revista coniunctio - nº 2

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1 | ANO 2 | Nº. 2| 2013 | ISSN Requerido Imaginação Ativa e Bruxismo Sonia Regina Lyra Sobre os dez mandamentos e os sete dons do Espírito Santo Marcos Aurélio Fernandes Reflexões sobre as tradições religiosas judaicas, proto-cristãs e gregas arcaicas Viktor D. Salis O percurso para a sétima morada Albertina Laufer

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Revista de Psicologia e Religião

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CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PRAno 2 | número 2 | 2013

ANO 2 | Nº. 2| 2013 | ISSN Requerido

Imaginação Ativa e Bruxismo

Sonia Regina Lyra

Sobre os dez mandamentos e os sete dons do Espírito Santo Marcos Aurélio Fernandes

Reflexões sobre as tradições religiosas judaicas, proto-cristãs e gregas arcaicas Viktor D. Salis

O percurso para a sétima morada

Albertina Laufer

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CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR

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Ano 2 | número 2 | 2013

Edição Atual 74 páginasCuritiba | Ano 2 | Nº. 2 | 2013 | ISSN Requerido

Copyright © 2013 by autores

Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.

E-mail: [email protected]: Sonia Lyra

Jubal Sérgio Dohms

Comissão editorialSonia Regina LyraJairo FerrandinJuarez Francisco da SilvaAdriano Holanda

Conselho editorialDra. Sonia Regina LyraDr. Jairo FerrandinDr. Enio Paulo GiacchiniDr. Luiz Felipe PondéDr. Gilvan Luiz FogelDr. Nilo Agostini

Diagramação: Dohms ComunicaçãoRevisão: Enio Paulo GiachiniIlustrações: Rogério Borges e Jubal S. Dohms

Dados internacionais de catalogação na fonteBibliotecária responsável: Angela M. S. K. Cherobim CRB 9ª R/605______________________________________________

CONIUNCTIO Revista de Psicologia e Religião - v.2, n.2, Curitiba: Ichthys Instituto, 2013

Semestral

1. Psicologia - Periódicos 2. Religião – Periódicos 3. Filosofia – Periódicos 4. Arte – Periódicos 5. Teologia – Periódicos._______________________________________________

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CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PRAno 2 | número 2 | 2013

SUMÁRIO | CONTENTS

Editorial | 4

Sonia Regina Lyra Imaginação Ativa e Bruxismo | 5

Viktor D. Salis Algumas reflexões comparativas sobre as tradições religiosas judaicas, proto-cristãs e gregas arcaicas | 13

Regina Maria Grigorio e Sonia Regina Lyra Aspecto religioso do processo de individuação | 16

Albertina Laufer O percurso para a sétima morada | 30

Ana Luisa Testa e Sonia Regina Lyra A assimilação psicológica do mal | 41

Marcos Aurélio Fernandes O confronto de São Boaventura com a filosofia nas conferências de Paris sobre os dez mandamentos e sobre os sete dons do Espírito Santo | 51

Resenhas | Reviews

José Luiz Nauiack O Desespero Humano | 68

Ângelo Vieira da Silva O que é Religião? | 70

Murilo Augusto Diorio Zaratustra em análise: Uma leitura viva sobre a “morte de Deus” | 72

Chamada para publicação e normas para colaboração | 73

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Ano 2 | número 2 | 2013

Coniunctio – Revista de Psicologia e Religião é um periódico científico, eletrô-nico, semestral, criado e mantida pelo ICHTHYS INSTITUTO DE PSICOLOGIA E RELIGIÃO, em 2012, com o objetivo de publicar pesquisas, artigos, resenhas, críticas e entrevistas que contenham temas relacionados à Psicologia (Psicologia geral, Psicologia analítica e especialmente Psicologia da religião) e à Religião, em diálogo com áreas afins: filosofia, arte, mitologia, teologia, sociologia, etc. A ideia é fomentar a área de pesquisa em Psicologia da Religião – esta “filha mais nova” da psicologia, no Brasil na contemporaneidade.

Neste ano de 2013 o ICHTHYS INSTITUTO em parceria com a UNIPAR – Campus Cascavel realizou a primeira pesquisa científica em IMAGINAÇÃO ATIVA aplica-da à área do BRUXISMO, tendo excelentes resultados e apresentando também pela primeira vez a possibilidade de cura para este sintoma. Intitulado The Active Imagination Technique for Bruxism Treatment, o artigo foi apresentado à Co-munidade Científica Internacional, em Berlin – Alemanha, em maio de 2013 e publicado no WASET: World Academy of Science Engineering and Technology no Departamento de Psicologia e Psiquiatria. Sua reprodução em língua portuguesa está sendo feita pela primeira vez no Brasil em nossa revista Coniunctio. Outros projetos de pesquisa encontram-se em andamento, nas áreas de Autismo, Psoría-se e Síndrome do Pânico.

Aproveitamos essa oportunidade para convidar pesquisadores(as) e professores(as) a contribuírem com a Coniunctio. A publicação ou não do material enviado será definida pela Comissão de Redação a partir dos critérios propostos pelo Conselho Editorial, integrado por professores/as e especialistas de várias Universidades e Centros de Estudos.

As propostas para publicação devem ser originais, não tendo sido publicadas em qualquer outro veículo do país. Publicam-se artigos em quatro línguas: portu-guês, espanhol, italiano e francês. Todos os números são divulgados por meios digitais, estando disponíveis online pela Internet.

Os editores

EDITORIAL

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CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PRAno 2 | número 2 | 2013

A Técnica da Imaginação Ativa no Tratamento do Bruxismo The Active Imagination Technique for Bruxism Treatment

Sonia Lyra, pesquisadora e divulgadora da técnica de Imaginação Ativa, foi à Europa apresentar os resultados científicos (estatísticos) do trabalho pioneiro com a Imaginação Ativa, intitulado “The Active Imagination Technique for Bruxism Treatment” à comuni-dade científica internacional, como conferencista em Psiquiatria e Psicologia no World Academy of Science, Engineering and Technology, em Berlim, em maio de 2013. A pes-quisa desenvolveu-se graças a uma parceria entre o ICHTHYS Instituto e a Universidade Paranaense (UNIPAR – Curso de Odontologia – Cascavel-PR) e também contou com a participação da Profa. Daniela Ceranto F. Boleta, PhD, e da Odontóloga Tânia Maria Bremm Zaura.A técnica da Imaginação Ativa corresponde a uma forma particular de lidar com o inconsciente. Foi desenvolvida por Carl Gustav Jung (1875-1961) e busca a compreen-são do símbolo, tendo como modelo os escritos de santo Inácio de Loyola. Sonia Lyra é a única profissional no país a promover regularmente cursos de Imaginação Ativa e a desenvolver pesquisas com o uso da mesma. Este artigo, que CONIUNCTIO aqui publica, também pode ser acessado no original (World Academy of Science, Engineering and Technology Vol:76 2013-04-25 ), em inglês, em http://waset.org/Publications/the-active-imagination-technique-for-bruxism-treatment/15181

Ano 2 | número 2 | 2013 CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR

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A técnica da Imaginação Ativa no tratamento do bruxismo

The Active Imagination Technique for Bruxism Treatment

1. Introdução

O sistema mastigatório possui várias ati-vidades, divididas em funcionais e parafuncio-nais. A funcional ou � siológica inclui os atos de mastigar, falar e deglutir que são controlados por re� exos protetores e músculos. Dentre as pa-rafuncionais, inclui-se o bruxismo, relacionado com a hiperatividade muscular, que pode pro-

Sonia Lyra*, Tânia Maria Bremm Zaura** e Daniela Ceranto F. Boleta***

* Lyra, S. R. Ph.D. in

Ciências da Religião,

Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo

([email protected]).

** Zaura - Bremm

T. Cirurgiã Dentista -

Clínica particular - Terra

Roxa – Paraná - Brasil

([email protected]).

*** Boleta - Ceranto D.

C. F. Cirurgiã Dentista,

Mestre e Doutora em

Odontologia - Fisiologia

Oral – UNICAMP

([email protected]).

vocar desgastes dentais, lesões nas estruturas de suporte [1], desordens da articulação temporo-mandibular (ATM) e cefaleias [2].

Adquirida de forma inconsciente, ocorre durante períodos diurnos, mas é mais frequente durante o sono [3].

A consequência mais frequente do bruxis-mo é a fadiga, que é a incapacidade de resistir

A técnica da Imaginação Ati va no tratamento do bruxismo | Sonia Lyra, Tânia Maria Bremm Zaura e Daniela Ceranto F. Boleta | 06 - 11

Resumo

O objetivo do presente trabalho foi avaliar o efeito da técnica da Imaginação Ativa para o tratamento de bruxismo. Este projeto foi apreciado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos (CAAE: 05619512.9.0000.0109). Concluíram a pesquisa 21 voluntários. Inicialmente eles preencheram um questionário a respeito de sua condição referente ao bruxismo, composto por questões objetivas sobre sinais e sintomas. Na sequência foram submetidos a uma única sessão, de cerca de 1h de duração, de Imaginação Ativa com uma pro� ssional habilitada (psicóloga), realizada nas dependências da Universidade Paranaense Unipar–campus Cascavel (Brasil). Após 15 dias, os voluntários preencheram novamente o mesmo questio-nário inicial. Os resultados dos dois questionários foram comparados e demonstraram que a grande maioria dos participantes teve a sintomatologia dolorosa, a di� culdade de abertura bucal, dor à mastigação, reduzidas após a sessão de Imaginação Ativa, alguns dos participantes abandonaram o uso da placa durante o período avaliado. Conclui-se que a técnica pode ser utilizada no tratamento do bruxismo. Os resultados parecem ser promissores e demonstram a necessidade de a técnica ser considerada por sinalizar a possibilidade de cura do bruxismo e isto não tem precedente.

Palavras-chave: Imaginação Ativa, Bruxismo, Dor orofacial.

Abstract

� e research purpose was to evaluate the e� ect of Active Imagination Technique (AIT) for bruxism treatment. � is project was approved by the Ethics Committee on Human Research (CAAE: 05619512.9.0000.0109). Twenty-one volunteers using interocclusal splint completed the study. Initially they � lled in a question-naire about their condition, composed of objective questions on signs and symptoms. Following they were underwent a single session of AIT. After 15 days, the volunteers met again the same initial questionnaire. � e results were compared and showed that the vast majority had pain symptoms, di� culty opening the mouth, pain when chewing, reduced, some of the participants abandoned the interocclusal splint during the evaluate period. It is concluded that the technique can be used in bruxism treatment. Results seem to be promising and demonstrate the need of highlighting Active Imagination Technique since it points a possibility of bruxism cure and that is unprecedented.

Keywords: Active Imagination, bruxism, orofacial pain, treatment.Referências

1| PONTES DG; et al. A relação entre bruxismo dental e implantes endós-seos. Rev. bras. odontol. v.60, n. 2, p. 99-102, 2003.

2| MOLINA OF. Placas de mordida na terapia oclu-sal. São Paulo: Pancast. 1997. p. 37-59.

3| PAIVA HJ. Oclusão: noções e conceitos básicos. São Paulo: Santos, 1997.

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durante um tempo determinado a um esforço sustentado sem que sinais e sintomas de dor e desconforto se tornem aparentes [2]-[4]-[5]-[6]. A musculatura postural, localizada na região cervical da coluna vertebral, pode manifestar dores crônicas e alterações permanentes futuras [2].

O Estresse e as variáveis psicológicas são comumente relacionados ao Bruxismo, porém alguns estudos comprovam falhas nesta relação. Parece que os bruxômanos têm como caracte-rística serem focados em realizar atividades com um forte objetivo de alcançar o sucesso quando comparados aos indivíduos controles e não um distúrbio de ansiedade [6].

O importante é determinar quais fatores, especi� camente, estão envolvidos em cada pa-ciente, para a escolha de um tratamento adequa-do dentre as diversas modalidades terapêuticas existentes, ou mesmo a associação de dois ou mais tratamentos [7].

Devido ao caráter multifatorial do Bruxis-mo, várias linhas de tratamento têm sido pro-postas como tratamentos além da odontológica: a farmacológica e a psicológica.

Na área odontológica, a forma mais uti-lizada para o tratamento do bruxismo são as placas de mordida interoclusais estabilizadoras (mio relaxantes). São frequentemente usadas como um dispositivo para diagnóstico e/ou tra-tamento, de grande importância para o clínico.

A placa oclusal é um aparelho removível geralmente confeccionado com resina acrílica incolor, química ou termicamente ativada, que recobre a superfície oclusal/incisal dos dentes em um dos arcos, criando um contato oclu-sal adequado com os dentes antagonistas e um melhor relacionamento côndilo disco [8]. Pro-porciona ao paciente um maior conforto, impor-tante para a proteção dos elementos dentários,

relaxamento dos músculos hipertro� ados, pre-venindo também sobrecargas para a ATM [9]. Importante salientar que as placas também po-dem agir apenas como paliativas, quando outros fatores, além dos oclusais estiverem envolvidos.

O tratamento deve ser direcionado à cau-sa quando este envolver problemas psicológicos como estresse, ansiedade e depressão. Atual-mente, há um grande interesse em técnicas psi-cológicas, dentre as quais uma pouco utilizada é a Imaginação Ativa, desenvolvida por C.G.Jung (1875-1961), a qual trata de um percurso inte-rior que implica em tornar consciente o incons-ciente com a ajuda de sonhos, fantasias e imagi-nação [10].

Essencialmente é um diálogo a ser tra-vado com as diferentes partes de nós mesmos que vivem no inconsciente, buscando descobrir e transformar as causas psíquicas das doenças, através das quatro etapas da técnica.

II. Objetivo

O objetivo do presente trabalho foi ava-liar a e� cácia da técnica psicológica Imaginação Ativa para o tratamento de bruxismo em pa-cientes portadores da patologia e que neste caso, utilizam a placa miorelaxante para o alívio dos sintomas.

III. Metodologia

Este projeto foi apreciado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Huma-nos (CAAE: 05619512.9.0000.0109). Conclu-íram a pesquisa 21 voluntários. Eles preenche-ram um questionário a respeito de sua condição referente ao bruxismo, composto por questões objetivas sobre sinais e sintomas expressos em forma numérica, na forma de uma escala analó-gica visual, tal questionário comparado com os dados preenchidos após a terapia. Na sequência foram submetidos a uma única sessão, de cerca de 1h de duração, de Imaginação Ativa com uma

4| OKESON JP. Trata-mento das desordens temporomandibulares e oclusão. 4. ed. São Paulo: ArtesMédicas, 2000. p.126-325.

5| ORLANDO S. O Bru-xismo está à solta. Rev. bras.odontol. v. 57, n. 5, p. 308-311, 2000.

6| MACEDO CR. Placas Oclusais para Tratamento do Bruxismo do Sono: Revisão Sistemática de Cohrane. USP São Paulo, Escola de Medicina, Tese de mestrado em Ciências, 2007.

7| ZUANON ACC, et al. Bruxismoinfantil. Odontol. Clin. v. 9, n. 1, p. 41-43, 1999.

8| PRIMO PP; MIURA CSN; BOLETA-CERANTO DCF. Considerações fisiopato-lógicas sobre bruxismo. Arq. Ciênc. Saúde UNIPAR, Umuarama, v. 13, n. 3, p. 263-266, set./dez. 20096| MACEDO CR. Placas Oclu-sais para Tratamento do Bruxismo do Sono: Revisão Sistemática de Cohrane. USP São Paulo, Escola de Medicina, Tese de mestrado em Ciências, 2007.

9| OLIVEIRA ME; CARMO MRC. Placa de mordida interoclusal para trata-mento de bruxismo. Rev. do CROMG. v. 7, n. 3, p. 183-186, 2001.

10| KAST V. Dinâmica dos símbolos(a) - fun-damentos da psicotera-piajunguiana. São Paulo: Loyola, 1997.

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pro� ssional habilitada (psicóloga), realizada nas dependências da Universidade Paranaense Uni-par – campus Cascavel (Brasil). Após 15 dias, os voluntários responderam novamente as mesmas perguntas.

O resultado de ambos os questionários fo-ram comparados e expressados estatisticamente.

QUESTIONÁRIO APLICADO AOS PACIEN-TES ANTES E DEPOIS DE 15 DIAS DA TERAPIA COM A TÈCNICA DA IMAGINAÇÃO ATIVA.

Nome

Data:___/_____/_____ Sexo: ( ) F ( ) M Idade:____ anos Nascimento: ____/____/____

1- Você tem di� culdades, dor ou ambas ao abrir a sua boca, por exemplo, ao bocejar?( ) sim ( ) não

2- Sua mandíbula � ca “presa”, “travada” ou sai do lugar? ( ) sim ( ) não

3- Você tem di� culdades, dor ou ambas ao mastigar, falar ou usar seus maxilares? ( ) sim ( ) não

4- Você percebe ruídos na articulação de seus maxilares? ( ) sim ( ) não

5- Seus maxilares � cam rígidos, aperta-dos ou cansados com regularidade? ( ) sim ( ) não

6- Você tem dor nas ou ao redor das orelhas, têmporas ou bochechas. ( ) sim ( ) não

7- Você tem dores de cabeça, dores no pescoço ou nos dentes com frequência? ( ) sim ( ) não

Onde: a ( ) dor de cabeça b ( ) dores no pescoço c ( ) dores nos dentes

8- Você sofreu algum trauma recente na

cabeça, pescoço ou maxilares? ( ) sim ( ) não

9- Você percebeu alguma alteração re-cente na sua mordida? ( ) sim ( ) não

10- Você fez algum tratamento recente para problema não identi� cado no articular mandibular? ( ) sim ( ) não

11- Usou algum aparelho? ( ) sim ( ) não qual: _________________________

12 – Sente que seus dentes desgastaram nos últimos tempos? ( ) sim ( ) não

13 - Usa placa de mordida? ( ) sim ( ) não Há quanto tempo? ______________________

14- Após iniciar o uso da placa as dores reduziram? ( ) sim ( ) não

15- Pode indicar em um número seu ín-dice de ansiedade de 0 a 10 (0 mínimo e 10 máximo)?

16- O que sente quando � ca/� cou sem usar a placa? __________________

Os voluntários selecionados para a pesqui-sa eram pacientes bruxomanos cujos sinais e sin-tomas foram abrandados pelo uso da placa mio relaxante, usada principalmente à noite quando durante o sono o bruxismo se manifesta com maior incidência.

Todos os voluntários foram informados sobre a metodologia a ser empregada e dos be-nefícios que teriam na possibilidade da redução da sintomatologia e em deixarem assim de ter de usar a placa mio relaxante oclusal para dormir e então assinaram o termo de consentimento.

IV. Resultados

Dos 21 voluntários, 18 (85,7%) eram do gê-

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nero feminino e 3 (14,28%)do gênero masculino.

Dos 21 voluntários, 18 (85,7%) eram do gênero feminino e 3 (14,28%)do gênero mascu-lino.

Quando questionados sobre di� culdades, dor ou ambas ao abrir a sua boca, os resultados estão expressos na Fig. 1 (a). Referente ao fato de a mandíbula � car “presa”, “travada” ou sair do lugar, as respostas expressas na Fig. 1 (b).

Sobre di� culdades, dor ou ambas ao mas-tigar, falar ou usar seus maxilares, as respostas foram expressas na Fig. 2 (a). Quanto a presença de ruídos na articulação dos maxilares, as res-postas estão expressas na Fig.2 (b)

50,00 % _

40,00 % _

30,00 % _

20,00 % _

10,00 % _

0,00 % _

Before Treatment After Treatment

FIGURE 1 B42,45 %

23,80 %

35,00 % _

30,00 % _

25,00 % _

20,00 % _

15,00 % _

10,00 % _

5,00 % _

0,00 % _

Before Treatment After Treatment

FIGURE 1 A33,33 %

19,04 %

Fig. 1 (a) A dificuldade, dor ou ambas para abrir a boca antes e depois do tratamento (b) o fato de a mandíbula ficar presa,travada ou fora do lugar antes e depois do tratamento

Referente aos maxilares � carem rígidos, apertados ou cansados com regularidade, as respostas foram expressas na Fig. 3 (a). Sobre a presença de dor nas ou ao redor das orelhas, têmporas ou bochechas, as respostas estão na Fig. 3 (b).

Fig. 2 (a) Dificuldade, dor ou ambas ao falar,mastigar ou usando os maxilares (b) a presença de ruído na articulação do maxilar antes e depois do tratamento

90,00 % _ 80,00 % _ 70,00 % _ 60,00 % _ 50,00 % _ 40,00 % _ 30,00 % _ 20,00 % _ 10,00 % _ 0,00 % _

Before Treatment After Treatment

FIGURE 3 A85,71 %

28,57 %

80,00 % _70,00 % _

60,00 % _ 50,00 % _ 40,00 % _ 30,00 % _ 20,00 % _ 10,00 % _ 0,00 % _

Before Treatment After Treatment

FIGURE 3 B71,42 %

33,33 %

Fig. 3 (a) Sobre os maxilares ficarem rigidos, cansados ou apertados com regularidade antes e depois do tratamento (b) a presence de dor nas ou em torno das orelhas, tempo-ras e bochechas antes e depois do tratamento.

Quando perguntados sobre trauma recen-te com cabeça, pescoço, articulações, ninguém referiu tal evento. Quando perguntados sobre o uso da placa mio relaxante, todos respon-deram que usavam o aparato oclusal antes do tratamento por períodos que variaram entre os

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45,00 % _ 40,00 % _ 35,00 % _ 30,00 % _

25,00 % _ 20,00 % _ 15,00 % _ 10,00 % _

5,00 % _ 0,00 % _

Before Treatment After Treatment

FIGURE 2 A42,45 %

28,57 %

80,00 % _70,00 % _

60,00 % _ 50,00 % _ 40,00 % _ 30,00 % _ 20,00 % _ 10,00 % _ 0,00 % _

Before Treatment After Treatment

FIGURE 2 B76,19 %

33,33 %

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participantes. Um mês depois da terapia, apenas 33,33% dos participantes ainda usavam a placa mio relaxante.

Referente a presença de dores de cabeça, pescoço ou dentes, as respostas estão expressas na Fig. 4.

sintomas psicossomáticos. A ansiedade, a tensão, emoções negativas e frustrações causam aumen-to da hiperatividade muscular, redução da taxa de secreção salivar durante o sono e vigília e consequente aumento de episódios de ranger de dentes durante o sono. Esta característica é mais prevalente em pacientes adultos que vivem sob tensão emocional, que são hiperativos, agressivos ou que apresentam uma personalidade compul-siva [11].

No caso deste trabalho, os pacientes se-lecionados para participar da pesquisa haviam sido tratados com a terapia odontológica e fa-ziam uso da placa mio relaxante. O retorno dos sintomas e sinais após a descontinuidade do uso da placa oclusal foi o que motivou a participa-ção dos voluntários na pesquisa. O vislumbre da possibilidade destes pacientes � carem livres do aparato oclusal noturno, abordando os núcleos emocionais inconscientes relacionados ao bru-xismo, através da Imaginação Ativa, foi o que motivou a elaborar uma pesquisa cientí� ca, avaliando a e� cácia da Técnica da Imaginação Ativa na remissão do bruxismo e consequen-temente dos seus sinais e sintomas. A Técnica da Imaginação Ativa: por Sonia Regina Lyra: JUNG (1875-1961) tomando “a hermenêutica como solo especí� co da psicologia analítica”, desenvolve uma técnica psicológica para a busca e compreensão do símbolo que denominou ima-ginação ativa, tendo como modelo os escritos de santo Inácio de Loyola. Para o psicólogo suíço faltava nos exercícios a resposta que poderia ser dada pelas � guras que surgiam do inconscien-te. Amplamente difundido em suas obras com-pletas, mas não sistematizado, o conceito veio a ser revisto nos anos 80 por Robert Johnson e publicado no livro: A chave do reino interior – INNER WORK (1987) [12]. Johnson ampliou o método baseado em sua própria experiência e que agora, com inovações devido às novas expe-riências também nós ampliamos a técnica.

Quando questionados sobre o que senti-ram ao � car sem usar a placa oclusal apos a tera-pia, as respostas estão expressas na Fig. 5

100,00 % _ 90,00 % _ 80,00 % _ 70,00 % _ 60,00 % _ 50,00 % _ 40,00 % _ 30,00 % _ 20,00 % _ 10,00 % _ 0,00 % _

Before Treatment After Treatment

FIGURE 495,23 %

47,61 %

FIGURE 5

pain

disconfort

clenching

asymptomatic

click

lingual pressing

33,33 %

4,70 % 4,70 %

9,40 % 9,40 %

42,85 %

V. Discussão

O diagnóstico clínico do Bruxismo é re-alizado avaliando os sinais e sintomas presen-tes. Na odontologia o tratamento recomendado além de ajustes oclusais, restaurações, ortodon-tia, é o uso de dispositivos intra-orais, usados pelos pacientes por longo prazo [11].

Em se tratando dos aspectos psicológicos, os portadores do bruxismo são mais vulneráveis a ansiedade ao estresse e ao desenvolvimento de

Fig. 4 A presença de cefaléias, dores no pescoço ou nos dentes antes e depois do tratamento.

Fig. 5 Sentimentos após a terapia

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Imaginação Ativa é essencialmente, um diálogo a ser travado com as diferentes partes de nós mesmos que vivem no inconsciente. Você fala com as imagens e elas respondem. Essas imagens que surgem são de fato símbolos vivos e a essência dessa técnica é a participação cons-ciente do indivíduo na experiência imaginativa.

A � nalidade principal da técnica é propor-cionar a comunicação entre o ego e as partes do inconsciente das quais geralmente nos desliga-mos e que aparecem na vida diária em forma de sintomas, preocupações, fantasias passivas, etc.

Quando se pratica a Imaginação Ativa as coisas mudam na psique, os sintomas são alte-rados, os desequilíbrios entre as atitudes do ego e os valores do inconsciente são remediados e os opostos complementares podem ser reuni-dos, porque a função especí� ca do símbolo é a transformação da energia psíquica. Por exemplo, temos algo vago que nos incomoda, um con� ito, uma irritação ou um sintoma que aparece como se fosse físico-biológico. Claro, nenhum sinto-ma deixa de ser também físico-biológico, mas em sua grande maioria estes são expressões de complexos con� itos da psique. Um exemplo li-terário de Imaginação Ativa é A divina Comé-dia de Dante [13]; ou Answer to JOB [14] e no cinema o � lme Duas Vidas (título original: Disney´s � e kid [15].

VI. Conclusão

Os resultados dos dois questionários fo-ram comparados e demonstraram que a grande maioria dos participantes teve a sintomatologia dolorosa, a di� culdade de abertura bucal, dor à mastigação, reduzidas após a sessão de Imagina-ção Ativa, muitos dos participantes abandona-ram o uso da placa durante o período avaliado.

Conclui-se que a técnica psicoterápica da Imaginação Ativa pode ser utilizada no trata-mento do bruxismo. Os resultados parecem ser promissores visto que neste trabalho o sucesso foi evidente, mesmo sendo feita apenas uma ses-são de uma hora para cada participante.

Salientamos que o tratamento odontológi-co do paciente bruxomano deve ser levado em consideração como parte do procedimento, para o correto restabelecimento da função mastigató-ria. No critério de avaliação dos pacientes o tra-tamento farmacológico deve, em determinados casos ser considerado.

Este trabalho demonstrou a necessidade da técnica da Imaginação Ativa ser considerada como tratamento para o bruxismo e por sinalizar a possibilidade de cura isto não tem precedente.

11| ALOE F; GONÇAL-VES LR; AZEVEDO A; BARBOSA RC. Bruxismo durante o Sono. Rev.Neurocências. v.11, n.1, p. 4-17, 2003.

12| JOHNSON, R. In-nerWork. A chave do reino interior. São Paulo: Ed. Mercuryo, 1989.

13| ALIGHERI D. A Divina Comédia, vols I e II, 4ª ed. Belo Horizonte Itatiaia 1984.

14| JUNG, C.G. Answer to Job,Princeton University Press,Vol. XI of the Collec-ted Works 1952

15| DISNEY’S THE KIDS; Movie Comedy. Disney Productions; Director Jon Turteltaub, Distributor: Buena Vista, 2002

16| FRANZ, V.M.L. Psycotherapy. Shambhala Publications, Incorporates, 1993.331p.

A técnica da Imaginação Ati va no tratamento do bruxismo | Sonia Lyra, Tânia Maria Bremm Zaura e Daniela Ceranto F. Boleta | 06 - 11

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Algumas reflexões comparativas sobre as tradições religiosas judaicas, proto-cristãs e gregas arcaicas.Viktor D. Salis

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CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PRAno 2 | número 2 | 2013

* Viktor D. Salis

Psicólogo pela

PUC SP, doutor

pela Universidade

de Salzburg ( A

fenomenologia

dos Mitos) e pela

Universidade de

Genève (Epistemologia

Genética pela

Universidade de

Genève). Professor

PUC SP, Universidade

de Mogi das Cruzes,

Faculdade de Medicina

de Jundiaí, Faculdades

Metropolitanas Unidas,

Faculdade Católica de

Santos.

([email protected])

Algumas reflexões comparativas sobre as tradições religiosas judaicas,

proto-cristãs e gregas arcaicas

Num primeiro olhar, pode parecer-nos que a única coisa em comum que estas duas tradi-ções têm é a sua antiguidade, sendo que a grega pertence às chamadas religiões desaparecidas en-quanto culto e a judaica sobrevive galhardamente há milênios e milênios. Na verdade, um exame mais atento revela notáveis pontos em comum, de modo que vale a pena apontá-los e descreve-los.

