retrospectiva estadão - 2004

16
Produto: ESTADO - ESPECIAL - 1 - 31/12/04 Composite H1 - SÃO PAULO Produto: ESTADO - ESPECIAL - 1 - 31/12/04 Composite H1 - SÃO PAULO 04/05 Tortura em Abu Ghraib (Michael Ignatieff)> Bush, triunfal e acossado (Dorrit Harazim) > Ara- fat (Anthony Lewis) > Arquivos da ditadura (Flá- vio Tavares) > Falsidades do Código da Vinci (Ma- rio Sergio Conti) > Definições de craque (Daniel Pi- za) > Crescimento: agora vai? (Armando Caste- lar Pinheiro) > Incertezas da prosperidade (Albert Fishlow) > Violência: enigmas e avanços (Alba Zaluar) > Dirigismo vulgar e tardio (Arnaldo Jabor) > Soja, transgênica ou não, se alastra (Marcos Sá Corrêa) > Fome e miséria administrati- va (Lena Lavinas) > Mercosul, Haiti,China (Marcos Azambu- ja) > Aborto e direitos huma- nos (Débora Diniz) travessia “Óculos para ver o futuro”. Rubem Grillo. Xilogravura 5.5 x11.5 cm.1995 PB COR O ESTADO DE S. PAULO H SEXTA-FEIRA 31 DE DEZEMBRO DE 2004

Upload: dlimasouza

Post on 14-Jun-2015

7.084 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Retrospectiva Estadão - 2004

Produto: ESTADO - ESPECIAL - 1 - 31/12/04 CompositeH1 - SÃO PAULO

Produto: ESTADO - ESPECIAL - 1 - 31/12/04 CompositeH1 - SÃO PAULO

04/05‘Tortura em Abu Ghraib (Michael Ignatieff)>Bush, triunfal e acossado (Dorrit Harazim)>Ara-fat (Anthony Lewis)> Arquivos da ditadura (Flá-vioTavares)>FalsidadesdoCódigodaVinci (Ma-rioSergioConti)> Definiçõesdecraque (Daniel Pi-za)>Crescimento: agora vai? (Armando Caste-lar Pinheiro)> Incertezas da prosperidade(Albert Fishlow)> Violência: enigmas e avanços(Alba Zaluar)> Dirigismo vulgar e tardio (ArnaldoJabor)> Soja, transgênica ou não, se alastra(MarcosSáCorrêa)>Fome e miséria administrati-va (LenaLavinas)>Mercosul,Haiti,China(MarcosAzambu-ja)> Aborto e direitos huma-nos (Débora Diniz)

travessia

“Óculos para ver o futuro”. Rubem Grillo. Xilogravura 5.5 x11.5 cm.1995

PB COR

%HermesFileInfo:H-1:20041231:

O ESTADO DE S. PAULO H SEXTA-FEIRA31 DE DEZEMBRO DE 2004

Page 2: Retrospectiva Estadão - 2004

Produto: ESTADO - ESPECIAL - 2 - 31/12/04 CompositeH2 - SÃO PAULO

Produto: ESTADO - ESPECIAL - 2 - 31/12/04 CompositeH2 - SÃO PAULO

Oanoem

12 DE JUNHO – Lula e a primeira-dama Marisa Letícia em arraiá na Granja do Torto, no qual comemoraram 30 anos de casamento – ao contrário das fotos à direita, nas quais posoupara a imprensa, divulgação de imagem feita por convidado da festa junina irritou presidente

23 DE OUTUBRO – Marta chora em encontro com idosos na Vila Prudente

9 DE JUNHO – Os senadores Heloisa Helena e Eduardo Suplicy sebeijam no plenário do Senado

11 DE FEVEREIRO – De estilingue a vidraça: ministro do Trabalho,Ricardo Berzoini, leva torta na cara

TRAVESSIA ‘04/05

❝Um dia quero ficar grávida. Aí vãodizer: ‘Consumou ogolpe.’ Por que eu não posso gostardele e ele de mim?❜❜●●Daniela Cicarelli, sobre o namoro com Ronaldo

AE–12/6/2004

15 DE OUTUBRO – Serra comemora a vitória na disputa pela Prefeitura

EVILAZIO BEZERRA/AE

30 DE AGOSTO – Incêndio na Favela do Buraco Quente, zona sul de São Paulo

TASSO MARCELO/AE

DID

AS

AM

PA

IO/A

E–8

/12/

2004

❝Privilegiadossão aqueles quepodem pagarImposto de Renda,porque ganhamum pouco mais❜❜●●Lula, em resposta a funcionáriosde fábrica de automóvel no ABC

❝Sou melhor piloto do que o Schumacher ❜❜

●●Rubens Barrichello, em reportagem publicada no jornal alemão ‘Bild’.

❝Queria cumprimentar os gays, aslésbicas e os transgênicos ❜❜●●Gastão Wagner, secretário-executivo do Ministérioda Saúde, em evento oficial contra o precoceito em rela-ção a homossexuais

❝A virgindadedo PTacabou❜❜●●Jutahy Junior, líder tucano na Câmara dosDeputados, sobre o escândalo Waldomiro Diniz

JOEDSON ALVES/AE

J.F. DIORIO/AE

27 DE OUTUBRO – Caso Serginho abala futebol

31 DE AGOSTO – Daniela e Ronaldo, casal do ano

JOSÉ LUIS DA CONCEIÇÃO/AE

❝O Brasilsó não fazfronteira comChile, Equador eBolívia❜❜●●Lula, esquecendo da longa faixade fronteira com a Bolívia

DID

AS

AM

PA

IO/A

E–1

0/5/

2204

❝Muitas vezes aspessoas gritam atésem saber por queestão gritando❜❜●●Lula, ao ser vaiado por estudantesem Alagoas

❝O que é que eu tenho a ver com isso?Nada! Eles têm uma visão, nós temosoutra, eles podem estar certos, nóspodemos estar certos, ambos podemos es-tar errados, há várias possibilidades ❜❜●●Gilberto Gil, ministro da Cultura, sobre a criação do Fórumpelo Desenvolvimento do Audiovisual e do Cinema (FAC)

❝“É a autoconfiança.Sem dúvida, ela se achauma grande administrado-ra.❜❜●●José Serra, respondendo a umarepórter sobre qual era a maior virtudede Marta Suplicy

❝Se eu fosse cientista, podemter certeza, estaria bem perto dedescobrir a cura do câncer❜❜●●Paulo Maluf, durante a campanhaeleitoral em São Paulo

❝Este é um governoque não rouba nem dei-xa roubar❜❜●●José Dirceu, ministro-chefe da Casa Civil, no augedo escândalo com seu assessor Waldomiro Diniz

❝“O que tenho sentido depreconceito e perseguiçãoé inacreditável. É muitoduro suportar o que estousuportando❜❜●●Marta Suplicy, chorando, duranteevento de campanha

FILIPE ARAUJO/AE

AGLIBERTO LIMA/AE

PB COR

%HermesFileInfo:H-2:20041231:H2SEXTA-FEIRA, 31 DE DEZEMBRO DE 2004 ● O ESTADO DE S.PAULO

Page 3: Retrospectiva Estadão - 2004

Produto: ESTADO - ESPECIAL - 3 - 31/12/04 CompositeH3 - SÃO PAULO

Produto: ESTADO - ESPECIAL - 3 - 31/12/04 CompositeH3 - SÃO PAULO

frasese fotos

22 DE MARÇO – Soldado britânico atingido por coquetel molotovem Basra, no Iraque

29 DE AGOSTO – Ex-padre derruba Vanderlei Cordeiro de Lima durante a maratona, nas Olimpíadas

11 DE MARÇO – Policial caminha ao lado de trem destruído em atentado na Estação de Atocha, Madri

❝A primeira onda era tão bonita que tira-va o fôlego❜❜●●Jochen Neumeyer, jornalista, descrevendo a chegada daonda provocada pelo terremoto na ilha de Ko Lanta, Tailândia

KOJI SASAHARA/AP

❝Ficamos com medo de um tigrede papel! É preciso dizer claramente:o rei está nu!❜❜●●Fernando Henrique Cardoso, em crítica a Lula e ao PT

6 DE MAIO – Imagem de soldado americana arrastando presoiraquiano choca o mundo

30 DE DEZEMBRO – Vanderlei Luxembugo desembarca na Espanha,como o novo técnico do Real Madrid

28 DE DEZEMBRO – Ilha de Phuket, Tailândia, arrasada por tsunami que matou mais de 100 mil na Ásia

13 DE SETEMBRO – ‘Batman’ em protesto no Palácio de Buckingham

3 DE SETEMBRO – Mulher chora ao ver corpo do filho morto em operação de resgate de reféns emescola na província russa de Beslan: terror checheno

TRAVESSIA ‘04/05

❝Ela fala inglês melhordo que eu❜❜

●●George W. Bush, durante a campanha eleitoral, ao brincar sobre a influênciada mulher, Laura, em sua vida

❝O jogador seautoproclamar omelhor é pretensãodemais❜❜●●Ronaldo, o Fenômeno,comentando a declaraçãode Romário

❝Da geração de 70até hoje, eu sou omais importantejogador que surgiu noBrasil❜❜●●Romário, sempre polêmico

REUTERS

PEDRO ARMESTRE/AFP

NICOLAS ASFOURI/AFP

❝Pela primeiravez em muitotempo sinto queestou usando océrebro❜❜●●Victoria Beckham, ex-integrantedo grupo Spice Girls e mulher do joga-dor inglês David Beckham, ao lançarlinha de calça jeans

❝Creio que, se falarmos com a filha de DickCheney, que é lésbica, ela lhe dirá que é comonasceu❜❜●●John Kerry, candidato democrata, no último debate antes da eleição para apresidência dos Estados Unidos, mencionando a filha do candidato a vice republi-cano quando perguntado sobre homossexualismo

❝Eu errei.É umacoisaqueacontece❜❜●●Daiane dos Santos,sobre a perdada medalhade ouro em Atenas

ATEF HASSAN/REUTERS

DEDDEDA STEMPER/AP

SERGEI KARPUKHIN/REUTERS–3/9/2004 ANDREA COMAS/REUTERS

PB COR

%HermesFileInfo:H-3:20041231: H3O ESTADO DE S.PAULO ● SEXTA-FEIRA, 31 DE DEZEMBRO DE 2004

Page 4: Retrospectiva Estadão - 2004

Produto: ESTADO - ESPECIAL - 4 - 31/12/04 CompositeH4 - SÃO PAULO

Produto: ESTADO - ESPECIAL - 4 - 31/12/04 CompositeH4 - SÃO PAULO

Um ano de vitórias no front externoBrasil aproveita a conjuntura internacional para exportar mais e conquistar prestígio com ações como a no Haiti

Marcos Azambuja*

O ano de 2004 deixa um saldobastante expressivo para a polí-tica externa brasileira. O qua-dro internacional – descartadoo impasse em que se transfor-mou a malfadada invasão do Ira-que e a intratabilidade crônicadas relações entre Israel e a Pa-lestina – foi marcado por umcrescimento generalizado. Aeconomia internacional atraves-sa um período de expansão e oresultado das eleições america-nas teve um efeito positivo so-bre os mercados.

O Brasil – quase sempre emdescompasso com as tendên-cias mundiais – estava, destavez, pronto para aproveitar obom momento e expandir de for-ma notável suas exportações evaler-se de sua consolidação de-mocrática e da racionalidade eprevisibilidade de seu comporta-mento macroeconômico paratransmitir ao mundo a impres-são de que, finalmente, o paísdo futuro estava preparado parao presente.

O presidente da República eseu chanceler podem reclamar,com justiça, uma parcela impor-tante de crédito pelos resultadosalcançados e pelo fato de que oBrasil continua a subir degrausna hierarquia nacional. Amploreconhecimento é devido à equi-pe econômica, cujo comporta-mento sugeriu que a racionalida-de talvez tenha vindo ao Brasilpara ficar.

Não se pretende sugerir aquiqualquer tipo de milagre ou ima-ginar um coelho providencialque saltasse da cartola diplomáti-ca. Uma longa cadeia de acer-tos, internos e externos, produ-ziu uma virtuosa sinergia que su-gere que 2004 não foi um AnnoMirabilis, mas, possivelmente,o início de um ciclo em que oPaís poderá crescer de formamais sustentável.

Por resultados tão significati-vos pode-se distribuir crédito avários atores, atuais e passados,sem que a nenhum falte uma jus-ta parcela de reconhecimento.

Cabe ao presidente José Sar-ney o crédito de ter renovado erelançado a relação com a Ar-gentina e desmontado projetosespaciais e nucleares suspeitos.Sua aposta no Mercosul e no re-forço da democracia no conti-

nente foi um passo decisivo. Emvolta do entendimento entre oBrasil e a Argentina arrumou-sea América do Sul.

A Fernando Henrique Cardo-so cabe a grande parcela de cré-dito por ter colocado o Brasil fo-ra do ciclo caótico da inflação elivre das ingenuidades volunta-ristas e ter mostrado que no Bra-sil, com ele, se consolidava umperíodo marcado pela racionali-dade e civilidade. Homem domundo, exerceu, com naturalida-de, a diplomacia presidencial.

Mesmo do presidente Fernan-do Collor pode-se dizer que in-tuiu que um longo ciclo da vida

internacional chegava ao fim eque o Brasil precisava rever to-da sua agenda externa.

Ao presidente Luiz Inácio Lu-la da Silva, em primeiro lugar,pela surpreendente e corajosaadesão a políticas que nos trou-xeram tranqüilidade interna econfiança externa e por ter con-seguido que suas preocupaçõessociais não fossem perseguidascom o sacrifício de uma credibi-lidade econômica e fiscal tão du-ramente conquistadas. A perso-nalidade carismática e construti-va de Lula é um ativo com quepodemos contar.

Bem armado, assim, o jogoao longo dos últimos 15 anos,em 2004 assistimos ao poderosoconsórcio que se cria quando in-teragem virtu e fortuna.

De novo – e talvez como nun-ca desde os idos da década de70 – a política externa desempe-nhou um papel importante na vi-da nacional. Foi motor do cresci-mento através das exportações eda atração de investimentos e onosso bom desempenho externonos ajudou muito a atravessar oáspero caminho de 2003.

Afastadas as demonologiasdo nosso relacionamento com oFundo Monetário Internacional(FMI) e a Organização Mun-dial do Comércio (OMC), oBrasil passou a atuar nesses fo-ros com mais desenvoltura etranqüilidade.

Os grandes foros de negocia-ção passaram a ser utilizadoscom mais inteligência e maiorpragmatismo. Passamos a conta-bilizar vitórias em disputas co-merciais com alguns gigantes.Passamos a explorar novasoportunidades e continuamos anos distanciar dos sovados cha-vões do nosso discurso político.Ainda há um longo caminho apercorrer. Muitos atores públi-cos brasileiros ainda têm os há-bitos do discurso ineficiente,dos apelos inócuos e da gesticu-lação vazia.

O País que já somos não po-de mais fazer apelos e exorta-ções altissonantes. Não pode,por exemplo, reclamar – paraque ninguém ouça e muitos sor-riam – um novo Plano Mar-shall. Acompanha o nossomaior peso a necessidade de ser-mos levados a sério.

NEGOCIAÇÕESNos nossos três grandes tabulei-ros de jogo – o do Mercosul, oda construção da Área de LivreComércio das Américas (Alca)e das negociações do Mercosulcom a União Européia (UE) –não houve muito progresso efeti-vo em 2004. Atuamos, contudo,com firmeza e com lúcida aten-ção aos nossos interesses nessestrês exercícios associativos.

Quanto ao Mercosul, uma pa-lavra apenas: é excessiva a irrita-ção de setores da sociedade bra-sileira com os nossos parceiros,e com a Argentina em particu-lar. A nossa diplomacia, ao per-severar no rumo iniciado em As-sunção e confirmado dez anosdepois em Ouro Preto, avançano caminho certo.

O Mercosul não é uma con-quista descartável. É um proces-so incompleto e imperfeito e te-mos também uma parcela de res-ponsabilidade por suas falhas, in-clusive ao resistir a qualquer ten-tativa de institucionalização,mesmo tímida, que daria maiorprevisibilidade ao jogo e umautilização menos freqüente e me-nos dramática da diplomacia mi-nisterial e presidencial.

Sobre os projetos de associa-ção hemisférica e com a UE, oano que vem deverá permitir orelançamento das negociaçõesque agora se circunscrevem àidentificação cautelosa e prelimi-nar de possíveis perdas e ganhos

e a uma avaliação prudente deriscos e oportunidades.

Vai longe aquele período deintensa e disparatada emociona-lidade que levou mesmo o nossoEpiscopado a propor um plebis-cito sobre um projeto comercialque simplesmente ainda nãoexistia.

Avançamos naquilo que maisnos importa: o acesso aos merca-dos (a que já me referi, às con-quistas na OMC e à nossa novae competente agressividade ex-portadora). Na busca de acessoaos círculos mais fechados dopoder internacional e às tecnolo-gias de ponta.

Soubemos resolver uma ques-tão com a Agência Internacionalde Energia Atômica (AIEA) en-volvendo nosso processo de enri-quecimento de urânio que sal-vou o projeto e a face das duaspartes.

No ano que vem, o Brasil de-veria assinar o Protocolo Adicio-nal de TNP e, sobretudo, acele-rar o trabalho para o domínio dociclo do enriquecimento do com-bustível nuclear. O tempo nãocorre a nosso favor e, se demo-rarmos, vamos encontrar um mu-ro onde antes havia uma porta.O tempo é da essência e, se qui-sermos ser um dos países que do-minam totalmente a tecnologiado enriquecimento do urânio, te-mos de fazer duas coisas: garan-tir a nossa transparência e boa fée trabalhar muito e depressa.

No que diz respeito ao nossoacesso aos círculos mais privile-giados do poder internacional,em 2004 demos passos impor-tantes. O G-20 é um bom clube.Melhor ainda é o G-8, ao qual oBrasil deve aspirar para estar en-tre aqueles poucos países queparticiparão do próximo alarga-mento. Seria uma pena se ape-nas a China e a Índia fossem osbeneficiários exclusivos da pró-xima ampliação. A causa é boa.

Quanto ao assento permanen-te no Conselho de Segurança, éevidente o ganho em prestígiose pudermos obtê-lo. Há, contu-do, obstáculos que, no curto pra-zo, talvez sejam insuperáveis.Chegaremos lá, acredito, pelaprópria natureza das coisas e, so-bretudo, se reforçarmos a nossacredibilidade.

Menos que uma disputa eleito-ral, o que deve acontecer, maiscedo ou mais tarde, é que a mas-

sa crítica do Brasil e seu peso nasociedade internacional obriga-rão a que tenhamos um lugar pri-vilegiado e estável naquele foro,no qual, em princípio, as deci-sões sobre a segurança interna-cional são tomadas. Estarmoscom Índia, Japão e Alemanha nopequeno grupo de candidatos na-turais é evidência do caminhopercorrido. Já estivemos em mui-to pior companhia.

HAITINo conjunto dos gestos e posi-ções que reforçam o nosso perfilinternacional, a presença no Hatifoi e é significativa. O Brasil

agiu com generosidade e solida-riedade e esses são traços com osquais devemos nos identificar.

Agimos com acerto ao aceitaro convite do secretário-geral daOrganização das Nações Unidas(ONU) para irmos para o Haiti.Temos, contudo, de ter, desdejá, uma estratégia de partida. Te-mo que o Haiti não se arrume edevemos sinalizar que nossamissão tem prazo fixo e objeti-vos limitados e realistas.

Há outros sinais positivos a re-gistrar: o extraordinário númeroe peso das autoridades estrangei-ras que nos visitaram. Não en-contro precedente para tantas vi-sitas bilaterais realizadas sem opretexto de qualquer evento con-vocatório. Não só eles vieramaqui como fomos lá fora encon-trá-los como era certo fazer.

Finalmente, o Brasil deixaseu chefe viajar sem patrulhá-loe desacreditá-lo. Os predecesso-res do presidente Lula não tive-ram esse privilégio e essa opor-tunidade.

Em outras frentes, 2004 trou-xe poucos avanços ou, apenas,desdobramentos. Em duas áreasem que éramos particularmentevulneráveis – o da proteção aomeio ambiente e dos direitos hu-manos – não somos, de certo,modelares, mas estamos do ladocerto e com as boas causas.

Não fizemos suficiente pro-gresso no combate à violência

interna, na proteção da Amazô-nia e no combate às drogas. Nãoenfrentamos, em nenhum dessescampos, uma crise. Mas em to-dos os casos somos defensivos eperdemos energia e credibilida-de ao nos justificar.

Nos três casos, mas sobretu-do quanto à Amazônia, alega-mos a nossa impotência parapreservar uma medida de ino-cência. É uma política perigosa.A soberania é o oposto da impo-tência. Ao alegarmos não ter osmeios para coibir malfeitorias,reconhecemos que não pode-mos ou não sabemos exercerplenamente a soberania que re-clamamos. O Tratado de Coope-ração Amazônica deve ser forta-lecido e sua sede transferida pa-ra Belém ou Manaus. Estar emBrasília não é boa sinalização.

SABATINASUma palavra final sobre o Ita-maraty. Continua a ser uma dasmelhores diplomacias do mun-do. Não vejo sinal de que deixede ocupar essa posição. Obser-vo, pelo contrário, cada vezmaior qualificação intelectualdos que entram e, com novasroupagens, a mesma devoçãoao interesse nacional e à éticado serviço público.

Não me parece bem desenha-da, na forma e no fundo, a exi-gência para que os diplomatasque retornam a Brasília leiam,em recinto designado, trêsobras e sobre elas sejam, depois, sabatinados. Afastados os ele-mentos anedóticos, deve-se evi-tar tudo o que pareça excêntricoou autoritário.

A idéia de que profissionaisque voltam à base se atualizemcom aspectos dinâmicos da vidabrasileira deve ser resgatada. Al-terando-se sua roupagem atual.Poder-se-ia recomendar uma lis-ta de obras de atualização (tal-vez 10 ou 20 títulos), seleciona-das por qualquer colegiado aca-dêmico ou profissional qualifica-do. Concluída a fase de leitura(acompanhada ou não de pales-tras e visitas), os participantesapresentariam um papel comsuas observações.●

* Embaixador MarcosAzambuja é presidente da Casa

Brasil-França e membroda Comissão de Armas de

Destruição em Massa

SEM DEMONOLOGIAS,O PAÍS ATUOU COMMAIS DESENVOLTURANO FMI E NA OMC

PROGREDIMOS POUCONA PROTEÇÃO ÀAMAZÔNIA E NOCOMBATE ÀS DROGAS

TRAVESSIA ‘04/05

MISSÃO HAITI – O Brasil agiu com acerto ao aceitar o convite da ONU para ir para o Haiti, isso reforça nosso perfil internacional. Mas temos de sinalizar que nossa missão tem prazo fixo e objetivos limitados e realistas

EVELSON DE FREITAS–30/10/2004

PB COR

%HermesFileInfo:H-4:20041231:H4SEXTA-FEIRA, 31 DE DEZEMBRO DE 2004 ● O ESTADO DE S.PAULO

Page 5: Retrospectiva Estadão - 2004

Produto: ESTADO - ESPECIAL - 5 - 31/12/04 CompositeH5 - SÃO PAULO

Produto: ESTADO - ESPECIAL - 5 - 31/12/04 CompositeH5 - SÃO PAULO

Os arquivosaindasecretos daditaduraNão se trata de revisitar cadáveres,mas de reencontrar a História

Flávio Tavares*

Nos arquivos secretos da dita-dura, não se trata de buscar ca-dáveres, mas de reencontrar aHistória. Assim, por que não re-velar tudo o que for realmentedocumental dos diferentes ór-gãos ou ministérios, não ape-nas das Forças Armadas?

O Itamaraty, por exemplo,concentrou uma rede de es-piões no estrangeiro, a partirdos “setores políticos” das Em-baixadas do Brasil, que vigia-vam não só os exilados, mas to-do brasileiro “importante” -cientistas, intelectuais, artistas,jornalistas e estudantes em via-gem pelas Américas e pela Eu-ropa. Onde estão esses docu-mentos? Foram destruídos, tala ignomínia que continham?Ou dormem no Ministério dasRelações Exteriores, ou no anti-go SNI ou nas S-2 militares?

