazer a releitura dessas normas nos períodos históricos seguintes e adequálas à realidade. O enunciado vinculante, de observância obrigatória, de certa forma desafia e obstaculiza o papel reformador da jurisprudência. A superação dessa dificuldade, que pode ser conseguida com o fenômeno da mutação

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constitucional (MENDES, 1990, p. 21 a 25), na realidade constitucional brasileira pode ser alcançado com a revisão do enunciado da súmula (CF. 103-B, § 2º, da CF). A propósito, o próprio texto da Emenda Cons-titucional denota o receio do legislador constituinte com o instituto que estava criando. Talvez por excesso de zelo, talvez pelas críticas que sem-pre acompanharam o debate sobre essa matéria, o fato é que há previsão constitucional para a revisão da súmula, com amplo leque de legitimados (os mesmos que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade). O rito para a edição, revisão e cancelamento do enunciado de súmula vinculante foi disciplinado pela Lei nº 11.417/2006.

O curioso nesse debate sobre súmula vinculante é a contradição em que incorrem seus contestadores. Não se aceita que o próprio Tribunal Constitucional, após examinar centenas de casos idênticos, edite uma súmula que contempla exatamente o que se decidiu reiteradamente nesses julgados. Todavia, não se observa nenhuma oposição para que o Senado Federal, um poder, portanto, não-judicial, suspenda com efeitos erga omnes os efeitos da lei declarada inconstitucional no mesmo controle difuso. E, perceba-se, para o Senado exercer esse seu papel, bastaria que fosse comunicado de um único julgado.

Igualmente, aceita-se pacificamente que, no controle abstrato de constitucionalidade, o Relator da ADI, sozinho, decida suspender a eficácia da lei que considera inconstitucional, com efeitos vinculantes e eficácia erga omnes. Todavia, parte substancial da doutrina não aceita que, após reiterados julgados examinando a mesma questão constitucional, o Intérprete Máximo da Constituição (o Plenário do Supremo Tribunal Federal) edite um enunciado que verbalize seu reiterado entendimento sobre a questão constitucional.

A realidade, todavia, parece ser mais forte do que a fantasia: as decisões do Plenário do Supremo Tribunal Federal no controle difuso encontram ampla aceitação na comunidade jurídica em geral, já que, firmado o precedente pela Alta Corte, sua aplicação nas decisões judiciais subseqüentes é quase total. E é por esse motivo que, sob essa perspectiva, a súmula vinculante não fará grandes transformações no cenário jurídico para o que foi concebida, qual seja, o universo das questões repetitivas.

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2.3 A vinculação pela Eficácia Transcendente dos Motivos Determinantes da Decisão (“Ratio Decidendi” ou “Holding”)

A vinculação dos litigantes aos efeitos das decisões judiciais sempre se deu, no nosso sistema processual, pelo dispositivo das sen-tenças, já que os motivos que levaram o julgador ao resultado (ou seja, a fundamentação), ainda que importantes para a determinar o alcance da parte dispositiva, não produzem coisa julgada (art. 469 do CPC). Essa realidade, contudo, tem sofrido alteração, pelo menos no que se refere às decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal. O que se apregoa, atualmente, é que a decisão do Supremo deixa de atingir apenas o ato declarado inconstitucional, mas fica proibida (a) a reprodução do conteúdo substancial desse ato, (b) a manutenção de outros atos com conteúdo semelhante e (c) a adoção de via interpretativa diversa da acolhida nos julgados do STF.25 A exata compreensão do que está sendo debatido, atualmente, na principal Corte do País, passa pelo exame dos antecedentes históricos da eficácia vinculante das decisões sobre (in)constitucionalidade tomadas pelo STF.

2.3.1 Antecedentes históricos Em minucioso estudo sobre os efeitos vinculantes da jurisdição

constitucional, Roger Stiefelmann Leal (2008, p. 130 a 137) faz exame dos antecedentes históricos do efeito vinculante no Direito Constitu-cional Brasileiro. Inicia com a Constituição de 1891 (art. 59, § 2º), que determinava à Justiça Federal a consulta à jurisprudência dos tribunais locais, nos casos em que tivesse de aplicar leis dos Estados e, igualmente, impunha aos Estados a consulta à jurisprudência dos tribunais federais, quando tivessem de aplicar as leis da União. Prevaleceu, no entanto, o entendimento de que a consulta era obrigatória para fins de esclarecimen-to sobre a legislação, local ou federal, mas que isso não vincularia um ou outro tribunal. Depois, o Decreto nº 23.055/1933 impôs às Justiças dos Estados, do Distrito Federal e do Território do Acre a obrigação de

25 LEAL, Roger Stiefelmann, O Efeito Vinculante na Jurisdição Constitucional. p. 150.

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interpretar as leis da União de acordo com a jurisprudência do STF. Mais recentemente, na década de 70, o Regimento Interno do STF instituiu a Súmula da Jurisprudência Predominante do Supremo Tribunal Federal, estruturadas em verbetes, mas cuja imposição sempre foi meramente persuasiva. No entanto, segundo o autor, tiveram elas, desde o início, efeitos de natureza processual: o Relator poderia arquivar o processo que contrariasse a jurisprudência sumulada pela Corte. Depois, veio o art. 38 da Lei nº 8.038/90 que permitiu ao Relator negar seguimento a recurso que as contrarie, nas questões predominantemente de direito. Ainda, o art. 557 do CPC (na redação de 1998) autorizou a negativa de seguimento a recurso que esteja em confronto com súmula ou jurispru-dência dominante do STF, com possibilidade de provimento monocrático do recurso pelo relator na hipótese da contrariedade ser manifesta de súmula ou jurisprudência dominante do STF.

No controle abstrato de constitucionalidade, conta LEAL, a Emenda 7/77 conferiu ao Supremo o poder de impor sua interpretação dos textos normativos. Foi, contudo, no Regimento Interno do STF, e nas inter-pretações nele fixadas, que ficou estabelecido que a interpretação seria vinculante dada pela Corte Suprema nesse tipo de ações. Conclui o autor (2006, p. 138) que “dentre os antecedentes históricos destacados neste item, é a força vinculante das decisões proferidas em sede de representa-ção interventiva o instituto que mais se aproxima do efeito vinculante”. Com a Emenda 3/93, que instituiu a Ação Direta de Constitucionalidade, houve expressa base constitucional a respeito da eficácia erga omnes e efeitos vinculantes relativamente aos demais Órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo. A Lei nº 9.868/99, que regulamentou essa emenda, estendeu o efeito vinculante ali mencionado à Ação Direta de Inconsti-tucionalidade, o que era reconhecido pela jurisprudência do Supremo. Logo após, foi publicada a Lei nº 9.882/99, que dispõe sobre o processo e julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental, instrumento de controle abstrato de constitucionalidade, que tem caráter subsidiário aos demais existentes, dotado de eficácia contra todos e efeito vinculante aos demais órgão do poder público. Finalmente, a Emenda 45/2004, que consagrou em âmbito constitucional os efeitos vinculantes

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à Ação Direta de Inconstitucionalidade, os quais passaram a ser produ-zidos aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta. A inovação foi a instituição do chamado efeito vincu-lante às súmulas do Supremo Tribunal Federal que consubstanciarem entendimentos reiterados da Corte em matéria constitucional. Esclarece LEAL26 que “pela primeira vez, desde sua incorporação à ordem jurídica brasileira, o efeito vinculante é conferido sem que também se atribua expressamente eficácia contra todos”. O autor salienta, também, que o art. 103-A romperia, em parte, com a concepção de raiz européia que inspira o instituto, porque estende efeitos vinculantes a decisões adotadas fora do controle abstrato de constitucionalidade.

2.3.2 Efeito Vinculante e Eficácia Contra Todos (“erga omnes”) A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal foi responsável por

atribuir às decisões de constitucionalidade proclamadas no controle abstrato a qualidade de coisa julgada material oponível contra todos (eficácia erga omnes). Desenvolve, LEAL, a partir daí, inteligente ra-ciocínio partindo da diferenciação dos conceitos de eficácia contra todos e efeitos vinculantes, chegando à conclusão de que apenas a eficácia contra todos estaria protegida da imutabilidade da coisa julgada, já que, no nosso sistema, por expressa disposição legal, os motivos da decisão não são imutáveis (art. 469 do CPC). Parte o autor da constatação de que os próprios textos normativos que consagram o efeito vinculante o dissociam da eficácia contra todos, porquanto empregam sempre a con-junção aditiva “e” quando tratam dos institutos (os textos normativos falam eficácia contra todos e efeito vinculante). Sendo conceitos distintos, a imutabilidade do decisum decorrente da coisa julgada protege apenas o que foi decidido contra todos (a imutabilidade da coisa julgada fica agregada, tão-somente à eficácia erga omnes do dispositivo), mas não impede a renovação ou reiteração material do ato por outro instrumento de mesma estatura. Para ele, o que garante a impossibilidade da reno-

26 LEAL, Roger Stiefelmann. O Efeito Vinculante na Jurisdição Constitucional...... p. 144.

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vação material do ato, são justamente os efeitos vinculantes, os quais se encontram na fundamentação das decisões, mais precisamente, na ratio decidendi subjacente ao julgado. Confiram-se suas palavras:27

Descabe, assim, interpretar que o efeito vinculante implica a imposição contra todos da sentença final constante da parte disposi-tiva da decisão proferida. A vinculação da parte dispositiva, por ser efeito extraído da qualidade de coisa julgada não pode, logicamente, corresponder ao conteúdo do efeito vinculante. (...)

Resta, portanto, compreender o efeito vinculante como instituto voltado a tornar obrigatória parte da decisão diversa da dispositiva aos órgãos e entidades relacionados no texto normativo. Assim, seu objeto transcende o decisum em sentido estrito, alcançando os seus fundamentos determinantes, a ratio decidendi subjacente ao julgado. Da vinculação aos fundamentos determinantes da decisão decorre, a exemplo dos demais países que adotam o efeito vincu-lante, a vedação aos seus destinatários de reproduzir em substância o ato declarado inconstitucional, de manter outros atos de conteúdo semelhante e de adotar via interpretativa diversa da acolhida nos julgados do Supremo Tribunal Federal em sede de controle principal de constitucionalidade. (...)

Sabe-se que a parte dispositiva cuida apenas e tão-somente de expressar o resultado decisório da ação definindo, no caso de conhecimento da ação de constitucionalidade, se o ato questionado – e não apenas ele – é constitucional ou inconstitucional. Eventual identidade de atos, quanto a suposto vício de inconstitucionalidade apontado, somente pode ser detectada a partir da ratio decidendi que fundamenta a decisão. Significa dizer que o efeito de impor a eliminação de atos normativos de igual conteúdo e a vedação de reiteração material do ato inconstitucional somente pode ser aferido mediante o cotejo desses outros atos com os fundamentos determinantes da decisão, e não com a sua parte dispositiva.

A possibilidade do legislador editar norma de teor idêntico ao daquela declarada inconstitucional pelo Supremo é objeto das reflexões, também,

27 LEAL, Roger Stiefelmann. O Efeito..... p. 149 a 151.

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de Gilmar Ferreira Mendes. Salienta esse autor28 que a doutrina alemã tem firme orientação segundo a qual a eficácia erga omnes – tal como a coisa julgada – abrange a parte dispositiva da decisão. Assim, a nova lei não estaria abrangida pela força de lei do julgado. Diz, todavia, que eficácia erga omnes e efeitos vinculantes são coisas diversas. Confiram--se suas palavras (constantes do Projeto de Emenda Constitucional nº 130/92, que se transformou na Emenda 3/93):29

Além de conferir eficácia “erga omnes” às decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle de constitu-cionalidade, a presente proposta de emenda constitucional introduz no direito brasileiro o conceito de efeito vinculante em relação aos órgãos e agentes públicos. Trata-se de instituto jurídico desenvolvido no Direito processual alemão, que tem por objetivo outorgar maior eficácia às decisões proferidas por aquela Corte Constitucional, asse-gurando força vinculante não apenas à parte dispositiva da decisão, mas também aos chamados fundamentos ou motivos determinantes (tragende Gründe).

A declaração de nulidade de uma lei não obsta à sua reedição, ou seja, a repetição de seu conteúdo em outro diploma legal. Tan-to a coisa julgada quanto a força de lei (eficácia erga omnes) não lograriam evitar esse fato. Todavia, o efeito vinculante, que deflui dos fundamentos determinantes (tragende Gründe) da decisão, obriga o legislador a observar estritamente a interpretação que o tribunal conferiu à Constituição. Conseqüência semelhante se tem quanto às chamadas normas paralelas. Se o tribunal declarar a in-constitucionalidade de uma Lei do Estado A, o efeito vinculante terá o condão de impedir a aplicação de norma de conteúdo semelhante do Estado B ou C.

A coisa julgada, no sistema brasileiro, portanto, não abrange os motivos do julgado. Assim, ao proteger contra todos o que ficou decidido no dispositivo do julgado, não se logra impedir a perniciosa reiteração material do ato declarado inconstitucional. É que efeito vinculante e

28 MENDES, Gilmar Ferreira. Controle Concentrado... p. 594.29 Idem, p. 596.

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eficácia contra todos são conceitos diversos: enquanto essa última está ligada ao dispositivo do julgado, os efeitos vinculantes se ligam aos mo-tivos determinantes da decisão (a ratio decidendi) subjacente ao julgado.

2.3.3 A aproximação entre os sistemas difuso e abstrato de controle de constitucionalidade no Brasil

A partir do momento em que ficou estabelecido que a decisão incidental de inconstitucionalidade tem efeitos apenas no caso exa-minado, preocuparam-se doutrina e jurisprudência em garantir iso-nomia e segurança jurídica aos julgados, além de criar mecanismos que evitassem a desnecessária repetição de julgamentos nos tribunais da mesma questão já decidida. ZAVASCKI (2001, 30) esclarece que as medidas mais significativas foram (a) a criação do instituto da suspensão pelo Senado da execução das leis reconhecidas como in-constitucionais pelo STF, (b) tornar vinculativa, para os tribunais, as decisões do STF em matéria constitucional, dispensando o princípio da reserva de plenário quando já houver manifestação do Plenário do STF sobre a questão constitucional e (c) salientar a força de precedente das decisões do STF, ensejando julgamento simplificado dos recursos e acolhimento da rescisória. Identifica ZAVASCKI essa vocação expansiva das decisões do STF em matéria constitucional como eficácia reflexa ou eficácia anexa. Reflexa porque permitem a transmissão dos efeitos para além do caso julgado, vinculando pessoas outras que não as participantes da relação processual que originou a decisão. Anexa porque seria automática, independentemente de provocação da Corte Constitucional.

MARINONI30 defende que a força normativa da Constituição está diretamente relacionada à observância das decisões da Corte Constitu-cional. Por isso, defende a aplicação da teoria de que a vinculação se dá pelos motivos determinantes da decisão relativamente a todos os tribunais

30 MARINONI, Luiz Guilherme. Ações Repetitivas e Julgamento Liminar. Disponível em <http://www.professormarinoni.com.br/principal/pub/anexos/20080129021407ACOES_REPETITIVAS_E_J ULGAMENTO_LIMINAR.pdf.> Acesso em 06.05.2009.

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e autoridades. Sustenta que os efeitos vinculantes deveriam se estender, igualmente, às súmulas de interpretação da lei federal, ou seja, aquelas publicadas pelo Superior Tribunal de Justiça. Confira-se o texto:

O problema das ações repetitivas está intimamente ligado à questão da força vinculante das decisões dos tribunais superiores. Diante da previsão contida no art. 103-A da Constituição Federal, incluído pela EC n. 45/2004, não mais se questiona sobre o efeito vinculante das súmulas do Supremo Tribunal Federal. Isto, toda-via, não esgota a questão, já que as decisões tomadas em recurso extraordinário igualmente têm efeito vinculante.

Não é necessário recorrer a argumentos de direito comparado – como o instituto do stare decisis americano ou o controle da constitucio-nalidade próprio ao Tribunal Constitucional alemão – para demonstrar tal conclusão. É que a não observância das decisões do Supremo Tri-bunal Federal obviamente debilita a força normativa da Constituição.

A força da Constituição está ligada à estabilidade das decisões do Supremo Tribunal Federal. Justamente por conta disso, aplica--se ao Recurso Extraordinário a teoria de que o efeito vinculante da decisão se estende aos seus fundamentos determinantes e não apenas à sua parte dispositiva – essa última abarcada pela coisa julgada material. Tratando-se de interpretação da Constituição, a eficácia da decisão deve transcender ao caso particular, de modo que os seus fundamentos determinantes sejam observados por todos os tribunais e autoridades nos casos futuros.

Por outro lado, a eficácia vinculante também deveria ser esten-dida às súmulas que definem a interpretação da lei federal, isto é, às súmulas do Superior Tribunal de Justiça. Ainda que não haja previsão legal para tanto, os argumentos que justificam a eficácia vinculante das decisões do Supremo Tribunal Federal também teriam inteira aplicação aqui, autorizando – ao menos de lege ferenda – a outorga de força vinculante às súmulas do Superior Tribunal de Justiça.

STRECK31 vê com preocupação essa aproximação que se apregoa entre os dois sistemas de controle de constitucionalidade no Brasil. Apre-goa que não há autorização constitucional para a extensão dos efeitos do

31 STRECK, Lênio Luiz. A Nova Perspectiva do Supremo....., p. 16 e 17.

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controle concentrado para o difuso, e que tal vinculação tampouco faria da parte da nossa doutrina sobre o controle.

ARAUJO e BARROS32, em interessante artigo, falam sobre a aproxi-mação entre os modelos de fiscalização de constitucionalidade no Brasil. A aproximação do controle concentrado para o difuso seria encontrada nos seguintes pontos: (a) na pertinência temática exigida para legitimi-dade para a propositura da ADIN, ADC e ADPF, porquanto um processo objetivo prescindiria do exame de interesse específico na causa, já que se discute a aplicação da lei em tese; esse característico se ajustaria apenas ao modelo difuso, onde se examinam interesses subjetivos; (b) na figura do amicus curiae, igualmente, que permite apresentação de memoriais especializados, geralmente em assuntos inéditos, inusitados, difíceis, na medida de seus interesses no julgamento da causa; (c) na previsão de realização de perícia, prevista no § 1º do art. 9º da Lei 9.868/99, possibilita à Corte o exame de questões de fato que podem interferir no julgamento, mitigando o processo objetivo de controle; e (d) na afirma-ção, por parte do STF, que a eficácia vinculante das decisões exaradas no controle concentrado de constitucionalidade não se limitam ao dispositivo da decisão, mas englobam também, os motivos que a determinaram. Já a aproximação do controle difuso para o concreto seria encontrável (e) nos julgados em que o STF vem concedendo efeito transcendente em recurso extraordinário (como, por exemplo, o RE 197.917, que definiu os critérios da proporcionalidade da fixação do número de vereadores por município); também (f) na instituição do novo requisito para admis-sibilidade dos extraordinários, qual seja, necessidade de comprovar que a questão constitucional em exame tenha repercussão geral.

Relativamente à concessão de efeitos transcendentes ao mencionado recurso extraordinário, sustentam os autores:

32 ARAÚJO, Marcelo Labanca Corrêa de; BARROS, Luciano José Pinheiro. O Es-treitamento da Via Difusa no Controle de Constitucionalidade e a Comprovação da Repercussão Geral nos Recursos Extraordinários. Disp. em <http://www.conpedi.org/manaus/arquivos/anais/recife/teoria_hermen_marcelo_labanca_e_luciano_ barros.pdf.> Acesso em 06.05.2009.

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(...) O que ocorreu, então, foi que o próprio STF entendeu, em sede de ADIN, que teria ocorrido a transcendência dos moti-vos determinantes no julgamento do RE 197.917. Por tal razão, vinculou a decisão do processo objetivo aos motivos que deter-minaram a decisão no controle difuso de constitucionalidade, em razão da existência do mesmo tema (fundamento jurídico) em ambos os casos.

Curial, portanto, esclarecer que, na medida em que o Supremo Tribunal Federal concede efeitos transcendentes à decisão que de-clara a inconstitucionalidade de uma norma, em sede de controle difuso (via Recurso Extraordinário), naturalmente está-se diante de uma aproximação do modelo difuso ao modelo concentrado de controle de constitucionalidade, eis que os fundamentos daquela decisão, aparentemente utilizados apenas na fronteira do processo inter partes, passam a transcender o próprio processo, aplicando-se a outros casos, desenhando uma espécie de efeito geral (efeito típico de decisões oriundas de um controle concentrado). Ou, em outro enfoque, passa-se a admitir algo parecido com o chamado stare decisis do direito norte-americano, onde os precedentes, havidos em processos subjetivos, passam a ser de observância obrigatória para além das fronteiras do processo primitivo, aplicando-se de maneira geral.

Quanto à repercussão geral, os autores lembram que a Emenda 7/77 autorizou o STF a disciplinar no seu Regimento Interno a possibilidade de examinar causas que contivessem relevante questão constitucional, a chamada argüição de relevância (art. 327, § 1º, do RISTF). Na verdade, tratava-se de uma nova hipótese de admissão de causa no STF, mesmo que os demais pressupostos não estivessem atendidos. A perspectiva, portanto, era de inclusão, de possibilitar o exame do apelo extremo. A introdução da repercussão geral, na visão dos autores, representa inovação porque, agora, por mais relevante que seja a matéria constitu-cional versada no extraordinário, ela somente será admitida se a Corte se enxergar nela uma transcendência dos interesses interpessoais e alcance de interesse geral. Como a negativa de repercussão geral atinge todos os

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recursos com matéria idêntica (art. 543-B, §§ 2º e 3º, do CPC33), ficaria demonstrada, mais uma vez, a eficácia transcendente do controle difuso de constitucionalidade. Concluem dizendo:

O que fez a Emenda, então, foi apenas delimitar quem teria o poder de discutir a inconstitucionalidade de uma norma no sistema difuso, restringindo a participação do Supremo Tribunal Federal nesse mesmo controle difuso.

Não se trata, pois, de permitir que uma decisão inconstitucional permaneça em vigor no ordenamento jurídico pela impossibilidade de manipulação do apelo extremo, mas se trata, certamente, de de-limitar quem, no direito brasileiro, pode exercer o controle difuso de constitucionalidade.

(...) Como consectário lógico, se está o Supremo a julgar um caso que poderá ter repercussão geral, a decisão no Recurso Extra-ordinário, tradicionalmente com efeitos apenas inter partes, passa a receber, por parte do Excelso Pretório, uma atenção especial em relação a seus efeitos, eis que, a exemplo da teoria da transcendência dos motivos determinantes da decisão, estendem-se os efeitos da decisão sobre a repercussão geral a outros casos, futuros inclusive.

Tudo isso faz demonstrar uma patente aproximação entre o modelo difuso e concentrado de constitucionalidade, além de todos os sincretismos apontados, se dá mediante um estreitamento da via difusa, na medida em que valoriza-se o Supremo Tribunal Federal não como Órgão de cúpula, mas sim como Corte Constitucional, destinada a ser provocada em casos de interesse geral, seja por meio da ampliação das possibilidades de atuação no controle concentra-do, efetivada pela atual Constituição, seja por meio da atuação do Supremo restrita, no controle difuso, a questões não-individuais, de repercussão geral.

33 O artigo diz o seguinte: “Art. 543-B. Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia, a análise da repercussão gera será processada nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, observado o disposto neste artigo. § 2. Negada a existência de repercussão geral, os recursos sobrestados considerar--se-ão automaticamente não admitidos. § 3. Julgado o mérito do recurso extraordinário, os recursos sobrestados serão apreciados pelos Tribunais, Turmas de Uniformização ou Turmas Recursais, que poderão declará-los prejudicados ou retratar-se”.

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Patrícia Mello,34 que elaborou minucioso e judicioso estudo sobre os precedentes no common law americano, esclarece que as discussões nos EUA são assemelhadas ou fornecem elementos que podem colaborar no atual debate acerca da eficácia transcendente da fundamentação e do exa-me da congruência entre as súmulas e os julgados que a originaram. No controle concentrado de constitucionalidade, alude a autora à Reclamação nº 1.987-DF, considerado o leading case a respeito da transcendência dos motivos determinantes da decisão.

Preocupa-se ela em demonstrar que o estudo dos conceitos desenvol-vidos pelos common law relativamente ao dispositivo, à fundamentação e ao comando genérico emergente da decisão, aplicável a casos futuros, pode colaborar na melhor compreensão desse fenômeno da eficácia transcendente dos motivos determinantes. Toma como exemplo essa Reclamação 1987-0-DF: o fundamento dessa ação que visa à preservação competência da Corte e garantia da autoridade de suas decisões está na ADIN 1662/SP. Segundo a autora, a norma geral que emana da ADIN poderia ser verbalizada da seguinte forma: “A Instrução Normativa n. 11/1997, TST é inconstitucional e, portanto, inválida”. Assim, embora com eficácia erga omnes e com efeitos vinculantes, já que tomada no controle abstrato de constitucionalidade, caso não admitida a teoria dos motivos determinantes, o próprio TST/SP poderia publicar, na semana seguinte outra Instrução Normativa com idêntico teor para se subtrair à autoridade do julgado na ADIN. Já da fundamentação do julgado ficou claro que a Constituição Federal somente autorizaria o seqüestro para pagamento de precatórios trabalhistas em caso de preterição da ordem de precedência. Assim, o comando geral, mais amplo que o dispositivo e mais sintético que a fundamentação ficaria assim: “O art. 100, CF somente autoriza o seqüestro de verbas públicas para pagamento de precatório trabalhista em caso de violação do direito de precedência, não admitindo a extensão desta medida a novas hipóteses ali não previstas”. Esse seria, portanto, o holding (ou ratio decidendi) do stare decisis. Conclui, assim, MELLO:35

34 MELLO, Patrícia Perrone Campos. Precedentes. p. 145 e seguintes. 35 MELLO, Patrícia Perrone Campos. Precedentes.p. 156 e 157.

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Nota-se, portanto, que o que se vem defendendo, sob o rótulo de ‘eficácia transcendente dos motivos determinantes’, é em verdade, a extração de um ‘holding’, equivalente à exegese constitucional fixada pela Corte, a partir dos fundamentos da decisão produzida em sede concentrada, e a conferência ao mesmo de eficácia nor-mativa. Por isso, a nomenclatura não é muito feliz. Ela gera uma impressão de que se pretende conferir tais efeitos de forma ampla, a toda fundamentação, o que não procede.

No controle difuso de constitucionalidade, na mesma Reclamação 1.9870/DF, o Ministro Gilmar Mendes elencou vários julgados em que houve aplicação da exegese firmada nos seus precedentes e não apenas ao seu dispositivo, admitindo que os Relatores julguem monocratica-mente os extraordinários, quando houver decisão do Pleno do Tribunal no sentido da inconstitucionalidade de norma semelhante, ainda que emanada de ente federativo diverso. Igualmente, no âmbito das súmulas simples, o STF tem afirmado, segundo Patrícia Mello, a impositividade de suas interpretações, mesmo que os paradigmas sejam pertinentes a atos e normas diferentes, de diversas unidades da federação. Exem-plifica com os verbetes36 de nºs 670, 681 e 683 do STF, nos quais se extraiu o entendimento jurídico que é comum aos julgados que deram origem aos enunciados.

A autora traça, por fim, uma perspectiva teleológica e sistemática da eficácia transcendente dos motivos determinantes:37

(...) no que respeita a seus aspectos finalísticos, a adoção de precedentes normativos se justifica na medida em que se busca promover alguns valores que lhe são correlatos, a saber: a segurança e a previsibilidade jurídica; a uniformidade do direito e a isonomia

36 Os verbetes têm o seguinte teor: 670: “O serviço de iluminação pública não pode ser remunerado mediante taxa”; 681: “É inconstitucional a vinculação de reajuste de venci-mentos de servidores estaduais ou municipais a índices federais de correção monetária”; 683: “O limite de idade para inscrição em concurso público só se legitima em face do art. 7º, XXX, da Constituição, quando possa ser justificado pela natureza das atribuições do cargo a ser preenchido”. 37 MELLO, Patrícia Perrone Campos. Precedentes. p. 162 a 163.

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entre os cidadãos; a credibilidade das cortes; a redução de litígios; e a preservação da força normativa da Constituição, em virtude do respeito à autoridade da exegese produzida pelo STF. (...) em um primeiro exame, sob o ponto de vista dos valores que justificam a adoção de binding precedents, a força normativa dos julgados não se deveria ater ao dispositivo da decisão.

Idêntica conclusão é alcançada sob uma perspectiva sistemá-tica. Isso porque, como demonstrado, a eficácia transcendente da fundamentação vem sendo adotada em sede de controle difuso da constitucionalidade, e na edição de súmulas simples; e tudo leva a crer que será igualmente utilizada na produção de súmulas vin-culantes. Este fato demonstra certa homogeneidade na conferência de eficácia normativa (ou impositiva intermediária, conforme o caso) à exegese fixada pela Corte Constitucional, em analogia com o holding do common law. Assim, seria incongruente utilizar-se o instrumento em tais hipóteses e rejeitálo no controle concentrado, a menos que alguma especificidade deste pudesse justificar um tratamento diferenciado.

(...) a rejeição da eficácia transcendente frustra o estabe-lecimento de um sistema eficaz de precedentes vinculantes em sede de controle concentrado.