Comecemos pela própria etimologia da palavra religião: signi� ca literalmente “re-ligar”, ou seja, unir o homem novamente a Deus. Em ambas encontramos um lugar mítico onde pode-remos nos dirigir após a morte. São o conhecido paraíso do judaísmo e os “campos Elíseos” da re-ligião grega antiga. Mas a questão fundamental em ambas as tradições é que propõe ao homem um caminho, aqui na terra e enquanto em vida, para alcançar esta reunião cósmica. Mais ainda, encontramos em ambos os profetas, verdadeiros enviados de Deus, para iluminarem nosso ca-minho: Moisés para o judaísmo e Orfeu para a antiguidade grega- cujo nome signi� ca ”aquele que veio curar pela luz”. Estes mensageiros tra-zem para a humanidade as leis necessárias para se viver, mesmo longe do paraíso, mas que façam os homens imita-lo aqui na terra. Vale recordar de que fomos expulsos do paraíso porque a humani-dade cometeu uma falta fundamental – também chamada de pecado original. E qual é seu verda-deiro signi� cado; e será que somente os nossos antepassados a cometeram, ou será que se trata de algo que continuaremos a praticar para sempre, afastando-nos assim cada vez mais do divino?

Comemos o “fruto da árvore do conheci-mento” na tradição judaica; Prometeu roubou “o fogo dos deuses” para dá-lo aos homens, mas

Viktor D. Salis*

não quis dar aos homens “a medida de seu uso” e desde então os homens não são mais governados pelas leis dos deuses, mas pelo seu desvario. Em ambas as tradições, o divino se afasta dos homens por sua impiedade, porque privilegiaram as con-quistas do conhecimento e não a medida de seu uso. Agora está clara a metáfora bíblica e Greco-arcaica: O conhecimento por si só é um risco para a vida e para a criação, pois facilmente pode des-truir tudo a sua frente. Eis o homem do sec. XXI.

Abrem-se agora as duas grandes questões da condição humana perante a existência: Ética e Verdade. Comecemos por de� ni-las em seu sig-ni� cado original:

Ética não é conduta moral- esta se refere aos costumes- mas sim “o estado de alma que aproxima o homem de Deus”; e este estado so-mente pode ser alcançado quando ele O imita (o homem é o instrumento de Deus). Na tradição judaica isto só pode ser alcançado cumprindo suas leis (os dez mandamentos) que são a medi-da do uso do saber para a criação e não para a destruição. Já na tradição grega, vemos na Ilíada o ensinamento da lei sagrada de “nascer, viver e morrer com dignidade e honra” para ser aplica-da por todos os mortais; e prossegue exaltando o jovem a imitar os deuses tornando-se criador se-gundo as leis divinas da vida. É sempre oportuno recordar a fala de Antígona de Sófocles, quando interrogada pelo rei Creonte, porque desobede-cera a suas ordens de abandonar o corpo de seu irmão aos cães, insepulto:

“Não é de ontem, não é de hoje que estas leis existem, (nascer, viver e morrer com dignida-de) e ninguém é seu autor, nem mesmo outro rei.

Algumas refl exões comparati vas sobre as tradições religiosas judaicas, proto-cristãs e gregas arcaicas | Viktor D. Salis |13 - 14

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São dos deuses e entre desobedecer a suas leis e as de um rei, a elas me entrego, mesmo que isto possa me custar a morte. Ademais, sigo-as espa-lhando a vida e o amor, pois esta é sua lei maior. Não vim aqui para semear o ódio e a morte. E não serei eu a julgar meu irmão pelos seus atos – isto é tarefa dos deuses. A mim, como irmã, compete o sagrado dever de dar-lhe uma morte digna e honrada.”

Semelhante grandeza encontramos nos en-sinamentos do rei Salomão e em Davi e Golias, para citarmos somente alguns exemplos da tradi-ção judaica. É que a força extraordinária, tanto na helênica como na judaica, reside no fato de serem religiões que celebraram a vida e a criação como seu fundamento ético inabalável.

Vejamos agora o segundo conceito fun-damental: a Verdade. Mas o que é isto? Será simplesmente a con� rmação dos fatos ou a de-monstração cientí� ca? Nada disso! A verdade nas tradições arcaicas é simplesmente a iluminação interior, que advém da certeza de sermos exata-mente aquilo que somos, de não enganarmos nem ao outro e nem a nós mesmos, e muito menos impormos a nos mesmos ideais quiméricos – pois a tantos custaram sua saúde e integridade. A ver-dade reside em bastar-se no que se é, em reco-nhecer que isto é modesto e grandioso ao mesmo tempo e procurar evoluir, de modo a podermos partir desta vida mais plenos e aperfeiçoados do que chegamos.

Lemos na “Tábua das Esmeraldas”, atribu-

ída a Hermes Trimegisto – o deus dos caminhos na tradição helênica: “O corpo, que os deuses te deram, foi feito para ser completamente gasto – mas gaste-o bem para tua evolução e para servir a criação. Serve os deuses e lembre-se de que a riqueza é um bem destinado ao uso; seu acúmu-lo é uma coisa vã e tola. Não te esqueças de que nada é eterno aqui e de que tudo aqui deixarás- até mesmo teu corpo e teu nome terás de devolver aos deuses. Tudo aqui é emprestado e somente tua alma te pertence e podes cultivar ou abandonar- é tua a escolha e se assim é, busca os mestres para te guiar de volta para a eternidade.”

Não é diverso o ensinamento encontrado na tradição judaica, quando pede ao homem para não passar desta vida sem “ter um � lho, escrever um livro e plantar uma árvore”. De modo sim-ples e preciso, pede-nos para servirmos a Deus, do modo que pudermos – mas com esforço e de-sapego, por favor!

Há muitos outros pontos de encontro en-tre estas duas belíssimas tradições, mas o espa-ço não nos permite aqui abordá-los. Cito apenas o número doze, tão importante na Caballa e na tradição helênica: Doze são as tribos de Israel; doze são os deuses da tradição grega: doze são os signos do Zodíaco; doze são os trabalhos de Hércules; doze são os meses do ano e as horas; doze são os apóstolos; doze é o número sacro das pirâmides. Precisa mais para entender de que não se trata de simples coincidência? Quem sabe em outra oportunidade trataremos do assunto com a atenção que ele merece.

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Uno e trino: a visão de Deus de Nicolau de Cusa – O amor é uma essência ternária | Sonia Lyra |11 - 20

Regina Maria Grigorio e Sonia Regina Lyra

Aspecto religioso do processo de individuação

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Aspecto religioso do processo de individuação

Introdução

Carl G. Jung, em (seus estudos) suas pes-quisas, realizou experiências e fez investigações a respeito do inconsciente, “suas estruturas indivi-duais e coletivas e acerca da linguagem simbólica pela qual se exprime” (1967, p. 15).

Este trabalho de pesquisa tem como � na-lidade propor uma re� exão sobre o aspecto reli-gioso do processo de individuação, associando-o

Regina Maria Grigorio* e Sonia Regina Lyra**

* Regina Maria Grigorio

Pós-graduanda em

Psicologia Analítica e

Religião Oriental e Oci-

dental – FAVI Faculdade

Vicentina - Curitiba - PR.

Polo: Guaíra – PR

([email protected])

** Sonia Regina Lyra

Doutora em Ciências

da Religião; Analista

Junguiana. Orientadora

de TCC

([email protected])

à prática da psicoterapia e sua importância no comportamento do indivíduo.

Constata-se que o símbolo, na obra de Jung, surge como a possibilidade de evocar o arquétipo e que por meio dele se contempla a individuação.

Uma vez compreendida a importância dos símbolos produzidos pelo inconsciente, resta o problema da interpretação. Jung levou em conta todos os acontecimentos relacionados à sua vida,

Resumo

Através deste trabalho procura-se oferecer uma introdução às considerações de Carl G. Jung sobre o aspecto religioso do processo de individuação, tendo como objetivo conhecer o comportamento religioso do ser hu-mano em seus aspectos éticos e psicológicos, usando como metodologia o estudo de bibliogra� as que tratam desse assunto. A observação empírica demonstra que é através da religiosidade que o homem se encontra a si mesmo e vivencia o amor maior, o amor sem medida: que foi designado por alguns autores como o amor de Deus pela humanidade. Inicia-se o trabalho discorrendo sobre a persona, adentrando-se a estrutura da psique através de outros conceitos fundamentais como: inconsciente, si-mesmo, processo de individuação e outros de igual importância para o desenvolvimento desta proposta.Palavras-chave: Bem-aventurança, felicidade, contentamento, terceira margem.

Palavras-chave: Inconsciente, si-mesmo, Jung, processo de individuação, religiosidade.

Abstract

� rough this study we aimed to provide an introduction to considerations of Carl G. Jung on the religious aspect of the individuation process, aiming to meet the religious behavior of human beings in their ethical and psychological aspects, using methodology as the study of bibliographies that address this matter. Empi-rical observation shows that it is through religion that man � nds himself and experiences the greatest love, love without measure, which was designated by some authors as the love of God for humanity. It begins talking about the concept of persona, into the structure of the psyche through other fundamental concepts such as unconscious, self, individuation process and others of equal importance for the development of this proposal.

Keywords: Unconscious, Self, Jung’s individuation process, and religiousness

Aspecto religioso do processo de individuação | Regina Maria Grigorio e Sonia Regina Lyra | 16 - 28

Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana

(Carl Jung).

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das profundezas da psique. Já naquela época a re-ligião começava a ser substituída pelos inúmeros afazeres, e diante disso questionava: O que fazer para proporcionar realidade viva ao nosso si-mes-mo? Para que direção nos move o � uxo da vida? ( JUNG, 1978, p. 163).

Nesse sentido, o processo de individuação seria como uma forma de o ser humano alcançar o máximo de sua unicidade, a qual se pode entender como a mais íntima e profunda expressão do ser, através de um processo de crescimento, acompa-nhado por um intenso sentimento de busca por si mesmo, que oportuniza a transformação interior.

1. A Persona e a Sombra

Persona era o nome que se dava à máscara usada no teatro grego. De� nia os papéis caracte-rísticos de personagens. Na psicologia, serve tam-bém como proteção contra características inter-nas consideradas indesejáveis e, portanto, dignas de serem ocultas.

Ao considerar a persona constituída por grande parte pelos materiais coletivos, portanto, Jung descreve:

A persona é uma imago do sujeito, constituída em grande parte de materiais coletivos como a ima-go do objeto. Quanto à persona, é um produto de compromisso com a sociedade: o eu identi� ca-se mais com a persona do que com a individualidade. Quanto mais o eu identi� ca-se com a persona, tanto mais o sujeito é aquele que aparenta. O eu é desindividualizado ( JUNG, 2003, p. 153).

No entanto, a persona é também um instru-mento precioso para a comunicação. Ela pode de-sempenhar, com frequência, um papel importante no desenvolvimento positivo. À medida que se começa a agir de determinada maneira, a desem-penhar um papel, o ego se altera gradualmente nessa direção ( JUNG et al., 2008, p. 158).

Portanto, é necessário que ocorra uma di-ferenciação entre o ego e a persona no decorrer do desenvolvimento psicológico. Isso signi� ca tomar consciência de si-mesmo, desenvolvendo um senso de responsabilidade e capacidade de

tais como intuições, sonhos, fantasias, seus inte-resses pelos fenômenos psíquicos e seus questio-namentos sobre a origem e a � nalidade da vida. Desenvolveu estudos sobre a persona, face externa da psique, considerada como sendo a máscara ou fachada aparente do indivíduo para facilitar a co-municação com o mundo externo, com a sociedade onde ele vive, e os papéis que desempenha para ser aceito pelo grupo social ao qual pertence. “Esses fatores inconscientes devem sua existência à auto-nomia dos arquétipos” ( JUNG et al., 2008, p. 104).

Sombra e anima/animus são também con-ceitos que vêm à consciência e contribuem para a maturidade do psiquismo. O signi� cado e a fun-ção dos sonhos � zeram com que Jung percebesse, a partir da observação de um grande número de pessoas e do estudo dos seus próprios sonhos, que esses dizem respeito, em grau variado, à vida de quem sonha. Quando buscava o conhecimento de si mesmo e o signi� cado da vida, percebeu que o único objetivo da psique era o encontro com seu próprio centro, então chamou esse movimen-to de “processo de individuação”, acrescentando, porém, que: “o processo de individuação só é real se o individuo estiver consciente dele” ( JUNG et al., 2008, p. 213).

O símbolo atua como uma ação mediadora, que auxilia o processo de transformação interno, que leva à totalização, sem que, de modo algum, isso signi� que individualismo.

O processo de individuação é uma realiza-ção criativa e está ligado à busca de si mesmo. A individuação é um processo lento e gradativo de transformação e aponta para a possibilidade da nossa unicidade, última e irrevogável. Trata-se da realização do si-mesmo, no que tem de mais pessoal e de mais rebelde a toda comparação. Po-der-se-ia, pois, traduzir a palavra individuação por realização de si-mesmo, realização do si-mesmo

[1]. “Em seus estudos sobre religião, Jung per-cebeu que a cultura do século XX perdera a sua alma, no momento em que perdeu o contato com suas profundezas.” Ele acreditava que toda expe-riência religiosa apareceria na consciência, a partir

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julgamento, os quais podem ser idênticos ou não aos padrões e expectativas externas e coletivas. É o caminho de uma busca consciente de um auto-conhecimento.

Segundo Jung, citado por Samuels, “a som-bra é aquilo que não se quer ser”. A questão sobre o conhecimento da sombra é fator importante no processo de autodescobrimento, pois possibilita a percepção dos aspectos desconhecidos da perso-nalidade e daqueles que não são desejados, que são, portanto, negados. “A sombra é como uma companheira, da qual se deve tomar ciência de seus traços e de suas características” (1988, p. 38).

A sombra se revela no ser humano toda vez que ele se aventura a passar uma imagem distorci-da de si mesmo. O ser humano sempre temeu sua própria sombra, pois nela pressente a presença de tudo que, na verdade, desejaria esquecer ou � ngir que nunca existiu.

A máscara é usada pelo indivíduo em res-posta à sua necessidade de desenvolver caracterís-ticas básicas de adaptação social. É o arquétipo da adaptação. Ela é exibida de maneira a facilitar a comunicação com o mundo externo e a sociedade.

Para Samuels, a sombra representa o que consideramos de mal e não nos damos conta de que nos pertence, fazendo parte de nós tanto quanto o bem. É parte de si mesmo que deve se tornar consciente, colocando-a a serviço da pró-pria evolução espiritual, sem que seus aspectos aversivos tomem a personalidade. “A pessoa repre-senta a máscara que deve utilizar em sua adaptação à vida social cotidiana” (1988, p. 204). São todos aqueles aspectos da personalidade com que os in-divíduos se adaptam ao mundo exterior.

Em geral a sombra contém valores neces-sários à consciência, mas que existem sob uma forma que torna difícil a sua integração na vida de cada um.

O con� ito entre o que se é e o que se deseja ser encontra-se no âmago da luta humana. A dualidade, na verdade, está no centro da experiência humana.

Ao de� nir a sombra, Jung deixa claro em suas a� rmações que estão incluídas as variadas e repetidas referências à sombra, o lado negativo da personalidade, a soma de todas as qualidades desagradáveis que o indivíduo quer esconder, “o lado inferior, sem valor, e primitivo da natureza do homem, a outra pessoa em um indivíduo, seu próprio lado obscuro” (1978, p. 128).

Destacando o lado positivo da sombra, constata-se que a mesma nasceu conosco para proteger todo o material interno com o qual nós somos incapazes de lidar ou incapazes de aceitar.

O ego negativo diz: Não seja autêntico, seja aceitável. “Não se exceda, seja normal. Não faça nada de novo ou diferente. – A sombra diz: Olhe para dentro, vá fundo. Isto é o que você tem que encarar para ser autêntico. É através de mim (sombra) que se chega à mudança, à transforma-ção para um ser pleno e livre” (SAMUELS et al., 1988, p. 204).

Neste sentido, o indivíduo terá invariavel-mente a companhia da sombra em sua viagem evolutiva rumo à individuação.

Para Johnson, citando Jung, “o caminho para a consciência começa quando se aprende a quebrar a unidade primordial da inconsciência original” (1989, p. 49). Inicia-se o processo de classi� car em opostos não só os fenômenos ex-ternos que atingem o ser humano, mas, inclusi-ve, suas próprias personalidades e características, suas sombras.

A sombra amedronta, pois ameaça a ima-gem ideal que o ser humano faz de si mesmo.

O fator essencial é que uma parte do si-mesmo foi separada. Depois de separado, o frag-mento “ruim” perde contato com a essência do si-mesmo, a parte que consideramos “boa”, por conta de sua aparente ausência de violência, raiva e medo. Esse é o si-mesmo adulto, o ego que se adaptou tão bem ao mundo e às outras pessoas (CHOPRA Et Al., 2010, p. 24).

O desenrolar do processo de individuação

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começa em geral com uma tomada de consciência da “sombra”, isto é, de um componente da perso-nalidade que, ordinariamente, apresenta sintomas negativos. Nesta personalidade inferior está con-tido aquilo que não se enquadra ou não se ajusta sempre às leis e regras da vida consciente.

O desa� o maior para se adquirir equilíbrio emocional é tomar consciência da sombra, o que leva a uma visão mais clara e e� ciente da perso-nalidade e do si-mesmo, que é na verdade a tota-lidade ( JOHNSON, 1989, p. 62).

1.1 A Realização da Sombra

Este item tratará do desenvolvimento da sombra e sua in� uência no processo de individu-ação.

A sombra, segundo Jung, faz com que igno-remos as próprias fraquezas e as projetemos nos outros; esse processo se dá por meio de mecanis-mos inconscientes, afastando a pessoa de si mes-ma. Quando o inconsciente se manifesta de for-ma negativa ou positiva, depois de algum tempo surge à necessidade de readaptar da melhor forma possível a atitude consciente aos fatores incons-cientes, aceitando o que parece ser uma crítica (2008, p. 222).

É por meio dos sonhos que se passa a co-nhecer aspectos da personalidade que por várias razões se optou por não olhar mais de perto. É o que Jung chamou de “realização da sombra” (2008, p. 222).

Dessa maneira, percebe-se o emprego do termo sombra para a parte inconsciente da perso-nalidade, porque ela sempre aparece nos sonhos sob uma forma personi� cada:

Depende muito de nós a nossa sombra tornar-se nosso amigo ou inimigo. Às vezes uma deci-são heroica pode alcançar o mesmo efeito, mas esse esforço sobre-humano só é possível quando o Grande Homem dentro de nós (o Self ) ajuda o individuo a realizá-lo. Se a pessoa se enche de raiva quando alguém lhe aponta um defeito, é ai que se encontra parte da sua sombra, da qual não tem consciência, faz-se necessário a auto-obser-

varão e a conscientização das projeções, para se poder compreender verdadeiramente a sombra: A sombra não consiste de omissão. Apresenta-se muitas vezes como um ato impulsivo ou inadver-tido. Antes de se ter tempo para pensar, irrompe a observação maldosa, comete-se a má ação, a deci-são errada é tomada, confrontando-nos com uma situação que não tencionávamos criar consciente-

mente ( JUNG et al., 2008, p. 223).

A plenitude supera a sombra ao absorvê-la. O mal e o malfeito já não estão isolados. Mas, conforme a postura se modi� ca, descobrimos que o ecossistema está to-talmente interligado. Os comportamentos de todas as pessoas afetam a to-dos. Não há parte alguma do planeta que possa ser isolada, como se fosse imune aos danos ecológicos causados por outras partes. A plenitude modi� ca toda perspectiva (CHOPRA et al., 2010, p. 71).

A descoberta da sombra supõe um impor-tante processo de autoconhecimento. Conquistar a sombra não signi� ca lutar contra ela e sim a transcender, quando se transcende, vai-se além.

1.2 O crescimento psíquico

A personalidade, como expressão da totali-dade do homem, foi circunscrita por C. G. Jung como sendo “o ideal do adulto, cuja realização consciente por meio da individuação representa o marco � nal do desenvolvimento humano para o período situado além da metade da existência” (2006, p. 64). Somente pode tornar-se persona-lidade aquele que é capaz de dizer um sim cons-ciente ao poder da destinação interior que se lhe apresenta.

Apesar de muitos problemas humanos serem semelhantes, eles nunca são perfeitamente idênti-cos. Como se pode analisar na observação de Jung:

Todos os pinheiros são muito parecidos (ou não os reconheceríamos como pinheiro), e, no entan-to, nenhum é exatamente igual ao outro. Devi-do a esses fatores de semelhança e disparidade, torna-se difícil resumir as in� nitas variações do processo de individuação. O fato é que cada pes-soa tem que realizar algo de diferente, exclusiva-mente seu (2008, p. 216).

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Por essa razão, constata-se que é importante permanecer em estado de alerta, não no sentido que pressupõe ansiedade, mas, sim, estar cons-ciente, focando a atenção naquilo que ocorre in-teriormente a cada momento.

A totalidade deve ser equiparada à saúde. Como tal, é tanto um potencial como uma capa-cidade. Ao nascer, o ser humano possui uma to-talidade fundamental, porém, na medida em que cresce, esta entra em colapso e se reorganiza em algo mais diferenciado. Expressa deste modo, “a realização da totalidade consciente pode ser con-siderada como o objetivo ou o propósito da vida” ( JUNG et al., 2008, p. 212).

Os conceitos de totalidade observados nos estudos junguianos direcionam-se para o melhor entendimento da personalidade e do si-mesmo.

Por vezes, sentimos que o inconsciente nos está guiando, de acordo com um desígnio secreto. É como se algo estivesse nos olhando, algo que não vemos, mas que nos vê – “talvez seja o Grande Homem que vive em nosso coração e que, atra-vés dos sonhos, nos vem dizer o que pensa a nos-so respeito” ( JUNG et al., 2008, p. 214).

É inútil observar o outro furtivamente para ver como qualquer outra pessoa vai realizando o seu processo de desenvolvimento, pois cada um de nós tem uma maneira particular de autorrealização.

Jung chamou de individuação ao processo paulatino de expressão da singularidade, isto é, “a Marca de Deus; o ato de talhar a individualidade, aquele ser distinto e único que está latente den-tro de cada ser”. Na individuação, o critério certo/errado é substituído por algumas perguntas: con-vém ou não? Quero ou não quero? Serve ou não serve? Necessito ou não necessito? (OLIVEIRA, 2007, p. 26).

1.2.1 Jung e o inconsciente

Jung usa o termo inconsciente tanto para des-crever conteúdos mentais que são inacessíveis ao ego, como para delimitar um lugar psíquico com seu caráter, suas leis e funções próprias. Assim como o inconsciente é um conceito psico¬lógico,

também seus conteúdos, como um todo, são de natureza psicológica, não importa que conexão suas raízes possam ter com o instinto. Imagens, símbolos e fantasias podem ser designados como a linguagem do inconsciente. “O inconsciente é o responsável pelas escolhas e ações, assim como a adaptação no mundo”, equipara esse processo de adaptação ao mundo. Ou seja, o inconsciente não é estático e rígido, formado pelos conteúdos que são reprimidos pelo ego. Ao contrário, o incons-ciente é dinâmico, produz conteúdos, reagrupa os já existentes e trabalha numa relação compensa-tória e complementar com o consciente ( JUNG et al., 2008, p. 25).

Veri� ca-se que na concepção de Jung, para se contemplar uma consciência integrada e des-perta, é necessário envolver a união, a integração do inconsciente e do consciente. O indivíduo passa pelo processo de individuação, onde vai ocorrendo essa integração, ou seja, “conteúdos in-conscientes são incorporados e integrados à cons-ciência” (OLTEN, 2002, p. 27).

É fato que o inconsciente pode encerrar impulsos e desejos que nunca foram conscientes, isto é, nunca foram percebidos pela pessoa, ou, então, que, tendo chegado ao nível consciente em algum momento, foram censurados e voltaram ao inconsciente.

O mundo da consciência caracteriza-se sobre-maneira por certa estreiteza; ele pode apreender poucos dados simultâneos num dado momento. Enquanto isso, tudo o mais é inconsciente – ape-nas alcançamos uma espécie de continuidade, de visão geral ou de relacionamento com o mundo consciente através da sucessão de momentos conscientes. A área do inconsciente é imensa e sempre contínua, enquanto a área da consciência é um campo restrito de visão momentânea. [...] Coloco o inconsciente como um elemento ini-cial, do qual brotaria a condição consciente. As funções mais importantes de qualquer natureza instintiva são inconscientes, sendo a consciência quase que um produto dessas grandes áreas obs-

curas ( JUNG, 1972, p. 24-25).

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mas anatômicas do passado longínquo) também acontece na formação do psíquico:

É um processo que percorre um caminho evo-lutivo, originando-se da inconsciência, passando pela semiconsciência – num momento de sim-biose com a mãe (e com o pai) – até atingir o estágio de uma consciência mais ampliada. “A criança se desenvolve a partir de um estado ini-cial inconsciente e semelhante ao do animal, até atingir a consciência: primeiro a primitiva e, gra-

dativamente, a civilizada” (2006, p. 57).

Este caminho se desenvolve de forma natu-ral e segmentada. Após a aquisição da consciên-cia, surge o período onde é preciso se diferenciar dos pais, se relacionar com o mundo e lidar com os próprios desejos. Este desenvolvimento esta-belece vínculos fortes entre o “eu” e os processos psíquicos até então inconscientes, e também os separa nitidamente do inconsciente. Deste modo emerge a consciência a partir do inconsciente, como uma ilha a� ora sobre a superfície do mar ( JUNG, 2006, p. 56).

É importante salientar que o fato de Jung relacionar Deus à manifestação inconsciente:

[...] não implica que aquilo que se chama in-consciente venha a ser idêntico com Deus ou a ocupar o lugar de Deus. O inconsciente é so-mente o meio do qual parece brotar a experiên-cia religiosa. Tentar responder qual seria a causa mais remota desta experiência fugiria às possibi-lidades do conhecimento humano, pois o conhe-cimento de Deus é um problema transcendental (2011, p. 55).

Dessa forma, sabe-se que consciência, por um lado, e consciência do eu, por outro, é campo de registros, um campo de acesso pelo eu. Esse campo varia para cada indivíduo, de acordo com suas capacidades evolutivas.

2 Anima: o elemento feminino

Uma das maiores contribuições de Jung foi a demonstração de que o ser humano é andrógi-no, o que signi� ca que combina em si os elemen-tos masculino e feminino.

Através da compreensão do que seja o cons-ciente e o inconsciente, Jung mostra o quão signi-� cante é a fração de inconsciente que impera de forma ainda pouco conhecida pelo ser humano.

O inconsciente “possui uma linguagem pró-pria, tem sentimentos fortes e quer expressá-los” ( JOHNSON, 1989, p. 11) muitas vezes fala atra-vés de metáforas; por essa razão, é difícil se chegar à compreensão da importância de suas ações no processo psicológico pelo ser humano.

Símbolos são observáveis em cada fase, ao longo da existência humana. Fundamentados nestas observações, é que os psicólogos admitem a existência de uma psique inconsciente:

Um símbolo é vivo só quando é para o obser-vador a expressão melhor e mais plena possível do pressentido e ainda não consciente. Nestas condições é operacionaliza a participação do inconsciente. Tem efeito gerador e promotor de vida. O símbolo vivo formula um fator essen-cialmente inconsciente e, quanto mais difundido este fator, tanto mais geral o efeito do símbolo, pois faz vibrar em cada um a corda a� m ( JUNG, 2011, p. 489).

Os símbolos podem ser vistos na infância, na puberdade, na adolescência, na iniciação se-xual, na vida pro� ssional, na relação com o di-nheiro, nas doenças vividas, nas companhias que se atrai, nas atividades de lazer preferidas, den-tre outras. As fortes e especí� cas experiências e suas circunstâncias, em cada uma dessas fases e momentos da vida, acrescentadas aos eventos que as marcaram, merecem adequadas e compreen-sivas leituras. “Durante, e principalmente após essas fases, podem ser observados caminhos ou percursos que denunciam certa ordem implícita ou suprahumana, propondo algo além do que a consciência deseja e percebe”. Saber decodi� car os sinais e símbolos da vida pode se tornar im-portante recurso para o encontro consigo mesmo e com o sentido da própria existência (NOVAES, 2005, pp. 81, 91).

Para Jung, o que acontece, a partir dessa lei, na formação do corpo (passar por todas as for-

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ou em aspectos diferentes da pessoa; ela surge, portanto, em inumeráveis imagens de � guras femininas ou até mesmo em � guras de animais, como gato, cobra, cavalo, vaca, pomba, coruja – que a mitologia atribui a certas divindades femi-ninas (DOWNING, 1991, p. 27).

Como padrão de comportamento,

o arquétipo da anima representa os elementos impulsivos relacionados com a vida, como vida, como um fenômeno natural, não premeditado, espontâneo, com a vida da carne, com a vida da concretude, da Terra, da emotividade, dirigida para as pessoas e para as coisas. Como padrão de emoção, a anima consiste nos anseios incons-cientes do homem, em seus estados de espírito, aspirações emocionais, ansiedades, medos, in� a-ções e depressões, assim como em seu potencial para a emoção e o relacionar-se (DOWNING, 1991, p. 27).

A anima está associada a tendências psi-cológicas femininas na psique masculina, como os estados de humor instáveis, irracionalidade, a capacidade de amar, a sensibilidade, e ao relacio-namento com o inconsciente, entre outras.

Portanto, “a anima é a personi� cação de todas as tendências psicológicas femininas na psique do homem – os humores e sentimentos instáveis, as intuições proféticas, a receptividade ao irracional, a capacidade de amar, a sensibilida-de à natureza e, por � m”, mas nem por isso menos importante, o relacionamento com o inconsciente ( JUNG et al., 2008, p. 234).

Dentre alguns dos aspectos positivos refe-rentes a anima, Jung destaca:

É, por exemplo, responsável pela escolha da esposa certa. Outra função sua igualmente re-levante: quando o espírito lógico do homem se mostra incapaz de discernir os fatos escondidos em seu inconsciente, a anima ajuda-o a identi� -cá-los. Mais vital ainda é o papel que represen-ta, sintonizando a mente masculina com os seus valores interiores positivos, abrindo assim cami-nho a uma penetração interior mais profunda. É como se um “rádio” interno fosse sintonizado em

Os conceitos de anima/animus (Anima = alma, em latim) partem da noção de comple-mentaridade entre a consciência e o inconsciente. Para Jung, o homem tem uma alma feminina – a anima - e a mulher, uma alma masculina – o animus. Para Jung, “o que caracteriza a feminili-dade da anima é o sentimento, enquanto que o animus está ligado predominantemente ao pen-samento racional, essencialmente masculino”. No processo de individuação, “integrar a anima para os homens e o animus para as mulheres é uma das etapas fundamentais, vindo logo depois da integração da sombra e imediatamente antes da realização do si-mesmo” (2008, p. 235).

