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 HELMUT REICHELT SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX TRADUÇÃO  N é l i o S c hneid e r I E D I T O R ~ Ã U H I C A H P

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H E L M U T R E I C H E L T

SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA

DO CONCEITO DE CAPITAL

EM KARL MARX

TRADUÇÃO

 Nélio Schneider 

IE D I T O R ~ Ã U H I C A H P

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Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua

Portuguesa de 1990. Em vigor n o Brasil a partir de Z009.

FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELO

S ISTEMA D E B IB LIO TEC A S D A U N IC A M P

DIRETORIA DE TRATAMENTO DA INFORMAÇÃO

Helmut Reichelt.

R271S Sobre a estrutura lógica do conceito de capital em K ar l M ar x / Helmut Reichelt; tra-

dução Né lio Schneider. Cam pinas, SP: Editor a da Unicamp , 2013.

1. Karl Mar x, 18181883. 2. Valor (Eco nom ia). 3. Ca pita l (Eco nom ia). 4. Eco nom ia

marxista. I. Nélio Schneider, 1966. II. Título.

C D D 330.1594

335.412

ISBN 97885268IO358 332.041

índices para catálogo sistemático:

1. Karl Marx, 18181883 33°-I594

2. Valor (Econom ia) 335.412

3. Capital (Economia) 330.1594

4. Economia marxista 332.041

Titulo original: Z ur logischen Struktur des Kapita lbegriffs bei K ar l M ar x

Copyr ight © by Helmut Reichelt

Copy right © 2013 by Editora da Unicamp

Direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19.2.1998.

E proibida a reprodução total ou parcial sem autorização,

por escrito, dos detentores dos direitos.

Printed in Brazil.

Foi feito o depósito legal.

Direitos reservados à

Editora da Unicamp

Rua Caio Graco Prado, 50 Campus Unicamp

CEP 1 3 083 89 2 Campinas SP Brasil

Tel./Fax: ( 1 9 ) 3 5 2 1 7 7 1 8 / 7 7 2 8

 www.editora.unicamp.br   [email protected]

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 No método de processamento, prestou-me um grande serviço

o fato de eu by mere accident   [...] ter folheado novamente a

 Lógica de Hegel.

Karl Marx

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SUMÁRIO

OBSERVAÇÕES DA EDIÇÃO ORIGINAL............................................................................... 9

OBSERVAÇÕES DO TRADUTOR............................................................................................ 9

PREFÁCIO.............................................................................................................................. 11

I N T R O D U Ç Ã O ........................................................................................................................ 23

1 - A CONCEPÇÃO MATERIALISTA DE HISTÓRIA NAOBRA INICIAL DEMARX....... 29

2 - SOCIEDADE E CONHECIMENTO EM O CAPITAL........................................................ 83

 A. Aspectos ger ais do conceito de capital....................................................... 83

 B. Crítica da ec onom ia polí tic a clá ssic a ........................................................ 104

1. Os fis io crata s.................................................................................................. 105

2. A dam Sm ith..................................................................................................... 108

3. D avid R icard o ................................................................................................. 119

3 - A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL......................................................................................... 133

1. Sobre a relação entre mé todo lógicoe m éto do h is tó rico ................... 133

2. O concei to m arx iano de valo r................................................................... 143 A.  A i categorias da circulação sim ple s ........................................................... 156

1. D uplicação id ea l............................................................................................ 158

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2. Duplicação real.................................................................................... 165

3. A primeira determinação do dinheiro................................................ 175

4. Excurso sobre o conceito do tempo de trabalho socialmente

necessário................................................................................................. 179

5. A segunda determinação do dinheiro................................................ 187

6. Excurso sobre a teoria da crise........................................................... 189

7. A segunda determinação do dinheiro (continuação)....................... 197

8. A terceira determinação do dinheiro................................................. 207

 B. A passagem para o capita l..................................................................... 231

1. Sobre a relação entre circulação simples e capital.........................   231

2. A mais abstrata das formas do capital............................................... 246

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OBSERVAÇÕES DA EDIÇÃO ORIGINAL

Os escritos de Marx e Engels são citados no corpo do texto entre parêntesescom base em

MEW: Marx e Engels, Werke. Berlin, 1956 e ss., 43 vols.

MEGA: Marx e Engels, Gesamtausgabe.  Berlin, 1975 e ss.

U: Marx, “Urtext zur Kritik der politischen Ökonomie”, em: Grundrisse der  

Kritik der politischen Ökonomie.  Berlin, 1974.

Exemplo:(23/169) = MEW, vol. 23, p. 169.

(II.5/43) = MEGA, Segunda Seção, vol. 5, p. 43.

OBSERVAÇÕES DO TRADUTOR 

1. Para a tradução das citações literais das obras de Marx, aproveitaram-seas traduções mais recentes disponíveis atualmente no Brasil. A referência bi

 bl iográfica completa de cada obra citada encontra-se no rodapé da primeira

ocorrência da obra, que, dali por diante, é citada sempre abreviadamente m e

diante título, volume (se for o caso) e página.

2. A abreviatura “modif.” ao final de uma referência significa que a tradução

original foi modificada para adequar-se à terminologia usada na obra de Rei-

chelt ou à terminologia científica mais atual. E o caso, por exemplo, da expres

são “mais-valia”, que vem sendo substituída com razão pelo termo "mais-valor”(cf. Mario Duayer. Apresentação, em K. Marx, Grundrisse.  São Paulo, Boi-

tempo, 2011, p. 23).

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PREFÁCIO

Durante a preparação desta investigação sobre a estrutura lógica do conceito

de capital em Marx, apresentada na forma de dissertação como primeira ten

tativa de reconstrução do método dialético de Marx em O capital, não me dei

conta de uma indicação central: logo depois da publicação do escrito Para a crítica cla economia política,  no ano de 1859, Marx escreveu a Engels, dizendo

que a continuação será “muito mais popular e o método bem mais escondido

do que na Parte I” (III.3/49)1. Ou seja, M arx não facilitou as coisas para os seus

leitores: por um lado, ele apresenta uma obra com um nível elevado de exigên

cia científica; por outro lado, ele “esconde” justamente o método pelo qual se

define a sua cientificidade. Gerd Gõhler já constatou que a dialética sofreu

“redução” em O capital2, e de fato é possível provar que, já na segunda edição

de O capital, Marx simplesmente riscou passagens metodológicas essenciais para a compreensão do seu proced im ento3. Razões, amplitude e significado

dessa “redução” ainda não foram esclarecidos. Porém, se quisermos investigá-

-la e reconstruir o método, evidentemente é preciso ater-se aos escritos em que

ele se apresenta, por assim dizer, “não escondido”, a saber, nos trabalhos dire

tamente preparatórios para O capital, ou seja, sobretudo no assim chamado

 Rascunho  [Rohentwurf *] de O capital e no Texto original [Urtext]  do escrito

Para a crítica da economia política.

*  Rascunho ( Rohentwurf) é. por assim dizer, o apelido que os Esboços (Grundrisse) receberamem sua primeira edição de 1939, que saiu com o seguinte título: Grundrisse der Kritik des

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SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

Marx orientou-se na lógica de Hegel para redigir esse volumoso rascunho,

o que se deduz das indicações explícitas do próprio autor; porém, conhecimen

tos a respeito de Hegel por si sós não oferecem garantia nenhuma de uma

compreensão adequada desse texto. Muitos hegelianos tentaram isso com essetexto sem êxito. Mesmo que se parta do pressuposto de que, nos dois escritos

mencionados, o método “ainda não foi escondido”, é evidente que há outros

obstáculos que dificultam o acesso. Ao lado da observação metodológica mar-

xiana citada anteriormente, eu, a exemplo de todos os demais autores que se

ocuparam com as mudanças de plano em O capital, não me dei conta de uma

diferença fundamental entre o  Rascunho e os escritos publicados, cujo signi

ficado, todavia, só se descortina diante do pano de fundo dos questionamentos

categoriais vinculados com a reconstrução do método dialético. No Rascunho, Marx diferencia entre o “o intercâmbio que põe valor de troca” e o “trabalho

que põe valor de troca”. O primeiro também é caracterizado por ele como “cir

culação simples”, uma expressão que quase não aparece mais em Para a crí

tica da economia política e sumiu completamente em O capital·, o conceito do

trabalho que põe valor de troca pode ser lido como determinação mais antiga

do caráter duplo do trabalho, e continua a ser utilizado com algum a frequência

em Para a crítica da economia política.  O trabalho que põe valor de troca é

caracterizado também como “trabalho abstrato que se tornou verdadeiro na prática” (cf. 42/39 e 42/219 [ed. bras. Grundrisse, pp. 58 e 231]*); o antônimo

não é caracterizado expressamente como “verdade teórica” do trabalho abstrato,

mas, na concepção da exposição, o trabalho abstrato é tratado como “trabalho

em si”, como categoria, que “é ainda mais relevante para a nossa reflexão

subjetiva” (42/219 [ed. bras. Grundrisse, p. 231]).

 Na bibliografia sobre o assunto, comenta-se que, no Rascunho,  Marx busca

estruturar a sua exposição de modo diferente do que faz em O capital·,  ele

enfatiza muitas vezes que o valor é a primeira das categorias econômicas a sersubmetida à crítica ou que, “para desenvolver o conceito de capital, é necessá

rio partir não do trabalho, mas do valor e, de fato, do valor de troca já desen

volvido no movimento da circulação” (42/183 [ed. bras. Grundrisse,  p. 200]).

Contudo, a observação autocrítica que se encontra no contexto do desenvolvi-

 politischen Ökonomie (Rohentwurf). Nesta tradução, mantém-se a distinção terminológica

adotada pelo original, embora se trate do mesmo texto. (N. do T.)* Ref. completa da edição brasileira: K. Marx, Grundrisse. Manuscritos econômicos de 1857- 

-1858. Esboços da crítica da economia política. Trad. Mario Duayer e Nélio Schneider. SãoPaulo, Boitempo, 2011. (N. do T.)

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 PREFÁCI O

mento do dinheiro, a saber, que “será necessário mais tarde [...] corrigir o modo

idealista da apresentação que produz a aparência de que se trata simplesmente

das determinações conceituais e da dialética desses conceitos” (42/85-6 [ed.

 bras. Grundrisse, p. 100]), é tida como confirmação de que o  Rascunho   aindarepresentaria um desenvolvimento idealista, m eramente conceituai imanente,

em relação a Para a crítica da economia política   e O capital, em que Marx

teria partido da mercadoria e, desse modo, se moveria em terreno materialista

firme4. É possível até mesmo delimitar temporalmente o momento em que

ocorreu essa mudança na concepção da exposição, mas em lugar nenhum se

encontram indicações explícitas para as razões dessa mudança".

