representacao genero atendimento mulher na delegacia

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 61 R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianópolis, v.6, n.2, p. 61-85, jul./dez. 2009 REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO E ATENDIMENTO POLICIAL A MULHERES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA 1  REPRESENTATIONS OF GENDER AS WELL AS POLICE SERVICE TO WOMEN VICTIMS OF VIOLENCE. REPRESENTACIONES DE GÉNERO Y ATENCIÓN POLICIAL A LAS MUJERES VÍCTIMAS DE VIOLENCIA. Lana Lage da Gama Lima 2  Suellen André de Souza 3  RESUMO: Este trabalho propõe uma análise das práticas de atendimento policial às mulheres vítimas de violência de gênero em quatro delegacias do Estado do Rio de Janeiro, duas delas especializadas no atendimento a esse tipo de conflitos, localizadas na capital do Estado, e duas comuns, localizadas no interior. A criação das Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher, em meados dos anos 80, foi fruto das pressões do movimento feminista sobre o governo, no contexto político da redemocratização do país após a Ditadura Militar. Enfatizamos neste texto a existência, no cotidiano das delegacias, do confronto entre diferentes representações sobre a natureza desse tipo de conflito e procuramos analisar, de modo comparativo, como esse fato se reflete nas práticas policiais observadas, com o objetivo de verificar se as delegacias especializadas apresentam práticas de 1  Este texto é parte da pesquisa Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher: uma análise de suas práticas de administração de conflitos, que teve início no Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro -ISP, em 2005, passando a ser desenvolvida no Núcleo de Estudos de Exclusão e da Violência da Universidade Estadual do Norte Fluminense   NEEV/UENF a partir de 2007, com recursos do Edital PRONEX-FAPERJ/CNPq 2006, vinculada ao Projeto Sistemas de Justiça Crim inal e Segurança Pública, em uma perspectiva comparada: administração de conflitos e construção de verdades do Núcleo de Estudos Fluminenses   NUFEP/UFF.  Atualmen te int egra o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia   Instituto de Estudos de Administração Institucional de Conflitos   INCT- InEAC, com sede no NUFEP/UFF. 2  Professora titular de História Social da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), onde coordena o Núcleo de Estudos de Exclusão e da Violência - NEEV. Possui graduação em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1973), mestrado em História pela Universidade Federal Fluminense (1977) e doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (1990). Foi professora do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, onde se aposentou em 1995. 3  Mestranda em Sociologia Política na Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeir o (UENF).  

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    R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.6, n.2, p. 61-85, jul./dez. 2009

    REPRESENTAES DE GNERO E ATENDIMENTO POLICIAL A MULHERES

    VTIMAS DE VIOLNCIA1

    REPRESENTATIONS OF GENDER AS WELL AS POLICE SERVICE TO WOMEN

    VICTIMS OF VIOLENCE.

    REPRESENTACIONES DE GNERO Y ATENCIN POLICIAL A LAS MUJERES

    VCTIMAS DE VIOLENCIA.

    Lana Lage da Gama Lima2

    Suellen Andr de Souza3

    RESUMO: Este trabalho prope uma anlise das prticas de atendimento policial s mulheres vtimas de violncia de gnero em quatro delegacias do Estado do Rio de Janeiro, duas delas especializadas no atendimento a esse tipo de conflitos, localizadas na

    capital do Estado, e duas comuns, localizadas no interior. A criao das Delegacias Especializadas no Atendimento Mulher, em meados dos anos 80, foi fruto das presses do movimento feminista sobre o governo, no contexto poltico da

    redemocratizao do pas aps a Ditadura Militar. Enfatizamos neste texto a existncia, no cotidiano das delegacias, do confronto entre diferentes representaes sobre a natureza desse tipo de conflito e procuramos analisar, de

    modo comparativo, como esse fato se reflete nas prticas policiais observadas, com o objetivo de verificar se as delegacias especializadas apresentam prticas de

    1 Este texto parte da pesquisa Delegacias Especializadas de Atendimento Mulher: uma anlise de

    suas prticas de administrao de conflitos, que teve incio no Instituto de Segurana Pblica do Rio de Janeiro -ISP, em 2005, passando a ser desenvolvida no Ncleo de Estudos de Excluso e da Violncia da Universidade Estadual do Norte Fluminense NEEV/UENF a partir de 2007, com recursos do Edital PRONEX-FAPERJ/CNPq 2006, vinculada ao Projeto Sistemas de Justia Criminal e Segurana Pblica, em uma perspectiva comparada: administrao de conflitos e construo de verdades do Ncleo de Estudos Fluminenses NUFEP/UFF. Atualmente integra o Instituto Nacional de Cincia e Tecnologia Instituto de Estudos de Administrao Institucional de Conflitos INCT-InEAC, com sede no NUFEP/UFF. 2 Professora titular de Histria Social da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro

    (UENF), onde coordena o Ncleo de Estudos de Excluso e da Violncia - NEEV. Possui graduao em Histria pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1973), mestrado em Histria pela Universidade Federal Fluminense (1977) e doutorado em Histria Social pela Universidade de So Paulo (1990). Foi professora do Departamento de Histria da Universidade Federal Fluminense, onde se aposentou em 1995. 3 Mestranda em Sociologia Poltica na Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro

    (UENF).

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    administrao de conflitos diferenciadas e mais adequadas s concepes que orientaram a sua criao como poltica pblica de gnero. Palavras-chave: Gnero. Polcia. Administrao de conflitos.

    ABSTRACT:

    This paper proposes an analysis of practices of police assistance to women victims of gender violence in four police stations of the State of Rio de Janeiro, two of them specialized in assisting with this type of conflict, located in the state capital, and two

    others, not specialized, located in the countryside. The creation of the Specialized Police Assistance to Women in the mid 80s was the result of pressure from the feminist movement over the government in the political context of democratization of

    the country after the military dictatorship. We emphasize the existence, in the daily routine of the police stations, of the confrontation among different representations on the nature of this conflict, and we have tried to analyze, in a comparative way, how

    this fact affects the police practices observed, in order to verify if the specialized police stations present practices of conflict management which are differentiated and more suitable to the conceptions that have guided their creation as public policy of

    gender. Keywords: Gender. Police. Administration of conflicts.

    RESUMEN: Este artculo propone un anlisis de las prcticas de atencin policial a las mujeres vctimas de violencia de gnero en cuatro comisaras del Estado de Rio de Janeiro,

    dos de ellas especializadas en la atencin de este tipo de conflictos, localizadas en la capital del Estado, y dos comunes, localizadas en el interior. La creacin de las Comisaras especializadas en la atencin a la mujer, a mediados de los aos 80,

    result de la presin que el movimiento feminista ejerci sobre el gobierno, en el contexto de la redemocratizacin poltica del pas despus de la dictadura militar. Destacamos en este artculo que en la vida cotidiana de la polica existe un

    enfrentamiento entre diferentes representaciones de este tipo de conflicto y tratamos de analizar, de modo comparativo, cmo este hecho se refleja en las prcticas policiales observadas, buscando verificar si las comisaras especializadas presentan

    prcticas diferenciadas de administracin de conflictos y ms adecuadas a las concepciones que orientaron su creacin como poltica pblica de gnero. Palabras clave: Gnero. Polica. Administracin de conflictos.