Nesse sentido, o inconsciente se torna par-ceiro nos anseios peculiares aos seres humanos em processo de busca do si-mesmo:

O objetivo secreto do inconsciente ao provocar toda essa complicação é forçar o homem a de-senvolver e amadurecer o seu próprio ser, inte-grando melhor a sua personalidade inconsciente e trazendo-a à realidade da sua vida ( JUNG et al., 2008, p. 241).

O interesse de Jung pelas imagens arquetí-picas re� ete sua ênfase na forma do pensamento inconsciente, em lugar da ênfase no seu conteúdo. Nossa capacidade de responder às experiências na qualidade de criaturas geradoras de imagens é herdada, nos é outorgada pela nossa própria con-dição de humanos (DOWNING, 1991, p. 8).

O animus e a anima, devidamente reconhe-cidos e integrados ao ego, contribuirão para a ma-turidade do psiquismo.

Podendo ser descrita ainda como imagem numinosa, isto é, como imagem afetiva esponta-neamente produzida pela psique objetiva, a anima representa o eterno feminino, em qualquer um e em todos os seus quatro aspectos possíveis e suas variantes e combinações como mãe, hetaira, ama-zona e médium.

Ela aparece como a deusa da natureza, Dea Na-turae, e a Grande Deusa da Lua e da Terra, que é mãe, irmã, amada, destruidora, bela feiticeira, bruxa feia, vida e morte. Tudo em uma só pessoa

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uma onda que excluísse as interferências inopor-tunas e captasse a voz do Grande Homem. Esta-belecendo esta recepção “radiofônica” interior, a anima assume um papel de guia, ou de mediador, entre o mundo interior e o si-mesmo. Como no caso da iniciação dos xamãs; é como surge no pa-pel da Beatriz, do Paraíso de Dante, e também no da deusa Ísis, ao aparecer em sonhos a Apuleius, o famoso autor de O asno de ouro, iniciando-o em uma forma de vida mais elevada e espiritual (2008, p. 241).

Cabe salientar que, através das projeções de anima e animus, encontram-se respostas para as simpatias e antipatias sem razão de ser. A anima e o animus são os mediadores entre o ego e o mun-do interno, para tanto:

Se um homem quiser alcançar a serenidade e aquela harmonia interior que, para Jung, passou a ser meta suprema da vida, ele deverá redesco-brir aqueles aspectos de si mesmo que tinham sido negligenciados; e, para consegui-lo, exige-se o sacrifício parcial da própria função ou atitu-de que o serviu bem e lhe acarretou sucesso nos anos anteriores. “Assim, tanto o indivíduo cioso de poder como o intelectual precisam corrigir o seu desenvolvimento unilateral” (STORR, 1973, p. 84).

Uma das chaves para a individuação está justamente no dinamismo dessas forças psíquicas entre masculino e feminino, animus/anima, atu-ando como um espelho que sirva de referencial de auto-observação.

2.1 Animus: o elemento masculino interior

Alguns arquétipos têm grande importân-cia na formação da personalidade e do com-portamento, de modo que Jung dedicou-lhes uma especial atenção. Dentre esses arquétipos, cita-se o animus:

Existem tantos arquétipos quantas as situações típicas na vida. Uma repetição in� nita gravou es-tas experiências em nossa constituição psíquica, não sob a forma de imagens saturadas de conte-údo, mas a princípio somente como formas sem

conteúdo que “representavam apenas a possibili-dade de certo tipo de percepção e ação” ( JUNG, Apud HALL, 1993, p. 34).

Diante do complexo mundo arquetípico fe-minino, Jung ressalta que a analogia da situação mitológica com a vida comum está na atenção consciente que uma mulher tem de dar aos pro-blemas de seu animus e que toma muito tempo e envolve muito sofrimento:

Mas se ela se der conta da natureza deste animus e da in� uência que ele exerce sobre sua pessoa, e se enfrentar esta realidade em lugar de se dei-xar possuir por ela, o animus pode se tornar um companheiro interior precioso que vai contem-pla-la com uma série de qualidades masculinas como a iniciativa, a coragem, a objetividade e a sabedoria espiritual ( JUNG et al., 2008, p. 258).

O animus, tal como a anima, apresenta quatro estágios de desenvolvimento: “o primeiro é personi� cação da força física. No estágio se-guinte, o animus possui iniciativa e capacidade de planejamento; no terceiro torna-se o verbo, na quarta manifestação, o animus é a encarnação do pensamento” ( JUNG et al., 2008, p. 258).

Numa colocação mais interior, Jung cha-mou este arquétipo de imagem da alma, por sua capacidade de nos colocar em contato com nossas forças inconscientes; muitas vezes, ele é a chave para revelar a nossa criatividade (FADIMAM; FRAGER, 2004, p. 103).

No animus, em seu aspecto positivo, sob a forma de pai, se expressam não somente opiniões tradicionais, mas também aquilo que se chama espírito, e de modo particular certas concepções � losó� cas e religiosas universais, uma vez que “o animus na sua forma mais desenvolvida, relacio-na a mente feminina com a evolução espiritual, tornando-as assim mais receptivas a novas ideias criadoras” ( JUNG et al., 2008, p. 259).

2.2 O self - símbolo da totalidade

Uma vez que o processo de individuação não se confunde com o que se chama de perfei-ção, a construção da personalidade se caracteriza

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como um constante processo de reorganização do inconsciente, ou seja, busca-se ter uma identidade psicológica.

O Self representa o ser em sua totalidade e também o centro organizador, autorregulador e integrador, ação que se complementa ao estudar obras de Jung, onde o conceito “de si-mesmo” oferecia a melhor explicação que era possível ofe-recer para um dos mistérios centrais da psique, a criatividade aparentemente milagrosa, sua dinâ-mica centralizadora e suas estruturas profundas de ordem e coesão ( JUNG et al., 2008, p. 212).

Dessa forma, chama-se a este centro de self, sendo descrito como a totalidade absoluta da psi-que, para diferenciá-lo do ego, que constitui ape-nas uma pequena parte da psique ( JUNG et al., 2008, p. 212).

Com relação ao self, pode também ser de-� nido como um fator de orientação íntima, di-ferente da personalidade consciente e, através da investigação dos sonhos, mostra como essa perso-nalidade é provocada para um “constante desen-volvimento e amadurecimento”, “mas o quanto vai evoluir, depende do desejo do ego de ouvir ou não as suas mensagens”, pois é o ego que ilumina o sistema inteiro permitindo que ganhe consci-ência e, portanto, que “esse self se torne realizado” ( JUNG et al., 2008, p. 213).

A partir do momento em que o ser parte em busca de sua verdadeira essência e a encontra, depara-se com sua totalidade, ou o seu si-mesmo, pois para ser íntegro é necessário que abranja a totalidade do ser:

Os símbolos do self possuem uma numino-sidade e conduzem a um sentimento de necessi-dade que lhes dá uma prioridade transcendente na vida psíquica. Um self primário ou original é postulado como existente no começo da vida. Esse self primário contém todos os potenciais arquetípicos, inatos, que podem receber expres-são de uma pessoa. Em um meio ambiente apro-priado, esses potenciais iniciam um processo de integração emergente do integrado inconsciente

original. Buscam correspondências no mundo ex-terno. O acoplamento resultante de um potencial arquetípico de um bebê ativo, com as respostas reativas da mãe, é então reintegrado para se tornar um objeto internalizado. O processo de integra-ção/reintegração continua por toda a vida (BON-FATTI, 2012, p. 1).

O self não está inteiramente contido na nossa experiência consciente de tempo (na nossa dimensão espaço-tempo), mas é, no entanto, si-multaneamente onipresente. Além disso, aparece com frequência sob uma forma que sugere esta onipresença de uma maneira toda especial; isto é, manifesta-se como um ser humano gigantesco e simbólico que envolve e contém o cosmos inteiro ( JUNG et al., 2008, p. 266).

Para Jung, toda realidade psíquica interior de cada indivíduo é orientada, em última instân-cia, em direção a este símbolo arquetípico do si-mesmo.

Em termos práticos, isto signi� ca que a existên-cia do ser humano nunca será satisfatoriamente explicada por meio de instintos isolados ou de mecanismos intencionais como a fome, o poder, o sexo, a sobrevivência, a perpetuação da espécie etc. Isto é, o objetivo principal do homem não é comer, beber etc., mas ser humano. Acima e além destes impulsos, nossa realidade psíquica interior manifesta um mistério vivente, que só pode ser expresso por um símbolo; e para exprimi-lo o in-consciente muitas vezes escolhe a poderosa ima-gem do Homem Cósmico (2008, p. 270).

Todo ser humano vislumbra sonhos e/ou imagens de forma impessoal, que o levam rumo à busca da realização do si-mesmo.

O self é, muitas vezes, simbolizado por um ani-mal que representa a nossa natureza instintiva e a sua relação com o nosso ambiente. (É por isto que existem tantos animais bondosos e presti-mosos nos mitos e contos de fada.) Esta relação do self com a natureza à sua volta e mesmo com o cosmos vem, provavelmente, do fato de o “átomo nuclear” da nossa psique estar, de certo modo, in-terligado ao mundo inteiro, tanto interior como

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exteriormente. Todas as manifestações superio-res da vida estão, de certa maneira, sintonizadas com o contínuo espaço-tempo ( JUNG et al., 2008, p. 275).

A partir das re� exões acima citadas, cons-tata-se, segundo Jung, que: “Quando um homem segue as instruções do seu inconsciente, pode re-ceber e aplicar este dom que permite, de repen-te, fazer da sua vida, até então desinteressante e apática, uma aventura interior sem � m, repleta de possibilidades criadoras” (2008, p. 265), e, quanto à mulher, este potencial pode surgir sob a forma de dons sobrenaturais.

Todo esse processo de busca do si-mesmo não signi� ca chegar à perfeição, mas sim ter en-tendimento de que o progresso interior é algo a ser trabalhado durante toda a vida, pois novos desa� os surgirão o tempo todo durante nossa existência.

3. A individuação como experiência religiosa

Um dos conceitos centrais de Jung é a indi-viduação, termo usado por ele para designar um processo de desenvolvimento pessoal que envolve o estabelecimento de uma conexão entre o ego e o si-mesmo.

Citando Sonia Lyra, segundo Jung, “invoca-do ou não invocado, Deus está presente” (LYRA, 2001, p. 54), e, apesar de suas constantes fugas, a busca fundamental do ser humano é encontrar-se. Eis o que sua invocação, consciente ou não, implica, a saber, conhecer, compreender, mesmo o que lhe pareça momentaneamente inacessível, pois em sua essência sabe quão terrível é o medo da solidão, de saber estar distante de sua essência.

O processo de individuação é, na verdade, “mais que um simples acordo entre a semente inata da totalidade e as circunstâncias externas que constituem o seu destino. Sua experiência subjetiva sugere a intervenção ativa e criadora de alguma força suprapessoal” ( JUNG et al., 2008, p. 214).

A imagem onírica pode nos iludir, devido a pro-jeções, ou dar-nos uma informação objetiva. Para se descobrir qual a interpretação correta, é ne-cessária uma atitude honesta e atenta e um cui-dadoso raciocínio. “Mas como acontece em todo processo interior, é o self que, em última instân-cia, ordena e regula nosso relacionamento huma-no, desde que o ego consciente se dê ao trabalho de detectar estas projeções irreais, ocupando-se delas no seu íntimo, e não exteriormente”. É as-sim que pessoas que têm a� nidades espirituais e uma mesma orientação descobrem-se umas às outras, criando um novo grupo, que se sobrepõe às organizações e estruturações sociais comuns. Tal grupo não entra em con� ito com outros; é apenas diferente e independente. O processo de individuação conscientemente realizado muda, assim, as relações humanas do indivíduo ( JUNG et al., 2008, p. 295).

O ego deve ser capaz de ouvir atentamente e de entregar-se, sem qualquer outro propósito ou objetivo, ao impulso maior do crescimento.

Segundo Jung, o verdadeiro processo de individuação signi� ca a harmonização com o próprio centro interior (o núcleo psíquico) ou self, que em geral começa in� igindo uma lesão à personalidade, acompanhada do consequente sofrimento. “Este choque inicial é uma espécie de apelo”, apesar de nem sempre ser reconhecido como tal. Ao contrário, o ego sente-se tolhido nas suas vontades ou desejos e geralmente projeta esta frustração sobre qualquer objeto exterior ( JUNG et al., 2008, p. 219).

Todo indivíduo necessita passar pelo pro-cesso de crescimento e maturação, para Jung, o processo de individuação. Como pregava Santo Inácio de Loyola, em obra organizada por Guil-lermou; nesta obra, por exemplo, ele ensina que, com a prática dos seus exercícios espirituais, o in-divíduo desenvolverá suas potencialidades e res-ponsabilidades humanas à luz da re� exão, sobre sua prestação de contas � nal perante seu Criador, E assim cita:

Organizar a disciplina do corpo é relativamente fácil: o asceta pode estabelecer o que será a sua

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alimentação, sua bebida, o tempo de sono; isso tudo é então um simples problema de vontade. Não acontece o mesmo na disciplina do espíri-to: como impedir a imaginação de vagar como um voo desordenado de mosquitos (1973, pp. 62, 63).

O desa� o maior da transcendência é ativar a necessidade que cada ser humano possui de se autoconhecer, indo além de suas sombras e seus arquétipos. “A glória da existência humana não está nas coisas que nos tornam únicos. está no fato de podermos nos unir à inteligência cósmi-ca; cada um de nós se torna uma parte conscien-te do todo. Quando isso acontece, ganhamos um mundo que nem chega a ser imaginado pelos pensamentos e sentimentos da vida co¬tidiana”. Quando mais criativa e imaginativa se tornar a mente consciente do ser humano, tanto menos inclinada ao julgamento. “Mas, para que surja qualquer um desses benefícios, temos de expe-rimentar o que a plenitude realmente é” (CHO-PRA et al., 2010, p. 77).

A individuação é uma exigência psicoló-gica imprescindível, a individualidade é o único caminho que a pessoa tem para escapar do cole-tivo. Na psique coletiva perde-se justamente de vista o seu ser mais profundo. Para Santos, ao de� nir o termo religião, Jung não se preocupou com os credos e rituais das religiões, mas com as experiências religiosas originais que decorrem por meio do indivíduo em relação à prática re-ligiosa. A religião, para ele, não precisa ter seu apoio na tradição e nem na fé, mas sua verdadei-ra origem encontra-se nos arquétipos; por isso, ele entende que religare expressa a essência da religião (2006, p. 30).

Na seguinte citação de Jung, vemos como o mesmo discute a respeito da individualidade es-piritual: A individualidade assim chamada espi-ritual é também uma expressão da corporalidade do indivíduo, ambas são, por assim dizer, idênti-cas. Após ter explicado como funciona o aparelho psíquico, em Jung, “no qual o processo de indi-viduação ocorre como algo natural e necessário

para levar ao crescimento, seu desfecho último consiste em atingir o estado de Self, no sentido da centralidade da personalidade” (2002, p. 149). Para alcançar esta centralidade, faz-se necessário romper com o arquétipo persona e sombra, com o intuito de viver o processo de individuação. Como vem sendo dito, sombra e persona atrapalham no processo de individuação. A religião entra nesse contexto, como um fator que favorece ao processo de individuação, quando bem trabalhado.

A de� nição de individuação aparece ainda em outra citação de Jung, onde ele a de� ne como “um processo religioso que exige atitude religiosa correspondente: a vontade do eu de submeter-se ao si mesmo” (2002, p. 432).

No desenvolvimento do processo de indivi-duação, ocorre uma expansão do mundo interior, do qual resulta uma nova personalidade, menos fragmentada.

A nova consciência que emerge nas so-ciedades humanas e tenta conciliar o padrão do medo que norteou o comportamento humano nesses últimos duzentos anos e que separou ci-ência de religiosidade, trabalho de alegria, sexo de afeto, e Deus do mundo, cede lugar ao paradigma do amor, que é a energia de criação, manutenção e recriação da vida.

Goldbrunner chama a atenção para o fato de que “a individuação é um processo espiritual de formação da personalidade” (1961, p. 138). Segue dizendo que seus caminhos são tão va-riados quanto são os indivíduos existentes, po-rém trata-se de uma experiência intima e muito poucos conseguem transportar-se para a dispo-sição de espírito de outrem e experimentar seus sentimentos.

O ser humano se fortalece ao experienciar a busca pelo si-mesmo. De acordo com Jung, [...]

todos os momentos da vida individual em que as leis gerais do destino humano rompem com as intenções, as expectativas e concepções da consciência pessoal são, ao mesmo tempo, eta-pas do processo de individuação, que é a re-

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alização espontânea do homem total. Quanto mais o homem se torna consciente do seu eu pessoal, mais se distancia do homem coletivo, que é ele próprio, criando com isso uma opo-sição. No entanto, como o si-mesmo tende sempre para a totalidade, a atitude unilateral da consciência é corrigida e compensada, e o ego é chamado a se integrar a uma personali-dade mais ampla ( JUNG, Apud ARMANDO, 2006, p. 77).

Apesar de fazer parte da mesma sociedade e do mesmo processo civilizatório, quanto mais o ser se submete ao processo de individuação, mais ele se diferenciará em sua conduta em relação às normas, padrões, regras, costumes e valores cole-tivos. O ser representa, então, uma combinação única dos potenciais existentes no coletivo. Tudo o que uma pessoa aprende como resultado de experiências é in� uenciado pelo inconsciente co-letivo, que exerce ação orientadora no início da vida. Sendo assim, o ser nasce com predisposição para pensar, sentir, perceber, de maneiras especí� -cas. O desenvolvimento dessas predisposições vai depender das experiências vividas pelo ser. Quan-to maior o número de experiências, maiores são as chances de essas imagens latentes tornarem-se manifestas, e um ambiente rico em oportuni-dades é necessário ao processo de individuação (TOLEDO, 2006, p. 63).

Com clareza intensa, Goldbrunner retrata essa sensação única, onde somente pessoas capa-zes de ser verdadeiras em sua busca interior são capazes de experimentar

a convergência de todas as suas energias e ins-tintos da alma para um ponto central, enquanto o ego passa a ocupar uma condição periférica. A partir de então, se dá seu efeito sobre a perso-nalidade, e dessa transformação experimenta-se o novo centro da psique, e assim se pode sen-tir o quanto a vida é pura, a energia psíquica é pura, esse sentimento todo peculiar pode apa-recer como símbolo na representação pictorial do sonho ou da visão. Na qualidade de símbolo transcende toda compreensão racional, pois é a expressão da atividade criadora. Sob esse aspecto,

o símbolo uni� cador representa a experiência de Deus (1961, p. 173).

Considerações finais

Espera-se então que ocorra um amadure-cimento no processo de desenvolvimento psico-lógico. Isso signi� ca tomar consciência de nós mesmos, desenvolvendo um senso de responsa-bilidade e capacidade de julgamento, que poderão ser idênticos ou não aos padrões e expectativas externas e coletivas, ou seja, ter conhecimento de si mesmo. Isso é verdadeiramente o processo de individuação.

Este processo corresponde ao decorrer na-tural de uma vida, na qual em que o indivíduo se torna o que sempre foi. E porque o homem tem consciência, um desenvolvimento desta espécie não decorre sem di� culdades; muitas vezes, ele é um processo diversi� cado e perturbado, porque a consciência se desvia sempre de novo da base ar-quetípica instintual, pondo-se em oposição a ela ( JUNG, 2002, p. 49).

Todo processo de organização psíquica, desde o nascimento (organização do ego, comple-xos etc.), tem como objetivo o desenvolvimento do individuo ou, mais precisamente, do que é mais próprio de cada individuo.

Conclui-se, portanto, que a tomada de consciência por parte do homem aparece como o resultado de processos arquetípicos predeter-minados em linguagem metafísica, como uma parte do processo vital divino. Em outros termos: “Deus se manifesta no ato humano de re� exão” ( JUNG, 1979, p. 234).

A individuação direciona o ser humano para a realização do si-mesmo, não se importando em satisfazer o ego. Essa postura permite que as pessoas se encontrem, uma vez que, ao se permitir a busca do si-mesmo, o ser humano despe-se da armadura, trabalha seus medos, pois, “a meta da individuação não é outra senão a de despojar o si-mesmo dos invólucros falsos da persona, assim como do poder sugestivo das imagens primor-diais” ( JUNG, 2011, p. 270).

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Aspecto religioso do processo de individuação | Regina Maria Grigorio e Sonia Regina Lyra | 16 - 28

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Uno e trino: a visão de Deus de Nicolau de Cusa – O amor é uma essência ternária | Sonia Lyra |11 - 20

Albertina Laufer

O percurso para a sétima moradaThe Journey to the Seventh Mansion

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1. Aspectos introdutórios

As Sagradas Escrituras, já de início, no re-lato bíblico da criação (Gn, 1,1-2,4), apresentam o ser humano como sendo o ápice da obra criada por Deus. “Então Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança [...] E Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus ele o criou; e os criou homem e mulher” (Gn 1,26-27). O texto bíblico narra por três vezes que Deus criou o homem à sua imagem, revelando-lhe, dessa forma a importância que lhe cabe na obra da criação. No homem encontra-se estampada a

Albertina Laufer*

* Albertina Laufer

Licenciada em pedagogia

com habilitação em

administração escolar.

Especialista em

counseling. Especialista

em psicologia analítica

e religião oriental e

ocidental pelo ICHTYS

– Instituto de Psicologia

e Religião. Mestra em

teologia - PUC/Pr.

([email protected])

presença de seu Criador e a esta ele deve asseme-lhar-se.

Para evidenciar esta realidade, Edith Stein recorre ao estudo de Santo Tomás de Aquino, o que torna claro o lugar central ocupado pela an-tropologia em seus escritos. Em sua obra Poten-cia e Ato, discorre sobre a passagem da imanência para a transcendência, demonstrando que a carac-terística principal dos seres humanos e das coisas viventes é a de permanecer, ao mesmo tempo, em potência e em ato. Por ato ela compreende que o ser humano tende a algo diferente, possui uma

Resumo

Este artigo tem como objetivo investigar a forma como se dá o percurso para a sétima morada, em toda pessoa que se dispõe a investir no caminho da interioridade, considerando o caminho apontado por Teresa de Ávila, na Obra Castelo Interior ou Moradas. Tal investigação far-se-á acompanhar dos comentários de Edith Stein e das analogias feitas por ela. A sétima morada é apresentada como a parte mais elevada do castelo, ou o centro da alma, local onde Deus repousa e de onde emana toda claridade de luz. Considerado como arquétipo, o centro da alma, é o símbolo fundamental e principio ordenador e regulador da psique e é designado de si-mesmo ou self (Selbst), sendo o centro de toda a personalidade. Em razão disto, o caminho psicológico e o caminho espiritual podem ser apresentados como duas realidades complementares e pos-síveis a � m de que a alma se descubra e tome posse de sua realidade profunda, isto é, do seu centro ou da sétima morada.Palavras-chave: Bem-aventurança, felicidade, contentamento, terceira margem.

Palavras-chave: Teresa de Ávila, Edith Stein, Castelo Interior, Sétima Morada, Self.

Abstract

� is article aims to investigate the journey to the seventh mansion of every person that is willing to invest in the path to interiority, considering the way indicated by Teresa of Ávila’s work � e Interior Castle or � e Mansions. Such research will be accompanied by Edith Stein’s commentaries and the analogies made by her. � e seventh mansion is presented as the highest part of the castle, or the center of the soul, where God rests and from which all light brightness emanates. Considered as an archetype the center of the soul is the fundamental symbol and the arranging and regulative principle of the psyche and it is designated as the Self (Selbst), being the center of the whole personality. Because of this, the psychological way and the spiritual path can be presented as two complementary and possible realities so that the soul discovers itself and takes possession of its profound reality, that is, of its center or of the seventh mansion.

Keywords: Teresa of Ávila, Edith Stein, � e Interior Castle, the Seventh Mansion, Self.

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encontra-se na coragem e no caminho dos gran-des santos, dentre eles São João da Cruz, Santa Teresa de Ávila, Santa Teresa Margarita, Santa Teresinha, mestres inspiradores da vida carmelita, sobre cujas vidas e obras Edith Stein teceu alguns comentários com a � nalidade de dar a conhecer ao mundo católico o signi� cado da entrega de si vivida pela pessoa que assume este ideal. Para Edith Stein as horas dedicadas a sós no colóquio com o Senhor constituem o fundamento da vida carmelita e “aquilo que Deus realiza nas almas durante as horas de oração interior está escondi-do aos olhos dos homens e se constitui em graça sobre graças” (STEIN, 1998b, p. 282).

No intuito de fazer a experiência do centro, os místicos abrem mão da rotina quotidiana e se lançam aprofundando o desconhecido e obscuro. Entrando em si, têm contato com a sua essência e com a realidade do próprio Deus que é o cen-tro de todos os Centros. Na tentativa de tornar a experiência compreensível, recorrem às metáforas e às imagens , como referências de sentido. Para Storniolo algo semelhante ocorre na experiência de análise psicológica, por meio de um método que se desdobra para além das realidades patoló-gicas. Neste sentido, Jung apresenta o “processo de individuação como o processo normal pelo qual um ser se desenvolve para tornar-se o que é” (apud HUBERT, 1997, p. 8).

Com a descoberta do arquétipo do Centro ou Si-Mesmo, Jung o apresenta como o centro regulador de todo o psiquismo, pelo qual se pode fazer alusão ao que os místicos denominam de imago Dei. Esta descoberta o auxiliou na cons-trução de uma ponte entre a Psicologia como ciência da alma e a experiência que os místicos têm da alma. Embora apresentada com conota-ções diferentes, a característica fundamental de uma e outra tende para a experiência religiosa, compreendida como a experiência de re-ligação. “No processo místico, religar a pessoa à imago Dei e ao próprio Deus. No processo de indivi-duação, religar o Eu consciente ao Si-Mesmo e, simultaneamente, à dimensão misteriosa da qual

exigência e um impulso para algo a mais. Porém, o novo contido na obra de Stein “consiste em con-servar os polos paradoxais da dinâmica da vida na sua contínua tensão: interioridade-exterioridade; � nito-in� nito; o fugaz e o eterno” (FERNAN-DES, 2009, p. 231). Neste sentido, o ser humano é potencialmente aberto a algo e projetado diale-ticamente para a passagem da potência para ato.

A realidade da imagem de Deus (imago Dei) citada no texto da criação aparece também no Salmo 139. Nele o salmista percorre um cami-nho introspectivo profundo, descobrindo a pre-sença de um Deus que o conhece mais do que ele próprio e, não bastando isso, está mais presente nele do que ele está em si mesmo.

Senhor, tu me sondas, e me conheces. Tu conheces o meu assentar e o meu levantar; de longe entendes o meu pensamento. Esquadrinhas o meu andar, e o meu deitar, e conheces todos os meus caminhos. Sem que haja uma palavra na minha língua, eis que, ó Senhor, tudo conheces (Sl 139, 1-4).

O texto apresenta a imago Dei em contato direto com o próprio mistério de Deus. Retrata o encontro íntimo que ocorre entre a profundidade do mistério da imagem, com o próprio Mistério que a transcende e que, ao mesmo tempo, perma-nece em profunda comunhão com ela.

2. O mergulho em Deus

Para chegar até Deus, toda pessoa tem ne-cessidade de passar pela imago que existe dentro de si e quando se chega a ela, chega-se também ao próprio mistério de Deus. Ao ser imagem do divino, o humano adota suas características, de modo particular quando faz a experiência de seu centro. Ao fazê-la, faz ao mesmo tempo a expe-riência da totalidade da imagem e da experiência de um Deus incomensurável. “Há na experiência do centro, [...] uma experiência da totalidade de si mesmo que, unida à experiência do centro divino, torna-se experiência do todo universal” (STOR-NIOLO, apud HUBERT, 1997, p.7).

O exemplo deste mergulho para o Centro

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entre o desenvolvimento psicológico e a ascese. Nesse contexto, a ascese cristã é entendida não como � m em si, mas como caminho que conduz a Deus. Para Winckel, a ascese “não visa fazer super-homens” (WINCKEL, 1985, p. 43), mas direciona ao despojamento, ao desapego. “Mergu-lhar na ascese sem Deus, traria grandes perigos, porque se cairia inconscientemente, mas quase infalivelmente, no egoísmo e no orgulho” (WIN-CKEL, 1985, p. 43).

O objetivo de toda ascese cristã, é levar o � el a uma con� guração cada vez maior com a vontade de Deus em sua vida, a ponto de ele renunciar a si mesmo, tomar a sua cruz e optar pelo seguimento. “Se alguém quiser vir comigo, renuncie-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-me” (Mt 16,24-28). Ressalta-se aqui, que a � na-lidade da cruz no calvário não foi um � m em si mesmo cujo sentido acabou com a morte, mas se constituiu num caminho de sofrimento na Cruz que culminou com a ressurreição de Cristo. Do mesmo modo a � nalidade da ascese não é ani-quilar, mas servir a vida, tanto a da natureza ra-cional, quanto a da graça.

É possível uma aproximação entre a análise psicológica e ascese, pois, em ambas a experiêcia é vivida interiormente. Compreende-se, dessa for-ma, que os “elementos de tal ascese são frutos da vida interior de cada um e não se constituem em padrão válido para todos”. (WINCKEL, 1985, p.45). Há sim uma diferença entre o conheci-mento psicológico da alma, que se dá através do inconsciente e o conhecimento teológico e místi-co da alma pela ascese, porém essa diferença não está na essência da alma, mas sim na diversidade de caminhos e direções; “Órgão da percepção de Deus, ele não é Deus, mas tende a no-lo dar a conhecer” (WINCKEL, 1985, p. 55).

3. Psicologia e Mística: caminhos complementares

Os místicos que conhecem a alma por dentro não se enganam. Exemplo disso é o ca-minho proposto pela aventura de Tereza de Ávi-

o Si-Mesmo é re� exo ou imagem” (STORNIO-LO, apud HUBERT, 1997, p. 9). Neste sentido, compreende-se que a experiência psicológica se constitui numa caminhada, uma vez que não pode chegar à plenitude voltada somente ao Deus imanente na alma, mas deve reconhecê-lo como o Deus transcendente, ou totalmente Outro. Neste momento, cede terreno para o campo da mística.

