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REPERCUSSÕES DA NOVA AGENDA URBANA NO DIREITO PÚBLICO E PRIVADO NO BRASIL E NA AMÉRICA LATINA:

O PAPEL DO DIREITO À CIDADE1

REPERCUSSIONS OF THE NEW URBAN AGENDA IN PUBLIC AND PRIVATE LAW IN BRAZIL AND IN LATIN AMERICA:

THE ROLE OF THE RIGHT TO THE CITYBetânia de Moraes Alfonsin2

Resumo: O presente artigo apresenta (i) o percurso histórico de constru-ção do direito à cidade com a identificação de momentos e atores chave; (ii) a maneira como esse direito coletivo dos habitantes das cidades foi in-cluído na Nova Agenda Urbana aprovada na Conferência HABITAT III em Quito/2016 e, finalmente, (iii) uma análise da provável repercussão, no âmbito do Direito Interno dos países latino americanos, da assunção do direito à cidade em um documento de Direito Internacional. Utilizan-do-se do método de análise hipotético dedutivo e do método histórico de procedimento, a pesquisa realizada conclui que os componentes histori-camente construídos do direito à cidade encontram-se presentes na Nova Agenda Urbana e exigem adaptações nos ordenamentos jurídicos dos pa-íses latinoamericanos, tanto no âmbito do Direito Público quanto no Di-reito Privado, inclusive nos Códigos Civis, já que o direito à cidade, como direito humano, exige um novo olhar, tanto para as leis de política urbana, como para institutos como o direito de propriedade, acarretando efeitos jurídicos concretos para o princípio da função social da terra.

Palavras-chave: Direito à cidade, Nova Agenda Urbana, Direitos Hu-manos.

1 Artículo recibido: 11 de junio de 2018; artículo aprobado: 12 de septiembre de 2018.2 Jurista e urbanista, Doutora em Planejamento Urbano e Regional pelo Instituto de Planeja- Jurista e urbanista, Doutora em Planejamento Urbano e Regional pelo Instituto de Planeja-mento Urbano e Regional da UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro (2008), Professora do Mestrado em Direito da Faculdade de Direito da FMP - Fundação Escola Superior do Mi-nistério Público do RS e Diretora Geral do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico - IBDU (2017/2019). Correo-e: [email protected]

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Abstract: This article presents (i) the historical background of the con-struction of the right to the city with the identification of key moments and players; (ii) the manner in which this collective right of the inhabit-ants of the cities was included in the New Urban Agenda approved at the HABITAT III Conference in Quito/2016 and , finally, (iii) an analysis of the probable repercussion, within the context of the Internal Law of the Latin American countries, of the assumption of the right to the city in a document of International Law. Using the method of hypothetical deductive analysis and the historical procedure method, the performed research concluded that the historically constructed components of the right to the city are present in the New Urban Agenda and require adap-tations in the legal systems of the Latin American countries, both in the context of Public and Private Law, and in the Civil Codes, since the right to the city, as a human right, requires a new perspective with respect to the urban policy laws, as well as to institutions such as the right of prop-erty, resulting in specific legal effects for the principle of the social func-tion of the land.

Key-words: Right to the City, New Urban Agenda, human rights.

Reconhecer a realidade significa algo mais do que conhecê-la. Exige saber situar-se no momento histórico que se vive, o qual é uma forma de assombro que obriga a colocar-se num umbral de onde se possa observar, não somente para contemplar, mas também para atuar: a utopia, antes de mais nada, é a tensão do presente.3

1. Considerações iniciais

O direito à cidade, embora tenha sido uma categoria introduzida no debate político a partir da contriubuição de Lefebvre, ainda na década de 60, não se trata mais de uma mera plataforma de luta, tendo hoje um conteúdo jurídico inequívoco enquanto di-reito fundamental. No caso brasileiro, adotando-se a teoria esposada por Sarlet4 que

3 Zemelman, 2000, apud em Ribeiro, Ana Clara Torres et al., “Por uma cartografia da ação: pequeno ensaio de método. Planejamento e território: ensaios sobre a desigualdade”, in Cadernos IPPUR da UFRJ, año 15, núm. 2, 2001, p. 35.4 Sarlet, Ingo Wolfgang, A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2011, p. 79.