Gilmar Mendes parte do pressuposto que o efeito vinculante da de-cisão da Corte Constitucional está intimamente ligado à própria natureza da jurisdição constitucional e à função de guardião por ela desempenhada. Na sua visão, tal efeito decorre do particular papel político-institucional desempenhado pela Corte. Recorre MENDES38 à literatura alemã para explicar o efetivo significado do instituto:

A concepção de efeito vinculante consagrada pela Emenda nº 3, de 1993, está estritamente vinculada ao modelo germânico disciplinado no §31, (2), da Lei orgânica da Corte Constitucional. A própria justificativa da proposta apresentada pelo Deputado Ro-berto Campos não deixa dúvida de que se pretendia outorgar não só eficácia erga omnes mas também efeito vinculante à decisão,

38 MENDES, Gilmar Ferreira. Controle Concentrado de Constitucionalidade... p. 598 a 603

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deixando claro que estes não estariam limitados apenas à parte dispositiva. Embora a Emenda n. 3/93 não tenha incorporado a proposta na sua inteireza, é certo que o efeito vinculante, na parte que foi positivada, deve ser estudado à luz dos elementos contidos na proposta original.

Assim, parece legítimo que se recorra à literatura alemã para explicitar o significado efetivo do instituto. (...)

Problema de inegável relevo diz respeito aos limites objeti-vos do efeito vinculante, isto é, à parte da decisão que tem efeito vinculante para os órgãos constitucionais, tribunais e autoridades administrativas. Em suma, indaga-se, tal como em relação à coisa julgada e à força de lei, se o efeito vinculante está adstrito à parte dispositiva da decisão ou se ele se estende também aos chamados fundamentos determinantes, ou, ainda, se o efeito vinculante abrange também as considerações marginais, as coisas ditas de passagem, isto é, os chamados obter dicta.

Enquanto em relação à coisa julgada e à força de lei domina a idéia de que elas hão de se limitar à parte dispositiva da decisão, sustenta o Tribunal Constitucional alemão que o efeito vinculante se estende, igualmente, aos fundamentos determinantes da decisão.

Segundo esse entendimento, a eficácia da decisão do Tribunal transcende o caso singular, de modo que os princípios dimanados da parte dispositiva e dos fundamentos determinantes sobre a interpretação da Constituição devem ser observados por todos os tribunais e autoridades nos casos futuros. (...)

Enquanto o entendimento esposado pelo Tribunal Constitu-cional alemão importa não só na proibição de que se contrarie a decisão proferida no caso concreto em toda a sua dimensão, mas também na obrigação de todos os órgãos constitucionais de ade-quar a sua conduta, nas situações futuras, à orientação dimanada da decisão. (...)

Assim, propõe Vogel que a coisa julgada ultrapasse os estritos limites da parte dispositiva, abrangendo também a “norma decisória concreta”. A norma decisória concreta seria aquela “idéia jurídica subjacente à formulação contida na parte dispositiva, que, concebida de forma geral, permite não só a decisão do caso concreto, mas também a decisão de casos semelhantes”. (...)

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A semelhante resultado chegam as reflexões de Bachof, segundo o qual o papel fundamental do Tribunal Constitucional alemão consiste na extensão de suas decisões aos casos ou situações paralelas. (...)

É certo, por outro lado, que a limitação do efeito vinculante à parte dispositiva tornaria de todo despiciendo esse instituto, uma vez que ele pouco acrescentaria aos institutos da coisa julgada e da força da lei. Ademais tal redução diminuiria significativamente a contribuição do Tribunal para a preservação e desenvolvimento da ordem constitucional. (...)

Proferida a declaração de constitucionalidade ou inconstitu-cionalidade de lei objeto da ação declaratória, ficam os Tribunais e órgãos do Poder Executivo obrigados a guardar-lhe plena obe-diência. Tal como acentuado, o caráter transcendente do efeito vinculante impõe que sejam considerados não apenas o conteúdo da parte dispositiva da decisão, mas também a norma abstrata que dela se extrai, isto é, a proposição de que determinado tipo de situação, conduta ou regulação – e não apenas aquela objeto do pronuncia-mento jurisdicional – é constitucional ou inconstitucional e deve, por isso, ser preservado ou eliminado.

O texto transcrito também faz parte da fundamentação do voto do Ministro Gilmar Mendes na Reclamação 1.987-0/DF, na qual o Supremo debateu esse tema e, afinal, reconheceu que a eficácia vinculante da ADI 1.662-SP (Rel. Min. Maurício Corrêa, Plenário, por maioria) alcançava, também os motivos determinantes do julgado. No corpo do voto, o Mi-nistro Gilmar Mendes elucida que a aplicação dos fundamentos determi-nantes de um leading case a hipóteses semelhantes já é prática conhecida pelo Supremo Tribunal Federal com controle de constitucionalidade das leis municipais. Do levantamento feito pelo Ministro consta o seguinte:

Tendo em vista o disposto no caput e § 1º-A do art. 557 do Có-digo de Processo Civil, que reza sobre a possibilidade de o relator julgar monocraticamente o recurso interposto contra decisão que esteja em confronto com súmula ou jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, os membros desta Corte vêm aplicando tese fixada em precedente onde se discutiu a inconstitucionalidade de lei, em sede de controle difuso, emanada por ente federativo diverso daquele prolator da lei objeto do recurso extraordinário sob exame.

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Nesse sentido, Maurício Corrêa, ao julgar o RE 228.844/SP, DJ 16.06.99, no qual se discutia a ilegitimidade do IPTU progressivo cobrado pelo Município de São José do Rio Preto, no Estado de São Paulo, valeu-se de fundamento fixado pelo Plenário deste Tribunal em procedente oriundo do Estado de Minas Gerais, no sentido da inconstitucionalidade da lei do Município de Belo Horizonte, que institui alíquota progressiva no IPTU.

Também Nelson Jobim, no exame da mesma matéria (pro-gressividade do IPTU) em recurso extraordinário interposto contra lei do Município de São Bernardo do Campo, aplicou tese fixada em julgamentos que apreciaram a inconstitucionalidade da lei do Município de São Paulo (RE 221.795, DJ 16.11.00).

Ellen Gracie utilizou-se de precedente oriundo do Município de Niterói, Estado do Rio de Janeiro, para dar provimento a recurso extraordinário no qual se discutia a ilegitimidade de taxa de ilumi-nação pública instituída pelo Município de Cabo Verde, no Estado de Minas Gerais (RE 364.160, DJ 07.02.03).

Carlos Velloso aplicou jurisprudência de recurso provenien-te do Estado de São Paulo para fundamentar sua decisão no AI 423.252, DJ 15.04.03, onde se discutia a inconstitucionalidade de taxa de coleta e limpeza pública do Município do Rio de Janeiro, convertendo-o em recurso extraordinário (art. 544, §§ 3º e 4º, do CPC) e dando-lhe provimento.

Sepúlveda Pertence lançou mão de precedentes originários do Estado de São Paulo para dar provimento ao RE 345.048, DJ 08.04.03, no qual se argüia a inconstitucionalidade de taxa de lim-peza pública do Município de Belo Horizonte.

Celso de Mello, ao apreciar matéria relativa à progressividade do IPTU do Município de Belo Horizonte, conheceu e deu provi-mento a recurso extraordinário tendo em conta diversos precedentes oriundos do Estado de São Paulo (RE 384.521, DJ 30.05.03). Tal procedimento evidencia, ainda que de forma tímida, o efeito vin-culante dos fundamentos determinantes da decisão exarada pela Corte Constitucional.

Não obstante os precedentes citados do controle difuso e concentrado de constitucionalidade, a discussão relativa à eficácia transcendente dos

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efeitos determinantes da decisão foi reaberta no Supremo no julgamento da Reclamação nº 4.219 em face da ADIN nº 2.602/MG (o julgamento da Reclamação ainda não está terminado).

Contudo, o que se percebe é que a limitação do efeito vinculante à parte dispositiva tornaria vazio o instituto da eficácia transcendente, já que nada acrescentaria aos institutos da eficácia erga omnes e da coisa julgada.

2.3.4 A dispersão de votos e a congruência entre as súmulas e os julgados em que se fundam

A doutrina se ocupa de dois outros temas diretamente relacionados ao relevo que passa a ter a fundamentação dos julgados: (a) o proble-ma da dispersão de votos entre os Ministros da Corte Constitucional e (b) a congruência entre as súmulas e os julgados em que elas se fundam.

Adotada a idéia de que os motivos determinantes da decisão fazem a vinculação das demais Cortes traz consigo o pressuposto de que fiquem claras no julgado as razões pelas quais a Corte decidiu a questão consti-tucional. É que o precedente, além de fixar a interpretação para os casos semelhantes ou idênticos, ajuda na resolução de casos inéditos, porque tem uma vocação natural à expansão. A dispersão de votos, segundo MELLO é um limite a essa vocação expansiva do precedente39:

Muitas vezes a corte vinculante consegue atingir uma maioria no que respeita ao resultado, à solução a ser conferida a determinado litígio, mas os magistrados divergem quanto às razões de justiça que embasaram tal solução. Quando isso acontece e não é possível extrair um princípio comum a partir das opiniões da maioria, sua normatividade fica muito prejudicada. Será difícil definir o holding sem identificar os fins coletivamente aceitos para adotá-lo e, mes-mo que assim não fosse, sua força gravitacional seria muito frágil. A produção de decisões conciliatórias, com fundamentações nego-ciadas entre os magistrados, a fim de evitar tal dispersão, também pode dificultar a compreensão de seus fundamentos, embora leve a uma situação mais definida que a primeira.

39 MELLO, Patrícia Perrone Campos. Precedentes. p. 200 e 201.

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A esse propósito, LEAL afirma40 que “os fundamentos determinantes limitam-se às razões que são relevantes para a decisão proferida, isto é, aos motivos sem os quais o decisum constante da parte dispositiva não teria sentido ou consistência”. As demais afirmações que não guardam essas características são conhecidas como obter dictum. Assim, no Brasil, onde “a divergência é verificada apenas pela discordância diante do resultado concreto da decisão (...) torna mais tortuosa a tarefa de identificar os fundamentos determinantes da decisão”. O seguinte caso mencionado pelo autor (2006, 170 e 171) ajuda a compreender exata-mente a dificuldade apontada pela doutrina. Trata-se da ADIN 51-9/RJ (DJU 17-9-1993) que questionava Resolução expedida pelo Conselho Universitário da UFRJ que disciplinava a eleição para os cargos de Reitor e de Vice-Reitor da entidade:

Nos termos do voto do relator, a Resolução incorria em in-constitucionalidade, pois (a) a autonomia universitária consagrada no art. 207 da Constituição não inclui competência normativa, (b) restando violadas as atribuições reservadas ao Presidente da República, para prover e extinguir os cargos públicos (art. 84, XXV, da Constituição), e ao Congresso Nacional, para dispor sobre cargos, empregos e funções públicas (art. 48, X, da Constituição) e sobre diretrizes e bases da educação nacional (art. 22, XXIV, da Constituição). Outros ministros seguiram o voto do relator, assi-nalando que “a autonomia universitária é apenas administrativa, não abarcando a política, que abrange o poder de legislar”. Por seu turno, o Ministro Sepúlveda Pertence, embora também tenha jul-gado procedente a ação direta, esboça compreensão diversa sobre autonomia constitucional das entidades universitárias, limitando-se a declarar inconstitucional o ato normativo impugnado em face do inciso VI do art. 206, que reserva à lei o poder de conformar a gestão democrática do ensino público. Não restam dúvidas de que, nesse caso, em que pese o julgamento, no mérito, tenha sido considerado, por unanimidade, afigura-se difícil apreender se realmente a autonomia universitária inclui o poder de expedir normas e qual a sua extensão, pois a sua interpretação sofreu di-

40 LEAL, Roger Stiefelmann. O Efeito Vinculante .... p. 169 e 170.

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latada variação nos votos expendidos. (...) Verifica-se, portanto, que o processo decisório utilizado pelo Supremo Tribunal Federal não contribui com a identificação da ratio decidendi para fins de imposição de sua vinculabilidade.

Insiste MELLO (2008, p. 166) que “as idéias de holding (regra necessária à decisão do caso), obter dictum (considerações marginais desnecessárias à solução do caso), rationale (lógica da decisão) e ma-terial facts (fatos relevantes), bem como as discussões sobre o grau de generalidade da norma emergente dos julgados, constituem ferramentas essenciais para um exame crítico a respeito do exercício do poder de sumular pelo Supremo Tribunal Federal e, por conseguinte, para seu controle”.41

A crítica que se faz aos enunciados de súmulas é que, correspon-dendo elas a uma síntese de uma tese jurídica vencedora em diversos julgados de determinado Tribunal, deveriam guardar efetiva relação aos precedentes em que se fundam. Principalmente quando se trata de súmula vinculante, que tem efeitos normativos, a congruência en-tre súmulas e os julgados que lhe dão suporte são a medida exata do limite que tem o Poder Judiciário para sua edição. É que, se o texto sumulado não guardar correspondência com os julgados tidos como seus precedentes, a pretexto de interpretar, o Poder Judiciário estará exercendo, indevidamente, poder legislativo, exorbitando de suas funções constitucionais de julgar.

41 A autora, nessa perspectiva de analisar a congruência entre súmulas e julgados que lhe dão suporte, examinou os três primeiros verbetes de súmula vinculante, chegando à conclusão de que os verbetes de nºs. 1 e 2 guardam congruência com as decisões que lhes serviram de base. Todavia, isso não ocorreria com o verbete nº 3: dos quatro precedentes indicados como paradigmas, apenas um deles versaria sobe a hipótese objeto da súmula; os demais, embora houvesse referências nas decisões sobre a necessidade de se obser-var o contraditório e a ampla defesa, em caso de cancelamento de pensão já registrada, constituiriam mero obiter dictum, já que não eram premissas necessárias à conclusão.

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CONCLUSÕES O Brasil não teve um verdadeiro controle de constitucionalidade das

leis no Período Imperial. Somente com a República é que tais valores foram incorporados no nosso Ordenamento Jurídico. O Brasil conheceu, inicialmente, por influência americana, o controle difuso de constitucio-nalidade das leis. O modelo foi estabelecido na Lei nº 221/1894. Apenas em 1934 se introduz a gênese do controle abstrato, mas com aplicação limitada para a preservação dos chamados princípios constitucionais sensíveis (aqueles que ensejam a intervenção Federal nos Estados) e estabeleceu a regra da reserva de Plenário para os Tribunais declararem inconstitucionais as leis. Apesar do retrocesso da Carta Constitucional de 1937 (que introduziu uma revisão das decisões de inconstitucionali-dade pelo Poder Executivo, tirou do Procurador-Geral da República a atribuição de defesa dos princípios sensíveis e excluiu a suspensão da lei declarada inconstitucional pelo Senado), as Constituições de 1946 e 1967/1969 restauraram o modelo que assegurava a reserva de Plenário para os Tribunais declararem a inconstitucionalidade de lei, a possibi-lidade de suspensão pelo Senado da lei declarada inconstitucional pelo Supremo. A Emenda nº 16/65 instituiu o controle abstrato de normas estaduais e federais e consagrou a possibilidade dos Tribunais de Justiça declararem a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo Municipal em confronto com a Constituição do Estado. A Emenda nº 7/77 introduziu a representação para fins de interpretação de lei ou ato normativo federal ou estadual.

A Constituição de 1988 manteve os sistemas de controle das Consti-tuições anteriores e criou, ainda, duas ações diretas no controle abstrato de normas: a Ação Direta de Inconstitucionalidade Por Omissão, a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Inovou ao instituir um defensor do ato impugnado no controle objetivo de normas (o Advogado-Geral da União), mas a principal novidade foi a ampliação do rol de legitimados à propositura das ações diretas para fiscalização da inconstitucionalidade em tese. Essa inovação transformou as ações diretas no principal meio de impugnação da inconstitucionalidade das leis no Brasil, mérito que, nas Cartas anteriores, era do controle difuso. Com a Emenda 3/1993 foi

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introduzida a Ação Declaratória de Constitucionalidade e com a Emenda 45/2004 houve alteração no controle difuso: foi criada a Súmula Vincu-lante e se estabeleceu um novo requisito para o conhecimento do Recurso Extraordinário, a saber, a existência de repercussão geral.

O controle difuso de constitucionalidade, exercido por todos os Juízes e Tribunais do País, sempre produziu efeito apenas ao caso em que é apreciado. É o meio mais democrático de prestação da jurisdição constitucional. Dele participam advogados, pareceristas, promotores, juízes, o que permite uma ampla participação da sociedade no seu exer-cício. A questão constitucional é debatida nas mais diversas esferas do Poder Judiciário por uma multiplicidade de operadores do direito que, mais vinculados aos fatos que originam as demandas judiciais, conseguem examinar concretamente a extensão dos benefícios ou malefícios que o ato impugnado causa na vida das pessoas. Além disso, as dimensões continentais de nosso País, e a imensa população que ele abriga facilita a multiplicidade de demandas que têm em comum a mesma questão constitucional. Assim, nesse sistema de fiscalização da constitucionali-dade, quando o Supremo Tribunal Federal é chamado a decidir, a questão constitucional já está madura na sociedade, permitindo ao intérprete má-ximo da Constituição dar a palavra conclusiva sobre o texto impugnado.

O controle abstrato de constitucionalidade, exercido pelo Supremo Tribunal Federal, produz efeitos erga omnes e eficácia vinculante, con-tornos que foram paulatinamente sendo traçados pela jurisprudência do Supremo sob o império da Emenda nº 16/65 e Constituições 1967/1969. O sistema sofreu inovações que permitiram abertura para a participação da sociedade, seja pela possibilidade de nomeação de peritos, seja pela participação do chamado amicus curiae, ou mesmo pela realização de audiências públicas, embora isso aconteça em número reduzido de ações. O sistema afeta seriamente a vida dos cidadãos, já que permite ao Re-lator do processo que conceda cautelar suspendendo a eficácia do texto legal impugnado, em decisão monocrática. Não existe, como se vê, a multiplicidade de opiniões jurídicas a respeito do texto legislativo; ainda, quando o Relator decide monocraticamente, dificilmente pode avaliar os benefícios e malefícios que o ato impugnado pode causar, seja porque

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não decide em face de um caso concreto, seja porque o processo em que decide não conhece partes (ou seja, não se conhece os argumentos das partes). Todavia, é o principal meio de controle da constitucionalidade das leis no Brasil, desde a Constituição de 1988.

O sistema de controle difuso de constitucionalidade no Brasil co-nhece, de modo expresso na Constituição, duas possibilidades de atribui-ção de efeitos vinculantes às decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal: a suspensão da eficácia pelo Senado e a Súmula Vinculante. A competência do Senado pertence à tradição constitucional brasileira e confere eficácia erga omnes à decisão emanada do Supremo. Trata-se de fórmula que possui hoje apenas valor histórico, especialmente em face da Constituição atual que deu grande amplitude às ações diretas de inconstitucionalidade, transformando-as no principal meio de fiscalização da constitucionalidade no nosso País. Ademais, a fórmula do Senado não se coaduna com as modernas técnicas de controle de constitucionalidade que preservam o texto normativo (interpretação conforme à constituição, inconstitucionalidade parcial sem redução de texto). Além disso, as ino-vações legislativas que permitem ao relator dar provimento ao recurso se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com a jurisprudência dominante do STF. Finalmente, a própria realidade demonstra que a fórmula do Senado, importante para a História, ficou obsoleta nos tempos presentes: o instituto nunca foi utilizado de modo expressivo pela Alta Câmara do Congresso Nacional.

A Súmula Vinculante foi inovação da Emenda nº 45/2004. Objeti-va a racionalização dos julgamentos do Poder Judiciário relativamente a questões repetitivas, concedendo efeitos que superam o mero caso individual. Elas estão inseridas, como já afirmado, no controle difuso de constitucionalidade das leis. Essa constatação é importante porque elas somente podem ser editadas depois de haver reiteradas decisões da Corte a respeito da questão constitucional, o que pressupõe o completo amadurecimento do debate em toda a sociedade, porquanto (a) nos processos que ensejam a edição de seus enunciados participaram advogados, pareceristas, promotores, juízes, etc.; (b) os argumentos das partes têm por referência os efeitos concretos que o ato impugnado os

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beneficia ou prejudica, o que permite melhor verificar as conseqüências de sua anulação; (c) permite à Corte Suprema a análise de centenas de casos concretos nos quais a questão constitucional se repete, em face das dimensões continentais e populacionais de nosso País; (d) possibilita ao STF o exercício do poder pacificador da querela constitucional.

A edição de Súmula Vinculante não tem o poder pernicioso que pode ter o exercício das ações diretas de controle da constitucionalidade, ou mesmo do Senado Federal. É que o exame da questão constitucional nas ações diretas não tem essa riqueza de conteúdo do controle difuso, seja porque os legitimados a participar são em número limitados, seja porque não se examinam os efeitos concretos do ato impugnado (já que o processo objetivo não conhece partes), seja, ainda, porque permite a suspensão da eficácia da lei, de inopino, na visão unipessoal do relator do processo. Igualmente, na fórmula da suspensão pelo Senado da lei declarada inconstitucional, a eficácia erga omnes pode ocorrer da decisão prolatada em um único julgado, ao contrário da súmula vinculante, onde se exige a repetição de julgados para a sua edição.

Finalmente, um argumento da realidade: no controle difuso de cons-titucionalidade, onde se situa o instituto da súmula vinculante, decidida a questão constitucional pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, dificilmente as cortes inferiores deixam de aplicar o precedente, o que, de certo modo, torna o instituto da súmula vinculante, na grande parte das questões constitucionais, de duvidosa utilidade para a redução do número de processos.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é quem primeiramen-te reconheceu às decisões proclamadas no controle abstrato de constitu-cionalidade a qualidade de coisa julgada material oponível contra todos (ou seja, com eficácia erga omnes). A coisa julgada, no sistema brasileiro, não abrange os motivos do julgado; portanto, ao proteger o que ficou decidido no dispositivo contra todos, não há impedimento da reiteração material do ato declarado inconstitucional. É que efeito vinculante e eficácia contra todos são conceitos diversos: enquanto essa última está ligada ao dispositivo do julgado, os efeitos vinculantes se ligam aos mo-tivos determinantes da decisão (a ratio decidendi) subjacente ao julgado.

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DAS LEIS NO BRASIL

Verifica-se no sistema de controle de constitucionalidade do Brasil uma franca aproximação entre os modelos difuso e abstrato. Os pontos de contato do controle concentrado para o difuso são os seguintes: (a) a exigência de pertinência temática para se aceitar a legitimidade para a propositura da ADIN, ADC e ADPF, porquanto um processo objetivo prescindiria do exame de interesse específico na causa, já que se discute a aplicação da lei em tese; esse característico se ajustaria apenas ao modelo difuso, onde se examinam interesses subjetivos; (b) a figura do amicus curiae, igualmente, que permite apresentação de memoriais especiali-zados, geralmente em assuntos inéditos, inusitados, difíceis, na medida de seus interesses no julgamento da causa; (c) a previsão de realização de perícia, prevista no § 1º do art. 9º da Lei nº 9.868/99, possibilita à Corte o exame de questões de fato que podem interferir no julgamento, mitigando o processo objetivo de controle; e (d) na afirmação, por parte do STF, que a eficácia vinculante das decisões exaradas no controle con-centrado de constitucionalidade não se limitam ao dispositivo da decisão, mas englobam também, os motivos que a determinaram.

Já a aproximação do controle difuso para o concreto seria encontrável (a) nos julgados em que o STF vem concedendo efeito transcendente em recurso extraordinário, autorizado pelo art. 557, caput e §1-A do CPC; (b) a instituição do novo requisito para admissibilidade dos extraordiná-rios, qual seja, necessidade de comprovar que a questão constitucional em exame tenha repercussão geral; (c) o abrandamento da exigência de cumprimento do princípio da reserva de plenário nos Tribunais (art. 97 da CF), quando o Supremo já houver se pronunciado sobre a (in)constitucionalidade da lei questionada; (d) as inovações legislativas que permitem ao relator dar provimento ao recurso monocraticamente se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou juris-prudência dominante do STF. Essa aproximação entre os sistemas, torna obsoleta a histórica fórmula da suspensão da execução da lei declarada inconstitucional pelo Senado.

A concessão de efeitos transcendentes aos motivos determinantes da decisão é a grande novidade jurisprudencial no Brasil. Rompe-se a cultura de se observar apenas o teor do dispositivo do julgado para se

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examinar, detalhadamente, os fundamentos que construíram a decisão. O leading case que aplicou essa teoria no Brasil, no âmbito das ações diretas, foi a Reclamação nº 1.987-0/DF, em que se reconheceram efeitos vinculantes aos motivos que ensejaram a declaração de inconstituciona-lidade na ADI 1.662.

No controle difuso se registram vários precedentes da aplicação dessa doutrina (RE 228.884, Rel. Ministro Maurício Correa, DJ de 16-6-1999; RE 221.795, Rel. Min. Nelson Jobim, DJ de 16-11-2000; RE 364.160, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 7-2-203; AI 423.252, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 15-4-2003; RE 345.048, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 8-4-2004; RE 384.521, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 30-5-2003).

Por essa doutrina, que tem origem na Alemanha, a decisão do Su-premo deixa de atingir apenas o ato declarado inconstitucional, ficando proibida (a) a reprodução do conteúdo substancial desse ato, (b) a ma-nutenção de outros atos com conteúdo semelhante e (c) a adoção de via interpretativa diversa da acolhida nos julgados do STF.

A limitação do efeito vinculante à parte dispositiva tornaria vazio esse instituto, já que nada acrescentaria aos institutos da eficácia erga omnes e da coisa julgada. Não obstante os precedentes citados do con-trole difuso e concentrado de constitucionalidade, a discussão relativa à eficácia transcendente dos efeitos determinantes da decisão foi reaberta no Supremo no julgamento da Reclamação nº 4.219 em face da ADIN nº 2.602/MG (o julgamento da Reclamação ainda não está terminado).

A doutrina da vinculação pela eficácia transcendente dos motivos determinantes da decisão encontra justificativa sistemática no nosso meio, porquanto, a partir da inclusão do requisito da repercussão geral para a admissibilidade dos recursos extraordinários, não há sentido entender que o Supremo, apreciando a questão constitucional no caso concreto, resolve apenas o conflito estabelecido naqueles autos. Parece que a adoção desse instituto pelo Constituinte direciona a interpretação que se dever dar ao controle difuso, ou seja, não mais para a solução do caso concreto, mas para resolver questões constitucionais que efetivamente tenham reper-cussão na sociedade, a exemplo do que ocorre com o sistema abstrato de constitucionalidade, no qual as decisões valem para todos. Sustentar que

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DAS LEIS NO BRASIL

o recurso extraordinário deve continuar sendo um recurso para o reexame da questão constitucional limitada ao caso particular parece esvaziar o sentido do novo instituto criado pelo constituinte derivado, porque não teria sentido a implantação desse requisito, se o extraordinário, mesmo tendo repercussão geral, soluciona somente o conflito entre os envolvidos naqueles autos que suscitaram a questão constitucional.

Os subsídios doutrinários do sistema norte-americano no âmbito do common law e na cultura dos precedentes podem colaborar no exato entendimento dessa doutrina da eficácia dos motivos determinantes da decisão. Novidade no Brasil, a extração da regra do julgado (holding ou ratio decidendi) é atividade do dia-a-dia nas Cortes Americanas. Por isso, o estudo dos conceitos desenvolvidos naquele sistema relativamente ao dispositivo, à fundamentação e ao comando genérico emergente da decisão, aplicável a casos futuros, é fundamental para a formação da cultura de respeito aos precedentes no Brasil.

A compreensão exata desse novo instituto é responsabilidade prin-cipal do próprio Supremo Tribunal Federal, já que é ele quem vai dosar a aplicação dessa doutrina no País. É o STF que tem as ferramentas para garantir a autoridade de seus julgados (a Reclamação); portanto, dele é a responsabilidade de fazer valer suas decisões. Nesse particular, em face do relevo que a fundamentação dos julgados passará a ter, é do Supremo a tarefa de elucidar no julgado as razões pelas quais a Corte decidiu a questão constitucional dessa ou daquela maneira, já que a regra extraída do julgado (holding), além de fixar a interpretação obrigatória para os casos semelhantes ou idênticos, ajuda na resolução de casos inéditos, pela natural vocação que o precedente tem à expansão. Será o Supremo que, fundamentando objetivamente os julgados, evitando a dispersão de votos, fundamentos, razões de justiça, vai contribuir para que o precedente seja facilmente compreendido e assimilado pelas Cortes vinculadas.

Por outro lado, as Cortes vinculadas passarão a exercer um novo papel, qual seja, de interpretar o precedente (ou seja, a regra vinculante extraída da fundamentação) e, utilizando-se dos mecanismos de assi-milação e diferenciação, possibilitar que o precedente se expanda ou se

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contraia até seus limites, dando vida à jurisprudência da Suprema Corte, porquanto são elas (as cortes vinculadas) as primeiras a interpretar o precedente, ao apreciarem um novo caso alegadamente análogo.

Os controles difuso e concentrado de constitucionalidade estão em constante e paulatina marcha de aproximação. Ambos incorporam valores caros ao constitucionalismo, como a proteção dos direitos fundamentais. As justificativas para atribuição de efeitos vinculantes aos precedentes são comuns tanto na família da common law como do civil law. Elas representam determinados valores de segurança jurídica, isonomia, eficiência e legitimidade que são comuns a todos os países e sistemas. A cultura de observância de precedentes contribui para a reali-zação desses valores, na medida em que consolida o papel do Supremo Tribunal Federal como Corte Constitucional e não como órgão de revisão dos julgados das demais instâncias judiciais. Finalmente, essa cultura contribui para a intensificação da força normativa da Constituição.