Ou as “operações sujas”, co-mo o seqüestro do pianista deVinícius de Moraes, em 18 demarço de 1976, em Buenos Ai-res, estão protegidas por lingua-gem em código? Francisco Te-nório, o Tenório Jr., o “Tenori-nho do piano”, detido à portado hotel por gente que falavaperfeito “carioquês”, na véspe-ra da estréia de Vinícius na Ar-gentina, foi levado para o Rio(confundido com um “subversi-vo” de sobrenome igual) e “su-miu”: foi morto para apagar osvestígios do horror, já que nãopodia ser devolvido com vida.Antes, outros oito brasileiros fo-ram seqüestrados na Argentinae “sumiram”: as pistas indica-vam que os seqüestradores fala-vam português!

No Chile, antes ainda do gol-pe militar de 1973, o setor polí-tico da embaixada brasileira vi-giava e ameaçava os exilados.No golpe de Pinochet, brasilei-ros presos no Estádio Nacionalde Santiago foram interroga-dos por outros brasileiros. Háindícios de que alguns dos “de-saparecidos” dessa época fo-ram enviados para o Brasil. Ha-verá documentos?

O ex-ministro da Defesa Jo-sé Viegas pode esclarecer essasituação, além de qualquer do-cumento: no posto de “secretá-rio”, ele dirigiu o setor políticoda embaixada brasileira no Chi-le ainda bem antes do golpe dePinochet e também depois, porlongos anos.

Em julho de 1977, quandocorrespondente do Estado, eupróprio fui seqüestrado peloexército uruguaio, em Monte-vidéu, numa operação “asso-prada” a partir da Embaixadado Brasil, que só não chegou àeliminação física pela prontadenúncia da Imprensa. Eramtempos da Operação Condor,mas já se esboçava a “abertu-ra” no Brasil.

Haverá documentos sobre olado perverso e ilegal da repres-são? Pode-se pensar que lavras-

sem atas das sessões de tortu-ra? Ou dos “excessos” que le-vavam à morte? Nos quartéis,só a minoria de oficiais ou sar-gentos dedicada a esses miste-res tinha acesso aos locais dosmistérios secretos. As ordense atos dos “porões”, ao serem“secretos”, podem não estardocumentados.

RUBENS PAIVASó os nazistas arquivavam tudo(nem Stalin se preocupou comisso) e nada simulavam. Mes-mo assim, na fachada dos cam-pos de concentração de Hitler,os prisioneiros liam O Traba-lho Vos Libertará, quando, defato, ali estava a morte. Entrenós, a simulação tentou tapar tu-do: em 1971, o engenheiro e ex-deputado Rubens Paiva morreusob tortura, no Rio, e o governoengendrou a farsa de que fora“resgatado por guerrilheiros”,na rua, quando era levado parauma delegacia no Alto da Tiju-ca. O cadáver nunca apareceu.

O que revelarão, então, osdocumentos que os chefes mili-tares dizem que não existem,como se temessem divulgá-los? Talvez só as mesquinhasperseguições e vinditas políti-cas, as infindáveis fichas doDops e SNI, similares às dosdocumentos incinerados àspressas na Base Aérea de Sal-vador, ou achados no Sul, no sí-tio do ex-ministro da Educa-ção Tarso Dutra. Neles, po-rém, o Estado policial mostra-se de corpo inteiro, persegui-dor, como se cada cidadão fos-se suspeito de algum crime sópor ser um cidadão.

Aparecerão as ordens de cen-sura ditada aos jornais? Consta-rão dos arquivos que alguns jor-nais (como o Estado) insistiamem que os censores explicitas-sem por escrito as imposiçõesverbais? Ou tudo foi oral paranão ficar documentado?

Para definir o horror da re-pressão ilegal (a tortura e amorte de presos são ilegais!)basta, porém, os testemunhosde três oficiais superiores dasForças Armadas. Primeiro, odo coronel Pedro Corrêa Ca-

bral, da FAB, que relatou em li-vro o fuzilamento de prisionei-ros capturados no Araguaia, de1972 a 74. Piloto de helicópte-ro, lá transportou soldados epresos durante 16 meses e viuhorrores que guardou “comodor no fundo da alma por qua-se 20 anos”. Em 1993, contoutudo em Xambioá – Guerrilhano Araguaia.

No livro, o coronel Cabraldiz o que sente ainda hoje: “Re-

volta por ter presenciado feitossobre os quais não tinha qual-quer poder para modificar-lheso curso. Vergonha por ter assis-tido, completamente impoten-te, à tortura e ao assassinato dejovens brasileiros, levados a ca-bo por outros brasileiros, numanojenta carnificina de irmãoscontra irmãos.”

Em setembro de 1969, noquartel da Polícia do Exército,no Rio, o coronel Élber MelloHenriques proibiu a tortura depresos políticos e denunciou aocomando do 1.º Exército a mor-te de um deles, sob sevícias:em seguida, foi afastado da che-fia dos inquéritos sobre subver-são e permaneceu sem funçãoaté ser reformado.

Mesmo sendo herói da FEBna 2.ª Guerra, além de um dosprimeiros oficiais a apoiar,em São Paulo, o movimentomilitar de 1964, o coronel Él-ber – reconhecido no Exércitocomo “intelectual e estrategis-ta militar”, com todos os cur-sos de Estado-Maior – nuncachegou a general.

“Cumpri com meu dever dejustiça e não me arrependo deter denunciado o horror da-queles que não souberam hon-rar a farda!”, disse-me ele,tempos atrás, aos 87 anos,doente, mas lúcido.

Na Marinha, o almirante Jú-lio Bierrenbach, nos tempos

de ministro do Tribunal Supe-rior Militar, em Brasília, teste-munhou, de público, as mui-tas vezes em que impediu tor-turas e maus-tratos nas pri-sões navais. Ainda há docu-mentos sobre isso?

NO ARAGUAIAA decisão judicial que mandouabrir os arquivos sobre a “guer-rilha do Araguaia” atende aosreclamos dos familiares dosmortos, que querem dar-lhes se-pultura. O Araguaia foi, de fa-to, a única operação de guerraaberta da resistência nos anosda ditadura militar. Como tal,teve todos os horrores da guer-ra em si, com o agravante deser travada na selva, sem acom-panhamento da imprensa.

Foi uma guerra “sem prisio-neiros”. Só no início alguns pre-sos foram poupados, entre elesJosé Genoino. Nesse contexto,o historiador e velho militantecomunista Jacó Gorender, no li-vro Combate nas Trevas, dá aentender que o atual presidentedo PT pode ter delatado seusantigos companheiros, salvan-do-se da morte por isso.

Os membros da guerrilhaque o PC do B organizou noAraguaia, no entanto, entre-gues por inteiro àquela missão,sabiam que a morte era umadas alternativas da luta que ha-viam abraçado. Eloqüente é o

testemunho do fuzilamento deDinalva Oliveira Teixeira, a Di-na, feita pelo seu executor: cap-turada e torturada durante 15dias na base de Xambioá, foi le-vada à selva num helicóptero.Ao desembarcar, indagou seiriam fuzilá-la “agora”. “Daquia pouco!”, respondeu o tenen-te. Seguiram caminhando e, aopararem, ela percebeu tudo egritou: “Quero morrer de fren-te!”. “Vira, então, para este la-do!”, disse o tenente. E Dina re-cebeu seis tiros.

Oficialmente, não se sabeonde estão os 75 mortos, se-gundo o PC do B, ou 85, segun-

do os militares. As ossadas des-cobertas e identificadas são aexceção. Diz-se que a alguns“cortaram as cabeças” para le-vá-las a Brasília e compararcom fichas dentárias de deser-tores do Exército.

Entre o rumor e a fantasia,enquanto não surgem os docu-mentos oficiais, vale o depoi-mento do coronel Corrêa Ca-bral. Em seu livro, ele conta ohorror de ter transportado em

seu helicóptero os cadáveresjá putrefatos dos guerrilhei-ros, desenterrados para seremlevados para o meio da selva“e despistar a imprensa, no fu-turo”. Há meses sob a terra, sóo corpo da nissei Suely Yumi-ko Kaneyama estava intacto,“como se tivesse morrido na-quele instante”.

ONDE ESTÃO OS CORPOS?O coronel descreve minúciasda região e frisa: “À guisa de le-nitivo às almas dos desapareci-dos e às feridas não cicatriza-das dos familiares, indiquei alocalização exata do lugar on-de se encontram os restos mor-tais, senão de todos, pelo me-nos, de grande parte dos guerri-lheiros do Araguaia.”

Resta, ainda, saber de ou-tros documentos, menos maca-bros, mas essenciais: os arqui-vos das decisões da SEI (o ra-mo “técnico” do SNI) sobre achamada “reserva de merca-do” na informática, que alijouo Brasil da grande revoluçãotecnológica do Século 20 e noscondenou a ser uma simplescolônia cibernética. E sem ne-nhum documento.●

*Flávio Tavares é autor de ODia em que Getúlio Matou Allen-de e Memórias do Esquecimen-to, livro sobre a prisão, e foi edi-

torialista do Estado.

O EX-MINISTRO DADEFESA JOSÉ VIEGASPODE ESCLARECERBEM ESSA SITUAÇÃO

RESTA SABER DEPAPÉIS COMO OS DARESERVA DE MERCADONA INFORMÁTICA

JANEIRO9 – Morre em São Paulo, aos 57anos, o cineasta Rogério Sganzer-la, autor de O Bandido da Luz Ver-melha.

14 – O comandante da AmericanAirlines Dale Robbin Hersh, de 52anos, é preso no Aeroporto Inter-nacional de São Paulo (foto). Her-sh fez um gesto obsceno ao serfotografado pela PF, exigência donovo sistema de identificação deestrangeiros. Por ordem judicial,eles são fotografados e têm asimpressões digitais colhidas, tra-tamento recíproco ao dispensadoa brasileiros nos Estados Unidos.

18 – Terrorista suicida explodecaminhonete com 500 kg de ex-plosivos na entrada do quartel-ge-neral das forças de coalizão emBagdá, matando 23 pessoas eferindo uma centena. A explosãofoi a mais letal desde a prisão deSaddam Hussein, em dezembro.23 – Lula anuncia reforma ministe-rial. Indica Amir Lando (PMDB)para a Previdência no lugar deRicardo Berzoini (PT), que substi-tui Jaques Wagner (PT) no Traba-lho. Aldo Rebelo (PC do B) assu-me a Secretaria de CoordenaçãoPolítica, Eduardo Campos (PSB),o Ministério da Ciência e Tecnolo-gia, e Patrus Ananias (PT), a pasta

de Desenvolvimento Social eCombate à Fome.24 – Morre aos 90 anos, em Co-tia, Leônidas da Silva, considera-do o maior jogador brasileiro an-tes da era Pelé. Artilheiro da Copa

de 38, o Diamante Negro populari-zou a bicicleta e brilhou no Ban-gu, Peñarol, Vasco, Botafogo,Flamengo e São Paulo.25 – A seleção de futebol fica forada Olimpíada ao perder de 1 a 0do Paraguai no último jogo doPré-Olímpico, no Chile.28 – Três fiscais e um motoristado Ministério do Trabalho sãoassassinados em Unaí (MG), comtiros na cabeça, durante fiscaliza-ção de rotina em fazendas.30 – Robô Opportunity descobreóxido de ferro em planície marcia-na, possível sinal da presença deágua no planeta no passado re-moto.

FEVEREIRO

2 – Economia começa o ano coma quebra de vários recordes. Asexportações atingiram patamarhistórico de US$ 5,8 bilhões. Osuperávit da balança comercialfoi de US$ 1,588 bilhão, tambémrecorde para o mês. Outra marcabatida foi a do superávit em 12meses: US$ 25,257 bilhões.4 – Morre aos 73 anos, em Campi-nas, a escritora Hilda Hilst, autorade mais de 40 obras de ficção,poesia e dramaturgia.6 – Explosão destrói vagão nometrô de Moscou, deixando 39mortos e 130 feridos. O presiden-

te da Rússia, Vladimir Putin, atri-bui o atentado a chechenos.20 – Lula anuncia o fechamentode todos os bingos do País parasuperar a crise desencadeadapelo caso Waldomiro Diniz, maiorescândalo do seu governo. Umasemana antes, ele já mandarademitir Diniz, subchefe de Assun-tos Parlamentares da presidên-cia, por causa da divulgação deum vídeo que mostra o assessorpedindo doações de campanha epropina ao bicheiro Carlos Augus-to Ramos, o Carlinhos Cachoeira.26 – Cinqüenta e seis animaismorrem envenenados no Zoológi-co de São Paulo entre janeiro e

TRAVESSIA ‘04/05

fATOS do ANo

REVELAÇÃO – Documentos e fotografias encontrados no sítio do falecido ministro da Educação Tarso Dutra, em Eldorado do Sul (RS)

ARIVALDO CHAVES/RBS

PB COR

%HermesFileInfo:H-5:20041231: H5O ESTADO DE S.PAULO ● SEXTA-FEIRA, 31 DE DEZEMBRO DE 2004

Page 6: Retrospectiva Estadão - 2004

Produto: ESTADO - ESPECIAL - 6 - 31/12/04 CompositeH6 - SÃO PAULO

Produto: ESTADO - ESPECIAL - 6 - 31/12/04 CompositeH6 - SÃO PAULO

AsojachegouláTransgênicaounão,acadacolheitaelasealastraagressivamenteejátomouorumodaAmazônia

AnozerodapolíticasocialaindanãocomeçouProgramasambíguosesemmetasclarasaindaconfundempobrezaefomeenãoatacamadesigualdade

Lena Lavinas*

Final de ano, balanços tornam-seindispensáveis. Rigueur oblige. Eé bom que assim seja. Quando seé gestor público, há que informaro que foi feito, o quanto foi feito,inferir resultados, ajustar trajetó-rias ou antes corrigir rotas e maisuma vez fundamentar decisões,novas ou que se impõem quaseque automaticamente dado o bomdesempenho alcançado.

Para isso, é essencial dispor demeios consistentes para procedera avaliações qualificadas, meiosesses que para serem acionadosem tempo e de forma eficaz deve-rão ter já sido formulados, testa-dos, comprovados e aprovados.Essas coisas andam juntas: dese-nhar, implementar e executar polí-ticas públicas implica forçosa econcomitantemente monitorar oque se faz, princípio elementar detransparência e accountability emEstados democráticos.

Nem tudo sempre dá certo. Emqualquer circunstância, porém,existe o compromisso tácito e ab-solutamente incontornáveldepres-tar contas do que se fez, revelandoas falhas, a pesar no passivo, jáque os acertos transmutam-se emativos. Tudo isso parece incomo-damente óbvio e, de fato, o é. En-tretanto, ainda não foi dessa vez,coma eleiçãode um presidente docampo democrático-popular, queoPaís se reencontrouconsigomes-mo na institucionalização de umanova forma de fazer política so-cial, ou seja, de redistribuir bem-estar e promover justiça social,alertaparaosefeitosdas suasesco-lhas no combate à pobreza e na re-dução efetiva do hiato social.

Uma primeira constatação, por-tanto, indica um primeiro déficit

de atuaçãodo governo federal, ex-presso na ausência de balançosconseqüentes sobre o impacto desua própria intervenção regulado-ra nos últimos dois anos. Desco-nhece-se o real alcance, o saldo lí-quido da sua ação social no quetange o número de pessoas queconseguiram escapar à pobrezaporque passaram a integrar seuprograma de transferência de ren-da, o impacto provocado em ter-mos de aumento da massa salarialegeraçãodeempregos,ouna retra-ção do patamar de desigualdadeque nos assola. Informações todaselas estratégicas para que possa-mos, como Nação, deliberar setais avanços são suficientes, o quedesejamos e o que merecemos.

No entanto, o debate fortementepolarizado perpassa todos os diasa grande imprensa, gerando maisdesinformaçãoedescréditoquees-clarecimentos por parte do gover-no. A conseqüência mais imediatae danosa é debilitar desnecessaria-mente nossas instituições.

Mas talvez o déficit maior dosdois anos de gestão Lula resida naincapacidade de instituir novo de-nominador comum a todos os bra-sileirosemmatériadeproteçãoso-cial e bem-estar. Como o governoque o precedeu, faz sintomatica-mente a “opção pelos pobres”, re-produzindo programas paliativos,residuais e de curto prazo, para osque conseguem comprovar grausdecarência aguda.Programasam-

bíguos nos seus objetivos ao con-fundir pobreza e fome, sem metasclaras, senão as de cobertura (por-centual do público-alvo a ser con-templado). Programas que não semostramcapazesdevertebrarpolí-tica social nacional, abrangente eintegral, formatando padrão de re-ferência universal para todos osbrasileiros, o que aliás muito con-tribuiria para superar o anacronis-mo do debate sobre a linha de po-breza absoluta, deslocando-o parao campo das desigualdades (logo,permitindo adotar linha de pobre-za relativa até porque, como reve-lou a polêmica recente sobre fomeversus sobrepeso, o problemamaior não é de indigência absolu-ta senão de insegurança alimentar

por restrições no grau e qualidadedo acesso aos alimentos).

Rupturas, portanto, não hou-ve, tampouco na área social, quepudessem contribuir para lapidare dar unicidade a sistema de pro-teção social que segue inacaba-do, premido, por um lado, pelaonda da securitização (agora tam-bém via expansão dos segurosde vida nas camadas mais caren-tes da população, com mensalida-des de até R$ 5,00!) e, por outro,pela informalidade desenfreada,a represar chances de financia-mento sustentável de sistema pú-blico de bem-estar.

Como novidade, muito pouco.Vale recordar queoFomeZero re-tomapráticasque forampaulatina-mente abandonadas pelo governoFHC, por se mostrarem inócuasnocombate àpobreza, casodadis-tribuição de alimentos, por muitosanosprogramacarro-chefe doCo-munidade Solidária. Não por aca-so, na segunda metade do seu se-gundomandato, o governo tucanojulgou mais adequado migrar doProdea para o Bolsa-Escola, queaos poucos, por força dos resulta-dos positivos obtidos em nível lo-cal, notadamente nas prefeiturasdo PT, ganha centralidade no âm-bito da política compensatória sobcomandodoMEC.OBolsa-Famí-lia do governo Lula é a extensãodoantigoBolsa-Escola, aumentan-do significativamente o valor mé-dio do benefício e o número de fa-mílias atendidas, é bem verdade, ebuscando levar a cabo a unifica-ção já iniciada na gestão anterior,necessária para reduzir ineficiên-cias inerentes à seletividade.

Nas bordas, todavia, registra-ram-se conquistas importantes co-mo a estruturação da Política Na-cional de Assistência Social que

reconhece ser essencial garantir“serviços continuados” a todo ci-dadão em situação de vulnerabili-dade, contrapondo-se ao assisten-cialismoepisódico.Masháque la-mentar a impossibilidadede instru-mentalização da política por nãodispor ainda de orçamento pró-prio, como sugerido desde a cria-ção da Seguridade Social em 88(5% do OSS vinculado constitu-cionalmente, bemcomo igualpor-centual dos orçamentos do gover-no federal, Estados e municípios).Da mesma maneira, os per capitapara remuneração dos serviçospermanecem em níveis extrema-mente baixos, revelando que aqualidade do atendimento aindaimporta pouco, pois não há pa-drão de referência para normatiza-ção. Outro aspecto positivo, masigualmente cerceado pelas restri-ções orçamentárias, é a aprovaçãoda lei de criação da renda básicade cidadania, que passa a vigorarjá em janeiro. Dado o teor da lei,entretanto, que trocaoprincípiodaincondicionalidade pelo da “fila”dos mais necessitados, pondo emxequeoconceitoelementarda ren-da cidadã, riscos há de que perma-neça letramorta. Finalmente,ogo-vernomanifestou-se semambigüi-dadesnodesejodeavançar nades-criminalizaçãodoaborto, reivindi-cação feminista de longa data, evai pôr a questão em debate para oconjunto da sociedade em 2005.

Um pouco mais do mesmo, al-guns progressos contraditóriosmarcam os dois últimos anos. Oano zero da nova política socialbrasileira, fundada na redistribui-ção e na justiça social, ainda nãocomeçou.●

*Lena Lavinas é professorade Economia da UFRJ

Marcos Sá Corrêa*

Uma coisa em 2005 já podemosdar como certa: com lei de bios-segurança ou sem lei de biosse-gurança, com medida provisó-ria ou sem medida provisória,lá pela metade do ano estare-mos falando de soja transgênicacomo se fosse novidade. Há pe-lo menos oito safras ela puxa nocampo o cordão da engenhariagenética, desde que as sementesda Monsanto começaram a en-trar clandestinamente no RioGrande do Sul. Não tanto pelopioneirismo técnico. Mas por-que a soja em geral é um dos ne-gócios mais agressivos da eco-nomia brasileira.

Atrás delas se alinham ou-tros filhos de laboratório pron-tos para pular a cerca, como oalgodão que se associou ao Ba-cillus thuringienis, um artefatoantilagartas gerado no Institutode Biologia Molecular da Uni-versidade de Edimburgo. Eletambém chegou aqui de contra-bando. Cavou informalmenteum lugar ao sol nesta terra on-de, como dizem que disse Ca-minha, plantando tudo dá. Eagora espera sua vez de entrarno debate nacional.

O governo, como sempre,vem depois, bufando leis feitassob medida para cobrir as par-tes mais escabrosas do fato con-sumado. Quem quiser saber on-de isso vai acabar não precisase dar ao trabalho de viajar pe-lo interior. Basta circular nasgrandes cidades brasileiras. Émais ou menos assim que as au-toridades controlam a planta-ção de favelas.

Por fim, fechando a fila, co-mo costuma acontecer com ospercussionistas de uma banda,marcham os ambientalistas.Sob o exemplo inspirador da mi-nistra Marina Silva, eles entra-ram nessa briga para perder. Asoja é maior do que eles. E seusargumentos têm sido até agoragrandes demais para caber nostítulos de uma notícia no jornal.

Se não acredita, pode fazer oteste. Você é contra a soja trans-

gênica? Então tente dizer porque numa linha de 50 toques.Os testes que detectaram trans-tornos no fígado de cobaias eu-ropéias alimentadas exclusiva-mente com soja transgênica po-dem ser um mau sinal, mas sãoinconclusivos. A sentença daSuprema Corte do Canadá, con-denando por apropriação indébi-ta um fazendeiro que teve suascercas invadidas à revelia porsementes patenteadas de cano-la, outro monstrinho vegetal daMonsanto, daria um conto deKafka, mas não dá manchete. Ea conversa de que não podemosmexer impunemente nos planosdivinos para a natureza parecemais um preconceito do queuma advertência. Essa, franca-mente, Galileu já ouviu.

Os partidários da soja transgê-nica descendem de uma espéciecom tanta experiência em mani-pulação genética que provavel-mente jamais passou pelo cargoum ministro da Agricultura ca-paz de reconhecer a espiga fós-sil de onde vieram os milharaismodernos. Em compensação,da China aos Andes, todos os lu-gares onde nasceu a agriculturanos últimos 10 mil anos são ho-je desertos, a começar pelo cha-mado Crescente Fértil.

Não é à toa que o paraíso ter-restre foi parar no Gênese co-mo um lugar onde não era preci-so plantar porque as coisascaíam do céu. O homem nãofoi expulso do paraíso. Tirou-ode seu roçado, para que nãoatravancasse o caminho do de-senvolvimento. Como os brasi-leiros andam fazendo neste mo-mento com a transformação doPaís inteiro numa imensa e uni-forme plantação de soja.

O pior da discussão sobre asoja transgênica é que, concen-trando-se no bate-boca com aMonsanto, ela faz a soja co-mum parecer inocente. Fingin-do que nada tem a ver com osproblemas ambientais do País,ela se alastra como praga atra-vés do cerrado, rumo à Amazô-nia. A cada colheita, as edito-rias de economia fazem na im-

prensa a conta do que o Brasilganhou com mais um recordede produção. A conta do que eleestá perdendo com isso fica en-tregue aos sites ambientalistas.