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sustenta a existência de um catálogo aberto de direitos fundamentais em nossa Cons-titução, é certo que o direito à cidade está implícito no capitulo da Política Urbana da Constituição Federal, quando o mesmo menciona as “funções sociais da cidade”. Tan-to é assim, que, ao regulamentar o referido capítulo, o Estatuto da Cidade mencionou expressamente o direito à cidade.5

Embora venha merecendo acalorados debates sobre sua natureza jurídica6, o direito à cidade pode ser didaticamente entendido como um direito fundamental intrin-sicamente ligado à dignidade da pessoa humana, muito especialmente dos que vivem em cidades e abrangendo, conforme conceito positivado na legislação brasileira, “o di-reito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações”7. Tal direito experimentou, recentemente, um importante reconhecimento internacional. A Conferência HABITAT III, que se realizou em Quito, em outubro de 2016, o mencionou expressamente. Sabe-se, no entanto, que a inclusão de uma catego-ria como “direito à cidade” em um documento de Direito Internacional Público, ain-da que em uma Declaração (Soft Law), é fruto de um longo processo, permeado por pressões dos movimentos sociais, resistências governamentais e significativos esforços diplomáticos. Tanto o compromisso assumido pelas Nações Unidas na Nova Agenda Urbana quanto a sua assimilação pelos países membro da Organização, pressupõem um percurso histórico marcado por disputas, avanços e recuos.

No presente artigo, que resulta de pesquisa que utilizou o método de análise hi-potético dedutivo e o método histórico de procedimento, pretende-se apresentar bre-vemente (i) o percurso histórico de construção do direito à cidade com a identificação de momentos e atores chave; (ii) a maneira como esse direito coletivo dos habitantes das cidades foi incluído na Nova Agenda Urbana aprovada em Quito e, finalmente, (iii) uma análise da repercussão, no âmbito do Direito Interno dos países latino americanos, da assunção do direito à cidade em um documento de Direito Internacional.

2. Percurso histórico de construção do direito à cidade

Para quem analisa o tema a partir da experiência brasileira, são basicamente quatro os momentos chave para a construção do direito à cidade:

5 Lei federal 10.257/01.6 A propósito de tal debate, ver Mello, Cláudio, “Elementos para uma teoria jurídica do direi-to à cidade”, in Revista de Direito da Cidade, Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, pp. 437-462, 2017. Disponível em:< http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/rdc/article/view/26883>. 7 Conforme definição contida no artigo 2º, I, do Estatuto da Cidade, lei 10.25�/01.

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1968 1988 2001 2002

Plano Inter-nacional

Lefebvre lança o livro “Direito à

cidade” em Paris.

Carta Mundial pelo Direito à Cidade é lan-çada no Fórum Social

Mundial.

Plano Na-cional

Constituição de 1988 inclui capí-tulo sobre Políti-

ca Urbana

Estatuto da Ci-dade

Quadro 1. Momentos chave na construção histórica do direito à cidadeFonte: Elaboração própria.

É interessante observar os movimentos interescalares de idas e vindas do direito à cidade entre a escala nacional e a escala internacional mostrados no quadro 1, supra, pois revelam uma influência recíproca entre os dois planos, demonstrando que um pro-dutivo diálogo se estabeleceu e que o Brasil foi terreno fértil para as sementes lançadas por Lefebvre no distante 1968. Outros textos reconstroem esse processo histórico de maneira mais detalhada8, mas para os propósitos desse texto, basta pontuar as princi-pais contribuições que cada um desses momentos históricos aportou para desenhar o direito à cidade tal como o conhecemos hoje.

O marco inicial cravado por Henri Lefebvre9 em 1968 foi seminal, pois fez vir ao mundo a noção política que se transformaria, anos mais tarde, em plataforma de luta dos movimentos sociais que reivindicam a efetividade do direito à cidade nas arenas ur-banas. Como intelectual engajado, Lefebvre colocou sua capacidade analítica a serviço de uma interpretação da historicidade daquele 1968 e legou ao mundo uma categoria que, até hoje, é debatida e sobre a qual se aglutinariam movimentos sociais em torno de uma utopia acerca de uma forma mais justa de viver nas cidades.

Na escala nacional, o Brasil foi o primeiro país do mundo a positivar o direito à cidade e o fez na esteira da efervescência do movimento constituinte ocorrido en-tre 1986 e 1988. Em pleno período da redemocratização do país, movimentos sociais 8 Cfr. Alfonsin, Betânia de Moraes et al., “Das ruas de Paris a Quito: o direito à cidade na Nova Agenda Urbana – HABITAT III”, em Revista de Direito da Cidade, Rio de Janeiro, v. 9, núm. 3, 2017, pp. 1214-1246. Disponível em: <http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/rdc/article/view/29236/21259>.9 Em 1968, Henri Lefebvre publicava, em Paris, “Le droit à la ville”, livro fundamental para as gerações seguintes e publicado no Brasil sob a seguinte referência: Lefebvre, Henry, O direito à cidade, São Paulo, Moraes, 1991.