    INTRODUO

    As delegacias especializadas no atendimento mulher vtima de violncia

    constituem uma das mais importantes polticas pblicas de gnero implantadas no

    Brasil, completando vinte e quatro anos de sua criao em 2009. Durante esse

    perodo, esse tipo de delegacia, cujo modelo originalmente brasileiro, foi alvo de

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    numerosos estudos, preocupados em analisar e avaliar seu desempenho4. Neste

    trabalho, apresentamos resultados parciais da pesquisa que vem sendo realizada

    desde outubro de 2005, envolvendo, a partir de uma abordagem comparativa, quatro

    delegacias do Estado do Rio de Janeiro: duas especializadas, localizadas na capital

    e duas distritais, localizadas no municpio de Campos dos Goytacazes, no norte do

    Estado. Focalizamos o modo como as representaes de gnero vm afetando as

    prticas de administrao de conflitos caracterizados como violncia contra a

    mulher, que tm homens como agressores e mulheres como agredidas, ocorrendo

    muitas vezes no espao domstico e envolvendo relaes pessoais e afetivas entre

    autor e vtima5. A escolha da abordagem comparativa se justifica pelo fato de que o

    nmero de unidades especializadas no suficiente para absorver todos esses

    conflitos, cuja demanda por soluo termina em grande parte nos balces das

    delegacias distritais, concorrendo com outros delitos considerados mais importantes

    pelos policiais. Por outro lado, a defesa da necessidade de criao de mais

    delegacias especializadas se baseia na alegao de que o atendimento prestado

    nessas unidades de melhor qualidade, do ponto de vista das necessidades das

    mulheres e das caractersticas dos conflitos.

    Ao analisar o atendimento prestado s mulheres nas unidades policiais

    pesquisadas, especializadas ou no, encontramos diferentes representaes sobre

    esses conflitos, confrontadas no cotidiano das delegacias. Segundo Chartier, as

    representaes no constituem discursos neutros. Ao contrrio, produzem

    4Entre outros, ver: BRANDO, E. R. Violncia conjugal e o recurso feminino polcia. In:

    BRUSCHINI, C., HOLANDA, H. B. de (orgs.). Horizontes Plurais. Novos estudos de gnero no Brasil. So Paulo: FCC So Paulo: Editora 34, 1988; GROSSI, M. P. Rimando Amor e Dor: reflexes sobre a violncia no vnculo afetivo-conjugal. In: PEDRO, J. M., GROSSI, M. P. (orgs). Masculino, Feminino, Plural. Florianpolis: Editora Mulheres, 1998; MACHADO, L. Z.,

    MAGALHES, M. T. B. Violncia Conjugal: os espelhos e as marcas. In: SUREZ, M., BANDEIRA, L. (orgs). Violncia, Gnero e Crime no Distrito Federal. Braslia: Editora UNB, 1989; SOARES, B. M. Mulheres Invisveis. Violncia Conjugal e Novas Polticas de Segurana. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1999; MACHADO, L. Z. Atender Vtimas e criminalizar Violncias: dilemas das delegacias de mulheres. In: AMORIM, M. S. et al. (orgs). Juizados Especiais Criminais, Sistema Judicial e Sociedade no Brasil: ensaios interdisciplinares. Niteri: Intertexto, 2003; ALVES, W. O.

    do N. A Prtica Policial na DEAM e o Juizado Especial Criminal: tradio ou mudana? In: AMORIM, M. S. et al. (orgs). Juizados Especiais Criminais, Sistema Judicial e Sociedade no Brasil: ensaios interdisciplinares. Niteri: Intertexto, 2003; CAVALCANTI, V. R. S. Vozes femininas (ainda

    silenciadas): ranos e avanos sobre a violncia domstica no Brasil. In: DA SILVA, G. V. et al. (orgs). Histria, Mulher e Poder. Vitria: EDUFES, PPGHis, 2006. 5 Utilizamos o termo vtima para caracterizar a parte que sofreu a agresso que motivou a procura da

    delegacia para o registro da ocorrncia, sem referncia, portanto, dinmica das relaes estabelecidas entre homens e mulheres em situao de violncia.

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    estratgias e prticas, servindo para justificar escolhas e condutas, sejam elas

    reformadoras ou conservadoras (CHARTIER, 1990, p. 17). Portanto, estudar os

    confrontos entre representaes no significa abandonar a realidade, mas procurar

    compreend-la em toda a sua complexidade.

    Do ponto de vista de sua insero disciplinar, este trabalho se situa entre a

    Antropologia, da qual incorporou mtodo etnogrfico, e a Histria Cultural, que tem

    por objeto as representaes do mundo social, partindo do princpio de que essas

    representaes, revelia dos atores sociais, traduzem suas posies e interesses

    objetivamente confrontados e que, paralelamente, descrevem a sociedade tal como

    pensam que ela , ou gostariam que fossem (CHARTIER, 1990, p. 19).

    O conceito de representao aqui articulado ao conceito de gnero que,

    para Scott, implica em quatro categorias de elementos relacionadas entre si:

    smbolos culturalmente disponveis; conceitos normativos que procuram limitar as

    possibilidades de interpretao desses smbolos; relaes sociais e identidades

    subjetivas (SCOTT, 1990).

    Iniciamos a pesquisa buscando contextualizar historicamente a criao das

    Delegacias Especializadas de Atendimento Mulher DEAM no Estado do Rio de

    Janeiro, identificando as foras sociais que atuaram nesse processo e analisando a

    conjuntura que permitiu ao movimento feminista6 obter sucesso em sua

    reivindicao de que fosse criada uma delegacia especial para atender mulheres

    vtimas de violncia, particularmente sexual e conjugal. Porque, efetivamente, a

    DEAM foi uma conquista das mulheres organizadas, as quais se valeram de um

    momento poltico particularmente favorvel, para conseguir dos governos da poca

    a implantao desse servio policial especializado.

    No Rio de Janeiro, a primeira unidade foi criada em 1986, um ano depois de

    seu surgimento em So Paulo. Como enfatizou Nilo Batista, a quem coube implant-

    la, como Secretrio de Polcia Civil do governo Leonel Brizola, a delegacia era uma

    6 Ao utilizarmos o termo movimento feminista, no singular, no nos esquecemos de sua pluralidade,

    expressa nos diferentes grupos de mulheres que, ora articulados, ora conflitantes, ora agindo de forma paralela, estabeleceram alguns temas comuns em sua pauta reivindicaes. Sobre o feminismo no Brasil, ver, entre outros: SOIHET, 2005, PEDRO, 2005 e COSTA, 2006.

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    demanda unnime de todos os grupos que compunham o movimento feminista,

    sobrepondo-se s divergncias que existiam entre eles7.

    Assumido como pauta de governo, o dilogo aberto com os diferentes

    movimentos sociais organizados facilitou as negociaes para uma reivindicao

    que culminava uma srie de campanhas desenvolvidas desde a dcada anterior

    com o slogan Quem ama no mata, criado a partir de um caso de assassinato de

    uma mulher de projeo social por seu companheiro. As mulheres organizadas

    conseguiram, por meio de ampla movimentao e manifestaes pblicas, reverter a

    absolvio inicial e obter a condenao do ru em segundo julgamento. Esse e

    outros casos semelhantes caracterizados em seu conjunto pelo movimento

    feminista como violncia contra a mulher obtiveram grande repercusso na

    imprensa, sensibilizando a populao para a discusso sobre a tolerncia da justia

    e da sociedade para os crimes conjugais cometidos em nome da honra masculina.

    Nos anos 80, no contexto de resistncia ditadura militar e da campanha pela

    anistia poltica, outra questo estava em pauta: a defesa dos direitos humanos. As

    mulheres utilizaram esse debate para criticar o conceito e formular outro os direitos

    humanos das mulheres , chamando a ateno para as especificidades da condio

    feminina no mundo e no Brasil.

