resenha barba ensopada de sangue

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    GALERA, DANIEL. BARBA ENSOPADA DE SANGUE.SO PAULO: COMPANHIA DAS LETRAS, 2012.

    Willy Carvalho Coelho*Universidade Federal de Minas Gerais

    Daniel Galera nasceu em So Paulo. Segundo informaes do prprio autor, passoua maior parte da vida (at o presente) em Porto Alegre. Comeou a publicar, de formaindependente, no fim dos anos 90. Tem no currculo uma considervel obra emconstruo. Iniciou com o livro de contos, Dentes guardados, e com a novela At o diaem que o co morreu. O burburinho do reconhecimento local fez com que Galera chegasseao mercado do pas. Atravs da Companhia das Letras, publica inicialmente Mos decavalo (2006). Na esteira do primeiro romance segue a edio de Cordilheira (2008). Emseguida, participa da composio da graphic novel (em parceria com o desenhista RafaelCoutinho) Cachalote (2010). Galera ainda divide o tempo da escrita criativa com o datraduo literria. responsvel pela verso em portugus de textos de relevantesficcionistas de lngua inglesa da atualidade.

    O O O O O DRAMADRAMADRAMADRAMADRAMA DODODODODO HOMEMHOMEMHOMEMHOMEMHOMEM SEMSEMSEMSEMSEM NOMENOMENOMENOMENOME QUEQUEQUEQUEQUE NONONONONO RECONHECERECONHECERECONHECERECONHECERECONHECE OOOOO PRPRIOPRPRIOPRPRIOPRPRIOPRPRIO ROSTOROSTOROSTOROSTOROSTO NONONONONO ESPELHOESPELHOESPELHOESPELHOESPELHO

    Barba ensopada de sangue a histria do professor de educao fsica, um homem detrinta e poucos anos de idade, que vive em Porto Alegre at ver seu casamento serarruinado. Como se no bastasse, seu pai, um sujeito pintado como algum distante e dedifcil convivncia, incumbe-lhe, ao se definir pelo suicdio, do sacrifcio da cadela Beta,com quem vive h mais de quinze anos. O encontro entre pai e filho e o informe dadeciso de se matar compem parte do primeiro captulo. Nele esto os indcios de toda ametodologia que Galera acerta para acompanhar os impasses da personagem sem nome,que sofre de um raro distrbio de memria. Prosopagnosia o termo mdico. O transtornoo impede de reter, por mais do que alguns minutos, a imagem da face das pessoas, inclusivea da sua prpria. este o ardil utilizado para criar o escape adequado personagem quese encontra deriva, depois da sucesso de episdios traumticos. Durante o dilogo como pai, a recordao da semelhana fsica com o av paterno trar consigo os fragmentosque esboam uma histria imprecisa acerca da identidade deste. A conversa despertar acuriosidade da personagem a respeito da temporada vivida pelo av em Garopaba (pequenacidade turstica do litoral catarinense), assim como alimentar a incerteza que cerca ahistria da morte de Gaudrio (o av) um suposto assassinato. O primeiro captuloconcentra toda a tenso que se dissolve no desenvolvimento da narrativa. O trechoprenuncia as caractersticas da personalidade singular do protagonista. No clmax do

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    embate absurdo que configura o anncio do suicdio por parte do pai e o pedido deprovidncia concernente ao sacrifcio da cachorra Beta, presencia-se o encontro entrepai e filho que apenas a ideia da morte poderia provocar. Vencido pelos argumentos dopai, depois de absorvida a estranha razo que comanda o evento, vemos o acerto decontas entre pai e filho. A descrio do sentimento (seja de que ordem for) a opoadotada por Galera, a ponto de criar diante de nossos olhos a cena em que o Te amo,guri (p. 35) final do pai provoca sinestesia. Tanto personagem quanto leitor se veemenredados, ainda que por segundos, numa iluso sentimental. Mas no se trata de puroengodo. Na realidade, Galera produz uma situao em que a palavra vale o mesmo que asensao do abrao, provavelmente to desejado pelo filho. Eu no aceitei. No aceitei.No encosta em mim (p. 35), ouvimo-lo dizer. Mas, sabemos, seguindo o dilogo, que opai no moveu sequer um dedo na poltrona em que se encontrava diante do filho. Euno ia encostar. No t nem me mexendo (p. 35).

    IIIIINADAPTAONADAPTAONADAPTAONADAPTAONADAPTAO GRADUALGRADUALGRADUALGRADUALGRADUAL

    Depois da morte do pai, o homem viaja e se instala na cidadezinha de Garopaba.Ali pe em prtica a tentativa de reinventar a prpria identidade. Estamos no fim detemporada do ano de 2008. A histria em primeiro plano que acompanhamos se passa,em quase sua totalidade, no perodo de baixa do turismo na cidade. Dividido em trspartes, o romance narra a transformao gradual da personagem at sua completaadaptao ao ambiente, sugerida pelo prlogo, narrado, no futuro, pelo sobrinho doprotagonista. A primeira parte mostra-o chegando cidade com a cachorra Beta.Sabemos, ento, que ele no conseguiu cumprir a promessa feita ao pai. A etapa inicialtrata da acomodao do protagonista e de sua companheira canina. Ele conhece umabonita garota com quem se relaciona, arruma emprego numa academia local e correatrs de uma casa para se instalar definitivamente. Satisfatoriamente adaptado, osegundo momento do livro servir de plataforma para que o protagonista alimente oestranho motivo que o levou cidade. A investigao das circunstncias da morte doav, de quem o ssia, impinge-lhe a reflexo sobre a identidade prpria. Ironicamente,com a mesma facilidade com que se esquece do rosto dos outros e do prprio rosto, eleperceber que a travessia do (quase) ano nessa espcie de retiro no garante, em reverso,o esquecimento de outras marcas da histria pessoal. Curiosamente, so os detalhesque permitem que ele reconhea as pessoas com quem se relaciona. Ainda so os detalhesque possibilitam o acesso s lembranas da histria pessoal e da histria comum, partilhadacom as pessoas que amou, que ama ou que simplesmente conviveu.