O grande perigo no qual incorre o ser hu-mano, está em considerar Deus somente na sua imanência, perigo esse que o conduz a um narci-sismo fechado. Para tanto, é necessário salientar que Jung nasceu e morreu num contexto cristão e que as “referências que ele faz a Deus, referem-se às representações humanas de Deus” (BONA-VENTURE, apud Winckel, 1985, p. 10), porque o buscando somente dentro de si perdem de vis-ta a alteridade que Nele está presente. Em suas Memórias, no capítulo sobre o confronto com o inconsciente, Jung deixa registrado o reconheci-mento destes limites:

Todos os escritos são, de certa forma, ta-refas que me foram impostas de dentro. Nasce-ram sob a pressão de um destino. O que escrevi transbordou de minha interioridade. Cedi a pa-lavra ao espírito que me agitava [...]. Para mim o essencial sempre foi dizer o que tinha que di-zer. Minha impressão é que � z tudo o que me foi possível. Naturalmente, poderia ter sido mais e melhor, mas não em função da minha capacidade ( JUNG, 1975, p. 195).

Winckel interpreta as palavras de Jung dizendo que chegar ao Si-Mesmo é o caminho que prepara para “ultrapassar o psicológico e o simbólico para se abrir ao ilimitado do sagrado” (WINCKEL, 1985, p. 36). Ilustrativo a respeito deste caminho é um fragmento de uma das car-tas de Jung: “Mas o si mesmo não pode tomar o lugar de Deus, embora possa, às vezes, ser um receptáculo da graça divina” ( JUNG, apud Win-ckeL, 1985, p. 26).

A intuição do Si-Mesmo como receptáculo da graça divina, leva ao estabelecimento de laços

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periências vividas pelas incursões nos caminhos da interioridade. Ela propõe então, uma nova for-ma de se viver a espiritualidade, ao mesmo tempo em que dá indícios de que Deus pode também ser encontrado para além das Sagradas Escrituras.

É de suma importância, para poder com-preender a aproximação de Edith Stein com a obra de Santa Teresa de Ávila, trazer presente a lembrança de suas visitas ao casal de amigos Con-rad Martius. Foi na casa deles que Edith Stein, pela primeira vez, entrou em contato com a obra de Teresa de Ávila e a partir deste contato, diz ter chegado ao encontro com aquela realidade que ela denominava ser a Verdade. Edith Stein refere-se a este evento da seguinte maneira:

Sem escolher, peguei o primeiro livro que me veio às mãos: era um enorme volume que ti-nha como título ‘Teresa de Ávila livro da vida’. Iniciei a leitura e prendi-me totalmente, não in-terrompendo antes de chegar ao � m do livro. As-sim que o fechei, fui obrigada a confessar a mim mesma: ‘Esta é a verdade’(EDITH, apud SPIRI-TU SANCTO, 1959, p. 30).

Estudiosa da vida de Edith Stein, Spirictu Sanctu relata que, possivelmente, daquele mo-mento em diante, “Deus tinha se apropriado dela, e ela não mais o teria abandonado” (SPIRITU SANCTO, 1959, p. 30). Já para Ales Bello, este acontecimento foi certamente tão iluminado, pois permitiu que Stein pudesse redescobrir a expe-riência religiosa, por ela um tanto esquecida na adolescência. Nesta época estava re� etindo a res-peito da temática do ser humano, conduzida por Husserl. Por essa razão, segundo a autora, pode-se pensar também em termos de uma posterior clari� cação sobre a estrutura do ser humano. Cla-ri� cação esta que a conduzirá a uma escavação ainda maior para encontrar o núcleo profundo e pessoal que caracteriza cada pessoa. “O encontro com a obra de Teresa de Ávila causou certamente um intenso movimento na vida espiritual de Edi-th Stein, abrindo a ela horizontes anteriormente desconhecidos” (MANGANARO, et al 2006, p. 70-71 ).

la através da imagem do Castelo Interior e suas Moradas , que pode ser percebido também como um percurso de autoconhecimento e de conhe-cimento do Self. A proposta de passagem em cada uma das moradas evidencia o caminho da alma humana que realiza um diálogo/confron-to de veri� cação entre a experiência externa e a experiência interna. Paulatinamente vão aconte-cendo os processos de puri� cação e crescimento. À medida que vai avançando no processo, o ha-bitante do Castelo vai sendo conduzido a uma aproximação àquela morada central, nuclear, onde há uma presença. Neste processo, segun-do Jung, o ego vai conquistando sempre mais a liberdade para conviver, arriscar-se, confrontan-do-se com a sua sombra. A pessoa passa a fazer um caminho no qual percebe as mudanças e as transformações em si, até chegar a aproximar-se da totalidade do centro, o Self.

Na sua obra Ser Finito e Ser Eterno, Edith Stein utilizou o termo Castelo da alma, no mo-mento em que se referia à obra de Santa Teresa de Ávila. Para ela, a qualidade do Castelo Interior é insuperável pela experiência da autora que, no momento em que escreve, já deveria ter chegado ao mais alto grau da vida mística, bem como pela sua extraordinária capacidade de criar um léxico e com palavras simples descrever as vivências in-teriores:

Para a Santa, não era possível dar a enten-der os sucessos que acontecem no interior do homem, sem antes esclarecer a si mesma no que consiste exatamente esse mundo interior. Para tanto, ocorreu-lhe a feliz imagem de um castelo com muitas moradas e salas. O corpo é descrito como a parede próxima ao castelo. Os sentidos e poderes espirituais (inteligência, memória e vontade), às vezes como vassalos, por vezes, como sentinelas, ou simplesmente como habitantes do castelo. A alma, com seus numerosos cômodos, assemelhando-se ao céu, no qual há muitas mo-radas (STEIN, 1998, p. 414-415).

Segundo Edith Stein, Teresa de Ávila des-creve surpreendentes e misteriosas aventuras, ex-

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Stein compreende que não é somente pela � loso� a que se pode entrar em contato com a in-terioridade e compreendê-la, mas se pode chegar a ela por meio do caminho percorrido e proposto pelos místicos e, portanto, para ela Santa Tere-sa serve de exemplo. Compreendendo que Santa Teresa percorre um itinerário que não é o da inte-lectualidade acadêmica, Stein apreende que para se chegar à verdade, muitos podem ser os cami-nhos, mesmo que ainda esta verdade seja encon-trada parcialmente.

Aprofundando suas re� exões a respeito do ser humano, Stein vai sempre mais percebendo que Teresa de Ávila não tinha intenção de fazer um estudo minucioso a este respeito, mas sim apresentar a possibilidade que este possui de entrar em contato com Deus. Percebe, ainda, a e� cácia e a atualidade da descrição espontânea da Santa a respeito de sua própria experiência. Tal descrição valoriza um trabalho arqueológico, que conduz a pessoa a uma maior aproximação de sua interioridade, caminho anteriormente já indicado por Santo Agostinho. Alerta que, além da oração e da meditação, existe a necessidade do autoconhecimento que é relativo ao conheci-mento que o “ser humano tem sobre Deus, ainda que obscuro e imperfeito” (ALES BELLO, apud Manganaro, 2006. p. 76). Conhecimento este que exige cada vez mais da alma um “trabalho lento, perseverante e corajoso, que nada tem de espetacular, mas que, progressivamente nos en-sina a nos vermos tais como somos na realidade” (WINCKEL, 1985, p. 57).

Stein ao comentar a realidade das moradas, faz notar que os muros que circundam o caste-lo compreendem o seu exterior, ao passo que na sala principal habita Deus. Diz ela que “entre estes dois extremos (que, é óbvio, não devem ser entendidos espacialmente), se encontram as seis moradas que circundam a mais central (a sétima)” (STEIN, 1998, p. 415). Porém, salienta que os moradores que circulam por fora ou até mesmo os que permanecem próximos ao muro, não chegam saber nada a respeito do que acontece no interior

do castelo. Para ela a atitude de permanecer por fora do castelo, sem conhecer a própria casa, soa como estranha e patológica, pois as almas encon-tram-se enfermas e mergulhadas apenas nas coi-sas exteriores, que dão a impressão de não haver remédio nem possibilidade de fazê-las entrar em si mesmas. Pelo fato de estarem tão habituadas com as coisas que existem fora do castelo, acabam por se tornar semelhantes a elas.

Neste primeiro estágio, a alma encontra-se numa fase de vivência na presença da cobiça sexual ou o lugar das satisfações instintivas. Mas toda a obscuridade ali existente, só tem sentido se percebida em relação à luz que reside e ilumina as últimas moradas e a esta parece tanto mais fulgu-rante, a partir do momento em que a alma estiver envolvida por aquilo que a Santa denomina de negrume ou fosso das primeiras moradas.

Embora sendo a primeira morada, esta é também uma morada extremamente rica e de grande valor. Quem consegue lapidar toda a de-formação provocada pelos animais, cria possibili-dades e não deixa de seguir adiante no processo. A este fato Jung também deu grande importância e caracterizou como a retirada das máscaras ou das projeções. Não é um processo fácil devido à força com que estas realidades agem sobre a alma. Por isso, a pessoa tem necessidade – conforme as-sinala Santa Teresa - de recorrer a Deus.

Comentando a segunda morada, Edith Stein comenta que ali a alma já percebe certos apelos de Deus, embora não se trate ainda de “vozes interiores, que se fazem sentir na pró-pria alma, mas chamados externos e que a alma percebe como sendo uma mensagem de Deus” (STEIN, 1998, p. 416-417). Como exemplo des-tes chamados destaca: as palavras de um sermão ou passagens de livros que para a alma soam como se tivessem sido escritos para ela, certas doenças, sofrimentos ou outras mensagens, bem como os momentos de oração. Embora a alma viva ain-da no e com o mundo, estes chamados tocam o seu interior, tornando-se para ela um convite para entrar dentro de si. À medida que se aproximam

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do centro, as almas vão sendo dotadas de maior sensibilidade para acolher o convite.

Comentando essa terceira morada, Edith Stein destaca que nela “encontram-se as almas que acolheram de coração o chamado de Deus” (STEIN, 1998, p. 417). Tais almas, esforçam-se constantemente a � m de ordenar a sua vida em conformidade com a vontade divina. Exercitam-se no cuidado de evitar o pecado, mesmo que ve-nial. Dedicam-se regularmente à oração, às práti-cas penitenciais, como também na realização das boas obras. “Quando provadas por duras provas, estas servem para demonstrar-lhes que, todavia estão fortemente apegadas aos bens terrenos” (STEIN, 1998, p. 417), de modo que, pela sua boa vontade, são agraciadas com determinadas consolações, embora ainda através de sentimen-tos completamente naturais tais como: lágrimas de arrependimento, devoções sensíveis na oração e satisfação pela realização de boas obras.

Na Psicologia Analítica, o entendimento da necessidade do ego que estabelece uma re-lação vital com o Si-Mesmo é para assegurar a própria integridade do mesmo. A manutenção do eixo de integração do ego dependente do Self é fundamental para o prosseguimento no caminho rumo ao centro. Assim entendido, o reconheci-mento do ego para com o Self é um processo con-tínuo, uma vez que lhe é intrínseco o dilema da in� ação, isto é, de entender-se merecedor ou até mesmo responsável pelo pouco realizado, sendo tentado a apropriar-se pelo processo de in� ação do fogo dos deuses. Em relação a esse perigo, Te-resa acrescenta: “Deus une à sua grandeza o nosso trabalhinho, conferindo-lhe grande valor, sendo o próprio Senhor a nossa recompensa” ( JESUS, 1981, p. 109). O processo de desenvolvimento comporta também estágios nos quais o eu passa a atribuir a si qualidades que ultrapassam as suas medidas, gerando a famosa in� ação psicológica, da qual decorrem numerosos con� itos, tanto em nível � losó� co quanto em nível existencial.

Ao contrário, o homem que vive e pensa em função do centro escapa aos pseudoproblemas

apresentados pelo pensamento moderno. Isto se dá porque o arquétipo do centro, juntamente com seus múltiplos componentes (espiritual, psíquico, biológico, histórico e social, individual e coletivo, conteúdos conscientes e inconscientes), contém em si a unidade (BONAVENTURE, 1975, p. 20).

O homem moderno corre sempre o risco de sofrer a in� ação, considerando o fato de julgar-se que nem mesmo seria capaz de cometer pecado algum, ainda que venial. Entretanto, Teresa faz um convite ao exercício da humildade. Nesta eta-pa é necessário o desnudamento e a experiência do despojamento de tudo.

Para Stein, ao ingressar na quarta morada, a alma começa a receber graças especiais, dispon-do-se a abandonar-se completamente nas mãos de Deus. Aqui não se trata do movimento da alma a Deus, mas de Deus em direção à alma, o que se concretiza na diferença entre consolações e delicadezas, sendo que as últimas procedem di-retamente de Deus e proporcionam a oração de quietude.

Começam aqui as graças sobrenaturais, di-� cílimos de explicar, a menos que sua Majesta-de se encarregue disso. [...] agora as moradas se encontram mais perto do aposento do Senhor (o centro do castelo de luz), e nelas há coisas tão de-licadas que nossa mente, por mais que se esforce, não tem capacidade para sugerir sequer uma ideia de como explicá-las adequadamente. É necessá-rio ter a experiência para compreender, pois aqui existe uma inefabilidade ( JESUS, 1981, p. 71).

É um processo de interiorização que não se adquire pelo entendimento e nem tampouco pela imaginação. É um estado de quietude que depende somente de Deus, de quando Ele quer e como quer. Por isso é necessário “que se diminua a atividade do entendimento e da imaginação. As potências devem ser empregadas em Deus, com seu próprio esforço, enquanto podem atuar li-vremente” (STEIN, 1998, p. 420). Do contrário, a� rma Stein, serviria somente para causar aridez na alma, que acabaria prejudicando a si mesma

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devido aos esforços. No entanto, isso somente é possível para aquelas almas que se tenham de-morado nas moradas anteriores, como aconselha Teresa.

Na quinta morada, se percebe a surpreen-dente transformação que experimenta a alma embebida com a oração. Stein comenta que, en-quanto a alma na oração de quietude encontra-se como que em sonhos, agora entra em oração de união. É o estágio em que a alma encontra-se como que adormecida. “Aqui o amor é assim: não entende como, nem o que deseja. Em suma, está como quem morreu inteiramente ao mundo para viver mais em Deus” ( JESUS, 1981, p. 101). Assim sendo, não há espaço para a imaginação e a memória e nem mesmo o entendimento pode causar obstáculos. Nem mesmo “o demônio pode entrar para causar dano” (STEIN, 1998, p. 422). Diz ainda Edith que, “durante o breve espaço da união, a alma não compreende o que lhe ocorre” (STEIN, 1998, p. 422). No momento em que acontece a união, a alma não consegue perceber o que nela se realiza. Segundo Edith, “a Santa chegou assim, pela própria experiência interior, a uma verdade de fé até então por ela ignorada” (STEIN, 1998, p. 422).

Por meio da utilização da metáfora do bi-cho da seda Santa Teresa expressa a mudança e a transformação da alma, o que para a Psicologia seria a transformação que ocorre na personali-dade, pela ampliação da consciência, após um intenso processo de análise interior. Da mesma forma com a qual o bicho da seda no casulo vai se transformando, assim a alma ou a personalidade alcançam os níveis (estágios) ou moradas sempre mais elevados. O mesmo ocorre com a alma em oração nesta morada: “quão transformada sai ela daqui, depois de estar imersa na grandeza do Se-nhor” (ÁVILA, 1984, p. 110). A este propósito Stein comenta:

Como o óvulo, tão pequeno e duro, com o calor adquire vida e começa a alimentar-se com as folhas da amoreira, e de modo que a lagarta se torna gorda e forte, de si vai tirando a seda e cons-

truindo a casa na qual morre para transformar-se em uma linda e branca borboleta, assim acontece na alma. (STEIN, 1998, p. 423).

Este é um movimento que acontece na alma quando “com o calor do Espírito Santo, co-meça a bene� ciar-se do auxílio que Deus concede a todos” ( JESUS, 1981, p. 108) e quando se valem dos meios essenciais que lhes são con� ados por Deus por meio da Igreja, tais como: a con� ssão frequente, as boas leituras e a escuta dos sermões. São eles potentes remédios para a alma. “Assim começa a alma a construir a casa onde vai mor-rer” (STEIN, 1998, p. 423). Trata-se da vida es-condida com Cristo em Deus, como muito bem a� rma o apóstolo: “Vós estais mortos e vossa vida está escondida com Cristo em Deus.” (Col, 3,3). Trata-se daquilo que a alma pode tolher de si, isto é, do amor próprio, da vontade própria, o desa-pego das realidades terrestres, colocando em seu lugar a oração, a morti� cação, bem como as obras de penitência.

Ao comentar a sexta morada, Stein diz que ainda não é o “lugar de repouso para a alma. Seu anelo visa à união estável e duradoura que se con-seguirá somente na sétima e, portanto, a alma é provada com sofrimentos internos e externos mais intensos” (STEIN, 1998, p. 427). Passa por violentos tormentos interiores. Nada lhe parece penetrar no íntimo e até a oração mental se torna impossível uma vez que a alma não encontra dis-posição para tal. Nesta etapa, há a “impossibili-dade de rezar e a alma não encontra consolo nem em Deus e nem nas criaturas” (STEIN, 1998, p. 427). Daí surge a necessidade da dedicação às obras de caridade tão recomendadas por Teresa.

No entanto, malgrado todos os sofrimentos, não passa despercebida à alma, o quão próxima encontra-se do Senhor. Mesmo estando ela, muitas vezes, descuidada e não se lembrando de Deus, este a desperta com seu toque repentino, semelhante a um trovão sem ruído. É um toque que não produz dor, mas que “sente-se a ferida sem atinar para quem a feriu [...]. É dor aguda – ao mesmo tempo - que saborosa e suave. Ainda

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que a alma quisesse, não poderia deixar de senti-la” ( JESUS, 1981, p. 144).

Acontece aqui o que a Santa denomina de arrebatamento. Geralmente acontece quando Deus quer revelar a ela alguns segredos e eles lhe � cam de tal forma na memória que jamais con-segue esquecê-los. São momentos tão intensos que dão a impressão de que o espírito sai do cor-po, não podendo a alma dizer se está nele ou não. “Parece-lhe que toda inteira, foi transportada a outra região muito diferente desta em que vive-mos” ( JESUS, 1981, p. 172). Nesta experiência de êxtase, Deus comunica-se diretamente a alma e infunde-lhe o desejo de servi-Lo e fugir de to-das as coisas que não a direcionam a este � m.

Na sétima morada, a alma já foi tomada sobrenaturalmente como esposa. “Antes de con-sumar o matrimônio espiritual, a introduz em sua morada, que é a sétima” ( JESUS, 1981, p. 228). É o local e o momento no qual a esposa recebe o beijo do amado. É onde a corça é saciada pela água e a paz acontece, lugar da presença total de Deus. É onde ela experimenta a felicidade com-pleta que se estabelece na presença, em plenitu-de, do Dono e habitante principal do castelo. É, segundo Stein, a companhia Divina que jamais abandonará a alma.

Segundo Bonaventure, a sétima morada re-presenta o centro, que pode também signi� car a casa de cada um. “Aqui, na última das moradas, passa-se de outra maneira. Nosso bom Deus quer tirar-lhe as escamas dos olhos” ( JESUS, 1981, p. 230). É o Senhor quem introduz a alma nesta morada, o Centro mais profundo dela mesma e, ali estando, cessam os movimentos ordinários das faculdades e da imaginação, de modo que a alma � ca paci� cada. Chegada neste ponto do castelo, a alma não mais estará sujeita aos con� itos das mo-radas precedentes. É um estado no qual ela vive a constante presença do Amado e tal presença lhe basta e sacia. Estabelece-se aqui o matrimônio espiritual, realidade da união misteriosa que so-mente pode ser realizado neste Centro mais ín-timo. As portas nesta morada estão abertas. “É

intensa a felicidade de que se sente inundada! Parece querer, o Senhor, naquele momento, ma-nifestar à alma a glória do céu, de um modo mais elevado que em nenhuma outra visão ou gosto espiritual” ( JESUS, 1981, p. 235-236).

Stein faz questão de evidenciar os profundos efeitos que esta união proporciona para a alma; O primeiro é um esquecimento de si. Encontra-se de tal forma transformada, que não mais se re-conhece. “Não se lembra de que haverá Céu para ela, nem vida, nem honra, porque se emprega in-teiramente em promover a glória de Deus” ( Jesus, 1981, p. 242). Não possui pretensões em ser coisa alguma. “Prefere ser tida em nada, exceto quando entende que de algum modo contribui para au-mentar um pouquinho a honra e glória de Deus. Para esse � m, de muito boa vontade sacri� caria a vida” ( JESUS, 1981, p. 243). Salienta a necessi-dade de a pessoa não se descuidar dos seus afa-zeres básicos, como comer e dormir, bem como de cumprir para com as obrigações de seu estado. Trata-se, segundo Teresa, de disposições interio-res sempre mais necessárias. O segundo efeito é um grande desejo de padecer. Entretanto, sem inquietações que eram próprias de outros tem-pos. “Uma alma chegada a este ponto tem ânsias tão extremas de que nela se cumpra a vontade de Deus, que acha bem tudo quanto sua majestade faz. Se quiser lhe mandar padecimentos – sejam bem vindos! Se não quiser, não � ca desconsolada como antes” ( JESUS, 1981, p. 243). Possui enor-me desejo de servir, contribuindo assim para a glória de Deus.

Para Santa Teresa, na sétima morada vive-se um grande desapego de todas as coisas. A úni-ca vontade que permanece na alma é a de estar ocupada exclusivamente com Deus. Neste está-gio, não existem mais as securas e os sofrimen-tos interiores. “Há, pelo contrário, uma contínua lembrança de Nosso Senhor e tal afeto por ele, que desejariam ocupar todo o tempo em seus lou-vores. Quando se distraem, o mesmo Senhor as desperta do modo acima dito” ( JESUS, 1981, p. 245). A alma encontra-se num estado de quie-

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tude quase contínua e tem certeza que procede de Deus.

Segundo Santa Teresa, é na sétima morada que a alma se paci� ca, harmoniza-se e encontra repouso, encontrando-se distante de todas as lu-tas. Ali estando, torna-se semelhante a Deus, se diviniza e goza de um bem aventurado repouso. Pode-se ainda aludir o estado da alma nesta mo-rada ao que Mestre Eckhart a� rma como sendo a realidade na qual “o homem exterior pode estar ativo, enquanto que o homem interior perma-nece totalmente livre e inalterado” (ECKHART, 2006, p. 154).

4. Considerações Finais

Empenhada no destino do caminhar, avan-çando para cada uma das moradas, paulatinamen-te a alma vai sofrendo os processos de puri� cação e crescimento. Neste sentido, o ego vai conquis-tando sempre mais a liberdade para conviver, confrontando-se com sua sombra, trilhando por um caminho em contínua transformação, rumo à totalidade do seu centro, o Self, até habitar de� ni-tivamente na morada principal do Castelo.

Certamente que entre a tentativa de apro-ximação das realidades psicológica e espiritual, não existe uma profunda identidade, mas a ana-logia é tal, a ponto de não se poder negar. É de grande importância ilustrativa a utilização das imagens do castelo e das moradas, por meio das quais, Teresa pode mostrar a realidade e também a complexidade da alma. E não somente ela, mas ainda toda a pluralidade de expressões no acon-tecer da vida.

No entender de Teresa, as pessoas que se encontram fora do castelo poderiam ainda ser comparadas ao estado do homem após a queda, momento em que passa a viver num estado de caos, na confusão ou completa ignorância, nos estágios obscuros, e até mesmo na bestialidade e na total inconsciência. Assim estando, a vida se sujeita ao espaço comum das leis da natureza, dissolve-se e massi� ca-se, voltando à condição do “homem terrestre que vive à semelhança dos

animais e longe da unidade paradisíaca” (BONA-VENTURE, 1996, p. 99).

Vista a partir do Centro (Cristo), a exis-tência transparece com uma nova luz, onde ali se pode descobrir que tudo procede de Deus ao mesmo tempo em que para Ele tudo converge. Ali tudo se confunde com a sua divindade e com o seu eterno brilho. Por meio desta experiência, a alma é chamada a ultrapassar sua condição pura-mente terrestre, descobrindo a condição que lhe abre as portas para a transcendência.

Compreende-se que o Centro transcende o eu. É a morada de Deus na alma, o palácio da mais formosa envergadura, sendo ao mesmo tem-po a razão na e pela qual as pessoas e todas as criaturas existem. Assim entendidas, as diversas salas e moradas do castelo, trazem presentes as mais variadas situações da condição humana em seus diversos estágios e que, aos poucos, vai so-frendo um processo de profunda humanização e, na medida em que se humaniza, vai consequente-mente se divinizando.

Segundo Stein o objetivo de Santa Teresa ao descrever a simbologia do Castelo Interior foi apresentá-lo como casa de Deus e tornar compreensível o que a própria Santa teria expe-rimentado a respeito do chamado e da intenção de Deus para com a alma humana, evitando que a mesma se desviasse caindo na exterioridade e conduzindo-a para a realização de sua própria vocação que é a união no seu Centro interior. Isso acontece porque a alma, enquanto imagem do Espírito de Deus possui a missão de apre-ender todas as coisas criadas, a ponto de co-nhecê-las e amá-las. Assim procedendo, poderá compreender a própria vocação, realizando-a de forma adequada. Entrar em contato profundo consigo, equivale a uma aproximação gradativa de Deus. As transformações interiores impulsio-nam a alma ao autoconhecimento genuíno, sus-citado pelo descobrimento contínuo do mundo interior fazendo com que a alma abandone a falsa imagem do próprio eu, que muitas vezes é baseada na imagem feita pelos outros.

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Compreende-se que a vivência mística, as-sim como é descrita por santos como Santa Te-reza D’Ávila ou São João da Cruz, oferece uma contribuição muito precisa no que se refere à experiência religiosa e à individuação humana. Stein percebeu que o eu pode se voltar para sua interioridade, identi� cando diversas vivências e diferentes graus de profundidade e que estas po-dem ocupar na alma, um lugar mais central e ou-tros mais super� ciais ou periféricos.

Considera-se ainda, que este encontro com o A Sétima Morada ou o Centro é fundamen-tal e determina a forma com a qual a pessoa vai também de encontro com as situações de morte que a vida lhe apresenta, não se deixando tomar pelo desespero diante da crueldade das circuns-tâncias impostas. Profundamente convicta da sua missão, a alma encontra o seu lugar mesmo em meio do desespero humano. A exemplo de Cristo na cruz, posiciona-se em atitude de compaixão e devoção para com os que vivem ao seu redor e sofrem condições adversas. Estando ancorada em seu Centro, meta e � m do processo de individua-ção, a alma encontra a possibilidade de enfrentar os acontecimentos do mundo sem que estes lhe determinem o seu estado interior a não recuar diante da possibilidade da entrega total diante dos apelos da vida.

Portanto, compreende-se que a experiên-cia religiosa e, de modo particular, a experiência mística, constitui-se numa dialética entre pro-cura e encontro. Nela estão presentes atividade e passividade, onde o eu e o Outro se empenham na atitude de encontrar e ser encontrado, o que ativa e dinamiza positivamente toda a estrutura da pessoa, que por sua vez, contagia os espaços nos quais está inserido. Ancorada em seu na Sé-tima Morada ou em seu Centro, a alma encontra a paz, fazendo dela a sua verdadeira morada, lu-gar do encontro em que Amado e amante podem habitar na recíproca doação de si. E onde a paz habita, a vida acontece e � oresce em toda a sua abundância, num processo constante de decanta-ção criativa.

Referências

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A assimilação psicológica do mal

Introdução

A psique possui uma linguagem que fala a partir do inconsciente através do uso de sím-bolos. Essa linguagem é rica em signi� cados e expressa os modos de ser da energia psíquica. Para que a consciência possa comunicar-se e transformar-se com seu mundo interior, esses símbolos devem ser compreendidos e assimila-dos por ela.

Jung (2008a) diz que o símbolo converte

Ana Luisa Testa* e Sonia Regina Lyra**

* Ana Luisa Testa

Psicóloga clínica,

graduada pela

Universidade Estadual

de Londrina. Especialista

em Psicoterapia

Corporal e em

Psicologia Analítica

(ICHTHYS – Instituto

de Psicologia e Religião)

([email protected])

** Sonia Regina Lyra

Doutora em Ciências

da Religião; Analista

Junguiana. Orientadora

de TCC

([email protected])

a energia psíquica em imagem e a representa de forma equivalente. A transformação da energia por meio da assimilação consciente do símbolo é um processo que existe desde o início da huma-nidade, e ainda continua no homem moderno.

Mas de que serve, ou quais seriam as con-sequências da transformação da energia psíquica inconsciente? É essa pergunta justamente que o presente texto pretende discutir, e mais especi� -camente sobre a transformação e a assimilação

Resumo

A psique humana é composta pelos mais diversos conteúdos, tanto conscientes quanto inconscientes. Nor-malmente, por questões adaptativas, a consciência seleciona para si aqueles conteúdos que considera valio-sos, � cando imersos no inconsciente aqueles que são considerados “maus”, apenas por serem contrários à atitude adotada pelo ego. Essa forma de funcionamento, apesar de ter seu valor adaptativo, traz consequ-ências negativas para o individuo, já que esses conteúdos desprezados podem forçar sua expressão através de sintomas, patologias, projeções e assim por diante, deixando o ego à mercê da in� uência dessas forças inconscientes. A saída é uni� car novamente a psique, assimilando essas forças inconscientes através da compreensão simbólica dos conteúdos reprimidos, sendo o primeiro passo a compreensão de que aquilo que é considerado “mau” possui caráter relativo. Esse trabalho é o que possibilita a realização da personalidade originária, que pode trazer um signi� cado único à existência humana.Palavras-chave: sonhos, psicoterapia, processo de individuação.