    No Rio de Janeiro, o tema dos direitos humanos havia sido institucionalizado

    pelo governo de Brizola desde 1983, com a criao do Conselho de Justia,

    Segurana Pblica e Direitos Humanos. Entre as comisses criadas em seu mbito,

    para tratar de questes e setores especficos da sociedade, estava a Comisso de

    Defesa dos Direitos da Mulher, instalada em 1985. Foi ela que encaminhou ao

    governador, que presidia pessoalmente o conselho, a proposta de criao da

    primeira DEAM, nos moldes da que havia sido implantada em So Paulo8. A partir

    da o movimento feminista se empenhou numa rdua campanha em prol de sua

    criao, que foi precedida pela organizao de outros servios destinados s

    mulheres, como o Planto de Assistncia Jurdica na Secretaria de Justia e o

    Centro Policial de Atendimento Mulher CEPAM, que encaminhava os registros ali

    7 Nilo Batista - Entrevista em 03/05/2006.

    8 Diva Mcio Entrevista em 26/06/2006.

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    realizados para as delegacias distritais, como esclareceu a atual diretora da Diviso

    de Polcia de Atendimento Mulher do Estado do Rio de Janeiro DPAM9.

    Paralelamente proposta encaminhada pela Comisso Especial de Defesa

    dos Direitos da Mulher, era enviado, no mesmo ano de 1985, um projeto de lei para

    a criao de uma delegacia especializada no atendimento mulher, de autoria do

    deputado Eurico Neves, do PTB/RJ, que, ao defender a proposta no jornal Tribuna

    do Advogado/OAB-R (08/09/1985), condensava as motivaes e concepes

    subjacentes criao dessa poltica pblica de gnero na rea de segurana:

    A mulher carioca, com a instalao dessa delegacia especializada, poder denunciar todo tipo de violncia de que vier a ser vtima. E isto ocorrer dentro de condies que respeitem a sua dignidade humana e os seus direitos como mulher. Atualmente, sempre que alguma mulher violentada ou espancada, ao se dirigir polcia ainda se v diante de um constrangimento adicional: o medo de ser ridicularizada. Nessa Delegacia, elas sero atendidas por policiais femininas que tero uma viso mais humanitria do drama da mulher que vtima de uma violncia (JORNAL

    TRIBUNA DO ADVOGADO/OAB-R, 08/09/1985).

    A criao da primeira DEAM, na capital do Estado, foi seguida pela instalao

    de mais uma unidade em Niteri, no mesmo ano, e outra em Caxias, um ano depois.

    A partir da, as mudanas na conjuntura poltica prejudicaram sua multiplicao,

    apesar dessa reivindicao permanecer at hoje na pauta da Comisso de Defesa

    da Mulher do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher do Rio de Janeiro CEDIM,

    rgo criado em 1987 para assessorar, formular e fomentar polticas pblicas

    voltadas para a valorizao e igualdade social das mulheres. Na dcada de 1990

    foram criadas apenas duas unidades, em Nova Iguau e So Gonalo. No incio dos

    anos 2000, mais trs, localizadas em Jacarepagu, Belford Roxo e Volta Redonda, a

    nica fora da regio metropolitana. Recentemente, em meados de outubro de 2009,

    foi instalada mais uma unidade em So Joo de Meriti.

    Para estudar o processo histrico que deu origem primeira DEAM,

    realizamos, alm da pesquisa documental em peridicos e documentos oficiais,

    entrevistas semi-estruturadas com os atores sociais envolvidos em sua formulao e

    implantao: lideranas feministas, delegadas que atuaram nessa unidade, e

    representantes do governo na poca da criao desse servio pblico.

    9 Martha Rocha Entrevista em 23/05/2006.

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    Para analisar as prticas policiais de administrao dos conflitos

    caracterizados em seu conjunto pelo movimento feminista como violncia contra a

    mulher, nos valemos ainda da observao etnogrfica e de entrevistas semi-

    estruturadas com policiais lotados nas delegacias pesquisadas. Tambm foram

    entrevistadas funcionrias que atuam em dois ncleos municipais de atendimento

    mulher e no Centro Integrado de Atendimento Mulher CIAM, vinculado ao

    CEDIM, com o objetivo de verificar as relaes estabelecidas entre esses servios e

    as delegacias de polcia, no mbito da rede de atendimento mulher vtima de

    violncia, que compreende diversos servios que deveriam funcionar de forma

    articulada.

    A anlise dos dados tornou-se mais complexa pelo o fato de que o perodo

    coberto pela pesquisa de campo foi marcado por duas importantes mudanas na

    legislao: a Lei 9.099/95 e a Lei n 11.340/06 Maria da Penha. A primeira,

    embora de carter abrangente, acabou atraindo esse tipo de conflitos para os

    Juizados Especiais Criminais JECRIMs e a segunda, elaborada especialmente

    para regulamentar sua administrao, retirando-os da jurisdio desses juizados,

    tem encontrado muitas resistncias sua aplicao, tanto na esfera policial quanto

    na jurdica.

    Finalmente, preciso ressaltar que as quatro unidades pesquisadas esto

    inseridas no Programa Delegacia Legal, implantado no Estado do Rio de Janeiro a

    partir de 1999, cujo objetivo foi modernizar a Polcia Civil, por meio da

    informatizao e da reforma fsica dos prdios das delegacias e tambm da difuso

    de uma concepo do trabalho policial como servio prestado sociedade, que deve

    ser pautado pelo respeito aos direitos humanos e dos cidados. Os dois aspectos se

    imbricam, na medida em que informatizar significou tambm quebrar monoplios de

    acesso informao, conferindo ao trabalho policial uma transparncia antes

    inexistente.

    Nesse sentido, a concepo de polcia subjacente formulao das DEAMs

    conflui com a que serve de base ao Programa Delegacia Legal, o que torna legtima

    a expectativa de que, uma vez inserida no programa, a DEAM veria reforados os

    pressupostos conceituais de sua criao, com reflexos nas suas prticas de

    atendimento. Por outro lado, tambm justifica a expectativa de que uma Delegacia

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    Legal, ainda que distrital, estaria mais bem preparada para lidar com conflitos de

    gnero, na medida em que o respeito aos direitos humanos e dos cidados incluiria

    o respeito aos direitos especficos das mulheres, tal como elencados pelo

    movimento feminista e garantidos pela legislao nacional e pelos diversos acordos

    internacionais dos quais o Brasil signatrio. Na verdade, tanto a criao das

    DEAMs quanto a das Delegacias Legais provocaram fortes resistncias entre os

    policiais, o que, a nosso ver, atesta que as mudanas implantadas, de um modo ou

    outro, afetaram as prticas de trabalho costumeiras da Polcia Civil; ainda que

    possamos tambm verificar o surgimento de outras prticas, que visam preservar o

    sentido das anteriores ou minimizar o alcance das reformas (PAES, 2003).

    REPRESENTAES DE GNERO E ADMINISTRAO DE CONFLITOS

    ENVOLVENDO VIOLNCIA CONTRA A MULHER

    Ao conferir carter pblico violncia contra a mulher, exigindo a

    criminalizao de prticas tradicionalmente toleradas na sociedade brasileira, no

    contexto das relaes conjugais, o movimento feminista colocou em xeque antigas

    representaes de gnero, que ainda no foram totalmente ultrapassadas,

    continuando a legitimar a desigualdade de direitos entre homens e mulheres e a

    dominao masculina, incluindo a posse sobre o corpo feminino e o direito punio

    privada, nos moldes do modelo patriarcal de famlia.