Segundo a Companhia Nacio-nal de Abastecimento, a áreaocupada pela soja cresceu deum ano para outro 2,2 milhõesde hectares, para colher os 52,2milhões de toneladas de 2003.O sucesso é tamanho que che-gou à reserva dos parecis. Ani-mados pelo que estão vendo àsua volta no resto do Estado,eles protestam na Fundação Na-cional do Índio para abrir àsplantações de soja 17.500 hecta-res de suas terras. Num Estadoonde o governador Blairo Mag-gi, que na vida real é o maiorprodutor desses grãos no Brasile na administração pública ex-tinguiu parques estatuais parapermitir a expansão da fronteiraagrícola, os parecis têm toda arazão de achar que foram barra-dos na grande liquidação do cer-rado, com queima total dos esto-ques de vegetação nativa.

Onde é que isso vai parar?Adivinhe. Em 1997, a econo-mista Ana Célia Castro, quenão é militante de ONG ecológi-ca, mas catedrática do centro depós-graduação da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro, fezpara o WWF uma avaliação dosriscos de que essa frente de colo-nização agrícola invadisse deuma vez a Amazônia. Fez umrelatório de 99 páginas, numaépoca em que 20% da safra na-cional de soja já era colhida naregião, onde os grandes exporta-dores como o grupo Maggi, aBunge e a Cargill começavam ainstalar silos e portos. Conside-rou improvável que ela varasseas bordas da floresta para con-quistar o coração da AmazôniaOcidental, onde o solo é impró-prio e as complicações ambien-tais são gigantescas. Mesesatrás, ela mesma tomou a inicia-tiva de rever suas previsões pa-ra o WWF. A soja chegou lá.●

*Marcos Sá Corrêaé jornalista

TRAVESSIA ‘04/05

MADE IN BRAZIL – Terminal do Porto de Santos: negócio da soja já bate às portas da reserva dos parecis

IMAGENS – Lula em conferência de James Wolfensohn, presidente do Bird, sobre combate à pobreza

SERGIO DUTTI/AE–26/5/2004

SEBASTIÃO MOREIRA/AE–3/12/2004

PB COR

%HermesFileInfo:H-6:20041231:H6SEXTA-FEIRA, 31 DE DEZEMBRO DE 2004 ● O ESTADO DE S.PAULO

Page 7: Retrospectiva Estadão - 2004

Produto: ESTADO - ESPECIAL - 7 - 31/12/04 CompositeH7 - SÃO PAULO

Produto: ESTADO - ESPECIAL - 7 - 31/12/04 CompositeH7 - SÃO PAULO

EnigmasdaviolênciaeavançospromissoresPolícianãosabequemmatoumendigos,mascombatecorrupção

Anencefalia, à luzdaciênciaedoEstado laicoNo aborto ainda há a discussão sobre o início da vida; o feto anencéfalo jamais sobreviverá

Alba Zaluar*

O ano de 2004 não trouxe novida-des nos crimes em São Paulo.Mas um desses, o perpetrado con-tra os mendigos, finalmente adqui-riu a visibilidade necessária paraque se discutissem seus porquês.No mais, a mesma variedade quenão permite o uso de um esquemateórico para compreendê-los nema sua redução ao quadro de pobre-za e desigualdades do País. Do la-do da segurança pública, a trans-formação nos procedimentos in-vestigativos da Polícia Federal eda Polícia Civil do Estado de SãoPaulo permitiu o desmonte de vá-rias máfias e quadrilhas que co-mandam o crime organizado noEstado e no Brasil. Há muito porfazer, mas o caminho eficaz foi fi-nalmente acertado.

O crime menos enigmático é odo seqüestro relâmpago, que temfeito mais e mais vítimas na Gran-de São Paulo: cerca de mil pes-soas apenas no primeiro semestrede2004. Trata-se docrime oportu-nista que se espalha como febredepois quemostra ser bem-sucedi-do. Quando os valores eramcarre-gados em carruagens por estradaspouco ou nada controladas, os la-drões ficavam à espreita. Hoje,com tanto valor contido num pe-queno cartão, chave para o acessoaos terminais, o alvo também é fá-cil: as pessoas queos carregam pe-las ruas da cidade pouco policiadaem várias áreas. É um crime quese entende na racionalidade instru-mental dos que querem ganhar di-

nheiro fácil, sem importar como.Mas seria um erro imaginar quetodos os que assim agem o fazempor iniciativa própria. Esse crime,como roubos e furtos, pode estarligado a esquemas mais organiza-dos dos vários tráficos como for-ma de conseguir rapidamente ca-pital de giro. A investigação emrede é a resposta apropriada aoscrimes cometidos em redes.

Ainda sem solução judicial, asações contra os mendigos, ocorri-das em agosto em São Paulo, in-duziram à reflexão sobre os cri-mes doódio noBrasil. As duas sé-ries de ataques naquele mêsdeixa-ram sete mendigos mortos e oitoferidos.Mas já vinhamacontecen-do semodestaque na imprensa ad-quirido então, por terem sido co-metidos no coração da cidade. Osataques aos mendigos no Municí-pio já fizeram 58 vítimas, dasquais 24 morreram. Embora te-nha sido aventada a hipótese deque policiais envolvidos com otráfico de drogas seriam os auto-res, o que viria a provar as teoriasque venho defendendo há mais de20 anos para explicar a onda decriminalidade no País, a falta deprovas definitivas corrobora a te-se de que se trata de crime impeli-do pelo ódio. Este é, como já afir-mei no calor da hora, fruto de pre-conceito contra uma categoria depessoas e erige no corpo da víti-ma a mensagem dirigida aos de-mais membros do mesmo grupopara dizer que desapareçam. Pre-tende intimidar, coagir e apavoraros que escaparam dos ataques.

Seus efeitos são similares aos doterrorismo.Por issomesmo, os cri-mes doódio têmefeitos psicológi-cos mais sérios na medida em quenão é mais possível prever o com-portamento alheio, deixando defuncionar os parâmetros que ga-rantem as trocas e os laços sociaispositivos. Entra-se no terreno dairracionalidade, onde o medo semdireção prevalece. Seus alvos sãosempre determinadas categoriasde pessoas e suas ações são plane-jadas por pequenos grupos de fa-náticos que escolhem afirmar asua superioridade racial, étnica oureligiosa pela ação direta da vio-lência. Aponta outra dimensão daviolência que não impulsiona aação apenas pelo dinheiro: a dopoder, a do simbólico e a da pai-xão destrutivos: o triunfo sobre ooutro, o prazer de ser o senhor da

vida e da morte, a paixão de matarpor matar, como os neonazistasque chacinam mexicanos, negros,brancos, homossexuais, judeus,muçulmanos, bêbados e mendi-gos nas cidades americanas.

Enigma ainda mais duro de re-solver, já que envolve sentimen-tos profundos e os liames sociaismais fortes, é o dos assassinatosdos pais cometidos pelos própriosfilhos, uma das faces da violênciafamiliar. Em 2004, como nosanos anteriores, a notícia de maisparricídios, crime que se tornouemblemático de São Paulo, dei-xou a população outra vez perple-xa. Processos sociais complexosestão criando os alheamentos edesconcertos dentro da famíliaem que as figuras paternas e ma-ternas passam a praticar a violên-cia contra aqueles que deveriam

proteger e que jogam os filhoscontra seus pais a ponto de querereliminá-los. É a evidência cabalde que os controles sociais estãodesmoronando dentro da institui-ção básica da sociedade: a famí-lia. Transformações no casamen-to, cada vez mais facilmente des-feito, e no mundo do trabalho,que obriga os pais (e os filhos) acompetir crescentemente; a emi-nência adquirida pelo mercadoque invade áreas antes preserva-das por valores morais e pela soli-dariedade; a crise na autoridadepaterna decorrente de mudançasna maneira de conceber a educa-ção de filhos. Todos esses fatoresconspiraram para tornar uma fon-te de incertezas e insegurançasaquela que deveria ser uma orga-nização protetora e resguardadado interesse pecuniário eda instru-

mentalidade que não encontraobstáculos intransponíveis nomundo cada vez mais competiti-vo e menos solidário. Não tem si-do fácil reunir os entes mais queri-dos por cada um de nós no enfren-tamentode tantos e tão difíceis de-safios. E não é a família de pais di-vorciados ou a chefiada por mu-lheres a mais atingida por essa he-catombe afetiva e ética. É a famí-lia que não consegue se organizarnas muitas dificuldades encontra-das por todas.

Nocaso do parricídio, pior tam-bém quando se encobre o crimecometido pelos jovens, nutrindo aimpunidade que faz dos dados es-tatísticos sobre o homicídio noBrasil um escândalo internacio-nal. Na nova concepção de edu-car, ainda mais estimulada pelaidéia de que põeos jovens na cate-goria de vítimas e os adultos co-moalgozes, cria uma falsa autono-mia que não considera o outro emsua autonomia e reproduz a lógi-ca do senhor/escravo na qual nin-guém é verdadeiramente autôno-mo. Uma independência perversado indivíduo faz do outro um ins-trumento do domínio e da mani-pulação. Esse é o terreno fértil dacriminalidade e da violência.

Por fim, grandes passos têm si-do dados no combate à corrupçãoe aos excessos dos policiais. Nosúltimos cinco anos, foram 11.089denúncias contra homens da PMe 6.117 da Polícia Civil, tendo si-do punidos 189 oficiais, 322 sar-gentos, 1.733 cabos, 2.433 solda-dos e 10 subtenentes. Na PolíciaCivil, 77delegados, 310 investiga-dores, 77 carcereiros, 36 escri-vães, 65 agentes policiais, 6 peri-tos, 3 agentes de telecomunica-ções, 3 papiloscopistas e 1 legistaforam punidos. Triste quadro deuma polícia ainda muito contami-nada, que sóno anopassado demi-tiu 39% dos seus policiais por cor-rupção, mas promissor para queno futuro mais policiais bem for-mados, tanto nas técnicas quantona ética do trabalho, ocupem es-ses lugares vagos.

Na ação preventiva, notíciasalvissareiras sobre o uso do espa-ço escolar para atividades desti-nadas aos jovens de bairros po-bres. Se essas atividades forempensadas para socializar os jo-vens no respeito ao outro e nouso conseqüente de sua liberda-de, haverá muitos motivos paracomemorar os baixos índices decriminalidade.●

*Alba Zaluar é antropóloga

Débora Diniz*

De 1.º de julho a 20 de outubro,uma liminar concedida pelo mi-nistro Marco Aurélio Mello, doSupremo Tribunal Federal(STF), autorizava mulheres grá-vidas de fetos com anencefalia ainterromper a gestação. A anen-cefalia, uma malformação popu-larmente conhecida como “au-sência de cérebro”, leva à morteem 100% dos casos, não haven-do relatos de sobrevivência alémde minutos ou horas após o par-to. O diagnóstico da anencefaliaé facilmente realizado por eco-grafia, sendo a imagem do acha-tamento da cabeça e da ausênciados ossos do crânio nítida atémesmo para leigos. De perfil,um feto com anencefalia assumea imagem de um sapo, dado o de-cepamento de toda a parte supe-rior da cabeça pelo não fecha-mento do tubo neural. O dadomais dramático é que não há ne-nhum tratamento ou cura.

Com a cassação da liminar doSTF, a anencefalia ascendeu auma das questões centrais do de-

bate político e ético nacional. Pe-la primeira vez, uma questão dedireitos reprodutivos deslocou-sedo terreno religioso e dos movi-mentos sociais e foi seriamenteenfrentada como um tema de di-reitos humanos. As mais impor-tantes entidades científicas, políti-cas, sociais e religiosas se pronun-ciaram sobre o assunto, sendo alarga maioria favorável ao direitoda mulher de interromper a gesta-ção. De um tema árido, restrito àmedicina e ao direito, a anencefa-lia é, hoje, uma questão políticada maior importância. Sua impor-tância não se justifica apenas porser o Brasil o quarto país do mun-doem partosde fetos com anence-falia, mas principalmente porquequestões fundamentais de nossoordenamento social serão enfren-tadas por ocasião do julgamentoda ação no STF em 2005.

O primeiro desafio será garan-tir que esse tema será julgado emtermos estritamente científicos.O consenso da comunidade cien-tífica é que a anencefalia é in-compatível com a vida extra-ute-rina, ou seja, não há nenhuma

possibilidade de sobrevida. Nãohá crianças ou adultos com anen-cefalia, sendo um equívoco com-parar anencefalia com deficiên-cia. Incompatibilidade com a vi-da não é deficiência e quem afir-ma isso é a ciência professada pe-lo Estado brasileiro em suas uni-versidades e hospitais públicos.Segundo o último censo, 14,5%da população brasileira apresen-ta alguma forma de deficiência,mas não há nenhum anencéfalonesse grupo. É também a ciênciaquem afirma que um ser humanosem atividade cerebral está mor-to, não importando se “corre san-gue nas veias ou se o coração pul-sa”. Um feto sem cérebro é, por-tanto, um feto morto, ou um “na-timorto cerebral”, como prefereo Conselho Federal de Medici-na. Essa é a definição de morteadotada para a lei brasileira detransplantes, por exemplo.

Reconhecer as premissas cien-tíficas da ação sobre a anencefa-lia levará o julgamento para outrodesafio: o de garantir e promovero caráter laico do Estado brasilei-ro. Essa é uma matéria que so-

mente poderá ser enfrentada emtermos laicos, isto é, livre de dog-mas e valores religiosos particula-res, dadoocaráter plural e toleran-te de nossa sociedade em matériareligiosa. Nossos julgadores te-rão de enfrentar a certeza científi-ca da morte do feto em termostambém científicos e argumentosreligiosos sobre a santidade da vi-da do feto não serão suficientespara justificar o dever da gesta-ção de um feto morto. Ao contrá-rio do debate tradicional sobre amoralidade do aborto, em quecontrovérsias sobre o início davida impedem o diálogo razoá-vel, a anencefalia prescinde deum consenso sobre o estatuto doembrião. Basta reconhecer quea lei brasileira se pauta por certe-zas científicas e que a ciência re-conhece como morto um ser hu-mano sem atividade cerebral.Ao contrário do debate sobre oinício da vida, a morte é um fatofísico inexorável quanto ao seusentido: um feto com anencefa-lia é um feto morto.

Esse duplo desafio permitirácompreender o direito à interrup-

ção da gestação como um temade direitos humanos e não maiscomo matéria religiosa. Esse des-locamento da religião para a ra-zão pública levará, em 2005, osjulgadores à grande questão éticatrazida pela anencefalia: obrigaruma mulher a manter uma gesta-ção contra a sua vontade pode serconsideradoum ato de tortura. Se-gundo recente pesquisa do Ibope,da Universidade de Brasília e daONG Católicas Pelo Direito deDecidir, 80% da população brasi-leira considera uma tortura obri-gar uma mulher a manter umagestação de feto com anencefalia.Hoje, mulheres grávidas de fetoscom anencefalia são formalmen-te proibidas de interromper a ges-tação, sendo preciso autorizaçãodo Judiciário ou doMinistério Pú-blico para cada caso. Além do ris-co de ter o pedido negado, há ca-sosde mulheresque esperaramse-manas e até meses pelo resultadodo julgamento, o que transformaaperegrinação judicial noutra fon-te de sofrimento. Na verdade, atortura do Estado é essencialmen-te contra as mulheres pobres, pois

as ricas contam com asolidarieda-de de seus médicos e interrom-pem a gestação sem nenhum re-curso judicial. Não há clínicas ile-gais de aborto para interromperumagestação de feto com anence-falia: na medicina privada, a inter-rupção da gestação é realizada pe-lo médico responsável pelo pré-natal como um ato de cuidadocom a mulher grávida.

Enquanto vigorou, a liminardo STF amparou principalmentemulheres pobres e profissionaisde saúde pública. Uma amostrade oito capitais levantou o núme-ro de 58 mulheres beneficiadasdurante a vigência da liminar. Aconcentração entre mulheres po-bres e usuárias da saúde públicanão significa que a pobreza sejao determinante da anencefalia fe-tal ou que somente mulheres po-bres tenham carência de ácido fó-lico, uma das causas dos distúr-bios de fechamento de tubo neu-ral. O quadro é ainda mais per-verso: a liminar do STF era mar-cadamente um ato de justiça so-cial. As mulheres pobres foramas mais diretamente beneficiadaspela liminar não apenas porqueelas são a maioria da população,mas porque são as mais vulnerá-veis à exigência judicial porqueelas dependem dos serviços pú-blicos de saúde.●

*Débora Diniz é antropóloga

ÓDIO – Assassinato de moradores de rua tem a mesma origem dos crimes de neonazistas

TRAVESSIA ‘04/05

21 de fevereiro. A administraçãoanuncia que em todos foi encon-trado fluoracetato de sódio, vene-no para ratos proibido no País.29 – O Senhor dos Anéis-O Retornodo Rei ganha 11 dos 24 Oscarsentregues pela Academia de Cine-ma em Los Angeles.MARÇO5 – Morre aos 88 anos JorginhoGuinle, o homem que encarnoucomo ninguém no Brasil a ima-gem do playboy.11 – Duzentas pessoas morrem emais de 1.200 ficam feridas naexplosão de dez bombas em trêsestações ferroviárias de Madri eperiferia. O governo acusou o gru-

po basco ETA, mas recuou de-pois que a polícia encontrou deto-nadores e um cassete em árabecom versos do Alcorão num fur-gão perto da cidade de onde saí-ram os trens. O atentado deixouuma vítima brasileira: o paranaen-se Sérgio dos Santos Silva.14 – José Luís Zapatero (foto)vence eleição na Espanha e pro-mete tirar tropas do país do Ira-que.22 – O líder espiritual do gruporadical islâmico Hamas, xequeAhmed Yassin, morre em Gaza,atingido por um míssil disparadopor um helicóptero israelense.Yassin era o segundo mais impor-

tante dirigente palestino, depoisde Yasser Arafat.28 – O furacão Catarina provocadestruição em Santa Catarina eno Rio Grande do Sul. Ventos deaté 150 km/h levaram caos a mais

de 20 cidades, deixaram 2 mortose mais de 60 feridos.28 – Morre na Suíça, aos 82 anos,o ator inglês Peter Ustinov.ABRIL4 – Morre aos 77 anos, em SãoPaulo, Octavio Ianni, um dos prin-cipais sociólogos brasileiros.9 – Traficantes saídos do Morrodo Vidigal invadem a Rocinha,maior favela do Rio, dando inícioa uma guerra pela disputa de pon-tos-de-venda de drogas. Cincopessoas morrem.14 – Copom reduz em 0,25 pontoporcentual a taxa Selic, que pas-sa a 16% por ano – a menor des-de abril de 2001.

15 – Governo acaba com o Pro-vão e cria o Exame Nacional deDesempenho dos Estudantes.16 – Achados corpos de 29 garim-peiros assassinados por índioscintas-largas na Reserva Roose-velt na Semana Santa. A chacinaestá ligada ao garimpo de diaman-tes na reserva.19 – Nove presos são mortos e170 pessoas feitas reféns duranterebelião no presídio Urso Branco,em Porto Velho (RO).30 – Governo anuncia o reajustedo salário mínimo, que passa deR$ 240,00 para R$ 260,00.MAIO3 – Morre no Rio, aos 75 anos, a

artista plástica Lygia Pape.9 – O presidente da Chechênia,Akhmad Kadyrov, é morto em umatentado a bomba no Estádio Dí-namo, centro de Grozny.11 – Cenas do assassinato doamericano Nicholas Berg, degola-do com um facão, são veiculadaspela internet.14 – Governo revoga a cassaçãodo visto do jornalista americanoLarry Rohter, autor de texto publi-cado no The New York Timessegundo o qual Lula exagera noconsumo de bebidas. O governodefiniu a reportagem como “ofen-siva à honra do presidente”.19 – PF prende 14 acusados de-

fAtos DO ANO

MONICA ZARATTINI/AE

PB COR

%HermesFileInfo:H-7:20041231: H7O ESTADO DE S.PAULO ● SEXTA-FEIRA, 31 DE DEZEMBRO DE 2004

Page 8: Retrospectiva Estadão - 2004

Produto: ESTADO - ESPECIAL - 8 - 31/12/04 CompositeH8 - SÃO PAULO

Produto: ESTADO - ESPECIAL - 8 - 31/12/04 CompositeH8 - SÃO PAULO

2005:Seráqueagoraacoisavai?SonhodoBrasilpotência freqüentao imagináriopopulardesdemuitoantesdomilagredosanos70

Armando Castelar Pinheiro*

Brasil, País do Futuro, de StefanZweig, éumdesses livrosquemar-cam época. Publicado em 1941,ele pareceu a certa altura fadado atornar-se uma correta profecia dodestinodoPaís.Embaladopelas al-tas taxas de crescimento do Planode Metas e do milagre brasileiro, osonho do Brasil potência mundialfreqüentou o imaginário popularbrasileiro durante décadas.

Não sem razão ou benefícios.Pela primeira vez em séculos, arenda per capita brasileira aumen-tou como proporção da america-na, subindode18% desta em1929para 30% em 1980, a despeito deosEUAtambémteremseexpandi-do significativamente nesse perío-do.ApercepçãodequeoBrasil es-tava destinado a crescer rapida-mente impulsionouos investimen-tos, estimulou o acúmulo de capi-tal humano e melhorou a qualida-de da política econômica, focan-do-a em criar condições favorá-veis à expansão econômica. Peloscânones da época, o Brasil tornou-se um caso espetacular de desen-volvimento, combinando indus-trialização, crescente sofisticaçãotecnológicaecrescimento sustenta-do, independente dos ciclos quemarcam a demanda mundial pormatérias primas.

Uma combinação de choquesexternos, falhas de política e aprópria exaustão do modelo eco-nômico pôs um fim a esse longociclo de expansão. A partir de1981, o Brasil mergulhou na fa-se das “décadas perdidas”, como PIB per capita crescendo mero0,3% ao ano em 1981-2004, ape-nas uma sombra dos 3,9% a.a.registrados nas cinco décadas an-teriores. Relativamente aosEUA, andamos para trás outravez, fechando 2003 com umarenda per capita equivalente aapenas 20% da americana. Foium período difícil, de inchaçodas grandes metrópoles, aumen-to da criminalidade e deteriora-ção de valores. Para os muitosbrasileiros que emigraram nes-ses anos, o sonho de Zweig vi-rou um pesadelo: o Brasil se tor-nou um “país sem futuro”.

Porém, em que pese o fraco de-sempenho da economia, é um errover esse período como “perdido”,por pelo menos três razões.

Primeiro, porque nele o Bra-sil progrediu muito institucio-nalmente. Em 2005 serão co-memoradas duas décadas de re-torno à democracia, que vemse aprofundando e consolidan-do, em forte contraste com osregimes de exceção que marca-ram o País entre 1930-80. OBrasil tem hoje um Judiciárioindependente, uma imprensaatuante -- que soube resistir àstentativas de cercearem sua li-berdade -- e uma sociedademuito mais participativa.

Segundo, porque houve umamelhoria sensível nos indicado-res sociais. A proporção de po-bres na população caiu de 41%em 1981 (42% em 1990) para31% em 2002. A taxa de cresci-mento demográfico diminuiu de2,9% a.a. em 1950-80 para 1,5%a.a em 1993-2003. A mortalida-de infantil caiu a menos da meta-de, a taxa de escolarização de jo-vens de 7 a 14 anos subiu para97%, a proporção de domicílioscom acesso a água potável e sa-neamento aumentou considera-velmente, e assim por diante.

Terceiro, ainda que lentamente,o País está conseguindo fazer asnecessárias correções de rumo nasua estratégia de desenvolvimen-to. As mudanças foram muitas pa-ra citá-las todas. Mas vale destacaraaberturadaeconomiaàs importa-ções eaos investimentosestrangei-ros, reduzindooviés antiagrícola eantiexportador que caracterizara oPaísnasdécadas anteriores; a redu-ção do Estado empresário, que setornara disfuncional na nova reali-dade do Brasil e do mundo; o fimda alta inflação; e, mais recente-mente, o ajuste fiscal.