De que trata esse conceito da circulação simples, para o qual, a seu tempo,

 já chamei a atenção?6 Esse conceito tem duplo sentido: por um lado, o intercâm bio que põe valor de troca é entendido numa dimensão histórica, ainda que não

no sentido de uma descrição histórica trivial (como a que foi canonizada na

ortodoxia marxista como relação entre lógico e histórico, em conexão com

certas formulações infelizes de Engels); essa dimensão pode ser apreendida,

muito antes, como a interpenetração recíproca de uma lógica do desenvol

vimento e uma dinâmica do desenvolvimento, que, no entanto, não foi elabo

rada explicitamente por Marx. Por outro lado, com o conceito da circulação

simples Marx vincula a concepção de uma "superfície” do processo de re produção capitalista geral, que manifestamente está orientada na lógica hege-

liana. Há formulações em que se chega a ter a impressão de que Marx assumiu

textos em toda a sua literalidade, como, por exemplo, na passagem para o ca

 pital , cu ja form ulação segue o modelo da passagem da lógica do ser para a

lógica da essência7.

Deixar de perceber o sentido duplo dessa concepção (o que até agora sem

 pre aconteceu) leva a manter trancado o acesso ao método que Marx “aplica”

no  Rascunho, uma formulação no mínimo perturbadora de Marx — pois a

expressão “aplicar” dá a entender que se trata, nesse caso, de um método já

 pronto que estaria à disposição. Mas seria possível “aplicar” a outro objeto um

método do qual insistentemente se diz que não pode ser explicitado indepen

dentemente do seu conteúdo? E ainda por cima sem pagar por isso o preço do

idealismo — pois, em Hegel, esse conteúdo é o “automovimento da coisa” e

este é, em última instância, o conceito que explicita a si mesmo? Isso dá mar

gem à crítica de que a exposição marxiana do “conceito geral do capital” seria

meramente uma construção teórica que sugere uma necessidade interior e que

 procura desenvolver o capital como uma explicação conceituai lógico-imanente,

tanto mais porque Marx jamais esclareceu nem mesmo rudimentarmente a

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SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

razão objetiva que o levou a traduzir a realidade do capitalismo na forma de

um “conceito geral do capital”8.

Em carta a Lassalle, Marx caracterizou o seu trabalho teórico como “críti

ca das categorias econômicas, ou, ifyou like [se preferir], o sistema da economia burguesa apresentado criticamente” (29/550). Como demonstrou Hans-

-Georg Backhaus9 detalhadamente com base nos textos de Marx, o conceito da

crítica e a expressão “sistema da economia burguesa” não se referem só à

crítica de outras teorias, como foi entendido em termos exclusivos pelo mar

xismo ortodoxo, mas também à realidade desse sistema econômico. Mas o que

é a realidade desse sistema econômico? Ele é constituído pelas formas sob as

quais os seres humanos produzem e trocam, as formas que se ajustam para

formar um sistema sacudido por contradições e crises, uma engrenagem autonomizada, que ele caracteriza já nos  Manuscritos de Paris como mundo distor

cido, cuja eliminação prática deveria ser o objetivo do movimento comunista:

“O existente que o comunismo cria é precisamente a base real para tornar

impossível tudo o que existe independentemente dos indivíduos, na medida em

que o existente nada mais é do que um produto do intercâmbio anterior dos

 próprios indivíduos” (3/70 [ed. bras.  Ideologia alemã, p. 67]*). Portanto, a crí

tica marxiana da economia política não consiste em uma nova variante da assim

chamada teoria do valor do trabalho (isso também), mas — é isso que diferencia a crítica econômica marxiana de toda teoria econômica — é o desenvolvi

mento teórico dessa distorção e autonomização reais. O conceito de crítica

nesse sentido é idêntico ao conceito da exposição como desenvolvimento ge

nético gradativo dessa autonomização a partir de um “princípio rea l”; Adorno

o chama de princípio da troca, a partir do qual deveria ser desenvolvida a so

ciedade, que ele caracteriza com palavras quase idênticas às utilizadas pelo

 jovem Marx: “A racionalidade objetiva da sociedade, a da troca, distancia-se,

 por sua dinâmica, cada vez mais do modelo da razão lógica. É por isso que asociedade, o autonomizado, por sua vez, já não pode mais ser compreendida;

unicamente a lei da autonomização  [pode ser compreendida]” (grifos meus,

H. R .)10. Uma caracterização certeira da dialética marxiana, a saber, a recons

trução da lei do processo social de irracionalização.

Tentemos acercar-nos do problema no plano da ciência econômica. Em

muitas de suas publicações11, Hans-Georg Backhaus apontou reiteradamente

* Ref. completa da edição brasileira: K. Marx e F. Engels. A ideologia alemã. Trad. R. Enderle, N. Schneider e L. Martorano. São Paulo, Boitempo, 2007. (N. do T.)

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 PREFÁCIO

 para o fato de que a ciência econôm ica é caracterizada por uma contradição,

da qual, porém, bem poucos economistas têm consciência: em todas as suas

 ponderações macroeconôm icas, a ciência econôm ica pressupõe um valor ab

soluto, objetivo, abstrato, que ela própria, todavia, não consegue fundamentar. Na bibliografia mais antiga, esse valor é ca racterizado como quantidade de

valor, volume de valor, o produto social enquanto massa de valor. Esse valor

abstrato, objetivo, adicionável, que, além disso, cresce, constituindo, portanto,

um valor objetivo intertemporal, é a condição da possibilidade da ciência eco

nômica, seu objeto “propriamente dito”, mas só poucos economistas viram

isso. Schumpeter constata o seguinte: “A rigor” os conceitos da macroecono

mia, portanto as suas grandezas totais, são “sem sentido”12. Por essa razão, ele

também zomba dos economistas — mencionando, entre outros, também Keynes — por “operarem com essas grandezas sem apresentar sintomas de cons

ciência crítica”13. Esse valor foi caracterizado pelo economista Sismondi (por

tanto, na primeira metade do século XIX) como “ideia comercial”, em alusão

 bem consciente à teoria platônica das ideias. Ele compara esse valor com um a

“qualidade não substancial, metafísica, de posse do mesmo cultivateur  [culti

vador, lavrador]”. E esse valor se situa além das duas teorias do valor, ou seja,

da teoria subjetiva do valor ou teoria da utilidade do valor e da assim chamada

teoria objetiva ou teoria do valor-trabalho, que foi elaborada por Adam Smithe especialmente por David Ricardo. Essas duas teorias do valor, até onde con

sigo ver, nem são mais discutidas hoje, e tampouco o terceiro conceito de valor.

Trata-se, por assim dizer, de uma ciência econômica “sem valor”. (De modo

similar, Adorno falou da sociologia como ciência sem sociedade.) Schumpeter

anota, em sua história dos dogmas, que Marx desenvolve, em O capital, uma

teoria que confere centralidade precisamente a essa problemática, sem, no

entanto, mencionar isso explicitamente: a saber, a fundamentação do valor

objetivo e do valor absoluto, isto é, valores adicionáveis que podem ser compu

tados como produto social. Porém, nessa passagem de sua história dos dogmas,

Schumpeter não diz como pretende lidar com essa descoberta.

Surpreendentemente essa descoberta foi feita também por um filósofo, a

saber, por Klaus Hartmann, em seu volumoso livro sobre Marx. Ele também

constata isto:

Se o valor de troca fosse o único conceito econômico de valor, ele não passaria de

um conceito relacional, uma categoria intermediadora para atos de troca. Nesse caso,

não seria possível somar tais valores de troca, nem calcular um valor total. Porém, isso

deve ser possível, na medida em que Marx pretende explicar a acumulação de valor e

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S O B R E   A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

dinheiro e capital, e, numa passagem posterior, passa a fazer um cálculo macroeconô

mico total14.

Portanto, Hartmann vê o problema com bastante precisão. A solução só podeconsistir num valor absoluto; mas isso seria — e esta é a crítica enviada por

ele ao endereço de Marx — uma “escamoteação”. Werner Hoffman, econom is

ta falecido há poucos anos, passa a falar de modo coerente do valor absoluto

quando ele discute as teorias do crescimento.

Esse valor absoluto, objetivo e abstrato, que a teoria macroeconômica vai

somando até chegar a uma quantidade total de valor do produto social, cons

titui o objeto central da crítica marxiana, que explicita esse valor desde os seus

 primórdios até chegar à form a em que “toda a riqueza da sociedade” aparece

como uma quantidade de mercadorias, portanto, uma quantidade de valor. Re

 petidam ente encontram-se no  Rascunho  expressões como estas: o valor “não

desenvolvido”, o “ulterior desenvolvimento do valor de troca” (42/164 [ed. bras.

Grundrisse, pp. 180-1]), o “valor de troca em seu movimento” (42/163 [ed.

 bras. Grundrisse,  p. 178]), o “valor de troca autonomizado” (42/146 [ed. bras.

Grundrisse,  p. 163]; II.2/77 e 78), o “valor de troca consumado” (42/160 [ed.

 bras. Grundrisse, p. 177]). Fala-se expressamente de um movimento do valor,

mas esse modo de falar pode mesmo apontar para algo significativo ou trata-se

de pura especulação? O que poderia significar movimento nesse contexto?

Pensa-se num universal idêntico a si mesmo que assume diferentes formas, que

se conserva em meio a essa mudança de forma e, além disso, pode crescer. Mas

o que é esse universal? Naturalm ente é o valor! Porém, o que é o valor? Tem

 po de trabalho objetivado é o que consta no Rascunho. Isso acarreta problemas

consideráveis que serão abordados mais adiante. No  Rascunho,  isso simples-

mente é afirmado e faz-se a tentativa de compreender o valor autonomizado na

circulação — a saber, a forma-dinheiro — como ponto de partida de todo o

movimento de autonomização, de derivar o “conceito do capital” do valor

 presente na circulação. Em vários passos (que são reconstituídos neste livro),

esse processo de autonomização é acompanhado, tanto no  Rascunho  como no

Texto original [Urtext], até o primeiro conceito abstrato do capital: “A autono

mização aparece não só na forma em que se confronta, como valor de troca

abstrato autônomo — dinheiro — , com a circulação, mas também em que esta

constitui simultaneamente o processo de sua autonomização; ele [o capital, H.R.] provém dela como autonomizado” (II.2/82).

Ora, não é possível repetir aqui toda a argumentação; o que interessa é

unicamente a prova de que a intenção marxiana no  Rascunho  e também no

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 PREF ÁCIO

Texto original [Urtext ] estava direcionada para desenvolver o capital com toda

a sua contraditoriedade e regularidade a partir da efetuação dessa autonomiza

ção do valor.