    Gostaramos de deixar claro que nos referimos ao patriarcalismo como

    modelo ideolgico estruturante das relaes de gnero entendidas como relaes

    de poder no mbito da famlia, e no como estrutura familiar predominante na

    sociedade colonial brasileira (LIMA, 2006). Ao caracterizar o Brasil patriarcal,

    Gilberto Freyre menciona o sentimento de honra do homem com relao mulher

    (esposa ou companheira) e s filhas moas como um sentimento comum entre

    todas ou quase todas as camadas da populao, causador de numerosos crimes

    (FREYRE, 1975, p. 65).

    E foi um crime desse tipo, como j indicamos, que constituiu o piv que

    deflagrou a campanha feminista em que foi forjada a categoria violncia contra a

    mulher, significando violncia motivada pela desigualdade social entre homens e

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    mulheres, conceituada como desigualdade de gnero. Esse conceito, ao lado da

    categoria direitos humanos das mulheres, serviu de base para a formulao da

    DEAM como poltica pblica de gnero, pelo movimento de mulheres. Sua

    assimilao por parte dos policiais constituiu condio fundamental para o

    funcionamento dessas delegacias nos moldes do modelo formulado pelo movimento

    feminista, implicando na desconstruo crtica de representaes de gnero

    arraigadas na sociedade brasileira, partilhadas, obviamente, pelos policiais e

    imbricadas em suas prticas sociais.

    A conseqncia da no assimilao dos conceitos feministas que estiveram

    na base da formulao das DEAMs pelos policiais foi e continua sendo a

    desqualificao, no somente desse tipo de conflitos, considerados problemas de

    ordem privada, como tambm do prprio atendimento a esses casos, considerado

    um trabalho de pouca importncia, de cunho mais assistencial do que policial. Essa

    dupla desqualificao, do conflito e de sua administrao, pode ser inferida dos

    termos usados nas delegacias distritais, para designar esses conflitos: feijoada,

    fub, fubasada. No por acaso, todos referidos cozinha, como representao

    do lugar tradicionalmente destinado s mulheres: o espao domstico. Mesmo nas

    delegacias especializadas, onde se aponta a necessidade do policial ter uma viso

    diferenciada desses conflitos, esse trabalho concebido mais como

    assistencialista do que policial. De fato, como demonstraram as entrevistas

    realizadas, essa viso raramente referida convico de que as mulheres tm

    direitos, cuja violao crime, mesmo quando tenha ocorrido no espao domstico.

    Devemos lembrar tambm que, no campo das representaes tradicionais10,

    o trabalho policial um trabalho essencialmente masculino, mesmo quando exercido

    por mulheres; enquanto a assistncia social vista como profisso feminina. Por

    outro lado, o modelo de polcia implantado no Brasil, com nfase na ao repressiva

    militarizada e violenta e no nas prticas de mediao de conflitos e policiamento

    10

    Segundo Lalande, no sentido original o termo tradio significa transmisso, mas se aplica mais comumente ao contedo transmitido, seja pela palavra, pela escrita ou pelo modo de agir, mas sempre com uma inteno laudatria e respeitosa. Assim, o tradicionalismo constitui uma doutrina que defende a conservao das formas polticas e religiosas consideradas tradicionais, ainda que no se saiba justific-las intelectualmente, porque so concebidas como expresso legtima e revelao espontnea das verdadeiras necessidades de uma sociedade (LALANDE, 1983, p. 57 - 58).

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    comunitrio11, leva seus operadores, e parte significativa da sociedade brasileira, a

    desqualificarem qualquer outra forma de atuao como trabalho policial.

    Quando se considera os problemas no atendimento policial violncia contra

    a mulher, outro aspecto importante, apontado por Gregori, a falta de consenso

    (inclusive entre os pesquisadores) na definio do fenmeno, que qualificado

    como violncia domstica, violncia familiar e violncia de gnero. Cada uma

    dessas categorias traz um significado diferente, correspondendo a comportamentos,

    relaes sociais com dinmicas e envolvidos distintos (GREGORI, 2006, p. 62).

    Analisando o caso de So Paulo, onde o Decreto 40.693/96 ampliou a competncia

    das delegacias especializadas para investigar crimes contra crianas e

    adolescentes, a autora argumenta:

    As demandas feministas incorporadas pelo poder pblico na forma das DDMs [Delegacias de Defesa da Mulher] partiam do pressuposto de que existe um tipo particular de violncia, baseado nas assimetrias de gnero. No se trata de desconsiderar o fato de que parte dessa violncia se apresenta no universo das relaes familiares, mas preciso salientar que ela no se esgota nelas (GREGORI, 2006, p. 69).

    Tambm Guita Grim Debert observa que:

    Esse retorno da famlia, como instituio privilegiada para garantir a boa sociedade, tem ganhado fora e organizado prticas e propostas de aes de movimentos polticos que, paradoxalmente, se pretendem progressistas

    e defensores de direitos humanos (DEBERT, 2006, p. 11).

    E, de fato, consideramos que a substituio da categoria violncia contra a

    mulher tendo como referncia original as desigualdades de gnero pela

    categoria violncia domstica, ao desviar o foco das relaes de gnero para as

    relaes familiares, se distancia das representaes feministas sobre esses

    conflitos, que serviram de base para a formulao das delegacias especializadas

    como poltica pblica de gnero na rea da segurana. Nesse novo contexto, no se

    trata mais de transformar o pessoal em poltico e colocar em xeque a dominao

    11

    A instituio policial foi implantada no Brasil em 1808 com a vinda da famlia real portuguesa, seguindo o modelo do reino. Sua atuao foi criticada como arbitrria e violenta mesmo por seus contemporneos. Por outro lado, em 1929, o Ministro do Interior Sir Robert Peel implantava na Inglaterra outro modelo de polcia, voltado para a preveno do crime e da desordem e embasado no conceito de segurana como bem pblico e universal, como servio oferecido pelo Estado sociedade visando sua proteo (LIMA E MIRANDA, 2007, p. 45).

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    masculina legitimada pela tradio patriarcal12, mas, como aponta Debert, da

    reprivatizao de questes polticas, em que a famlia vista como instncia

    geradora de violncia, o que justifica a interveno das instituies pblicas para

    garantir que seus membros cumpram corretamente os papis sociais que lhes so

    atribudos (DEBERT, 2006, p. 18).

    DA LEI 9.099/95 LEI 11.340/06 (MARIA DA PENHA) - MUDANAS E

    PERMANNCIAS:

    Como mencionamos, a pesquisa de campo cobriu um perodo de vigncia da

    Lei 9.099/95, que criou os Juizados Especiais Criminais JECrims, e outro de

    vigncia da Lei n 11.340/06 - Maria da Penha, que retirou desses juizados a

    competncia para receber casos de violncia domstica contra a mulher13. Os

    JECrims foram criados visando ampliao do acesso justia, sobretudo para

    populao de baixa renda, proporcionando uma forma mais simples e clere de

    administrar conflitos envolvendo crimes classificados como de menor potencial

    ofensivo, isto , crimes com pena mxima no superior a dois anos.

    O impacto desse tipo de justia nas delegacias especializadas descrito por

    uma delegada como um esvaziamento em relao credibilidade da DEAM e da

    prpria poltica de ajuda mulher:

    (...) eu reparei que, com o trmino dos inquritos e o encaminhamento dos registros para o Juizado Especial Criminal, aquela mulher ficou entregue a prpria sorte. Por qu? Porque, instaurando um inqurito, voc, nos casos mais graves, mandava atravs de uma viatura policial, uma intimao e o sujeito comparecia sob as penas da lei. Era uma forma de intimidao, no era um procedimento legal, mas intimidava. Ento aquele homem que batia, sabia que ele ia responder ali, diante da polcia, e a polcia naquela poca, era, para o censo comum, muito mais forte do que o judicirio. Ento, voc ter na sua casa um policial armado entregando uma intimao ao agressor

    era um escndalo na comunidade.