OBRAS CONSULTADAS ARAÚJO, Marcelo Labanca Corrêa de; BARROS, Luciano José Pinheiro. O Estreitamento da Via Difusa no Controle de Constitucionalidade e a Comprovação da Repercussão Geral nos Recursos Extraordinários. Dispo-nível em <http://www.conpedi.org/manaus/arquivos/anais/recife/teoria_her-men_marcelo_labanca_e _luciano_barros.pdf>. Acesso em 06.05.2009.

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DAS LEIS NO BRASIL

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TOMBAMENTO E PRECAUÇÃO

GABRIEL WEDYJuiz Federal. Doutor e Mestre em Direito pela PUC-RS.

Visiting Scholar pela Columbia Law School no Sabin Center for Climate Change Law. Professor Coordenador de Direito Ambiental na Escola Superior da Magistratura- Esmafe-RS.

RESUMO: Este artigo aborda o instituto do tombamento como instru-mento de tutela do patrimônio histórico, artístico, cultural e do meio ambiente. Neste ensaio também se faz análise do princípio da precau-ção e a sua aplicação para o aumento da eficácia do procedimento do tombamento.

ABSTRACT: This article discusses the institution of listing that protects the historical, artistic, cultural heritage and environment. The essay also makes the analysis of the application of a precautionary principle as a tool to increase the effectiveness of the listing procedure.

SUMÁRIO: Introdução.1.Tombamento.1.1. Proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. 1.2. Conceito e características.1.3. Objeto. 1.4. Natureza Jurídica. 1.5. Da possibilidade de tombamento de florestas, reservas naturais e parques ecológicos. 2. Princípio da Precaução no ordenamento brasileiro e a análise do custo-benefício. 3. Princípio da Precaução como instrumento do tombamento. Conclusão. Referências Bibliográficas.

IntroduçãoO presente artigo tem por objetivo fazer uma breve análise do institu-

to jurídico do tombamento, como instrumento de proteção do patrimônio histórico e artístico nacional e do meio ambiente, com uma avaliação do seu conceito, suas características, seu objeto e natureza jurídica.

Em um segundo momento, será avaliado no texto o princípio da precaução e a sua base infraconstitucional no Brasil, assim como a possibilidade e viabilidade da adoção do procedimento da análise do custo-benefício ecologicamente responsável para a sua implementação. A abordagem do princípio da precaução no texto será realizada de modo crítico, atenta aos vetores do princípio da proporcionalidade da vedação do excesso e da inoperância.

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Por fim, se verificará a compatibilidade do princípio da precaução com o instituto do tombamento para a preservação do meio ambiente e do patrimônio histórico, artístico e cultural.

1 TombamentoO sentimento humano de preservação do patrimônio público pode

ser observado desde a antiguidade quando surgiu a expressão Sete Ma-ravilhas do Mundo. Também havia a idéia de proteção do belo e de bens memoráveis das conquistas romanas. Ao longo da idade média esta idéia de preservação desapareceu. Segundo TOMASEVICIUS, em excelente ensaio: “...Os materiais com que tinham sido construídos os templos antigos eram seguidamente reaproveitados na construção de Igrejas, sem a menor preocupação com a preservação”. 1

Na época do Renascimento ressurgiu a preocupação de proteção dos bens públicos construídos na época da Antiguidade greco-romana. É conhecida a carta do pintor Rafael Sanzio, que lamentava ao Papa Leão X a perda de bens preciosos daquele período. Também, as bulas de lavra de Pio II [1492] proibiam a demolição de edifícios antigos públicos da Roma Antiga no âmbito do Estado Papal. 2

A proteção dos bens culturais pelo Estado, nos moldes dos dias atuais, passou a ser reconhecida na época da Revolução Francesa3, através dos célebres discursos do abade Henri Grégoire na Assembléia Nacional, em especial, Rapport sur les Destructions opérées par le

1 TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. O tombamento no direito administrativo e inter-nacional. pág. 231-248. Revista de Informação Legislativa do Senado. Brasília a. 41 n. 163 jul./set. 2004. P. 232. Ver sobre o tema: AVILA, Juan Manuel Alegre. Evolución y regimen jurídico del património histórico. Madrid: Ministerio de la Cultura, 1994. t. I. 2 TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. O tombamento no direito administrativo e inter-nacional. pág. 231-248. Revista de Informação Legislativa do Senado. Brasília a. 41 n. 163 jul./set. 2004.P.232.3 INSTITUTO DOS ARQUIVOS NACIONAIS: Torre do Tombo (Portugal). Da Torre do Tombo ao Instituto dos Arquivos Nacionais. Fonte: <http:/ /www.iantt.pt/instituto.html?menu=menu_ iantt&conteudo=da_tt_ao_ian& conteudo_ nome =Historial>. Acesso em: 30 de junho de 2010.

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Vandalisme, et sur les Moyens de le Reprimer. O mesmo, em pleno “Período do Terror”, na França, sob o argumento de preservação do ideal de liberdade, se opôs ao Decreto de doze de maio de 1792, que ordenava a eliminação de todas as marcas do feudalismo e do despo-tismo. Para o Abade Grégoire a destruição de bens culturais era uma afronta à liberdade de expressão e constituía-se em uma manifestação de intolerância.4

No Brasil, a primeira preocupação com a preservação de bens cul-turais é datada de 1742, quando, em Pernambuco, o Conde de Galveias, protestou contra a transformação do Palácio das Duas Torres, construído durante a ocupação holandesa, em um quartel general. Todavia, os pro-testos do Conde não foram atendidos pelo Governo Colonial. Em 1915, houve uma pública condenação dos arcebispos brasileiros, durante o Concílio Plenário da América Latina, à descaracterização do patrimônio da Igreja Católica.5

Foi no Governo do Presidente Getúlio Vargas, apenas, que o patri-mônio cultural brasileiro passou a ser protegido por via legislativa. Nos anos vinte, observa-se, muitas obras brasileiras estavam sendo enviadas para o exterior sem qualquer controle. Como primeira medida de cunho protetivo, o Presidente Vargas, através do Decreto n° 22.929/33, elevou a cidade de Ouro Preto à categoria de monumento nacional.

Na Constituição de 1937, por sua vez, ficou estabelecido no art. 134 que “os monumentos históricos, artísticos e naturais, assim como as paisagens ou os locais particularmente dotados pela natureza, go-zam de proteção e dos cuidados especiais da Nação, dos Estados e dos Municípios. Os atentados contra eles praticados serão equiparados aos cometidos contra o patrimônio nacional”. Após, foi promulgado o Decreto-Lei n° 25/1937, que organizou a proteção do patrimônio his-

4 SAX, Joseph L. Heritage preservation as a public duty: the Abbé Grégoire and the origins of an idea. Michigan Law Review, Michigan, v. 88, n. 5, p. 1142- 1169, Apr. 1990. 5 TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. O tombamento no direito administrativo e internacional. pág. 231-248. Revista de Informação Legislativa do Senado. Brasília a. 41 n. 163 jul./set. 2004. Pág. 233.

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tórico e artístico nacional. O anteprojeto deste Decreto foi elaborado pelo escritor Mário de Andrade a pedido do Ministro da Educação, Gustavo Capanema.

A Constituição de 1946, dispôs em seu artigo 175, que “as obras, monumentos e documentos de valor histórico e artístico, bem como os monumentos naturais, as paisagens e os locais dotados de particular beleza ficam sob a proteção do Poder Público”. A Constituição ditatorial de 1967, em seu art. 172, e a Emenda Constitucional de 17 de outubro de 1969, no seu art. 180, mantiveram a proteção ao patrimônio público.

1.1 Proteção do patrimônio histórico e artístico nacionalNa Constituição de 1988 nota-se a preocupação do Poder Constituinte

com a proteção do patrimônio cultural brasileiro, constituído pelos bens de natureza material e imaterial, considerados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, a ação e a memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

I - as formas de expressão;II - os modos de criar, fazer e viver;III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços

destinados às manifestações artístico-culturais;V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico,

artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.É competência comum da União, Estados, Distrito Federal e Muni-

cípios, a proteção de documentos, obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos [art. 23, inc. III].

E o art. 24, inc. VII, conferiu à União, aos Estados e ao Distrito Fede-ral competência concorrente para legislar sobre a proteção do patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico, o que significa que a União está limitada ao estabelecimento de normas gerais, exercendo os Estados a competência suplementar, na forma dos §1° e 4° do art. 24.

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Municípios não possuem competência legislativa nesta matéria, mas devem utilizar os instrumentos de proteção previstos na legislação federal e estadual.

O §1° do art. 216 da Constituição Federal determina que o Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventário, registro, vigilân-cia, tombamentos, desapropriação e outras formas de acautelamento e preservação.

O §5° do art. 216 prevê o tombamento como um dos institutos que têm por objeto a tutela do patrimônio histórico e artístico nacional. Presente está a previsão que a desapropriação será utilizada quando a restrição afetar integralmente o direito do proprietário.6

Tombamento, não se pode esquecer, é restrição parcial da proprieda-de, conforme se verifica pela legislação que o disciplina. Impossibilidade total de exercício dos poderes inerentes ao domínio, torna ilegal o tom-bamento e implica em desapropriação indireta, ocasionando um direito à indenização integral dos prejuízos sofridos pelo proprietário. Assim,

6 Não existe dúvida que a propriedade quando expropriada pelo Estado, total ou parcial-mente, deve ser indenizada. Nos Estados Unidos, exemplo de democracia constitucional, existe a figura do takings clause extraída da 5a Emenda e que, também, é aplicada contra os Estados e Municípios, via cláusula do devido processo, contida na 14a Emenda à Constituição de 1787. A moderna takings doutrine tem origem no caso Pennsylvania Coal Co. v. Mahon, 260 U.S. 393 (1922) [FARBER, Daniel; FREEMAN, Jody; CARLSON, Ann. Cases and Materials in Environmental Law. Eight Edition. St. Paul: Thompson Reuters, 2010. p. 344], e está fundada na máxima de que o governo federal não pode tomar a propriedade privada para o uso público sem justa compensação. [MALONE, Linda. Environmental Law. Fourt Edition. New York: Wolters Kluwer, 2014. p. 35] A tomada física da propriedade ou invasão para o direito americano gera o direito a indenização ao proprietário, como se observa em Loretto v. Teleprompter Manhattan CATV Corp., 458 U.S. 419 (1982)[ Disponível em: www.supremecourt.gov. Acesso em: 15.abr. 2015]. Contudo, o Justice Holmes, de modo preciso, defendia que a takings clause incidiria apenas nos casos em que a regulação (intervenção) e limitação (da propriedade) fosse “muito além”. [Apud MALONE, Linda. Environmental Law. Fourt Edition. New York: Wolters Kluwer, 2014.p. 35] No mesmo sentido, deve o Estado possuir legítimo interesse ao impor regulações ambientais a propriedade dentro do exercício do seu poder de polícia, como sacramentado em Agins v. City of Tiburon, 447 U.S. 255 (1980). [Disponível em: www.supremecourt.gov. Acesso em: 15. Abr. 2015]

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tem se posicionado a jurisprudência no Superior Tribunal de Justiça7 e no Supremo Tribunal Federal.8

1.2.Conceito e característicasTombamento é forma de intervenção do Estado na propriedade pri-

vada, que tem por objeto a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, assim considerado, pela legislação ordinária, “o conjunto de bens móveis e imóveis existentes no país cuja conservação seja de in-teresse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico [art. 1° do Decreto- lei n° 25, de 30-11-37, que organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional]”.

Empregando o vocábulo tombamento, o direito brasileiro seguiu a tradição do direito português, que utiliza a palavra tombar no sentido de registrar, inventariar, inscrever nos arquivos do Reino, guardados na Torre do Tombo.

Pelo tombamento, o Poder Público protege determinados bens, que são considerados de valor histórico ou artístico, determinando a sua inscrição nos chamados Livros do Tombo, para fins de sua sujeição às restrições parciais. Em decorrência dessa medida, o bem, ainda que per-tencente a particular, passa a ser considerado bem de interesse público, daí as restrições a que se sujeita o seu titular.

Como uma restrição parcial, não impedindo ao particular o exercí-cio dos direitos inerentes ao domínio, não dá, em regra, direito à inde-

7 ADMINISTRATIVO. LIMITAÇÕES ADMINISTRATIVAS. PARQUE DA SERRA DO MAR. Os proprietários que, por imposição legal, sofrem restrição ao direito de uso de seus imóveis, têm direito à indenização pelo prejuízo causado ao seu patrimônio.[STJ. Rel. Ministro Castro Meira. 2a. Turma. Recurso Especial n 665791. Dje 20.03.2006]8 AVENIDA PAULISTA. DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA. TOMBAMENTO. SÚMU-LA 279. Na desapropriação indireta, destaca-se a dimensão individual do prejuízo sofrido com o tombamento. Demonstração, no acórdão recorrido, do dano especial sofrido pelo proprietário, o qual resultou no esvaziamento do direito de propriedade. Inviabilidade da pretensão recursal de reexame das premissas fáticas do acórdão (súmula 279 desta Corte). [STF. Rel. Ministro Joaquim Barbosa. 2a Turma. Recurso Extraordinário. Dje 15.05.2012]

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nização. Para fazer jus a uma compensação pecuniária, o proprietário deverá demonstrar que realmente sofreu algum prejuízo em decorrência do tombamento.

Tombamento é procedimento administrativo, porque não se realiza em um único ato, mas numa sucessão de atos preparatórios, essenciais à validade do ato final, que é a inscrição no Livro do Tombo.

1.3 ObjetoTombamento pode ser realizado em bens de qualquer natureza:

móveis ou imóveis, materiais ou imateriais, públicos ou privados. Nos termos do §2° do art. 1° do Decreto-lei n° 25/37, são sujeitos a tomba-mento “os monumentos naturais, bem como os sítios e paisagens que importem conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pela natureza ou agenciados pela indústria humana”.

O art. 3° do referido Decreto-lei exclui da possibilidade de tomba-mento, por não pertencerem ao patrimônio histórico e artístico nacional, as obras de origem estrangeira:

a - que pertençam às representações diplomáticas ou consulares acreditadas no país;

b - que adornem quaisquer veículos pertencentes a empresas estran-geiras, que façam carreira no país;

c - bens adquiridos por sucessão de estrangeiro e situados no Brasil;d - que pertençam a casas de comércio de objetos históricos ou

artísticos;e - que sejam trazidas para exposições comemorativas, educativas

ou comerciais;f - que sejam importadas por empresas brasileiras expressamente

para adorno dos respectivos estabelecimentos.É, portanto, instituto destinado à proteção do patrimônio histórico

e artístico nacional e, jamais, para a proteção (ou apropriação) de bens estrangeiros. É figura jurídica marcada por um nacionalismo concreto defensor dos bens e valores nacionais.

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1.4 Natureza JurídicaO tombamento para parte da doutrina é discricionário e para

outra parte vinculado. Segundo DI PIETRO o tombamento é um ato discricionário, todavia, como todo ato administrativo, deve ser motivado.9 Verdade é que o tombamento apresenta traços evidentes de discricionariedade, mas não está desvinculado da lei, possuindo caráter misto ou híbrido.

Para BANDEIRA DE MELLO10, CIRNE LIMA11, DALLARI12, GASPARINI13, VALLE FIGUEIREDO14 e FREITAS15, o tombamento constitui modalidade de servidão administrativa, porque ao contrário da simples limitação, incide sobre imóvel determinado, causando ao seu proprietário ônus maior que para os demais membros da coleti-vidade.16

Para DI PIETRO o tombamento é uma categoria própria, que não se enquadra nem como simples limitação administrativa, nem como servidão. E para outros trata-se de mera limitação administrativa, pois

9 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 13ª ed. Editora Atlas. São Paulo, 2001.10 Ver: BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo. 17a Ed., São Paulo: Malheiros, 2004. _____________. Tombamento e dever de indenizar. In: Revista de Direito Público. São Paulo: Malheiros Editores, n. 81, 1987. 11 Ver: CIRNE LIMA, Rui. Princípios de Direito Administrativo. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982.12 Ver: DALLARI, Adilson Abreu. Tombamento. In: DALLARI, Adilson Abreu; FIGUEI-REDO, Lucia Valle (coord.), Temas de Direito Urbanístico. São Paulo: Ed. RT, vol. 2, 1991.13 Ver: GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. Ed. Saraiva -São Paulo 1989. 14 Ver: FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo. 7a Ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2004.15 Ver: FREITAS, Juarez. Estudos de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros Editores, 1997.16 Consoante Celso Antônio Bandeira de Mello sempre que seja necessário um ato es-pecífico da Administração impondo um gravame, por conseguinte, criando uma situação nova, atingiu-se o próprio direito e, pois, a hipótese é de servidão.Ver: BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo. 17a Ed., São Paulo: Malhei-ros, 2004. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Tombamento e dever de indenizar. In: Revista de Direito Público. São Paulo: Malheiros Editores, n. 81, 1987.

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para estes as restrições impostas pelo tombamento recaem sobre o direito de propriedade e não sobre o próprio bem, vale dizer, recaem sobre a pessoa do proprietário.17

Melhor entendimento, contudo, é que o tombamento constitui uma servidão administrativa e o bem dominante é o próprio inte-resse público, não havendo necessidade, como no direito civil, que haja imóvel [prédio] dominante. É indiscutível que o tombamento, ao contrário das limitações administrativas, impõe um gravame e atinge o próprio direito de propriedade. Não há que se reconhecer, como cogitou-se no passado, que o tombamento é uma manifestação do poder de polícia do Estado, em face da sua evidente natureza de servidão administrativa.

1.5 Da possibilidade de tombamento de florestas, reservas naturais e parques ecológicos

Segundo LOPES MEIRELLES18 e CARVALHO FILHO19 é um equívoco a promoção de tombamentos de florestas, reservas naturais e parques ecológicos. Isto porque referidos bens jurídicos possuem tutela própria no Código Florestal, ficando à margem do instituto do tomba-mento, embora mereçam a proteção do Poder Público através de outros mecanismos.

Não assiste razão, permissa vênia, aos referidos doutrinadores. A Constituição Federal é clara ao dispor que o Poder Público, com a colaboração de toda a coletividade, promoverá e protegerá o patrimô-nio cultural por meio de tombamento. Quando menciona o patrimônio cultural, por óbvio, refere-se ao patrimônio cultural ambiental [art. 216, parágrafo único]. De outra banda, a redação constitucional que

17 Ver DI PIETRO, Maria Sylvia. Direito Administrativo. Págs. 136-138. Direito Ad-ministrativo. 13ª. Ed. São Paulo: Editora Atlas S/A, 2001.18 Ver MEIRELLES, Hely Lopes. Tombamento e indenização. Revista de direito admi-nistrativo. Rio de Janeiro: Renovar/FGV, jul/set 1985, v. 161, pp. 1 a 6.ide.19 Ver CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 12.ª ed. rev., amp. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

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determina a proteção ampla ao meio ambiente, no art. 225, não deixa margem para dúvidas sobre o fato de que o tombamento pode ser utilizado como instituto jurídico que é em defesa do meio ambiente. Meios de proteção ao meio ambiente não são restritos pelo texto cons-titucional, se o Poder Constituinte Originário não restringe, não cabe ao intérprete fazer a restrição, em menoscabo à preservação dos bens naturais para as presentes e futuras gerações e ao dever fundamental de proteção do meio ambiente. A perspectiva do tombamento precisa ser intergeracional e ecologicamente comprometida, com mais razão, na Era do desenvolvimento sustentável, marcada pela Ecologia Inte-gral da Encíclica Laudato Sì, pela COP 21 e pela Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da ONU.20

Importa grifar, como argumento final neste ponto, que mesmo antes da Constituição de 1988, já se admitia a proteção do meio ambiente via ação civil pública, em sede de doutrina e de jurisprudência. Com o advento do texto constitucional a proteção ao meio ambiente tornou-se uma prioridade, para o Estado e sociedade. Para se alcançar este objeti-vo, tutela ambiental, o tombamento pode e deve ser utilizado de modo combinado com o princípio da precaução.

20 O ano de 2015 pode ser chamado de ano da sustentabilidade. Três momentos, que ampliaram e revitalizaram o conceito de desenvolvimento sustentável, foram marcan-tes. A Igreja Católica, sob a liderança do Papa Francisco, editou a Encíclica Laudato Sì, defendendo a ecologia integral e o desenvolvimento sustentável. Posteriormente, a Assembléia Geral da Onu elegeu, após três anos de discussões, os 17 objetivos e 169 metas do desenvolvimento sustentável, inseridos no documento Transformando Nosso Mundo: A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Por fim, foi realizada, no final do ano, a 21a Conferência do Clima em Paris. As nações fixaram metas mais rígidas para o corte das emissões de gases de efeito estufa com a finalidade de limitar o aumento da temperatura global, para garantir o desenvolvimento sustentável das pre-sentes e futuras gerações.

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2 Princípio da Precaução no ordenamento jurídico brasileiro e a análise do custo-benefício

O princípio da precaução está inserido no ordenamento jurídico in-fraconstitucional brasileiro pela Conferência sobre Mudanças do Clima, acordada pelo Brasil, no âmbito da Organização das Nações Unidas, por ocasião da Eco/92 e, posteriormente, ratificada pelo Congresso Nacional, pelo Decreto Legislativo 1, de 03.02.1994; pelo Decreto n° 99.280/90, que promulgou a Convenção de Viena para a Proteção da Camada de Ozônio e o Protocolo de Montreal sobre as substâncias que destroem a camada de ozônio; pelo Decreto n° 2.652/98, que promulgou a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas e, também, pelo Decreto n° 2.519/98 que promulgou a Convenção sobre Diversidade Biológica.

Mais recentemente, a Lei n° 11.105, de 24/03/2005, que se refere à Biossegurança; a Lei n° 11.428, de 22/12/2006, que dispõe sobre a utilização e proteção da vegetação nativa do Bioma Mata Atlântica; a Lei n° 12.187, de 29/12/2009, que institui a Política Nacional sobre o Meio Ambiente e Mudança Climática; a Lei n°. 11.934 de 2009, sobre exposição humana a campos elétricos, magnéticos e eletromagnéticos; e a Lei n° 12.305, de 02/08/2010, que institui a Política Nacional de Resí-duos Sólidos e altera a Lei n° 9.605, adotaram o princípio da precaução. O princípio, outrossim, já foi reconhecido expressamente e aplicado pelo egrégio Supremo Tribunal Federal, em Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, no caso da importação de pneus remodelados.21

Tratando-se de princípio da precaução é mandatório que estejam pre-sentes os seus elementos constitutivos para que este seja aplicado: o risco de dano, a sua irreversibilidade e a incerteza científica. A inversão do ônus da prova é mecanismo de fundamental importância para a garantia da eficácia do princípio, uma vez que é do poluidor, predador ou empreendedor, o dever de provar que a sua atividade não causa risco de dano ao meio ambiente.22

21 STF. Relatora Ministra Carmen Lúcia. ADPF 101. Plenário 04.06.2009. 22 Para uma visão mais abrangente do princípio da precaução, ver: WEDY, Gabriel. O princípio constitucional da precaução como instrumento de tutela do meio ambiente e da saúde pública. Belo Horizonte: Editora Interesse Público, 2009.

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Outrossim, é necessário evoluir para a adoção do procedimento da análise do custo-benefício das medidas de precaução, embasado por in-formações sólidas e fartas, dentro de um processo decisório democrático, público, transparente,23 ecologicamente responsável e que respeite o prin-cípio da dignidade da pessoa humana24. Importante que sejam afastados biases25 contra esta análise no sistema legal brasileiro. Observa-se que nos Estados Unidos a análise do custo-benefício está irremediavelmente ligada à aplicação do princípio da precaução em atos regulatórios. A Su-prema Corte já decidiu que a análise do custo-benefício, para além de ser compatível com a Constituição, e prevista em três ordens executivas26,

23 Ver: SUNSTEIN, Cass. Laws of fear: Beyond the precautionary principle. New York: Cambridge Press, 2005. 24 Ver: SUNSTEIN, Cass. Valuing Life. Humanizing the Regulatory State. Chicago: The University of Chicago Press, 2015.25 É clássica a obra de Kahneman e Tversky publicada na revista Science no anos 1970 avaliando os efeitos nocivos de julgamentos frente a incertezas que podem ser contaminados por enviesamentos e heurísticas. Ver: TVERSKY, Amos; KAHNEMAN, Daniel. Judgment Under Uncertainty: Heuristics and Biases, 185 SCIENCE (n.s.) 1124, 1127 (1974). Certamente estes enviesamentos e heurísticas podem afetar administradores públicos, juízes e promotores quando tomam decisões, afinal todos são seres humanos com virtudes e limitações.26 A implementação da análise do custo-benefício foi iniciada pelo Governo Ronald Reagan com a criação da White House Office of Information and Regulatory Affairs- OIRA e a publicação da Ordem Executiva 12291 de 1981. O procedimento de análise do custo-benefício no Governo Reagan apresentou efeitos positivos com medidas regulató-rias de proteção ao meio ambiente, segurança alimentar, redução de riscos nas rodovias, na promoção de programas de saúde pública, na facilitação do acesso à imigração, na produção de energia e na segurança interna contra atos terroristas.Foi expedida pelo Presidente Bill Clinton a Ordem Executiva 12866, no ano de 1993, atualizando a regu-lamentação da matéria. Referido procedimento de análise do custo-benefício continuou a ser implementado em administrações do partido republicano e, também, do democrata, em matéria regulatória, invariavelmente. Ganhou maior importância o referido procedimento na administração do Presidente Barak Obama que nomeou como Diretor da OIRA, o Professor da Harvard Law School, Cass Sunstein, especialista em direito administrativo e práticas regulatórias, sendo um dos grandes defensores da análise do custo-benefício. Orientado por Sunstein, o Presidente Barack Obama publicou a Ordem Executiva n. 13563, de 18 de Janeiro de 2011, com premissas básicas de análise do custo-benefício para serem observadas pelas agências federais e demais setores do governo. [SUNSTEIN, Cass; HASTIE, Reid. Wiser: Getting Beyound Groupthink to make groups smarter.Cambridge: Harvard Business Review Press, 2015. P. 157-158;205]

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é exigida em matéria de regulação ambiental quando esta envolve elevados custos, como decidido recentemente em EPA v. EME Homer City[2014]27 e, também, em Michigan v. EPA[2015]28.O Poder Legislativo brasileiro precisa caminhar no sentido de inserir uma análise do custo--benefício ética e ambientalmente responsável no ordenamento (pois existem valores que não podem ser precificados)29, com a finalidade de evitar prejuízos sociais, econômicos e ambientais causados por decisões equivocadas e pouco informadas.

3 Princípio da precaução como instrumento do tombamentoTombar é intervir na propriedade privada para a proteção do patri-

mônio histórico, cultural, artístico e ambiental. Nos dias atuais, apesar de oposição da doutrina exposta por LOPES MEIRELLES, o tombamento também tutela bens ambientais. Isto porque, em face da combinação dos artigos 225 e 216 da Constituição Federal, pode-se inferir que para atingir-se a máxima proteção ambiental, o tombamento deve ser utilizado.

Este procedimento evita atos danosos ao meio ambiente, inclusive cultural, sem que o proprietário fique privado dos direitos inerentes ao

27 Sobre as inúmeras vantagens do emprego da análise do custo-benefício em matéria regulatória e o resultado da experiência de Cass Sunstein como Diretor da OIRA, ver: SUNSTEIN, Cass. Simpler: the future of government. New York: Simon and Schuster, 2013. 28 Sobre o caso Michigan v. EPA, ver Supreme Court Bloks Obama’s Limits on Power Plants, The New York Times, 30.06.2015. Disponível em: http://www.nytimes.com/2015/06/30/us/supreme-court-blocks-obamas-limits-on-power-plants.html?_r=0. Acesso em: 10.12.2015.29 A maior dificuldade, contudo, que precisa ser superada, é que existem direitos fun-damentais que não possuem valoração econômica - em que pese a grita utilitarista pós moderna - como a vida, a saúde, o meio ambiente equilibrado e a própria dignidade da pessoa humana. [Ver, SANDEL, Michael. What´s money can´t buy? The moral limits of market. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2012.p. 203 e SUNSTEIN, Cass R. Valuing Life. Humanizing the Regulatory State. Chicago: The University of Chicago Press, 2015]. No direito norte-americano utiliza-se a figura do cost-oblivious para resolver os casos em que a proteção ao ambiente é tão importante que a regulação é realizada sem considerar o custo de sua implementação. [MALONE, Linda. Environemental Law. Fourt Edition. New York: Wolters Kluwer, 2014. p. 3.]

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domínio. Na mesma senda, o tombamento é corolário do princípio da função social da propriedade e para que este resulte incólume, se faz necessário o respeito máximo ao bem ambiental por disposição consti-tucional (art. 186, inc. II).