O desenvolvimento exato do conceito de capital é necessário, porque é o conceito

fundamental da Economia moderna, da mesma maneira que o próprio capital, cuja

contraimagem abstrata é seu conceito, é o fundamento da sociedade burguesa. Da con

cepção rigorosa do pressuposto fundamental da relação têm de resultar todas as contra

dições da produção burguesa, assim como o limite em que a relação impulsiona para

além de si mesma. (42/250 [ed. bras. Grundrisse,  p. 261])

Mediante alusão a uma observação autocrítica sobre os limites da “forma dialética de exposição” (II.2/91), com frequência se constatou que a execução dessa

concepção dialética suscita problemas metodológicos. Nessa constatação, Marx

se refere à existência da classe trabalhadora, cujo surgimento não pode, ele

 próprio , ser “desenvolvido a partir do conceito” .

Ora, anteriormente já apontamos para o duplo significado do conceito da

circulação simples. No decorrer do registro por escrito, essa duplicidade se

tom a mais precisa e, desse modo, aumenta também a nitidez do seguinte pro

 blema: o que Marx identifica no  Rascunho como a esfera da aparência, a circulação simples, que já ali é caracterizada por ele como superfície do proces

so capitalista de reprodução, é a mercadoria como produto do capital. O

 processo de circulação aparece como simples troca, e a economia assume essa

aparência; enquanto teoria, ela constitui a formulação dessa aparência. Em si,

 porém, sempre j á estamos lidando com o processo de circulação do capital,

que provém do processo de produção e lança a mercadoria no mercado. É com

essa mercadoria que Marx inicia a exposição no escrito Para a crítica da eco

nomia política,  bem como depois em O capital. Desse modo, um dos doissignificados desse conceito é absolutizado e a expressão “circulação simples”

não é mais usada; ao mesmo tempo, parece ilógico continuar a falar de um

movimento da autonomização do valor quando Marx já começa com a mer

cadoria como produto do processo capitalista de produção, com o resultado

social desse processo de distorção e autonomização. Quando a explicitação do

conceito de capital é eliminada do valor autonomizado na circulação, a expli

citação ulterior do capital dificilmente poderá ser feita segundo esse método:

ela precisa, portanto, ser “ocultada” . Assim, todas as indicações para esse pro cedimento são sistematicamente eliminadas ou relegadas a segundo plano15.

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SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

Ligada a essa concepção expositiva encontra-se outra problemática teórica

e metodológica. O  Rascunho — em correspondência à diferenciação entre o

intercâmbio que põe valor de troca e o trabalho que põe valor de troca — di

ferencia entre a “verdade teórica” do trabalho abstrato, que “ainda incide antes

na nossa reflexão subjetiva”, e o trabalho abstrato efetivado na prática, e, des

se modo, pela primeira vez fundam enta sistematicamente a categoria do tra

 balho abstrato-universal, assim como a teoria do valor do trabalho; em contra

 posição a isso, em O capital, o conceito do trabalho abstrato é introduzido em

termos definitórios. Abstraindo do fato de isso já ter sido alvo de crítica logo

após a publicação do primeiro volume, o próprio conceito permanece obscuro

e não foi esclarecido em toda a história da discussão sobre a teoria marxiana

do valor; e também a conexão com o próprio valor ainda carece de explicação.

 No fundo, porém, essa questão só surge quando a natureza específica da abs

tração da troca é posta em debate. Em conexão com a cunhagem do termo por

Simmel16, Sohn-Rethel falou de um a abstração real; Adorno assumiu essa ideia

de Sohn-Rethel e caracterizou a abstração da troca como uma “conceitualida-

de objetiva reinante na própria co isa”, como uma “abstração objetiva”. Porém,

as interpretações permaneceram insatisfatórias ou, como no caso de Adorno,

não passaram de indicações programáticas.

Podemos de fato recorrer a Marx que não deixa margem a dúvidas ao afir

mar que o valor representa um produto de abstração gerado pelos próprios

envolvidos na troca. Todavia não é no Rascunho, mas só depois, em O capital, 

que se encontram indicações explícitas quanto ao que se deve imaginar por

categorias e em que termos estas devem ser desenvolvidas em conexão com o

valor enquanto abstração efetuada pelos próprios agentes da troca. As catego

rias são caracterizadas ali com toda a clareza desejável como “formas de pen

samento [...] dotadas de objetividade” (23/90 [ed. bras. O capital,  vol. I, p.151]*), como formas “subjetivas-objetivas”, e o valor como produto da abstra

ção que “existe na cabeça”: “Equivalente significa aqui apenas igualdade de

grandeza depois que as duas coisas foram reduzidas tacitamente, na nossa

cabeça, à abstração ‘valor’” (II.5/632).

Em vista dessa determinação do valor como abstração ideal, levanta-se a

questão referente ao modo como deve ser concebida a conexão entre trabalho

e valor. Mas isso só é viável se levarmos a sério o programa de Marx do jeito

que ele o sumarizou sucintamente no primeiro volume:

* Ref. completa da edição brasileira: K. Marx, O capital. Crítica da economia política. Livro I: O  processo de produção do capital. Trad. Rubens Enderle. São Paulo, Boitempo, 2013. (N. do T.)

1 8

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 PREFÁCIO

É verdade que a economia política analisou, mesmo que incompletamente, o valor

e a grandeza de valor e revelou o conteúdo que se esconde nessas formas. Mas ela jamais

sequer colocou a seguinte questão: por que esse conteúdo assume aquela forma, e por

que, portanto, o trabalho se representa no valor e a medida do trabalho, por meio de suaduração temporal, na grandeza de valor do produto do trabalho? (23/94-5. [ed. bras. O 

capital, vol. I, p. 151])

Porém, como é que o trabalho humano-abstrato, que é definido como “dispên

dio produtivo de cérebro, músculos, nervos, mãos etc. humanos” (23/58 [ed.

 bras. O capital, vol. I, p. 121]), se transforma nessa abstração do valor? Como

esse dispêndio consegue “assum ir a forma do valor”? Como uma abstração se

relaciona com a outra?A meu ver, a resposta a essa pergunta só pode ser obtida pela via da expli

cação aprofundada de uma concepção da qual em Marx só aparecem breves

indicações e que, em toda a discussão sobre a teoria marxiana, não foi desco

 berta nem abordada mais detidam ente. Em O capital, Marx opera com uma

concepção de validade impossível de ser ignorada terminológicamente — ele

fala bem mais de 30 vezes de validade em diversas locuções só na primeira

edição do anexo “A forma de valor” —, mas ele elucida apenas indiretamente,

 por meio de alusões e exemplos velados, essa ideia que tem como ponto de partida a concepção da reflexão ponente e da reflexão exterior da lógica hege-

liana da essência. É só nesse contexto que parece ser possível tematizar satis

fatoriamente a “abstração ‘valor’” — enquanto unidade de validade e ser. Isso

também possibilitaria outra interpretação do conceito do trabalho universal-

-abstrato, bem como ofereceria uma resposta à pergunta anteriormente levan

tada referente à razão pela qual Marx consegue expor o capitalismo na forma

de um “conceito geral do capital”17.

Bremen, setembro de 2001

 N o tas

1 Quem chamou minha atenção para essa passagem epistolar foi Hans-Georg Backhaus.

2 Gerhard Gõhler, Die Reduktion der Dialektik durch Marx, Stuttgart, 1980.

3 Por exemplo, o seguinte parágrafo, que faz a ponte para o segundo capítulo tanto em Para a crítica como em O capital, e que, na segunda edição, foi simplesmente riscado: “A mercadoria é unidade imediata de valor de uso e valor de troca, portanto, de dois opostos. Por conseguinte, ela é uma contradição imediata. Essa contradição necessariamente ficará explícita no

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S O B R E A E ST R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

momento em que ela não for considerada, como até agora, analíticamente ora do pontode vista do valor de uso, ora do ponto de vista do valor de troca, mas quando, na condição detotalidade, realmente for posta em relação com outras mercadorias. A relação real das merca-dorias entre si é o seu processo de troca” (II.5/51). O mesmo ocorre com a frase de transição

no capítulo da acumulação: “O prosseguimento da exposição levará mais tarde, através de sua própria dialética, àquelas formas mais concretas”, após a seguinte frase: “Consequentementea sua análise pura exige que se abstraiam provisoriamente todos os fenómenos que escondemo funcionamento interno do seu mecanismo” (II.5/457).

4 Cf. Fred E. Schräder, Restauration und Revolution, Die Vorarbeiten zum “Kapital”von Karl  Marx in seinen Studienheften 1850-1859, Hildesheim, 1980, p. 205.

5 Schräder, pp. 204-5.

6 Essa concepção não deve ser confundida com a ideia da “produção simples de mercadorias”,desenvolvida por Friedrich Engels e delimitada por ele contra a produção capitalista de mercadorias. Cf. Engels, em: “Ergänzung und Nachtrag zum 3. Buch des Kapital [Suplemento ao

Livro Terceiro de O capitcil]” (25/905 e ss. [ed. bras. O capital, vol. III, Tomo 2, pp. 319 e ss.]).Por não ser idêntica à ideia de Engels, a concepção da circulação simples não podia ser discutida na União Soviética. Sobre o conceito da circulação simples, ver agora também: NadjaRakowitz, Einfache Warenproduktion, Ideal und Ideologie. Freiburg, 2000.

7 “O dinheiro, em sua determinação última, acabada, manifesta-se, pois, sob todos os aspectos, como uma contradição que se resolve a si mesma; que tende à sua própria resolução” (42/160[ed. bras. Grundrisse, pp. 176-7]). E, Hegel diz. na passagem para a essência: "Porém, o su-

 prassumir-se da determinação da indiferença já ocorreu; na explicitação do seu ser-posto. elase manifestou, em todos os seus aspectos, como uma contradição. Ela é em si a totalidade, naqual todas as determinações do ser estão suprassumidas e contidas" (G. W. Hegel, Wissens

chaft der Logik I. Frankfurt. 1986, p. 456). Quando, tempos depois, Marx caracterizou a suarelação com Hegel como um coqueteio com a linguagem hegeliana, isso não só é uma subes-timação dos fatos, mas um evidente despiste, porque se verifica uma profunda coincidênciana estruturação concepcional. Assim como todas as determinações da lógica do ser são su

 prassumidas na lógica da essência, Marx também quer mostrar que a esfera da circulaçãosimples se manifesta no decurso subsequente como uma abstração: "Considerada em si mesma, a circulação é a mediação entre extremos pressupostos. Porém, não é ela que põe essesextremos. Por conseguinte, sendo ela própria a totalidade da mediação, o processo total, elanecessariamente é mediada. Por conseguinte, o seu ser imediato é pura aparência. Ela é o

 fenômeno de um processo que se desenrola às suas costas. Ela passa, então, a ser negada emcada um dos seus momentos, enquanto mercadoria, enquanto dinheiro e enquanto relação

entre ambos, ou seja, enquanto troca simples entre os dois, enquanto circulação” (II.2/64).8 A totalidade das investigações sobre as alterações de planos por parte de Marx evita esse

 problema; o objeto sempre se limita à questão referente ao que deve ser atribuído a esse “conceito geral”, ao “capital em geral” e ao que não pertence mais a ele.