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apresentaram, durante o processo constituinte, a Emenda Popular pela Reforma Urba-na. Contando com cerca de 200.000 assinaturas10, a emenda incorporava “o acúmulo teórico sobre a questão urbana” e, embora mutilada em extensão e conteúdo,11 logrou introduzir o princípio das funções sociais da cidade e da propriedade no capítulo so-bre Política Urbana da Constituição Federal. Segundo Grazia de Grazia, o Movimento Nacional pela Reforma Urbana, integrado por diversas entidades e movimentos seto-riais, realiza o primeiro encontro do Fórum Nacional de Reforma Urbana em outubro de 1988, adotando três princípios básicos para orientar sua prática: (i) Direito à cidade e à cidadania; (ii) Gestão Democrática da cidade; e (iii) Função social da cidade e da propriedade.12 A partir deste momento, o Fórum Nacional pela Reforma Urbana seria o principal sujeito coletivo a advogar a inclusão expressa do direito à cidade na legisla-ção brasileira.

A mobilização pela regulamentação do capítulo da Política Urbana durou nada menos do que 11 anos, já que o projeto de lei é protocolado em 1990 e a lei do Estatu-to da Cidade (lei 10.257/01) é promulgada apenas em 2001.13 Uma demora tão grande na tramitação de um projeto de lei pode ser explicada por duas razões articuladas entre si: (i) a década de 90 foi o período das reformas liberais no país, com ênfase para as re-formas administrativa e previdenciária que redundaram em diversas emendas constitu-cionais que absorveram inteiramente o Congresso Nacional naquele momento e (ii) o conteúdo do projeto de lei do Estatuto da Cidade, inteiramente comprometido com os princípios da função social da propriedade e da cidade, não harmonizava com as ideias que hegemonizavam o debate político da época, encontrando enorme resistência de muitos parlamentares que compunham o Congresso Nacional naquelas legislaturas.

Nota-se, portanto, o protagonismo do Fórum Nacional de Reforma Urbana, congregando a sociedade civil e os movimentos sociais, na organização de uma pressão constante ao Congresso Nacional, marcada pela disciplina e determinação incansável, durante toda a década de 90. Quem tentar entender o Estatuto da Cidade sem perscru-tar o processo histórico de sua produção não poderá compreender como a referida lei foi promulgada, com teor claramente comprometido com a reforma urbana, em um 10 Grazia, Grazia De, “Reforma Urbana e Estatuto da Cidade”, en Ribeiro, Luis César; Cardoso, Grazia, Grazia De, “Reforma Urbana e Estatuto da Cidade”, en Ribeiro, Luis César; Cardoso, Adauto Lúcio (Org.), Reforma Urbana e gestão democrática, Rio de Janeiro, Revan/FASE, 2003, p. 53.11 O direito à cidade não foi referido expressamente na Constituição Federal, embora nasça O direito à cidade não foi referido expressamente na Constituição Federal, embora nasça desses “Sobreprincipios” de Direito Urbanístico inscritos no capítulo da Política Urbana. 12 Grazia, Grazia De, “Reforma Urbana e Estatuto da Cidade”, Grazia, Grazia De, “Reforma Urbana e Estatuto da Cidade”, op. cit., p. 54.13 Cfr. Alfonsin, Betânia de Moraes, “Direito à cidade sustentável na nova ordem jurídico- Cfr. Alfonsin, Betânia de Moraes, “Direito à cidade sustentável na nova ordem jurídico-urbanística brasileira: emergência, internacionalização e efetividade em uma perspectiva multi-cultural”, en Wolkmer, Antônio Carlos y Leite, José Rubens Morato (Org.). Os novos direitos no Brasil: natureza e perspectivas, uma visão básica das novas conflituosidades jurídicas, São Paulo, Saraiva, 2012, pp. 321-335.

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contexto político de hegemonia liberal no país. É que a mobilização dos movimentos sociais tem, neste caso, grande poder explicativo tanto para a aprovação do projeto de lei, como para o seu conteúdo. Enquanto a Constituição de 1988 introduziu entre nós o conceito de funções sociais da cidade, o Estatuto da Cidade tratou de assumir, como diretriz da política urbana brasileira, aquela que seria a bandeira de luta síntese dos mo-vimentos por Reforma Urbana:

Art. 2o A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações; [...]. 14

A forma como o direito à cidade foi incluído no Brasil sugere um direito guarda-chuva, aos moldes do que Peter Marcuse observa ao analisar a forma como esse movi-mento se articula nos Estados Unidos:

Existe uma diferença entre “os direitos nas cidades” (no plural) e o direito à cidade (no singular). [...] É necessário demandar, proteger e lutar pelos diversos direitos à cidade. Serão plena-mente concretizados quando se atingir o direito à cidade. 15

É claro que o direito à cidade é, no caso brasileiro, um exemplo contundente de “que o todo é maior do que a simples soma das partes”.16 É evidente que o direito à cidade tem sentido mais amplo do que a mera realização dos vários direitos urbanos que aí estão amalgamados. Pode-se dizer que ele inclui, ainda, e apenas a título de exem-plificação, o direito à gestão democrática, que está mencionado no inciso II do mesmo artigo 2º. De qualquer forma a reflexão sobre a expressão brasileira do direito à cidade é importante para, ao mesmo tempo que se valoriza o que está aí colocado, não reduzir

14 Brasil, Brasil, Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. [Estatuto da Cidade], Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Brasília, DF, 2001. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LEIS_2001/L10257.htm>.15 Marcuse, Peter, “Os direitos nas cidades e o direito à cidade”, en Sugranyes, Ana; Mathivet, Charlotte (Ed.), Cidades para tod@s: propostas e experiências pelo direito à cidade, Santiago de Chile, Habitat International Coalition, 2010, pp. 89-101.16 Demo, Pedro, Demo, Pedro, Metodologia do conhecimento científico, São Paulo, Atlas, 2000, p. 29.