O princípio da precaução, aqui utilizado em acepção ampla, deve ser aplicado sempre que houver risco de dano ao meio ambiente. Mesmo que a ciência atual não tenha comprovado que a atividade ou empreendimento são efetivamente danosos a este. Este princípio deve ser aplicado para que não seja mutilado determinado bem ambiental, arqueológico ou cultural. Aliás, a conexão entre o tombamento e medidas judiciais precautórias foi procedida recentemente em precedente do egrégio Superior Tribunal de Justiça de relatoria do Ministro HERMAN BENJAMIN.30

30 PROCESSUAL CIVIL. DIREITO DE CONSTRUIR. AÇÃO DEMOLITÓRIA. PA-TRIMÔNIO HISTÓRICO, CULTURAL E PAISAGÍSTICO DE OLINDA. REFORMA DE IMÓVEL RESIDENCIAL SEM LICENÇA URBANÍSTICA E EM DESACORDO COM EXIGÊNCIAS LEGAIS. ARTS. 187, 1.228, § 1º, 1.299 E 1.312 DO CÓDI-GO CIVIL. ALEGAÇÃO DE INÉPCIA DA INICIAL. LEGITIMIDADE PASSIVA. POSSUIDORA DIRETA E RESPONSÁVEL PELO ACRÉSCIMO AO IMÓVEL. APLICAÇÃO ANALÓGICA DO ART. 934, III, DO CPC. PERICULUM IN MORA REVERSO. UNESCO. CONVENÇÃO RELATIVA À PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO MUNDIAL, CULTURAL E NATURAL....5. Por meio de tombamento ou de outras formas de intervenção administrativa e judicial, a atuação do Estado não protege - nem deve proteger ou muito menos exaltar - apenas estética refinada, arquitetura suntuosa, produção artística luxuosa, templos esplendorosos, obras grandiosas dedicadas ao ócio, ou sítios comemorativos de façanhas heroicas dos que instigaram ou lutaram em guerras, com elas ganharam fama ou enriqueceram. Além de reis, senhores e ditadores, a História vem contada também pelos feitos, revoltas e sofrimentos dos trabalhadores, dos pobres, dos estigmatizados e dos artífices mais humildes da Paz. Para que deles, do seu exem-plo, coragem e adversidade nunca se olvidem as gerações futuras, fazem jus igualmente à preservação seus monumentos, conjuntos e locais de interesse, com suas peculiares marcas arquitetônicas, mesmo que modestas e carentes de ostentação, assim como seus rituais, manifestações culturais, raízes etnológicas ou antropológicas, e até espaços de indignidade e desumanidade - do calabouço à senzala, da sala de tortura ao campo de concentração. 6. Tal qual quando socorre as promessas do futuro, o ordenamento jurídico brasileiro a ninguém atribui, mais ainda para satisfazer interesse individual ou econômico imediatista, o direito de, por ação ou omissão, destruir, inviabilizar, danificar, alterar ou comprometer a herança coletiva e intergeracional do patrimônio ancestral, seja ele tom-bado ou não, monumental ou não. 7. Cabe ao Poder Judiciário, no seu inafastável papel de último guardião da ordem pública histórica, cultural, paisagística e turística, assegurar

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Havendo efetivo risco de dano para estes valores e bens tutelados pelo ordenamento jurídico, não há margem de discricionariedade para a Administração Pública e suas autarquias. O tombamento, neste cenário, deve ser efetivado.

Nos casos em que o Poder Judiciário é levado a se manifestar sobre o tombamento, geralmente provocado através de ação civil pública, haven-do risco de dano ambiental, deve ser aplicado o princípio da precaução e o tombamento determinado. O primeiro é instrumento do segundo para a tutela do bem ambiental em caso de risco de danos ao meio ambiente.

Não há que se falar em violação do Princípio da Separação dos Poderes, enfatizado por Montesquieu no Espírito das Leis31, porque os Poderes não são separados em compartimentos estanques e devem ser harmonizados. O Estado- Juiz, a fortiori ante falhas e omissões nas políticas públicas de proteção ambiental a cargo dos Poderes Executivo e Legislativo, deve aplicar o princípio da precaução32 nos processos envolvendo procedimentos de tombamento. Estará assim concedendo eficácia imediata à proteção do meio ambiente, como direito fundamental de terceira geração.

a integridade dos bens tangíveis e intangíveis que a compõem, utilizando os mecanismos jurídicos precautórios, preventivos, reparatórios e repressivos fartamente previstos na legislação. Nesse esforço, destaca-se o poder geral de cautela do juiz, pois, por mais que, no plano técnico, se diga viável a reconstrução ou restauração de imóvel, sítio ou espaço protegido, ou a derrubada daquilo que indevidamente se ergueu ou adicionou, o remendo tardio nunca passará de imitação do passado ou da Natureza, caricatura da História ou dos processos ecológicos e geológicos que pretende substituir. 8. Recurso Especial parcialmente conhecido, e, nessa parte, não provido. [STJ. 2a. Turma. Relator Ministro Herman Benjamin. RESP - RECURSO ESPECIAL – 1293608. DJE 11.09.2014]31 Ver: MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. De l’esprit des lois. Paris: Editeur: Ellipses Marketing, 2015. 32 Sobre decisões judiciais na tutela ambiental, quando falham as políticas públi-cas a cargo dos Poderes Executivo e Legislastivo, ver: WEDY, Gabriel. Sustainable Development and the Brazilian Judge. Sabin Center for Climate Change Law. New York: Columbia Law School, 2015. Fonte: http://web.law.columbia.edu/sites/default/files/microsites/climate-change/wedy_-_sustainable_development_and_brazilian_judges.pdf. Acesso em: 01.12.2015.

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A aplicação do princípio da precaução, na esfera judicial ou admi-nistrativa, nos procedimentos de tombamento, é medida que tutela o direito ao meio ambiente equilibrado para as presentes e futuras gerações. O princípio da precaução não pode deixar de ser aplicado, ou aplicado de modo insuficiente, quando presentes a incerteza científica e o risco de dano. Isso porque o princípio da proporcionalidade veda a inoperância e a proteção insuficiente de bens jurídicos relevantes.33

De outro lado, o princípio da precaução não pode ser aplicado sem a presença da incerteza científica e de indícios concretos de risco de dano ao meio ambiente ou ao patrimônio histórico, artístico e cultural. Não deve jamais o aplicador do princípio fazê-lo, como sói acontecer, sem informações suficientes, com base na histeria coletiva, no clamor público e em pressões midiáticas do momento. É conhecida a falácia em adotar referida escolha pública precautória focada exclusivamente no pior dos cenários, em hipotético e remoto risco de dano ou, até mesmo, de catástrofe [no caso do dano ambiental].34 Aí configura-se o excesso, vedado pelo princípio da proporcionalidade.

Cabe ao aplicador, legislador e executor da medida evitar referido manejo, açodado e excessivo, sob pena de causar o nefasto efeito parali-sante do princípio da precaução35 que inviabiliza empreendimentos eco-nômicos, pesquisas científicas e outras iniciativas de grande importância para a sociedade. Para isso, seria importante, ainda mais em demandas de valor elevado, se fazer a análise do custo-benefício da medida de pre-

33 Ver sobre o tema da responsabilidade do Estado em casos de proteção insuficiente do meio ambiente em: WEDY, Gabriel. Princípio da precaução e responsabilidade estatal. Revista Internacional de Direito Ambiental. V. 12 Set/Dez. 2015. Caxias do Sul: Editora Plenum, 2015. Páginas 120-150. 34 Ver: SUNSTEIN, Cass. Worst-Case Scenarios. Cambridge: Harvard University Press, 2009.35 Especificamente sobre o nefasto efeito paralisante do princípio da precaução ver: SUNSTEIN, Cass. The paralying principle. Chicago: Chicago Law Review, 2002. Disponível em:http://object.cato.org/sites/cato.org/files/serials/files/regulation/2002/12/v25n4-9.pdf. Acesso em: 12.12.2015.

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caução embasada em informações sólidas e fartas dentro de um processo decisório democrático, público e transparente.36

É importante referir que a aplicação excessiva ou insuficiente do princípio da precaução, nos procedimentos de tombamento, amplia e multiplica – em uma sociedade de múltiplos riscos como a nossa37 – a possibilidade da ocorrência de danos ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural. A temperança, pregada faz milênios por ARISTÓ-TELES, em uma visão comunitária,38 é uma virtude que se impõe ao aplicador do princípio da precaução.

ConclusãoNo encerramento do presente estudo pode-se concluir que o princípio

da precaução deve ser aplicado nos casos em que envolvem o procedi-mento administrativo de tombamento. A aplicação do referido princípio fornece maior efetividade ao instituto do tombamento e proporciona maior proteção ambiental contra riscos de danos.

O princípio da precaução deve ser aplicado, com parcimônia e de forma razoável, respeitando os vetores do princípio da proporcionalidade das vedações do excesso e de inoperância. Carece o sistema legal brasileiro infelizmente de uma norma regulamentadora que implemente o procedimen-to da análise do custo-benefício ecologicamente responsável nas decisões administrativas e que poderia servir de norte, dentro das peculiaridades de nosso sistema judicial, para as decisões do próprio Estado-Juiz. A análise do custo-benefício concede maior transparência e melhor informa o processo decisório, além de evitar prejuízos econômicos, sociais e ambientais.

O tombamento, outrossim, deve proteger bens culturais, históricos e ambientais, mas jamais pode ser utilizado para a mutilação da propriedade privada, sob pena de converter-se em desapropriação indireta, naqueles casos em que o uso da propriedade tornar-se economicamente inviável.

36 Ver: SUNSTEIN, Cass. Laws of fear: Beyond the precautionary principle. New York: Cambridge Press, 2005. 37 Ver: BECK, Ulrich. Risk Society: Towards a new modernity. London: Sage, 1997.38 Ver: ARISTOTLE. The Politic. Oxford: Oxford Classic Texts, 1988.

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REFLEXÕES SOBRE A FRAUDE À EXECUÇÃO NO CPC DE 2015

MARIA HELENA RAU DE SOUZAJuíza Federal da 4ª Região aposentada. Diretora de Ensino e Coordenadora

de Direito Processual Civil na Escola Superior da Magistratura Federal do RS - ESMAFERS. Graduada e especialização pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Constitui norma fundamental do processo civil brasileiro o direito de as partes obterem, em prazo razoável, não só a solução integral do mérito, mas também a atividade satisfativa.1,2 A satisfação do titular do direito reconhecido em título judicial ou extrajudicial, na falta de adimplemento espontâneo, dá-se pela execução, a qual se desenvolve no interesse do credor.3 Esses postulados estão na base do sistema processual e irradiam-se sobre todas as regras, as quais devem ser interpretadas e aplicadas à sua luz.

O artigo 789 do Código de Processo Civil, posto em vigor pela Lei n. 13.1054, de 16 de março de 2015, doravante referido como CPC, enun-cia o princípio da responsabilidade patrimonial em matéria executiva.5

1 Os artigos do CPC transcritos nas notas de rodapé deste artigo referem-se à seguinte referência: BRASIL. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 10 mar. 2018.2 “Art. 4º. As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa.”3 “Art. 797. Ressalvado o caso de insolvência do devedor, em que tem lugar o concurso universal, realiza-se a execução no interesse do exequente que adquire, pela penhora, o direito de preferência sobre os bens penhorados. Parágrafo único. Recaindo mais de uma penhora sobre o mesmo bem, cada exequente conservará o seu título de preferência.”4 BRASIL. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 10 mar. 2018.5 “Art. 789. O devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei.”

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É sobre o patrimônio do devedor ou de terceiro responsável6 que recai a execução forçada, sobretudo quando se referir à prestação pecuniária. Constitui o reflexo, no campo processual, da regra de direito material expressa no artigo 391 do Código Civil.7

Importa ressaltar, todavia, que os meios executórios podem ul-trapassar a esfera meramente patrimonial, como ocorre, por exemplo, na intervenção judicial na empresa (art. 102 da Lei n. 12.5298, de 30 de novembro de 2011)9, na decretação da prisão civil do devedor de alimentos (art. 528, § 3º, do CPC)10 ou na determinação de medidas necessárias para obtenção da tutela específica ou do resultado prático equivalente nas obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa (arts. 536, § 1º e 538, § 3º, do CPC).11 A par disso, o CPC introduziu, no ar-

6 Artigo 790.7 “Art. 391. Pelo inadimplemento das obrigações respondem todos os bens do devedor”.8 BRASIL. Lei n. 12.529, de 30 de novembro de 2011. Estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência; dispõe sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica; altera a Lei n. 8.137, de 27 de dezembro de 1990, o Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal, e a Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985; revoga dispositivos da Lei n. 8.884, de 11 de junho de 1994, e a Lei n. 9.781, de 19 de janeiro de 1999; e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/Lei/L12529.htm. Acesso em: 10 mar. 2018.9 “Art. 102. O Juiz decretará a intervenção na empresa quando necessária para permitir a execução específica, nomeando o interventor. Parágrafo único. A decisão que determinar a intervenção deverá ser fundamentada e indicará, clara e precisamente, as providências a serem tomadas pelo interventor nomeado.”10 “Art. 528. No cumprimento de sentença que condene ao pagamento de prestação alimentícia ou de decisão interlocutória que fixe alimentos, o juiz, a requerimento do exequente, mandará intimar o executado pessoalmente para, em 3 (três) dias, pagar o débito, provar que o fez ou justificar a impossibilidade de efetuá-lo. § 3º Se o executado não pagar ou se a justificativa apresentada não for aceita, o juiz, além de mandar protestar o pronunciamento judicial na forma do § 1º, decretar-lhe-á a prisão pelo prazo de 1 (um) a 3 (três) meses.”11 “Art. 536. No cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de fazer ou de não fazer, o juiz poderá, de ofício ou a requerimento, para a efetivação da tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente, determi-nar as medidas necessárias à satisfação do exequente. § 1º Para atender ao disposto no caput, o juiz poderá determinar, entre outras medidas, a imposição de multa, a busca e apreensão, a remoção de pessoas e coisas, o desfazimento de obras e o impedimento de

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tigo 139, inciso IV12, cláusula geral executiva que permite a prestação da atividade satisfativa por meios atípicos que extrapolam a atividade estatal da expropriação de bens do devedor. Assim, nada obstante a proeminência do princípio patrimonial, este não está na base de toda atividade jurisdicional executiva, a qual pode atuar através de meios que excedam os atos tipicamente expropriatórios.

A locução bens presentes e futuros, constante do enunciado norma-tivo do artigo 789 do CPC, abrange os bens existentes no patrimônio do devedor ao tempo da execução ou que a ele venham se incorporar, não alcançando, em princípio, bens já alienados. Isso ocorre porque o débito não congela o patrimônio, conservando o devedor a livre disponibilidade dos seus bens, desde que, é certo, o faça sem prejuízo dos credores. Toda-via, os bens “passados”, ou seja, aqueles que integravam o patrimônio do devedor quando proposta a ação, poderão ser alcançados pela execução se tiverem sido transferidos de forma fraudulenta, como adiante se verá.

Por fim, importa considerar que há um conjunto de bens inatingíveis pela execução forçada, o que afasta o caráter absoluto da sujeição do patrimônio do devedor à efetivação do direito do credor. Tais ressalvas encontram seu fundamento na evolução histórica da disciplina da exe-cução civil, a qual alcançou um patamar em que a tutela do interesse do credor preserva a dignidade da pessoa do devedor. O núcleo patrimonial protegido é constituído pelos bens que a lei considera impenhoráveis ou inalienáveis (art. 832 do CPC)13, listados no artigo 833 do mesmo

atividade nociva, podendo, caso necessário, requisitar o auxílio de força policial. [...] Art. 538. Não cumprida a obrigação de entregar coisa no prazo estabelecido na sentença, será expedido mandado de busca e apreensão ou de imissão na posse em favor do cre-dor, conforme se tratar de coisa móvel ou imóvel. [...] § 3º Aplicam-se ao procedimento previsto neste artigo, no que couber, as disposições sobre o cumprimento de obrigação de fazer ou de não fazer.”12 “Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbin-do-lhe: [...] IV - determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária.”13 “Art. 832. Não estão sujeitos à execução os bens que a lei considera impenhoráveis ou inalienáveis.”

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Código14, cabendo lembrar, por sua relevância e recorrência na prática, a impenhorabilidade instituída pela Lei n. 8.00915, de 29 de março de 1990, sobre o imóvel destinado à moradia. De outra parte, há os bens tidos como relativamente impenhoráveis, porquanto comportam penhora na falta de outros bens: tratam-se dos frutos e rendimentos de bens ina-lienáveis (art. 834 do CPC).16

14 “Art. 833. São impenhoráveis:I - os bens inalienáveis e os declarados, por ato voluntário, não sujeitos à execução;II - os móveis, os pertences e as utilidades domésticas que guarnecem a residência do executado, salvo os de elevado valor ou os que ultrapassem as necessidades comuns correspondentes a um médio padrão de vida;III - os vestuários, bem como os pertences de uso pessoal do executado, salvo se de elevado valor;IV - os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebi-das por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, ressalvado o § 2º;V - os livros, as máquinas, as ferramentas, os utensílios, os instrumentos ou outros bens móveis necessários ou úteis ao exercício da profissão do executado;VI - o seguro de vida;VII - os materiais necessários para obras em andamento, salvo se essas forem penhoradas;VIII - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família;IX - os recursos públicos recebidos por instituições privadas para aplicação compulsória em educação, saúde ou assistência social;X - a quantia depositada em caderneta de poupança, até o limite de 40 (quarenta) salários mínimos;XI - os recursos públicos do fundo partidário recebidos por partido político, nos termos da lei;XII - os créditos oriundos de alienação de unidades imobiliárias, sob regime de incor-poração imobiliária, vinculados à execução da obra.”15 BRASIL. Lei n. 8.009, de 29 de março de 1990. Conversão da Medida Provisória n. 143, de 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8009.htm. Acesso em: 11 mar. 2018.16 “Art. 834. Podem ser penhorados, à falta de outros bens, os frutos e os rendimentos dos bens inalienáveis.”

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207REFLEXÕES SOBRE A FRAUDE À EXECUÇÃO NO CPC DE 2015

As regras atinentes à responsabilidade patrimonial aplicam-se in-tegralmente ao cumprimento da sentença, em especial quando o título judicial for relativo à obrigação de pagar quantia ou quando a prestação de fazer ou não fazer ou de entregar coisa for convertida em indenização por perdas e danos (art. 499 do CPC).17

Constituindo o patrimônio do devedor a garantia dos credores, o sis-tema reprime atos de disposição por parte do devedor que provoquem um desequilíbrio entre seu patrimônio e a totalidade de seus débitos, frustrando aquela garantia. Entre esses atos, despontam os configuradores da fraude à execução e da fraude contra credores. A fraude à execução é instituto de direito processual, cujas hipóteses de ocorrência estão previstas no artigo 792 do CPC.18 A fraude à execução é considerada mais grave que a fraude contra credores por violar normas de ordem pública, uma vez que, a despeito de já ter o devedor contra si processo judicial, capaz de reduzi--lo à insolvência, aliena ou onera seu patrimônio, em prejuízo não apenas dos credores, mas da própria efetividade do processo, configurando ato atentatório à função jurisdicional (art. 774, inciso I, do CPC).19 A penhora incidirá sobre o bem objeto da alienação fraudulenta, sem necessidade de

17 “Art. 499. A obrigação somente será convertida em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente.”18 “Art. 792. A alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução:I - quando sobre o bem pender ação fundada em direito real ou com pretensão reiperse-cutória, desde que a pendência do processo tenha sido averbada no respectivo registro público, se houver;II - quando tiver sido averbada, no registro do bem, a pendência do processo de execução, na forma do art. 828;III - quando tiver sido averbado, no registro do bem, hipoteca judiciária ou outro ato de constrição judicial originário do processo onde foi arguida a fraude;IV - quando, ao tempo da alienação ou da oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência;V - nos demais casos expressos em lei.”19 “Art. 774. Considera-se atentatória à dignidade da justiça a conduta comissiva ou omissiva do executado que:I - frauda a execução.”

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prévia ação para declaração da fraude, a qual poderá ser reconhecida nos autos da execução ou na fase de cumprimento da sentença, impondo-se o dever de intimação do adquirente, para, querendo, apresentar embargos de terceiro, como ressai do disposto no artigo 792, § 4º, do CPC.20

A fraude contra credores é instituto de direito material disciplinado nos artigos 158 a 165 do Código Civil e abrange os seguintes atos: a) a transmissão gratuita de bens (art. 158); b) remissão de dívidas (art. 158); c) contratos onerosos do devedor insolvente quando a insolvência for notória ou houver motivo para ser conhecida de outro contratante; d) antecipação de pagamento ou outorga de garantia de dívida em favor de um dos credores em detrimento dos demais. Na doutrina, anota Carlos Roberto Claro21:

Presente a hipótese de alienação de bens sem o resguardo patri-monial, a fraude contra credores estará caracterizada permitindo a prática de determinados atos, pelos credores, para restabelecimento da anterior situação. Insta salientar, desde logo, que a legislação está a proteger o interesse do adquirente de boa-fé em detrimento do credor. Nessa linha de exposição, ignorando por completo a insolvência do devedor com quem contratou, o terceiro manterá o bem em suas mãos. Isso porque cabe ao credor a prova quanto ao chamado consilium fraudis, elemento subjetivo da fraude perpetra-da. Exigência não há de que o terceiro adquirente esteja em conluio com o devedor, objetivando o prejuízo do credor. Basta a prova de sua ciência da situação de insolvência daquele. No art. 159 do Có-digo Civil a lei presume a má-fé do terceiro adquirente. O elemento de caráter objetivo da fraude é o eventus damni (que nada mais é do que o prejuízo decorrente da insolvência do devedor). A ação própria para reverter a situação e repor o bem (sentido amplo) no patrimônio do devedor é a pauliana. Cabe ao interessado a prova, nas transmissões a título oneroso, do consilium fraudis e eventus damni. A demanda envolve, então, ampla dilação probatória, dado o ônus que cabe ao autor quanto aos requisitos supradelineados.

20 “Art. 792. A alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução: [...] § 4º Antes de declarar a fraude à execução, o juiz deverá intimar o terceiro adquirente, que, se quiser, poderá opor embargos de terceiro, no prazo de 15 (quinze) dias.”21 CLARO, Carlos Alberto. Revocatória falimentar. Curitiba: Juruá, 2003. p. 39-40.

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209REFLEXÕES SOBRE A FRAUDE À EXECUÇÃO NO CPC DE 2015

A previsão expressa da sujeição dos bens alienados ou gravados com ônus real em fraude contra credores é novidade do CPC, não significando, com isso, é certo, que no regime anterior tais bens não fossem atingíveis pela execução forçada. O que a nova lei incorpora é o entendimento já consolidado, tanto no campo doutrinário quanto juris-prudencial22, de que o reconhecimento da fraude contra credores, com a consequente anulação da alienação ou gravação do bem e consequente possibilidade de sujeição do bem à execução, demanda ação própria, de ampla dilação probatória, insuscetível, portanto, de ser alegada ex-clusivamente no processo de execução ou na fase do cumprimento da sentença. Reside, neste ponto, uma das diferenças marcantes entre os atos em fraude contra credores e os atos em fraude à execução. Porém, na base da construção teórica dos institutos da fraude à execução e da fraude contra credores, a doutrina sempre destacou outro elemento distintivo, qual seja, a desconsideração do elemento subjetivo, quer na forma do consilium fraudis, ou da sciencia fraudis, na fraude à execução, a qual se configuraria à custa, tão só, do elemento objetivo consistente na insolvência do devedor. Tal compreensão foi sofrendo, todavia, modificação, especialmente no domínio da jurisprudência, em face de considerações sobre o princípio da boa fé, o que tem condu-zido a uma maior proteção do terceiro adquirente em lugar do credor exequente. Ao nosso ver, este entendimento merece revisão.

22 A necessidade de ação própria para o reconhecimento da fraude contra credores permeou o próprio verbete sumular de nº 195 do STJ, que assim dispõe: “Em embargos de terceiro, não se anula ato jurídico por fraude contra credores”.

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2 A tipificação da fraude à execução A regra do artigo 792 do CPC contempla as hipóteses23 de fraude à

execução, ampliadas comparativamente à disciplina contida no Código de 1973. As três primeiras versam casos de presunção absoluta de fraude à execução, amparadas na oponibilidade erga omnes do conteúdo dos registros públicos. A quarta hipótese é idêntica àquela constante do artigo 593, II, do CPC de 1973, e a quinta compreende todos os demais casos previstos em lei. Como o exame que se passa a empreender revelará, as previsões ostentam pressupostos diferenciados.

Importa relembrar a abrangência dos conceitos de alienação e one-ração de bens, para os efeitos de fraude à execução:

A alienação que pode dar ensejo à fraude é qualquer ato entre vivos, com a participação voluntária do devedor, de que resulte a transferência da propriedade a terceiro, seja a título oneroso, seja a título gratuito (venda, doação, permuta, dação em pagamento) [...]. Mas há de se entender como alienação o ato de renúncia a direito material (renúncia à herança, por exemplo), pois importa diminuição voluntária do patrimônio do devedor, com reflexos em interesses do credor [...]. Oneração é qualquer ato que, sem impor-tar a transmissão da propriedade do bem, limita as faculdades de domínio, mediante criação, em favor de terceiro, de direito real.24

23 “Art. 792. A alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução:I - quando sobre o bem pender ação fundada em direito real ou com pretensão reiperse-cutória, desde que a pendência do processo tenha sido averbada no respectivo registro público, se houver;II - quando tiver sido averbada, no registro do bem, a pendência do processo de execução, na forma do art. 828;III - quando tiver sido averbado, no registro do bem, hipoteca judiciária ou outro ato de constrição judicial originário do processo onde foi arguida a fraude;IV - quando, ao tempo da alienação ou da oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência;V - nos demais casos expressos em lei.”24 ZAVASCKI, Teori Albino. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. v. 8. p. 279-280.

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211REFLEXÕES SOBRE A FRAUDE À EXECUÇÃO NO CPC DE 2015

O primeiro caso de fraude à execução25, assim como os dois que lhe seguem (incisos II e III), está atrelado à oponibilidade erga omnes dos assentamentos constantes dos registros públicos e, via de consequ-ência, à presunção absoluta (iure et de iure) de conhecimento por parte de terceiros. Assim, o adquirente de bem objeto de ação fundada em direito real ou em pretensão reipersecutória não poderá alegar boa-fé, como forma de afastar a incidência dos meios executivos sobre o bem adquirido, caso a pendência do processo tenha sido averbada no respec-tivo registro público.26

Na doutrina, Fredie Didier Jr.27 destaca:

Ação reipersecutória é a ação real ou pessoal pela qual se busca a entrega/restituição de coisa certa que está em poder de terceiro. A ação de recuperação do bem dado em comodato é exemplo de ação reipersecutória pessoal. A ação reivindicatória é exemplo de ação reipersecutória real.

Ainda se colhem exemplos de ação reipersecutória fundada em direito real e em direito pessoal na ação de execução hipotecária e na adjudicação compulsória de promessa de compra e venda desprovida de registro no álbum imobiliário, respectivamente.28 A hipótese constava do Código de 1973 circunscrita às ações fundadas em direito real e sem a exigência de averbação do processo no registro público (art. 593, I). No regime da lei nova, o registro passa a ser o marco, a partir do qual torna-se irretorquível a ocorrência da fraude quando o bem objeto de

25 “Art. 792. A alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução: I - quando sobre o bem pender ação fundada em direito real ou com pretensão reiperse-cutória, desde que a pendência do processo tenha sido averbada no respectivo registro público, se houver.”26 Art. 167, I, item 21 (BRASIL. Lei n. 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Dispõe sobre os registros públicos, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6015compilada.htm. Acesso em: 11 mar. 2018).27 DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. 17. ed. Salvador: Jus Podium, 2015. v. 1. p. 288.28 Os exemplos são de: ALVIM, Eduardo Pellegrini de Arruda et al. Comentários ao Código de Processo Civil. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 1200.

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disputa sofre alienação ou oneração. Aqui não se cogita de insolvência do executado, como na hipótese do inciso IV29, porque é da natureza do direito real, bem como da pretensão reipersecutória, a especificidade do bem para a satisfação do exequente, sendo irrelevante a eventual existên-cia de outros bens no patrimônio do executado. O registro da pendência da ação é cabível tão logo seja citado o réu, porquanto é do ato citatório que a Lei de Registros Públicos (Lei n. 6.01530, de 31 de dezembro de 1973) prevê a averbação (art. 167, I, n. 21).

Há, todavia, questão que merece reflexão. Se, após a sua propo-situra, mas antes do registro da pendência da demanda, o bem sofrer alienação ou oneração, a quem caberá a prova diante da alegação de fraude à execução? A disposição contida no § 2º do artigo 79231, que poderia responder com clareza à indagação, circunscreve-se, todavia, aos bens que não estejam sujeitos a registro, atribuindo, nesses casos, ao terceiro adquirente o ônus de provar que adotou as cautelas neces-sárias para a aquisição. Silencia, todavia, sobre os bens que comportem registro (v.g. imóveis, veículos automotores), o que pode significar, quanto a estes, na ausência de registro, o ônus para o exequente, orientação que, de resto, resulta da Súmula n. 375 do STJ.32 De outra parte, o Superior Tribunal de Justiça, em sede de recurso repetitivo33,

29 “Art. 792. [...] IV - quando, ao tempo da alienação ou da oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência.”30 BRASIL. Lei n. 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Dispõe sobre os registros públi-cos, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6015compilada.htm. Acesso em: 11 mar. 2018.31 “§ 2º No caso de aquisição de bem não sujeito a registro, o terceiro adqui-rente tem o ônus de provar que adotou as cautelas necessárias para a aquisição, mediante a exibição das certidões pertinentes, obtidas no domicílio do vendedor e no local onde se encontra o bem.”32 “O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da má-fé do terceiro adquirente” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula n. 375. 2009. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/docs_internet/revista/eletronica/stj-revista-sumulas-2013_33_capSumula375.pdf. Acesso em: 11 mar. 2018).33 Por maioria, vencida a Relatora Ministra Nancy Andrigui.