    12

    Denominamos tradio patriarcal a um conjunto de representaes articuladas em um modelo de relaes familiares, legitimado como tradio. 13 Ttulo VII, Art. 41. Aos crimes praticados com violncia domstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, no se aplica a Lei n

    o 9.099, de 26 de setembro de 1995.

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    Seu relato muito significativo para percebermos as expectativas das

    vtimas, compostas em sua maioria por mulheres de baixa renda e com pouca

    instruo formal, em relao ao da polcia:

    Quando instalaram o Juizado Especial Criminal, o papel da polcia foi meramente fazer um registro de ocorrncia e encaminhar. O que acontecia, quando a vtima comparecia: Mas a viatura no vai mandar, mas cad a polcia? Elas no entendiam a 9.099. Como voc levar um soco na boca um pequeno potencial ofensivo? Como voc vai explicar, voc que formado em direito ou legalista? Voc vai explicar isso a uma pessoa do povo, que no tem instruo, que no tem conhecimento, que no sabe

    nem o que lei?

    Kant de Lima aponta que a populao, independente de sua classe social,

    quando solicita a arbitragem da polcia para seus conflitos est demandando um tipo

    especial de julgamento, que segue princpios diferentes dos que regem o judicirio

    (KANT DE LIMA, 1995, p. 105), o que confirmado pelo depoimento acima. Mesmo

    afirmando que a mulher sentia mais segurana quando se tinha um processo, o

    que efetivamente se mostra que as vtimas consideravam mais eficaz a

    interveno da polcia do que da justia:

    Mas, e a, e agora doutora, a polcia vai l, ele vem aqui? No, agora quem vai chamar o juiz, eu no posso mais atuar nesse caso. Ento no adiantou eu ter vindo aqui. Era essa a resposta. Para que polcia se no podem fazer nada pela gente? (...) E agora doutora? Agora o juiz vai... Mas o juiz vai mandar a polcia l? Eu falei no, a polcia no vai mais, a polcia

    no est mais no caso. E a acabou o interesse dela.

    Apesar dos JECrims no terem sido criados especificamente para administrar

    a violncia de gnero acabaram atraindo esse tipo de conflitos, na medida em que,

    entre os crimes de menor potencial ofensivo, esto includos a leso corporal leve

    e a ameaa, crimes mais freqentes na tipificao dos conflitos que chegam s

    DEAMs. Pesquisas nesses juizados tm indicado que entre 70 e 80% dos casos

    julgados, antes que a Lei Maria da Penha entrasse em vigor, eram constitudos por

    violncia praticada por homens contra mulheres, sobretudo seus maridos ou

    companheiros (MACHADO, 2003, p. 67).

    Nesse contexto, a fase policial muito breve, pois no h inqurito. A

    autoridade policial deve lavrar apenas um Termo Circunstanciado de Ocorrncia

    TCO, que ser encaminhado justia. Este termo deve conter o desejo da vtima de

    representar contra o autor do crime, bem como todos os dados do acusado e da

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    vtima. O delegado deve despachar o procedimento, que encaminhado ao

    ministrio pblico. Este autorizar a entrada da denncia no poder judicirio,

    propriamente nos JECrims. Nas ocorrncias de leso corporal, deve-se encaminhar

    tambm o exame do corpo de delito da vtima para comprovar materialidade do fato.

    No JECrim, o autor e a vtima participam preliminarmente de uma audincia

    conduzida por um conciliador, que visa obter um acordo entre as partes. Em casos

    de ao penal condicionada representao, faculta-se s partes a formalizao de

    um acordo. Porm, em casos de ao pblica incondicionada ou quando a vitima

    no aceita o acordo e deseja prosseguir com o processo, este encaminhado para

    o ministrio pblico, que instaura a devida transao penal. O promotor de justia

    assume ento a responsabilidade de aplicao de pena alternativa, restritiva de

    direito ou pecuniria. Caso o acusado concorde com a proposta do promotor, o juiz

    homologa a conciliao e o agressor fica responsvel por cumprir o acordo

    estabelecido na audincia. Se o juiz, o promotor ou o acusado no concordarem

    com a soluo estabelecida para o fato, passa-se para a audincia de instruo e

    julgamento. Nesta etapa, a audincia conduzida diretamente pelo juiz, que

    estabelece a sentena, na ao penal propriamente dita (AMORIM, 2003, p. 34).

    Entretanto, diversas pesquisas tm apontado as dificuldades dos JECrims

    para administrar essa espcie de conflitos. Machado, de forma muito pertinente,

    chama a ateno para o fato de que os procedimentos de mediao, transao e

    conciliao, que caracterizam esse tipo de justia, se do entre sujeitos imergidos

    num processo violento. Assim, no se trata de conciliar partes envolvidas em um

    evento isolado, j ocorrido, embora esse ato tenha desencadeado a denncia. Por

    outro lado, e essa questo foi insistentemente apontada nas crticas feministas aos

    juizados, a mediao feita entre sujeitos com posies desiguais nas relaes de

    poder, posies, alm disso, legitimadas socialmente (MACHADO, 2003, p. 88).

    Essas questes se tornam mais complexas quando se considera que esses sujeitos

    mantm uma relao pessoal e afetiva.

    Esses fatores se conjugaram para dificultar a aceitao pelo movimento

    feminista e por muitas pesquisadoras simpatizantes com a causa, da classificao

    de leses corporais leves e ameaas ocorridas nas relaes conjugais como crimes

    de menor potencial ofensivo e, consequentemente, das penalidades impostas,

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    sobretudo o pagamento de cestas bsicas, que teve como efeito banalizar ainda

    mais a violncia contra a mulher.

    Vale notar que a Lei 9.099/95, tambm serviu de justificativa para que as

    mulheres fossem estimuladas pelos policiais a no registrar a ocorrncia, com o

    argumento de que seu trabalho no daria em nada mesmo, em vista da pouca

    gravidade das penas impostas na justia. Nesses casos, a no qualificao do

    conflito como caso de polcia constitua um agravante para a tendncia

    generalizada dos policiais bicarem as ocorrncias, isto , procurarem diminuir o

    nmero de registros, j verificada em outras pesquisas (KANT DE LIMA, 1995).

    A questo do registro evidencia a complexidade das relaes entre policiais e

    vtimas. Por um lado, os policiais desestimulam o registro da denncia; por outro,

    criticam as mulheres por apresentarem e retirarem as queixas repetidas vezes.

    Essas idas e vindas, facilitadas durante o perodo de incluso da violncia de gnero

    na Lei 9.099/95, devido a sua freqente tipificao como leso corporal leve e

    simples ameaa, tambm so apresentadas pelos policiais como motivo para no

    registrarem a ocorrncia, como se depreende do depoimento colhido em uma

    delegacia especializada: Veio uma mulher aqui que tinha realizado 15 denncias, e

    retirou todas. Ela queria fazer a dcima sexta. Eu fui perguntar delegada se

    poderia no fazer o registro e ela mandou fazer.