9 Hans-Georg Backhaus, "Über den Doppelsinn der Begriffe ‘politische Ökonomie’ und ‘Kritik' bei Marx und in der Frankfurter Schule” , em: Wolfgang Harich zum Gedächtnis. Eine Gedenkschrift in zwei Bänden. München, 2000, vol. 2. pp. 10-213.

10 Theodor W. Adorno. "Einleitung zum ‘Positivismusstreit in der deutschen Soziologie’”, em:GS, vol. 8, p. 296.

11 Sintetizado em grande parte em:  Dialektik der Wertform, Untersuchungen zur Marxschen 

Ökonomiekritik. Freiburg, 1997.12 Josef Schumpeter, Geschichte der ökonomischen Analyse,  2 vols., ed. E. B. Schumpeter.

Göttingen, 1965, vol. 1, p. 754.

13 Schumpeter, vol. 2, p. 1.213.

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 PREFACI O

14 Klaus Hartmann,  Die Marxsche Theorie. Eine philosophische Untersuchung zu den  Hauptschriften. Berlin, 1970, p. 269.

15 Não obstante, é possível encontrar formulações correspondentes, como, por exemplo, no desenvolvimento da denominação monetária no terceiro capítulo: “Por outro lado, é necessário

que o valor, em contraste com os variados corpos do mundo das mercadorias, desenvolva-senessa forma material, desprovida de conceito, mas também simplesmente social” (23/116 [ed.

 bras. O capital, vol. I, p. 175]).

16 Cf. Georg Simmel, Philosophie des Geldes. Frankfurt, 1989, p. 57. “O fato de que, desse modo,não só a análise da economia, mas a própria economia consiste, por assim dizer, numa abstração real a partir da realidade abrangente dos processos de valoração” (grifo meu, H. R.).

17 Cf. a minha investigação “Die Marxsche Kritik ökonomischer Kategorien. Überlegungen zumProblem der Geltung in der dialektischen Darstellungsmethode im Kapital”, em: Iring Fetscher,Jürgen Ritsert, Alfred Schmidt (eds.), Emanzipation als Versöhnung. Zu Adornos Kritik der  Warentausch-Gesellschaft und Perspektiven der Transformation. Frankfurt, 2001.

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INTRODUÇÃO

Quando, no ano de 1948, Roman Rosdolsky teve a oportunidade de estudar o

 Rascunho  de O capital  pela primeira vez, ele supôs que a publicação desse

volumoso texto inauguraria uma nova fase na pesquisa sobre a obra de Marx.

Ele não acreditava — como se pode inferir do prefácio do seu comentário ao Rascunho1-— que esse texto fosse ter penetração num círculo mais amplo de

leitores; essa possibilidade estava excluída por causa da “forma peculiar e do

modo de se expressar, em parte difícil de entender”. Não obstante, ele estava

convicto de que, no futuro, dificilmente seria possível escrever um livro sobre

Marx sem antes ter estudado precisamente o método em O capital e sua relação

com a filosofia hegeliana: e isso, mais cedo ou mais tarde, levaria a uma acla

ração geral de muitas questões não resolvidas na obra de Marx.

Essa expectativa era perfeitamente justificada e, pelo visto, não muito difícil de cumprir-se. A análise dos problemas metodológicos na obra tardia de

Marx na verdade nem poderia descer a um nível ainda mais baixo; a seu ver,

o que havia sido publicado até aquele momento não passava de meros lugares-

-comuns; não havia nem mesmo rudimentos de um trabalho sobre a dialética

em O capital que pudesse ser levado a sério. Pelo contrário, quando se chegava

a falar de dialética, isso acontecia somente em sentido desaprovador; não se

estava disposto a ver nela mais que um ingrediente estilístico, até porque o

 próprio Marx falava apenas de um coqueteio com o modo hegeliano de seexpressar. O apreço que se tinha por Marx, em todo caso, não era por causa da

dialética. Schumpeter escreve, por exemplo: “Marx gostava muito de dar tes-

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S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

temunho do seu hegelianismo e de fazer uso do modo hegeliano de se expres

sar. Mas também não passou disso. Em lugar nenhum ele traiu a ciência posi

tiva à metafísica”2. A essa superficialidade, como a vê Rosdolsky, o Rascunho  

de O capital, de qualquer modo, poria um fim.

Entrementes o interesse foi se voltando cada vez mais para a obra tardia de

Marx, mas parece que não se chegou nem um passo mais perto da esperada

aclaração dos problemas metodológicos. O comentário redigido por Rosdolsky

tampouco mudou muita coisa nesse tocante. Embora ele diga que exatamente

o Rascunho nos mostra o quanto “a estruturação de O capital de Marx é dialé

tica do começo ao fim”, no final das contas, isso não passa de uma asseveração.

Uma das debilidades do seu livro consiste especialmente no fato de apenas

chamar a atenção para o uso das categorias hegelianas e, no mesmo fôlego,

reproduzir quase sem comentários passagens inteiras que se distinguem por

suas formulações de cunho altamente especulativo e, por isso mesmo, extre

mamente carentes de interpretação. Isso suscita ao natural a pergunta se Ros

dolsky não teria incorrido igualmente na superficialidade por ele censurada;

se — apesar de afirmar isso — ele chegou mesmo a abandonar a posição

que vê na dialética presente em O capital apenas um ingrediente estilístico que

 permanece exterior ao assunto tratado. Contudo, não se pode deixar de men

cionar aqui que Rosdolsky tinha plena consciência da provisoriedade do seu

comentário, já que não era, como ele mesmo diz, “nem economista nem filó

sofo ex professo”. Ele viu seu escrito meramente como contribuição para rea

nimar uma discussão que havia sido interrompida por décadas e, como ele

 prossegue, não teria ousado escrever um comentário se tivesse havido teóricos

mais capacitados para a tarefa.

Por mais que essa confissão de Rosdolsky deva ser valorizada como prova

de sua modéstia pessoal, a alegação de uma maior ou menor qualificação es pec ializada não consegue convencer plenamente. Que importância poderá ter

um conhecimento especializado em economia e filosofia para a interpretação

de uma teoria que se compreendeu explicitamente como crítica dessas disci

 plinas? Não seria preciso perguntar nesse caso, muito antes, não apenas se a

atividade científica que procede com base na divisão do trabalho obstaculiza

a abordagem marxiana, mas se a relação entre a teoria marxiana e essa ciência

em seu conjunto deve ser concebida no sentido de que Marx, ao criticar o

conteúdo, critica também a forma da ciência? Nesse caso, as dificuldades que barram o caminho da ocupação com a dialética materialista deveriam ser pro

curadas justamente onde Rosdolsky provavelmente não teria presumido que

estivessem: nas próprias disciplinas particulares.

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 I N T R O D U Ç Ã O

Essa concepção é sugerida exatamente pelo  Rascunho   de O capital. Ao

 passo que de O capital, caso necessário, ainda se podem extrair teoremas iso

lados e discuti-los no horizonte da ciência especializada sem logo ser pego em

flagrante violação da totalidade da concepção, nos Grundrisse da crítica da 

economia política, no  Rascunho  de O capital, isso não é mais possível. Neles

aparece muito mais claramente do que em O capital que o “modo hegeliano

de se expressar, difícil de compreender”, é componente integral da crítica mar-

xiana. Neles, o entrelaçamento de temas que tradicionalmente são atribuídos

à ciência econômica com uma forma de exposição desses temas orientada na

lógica hegeliana é tão estreito que se torna inviável abordar uma coisa separa

da da outra. O conjunto da exposição do sistema econômico apresenta uma

 profusão de ponderações sutis de ordem metodológica e sistemática, mas é

impossível apartar e explanar separadamente quaisquer ideias sem violar a sua

substância ou conferir-lhes a forma de dogmas. Porém, se faz parte como que

do acervo doutrinal da teoria dialética que conteúdo e forma não são exteriores

um ao outro, inversamente deve valer que a exterioridade da forma perante o

conteúdo igualmente não deixará o conteúdo intacto, que, portanto, também

nesse ponto existe uma relação essencial, ainda que sob claves negativas. Isso

significaria que, no caso da economia política criticada por Marx, desde sem

 pre já se tratou de uma ciência que — ainda antes de serem levadas a cabo

reflexões explicitamente metodológicas — pré-forma seu objeto numa dispo

sição categorial prévia da qual ela não tem consciência, à qual pode se associar

como que sem rupturas uma forma de considerações metodológicas que cor

responde a essa disposição prévia num sentido bem determinado; em outras

 palavras: o pró prio assunto de an temão já é conceb ido de ta l maneira que

considerações metodológicas sempre só podem ser levadas a cabo sob a forma

de uma metodologia enquanto considerações, portanto, que podem ser em preendidas independentemente da discussão sobre o material a ser concei-

tualmente elaborado. Se isso estiver correto, é de perguntar, todavia, se a posi-

tividade da ciência positiva, da qual fala Schumpeter, não se deve a uma

dissociação forçada de momentos que, mediante a forma da dissociação, só

 podem continuar a existir no formato de disposições precariamente metafísicas

ou então assumir a forma de uma doutrina do método tomada de empréstimo

da ciência positiva real, da ciência natural. Assim sendo, justamente ao  Ras

cunho de O capital caberia uma posição-chave na ciência social: seria possível deduzir dele mesmo não só por que a teoria econômica é necessariamente

falha, mas também por que grande parte da crítica lançada contra a obra de

Marx de cara deve ser rejeitada como insuficiente, a saber, como crítica que

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SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

desde o começo resulta de uma posição irremediavelmente suplantada pela

teoria marxiana.

 Não se trata aqui m eram ente de um a nova forma de suposições especulati

vas, o que pode ser aclarado mediante uma indicação antecipada. Se examinar

mos com mais exatidão a obra tardia de Marx, fica evidente que o que diferencia

a crítica da economia política de toda a formulação teórica de ordem econô

mica — inclusive da atual — é a seguinte problematização específica — assim

se poderia sintetizar a abordagem marxiana na forma de uma pergunta: O que

se oculta atrás das categorias mesmas? Qual é o teor peculiar das determinida-

des formais de cunho econômico, portanto da/orma-mercadoria, da forma- 

-dinheiro, da/oraa-capital, âa form a  do lucro, do juro etc.? Enquanto a eco

nomia política burguesa de modo geral se caracteriza por apreender exteriormente as categorias, Marx insiste numa rigorosa derivação da gênese dessas

formas — um procedimento programático que evoca de imediato a crítica de

Hegel à filosofia transcendental de Kant. Porém, só há um caminho que leva à

derivação das categorias, que é o “ir-além-de-si-mesmo im anente” , como diz

Hegel — e esse é o método dialético em O capital. Assim sendo — para esco

lher um exemplo — , a teoria marxiana do preço não deve ser concebida como

teoria do preço no sentido tradicional; Marx se ocupa tão somente com a deri

vação da própria forma do preço, uma forma que tem a sua finalização lógicana denominação monetária. Na análise marxiana das categorias, essa forma se

apresenta, por sua vez, como condição da possibilidade daquilo que comumente

se quer dizer com teoria do preço. Mas, se a teoria marxiana não for apreendi

da desse ponto de vista, se, portanto — permanecendo no nosso exemplo —,

não se perceber que a teoria marxiana do valor leva à derivação dessa forma,

isso implica não só que não está sendo perceb ida a especificidade da teoria

marxiana, mas simultaneamente também que o próprio intérprete de Marx

ainda assume a posição que Marx já deixou para trás: o teórico decididamentecontinua a defrontar-se perplexo com a/o m a-d inh eiro, uma postura que, por

seu turno, é caracterizada pelo fato de que, na ciência econômica, reinam ape

nas noções obscuras sobre o significado e a finalidade de uma teoria do valor.