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213REFLEXÕES SOBRE A FRAUDE À EXECUÇÃO NO CPC DE 2015

ratificou a tese segundo a qual inexistindo registro de existência da ação no cartório imobiliário, incumbe ao exequente o ônus da prova da ciência por parte do adquirente.34

Entretanto, tendo em conta a dificuldade para o credor em reali-zar essa prova, bem como os elementares cuidados que cabe, ao que adquire bens, na verificação da idoneidade do negócio a ser efetuado, parece-nos que o ônus desta prova, como regra geral, deveria ser in-vertido. Senão todos, muitos casos de alienação fraudulenta poderiam ser evitados com o cumprimento das cautelas de estilo (verificação da existência de ações contra o alienante no foro de seu domicílio ou no lugar da situação do imóvel, mediante obtenção de certidões da Justiça estadual, federal e trabalhista e do registro imobiliário), que, por certo, competem ao adquirente e que assegurariam o reconheci-mento de sua boa-fé.

Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias35 já salientava o

dever social [...] de se verificar a situação patrimonial daquele que irá transferir ou gravar um bem, examinando, se for o caso de bem imóvel, o seu histórico cartorário, procedendo, mais ainda, em relação ao atual e anteriores proprietários, a um crivo generalizado junto ao foro cível, através da coleta de negativas forenses.

Se, para os bens que não estão sujeitos a registro, a fraude à exe-cução poderá igualmente se caracterizar, e a lei é clara ao dispor que, nessa hipótese, o terceiro adquirente tem o ônus de provar que adotou as cautelas necessárias para a aquisição, mediante a exibição das certidões pertinentes, obtidas no domicílio do vendedor e no local onde se encontra o bem, pode-se sem esforço extrair dupla conclusão. Primeira, a de que o registro não é condição à caracterização da fraude à execução, mas tão somente requisito para a presunção absoluta de sua ocorrência, dispensada

34 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). REsp 956.943-PB. Terceira Turma. Data da publicação: DJe 29/04/2015.35 BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias apud ZAVASCKI, Teori Albino. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. v. 8. p. 287.

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REVISTA DA AJUFERGS / 10214

qualquer outra prova e descabida qualquer alegação de desconhecimento por parte de terceiro. Segunda, a de que ao adquirente incumbe cautelas básicas na aquisição de bens. A possibilidade que o credor tem de levar a registro a existência da ação não deve por si só liberar o adquirente de diligências básicas para se acercar da higidez do negócio que pretende efetuar. A nosso ver, a adoção das providências indicadas no § 2º, do artigo 792 do CPC, é exigível também na aquisição de bens sujeitos a registro, quando este inexistir.

Importa, por fim, distinguir a hipótese de fraude à execução em exame, da alienação de coisa litigiosa (art. 109 e §§, do CPC)36 que, de comum, tem a potencialidade de se tornar ineficaz no plano processual. Araken de Assis37 ensina:

O sistema processual admite como válida a alienação de coisa ou direito litigioso, considerando-a, todavia, potencialmente, ineficaz no plano processual, na medida em que a eficácia desta alienação possa colidir com o resultado do processo; se isso vier a ocorrer a sentença estenderá seus efeitos ao adquirente ou cessionário, tendo--se por ineficaz a alienação (art. 42, § 3º, do CPC38). A alienação da coisa litigiosa não é considerada atentado. De outro lado, ao adquirente da coisa litigiosa é vedado o ajuizamento de embargos de terceiro [...], haja vista que não é terceiro.

36 “Art. 109. A alienação da coisa ou do direito litigioso por ato entre vivos, a título particular, não altera a legitimidade das partes.§ 1º O adquirente ou cessionário não poderá ingressar em juízo, sucedendo o alienante ou cedente, sem que o consinta a parte contrária.§ 2º O adquirente ou cessionário poderá intervir no processo como assistente litiscon-sorcial do alienante ou cedente.§ 3º Estendem-se os efeitos da sentença proferida entre as partes originárias ao adquirente ou cessionário.”37 Apud ALVIM, Eduardo Pellegrini de Arruda et al. Comentários ao Código de Processo Civil. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 180.38 A referência é ao Código de 1973.

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215REFLEXÕES SOBRE A FRAUDE À EXECUÇÃO NO CPC DE 2015

Na alienação da coisa ou direito litigioso, ato válido e lícito, sujeito à disciplina do artigo 109 e §§ do CPC (artigo 42 do Código de 1973), o adquirente tem ciência da existência da demanda e, nada obstante, correndo os riscos do resultado do processo, realiza o negó-cio. Na fraude à execução, a alienação não refere o caráter litigioso do bem ou direito transmitido (uma espécie ilícita de alienação de coisa litigiosa), constituindo ato atentatório à dignidade da justiça (artigo 774, I), e, na ausência do registro da ação, poderá o adqui-rente alegar seu desconhecimento, abrindo o debate quanto a quem incumbe o ônus da prova.39

A segunda hipótese40 foi incorporada ao CPC de 1973 desde a refor-ma introduzida pela Lei n. 11.38241, de 7 de dezembro de 2006, muito embora sem integração nessa disposição específica sobre os casos de fraude à execução. A relocação dentro do Código, operada pela nova lei, vem em favor de um tratamento legal coeso em matéria de nuclear importância à efetividade da execução.

Quando de sua previsão como caso de fraude à execução, Humberto Theodoro Júnior42 anotou:

39 “Discordamos, assim, do entendimento segundo o qual ‘o art. 792, I, é mero exemplo de situação fraudulenta que se submete à regra geral do artigo 109 do CPC’” (DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil: execução. 8. ed. ver. ampl. e atual. Salvador: Jus Podium, 2018. p. 396).40 “Art. 792. [...] II - quando tiver sido averbada, no registro do bem, a pendência do processo de execução, na forma do art. 828.”41 BRASIL. Lei n. 11.382, de 6 de dezembro de 2006. Altera dispositivos da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil, relativos ao processo de execução e a outros assuntos. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11382.htm. Acesso em: 12 mar. 2018.42 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. Processo de execução e cumprimento de sentença, processo cautelar e tutela de urgência. 46. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. v. 2. p. 225-226.

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Não é mais necessário aguardar-se o aperfeiçoamento da pe-nhora. Desde a propositura da ação de execução, fato que se dá com a simples distribuição da petição inicial [...], já fica autorizado o exequente a obter certidão de ajuizamento do feito, para averbação no registro público. Não é, pois, apenas a penhora que se registra, é também a própria execução que pode ser averbada no registro de qualquer bem penhorável do executado (imóvel, veículo, ações, cotas sociais, etc.). Cabe ao exequente escolher onde averbar a execução, podendo ocorrer várias averbações de uma só execução, mas sempre à margem do registro de algum bem que possa sofrer eventual penhora ou arresto.

Aqui também se cuida de hipótese de presunção absoluta de fraude à execução, estribada na existência de averbação da pendência da exe-cução no registro público do bem alienado ou onerado. Irrelevante para configuração dessa modalidade de fraude, a demonstração do elemento subjetivo, ou seja, do ânimo do adquirente, porquanto o registro reveste--se da presunção indestrutível de conhecimento por parte de terceiros. A disposição do artigo 828 do CPC43 disciplina os limites das averbações, bem como as responsabilidades decorrentes de tal providência, além de repetir a regra da fraude à execução que ora se examina. Idêntico proce-dimento tem lugar na fase do cumprimento da sentença, com fundamento nos artigos 513, caput, e 771, ambos do CPC.44

O que importa ressaltar é a desnecessidade da litispendência, ins-taurada pela citação válida do executado, para que se possa cogitar da averbação a que a norma se reporta e erige como o marco caracterizador

43 “Art. 828. O exequente poderá obter certidão de que a execução foi admitida pelo juiz, com identificação das partes e do valor da causa, para fins de averbação no registro de imóveis, de veículos ou de outros bens sujeitos a penhora, arresto ou indisponibilidade.”44 “Art. 513. O cumprimento da sentença será feito segundo as regras deste Título, observando-se, no que couber e conforme a natureza da obrigação, o disposto no Livro II da Parte Especial deste Código. [...] Art. 771. Este Livro regula o procedimento da execução fundada em título extrajudicial, e suas disposições aplicam-se, também, no que couber, aos procedimentos especiais de execução, aos atos executivos realizados no procedimento de cumprimento de sentença, bem como aos efeitos de atos ou fatos processuais a que a lei atribuir força executiva. Parágrafo único. Aplicam-se subsidiari-amente à execução as disposições do Livro I da Parte Especial.”

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de fraude à execução. Atente-se, para tanto, que basta o despacho de recebimento da inicial da execução ou do requerimento de cumprimento da sentença para obtenção da certidão a que alude o artigo 828, para fins de averbação. No âmbito do CPC, a dispensa de prévia citação para a caracterização da fraude à execução é restrita a essa hipótese. Na legis-lação extravagante, vale lembrar que fraude à execução fiscal, regulada pelo artigo 185 do Código Tributário Nacional45, também prevê a sua configuração anteriormente à citação na demanda judicial.

Outro ponto a destacar é a irrelevância da solvência do devedor. Uma vez averbados, os bens estão vinculados à execução, até a efetiva-ção da penhora sobre bens suficientes (art. 828, § 2º), e sua alienação ou oneração configurará fraude à execução, por atentar contra a autoridade e efetividade da jurisdição.

Na hipótese em exame, o registro (rectius, a averbação) é elemento essencial, porquanto, não tendo sido averbada a pendência da execução à margem de determinados bens do executado, eventual ato em fraude à execução ficará subsumido à hipótese do inciso IV.

No inciso III do artigo 79246, o CPC trata a alienação de bem objeto de constrição judicial (v.g. penhora, arresto, sequestro) ou de hipoteca judiciária (art. 495 e §§)47 como fraude à execução. Cediço que as constrições judiciais

45 “Art. 185. Presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública, por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa. (Redação dada pela Lcp nº 118, de 2005). Parágrafo único. O disposto neste artigo não se aplica na hipótese de terem sido reservados, pelo devedor, bens ou rendas suficientes ao total pagamento da dívida inscrita. (Redação dada pela Lcp nº 118, de 2005)” (BRASIL. Lei n. 5.172, de 25 de outubro de 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172.htm. Acesso em: 12 mar. 2018).46 “Art. 792. [...] I - quando tiver sido averbado, no registro do bem, hipoteca judiciária ou outro ato de constrição judicial originário do processo onde foi arguida a fraude.”47 “Art. 495. A decisão que condenar o réu ao pagamento de prestação consistente em dinheiro e a que determinar a conversão de prestação de fazer, de não fazer ou de dar coisa em prestação pecuniária valerão como título constitutivo de hipoteca judiciária.§ 1º A decisão produz a hipoteca judiciária:

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REVISTA DA AJUFERGS / 10218

antes mencionadas não tornam o bem indisponível. Todavia, estando o bem submetido ao poder jurisdicional do Estado, através de ato formal, os atos de disposição em seu desrespeito reputam-se ineficazes diante do exequente, como nos demais casos de fraude à execução. De outra parte, assim como nas hipóteses dos incisos I e II, a presunção aqui é absoluta, amparada na existência de registro do gravame sobre o bem48, de forma a impedir qual-quer alegação de desconhecimento por parte do terceiro adquirente. No que diz com os bens penhorados, a Lei dos Registros Públicos traz disposição equivalente quanto à ocorrência de fraude (Art. 240).

Incabível, igualmente, indagar-se, nessa hipótese, como nas antece-dentes, a respeito da insolvência do executado, elemento cuja presença, todavia, é imprescindível à tipificação da fraude à execução de que cuida o inciso IV do artigo 792, como se verá. Em outras palavras, em se tra-tando de bem sujeito à constrição judicial, ainda que o executado tenha outros bens penhoráveis aptos à satisfação do crédito exequendo, o que foi alvo de constrição permanece vinculado à execução, não sendo sua alienação oponível ao exequente.

I - embora a condenação seja genérica;II - ainda que o credor possa promover o cumprimento provisório da sentença ou esteja pendente arresto sobre bem do devedor;III - mesmo que impugnada por recurso dotado de efeito suspensivo.§ 2º A hipoteca judiciária poderá ser realizada mediante apresentação de cópia da sen-tença perante o cartório de registro imobiliário, independentemente de ordem judicial, de declaração expressa do juiz ou de demonstração de urgência.§ 3º No prazo de até 15 (quinze) dias da data de realização da hipoteca, a parte informá-la-á ao juízo da causa, que determinará a intimação da outra parte para que tome ciência do ato.§ 4º A hipoteca judiciária, uma vez constituída, implicará, para o credor hipotecário, o direito de preferência, quanto ao pagamento, em relação a outros credores, observada a prioridade no registro.§ 5º Sobrevindo a reforma ou a invalidação da decisão que impôs o pagamento de quantia, a parte responderá, independentemente de culpa, pelos danos que a outra parte tiver sofrido em razão da constituição da garantia, devendo o valor da indenização ser liquidado e executado nos próprios autos.”48 Art. 167, I, n. 2 e 5 (BRASIL. Lei n. 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Dispõe sobre os registros públicos, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6015compilada.htm. Acesso em: 11 mar. 2018).

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Por fim, tanto quanto ocorre com relação às hipóteses previstas nos incisos I e II, a falta de registro dos atos de constrição judicial (penhora, arresto e sequestro) não impede a caracterização da fraude, visto que o registro não ostenta caráter constitutivo do gravame, mas tem reflexos no ônus da prova. Na jurisprudência, tem prevalecido o entendimento segundo o qual, na ausência de registro, compete ao exequente provar que o terceiro adquirente tinha ciência do gravame, o que, de resto, está estampado no enunciado da Súmula n. 375 do STJ.

Todavia, mesmo que mantida a orientação sumulada, parece-nos imprescindível que se tenha o exequente como desincumbido do ônus, quando reste claro que o adquirente tinha possibilidade de tomar conheci-mento da existência da execução e, consequentemente, da penhora, bem como do arresto ou sequestro, a partir de cuidados ordinários inerentes a toda e qualquer negociação, vale dizer, mediante requerimento de cer-tidões do distribuidor forense do local do domicílio do executado e da situação do bem. Somente nos casos em que essas cautelas mínimas não revelassem a existência da ação e, via de consequência, da constrição (v.g. ação em tramitação em comarca ou subseção judiciária diversa daquela de localização do bem alvo de constrição e do domicílio do devedor) é que se poderia exigir ao exequente, caso alegasse a fraude, a prova da ciência por parte do adquirente da constrição judicial incidente sobre o bem objeto de alienação ou oneração.

Já no que diz com a hipoteca judiciária, embora seja efeito direto da sentença condenatória, indispensável que se especialize, isto é, que sejam in-dividualizados o imóvel ou os imóveis sobre os quais recairá, para que possa ser registrada e, via de consequência, ser oponível a terceiros. Nesse caso, portanto, o registro é constitutivo do próprio gravame, na ausência do qual não se configurará a hipótese desse inciso, diferentemente das constrições judiciais (penhora, arresto e sequestro), cujo registro tem somente a função de gerar a presunção absoluta de conhecimento por terceiros (art. 844).49

49 “Art. 844. Para presunção absoluta de conhecimento por terceiros, cabe ao exequente providenciar a averbação do arresto ou da penhora no registro competente, mediante apresentação de cópia do auto ou do termo, independentemente de mandado judicial.”

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No inciso IV do artigo 792, se reproduz a clássica hipótese de fraude à execução já constante do Código de 1973 (art. 593, inciso II). Os requisitos para a sua configuração são os mesmos: (a) pendência de ação ao tempo da alienação ou oneração e (b) frustração dos meios executórios em decorrência do ato de disposição patrimonial. Em suma, litispendência e insolvência.

Quanto ao primeiro requisito, embora o texto dessa lei consigne o verbo “tramitar” ao invés de “correr”, como fazia o CPC de 1973, parece-nos que o entendimento consolidado de que não há fraude à exe-cução, antes da citação válida, na hipótese que ora se cuida, permanece válido. Assim porque o texto refere-se à ação que tramitava contra o devedor, só se podendo entender como tramitando contra alguém uma ação após a ciência do demandado. De outra parte, cumpre observar que a ação capaz de reduzir o devedor à insolvência não é exclusiva-mente a ação de execução, conclusão a que a denominação do instituto poderia induzir, mas, igualmente, as ações de conhecimento. Importa ressaltar ainda que a sentença penal condenatória, uma vez transitada em julgado, passa a ter efeitos na jurisdição civil, marco a partir do qual a alienação ou oneração pelo réu condenado podem configurar fraude à execução.50

Quanto ao segundo requisito, embora a lei refira-se à insolvência, é de sublinhar que se dispensa uma declaração formal nesse sentido, bastando, para fazer presente o requisito, a inexistência de bens penho-ráveis. Dessa forma, caracteriza-se a fraude à execução de que ora se cuida, quando os atos de disposição dos bens penhoráveis, efetivados após citação válida do devedor, reduzam seu patrimônio a ponto de torná-lo incapaz de suportar a obrigação executada. Em contrapartida, não haverá nenhum reparo a fazer aos negócios eventualmente realiza-dos pelo executado no curso da ação no caso de se remanescerem bens suficientes a garantir a satisfação do crédito, cabendo ao demandado a prova de sua solvência.

50 Apud ZAVASCKI, Teori Albino. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. v. 8. p. 284.

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221REFLEXÕES SOBRE A FRAUDE À EXECUÇÃO NO CPC DE 2015

A hipótese desse inciso, portanto, não está vinculada a qualquer averbação no registro público competente, diversamente das hipóteses contempladas nos incisos I, II e III. Por outro lado, as lições doutrinárias mais antigas sempre afastaram a presença do elemento subjetivo para caracterizar a fraude à execução. A jurisprudência durante largo tempo chancelou o entendimento de que seria desnecessária a prova da má-fé do adquirente e irrelevante a sua boa-fé por ocasião da alienação, consideran-do suficiente apenas a existência de uma ação para a qual já tivesse sido citado o devedor, seja de conhecimento, seja de execução, e a alienação de bens pelo demandado obstando a satisfação do credor. Esse entendimento, todavia, foi se alterando, especialmente no âmbito jurisprudencial, e julga-dos do Superior Tribunal de Justiça passaram a incluir a investigação do elemento subjetivo de parte do alienante e do adquirente do bem, impondo ao credor, para o reconhecimento da fraude à execução, o ônus de provar a má-fé do terceiro que negocia com o devedor.

Ora, não vemos como deixar de pensar que a presunção abrigada pela hipótese em comento milita em favor do exequente, visto que as fraudes podem nulificar a garantia patrimonial do credor, o que signi-ficaria dizer que o ônus da prova em sentido contrário é do executado ou do terceiro adquirente. Malgrado, o entendimento que se assentou de forma predominante na jurisprudência é de que o reconhecimento da fraude à execução, na hipótese versada, depende de prova de que o terceiro tinha ciência da demanda em curso, e esta prova vem sendo atribuída, contraditoriamente, a nosso ver, ao credor exequente, como se verifica da orientação firmada no Recurso Especial julgado pela Corte Especial (REsp 956.943/PB51) com base nos termos do enunciado da Súmula n. 375 do STJ.

Entre argumentos que se manejam para sustentar a atribuição do ônus da prova ao credor exequente está o relativo às previsões legais de registro das ações reais ou reipersecutórias, dos atos constritivos judiciais e da própria existência da execução. Contudo, é bem de ver que remanesce

51 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). REsp 956.943-PB. Terceira Turma. Data da publicação: DJe 29/04/2015.

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largo campo processual em que o sistema não prevê atos registráveis, de forma a atrair a presunção absoluta de fraude com a oponibilidade erga omnes da existência da demanda. É o que ocorre, justamente, na hipótese ora examinada.

Em uma ação de indenização por perdas e danos, por exemplo, após a citação do réu, qualquer ato de disposição ou oneração de seus bens po-derá configurar, em tese, fraude à execução, sem que o autor, caso venha tornar-se exequente, disponha, na fase inicial do processo, instrumento para levar a registro público, de forma a demarcar bens do réu com vistas à futura vinculação ao juízo da execução, sendo procedente o pedido. A possibilidade de promover registro público de caráter acautelatório ficará na dependência de eventual configuração, no caso concreto, dos pressupostos autorizadores da tutela de urgência52. Deverá aguardar o desenvolvimento de toda a fase cognitiva para, somente a partir da prola-ção da sentença condenatória, obter a constituição da hipoteca judiciária sobre bens do réu sucumbente (art. 495 e §§), ou, mais tardiamente ainda, apresentar o requerimento de cumprimento da sentença para promover averbações à margem de bens. Até alcançar esses marcos, estará o autor a descoberto de qualquer presunção absoluta de fraude, amparando-se, tão somente, no princípio da responsabilidade patrimonial ao qual o reconhecimento das fraudes visa, ao fim e ao cabo, dar efetividade.

Portanto, parece imperioso, sob pena de enfraquecimento significativo da garantia que o sistema oferta aos credores, representada pelo patrimônio penhorável do devedor, entender como caracterizada a fraude à execução, se o terceiro adquirente tinha meios de saber da existência da demanda que poderia levar o alienante à insolvência, a partir de cuidados ordinários e já de todos sabidos (certidões do distribuidor forense do domicílio do réu e do local de situação do bem a ser negociado, bem como certidões imobiliárias). Somente para os casos em que a ação tramite em foro diverso daqueles antes referidos é que seria exigível do credor exequente, caso alegue a fraude, demonstrar que o terceiro dela tinha conhecimento, porquanto excederia ao razoável imputar ao último o dever de uma investigação inesgotável.

52 Artigos 300 e 301 do CPC.

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223REFLEXÕES SOBRE A FRAUDE À EXECUÇÃO NO CPC DE 2015

Todavia, esse não é o entendimento até aqui prevalente na juris-prudência, o que o legislador deste novo Código poderia ter afastado de forma expressa. Repetiu, todavia, a ampla hipótese que ora se enfoca, deixando, sem dúvida, a porta aberta para o debate e não impedindo a alteração da orientação jurisprudencial, especialmente sob os influxos da proclamada e intentada efetividade da jurisdição executiva.

Quanto à Lei n. 13.09753, de 19 de janeiro de 2015, fruto de conversão da Medida Provisória n. 656/2014, que, em seu artigo 54, incursionou na disciplina da fraude à execução, afirmando a eficácia jurídica de aliena-ção ou oneração de imóveis, acaso inexistente qualquer das averbações ali previstas, duas ordens de consideração devem ser feitas. Primeiro, a edição da indigitada medida provisória, no que respeita à disposição em foco, se deu com ofensa frontal ao disposto no artigo 62, § 1º, I, letra b, da Constituição Federal, sendo da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal o entendimento de que a lei de conversão não convalida os vícios existentes na Medida Provisória.54 E sobre estar a fraude à execução su-jeita à disciplina do direito processual civil, é uníssona a lição doutrinária.

Por segundo, se não fosse a manifesta inconstitucionalidade da disposição em foco, estaria irretorquivelmente revogada pela superveni-ência do CPC de 2015, pois esta lei, que é posterior, considera em fraude à execução a alienação ou oneração quando tramitar contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência, sem qualquer exigência de pré-via averbação da sua existência no registro público. Ora, é evidente a incompatibilidade da disposição do artigo 792, inciso IV, do CPC, com aquela constante do artigo 54, IV, da Lei n. 13.097, de 2015, visto que nesta última se afasta a eficácia da alienação, consequência típica do ato fraudulento, somente se houver averbação na matrícula do imóvel alienado ou onerado,

53 BRASIL. Lei n. 13.097, de 19 de janeiro de 2015. Disponível em: http://www.pla-nalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13097.htm. Acesso em: 12 mar. 2018.54 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). ADI 4.048-MC. Relator: Ministro Gilmar Mendes. Julgamento em 14/05/2008. Plenário. DJE de 22/08/2008; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). ADI 4.049-MC. Relator: Ministro Carlos Britto. Julgamento em 05/11/2008. Plenário. DJE de 08/05/2009.

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mediante decisão judicial, da existência de outro tipo de ação cujos resultados, ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência, nos termos do inciso II do artigo 593 da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 do Código de Processo Civil.

Com redação confusa e incorreta do ponto de vista técnico, pre-tendeu-se substituir o enunciado do inciso II do artigo 593 do CPC de 1973, pois se acrescentou elemento novo (averbação na matrícula do imóvel), sem o qual as alienações e onerações seriam tidas por eficazes. Todavia, no novo Código, a hipótese do CPC de 1973 (art. 593, II) é mantida com conteúdo substancial idêntico. Assim, havendo incom-patibilidade entre a lei antiga e a nova, como sabido, a primeira resta revogada, nos termos do artigo 2º, § 1º, do Decreto-Lei n. 4.65755, de 4 de setembro de 1942. Nesse sentido, ainda quando superada a inconstitucionalidade, a disposição do artigo 54, IV, da Lei n. 13.097, de 2015, estaria revogada pela superveniência do Código de Processo Civil que lhe é posterior.

Por último, questão que se revela mais espinhosa é a que se põe diante de alienações sucessivas, vale dizer, quando o devedor aliena bem de seu patrimônio penhorável, tornando-se insolvente, e o adquirente, por sua vez, transmite a outrem e assim sucessivamente. Se é razoável exigir do primeiro adquirente cautelas e uma pesquisa sobre a situação do alienante, como aqui sustentamos, já o mesmo não será possível com relação aos adquirentes que se sucederem, pois estariam obrigados a uma investigação abrangente de toda a cadeia de alienações, o que é insus-tentável. Em tais casos, quando o bem já sofreu múltiplas alienações, malgrado a primeira tenha sido em fraude à execução, por configurar a hipótese em comento, caberia ao credor exequente, que alegasse a fraude, demonstrar a ciência do ato fraudulento por parte de quem não adquiriu o bem do devedor.

55 BRASIL. Decreto-lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del4657.htm. Acesso em: 12 mar. 2018.

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225REFLEXÕES SOBRE A FRAUDE À EXECUÇÃO NO CPC DE 2015

Por fim, a disposição do inciso V do artigo 792, o CPC afasta a taxatividade do elenco constante dos primeiros quatro incisos. A lei poderá desenhar outras hipóteses de fraude à execução. É o caso, por exemplo, da previsão contida no artigo 856, § 3º.56 Na legislação ex-travagante, destaca-se, por sua relevância, a fraude à execução fiscal, regulada pelo artigo 185 do Código Tributário Nacional nos seguintes termos:

Presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública, por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa. Parágrafo único: O disposto neste artigo não se aplica na hipótese de terem sido reservados, pelo devedor, bens ou rendas suficientes ao total pagamento da dívida inscrita.

Importa destacar que o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o REsp 1.141.990/PR57, representativo de controvérsia, assentou o en-tendimento de que não se aplica na execução fiscal o enunciado 375 da Súmula de sua jurisprudência, segundo o qual o reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova da má-fé do terceiro adquirente. Na execução fiscal, há presunção absoluta de fraude quando a alienação é efetivada após a inscrição do débito em dívida ativa, sendo desnecessária a discussão quanto à má-fé do adquirente. Tal entendimento protege o crédito tributário e dá o trata-mento condizente ao ato praticado em fraude à execução, diferentemente do que vem ocorrendo com os créditos comuns.

56 “Art. 856. A penhora de crédito representado por letra de câmbio, nota promissória, duplicata, cheque ou outros títulos far-se-á pela apreensão do documento, esteja ou não este em poder do executado. [...] § 3º Se o terceiro negar o débito em conluio com o executado, a quitação que este lhe der caracterizará fraude à execução.”57 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). REsp 1.141.990/PR, 2009/0099809-0. Relator: Ministro Luiz Fux. Data de julgamento: 10/11/2010. S1 – Primeira seção. Data de publicação: DJe 19/11/2010.

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3 Considerações finaisA satisfação do titular do direito compõe o núcleo do direito funda-

mental ao devido processo, e é através da execução que se realiza essa satisfação. A interpretação e aplicação das regras processuais devem orientar-se por esse postulado fundamental de forma a dar efeito concreto às garantias previstas abstratamente.

O Código de Processo Civil de 2015 mantém o princípio da respon-sabilidade patrimonial do devedor como um dos alicerces da execução, nomeadamente da execução de pagar quantia. Entre os bens que se sujeitam à execução, a lei nova expressamente nominou os gravados ou alienados em fraude à execução e ampliou o rol das hipóteses de fraude à execução, comparativamente ao Código de 1973. A fraude à execução é ato que atenta frontalmente contra a atividade jurisdicional e a satisfação do credor.

Foram tipificadas como fraudulentas, ao lado das previsões contidas no Código de 1973 e reproduzidas na nova lei, a alienação e oneração de bem objeto de ação fundada em pretensão reipersecutória e do bem submetido à hipoteca judiciária ou a outro ato de constrição judicial originário do processo no qual seja arguida a fraude. De outra parte, agregou-se a alienação ou oneração de bem em cujo registro tenha sido averbada a pendência de processo de execução. Apesar de a previsão constar no Código de 1973 reformado, não estava integrada na norma que disciplina especificamente a fraude à execução, falha que restou corrigida em favor do tratamento coeso da matéria.