Aocontrário do que muitos pre-viam, o setor privado mostrougrande capacidade de reação a es-sas mudanças. A indústria moder-nizou-se, ganhou competitividadee não apenas foi capaz de compe-tir com o produto importado, co-mo também de conquistar novosmercados, seja exportando, seja in-vestindonoexterior, comovêmfa-zendoCSN,Gerdau,Embraer,Va-

leeVotorantim, entreoutras.Osis-tema financeiro também se adap-tou ao fim da alta inflação, reestru-turando-se, sem afundar no tipo decrise em que mergulharam os ban-cos no Japão.

Em 2003 o País deu outro passoimportante no sentido de melhorarseus fundamentos econômicos,comamanutenção dapolítica eco-nômica pelo novo governo, a des-peitoda suahistóricaoposiçãoa tu-do que havia sido feito na décadaanterior. Não houve ruptura, nemcalote na dívida, nem reestatiza-çãode empresas privatizadas, nemfechamento da economia, nem re-

negociação das dívidas de Estadose municípios. Pelo contrário, a LeideResponsabilidadeFiscal foi res-peitada, o superávit primárioeleva-do, o acordo com o FMI renova-do, e as metas de inflação e o câm-bio flutuante mantidos, sem con-troles sobre o fluxo de capitais.

Os frutos das reformas e da dis-ciplina fiscal começaram a ser co-lhidos em 2004. Com uma expan-são de 5% do PIB, a mais alta emumadécada, a rendaper capitavol-tou a crescer, depois de seis anosdeestagnação.Ocrescimento tam-

bém foi mais bem distribuído quenos anos anteriores, com a expan-são simultânea do consumo priva-do, das exportações e do investi-mento. Outros indicadores tam-bémtiveramumaevolução favorá-vel, com a queda da inflação, dosjuros reais, do déficit fiscal e da dí-vida pública.

Ootimismoemrelaçãoàecono-mia brasileira é evidente, aindaque comedido. As previsões me-dianas de mercado, por exemplo,apontampara umaexpansão anualdo PIB de 3,5% em 2005-08, me-nos, portanto, do que em 2004. Is-so equivale a um crescimento darenda per capita de 2% a.a., maisdo que nas duas últimas décadas,ainda que insuficiente para come-çarmosa fechar o hiato em relaçãoà renda dos países ricos.

Há razões conjunturais e demédio prazo por trás desse oti-mismo apenas moderado em re-lação às perspectivas da econo-mia brasileira.

É inegável que nosso bom de-sempenho em 2004 se deveu emparte às condições externas muitofavoráveis: forte crescimento docomércio internacional, aumentodo preço das commodities, jurosreais negativos nos países ricos,elevada liquidez e grande apetitepelo risco nos mercados financei-ros.Nos próximosanos, o ambien-te externo deve se tornar gradual-mente mais hostil, com a elevaçãodos jurosnosEUAeanaturaldesa-celeração do crescimento mun-

dial. Além disso, o inevitável ajus-te das contas externas americanaspodeprecipitar umdesaquecimen-to mais brusco e significativo daeconomia mundial e uma forte de-terioração das condições de finan-ciamentoexterno, dosquais oBra-sil certamente não sairia ileso.

Também contribuiu para viabi-lizar a forte expansão de 2004 abaixa taxa de utilização da capaci-dade da indústria em 2003. O es-paço para crescer ocupando capa-cidade ociosa será menor nos pró-ximos anos. Isso já começou a fi-car evidente na subida dos preçosindustriais no atacado e no com-portamento das exportações líqui-das. A indústria de transforma-ção termina o ano com um dosmais altos níveis de utilização decapacidade desde os anos 1970,similar ao atingido no Plano Cru-zado e no primeiro trimestre de1995, quando a economia brasi-leira estava super aquecida.

Para crescer mais rápido, o Paísprecisaráexpandirmais acelerada-mente sua capacidade de produ-ção, e para isso necessitará elevara sua taxa de investimento. Foi po-sitivo, portanto, que em 2004 o in-vestimento tenha se recuperadofortemente, depois de quedas su-cessivasem2001-03.Masé forço-so reconhecer que essa expansãosedeu sobreumabasemuitodepri-mida. Estima-se que, a preçosconstantesde1980,a taxade inves-timento em 2004 foi de apenas14% do PIB, 10% do PIB a menos

do que em 1980.O baixo nível de investimento

das duas últimas décadas explicaporque o estoque de capital cres-ceuapenas2% a.a. em1994-2003.Combinandoessa taxacomexpan-sões de 2% a.a. da população eco-nomicamente ativa e 1,5% a.a. daprodutividade total de fatores, che-ga-se aos 3,5% de crescimentoanual do PIB que o mercado acre-dita ser o máximo que a economiabrasileira comporta atualmente.

Isso não significa, de forma al-guma, que o Brasil não pode cres-cer a um ritmo mais acelerado doque esse. Apenas que para isso énecessário aumentar a taxa de in-vestimento. Por exemplo, paraque o crescimento potencial doPIB suba gradativamente dosatuais3,5%para5%em2010,o in-vestimento teria de aumentar 9%a.a. nos próximos seis anos. Essameta contrasta com uma expansãomédia da formação bruta de capi-tal fixo de apenas 1,1% a.a. nos úl-timos 15 anos.

Não ter criado um ambientemais propício ao investimento foio principal fracasso das reformasdos anos 1990. As empresas rea-giram a elas defensivamente, sen-do bem-sucedidas em elevar aprodutividade, mas aumentandomodestamente o investimento e,portanto, o potencial de cresci-mento econômico.

A percepção de que a econo-mia ainda apresenta um risco ele-vado foi provavelmente o que en-

curtou os horizontes das empre-sas e as desestimulou a investirmais agressivamente na expan-são da sua capacidade produtiva,a despeito dos seus ganhos de pro-dutividade. Pelo menos quatro fa-tores contribuíram para isso: a vul-nerabilidadedo País a choques ex-ternos; as dúvidas quanto à sol-vência da dívida pública; a possi-bilidade de o crescimento serabortado pela falta de infra-estru-tura, como em 2001; e o discursoambíguo das autoridades quantoao rumo da política econômica.

Um aspecto importante desseproblema é a relação bidirecionalque existe entre esses riscos e odesempenho da economia. De fa-to, tanto o investimento dependeda percepção de que a economiacontinuará crescendo, como estadepende do investimento para po-der se expandir. Isso ilustra a exis-tência de equilíbrios múltiplos noprocesso de desenvolvimento,particularmente no que tange aoinvestimento.

Essa é uma diferença funda-mental entre as estratégias de1930-80 e 1994-2004. Naqueleperíodo, o Estado foi capaz decoordenar as expectativas e açõesdos agentes privados, de forma acolocar o País em um equilíbriode alto nível, em que o investi-mento e o crescimento eram ele-vados. Já no passado recente, acombinação de mais competiçãocom uma elevada incerteza sobreo futuro da economia levou as em-presas a investir muito em moder-nização, para defender seus mar-ket shares, mas pouco em expan-são de capacidade.

Superar a vulnerabilidade fiscal,externa e regulatória da economiabrasileira demandará muitos anosde reformasedisciplinamacroeco-

nômica.Masépossível começar jáa ampliar os horizontes empresa-riais se o governo também alongaro horizonte das suas políticas.

A principal barreira a que issoaconteça é a divergência que exis-te no governo, e em menor escalana própria sociedade, sobre quemecanismos de coordenação utili-zar. Em 1930-80, o Estado se va-leupara issodo investimentopúbli-co e de subsídios fiscais e credití-cios. A grande autonomia comque oExecutivo administrou essesinstrumentos eo foco quase exclu-sivo no crescimento, na expectati-va de que este trouxesse o desen-volvimento social a reboque, tam-bém foram importantes.

Muitos continuam acreditandoquepara sedesenvolver oPaíspre-cisa primeiro recuperar o controlesobre esses instrumentos, para de-pois repetir a estratégia adotadaem 1930-80. Mas essa visão igno-ra as transformações por que oPaís passou nos últimos 20 anos,incluindo a instauração da demo-cracia, a prioridade dada à questãosocial, amaior integração à econo-mia mundial e a menor interven-ção do Estado na economia.

Ograndedesafiodapolíticaeco-nômica nos próximos anos será,portanto, criarumambientequees-timuleo investimento privado, uti-lizando instrumentos modernos decoordenação de expectativas. Paraisso seria importante se adotaruma agenda mínima com metasde curto, médio e longo prazos pa-ra pelo menos quatro áreas:

1.Ascontas públicas, prevendo-seuma significativa redução dadí-vida pública e da carga tributáriacom proporções do PIB;

2. As contas externas, buscan-do-se a ampliação da correntede comércio e das reservas inter-nacionais;

3.Direitosdepropriedade, forta-lecendo-se as agências regulado-ras e melhorando a regulação cor-porativa; e

4.Aeducaçãobásica, comauni-versalização da pré-escola ao ensi-no médio.

Irá 2005 marcar a volta do cres-cimento sustentado? É cedo paradizer. Mas com certeza não faltammotivos para os brasileiros volta-rem a sonhar grande. ●

* Armando Castelar Pinheiroé economista

PIB PER CAPITA ANUALCRESCEU 0,3% DE 1981A 2004 E 3,9% NAS 5DÉCADAS ANTERIORES

HOUVE AVANÇOINSTITUCIONALNAS CHAMADAS‘DÉCADAS PERDIDAS’

TRAVESSIA ‘04/05

PREGÃO DA BOLSA DE MERCADORIAS E FUTUROS – 2004 foi a época de a sociedade colher os frutos da disciplina fiscal do ano anterior

NILTON FUKUDA/AE–25/11/2004

PB COR

%HermesFileInfo:H-8:20041231:H8SEXTA-FEIRA, 31 DE DEZEMBRO DE 2004 ● O ESTADO DE S.PAULO

Page 9: Retrospectiva Estadão - 2004

Produto: ESTADO - ESPECIAL - 9 - 31/12/04 CompositeH9 - SÃO PAULO

Produto: ESTADO - ESPECIAL - 9 - 31/12/04 CompositeH9 - SÃO PAULO

OsriscosdaprosperidademundialEmmeioàsincertezasprovocadaspelaquedadodólar,Brasilprecisaampliar investimentos

Albert Fishlow*

O mundo tem vivido um ano ex-cepcionalmente positivo – ao me-nos na economia. Houve um au-mento real de cerca de 5% nocrescimento em 2004, a primeiravez em duas décadas que esse re-sultado geral foi obtido. Virtual-mente todos os países participa-ram e a expansão do comérciomundial (depois de ajustada aosaumentos de preço) tem sido esti-mado na ordem de 10%, restau-rando dessa forma a relação dopós-guerra entre expansão inter-nacional e doméstica.

Para 2005, está prevista umaexpansão menor, mas ainda signi-ficativa, de talvez 4,2%. As ex-pectativas para o comércio inter-nacional baixaram proporcional-mente para em torno de 8%.Mais uma vez, essas perspectivasincluem todas as regiões, apesarde um êxito global ligeiramentemenor. A expectativa é de que ospreços do petróleo, a principalpraga da segunda metade de2004, continuem em movimentodescendente, mas apenas gradual-mente. Presume-se que os preçosde outras commodities permane-çam razoavelmente estáveis, de-pois de grande aumento no decor-rer do ano passado.

Mas por trás dessa visão geralpositiva se esconde uma série detemores não expressos e talvezmeramente fantasmagóricos. Umgrupo deles diz respeito à China;o outro aos Estados Unidos. Es-sas preocupações estão inter-rela-cionadas. A China apareceu co-mo o grande produtor global e osEstados Unidos como o grandeconsumidor global. Juntos, osdois sustentaram a expansão nofim da década de 90 e subscreve-ram a recuperação global desde arecessão americana de 2001.

A China emergiu como conse-qüência da sua profunda adesão àglobalização no decorrer da últi-ma década. Sua rápida expansãoeconômica de cerca de 10% aoano no decorrer desse períodoagora deixou-a em segundo lu-gar, perdendo apenas para os Es-tados Unidos, em porcentagemda produção mundial. A Chinasozinha respondeu por cerca deum terço do crescimento globalnos últimos anos. E fez isso co-mo conseqüência de grandes pou-panças e investimentos domésti-cos, da ordem de 40% do Produ-to Interno Bruto. Há ineficiênciassignificativas, que não se limitamàs do setor financeiro doméstico:a seguir vêm a corrupção, a am-pliação da desigualdade, a degra-dação do ambiente, sem falar nafalta de democracia. Mas um se-tor rural ainda grande e instruídoé uma fonte contínua de supri-mento de mão-de-obra barata du-rante muitos e muitos anos. E es-se é um fator importante.

Uma característica especialdessa expansão tem sido o enor-me crescimento das exportaçõese importações, as quais, em con-junto, agora atingem 75% doPIB, uma porcentagem muitomaior do que a obtida por outrasgrandes economias. As tarifaschinesas caíram drasticamente pa-ra algo em torno de 4% e seu re-cente ingresso na OrganizaçãoMundial do Comércio confirmaseu desejo de tirar pleno proveitode uma economia internacionalem expansão.

Aqui entram os Estados Uni-dos, cuja grande predileção peloconsumo tem ajudado a sustentara economia mundial há muitosanos. Seu déficit em conta corren-te agora chegou perto de 6% do

PIB, apesar das baixas taxas de ju-ros que está pagando sobre suaflorescente dívida externa. A pou-pança pessoal caiu para o nívelde cerca de 2% dos rendimentosdisponíveis. Com a recente reces-são, impostos mais baixos e aguerra no Iraque, ressurgiu umdéficit fiscal interno nos últimosanos, agora chegando a cerca de4%. Em resposta a tudo isso, as-sim como aos planos do reeleitopresidente Bush de privatizar aprevidência social e tornar perma-

nentes as reduções tributárias an-teriores, o dólar despencou nos úl-timos meses frente ao euro e o ie-ne (mas não em relação ao yuan,que os chineses mantêm fixo emrelação ao dólar). Geralmente, es-se tipo de desempenho indicariaa necessidade de uma interven-ção imediata do FMI – o tradicio-nal problema da América Latina.

Mas, como o dólar ainda é aprincipal moeda internacional, osEstados Unidos até agora têmconseguido financiar seus dese-quilíbrios por meio da emissãomaciça de valores mobiliários ab-sorvidos principalmente pela Chi-na e pelo Japão, que juntos detêmalgo da ordem de US$ 1,3 tri-lhão. O dólar em queda represen-ta uma perda de capital sobre es-sa dívida, assim os bancos cen-trais devem exigir taxas de jurosmais altas se pretendem conti-nuar comprando. As taxas ameri-canas, apesar dos aumentos regu-lares do Federal Reserve nos últi-mos meses, ainda estão negativasem termos reais. A elevação rápi-da dos juros quase certamente vairefrear a expansão dos EstadosUnidos, por causa do alto endivi-

damento dos consumidores,além de precipitar um grande de-clínio no preço dos imóveis, cujacotação recente ajudou muito aapoiar o contínuo hábito de con-sumo. A desvalorização do dólarresultará numa alta da inflaçãodoméstica nos Estados Unidos enum ajuste menor do desequilí-brio comercial quando este émais necessário. E, subitamente,as felizes perspectivas da conti-nuidade do crescimento global aaltos índices em 2005 começama se desintegrar.

Essa má notícia não é uma pos-sibilidade imediata, mas está detocaia, como uma probabilidadediretamente proporcional à dura-ção do desequilíbrio. Com o de-sinteresse dos chineses em valori-zar o yuan e o ônus transferido pa-ra o euro e para o iene, essas eco-nomias têm de arcar com umaparcela maior do ajuste imediato,a conseqüente recessão logo assu-me uma dinâmica própria e se ge-neraliza. A ausência de uma coor-denação econômica internacio-nal eficaz volta a causar proble-mas e o cenário mundial fica som-brio.

O mundo em desenvolvimen-to, agora finalmente começandoa emergir economicamente, me-rece mais do que isso. Portanto,vamos ter esperança de que pre-valeça o bom senso – antes tardedo que nunca – e esse quadro in-ternacional assustador seja evita-do pela retomada de tentativas sé-rias de harmonização, como aque-las que ocorreram duas décadasatrás no Plaza Hotel de NovaYork. Há a esperança de que osmercados estejam começando aexigir uma reação política preco-ce, veja os recentes preços dasmoedas.

Tudo isso é especialmente rele-vante para o Brasil. Diferente-mente de antes, o País precisamuito de um ambiente global po-sitivo para continuar a crescer. Oano que passou foi excepcional,

pois o crescimento real das expor-tações superior a 17% ajudou aproduzir uma expansão geral quetende a superar os 5%. Os preçosdas exportações estiveram quaseno mesmo nível. Há um substan-cial superávit em conta corrente,que ultrapassa os US$ 10 bi-lhões. O real foi valorizado auma cotação de 2,7 frente ao dó-lar. Os ministros Furlan e Paloccipodem desfrutar de seu champa-nhe agora que o spread sobre osvalores mobiliários do governocaiu para menos de 400 pontos.

A melhoria correspondenteapareceu no front doméstico. Foiobtido um superávit primário demais de 4,5%; as taxas de jurosdomésticas reais, apesar da eleva-ção na Selic no final do ano, esti-veram em torno de 10%; a rela-ção entre a dívida e o PIB caiu pe-la primeira vez em uma década; odesemprego cresceu menos; e ossalários reais tiveram aumento.Os índices de investimento pare-ce que se elevaram no decorrerdo ano à medida que a utilizaçãoda capacidade cresceu firmemen-te.

O próximo ano é crucial. Ago-ra que a revista The Economistclassifica o Brasil, juntamentecom Rússia, Índia e China, comouma das principais economiasem desenvolvimento, o País estáem outra categoria. Será realmen-te este o caso?

Internacionalmente, as exporta-ções tendem a se expandir commenos rapidez, tanto em quanti-dade quanto no preço. O ano pas-sado não se repetirá. O crescimen-to da China terá de ser moderadosignificativamente para se man-ter nos trilhos. O superávit comer-cial encolherá à medida que as ex-portações aumentam mais depres-sa e as exportações crescem me-nos. O superávit em conta corren-te, conseqüentemente, decresce-rá. As taxas de câmbio não vãocair significativamente porque odeclínio do dólar vai ajudar. Isso

também contribui para coibir asexpectativas de exportação.

A esta altura, a maioria dosanalistas está projetando um cres-cimento para 2005 entre 3% e4%. Obviamente é menos do queo resultado estelar do ano passa-do pelo simples motivo que, en-tão, o País estava se expandindoa partir de um ano de crescimen-to zero, virtualmente, usando oexcesso de capacidade e se bene-ficiando do mercado externo.

Agora chegamos ao âmago da

questão. Para que este padrão se-ja sustentável e para que os ga-nhos continuem nos anos subse-qüentes, as taxas de investimentobruto terão de aumentar muitomais. Há a necessidade de novasfábricas e equipamentos, assimcomo de melhorias significativasna infra-estrutura. O atual nívelde investimento do Brasil, de me-nos de 20% do PIB, é ainda mui-to abaixo do requerido para sus-tentar uma taxa de crescimentoanual de 5%.

Igualmente, os índices de pou-pança terão de se manter e dessaforma evitar depender demais deacréscimos externos. Essa é umalição do passado facilmente igno-rada. Controlar os influxos de ca-pital não vai resolver o problemana ausência de poupança domésti-ca sustentável. Nem acréscimosmuito grandes ao salário mínimoconseguirão fazer muito mais doque incentivar o consumo, aomesmo tempo que impõem maispressão sobre o sistema de previ-dência social. O governo pode fa-zer uma contribuição positiva evi-tando aumentos nos dispêndiosde consumo público e enfatizan-

do as despesas com investimen-tos em programas sociais.

Tal transformação econômica,juntamente com a manutençãoda preocupação com a quantida-de e a qualidade do ensino, podefazer voltar o crescimento quechegou a um fim súbito no fim dadécada de 1980. Mas desta vezbaseado na participação ativa naeconomia global e com um setorprivado revitalizado e capaz degerar progressos na produtivida-de, o que deve tornar suas conse-qüências sustentáveis.

E, para assegurar o necessárioapoio popular a uma pauta econô-mica rigorosa como esta – semsubsídios, sem aumento de em-pregos no governo ou favores es-peciais –, o presidente Lula e ochancelar Amorim devem conti-nuar a enfatizar o surgimento doBrasil no cenário internacionalcomo um participante importan-te. O Brasil é. Por favor, usem aRodada de Doha das negocia-ções da OMC como uma formade restringir os substanciais subsí-dios agrícolas da União Euro-péia, dos Estados Unidos e dospaíses asiáticos. Utilizem asatuais discussões sobre a amplia-ção do Conselho de Segurançada ONU para enfatizar a capaci-dade do Brasil de participar efeti-vamente, seja a questão o Haitiou o Iraque ou qualquer outra.Comprometam-se com a pautade uma América do Sul mais uni-da e mais comunicativa sob a lide-rança do Brasil, como foi feitoem Cuzco. Promovam a necessi-dade de maior coerência políticadentro do Mercosul, como foi ar-gumentado em Ouro Preto. Mas,acima de tudo, assegurem que osobjetivos brasileiros continuemglobais. Esta é a verdadeira lição,não somente para 2005, mas tam-bém para os muitos anos vindou-ros.

* Albert Fishlow é economistae brasilianista

PALOCCI E FURLANTÊM DIREITO ACHAMPANHE APÓSQUEDA DO RISCO PAÍS

O PRÓPRIO MERCADOPODE EXIGIR UMAREAÇÃO POLÍTICA DOSBANCOS CENTRAIS

TRAVESSIA ‘04/05

ENTRANDO NO CLUBE – Lula e o presidente chinês, Hu Jintao: Brasil precisa continuar perseguindo objetivos globais, sejam eles na ONU, no Haiti ou na liderança do Mercosul

fraudes na compra de hemoderi-vados para o Ministério da Saú-de, na Operação Vampiro.25 – Denúncias de torturas emprisões no Iraque levam o Pentá-gono a promover mudanças nassuas tropas no país. Entre os afas-tados estão o general RicardoSanchez, militar de mais alta pa-tente no Iraque, e a general JanisKarpinski, responsável por 16 cen-tros de detenção – fotografiastiradas num deles, Abu Ghraib,mostram iraquianos submetidosa torturas e humilhações.28 – Grupo de 161 militares brasi-leiros embarca para o Haiti paraintegrar missão da ONU.

31 – Termina, com 30 mortos e14 feridos, rebelião na Casa deCustódia de Benfica, no Rio.

JUNHO16 – Comissão bipartidária queinvestiga os atentados de 11 desetembro de 2001 nos EUA dizque “não há nenhuma evidência”de que o ex-ditador iraquiano Sa-ddam Hussein tenha ajudado aAl-Qaeda a atacar o país.20 – Morre aos 67 anos o coreó-grafo espanhol Antonio Gades,maior nome do flamenco.29 – Popularidade do governoLula atinge o pior patamar da ges-tão na pesquisa CNI/Ibope. A ava-

liação positiva do governo caiude 34% em março para 29% emjunho, empatando tecnicamentecom a avaliação negativa (26%),que subiu 3 pontos.30 – Coalizão liderada pelos EUA

transfere soberania do Iraque pa-ra governo interino.

JULHO5 – Ministro da Economia da Ar-gentina, Roberto Lavagna (foto),anuncia medidas para reduzir aimportação de produtos brasilei-ros. É a guerra das geladeiras.18 – Seleção brasileira masculinade vôlei é tetracampeã da LigaMundial. O Brasil venceu a Itáliapor 3 sets a 1 na decisão.22 – Consecutivos recordes dabalança comercial garantiram aoPaís o maior superávit em transa-ções correntes (soma do comér-cio exterior, viagens, juros da dívi-

da e remessa de lucros e dividen-dos) da história em um semestre.O País obteve no período superá-vit de US$ 4,415 bilhões (1,6% doPIB) em conta corrente, superiorao acumulado em 2003 (US$4,016 bilhões).25 – Brasil conquista a Copa Amé-rica, batendo a Argentina.28 – Alvo de denúncias de sone-gação, o diretor de Política Mone-tária do BC, Luiz Augusto Candio-ta, pede demissão.