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o seu alcance ao explicitado, compreendendo, em uma análise sistêmica, que ele é, po-lítica e juridicamente maior do que sua inscrição legal.

Embalado, então, pela aprovação recente do Estatuto da Cidade no âmbito bra-sileiro, o Fórum Nacional da Reforma Urbana propõe, durante o II Fórum Social Mun-dial (2006), uma minuta para uma CARTA MUNDIAL PELO DIREITO À CIDADE. Esse documento é recepcionado internacionalmente por diversos movimentos sociais e roda o mundo enriquecendo seu conteúdo até chegar à redação que conhecemos hoje. A Carta Mundial pelo direito à cidade é, sem dúvida, o documento que melhor expressa uma compreensão mais abrangente do direito à cidade, abarcando todos os compromissos, princípios e direitos imbricados nesse debate:

ARTIGO I. DIREITO À CIDADE[ . . . ] 2. O Direito a Cidade é definido como o usufruto eqüitativo das cidades dentro dos princípios de sustentabilidade, democracia, equidade e justiça social. É um direito coletivo dos habitantes das cidades, em especial dos grupos vulneráveis e desfavo-recidos, que lhes confere legitimidade de ação e organização, baseado em seus usos e costumes, com o objetivo de alcançar o pleno exercício do direito à livre autode-terminação e a um padrão de vida adequado. O Direito à Cidade é interdependente a todos os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, concebidos integral-mente, e inclui, portanto, todos os direitos civis, políticos, econômicos, sociais, cultu-rais e ambientais que já estão regulamentados nos tratados internacionais de direitos humanos. Este supõe a inclusão do direito ao trabalho em condições eqüitativas e satisfatórias; de fundar e afiliar-se a sindicatos; de acesso à seguridade social e à saú-de pública; de alimentação, vestuário e moradia adequados; de acesso à água potável, à energia elétrica, o transporte e outros serviços sociais; a uma educação pública de qualidade; o direito à cultura e à informação; à participação política e ao acesso à justiça; o reconhecimento do direito de organização, reunião e manifestação; à segu-rança pública e à convivência pacífica. Inclui também o respeito às minorias e à plu-ralidade étnica, racial, sexual e cultural, e o respeito aos migrantes. O território das cidades e seu entorno rural também é espaço e lugar de exercício e cumprimento de direitos coletivos como forma de assegurar a distribuição e o des-frute eqüitativo, universal, justo, democrático e sustentável dos recursos, riquezas, serviços, bens e oportunidades que brindam as cidades. Por isso o Direito à Cidade inclui também o direito ao desenvolvimento, a um meio ambiente sadio, ao desfrute e preservação dos recursos naturais, à participação no planejamento e gestão urba-nos e à herança histórica e cultural.17

1�Fórum Social Mundial Policêntrico, 2006, �Bamako (Mali); Caracas (Venezuela) e Karachi Fórum Social Mundial Policêntrico, 2006, �Bamako (Mali); Caracas (Venezuela) e Karachi (Paquistão)], Carta Mundial pelo Direito à Cidade. Disponível em: <http://www.polis.org.br/uploads/709/709.pdf>

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Ressalta dessa redação a intenção de ver o direito à cidade reconhecido como um direito humano dos habitantes das cidades, o que, sem dúvida alguma, coloca o exercício da cidadania daqueles que vivem na urbe em outro patamar. É preciso reco-nhecer ainda que, embora fosse uma Carta-plataforma de luta dos movimentos sociais, sem qualquer caráter oficial, tal documento foi, sem dúvida, o principal meio de divul-gação do direito à cidade no período seguinte, servindo como instrumento de advo-cacy18 junto às Nações Unidas e fortalecendo, internacionalmente, o movimento pelo seu reconhecimento.