    A Lei 11.340/2006 - Maria da Penha tornou a deciso da denncia mais

    grave, ao estabelecer que sua anulao s possa ser feita na presena do juiz. O

    fato de que, nesse novo contexto, as denncias de delitos tipificados como leso

    corporal leve e simples ameaa podem resultar na priso do agressor, interfere nas

    decises das mulheres e na argumentao dos policiais contra o registro. Se, na

    vigncia da 9.099/95, a pouca gravidade ou mesmo desmoralizao da pena como

    foi o caso do pagamento de cesta bsica14 eram argumentos favorveis para no

    registrar; no contexto da Lei Maria da Penha, justamente a gravidade da pena

    tendo em vista as relaes afetivas, familiares e de dependncia econmica entre a

    vtima e o agressor que alegada para desestimular o registro.

    14

    Lei 11.340/2006 (Maria da Penha) - Art. 17. vedada a aplicao, nos casos de violncia domstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta bsica ou outras de prestao pecuniria, bem como a substituio de pena que implique o pagamento isolado de multa.

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    Nas unidades policiais inseridas no Programa Delegacia Legal,

    especializadas ou no, antes de ter acesso aos policiais, os usurios so atendidos

    no balco por Tcnicos de Atendimento Social e estagirios de cursos de Psicologia

    ou Servio Social15, encarregados de fazer a triagem das demandas e encaminhar

    para os servios pertinentes as que no constiturem casos de polcia. Os

    atendentes do balco so pressionados a dificultar o registro, como se depreende da

    fala de uma ex-atendente de uma delegacia no especializada:

    [...] lgico que existia suas excees, mas o discurso geral dos inspetores era de que isso no era o trabalho deles, que a gente deveria encaminhar para o NIAM [Ncleo Integrado de Atendimento Mulher]. Sabe, um pouco... realmente um descaso com esse tipo de atendimento. Eu achava um absurdo voc estar deixando uma mulher que acabou de sofrer uma violncia l, esperando na delegacia, porque ele acha que aquilo, aquela ocorrncia, menos importante do que outras que esto ali. Ento ela que espere, ento isso acontecia muito. Eu acho que muitos inspetores, eles viam o servio social e os psiclogos, ali nesses casos, numa tentativa realmente de estar convencendo essas pessoas, no s no fato da mulher, mas outras ocorrncias mais simples, a no registrar aquilo, como se fosse uma triagem do que eles achavam que deveriam atender e o que , e que a gente trabalhasse esse tipo de convencimento com a pessoa, e muitas vezes eles falavam: Conversa, encaminha pro NIAM, no necessita ocorrncia, no precisa de ocorrncia, ela vai ficar um tempo esperando porque eu estou fazendo outras coisas mais importantes. Isso acontecia muito.

    Ao lado de posturas crticas, como a reproduzida acima, encontramos

    tambm atitudes de completa adeso diante das presses dos policiais. Em uma

    delegacia distrital, aps a sada da mulher que desistiu de fazer uma ocorrncia, a

    tcnica gritou gol! Quando questionada pela pesquisadora sobre o motivo da

    comemorao, respondeu que foi por ter conseguido fazer a mulher desistir de

    registrar o caso.

    Percebemos que as dificuldades criadas pelos policiais visando impedir os

    registros das denncias desse tipo de violncia perpassaram o perodo de vigncia

    da Lei 9.099/95 e permanecem hoje, sob a Lei 11.340/06 - Maria da Penha, ainda

    que os policiais tenham adaptado, como foi visto, seus argumentos nova situao.

    A Lei Maria da Penha foi elaborada atravs de um demorado processo de

    discusses e audincias pblicas, com a presena de inmeros segmentos sociais,

    15 O projeto inicial da Delegacia Legal previa como atendentes estudantes de Direito, o que gerou fortes conflitos, porque estes, a partir dos conhecimentos j adquiridos no curso, procuravam interferir no trabalho dos policiais (PAES, 2003, p. 12).

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    justamente com o intuito corrigir o que foi considerado um erro pelo movimento

    feminista: a incluso da violncia conjugal e familiar na Lei 9.099/95. O nome Maria

    da Penha foi dado em homenagem a uma farmacutica, Maria da Penha Fernandes,

    que ficou paraplgica aps sofrer, em 1983, duas tentativas de homicdio pelo

    marido em sua casa. Na primeira vez, com uma arma de fogo e na segunda, por

    eletrocusso e afogamento. O processo de investigao judicial foi iniciado dias

    depois da agresso e se arrastou por 19 anos at que houvesse uma deciso

    definitiva dos tribunais do pas, aps interveno da Comisso Interamericana de

    Direitos Humanos, que recebeu uma denncia apresentada pela vtima, atravs do

    Centro de Justia, do Direito Internacional (CEJIL) e do Comit LatinoAmericano de

    defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM). Em abril de 2001, a Comisso, baseada

    neste caso, responsabilizou o Estado brasileiro por negligncia, omisso e tolerncia

    em relao violncia domstica contra as mulheres, estabelecendo

    recomendaes no somente a ttulo individual, de reparao violncia sofrida por

    Maria da Penha, mas tambm para todas as mulheres brasileiras, mediante a

    evidente necessidade de adoo de medidas poltico-jurdicas e de polticas pblicas

    para o enfrentamento da discriminao contra as mulheres no pas. Somente em 31

    de outubro de 2002 o ru foi preso.

    As insatisfaes das mulheres com relao aos resultados da Lei 9.009/95 e

    a condenao do Estado brasileiro pela Comisso propiciaram ambiente social e

    poltico favorvel discusso de uma nova lei, voltada especificamente para

    combater a violncia contra a mulher. As Organizaes No Governamentais

    Advocaci, Agende, Cepia, Cfemea, Ip/Cladem e Themis, juntamente com o apoio

    de especialistas, consolidaram um consrcio para trabalhar na elaborao de uma

    lei nacional que contemplasse as especificidades da violncia domstica e familiar

    contra a mulher e, em maro de 2004, apresentaram um documento em formato de

    anteprojeto de lei recm criada Secretaria Especial de Polticas Pblicas para as

    Mulheres16.

    16 O anteprojeto elaborado pelo consrcio de ONGs apresentou como principais propostas as seguintes medidas: a) a criao de uma poltica nacional de combate violncia contra a mulher; b) a conceituao da violncia domstica contra a mulher com base na Conveno de Belm do Par incluindo a violncia fsica, psicolgica, sexual, patrimonial e moral; c) a introduo de medidas de proteo as vtimas; d) criao de um juzo nico com competncia civil e criminal atravs de Varas Especializadas de Violncia Domstica; e) a garantia de assistncia jurdica gratuita para as

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    R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.6, n.2, p. 61-85, jul./dez. 2009

    Aps amplos debates, a Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha) foi sancionada

    em 7 de agosto de 2006, sob o olhar atento das organizaes feministas, pautando-

    se nos os princpios e preceitos da normativa internacional de proteo aos direitos

    humanos das mulheres, muito especialmente da Conveno sobre a Eliminao de

    todas as formas de Discriminao contra a Mulher (CEDAW - 1979), da ONU, e da

    Conveno Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violncia contra a

    Mulher, da OEA (Conveno de Belm do Par - 1984).

    As principais alteraes introduzidas pela Lei Maria da Penha, no que tange

    ao trabalho policial direcionado para o atendimento mulher vtima de violncia

    foram: a volta do inqurito policial, abolido com a Lei 9.099/95; o fornecimento de

    transporte para a ofendida e seus dependentes para abrigo ou local seguro, quando

    houver risco de vida; se necessrio, o acompanhamento da ofendida para assegurar

    a retirada de seus pertences do local da ocorrncia ou do domiclio familiar; a

    informao ofendida dos direitos a ela conferidos nesta lei e os servios

    disponveis. A Lei admite a priso em flagrante e prev a priso preventiva, quando

    houver riscos integridade fsica ou psicolgica da mulher e estabelece pena de trs

    meses a trs anos de deteno para a violncia familiar e domstica contra a

    mulher, aumentada de 1/3 se a vtima for portadora de necessidades especiais.