AGOSTO1 – Mais de 440 pessoas morremem incêndio em supermercadode Assunção, Paraguai.

3 – Tribunal Superior Eleitoral cas-sa o mandato do governador deRoraima, Flamarion Portela (afas-tado do PT). Ele era acusado deenvolvimento no “escândalo dosgafanhotos”, esquema de desviode recursos por meio da contrata-ção de servidores fantasmas.18 – Supremo considera constitu-cional a contribuição previdenciá-ria dos servidores inativos.19 – Três moradores de rua sãomortos e pelo menos sete ficamferidos na região central de SãoPaulo. O primeiro sem-teto foiencontrado por policiais na RuaSão Bento. Em menos de trêshoras, a polícia localizou nove

FATOS DO ANO

CELSO JUNIOR/AE

PB COR

%HermesFileInfo:H-9:20041231: H9O ESTADO DE S.PAULO ● SEXTA-FEIRA, 31 DE DEZEMBRO DE 2004

Page 10: Retrospectiva Estadão - 2004

Produto: ESTADO - ESPECIAL - 10 - 31/12/04 CompositeH10 - SÃO PAULO

Produto: ESTADO - ESPECIAL - 10 - 31/12/04 CompositeH10 - SÃO PAULO

Triunfal em2004,Bushchegaacossadoa2005Republicano largacommenor taxadeaprovaçãoparaumsegundomandatoem80anos,efeitodaguerrano Iraque

MaisdevastadordoquebombasTorturasemAbuGhraibequiparamocupaçãoamericananoIraqueàsdeantigaspotênciascoloniais

Michael Ignatieff*

As fotos de Abu Ghraib não desa-parecem com o tempo. O homemencapuzado na caixa, a figura ten-tando se proteger das presas deum cão, a mulher olhando para olado e apontando para os genitaisde um prisioneiro – todas essasimagensse tornaramícones indelé-veis de horror e vergonha.

Para os oponentes da guerra noIraque, Abu Ghraib marcou o mo-mento em que a invasão que elessempre qualificaram de ato de in-sensatez repentinamente se tornouum crime. Para os defensores daguerra, Abu Ghraib foi, no míni-mo, ainda mais dolorosa.

À medida que os meses se pas-saram e as supostas armas de des-truiçãoemmassadeSaddamHus-sein não apareceram, a libertaçãodo povo iraquiano tornou-se a es-perança que justificava todos osriscos e perigos da ocupação. Asfotografias de americanos tolos esorridentesdesfrutandoahumilha-ção e o terror de seus prisioneiros,nopróprio local ondeos torturado-res de Saddam haviam feito seupiordurante anos, foramum golpedevastador contra o argumentomoral da guerra.

Se uma das peças centrais daguerra ao terror é uma luta de opi-niãopúblicapara convencer as eli-tes árabes a apoiar – ou pelo me-nosnãocombater –ademocratiza-çãodoIraque, aliadaaumamobili-zação para evitar que jovens de-sempregados e descontentes en-grossem as fileiras dos terroristas,entãoas fotosdevastadorasdosde-tentos iraquianos sofrendo abusose humilhações sexuais nas mãos

de soldados dos Estados Unidosna prisão de Abu Ghraib, revela-das ao mundo pela primeira vezem28 deabril no programade TV60Minutes,marcaramumaformi-dável reviravolta do destino.

Um general americano obser-vou que a divulgação mundial dasfotografias foi o equivalente mili-tar, em termos estratégicos, deuma grande derrota das forças dosEUA no campo de batalha. Foium ferimento auto-infligido, alémdo mais, e numa guerra contra o

terror tais ferimentos são os maiscustosos de todos.

O registro histórico mostra quepoucas– sealguma–democraciasmaduras foram derrotadas por ter-roristas. Os britânicos na Irlandado Norte, os espanhóis na regiãobasca, os alemães contra o grupoBaader-Meinhoff – todos prevale-ceram contra campanhas de vio-lência. Mas as democracias po-dem ser prejudicadas pela reaçãoexagerada: a polícia que mata ino-centes, por exemplo, ou a legisla-ção draconiana que restringe as li-berdades civis sem necessidade.

Abu Ghraib deixou claro comoé difícil realmente vencer umaguerra contra uma insurgência do-méstica apoiada por uma popula-ção sob ocupação. Como os fran-ceses diante do levante na Argéliacolonial ou os britânicos contra os

mau-mau no Quênia colonial, osEUA enfrentam uma insurgênciano Iraque insignificante em ter-mos militares, mas devastadora nacapacidade de minar a determina-ção da potência de ocupação.

Numa guerra assimétrica ondeum lado tem todas as vantagensmilitares, o lado mais fraco podevencer provocando o mais forte atomar iniciativas que invalidemsua superioridade moral e abalemsua autoconfiança.

Perdendo soldados diariamentepor causa de explosivos e embos-cadasamadoras,masmortais,ven-do o apoio iraquiano à ocupaçãodiminuir, o secretário dr Defesa,Donald Rumsfeld, e seus coman-dantes sabiam que precisavam au-mentar a confiabilidade da inteli-gência e, ao mesmo tempo, ame-drontar os iraquianos que pode-riam sentir-se tentados a unir-se àinsurgência.

Decima,vieramordensparaau-mentar o número de detidos emAbu Ghraib e “amaciá-los” comuma série de técnicas que in-cluíam explicitamente o uso decães, a privação do sono e a humi-lhação. “De cima” significa que aluz verde foi mostrada, mesmoque ordens explícitas não tenhamsido emitidas, pelo próprio presi-dente George W. Bush. No iníciode 2002, agora sabemos, o presi-dente aprovou um parecer secretoconcluindo que os EUA não se-riam limitados pela Convenção deGenebra no tratamento dos prisio-neiros de Guantánamo.

A alegação de altos funcioná-rios do Pentágono de que AbuGhraib foraobrade“algumaspou-casmaçãspodres”éumaficção in-

teresseira. O rastro em papel, ex-posto por investigadores militarese dois grupos de inquérito, é claroo bastante: Abu Ghraib, como oassassinatode dois detentos na ba-se aérea de Bagram, no Afeganis-tão, surgiu diretamente de deci-sõespresidenciaisdedestruir a lon-ga tradição americana de respeitoà lei humanitária internacional.

Rumsfeld e sua equipe solta-ram os cachorros – literalmente– em cima de detentos que semostraram, na maioria dos ca-sos, de pouco ou nenhum valorpara a inteligência, mas pode-riam ser intimidados para quenão se unissem à insurgência.

O erro aqui não foi apenas su-por que a pura intimidação fun-

cionaria, mas também esquecerum simples fato sobre os solda-dos modernos: todos têm câme-ras digitais e acesso à internet.

Uma guerra contra o terror éuma guerra de mídia. Os terro-ristas que decapitaram o repór-ter do Wall Street Journal Da-niel Pearl no Paquistão e os res-ponsáveis pela decapitação deempreiteiros estrangeiros traba-lhando no Iraque demonstra-ram melhor percepção do po-der da imagem do que seus opo-nentes americanos.

O Pentágono simplesmentenunca considerou a possibilida-de de seu desagradável segredoser revelado ao mundo por seuspróprios soldados. Foi Joseph

M. Darby, membro da unidadeda Guarda Nacional responsá-vel pelos abusos fotografados,quem decidiu passar um CDcom as fotos por baixo da portade seus superiores. A partir da-quele momento, o segredo va-zaria para o mundo todo.

Para um otimista, AbuGhraib é uma mensagem de es-perança. A verdade virá à tona.Numa era digital marcada pelapresença da mídia, está fican-do mais difícil manter segre-dos sujos. O fato de a históriater sido revelada por um solda-do comum sugere que as reser-vas de decência elementar en-tre os militares dos EUA aindanão se esgotaram.

Para um pessimista, no entan-to, ou para alguém que quer aju-dar os iraquianos a percorrer ocaminho para a democracia, oquadro é desolador. Como to-das as ocupações coloniais dopassado, a dos EUA no Iraqueestá sendo forçada, por uma in-surgência brutal, a adotar umapolítica de brutalidade que traia honra dos militares e contra-diz a justificativa moral que le-vou à guerra originalmente.

Qualquer um que tenha fica-do horrorizado com as ima-gens de Abu Ghraib quer acre-ditar que um limite foi estabele-cido, medidas foram tomadase o pior já passou. No cada vezmais turvo ambiente de segu-rança do Iraque, só nos resta es-perar que isto não seja uma ilu-são. ● New York Times

* Michael Ignatieff é historia-dor na Universidade de Harvard

Dorrit Harazim*

Nem parece que se passaram sódois meses desde o grito de vitóriadaAmérica conservadora.Oito se-manas após triunfar nas urnas so-breodemocrata John Kerry,opre-sidente reeleito dos Estados Uni-dos, George W. Bush, adentra2005 com estatura encolhida.

Amenosqueocorraumfatopo-líticode impacto capazde alterar ocenárioaté amanhãde20de janei-ro,Bush iniciaráosegundomanda-to com o menor índice de aprova-ção dos últimos 80 anos de Histó-ria americana. A euforia que tin-giudevermelho republicanooma-pa eleitoral parece ter desbotado.

Embora desacreditados pela fa-lência múltipla sofrida na eleiçãode 2 de novembro, os sete maio-res institutos de pesquisa de opi-nião dos EUA apontam para umamesma singularidade. Ao contrá-rio dospresidentes dedois manda-tos que o precederam, GeorgeBush deve assumir com acanha-dos 53% de aprovação, enquantoBill Clinton, à sua época, tinha60%, Ronald Reagan, 61%, Ri-chard Nixon, 62%, Lyndon John-son, 70%, Dwight Eisenhower,75% e Harry Truman, 69%.

Na raiz dessa implosão de con-fiança está, por ironia, a guerra noIraque, único elemento de fabrica-çãoprópriana tríadeque sustentoua reeleição. Do pacote vitorioso“God, guns and gays” – paraabranger os temas da fé religiosa,segurança nacional e valores mo-rais que garantiram a Bush o votoda América profunda –, o atoleirono Iraque tempotencial paraengo-lir como uma grande sombra boaparte do segundomandato do ocu-pante da Casa Branca.

O exercício do poder, ensina aHistória, não melhora com o tem-po. As razões são múltiplas e co-

nhecidas, a começar pelo desgastenatural dos materiais. Outros fato-res, mais pontuais e dramáticos,deixammanchas indeléveisnabio-grafiaque todopresidente se esme-raemdeixarpara aHistórianoúlti-mo mandato. No caso de Clinton,o episódio Mônica Lewinski seabateu sobre a Casa Branca comoum tsunami. Reagan, em 1986, fi-cou paralisado pelas investigaçõesdo caso Irã-Contras. Richard Ni-xon foi simplesmente ejetado doSalão Oval pelo Watergate.

Bush saberá em 30 de janeiro –dez dias após prestar novo jura-mento – o que 2005 lhe reserva noflanco onde está mais vulnerável.

Se as eleições no Iraque marcadasparaessediase realizarememcon-dições mínimas de aceitabilidade,ele terá folga para respirar. Casocontrário, a sangria política de seugoverno será difícil de estancar.

Pela primeira vez em 19 mesesde guerra, uma sólida maioria deamericanos acha que a ocupaçãodo Iraque foi um erro. Segundo re-cente pesquisa Washington Post-ABC, 70% dos entrevistados con-sideram “inaceitáveis” as baixasmilitares sofridas até agora. E elassó fazem aumentar. Desde o diaem que Bush triunfou sobre Kerryoito semanas atrás, outros 200 sol-dados americanos morreram emcombate sem saber exatamentepor que e para quê. Uma primeiraleva de desertores e opositores deconsciência já achou o caminhodoCanadá, refazendoa trilhaaber-ta pelos que fugiam da Guerra do

Vietnã 35 anos atrás. Dado que oserviço militar nos EUA não émais obrigatório como naquelaguerra–ou seja, só veste uniformequemfezessaopção–, cadadeser-ção adquire significado maior.

George W. Bush jamais escon-deu que considerava inacabada ainvestida militar desencadeadacontra o Iraque por seu pai, o en-tão presidente George H. Bush.No início dos anos 90, tropas dosEUAderrotaramamaciça invasãodo Kuwait por forças de SaddamHussein e os puseram para correr.Com o Kuwait libertado, Bush sê-nior deu-se por satisfeito e decidiunãosernecessário invadir opaís in-vasor.Nãofoi reeleito.Hoje, quan-do comparados, pai e filho rece-bemavaliaçãobastantediferencia-da. Segundo pesquisa divulgadapela revista Time, Bush pai é vistocomo mais confiável e honesto doqueo filho (37% a 19%), com me-lhor compreensão dos problemas(43% a 25%) e mais ponderado(43% a 21%).

Bush júnior venceu justamentena categoria que pode lhe sairmais cara: “Não arreda pé de suasposições,mesmo que sejam impo-pulares” (56% a 16%).

O43.ºpresidentedosEUAinau-guraosegundomandatocomalgu-mas arranhaduras recentes. A de-sastrosa indicação do ex-chefe daPolíciadeNovaYorkBernardKe-rikparaumdoscargosmais impor-tantesdogabinete–ode secretáriode Segurança Interna – teve de serabortadaàs pressas.Qualquer con-sulta na internet poderia ter infor-madoopresidentedequeabiogra-fia de Kerik era um cipoal de irre-gularidades. Esteve ligado a umaempreiteira suspeita de pertencer àmáfia, desviou parte da venda decigarros nos presídios de NovaYork para uma obscura fundaçãosob seu controle, teve um manda-

do de prisão relacionado a umaaçãocivil, foiprocessadoporagen-tes penitenciários e recebeu propi-namilionáriadeumaempresacon-tratada pelo Departamento de Se-gurança Interna. Segundo DavidCorn,doLosAngelesTimes, a sor-te de Kerik, ao ser defenestrado,foi ter podido se esconder atrás dopecadillo oficial de ter empregadouma babá sem registro.

Houveoutras derrapadasmeno-res, mas Bush sabe que cravouuma marca registrada nos primei-ros quatro anos de poder: presidiuo que talvez venha a ser estudadocomo a mais profunda reestrutura-ção estratégica dos EUA desde os

temposdeFranklinDelanoRoose-velt. Em 1941 a América de Roo-sevelt teve de responder ao ataquede Pearl Harbor. Em 2001 a Amé-rica de Bush precisou repensar omundoà luzdoataque terrorista àstorres gêmeas. Só que ainda é ce-do para analisar a dimensão dessaempreitada inicial, visto que o seucurso não se concluiu.

É agora que começa a corridacontra o relógio da História. E sãovozes como as do veterano StanGoff, ex-sargentodasForçasEspe-ciais especializado em operaçõesde contra-insurreição, que come-çamafazer ruído. “OsEUAperde-ram a iniciativa no Iraque – isto é,

a capacidade de escolher a hora, olocal e a forma de combater o ini-migo”, sustenta Goff. Com um fi-lho recém-retornado da guerra, elenão se conforma com a escaladade barbárie que se tornou rotina nopaís ocupado. “Conclamo GeorgeW. Bush, Dick Cheney, DonaldRumsfeld, Colin Powell, Karl Ro-ve e todos os membros do Con-gresso que votaram a favor destaguerra a irem até lá. Vistam seuscoletes de combate e saiamandan-do pelas ruas de Bagdá. Saiam desuas redomas e entrem no mundoque vocês criaram.” ●

* Dorrit Harazim é jornalista

TESE QUE ATRIBUIEPISÓDIO A‘MAÇÃS PODRES’ ÉFICÇÃO INTERESSEIRA

IRAQUE PODEREPRESENTAR O QUE OCASO IRÃ-CONTRASFOI PARA REAGAN

TRAVESSIA ‘04/05

BONS TEMPOS – Discurso da vitória, em 3 de novembro: desde então, 200 soldados americanos morreram

NAPELEDOALGOZ–HumilhaçãodepresosacabouporhumilharosEUA

TIMOTHY A. CLARY/AFP– 3/11/2004

REUTERS

PB COR

%HermesFileInfo:H-10:20041231:H10SEXTA-FEIRA, 31 DE DEZEMBRO DE 2004 ● O ESTADO DE S.PAULO

Page 11: Retrospectiva Estadão - 2004

Produto: ESTADO - ESPECIAL - 11 - 31/12/04 CompositeH11 - SÃO PAULO

Produto: ESTADO - ESPECIAL - 11 - 31/12/04 CompositeH11 - SÃO PAULO

DepoisdeArafat,novoshorizontesLiderarviradanoconflitoisraelense-palestinoseriamarcapositivaparaBushdeixarnoOrienteMédio

Um11deMarçoquedividiuaEspanhaesuaalmaAtentadoemMadri fezmaisqueamplificaromedodeumpaísatormentadopeloterrorbasco

Anthony Lewis*

Em vida, Yasser Arafat foi o focodas esperanças e temores de doispovos. Para os palestinos, foi o paida nação, o velho homem que in-troduziu um povo quase esqueci-do na consciência do mundo. Paraos israelenses, foi o pai do terror, oparceiro de negociações que fala-va de paz mas nunca abdicou doobjetivo de destruir Israel.

Na morte, Arafat fez com quese voltasse a falar de paz entre Is-rael ePalestina.Ogovernodireitis-tade Israel, que se recusouase reu-nir com palestinos nos últimosanos de Arafat, agora se aproximada Autoridade Palestina. Os pales-tinos, preparando-se para eleger osucessor de Arafat como presiden-te,discutemapossibilidadedepro-cesso político rumo à paz.

A morte de um líder pode real-mente abrir caminho para uma vi-radanessa estrada sangrenta? Sim,creio que pode.

A razão é que os israelenses aolongo do espectro político haviampassado a considerar Arafat umabarreira à negociação. Para o cam-po pacifista de Israel, ele era causade frustração. Entre os que se opu-nham a qualquer conciliação comos palestinos, ele era pretexto paraa recusa da negociação.

Mas o novo senso de possibili-dadenãosignificaotimismo.Dian-te das realidades – a história dolo-rosa, a dificuldade da conciliaçãodos sonhos desses dois povos numpequeno território–, só umtolo se-ria otimista sobre a obtenção daverdadeira paz no futuro próximo.

Por muitos anos, fui um otimis-taemrelaçãoaesseconflito.Afór-mula para sua solução era óbvia e,pensava, inevitável: Israel se retira-ria da Cisjordânia e de Gaza, ocu-padosnaguerrade1967,e láospa-lestinos teriam um Estado – comcapital em Jerusalém Oriental, demaioria árabe.

Israel tem um primeiro-minis-tro, Ariel Sharon, que passou a vi-dapolítica rejeitandoavisãopales-tina. Foi o mais forte defensor nopaís da construção de assentamen-

tos judaicos nos territórios palesti-nos. Preferiu o uso da força militarà negociação política como cami-nho para a segurança de Israel.

Agora Sharon propõe removeros poucos milhares de colonos ju-deus da Faixa de Gaza. Isto sinali-za mudança essencial? Os céticosduvidam.Observamque, emoutu-bro,oprincipal conselheirodeSha-ron, Dov Weisglass, afirmou quea retirada israelense de Gaza desti-nava-se a bloquear processo depaz real e apermitir que Israel con-tinuasse dividindo a Cisjordâniaemenclaves inadequadosaumEs-tado palestino viável.

No lado palestino, há MahmudAbbas, o provável próximo presi-dente da AP. É um moderado,oposto à violência. Mas como po-derácontrolar osmuitosqueconsi-deram a violência a única respostaao domínio israelense?

Controle é o que o israelensemédiomaisquerver no ladopales-tino: controle sobre os extremistasviolentos e, internamente, o fim dacorrupção e da pequena tirania.Controle e o fim do incitamentocontra os judeus nas escolas e fó-runs públicos.

Se há chance de paz negociada,a opinião pública israelense é cru-cial. Um Mandela palestino teriaacalmado os temores israelenses.Mas Arafat nunca faria a transiçãode líderguerrilheiroaestadista.En-trevistei Arafat várias vezes nosseus anos de exílio, em Beirute eTúnis.Sempreoachei elusivo, ten-tando marcar pontos retóricos emvezdedizer claramentequeaceita-va Israel e assumia o compromis-so de viver a seu lado em paz.

Ospalestinos incluemporcenta-gemde profissionais de classe mé-dia–médicos, advogados, jornalis-tas – maior do que qualquer outranaçãoárabe.Conheçomuitoscom-prometidos com uma solução dedois Estados, assim como conhe-ço muitos israelenses. Mas não es-tá claro se o tipo de liderança ne-cessário pode surgir da miséria edo caos da vida palestina nos terri-tórios ocupados.

Além disso, há forças políticas

em ambos os lados que fazem daconciliação uma remota esperan-ça. Os palestinos insistem no “di-reito do retorno” de milhões de re-fugiados expulsos no nascimentode Israel, em 1948, de voltar parasuas casas. Seu retorno, na prática,acabaria com a idéia de Israel co-mo Estado judeu.

No lado israelense, o desafiosãoos colonos. Umpunhado delesna Faixa de Gaza rejeita a transfe-rência, representando grande difi-culdade política para Sharon. Os240 mil colonos na Cisjordâniatêm poder político maior, e algunsameaçam opor-se pela força a

qualquer plano de remoção.Estassãoalgumasdas razõespa-

ra se evitar o otimismo. Para queelas sejam superadas, a liderançaterádevirde fora.Emtermospráti-cos, dos Estados Unidos. GeorgeW. Bush, em seu primeiro manda-to, rebaixou o interesse americanono conflito israelense-palestino. Amorte de Arafat trouxe expressõesrenovadas de interesse de Wa-shington. Mas será preciso maisque a atividade diplomática inten-sificada para fazer uma diferençadecisiva – muito mais. Creio queserá necessária, no fim, uma deci-são dos EUA e seus parceiros nes-

ta empreitada de oferecer seu pró-prio plano de paz.

Seria necessariamente algo pró-ximodoqueopresidenteBillClin-ton apresentou depois de CampDavid, uma versão modificada daoferta de Barak para garantir aospalestinos um Estado contíguo eviável.

Bush bem pode estar relutanteem mexer com os elementos dacomunidade judaica americanaque se opõem a concessões aospalestinos. Condoleezza Rice,sua nova secretária de Estado,não tem experiência no conflito is-raelense-palestino. Mas, se Bush

quiser deixar marca construtivano Oriente Médio depois da misé-ria do Iraque, este é o lugar e omodo de fazê-lo.

E, afinal, há razão para se insis-tir na esperança. Tanto palestinosquanto israelenses, exaustos de-pois de gerações de conflito, an-seiam pela paz. Com orientaçãoexterna, podem estar prontos paratrocar suasvisõesmaximalistaspe-la segurança do repouso.●

*Anthony Lewis, duas vezesganhador do Prêmio Pulitzer, foi

colunista do ‘New York Times’por 32 anos

Paulo Eduardo Nogueira*

Os sangrentos atentados de 11 demarço em Madri – 191 mortos emais de 1.500 feridos – fizerammaisquedilacerar aalmaespanho-la e acrescentar mais um compo-nente de medo a um povo já ator-mentado pelo terror basco. Dividi-rampoliticamenteopaísdemanei-ra profunda, sem horizonte próxi-mo de reconciliação.

A unidade nacional obtida nocombate ao terrorismo da ETA(Pátria Basca e Liberdade), mate-rializadoemumpacto antiterroris-ta entre os principais partidos dopaís, da direita à esquerda, foi umadas vítimas ainda hoje gravemen-te feridas pelas bombas do 11-M.

O Partido Socialista OperárioEspanhol (PSOE), hoje no poder,acusa o Partido Popular (PP), dogoverno anterior, de ter cometidouma “enganação em massa” nashoras e dias subseqüentes ao11-M ao insistir que a ETA estavaenvolvida. E o PP revida, acusan-do o PSOE de ter orquestrado ma-nifestações na véspera da eleição,

já no período de trégua de campa-nha,numgolpebaixoparacapitali-zar a tragédia e reverter o resulta-do.OPP,embora favoritonaspes-quisas, acabou derrotado.