A exigência de averbação no registro público da pendência de ação fundada em direito real ou com pretensão reipersecutória (artigo 792, inci-so I), bem como de ato de constrição judicial (artigo 792, III, in fine), deve ser entendida como requisito para a presunção absoluta de ocorrência de fraude, dispensando qualquer outra prova e afastando qualquer oposição por parte do terceiro adquirente. Inexistindo registro, a questão que se abre é a de identificar a quem cabe o ônus da prova quanto à ocorrência de negócio fraudulento. No que diz respeito aos bens que não estão sujeitos a registro, a lei atribuiu expressamente esse ônus ao terceiro adquirente nos termos do enunciado do § 2º, do artigo 792. Quanto aos bens sujeitos a registro, malgrada a orientação jurisprudencial estampada na Súmula

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227REFLEXÕES SOBRE A FRAUDE À EXECUÇÃO NO CPC DE 2015

n. 375 do STJ, que transfere o ônus ao exequente, a mesma regra deveria ser aplicada, ou seja, cabe ao adquirente demonstrar que adotou cautelas mínimas para a realização do negócio. Isso porque o propósito de conferir segurança e agilidade aos negócios não pode ir ao ponto de fragilizar a garantia do credor exequente contra atos fraudulentos de diminuição patrimonial do executado, o que representa, ao fim e ao cabo, afronta ao direito fundamental à efetividade da jurisdição. De outra parte, a boa fé do terceiro adquirente restaria configurada diante das diligências prévias mínimas para verificação da higidez da alienação ou oneração.

O exequente enquanto não levar a registro a existência de ação (I, supra) ou de constrição sobre determinado bem (III, supra) fica pri-vado, é certo, da presunção absoluta de fraude à execução, vale dizer, a presunção que não admite qualquer prova em sentido contrário, diante de eventual alienação ou oneração pelo executado. Contudo, a falta de registro não afasta a fraude do ato, e o instituto da fraude à execução é, em qualquer das hipóteses, salvaguarda essencial à eficácia do princí-pio da responsabilidade patrimonial e da própria atividade jurisdicional executiva,

Ademais, o Código manteve, entre as hipóteses típicas de frau-de à execução, a alienação ou oneração de bem “quando, ao tempo da alienação ou oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência”, que corresponde à hipótese mais recorrente na prática forense, na qual o credor permanece largo tempo processual sem possibilidade de promover qualquer registro oponível a terceiros. Transferir, como regra, ao exequente o ônus de provar a ciência por parte do adquirente da existência de demanda ou constrição judicial é reduzir-lhe, inaceitavelmente, as possibilidades de satisfação do crédito e, consequentemente, a efetividade da execução.

Assim, pensamos que a exigência de registro nas hipóteses dos incisos I e III, in fine, do artigo 792 é para gerar a presunção absoluta de ocorrência de fraude à execução, dispensada qualquer outra prova.

Nos casos dos incisos II e III, primeira parte (hipoteca judiciária), o registro é requisito indispensável à caracterização da fraude, de tal sorte que sua ausência afasta a alegação de fraude à execução.

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Quanto à hipótese do inciso IV, o enunciado normativo não prevê qualquer registro público, o que intensifica a questão da prova da ciência da demanda por parte do terceiro adquirente e que não pode ser transfe-rida, como regra geral, ao credor exequente, sob pena de esvaziamento da garantia patrimonial erigida em seu favor. Nesse caso, assim como na hipótese de inexistência do registro de que tratam os incisos I e III, in fine, caberia ao que adquire provar que se cercou das cautelas ordi-nárias para a aquisição, sem detectar a existência de demanda capaz de levar o transmitente à insolvência, ou de gravame judicial sobre o bem negociado ou, ainda, de ação real ou reipersecutória que tenha o bem alienado como objeto. Cumpridas tais diligências, eventual alegação de fraude à execução transferiria ao credor o ônus da prova.

O entendimento exposto acima parece-nos mais afinado com o direito à tutela satisfativa proclamado como norma fundamental do processo civil brasileiro.

ReferênciasALVIM, Eduardo Pellegrini de Arruda et al. Comentários ao Código de Processo Civil. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). REsp 956.943-PB. Terceira Turma. Data da publicação: DJe 29/04/2015.

______. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 10 mar. 2018.

______. Lei n. 13.097, de 19 de janeiro de 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13097.htm. Acesso em: 12 mar. 2018.

______. Lei n. 12.529, de 30 de novembro de 2011. Estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência; dispõe sobre a prevenção e repres-são às infrações contra a ordem econômica; altera a Lei n. 8.137, de 27 de dezembro de 1990, o Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal, e a Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985; revoga dispositivos da Lei n. 8.884, de 11 de junho de 1994, e a Lei n.

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229REFLEXÕES SOBRE A FRAUDE À EXECUÇÃO NO CPC DE 2015

9.781, de 19 de janeiro de 1999; e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/Lei/L12529.htm. Acesso em: 10 mar. 2018.

______. Superior Tribunal de Justiça (STJ). REsp 1.141.990/PR, 2009/0099809-0. Relator: Ministro Luiz Fux. Data de julgamento: 10/11/2010. S1 – Primeira seção. Data de publicação: DJe 19/11/2010.

______. Superior Tribunal de Justiça. Súmula n. 375. 2009. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/docs_internet/revista/eletronica/stj-revista--sumulas-2013_33_capSumula375.pdf. Acesso em: 11 mar. 2018.

______. Superior Tribunal de Justiça (STJ). ADI 4.049-MC. Relator: Ministro Carlos Britto. Julgamento em 05/11/2008. Plenário. DJE de 08/05/2009.

______. Superior Tribunal de Justiça (STJ). ADI 4.048-MC. Relator: Ministro Gilmar Mendes. Julgamento em 14/05/2008. Plenário. DJE de 22/08/2008.

______. Lei n. 11.382, de 6 de dezembro de 2006. Altera dispositivos da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil, relativos ao processo de execução e a outros assuntos. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11382.htm. Acesso em: 12 mar. 2018.

______. Lei n. 8.009, de 29 de março de 1990. Conversão da Medida Provisória n. 143, de 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8009.htm. Acesso em: 11 mar. 2018.

______. Lei n. 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Dispõe sobre os registros públicos, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6015compilada.htm. Acesso em: 11 mar. 2018.

______. Lei n. 5.172, de 25 de outubro de 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172.htm. Acesso em: 12 mar. 2018.

______. Decreto-lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del4657.htm. Acesso em: 12 mar. 2018.

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REVISTA DA AJUFERGS / 10230

CLARO, Carlos Alberto. Revocatória falimentar. Curitiba: Juruá, 2003.

DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. 17. ed. Salvador: Jus Podium, 2015. v. 1.

DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil: execução. 8. ed. ver. ampl. e atual. Salvador: Jus Podium, 2018.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. Processo de execução e cumprimento de sentença, processo cautelar e tutela de urgência. 46. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. v. 2.

ZAVASCKI, Teori Albino. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. v. 8.

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A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E A ATUAL INTERPRETAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL

FEDERAL

GERSON GODINHO DA COSTAJuiz Federal, Especialista em Direito Penal Empresarial e Mestre em Direito do Estado pela

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Professor de Direito Penal e Processo Penal da Escola Superior da Magistratura Federal do Rio Grande do Sul – ESMAFE/RS

Existe a atitude de desaprovação ignorante, e existe a atitude de admiração acrítica, mas muito pouco há entre as duas.

George Orwell

RESUMO: o presente ensaio analisa criticamente a atual orientação majoritária do Supremo Tribunal Federal que relativiza o alcance da norma constitucional que trata da presunção de inocência, para permitir a execução penal antecipada.

PALAVRAS-CHAVE: Supremo Tribunal Federal. Presunção de ino-cência. Execução penal antecipada.

SUMÁRIO: Introdução. 1. Delineamentos gerais do princípio da presun-ção de inocência. 2. O tratamento constitucional pátrio da presunção de inocência. 3. O posicionamento majoritário do Supremo Tribunal Federal. 4. Considerações críticas sobre o posicionamento do Supremo Tribunal Federal. 4.1. A adequada resposta criminal. 4.2. A norma constitucional onde está contida a presunção de inocência qualifica-se como regra e não princípio. 4.3. Relativização interpretativa. 4.4. A suficiência de duas instâncias decisórias. 4.5. A utilização abusiva de recursos. 4.6. Mutação constitucional. 4.7. A relativização da relativização. Circularidade prática. Conclusões. Referências Bibliográficas.

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REVISTA DA AJUFERGS / 10232

IntroduçãoQuando do exame do Habeas Corpus n. 126.292, em sessão realizada

em fevereiro de 2016, por maioria de votos, o Plenário do Supremo Tri-bunal Federal, revendo o posicionamento assentado no Habeas Corpus n. 84.078, admitiu a possibilidade de início da execução da pena conde-natória após a confirmação da sentença em segundo grau, entendendo inexistir ofensa ao princípio constitucional da presunção da inocência. O aresto foi relatado pelo Ministro Teori Zavascki.

O tema, contudo, permanece polêmico. E não apenas alhures, mas no interior da própria Corte. Retornou à pauta no julgamento do Habeas Corpus n. 152.752, interposto em favor do ex-Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva. Na oportunidade, o entendimento assentado no julgamento relatado pelo Ministro Teori foi reafirmado. A despeito do Ministro Alexandre de Moraes, que lhe sucedeu no Tribunal, inclinar-se pela posição majoritária, alguns julgadores reviram suas orientações. E o enigmático voto proferido pela Ministra Rosa Weber sinalizou que a questão não se encontra definiti-vamente solvida. A solução, pois, ao que tudo indica, deve ser apresentada, inapelavelmente, ao ensejo do julgamento de Ações Diretas de Constitucio-nalidade que se debruçam sobre o art. 283 do Código de Processo Penal.

Portanto, enquanto não definida, a matéria merece detida reflexão. E é esse o propósito deste singelo trabalho. Naturalmente sujeito a crí-ticas por suas limitações – temporais, pelo estreito período destinado à pesquisa, logísticas, em razão da escassez do material consultado, con-quanto abundante a literatura disponível sobre a matéria, e espaciais, em respeito à estrutura comedida do ensaio –, terá alcançado seu objetivo se simplesmente estimular a ponderação não apenas sobre a presunção de inocência, mas também sobre os importantes desdobramentos implicados na decisão do Supremo Tribunal Federal.

Cumpre destacar, porém, que a proposta de divulgação nesta Revista da Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul/AJUFERGS está menos implicada no teor de suas teses – de resto já levadas à publi-cação – do que no objetivo de homenagear o Ministro Teori Zavascki. Singela homenagem, é bem verdade. Mas sincera e reveladora de especial admiração por um magistrado de escol.

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233A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E A ATUAL INTERPRETAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Teori Albino Zavascki foi um homem público de destaque. Qualifica-ção óbvia que se impõe não apenas pela relevância dos cargos que exerceu, mas também pelo seu legado científico, externado em diversos trabalhos acadêmicos e em incansável produção jurisdicional. Acresça-se a essas características a dedicação séria e discreta no exercício da magistratura, virtudes que, infelizmente, têm sido alheadas da atividade judicante, es-pecialmente a segunda, ainda hoje aqui e acolá, mas com sinais evidentes de que se está consolidando indesejável e crescente movimento.

É fato que a morte, amiúde, redime biografias. Homens comuns – e tome-se o substantivo em sua acepção geral de humanos, sujeitos a idiossincrasias e vicissitudes, atores de erros e acertos –, de posturas questionáveis, quando não são pessoalmente santificados, têm seus equívocos perdoados, a partir do óbito, pela natural sublimação de seus defeitos por parte daqueles que lhes sobreviveram ou mesmo por puro exercício de bajulação interessada.

Não é o caso do Ministro Teori. Tanto que aqui não segue uma pontual e efêmera hagiografia, mas um texto técnico, tão ao seu gosto. E paradoxalmente um trabalho que pretensiosamente experimenta criticar uma de suas construções hermenêuticas. Cuida-se então de uma ínvida e acrimoniosa investida às ideias de uma das mais altas autoridades jurídi-cas, procurando mostrar uma atitude independente e desafiadora? Não. Muito antes pelo contrário. Trata-se de uma crítica científica, portanto, impessoal, tão ao gosto do também Professor Teori, e muito reverente.

Na solidificação do estado democrático de direito, tão almejado por homens de espírito republicano, as divergências e os debates são intrín-secos a essa incessante tarefa. Imbuído desse espírito Teori Zavascki escrevia, publicava, professava e jurisdicionava. Não para encobrir-se na designação de Professor ou Ministro do Supremo e evitar o confron-to promissor, mas para estimular a criação de soluções para o sistema jurídico deste nosso tão complexo e ultrajado Brasil. Seria estimulante escutar seus juízos sobre nosso atual cenário político, lato sensu.

Permanece ainda de grande interesse, pois, discutir esse tratamento emblemático da presunção de inocência e sua (in)compatibilidade com a execução antecipada de sanções penais.

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REVISTA DA AJUFERGS / 10234

E, para esses efeitos, é conveniente apresentar, inicialmente, os delineamentos conceituais da presunção de inocência, através de sinté-ticos esboços históricos e mediante observância de seu tratamento pre-tensamente global, para então se ingressar na análise do seu tratamento constitucional. Num segundo momento, caberá examinar os principais argumentos alinhavados pela tese majoritariamente vencedora do Su-premo Tribunal Federal, e então, a partir desses fundamentos, efetuar uma abordagem crítica.

1 Delineamentos gerais do princípio da presunção de inocênciaNa abalizada palavra de Luigi Ferrajoli, a presunção de inocência

constitui-se em “princípio fundamental de civilidade”1. Ainda segundo o pensador italiano, o preceito atua “a favor da tutela da imunidade dos ino-centes, ainda que ao custo da impunidade de algum culpado”2. Cuida-se de inestimável valor político que legitima o Estado de Direito3. Conforme Nereu Giacomolli, trata-se de “princípio de elevado potencial político e jurídico, indicativo de um modelo basilar e ideológico de processo penal”4, intrinsecamente relacionado à dignidade da pessoa humana5.

Compreendido como direito fundamental de primeira geração, ou direito de liberdade, na percepção de Paulo Bonavides “têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado”6.

1 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 441.2 Idem, p. 441.3 Idem, p. 441.4 GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a Cons-tituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2014. p. 94.5 Idem, p. 95.6 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 517.

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235A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E A ATUAL INTERPRETAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Eis algumas características diretamente relacionadas à relevância constitucional, filosófica e política do preceito, delas decorrendo a basilar influência exercida sobre o direito processual penal. Não por outra razão Aury Lopes Jr. o entroniza como “princípio reitor do processo penal”7, e Nereu Giacomolli lhe atribuirá a árdua tarefa de “sustentação huma-nitária do processo penal”8.

Debruçando-se sobre o preceito no âmbito do direito alemão, assevera Winfried Hassemer que a “presunção de inocência é um dos pilares do nosso Processo Penal”, para mais adiante referir que “pode-se compreendê-lo como um componente irrenunciável na organização do processo se se tem em vista que o processo, por um lado, deve caminhar com segurança para um esclarecimento definitivo sobre a questão do fato e da culpabilidade”9.

Em linhas gerais, a presunção de inocência “corresponde, tecnicamen-te, não-consideração prévia de culpabilidade”10. Ou seja, até o momento processual eleito pela legislação de regência, seja constitucional ou infra-constitucional, nenhuma pessoa poderá ser considerada culpada, estando eximida, pois, de qualquer restrição à liberdade que importe em antecipação de pena, ainda que sobre ela recaia alguma imputação pela prática de fato delituoso. Ademais, por aquela passagem é observável que os conceitos de presunção de inocência e de não-culpabilidade se identificam11.

7 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 226.8 GIACOMOLLI, op. cit., p. 95.9 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do Direito Penal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005. p. 221.10 TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasi-leiro. 3. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 313.11 Ainda que se possa cogitar de eventual distinção terminológica, nos estreitos li-mites deste trabalho são apanhadas indistintamente. Nesse norte, o escólio de Nereu Giacomolli: “As fórmulas ‘presunção de inocência’ (formulação positiva) e ‘presunção de não-culpabilidade’ (formulação negativa) são equivalentes, independentemente das possíveis distinções idiomáticas, semânticas e de purificação conceitual. Distinguir é reduzir o alcance da regra humanitária do status libertatis, afastando-se do conteúdo da previsão constante dos diplomas internacionais antes mencionados. Diferenciá-las é afastar o estado de inocência, é partir da culpabilidade e não da inocência. Também não

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Embora a presunção de inocência obstaculize a imposição de sanções em decorrência de fatos que se subsumam a determinadas descrições nor-mativas típicas, os sistemas jurídicos em regra têm admitido restrições de natureza eminentemente cautelar, ao argumento base de que por não suceder “apriorística consideração de culpa do investigado, indiciado ou acusado, nenhuma afronta sofrerá o preceito constitucional analisado”12. Essa cons-trução, no entanto, é passível de incisivas críticas de setores comprometidos em atribuir à presunção de inocência o atributo da invencibilidade13.

Entretanto, mesmo ante a possibilidade de medidas cautelares, o preceito em referência não deixa de espargir seus efeitos, agora pelo es-treitamento das hipóteses que legitimem a aplicação dessas medidas. Com efeito, na linha do que sustenta Luis Gustavo Carvalho, a “introdução do princípio da presunção de inocência modela e limita as possibilidades de prisão processual, tornando excepcionais os motivos que a justificam”14.

É costume atribuir à presunção de inocência duas distintas compre-ensões, sendo tomada ou como regra de tratamento ou como regra de juízo15. Naquela “exclui ou ao menos restringe ao máximo a limitação da liberdade pessoal”16, enquanto nesta “impõe o ônus da prova à acusação além da absolvição em caso de dúvida”17.

há um estado de ‘semi-inocente’. O conteúdo das expressões não pode gerar dúvidas acerca do estado de inocência e nem desvirtuar o regramento probatório, proteção da liberdade e o tratamento do sujeito como ser humano” (GIACOMOMOLLI, op. cit., p. 92).12 TUCCI, op. cit., p. 315.13 Luigi Ferrajoli é adepto desse pensamento, apesar de reconhecer que a orientação que admite a relativização da presunção de inocência, a partir da admissibilidade restrita de medidas cautelares, “acabou sendo justificada por todo o pensamento liberal clássico” (FERRAJOLI, ob. cit., p. 444).14 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Processo Penal e Constituição: princípios constitucionais do processo penal. 6. ed. rev. ampl. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 189.15 Essa especificação é mencionada apenas a título ilustrativo. Não obstante cientifica-mente rigorosa a distinção, para os fins deste trabalho não se afigura indispensável, senão que cabe esclarecer que a análise estará estritamente relacionada com a sua concepção de regra de tratamento.16 FERRAJOLI, op. cit., p. 442.17 Idem, p. 442.

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Embora as origens do preceito remontem ao direito romano, e após “ofuscado, se não completamente invertido, pelas práticas inquisitórias desenvolvidas na Baixa Idade Média”18, investe-se como garantia de ine-quívoco cunho libertário a partir das idéias iluministas, concretizando-se nos diplomas inspirados nessa filosofia. Aponta-se sua primeira aparição na Constituição do estado da Virgínia (1776)19, contudo, é por intermédio da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) que seu reconhecimento se universaliza.20. A partir de então, e apenas a título exemplificativo, seguem-lhe recomendando observância a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948)21, a Convenção Européia de Direitos Humanos (1950)22, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966)23 e a Convenção Americana de Direitos Humanos (1969)24.

18 Idem, p. 441.19 CARVALHO, op. cit., p. 187.20 Pontua seu art. 9. “Como todo homem deve ser presumido inocente até que tenha sido declarado culpado, se se julgar indispensável detê-lo, todo rigor desnecessário para que seja efetuada a sua detenção deve ser severamente reprimido pela lei” (COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 3. ed. rev. ampl. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 154).21 Art. XI. “1. Todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em jul-gamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa” (idem, p. 233).22 “1. Toda pessoa tem direito à liberdade e a à segurança. Ninguém pode ser privado de sua liberdade, salvo nos seguintes casos e de acordo com as vias legais: a) em caso de detenção regular, após condenação por um tribunal competente” (idem, p. 267).23 Art. 14. “2. Toda pessoa acusado de um delito terá direito a que se presuma sua inocência enquanto não for legalmente comprovada sua culpa” (idem, p. 304).24 Art. 8.º “Garantias Judiciais (...) 2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa” (GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Comentários à Convenção Americana Sobre Direitos Humanos: pacto de San José da Costa Rica. 4. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 89.

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Hodiernamente, é previsto nas Constituições do Canadá25, da Espa-nha26, da Itália27, do Japão28 e de Portugal29. Embora não descrito na Lei Fundamental, encontra-se consagrado na jurisprudência alemã30. Antes do advento da Convenção Européia de Direitos do Homem, quando a partir da qual se considerou positivado, já era igualmente admitido pelas jurisprudências belga31 e inglesa32. Na França, além da previsão contida na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, constou de reforma ao respectivo Código de Processo Penal como princípio guia33.

25 TUCCI, op. cit., p. 313.26 TUCCI, op. cit., p. 313; GIACOMOLLI, op. cit., p. 91.27 TUCCI, op. cit., p. 313; FERRAJOLI, op. cit., p. 442; PERRODET, Antoinette. O Sistema Italiano. In: DELMAS-MARTY, Mireille (Org.). Processos Penais da Europa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 347; GIACOMOLLI, ob. cit., p. 91.28 TUCCI, op. cit., p. 313.29 TUCCI, op. cit., p. 313; GIACOMOLLI, op. cit., p. 91.30 De fato, “a lei deve ser conforme aos princípios do Estado de Direito (art. 28 da GG), ‘republicana, democrática e social’, da qual a jurisprudência extrai, por exemplo, a presunção de inocência (die Unschuldsvermutung)” (JUY-BIRMAN, Rudolphe. O Sistema Alemão. In: DELMAS-MARTY, Mireille (Org.). Processos Penais da Europa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 10).31 “O princípio é largamente admitido pela jurisprudência e atualmente ele encontra seu fundamento no art. 6 da Convenção Européia de Direitos do Homem” (PESQUIÉ, Brigitte. O Sistema Belga. In: DELMAS-MARTY, Mireille (Org.). Processos Penais da Europa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 85).32 “Até o Ato sobre Direitos Humanos de 1988, para outros princípios fundamentais do processo penal era necessário observar a jurisprudência: entre os princípios básicos que poderiam ser encontrados emergia a presunção de inocência (...) Mas, agora, o referido Ato incorporou a Convenção Européia de Direitos do Homem ao direito do Reino Uni-do, e a procura pelos princípios fundamentais normalmente se dá dentro da estrutura da Convenção” (SPENCER, J.R. O Sistema Inglês. In: DELMAS-MARTY, Mireille (Org.). Processos Penais da Europa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 253).33 DERVIEUX, Valérie. O Sistema Francês. In: DELMAS-MARTY, Mireille (Org.). Processos Penais da Europa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 155. Porém, con-soante Giacomolli, “a Constituição Francesa de 1958, em seu preâmbulo, o qual tem idêntica força dos dispositivos contidos no texto principal, declara adesão aos princípios da Declaração de 1789 (‘o povo francês proclama solenemente sua adesão aos Direitos do Homem e aos princípios de soberania nacional tal como foram definidos na Decla-ração de 1789, confirmada e completada pelo preâmbulo da Constituição de 1946’)” (GIACOMOLLI, op. cit., p. 91).

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2 O tratamento constitucional pátrio da presunção de ino-cência

A presunção de inocência encontra-se estampada no inciso LVII do art. 5.º da atual Constituição Federal brasileira, in verbis: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”34.

As Constituições anteriores, todavia, não previam expressamente essa garantia, sem embargo de dispuserem que o rol incluso nos res-pectivos livros que tratavam dos direitos e garantias individuais era meramente exemplificativo, sem exclusão, por conseguinte, de outros princípios decorrentes do regime e princípios adotados35.

Interpretando o texto constitucional em vigência, assevera Rogério Lauria Tucci que, “consagrado constitucionalmente esse expressivo, e favor libertatis, regramento, determinante, como visto, de que, sem a necessária certeza de ser o imputado autor da infração penal cuja prática lhe é atribuída, que só se concretiza com o trânsito em julgado da sentença condenatória, não há como considerá-lo culpado”36.

Esse fragmento enseja a extração de duas insuperáveis premissas, inerentes ao preceito constitucional em exame. Primeira: a presunção de inocência é preceito erigido em favor da liberdade individual. Portanto, por apresentar nítido e inequívoco conteúdo assecuratório, não se com-patibiliza com interpretações que lhe restrinjam o alcance. Segunda: sua superação fática pressupõe necessariamente o trânsito em julgado. Não por que se poderia cogitar de certeza sobre a realização e autoria do fato típico imputado ao réu37, mas por que no âmbito da dinâmica processual

34 BRASIL. Constituição. Organização por Alexandre de Moraes. 28. ed. São Paulo: Atlas, 2007.35 GIACOMOLLI, op. cit., p. 91.36 TUCCI, op. cit., p. 313.37 As pertinentes críticas tecidas em desfavor do vetusto e ultrapassado standard “verda-de real” não permitem que se cogite atualmente de certezas nos juízos condenatórios ou absolutórios, mas apenas de reconstruções aproximadas de fatos passados que redundem em juízos condenatórios ou absolutórios.

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somente o trânsito em julgado não mais permite a rediscussão do mérito a partir de pretensões acusatórias38.

Assim, se a regra constitucional apresenta conteúdo apenas com-patível com interpretações que não cerceiem seu caráter libertário, mas antes o estimulem, além de estar estruturada de forma que o trânsito em julgado se apresente como marco temporal, não se mostra acertado desconsiderá-lo mediante antecipação das penas, em franca relativização da garantia.

Não por outro motivo que no sistema jurídico pátrio doutrina e juris-prudência prevalecentes, a exemplo do que, como anteriormente ressal-tado, observa-se em sistema alienígenas, justificam a prisão preventiva e a prisão temporária por se apresentarem como medidas cautelares. Por outro lado, restaram rechaçadas a prisão resultante da decisão de pronún-cia e o encarceramento decorrente de sentença condenatória recorrível. Estas constituíam efeito automático de determinadas decisões judiciais, enquanto aquelas somente estão autorizadas a partir do cumprimento de requisitos fáticos e jurídicos específicos que lhe permitam a decretação39.

Conforme pontifica Nereu Giacomolli, “a prisão somente se justifica após uma sentença condenatória com trânsito em julgado e a prisão pro-cessual não representa uma antecipação dos efeitos de uma condenação, a qual somente encontra suporte nas estreitas limitações constitucionais de caráter cautelar e vinculadas às necessidades processuais”40.

3 O posicionamento majoritário do Supremo Tribunal FederalO Supremo Tribunal Federal alterou seu entendimento, anteriormente

manifestado por maioria no Habeas Corpus n. 84.078/MG, relatado pelo Ministro Eros Roberto Grau, para, agora, também por maioria, admitir que “a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em

38 Ressalvada a possibilidade de revisão criminal, exclusivamente em favor do con-denado.39 TUCCI, op. cit., p. 315.40 GIACOMOLLI, op. cit., p. 95.

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grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5.º, inciso LVII da Constituição Federal” (Habeas Corpus n. 126.292, Rel. Ministro Teori Zavascki)41. Restaram vencidos, na oportunidade, por ordem de antiguidade na Corte, os Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio de Melo, Ricardo Lewandowski e Rosa Weber.

Grosso modo, é possível identificar algumas linhas mestras que orientaram a decisão da maioria, composta pelos Ministros Teori Zavascki (relator), Edson Fachin, Luis Roberto Barroso, Luiz Fux, Gilmar Men-des, Carmen Lúcia: (I) a necessária resposta criminal do estado ao fato delituoso, erigido à condição de exigência constitucional, encontra-se prejudicada42, inclusive no que se refere à razoável duração do proces-so43, em prejuízo à credibilidade e funcionalidade do Poder Judiciário e do sistema penal44, reforçando, acerca deste, atributos negativos rela-cionados à crença na impunidade45 e seletividade46; (II) a norma consti-tucional onde está contida a presunção de inocência qualifica-se como princípio e não regra; (III) a expressão culpado inserta na regra permite interpretações que relativizem a exigência do trânsito em julgado47; (IV) o exame por duas instâncias decisórias é suficiente para a imposição das penas48, inexistindo sistema que admita terceira e quarta esferas de decisão49; (V) é preciso coibir o uso abusivo de recursos, especialmente os que apresentam intuito meramente protelatório50; (VI) houve mutação

41 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. Habeas Corpus n. 126.292/SP. Data do Julgamento: 17 fev. 2016. Relator: Min. Teori Zavascki. Disponível em: <http://www.stf.gov.br > Acesso em: 28 ago. 2016.42 Ministros Teori e Barroso.43 Ministros Fachin e Gilmar.44 Ministro Barroso.45 Ministros Barroso e Gilmar.46 Ministros Barroso.47 Ministros Teori, Barroso e Gilmar.48 Ministros Teori, Fachin, Barroso e Fux.49 Ministros Teori e Fachin.50 Ministros Teori, Fachin, Barroso, Fux e Gilmar.

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constitucional desde o julgado anterior51; (VII) a posição assentada pela Corte permite também ela relativização. Assim, na hipótese de flagrante equívoco pelas instâncias ordinárias, é admissível a utilização de meca-nismos processuais que estanquem conseqüências danosas ao imputado, v.g., o habeas corpus ou a atribuição pontual de efeito suspensivo aos recursos extraordinário e especial52.

