resenha crítica de o que é a psicologia

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INSERIR CABEÇALHO Resenha crítica de CANGUILHEM, Georges. O que é a Psicologia? In: Epistemologia, 2. Tempo Brasileiro, n. 30/31. Trad. Maria da Glória Ribeiro da Silva. Rio de Janeiro. jul./dez. 1973. O que é a psicologia? foi uma conferência ministrada por Georges Canguilhem no Collège Philosophique, em 1956, editada e traduzida na revista Tempo Brasileiro por Maria da Glória Ribeiro da Silva, em 1973. Esse texto é uma referência para a epistemologia da psicologia, pois, ao mesmo tempo em que põe em discussão o conceito de psicologia, coloca em xeque a própria existência do psicólogo, que só poderia ser definida através do que este faz. Em maior plano, torna-se importante para outras áreas do conhecimento humano, pois estabelece uma tensão entre o papel do dito “especialista” e a definição do objeto de estudo e do método de uma ciência. Dessa forma, esclarece a importância de os intelectuais se posicionarem diante das atividades de produção de conhecimento que envolvem questões éticas. Trata-se de uma provocação crítica lançada pelo filósofo e epistemologista francês Georges Canguilhem aos psicólogos de sua época; o que se percebe desde o início com a confrontação entre duas questões “O que é a filosofia?” e “O que a psicologia?”. A primeira pergunta ele justifica como sendo uma questão de sentido e de essência que integra a filosofia, já a segunda é apontada como questão que torna discutível a própria existência do

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resenha de livro de Canguilhem

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Page 1: Resenha Crítica de O Que é a Psicologia

INSERIR CABEÇALHO

Resenha crítica de

CANGUILHEM, Georges. O que é a Psicologia? In: Epistemologia, 2. Tempo Brasileiro, n. 30/31. Trad. Maria da Glória Ribeiro da Silva. Rio de Janeiro. jul./dez. 1973.

O que é a psicologia? foi uma conferência ministrada por Georges Canguilhem

no Collège Philosophique, em 1956, editada e traduzida na revista Tempo Brasileiro por

Maria da Glória Ribeiro da Silva, em 1973. Esse texto é uma referência para a

epistemologia da psicologia, pois, ao mesmo tempo em que põe em discussão o

conceito de psicologia, coloca em xeque a própria existência do psicólogo, que só

poderia ser definida através do que este faz. Em maior plano, torna-se importante para

outras áreas do conhecimento humano, pois estabelece uma tensão entre o papel do dito

“especialista” e a definição do objeto de estudo e do método de uma ciência. Dessa

forma, esclarece a importância de os intelectuais se posicionarem diante das atividades

de produção de conhecimento que envolvem questões éticas.

Trata-se de uma provocação crítica lançada pelo filósofo e epistemologista

francês Georges Canguilhem aos psicólogos de sua época; o que se percebe desde o

início com a confrontação entre duas questões “O que é a filosofia?” e “O que a

psicologia?”. A primeira pergunta ele justifica como sendo uma questão de sentido e de

essência que integra a filosofia, já a segunda é apontada como questão que torna

discutível a própria existência do psicólogo. À segunda questão o autor emprega um

raciocínio silogístico: premissa 1, não se sabe o que é psicologia; premissa 2, o

psicólogo é aquele que trabalha com a psicologia; conclusão, não se sabe quem é o

psicólogo. Esse raciocínio característico da filosofia clássica mostra como esta

influenciava/delimitava o pensamento do autor e da época, entendendo-se hoje que o

silogismo é uma forma questionável de se chegar “à verdade das coisas”. A isso,

somam-se outros aspectos que parecem indicar uma preocupação do autor em assumir

sua posição (de filósofo) diante do debate proposto, como se sugere em: “Nós

gostaríamos de tentar, porque não somos um psicólogo, abordar a questão fundamental

colocada por um caminho oposto” (p. 2), por exemplo.