É nesse contexto que se inicia o processo preparatório para a Conferência HA-BITAT III, embalado por muitos lobbys de diferentes segmentos, mas com um pro-tagonismo notável da Plataforma Global pelo direito à Cidade19. A preparação da Conferência foi marcada pela participação popular e os conteúdos da Nova Agenda Urbana organizados em 10 “Policy Units”, sendo que um desses grupos de trabalho debateu o direito à cidade, a Policy Unit nº 120, foi justamente chamado de “The right to the city and cities for all”, sinal inequívoco da força do movimento de construção do direi-to à cidade e do compromisso das Nações Unidas em debater o tema na Nova Agen-da Urbana. De acordo com esse documento (não vinculante para a Conferência, mas com caráter de subsídio), “o Direito à Cidade é um novo paradigma que fornece uma estrutura alternativa para repensar a urbanização e as cidades. Tem como perspectiva o cumprimento eficaz �no território das cidades] de todos os direitos humanos acordados internacionalmente.”21

Embora tal redação não conste da redação final da Nova Agenda Urbana, fica nos anais do Encontro e é notável o esforço de síntese e de apresentação do direito à cidade ao público internacional com esta definição, já que o tema é extremamente com-plexo e a própria natureza jurídica do mesmo está, realmente, nacional e mundialmente, em debate.22 Apresentá-lo como um “novo paradigma” permite aos intérpretes rom-per com as pré-noções que pretendem, com insistência, enquadrar o novo direito em antigas molduras incapazes de dar conta de sua novidade e complexidade.

18 Advocacy aqui entendida como uma forma positiva de lobby político, de campanha por in-clusão do conceito na Nova Agenda Urbana, junto aos órgãos das Nações Unidas responsáveis pela condução da Conferência HABITAT III. 19 A Plataforma Global pelo direito à cidade é uma articulação internacional de movimentos A Plataforma Global pelo direito à cidade é uma articulação internacional de movimentos sociais e entidades identificadas com o ideário do direito à cidade. Para saber mais, ver: <http://www.righttothecityplatform.org.br/?lang=pt>. Acesso em: 13 jul. 201�20 Cfr. Cfr.Organização Das Nações Unidas, Habitat III: Policy Unit 1, Quito, 2016b. Disponível em: <http://habitat3.org/wp-content/uploads/Policy-Paper-1-Portugue%CC%82s.pdf>.21 Ídem.22 Mello, Cláudio, “Elementos para uma teoria jurídica do direito à cidade”, Mello, Cláudio, “Elementos para uma teoria jurídica do direito à cidade”, op. cit.

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Fruto de monumental esforço diplomático, a Nova Agenda Urbana resultante da HABITAT III menciona, então, o direito à cidade em sua seção “Nossa visão com-partilhada”:

Compartilhamos uma visão de cidade para todos, referente à fruição e ao uso igua-litários de cidades e assentamentos humanos, almejando promover inclusão e asse-gurar que todos os habitantes, das gerações presentes e futuras, sem discriminações de qualquer ordem, possam habitar e produzir cidades e assentamentos humanos justos, seguros, saudáveis, acessíveis, resilientes e sustentáveis para fomentar prospe-ridade e qualidade de vida para todos. Salientamos os esforços envidados por alguns governos nacionais e locais no sentido de consagrar esta visão, referida como direito à cidade, em suas legislações, declarações políticas e diplomas.23

Apesar de parecer uma pequena referência, o que desentusiasmou a muitos, é preciso refletir que é difícil arrancar documentos com conteúdos radicais de um fórum no qual há países com culturas políticas e jurídicas muito distintas, além de realidades sociais e econômicas díspares. E é preciso reconhecer que o documento avança, sobre-tudo no que diz respeito à incorporação dos vários componentes do direito à cidade historicamente construídos.

A Nova Agenda Urbana reconhece, em diferentes artigos, o princípio da função social da propriedade, o direito à participação popular nos processos de tomada de de-cisão, o direito humano à moradia adequada, o princípio da proibição do retrocesso e o direito ao espaço público. Os compromissos assumidos pelas Nações Unidas nesta Declaração de Quito produzem uma série de repercussões no Direito Interno dos paí-ses membro da organização, tanto no âmbito do Direito Público quanto no âmbito do Direito Privado.

3. Prováveis repercussões da nova agenda urbana24 no direito interno dos países latino americanos

No âmbito da América Latina, apenas Brasil, Colômbia e Equador contam com leis nacionais de Política Urbana.25 O impacto da aprovação da Nova Agenda Urbana será sentido no âmbito do Direito Público Interno dos diferentes países em função de que são assumidos, pela Nova Agenda Urbana, firmada pelos governos latino americanos,

23 Organização Das Nações Unidas, Habitat III: nova agenda urbana, Quito, 2016ª, p.7.Disponível em: <http://habitat3.org/wp-content/uploads/NUA-Portuguese-Angola.pdf>. 24 Bourdieu, Pierre Bourdieu, Pierre et al., A profissão de sociólogo: preliminares epistemológicas, Petrópolis, Vozes, 2002, p. 23.25 BRASIL, BRASIL, Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, op. cit.