Palavras-chave: integração psíquica, assimilação, símbolo, mal, energia psíquica.

Abstract

� e human psyche is composed of the most diverse components, either conscious or unconscious. Normally, for adaptive reasons, the consciousness apprehends contents it judges valuable, leaving immersed in the unconscious whatever it considers “evil”, just because it is contrary to the attitude of the ego. � is model, despite its adaptive value, brings negative consequences to the individual, once the components ignored by the consciousness may be exteriorized through symptoms, pathologies, projections and so forth, leaving the ego at the will of such unconscious forces. � e solution would be to mend the psyche back to one again, assimilating those unconscious forces through the symbolic comprehension of the repressed psychic energy, being the comprehension that what is considered good or evil possesses relative character the � rst step. � is work is what makes possible to realize the originating personality, the one that can bring a unique meaning to the human existence.

Keywords: psychic integration, assimilation, symbol, evil, psychic energy.

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do mal. O que pode ser adiantado é que esse processo serve para libertar o homem da com-pulsividade e do apetite dos instintos, dissolver as projeções desse conteúdo, assim como deixar à disposição da consciência essa força psíquica, libertando a alma da esfera da inconsciência ( JUNG, 2011).

Vale a pena ressaltar que, sem transforma-ção, não haveria modo de a vida perpetuar-se. Então, em última instância, a transformação da psique equivaleria à renovação da própria vida, com novas formas, imagens e sabores ( JUNG, 2008).

1 Estrutura, conteúdo e dinâmica da psique

Para que seja possível compreender a questão da assimilação do mal para a psicolo-gia analítica é importante que o leitor retome primeiramente alguns conceitos básicos, tais como dinâmica, estrutura e conteúdos da psique humana, e mais adiante, no texto, o conceito de símbolo como o veículo transformador da ener-gia psíquica.

Começando com esses conceitos, Jung (2008b) a� rma que a psicologia, enquanto ci-ência, trata primeiramente dos conteúdos, da estrutura e da dinâmica da psique, sendo a cons-ciência a esfera à qual o cientista ou o psicólogo pode ter acesso direto, e obter dados para sua observação. Através dela podem ser expres-sos conteúdos provenientes do inconsciente. A consciência é como uma superfície que cobre a vasta área do inconsciente – área essa pouco conhecida, com determinada estrutura e conte-údos, observáveis apenas indiretamente, através de seus produtos, tais como sonhos, imaginação ativa, fantasias, sintomas, e assim por diante.

1.1 A consciência

É consciente aquilo que se relaciona com o complexo do ego. O que é conhecido é aqui-lo que diz respeito ao eu. Logo, a consciência pode ser entendida como os fatos psíquicos que se encontram associados ao complexo do

ego ( JUNG, 2008b).

O ego – centro da consciência – emer-ge do inconsciente durante o desenvolvimento psicológico normal, e é forçado a se estabelecer como algo de� nido, distinto e direcionado. Ele diz “sou isso, e não aquilo”. Essa característica, apesar de crucial para a adaptação, cria uma ati-tude de unilateralidade, que deverá ser compen-sada pelo inconsciente até que o ego amadureça e possa assimilar os pares de opostos (EDIN-GER, 2008).

Por possuir uma atitude unilateral e se ter em alto valor, o ego não poderá se expandir en-quanto não assimilar aquilo que considera mal, ruim e pouco valioso. Assimilar essas tendências sombrias à personalidade traz consequências notáveis para o ego ( JUNG, 2011).

1.2 O inconsciente pessoal e o inconsciente coletivo

Apesar de os conteúdos inconscientes não serem diretamente observáveis, é possível clas-si� car seus conteúdos em duas ordens: uma de natureza pessoal e outra de natureza coletiva. Os de natureza pessoal são aqueles que podem ser relacionados com a vivência do indivíduo. Mate-rial reprimido, percepções subliminares, memó-rias e os complexos constelados ( JUNG, 2008b).

Esses complexos constelados no incons-ciente pessoal possuem uma espécie de identi-dade própria. São personalidades com relativa independência dentro da psique. Essas personi-� cações independentes são capazes de atuar e de in� uenciar a vida consciente do individuo, mes-mo contra sua vontade.

Mas, se o inconsciente fosse composto apenas por conteúdos adquiridos durante a vida do indivíduo, estes facilmente poderiam ser es-gotados durante uma análise. Porém o incons-ciente nunca é desativado, continua a produzir seus sonhos e fantasias, muitos dos quais ultra-passam a esfera das vivências pessoais ( JUNG 1987).

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Esses conteúdos que ultrapassam a vivên-cia pessoal são próprios do inconsciente coletivo. Não podem ser atribuídos a experiências indivi-duais; são como que “padrões” arcaicos próprios da humanidade em geral, e possuem um caráter mítico ( JUNG, 2008b).

Esses padrões – denominados arquétipos – funcionariam como uma predisposição para produzir conteúdos iguais ou semelhantes en-tre os indivíduos da espécie humana ( JUNG, 2008c).

Até agora, foi possível perceber que a es-trutura da psique humana é composta por três camadas distintas: consciente, inconsciente e in-consciente coletivo. Cada uma dessas camadas conta com seus conteúdos próprios, sendo que na consciência encontram-se aqueles que se re-lacionam ao complexo do ego e, portanto, estão à disposição do eu; no inconsciente pessoal outros complexos – com personalidades autônomas, nem sempre em concordância com a personali-dade do ego; e no inconsciente coletivo encon-tram-se os arquétipos – formas padronizadas de ser – comuns a toda espécie humana.

Apesar dessa complexa e segmentada es-trutura psíquica, a consciência com frequência ilude-se, ao acreditar que possui completa inde-pendência em relação ao inconsciente.

Gostamos de pensar que somos uni� cados; mas isso não acontece nem nunca aconteceu. Real-mente não somos senhores dentro de nossa pró-pria casa. É agradável pensar no poder de nossa vontade, em nossa energia e no que podemos fazer. Mas na hora H descobrimos que podemos fazê-lo até certo ponto, porque somos atrapalha-dos por esses pequenos demônios, os complexos. Eles são grupos autônomos de associações, com tendência de movimento próprio, de viverem sua vida independentemente de nossa intenção. Continuo a� rmando que o nosso inconscien-te pessoal e o inconsciente coletivo constituem um inde� nido, porque desconhecido, número de complexos ou de personalidades fragmentárias

( JUNG, 2008b, p. 87).

Mas, apesar de ser a princípio ilusória, a unidade da psique pode ser considerada uma meta, desde que os conteúdos do inconsciente sejam assimilados pela consciência. Esse tra-balho é o que possibilita a realização da perso-nalidade originária, e que pode trazer um sig-ni� cado único à existência humana. Essa meta pode ser chamada de processo de individuação ( JUNG, 2001).

2 O símbolo como veículo transformador da energia psíquica

Para que o homem resgate sua unida-de – ou personalidade originária - ele precisa assimilar na consciência a energia psíquica in-consciente. Essa personalidade originária foi denominada self e, para Jung (2008), empirica-mente, o self é uma imagem da meta a se cum-prir. Mas a � nalidade do homem de se realizar enquanto uma unidade não depende apenas de sua vontade. É antes uma força que move os conteúdos inconscientes em direção à consci-ência. A natureza inconsciente anseia pela luz, a qual, no entanto, se contrapõe. A energia psí-quica quer se transformar para atualizar-se na vida consciente.

E o processo de transformação da natu-reza inconsciente é realizado através da função transcendente, produtora de símbolos capazes de uni� car os pares de opostos existentes entre o consciente e o inconsciente ( JUNG, 1980).

Esses pares de opostos surgem da seguin-te maneira: o inconsciente com frequência toma uma atitude de complementação e compensação em relação à consciência, já que ela tende a ado-tar formas unilaterais de funcionamento – por questões de adaptação. Esta natureza unilateral é compreensível, pois as exigências da vida por direção e estabilidade são acentuadas. Apesar de servir à adaptação, essa forma de funcionamento traz inconvenientes, pois inibe todos os elemen-tos psíquicos que parecem ser incompatíveis com a atitude adotada pela consciência. Esses ele-mentos estimulam uma contraposição na esfera

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do inconsciente, energeticamente proporcional ao seu oposto. É aí que a função transcendente trabalha, na tentativa de unir no símbolo as duas atitudes antes opostas ( JUNG, 2011).

Mas, uma vez que o texto discute a impor-tância da assimilação do mal, é possível pensar que este permanece na penumbra do incons-ciente, porque a consciência identi� ca-se ape-nas com os aspectos relativos ao bem. Quanto mais alguém acreditar ser o portador exclusiva-mente do bem, mais fortalecido � ca o mal para contrapor-se e compensar a atitude unilateral da consciência.

Os símbolos aparecem em todas as pro-duções do inconsciente, como por exemplo, os sonhos, as fantasias e a imaginação ativa. Um dos princípios da interpretação dessas produções dentro da psicologia analítica é justamente não interpretá-los de maneira literal, e sim procurar o sentido oculto que o símbolo traz ( JUNG, 2008b).

O símbolo não é uma alegoria nem um semeion (sinal), mas a imagem de um conteúdo em sua maior parte transcendental ao consciente. É ne-cessário descobrir que tais conteúdos são reais, são agentes, com os quais um entendimento não só é possível, mas necessário [...] ( JUNG, 2008c, p. 67).

Parte desses produtos pode acessar a cons-ciência, enquanto outra parte pode permanecer na penumbra ou completamente inconsciente, e por isso só pode ser desvendada indiretamente. Através da compreensão do sentido do símbolo é possível ligar as camadas mais profundas do inconsciente com o centro da psique consciente ( JUNG, 2008b).

Sem a compreensão não há assimilação. A função transcendente produz o símbolo, mas sem a colaboração do ego as camadas da psique não se ligariam, e a personalidade originária – self – não emergiria. O parágrafo abaixo explica bem o papel do ego nesse processo de uni� cação da psique:

Se, porém, a estrutura do complexo do ego é bastante forte para resistir ao assalto dos con-teúdos inconscientes, sem que se afrouxe desas-trosamente sua contextura, a assimilação pode ocorrer. Mas, neste caso, há uma alteração não só dos conteúdos inconscientes, mas também do ego. Embora ele se mostre capaz de preservar sua estrutura, o ego é como que arrancado de sua posição central e dominante, passando, assim, ao papel de um observador passivo a quem faltam os meios necessários para impor sua vontade em qualquer circunstância, o que acontece não tan-to porque a vontade se acha enfraquecida em si mesma, quanto, sobretudo, porque certas consi-derações a paralisam. Quer dizer, o ego não pode deixar de descobrir que o a� uxo dos conteúdos inconscientes vitaliza e enriquece a personali-dade e cria uma � gura que ultrapassa de algum modo o ego em extensão e em intensidade. Esta experiência paralisa uma vontade por demais egocêntrica e convence o ego de que, apesar de todas as di� culdades, é sempre melhor recuar para um segundo lugar, do que se empenhar em combate sem esperança, o qual termina inva-riavelmente em derrota. Deste modo a vontade enquanto energia disponível se submete paulati-namente ao fator mais forte, isto é, à nova � gura da totalidade que eu chamei de self [...] ( JUNG, 2011, p. 174).

Dito isso, pode-se perceber que é condi-ção necessária para o resgate da personalidade originária que o ego seja receptivo à vida sim-bólica, assim como deve ser forte o su� ciente para não se dissolver no processo. Essa atitude torna possível o diálogo entre o inconsciente e o consciente, através da compreensão do símbolo que transforma a energia psíquica (EDINGER, 1989).

3 A importância da assimilação da libido inconsciente através dos símbolos

No tópico anterior foi descrito o conceito de símbolo e algumas condições para que a ener-gia psíquica – ou libido – possa ser assimilada através da compreensão do sentido que o símbo-lo traz nas diversas produções do inconsciente.

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No tópico presente o que se discute é a impor-tância de se assimilar a libido inconsciente. Para isso, é preciso entender primeiramente o que é e para que serve a própria libido.

Jung identi� ca o termo libido como sendo o mesmo que energia psíquica. Para ele, a libido indica um desejo, apetite ou impulso desprovi-do de valores morais. Pode ser vista como um instinto vital contínuo – uma vontade de existir. É percebida como o impulso do sono, da fome, da sede, do sexo, dos estados emocionais e dos afetos. O appetitus e a compulsio fazem parte de todos esses instintos. A quantidade de energia envolvida em cada um deles é variável. Do pon-to de vista energético, a psique é extremamente dinâmica, e um instinto pode ser despotenciali-zado a favor de outro ( JUNG, 2008c).

No entanto, a libido nem sempre está à disposição na consciência, pois mantém sua au-tonomia em relação à vontade do eu. Tampouco sempre atua a favor do ego, por seu caráter com-pulsivo e apetitivo. Pode eventualmente domi-ná-lo, mas também é a única capaz de insu� á-lo com vida. Cícero, citado por Jung, diz: “Vontade é aquilo que se deseja com a razão. Aquilo, po-rém, que é contrário à razão e veementemente excitado chama-se libido ou desejo desenfrea-do, que se encontra em todos os tolos” ( JUNG, 2008c, p. 116).

Quando então a libido é inconsciente e domina o ego, têm-se os estados de possessão ou até mesmo de verdadeiras epidemias psíqui-cas. Em graus menores, pode-se ter essa libi-do in� uenciando o complexo do eu, através de obsessões e comportamentos compulsivos. En-quanto essa energia não for assimilada, o eu � ca a mercê das forças do inconsciente. Além disso, os conteúdos não reconhecidos acabam por ser projetados sempre no outro. É dessa forma que muitas guerras, inclusive as “santas” começa-ram. Se o eu se identi� ca exclusivamente com o bem, seu oposto – o mal – estará inconsciente e provavelmente projetado no outro, seja esse outro uma pessoa, uma entidade um lugar ou

até mesmo uma nação inteira.

Mas, como dito anteriormente, é a libido que pode insu� ar o ego com vida. Se a energia psíquica � car represada no inconsciente, a vida do homem não � ui mais. As coisas perdem o sentido, a vida perde o brilho, a paixão se esvai. Essa repressão é experimentada pelo ego como diminuição da alegria e da vontade de viver. O eu � ca sem energia para utilizar em suas atividades diárias, e em casos extremos é tomado por um estado de completa depressão. Sendo assim, a assimilação dessas energias é de extrema impor-tância, pois não a projetará, não � cará a mercê dessas forças inconscientes e tampouco perderá sua vitalidade ao represá-las ( JUNG, 2008c).

Essa vitalidade pode ser sentida imediata-mente quando alguns conteúdos acessam a cons-ciência, ou seja, quando o ego entra em contato e é receptivo à vida simbólica. Esses conteúdos podem causar fortes emoções, curas, conversões religiosas, ou simplesmente resgatar um pedaço da vida que � cou represado por muito tempo. Esse contato provoca um alargamento na cons-ciência, desde que o indivíduo consiga assimi-lar seu conteúdo. Nesse trabalho de assimilação a interpretação psicológica dos símbolos é de grande valor, já que são estes últimos que fazem a ponte entre o profundo abismo que pode exis-tir entre os opostos, como por exemplo, o que esse artigo traz: o bem e o mal ( JUNG, 2008b).

4 A importância da assimilação do mal

Primeiramente, é relevante deixar claro que o mal do qual o presente artigo trata não se refere às entidades metafísicas, já que isso faria parte do campo de estudo da teologia e não da psicologia. O mal no texto deve ser, antes, com-preendido como a experiência psíquica que pode certamente ser vivenciada por muitas pessoas, como um conteúdo autônomo e que é frequen-temente projetado no outro ( Jung, 2007).

O tópico anterior trouxe alguns pontos sobre a importância de se assimilar a libido in-

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consciente: superação dos instintos; extinção das projeções psíquicas e a retomada da vitalidade. Para que isso ocorra, vale frisar a condição in-dispensável de se compreender os símbolos, já que são eles o elo entre os opostos. Dessa forma a unidade psíquica é retomada, pois consciente e inconsciente já não precisariam se contrapor. Sendo assim, para que essa unidade seja recons-tituída, é fundamental que o bem e o mal pos-sam ser reconhecidos e integrados ao ego, já que constituem um dos principais par de opostos.

Também vale a pena ressaltar que negar a existência ou a in� uência do mal não fará com que sua ação cesse, além do que sua projeção pode criar situações perigosas. Se a consciência reconhece apenas o bem, o mal certamente será experimentado como algo autônomo e externo que deve ser temido ou combatido no outro. O homem dito civilizado considera-se bem acima dessas coisas metafísicas e misteriosas. No en-tanto, passa grande parte da vida in� uenciado magicamente por outros seres humanos ou for-ças perturbadoras, justamente por não diferen-ciar-se dos objetos, em consequência da projeção de seus conteúdos inconscientes ( JUNG, 2007).

As imagens atribuídas a essas forças in-conscientes são equivalentes àquelas atribuí-das às mais diversas divindades. Quando o ego experiencia tais conteúdos sente-os como se fossem forças poderosíssimas, de caráter numi-noso e subjugante. Tais experiências têm uma in� uência maligna ou benigna no homem – são como se fossem seus anjos e demônios – e ele não pode evitá-las, pois sua vontade de nada vale ( JUNG, 2006).

A única coisa que o homem pode fazer é aprender a reconhecer em si essas forças psíqui-cas antes que elas se transformem em patologias ou sintomas desagradáveis, que lhe mostrem que ele não é o único senhor em sua própria casa. Jung diz que o homem ocidental está tão alheio aos conteúdos do inconsciente coletivo que os trata como se estes fossem deuses ou demônios. E a� rma que hoje esses deuses são também cha-

mados de fobias, obsessões e todo tipo de sinto-ma neurótico. Além de deuses, os conteúdos do inconsciente coletivo se tornaram doenças em psiques dissociadas ( JUNG, 2007).

Negar e desconhecer a existência do mal e de toda a vida simbólica só acentua a dissociação psíquica, que é exatamente o oposto da meta da uni� cação.

As tendências à dissociação caracterizam a psi-que humana e são inerentes a ela; sem isso, os sistemas psíquicos parciais não teriam cindido, não teriam gerado espíritos ou deuses. A dessa-cralização de nossa época tão profana é devida ao nosso desconhecimento da psique incons-ciente, e ao culto exclusivo da consciência. [...] Isso representa um grande perigo psíquico, pois os sistemas parciais se comportam como quais-quer outros conteúdos reprimidos: induzem forçosamente a atitudes falsas, uma vez que os elementos reprimidos reaparecem na consciência

sob uma forma inadequada ( JUNG, 2007, p. 49).

Os elementos reprimidos são incapazes de se desenvolverem enquanto não forem tra-balhados e assimilados pela consciência. O mal reprimido é capaz de impor às criaturas as mais diversas barbáries. E resgatá-lo das profunde-zas do inconsciente para que ele se desenvolva equivale a resgatar as projeções psíquicas que o homem faz no mundo concreto e devolvê-las ao seu domínio de direito. Quando o homem se re-laciona com seu mundo interior – que já não está mais projetado no meio externo – sua persona-lidade está caminhando em direção à uni� cação.

Ignorar o mal ou vê-lo apenas projetado não diminui sua ação. O homem não pode mais fechar os olhos para o perigo do mal que está à espreita dentro dele mesmo. Esse perigo é con-creto, e a psicologia deve insistir em a� rmar sua realidade. Como poderia haver o “elevado” se não existisse o “abissal”? Um é tão real quanto o outro! ( JUNG, 2000).

Mas o reconhecimento em si daquilo que é considerado mal não se constitui num traba-lho prazeroso. Sem a adequada compreensão

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da relatividade moral do mal, o ego pode temer ser enganado por uma certa “astúcia diabólica”, que deturparia a verdade divina para roubar o Seu lugar. Mas o inconsciente não se ocupa de tais blasfemas – sua única intenção é uni� car e restituir o universo sagrado tão esquecido pelo homem moderno ( JUNG, 2009).

Aceitar o demônio não signi� ca passar para o lado dele, caso contrário a gente se torna demô-nio. Signi� ca entender-se. Com isso assumes teu outro ponto de vista. Com isso o demônio perde algum terreno e tu também. E isto poderia ser

muito bom ( JUNG, 2010, p. 261).

Apesar de o parágrafo anterior tratar o mal como algo moralmente relativo, é importante ressaltar que isso também implica uma relati-vidade do bem. O indivíduo, quando consegue desvencilhar-se da moral coletiva de sua época, enxerga que tanto um quanto outro não possui em si mesmo um caráter absoluto e podem por-tanto serem relativizados. No entanto, isso não quer dizer que ambas as categorias – o bem e o mal – não possuam validade ou simplesmen-te não existam. A diferença é que a categoriza-ção será feita antes pela ética do que pela moral. Aquele que desejar encontrar respostas para a questão do mal através da ética necessita em pri-meiro lugar de um conhecimento profundo acer-ca de sua totalidade. Deve saber, sem se poupar, da soma de todos os atos de que é capaz – dos mais elevados até os mais baixos – sem mentir e sem se vangloriar a respeito deles ( JUNG, 2006).

A psicologia ignora o que é bom e o que é mau em si mesmo. Ela só conhece estas coisas como juízos de relação: bom é o que parece convenien-te, aceitável ou valioso sob um certo ponto de vista; mau é o inverso disto. Se o que chamamos bom é “realmente” bom, então, consequentemen-te, existe algo de mau, um mal que é “real” para nós. Vemos, portanto, que a psicologia lida com um julgamento mais ou menos subjetivo, isto é, com um contraste psíquico imprescindível para a de� nição de determinadas relações de valor: bom é o que não é ruim, e ruim o que não é bom. Existem coisas que são extremamente más, isto

é, perigosas, sob um determinado ponto de vista. Existem também coisas desta espécie na nature-za humana, que são muito perigosas e, por isso mesmo, parecem más àquele que está situado no eixo do tiro. Não tem sentido dissimular este mal sob cores atraentes, pois isto só serviria para nos embalar numa segurança ilusória. A natureza humana é capaz de uma maldade sem limites e as ações más são tão reais quanto as boas, tão vasto é o campo da experiência humana; o que signi� ca que a alma emite o julgamento decisivo. Só a inconsciência desconhece o bem e o mal. No âmbito da psicologia ignora-se sinceramente o que prepondera no mundo: se o bem ou o mal. Espera-se apenas que seja o bem, isto é, aquilo que nos parece conveniente. Pessoa alguma ja-mais teria condições de de� nir o que é o bem de modo geral. Nenhum conhecimento claro da relatividade e da caducidade do juízo moral é ca-paz de nos livrar desta limitação, e aqueles que se consideram situados para além do bem e do mal, via de regra, são os importunos mais incômodos da humanidade, que se contorcem no tormento

e no medo da própria febre ( JUNG, 2000, p. 49).

Apenas um conhecimento profundo a res-peito de si traz à tona a conscientização acerca dos opostos. Isso cria uma cisão e uma tensão entre eles, que é justamente a condição para que surja o símbolo capaz de equilibrá-los numa unidade. Essa solução que os equilibra – o sím-bolo – é resultado da cooperação entre o cons-ciente e o inconsciente ( JUNG, 2006).

Para Jung, o par de opostos – bem e mal – se encontram tão próximos na personalidade originária quanto dois gêmeos monovitelinos. E sem a vivência de ambos, não há experiência da totalidade do self. A assimilação do mal é, por-tanto condição para o processo de uni� cação da personalidade ( JUNG, 2009).

Se tiveres a rara oportunidade de falar com o de-mônio, não te esqueças de dialogar seriamente com ele. Ele é, em última análise, o teu demônio. O demônio é, como adversário de teu outro pon-to de vista, aquele que te tenta e coloca pedras em teu caminho, lá onde você menos delas pre-cisa ( JUNG, 2010, p. 261).

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Abaixo segue como exemplo uma sequên-cia resumida com dois sonhos e uma imaginação ativa que ilustra a questão da assimilação do mal, em ordem cronológica. Nessa série, reproduzida pela própria sonhadora, é importante que o lei-tor atente às mudanças de atitude que aconte-cem tanto no “mal” quanto no ego à medida que a assimilação acontece. Isso demonstra como ela promove uma transformação mútua, não só no consciente, mas também no inconsciente.

Imaginação ativa – Comendo o demônio

“— Coma-me. Disse o demônio de olhos bem escuros, coberto em tinta preta. E, mesmo sabendo que aquilo era ‘apenas uma imaginação’ não foi fácil. Era repugnante a ideia de comê-lo. Então cortei e fatiei suas pernas e seus braços, e coloquei tudo em uma panela grande. Seria a carne da refeição. Com a faca, abri seu abdômen e despejei tudo em outra panela. Como era re-pugnante demais, além de cozinhar precisaria processar as vísceras, e fazer daquilo um homo-gêneo purê. Já a cabeça, tive que cozinhar bas-tante, até que dissolvesse e virasse um molho. Ali tinha quantidade su� ciente para muitas pessoas se servirem. Quis convidar outros para reparti-rem aquele prato comigo, pois seria comida de-mais para eu comer sozinha.”

Suportando o mal

“Estou em minha casa e duas mulheres batem em minha porta. Uma delas carrega uma grande serpente, e diz que devo suportá-la em meus ombros sem rejeitá-la. No sonho eu sei que aquilo está relacionado ao meu processo de evolução psíquica, então deixo que a mulher ati-re a serpente em mim. Por duas vezes me defen-do dela, mas, terceira me contenho e deixo que a serpente caminhe em meus ombros. E então a tarefa foi cumprida. As duas mulheres e a ser-pente estavam indo embora e quando a serpente me olhou diretamente nos olhos pude perceber que em sua cabeça havia apenas um único e grandioso olho vermelho, e ela era o demônio.”

Sonho – A serpente eucarística

“Estou na água com a mesma serpente do olho vermelho do sonho anterior. Ela está ali para ser comida. Desta vez não sinto que será uma tarefa difícil. Alguém me diz que aquela serpente é pão natural, então começo a fatiá-la para comer e também distribuí-la. Suas fatias me lembram hóstias e são no sonho pão doce.”

As imagens do inconsciente que repre-sentam o mal normalmente aparecem como imagens religiosas – demônio, diabo, serpente, e assim por diante. Nos símbolos do sonho “A serpente eucarística”, atributos do mal e do bem, do demônio e do Cristo, parecem se juntar nes-se alimento que é pão natural, hóstia e carne da serpente maligna ao mesmo tempo, e que o ego come sem resistências aquilo que se oferece para ser comido – o próprio self.

A dinâmica psíquica entre o bem e o mal aparece projetada nos mais diversos sistemas religiosos existentes. Como exemplo, é possível traçar um paralelo com duas � guras bem conhe-cidas na época atual: o Cristo e o Anticristo. Jung a� rma que não há dúvida de que no universo re-ligioso Cristo representa a personalidade uni� -cada – o self – por possuir atributos semelhantes. Porém, como o self psicológico é um conceito que exprime a soma dos conteúdos conscientes e inconscientes, ele só pode ser descrito sob a forma de uma antinomia, ou seja, seus atributos devem ser complementados por seus respecti-vos contrários. Se Cristo for considerado como absolutamente bom, então pressupõe-se que do lado contrário exista um Anticristo absoluta-mente mau que corresponde à metade obscura e tenebrosa do self. Luz e sombra parecem estar dividas por igual na natureza humana, formando uma unidade paradoxal. Árvore nenhuma cresce em direção ao céu se suas raízes também não se estenderem até o inferno ( JUNG, 2000).

Considerações finais

Por tudo o que foi exposto, é possível con-cluir que a cisão da unidade originária da psique

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faz-se necessária para que o ego possa desenvol-ver-se e adaptar-se as demandas do mundo ex-terno. Apesar de seu caráter adaptativo, essa di-ferenciação acaba por cindir o homem, e aqueles conteúdos incompatíveis à atitude adotada pelo ego não deixam de existir só porque são incons-cientes. Pelo contrário, eles podem in� uenciá-lo ou até mesmo impor-se de forma tenebrosa ou no mínimo inadequada à vontade do eu, seja através das projeções, das compulsões, das possessões, das patologias, das in� uências “má-gicas”, da imperatividade dos instintos e assim por diante. Reprimir ou desconhecer tamanha força inconsciente é também sufocar grande parte da vitalidade da psique. Mas, à medida que consciente e inconsciente se integram, ocorrem transformações em ambas as instâncias, embora seja impossível determinar qual delas é a causa da outra. O símbolo é um agente transforma-dor da energia psíquica – e, portanto da própria psique. Ser receptivo à vida simbólica é por em prática a responsabilidade que o ego tem para com o self de ser seu sujeito conhecedor, assim como seu objeto conhecido. Conhecer apenas o bem é mutilar a totalidade. O homem somente poderá conhecer e ser conhecido pela persona-lidade originária na mesma proporção que for capaz de assimilar também sua metade sombria. Como a� rma sabiamente Jung: “Não nos torna-mos iluminados por imaginarmos � guras de luz, mas por nos tornarmos conscientes da escuri-dão” ( JUNG, 1967, par. 335).

Referências

DINGER, E. F. Anatomia da psique. 6ª ed. São Paulo: Cultrix, 2010.

EDINGER, E. F. Ego e arquétipo. 1ª ed. São Paulo: Editora Cultrix, 1989.

EDINGER, E. F. O mistério da coniunctio. São Paulo: Paulus, 2008.

JUNG, C.G. Alchemical Studies. London: Rou-tledge & Kegan Paul, 1967. (Collectet Works, 13).

JUNG, C. G. AION: Estudos sobre o simbolis-mo do si-mesmo. 6ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2000.

JUNG, C. G. Memórias, sonhos, re� exões. 13ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

JUNG, C. G.; WILHELM, R. O segredo da � or de ouro. Petrópolis: Vozes, 2007.

JUNG, C. G. A energia psíquica. 10ª ed. Petrópo-lis: Editora Vozes, 2008a.

JUNG, C. G. A vida simbólica. 4ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2008b.

JUNG, C. G. Símbolos da transformação. 6ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2008c.

JUNG, C. G. O livro vermelho. Petrópolis: Edi-tora Vozes, 2010.

JUNG, C. G. A natureza da psique. 8ª ed. Petró-polis: Editora Vozes, 2011.