Apenas mencionaremos aqui que a teoria dos modelos e a metodologia pres

supõem a parentesiação previamente efetuada desses assuntos e igualmente se

detêm diante das categorias como realidade última, não derivável.

E possível abordar essa temática ainda por outro aspecto. Não se pretende

deixar de mencionar aqui que a formulação do problem a deste trabalho é parcialmente convergente com a daquele que é objeto de persistente discussão

entre os representantes da Teoria Crítica e os representantes da ciência social

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 INTRODUÇÃO

 positivista, a saber, a pré-form ação do conhecim ento do sujeito que reflete

sobre o social, uma pré-formação constitutiva do objeto, ela própria já social

mente condicionada — um dado que se expressa na exigência de repetir a crí

tica feita por Hegel a Kant no plano da ciência social. Contudo, um estudo mais

 preciso da form a dialética de exposição das categorias enseja a pergunta se

esse procedimento programático já não foi levado a cabo materialiter  por Marx,

a saber, como crítica da ciência de um sujeito, para o qual o seu próprio mun

do, o mundo produzido por ele próprio, só se apresenta sob uma forma — a do

objeto. Isso, porém, é uma das formas do positivismo que tanto o jovem Marx

rastreia na forma do idealismo hegeliano, como o Marx maduro desvenda no

 procedimento adotado pela economia política burguesa, ao assumir as catego

rias de modo exterior a partir da empiria. Por essa razão, a exposição dialética

das categorias deve ser analisada sob dois pontos de vista: por um lado, crítica

e derivação da form a da consciência a-histórica do sujeito burguês; por outro

lado, reconstituição da gênese desse sujeito mesmo, enquanto exposição de um

 processo de constituição similar ao natural sob a forma de uma capa de obje

tividade social que esse sujeito apenas continua arrastando consigo, mas que,

ao mesmo tempo, ainda é produzida por esse sujeito justamente na forma da

capa, da autonomização frente ao sujeito. Em vista desse conceito de objetivi

dade social, como implicado pela exposição categorial, e do fato de a Teoria

Crítica até hoje não ter aportado nada de essencial para aclarar a dialética em

O capital,  parece justificar-se a pergunta se as ideias propostas pela Teoria

Crítica sobre a relação entre teoria e práxis não continuariam igualmente ex

 postas à crítica marxiana. Em outras palavras: não seria talvez característico

da própria Teoria Crítica conseguir formular a teoria dialética apenas como

 programa e, na investigação material da sociedade capitalista (e também na

recepção da obra tardia de Marx), assumir simultaneamente uma posição que

Marx criticou como a do positivismo opaco para si mesmo? De acordo com a

autocompreensão marxiana, O capital enquanto exposição do “conceito geral

do capital” não é só a primeira ciência positiva real do capitalismo, no sentido

de que pela primeira vez se oferece um conhecimento indissimulado sobre ele,

mas possui validade enquanto existir o objeto exposto nessa forma específica.

 Nesse caso, trata-se — assim se deve concluir — da teoria de um processo que

vai proliferando de modo similar a um processo natural, no qual os seres hu

manos, como de praxe, são levados de roldão pela logicidade imanente de suas

relações sociais — ainda produzidas por eles próprios na forma da autonomi

zação —, mas depois de Marx sempre têm também a possibilidade, quando

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SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

não de emancipar-se de imediato dessa forma de subsunção, certamente de

obter clareza sobre ela pela v ia científica.

Analisar a teoria marxiana por esse ponto de vista será a tarefa da pesquisa

futura que deverá orientar-se especialmente na diferenciação feita por Marx

entre o “conceito geral do capital” e a exposição — posta explicitamente entre

 parênteses por Marx — da concorrência real e, portanto, do capitalismo exis

tente. Só quando houver clareza sobre o sentido dessa diferenciação, o qual só

será desvendado pela via da reconstituição detalhada da exposição dialética

das categorias e da discussão das implicações dessa form a de exposição, será

 possível manifestar-se de modo definitivo sobre o método marxiano e sua ap

tidão para a análise do capitalismo atual. No presente trabalho, trata-se apenasda tentativa de reconstituir uma parte da exposição categorial; ele se entende

como aporte provisório para uma nova discussão sobre a obra de Marx, que foi

inaugurada pelos trabalhos de Alfred Schmidt e Hans-Georg Backhaus, em

especial por sua investigação Sobre a dialética da form a de valor3.

Este trabalho, fomentado gentilmente pela Fundação Friedrich Ebert, foi

apresentado como dissertação à Faculdade de Economia e Ciência Social da

Universidade Johann Wolfgang Goethe de Frankfurt.

 N o tas

1 Cf. Roman Rosdolsky, Zur Entstehungsgeschichte des Marxschen “Kapital”. Frankfurt, 1968,vol. 1, pp. 7 e ss.

2  Apud  Rosdolsky, cit., p. 8.

3 Hans-Georg Backhaus, “Zur Dialektik der Wertform”, em: Dialektik der Wertform. Untersu-chungen zur Marxschen Õkonomiekritik. Freiburg, 1997, pp. 41 e ss.

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C A P Í T U L O 1

A CONCEPÇÃO MATERIALISTA DE HISTÓRIA

 NA OBRA INICIAL DE MARX

A crítica hegeliana aos sistemas de direito natural modernos contém uma acu

sação específica: a de confundir e trocar Estado e sociedade. Diante disso,

Hegel insiste numa separação explícita. No § 182 da Filosofia do direito, consta

o seguinte:

Aliás, a criação da sociedade civil burguesa faz parte do mundo moderno, o primei

ro a fazer jus a todas as determinações da ideia. Quando o Estado é apresentado como

unidade de pessoas distintas, como unidade que se limita ao interesse comum, tem-se

em mente apenas a determinação da sociedade civil burguesa. Muitos dos professores

de direito público não lograram ir além dessa visão do Estado*.

De fato, entre as peculiaridades da filosofia política da Era Moderna figuraesta: no que se refere à relação entre Estado e sociedade, ela mostra uma es

tranha falta de consciência. Embora essa separação se reflita em suas formu

lações antitéticas, na contraposição de direito natural e ciência política, de

moral e política, ela não é explicitamente constatada. Pelo contrário, segundo

o modelo da Politeia  [República] de Platão e da Política de Aristóteles, o Es

tado é concebido como comunidade de cidadãos e esta é equiparada diretamente

com a sociedade civil. Essa identificação pode ser encontrada ainda na Meta

* Essa passagem faz parte do adendo ao § 182, não constando, portanto, da tradução oferecidaem: G. W. F. Hegel, Linhas fundamentais da filosofia do direito ou direito natural e ciência do Estado em compêndio. Trad. Paulo Meneses et al. São Leopoldo, Unisinos, 2010. (N. do T.)

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SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

 físic a dos costumes ,  de Kant: “Os membros dessa sociedade que se acham

unidos para legislar (societas civilis), ou seja, os membros de um Estado, são

chamados de cidadãos (eives)”*  (cf. § 45). Hegel foi o primeiro a conferir à

expressão “sociedade civil” um sentido especificamente social, e a formulação

na Filosofia do direito é condicionada de modo determinante pela elaboração

conceituai explicitamente efetuada da dissociação de Estado e sociedade. A

separação própria do direito natural entre ser humano e cidadão, na forma como

embasa as declarações dos direitos do homem e do cidadão das revoluções

norte-am ericana e francesa, não é mais mantida nessa forma. Para Hegel, não

existe o ser humano em si conforme o direito natural; desde sempre, ele já é

um ser de carecimento e, como tal, reproduz-se na sociedade civil burguesa;

ele exerce sua atividade como ser humano privado, como cidadão ou, conforme

o complemento em francês, como bourgeois  [burguês]. Ao mesmo tempo,

 porém, ele é esse cidadão-burguês também como membro da comunidade po

lítica, como Hegel observa já na Filosofia real de lena : “Ele próprio provê o

sustento para si e sua família, trabalha, firma contratos etc. e do mesmo modo

trabalha também para a universalidade, tendo esta como fim. Conforme o pri

meiro aspecto, ele é chamado de bourgeois, conforme o segundo, de citoyen”1.

Essa duplicidade peculiar dos seres humanos modernos, expressa enquan

to tal pela primeira vez por Hegel, foi decifrada pelo jovem Marx, que, após a

sua controvérsia com a Allgem eine Augsburger Zeitung,  se dedicou, num pri

meiro momento, à Filosofia do direito de Hegel, como o centro propriamente

dito dessa filosofia do direito e caracterizada expressamente como duplicação.

 No comentário ao § 304, consta o seguinte: “Enquanto a organização da socie

dade civil era política ou o Estado político era a sociedade civil, ainda não

havia essa separação e duplicação  de significado dos estamentos” (1/286 [ed.

 bras. Crítica da filosofia do direito de Hegel,  p. 99]**). E no tratado Sobre a 

questão judaica, no qual essa separação entre o idealista do Estado e o membro

da sociedade civil ocupa o centro, encontramos igualmente esse modo de ex

 pressar-se;

Onde o Estado político atingiu a sua verdadeira forma definitiva, o homem leva uma

vida dupla não só mentalmente, na consciência, mas também na realidade,  na vida 

concreta', ele leva uma vida celestial e uma vida terrena, a vida na comunidade política,

* Cit. consta no § 46 de I. Kant, A metafísica dos costumes. Trad. Edson Bini. 2. ed. rev. Bauru,Edipro, 2008, p. 156. (N. do T.)

** Ref. completa da edição brasileira: K. Marx, Crítica da filosofia do direito de Hegel. Trad. R.Enderle e Leonardo de Deus. São Paulo, Boitempo, 2005. (N. do T.)