Esse bate-boca se amplificouapós a criação de uma comissãoparlamentar de inquérito, com 18deputados, de maioria governista,paraapurar se houve falhasnapre-venção dos atentados e estabele-cer medidas que tentem evitar no-vas tragédias. A investigação poli-cial-judicial propriamente dita se-gue curso paralelo sem contesta-ções maiores e já produziu deze-nasdeprisõeseextradiçõesde sus-peitos.Comoeradeseesperar, po-rém,as sessõesdaCPIvirarampal-co de embate político, tendo comoprincipaisatoresoex-primeiro-mi-nistro espanhol, José María Az-nar, e o atual, José Luiz RodríguezZapatero, do PSOE, cujos depoi-mentos foram os pontos altos daprogramação.

Aznar falou durante 11 longashoras e cravou a teoria conspirató-riadequeo11-Mtinhacomoobje-tivo mudar o resultado das elei-

ções. “Se as eleições fossem nodia 7, o atentado teria ocorrido nodia 4.” E que as ligações entre osmilitantes da Al-Qaeda responsá-veis pelos ataques com a ETA nãopodem ser descartadas, como fazo PSOE.

Zapatero falou à CPI algunsdiasdepois eacusouAznarde “en-ganaçãoemmassa”do povo espa-nhol e de ter destruído, antes depassar o poder, documentos e ma-teriais que comprovariam as fa-lhas do governo.

A divisão extrapolou os limitesdo Parlamento e chegou a outrossetores. Os dois principais jornaisdo país mantêm linhas editoriaisdistintas. El Pais acredita que nãohá ligações entre a Al-Qaeda e aETA, seguindo a linha governista.El Mundo considera que a históriatem muitos pontos obscuros e mo-bilizou um time permanente dequatro repórteres para explorar ahipótese dessa associação, lem-brandoqueetarras emilitantes islâ-micos mantiveram longos e livrescontatos em prisões espanholas,onde poderia ter sido selado al-

gum tipo de pacto contra o inimi-go comum.

Noiníciodedezembro,umines-perado protagonista volta à cena:com um intervalo de apenas trêsdias entre os atentados em série, a

ETA explode 12 bombas de baixapotência nos mais diversos locaisdo país, depois de um longo perío-do de inatividade. “Estamos vi-vos”, foi o inequívoco recado dosterroristasqueeramjulgadosprati-

camente fora de combate. Desdede2000,maisde500militantes fo-rampresos – mais de 100 somentenesteano.Seubraçopolítico, oBa-tasuna, foi proscrito em 2003.

Um mês antes das explosõesem série de dezembro, um grupode etarras históricos presos havialançado um manifesto propondo ofim da luta armada. “Esse tipo deação não serve mais hoje, é umamorte em fogo lento”, dizia a car-ta. “Nunca na história de nossa or-ganização nos encontramos emuma situação tão ruim.” Seriam as12 bombas uma resposta da atualcúpula etarra, mais jovem (médiade idade: 22 anos) e mais sangui-nária, aos “velhos” dirigentes, ho-je possivelmente preocupados emnegociar a redução de suas penas?

Em 2005, algumas respostas equasecertamentemaisdúvidasde-vememergirnessaEspanha racha-da ao meio.●* Paulo Eduardo Nogueira, jor-nalista, esteve na Espanha emnovembro a convite da Funda-ção Carolina, ligada ao gover-

no espanhol

sem-teto, todos desfigurados.22 – O iatista Robert Scheidt con-quista a primeira medalha de ou-ro para o Brasil nos Jogos de Ate-nas, na classe Laser.23 – Favorita ao ouro, Daiane dosSantos terminou em 5.º lugar afinal da ginástica olímpica.26 – Torben Grael e Marcelo Fer-reira ganham o título da classeStar no iatismo. Grael, de 44anos, torna-se o maior atleta olím-pico brasileiro e o único iatista domundo com cinco medalhas olím-picas – duas medalhas de ouro,uma de prata e duas de bronze.29 – Vôlei masculino do Brasilderrota a Itália por 3 sets a 1 s e

conquista o bicampeonato olímpi-co. País fecha a Olimpíada comseu melhor desempenho: com 4medalhas de ouro, 3 de prata e 3de bronze, terminou em 18.º lugarnos Jogos de Atenas.– Na cena mais inusitada dos Jo-gos de Atenas, o brasileiro Van-derlei Cordeiro de Lima, de 35anos, é agarrado e derrubado nochão pelo ex-padre irlandês Cor-nelius Horan quando liderava amaratona, última competição daOlimpíada. Vanderlei perdeu 12segundos, mas conquistou a me-dalha de bronze.– Schumacher conquista na Bélgi-ca o sétimo título na Fórmula 1.

SETEMBRO3 – Acaba em tragédia o cerco àescola de Beslan (foto), na repúbli-ca russa da Ossétia do Norte, in-vadida no dia 1.º por mais de 30

extremistas chechenos armadosde metralhadoras e com explosi-vos atados ao corpo. Cerca de350 reféns – dos quais 150 crian-ças – morrem e 700 ficam feridosdepois que tropas de elite russasinvadem o prédio. A Rússia infor-mou que 27 terroristas foram mor-tos e há 3 capturados.13 – Putin anuncia um pacote demedidas para fortalecer a segu-rança do país. Entre as propostasestá a eliminação da eleição porvoto direto dos líderes das 89 ins-tâncias de poder em que se divi-de a Federação Russa.– MP editada pelo governo instituio Programa Universidade para

Todos (ProUni), que prevê a con-cessão de bolsas em instituiçõesprivadas em troca da isenção deimpostos.15 – Copom decide aumentar ataxa básica de juros, a Selic, em0,25 ponto percentual, para16,25% ao ano, na primeira eleva-ção desde fevereiro de 2003.24 – Morre na Normandia, aos 69anos, a escritora Françoise Sa-gan, autora de Bom Dia, Tristeza.27 – Os servidores do Judiciáriode São Paulo decidem voltar aotrabalho após 91 dias de greve e12 milhões de processos para-dos. Foi a maior greve da históriada Justiça paulista.

29 – Space Ship One pousa nodeserto de Mojave (EUA) depoisde superar os 100 km de altura nafronteira do espaço. Com isso,abre a era dos vôos espaciaisbancados por investidores priva-dos.

OUTUBRO3 – PT sai do primeiro turno daseleições municipais com um patri-mônio político sem precedentesna sua história. Teve 16,3 milhõesde votos, o suficiente para ganhar398 prefeituras e entrar na dispu-ta de outras 23 no segundo turno.A seguir vem o PSDB, que con-quistou 15,6 milhões de votos e

DIVISOR – Caixão de Arafat em Ramallah. Pai da nação, para palestinos, e pai do terror, para israelenses, líder morto abre caminho para a paz

TRAVESSIA ‘04/05

FATOS DO ANO

TERROR – Vítimas da explosão na hora de rush na estação de Atocha

REUTERS-EL PAIS 11/3/2004

JAMES HILL/THE NEW YORK TIMES 12/12/2004

PB COR

%HermesFileInfo:H-11:20041231: H11O ESTADO DE S.PAULO ● SEXTA-FEIRA, 31 DE DEZEMBRO DE 2004

Page 12: Retrospectiva Estadão - 2004

Produto: ESTADO - ESPECIAL - 12 - 31/12/04 CompositeH12 - SÃO PAULO

Produto: ESTADO - ESPECIAL - 12 - 31/12/04 CompositeH12 - SÃO PAULO

PerigosentreAtenasePequimContradiçõesentreosdoispaísesmostramqueolimpismosóéameaçadopordopingecorrupção

Dorrit Harazim*

Não houve atentados. Nenhumteto ruiu. Estádios e ginásios fi-caram prontos a tempo e o trânsi-to fluiu melhor do que nas ruasdo Rio ou de São Paulo. Cominstalações supimpas, organiza-ção invejável e astral só compa-rável ao de Sydney quatro anosantes, Atenas foi a surpresaolímpica de 2004. Menor paísda União Européia, com sua po-pulação de apenas 11 milhõesde habitantes, a Grécia conse-guiu sediar o maior espetáculoesportivo do mundo. Só mesmoos deuses e o povo grego para sa-ber como essa empreitada deHércules acabou dando certo.

Nem o bafo escaldante vindodo Saara, que todo verão afugen-ta qualquer vida inteligente deAtenas, impediu que alguns re-cordes mundiais lendários fos-sem batidos nesta 28.ª ediçãodos Jogos. E mesmo a marca his-tórica que permaneceu intrans-ponível – as 7 medalhas de ouroconquistadas numa mesma olim-píada pelo americano MarkSpitz, em 1972 – sofreu em Ate-nas o ataque mais ameaçadordos últimos 32 anos.

O perigo veio a bordo de umespigão anfíbio de 19 anos, equi-pado com braços que na piscinaviram hélices, um torso anormal-mente aerodinâmico e um parde pernas mais potente na águado que no chão. MichaelPhelps, claro. Ele chegou a Ate-nas precedido de uma aposta demarketing que eletrizou os Jo-gos: embolsaria US$ 1 milhãoda Adidas se conseguisse igua-lar o feito de Spitz. Faltou pou-co. Phelps competiu 17 vezesem sete dias, levou seis ouros edois bronzes e será para sempreo ícone maior dos Jogos Olímpi-cos de 2004.

“Não dá para acreditar que aOlimpíada tenha acabado”, co-mentou no dia do encerramento.O tempo voara. Quatro anos an-tes, ele era um anônimo adoles-cente de 15 anos maravilhadopor estar em Sydney. E nos pró-ximos quatro anos outros tuba-rões adolescentes emergirão. Di-ficilmente algum com o seu ta-lento múltiplo, que pode ser con-siderado uma categoria à partena história da natação. Mas a bo-lada de US$ 1 milhão continuavalendo até a próxima olimpía-da e Phelps sabe que o tempovoa mais rápido para atletas deponta do que para mortais co-muns.

Para o país ou atleta que pre-tenda deixar uma marca em Pe-quim, sede dos próximos Jogos,o primeiro passo consiste em vi-rar rápido a página dos 16 diasolímpicos de agosto de 2004 e

considerá-los uma antiguidadegrega. Sabidamente, o que al-guns especialistas chamam dedepressão pós-olímpica podeafetar tanto o atleta que colheutodos os louros que cobiçou – esubitamente se sentir vazio –quanto o competidor que fracas-sou e não consegue sair da letar-gia. Para ambos, a perspectivada retomada do ciclo de treinosque jamais tem fim é particular-mente acachapante. Não espan-ta que Michael Phelps tenha si-

do multado por dirigir embriaga-do numa estrada de Salisbury,Estado de Maryland, menos detrês semanas após sua consagra-ção na Grécia.

Para as pessoas comuns, emcontrapartida, Atenas foi on-tem e sua cota de momentos

memoráveis continua fazendoparte do nosso dia-a-dia. Impos-sível não lembrar do maratonis-ta Vanderlei Cordeiro da Silva,o brasileirinho miúdo que con-quistou o mundo com sua bono-mia e vontade, diante da adver-sidade. Medalha de bronze ape-sar de ter sido brutalmente em-purrado para fora da pista, Van-derlei injetou humanidade nopanteão olímpico e dali nin-guém mais o tira – foi, simples-mente, o maior.

A depender do torcedor brasi-leiro, a festa do vôlei masculi-no não deveria acabar nunca,Torben Grael e Robert Scheidtse deixariam embalar para sem-pre no Mar Egeu, o talento, gar-ra e alegria das meninas do fute-bol compensaram largamente aausência da equipe masculina eDaiane dos Santos mereciauma segunda chance – aqueles30 segundos de apresentaçãono solo que lhe renderam aquinta colocação simplesmentenão valem. Mas as quatro meda-lhas de ouro, três de prata e trêsde bronze conquistadas pelo es-

porte brasileiro em Atenas –18.º lugar entre 201 participan-tes – só contam a parte mais vi-sível da história.

Uma maneira menos charmo-sa porém mais sólida de medir aevolução esportiva de uma so-ciedade consiste em olhar paraos lados e não só para o alto dopódio. É mais difícil para umpaís que ainda engatinha comoo Brasil conseguir chegar a cin-co finais e oito semifinais olím-picas de natação, como ocorreuem Atenas, do que ter a dádivade contar com um talento cinti-lante porém solitário como o deum Gustavo Borges. Mesmosem medalhas no pescoço, a in-cursão brasileira em saltos orna-mentais, handebol feminino outae kwon do é indicativa de queo nosso perfil olímpico está seampliando. Mas Pequim está ameros quatro anos de distância equalquer vacilo nessa fase ini-cial do inter-reino custará caromais adiante.

Na barafunda olímpica dostempos modernos, é possívelque os próximos Jogos de 2008

sejam abertos sem que se conhe-çam os vencedores de todas asprovas da edição de 2004. É quenão basta mais chegar na frente,subir no pódio e receber umamedalha para ter o lugar garanti-do nos anais do esporte. É preci-

so sair vencedor da prova defini-tiva, posterior à competição: oexame antidoping. Segundo onovo código de combate ao usode substâncias proibidas, existeuma janela de tempo de oitoanos para se retestar amostrasde sangue ou urina colhidos du-rante uma olimpíada. Desta for-ma, na acirrada corrida que tra-vam há quase um século, even-tuais avanços da ciência labora-torial podem vir a detectar frau-des antigas que escaparam deseu radar. Em tese, um atleta

que chegou em segundo lugarem Atenas pode recorrer do re-sultado e, se comprovado o do-ping do vencedor, receber a suamedalha de ouro em... 2012.

Os Jogos de Atenas espelha-ram de forma inequívoca esseuniverso coalhado de processos,denúncias e acusações de do-ping generalizado. Quem lem-bra o nome do vencedor da pro-va mais cintilante e aguardadade uma Olimpíada – a corridade 100 metros rasos masculino–, aquela que arrepia e melhordefine os limites do corpo huma-no? Poucos, certamente. E pou-co importa, tantas são as levasde competidores dos 100 metrosjá flagrados com doping. MasAtenas será lembrada como aprimeira Olimpíada em que ocombate ao uso de drogas foifrontal e maciço, não poupandoninguém. Atletas emblemáticoscomo Kostas Kederis, o heróinacional grego dos 200 metros,foi banido no dia da aberturados Jogos; 22 outros atletas fo-ram expulsos da competição.

A própria estrela maior doatletismo feminino, a velocistaamericana Marion Jones, pode-rá ter de devolver as cinco me-dalhas conquistadas em Syd-ney (três ouros, duas pratas) seas acusações de doping que pe-sam contra ela ficarem prova-das. Ironia final: se isso ocor-rer, uma das medalhas conquis-tadas por Marion – justamentea da prova dos 100 metros –passará para o pescoço da se-gunda colocada daquele ano de2000. Ela é grega e se chamaEkaterina Thanou. O nome soafamiliar? É a velocista punidaem 2004 por ter fugido de for-ma cinematográfica dos agen-tes antidoping que a caçavam.

Os Jogos de 2004 demonstra-ram mais uma vez que o olimpis-mo só tem dois adversários capa-zes de derrotá-lo: o doping e acorrupção. Todo o resto panta-gruélico – infra-estrutura, segu-rança, comunicações, transporte– é resolvível. Que o diga a Gré-cia, menor país a sediar umaOlimpíada nos últimos 52 anos.Que o diga a China, 125 vezesmaior. A determinação do colos-so asiático em se tornar a primei-ra potência olímpica mundial sesustenta em duas pernas. Comuma quer chegar ao topo docômputo de medalhas – em Ate-nas já arranhou a supremaciados Estados Unidos abocanhan-do 32 medalhas de ouro contraas 35 dos americanos. Com a ou-tra quer tornar os Jogos de 2008o marco zero de uma nova era.Pelo adiantado das obras, essaperna anda a passos largos.●

*Dorrit Harazim é jornalista

PARA ATLETASDE PONTA,ATENAS JÁÉ PÁGINA VIRADA

SUBIR AO PÓDIO NÃOGARANTE VITÓRIA:PRAZO PARARECURSO É DE 8 ANOS

TRAVESSIA ‘04/05

ANFÍBIO – Combraçosquenapiscinasetransformamemhélices,umtorsoanormalmenteaerodinâmicoeumpardepernasmaispotentenaáguaquenochão,MichaelPhelpsseráparasempreo íconedosJogosde2004

PRIMEIRA MEDALHA – Scheidt deu início às 4 medalhas de ouroconquistadas pelo Brasil; foram mais 3 de prata e 3 de bronze

DESTAQUE – Mesmo sem medalhas, Brasil teve bom desempenhonos saltos ornamentais

SOB SUSPEITA – Estrela máxima de Sydney, a velocista americanaMarion Jones poderá ter de devolver as 5 medalhas que ganhou

FOTOS: JONNE RORIZ/AE

PB COR

%HermesFileInfo:H-12:20041231:H12SEXTA-FEIRA, 31 DE DEZEMBRO DE 2004 ● O ESTADO DE S.PAULO

Page 13: Retrospectiva Estadão - 2004

Produto: ESTADO - ESPECIAL - 13 - 31/12/04 CompositeH13 - SÃO PAULO

Produto: ESTADO - ESPECIAL - 13 - 31/12/04 CompositeH13 - SÃO PAULO

Definições de craqueEle combina técnica, tática e fibra à altura dos grandes momentos

Daniel Piza*

No dia 2 de novembro, aos 43 mi-nutos do segundo tempo, no está-dioCamp Nou,Barcelona eMilanestãoem1a1.Ronaldinho, apaga-doaté ali, recebeabolanosarredo-res da meia-lua, diante do zaguei-ro italiano Nesta, um dos melho-res do mundo. A torcida solta umoooh de expectativa. Ronaldinhoencosta o lado externo do pé direi-to na bola e, assim que começa aempurrá-la para a direita, revertesua direção sem descolá-la do pei-to da chuteira e então a lança al-guns metros para a esquerda. Namanobra, um drible conhecido co-mo elástico e tornado famoso poroutro brasileiro, Rivellino, Nestatem o reflexo de sair para sua es-querda e perde o tempo suficientepara voltar para sua direita. Ronal-dinho, favorecidopor suamuscula-tura, parte veloz atrás da bola e, naentrada da grande área, dispara oque os espanhóis chamam de um“zurdazo”, um canhão com a ca-nhota. E a bola decola para umvôo diagonal até o ângulo direitodo gol de Dida, que com seu 1,90metro não pode alcançá-la.

Aseqüência ilustra oque defineum craque: a percepção do mo-mento-chave para resolver umapartida importante; a habilidademanifestada no controle da bola,no uso das duas pernas, no jogo decintura, no sentido de tempo; e acombinação dessa habilidade coma força e a precisão, criando umasolução inesperada para ludibriaro oponente e alegrar a torcida. Afusãodo guerreiro com oartista.Aprosa enriquecida pela poesia.

Outros bons jogadores pode-riam ter desatado o problema táti-coe marcado esse gol determinan-te. Raros, porém, o fariam dessamaneira, comessa riquezadedeta-lhes técnicos. Outros bons jogado-res seriam capazes de realizar taismovimentos. Raros, novamente, ofariam naquele momento, sob apressão caseira de uma torcida an-siosa, num torneio como a Ligados Campeões da Uefa, o maiorembate dos clubes europeus. Emais raros ainda o fariam numero-sas vezes no mesmo ano. E é issoque distingue Ronaldinho de umCrespo (no primeiro caso) ou De-nílson (nosegundo)eo fezser elei-to o melhor do mundo em 2004 –ainda que no primeiro semestre te-nha feito número maior de lancescomo esse, talvez mais empolga-do e menos conhecido em sua pri-meira temporada no time catalão.

A palavra “craque” é usada co-mo vírgula nas transmissões e crô-nicas de futebol. Em geral, signifi-ca apenas um bom jogador, umatleta acima da média em recursostécnicos e lancesacertados.Ouen-tão um jovem talento que despon-ta pela primeira vez e, na maioriados casos, desaparece um ou doisanos depois. Mas, como “amor” e“liberdade”, essa palavra merecemais respeito. Quantos craques,por exemplo, atuaram no futebolbrasileiro em 2004? Difícil esco-lheroutroalémdeRobinho, embo-raWashington tenha tidoumatem-porada de craque, facilitada pelamediocridade das defesas locais.

CARACTERÍSTICASNem mesmo na lista dos 35 no-meados para a Fifa como melho-res do mundo são todos craques,ou mais do que craques em poten-cial.Henry, um artilheirovelocistaque encontrou na Inglaterra a mol-dura ideal para desenhar seus gols,e Shevchenko, que há cinco tem-poradas no duro futebol italianoconsegue vencer com sua leveza eesperteza, são obviamente cra-

ques. Adriano e Kaká, dois brasi-leiros de 21 anos apenas, tambémjá merecem o qualificativo. Deco,27 anos, é um craque tardio, quesó agora atingiu uma maturidadeque lhe permite exibir um repertó-riocompleto (desarma,arma,mar-ca, dribla). E há Nedved, Totti, Fi-go, Owen, Van Nistelrooy, Maldi-ni, Roberto Carlos, Cafu. O que,afinal, define o craque?

1. A primeira característica emcomum é a habilidade técnica.Um craque tem, além de boa con-dição física, ótimo desempenhona maioria dos fundamentos: pas-se, chute, drible, controle. Pode,porém,nãoser tãobomemumde-les, desde que o compense em ou-tro ou na combinação dos outros.Maradona não tinha perna direitamuito confiável, mas tinha um hi-percontrole na perna esquerda quesabia usar em seu benefício, comcortes e embaixadas. Romário ébaixinho e pouco resistente, masreservava a energia para arranques

sinuosos e se posicionava comoninguém para a execução do gol.Não só sabem malabarismos coma bola, mas a hora ideal de usá-los.

Emoutraspalavras, o repertóriode técnicasnadaé semacriativida-de. Ronaldo não cabeceia bem,mas é capaz de dar dribles curtos echutar em alta velocidade comqualquer uma das pernas. Ou in-ventar um voleio de frente, com aperna esquerda, numa situação emque um jogador convencional ten-taria o cabeceio. Além disso, co-mo nas artes, o virtuose como Zi-dane e Ronaldinho, que quase nãotêm deficiências técnicas (emboraZidane não tenha muita velocida-de e Ronaldinho não drible bemcom a esquerda), muitas vezes sealiena do jogo, concentrado em re-solverequaçõesexclusivas.Funda-mentos, como diz o termo, são umpiso, não um teto.

2. Daí a importância da segun-dacaracterísticadocraque: ele pre-cisa saber jogarparaaequipe, cola-borar para a vitória, mesmo quan-do isso signifique ser individualis-ta. Em outras palavras, precisa terboas estatísticas: gols (no caso dosjogadoresdedefesa, a ausênciade-les), assistências (passes que resul-tam em gols, pois nem todo passetemo mesmo valor), participaçõesemgeral. O jogador pode ter exce-

lentes requisitos técnicos, comoum Djalminha, e ter carreira me-diana, por uma soma de motivospsicológicos e circunstanciais.Uma carreira vitoriosa exige umperfil vitorioso.

O craque precisa estar afinadocom a equipe, como Ronaldinhocom Deco (que divide responsabi-lidadedecriação) eEtoo (que fina-liza para o gol), e saber o melhormomento para ousar (e errar, co-mo acontece na maioria das ve-zes) e o melhor para tocar. Tem desaber jogar com e sem a bola. Àsvezes poderá até deixar de passarpara um adversário em situaçãomais livre e arriscar um drible ouchute mais difíceis. Até para isso,a união do grupo é importante,pois em algumas dessas situaçõeso egoísmo se converte em altruís-mo, principalmente se resultar emgol – a razão de ser do futebol.

3.Eessa éa terceira característi-ca: o craque sabe “ler” uma parti-da e estar à altura dela. O futebol,esporte mais popular do planeta enão sódo Brasil, fascina por ser aomesmo tempo coletivo, como obasquete ou o vôlei, e individual,como o tênis ou o atletismo, numadosagemcombinadaque lheéúni-ca, já que o uso dos pés abre maisespaço para o acaso e o improviso,de tal modo que um aparente erro

podese revelarumprodutivoacer-to. O craque é quem sente isso; é a“antena da raça”.

Zico tinha tal entendimentocom os centroavantes e pontas doFlamengoqueos instruía a esperá-lo para lhe devolver a bola na con-dição de marcar o gol. Sócrates,igualmente. A falta de um atacan-te entrosado com eles na Copa de82, por sinal, explica muito.