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como decorrência da visão partilhada em torno do direito à cidade, compromissos com a função social da propriedade, por exemplo, que assumiu a seguinte redação:

13 Visualizamos cidades e assentamentos humanos que: (a) Exerçam sua função social, inclusive a função social e ecológica da terra, visando progressivamente alcançar uma concretização integral do direito à moradia adequada como um componente do direito a um nível de vida adequado, sem discri-minação, acesso universal a água e saneamento seguros e economicamente acessíveis, assim como acesso igualitário para todos a bens públicos e serviços de qualidade em domínios como segurança alimentar e nutrição, saúde, educação, infraestrutura, mo-bilidade e transporte, energia, qualidade do ar e subsistência.26

Salienta-se que a Nova Agenda Urbana ao invés de usar a expressão “função so-cial da propriedade”, consagrada desde o início do século XX em Constituições como a do México e da Alemanha, ampliou o compromisso dos países ao falar em “função social e ecológica da terra”. A alteração tem profundo significado, pois além de consagrar a fun-ção ambiental que pode ser cumprida pela terra urbana, amplia o leque de alternativas de titulação para garantir o acesso à terra que vão muito além do direito de propriedade, questão de grande relevância social e jurídica para as políticas públicas de Regulariza-ção Fundiária em todo o mundo. Ao falar em função social da terra, as Nações Unidas reconhecem que ao lado da função social da propriedade, há também uma importante função social cumprida pela posse, forma de acesso à terra observada pelas populações tradicionais como indígenas, quilombolas, populações ribeirinhas e, nas cidades, popu-lações moradoras de favelas.

O dispositivo claramente importará no fortalecimento do Direito Urbanístico dos países latino-americanos e na necessidade de construção de políticas públicas capa-zes de dar efetividade ao princípio da função social da propriedade e à função social da posse, o que somente pode ser feito com políticas que promovam:

Justa distribuição dos ônus e benefícios do processo de urbanização. Este é •um princípio importante para reverter a tendência histórica e territorialmente consagrada em nossas cidades de privatização dos investimentos públicos por uns poucos proprietários e/ou empreendedores. Quem lucra com a produção da cidade deve dar uma contrapartida aos cofres públicos pela oneração dos equipamentos e da infra-estrutura instalada pelo poder público. Instrumentos como o Solo criado, por exemplo, visam implantar uma contra-tendência a esse mecanismo perverso que opera inescrupulosamente em nossas cidades e gera enriquecimento sem causa de proprietários que sobrecarregam a infraestrutura

26 Organização Das Nações Unidas, Habitat III: nova agenda urbana, op. cit., p. 5.

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paga por toda a coletividade, beneficiam-se dos investimentos públicos mas não pagam por isso. Trata-se de uma clara indicação da necessidade de intervenção estatal no domínio econômico, reafirmando, em boa medida, o princípio basilar da política urbana contido na exigência constitucional de se garantir a função social das propriedades urbanas.Regularização Fundiária de assentamentos autoproduzidos por população de •baixa renda. A regularização fundiária deverá ser acompanhada de urbanização, o que implica que os processos que devem ser encaminhados para garantir a permanência, legalmente regularizada, das famílias ocupantes, mas não se reduz à dimensão jurídica. É fundamental melhorar a habitabilidade do assentamento e a qualidade de vida da população. Para dar conta de desafio de tamanha envergadura, os países membro das Nações Unidas deverão trabalhar com a adoção de normas especiais para proceder à regularização. De fato, seguir o regime urbanístico do entorno implicaria na necessidade de ignorar as moradias existentes e reconstruir o assentamento, fazendo terra arrasada dos esforços da população que autoconstruiu sua moradia. Assim, através de instrumentos como as Zonas Especiais de Interesse Social, já implementadas pelo Brasil há muito tempo, é possível respeitar o existente sem perder de vista um critério de habitabilidade, sustentabilidade e qualidade de vida. Instauração de contratendencias no territorio das cidades, con a promoção de •políticas urbanas e de planejamento que democratizem o acesso regular a terra urbana e à moradia adequada. A Nova Agenda Urbana requer um novo olhar para os Planos Diretores, exigindo que os mesmos abandonem o papel de mero plano regulador e passando a reservar, de maneira mais proativa, um lugar adequado para produção de moradias da população de baixa renda. Esse olhar sobre o território implica a identificação de áreas retidas especulativamente sem edificação, bem como de áreas subutilizadas e/ou abandonadas, a fim de notificar seus proprietários para que promovam adequado aproveitamento da terra urbana. Esses procedimentos, já existentes no Brasil, podem ser combinados com a adoção de instrumentos de zoneamento dirigido à produção de Habitação de Interesse Social, introduzindo maior justiça social no território.