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A C O N C E P Ç Ã O M A T E R I A L I S T A D E H I S T O R I A N A O B R A I N I C I A L D E M A R X  

na qual ele se considera um ente comunitário, e a vida na sociedade burguesa, na qual

ele atua como pe ssoa particu lar.  (1/354-5 [ed. bras. Sobre a questão judaica, p. 40]*)

Deixaremos de reproduzir aqui a crítica de Marx a Hegel assim como aargumentação utilizada em Sobre a questão judaica',  essencial para o nosso

contexto é, muito antes, a constatação de que, no que se refere à articulação da

relação entre Estado e sociedade, Marx parte do que havia de mais avançado

na consciência do seu tempo, mas ao mesmo tempo vai decisivamente além

déla. Em A crítica do direito do Estado de Hegel**, Marx diz o seguinte:

A separação da sociedade civil e do Estado político aparece necessariamente como

uma separação entre o cidadão político, o cidadão do Estado, e a sociedade civil, a sua própria realidade empírica, efetiva, pois como idealista do Estado ele é um ser totalmen

te diferente de sua realidade, um ser distinto, diverso, oposto. A sociedade civil realiza,

aqui, dentro de si mesma, a relação entre Estado e sociedade civil. (1/281-2 [ed. bras.

Crítica da filosofia do direito de Hegel, p. 95])

A última frase permite deduzir claramente que a forma da duplicação deve

ser derivada da própria estrutura da sociedade civil, o que dá a entender também

o último parágrafo da primeira parte de Sobre a questão judaica :

Mas a emancipação humana só estará plenamente realizada quando o homem indi

vidual real tiver recuperado para si o cidadão abstrato e se tornado ente genérico  na

qualidade de homem individual na sua vida empírica, no seu trabalho individual, ñas

suas relações individuais, quando o homem tiver reconhecido e organizado suas “forces  

 propes” [forças próprias] como forças sociais e, em consequência, não mais separar de

si mesmo a força social na forma de força política .  (1/370 [ed. bras. Sobre a questão 

 judaica, p. 54])

 Nessas formulações se oculta a ruptura radical com toda e qualquer teoria

 burguesa, como adiante ainda mostraremos mais precisamente. Marx concor

da com Hegel em que o Estado só se tomará realmente Estado quando aparecer

como Estado da sociedade civil, ou seja, quando assumir a forma do Estado

* Ref. completa da edição brasileira: K. Marx, Sobre a questão judaica. Trad. Nélio Schneider.

São Paulo, Boitempo, 2010. (N. do T.)** No original: Kritik des Hegelschen Staatsrechts, o primeiro subtítulo posto pelo editor à

obra Zur Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie [Critica da filosofia do direito de Hegel}. (N. do T.)

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SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

 político ao lado e independentemen te da sociedade civil, perm itindo, desse

modo, que também a sociedade apareça como sociedade. No desenvolvimento

histórico, a gênese de ambos aparece como simultânea, “a realização plena

do idealismo do Estado representou concomitantemente a realização plena domaterialismo da sociedade burguesa. O ato de sacudir de si o jugo político

representou concom itantemente sacudir de si as amarras que prendiam o espí

rito egoísta da sociedade burguesa” (1/369 [ed. bras. Sobre a questão judaica, 

 p. 52]). Contudo, em contraposição a toda teoria burguesa, que por ser burgue

sa se caracteriza justamente por não dar o próximo passo, Marx insiste em que

a derivação da forma do Estado político, do Estado que existe como Estado,

ou seja, a forma da separação entre a existência política do cidadão e a sua

existência como m embro da sociedade civil, deve resultar da atividade do pró prio cidadão. E a partir da forma bem determinada da atividade que deve ser

desenvolvida a duplicação do ser humano em bourgeois e citoyen.

 Na medida em que se trata da estrutura formal dessa problemática, não só

voltaremos a deparar-nos com ela na nossa análise subsequente da crítica da

economia política como motivo central da teoria do dinheiro, na condição de

exigência de derivar a forma-dinheiro da forma-mercadoria, de compreender

o dinheiro como a duplicação da mercadoria em mercadoria e dinheiro, mas

ela também coincide com a crítica da religião ou então com a crítica da filosofia, que, por certo, “nada mais é que a religião posta em pensamento e expli

citada reflexivamente” (40/62 [ed. bras.  Manuscritos económ ico-filosóficos ,

 p. 117 modif.]*). No escrito Crítica da filosofia do direito de Hegel — Introdu

ção, consta o seguinte:

É este o fundam ento da crítica irreligiosa: o homem fa z a religião, a religião não faz

o homem. [...] Mas o homem não é um ser abstrato, acocorado fora do mundo. O homem

é o mundo do homem,  Estado, sociedade. Esse Estado e essa sociedade produzem areligião, um a consciência distorcida do mundo, porque eles são um mundo distorcido. 

(1/378 [ed. bras. Crítica da filosofia do direito de Hegel,  p. 145]**)

 Nisso es tá sintetizada a crítica de Feuerbach à religião e simultaneam ente a

crítica de Marx a Feuerbach. Feuerbach decifra a forma da consciência reli-

* Ref. completa da edição brasileira: K. Marx, Manuscritos económico-filosóficos. Trad. Jesus

Ranieri. São Paulo, Boitempo, 2004. (N. do T.)** Ref. completa da edição brasileira: K. Marx, “Crítica da filosofia do direito de Hegel — Introdução”, em: Crítica da filosofia do direito de Hegel. Trad. R. Enderle e Leonardo de Deus.São Paulo, Boitempo, 2005, pp. 145-56. (N. do T.)

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 A CON CEPÇÃO MATERIALISTA DE HISTÓRIA NA OBRA INICIAL DE MARX 

giosa como produto do próprio ser humano, mas não prossegue derivando essa

forma mesma da estrutura do mundo do ser humano. Algum tempo depois,

Marx diria:

Feuerbach parte do fato da autoalienação religiosa, da duplicação do mundo num

mundo religioso e num mundo mundano. Seu trabalho consiste em dissolver o mundo

religioso em seu fundamento mundano. Mas que o fundamento mundano se destaque

de si mesmo e construa para si um reino autônomo nas nuvens pode ser esclarecido

apenas a partir do autoesfacelamento e do contradizer-a-si-mesmo desse fundamento

mundano. (3/6 [ed. bras. A ideologia alemã, p. 534]*)

Também nesse ponto, ao fazer questão da derivação da forma mesma, Marxse diferencia da consciência teórica mais avançada do seu tempo, que é como se

apresenta a ele a crítica de Feuerbach à religião. Nesse caso, é questão secun

dária saber qual o conteúdo com que a consciência religiosa possa estar ocu

 pada; a única coisa essencial é a forma da própria consciência relig iosa, e essa

é, para Marx, uma forma de manifestação do mundo distorcido. A distorção

se torna manifesta na própria forma; do mesmo modo que a forma do Estado

 político se origina de um mundo em que as relações individuais dos próprios

seres humanos se distorceram. Nos dois casos, a forma é expressão de umadistorção central da qual ela procede para superar essa distorção no seu próprio

terreno:

A relação entre o Estado político e a sociedade burguesa é tão espiritualista quanto

a relação entre o céu e a terra. A antítese entre os dois é a mesma, e o Estado político a

supera da mesma maneira que a religião supera a limitação do mundo profano [...]. A

contradição que se interpõe entre o homem religioso e o hom em político é a mesma que

existe entre [o bourgeois e o citoyen, entre]** o membro da sociedade burguesa e sua pelede leão política. (1/355 [ed. bras. Sobre a questão juda ica, pp. 40-1])

Dessas primeiras formulações da relação entre base, superestrutura e ideo

logia, da relação entre ser e consciência, ainda é possível depreender explici

tamente o que não decorre mais tão diretamente do famoso Prefácio à crítica 

da economia po lítica: que as demais formas devem ser derivadas da estrutura

* Ref. completa da edição brasileira: K. Marx, “Ad Feuerbach (1845)”, em: K. Marx e F. Engels, A ideologia alemã. Trad. R. Enderle, N. Schneider e L. Martorano. São Paulo, Boitempo, 2007, pp. 533-6. (N. do T.)

** Parte da citação omitida pelo autor provavelmente por acidente. (N. do T.)

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S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

da própria base como necessariamente oriundas dessa base. O jovem Marx

formularia isso mais ou menos assim: o ser humano individual não constitui

também um ser genérico em suas relações empíricas, mas chega a distorcer

esse mesmo ser genérico em meio à sua vida individual, razão pela qual inclusive o ser humano comunitário necessariamente aparece de forma distorcida.

O antigo e rigoroso conceito da base refere-se expressamente a esse caráter

distorcido da existência sensível-individual do ser humano, a partir do qual

devem ser explicitadas todas as demais formas dessa distorção.

Mas o que significa distorção da existência sensível-individual do ser hu

mano? As primeiras indicações mais precisas se encontram em Sobre a ques

tão judaica'.

O que na religião judaica se encontra de modo abstrato, o desprezo pela teoria, pela

arte, pela história, pelo homem como fim em si mesmo, constitui a perspectiva cons

ciente e real, a virtude do homem do dinheiro. A própria relação de gênero, a relação

entre homem e mulher etc. torna-se um objeto de comércio! A mulher é negociada. [...]

O dinheiro é o valor  universal de todas as coisas, constituído em função de si mesmo.

Em consequência, ele despojou o mundo inteiro, tanto o mundo humano quanto a natu

reza, de seu valor singular e próprio. O dinheiro é a essência do trabalho e da existência

humanos, a lienada do homem; essa essência estranha a ele o domina e ele a cultua. (1/375[ed. bras. Sobre a questão judaica, p. 58])

A exposição exata dessa ideia é O capital, como ainda veremos. O que Marx

tem em vista aqui, ele caracterizaria mais tarde, no  Rascunho  de O capital, 

como “capital existente para si”, e em O capital como personificação de cate

gorias econômicas. Em Sobre a questão judaica, ao contrário, isso não passa

de um indício, que, como indício,  no entanto, só pode ser decifrado sobre o

 pano de fundo da obra tardia. Por essa razão, queremos aplicar mais uma vezà própria obra de Marx a sua indicação metodológica quanto à elaboração

conceituai de formações sociais mais antigas — que a anatomia do ser huma

no é a chave para a anatomia do macaco, “que os indícios de formas superiores

nas espécies animais inferiores só podem ser compreendidos quando a própria

forma superior já é conhecida. Do mesmo modo, a economia burguesa fornece

a chave da economia antiga etc.” (42/39 [ed. bras. Grundrisse, p. 58]) — e in

terpreta as formulações anteriores a partir da perspectiva da obra tardia.