Para o presente trabalho, são esses os principais argumentos ali-nhavados pelos julgadores, os quais terminaram por sustentar a tese vencedora. O objetivo, a partir de então, é analisar crítica e individual-mente cada qual e, na medida do necessário, apresentar eventuais razões que sustentem posicionamento exatamente contrário ao albergado pelo Supremo Tribunal Federal.

4 Considerações críticas sobre o posicionamento do Supremo Tribunal Federal

4.1 A adequada resposta criminal

A posição majoritária atentou para o problemático sistema processual penal pátrio. É possível atribuir-lhe, no mínimo, três desqualificações: é hipertrofiado, seletivo e ineficiente. E não carece de consistência a afir-mação de que essa constatação terminou por orientar o posicionamento do Supremo Tribunal Federal.

O sistema é de fato hipertrofiado por que apresenta infindáveis possibilidades recursais, no plano horizontal ou vertical, especialmente neste, inclusive ante a jocosa qualificação de terceira e quarta instâncias dirigida aos órgãos jurisdicionais não ordinários. É seletivo por que es-sas instâncias recursais extraordinárias amiúde estão ao alcance apenas

51 Ministro Barroso.52 Ministros Teori, Barroso e Gilmar.

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daqueles que dispõem de razoável acervo financeiro53. É ineficiente por que a pretensão a pretensão punitiva, quando não desabilitada pela prescrição, em regra se situa demasiadamente distante do fato punível que lhe é pressuposto54.

Sem embargo, não parece adequado que, perseguindo corrigir incon-gruências do sistema, seja relativizado preceito constitucional, especifi-camente a presunção de inocência. Não somente por que é desacertada a interpretação obtida a partir dessa finalidade, sob pena de esfacelamento da especial força normativa emanada da Constituição, como pela pos-sibilidade de ajuste dessas deficiências por posturas compatíveis com o sistema constitucional, ainda que mediado por outros órgãos e poderes republicanos.

Em atenção ao princípio da proporcionalidade, sob o triplo vértice da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, é possível afirmar que outras medidas poderiam ser adotadas sem necessidade de ul-trapassar a norma constitucional. Nesse ponto, reforma constitucional que limitasse os recursos dirigidos aos tribunais superiores poderia contribuir sensivelmente para superação das dificuldades apresentadas pelo sistema penal. No que se refere à prescrição, poderiam ser criados, pelo legislador, mecanismos interruptivos ou suspensivos, exemplificativamente quando da interposição do recurso extraordinário ou especial, agravos contra decisão de inadmissibilidade dos mesmos, embargos de declaração, etc.

53 A devida estruturação das defensorias públicas tem proporcionado aos profissionais extremamente qualificados que nelas militam a utilização desses instrumentos, não raro com sucesso. E embora se desconheça estudos indicando a parcela populacional atendida, as limitações pessoais e orçamentárias nas quais estão inseridos esses órgãos permitem intuir que essas atuações podem configurar exceções. De resto, a superação mesma desse óbice não seria suficiente para arrefecer as duas outras características negativas, a hipertrofia e a ineficiência do sistema processual penal. 54 É importante o registro de que essa resposta não seja necessariamente de procedên-cia da ação penal. A improcedência também é resultado aguardado. A avaliação dessa inaptidão do sistema para apresentar respostas em tempo razoável não guarda necessária relação com o número de condenações. Deve guardar proporção sim com o número de respostas em tempo adequado, sejam condenatórias ou absolutórias. É permitido, pois, relacionar essa ineficiência com o regular descumprimento do preceito que trata da duração razoável do processo (art. 5.º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal).

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Portanto, é equivocado pretender que a presunção de inocência seja arrefecida, a partir da desconsideração do trânsito em julgado, mediante aplicação do princípio da proporcionalidade. Ambos devem ser compa-tibilizados, não confrontados.

O reconhecimento da proibição de proteção deficiente tampouco deve orientar o intérprete para fins de relativização da presunção de inocência. A esse respeito, a irretocável conclusão de Luciano Feldens: “A garantia de que uma tal função protetiva do Estado não se irá dissipar em mera política de defesa social decorre da necessidade constitucio-nal, antes revisitada, de equacionar a função de imperativo de tutela à tradicional função de proibição de intervenção. A co-existência dessas funções é uma imposição e um desafio ao legislador que eventualmente se encontrará entre Cila e Caríbdis. No plano jurisdicional-aplicativo, mutatis mutandis, processa-se o mesmo: a efetivação da resposta penal haverá de se processar mediante a observância das garantias individuais, que em nenhum momento são jogadas para escanteio”55.

Outra vez a recomendação, assim como antes aventado no que concerne ao princípio da proporcionalidade, é a de conciliar a proi-bição de proteção deficiente com a presunção de inocência, e não estabelecer um conflito que importe em esvaziamento de qualquer dos conceitos.

É correta a percepção de que a atuação disfuncional do sistema pro-cessual penal redunda em descrédito e desprestígio do Poder Judiciário. Mas as soluções para o problema, não é demasiado repisar, não deve passar pela relativização de normas constitucionais56.

O temor quanto à relativização não passa por consideração de or-dem meramente retórica. Repousa nos possíveis desdobramentos dela

55 FELDENS, Luciano. Direitos Fundamentais e direito penal: garantismo, deveres de proteção, princípio da proporcionalidade, jurisprudência constitucional penal, jurispru-dência dos tribunais de direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 95.56 Nesse sentido, a precisa consideração da Ministra Rosa Weber no HC em estudo: “Há questões pragmáticas envolvidas, não tenho a menor dúvida, mas penso que o melhor caminho para solucioná-las não passa pela alteração, por esta Corte, de sua compreensão sobre o texto constitucional no aspecto”.

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decorrentes. Embora a decisão procure atender inequívoca insatisfação social, a contrapartida pode ser inestimável. Nessa senda, é autorizado especular sobre qual o limite de intervenção do Supremo Tribunal Federal, notadamente quando a Corte atuar orientada por inflamadas reivindicações veiculadas por opinião pública ou publicada, ou ainda por se considerar o único órgão responsável pela correção das atuações estatais deficientes.

Sendo possível desconsiderar o marco processual/temporal repre-sentado pelo trânsito em julgado, não é defeso elucubrar que, no elo-giável intuito de reprimir a violência perpetrada por policiais militares, organizações criminosas e oficiosos grupos paramilitares – problema grave e amplamente reconhecido –, seja construído estapafúrdio conceito de guerra civil/militar que possibilite ampliar os casos de aplicação da pena de morte. O exemplo é hiperbólico, decerto. Mas figurativamente a abertura de singela fresta não impede que a porta seja aos poucos escancarada57.

A seletividade pela contratação de profissionais gabaritados é ine-rente a qualquer sociedade capitalista de classes. Não é particularidade brasileira, conquanto aqui possa se apresentar mais acentuadamente. Para conclusões mais precisas seria necessário estimar o índice de sucesso dessa categoria não apenas em outros países. Igualmente não é possível assegurar se, limitada a atuação profissional pela execução antecipada, não se criarão outros nichos de trabalho. Aliás, na medida em que o próprio julgado autoriza impugnação tópica em desfavor da prematura execução, o profissional gabaritado encontrará aí outro campo de atuação.

Atinente à razoável duração do processo, elevada à condição de garantia constitucional expressa pela Emenda Constitucional n. 45/2004, mediante inscrição do inciso LXVIII no rol das garantias do art. 5.º da Constituição Federal, não se presta à queima de etapas processuais com

57 Bem a propósito desse raciocínio foi a ilustrativa proposição que aventou postergar a antecipação da execução penal para momento posterior à apreciação do caso pelo Su-perior Tribunal de Justiça, via recurso especial, e imediatamente anterior ao exame pelo Supremo Tribunal Federal, através de recuso extraordinário. Transferir-se-ia à “terceira instância” (extraordinária) o obstáculo final que ora recai sobre a segunda (ordinária).

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a finalidade de assegurar a punição do agente imputado. Os problemas estruturais do Poder Judiciário58, com imediatas implicações no sistema processual penal, não podem ser resolvidos pela alteração ou subtração do itinerário formal a ser percorrido por exigência devido processo legal.

4.2 A norma constitucional onde está contida a presunção de inocência qualifica-se como regra e não princípio.

Não é possível definir de plano se uma norma é regra ou princípio. Tal classificação, por vezes, somente poderá ser constatada após atuação do intérprete59. É possível intuir, no entanto, que o princípio da pre-sunção de inocência, frente a sua densidade e fraca abertura semântica assemelha-se mais às regras do que aos princípios.

É preciso reconhecer que transita com naturalidade em companhia de dispositivos outros, que lhes são similares, como os inscritos no art. 283 do Código de Processo Penal, com redação determinada pela Lei n. 12.403/2011 (“Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”)60 e nos artigos 105 (“Transitando em julgado a sentença que aplicar pena privativa de liberdade, se o réu estiver ou vier a ser preso, o Juiz ordenará a expedição de guia de recolhimento para a execução”), 147 (“Transitada em julgado a sentença que aplicou a pena restritiva de direitos, o Juiz da execução, de ofício ou a reque-rimento do Ministério Público, promoverá a execução, podendo, para tanto, requisitar, quando necessário, a colaboração de entidades públi-

58 Colhe-se do voto do Ministro Gilmar Mendes: “Resta-nos reconhecer que as instâncias extraordinárias, da forma como são estruturadas no Brasil, não são vocacionadas a dar respostas rápidas às demandas”.59 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 44.60 BRASIL. Código de Processo Penal e Constituição Federal. 56. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

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247A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E A ATUAL INTERPRETAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

cas ou solicitá-la a particulares”) 164 (“Extraída certidão da sentença condenatória com trânsito em julgado, que valerá como título executivo judicial, o Ministério Público requererá, em autos apartados, a citação do condenado para, no prazo de 10 (dez) dias, pagar o valor da multa ou nomear bens à penhora”) da Lei de Execuções Penais61.

Certamente não se aplica a Constituição Federal em orientação ao disposto na legislação infraconstitucional. O que deve ocorrer é preci-samente o contrário. O que importa desvelar, porém, é que o teor do comando constitucional, reiterado em dispositivos infraconstitucionais, recomenda seu tratamento na condição de regra, não de princípio.

4.3 Relativização interpretativa O propósito da Corte Suprema de reparar evidentes deficiências do

sistema penal pela relativização da presunção de inocência apresenta grave problema hermenêutico.

Conforma lição de Canotilho, “Interpretar uma norma constitucional consiste em atribuir um significado a um ou vários símbolos lingüísticos escritos na constituição com o fim de se obter uma decisão de problemas práticos normativo-constitucionalmente fundada”. Prossegue o eminente constitucionalista luso: “Sugerem-se aqui três dimensões importantes da interpretação da constituição: (1) interpretar a constituição significa procurar o direito contido nas normas constitucionais; (2) investigar o direito contido na lei constitucional implica uma actividade – actividade complexa – que se traduz fundamentalmente na <<adscrição>> de um significado a um enunciado ou disposição lingüística (“texto da norma”); (3) o produto do acto de interpretar é o significado atribuído”62.

A norma é concretizada a partir do enunciado legislativo ou disposi-ção lingüística. Portanto, a toda evidência, o ato de interpretar não é arbi-

61 BRASIL. Código de Processo Penal e Constituição Federal. 56. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.62 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6.ed. Coimbra: Almedina, 2002. p. 1186.

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trário, pois parametrizado por esse enunciado ou disposição lingüística. Deveras, “o espaço de interpretação, ou melhor, o âmbito de liberdade de interpretação do aplicador-concretizador das normas constitucionais, tem também o texto da norma como limite”63.

É certo que o intérprete ao emprestar significado ao significante embute em sua construção hermenêutica pré-concepções inerentes a sua condição e ao seu contexto. Elementos históricos, sociais, psicológicos, axiológicos interferem, mesmo que imperceptivelmente, no resultado da exegese. Ainda assim, há limites na realização do trabalho, sob pena de o produto apresentado ser discricionário.

O fenômeno designado por neoconstitucionalismo, orientado pela tarefa de emprestar efetividade aos comandos constitucionais, natural-mente implicou o reexame das diretrizes hermenêuticas. Esse contexto diferenciado, entretanto, não dispensou por completo o modelo subsun-tivo, senão que tratou de adequá-lo a essa novel realidade.

Elucidativa é a seguinte consideração de Luís Roberto Barroso: “A idéia de uma nova interpretação constitucional liga-se ao desen-volvimento de algumas fórmulas originais de realização da vontade da Constituição. Não importa em desprezo ou abandono do método clássico – o subsuntivo, fundado na aplicação de regras – nem dos elementos tradicionais da hermenêutica: gramatical, histórico, sistemático e teleoló-gico. Ao contrário, continuam eles a desempenhar um papel relevante na busca de sentido das normas e na solução de casos concretos. Relevante, mas nem sempre suficiente”64.

63 Idem, p. 1206.64 BARROSO, Luís Roberto. O novo direito constitucional brasileiro: contribuições para a construção teórica e prática da jurisdição constitucional no Brasil. Belo Horizon-te: Fórum, 2013. p. 141. Não se pretende aqui explicitar a descortesia de contrapor a lição do estudioso com a aplicação prática pelo Ministro Barroso. Objetiva-se apenas a coleta de argumentos em favor da tese ora externada. Tanto que, a seguir, as lições do pesquisador terminam por se coadunar com os fundamentos do julgado: “A nova interpretação constitucional assenta-se no exato oposto de tal proposição: as cláusulas constitucionais, por seu conteúdo aberto, principiológico e extremamente dependente da realidade subjacente, não se prestam ao sentido unívoco e objetivo de uma certa tradição exegética lhes pretende dar. O relato da norma, muitas vezes, demarca apenas

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Pois na hipótese, verifica-se que o método gramatical restou des-prezado, quando o correto seria não restringir seu alcance libertário. Sua desconsideração, para fins de atender propósitos consequencialistas, extravasou a mínima vinculação que o intérprete deva manter com o sig-nificante, deslegitimando, em decorrência, a atuação jurisdicional. Com a devida vênia, no ponto, o Supremo desbordou dos limites que orientam o aplicador da norma, não cumprindo com a necessária auto-contenção que deve orientar o julgador, especialmente em relação a comando não infenso a violações e invectivas, e cujo conteúdo é de inequívoco propó-sito assecuratório. O preceito constitucional que expressa a presunção de inocência não admite interpretação que lhe encurte a abrangência, seja por sua natureza de regra garantidora da liberdade, seja por tratar de marco temporal irretorquível externado pelo conceito de trânsito em julgado.

A esse respeito, verbaliza Rogério Lauria Tucci “que o texto de lei, especialmente o constitucional, quando claro, inadmite interpretações restritiva, extensiva, ou diversificativa: in claris cessat interpretatio”65. Mas o alcance desse antigo e consagrado axioma merece temperamento. A adjetivação acerca da clareza da norma, ou especificamente dos signi-ficantes nela contidos, decorre necessariamente de interpretação prévia. Embora todos os significantes sejam passíveis de interpretação, há os que apresentam maior ou menor abertura semântica, isoladamente ou em conjunto. Está a parecer, na linha do exposto, que a expressão “todos são iguais perante a lei” apresenta maior complexidade do que “trânsito em

uma moldura dentro da qual se desenham diferentes possibilidades interpretativas. À vista dos elementos do caso concreto, dos princípios a serem preservados e dos fins a serem realizados é que será determinado o sentido da norma, com vistas à produção da solução constitucionalmente adequada para o problema a ser resolvido” (idem, p. 142). É factível discordar das posições do Ministro Barroso, jamais impugnar o vigor e a coerência de seus argumentos.65 TUCCI, op. cit., p. 317. Conforme asseverou o Ministro Marco Aurélio: “O pre-ceito, a meu ver, não permite interpretações. Há uma máxima, em termos de noção de interpretação, de hermenêutica, segundo a qual, onde o texto é claro e preciso, cessa a interpretação, sob pena de se reescrever a norma jurídica, e, no caso, o preceito constitu-cional. Há de vingar o princípio da autocontenção. Já disse, nesta bancada, que, quando avançamos, extravasamos os limites que são próprios ao Judiciário, como que se lança um bumerangue e este pode retornar e vir à nossa testa”.

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julgado”, instituto de natureza processual que passa a existir topicamente a partir da correspondente certificação.

Essa conclusão não obstaculiza, como a princípio pode parecer, alguma construção hermenêutica da norma constitucional em comento, senão que de cunho literal. Pelo contrário, outra interpretação é não apenas permitida, como também estimulada, contanto que otimize a tutela da liberdade, não o contrário66. Deveras, “quando se trata de disposição ambígua ou obscura, propiciante de entendimento duvidoso, torna-se admissível a interpretação extensiva, em favor da liberdade”67. É preciso asseverar, portanto, que “a presunção de inocência, enquanto princípio reitor do processo penal, deve ser maximizada em todas as suas nuances”68.

Não há, pois, como ultrapassar essa cláusula temporal senão que em prejuízo à garantia constitucional a ela diretamente relacionada, posto que essa garantia “reside e, portanto, se esgota no fenômeno processual denominado trânsito em julgado”69. Destarte, “toda providência ou res-trição que importe em antecipação da condenação ou de sua execução parece vedada ao legislador”70.

No preciso magistério de Luis Gustavo Carvalho: “Se a Cons-tituição garante a presunção de inocência até o trânsito em julgado, vale dizer que a presunção só desaparece e, conseqüentemente, só é possível a prisão por condenação após a constituição da coisa julgada material. Ela só irá ocorrer com o conhecimento e a rejeição do recurso

66 O Ministro Celso de Melo refere em seu voto que a presunção de inocência é “cláusula de insuperável bloqueio à imposição prematura de quaisquer medidas que afetem ou restrinjam a esfera jurídica das pessoas em geral”. Refere que a norma em comento “estabelece, de modo inequívoco, que a presunção de inocência somente per-derá a sua eficácia e a sua força normativa após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. Por isso, admite apenas e tão-somente “hermenêutica essencialmente emancipatória”, pois outro tipo de solução resultaria em “esterilização” da garantia.67 TUCCI, op. cit., p. 317.68 LOPES JR., op. cit., p. 229.69 TUCCI, op. cit., p. 318.70 BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 602.

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extraordinário e do recurso especial, com sua não interposição ou com o julgamento e a rejeição do agravo interposto para o recebimento dos referidos recursos. Essa conclusão baseia-se naquele mesmo racio-cínio empregado para não limitar, de qualquer forma, o dispositivo constitucional”71.

Prevalecendo o entendimento direcionado a suprir disfunções que devem ser remediadas não apenas pelo Poder Judiciário, e criado ao arrepio do que dispõe o sistema jurídico objetivo, nada obstará que, ante o recrudescimento da violência, proclame-se que determinada categoria de crimes desconsidere o trânsito em julgado para antecipação do cum-primento da pena já por ocasião do julgamento em primeira instância, ao fundamento de que nesses casos específicos a culpa já está devidamente formada72. Por conseguinte, para que não se corra esse risco, é imprescin-

71 CARVALHO, op. cit., 192.72 O Ministro Barroso distingue prisão, que deve decorrer de ordem escrita e funda-mentada da autoridade competente, de culpabilidade, a qual, na sua ótica, é que exige o trânsito em julgado. Assevera que “O pressuposto para a privação de liberdade é a ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, e não sua irrecorribilidade”. Mas qual seria o limite a partir de então? Sem ele, em tese, decisão de primeira instância já poderia propiciar a antecipação da pena, por exemplo, em casos de crimes hediondos, delitos apenados com reclusão ou com pena privativa de liberdade superior a tantos anos. Tudo a depender do termômetro que mede a insatisfação social com a (in)eficiência do sistema processual penal. Com a devida vênia, o insigne julgador não trabalha com a sutil diferença acerca das medidas cautelares, que não importam antecipação de pena e apresentam regência diferenciada. O inciso LXI do art. 5.º da Constituição Federal conforma exatamente a exceção representada pela prisão cautelar. Depende de motivação específica e condizente com seus requisitos, não se harmonizando com efeito automático de decisão restritiva da liberdade. O voto, ademais, esclarece que a execução provisória impediria a aplicação de efeitos extrapenais, como a perda do cargo público. Entretanto, não há qualquer garantia para que isso não ocorra. Afinal, o Supremo Tribunal Federal respaldou que mesmo efeitos reflexos podem ser imediatamente considerados quando do julgamento da Lei de Ficha Limpa. Observe-se a interpretação do Min. Gilmar Mendes: “Note-se que a Lei da Ficha Limpa considera inelegíveis os condenados por diversos crimes graves nela relacionados, a partir do julgamento em Tribunal (art. 1o, I, “e”, da Lei Complementar 64/90, introduzido pela Lei Complementar 135/10). Essa norma e constitucional, como declarado pelo Supremo Tribunal (Ações Declaratórias de Consti-tucionalidade 29 e 30, Relator Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgadas em 16.2.2012). Ou seja, a presunção de não culpabilidade não impede que, mesmo antes do trânsito em julgado, a condenação criminal surta efeitos severos, como a perda do direito de ser

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dível considerar que as “restrições somente se justificam após o trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória”73.

Outra vez são pertinentes as lúcidas reflexões de Luis Gustavo Carvalho: “não há como não se objetar que o prolongamento das lides é indesejável e concorre substancialmente para a impunidade (...). O ideal seria que a Constituição apenas expressasse o princípio em ter-mos genéricos, sem fixar um marco processual, como fez ao aludir ao trânsito em julgado. Assim, a jurisprudência poderia adequá-lo melhor. Andou melhor a Convenção Americana ao prever a presunção de ino-cência até que se comprove a culpabilidade, permitindo, como isso, que regras infraconstitucionais estabeleçam, por meio dos efeitos atribuídos aos vários recursos, quando cederia a presunção. Portanto, o art. 8.º, n. 2, da Convenção é mais restritivo do que o dispositivo constitucional brasileiro. Mas não se pode advogar que a Convenção tenha restringido o princípio brasileiro, pois a própria Convenção prevê que sua aplicação não pode reduzir as garantias estabelecidas pelo direito interno. Diante desse quadro, não se pode pretender constitucional a expedição de man-dado de prisão, automaticamente, pela confirmação de condenação no segundo grau de jurisdição, sendo necessária fundamentação acerca da necessidade da prisão”74.

Nesse cenário, é premente cogitar de outras soluções como reforma da legislação, quiçá da própria Constituição Federal. Aliás, nessa seara, cabe ressaltar que a exacerbada competência atribuída ao Supremo de-corre não apenas do que a Constituição lhe confere, mas especialmente de postura pouco restritiva que contribui significativamente para os

eleito. Igualmente, não parece incompatível com a presunção de não culpabilidade que a pena passe a ser cumprida, independentemente da tramitação do recurso”. Ademais, não restou cabalmente esclarecido pela Suprema Corte se é possível antecipar, na linha das sanções privativas da liberdade, as restritivas de direitos e a multa.73 GIACOMOLLI, op. cit., p. 96.74 CARVALHO, op. cit., p. 192. Essa construção doutrinária é corroborada pelo seguinte fragmento extraído do voto do Min. Celso de Melo: “É por isso que se mostra inadequa-do invocar-se a prática e a experiência registradas nos Estados Unidos da América e na França, entre outros Estados democráticos, cujas Constituições, ao contrário da nossa, não impõem a necessária observância do trânsito em julgado da condenação criminal”.

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problemas que a Corte procura solucionar por vias transversas75. Sem resguardar-se aos casos paradigmáticos e precavendo de se imiscuir em julgamentos de natureza meramente ordinária, em nada contribuirá o Supremo para o aprimoramento do sistema. Porém, não se observa essa cautela. Para comprovar essa assertiva basta invocar a ressalva admitida pelo próprio Supremo no que se refere à ora admitida exe-cução provisória.

4.4 A suficiência de duas instâncias decisórias Não há dúvida de que a consistência da acusação é obtida com a

decisão de segundo grau, onde se exaure o exame dos fatos e das provas, e que às instâncias superiores, provocadas pelos recursos extraordinário e especial, incumbirá apenas a análise de matéria essencialmente jurídica. Daí se dessume que o duplo grau é suficiente para fixação da respon-sabilidade criminal do processado e que a imposição de outras esferas recursais não encontra paralelo nos sistemas jurídicos estrangeiros. Tam-pouco é discutível a conveniência de cumprimento da condenação desde o exame pela instância recursal ordinária por imperativo de efetividade da jurisdição. A questão é que há obstáculo constitucional expresso que, queira-se ou não, concorde-se ou não, deve ser respeitado.

75 As críticas formuladas em desfavor do excesso de atribuições do Supremo Tribunal Federal, temperada pela ausência de contenção do exame dos pleitos que lhe são dirigi-dos, constam do seguinte trabalho: COSTA, Gerson Godinho da. Suprema Hipertrofia. Direito Federal – Revista da AJUFE. Brasília, ano 26, n. 93, p. 271-294, jul./dez. 2013. Sem embargo desse direcionamento, é instrutiva a autocrítica realizada pelo Min. Fachin: “Há, todavia, com a devida vênia de quem eventualmente conceba de forma diversa, um agigantamento dos afazeres deste Supremo Tribunal Federal, que decorre da própria forma como esta Corte interpreta determinadas regras constitucionais. Não faço aqui apologia daquilo que se costuma denominar de jurisprudência defensiva. Quero, todavia, dizer que, dentro daquele espaço que a Constituição outorga ao intérprete uma margem de conformação que não extrapola os limites da moldura textual, as melhores alternati-vas hermenêuticas quiçá são, em princípio, as que conduzem a reservar a esta Suprema Corte primordialmente a tutela da ordem jurídica constitucional, em detrimento de uma inalcançável missão de fazer justiça nos casos concretos”.

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Sob outro enfoque, os índices relacionados ao provimento de recur-sos especiais e extraordinário, reputados irrisórios, poderiam ser utiliza-dos para justificar a supressão da segunda instância, acaso constatado que seja ínfimo também o número de reformas de sentenças condenatórias. A supressão do trânsito em julgado, qualificador da garantia da presun-ção de inocência, permitiria, a contrario sensu, soluções dessa espécie.

Ademais, a solução majoritária proposta não trata de corrigir even-tual desconfiança com as instâncias ordinárias, posto que essa suspeita remanesce travestida da ressalva de revisão tópica do próprio entendi-mento acerca da possibilidade de execução antecipada.

4.5 A utilização abusiva de recursos O problema dos recursos protelatórios não é específico das instân-

cias extraordinárias, também sucede nas esferas ordinárias. Ademais é preciso reconhecer que muitos desses recursos foram pretorianamente construídos ou estão previstos em regimentos internos elaborados pelas próprias cortes.

Igualmente seria recomendável comportamento menos passivo do Poder Judiciário em relação ao tratamento dispensado a recursos indiscu-tivelmente protelatórios, inclusive mediante imposição das penalidades processuais cabíveis.

4.6 Mutação constitucional Quanto à mutação constitucional não restou esclarecido o que

precisamente se transformou para autorizar essa viragem na juris-prudência do Supremo Tribunal Federal. Não há como medir se o sentimento de impunidade é maior ou menor do que há cinco ou dez anos. Não há, outrossim, nesse curtíssimo interregno, algo que evidencie sensível mudança na facticidade que permita a releitura de sua normatividade.

E ainda que perceptível alguma modificação, seria imprescindível atentar ao magistério de Luis Gustavo Carvalho: “Está certo que as nor-

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mas – entre as quais estão os princípios – não podem ser interpretadas alheias ao mundo real, ficticiamente, sob pena de cair-se num positivismo sem sentido. Concorda-se que uma coisa é presumir a inocência de todos, especialmente daquele que está afirmando sua própria inocência; outra coisa é continuar presumindo a inocência de quem, além de já condenado pela segunda instância ou pelas duas instâncias, não está mais lutando por tese que evite a sua prisão. Mas esses argumentos não têm força para se sobrepor ao texto constitucional: presume-se a inocência até o trânsito em julgado. A solução, portanto, parece não estar nas mãos do Judiciário, mas do Legislativo”76.

4.7 A relativização da relativização. Circularidade prática Conforme anteriormente ressaltado, o Supremo Tribunal Federal

optou por ressalvar a possibilidade de analisar topicamente os casos em que se mostrar necessário suspender a execução provisória. Chegou a aventar os instrumentos processuais aptos para essa finalidade, como a atribuição de efeito suspensivo aos recursos extraordinário e especial ou o manejo do habeas corpus.

Ante o que já foi sustentado criticamente a respeito, incumbe ape-nas sugerir que qualquer reflexão mais apropriada sobre a questão não dispensaria o cotejo dos números que retratem os recursos especial e extraordinário apresentados até o julgado com os de pedidos de suspen-são da execução provisória. Leitura intuitiva e prognóstica do cenário aponta que serão aproximados. Caso procedente essa especulação, por certo que a pretensão de corrigir algumas inaptidões do sistema penal se revelará inócua. E ao custo inestimável de relativização de garantia constitucional. Na linha do que sustenta Luigi Ferrajoli, no sentido de que “nenhum valor ou princípio é satisfeito sem custos. E esse é um custo que o sistema penal, se quiser salvaguardar sua razão de ser, deve estar disposto a pagar”77, infelizmente restará devedora a Corte Suprema.