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Marcos Aurélio Fernandes

Confronto de São Boaventura com A Filosofia nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e sobre Os Sete Dons do Espírito Santo.

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O Confronto de São Boaventura com A Filosofia nas Conferências de Paris

sobre Os Dez Mandamentos e sobre Os Sete Dons do Espírito Santo

Introdução

No � m dos anos 60 e início dos anos 70 do século XIII, dois grandes pensadores, Boaven-tura de Bagnoregio e Tomás de Aquino, enfren-taram os mesmos desa� os na Universidade de Paris: perseguição aos mendicantes, franciscanos e dominicanos, com resistência aos seus direi-tos de ensinar ali [1]; e, de modo mais grave, os perigos do aristotelismo de matiz averroísta dos

Marcos Aurélio Fernandes *

* Marcos Aurélio

Fernandes

Doutor em Filosofia;

Professor de

Filosofia Medieval na

Universidade de Brasília

(UnB).

([email protected])

mestres da faculdade de artes. Pretende-se, com este texto, expor o modo como Boaventura se confrontou com a � loso� a neste contexto, mais pontualmente, nas suas Conferências sobre os dez mandamentos (1267) e nas suas Conferências so-bre os sete dons do Espírito Santo (1268) [2].

De 1264 a 1274, Boaventura pregou em grandes universidades daquele tempo, como em Paris, Montpellier e Bolonha. Em Paris, convi-

Resumo

Este artigo visa expor, analisar e interpretar os textos das Conferências sobre os dez mandamentos, de 1267, e das Conferências sobre os sete dons do Espírito Santo, de 1268, enfocando o modo como se dá o con-fronto de São Boaventura com a � loso� a naqueles anos críticos, em que o embate dos teólogos parisienses com os � lósofos aristotélico-averroistas da faculdade de artes se tornou mais agudo. O enfrentamento de Boaventura diz respeito a algumas teses que, na visão de Boaventura, negam a temporalidade e historicidade do mundo, bem como o livre-arbítrio e a responsabilidade do indivíduo na história. Por outro lado, o con-fronto também se dá sobre a questão do sentido, dos limites e das possibilidades mesmas da � loso� a e de sua relação com a fé e a sabedoria cristã. .

Palavras-chave: Boaventura de Bagnoregio, criação, temporalidade, historicidade, � loso� a, fé, sabedoria cristã.

Abstract

� is article aims to present, analyze and interpret the texts of the 1267 Conferences dealing with the Ten Commandments and the 1268 Conferences dealing with the seven gifts of the Holy Spirit, focusing on the way how to understand Saint Bonaventure’s confrontation with the philosophy of those critical years, in which the con� ict between the Parisian theologians and the philosophers of the faculty of arts (“averroists” or “radical aristotelians”) became more acute. Dealing with some of their theses, especially with the thesis that the world is eternal, that the individual soul is not eternal and that all humans at the basic level share one and the same intellect, Bonaventure concludes that they deny the temporality and the historicity of the world, as well as free will and responsibility of the individual in history. Another reason for this confrontation was the question of the meaning, the limits and the possibilities of philosophy and its relationship with faith and Christian wisdom.

Keywords: Bonaventure of Bagnoregio, creation, temporality, historicity, philosophy, faith, Christian wisdom

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1| A luta entre mestres seculares e frades mendi-cantes na Universidade de Paris teve seus principais atores em Guilherme de Sant’Amour, Geraldo d’Abeville e Nicolau de Lisieu, por parte dos seculares, e Tomás de Aquino, Boaventura e João Peckham por parte dos mendicantes. Em 1252 os mestres seculares da Universidade de Paris reagiram duramente à “invasão” dos frades mendicantes, francisca-nos e dominicanos. A ofensiva secular veio antes de tudo de Guilherme de Saint’Amour. Em relação aos franciscanos, sua estratégia consistia em negar a legitimidade eclesial da sua atividade magisterial (docente). Em 1257, porém, o Papa Alexandre IV interveio na luta em favor dos mendicantes e, tanto Boa-ventura quanto Tomás de Aquino recebeu o título de “Magister”, embora nesta altura Boaventura já tivesse sido eleito ministro geral dos francis-canos. Mas a militância de Guilherme de Sant’Amour não parou. Entre 1260

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veu com João Peckham, seu aluno e seu sucessor na cátedra dos franciscanos, e com Rogério Ba-con, o franciscano inglês que se dedicou a pensar uma reforma da cristandade a partir de uma re-forma do saber. A partir de 1267 Boaventura se engaja na luta contra o aristotelismo averroísta dos mestres da faculdade de artes (liberais) [3] de Paris. Com efeito, sob a liderança de Sigério de Brabante (1240c. - 1284) e de Boécio de Dácia (+ 1270), a partir da faculdade de artes instalou-se toda uma crise na faculdade de teologia da Universidade de Paris. Os estudos de dialética e física entravam nos problemas da metafísica e, por � m, penetravam no terreno da teologia. O trabalho dos � lósofos “artistas” se fundava sobre a interpretação de Aristóteles feita por Averróis. Para responder aos desa� os propostos à metafísica e à teologia por parte do aristote-lismo de matiz averroísta, Boaventura se enga-ja com uma série de conferências (Collationes). Começa, em 1267, com as Collationes de decem praeceptis (Conferências sobre os dez manda-mentos); prossegue em 1268 com as Collationes de septem donis (Conferências sobre os sete dons do Espírito Santo) e conclui a sua intervenção com as Collationes in Hexaëmeron (Conferências sobre os seis dias da criação), também chamadas de Iluminationes ecclesiae (iluminações da Igreja). Os escritos que nos foram transmitidos a partir destas conferências não são do próprio punho de Boaventura, mas são “reportationes”, ou seja, são escritos que nos foram legados por mais de um “reportator” [4] . Nestas conferências, Boa-ventura irá tratar da vida cristã em suas bases: a lei (mandamentos) e a graça do Espírito San-to e seus dons; e, por � m, das iluminações da sabedoria cristã. Por estas ocasiões, não deixará de combater os perigos advindos dos � lósofos averroistas em especial e de uma � loso� a em ge-ral, ou melhor, de uma � loso� a autônoma, não subordinada à “teologia”, ou seja, à “Palavra de Deus” ou “Sagrada Escritura”, ou melhor, à in-teligência espiritual desta, por meio da qual se percorre os caminhos ascendentes da iluminação e da sabedoria cristã.

Este combate incide diretamente sobre os averroistas de Paris, mas incide, também, indi-retamente sobre Tomás de Aquino. Embora o objetivo do presente texto não seja expor o con-fronto especí� co de Boaventura com cada um dos � lósofos averroistas ou com Tomás de Aqui-no, uma palavra seja dita, a modo de observação preliminar, sobre o modo como Tomás e Boa-ventura viram a questão da autonomia da � lo-so� a. Tomás de Aquino, é verdade, se entendeu fundamentalmente como teólogo. Entretanto, Tomás é o postula uma autonomia da � loso� a em relação à teologia. Paradoxalmente, porém, esta postulação de autonomia da � loso� a não é motivada pela reivindicação de uma libertação da razão em relação à fé, como acontecerá com muitos � lósofos modernos, mas sim, por tomar a sério, como teólogo, o dogma criação do mundo. Deus cria dando o ser ao mundo e o mantendo neste mesmo ser. Entretanto, ao criar, Deus deixa sua obra repousar em si mesma, ou melhor, deixa que sua obra tenha em si mesma o princípio de sua atividade. A “causa primeira” não anula, an-tes promove a autonomia das “causas segundas” que atuam no mundo. A autonomia da razão é o horizonte da � loso� a. Aliás, a � loso� a é o máxi-mo empenho de autonomia da razão.

No entanto, os teólogos que, em geral, seguiam a Santo Agostinho, não partilhavam desta perspectiva. Estes salientavam as consequ-ências do pecado original para a razão humana. Depois do pecado, esta não está na sua condição originária, mas decaiu, tornando-se cega para o ser, ou melhor, para o essencial, para o mundo do espírito e para Deus. Na cruz, porém, o homem velho com a sua razão cega é condenado, por um lado, mas também é reconciliado com Deus, por outro lado. Por isso, a � loso� a, na ordem do re-dimido, só tem sentido sendo subsumida a um projeto maior, que é o projeto da sabedoria cris-tã. Esta será a perspectiva de Boaventura, que aqui se tentará expor. O conhecimento � losó� -co, portanto, na concepção de Boaventura, não pode ser cultivado em função dele mesmo. Seria

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e 1265 ele escreve um texto intitulado “Contra pericula imminentia Eccle-siae generali per hypocritas, pseudo-predicatores et pe-netrantes domos et otiosos et curiosos et gyrovagos”. Em tom escatológico, os frades mendicantes são apontados como novidades ameaçadoras na “Ecclesia” (Igreja), como “perigos iminen-tes”, que irrompem nos tempos últimos, pondo em questão a consis-tência e a verdade do cristianismo. Guilherme denuncia que o exercício do magistério por parte dos frades franciscanos vai contra a sua minoridade, a pobreza, a vontade de Francisco de Assis e a re-gra da Ordem. Em 1270, Guilherme de Sant’Amour se retira da batalha, para ir morrer em sua terra. Mas deixa suas crias: Geraldo de Abbeville e Nicolau de Lisieux. Geraldo de Abeville ataca o conceito de pobreza absoluta dos franciscanos e defende que a pobreza dos sacerdotes seculares é mais perfeita do que a dos franciscanos. Em resposta aos ataques de Gerardo contra os mendi-cantes, Tomás de Aquino escreve o “De perfectione spiritualis vitae” (Da per-feição da vida espiritual) e Boaventura escreve a “Apologia pauperum contra calumniatorem” (Apologia dos pobres contra o caluniador).

2| Ficará para uma próxima ocasião abordar as Conferências sobre a obra dos seis dias (1273). Os textos das outras duas Conferências, que serão citados aqui, estão em: Opere di San Bonaventura: Sermoni Teologici/2 (Roma: Città Nuova, 1995). O texto latino desta edição é o mesmo da “Editio Maior” publicada pelos franciscanos de Quaracchi (Volume V, 1891). A tradução será do autor deste artigo. Será feita a partir do texto latino, mas

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como parar no itinerário da mente para Deus. Ademais, se o homem permanece abandonado ao uso da sua razão somente, ele fatalmente erra. Pois, falando como teólogo, Boaventura adver-te que a natureza humana foi corrompida pelo pecado e uma das consequências desta corrup-ção da natureza humana é a ignorância. A na-tureza humana não se encontra em seu estado perfeito originário, mas em estado degenerado. A natureza degenerada é como uma � echa que não consegue alcançar o seu alvo por si mesma. A verdade plena, que a razão com sua ilumina-ção natural busca, só é encontrada quando esta mesma razão for iluminada pela verdade sobre-natural da revelação. A revelação assume, porém, a razão dentro dela mesma. Por isso, a fé não se limita a crer, mas quer também compreender aquilo que crê. Ela se empenha com todas as for-ças da razão em compreender o sentido daqui-lo que crê e disso surge a teologia e a sabedoria cristã. Entretanto, todo o empenho racional da razão no interior da teologia consiste na busca de se abrir à iluminação do alto. Todo o conheci-mento vem de Deus e retorna para Deus. E toda a sabedoria cristã culmina na mística. Por � m, o homem deve fazer calar em si mesmo toda a voz da especulação e, no silêncio, reconhecer que o mistério de Deus está além de toda especula-ção. No ápice da experiência mística, a questão é experimentar afetivamente este mistério, no silêncio, transportando-se para dentro dele, para dentro da sua caligem (treva) luminosa, suprar-racional e superessencial, como dizia Dionísio Areopagita [5].

I. Os erros da filosofia

Uma crítica à � loso� a já aparecem nas Conferências sobre os dez mandamentos. Ao co-mentar o preceito de “não fazer ídolo” Boaven-tura ataca o perigo de “idolatria” na � loso� a. Ele diz:

Na segunda frase: não te farás ídolo, são proibi-das todas as falsas e supersticiosas invenções de erros. E aqui se deve notar que todo erro outra coisa não é que uma criação da mente. De fato,

a fantasia cria o erro, obscurecendo a razão e fa-zendo parecer ser o que não é. E todas as falsas e supersticiosas invenções de erros provêm ou da audácia ímproba da investigação � losó� ca, ou da perversa compreensão da Sagrada Escritura, ou

do desordenado afeto da carne humana [6].

Aqui, portanto, Boaventura toma como “ídolo” (pequena imagem ou ideia) todo erro da mente humana. E assinala que o erro é uma � cção da mente; uma � cção que vem da fanta-sia. A fantasia obscurece a razão. O que induz o homem ao erro, portanto, não é a sua razão, mas a sua fantasia. A fantasia faz que o homem se apoie em um parecer falso, um parecer que faz aparecer como sendo aquilo que não é, portanto, um parecer que é uma mera aparência. Se a ver-dade, conhecida pela razão, toma o que é como o que é e o que não é como o que não é, assumin-do a identidade (coincidência) de ser e aparecer num parecer; a mera aparência, que é um apare-cer sem ser ou discrepante com o ser, criada pela fantasia da mente, toma o que não é como sendo e o que é como não sendo. A falsidade e a su-perstição � cam do lado, portanto, dessa fantasia, dessa atividade � ccional da mente. Essa fabrica-ção de erros provém, sobretudo, da audácia inde-vida da investigação � losó� ca, quando esta não reconhece e não guarda os limites da sua � ni-tude, desconhecendo sua potência e impotência; da perversa compreensão da Sagrada Escritura, quando o leitor se atém somente a uma inter-pretação literal e não alcança uma interpretação espiritual do texto sagrado; e do desordena-mento dos afetos produzidos pela sensualidade humana. Ao falar dos erros que nascem de uma audácia ímproba da investigação � losó� ca, Boa-ventura enumera aquilo que ele considera ser os erros do averroismo dos “artistas” de Paris:

Da audácia ímproba da investigação � losó� ca se originam os erros dos � lósofos, como: pôr o mundo eterno e a� rmar que o intelecto seja um em todos. De fato, pôr o mundo eterno é perver-ter toda a Sagrada Escritura e dizer que o Filho de Deus não se encarnou. A� rmar, depois, que o intelecto seja um em todos é dizer que não haja

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cotejada com a versão italiana. Para não citar cada vez todos os dados da referência bibliográfica, recorre-se aqui ao ex-pediente de citar apenas o número da “Collatio” (Conferência), usando-se a abreviação “Coll.”, o número do parágrafo segundo aquela edição, e o número da página, também segundo a edição italiana da “Città Nuova”.

3| As sete artes liberais, cujas raízes remontavam à antiguidade, foram or-ganizadas na Idade Média na forma do Trivium, que são as três ciências ou artes da linguagem, a saber, gramática, dialética e retórica; e na forma do Quadrivium, que são as quatro ciências ou artes matemáticas que versam sobre o real, ou seja, a geometria, a astronomia, a música e a aritmética.

4| “Reportator” era aquele que “reportava”, ou seja, transcrevia ou anotava a conferência pronunciada pelo mestre em seu “quaternus” (caderno) e a transmitia a outros.

5| Cfr. De Mystica theologia c. 1, § 1. Pseudo Dionisio Areopagita (Org.: Teodoro H. Martin). Obras Completas del Pseudo Dio-nisio Areopagita. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1990, p. 371

6| Coll. II, n. 24, p. 61.

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uma verdade de fé, nem salvação das almas, nem observância dos mandamentos; e isso quer dizer que o homem péssimo se salva e o boníssimo se

condena (...) [7].

Neste texto e contexto, Boaventura enu-mera apenas dois do que ele considera serem er-ros dos aristotélicos averroistas: a tese do mun-do eterno e a tese do intelecto único em todos os homens. A tese do mundo eterno contradiz dois dos dogmas fundamentais do cristianismo: a criação “ex nihilo” (do nada) e a encarnação do Verbo. A tese do intelecto único ameaça a com-preensão da individualidade da pessoa humana e, por conseguinte, de sua liberdade; e, en� m, de sua responsabilidade, pela qual o homem pode ganhar ou perder a sua alma em face de Deus. Ameaça também a a� rmação da imortalidade do indivíduo: pois, se a individualidade é dada pela matéria e se limita à matéria, não pertencendo ao espírito, então com a morte corporal se des-faz a própria individualidade. O que é imortal é o que é impessoal: o intelecto agente único que atua no inteligir de todos os homens. Na criação se salvaguarda a liberdade e onipotência de um Deus transcendente, Senhor do ser e do nada; na encarnação se salvaguarda a liberdade e o amor pelo qual a pessoa divina do Verbo assume a humanidade em sua carne; na individualidade, se salvaguarda a liberdade e a imortalidade da pessoa humana, ou seja, a tese de que o homem individual é livre e responsável por seus atos e que, ao exercer esta liberdade na responsabi-lidade, no tempo da sua história biográ� ca ele decide sobre seu destino eterno. As verdades de fé do cristianismo, portanto, a saber, a criação a partir do nada, a encarnação e salvação eterna ou não da alma humana em sua individualidade, pressupõem a temporalidade e a historicidade. A temporalidade e historicidade do universo (decursus mundi); a temporalidade e historici-dade da ação imanente do Deus transcendente (encarnação); a temporalidade e historicidade da existência humana, do exercício de sua liberda-de e responsabilidade. O perigo do aristotelismo averroísta, na perspectiva de Boaventura, está em

sua concepção a-histórica, fatalista ou necessita-rista e impessoal da realidade como um todo, de Deus, do mundo e do ser humano.

Na quarta das Conferências sobre os dez mandamentos, ao tratar do preceito de santi� car o sábado, Boaventura volta a tratar questão da eternidade e temporalidade do mundo. Ali ele diz que é preciso entender espiritualmente a his-tória bíblica da criação do mundo em seis dias:

Deus, com efeito, fez todas as coisas em seis dias, não porque não tivesse podido fazê-las em um dia; mas aqui há que se compreender que o mundo possui algo na arte eterna, ou seja, o ser eterno, que é a eternidade da vida e a posse perfeita na qual não há nem antes nem depois; e Deus imprimiu isto nas mentes angélicas. Ademais, o mundo possui algo na inteligência criada, ou seja, por natureza há o antes e o de-pois, se bem que há simultaneidade segundo a duração. Mas possui o antes e o depois segundo a duração – não segundo a natureza -, segundo aquilo que é na matéria, não por causa de um defeito de quem opera, mas pela sua condes-cendência, a � m de que proporcionasse todas as coisas e as signi� casse todas nas primeiras obras. E como produziu nas primeiras coisas as raízes de todas as operações, assim também produziu plenamente seja os princípios germi-nativos de todas as obras seja o repouso. Mas no sétimo dia repousou e chamou a si a cria-tura intelectual e no sétimo dia trouxe de volta à quietude do paraíso as almas que estavam no limbo. Então o signi� cado do sétimo dia está na

quietude simbólica das almas [8].

Neste contexto, Boaventura retoma a con-cepção platônica das ideias, reelaborada no seu assim chamado “exemplarismo”, doutrina se-gunda a qual Deus não somente é causa e� ciente e causa � nal do universo criado, mas é também sua causa exemplar. O mundo, marcado pela temporalidade e historicidade, sai de Deus pela criação (egressus, productio), mas deve retornar a Deus pela consumação de todas as coisas (reduc-tio), especialmente pelo retorno da criatura inte-lectual ou espiritual à paz paradisíaca. Quando

7| Coll. II, n. 25, p. 61.

8| Coll. IV, n. 7, p. 81-83.

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esta criatura retorna para a sua origem (Deus) e nela repousa, então todo o universo alcança a sua paz.

2. A necessidade de uma “reductio” da filosofia

Da reductio Boaventura trata na primeira das Collationes de septem donis Spiritus Sancti, que apresenta um tratado introdutório da graça, antes de falar dos dons do Espírito septiforme. Falando do uso da graça, Boaventura diz que ele tem de ser � el em relação a Deus. Fiel é o uso da graça quando o homem a põe em serviço da glória de Deus. Boaventura usa, então, uma imagem que lhe vêm da óptica ou da ciência da perspectiva daquele tempo:

Os sábios em perspectiva dizem, que se o raio cai perpendicularmente sobre um corpo terso e polido, necessariamente repercute pela mesma

via. O in� uxo [9] da graça é como um raio per-pendicular; digo a respeito da graça que faz grato (gratia gratum faciente), porque a graça dada de graça (gratia gratis data) é como é como o raio que incide. É necessário, pois, que quem recebe a graça de Deus verdadeiramente, restitua (reddat)

glória a Deus [10].

A mente do homem deve ser como um es-pelho limpo e polido, de modo que o dom que lhe advém de Deus, ao incidir nela, possa re� etir, ou seja, retornar para Deus. Assim, a graça retor-na em gratidão, à medida que o homem se torna grato e agradável a Deus. Assim, o homem que é agraciado por Deus rende glória a Deus. Neste momento de seu discurso, Boaventura cita uma passagem do livro do Eclesiastes que recorda o retorno de todas as coisas a Deus, bem como uma passagem do comentário de Bernardo de Clara-val ao livro do Cântico dos cânticos. A passagem do Eclesiastes diz: “ad locum, unde exeunt � umina revertuntur” – “ao lugar de onde saem, os rios retornam” (Eclesiastes 1,7). E o comentário de Bernardo é: “origo fontium mare est, virtutum et scientiarum origo est Christus” – “origem das fon-tes é o mar, origem das virtudes e das ciências é Cristo” [11]. E Boaventura completa:

Assim como a fonte não tem duração, a não ser que tenha contínua união (coniunctio) com a sua origem, assim como a luz, assim também a graça do Espírito Santo não pode viger na alma a não ser pela sua reversão (reversio) ao seu princípio

original (originale principium) [12].

Esta reversão e conjunção são custodiadas pela humildade e destruídas pela soberba. Hu-milde é aquele que atribui ao seu princípio ori-ginal todo o bem que tem, ou seja, atribui a Deus e não a si mesmo. O humilde, assim, está sempre unido à sua origem, enquanto o soberbo rompe com ela. Lúcifer, o portador da luz, se tornou escuro por causa de sua soberba; “sed Christus reduxit se in suum originale principium per humi-litatem, et ideo clarus fuit” – “mas Cristo se recon-duziu ao seu princípio original pela humildade, e daí se torno claro” [13]. Humildade e soberba, aqui, portanto, são compreendidas por Boaven-tura em sentido ontológico e não simplesmente ético. Elas são possibilidades de ser fundantes da existência humana e são relacionamentos com o princípio original de todo o poder-ser e de todo o saber.

Por sua vez, na segunda conferência, ao retomar o conteúdo da primeira, Boaventura re-corda a origem da graça, recordando a mesma passagem da carta de Tiago, que ele pôs como mote do seu famoso opúsculo intitulado “Re-ductio artium ad theologiam” (Redução das artes ou saberes à teologia), ou seja, que toda dádiva ótima e todo dom perfeito vem do alto, descen-do do Pai das luzes (cfr. Tg 1, 17); e acrescenta: “per Verbum incarnatum, per verbum cruci� xum et per Verbum inspiratum” – “pelo Verbo encarnado, pelo Verbo Cruci� cado e pelo Verbo inspira-do” [14]. Graças a esta mediação, o Verbo tem também a função de operar a nossa “reductio”, a nossa redução, no sentido de recondução, ao sumo princípio: “E eu disse que aquele Verbo nos reconduz (reduxit nos) ao sumo princípio (in summum principium)”. Então Boaventura recor-da um comentário de Dionísio Areopagita ao mesmo passo da Carta de Tiago. Neste comen-

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9| Influxo (influxus) é uma palavra fundamen-tal na concepção de “hierarchia”, a regência do sagrado, no pensamento de Dionísio Areopagita, a qual é retomada também por Boaventura: diz a comunicação gratuita e graciosa do Sumo Bem às criaturas, quer no ser de natureza (esse naturae), quer no ser sobrenatural da graça (esse gratiae).

10| Coll. I, n. 9, p. 134.

11| Coll. I, n. 9, p. 134.

12| Coll. I, n. 9, p. 134.

13| Coll. I, n. 10, p. 136.

14| Coll. II, n. 1, p. 144.

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tário, Dionísio nota: “E assim, o processo das manifestações procedendo do Pai em nós sobre-vém de modo tão vasto e oportuno que a virtude unitiva (uni� ca virtus) nos pleni� ca (nos replet) e nos converte (convertit nos) ao Pai das luzes” [15]. Na terceira conferência, em que Boaventu-ra trata da piedade, de novo é apresentada a di-nâmica ontológica da “reductio”, quando é dito:

Naturalmente qualquer coisa que seja tende à sua origem: a pedra para baixo, o fogo para cima, e os rios correm ao mar, enquanto a árvore é con-tinuada com a raiz, e outras coisas têm continu-ação com a raiz. Deiforme é a criatura racional, que pode voltar sobre a sua origem (redire super originem suam) pela memória, inteligência e von-tade; e não é piedosa, a não ser que re� ua a si

mesma (refundat se) sobre a sua origem [16].

Piedade (pietas) é o que os gregos chama-vam de theosébeia, ou seja, a veneração para com o divino, a religiosidade. Boaventura a identi� ca com a reverência para com Deus e a denomina de “cultus dei” (culto de Deus). A piedade im-plica em “cum reverentia et timore sentire de Deo” – “com reverência e temor pensar [17] a cerca de Deus”. Como exemplo, Boaventura recorda o tema da criação a partir do nada: “Se pensas de modo diminuto a respeita da potência de Deus, a saber, que ele não possa criar todas as coisas do nada, não pensas de modo altíssimo” [18]. A piedade é também útil para conhecer o verda-deiro. O homem ímpio é soberbo, um néscio, um doente que se enferma lidando com questões e com lutas verbais, diz Boaventura. E, por isso, adverte: “si vultis esse veri scholares, oportet, vos habere pietatem” – “se quereis ser verdadeiros es-colares (escolásticos), é necessário que tenhais piedade” [19].

Na quarta conferência, que trata do dom da ciência, Boaventura apresenta Salomão como o grande escolar (clericus magnus) [20]. A ciên-cia é designada como claridade. Assim sentencia Boaventura: “claritas animae est scientia, econtra tenebra animae est ignorantia” – “claridade da alma é a ciência; ao contrário, treva da alma é a

ignorância”. As claridades da ciência advêm ao homem por meio de um duplo lume [21] (lu-men): um lume inato (lumen inatum) e um lume infuso (lumen superinfusum). O lume inato é o lume natural da faculdade do juízo ou razão; o lume que se infunde do alto é o lume da fé. Ra-zão e fé, ambos são lumes, cuja fonte é a única e mesma luz: Deus. Toda ciência tem sua origem numa iluminação divina, quer seja natural, quer seja sobrenatural. O homem conhece as coisas sensíveis por meio da sensação e da imaginação. Mas ele é capaz também de transcender o sensí-vel e apreender o inteligível. Ele é capaz de ope-rar a abstração do inteligível junto ao sensível. Esta abstração é obra quer do intelecto possível quer do intelecto agente, que são, para Boaven-tura, duas “di� erentiae” (diferenças) da mesma faculdade intelectiva do homem. Entretanto, no exercício desta faculdade intelectiva, a criatura racional que é o homem necessita ser iluminada pela Verdade divina. Aquilo sobre o que julga-mos provém da experiência, mas aquilo a partir do que e segundo o que julgamos, já não provém da experiência e nem mesmo da própria razão, mas de uma iluminação divina que nos faz co-nhecer o ideal.

Na trilha de Agostinho, Boaventura se re-fere à iluminação natural da razão ou da facul-dade de julgar, dizendo que esta iluminação é como que uma impressão. Deus, que contém em si as ideias, ou melhor, as “rationes aeternae” ou “rationes exemplares” de todas as coisas criadas, permite que estas possam resplandecer sobre a mente da criatura racional. Da parte de Deus a iluminação é uma comunicação ou doação. Da parte da criatura racional, é uma recepção. Ao se comunicar, a luz da Verdade resplandece na mente do homem. Ela advém à mente sem, po-rém, deixar a sua fonte. “Não como se ela emi-grasse de um lado para o outro, mas a modo de impressão na alma. Tal como a imagem de um anel � ca impressa na cera, sem se apagar do anel”, dizia Agostinho [22]. Boaventura expli-ca a partir de um exemplo: o homem conhece a

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15| Coll. II, n. 1, p. 144

16| Coll. III, n. 5.

17| Em latim “sentire” quer dizer sentir, no sentido de experimentar uma sensação ou um sentimento; entretan-to, também significa perceber, pelos sentidos ou pela inteligência; e, ainda, ser de determinado parecer, pensar, julgar. Por isso que, neste contexto, traduziu-se “sentire” por “pensar”.

18| Coll. III, n. 5, p. 166.

29| Coll. III, n. 17, p. 180.

20| Coll. IV, n. 1, p. 182.

21| “Lumen” significa o mesmo que claridade, condição de possibilidade da visibilidade de alguma coisa. Já “Lux” significa mais a fonte do lume ou claridade, como, por exemplo, os raios do sol.

22| Da Trindade XIV 15, 21. Agostinho. A Trin-dade. São Paulo: Paulus, 1994, p. 470.

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ideia de todo e a ideia de parte, e, daí, consegue formular o juízo: “o todo é maior do que a par-te”. A verdade é, antes de tudo, manifestativa e só por isso é que ela pode ser judicativa. Sem a impressão das ideias ou das “rationes aeternae” o homem não pode conhecer os princípios e julgar com certeza a respeito do real. Os juízos são atos do intelecto, mas a mente só pode jul-gar corretamente acerca do real se vê o ideal, ou seja, se ela intui as ideias, os princípios, as regras do ser, do conhecer, do agir, que se encontram originariamente na mente divina. As “rationes aeternae” ou “exemplares” que estão na mente de Deus e que se imprimem na mente do homem quando este julga são aquilo pelo que (id quo) o homem conhece e julga, não são, porém, aquilo que (id quod) o homem conhece e julga. Com outras palavras, elas são o “medium quo”, o meio pelo qual o homem conhece e julga. Isto não permite, pois, um conhecimento direto de Deus e de sua essência, mas apenas uma “cointuição” (contuitio, contuitus) de Deus. Esta cointuição se dá ao modo de um conhecimento da causa por meio do efeito, como, por exemplo, eu co-intuo a fonte intuindo (vendo diretamente) o manan-cial. Assim, deste modo, conhecendo os princí-pios intelectuais somos capazes de cointuir a sua fonte: a Verdade eterna, a mente divina [23].