Essa esperteza tática envolve,cadavezmais, experiência interna-cional. A Europa se tornou nãoapenas um destino financeiro paraoscandidatos sul-americanosacra-ques, mas também um aprendiza-do futebolístico – pela quantidadede grandes jogadores nas diversasposições, pela tradiçãodeconheci-mentos táticos, pela competitivida-dedos torneios, pelo testedaexpo-sição para o mundo todo. O cra-quemoderno temdeestarprepara-dopara jogarcomdiferentes“esco-las”, mesmo que hoje diluídas (aretranca italiana,aversatilidadeho-

landesa, a tensão argentina, a des-contração brasileira), e tanto noclube como na seleção, que envol-vem desafios distintos. O craque éexpressãoeciênciadacomplexida-de do futebol.

4.Bem-dotadoecriativoemter-mos físicos, técnicos e táticos,além de competente (ou cercadode gente que lhe dê bons conse-lhos) e sortudoemsuacarreira (pa-ra jogaremgrandes times, para tor-cidas que saibam dar valor às suasespecificidades), o craque tam-bém precisa ter um dom aindamaisescasso: consistênciapsicoló-gica. Não se deixar abalar demaispelas cobranças, que são mais in-tensas com os melhores; e tam-bém não se deixar empolgar pelasua própria habilidade, o que é ou-tro pecado comum.

Podeserdeumtipomais tempe-ramental ou mais introspectivo,mais rebelde ou mais frio; só nãopode ser frouxo nem destempera-do, o que em geral acaba reverten-do contra si próprio. E deve ter au-tocrítica, para seguir melhorando,olhandosemprepara apartedoco-po que ainda não encheu, sem dei-xar de se alimentar da certeza doque já acumulou.

HISTÓRICOSComo se vê, portanto, ser craquenão é fácil. É por isso que há outracategoria, a dos craques históricosou supercraques, na qual pouquís-simos entram. Pelé, primeiro, eMaradona, segundo, ocupam o to-po.Marcaramcentenasdegols, ga-nharam títulos nacionais e interna-cionais, foram o melhor do plane-ta em diversos anos, brilharam deforma triunfante em Copas.

É claro que tiveram fases ruins,não atingiram algumas metas, tro-peçaram mais de uma vez na bola.É claro que têm defeitos pessoais,éticos, etc. E é claro que depen-diam da equipe em que atuavam,poisnenhumcraqueconsegue rea-lizar façanhas se acompanhado depernas-de-pau; não existe “ganharsozinho” no futebol. Mas, da se-gunda metade do século 20 paracá, os dois estiveram muito acimados outros, por mais que os euro-peusqueiramqueCruyff,DiStéfa-no (o argentino à frente do RealMadrid que era o único rival doSantos histórico), Beckenbauer ouPlatini habitem o mesmo panteão.Eles habitam. Mas sentados al-guns degraus abaixo.

Entreos jogadores ematividade,por enquanto só há dois supercra-ques, Ronaldo (que fez oito gols naCopa de 2002, inclusive os dois dafinal) e Zidane (que fez dois golsna final da Copa de 1998). Ambosforam eleitos três vezes pela Fifa;Ronaldo, 28 anos, tem duas Bolasde Ouro (o principal título indivi-dual europeu), Zidane, 32 anos,uma; ambos têm títulos importan-tes em mais de um país; e já estãoentre os maiores craques de suasposições. Ronaldinho, aos 24 anos,temqualidadesuficientepara alcan-çá-los. O craque histórico, porém,não depende apenas de si mesmo;depende muito dos lances da histó-ria. Se se mantiver consciente doque o diferencia de verdade, os da-dos jogarão em seu favor.

O craque, como o músico, vivedapresença deespírito. Eessa pre-sença envolve tanto a intuição co-mo o treinamento, pois o improvi-so não é inimigo da consciência.Na frase do poeta Fabrício Carpi-nejar, “custa muito ensaio ser es-pontâneo”. Se eu fosse religioso,resumiria: o craque é quem Deusdeixa brincar de Deus.●

* Daniel Piza é jornalista e es-critor

CRAQUE NÃO APENASSABE MALABARISMOSCOM A BOLA, MAS OINSTANTE DE USÁ-LOS

CRAQUE ÉEXPRESSÃO E CIÊNCIADA COMPLEXIDADEDO FUTEBOL

TRAVESSIA ‘04/05

854 prefeituras, além de creden-ciar-se ao segundo turno em 18municípios. O partido com maiornúmero de prefeitos eleitos é oPMDB: 1.041. Em duas capitaisimportantes, a disputa foi decidi-da no primeiro turno, com a reelei-ção de César Maia (PFL) no Rio ede Fernando Pimentel (PT) emBelo Horizonte.– Morre aos 77 anos Janet Leigh,protagonista da clássica cena doassassinato no chuveiro em Psico-se, de Alfred Hitchcock.6 – O chefe da equipe de buscadas armas de destruição em mas-sa no Iraque, Charles Duelfer, en-trega ao Senado americano relató-

rio de mais de mil páginas segun-do o qual Saddam Hussein nãotinha um arsenal desse tipo antesda invasão do país, em março de2003. Duelfer chefiou 1.400 inspe-tores que permaneceram 16 me-ses em território iraquiano.8 – Lula é multado em R$ 50 milpelo juiz da 1.ª Zona Eleitoral deSão Paulo, José Joaquim dosSantos, por ter discursado emfavor da reeleição da prefeita Mar-ta Suplicy (PT) durante inaugura-ção em São Paulo.9 – O sertanista Apoena Meireles,de 55 anos, é morto ao reagir aassalto em Porto Velho (RO).20 – Gestantes de fetos anencefáli-

cos (com má formação cerebral) nãoestão mais autorizadas a abortar.Supremo revoga liminar concedidaem julho pelo ministro Marco AurélioMello à Confederação Nacional dosTrabalhadores da Saúde.

21 – A Agência Brasileira de Inteli-gência (Abin) afirma que fotosdivulgadas pelo jornal Correio Bra-ziliense não são do jornalista Vladi-mir Herzog. A reportagem reavi-vou a polêmica sobre a morte deHerzog no DOI-Codi, em São Pau-lo, em 1975. As imagens (foto)mostram um homem nu, com orosto escondido, o que reforçariaa tese de que Herzog foi tortura-do e humilhado antes de ser mor-to – ao contrário da versão oficialde suicídio.– O publicitário Duda Mendonça,responsável pela campanha àreeleição de Marta Suplicy e do-no da empresa que faz a propa-

ganda do governo Lula, é detidopor agentes da PF numa rinha degalos em Jacarepaguá (RJ).27 – O zagueiro Serginho, do SãoCaetano, de 30 anos, morre de-pois de sofrer uma parada cardior-respiratória no segundo tempodo jogo de seu time com o SãoPaulo, no Morumbi, pelo Campeo-nato Brasileiro. Ele tinha compro-metimento do músculo cardíaco,como mostrou exame realizadoem fevereiro no Incor.29 – Bin Laden reaparece às vés-peras da eleição americana, emimagem gravada mostrada pelaemissora Al-Jazira, e assume pe-la primeira vez explicitamente a

autoria dos ataques de 11 de se-tembro de 2001.31 – PSDB é o grande vitoriosodo segundo turno das eleiçõesmunicipais, com a conquista decinco capitais – São Paulo, Curiti-ba, Florianópolis, Teresina e Cuia-bá. O segundo lugar ficou com oPT, com três capitais – Vitória,Fortaleza e Porto Velho. Ao ga-nhar capitais expressivas, o PS-DB estabeleceu um contrapontoao sucesso dos petistas no pri-meiro turno, quando o partidoganhou seis capitais e os tuca-nos, nenhuma. As duas derrotasmais sentidas pelo PT são as deMarta, batida por José Serra em

fAtos do ANO

FENÔMENOS – Ronaldinho, eleito melhor do mundo pela Fifa, comemora gol contra a Bolívia, observado por Ronaldo, dono de três títulos

PAULO WHITAKER/REUTERS

PB COR

%HermesFileInfo:H-13:20041231: H13O ESTADO DE S.PAULO ● SEXTA-FEIRA, 31 DE DEZEMBRO DE 2004

Page 14: Retrospectiva Estadão - 2004

Produto: ESTADO - ESPECIAL - 14 - 31/12/04 CompositeH14 - SÃO PAULO

Produto: ESTADO - ESPECIAL - 14 - 31/12/04 CompositeH14 - SÃO PAULO

Documentários revelam um país multifacetadoGênero foi o que houve de melhor no cinema brasileiro deste ano

Leicultural:GilseráresponsávelProjetodoMincvisaaocontroledopensamento,poderparaseinfiltrarnasociedade

Luiz Zanin Oricchio*

2004 foi o ano do documentáriono cinema brasileiro. Não que es-sa tendência tenha aparecido derepente, vinda do nada. Ela já seesboçava havia tempo. Agora seconsolidou. Entre os 49 longas-metragens brasileiros lançadosno ano (50, se incluirmos Diá-rios de Motocicleta), 17 são do-cumentários. Número expressi-vo, ainda mais se levarmos emconta o fato de que esses filmes,com raras exceções, não produ-zem grandes filas nos cinemas.

É a qualidade o que mais im-pressiona na produção documen-tal contemporânea. Esse boomtalvez tenha muito a ver com opróprio momento positivo daprodução brasileira como um to-do. Mas há algo além disso noar. O próprio governo já perce-beu a importância desse gênerocinematográfico e o tem apoiadocom os programas chamadosDoc-TV – privilegiando o forma-to e duração próprias para a exibi-ção na tela pequena.

Já na tela grande do cinema, apresença dos documentários temse tornado habitual porque, aoque parece, o público começou aperceber que as vidas das pes-soas “reais” dão excelentes histó-rias, muitas vezes mais interes-santes que as dos personagens deficção. Alguns são sobre persona-gens notáveis, como Pelé Eter-no, de Aníbal Massaini Neto, A

Paixão segundo Martins, de Ire-ne Langemann, Glauber – Labi-rinto do Brasil, de Silvio Tend-ler, Rio de Jano, de Eduardo Sou-za Lima, Anna Azevedo e Rena-ta Baldi, e Raízes do Brasil, deNelson Pereira dos Santos.

A suposição dos cineastas,nesses casos, é que o público terátodo o interesse em seguir a vida– e a obra – de figuras como omelhor jogador de futebol de to-dos os tempos, o pianista João

Carlos Martins, o cineasta Glau-ber Rocha, o cartunista Jano emsua passagem pelo Rio de Janei-ro e de Sérgio Buarque de Holan-da, intelectual a quem tanto ain-da se deve em termos da com-preensão do País.

Outros personagens foram re-velados pelas lentes dos docu-mentaristas, como o surfista Fá-bio Gouveia, em Fábio Fabulo-so, de Pedro César, Bocão e An-tonio Ricardo, ou o sambista baia-no Riachão, que ganha um cari-nhoso retrato do seu conterrâneoJorge Alfredo em Samba Ria-chão, vencedor do Festival deBrasília. Fábio é um atleta conhe-cido em seu meio específico,

mas o filme o apresentou mesmoa quem não curte o surfe. E Ria-chão é figurinha carimbada emSalvador, mas nas outras regiõespouco o associam às músicasque o fizeram famoso.

A atenção dos documentaris-tas não se restringiu aos famososou semifamosos. Pelo contrário.Alguns dos melhores retratos fo-ram feitos com gente anônima,às vezes habitantes do andarmais baixo da sociedade. Os mo-radores de rua de São Paulo ga-nharam visibilidade em À Mar-gem da Imagem, de Evaldo Mo-carzel. Os habitantes da periferiado Rio aparecem no inspiradoFala Tu, de Guilherme Coelho.O interior do Carandiru revela-seem todo o seu realismo em umdos melhores filmes do ano, OPrisioneiro da Grade de Ferro,de Paulo Sacramento. Maria Au-gusta Ramos investigou os basti-dores da aplicação das leis aos po-bres no polêmico Justiça, filmeque incomodou a muitos magis-trados, mas estimulou a discus-são entre advogados lúcidos.

A maior repercussão se deve aEntreatose Peões, de João Morei-raSalles e EduardoCoutinho, ver-so e anverso de um mesmo proje-to, comovente e lúcido registroda história política brasileira nasúltimas décadas. Peões dialogacom os metalúrgicos que partici-param das greves de 1979-1980no ABC paulista. E Entreatos fil-ma os bastidores da campanha de

Lula à Presidência em 2002.Esses filmes, lançados ao lon-

go de um único ano, compõemum painel multifacetado do Bra-sil. Retratos da sociedade brasi-leira, com seus contrastes e des-níveis sociais, suas fraturas inter-nas e também sua energia, suaesperança, sua criatividade. Háoutros títulos que participamdessa figura em formação. Porexemplo Língua, de Victor Lo-pes, que tem por tema e “perso-nagem” não um indivíduo, masum conjunto deles, o universocomposto pelos falantes do idio-ma português.

E, indo ao outro extremo, dageneralidade máxima à particula-ridade mais extrema, temos oexemplo de 33, de Kiko Goiff-man. Nele, o cineasta, que na oca-sião tinha a idade indicada pelo tí-tulo, estabelece regras de pesqui-sa e sai em busca de sua mãe bio-lógica, que ele não conhece. Tra-ta-se de um curioso caso em queo diretor se assume como perso-nagem de si mesmo e faz um tra-balho radicalmente autobiográfi-co. É o documentário em primei-ra pessoa. Mesma inspiração dePassaporte Húngaro, em que acineasta Sandra Kogut relata asdificuldades para conseguir obtera nacionalidade dos seus avós.

São dois filmes inspirados, emontados com leveza. O especta-dor tem a sensação de que os di-retores falam de si como se esti-vessem escrevendo num diário

íntimo e manejam a câmera co-mo usariam seu micro pessoal,ou uma simples caneta. Nessedespojamento confessional – po-rém isento de qualquer narcisis-mo supérfluo – reside talvez seuencanto maior. E evitam a fórmu-la das entrevistas seguidas, quepode dar muito certo para ummestre como Eduardo Coutinho,mas pode também transformar-se em banalidade em mãos me-nos hábeis ou menos experientes

na arte do diálogo. Esta técnicaparece fácil, mas esse é um enga-no típico dos iniciantes.

Em literatura costuma-se di-zer que as biografias vieram paraocupar um lugar deixado pela ra-refação do enredo pós-nouveauroman. Como as pessoas têm ne-cessidade atávica da narrativa, es-ta passou a ser fornecida pela des-crição das “vidas reais”, depoisque os personagens de ficção fo-ram rareando, ou se tornandoaborrecidos.

Não creio que seja esse o ca-so do cinema, pois neste a narra-tiva continua tradicional, li-near, rotineira, às vezes até mui-to esquemática, justamente pe-

la falta de inovação. A constru-ção dos personagens tambémnão obedece a qualquer tentati-va de ruptura com padrões for-mais. E, no caso do cinema bra-sileiro, são essas narrativas epersonagens convencionais quemais sucesso têm feito.

De qualquer forma, indepen-dentemente dos resultados de bi-lheteria, são os documentáriosque têm apresentado ao públicoos personagens mais fascinantes– porque complexos. Muito maismultifacetados que os da ficção.Basta assistir a Entreatos paraconferir a riqueza de um persona-gem que veio de uma vida de po-breza para se tornar líder sindicale depois presidente da Repúbli-ca. Ou os anônimos de Peões, osex-companheiros de Lula nas lu-tas sindicais e que abrem suas vi-das ao registro da câmera de Cou-tinho. Aliás, se há alguma coisaque o documentário ensina éque, bem observadas, não exis-tem pessoas simples, sejam ope-rários aposentados ou um presi-dente da República oriundo daclasse popular.

Amaneira comoessespersona-gens são construídos é que, a meuver, empresta ao documentário es-sa riqueza contemporânea. Aocontrário do que em geral temacontecido com os filmes de fic-ção, em especial os mais comer-ciais, não existe nenhuma inten-çãodosdocumentaristasdesimpli-ficar, ou aplainar os personagenspara que eles se “comuniquem”melhor com o público. São o quesão–e revelam-separaumacâme-ra disposta a enxergá-los comopessoas, integrais e íntegras.●

* Luiz Zanin Oricchio é jorna-lista e escritor

Arnaldo Jabor*

O negócio é o seguinte: não se tra-ta de ser “a favor” ou “contra” ofamigerado projeto da Ancinav.O importante é analisar como es-se aborto ideológico pôde surgirno Brasil de hoje, no mundo dehoje, com um ministro da Cultu-ra culto, artista importante e víti-ma da repressão política.

Existe dentro da cabeça de ve-lhos esquerdistas um tumor ino-perável: a idéia de revolução.Não mais a própria revolução,historicamente impossível, massua “idéia”. O conceito revolucio-nário continua como uma luz dopassado, uma velha medalha, umantigo heroísmo que absolveriaas babaquices do presente, na ba-se do “fulano é uma besta, mas éde esquerda”. Como o PT nãoconsegue resolver a equação dedez incógnitas entre estabilidademonetária e desenvolvimento, co-mo o Brasil continua um enigmaprogramático, os bolchevistas decarteirinha do PT desviam suaatenção para a cultura. A culturaé um pretexto para a falta de saí-da política. Um “ersatz”, para fa-lar difícil. Sempre foi assim; equem vos fala foi um dos funda-dores do CPC, do Centro Popu-lar de Cultura da UNE, braço cul-tural do PC, com a finalidade de“conscientizar as massas” para osocialismo através da arte comoinstrumento de doutrinação;quem vos fala foi da “linha chine-sa” e vibrou quando, na revolu-ção cultural, Mao Tsé-tung proi-biu Beethoven na China, por serum burguês romântico; quemvos fala achou que seria bom pa-ra os intelectuais uma temporadana colheita de arroz (aliás, talvezfosse bom hoje em dia para os as-sessores do Minc); quem vos falaconhece bem o que é o “estatis-mo” na cultura, cinema ou TV.Mas este projeto do Minc ambi-ciona muito mais do que regularo cinema ou TV. O projeto que oMinistério da Cultura criou, comresponsabilidade direta de Gilber-to Gil, visa a controlar o pensa-mento, visa a um poder puro, in-tocável, para uma infiltração nasociedade reflexiva, como umatática “revolucionária” (já quenão há estratégia), de dominar a“superestrutura”, numa atitudebaixamente “gramsciana”, um“gramsci” vulgar e tardio.

Esta demência parte da idéiade que há homens melhores queoutros, que se intitulam “sujeitosda história”, cuja tarefa seria fa-zer o “parto do bem”, numa socie-

dade de “maus e alienados, de ca-nalhas e oportunistas”. O extraor-dinário nesse projeto é que ele éingênuo e, ao mesmo tempo, ardi-loso, sorrateiro. É ingênuo, por-que acha que as “velhas pira-nhas” como eu não percebería-mos sua intenção real, e é sorratei-ro, porque se aproveita das delon-gas burocráticas, das brechas dotempo e das distrações dos inte-ressados para passar no Congres-so a intenção de usar o cinema co-mo boi de piranha, pois a finalida-de principal clara é colocar a TVGlobo de joelhos, velho desejo to-talitário. O projeto é paranoica-mente minucioso, com itens, su-bitens, parágrafos insidiosos,meias palavras, frases nebulosas,tudo astutamente armado paraque, mesmo escoimado no Con-gresso por parlamentares racio-nais, mesmo assim o essencial da“ação”, da “tarefa” ficaria intoca-do. Bela tática maoísta: “A pa-ciência é uma virtude revolucio-nária.” Como subproduto, o pro-jeto também quer tirar poder doscineastas “burgueses” que fazemsucessos “imperdoáveis” de bi-lheteria, que conseguem “sinistra-mente” participar do Oscar, que“sordidamente” vão para Cannese distribuem filmes brasileiros noexterior. No raciocínio tosco dosvelhos bolchevistas, “sucesso” é

igual a “riqueza”, logo, quem fazsucesso é burguês e “de direita”.Já os fracassos são mecanicamen-te identificados com os proletá-rios. Sucesso=direita. Fracasso=esquerda. Por decorrência “dialé-tica” (argghhh...), fraqueza seriaforça, ignorância seria saber, sim-plismo seria verdade e complexi-dade, mentira. Também incrívelé a idéia que essa gente tem de“poder”. Não se trata de poderpara fazer algum projeto. Não.É o poder pelo poder, com a fina-lidade de constranger, fiscali-zar, controlar o fluxo “insuportá-vel” da realidade que emana dasociedade. Eles não conseguementender a impalpável força cria-tiva da democracia, gerando no-vidades inesperadas do “incons-ciente” da social. Para eles, ascoisas têm de ser programadas,criadas ideologicamente, comum fim preconcebido.

Também, como observo háuns 30 anos, muitos cineastasque não conseguem filmar ou em-placar algum sucesso apóiam es-sas leis estatizantes e controlado-ras, na esperança de que uma no-va Embrafilme surja para dar di-nheirinho no guichê para eles fil-

marem seus produtos “alternati-vos” – também na base da dialéti-ca do consolo: “Ninguém gostados meus filmes, logo são ‘revo-lucionários’.” Esses artistas pen-sam assim: o Estado é o Centro, éum lugar de classe e, como agorao Estado está “ocupado” pelo Par-

tido dos Trabalhadores, o Estado“é” a esquerda e o mercado “é” adireita. Esses cineastas se trans-formam na linha auxiliar, na mas-sa de manobra dos três leninistasque tomaram o poder dentro doMinc, amparados pela ingenuida-de ou desatenção do Gilberto

Gil, com a desculpa de sempre:“Calma... não se preocupem... alei é violenta, mas a gente é le-gal...”

Muitos acham que a lei da An-cinav vai prejudicar o cinema; épior – já prejudicou, pois esseano ninguém conseguiu captar di-nheiro algum, com as empresasassustadas pelas notícias. Depoisde 2003, quando todos os recor-des de sucesso foram batidos,2004 foi uma retração terrívelpor causa do absurdo comporta-mento desses caras.

Um item extraordinário do talprojeto de lei trata de sua fisiono-miaburocráticae seuspoderes, ve-jam:

“A natureza de autarquia espe-cial conferida à Ancinav é caracte-rizada por autonomia administrati-va e financeira, ausência de subor-dinação hierárquica, mandato fixoe estabilidade de seus dirigentes.”NemoLula tem taispoderes.Nemo José Dirceu, de onde, dizem,emana essa ideologia. A Ancinavaspira a ser um órgão livre, leve esolto, acima do Legislativo e Judi-ciário, invadindoatribuiçõesdemi-nistériose autarquias.É inacreditá-vel que, noanode 2004, estejamosa discutir assuntos ideológicos de1935, como “realismo socialista”,“zdanovismo” e “dirigismo”.

Será que o Lula tem consciên-cia do projeto que estão tramando,usando seu governo pragmático edecente como fachada para cor-roer o “núcleo liberal” com medi-das sorrateiras? Lula nunca se dei-xou levar pelas tramas ideológicas“uspianas”. Quando os militaresperguntaram se ele era comunista,ele respondeu: “Sou torneiro me-cânico...” Ele até fascinou profes-sorasda USPcomsua foice emar-telo, como uma alegoria operária,mas nunca se deixou levar porseusdelírios ideológicos pequeno-burgueses. Dizem que, quando osintelectuais lhe mostraram o pro-grama original do PT, ele disse:“Tudobem... masnesse partido eunão entro!...” Lula tem uma cons-ciência democrática clara, pois sa-be que o acaso, o mistério fazemparte da vida social, pois ele mes-mo é a prova disso. Ele sabe quenão adianta programar a vida “apriori”, que isso só leva adesastrescomo foram 64 e 68. Talvez elenão saiba que seu ministro Gilber-to Gil está deixando uma “troika”de rancorosos criar uma antítesede tudo que ele pretende para suaadministração. Desperta, Lula! ●

*Arnaldo Jabor é cineasta,esceitor e jornalista

FINALIDADE PRINCIPALÉ PÔR A GLOBO DEJOELHOS, VELHODESEJO TOTALITÁRIO

PREOCUPAÇÃO FOIPRESERVAR HISTÓRIAE COMPLEXIDADE DASPESSOAS RETRATADAS

FILMES CONTARAMA VIDA DE PELÉ ESERGIO BUARQUE E ADE ANÔNIMOS TAMBÉM

REVOLUCIONÁRIO – Gil em anúncio de projeto: discussão assustou empresas e prejudicou captação

TRAVESSIA ‘04/05

J.F. DIORIO/AE 25/10/2004

PB COR

%HermesFileInfo:H-14:20041231:H14SEXTA-FEIRA, 31 DE DEZEMBRO DE 2004 ● O ESTADO DE S.PAULO

Page 15: Retrospectiva Estadão - 2004

Produto: ESTADO - ESPECIAL - 15 - 31/12/04 CompositeH15 - SÃO PAULO

Produto: ESTADO - ESPECIAL - 15 - 31/12/04 CompositeH15 - SÃO PAULO

●●● FERNANDO SABINO – Marcouseu último encontro em 11 deoutubro, véspera de seus 81anos. Deixou o epitáfio: “Nas-ceu homem, morreu menino.”