Embora sejam políticas inéditas em vários países latinoamericanos, o Brasil já ti-nha avançado nesse sentido com a promulgação do Estatuto da Cidade, em 2001. Nes-sa legislação, pioneira na América Latina, diretrizes da Política Urbana já estabeleciam a orientação aos gestores para promover políticas capazes de recuperar a valorização imobiliária dos investimentos públicos e redistribuir a renda urbana gerada pela cida-de, bem como se comprometia profundamente com a urbanização e titulação de áreas

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urbanas ocupadas irregularmente para fins de moradia. Vários instrumentos jurídicos e urbanísticos foram incluídos na lei a fim de traduzir essas diretrizes em políticas efe-tivas.

Após o impeachment da Presidenta Dilma, em 2016, no entanto, ao lado de ou-tras reformas impetradas pelo governo de Michel Temer, foi editada uma medida pro-visória, a MP 759/16, já convertida na Lei 13.465/17, que altera todo o marco legal da política de terras brasileira, envolvendo alterações na regulação das terras da União, das terras pertencentes à Amazônia Legal, e ainda alterando as regras de Regularização Fundiária Rural e de Regularização Fundiária urbana. A lei está eivada de inconstitucio-nalidades e busca, muito claramente, pavimentar o caminho jurídico de um processo de tomada de terras públicas pela via de práticas de grilagem e de terras ocupadas por população de baixa renda, inaugurando uma nova fase da urbanização capitalista bra-sileira. No novo período, um processo de despossessão dos pobres deve ser acelerado, liberando áreas bem localizadas nas cidades para setores de renda mais elevada, através da transferência de ativos dos mais pobres para os mais ricos nas cidades. Tal processo já vem ocorrendo no mundo todo e foi denunciado pela relatora das Nações Unidas para o Direito humano à moradia, Raquel Rolnik, em um brilhante livro escrito após a experiência da Relatoria.27

A Nova Agenda Urbana traz, a propósito, uma forte recomendação para que re-trocessos na política urbana, não ocorram.28 Da mesma forma, a Nova Agenda Urbana se compromete com a questão da gestão democrática, em artigos como o 13 “b”:

13 Visualizamos cidades e assentamentos humanos que: (b) Sejam participativos; promovam engajamento civil; engendrem sentimentos de pertença e apropriação entre todos os seus habitantes; priorizem espaços públicos seguros, inclusivos, acessíveis, verdes e de qualidade, adequados a famílias; fortale-çam interações sociais e intergeracionais, expressões culturais e participação política de forma adequada, e propiciem coesão social, inclusão e segurança em sociedades pacíficas e plurais, nas quais as necessidades dos habitantes são satisfeitas, reconhe-cendo-se as necessidades específicas daqueles em situações vulneráveis.29

27 Cfr.Rolnik, Raquel, Cfr.Rolnik, Raquel, Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças, São Paulo, Boitempo, 2015.28 Ver artigo 84: “Instamos os Estados a absterem-se de promulgar e aplicar quaisquer medi- Ver artigo 84: “Instamos os Estados a absterem-se de promulgar e aplicar quaisquer medi-das económicas, financeiras ou comerciais unilaterais que não estejam em conformidade com o direito internacional e a Carta das Nações Unidas que impeçam a plena realização do desen-volvimento económico e social, particularmente em países em desenvolvimento.” (Organização Das Nações Unidas, Habitat III: nova agenda urbana, op. cit.,p. 25).29 Ibídem, p. 5.

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Tal artigo da Declaração reforça ainda a importância do respeito ao espaço pú-blico como um espaço vocacionado à livre expressão artística, cultural e, principalmen-te, política. Novamente esses dispositivos são particularmente importantes na atual conjuntura brasileira, na qual temos tido vários episódios de repressão a manifestações políticas nos espaços públicos.30 Em relação à participação nos processos de tomada de decisão, o teor assumido pela Nova Agenda Urbana censura o desmonte de estruturas democráticas importantes no país, como é o caso do Conselho das Cidades e da Con-ferência Nacional das Cidades.31

Ainda no âmbito do Direito Público, salienta-se o direito à moradia adequada. Este não apenas manteve o status de direito humano que já tinha conquistado desde o PIDHESC - Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e consolidado na Conferência HABITAT II, mas passou a um novo patamar, sendo possível afirmar que hoje os países membro das Nações Unidas se comprometem com o direito hu-mano à moradia adequada e sustentável, além de acessível a todos/as, especial-mente às populações mais vulneráveis, o que se expressa no compromisso de “não dei-xar ninguém para trás” (Paragrafo 13 da NUA). Constata-se também que o documento final articulou o atendimento das funções sociais da cidade ao atendimento do direito humano à moradia.