Sob esse aspecto queremos voltar nossa atenção para o primeiro ensaio deexposição sistemática do “fundamento mundano autoesfacelado e autocontra-

ditório”, da distorção da existência sensível-individual enquanto fundamento

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A CONCEPÇÃO MATERIALISTA DE HISTÓRIA NA OBRA INICIAL DE MARX 

de toda duplicação: para os  Manu scritos económico-filosóficos . A linha de

 pensamento desse escrito, que de modo geral é tida como obscura e difícil,

 pode ser perfeitamente compreendida como formulação transparente se pon

deramos que, naquela época, Marx ainda não havia desenvolvido o aparato

categorial com cujo auxílio a distorção pudesse ser apreendida adequadamente

como distorção; ao mesmo tempo, porém, ele determina que as categorias da

economia nacional burguesa não se prestam para esse empreendimento, visto

que essa ciência de saída já se move no contexto do estranham ento e, por essa

razão, não pode fazer jus à peculiaridade do mundo distorcido.

A econom ia nacional parte do fato da propriedade privada. Ela não nos explica esse

fato. [...]. A econom ia nacional não nos dá esclarecimento algum a respeito da razão da

divisão entre trabalho e capital, entre capital e terra. Quando ela, por exemplo, determina

a relação do salário com o lucro do capital, o que lhe vale como razão última é o inte

resse do capitalista; ou seja, ela supõe o que deve explicitar. Do mesmo modo, a con

corrência entra por toda parte. Ela é explicada a partir de circunstâncias exteriores. A

economia nacional nada nos ensina sobre até que ponto essas circunstâncias exteriores,

aparentemente casuais, são apenas a expressão de um desenvolvimento necessário.

(40/510 [ed. bras.  Manuscritos económico-filosóficos , p. 79 modif.])

Quando nos ocuparmos com a obra posterior, veremos que nessas sentenças

se encontram resumidos os motivos centrais da crítica da economia política.

O modo arbitrário de tratar da concorrência e a aceitação superficial de cate

gorias previamente dadas se apresentam já ao jovem Marx como modo de

 proceder necessário de um a ciência que, em sua essência, como que deixou

de ser capaz de perceber a forma social da distorção enquanto tal. É por isso

que, na fase inicial, Marx não desenvolve a distorção mesma sob a forma de

uma exposição crítica das categorias, mas procura apreendê-la diretamentecomo aquilo que ela é: uma forma distorcida da apropriação da natureza.

 Nos  Manuscritos econômico-filosóficos, Marx compreende, pela primeira

vez, o metabolismo humano com a natureza como uma dialética de sujeito e

objeto no interior da totalidade da natureza, na qual os dois poios — a huma

nidade de um lado, a natureza de outro — são mediados um pelo outro, mas

não se dissolvem nessa mediação.

A natureza é o corpo inorgânico  do ser humano, a saber, a natureza enquanto elamesma não é corpo humano. O ser humano vive da natureza significa: a natureza é seu

corpo, com o qual ele tem de ficar num processo contínuo para não morrer. Que a vida

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S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

física e mental do ser humano está interconec tada com a natureza não tem outro sentido

senão que a natureza está interconectada consigo mesma, pois o ser humano é uma

 parte da natureza. (40/516 [ed. bras.  Manuscritos económico-filosóficos, p. 84 modif.])

A contraposição dos dois momentos e, ao mesmo tempo, a sua simultânea

mediação devem-se ao trabalho humano, mediante o qual essa unidade do ser

humano com a natureza se apresenta numa forma diferente em cada caso. Por

meio do seu trabalho, o ser humano transforma a natureza exterior, confor

mando-a consigo mesmo, num ato que acarreta mudanças no próprio sujeito.

A humanização da natureza por meio da apropriação ativa corresponde uma

mudança do sujeito, que só nesse processo de confrontação com a natureza

chega a desenvolver as suas qualidades humanas. A atividade histórico-mundialdas gerações passadas sedimenta-se, em cada caso, num determinado grau de

desenvolvimento das forças produtivas, de modo que Marx com razão aponta

que “a atividade social e a fruição* social de modo algum existem unicamente  

na forma de uma atividade imediatamente  comunitária” , mas cada atividade já

é pré-formada quanto à forma e ao conteúdo pela totalidade do trabalho da

humanidade histórica. “Não apenas o material da minha atividade — como a

 própria língua na qual o pensador é ativo — me é dado como produto social,

a minha p róp ria   existência é  atividade social” (40/538 [ed. bras.  M anuscritos  

económico-fi losóficos,  p. 107])2. Por conseguinte, o que quer que o indivíduo

faça, sempre já se trata de uma determinada síntese dentro desse gigantesco

 processo, no qual a natureza, por assim dizer, faz a mediação consigo mesma,

mas simultaneamente — e nisso a concepção marxiana se diferencia de todo

materialismo que simplesmente substitui o Espírito Absoluto pela palavra “ma

téria” ou “cosmo” — esse processo não só constitui a mediação da natureza

consigo mesma, mas o devir da natureza para o ser humano, a autoprodução

do ser humano. “Mas, na medida em que, para o ser humano socialista, toda  

a assim denom inada his tória mu ndial nada mais é que o engendramento do ser

humano mediante o trabalho humano, o devir da natureza para o ser humano,

ele tem nela, portanto, a prova explícita, irresistível, do seu nasc imento   por

meio de si mesmo, do seu p rocesso de gênese ' ’ (40/546 [ed. bras.  M a nuscrito s  

económico- f i losóf icos ,  p. 114 modif.]). O fato de Marx fa lar do ser humano

socialista nesse contexto de modo algum é casual. Reflete-se nisso que Marx

compreende até mesmo a sua própria concepção como resultado desse proces-

* Co rreção de Geist  = espírito, para Genuss =  fruição, conforme o texto original de Marx.

(N. doT.)

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 A CONCEPÇ ÃO MATERIALISTA DE HISTÓRIA NA OBRA INICIAL DE MARX 

so, um processo que só descortina a sua própria estrutura num determinado

estágio do desenvolvimento. Pois a apropriação ativa da natureza pelo ser hu

mano se efetua sob forma estranhada, a unidade sempre cambiante de sujeito

e objeto no interior da totalidade da natureza é uma identidade rompida, distorcida, do ser humano com a natureza, que pode ser reconhecida como tal só

em seu ponto de culminação, numa forma não mais superável da distorção.

Somente agora, através da mais extrema das formas do estranhamento, é pos

sível apreender e conhecer o estranhamento enquanto estranhamento, é possí

vel apreender e conhecer que a história até agora foi o processo de constituição

do próprio ser humano, processo que decorreu de modo similar ao natural; esse

ser humano só se constituiu como ser humano sob a forma de um comporta

mento distorcido para com a natureza. O ponto de culminação dessa distorção

é explicitado por Marx nos Manuscritos económico-filosóficos  sob o conceito

do trabalho estranhado e de um correlato que ele expõe como personificação

das condições autonomizadas da produção. Sem se deixar impressionar pela

derivação burguesa da propriedade, na maioria das vezes baseada no modelo

de Locke, sobre cujo caráter peculiar oriundo da aparência da esfera da circu

lação ele, naquela época, ainda não podia ter clareza, Marx tenta captar de

modo imediato a essência do processo capitalista em seu todo. Ele parte de um

“fato atual, próprio da economia nacional”, a saber, do fato de que, no ato de

apropriação da natureza, o ser humano concomítantemente coproduz uma for

ma de reprodução, na qual o sujeito se converte em objeto, o ser humano ativo

que produz essas estruturas é dominado por esse produto gerado por ele próprio

e se submete à logicidade deste. Porém, como captar sucintamente esse pro

cesso, cuja exposição exata alguns anos mais tarde levou a uma volumosa obra,

se a linguagem da economia nacional não se presta para isso? Marx soluciona

esse problema confrontando esse processo com a “propriedade verdadeiramen

te humana”, descrevendo-o como o oposto da relação essencial entre o ser

humano e sua natureza inorgânica, como distorção da relação condicionada

 pela natureza —- independentemente de como ela seja mediada — entre a exis

tência subjetiva e sua continuidade objetiva, compreendendo, portanto, a pró

 pria realidade capita lis ta como duas estruturas que se refletem uma na outra de

modo grotesco.

Esse fato nada mais exprime, senão isto: o objeto que o trabalho produz, o seu pro

duto, se lhe defronta como um ser estranho, como um poder independente do produtor.

O produto do trabalho é o trabalho que se fixou num objeto, fez-se coisa, é a objetivação 

do trabalho. A efetivação do trabalho é a sua objetivação. Essa efetivação do trabalho

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S O B R E A E ST R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

manifesta-se, no estado da economia nacional, como desefetivação  do trabalhador, a

objetivação manifesta-se como  perda do ob jeto e servidão ao ob jeto,  a apropriação

manifesta-se como estranhamento,  como alienação.  (40/511-2 [ed. bras.  Manuscrito s 

econômico-filosóficos,  p. 80 modif.])

Com isso se tem em mente mecanismos bem concretos: Marx tem em vis

ta aqui os seguintes fatos: o trabalhador — que desde sempre já é compreen

dido como trabalhador por excelência, como o ser humano sob a forma de

trabalhador assalariado — de modo algum vai enriquecendo à medida que

cresce a força produtiva do seu trabalho, mas, pelo contrário, o valor da sua

força de trabalho diminui à medida que a produtividade aumenta; a maior di

ferenciação do produto é acompanhada da crescente unilateralidade da atividade; o trabalhador inclusive coproduz o mecanismo da crise e, por essa via,

transforma o próprio trabalho em objeto, do qual ele consegue se “apoderar só

com extremo esforço e com as mais irregulares interrupções”. O mundo, no

qual vive o ser humano e que de fato só pode ser o mundo do próprio ser hu

mano, evidencia-se no plano imediato como o oposto daquilo que é alcançado

no processo da confrontação com a natureza. Sendo parte da natureza, o ser

humano é remetido a ela no ato de sua apropriação e ela se oferece de modo

cada vez mais diversificado. No entanto, quanto mais a natureza se toma acessível ao ser humano através do seu trabalho, tanto mais ela se fecha. É esse

 paradoxo da realidade que Marx tem em mente com o conceito da objetivação,

que é simultaneamente perda do objeto, da apropriação, que é simultaneamente

estranhamento.

Examinemos agora, mais de perto, a objetivação, a produção do traba lhador e, nela,

o estranhamento,  a perda do objeto, do seu produto.

O trabalhador nada pode criar sem a natureza, sem o mundo exterior sensível. Este

é a matéria na qual o seu trabalho se efetiva, na qual seu trabalho é ativo, a partir da

qual e por meio da qual o trabalho produz.

Mas como a natureza oferece os meios cle vida  do trabalho, no sentido de que o

trabalho não pode viver  sem os objetos em que é exercido, assim ela também oferece,

 por outro lado, os meios de vida no sentido mais estrito, isto é, o meio de subsistência

física do próprio trabalhador.