●●● CHRISTOPHER REEVE – O últi-mo vôo do Superman foi em 10de outubro, NY, aos 52 anos

São Paulo, e de Raul Pont em Por-to Alegre, onde a eleição de JoséFogaça (PPS) põe fim a 16 anosde domínio petista.

NOVEMBRO3 – George W. Bush consegue areeleição. O republicano bateu odemocrata John Kerry numa dasmais acirradas disputas pela CasaBranca em décadas e com a maiorvotação popular já alcançada porum candidato à Presidência dosEUA – perto de 59 milhões de votos.4 – José Viegas deixa o cargo deministro da Defesa e Lula nomeiao vice, José Alencar.5 – Rússia adere ao Protocolo deKyoto.12 – BC decreta intervenção noBanco Santos.16 – Bush nomeia a conselheirade Segurança Nacional, Condo-

leezza Rice, para o posto de se-cretária de Estado, na vaga aber-ta pela renúncia de Colin Powell.– Cássio Casseb deixa presidên-cia do Banco do Brasil.17 – Reforma do Judiciário passano Senado em segundo turno,após quase 13 anos de tramita-ção. Entre as medidas aprovadasestá o controle externo do Judiciá-rio e do Ministério Público.18 – Lula demite da presidência doBNDES o economista Carlos Lessa,expoente da ala nacionalista do gover-no, substituindo-o pelo ministro doPlanejamento, Guido Mantega.– Médicos e pesquisadores do Hos-pital Pró-Cardíaco e da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro realizam oprimeiro transplante do mundo decélulas-tronco adultas numa vítimade acidente vascular cerebral.20 – Cinco sem-terra são assassi-

nados por grupo armado que in-vadiu o acampamento Terra Pro-metida, em Felisburgo (MG).30 – Justiça Federal acolhe de-núncia do Ministério Público con-tra o ex-prefeito Paulo Maluf (fo-to) e parentes, acusados de lava-gem de dinheiro, evasão de divi-sas e formação de quadrilha.

DEZEMBRO1 – Risco Brasil cai 2,43% e volta

à casa dos 402 pontos, menorpatamar desde a crise asiática,em outubro de 1997.5 – O atacante brasileiro Cristianode Lima Júnior, de 25 anos, morredurante a final da Copa da Índia,disputada em Bangalore.8 – Governo consegue aprovarno Senado MP que dá status deministro ao presidente do BC,Henrique Meirelles, e seus ante-cessores. Com isso, processosabertos contra eles só podem serjulgados no Supremo.9 – Suprema Corte do Canadá de-cideque ocasamento entreho-mossexuais éconstitucional e po-deser permitido em todo o país.12 – Ala oposicionista do PMDBaprova em convenção rompimen-to com governo Lula.14 – Congresso aprova nova Leide Falências, com regras mais

claras para proteger credores deempresas insolventes.17 – Libertada em São Paulo Mari-na Silva de Souza, de 44 anos,mãe do atacante Robinho, doSantos, depois de 41 dias de se-qüestro e do pagamento de resga-te de R$ 200 mil.19 – Santos bate o Vasco por 2 a1 e conquista o Campeonato Bra-sileiro. Grêmio, Guarani, Criciúmae Vitória são rebaixados.22 – Em 24 horas, Senado e Câ-mara aprovam projeto que instituia parceria público privada. AsPPPs são o principal trunfo dogoverno para garantir investimen-tos em infra-estrutura no País.26 – Tremor de 8,9 graus na esca-la Richter – o mais intenso em 40anos –, com epicentro na costaoeste da Ilha de Sumatra, causauma série de tsunamis (ondas

gigantes) na Ásia. De até 10 me-tros de altura, elas varreram o lito-ral da Índia, Sri Lanka, Indonésia,Tailândia, Malásia e Ilhas Maldi-vas. Autoridades estimam que onúmero de mortes deve superar acasa dos 100 mil.27 – O líder da oposição, ViktorYushchenko, vence o segundoturno da eleição na Ucrânia.– Depois de um ano e meio defuncionamento, a CPI do Banesta-do termina sem votação de relató-rio que pedia o indiciamento de91 pessoas. A CPI investigouuma esquema de lavagem de di-nheiro por meio do qual deixaramo País US$ 30 bilhões.29 – Morre em Araraquara, aos78 anos, o empresário José Cutra-le, o “Rei da Laranja”.– Técnico Vanderlei Luxemburgoanuncia ida para o Real Madrid.

OBITUÁRIO

CARLOS CHICARINO/AE–4/11/94

FATOS DO ANo

REPRODUÇÃO

ROBSON FERNANDJES/AE–4/6/2004

CHARLES PLATIAU/REUTERS

JEFF CHRISTENSEN/REUTERS

TASSO MARCELO/AE–16/08/2004

NIR ELIAS/REUTERS–29/7/2003SALK INSTITUTE–19/2/2003

RENZO GOSTOLI/AP

REUTERS

MAURILO CLARETO/AE–26/6/99

●●● MARLON BRAN-

DO – Ídolo de gera-ção, símbolo darebeldia e eternogalã, o poderosoBrando, duas ve-zes vencedor doOscar – por ‘Sindi-cato de Ladrões’ e‘O Poderoso Che-fão’, em 1954 e1972 –, morreu napenúria, em LosAngeles, em 1.º dejulho, aos 80 anos.Temperamental epolêmico, tevegrandes papéis emgrandes filmes,mas o fim de suavida foi difícil, mar-cado por tragédiasfamiliares

●●● LEONEL BRIZOLA – Era agostode 1961 quando Brizola entroupara a História do País. O presi-dente Jânio Quadros renunciara eos ministros militares tentaramimpedir a posse do vice, JoãoGoulart. O então governador gaú-cho resistiu, criando a cadeia derádio da legalidade. Obteve oapoio do 3.º Exército e o impassegarantiu a posse de Goulart. Trêsanos depois, deputado federal,tentou resistir ao golpe e foi cas-sado. Ficou no exílio até 1979.Anistiado, organizou o PDT. Brizo-la se elegeria governador do Rioduas vezes, a primeira em 1982.Em 1989, saiu candidato à Presi-dência da República, mas ficouem terceiro lugar. Desde então,viu seu cacife eleitoral e influên-cia minguarem. Morreu no Rioem 21 de junho, de enfarte.

●●● CARTIER-BRESSON – O mes-tre da Leica morreu em 2 deagosto, pouco antes de chegaraos 96 anos. Registrou ima-gens que serão ícones eternos

●●● RAY CHARLES – “The Ge-nius”, pai da soul music, partiuem 10 de junho aos 73 anos

●●● JACQUES DERRIDA – A mor-te do filósofo francês, aos 74anos, foi em 8 de outubro. Teó-rico da desconstrução, negouaté o fim a verdade absoluta

●●● FRANCIS H. C. CRICK – O cientis-ta inglês morreu aos 88 comcâncer, em San Diego, em 28 de

julho. Foi co-descobridor daestrutura do DNA e lançou ospilares da biologia molecular

●●● CELSO FURTADO – Ministrodo Planejamento do presiden-te João Goulart e da Educa-ção e Cultura no governo Jo-sé Sarney, foi mentor de umageração de economistas. Oparaibano que criou a Sudenefoi um dos maiores estudiososdas disparidades regionais e dosubdesenvolvimento. Carregouaté o fim da vida a bandeira donacionalismo, apesar do espíri-to afável que lhe garantia livretrânsito entre defensores deidéias antagônicas. Em 1964,teve os direitos políticos cassa-dos pela ditadura. O intelectualrefinado, professor da Sorbon-ne, era admirador do MST. Suaobra mais importante, entre qua-se 40 livros, foi A Formação Eco-nômica do Brasil, de 1956. Mor-reu em 20 de novembro, aos 84anos, no Rio. Teve um enfarteenquanto conversava com a mu-lher, Rosa, em casa, em Copaca-bana.

●●● RONALD REAGAN – O ex-presi-dente, ator medíocre e políticosubestimado, que desencadeouem 1980 a revolução conserva-dora ainda em curso nos EUA eganhou a Guerra Fria, derrotan-do o império soviético, morreuaos 93 anos, em 5 de junho, emsua casa na Califórnia. Líder dareação de direita à cobrança ex-

cessiva de impostos e aos doisgrandes desastres dos EUA nosanos 70, Watergate e a derrotana guerra do Vietnã, no ano se-guinte, Reagan tinha se despedi-do dos americanos dez anosantes, com uma carta na qualanunciou que enfrentava os está-gios iniciais do mal de Alzhei-mer, causa de sua morte

●●● SUSAN SONTAG – A arte depolemizar perdeu, em 28 dedezembro, a festejada ensaísta.Sempre atacada, soube mantersua independência ideológica

PB COR

%HermesFileInfo:H-15:20041231: H15O ESTADO DE S.PAULO ● SEXTA-FEIRA, 31 DE DEZEMBRO DE 2004

Page 16: Retrospectiva Estadão - 2004

Produto: ESTADO - ESPECIAL - 16 - 31/12/04 CompositeH16 TR A RED - SÃO PAULO

Produto: ESTADO - ESPECIAL - 16 - 31/12/04 CompositeH16 TR A RED - SÃO PAULO

Bush escreveu ‘Código Da Vinci’Fenômenoeditorialdoano temtanta informaçãoerradaquantoosrelatóriossobrearmasno Iraque

Mario Sergio Conti*

O romance do ano não trata de po-lítica, economia, miséria, guerraou devastação ecológica. Tam-bém não há nele sinal das figurasque marcam a vida contemporâ-nea:congestionamentos, celebrida-des, catástrofes, pornografia,polui-ção, multidões, escândalos, epide-mias, violência. E quem procurarno romanceosassuntosonipresen-tes da literatura comercial não en-contrará nada.

Nada dos arroubos lascivos deJudith Krantz. Nem sinal das pai-xões transbordantes de BarbaraCartland. Nada de sagas familia-res como a dos Catadores de Con-chas, de Rosamund Pilcher. Daexaltaçãoda tecnologia de destrui-ção em massa de Tom Clancy. Daalquimia de misticismo com auto-ajudade PauloCoelho.Da recons-tituição histórica do Umberto Ecode O Nome da Rosa. Da iniciaçãofeminina ao cosmopolitismo doDiáriode Bridget Jones.Nadadosreinos fantásticos de Marion Zim-mer Bradley ou dos mundos futu-ros de Isaac Asimov.

E no entanto O Código Da Vin-ci foi o livro mais vendido do anoem dezenas de países. É entrarnum aeroporto em São Paulo ouParis e logo se topa com alguémlendo o romance de Dan Brown.Na última contagem, foram maisde 20 milhões de exemplares ven-didos ao redor do planeta. E, o queé mais espantoso, dois livros quecomentam o romance foram porele arrastados para a outra lista dosmais vendidos, de não-ficção.

É fácil menosprezar os roman-cescomerciaisdizendoqueeles re-petem fórmulas. Fácil e errado. Sehouvesse receitas, todos escreve-ríamos supersucessose estaríamosno bem-bom, hospedados no Ho-tel Ritz. Para um romance se tor-narumfenômenomundial, ele pre-cisa reciclar recursos popularesconsagrados. Mas necessita maisque isso: ele tem que lidar com umtema forte da atualidade.

Os recursos reciclados por DanBrown são de três ordens, e todastêmcomoprimadoo realismo.Pri-meiro, a literaturapolicial ede sus-pense: a tramacomeçacomumas-sassinato e termina com a sua elu-cidação, e a ela são agregadas sub-tramas paralelas focalizando o as-sassino, o mandante do crime, osuspeito inocente e os policiais en-

carregados do caso. Nesse aspec-to, O Código Da Vinci funcionacomoumamáquina.Oenredoé jo-gado para a frente o tempo todo, eprende o leitor. Mas quem diz má-quina também diz mecânico: o li-vro tem muito de soluções manja-das, de coincidências abusivas.Brown tem horror a nuances.

Segundo:adescriçãode institui-ções pouco conhecidas, recursoutilizado à náusea por Arthur Hai-leyemHospital eAeroporto, e porTom Clancy na sua série sobre aCIA. Nessa linha, O Código sepropõe a explicar como funcio-nam tanto um museu, o Louvre,como uma prelazia do Vaticano, aOpus Dei, e um departamento deinvestigaçãocriminal, aPolícia Ju-diciária francesa.

Terceiro: a erudição histórico-religiosa. Brown relata episódiosdahistóriadocatolicismo, seuscis-maseheresias, até apresente codi-ficação canônica, e os imbricacom suas representações artísticase arquitetônicas. Há, nesse aspec-

to, semelhanças entre Código e ONome da Rosa. Semelhanças su-perficiais. O romance de Eco sepassa na própria Idade Média, queé recriada com empenho e verve.O de Brown se passa na atualida-de, e a história da Igreja Católica écontada por meio de prosa rasa ediálogos prolixos.

Comoesses três recursos sãoas-tutamente comprimidos no tempodanarrativa, avelocidade surgeco-mo a maior força técnica de O Có-digo Da Vinci. O romance se pas-sa em menos de 24 horas, o quelhe confere uma potência vertigi-nosa:nãohá tempoparapausas, re-flexão, ponderação, aprofunda-mento. A ação veloz derruba tudo.

Não é, pois, na técnica literáriaque se encontrará explicação parao sucessodo romancedeDanBro-wn. A explicação se encontra nomaterial romanesco, no assuntodo livro, que pode ser resumido auma palavra: conspiração. O códi-go sustenta que o catolicismo éproduto de uma conspiração siste-mática que, ao longo dos séculos,

suprimiu as mulheres da hierar-quia vaticana e as colocou numaposição subalterna no rebanho defiéis. Contra essa conspiraçãotriunfante se ergue a pequena e te-naz conspiração de organizaçõessecretas que detêm a verdade últi-ma de Cristo, o Santo Graal: queJesus casou com Maria Madalenae deu origem a uma linhagem que,protegida por seitas secretas, per-dura até hoje.

Tanto a conspiração como acontraconspiração se dão no planosimbólico.É umvale-tudo.Signosastrológicos, pirâmides egípcias,cartas de tarô, telas renascentistas,códigosmedievais, equações algé-bricas, anagramas cabalísticos, ri-tuais bárbaros, seqüênciasnuméri-cas – tudo pode significar algo e oseu contrário. Essa mistura alopra-da lembra um desfile de escola desamba, noqual pequenosadereçosadquirem significados babilôni-cos, mas no fim o que resta, mes-mo, é o rufar repetido da bateria erimaspobres, terminadas em“ão”.

Houve muxoxos dos eruditosem simbologia das religiões con-tra as interpretações abusivas fei-tas em O Código. São críticassem fundamento, ao menos paraos iluministas, essa gente démodéque, por se guiar pela racionalida-de, parte de dois pressupostos ób-vios. Primeiro, que o Jesus divinonão existiu, pelo bom motivo queé impossível andar sobre aságuas, transformar água em vi-nho, ressuscitar os mortos, etc. E,segundo, porque a ficção é justa-mente o terreno da invenção. Naficção, inclusive na realista, nãohá nada de mais em que oNazare-no case com Madalena.

É por meio do realismo que oautor se aproximado temadaatua-lidade que dá dinamismo ao ro-mance. Na abertura do livro, fazsua profissão de fé na reproduçãofiel do real: “Todas as descriçõesde obras de arte, arquitetura, docu-mentos e rituais secretos neste ro-mance correspondem à realida-de.” Já no corpo do livro ele culti-va um realismo peculiar, o realis-mo do erro.

Como amostra, eis uma seletade erros em relação ao Louvre. Aplantadomuseu, ondeocorreoas-sassinato do curador Jacques Sau-nière, nãoé aque existena realida-de. O quadro de Caravaggio, queele tira facilmente da parede, pesaquase 100 quilos, o que inviabiliza

aoperação.AnetadeSaunière,So-phie, ameaça rasgar o quadro AVirgem dos Rochedos pressionan-do o joelho contra o verso da tela.Ótimo. Só que o quadro foi pinta-do por Leonardo da Vinci sobremadeira, o que faria com que So-phie tivesse luxadoo joelhoao ten-tar dobrá-lo. Brown diz que o pre-sidente Mitterrand determinou ex-pressamente que a pirâmide de vi-dro na entrada do museu tivesseexatas 666 placas de vidro, paraaludir a um número demoníaco. Apirâmide tem 673 placas.

Ao descrever as peripécias deRobert Langdon em Paris, Browncomete em média dois erros porpágina. É inverossímil que Lang-don, um professor universitário, sehospede no Ritz. O Ritz é um ho-tel para xeques árabes, senadoresmaranhenses, roqueiros ingleses,executivos da Globo. Só milioná-rios podem pagar mais de milreais por noite. O trajeto do carroque leva Langdon do Ritz ao Lou-vre não pode ser feito na vida real.É impossível contemplar do Arcodo Carrossel, simultaneamente, oMuseu d’Orsay, o Jeu de Paume,oArco do Triunfo e a Igreja de Sa-cre Coeur. Também não dá para irdoLouvre à embaixadaamericanapelo caminho descrito pelo autor.

Brown escreve que a igreja deSaint-Sulpice é semelhante e foiconstruída com a mesma concep-ção arquitetônica da catedral deNotre Dame de Paris. Ora, Saint-Sulpiceé renascentista eNotreDa-me, gótica. Elas são tão parecidasquanto a Catedral da Sé e a IgrejadeSãoGabriel, emSãoPaulo. Irri-tados,oscurasdeSaint-Sulpiceafi-xaram um cartaz para explicarque, “ao contrário de alegaçõesfantasiosas de um recente roman-ce de sucesso”, o P e o S nos vi-trais do transepto não querem di-zerPrioradodoSião (umasocieda-de secreta), mas se referem a doissantos, Pedro e Sulpice, padroei-ros da igreja. Os padres esclare-cem também que a igreja nuncafoi um templo dedicado a Isis, di-vindade egípcia. A linha rosa, demetal, que corta o chão, tambémestá em desacordo com o meridia-no descrito por Brown – e comqualquer meridiano. E jamais Pa-ris sediou a linha de longitude ze-ro. Em contrapartida, o livro nãotem nada a dizer sobre o maioratrativo artístico de Saint-Sulpice,as pinturas de Delacroix.

Oacúmulodeequívocospermi-te a conclusão que Dan Brownnão “errou”. Ele falsificou delibe-radamentea realidade.Fez issopa-ra mostrar que a interpretação darealidade é mais importante que aprópria realidade.Onúcleo ideoló-gico de O Código é esse: a realida-dedeve sermanipuladasimbolica-mente, por meio da interpretação,para seobtermaispoder.Bem-vin-do ao misticismo do real.

É um núcleo ideológico forte eatual. O que Dan Brown faz em OCódigo Da Vinci mimetiza o queGeorge W. Bush fez para invadiro Iraque: substituir a realidade porinterpretações de informações for-necidas por especialistas em con-tra-informação. Um parte de da-dos da arquitetura, das obras de ar-te e da história do catolicismo paraadulterá-loseproduzir umamerca-doria literária. O outro usou o pa-pelório da CIA para inventar umSaddam Hussein cheio de armasde destruição em massa, que lheserviu de pretexto para ocupar o

Iraque. Segredos inexistentes fo-ram revelados para justificarações que visaram o poder políti-co e econômico, no caso de Bush,e o enriquecimento comercial, node Brown.

No romance, a política é substi-tuída pela religião. Mas não pelasreligiões que mais crescem e têmmaior peso político, a muçulmanae a evangélica.Ou mesmopela ju-daica, que, materializada no Esta-do de Israel, é foco de todos osconflitos noOriente Médio e adja-cências há mais de meio século. Areligião flagrada em O Código DaVinci é a mais centralizada e está-vel: a católica.

O governo Bush tem algo deconspiração, de seita evangélicaradical. Um presidente crente secercoude ideólogos fanáticos, dis-postos a reconfigurar o mundo pa-ra espalhar aboa novadocapitalis-mo hiperfinanceiro, turbinado porpetrodólares.Esse pugilo de evan-gélicos enfrentou a oposição mili-tante ou terrorista de setores radi-cais do islamismo, organizadas

emseitas semi-secretas comoaAl-Qaeda saudita, o Hamas palesti-no, ou o Hizbollah libanês. Já oVaticano dá apoio tácito à CasaBranca e faz oposição retórica àocupação do Iraque.

TalcomoapresentadaemOCó-digo, a IgrejaCatólicanão temadi-nâmicadestrutivados fundamenta-listas evangélicos, muçulmanos ejudaicos.Ela éumaburocraciaadi-posa, controladaporcardeais fossi-lizados e um papa sinistramenteausente.AIgrejadeBrownnãoad-mitemisticismonemcrêemmisté-rios inefáveis. Não tem fé, é umainstituição poderosa em si mesma.Quer se perpetuar enquanto tal, epara tanto preserva das vistas dosfiéis o seu pecado original, o ocul-tamento do feminino. Brown sópreserva uma facção do catolicis-mo da pasmaceira paralisante, aOpus Dei, não por acaso uma dasmais conservadoras e articuladas.

Como a Opus Dei, Dan Browntem horror a sexo. Não há um bei-jo em O Código Da Vinci. A úni-ca cena de sexo é apenas insinua-da. Ela é tão repulsiva que porcausa dela uma moça de 22 anosrompe para sempre com seu úni-co parente, o avô, que cuidara de-la desde a infância.

Conservador é também o femi-nismo de Brown, que reserva omesmo papel secundário das mu-lheres na Igreja às seitas que lhedãocombate.Emaisqueconserva-dor, abertamente regressivo, infan-tilóidemesmo,éocaudaldechara-das carolas, de palavras cruzadaspias,decaçaao tesourodeacampa-mento de coroinhas, de torneiosde missal e subcultura de catecis-moqueempurrama tramasimpló-ria e criminal de O Código.

É com a mesma cara-de-paucontrita com que Bush jurou que oIraque tinha armas de destruiçãoemmassa que Brown sustenta quena Última Ceia, de Leonardo, éuma mulher que está à direita deJesus, enãooapóstolo João.Oses-tratagemas mentais e a visão demundo de Brown e Bush são osmesmos. Tanto que quem deduziro número Phi da seqüência Fibo-nacci da leitura de trás para a fren-te da tradução para o latim do ro-mance de Dan Brown descobriráo verdadeiro pentagrama doGraal:Bush é oautor de O CódigoDa Vinci.●

* Mario Sergio Conti é jornalista

BROWN PRATICAUM REALISMOPECULIAR: OREALISMO DO ERRO

ESCRITOR DESCREVEIGREJA NA QUAL SÓ AOPUS DEI SE SALVADA PASMACEIRA

TRAVESSIA ‘04/05

PIRÂMIDE DO LOUVRE – Ao contráriodo que diz Brown, estruturanão tem666 placas devidro, por ordemde Mitterrand,mas 673; e quadro de Caravaggio, que personagem tira facilmente daparede, pesa quase100 kg

JEAN AYISSI/AFP–2/5/2004

PB COR

%HermesFileInfo:H-16:20041231:H16SEXTA-FEIRA, 31 DE DEZEMBRO DE 2004 ● O ESTADO DE S.PAULO