    Dois aspectos (complementares) saltam aos olhos no mtodo de Galera: atentativa, exausto, de descrever tudo aquilo que sentido, e o interesse pelavariabilidade dos registros atravs dos quais apreendemos o real. como se Galerativesse lido com dedicao as cartilhas dos princpios de etnologia e dos princpios dobehaviorismo, com uma diferena: ele escreve bem. Isso quer dizer, escrever comgraciosidade, escrever de modo que a forma do discurso seja plasmada com graa; assim que Costa Lima define uma das peculiaridades do discurso literrio.

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    OOOOOBSESSOBSESSOBSESSOBSESSOBSESSO DESCRITIVADESCRITIVADESCRITIVADESCRITIVADESCRITIVA SERVESERVESERVESERVESERVE IRONIAIRONIAIRONIAIRONIAIRONIA EEEEE AOAOAOAOAO ESCLARECIMENTOESCLARECIMENTOESCLARECIMENTOESCLARECIMENTOESCLARECIMENTO

    O narrador em terceira pessoa projetado dessa vez por Galera operacionaliza o discursoindireto livre de forma peculiar e atordoante. A j referida caracterstica do empenho detudo descrever, de tudo analisar a nveis cada vez mais microscpicos tem como efeito adesmontagem de qualquer afastamento aurtico que o discurso literrio poderia ainda sugerirnos dias de hoje. E o que me vem cabea para dar contorno metodologia de Galera aideia de profanao, como proposta por Agamben. Profanar seria uma forma de restituir aouso comum dos homens aquilo que foi deslocado para uma esfera sagrada. Galera parecequerer nos devolver, em imagens que causam choques intermitentes, um real depurado. Sepensarmos que, na atualidade, o mercado e o academicismo (penso sobretudo nas disciplinascientficas) representam as instncias de legitimao do discurso, toro para que Galerapermanea na contramo. O destino armado para o protagonista um flerte, malogrado,com a tentativa de escapar do mundo administrado pela mercadoria e pela verdade cientfica. preciso apostar que todo o aparato miditico que cerca Barba ensopada no desmerea adescrio obsessiva do narrador, que busca, numa via alternativa, a crtica do contexto queo gera. Para isso, no poupa sequer a sacralidade da literatura e adjacncias o irmo doprotagonista um escritor que no aparece bem na foto, vamos dizer assim. Sua ex-mulher executiva jnior de uma editora de livros infantis em So Paulo. O saldo de seu retratoinspira afetao e clich. O discurso do narrador no poupa ningum, no poupa circunstncianenhuma.

    A captura do atual outro critrio do diapaso da narrativa. Somada posturadescritiva, ela cria uma tcnica singular, que nos apresenta a inveno de mundosparticulares, filtrados por uma lente de objetividade. Da mesma forma que o recursonos brinda com algumas cenas tocantes, o registro mdio do romance nos lembra comfrequncia da atmosfera de boalidade em que nos encontramos irremediavelmenteinseridos. A cena da descrio da memria do sexo entre o protagonista e Dlia, umpequeno e belo conto incrustado no meio da primeira parte, inscreve o nome de Galerano rol dos narradores erticos, como Philip Roth e Rubem Fonseca; saindo na vantagem,por saber controlar o peso da escatologia. Os momentos que captam a relao do pai doprotagonista, assim como a relao dele prprio, com a cachorra Beta so preciosos eservem motivao da narrativa de refletir sobre os limites da cultura e da natureza.Mas, como dito, Galera no poupa ningum. E seu recurso descritivo serve ironia, nosentido de nos apresentar, s escncaras, a arrumao do ambiente social. Pelos olhosdo homem que no grava imagens da face humana, vemos esquetes dos relacionamentospromscuos e meio estpidos entre adolescentes tardios, deparamo-nos com a figuraincongruente (entre o afetuoso e o espertalho) de Bonobo, temos acesso inconscinciae futilidade da mulher de meia idade da classe mdia (representada pela me doprotagonista), e ainda ao clich de personalidade, vivido por uma segunda namorada, amestranda em Psicologia Jasmin.

    Para finalizar, proponho um exerccio interpretativo. Se forssemos uma leituracrtica embasada no princpio evolutivo e que se permitisse a fantasia de uma espciesingular de alegoria, poderamos interpretar o distrbio neurolgico do protagonistacomo o prenncio de um futuro muito prximo. Nele, todos ns, tragados para o turbilho

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    imbecilizante da imagem veloz em movimento (da TV internet), no conseguiremosnos lembrar da face do sujeito que acabamos de conhecer, ou mesmo do prprio rosto.Talvez o mais certo seja que no consigamos identificar qualquer sinal de diferena nahomogeneidade poderosa com que o recurso da mercadoria nos condiciona, como setudo parecesse estar sob nosso controle. num mundo desses que a literatura no devese esquivar. Penso que Galera cumpre bem esse papel. Certamente isso faz com queespere o prximo ttulo.

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