Compreende-se que a inclusão do direito à cidade na Nova Agenda Urbana também acarreta uma profunda transformação no Direito Privado dos países latino americanos, muito especialmente no que diz respeito ao direito de propriedade. Este, tradicionalmente inscrito em Códigos Civis de forte influência liberal, tendem a tratar o direito de propriedade como um direito absoluto, exclusivo e perpétuo. Há muitos países na região em que sequer o princípio da função social da propriedade é mencio-nado nas Constituições Nacionais e, ainda menos, na ordem civilista. Ao firmar com as Nações Unidas o compromisso de implementar a Nova Agenda Urbana nos próximos 20 anos, no entanto, os países latino americanos deverão promover alterações em seu Direito Civil que impliquem nos seguintes giros:

As funções sociais da cidade deverão ser atreladas ao direito à cidade, fazendo •com que o Poder Público encontre maneiras de monitorar a maneira como cada propriedade atende (ou não), a função social.

30 Ver, exemplifi cativamente: Martín, María, “Mobilização do Rio frustra organizadores e Ver, exemplificativamente: Martín, María, “Mobilização do Rio frustra organizadores e termina com repressão policial: grande aposta dos sindicalistas, ato na Cinelândia foi dispersado por bombas de efeito moral”, en El País, Rio de Janeiro, 29 abr. 2017. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/04/29/politica/1493424114_206851.html>. 31 Cfr. Sindicato Dos Arquitetos Do Estado De São Paulo, Cfr. Sindicato Dos Arquitetos Do Estado De São Paulo, Entidades repudiam decreto que desmonta Conselho das Cidades, São Paulo, 2017. Disponível em: <http://www.sasp.arq.br/single-post/2017/06/13/Entidades-repudiam-decreto-que-desmonta-Conselho-das-Cidades>.

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A função social e ecológica da propriedade deverá ter efeitos jurídicos concretos, •como recomendações expressas ao Poder �udiciário para que verifiquem, nos conflitos entre posse e propriedade, como a FUNÇÃO SOCIAL DA TERRA é melhor cumprida no caso concreto. É comum, no caso brasileiro, que mesmo em sede de ação possessória (nas quais o título de domínio não é, ou não deveria, ser objeto de debate), que um título vazio de propriedade desaloje milhares de famílias buscando exercer seu direito humano à moradia. Ordenamento jurídico deverá levar em conta a valorização imobiliária originada •dos investimentos públicos ao julgar ações de desapropriação de terras que não atendem sua função social. É praxe promover avaliações dos terrenos com base no “valor de mercado”, entendendo-se que esse critério atende à exigência de uma indenização “justa” ao proprietário, todavia, essa avaliação desconhece o incremento de valor promovido pelos próprios investimentos públicos no preço da terra. Na prática, é como se o Poder Público, e por via de consequência, toda a coletividade, pagassem ao proprietário duas vezes: ao fazer o investimento público na urbanização do entorno e ao pagar uma indenização mais alta porque o preço de mercado do imóvel teve um valorização decorrente da obra pública.

Não resta dúvida de que, se tais alterações legislativas forem procedidas, tratar-se-ão de inovações profundas em um Direito Civil hegemonizado pelo modelo do li-beralismo jurídico clássico que, anacronicamente, ainda vigora no continente latinoa-mericano.

4.Conclusões

É evidente que os processos jurídicos que promovem transições paradigmáticas são lentos. A Nova Agenda Urbana abrangerá um período de duas décadas. A implemen-tação efetiva de mudanças legislativas, de políticas públicas e a adoção de instrumentos jurídicos e urbanísticos capazes de promover uma política urbana comprometida com a equidade e com o direito à cidade, dependerá de fatores que são também, em boa me-dida, endógenos e determinados pelos contextos nacionais, tais como o grau de conso-lidação do Direito Urbanístico de cada país; a mobilização da sociedade civil; e, a força do paradigma civilista liberal, que ainda é hegemônico na maior parte do mundo.

Avalia-se, no entanto, que a inclusão do direito a cidade em um documento ofi-cial das Nações Unidas, sem dúvida, leva o debate sobre a política de Desenvolvimen-to Urbano a um novo patamar, abrindo não apenas uma nova agenda de investigação, mas também a novas e promissoras possibilidades de fazer avançar o Direito Urbanís-tico no Continente. É uma alvissareira novidade em uma quadra da História na qual a

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maior parte dos países promovem uma acentuada inflexão ultra-liberal em suas políti-cas, em um processo marcado por muitos retrocessos políticos, jurídicos, econômicos e sociais.

O Brasil, tristemente, se tornou desde 2016 um ótimo exemplo: de importan-te player mundial no processo de preparação da HABITAT III, vive um momento de aprovação de profundas alterações de sua legislação interna, vulnerabilizando o estado democrático de Direito e as políticas sociais. Espera-se que a emergência do direito à cidade na Declaração de Quito, possa ser argumento de defesa e promoção da ordem jurídico urbanística brasileira democraticamente construída nos últimos 30 anos. E ao argumento de que essa compreensão da Nova Agenda Urbana não passa de uma uto-pia, responde-se com a epígrafe do presente artigo: “a utopia é, antes de mais nada, a tensão do presente”. Seja bem-vinda a Nova Agenda Urbana e as inovações de que é portadora.

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