    Passados trs anos, ainda continua grande a resistncia dos policiais, bem

    como dos operadores da justia, aplicao da nova lei, chegando alegao de

    sua inconstitucionalidade. Alguns depoimentos evidenciam a articulao entre a

    dinmica dos registros e as representaes tradicionais de gnero, na viso

    negativa que os policiais tm da lei. Perguntado, um dos depoentes afirmou que

    no gosta, pois protege demais as mulheres, a elas procuram a delegacia por

    qualquer motivo e que algumas vezes elas realmente do motivo.

    Esse mesmo policial considerou ainda que a Lei 9.099/95 era melhor porque

    as mulheres podiam retirar a queixa no outro dia, servindo, a sim, para o que

    queriam apenas dar um susto no agressor sem precisar ocupar tanta gente.

    Argumentou ainda que hoje, por causa da nova lei, se cria toda uma mobilizao e

    quando a mulher chega justia desiste do caso. De fato, como j observamos

    mulheres; f) a no-aplicao da Lei 9.009/95 nos casos de violncia domstica contra as mulheres (Carta Cepia, dezembro de 2002).

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    R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.6, n.2, p. 61-85, jul./dez. 2009

    anteriormente, no contexto da Lei 9.099/95 a repetida efetivao e desistncia da

    denncia podiam ser utilizadas como estratgia de enfrentamento s desigualdades

    de gnero vividas nas relaes conjugais, embora essa dinmica pudesse tambm

    ter como efeito a desmoralizao do conflito e da mulher diante dos policiais.

    Como tambm observou Brando, com freqncia, os policiais discordam

    que a soluo penal seja o caminho mais indicado para o enfrentamento social das

    denncias feitas DEAM, tipificadas em sua maioria como leo corporal leve e

    ameaa (BRANDO, 1998, p. 690). Um inspetor afirmou que as pessoas tm que

    entender que isso no caso de polcia e sim um problema social e as pessoas

    esto lotando a delegacia com isso.

    Percebe-se, no cotidiano das delegacias, sobretudo nas DEAMs, o confronto

    entre diferentes representaes sobre os conflitos que envolvem violncia contra

    mulheres. Alm das proposies feministas, que deram origem DEAM, e das

    representaes tradicionais de gnero, possvel identificar outra viso sobre esses

    conflitos, como aponta Debert:

    ... as delegacias da mulher correm o risco de serem transformadas em

    delegacias da famlia e, nesses termos, restabelecer hierarquias as partir das quais

    as mulheres eram tratadas quando a defesa da famlia dava a tnica central das

    decises tomadas pelos agentes do sistema de justia (DEBERT, 2006, p. 11).

    A nosso ver, a conceituao de violncia contra a mulher, tal como aparece

    na Lei Maria da Penha abre espao para as representaes que enfatizam as

    relaes familiares em detrimento das relaes de gnero, o que compreensvel se

    considerarmos seu processo coletivo de elaborao. Do ponto das reivindicaes

    feministas histricas, no entanto, esse olhar pode significar um retrocesso, na

    medida em que subordina os direitos da mulher aos interesses da famlia e da

    procriao. O slogan Nosso corpo nos pertence condensa a crtica feminista

    reduo do papel social da mulher reproduo e ao cuidado com a prole17.

    Na nova lei, embora o artigo 5 defina a violncia domstica e familiar contra

    a mulher como qualquer ao ou omisso baseada no gnero [grifo nosso] que

    17

    No campo da sade, as reivindicaes feministas resultaram na substituio, em 1984, do Programa de Sade Materno-Infantil PSMI, de 1975, pelo Programa de Assistncia Integrada Sade da Mulher PAISM, em que as questes de sade da mulher no estavam mais submetidas ao enfoque reprodutivo (RUBIO TYRRELL, 1995, p.143).

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    lhe cause morte, leso, sofrimento fsico, sexual ou psicolgico e dano moral ou

    patrimonial, considera que esta pode ocorrer no mbito da unidade domstica

    (referindo-se ao espao), da famlia (referindo-se comunidade de indivduos) e em

    qualquer relao ntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com

    a ofendida, independentemente de coabitao (referindo-se especificamente s

    relaes entre cnjuge ou companheiros).

    A caracterizao desse tipo de violncia por referncia ao espao em que foi

    praticado e s relaes entre um grupo de indivduos que so ou se consideram

    aparentados, unidos por laos naturais, por afinidade ou por vontade expressa,

    multiplica as situaes enquadradas na lei. Alm da violncia baseada nas

    representaes e relaes tradicionais de gnero, de natureza sexual ou cometida

    contra as mulheres por seus cnjuges ou companheiros (que motivaram a criao

    das delegacias especializadas), so includos conflitos entre ascendentes,

    descentes e irmos, mediante o prevalecimento de relaes domsticas, de

    coabitao ou de hospitalidade18, possibilitando que, tanto no campo das

    representaes como no das prticas, o foco seja deslocado das relaes de gnero

    para as relaes familiares. Um policial resumiu bem essa viso: O problema no

    Brasil a educao, mas no s a educao escolar, tambm a famlia, que est

    desestruturada. Assim, a questo da desigualdade de gnero e dos direitos da

    mulher se dissolve na busca de promover a harmonia familiar pela difuso de

    padres de comportamento universalizados, que implicam na submisso da mulher

    a hierarquias familiares tradicionais, dando margem, inclusive, ao uso de

    argumentos religiosos, visando minimizar a agresso, como se evidencia no dilogo

    abaixo, ocorrido em uma delegacia distrital:

    Inspetor: O que houve? Denunciante: Eu estou separando do meu marido e ele no aceitou. I: paixo. No existe crime quando existe amor. D: tudo por amor, mas agredindo no, n? I: Mas o sujeito perde a cabea porque t apaixonado. At no trnsito agente perde a cabea (...)

    18 Art. 44. O art. 129 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Cdigo Penal), passa a vigorar com as seguintes alteraes: 9

    o Se a leso for praticada contra ascendente, descendente,

    irmo, cnjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relaes domsticas, de coabitao ou de hospitalidade: Pena - deteno, de 3 (trs) meses a 3 (trs) anos.

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    D: No sbado retrasado ele foi a minha casa pedindo pra voltar, entrou em casa a fora, pediu para voltar e eu disse que no, porque eu j no agento mais as traies, as coisas que ele me fez. I: Mas Deus manda a gente perdoar. D: Eu sei que temos que perdoar 70x7, mas no aceito, ele me agrediu. Eu perdoaria se ele no me agredisse, ele fica nervoso e violento. Eu no agento mais (...) I: J existe algum outro registro em andamento? D: J. I: De confuso com ele? D: No, de agresso mesmo.

    Outra conseqncia dessa abordagem dos conflitos que as famlias de

    baixa renda, que constituem a clientela principal das delegacias, so desqualificadas

    e seus membros tratados como cidados de segunda categoria, que precisam ser

    tutelados para desempenhar suas funes sociais. A desqualificao dessa

    populao e de seus conflitos foi manifestada de maneira constrangedora em uma

    situao presenciada durante a pesquisa. O chefe de determinado planto em uma

    delegacia distrital sempre fazia uma triagem dos atendimentos, chamando cada um

    da fila para saber o que queriam e verificar se realmente o caso deveria ser

    resolvido ali. Em um dos dias da pesquisa de campo, ele chegou ao balco gritando:

    Esse povo no tem mais o que fazer em casa no? Uma roupa para lavar ou coisa

    assim? Vem para a delegacia dia de domingo passar o tempo?