A luz natural da razão, contudo, não é o bastante para que o homem alcance toda a ciên-cia, que lhe é possível. Ele precisa, antes de tudo, do lume infuso da fé, para alcançar uma clara noção de Deus como criador e como salvador. Além da ciência � losó� ca, há a ciência teológi-ca. Entretanto, as ciências não se exaurem nestas duas. A elas Boaventura acrescenta, ainda, uma “ciência gratuita” e uma “ciência gloriosa”, cada qual com sua claridade. Conhecer é, para o ho-mem, transcender de claridade em claridade.

Aqui há de se notar que há a claridade da ci-ência � losó� ca, da ciência teológica, da ciência gratuita e da ciência gloriosa. A claridade da ci-ência � losó� ca é grande segundo a opinião dos homens do mundo, entretanto, é pequena em

comparação à claridade da ciência cristã. Con-tudo, a claridade da ciência teológica que pare-ce pequena segundo a opinião dos homens do mundo, segundo a verdade é grande. A claridade da ciência gratuita é maior, mas a claridade da

ciência gloriosa é máxima [24].

A ciência � losó� ca é o conhecimento certo da verdade enquanto pode ser perscrutada. A ci-ência teológica é o conhecimento pio (religioso) da verdade enquanto pode ser crida. A ciência gratuita é o conhecimento santo da verdade en-quanto pode ser amada. A ciência gloriosa é o conhecimento sempiterno da verdade enquan-to desejável. Nota-se que a ciência � losó� ca se de� ne a partir da certeza de um conhecimento que advém de uma investigação que indaga a verdade enquanto essa é perscrutável. Esta ciên-cia é tríplice, pois se divide em física (� loso� a natural), lógica (� loso� a racional) e ética (� lo-so� a moral). As três se ocupam com a verdade perscrutável que, por sua vez, se apresenta como veritas rerum (verdade das coisas), veritas ser-monum (verdade dos discursos) e veritas morum (verdade dos costumes). A verdade das coisas é a “indivisio entis ab esse”, ou seja, a “indivisão” do ente a partir do ser. Dito de outro modo: a verdade das coisas é a adequação do intelecto (divino, arquétipo) e as coisas reais. Talvez pu-déssemos dizer: a verdade das coisas é quando o ente realiza a sua ideia, isto é, a sua essência ori-ginária, o exemplar presente na mente divina. A verdade dos discursos é a “indivisio entis ad esse”, ou seja, a “indivisão” do ente em relação ao ser, melhor dizendo, é a adequação do que é expresso com o intelecto. A verdade dos costumes é a “in-divisio entis a � ne”, ou seja, a “indivisão” do ente a partir do � m, que é o sumo Bem; quer dizer, é a retidão, pela qual o homem vive bem, dentro e fora, segundo o ditame do direito e da justiça. Estas três sendas da ciência � losó� ca conduzem a Deus, enquanto este é a “causa essendi” (causa do ser), a “ratio intelligendi” (razão do inteligir) e o “ordo vivendi” (ordem do viver) [25]. A � lo-so� a é, assim, um grande espelho que re� ete os vestígios da Trindade [26].

23| Tonna, I. Lineamenti di Filosofia Francescana: sintese dottrinale del pensiero francescano nei sec. XIII-XIV. Roma/Marsa (Malta): Ed. Tau, 1992, p. 73-81.

24| Coll. IV, n. 3, p. 184.

25| Coll. IV, n. 7, p. 186.

26| Coll. IV, n. 11, p. 188.

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3. A insuficiência da filosofia

Entretanto, a ciência � losó� ca é insu� -ciente. Sua claridade se eclipsa facilmente: “si aliquid interponatur inter ipsum [homo] et solem iustitiae, patitur eclipsim stultitiae” – “se algo se interpõe entre ele [o homem] e o sol da justi-ça, ele sofre o eclipse da estultícia” [27]. Quem con� a na ciência � losó� ca e se aprecia por isso, considerando-se melhor, se torna estulto. Ele se comporta como o homem que, com a luz de uma vela, quisesse ver o céu ou a luz do sol. O conhe-cimento metafísico fatalmente se desvia e induz ao erro, se o homem se apoia somente em suas próprias possibilidades:

Admitindo-se que o homem tenha a ciência na-tural e metafísica, que se estenda às substâncias sumas, e que aí o homem chegue e aí repouse: é impossível que isto se dê, sem que o homem caia em erro, a não ser que seja ajudado pela luz da fé, ou seja, que o homem creia em Deus uno e trino, potentíssimo e ótimo segundo a in� uência

da bondade [28].

Assim, os � lósofos foram obscurecidos pela ciência � losó� ca, que, em si mesma é uma claridade e um dom de Deus, devido ao fato de considerarem-na autossu� ciente e de não terem recorrido à luz da fé. A � loso� a deve ser encara-da pelo homem sempre como via e nunca como destino de sua existência: “philosophica scientia via est ad alias scientia; sed qui ibi vult stare ca-dit in tenebras” – “a ciência � losó� ca é via para outras ciências; mas quem quer � car plantado aí acaba caindo em trevas” [29]. O que importa ao homem é fazer a travessia (transire) da vida, transcendendo de claridade em claridade, de ci-ência em ciência. Além da ciência � losó� ca se encontra, imediatamente depois, a ciência te-ológica, que é o saber da revelação contida na Escritura Sagrada, saber alcançado a partir da iluminação da fé. Trata-se de um conhecimento pio (notitia pia), ou seja, de um conhecimento que é cultivado na relação religiosa do homem com Deus; e um conhecimento pio de uma ver-dade que, desta vez não é perscrutável, mas que

é somente credível. Com efeito, a luz eterna, que é Deus, é uma luz inacessível para nós, pois, diz Boaventura recorrendo a uma expressão de Aristóteles, nós temos olhos semelhantes aos de morcego em relação ao que há de mais mani-festo na realidade. No Itinerário da Mente para Deus, Boaventura diz:

Admirável, pois, é a cegueira do intelecto, que não considera aquilo que por primeiro vê e sem o qual nada pode conhecer. Mas, assim como o olho, voltada para as várias diferenças das cores, não vê a luz, pela qual vê tudo o mais, e se acaso vê, não se dá conta que vê; assim também o olho de nossa mente, voltado para os particulares e os universais, não adverte, porém, o ser mesmo, que está fora de todo o gênero, a saber, aquele que primordialmente ocorre á mente e pelo qual to-das as outras coisas lhe vêm ao encontro. Donde, mostra-se de maneira muito verdadeira, que “as-sim como o olho do morcego se comporta com a luz, assim também o olho da nossa mente com a natureza mais manifesta”. Isto se dá porque, acostumado às trevas dos entes e aos fantasmas das coisas sensíveis, quando o olho da mente in-tui a luz mesma do sumo ser, parece-lhe nada ver; não compreendendo que a própria caligem é a suprema iluminação de nossa mente, assim como quando o olho vê a pura luz, parece-lhe

que nada vê [30].

Portanto, sem a luz da fé, ou melhor, como diz Agostinho [31], sem a puri� cação do olhar da mente (acies mentis) por meio da justiça da fé, a contemplação das coisas mais elevadas acaba terminando numa queda no abismo da escuri-dão. A fé funda a ciência teológica. A ciência teológica está fundada sobre a fé, assim como a ciência � losó� ca está fundada sobre os primeiros princípios. “Sobre a fé” signi� ca: sobre a Sagrada Escritura interpretada espiritualmente, ou mais exatamente, sobre os artigos da fé professada pela Igreja a partir da revelação bíblica [32]. A leitura literal não basta. É preciso a leitura es-piritual. É que a Escritura Sagrada é sempre multiforme em seus sentidos. “In uma littera est multiplex sententia” – “em uma letra há multípli-

27| Coll. IV, n. 12, p. 188.

28| Coll. IV, n. 12, p. 190.

29| Coll. IV, n. 12, p. 190.

30| Tradução minha a partir do texto latino apresentado em ma-nuscrito com ensaio de tradução de Raimundo Vier (Curitiba, s/d.). Cfr. também: Boaventura de Bagnoregio. Escritos filosófico-teológicos. Intro-dução, notas e tradução de Luis A. De Boni e Je-rônimo Jerkovic. Coleção Pensamento Franciscano, v. I. Porto Alegre/Bragan-ça Paulista: EDIPUCRS e USF, 1999, p. 334. A referência de Aristóteles é: Metaphysica II, c. 1, 993 b 3-14. Aristotele. Metafisica. Testo greco a fronte. A cura di Giovanni Reale. Milano: Rusconi, 1993, p. 70-71.

31| De Trinitate I, c. 2, n. 4 (PL 42, 822).

32| Cfr. Coll. IV, n. 13, p. 190.

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ce sentença” [33]. Entretanto, a ciência teológica mesma não é útil, mas danosa, se o homem que tem esta ciência não a completa com as obras do amor. Se a primeira claridade, a da ciência � lo-só� ca, pode obscurecer quem com ela se ocupa, a segunda claridade, a da ciência teológica, pode condenar o homem, se este não faz aquilo que sabe dever fazer, ou seja, se ele não vive segundo aquilo que a fé lhe ensina [34]. Por isso, acima da ciência teológica está a claridade de outra ci-ência, que é a “scientia gratuita”.

A ciência gratuita é aquela que, de modo próprio, é um dom do Espírito Santo. É o co-nhecimento santo da verdade, que, aqui, mais do que crida, é amada. O amor é mais excelente do que a fé. Sem o amor, a fé é vã. Poderíamos dizer que não se trata mais de um “intellectus � -dei” (intelecção da fé), mas sim de um “intellec-tus amoris” (intelecção do amor, da caridade). É a ciência dos santos. É a ciência dos mártires. Desta ciência está longe a � loso� a dos esco-lásticos: “hoc non docet philosophia, quod pro con-clusione exponham me mori” – “isto não ensina a � loso� a: que, pela conclusão (de um silogismo) eu deva me expor à morte” [35]. Evidencia-se assim que, recorrendo a Bernardo de Claraval, o que importa não é o homem saber muitas coi-sas (multa scientem), mas saber o modo de saber (modum sciendi). O modo de saber se de� ne pela ordem, pelo empenho e pelo � m. Pela ordem: que o homem primeiramente aprenda aquilo que é mais maduro para a salvação (maturius est ad salutem). Pelo empenho (studium): que o homem estude de modo a se deixar atrair arden-temente por Deus. Pelo � m: que o homem es-tude não por causa de uma inane glória própria ou por curiosidade, mas para a edi� cação sua e do próximo. São tomados de torpe curiosidade, aqueles que querem saber apenas por saber; de torpe vaidade, aqueles que querem saber apenas para se tornarem reconhecidos ou que querem saber para vender a sua ciência por dinheiro ou pelas honras dos homens. Como diz o Apóstolo: a ciência in� a, mas a caridade edi� ca (1 Cor 8,

1). Estão num relacionamento justo com o sa-ber, porém, aqueles que querem saber para serem edi� cados e para edi� car os outros [36].

4. O intelecto e o empenho da busca da sabedoria

Na sétima conferência sobre os dons do Espírito Santo, em que Boaventura fala do dom do conselho, Boaventura pergunta: onde encontrar a sabedoria? Qual é o lugar da inteligência? E responde que a sabedoria não é encontrada pelo homem “carnal”, ou seja, pelo homem que vive segundo o modo humano de viver (ab homine humano modo vivente). Se o homem quiser encontrar a sabedoria, tem de transcender o próprio homem e o que é naturalmente humano. Ele tem que se tornar mais que homem (plus quam homo). Ele deve poder viver a partir do Espírito de Deus e a partir daí receber a sabedoria, que provém da profundidade do mistério. O homem pode saber essa sabedoria se transcende o modo carnal, cômodo e meramente humano, de viver. A sabedoria (sapientia) que ele aprende assim, porém, não é mero conhecer, mas é também e acima de tudo um saborear, um perceber o sabor das realidades divinas [37]. Na perspectiva boaventuriana, com efeito, sapiência é mais do que ciência. A ciência consiste num saber (scire), que se dá no modo de um conhecer. A sapiência, por sua vez, é mais do que saber: é saborear o mistério. Trata-se, portanto, de um saber afetivo experimentado a partir do cultivo da relação religiosa do homem com Deus. Trata-se não só de um saber afetivo, mas também de um saber operativo, de um saber que se traduz em ação, obra, práxis:

Não basta ter boa vontade, a não ser que o ho-mem queira agilizá-la em obras, passando da força ou capacidade (virtus) intelectiva à afetiva e da afetiva à práxis (operationem). O Filósofo diz que três são as coisas necessárias à virtude, a sa-

ber, “saber, querer e operar resolutamente” [38].

Esta concepção afetiva e prática da sabe-doria cristã é rea� rmada na oitava conferência,

33| Coll. IV, n. 15, p. 192.

34| Cfr. Coll. IV, n. 18, p. 194-196.

35| Coll. IV, n. 22, p. 198.

36| Cfr. Coll. IV, n. 23-24, p. 198-200.

37| Cfr. Coll. VII, n. 1, p. 236.

38| Coll. VII, n. 8, p. 240.

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quando Boaventura trata do dom do intelecto. Sabedoria e simplicidade andam juntas. Deus esconde os seus mistérios aos sábios e revela-os aos pequeninos, como diz o evangelho (Mt 11, 25). Neste contexto, “sábios” são os que sabem muitas coisas; “pequeninos” são os que sabem pouca coisa. Mas “pequeninos” também são aqueles que sabem muitas coisas, e que, portan-to, poderiam ser considerados sábios aos olhos do mundo, mas que se atém humildemente em relação à sabedoria. A humildade franqueia ao homem o caminho da sabedoria, enquanto a presunção lhe fecha este caminho:

Nada obscurece tanto o intelecto em relação àquelas coisas que concernem a Deus do que a presunção. Todos louvamos a humildade e vi-tuperamos a presunção, poucos, no entanto, são imunes da presunção. Diz Ricardo de São Vítor, que “disputando contra a soberba o homem fre-

quentemente se ensoberbece” [39].

Quem mais crê saber, frequentemente é quem sabe menos. Sem disciplinar o seu inte-lecto e seguir pela fé o que a Sagrada Escritura diz, o homem não compreende as coisas divinas, e acaba cogitando muitos erros. Por isso, Boa-ventura rea� rma o dito da versão dos setenta da Bíblia, abraçado como lema para Agostinho: “nisi credideritis, non intelligetis” – “a não ser que creiais, não compreendereis”. Com efeito, as coi-sas de que versam as Escrituras Sagradas trans-cendem a nossa inteligência, ou seja, a razão que atua segundo a luz natural. Por isso, a indiscipli-na na potência racional da alma torna-se o maior impedimento para que o homem compreenda as coisas divinas [40].

O intelecto tem três funções: é a regra das circunspecções morais; é a porta das considera-ções cientí� cas e a chave da contemplação das coisas divinas. No primeiro caso, trata-se do in-telecto prudencial, em que o homem, seguindo o ditame da divina lei, conhece o mal que deve evitar e o bem que deve realizar [41]. Em segun-do lugar, o intelecto é a porta das considerações das ciências (ianua considerationum scientialium).

O intelecto se encontra no tesouro da sabedoria. O estudo da verdade consiste em cavar este te-souro. Este estudo o homem o realiza em parte a partir do que ele aprende pela frequência da experiência, como por uma luz exterior; em par-te a partir do que o homem aprende pelo ditame da luz natural da razão, como por uma luz inte-rior; por � m, em parte a partir da iluminação da luz eterna, como por uma luz superior [42]. A experiência torna o homem experto, perito em muitas coisas. Neste ponto, ao falar da intelecção que parte da experiência, Boaventura recorre a Aristóteles: “a partir de muitas sensações se faz uma memória; a partir de muitas memórias se faz uma experiência; a partir de muitas experi-ências se faz o universal, que é o princípio da arte e da ciência” [43]. De fato, há arte ou ciência quando o homem conhece, a partir da experiên-cia, certas leis que regem o acontecer das coisas, as quais podem ser expressas em proposições universais. Ao falar do intelecto a partir do que o homem conhece segundo o ditame natural da razão, que é como uma luz interior, Boaventu-ra nota que a alma humana tem três operações ou três potências. Ela pode se voltar (convertere) sobre o seu corpo; sobre si mesma; e às coisas di-vinas. Daí advêm três de� nições da alma: como forma do corpo; como “hoc aliquid” (este algo), ou seja, como uma substância singular de na-tureza intelectual (pessoa); e como “imago Dei” (imagem de Deus). A propósito da iluminação natural Boaventura diz:

A nossa alma, porém, tem sobre si certo lume natural impresso (quoddam lumen naturae signa-tum), pelo qual é hábil a conhecer os primeiros princípios, ainda que isto somente não baste, porque, segundo o Filósofo, “conhecemos os princípios, enquanto conhecemos os termos”. Quando, pois, sei o que é “todo” e o que é “par-te”, imediatamente sei que “todo todo é maior do

que sua parte” [44].

Entretanto, somente a intelecção a partir da experiência e da a partir do ditame natural da razão não são o su� ciente. O homem precisa

39| Coll. VIII, n. 1, p. 252.

40| Coll. VIII, n. 5, p. 254-256.

41| Coll. VIII, n. 8, p. 256-258.

42| Coll. VIII, n. 12, p. 260

43| Coll. VIII, n. 14, p. 262. As referências de Aristóteles são: Analíticos Posteriores II, c. 19 (100 a 3-8); Metafísica I, c. 1 (980 b 29 – 981 a 4). Cfr. Aristóteles. Órganon. Tradução de Edson Bini. Bauru-SP: EDIPRO, 2005, p. 344. Aristotele. Metafisica. Testo greco a fronte. A cura di Giovanni Reale. Milano: Rusconi, 1993, p. 2-3.

44| Coll. VIII, n. 13, p. 260.

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de uma iluminação “sobrenatural”, que se dê “per divinam in� uentiam” (pelo in� uxo divino). Nada se pode saber de Deus com certeza a não ser que se saiba por graça dele mesmo. Neste ponto, Boaventura recorda Agostinho, que pergunta a partir donde acontece que o injusto, de vez em quando, julga bem acerca da justiça. Onde es-tão escritas as leis da justiça segundo as quais e a partir das quais mesmo um homem injusto pode julgar de modo justo? A sua resposta vem na seguinte versão boaventuriana: “estão escri-tas no livro da luz eterna, e não emigrando dela, mas imprimindo-se, descem à alma, assim como a imagem passa do anel à cera, sem abandonar o anel” [45]. Assim, na intelecção acontece um processo em que, por um lado, o intelecto age com sua capacidade natural de discernir e de julgar, por outro lado, ele recebe a iluminação divina. Por sua vez, a iluminação acusa um con-tato imediato entre Deus e a alma. Se há algu-ma mediação angélica, esta mediação é apenas a modo de uma assistência ou de um serviço (ministerialiter et adminiculative). Se se diz que o anjo ilumina a alma, falando-se por analogia, ele o faz não como o sol ilumina uma sala, mas como alguém que abre a janela para que a luz penetre na sala. Somente Deus tem poder sobre a alma racional, porque esta é formada por ele de modo imediato. A conclusão positiva é que somente Deus é mestre do homem. A negati-va atinge o ensinamento dos � lósofos sobre as Inteligências: “portanto, não é verdadeiro o que dizem os � lósofos, que uma Inteligência cria ou-tra, porque criar é próprio do Deus onipotente, não de algum poder criado; por isso, fazer isso é próprio daquela luz que é Ato Puro” [46].

Deus está imediatamente próximo do ho-mem. “Nele vivemos, nos movemos e somos”, como disse Paulo no seu discurso aos � lósofos no Areópago em Atenas (At 17, 28). E Agosti-nho esclarece que Paulo não está falando, aqui, de nossa vida corpórea, mas de nossa vida in-telectiva [47]. Deus é, como já vimos, causa do ser, razão do inteligir e ordem do viver. É causa

do ser (causa essendi) produzindo imediatamente todas as coisas perpétuas; mediatamente, produ-zindo todas as coisas temporais; e imediatamen-te também ao produzir as virtudes elementares do cosmo. Deus é razão do inteligir (ratio in-telligendi) porque é a partir dele que advém à in-teligência criatural a certeza, acima de toda sua mutabilidade. É ordem do viver (ordo vivendi), pois, por sua inabitação na alma, o homem é re-gido pelas regras da vida reta. Assim sendo Deus entra na alma como princípio do seu ser, como sol da inteligência e como dom infuso [48].

5. Outra abordagem sobre os erros dos filósofos: o embate de círculo e cruz.

Neste contexto, Boaventura volta a com-bater os erros dos � lósofos. Segundo ele, três são os erros a serem evitados nas ciências, os quais exterminam a Sagrada Escritura e a fé cristã. O primeiro erro é contra a causa do ser, a saber, o erro da eternidade do mundo. O segundo erro é contra a razão do inteligir, ou seja, a necessidade fatal. O terceiro erro é contra a ordem do viver, isto é, a tese da unidade do intelecto humano. Uma tríplice tese do aristotelismo averroísta dos � lósofos da faculdade de artes é combati-da, ou seja: que põe o mundo eterno; que põe que tudo acontece por necessidade; e que põe que há um único intelecto (agente) em todos os homens. A aparição deste tríplice erro, contudo, é visto por Boaventura em chave escatológico-apocalíptica representado no número da besta do Apocalipse: seiscentos e sessenta e seis (Ap. 13,18), que é, segundo Boaventura, um núme-ro cíclico. O número seis é três vezes repetido. O número seis é o número das criaturas e do homem. As criaturas são criadas em seis dias. O homem é criado no sexto dia. Trata-se, aqui, de um aprisionamento do homem na imanên-cia criatural, uma recusa da transcendência. Um aprisionamento que, repetido por três vezes, se potencializa cada vez mais (há o seis; depois o sessenta, que é o seis dez vezes; e seiscentos, que é o seis cem vezes). Sobre o caráter cíclico da re-

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45| Coll. VIII, n. 15, p. 262.

46| Coll. VIII, n. 15, p. 262.

47| Coll. VIII, n. 15, p. 264. A referência de Agostinho é: Da Trindade XIV, c. 12, n. 16. Cfr. Agostinho. A Trindade. São Paulo: Paulus, 1994, p. 462.

48| Coll. VIII, n. 15, p. 264.

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presentação aristotélica-averroísta dos � lósofos da faculdade de artes Boaventura elucida: os que põem ser o mundo eterno se fundamentam so-bre o círculo do movimento e do tempo; os que põem ser a necessidade fatal que rege todos os acontecimentos se fundam sobre o movimento dos astros; os que põem ser um só o intelecto em todos os homens, consideram que esta In-teligência entra e sai no corpo. Este tríplice erro choca com a Sagrada Escritura e com a fé cris-tã: contra a criação a partir do nada; contra o livre-arbítrio, anulando, assim, a cruz de Cris-to; e contra a diferença entre mérito e prêmio, anulando, assim, a individualidade, a liberdade e a responsabilidade dos diferentes indivíduos [49]. Por conseguinte, a luta entre a fé cristã e a � loso� a dos artistas aristotélico-averroistas é a luta entre o círculo e a cruz: entre identidade e diferença, entre unidade e oposição, entre ple-nitude e vazio, entre eternidade e tempo, entre atemporalidade e temporalidade, entre imanên-cia e transcendência. A defesa da cruz é a defesa da diferença, da individualidade, da liberdade, do amor. Chesterton intuiu isso quando escreve:

O amor deseja a personalidade; por isso dese-ja a divisão. O cristianismo instintivamente se alegra por Deus ter fragmentado o universo em pequenas partes, porque essas partes são vivas. Instintivamente ele diz “Criancinhas, amai-vos umas às outras”, em vez de mandar uma pessoa enorme amar a si mesma (...). Todas as � loso� as modernas são correntes que se interconectam e prendem; o cristianismo é uma espada que sepa-ra e liberta. Nenhuma outra � loso� a faz Deus de fato exultar com a divisão do universo em almas vivas. Mas segundo o cristianismo ortodoxo essa separação entre Deus e o homem é sagrada, por-

que é eterna [50].

E Chesterton, assim como Boaventura, também entende que uma concepção cíclica ou circular da realidade, presente no paganismo e em todo o imanentismo, é oposto da concepção cruciforme ou “crucial” da realidade, presente no cristianismo. Ele diz:

Sendo que tomamos o círculo como símbolo da razão e da loucura, podemos muito bem tomar a cruz como o símbolo ao mesmo tempo do misté-rio e da saúde (...)... o círculo é perfeito e in� nito em sua natureza; mas é � xo para sempre em seu tamanho; ele nunca pode ser maior ou menor. Mas a cruz, embora tendo no seu centro uma co-lisão ou contradição, pode estender seus quatro braços eternamente sem alterar sua forma. Por ter um paradoxo no seu centro ela pode crescer sem mudar. O círculo retorna sobre si mesmo e está encarcerado. A cruz abre seus braços aos quatro ventos; é o poste de sinalização dos via-

jantes livres [51].

Não que a cruz deva se contentar em sim-plesmente excluir o círculo. Um relacionamento que exclui o seu oposto não consegue ser um relacionamento pleno. Por isso, no cristianis-mo, a cruz subsume o círculo, como aparece, por exemplo, na imagem da cruz irlandesa. Heinrich Rombach, analisando esta imagem escreve:

“Cruz e Círculo são sinais, os mais antigos e elementares. Ambos em contraposição: a Cruz, dura, reta e contraditória; o Círculo, redondo, tenro e oscilante. A antiga Cruz irlandesa de pedra liga ambos os sinais em compenetração mútua: o Círculo se cruza com círculos. A Cruz abraça um movimento circular. O que dizem es-ses sinais? Círculo signi� ca plenitude, riqueza, dom, como também, alegria, estima, valor. O que nos é importante, nós o marcamos com círculos; o que nos é caro, o rodeamos em círculo. Anel e aro são símbolos da Vida e da Unidade. Tam-bém do sol. Cruz diz diferença, signi� ca opo-sição, contradição, também risco. Serve para a marcação, para sinalizar, para estigmatizar. Ela diz evento, ação, quebra, dor e morte. Círculo e Cruz, se unidos, podem só ser lidos como: ir-rupção para plenitude, evento da unidade através de uma única ação singular; em suma: superação

[52].

Numa concepção cíclica e circular não acontece propriamente história. Historicidade se experimenta a partir do momento em que se experimenta liberdade, responsabilidade, singularidade, diferença, oposição, contradição,

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49| Coll. VIII, n. 16, p. 264.

50| Chesterton, G. K. Ortodoxia. Traduzido por Almiro Pisetta. São Paulo: Mundo Cristão, 2008, p. 218.

51| Chesterton, G. K. Ortodoxia. Traduzido por Almiro Pisetta. São Paulo: Mundo Cristão, 2008, p. 49.

52| Rombach, H. Leben des Geistes - Ein Buch zur Fundamentalgeschichte der Menscheit.Freiburg / Basel / Wien: Herder, 1977, p. 140.

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risco, en� m, quando a cruz marca a realidade. Mas o evento pascal da cruz é também a morte da morte e a irrupção da vida plena. Entretanto, trata-se de uma plenitude que advém e sobre-vém pelo esvaziamento e de uma nova criação que se dá, de novo, de nihilo (do nada), do abis-mo da morte.

Ao � m da oitava conferência, pois, Boa-ventura argumenta contra os três supraditos er-ros. O primeiro erro, que põe a tese segundo a qual o mundo é eterno, destrói a causa dos ser. Ao se negar a criação de nihilo (a partir do nada), se a� rma que as coisas têm, simultaneamente, o ser e o não-ser, ou que têm o ser antes do não-ser, o que é inconveniente [53]. Ao se a� rmar a necessidade fatal (ou o determinismo fatalista), a partir das con� gurações astrológicas, torna-se vão o livre-arbítrio: “porque se o homem faz o que faz a partir da necessidade, o que vale o livre-arbítrio?” [54]. A consequência é que se destrói todo o mérito e toda a imputabilidade. O terceiro erro, que nasce da ignorância sobre a natureza do intelecto, porém, é o pior de to-dos, pois reúne os outros dois. “Que este inte-lecto seja um em todos, isto é contra a raiz da distinção e da individuação, porque em diversos indivíduos o intelecto tem um ser distinto: por-tanto, possui os princípios próprios, distintos e individuantes da sua essência” [55]. Os � lósofos ensinaram que uma única Inteligência criada irradia sua luz sobre todos os homens. Na ver-dade, porém, esta é uma prerrogativa somente de Deus. Toda inteligência criada é apenas um espelho da luz divina e eterna. Toda inteligência é capaz de re� exão, isto é, é capaz de um retorno sobre si mesma (reditio). Por isso, toda substân-cia intelectual conhece a si mesma, se ama e se julga. Por isso, se assemelha a um espelho, que irradia de volta a luz que sobre ele incide. Neste sentido, Boaventura parece equacionar “reditio” e “reductio”, ou seja, a capacidade de re� exão, de retorno sobre si mesmo, e a capacidade de fazer retornar à sua fonte a luz do conhecimento que sobreveio ao homem do “Pai das luzes”, como

diz Tiago (1, 17). O modo de ser espelho, porém, é diverso, na mente divina, na mente angélica e na mente humana. Em Deus, espelho e luz é a mesma coisa. No anjo, luz e espelho se dife-renciam por razão e por natureza, mas não pelo tempo. É que o intelecto angélico compreende todas as formas ou arquétipos das coisas num só instante. Mas, no homem, espelho e luz são coi-sas diversas não só segundo a razão e a natureza, mas também segundo o tempo: o homem não compreende subitamente tudo o que ele pode compreender. Assim, a temporalidade é caráter radical do espírito ou do intelecto humano. Por ser radicalmente temporal e � nita é que o inte-lecto humano precisa aprender, precisa julgar e raciocinar, precisa se dar como intelecto possível (receptivo) e como intelecto agente (ativo), pre-cisa, en� m, ser iluminado por uma luz superior à sua própria luz, pois, como diz o Filósofo: “As-sim como se comporta o olho do morcego em relação à luz do sol, assim também se comporta o nosso intelecto em relação às coisas claríssimas da natureza” [56].