Sob esse prisma, Canguilhem critica a falta de determinação da unidade

característica de uma ciência, afirmando que o objeto de estudo não mais se refere

somente a uma delimitação dos problemas a tratar, mas envolve aquele que assume o

papel de especialista e aquele que ocupa a função de alvo. E mais, ao desenvolvimento

Page 2: Resenha Crítica de O Que é a Psicologia

de uma ciência corresponderia um projeto específico e interessado de um sujeito que

segue determinada orientação teórica. A partir daí, o filósofo critica três bases da

psicologia que não estariam bem estabelecidas, afirmando que “de muitos trabalhos de

psicologia, se tem a impressão de que misturam a uma filosofia sem rigor uma ética sem

exigência e uma medicina sem controle” (p. 1). Sua argumentação é enriquecida com o

questionamento de Edouard Claparède a respeito da definição de psicologia, que

Georges Canguilhem observa procurar um acordo entre a tendência naturalista

(psicologia experimental) e a humanista (psicologia clínica), com o objetivo de mostrar

as fragilidades das fronteiras que distinguem método e objeto da ciência. Essa dupla

distinção entre humanista, naturalista; método e objeto são pontos que guiarão o autor

na organização dos capítulos do texto: I - A psicologia como ciência natural, II - A

psicologia como ciência da subjetividade, III - A psicologia como ciência das reações e

do comportamento.

No primeiro capítulo, o epistemologista parte da etimologia da palavra

psicologia, que a definiria como ciência da alma, para problematizar as origens da

psicologia, cujo objeto parecia se confundir com o de outras ciências. Nesse momento,

torna-se necessário conhecer o fato de que essa dita ciência (porque esse estatuto é

questionado por Canguilhem) é originária de outros campos do saber como a filosofia e

a fisiologia. O autor afirma que a ciência da alma é uma província da filosofia, por

haver integrado um campo originário e universal de teoria da natureza posto que

tradicionalmente se tratasse a alma como elemento natural de acordo com a física de

Aristóteles. A crítica que se segue à psicologia quanto às especialidades psicofisiologia

e psicopatologia é o fato de estas remontarem ao século II, pois devem seus avanços à

definição de Galeno de Pérgamo, que estabeleceu o cérebro como a sede da alma, não o

coração.

No segundo capítulo, Canguilhem se detém na transição que a psicologia sofre,

de uma para-física para uma ciência da subjetividade, no século XVII, com o declínio

da física aristotélica. E essa transição se deveria aos físicos mecanicistas do século

XVII, segundo os quais o homem é analisável como uma máquina, visto que seu

organismo seria composto de uma grande engrenagem. A psicologia manifesta-se em

resposta à psicologia mecanicista que “acusa o exercício dos sentidos na função de

conhecimento”, que ao duvidar dos sentidos como forma de apreensão da realidade,

provoca a metodologia empírica da psicologia. Isso faz surgir a psicofísica, num

movimento em que a psicologia busca tornar-se física do sentido externo, em que busca

Page 3: Resenha Crítica de O Que é a Psicologia

determinar constantes qualitativas entre as relações funcionais da mente e os fenômenos

físicos. Mas essa relação ocorre aí pela correspondência direta – como num cálculo

matemático – entre as proposições determinadas e os fatos da consciência.

Por outro lado, sob forte influência de René Descartes, grande representante do

pensamento mecanicista, a psicologia se apresenta como ciência do sentido interno, ao

buscar estabelecer a essência do ser a partir da reflexão interna sobre a existência, com

base em um raciocínio lógico, ego cogito. Essa ciência, então, basearia os seus métodos

racionais na intuição de um eu substancial, conforme um empirismo apreendido como

história natural de um eu. Com relação a isso, Canguilhem afirma que “nós não

podemos, nem sobre nós mesmos, nem sobre o outro, fazer experiências” (p. 7). Assim,

ele coloca que a psicologia não poderia ser matemática ou física, mas sim descritiva.

Concluindo essa parte, o autor destaca a opinião de Maine de Biran, segundo a

qual “a psicologia se torna a técnica do Diário íntimo e a ciência do sentido íntimo” (p.