    Em uma delegacia distrital, o descaso dos policias diante desses conflitos

    pode ser foi exemplificado pela intimao farofa (denominao ouvida dos

    atendentes do balco), entregue s mulheres para despach-las mais rpido. Esta

    constituda por um papel impresso, intitulado intimao, com os dados do inspetor

    e da delegacia, e com espaos para preencher o nome do intimado, a data e o

    horrio em que deve comparecer a delegacia. No caso observado, o inspetor

    perguntou vtima se ela sabia o endereo do agressor e se conhecia algum que

    poderia entregar a intimao. Diante da resposta afirmativa, a intimao foi dada a

    ela, o que proibido por lei19.

    19

    Lei 11.340/2006 (Maria da Penha) - Art. 21. A ofendida dever ser notificada dos atos processuais relativos ao agressor, especialmente dos pertinentes ao ingresso e sada da priso, sem prejuzo da intimao do advogado constitudo ou do defensor pblico. Pargrafo nico. A ofendida no poder entregar intimao ou notificao ao agressor.

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    So comuns tambm as situaes em que os policiais minimizam a gravidade

    das ocorrncias, como verificamos durante um caso observado em uma delegacia

    distrital. Aps fazer o registro, a inspetora leu para a vtima o que havia escrito: ...

    seu marido chegou em casa alcoolizado, ameaando-a de morte e disse que ia dar-

    lhe uma paulada, iria mat-la e se matar. Perguntou ento o que o agressor havia

    exatamente falado. A mulher disse que ele a chamara de vagabunda e filha da

    puta e que j tentara colocar fogo na casa h uns trs meses atrs, incendiando o

    lenol da cama em que ela dormia e o cachorro a salvou, puxando o lenol para o

    cho. A inspetora indagou se ela tinha testemunha, ao que a mulher respondeu que

    os vizinhos viram e que a alertaram para tomar cuidado com o marido. A inspetora

    desconsiderou a ameaa, afirmando que o problema dele era embriagus, e que

    bbado fala coisa que gente s no fala. Ento, insistiu sobre o que o homem havia

    falado. A vtima repetiu o que j havia afirmado, que o marido dissera: Vou te dar

    uma paulada, vou te matar sua vagabunda.

    Outra ocasio demonstrou que o descaso compartilhado pelos policiais

    militares, como se percebe no dilogo ouvido em uma delegacia distrital, entre um

    inspetor e dois policiais militares, na ocasio do registro de um flagrante:

    Policial Civil: Como foi? Policial Militar 1: Deu tapa, soco, pegou a p, e com uma colher quente queimou a coxa dela. PC: Chegou a ferir ela com isso [um espeto]? No, n? PM1: No. PC: Queimou ela com uma colher quente? PM1: Foi, porque ela tava fritando uma lingia para ele comer e encostou na perna dela. E a p. PC: Caramba, teve isso tudo? Voc botou no seu registro a p? [dirigindo-se ao segundo PM] PM2: No. PC: Ento esquece a p. PM2: , esquece.

    A imbricao entre representaes e prticas no atendimento policial s

    mulheres se evidenciou numa situao extrema, presenciada numa delegacia

    distrital: Uma inspetora relatou que j havia aconselhado alguns homens a baterem

    novamente na mulher quando chegassem em casa, porque acreditava que a vtima

    era a culpada e merecia apanhar; mas que havia parado de falar isso, porque

    poderia dar algum problema. Esta mesma inspetora contou que havia criado outro

    nome para a Lei 11.340/96: Vagaba Penha. O argumento utilizado para explicar a

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    denominao foi que as mulheres fazem vrios registros e voltam a ter relaes

    conjugais com os maridos aps a denncia, o que justificaria a mudana do nome da

    lei que as protege.

    CONCLUSES

    Ao comparar o confronto entre representaes e prticas no cotidiano das

    delegacias, percebemos algumas diferenas entre as especializadas e as distritais,

    pois, nessas ltimas, os conflitos familiares e de gnero concorrem com outros

    considerados efetivamente casos de polcia o que resulta na sua maior

    desqualificao, refletida, como j mencionamos, na sua caracterizao como

    feijoada. A partir do que foi observado nas unidades policiais pesquisadas,

    podemos afirmar que, considerando os princpios e objetivos formulados pelo

    movimento feminista, que presidiram a sua criao, no se pode negar o avano que

    as DEAMs representaram para o atendimento policial s mulheres em situao de

    violncia, mesmo levando em conta todos os problemas verificados.

    Nas DEAMs os policiais apresentam um melhor conhecimento sobre os

    procedimentos determinados pela Lei Maria da Penha e procuram aplic-los. A

    atitude diante das usurias tambm mais respeitosa. Ainda que sejam feitos

    comentrios que desqualificam as denunciantes, denotando o confronto entre

    diferentes representaes sobre as sua natureza de seus conflitos, isso no se d

    publicamente, como ocorre nas delegacias distritais.

    A diferena no atendimento pode ser percebida comparando os cartazes

    expostos nas unidades especializadas e distritais. Nas DEAMs encontramos

    cartazes das campanhas contra a violncia de gnero, com dizeres que estimulam a

    denncia, como: Ligue 180 - Central de Atendimento Mulher; Quem cala

    consente; Denuncie; H momentos em que sua atitude faz a diferena. Lei

    Maria da Penha. Comprometa-se. J, em uma das delegacias distritais

    pesquisadas, so expostos cartazes que intimidam os usurios, com recados como:

    Lembre-se sempre: estou aqui para resolver o seu problema, portanto trate-me com

    educao e respeito; Estou trabalhando, se quiser que eu faa algo de

    extraordinrio, por favor, avise-me. Alguns deles dizem respeito diretamente aos

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    conflitos familiares e de gnero: Evite o constrangimento de receber um no como

    resposta, sendo assim no me pea: - para dar susto, - para quebrar galho, - para

    retirar o registro de ocorrncia; Ao comparecer na delegacia policial, verificar se a

    origem de seu problema no foi motivado por: fofoca, desocupao, cime, bebida

    em excesso, herana familiar.

    Os policiais dessa unidade justificam os cartazes afirmando que evitam que

    eles fiquem repetindo sempre as mesmas respostas. Quando as mulheres chegam

    delegacia com questes consideradas despropositais, eles solicitam que leiam os

    cartazes.

    Porm, apesar das diferenas encontradas no atendimento s mulheres em

    situao de violncia, nas DEAMs e nas delegacias distritais, verificamos em todas

    as unidades pesquisadas, tanto na vigncia da Lei 9.099/95 quanto na da Lei Maria

    da Penha, a tendncia a dificultar o registro das ocorrncias. Tal fato deve ser

    atribudo tica policial, tal como apontou Kant de Lima (1995), e tambm

    desqualificao desses conflitos como caso de polcia, a partir de representaes

    de gnero tradicionais, vinculadas ao modelo patriarcal de famlia, ou de concepes

    que privilegiam as relaes familiares em detrimento das desigualdades de gnero.

    preciso considerar que as polticas pblicas so dinmicas, constituindo arenas

    onde se confrontam diferentes interesses e representaes do social. Nas DEAMs,

    essas representaes se confrontam com aquelas, nascidas no movimento

    feminista, que estiveram na base de sua formulao original, e interferem nas

    prticas de administrao de conflitos caracterizados como violncia contra a

    mulher.

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    Recebido em: 02/09/2009

    Aceito em: 05/10/2009