6. VI. A sabedoria do mundo contra a sabedoria de deus

Na nona e última conferência sobre os sete dons do Espírito Santo, Boaventura trata da sabedoria ou sapiência (sapientia). A sabedo-ria provém de Deus como sua dádiva, mas, para receber este dom, o homem tem que desejá-la e também tem que preparar a sua alma, dedi-cando-se à justiça. E a suma justiça é o homem render glória a Deus e desejar e pedir de Deus a sabedoria [57]. Na verdade, o cristão é cha-mado a pedir e a receber a sabedoria verdadeira que vem de Deus e a fugir da vã sabedoria que vem do mundo, ou seja, dos homens que amam o mundo, dos homens mundanos. Com efeito, há a sabedoria celeste e há a sabedoria terrena. A alma está entre ambas: ela tem “duplex aspec-tus”, ou seja, duas perspectivas ou dois olhares; tem também “duplex a� ectus”, dois afetos. Um olhar e um afeto se voltam para o alto, ou seja, para as coisas incorruptíveis do espírito, para a

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53| Coll. VIII, n. 17, p. 266

54| Coll. VIII, n. 18, p. 266.

55| Coll. VIII, n. 19, p. 266

56| Coll. VIII, n. 20, p. 266-268. A referência a Aristóteles é: Metafísica II, c. 1, 993 b 9-14. Aris-totele. Metafisica. Testo greco a fronte. A cura di Giovanni Reale. Milano: Rusconi, 1993, p. 70-71.

57| Cfr. Coll. IX, n. 1, p. 270.

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eternidade. Outro olhar e outro afeto se voltam para baixo, ou seja, para as coisas corruptíveis do mundo terreno, para a temporalidade. Por isso, há também uma sabedoria que é do alto e uma sabedoria que é de baixo, que, no dizer do apóstolo Tiago é “terrena, carnal, diabólica” (Tg 3, 14-15). Esta sabedoria, diz Boaventura, “com toda a solicitude busca deleitar-se em toda a su-avidade, na a� uência das riquezas seculares e na experiência dos deleites sensuais e na excelên-cia ou na ambição das pompas mundanas” [58]. A solicitude por se deleitar na riqueza a torna terrena; a solicitude por se deleitar nos prazeres a torna carnal ou animal; e a solicitude por se deleitar na excelência e na pompa mundana a torna diabólica. Com efeito, o caráter distintivo do diabólico é a soberba, que é a raiz de todos os males.

É esta sabedoria que Paulo chama de “sa-bedoria do mundo” oposta à “loucura da cruz”, que é a sabedoria do cristão (Cfr. 1Cor 1, 18-30). É esta sabedoria que está destinada a ser destruída e reprovada por Deus. Com efeito, foi para dispersar esta sabedoria que Cristo morreu a morte de cruz. Foi para ensinar os homens a precaver-se com ela que Cristo se fez pobre, a� ito e humilde. Na loucura da cruz, Cristo es-colheu o que é contrário à sabedoria do mundo. Em lugar da riqueza, a pobreza; em lugar dos prazeres sensuais, o sofrimento; em lugar da so-berba, a humilhação [59]. Aos olhos da sabedo-ria do mundo, Cristo aparece como um estulto, um louco. A sapiência da cruz é amarga para o mundo; mas é doce para o cristão. A sapiência do mundo é doce para os homens mundanos; mas é amarga para os cristãos. Aqui pode-se evocar as palavras de Francisco de Assis em seu Testamento, quando ele fala de sua conversão em termos de mudança de sapiência, ou seja, em termos de mudança de sabor, uma mudança que acontece quando ele passa a viver com os lepro-sos:

O Senhor deu a mim, Frei Francisco, começar a fazer penitência assim: como estivesse em pe-

cado, parecia-me demasiadamente amargo ver leprosos. E o próprio Senhor me conduziu entre eles e � z misericórdia com eles. E afastando-se deles, aquilo que me parecia amargo, converteu-se em doçura da alma e do corpo; e, em seguida,

detive-me por um pouco e saí do mundo [60].

Boaventura também, neste contexto de suas conferências em Paris, também recorda aos seus ouvintes a necessidade de desprezar a sapi-ência terrena e apreciar a sapiência da cruz. Pois Cristo sofreu a loucura da morte de Cruz para esvaziar a sapiência do mundo; e ressuscitou e subiu ao céu para que o homem desejasse a sa-bedoria do alto e amasse a fonte da vida, que é Deus. Portanto, a máxima estultícia é o cris-tão tornar vã ou vazia a morte de Cristo, aban-donando a sapiência da cruz pela sapiência do mundo. Fazê-lo, seria ir contra a admoestação do Apóstolo de não se esvaziar e tornar vã a cruz de Cristo: ne evacuetur crux Christi (1 Cor. 1, 17) [61].

Entretanto, como é a sabedoria do alto, a sapiência cristã? Enquanto a sapiência do mundo é trevas, a sapiência do alto é luz, que descende do Pai das luzes (Tg 1, 17). É luz que sobrevém ao homem para iluminar as três po-tências da alma humana: a cognitiva, a afetiva e a operativa; ou seja, o intelecto, o afeto e a ação do homem. Ela ilumina a potência intelecti-va da alma como um esplendor da luz eterna, tornando o homem amigo de Deus. Ela é luz que sobrevém para alegrar a potência afetiva da alma: “ubi veritas illabitur animae et eam replet et laeti� cat” – “onde a verdade penetra a alma, a pleni� ca e a alegra” [62]. Em terceiro lugar, a luz da sapiência sobrevém à alma para corroborar a sua potência operativa. Ela dá ao homem a for-taleza para operar o bem [63].

Boaventura passa a falar de modo perso-ni� cado da sabedoria, regatando, assim, um uso dos escritos sapienciais do Antigo Testamento. Esta sabedoria é edi� cante. Ela edi� ca a Igreja e a alma, tornando-as morada de Deus. Na verda-de, ela ama habitar junto dos � lhos dos homens

O Confronto de São Boaventura com A Filosofi a nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e... | Marcos Aurélio Fernandes | 51 - 68

58| Coll. IX, n. 2, p. 272.

59| Coll. IX, n. 3, p. 272.

60| Fassini, D. (org.).Fontes franciscanas. Santo André: Mensageiro de Santo Antônio, 2004, p. 83.

61| Coll. IX, n. 4, p. 274.

62| Coll. IX, n. 6, p. 274.

63| Coll. IX, n. 7, p. 276.

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(Cfr. Pr 8, 31). Ela constrói uma casa ou uma morada para os homens, uma casa que tem sete colunas, e convida os homens a virem morar jun-to dela e alegrar-se com o seu banquete (Cfr. Pr. 9, 1-6). Mas, quais são as sete colunas da casa da sabedoria? Boaventura responde a esta per-gunta recorrendo às sete condições da sabedoria do alto, apresentadas pelo apóstolo Tiago (Tg 3,17) [64]. Boaventura comenta, então, as sete propriedades ou condições da sabedoria, vendo-as não só como colunas, mas também como de-graus. A primeira condição da sabedoria é a pu-reza em relação à sensualidade carnal; a segunda é a inocência na mente; a terceira é a moderação no falar; a quarta é a suavidade no afeto (in a� ec-tu); quinta, a liberalidade no agir (in e� ectu); sex-ta, a maturidade no julgar (in iudicio); e, sétimo, a simplicidade na intenção (in intentione) [65]. Esta sétima é a mais alta e a mais importante condição da sabedoria: a simplicidade. Pode-se evocar, aqui, a � gura de Francisco de Assis, ícone da simplicidade. Ele mesmo, na sua “saudação das virtudes”, ao saudar as virtudes como damas, que estão ordenadas em pares, saúda a simplici-dade como irmã da sabedoria. Ele chama a sa-bedoria de rainha e põe a simplicidade do seu lado: “Ave, rainha sabedoria, o Senhor te salve com tua irmã, a santa e pura simplicidade” [66]. Neste escrito poético, Francisco retoma o tema medieval da conexão das virtudes (apoiado em Tg 2,10), ao dizer:

Santíssimas virtudes, / o Senhor do qual vindes e procedeis, / vos salve a todas. / Não há, em ab-soluto, / homem algum no mundo inteiro que possa ter / uma de vós sem que morra primeiro. / Quem tem uma e às outras não ofende, a todas possui. / E quem a uma ofende, nenhuma possui e a todas ofende. / E cada uma delas confunde os vícios e pecados./ A santa sabedoria confunde Satanás e todas as suas malícias./A pura e san-ta simplicidade confunde toda a sabedoria deste

mundo [67].

No combate, pois, entre vícios e virtudes, a sabedoria vence a malícia diabólica, e a sim-

plicidade vence a sabedoria do mundo. Para Boaventura, a simplicidade é o contrário da hi-pocrisia, ou melhor, da duplicidade de coração ou de alma. Simplicidade é unidade: unidade de coração, de alma, de intenção. Ora, a intenção do coração está ali onde está o tesouro que o ho-mem ama. A intenção do coração do cristão está no alto, onde está Cristo, a vida [68]. Por isso, Boaventura retoma a imagem segundo a qual o homem é como uma árvore invertida: suas raízes estão no céu:

O modo de ser do homem se põe em modo con-trário ao da árvore em relação à raiz: a árvore, com efeito, tem a raiz em baixo, o homem, no alto; também o edifício espiritual tem o funda-mento no alto, enquanto aquele corporal o tem

em baixo [69].

Boaventura, pois, em nome da sabedoria do alto, combateu a sabedoria terrena. Pode-se, sem mais, identi� car a � loso� a com a sabedoria terrena? Sim e não. Sim, caso o cristão tome a � loso� a como autossu� ciente, fechada em sua imanência, tornando, assim, vã a cruz de Cristo, ou seja, a loucura da cruz, que oculta em si a sa-bedoria de Deus, a sabedoria do alto. Não, caso o cristão assuma a � loso� a como via para ciên-cias mais elevadas, quais sejam, a ciência da fé, a ciência da caridade, a ciência da visão beatí� ca. Ou, dito de modo melhor, caso o cristão subsu-ma a � loso� a como iluminação ou claridade que vem do “Pai das luzes” e se torna capaz de fazer a “reductio”, ou seja, de reconduzi-la à sua origem, ao seu princípio fontal, reconhecendo em Deus a causa do ser, a razão do inteligir e a ordem do viver. Sim, caso o cristão não reconheça os limites, as fraquezas, as impotências e impossi-bilidades do intelecto humano abandonado a si mesmo, bem como a impregnação nela do modo de ser de uma sabedoria terrena, carnal, animal, in� ada de soberba. Não, caso o cristão reconheça na � loso� a uma possibilidade impossível, uma potência impotente, e, na loucura da cruz, a im-possibilidade possível, a impotência que é mais forte do que toda a potência humana. Filoso� a e

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64| Coll. IX, n. 8, p. 276.

65| Coll. IX, n. 9, p. 276.

66| Fassini, D. (org.). Fontes franciscanas. Santo André: Mensageiro de Santo Antônio, 2004, p. 131.

67| Fassini, D. (org.). Fontes franciscanas. Santo André: Mensageiro de Santo Antônio, 2004, p. 131-132.

68| Coll. IX, n. 17, p. 284.

69| Coll. IX, n. 17, p. 284.

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sabedoria cristã, por si mesmas, são heterogêne-as. Mas, em concreto, se na existência do cristão elas, têm o poder de abrir-lhe riqueza imensa de possibilidades de saber e de viver. Todo o em-penho � losó� co e teológico de Boaventura foi de cavar para conquistar o tesouro da ciência e da sapiência, o qual está escondido, em última análise, em Cristo [70]. Combatendo a � loso� a em seu tempo, Boaventura � losofou, pois, como disse Pascal, “zombar da � loso� a é verdadeira-mente � losofar” [71].

Obras citadas

Agostinho. (1994). A Trindade. São Paulo: Pau-lus.

Areopagita, Pseudo Dionisio. (1990). Obras completas del Pseudo Dionisio Areopagita. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos.

Aristóteles. (1993). Meta� sica. Milano: Rusco-ni.

_________ (2005). Órganon. Bauru-SP: EDI-PRO.

Boaventura. (1995). Opere di San Bonaventu-ra: Semoni Teologici/2. Roma : Città Nuova.

___________(1999). Escritos � losó� co-teo-lógicos volume I. Porto Alegre: EDIPUCRS / USF.

Chesterton. (2008). Ortodoxia. São Paulo: Mundo Cristão.

Fassini, D. (. (2004). Fontes Franciscanas. San-to André-SP: Mensageiro de Santo Antônio.

Rombach, H. (1977). Leben des Geistes - Ein Buch zur Fundamentalgeschichte der Mens-cheit. Freiburg / Basel / Wien: Herder.

Tonna, I. (1992). Lineamenti di Filoso� a Fran-cescana: Sintesi del Pensiero Francescano nei sec. XIII-XIV. Roma: Tau.

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70| Coll. IX, n. 17, p. 284.

71| Pascal, B. Pensamen-tos. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 237 (fr. 513/4).

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RESENHAS

Resenhas | Reviews

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O Desespero Humano*

Com Kierkegaard inicia-se o existencialis-mo, pois ele ousou evidenciar que o único res-ponsável por dar signi� cado à vida é o próprio indivíduo ao vivê-la de forma intensa e sincera. Ele foi o primeiro a descrever a angústia como experiência fundamental do ser livre e colocar-se em situação de escolha. Junto com Nietzsche antecipou a crise da razão do século XX e in-� uenciou Sartre ao incluir a si mesmo no pensar.

Kierkegaard apresenta o desespero como uma doença mortal e de� ne o homem, como um espírito que não se estabelece com uma relação externa, mas apenas consigo mesmo. Tal ligação consiste em orientar-se com a sua própria in-terioridade, numa dependência entre o in� nito e o � nito, entre o temporal e o eterno, entre a necessidade e a liberdade.

Desta corelação nascem as formas do ver-dadeiro desespero, sendo que, na tentativa de tornar-se independente, a consciência do “eu” surge da necessidade do desprender-se daquele que estabeleceu a relação. Se, no entanto, o ho-mem que se desespera tem consciência do seu desespero e percebe que este nada tem de ex-terno, então a busca por libertar-se, torna-se um desespero maior e ainda mais verdadeiro, cuja conclusão é que quanto mais se aprofunda para libertar-se, mais afunda. A discordância na rela-ção entre o externo e o interno resulta num de-sespero orientada sobre si próprio e re� ete-se até o in� nito, na mesma relação como o poder que o gerou. Neste estado se extingue completamente o desespero, quando guiado por si mesmo, o “eu” da consciência descobre Aquele que o criou.

Buscando a identidade do desespero como doença mortal, o autor distingue o desespero virtual do desespero real. Considerando o de-

José Luiz Nauiack*

sespero como uma vantagem e uma imperfeição que distancia o homem de qualquer outro ani-mal, pois na comparação com a capacidade de andar em pé, atribui a este poder um sinal de progresso e de sublime espiritualidade.

Kierkegaard considera poder desesperar-se como uma profunda vantagem em dialética com a miséria, visto que a relação do possível com o imaginável apresenta-se também na forma de poder tornar se aquilo que se deseja, como a passagem do possível para o real ou num cresci-mento do “eu” em direção ao si-mesmo. Se não for considerado nesta relação, desesperar nada mais é do que um sofrimento como uma doença ou como a morte. Assim sendo, ele apresenta o desespero como uma dádiva recebida de Deus no momento da formação do ser.

O desespero é uma enfermidade mortal mais do que qualquer outra doença ao atacar a porção nobre do “eu”. Sem acabar com a vida física, o homem vive em agonia interminável. Neste caso, nem a morte pode salvá-lo, pois aqui a doença com seu sofrimento é simplesmente o desespero de não poder morrer.

Tal desespero vem da relação que a síntese estabelece consigo mesma, ou seja, da relação do eu consciente sobre a profundidade desconheci-da do si-mesmo. Sendo expressa também como o espírito que une o “eu” com o si-mesmo. E nela jaz a responsabilidade que depende todo o desespero de ousar ser o si próprio, ou seja, em tornar o sujeito coletivo num individuo autenti-co e exclusivo.

No entanto, antes da transformação com-pleta do ser, o desespero não se reduz e muito pelo contrário, apenas amplia na mesma pro-

* José Luiz Nauiack

Matemático, Psicólogo

e Pós-Graduado em

Psicologia e Religião

([email protected])

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porção que desenvolve-se a consciência e os seus progressos medem a intensidade sempre crescente do desespero, quanto mais aumenta a consciência, mais intenso se torna o desespero.

Para que o “eu” se transforme são igual-mente essenciais o que é possível e o que é ne-cessário. Se desespera tanto pela falta de um quanto pela do outro. A infelicidade de um “eu” deste tipo não está em nada ter feito neste mun-do, mas em não ter encontrado a consciência de si mesmo, em não ter percebido que este eu é o seu. Diante do si-mesmo nenhum homem se reconhecerá, pois ninguém pode reconhecer-se em um espelho se antecipadamente não se tiver encontrado.

Apesar de poder evoluir, o homem não o faz facilmente, prefere manter-se em sua co-modidade, como no exemplo de uma casa com diversos andares. Adega no sobsolo, térreo, pri-meiro andar, cada um com espécies diferentes de moradores, comparando-se a vida em cada um deles, apesar de tudo, a maioria preferiria a ade-ga no subsolo, onde pode encontrar tudo à mão e onde o in� nito do horizonte não os provoque.

Todos os homens são uma síntese com � -delidade espiritual, preferindo viver na categoria dos sentidos, sendo contrariado quando convi-dado a viver no primeiro andar, por considerar que pode viver onde quiser, pois, a� nal, a casa lhe pertence.

Para Kierkegaard o desespero não é carac-terístico dos jovens e que se perde com a matu-ridade. Mostra que tanto o velho, que revive nas lembranças do passado se desespera sem poder se arrepender dele, assim o jovem se desespera pelo desconhecido que há de vir. Os dois deses-peros se assemelham e possibilitam o crescimen-to, mas enfatiza que “...é loucura pensar que a fé e o bom senso nos podem nascer tão natural-mente como os dentes, a barba e os demais...”, de forma que o viver sem buscar o “eu” verdadeiro é um desespero inocente e viver buscando-o é um in� ndável desespero na direção do crescimento.

O desespero no qual o homem deseja ser ele mesmo, ou desespero desa� o se serve da eter-nidade e por isso mesmo se aproxima da ver-dade, e é por estar próximo a ela que vai mais longe. Este desespero conduz à fé. E graças à eternidade consegue a coragem de se perder para poder novamente encontrar-se na imensidão do si-mesmo.

“O Desespero Humano”, de Sören Kierkegaard,

publicado em 2006 em São Paulo/Br pela Martin Claret.

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trevas da eternidade. Mas algo aconteceu. Que-brou-se o encanto. A poesia do autor perfaz o ateísmo metodológico e questiona: Desapareceu a religião? É certo que não, porém, foi expulsa dos centros do saber cienti� co e do campo das decisões que determinam a vida num todo. Ven-do desta perspectiva, confessar ser um religioso seria o mesmo que confessar ser habitante de um mundo encantado. Assim Alves certi� ca que a religião não se liquidaria com a abstinência dos atos sacramentais e a ausência dos lugares sagra-dos, da mesma forma como o desejo sexual não pode ser eliminado pelos votos de castidadea. A de� nição de religião, portanto, poderia girar-se em torno do comportamento exótico como pre-sença próxima da expressão pessoal, sendo este comportamento um espelho do que se vê.

Se o autor relembra que “o homem é a úni-ca criatura que se recusa ser o que ela é”, igual-mente intenta revelar um mistério antropológi-co que deseja criar o chamado “objeto desejado ideal”, numa visão psicanalítica de símbolos da ausência. A psicanálise, conforme Alves, sugere que o homem faz cultura a � m de criar os obje-tos de seu desejo. Ele procura um mundo onde possa ser amado. Daí, a religião surge cheia de símbolos, desejos e gestos que se tornam reli-giosos quando os homens os batizam como tais. Religião, então, seria certo tipo de fala, discurso, uma rede de símbolos.

Esta religião opera no exílio do sagrado. Os símbolos vitoriosos tornam-se verdade sim-plesmente porque foram em meio a uma história cheia de eventos dramáticos que se forjaram os argumentos que defendem a pergunta: “O que é religião?”. Estas verdades giravam em torno da salvação, enfermos, caridade, lei... tudo tinha

O que é Religião?

Como explicar a distância entre o conhe-cimento e a experiência? Como responder as perguntas sobre o sentido da vida e da morte? O que diz a linguagem religiosa? Poderão os sím-bolos, nascidos da imaginação, competir com a e� cácia daquilo que é material e concreto? Pos-suirá o mundo relações com a solidez das coisas naturais ou com as espirituais? E o discurso re-ligioso? Qual é? Como é sua linguagem? Como podemos duvidar da e� cácia da religião? Como poderá a ciência negar a religião se ela é real? Que são as religiões? Por que não entendê-las da mesma forma como compreendemos os sonhos? Por que Sigmund Freud não tinha simpatia com as religiões assim como tinha simpatia para com os sonhos? Como a� rmar o sentido da vida pe-rante o absurdo da existência, representado de maneira exemplar pela morte que reduz a nada tudo o que o Homem construiu e esperou? En-� m, todas estas perguntas encontrarão respostas psicológicas, psicanalíticas, empíricas, � losó� cas e sociológicas no livro do versado autor Rubem Alves.

Escritor mineiro, entre os mais de cento e vinte livros produzidos, possui obras traduzidas em várias línguas. Como a si mesmo descreve, é pedagogo, poeta e � lósofo de todas as horas, cro-nista do cotidiano, contador de estórias, ensaísta, teólogo, acadêmico, autor de livros para crianças, psicanalista. Independente das críticas, Alves, de fato, é um dos intelectuais mais famosos do Brasil. Decerto, o livro “O que é Religião?” é um exemplar digno de atenção na tentativa de res-ponder as questões introduzidas nesta resenha.

Dentro das perspectivas medievais e his-tóricas, o universo físico se estruturava em tor-no do drama da alma humana em meio a luz e

Ângelo Vieira da Silva *

* Ângelo Vieira da Silva

Mestrando em

Ciências da Religião

pela Faculdade Unida

de Vitória/ES com

ênfase na Análise do

Discurso Religioso,

Bacharel em Teologia

pela Universidade

Presbiteriana Mackenzie/

SP e pelo Seminário

Teológico Presbiteriano

Rev. Denoel Nicodemos

Eller/MG (intracorpus).

É Ministro do Evangelho

na Primeira Igreja

Presbiteriana do

Brasil na cidade de

Resplendor/MG([email protected])

O que é Religião? | Ângelo Vieira da Silva | 70- 71

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um propósito de� nido. Deus controlava tudo e a todos. É justamente aqui que se encontra o ca-ráter essencialmente religioso nos símbolos, bem como onde são exilados: se o universo religioso é encantado e a ciência faz este univer-so perder sua aura sagrada, todo o discurso reli-gioso é classi� cado como engodo consciente ou perturbação mental. Os homens são os produto-res de suas concepções. É ele quem faz a religião e não a religião quem o faz. Não havendo lugar para a religião, a mesma é exilada e considerada inútil para mudar mudar as condições de vida.

Alves amplia a resposta de sua obra. Se a religião é um sonho da mente humana, tam-bém é sua voz do desejo. Ele indaga: por que não entender a religião da mesma forma como se entende os sonhos? Considerando a de� nição de Sigmund Freud, “os sonhos são as religiões dos que dormem e religiões são os sonhos dos que estão acordados”, postula que nesta relação o homem vive em guerra permanente consigo

mesmo, por � m, ele não sabe o que quer ser nem o que desejar. A religião, portanto, é a mensagem do desejo... “conta-me os teus sonhos e decifra-rei o teu coração, teu Deus e quem és”.

Finalmente, é importante reconhecer que a religião vive o que qualquer outra ciência expe-rimenta: subscrição e críticas, resistência e acei-tação, proteção ou agressão. Sim, os que acusam dizem ser ela uma louca que balbucia coisas sem nexo; os que a defendem a� rmam que sem ela o mundo não pode existir e que, quando desven-damos os seus símbolos, o homem se contem-pla como num espelho. Neste embate, todavia, é fundamental admitir que todas as ciências são obrigadas a enfrentar um ateísmo metodológico e nada mais.

ALVES, Rubem. O que é Religião? 13ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 1984, 133 pp.

O que é Religião? | Ângelo Vieira da Silva | 70- 71

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para-se a reavaliação de todos os valores com o processo de individuação, assim como as metas de ambas: o surgimento de uma nova persona-lidade, o devir, o Si-mesmo, ou mesmo a ressur-reição de Deus.

Frente a frente as ideias de ambos os pen-sadores sobre esses problemas, a autora aponta-nos que tipo de leitura Jung faz sobre Nietzsche: a leitura da obra do � lósofo, ou do próprio � -lósofo, uma análise psicológica de seu trabalho, onde este seria apenas uma con� ssão pessoal? Zaratustra foi o resultado de uma patologia me-galomaníaca ou a iluminação, a lucidez de uma consciência brilhante e, até mesmo, divina? Tudo isso, exposto com uma beleza suave, cativante e ao mesmo tempo instigadora, que leva o leitor a querer mais.

Em Jung leitor de Nietzsche, Sonia Lyra nos traz uma crítica inédita no Brasil, em-bora já realizada fora daqui. A obra tem o mérito de trazer à luz, além da leitura de Nietzsche por Jung, a in� uência e contribuição das ideias do � lósofo na construção da Psicologia Analítica. Um trabalho essencial não só para � lósofos e psicólogos, mas para todos aqueles interessados na contribuição cultural destes dois pensadores.

“Jung leitor de Nietzsche: acerca da ‘morte de Deus’”

Sonia LyraEditora Biblioteca Ichthys

Curitiba, 2012.

Zaratustra em análise: Uma leitura viva sobre a “morte de Deus”

Jung leitor de Nietzsche: acerca da “morte de Deus” (Biblioteca Ichthys, 2012, 193 p.) da psicóloga dra. Sonia Lyra estabelece uma crítica da leitura que o psicólogo Carl Gustav Jung faz da � loso� a de Friedrich Nietzsche, particular-mente da obra Assim falou Zaratustra, a partir dos escritos do próprio Jung, em especial os Se-minários Nietzsche’s Zarathustra.

Nos três capítulos que compõem a obra, o foco é a interpretação que Jung faz do anún-cio da “morte de Deus” expresso por Nietzsche: como essa ideia é compreendida e articulada pelo próprio � lósofo, denunciando a condição de toda cultura e moral cristã, o niilismo passi-vo; a leitura feita por Jung sobre o Zaratustra de Nietzsche e o lugar que esta ocupa na obra do psicólogo suíço; o caráter da interpretação jun-guiana da “morte de Deus”; e as contribuições da � loso� a nietzscheana para a compreensão das condições psicológicas do homem.

A autora nos leva, de forma simples e agradável, a passear pelos problemas expostos na questão da “morte de Deus” e sua consequência, o niilismo, compreendido como uma rejeição ra-dical dos valores, daquilo que dá sentido à vida humana. Por isso, para Nietzsche, a necessidade de uma reavaliação de todos os valores, já que a moral cristã, niilista, petri� ca valores em mol-des � xos, canônicos. Essa reavalição de valores aponta para além do homem, para a superação da dualidade que se funde em uma unidade, um alcançar-se de novo a si mesmo. E o que seria alcançar-se a si mesmo, senão devir?

Mergulhando-nos nos termos próprios da Psicologia Analítica, tais como libido, psique, inconsciente coletivo e, em especial, os conceitos de individuação e de Si-mesmo (Selbst), com-

Murilo Augusto Diorio*

* Murilo Augusto Diorio

Psicólogo e especialista

em História e Filosofia

da Ciência pela

UEL; especialista em

Psicologia Analítica e

Religião Oriental e

Ocidental pelo Ichthys

Instituto (em curso).

([email protected])

Zaratustra em análise: Uma leitura viva sobre a “morte de Deus” | Murilo Augusto Diorio | 72

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CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PRAno 2 | número 2 | 2013

Já estamos recebendo e selecionando para a próxima edição. Pesquisadores(as) e professores(as) podem contribuir com a Coniunctio. O trabalho a ser submetido deve estar enquadrado em uma das seguintes categorias: Artigo científi co, Dossiê, Ensaio. A publicação se destina a divulgar resultados inéditos de estudos e pesquisa.

A publicação ou não do material enviado será definida pela Comissão Editorial a partir dos critérios propostos pelo Conselho Editorial, integrado por professores(as) e especialistas de várias Universidades e Centros de Estudos.

As propostas para publicação devem ser originais, não tendo sido publicadas em qualquer outro veículo do país.

Envie seu artigo, de acordo com as Normas Reguladoras - ABNT, para [email protected].

O texto deve seguir o novo acordo ortográfi co da Língua Portuguesa.

Título, resumo e palavras-chave devem vir em português e também em inglês.

Abaixo do título, o nome do autor, com um asterisco. O asterisco remete a um breve perfil – sua(s) respectiva(s) qualificação(ões) e instituição(ões) a que pertence(m) e e-mail de contato. Sendo mais de um autor, coloca astericos também nos demais autores – dois astericos no segundo, três no terceiro... A numeração de notas de rodapé só inicia com a primeira nota.

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CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR

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Ano 2 | número 2 | 2013

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Coniunctio – Revista de Psicologia e Religião é um periódico científico, eletrônico, semestral, criado e mantida pelo ICHTHYS INSTITUTO DE PSICOLOGIA E RELIGIÃO, em 2012, com o objetivo de publicar pesquisas, artigos, resenhas, críticas e entrevistas que contenham temas relacionados à Psicologia (Psicologia Geral, Psicologia Analítica e especialmente Psicologia da religião) e à Religião, em diálogo com áreas afins: Filosofia, Arte, Mitologia, Teologia, Sociologia, etc. A ideia é fomentar a área de pesquisa em Psicologia da Religião - esta “filha mais nova” da Psicologia, no Brasil na contemporaneidade.