7), e que estabelece um Eu quero que funda a consciência para si. Essa opinião, somada

à de outros como Pinel e Royer-Collard fazem com que, na relação entre o físico e o

psíquico, transpareça que o inconsciente é de ordem física. A psicologia, dessa forma,

iria além de uma ciência da consciência e passaria a ser uma ciência das profundezas da

alma.

O terceiro capítulo mostra de que modo a psicologia começou a se constituir

uma biologia do comportamento humano, ao lado da psicologia como patologia nervosa

e mental, como física do sentido externo, como ciência do sentido interno e do sentido

íntimo. As motivações para esse novo movimento na psicologia do século XIX,

segundo o autor, seriam: de ordem científica, posto que já se entendesse a inexistência

de um reino humano separado; de ordem técnica e econômica, sob o regime industrial

desvaloriza-se o pensamento especulativo; e de ordem política, pois se firmavam os

valores igualitários entre os homens da época. É nesse contexto que a psicologia nega

qualquer dívida com a filosofia e se diz uma ciência objetiva dos comportamentos, das

reações e das atitudes. Nisso mostra-se uma negatividade apontada por Canguilhem,

esses psicólogos deixam de se posicionar sócio-historicamente diante do trabalho

proposto sob o pretexto de assumirem o papel de especialistas.

Quando se estabelece dessa forma, a psicologia nega a ideia do utilitarismo, que

implicaria a tomada de consciência do homem como ferramenta para construção de

conhecimento para o homem, e segue a noção instrumentalista, tratando os homens

Page 4: Resenha Crítica de O Que é a Psicologia

como instrumento, enquanto a psicologia mesma não esclarece a que interesses se volta.

Sobre isso, Canguilhem investe:

A psicologia repousa bem sobre um desdobramento, mas não é mais o da

consciência, segundo os fatos e as normas que comportam a idéia do homem, é o

de uma massa de “sujeitos” e de uma elite corporativa de especialistas investindo-

se eles próprios de sua própria missão. (p. 11).

O que Canguilhem problematiza, por fim, é a instrumentalização do homem por

uma psicologia que se diz objetiva por ter se aproximado do patamar das ciências, por

ter renegado suas interseções com a filosofia. Critica o trabalho do psicólogo que se

esconde por trás da identidade de especialista como forma de afirmação perante outros

homens, atitude que tem por preço a anulação da preocupação com a essência humana.

O autor parece indicar uma deturpação que a psicologia buscava instalar na época da

conferência, transformando normas éticas, provenientes de interesses individuais, em

categorias universais de análise que sublimariam a existência desses interesses e

dispensariam a necessidade de os psicólogos se situarem num contexto sócio-histórico.

Porém, não se pode negar que a intervenção de Canguilhem no debate representa o

papel do filósofo que reclama o reconhecimento da filosofia enquanto área do

conhecimento que deveria ter papel mais determinante sobre outras áreas como a

psicologia.

Enfim, O que é a psicologia? é um texto de leitura complexa, pois deve-se

considerar que se trata de uma conferência acontecida na metade do século passado e

que passou por um processo de tradução. Além disso, há referências a vários nomes da

tradição filosófica e uso de várias expressões de natureza técnica. Essas referências e

alusões ao mesmo tempo marcam a identidade do autor, Georges Canguilhem, que,

nomeado professor da Sorbonne em 1955, foi o sucessor de Gaston Bachelard e mestre

de intelectuais e filósofos da linguagem como Michel Foucault, François Dagognet e

Gilles Deleuze. As provocações críticas que constam nessa conferência são muito

pertinentes e fazem com que esse texto ocupe um lugar de referência ainda hoje no

conhecimento dos caminhos percorridos pela psicologia. Diante do debate proposto por

esse filósofo e epistemologista nessa conferência, podemos concluir que a psicologia

poderia trazer contribuições a respeito da forma como determinados homens

enxergavam o pensamento de uma época, nunca indicar a verdade natural do homem.