76 CARVALHO, op. cit., p. 193.77 FERRAJOLI, op. cit., p. 449.

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Conclusões

Nesse momento encontra-se maduro sintetizar a seguinte conclu-são: o Supremo diagnosticou acertadamente a enfermidade do sistema processual penal, ante os sintomas antes enumerados, mas equivocou-se ao ministrar o medicamento.

A relativização da presunção de inocência poderá servir de para-digma a indesejável ativismo judicial, do qual poderá resultar indevida interferência quanto à atuação de outros poderes, inclusive ao arrepio de significantes legislativos, sejam constitucionais ou infraconstitucionais, ante o inequívoco alargamento semântico adotado pela Corte Suprema. Ou seja, periclita hoje não apenas a garantia constitucional aventada, mas provavelmente, no futuro, também a segurança do próprio sistema jurídico.

Esse, entretanto, é um prognóstico que pode não se consolidar. Ou por que o Supremo Tribunal Federal ainda pode se posicionar diferen-temente, em consonância com as conclusões ora apresentadas, ou por que, mesmo mantendo sua orientação, revelem-se ineptas as desventuras hic et nunc conjecturadas.

O que de toda maneira restará inabalável é o legado intelectual respeitável e íntegro de Teori Zavascki. Dele será possível discordar, ao preço de muito esforço teórico, incumbindo, ainda, a esse filtro crítico, estar necessariamente situado entre a desaprovação ignorante e a admi-ração acrítica, nunca nesses extremos.

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TRIBUNAL DE JUSTICIA AMBIENTAL EN AMÉRICA LATINA: ALTERNATIVA JURÍDICA

RESPONSABLE PARA PREVENIR DESASTRES ECOLÓGICO.

EDGARDO TORRES LÓPEZJuez Superior de la Corte Superior de Justicia de Lima Norte

RESUMEN: El autor del artículo, realiza una introducción sobre la importancia del Derecho Ambiental y la misión que deben cumplir los jueces; seguidamente describe 3 casos de graves daños contra la vida y ecología ocurridos en el Perú. Finalmente, formula algunas ideas, respecto a la labor de los jueces especialistas en Derecho Ambiental y propone la necesidad de constituir un Tribunal Internacional de Justicia en la especialidad ambiental, en América Latina.

ABSTRACT: The author of the article makes an introduction about the importance of environmental law and the mission to be fulfilled by judges. Then describe 3 cases of serious damage to life and ecology occurred in Peru. Finally, it formulates some ideas regarding the work of judges in environmental law specialists and proposes the constitution of Latin-American Environment Court International.

1 IntroducciónEl Derecho Ambiental o del Medio Ambiente es un derecho autóno-

mo, con dimensión sustantiva y procesal. Asimismo es de interés general y de orden público, conforme se ha establecido en diversos Tratados Internacionales.

El Derecho Ambiental, es negociable en el sentido crematístico. Es un derecho indisponible; de protección de carácter fundamental.

El Derecho Ambiental, tiene la finalidad de prevenir, proteger, res-taurar y preservar el ambiente; haciendo efectivo el deber de precaución de la vida y ecología sana.

Su objetivo es la protección de la vida, ecología, fauna, flora, biodi-versidad y el desarrollo sustentable y equilibrado en un hábitat saludable;

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asimismo evitar la destrucción progresiva de la naturaleza y la vida, orientando la acción humana al bienestar común.

El Derecho Ambiental, ordena las normas substantivas para la pre-servación del ambiente natural, respecto a posibles acciones destructivas y contaminantes de las personas y las empresas.

El Derecho Procesal Ambiental, proporciona los mecanismos pro-cesales para garantizar el derecho substantivo y hacerlo efectivo.

2 Labor de los jueces Los jueces en general, tienen la misión de juzgar e impartir justicia.

La justicia en esencia es brindar a cada quien lo que corresponde; de-clarar el derecho o la responsabilidad; o absolver de la acusación. Todo esto sobre la base de normas legales previas y pruebas existentes en un juicio; que pueden formar convicción, o ser insuficientes.

En la especialidad de Derecho Ambiental, por imperativo constitu-cional y legal de la mayoría de países, los jueces deben hacer respetar el derecho al medio ambiente natural sano y equilibrado. Cuando exista evidencia de delito, deben sancionar en forma ejemplar a los que conta-minan y destruyen el medio ambiente; la sanción debe imponerse como una medida necesaria, disuasiva y educativa.

Se entiende que la sanción, no es simplemente la privación de la libertad, o el pago de una reparación. La sanción va más allá. Debe con-sistir en la restauración del espacio natural dañado; en el lugar producido, o cerca de él; y la indemnización a las víctimas.

Si los mandatos legales y judiciales, de defensa ambiental, se cum-plen y hacen cumplir el efecto será positivo, ejemplar y multiplicador como acción preventiva general, de dignidad, conducta adecuada y respeto ambiental.

Requerimos de acciones concretas, de medidas legales efectivas, que demuestren que en todos los países del mundo, los magistrados con sentencias justas y legales, protegen y brindan tutela judicial efectiva a los derechos del medio ambiente.

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RESPONSABLE PARA PREVENIR DESASTRES ECOLÓGICO.

3 Desastres ecológicos ocurridos en Perú

3.1 Tragedia en la Oroya La minería formal, informal e ilegal es extensa con determinadas

aristas conflictivas en el Perú. Según el Observatorio de Conflictos Mineros en 2012; 25 millones

de hectáreas a escala nacional fueron objeto de concesiones mineras. Esta cantidad es mayor teniendo en cuenta la existencia de actividades mine-ras informales e ilegales, combatidas insuficientemente por el Estado.

En lo que se refiere a La Oroya, en la actualidad es una pequeña ciudad de aproximadamente 60,000 habitantes, situada en la cordillera central de Perú, en el departamento de Junín en la provincia de Yauli. Dista 176 km de Lima y 125 km de Huancayo (capital del departamento) y se ubica a 3.750 metros de altitud.

La ciudad creció alrededor de un complejo metalúrgico, asentado en 1922. El complejo fue explotado por una empresa estadounidense hasta la década del 70, que fue nacionalizado por el gobierno militar del Gral. Juan Velasco Alvarado, convirtiéndola en CENTROMIN Perú, que explotó la fundición desde 1974 a 1997, época en que se fueron gestando los graves daños ambientales.

Por la estatización del complejo metalúrgico, decisión que fue aplaudida por la mayoría de ciudadanos, como una aparente solución en esa época; años después se comprobaría que el estatismo agravó los problemas; es más el Estado tuvo que pagar grandes indemnizaciones por daños y perjuicios, por los efectos de la denominada nacionalización de empresas.

El Perú desde el inicio del asentamiento minero, tiene el lamentable record de haber convertido un pueblo tranquilo en uno casi fantasma; un verdadero desastre; por la severa contaminación del aire, la tierra y agua, producto de las emanaciones de plomo, mercurio y otros metales, que perjudican la vida, de la fauna, flora silvestre y también de seres humanos, en especial, niños, mujeres y ancianos.

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Por la grave contaminación, que se acrecentó con la existencia de CENTROMIN PERÚ hace más de 40 años, el pueblo de La Oroya es casi un museo lúgubre y perjudicado por los daños ambientales; que se resiste a morir, luchando por su vida.

Al paso de los años, el Complejo de La Oroya, fue asumido por Doe Run Company filial estadounidense del Grupo Renco.

Según la página Web de Doe Run el Complejo Metalúrgico de La Oroya (CMLO) está compuesto de un conjunto único de fundiciones y refinerías especialmente diseñadas para transformar el mineral poli--metálico típico de los Andes centrales peruanos en diez metales (Cobre, Zinc, Plata, Plomo, Indio, Bismuto, Oro, Selenio, Telurio y Antimonio) y nueve subproductos (Sulfato de Zinc, Sulfato de Cobre, Ácido Sulfúrico, Trióxido de Arsénico, Óleum, Bisulfito de Sodio, Óxido de Zinc, Polvo de Zinc, Concentrado Zinc/ Plata).

La empresa indica que la fundición y refinerías de La Oroya confor-man uno de los centros metalúrgicos con mayores retos tecnológicos del mundo, combinando en un solo lugar las diversas tecnologías y procesos requeridos para transformar los concentrados poli-metálicos y extraer de ellos elementos de alto valor como son Plata, Indio, Bismuto y otros; sin embargo pese a la tecnología, la contaminación generada a lo largo de los años por las empresas que operaron el complejo metalúrgico, es evidente.

El año 2006, el Tribunal Constitucional Peruano declaró que los altos niveles de contaminación en La Oroya estaban causando serios problemas de salud a la población del lugar.

El Tribunal Constitucional, ordenó al Ministerio de Salud de la República de Perú, cumplir con la ley y tomar acciones urgentes para prevenir impactos adicionales irreversibles al ambiente y al derecho humano a la salud.

Esta decisión se basó en estudios técnicos del propio gobierno, y de organizaciones de la sociedad civil.

En la sentencia emitida, el Tribunal Constitucional, aceptó los ar-gumentos presentados por la Sociedad Peruana de Derecho Ambiental (SPDA), quien representó a las personas afectada del pueblo de La Oroya.

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RESPONSABLE PARA PREVENIR DESASTRES ECOLÓGICO.

El Tribunal dio 30 días al Estado peruano para efectuar las siguientes acciones:

• Brindar atención médica de emergencia a las personas contami-nadas con plomo, dando prioridad a las mujeres embarazadas y niños;

• Implementar un plan de acción para mejorar la calidad del aire en La Oroya;

• Declarar el Estado de Emergencia, cuando los niveles de con-taminación sean excesivos;

• Establecer programas de monitoreo epidemiológico y ambiental.La referida sentencia constituye un precedente legal importante, que

se pronuncia sobre 3 aspectos fundamentales: a) Que los niveles de contaminación extremadamente altos, como

los de La Oroya, causan serios e irreversibles daños a la salud de las personas, vulnerando los derechos humanos;

b) Reitera la obligación del Estado de proteger a las personas, ordenándole que cumpla acciones específicas para reducir las amenazas a la salud en coordinación con la empresa minera.

c) Confirma que las corporaciones son responsables de de-sarrollar sus negocios; pero deben hacerlo respetando los derechos humanos a la salud, la vida y un ambiente urbano y natural sano.

En atención a la dispuesto por el Tribunal Constitucional, el Estado peruano realizó algunos cambios, pero no cumplió a cabalidad la sen-tencia, por lo que en noviembre de 2005, organizaciones de la sociedad civil presentaron una demanda ante la Comisión Interamericana de De-rechos Humanos, (CIDH) para exigir se cumpla el mandato del Tribunal Constitucional.

Dos años después, mientras se esperaba una definición, los deman-dantes efectuaron una solicitud adicional, a fin que el Tribunal Constitu-cional dicte medidas de urgencia; que protejan la salud de la población y el medio ambiente en La Oroya.

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En agosto del 2009 la CIDH admitió el caso, luego de haber exa-minado la información que solicitó a organizaciones de la sociedad civil y al propio gobierno peruano. Además, determinó que este último, por intermedio del Ministerio de Salud debía atender a 65 afectados por la contaminación en La Oroya.

Hasta aquí, se puede apreciar la ausencia de especialización en derecho ambiental y la falta de rapidez de la CIDH, para atender los casos de violaciones de derechos humanos; y los graves casos de contaminación ambiental en la región; por lo que conforme se viene sosteniendo hace tiempo, sería recomendable para bien de los países del continente constituir un Tribunal de Justicia Ambiental, en América Latina.

El ámbito supranacional del Tribunal, se justifica en razón que el problema de la contaminación es transversal, transfronterizo, y perjudica a los habitantes de todos los países de la región.

Si en un país de América Latina se sufre grave contaminación, tarde o temprano, resultan contaminados los otros, por efecto de los vientos, los ríos que desembocan en el océano Atlántico y Pacifico; las aguas subterráneas y todo el espacio ecológico que vive interrelacionado.

Cuan diferente hubiese sido, si en la época que se estaba gestando la grave contaminación ambiental en La Oroya, habría existido una clara legislación de defensa de la ecología y medio ambiente. Asimismo Juz-gados Especializados en Derecho Ambiental; a fin de prevenir los daños; dictar medidas cautelares y principalmente hacer respetar la vida y el ambiente sanos; valores superiores a las actividades de lucro que omiten la responsabilidad social corporativa.

En el caso del ejemplo propuesto, existe consenso en reconocer que se requiere promover e impulsar la minería legal; así como toda actividad económica, que garantice el desarrollo sustentable del país; respetando y cumpliendo normas de derecho ambiental, con los límites legalmente permitidos de contaminación; sin perjudicar la vida, el agua y el medio ambiente; restaurando, rehabilitando y reponiendo la posibles zonas dañadas.

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RESPONSABLE PARA PREVENIR DESASTRES ECOLÓGICO.

La grave contaminación en el complejo metalúrgico de La Oroya, en el Perú, no se debería repetir nunca más, en ningún asentamiento minero del país ni de América Latina, ni del mundo.

Un Tribunal de Justicia Internacional Ambiental, prevendría la comi-sión de daños y perjuicios a la naturaleza; brindado tutela jurisdiccional efectiva para la solución del problema; ordenando las reparaciones y restauraciones correspondientes.

3.2 El caso LucchettiUn caso de grave contaminación ambiental en la década de los 90,

fue la construcción de una fábrica de fideos denominada Lucchetti, en los Pantanos de Villa, Distrito de Chorrillos, Provincia de Lima Metro-politana; reserva ecológica considerada como santuario natural y refugio silvestre en América Latina.

La trasnacional Lucchetti, logró una cuestionada licencia expedida por la Municipalidad Distrital de Chorrillos y construyó una enorme fábrica de 6 pisos y 30 metros de altura con muros recubiertos de vidrios; edificada para una producción generando actividades que distorsionaban el ambiente natural, con impacto negativo, en los humedales, flora y fauna del lugar.

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El recordado ex Alcalde de la Municipalidad Metropolitana de Lima, Alberto Andrade, se opuso a la construcción de la fábrica, por la evidencia de daños ecológicos; anulando la licencia concedida por la Municipalidad Distrital de Chorrillos.

El conflicto se judicializó; con la lamentable interferencia del go-bierno del Ing. Alberto Fujimori, en esa década.

Si la justicia hubiese sido independiente y rápida en esa época; habría detenido el abuso de construir una fábrica de fideos en un parque ecológico, considerado santuario y refugio natural de fauna silvestre, no solo en Lima, sino de América Latina.

El Poder Judicial en ese entonces, no cumplió su deber de brindar tutela efectiva; por el contrario aplicó falaces argumentos para favorecer a la fábrica, como por ejemplo que prevalece la protección a la inversi-ón internacional y la generación de empleo; omitiendo considerar el respeto y cuidado al medio ambiente ecológico, esenciales para la salud y la vida.

La construcción de la fábrica en pocos meses se concluyó con material noble, y muros altos revestidos de espejos, que afectaron el ecosistema de Los Pantanos de Villa.

Al paso de los años, con el cambio de gobierno la justicia prohibió el funcionamiento de la fábrica, por los daños ecológicos que había producido y a la fecha sigue produciendo. Ahora se puede apreciar en pleno Pantanos de Villa, una gran construcción, deshabitada, con lunas polarizadas, que ha generado y sigue generando desequilibrios y con-flictos en el santuario ecológico y refugio de vida silvestre; por haberse construido en forma irracional una industria en un lugar natural protegido.

Que diferente hubiese sido, si la justicia cumpliendo su deber, en forma independiente, legal y valiente, aplicando la justicia ambiental, habría hecho respetar los derechos naturales de los Pantanos de Villa y todo el ecosistema en defensa de la vida, flora, fauna y entorno natural.

Entre 2 valores el económico y el del medio ambiente cuando el impacto supera los estándares internacionales permitidos y se afecta la vida natural en forma grave; la justicia debe preferir el respeto al medio ambiente.

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RESPONSABLE PARA PREVENIR DESASTRES ECOLÓGICO.

La infraestructura edificada en la que probablemente se invirtió decenas de miles dólares, no se sabe si será destruida o adaptada para otros fines; el problema continúa por décadas sin que exista una solución definitiva.

La empresa Lucchetti, ha asumido una posición de víctima, y ha demandado al Estado, en Centro Internacional de Arbitraje de Inversiones (CIADI); exigiendo una indemnización por pérdidas de su negocio.

Por este motivo, somos de la opinión que es un imperativo urgente la necesidad de constituir un Tribunal de Justicia Internacional Ambiental en América Latina, que resuelva casos, como los planteados en forma efectiva, rápida, contundente y con la legitimidad y apremios interna-cionales que corresponden.

Edificación de la Industria de fideos Luccheti, en la Reserva Ecológica de los Pantanos de Villa, en el Distrito de Chorillos, Lima Perú.

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Vista de la Construcción de la fabrica Luchetti, edificio de 6 piso y 30 metros.

3.3 Mortandad de delfines y pelicanosEn el mes de enero de 2013, una noticia estremeció al Perú y a todo

el mundo: Centenares de delfines, y pelicanos, aparecieron muertos en las playas del norte de Perú, en el departamento de Trujillo.

Las autoridades del lugar declararon desconocer las causas del desastre. Los ciudadanos del norte del país sí: La alta probabilidad que hayan sido las explosiones que compañías petroleras efectúan para detectar petróleo en el mar; con grandes vibraciones y consiguientes derrames de producto.

Los experimentos y manipulaciones sísmicas en el mar, pueden tener graves consecuencias: Hace 40 años, por ejemplo el gobierno peruano del Gral. Velasco Alvarado rompió relaciones con la República de Francia, porque dicho país efectuó varias explosiones atómicas en el Atolón de Mururoa, ubicado a cierta distancia de la costa central peruana.

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RESPONSABLE PARA PREVENIR DESASTRES ECOLÓGICO.

Algunos pobladores, llegaron atribuir el terremoto, en el callejón de Huaylas, zona central del Perú, a esas explosiones; hipótesis que no se confirmó.

La mortandad de pelicanos y delfines, esta vez no fue por explosiones atómicas, sino habría sido por explosiones subterráneas en el mar, en la exploración y búsqueda de petróleo. La mortandad de un gran número de delfines, se habría producido por sensibilidad acústica.

Así lo considera el informe de la Organización Científica para la Conservación de Animales Acuáticos (ORCA), que sostuvo que una de las causas principales de la mortandad fueron las exploraciones de petróleo en el mar peruano, según artículo publicado por Sybila Tabra, en un conocido Portal Electrónico del Perú.

El número de especies marinas muertas en la costa norte del mar peruano fueron aproximadamente 3000 delfines que aparecieron varados en las playas de la región Lambayeque, al norte del país.

El informe de ORCA indicó que la muerte de los mamíferos fue causada por una “burbuja marina”, que es una bolsa acústica que se forma al utilizar en la profundidad del mar los equipos para buscar petróleo, gas y otros minerales.

Las petroleras utilizan diferentes frecuencias de onda acústica, que pueden producir en los delfines, lobos marinos y ballenas la muerte por impacto acústico. Carlos Yaipén, director de la ORCA, considera en la publicación registrada en el Portal Electrónico, que el impacto acústico genera en los animales pérdida de equilibrio, desorientación, hemorragias internas, hasta la muerte.

En febrero de 2013 se encontraron los restos de 86 especies marinas en el litoral de Lambayeque. Entre estas 18 tortugas, 22 lobos marinos, 8 delfines, 16 chanchos marinos y 22 aves marinas: 10 piqueros, 10 pelícanos, un albatros.

Los resultados médicos y los análisis de histopatología forenses realizados por ORCA revelaron que los delfines padecían del síndrome de descompresión aguda, evidenciado por fracturas en los huesos peri-óticos y hemorragia en el oído medio, enfisema pulmonar diseminado, y burbujas de aire en órganos como el hígado, riñón y vasos sanguíneos.

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Como experiencia internacional comparada por informaciones ex-traídas en la Red,1 se conoce según cifras de la Administración Nacional Oceánica y Atmosférica (NOAA por su sigla en inglés), desde febrero de 2010 hasta principios de enero de 2013 se han encontrado a lo largo de la costa de Luisiana, Estados Unidos, los cuerpos de 830 mamíferos marinos, casi todos ballenas y delfines mulares o nariz de botella, y que se caracterizan por su naturaleza sociable y su inteligencia.

Unas de las causas posibles es el derramamiento del petróleo ocurrido en el Golfo de México.

Otras fuentes indican que la muerte de los delfines comenzó antes del desastre de Deepwater Horizont el 20 de abril de 2010.

1 La República: Tres mil delfines han muerto víctimas de la explotación petrolera: http://www.larepublica.pe/06-04-2012/tres-mil-delfines-han-muerto-victimas-de-la--explotacion-petroleraBBC Mundo: El misterio de los pelícanos y delfines muertos en el Perú:http://www.bbc.co.uk/mundo/ultimas_noticias/2012/04/120429_ultnot_pelicanos_muertos_peru_jgc.shtmlLa República: Uso de sísmica 3D en el mar sí atenta contra la vida de delfines: http://www.larepublica.pe/10-04-2012/uso-de-sismica-3d-en-el-mar-si-atenta-contra--la-vida-de-delfinesEl Comercio: Muerte de delfines se debió a causa natural y no humana, asegura Produce:http://elcomercio.pe/actualidad/1418107/noticia-muerte-delfines-se-debio--causa-natural-no-humana-asegura-produce.

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RESPONSABLE PARA PREVENIR DESASTRES ECOLÓGICO.

Mortandad de delfines y pelicanos en el norte del Perú, año 2013.

5 Internacionalización del Derecho AmbientalEl Derecho Ambiental evidentemente tiene una dimensión interna-

cional, con el fin de prevenir desastres ecológicos en el mundo. Lo que ocurre en cualquier país del mundo, tarde o temprano puede tener reper-cusión en los demás países. La tierra en el marco del sistema solar es un planeta pequeño, interrelacionado y globalizado no solo por cuestiones económicas y políticas; sino fundamentalmente por aspectos ecológicos, geográficos y climáticos.

En este contexto, en Johannesburgo – Sudáfrica, el año 2002, en el Simposio Mundial de Jueces sobre Desarrollo Sostenible se emitió la Declaración de Magistraturas del Mundo.

En esta Declaración se ratifica el compromiso con la Declaración de las Metas del Milenio adoptado por la Organización de las Naciones Unidas el 2000 y se reconoce que las actividades humanas en determi-nados casos están generando daños irreparables al planeta, generando el agotamiento de los recursos naturales.

Asimismo se ratifica con firme convicción la Declaración efectuada en la Conferencia de las Naciones sobre el Medio Humano, celebrada en Estocolmo en 1972.

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Dicho declaración reconoce principios de gran importancia, desta-cando como principales el derecho fundamental del hombre a la libertad, la igualdad y el disfrute de las condiciones de vida adecuadas en un medio sano.

Reconoce la estrecha relación entre el desarrollo sostenible y el respeto a los derechos humanos.

La Judicatura del mundo en esa oportunidad asumió un compromiso con una serie de documentos internacionales como: “Nuestro Futuro Común” (1,987), elaborado por la Comisión Mundial de Medio Ambiente, documento que también se conoce como el Informe Brundtland, nombre que se dio por la Presidenta de la Comisión Gro Harlem Brundtland, ex Ministra del Medio Ambiente de Noruega.

6 Urgencia de constituir un Tribunal Internacional de Derecho Ambiental

En el IV Congreso Iberoamericano de Cooperación Judicial, de la Red Judicial Latinoamericana (REDLAJ), celebrado en Cartagena de Indias del 21 al 23 de noviembre del 2010, entre otros aspectos se plan-teó la necesidad de trabajar para constituir un Tribunal Internacional de Derecho Ambiental en América Latina.

La propuesta fue presentada por el magistrado Eladio Licey ex Presidente de la Escuela Nacional de la Magistratura de Brasil.

Un Tribunal de Justicia Ambiental, por los numerosos conflictos socio ambientales de naturaleza transnacional que existen es urgente y necesario.

Lamentablemente, hasta la fecha las organizaciones ambientalistas y los países, han hecho poco o nada, para hacer realidad esa importante y vital propuesta.

Consideramos que si existe decisión y buena voluntad de las autori-dades y ciudadanos, el Tribunal de Justicia Ambiental de América Latina, será posible y podría ejercer las siguientes acciones:

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RESPONSABLE PARA PREVENIR DESASTRES ECOLÓGICO.

• Acceso a la justicia y tutela jurisdiccional efectiva, en materia de Derecho Ambiental Internacional.

• Ordenar acciones a los gobiernos de carácter preventivo en materia de Derecho Ambiental Internacional.

• Actuar como última instancia internacional en los asuntos de conflicto de medio ambiente, que se inicien dentro y fuera de los países; según la importancia y gravedad de la materia.

• Solucionar los conflictos sobre interpretación jurídica de Trata-dos Internacionales sobre medio ambiente.

• El Tribunal Internacional de Justicia Ambiental, podría también declarar jurisprudencia de carácter vinculante, en defensa del medio ambiente; que debe ser aplicada por los Poderes Judiciales de todos los países.

El referido Tribunal Internacional, podría estar conformado por per-sonalidades de reconocida trayectoria en la defensa del medio ambiente; de sólida formación jurídica y democrática; con amplia experiencia judicial; magistrados designados por sus países. Dicho Tribunal no sólo debe ser un foro de justicia para los países, sino para los ciudadanos y órganos de la sociedad civil.

Para crear el Tribunal de Justicia Ambiental de América Latina, es necesario generar una opinión pública favorable; solicitar, gestionar, y demostrar técnicamente, que es urgente y necesario suscribir un tratado u otro mecanismo legal expeditivo, para la constitución legal.

Dicho Tribunal, podría nacer en el marco de UNASUR, contando con la participación de 15 magistrados de todos los países de América Latina. Sería presidido por un jurista de reconocida por su trayectoria en la defensa del ambiente.

El Tribunal, podría estar dividido en 3 Salas de 5 miembros. Las especialidades de las Salas, serían Derecho Ambiental Laboral, Derecho Ambiental Civil/Constitucional y Derecho Ambiental Penal; en conjunto forman el Tribunal de Justicia de Derecho Ambiental de América Latina.

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En forma similar a la Corte Interamericana de Derechos Humanos, el Tribunal, podría contar con el apoyo de una Comisión Latinoamericana de Derecho Ambiental, compuesto por representantes de los Ministerios Públicos y Procuradurías de todos los países.

7 Tareas Pendientes

Los jueces nacionales, federales, y comunitarios, deben compro-meterse firmemente a la protección, cuidado y preservación ambiental, meta del milenio de las Naciones Unidas y una necesidad vital de todos los países y los pueblos del mundo.

Todos debemos asumir un rol clave y contribuir en el respeto al medio ambiente, como parte de la misión de protección a la dignidad y derechos humanos. Asimismo trabajar en pro de garantizar desde una perspectiva jurídica que ningún ciudadano, ni la humanidad en su conjunto, se perjudiquen por los desastres ecológicos, la degradación medioambiental; las actividades de deforestación, contaminación del oxigeno, agua tierra; contaminación acústica y en general cualquiera que perjudique a la naturaleza.

El respeto y vigencia de los derechos humanos y los derechos de ecología, son fundamentales para la vida en el planeta; y conforme a un sentido amplio, los derechos también corresponden a la madre naturaleza.

El grave deterioro del medio ambiente mundial, requiere a la judi-catura como garante y defensora de los derechos del medio ambiente, aplicar y hacer cumplir las leyes internacionales y nacionales de forma creativa, integradora, independiente y con valor; ello se va a lograr en forma plena, si en el corto o mediano plazo se constituye un Tribunal de Internacional de Justicia Ambiental.

Desde hace décadas, en foros y congresos se viene hablando de la posibilidad de constituir dicho Tribunal; sin embargo se hace objeciones de su posible costo y la poca voluntad de los países y Poderes Judiciales, para impulsar esta propuesta

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RESPONSABLE PARA PREVENIR DESASTRES ECOLÓGICO.

El costo del Tribunal en realidad será muchísimo menor, a la continuación de los desastres ambientales, y los daños y perjuicios que se vienen generando en el continente, por este motivo; de otro lado, evitaría posibles conflictos entre pueblos y países, que ocasionan grandes gastos en prevención, seguridad y defensa, por la escasez de recursos naturales.

Parafraseando al insigne historiador peruano Jorge Basadre, si con-tinuamos sin crear una alternativa que limite o contrarreste en algo, los desastres ecológicos y graves casos de contaminación ambiental, en el futuro América Latina, podría convertirse en una charca, un páramo o una gigantesca fogata.

Los indiferentes o distraídos respecto a lo que está ocurriendo, o los egoístas que priorizan sobre todas las cosas los intereses económicos; consciente o inconscientemente, están contribuyendo a que la región en el futuro pueda convertirse en una charca o un páramo; y algunos extremistas radicales antisistema; en una gigantesca fogata.

Solo una alternativa jurídica, solida, impulsada por una visión pros-pectiva de responsabilidad social internacional, plasmada por ejemplo en un Tribunal de Justicia Ambiental de América Latina, con el compromiso mayoritario de los países de obedecer y cumplir las normas de Derecho Ambiental, podría evitar mayores desastres ecológicos.

Trabajemos con esperanza y entusiasmo, como un imperativo moral y legal día a día por el respeto del medio ambiente.

Asumamos con madurez y coraje, conciencia ambiental y realice-mos las acciones legales conducentes a la protección de la ecología y el desarrollo sustentable. Si no somos conscientes y no defendemos el ambiente natural con acciones creativas y legales, que generen consenso y no división; mañana puede ser demasiado tarde, para todos nosotros y las futuras generaciones.

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