Portanto, quanto mais o trabalhador se apropria  do mundo exterior, da natureza

sensível, por meio do trabalho, tanto mais ele se priva dos meios de vida segundo umduplo sentido: primeiro, no sentido de que o mundo exterior sensível cada vez mais

deixa de ser um objeto pertencente ao seu trabalho, um meio de vida do seu trabalho;

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 A CONCEPÇÃO MATERIALISTA DE HISTÓRIA NA OBRA INICIAL DE MARX 

segundo, no sentido de que cada vez mais ele deixa de ser um meio de vida no sentido

imediato, um meio para a subsistência física do trabalhador.

Segundo esse duplo aspecto, o trabalhador se torna, portanto, um servo do seu ob

 jeto. Primeiro, porque ele recebe um objeto do trabalho, isto é, recebe trabalho-,  e, se

gundo, porque recebe meios de subsistência.  Portanto, para que ele possa existir, em

 primeiro lugar, como trabalhador   e, em segundo lugar, como sujeito físico .  O auge

dessa servidão é que só como trabalhador  ele pode continuar se mantendo como sujei

to físico  e só como sujeito físico  ele pode continuar a ser trabalhador. (40/512-3 [ed. bras.

 Manuscritos econômico-filosóficos, pp. 81-2 modif.])

A conexão natural entre a existência subjetiva e sua continuação objetiva

só é, por assim dizer, ainda levada de arrasto, rebaixada a penduricalho domundo que se tomou independente, estranhado do sujeito ativo e, não obstante,

 produzido por ele mesmo nessa forma do estranhamento.

Mas isso ainda não encerra a questão.

Até aqui examinamos o estranhamento, a exteriorização do trabalhador sob apenas

um dos seus aspectos, qual seja, a sua relação com os produtos do seu trabalho. Porém,

o estranhamento não se mostra somente no resultado, mas também no ato da produção , 

dentro da própr ia atividade produtiva.  Como poderia o trabalhador defrontar-se comoestranho com o produto de sua atividade, se no ato mesmo da produção ele não se es

tranhasse a si mesmo? Pois o produto é somente o resumo da atividade, da produção.

Portanto, se o produto do trabalho é a exteriorização, então a própria produção tem de

ser a exteriorização ativa, a exteriorização da atividade, a atividade da exteriorização.

 No estranhamento do objeto do trabalho, resume-se somente o estranhamento, a exte

riorização na própria atividade do trabalho. (40/514 [ed. bras.  Manuscritos econômico- 

-filosóficos, p. 82 modif.])

A distorção também se manifesta no fato de que a atividade pela qual o ser

humano chega a tornar-se ser humano, o trabalho, pelo qual ele se diferencia

do animal, evidencia-se justam ente como o meio para constantemente voltar a

anular essa diferença. O ser humano se relaciona com a sua mais essencial

manifestação de vida como se fosse algo exterior a ele; o próprio trabalho, a

sua essência propriamente dita, não é, para ele, a satisfação de uma necessida

de, mas apenas um meio para satisfazer necessidades distintas desse trabalho.

O caráter exterior e estranho do trabalho “evidencia-se de forma pura no fato”de que se foge do trabalho como da peste no momento em que não existe coer

ção física.

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SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

O trabalhador só se sente, por conseguinte, junto a si quando está fora do trabalho

e fora de si quando está no trabalho. Ele está em casa quando não trabalha e quando

trabalha não está em casa. [...]. Chega-se, por conseguinte, ao resultado de que o ser

humano (o trabalhador) só se sente ainda livre e ativo em suas funções animais, comer, beber e procriar, quando muito ainda habitação, adornos etc., e em suas funções huma

nas só se sente ainda como animal. O animal se torna humano e o humano, animal. É

verdade que comer, beber e procriar etc. também são funções genuinamente humanas.

Porém, na abstração que as separa da esfera restante da atividade humana e faz delas

atividades últimas e exclusivas, são funções animais. (40/514-5 [ed. bras.  Manuscritos económico-filosóficos,  p. 83 modif.])

Portanto, não só no processamento da natureza esta ainda resiste ao ser

humano, mas também o trabalho pelo qual é produzida essa grotesca distorçãoé contrário em si mesmo: ao produzir a si mesmo pelo trabalho, o ser humano

se relaciona com ele como uma “atividade voltada contra ele mesmo, indepen

dente dele, não pertencente a ele. É o estranhamento de si,  tal qual acima o

estranhamento da coisa” (40/515 [ed. bras. Manuscritos económico-filosóficos, 

 p. 83 modif.]).

Essa descrição do nexo natural distorcido entre a existência subjetiva ativa

e a continuação objetiva é complementada pela derivação da propriedade

 privada.

Partimos de um fato da economia nacional, do estranhamento do trabalhador e de

sua produção. Enunciamos o conceito desse fato: o trabalho estranhado, exteriorizado. Analisamos esse conceito; analisamos, portanto, apenas um fato da economia nacional.

Continuem os agora a observar como tem de se enunciar e apresentar, na realidade, esse

conceito do trabalho estranhado, exteriorizado. (40/518 [ed. bras.  Manuscritos económico-filosóficos,  p. 86 modif.])

As duas determinações remetem para um complemento dentro do contexto

global do mundo distorcido, a saber, para uma forma do complemento que se

apresenta quase como um correlato espelhado do estranhamento do produto e

do estranhamento de si. “Se o produto do trabalho me é estranho, se ele se

defronta comigo como poder estranho, a quem pertence então? Se a minha

 própria atividade não me pertence, sendo uma atividade estranha, forçada, a

quem ela pertence então? A outro  ser que não eu. Quem é esse ser?” (40/518

[ed. bras. Manuscritos económico-filosóficos, p. 86 modif.]). Serão os deuses?, pergunta Marx, re ferindo-se a um motivo que se impôs a ele na análise da

exteriorização, a saber, a religião como paralelo da estrutura da apropriação

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 A C O N C E P Ç Ã O M A T E R I A L I S T A D E H I S T O R I A NA O B R A I N I C I A L D E M A R X 

distorcida da natureza. “É do mesmo modo na religião. Quanto mais o ser hu

mano transfere para Deus, tanto menos ele retém em si mesmo. O trabalhador

deposita a sua vida no objeto, mas agora ela não pertence mais a ele, e sim ao

objeto. Portanto, quanto maior essa atividade, tanto mais irrelevante o trabalhador" (40/512 [ed. bras.  Manuscritos económico-filosóficos,  p. 81 modif.]).

Porém, a pergunta é de cunho apenas retórico, pois os deuses jamais poderão

entrar em cena como patrões, assim como tampouco a natureza o pode.

E que contradição seria também se, quanto mais o ser humano subjugasse a nature

za pelo seu trabalho, quanto mais os prodígios dos deuses se tornassem supérfluos

mediante os prodígios da indústria, [tanto mais] o ser humano tivesse de renunciar à

alegria e à fruição da produção por amor a esses poderes. (40/518 [ed. bras.  Manuscritos  económico-filosóficos,  p. 86 modif.])

A resposta correta tem o seguinte teor:

O ser estranho   ao qual pertence o trabalho e o produto do trabalho, a cujo serviço

está o trabalho e para cuja fruição se destina o produto do trabalho, só pode ser o próprio

ser humano. Se o produto do trabalho não pertence ao trabalhador, se um poder estranho

se defronta com ele, então isso só é possível porque o produto do trabalho pertence a outro ser humano fora o trabalhador. Se a sua atividade lhe é martírio, então ela tem de

ser fruiç ão   para outro e alegria de viver para outro. Não os deuses, nem a natureza,

apenas o ser humano m esmo pode ser esse poder estranho sobre o ser humano. [...]. Se

ele se relaciona, portanto, com o produto do seu trabalho, com o seu trabalho objetivado,

como se fosse um objeto estranho,  hostil, poderoso, independente dele, então se rela

ciona com ele de forma tal que outro ser humano estranho a ele, hostil, poderoso e

independente dele é o senhor desse objeto. Se ele se relaciona com a sua própria ati

vidade como uma atividade não livre, ele se relaciona com ela como a atividade a serviço de, sob o domínio, a coerção e o jugo de outro ser humano. (40/518-9 [ed. bras.  M a

nuscritos económico-filosóficos, pp. 86-7 modif.])

A exemplo do procedimento adotado na análise da exteriorização do pro

duto e do estranhamento de si, nos  Manuscritos económico-filosóficos, Marx

também quer expor o lado do “senhor do trabalho”, e isso precisamente no

sentido de um complemento espelhado invertido no interior do contexto global

da forma distorcida da apropriação da natureza:

Se vimos que com respeito ao trabalhador, que se apropria da natureza através do

trabalho, a apropriação aparece como estranhamento, a atividade para si aparece como

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SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

atividade para outro e como atividade de outro, a vitalidade como sacrifício da vida, a

 produção do objeto como perda do obje to para um pod er estranho, para um ser humano

estranho, passemos a analisar agora a relação desse ser humano estranho ao trabalho e

ao trabalhador com o trabalhador, com o trabalho e o seu objeto. Em primeiro lugar, éde notar que tudo que aparece no trabalhador como atividade da exteriorização, do 

estranhamento, aparece no não trabalhador como estado da exteriorização, do estra

nhamento. Em segundo lugar, que o comportamento efetivo, prático do trabalhador na

 produção e com o produto (enquanto estado mental) aparece no não traba lhador que se

defronta com ele como comportamento teórico. Terceiro: O não trabalhador faz contra

o trabalhador tudo o que o trabalhador faz contra si mesmo, mas não faz contra si mes

mo o que faz contra o trabalhador. Examinemos mais de perto essas três relações. (40/522

[ed. bras. Manuscritos económico-filosóficos,

 p. 90 modif.])

Lamentavelmente a seção sobre o trabalho estranhado termina com essa

frase, de modo que o intérprete depende de extrapolações. Contudo, não fare

mos aqui a tentativa de continuar as ideias de Marx, principalmente porque do

que foi explicitado até agora é possível deduzir claramente a estrutura da for

mulação: de qualquer modo, o conceito da propriedade privada já se refere à

totalidade da forma distorcida da apropriação da natureza, o trabalho estranha

do por um lado e, por outro, a separação a ele associada entre a existência

subjetiva e a sua continuação objetiva, a separação entre o produtor e os meios

de produção e a sua personificação, o fato, portanto, de que as condições de

 produção estranhadas do trabalhador, os seus meios de vida, como Marx diz

nos Manuscritos económico-filosóficos, ganham existência subjetiva na pessoa

do senhor do trabalho e aparecem como poder pessoal do proprietário privado.

Marx resume essa constelação com poucas palavras:

Examinamos um dos aspectos, o trabalho exteriorizado  no que se refere ao próprio

trabalhador,  ou seja, a relação do trabalho exteriorizado consigo mesmo. Como pro

duto, como resultado necessário dessa relação, encontramos a relação de propriedade 

do não trabalhador  com o trabalhador e com o trabalho. A propriedade privada, como

a expressão material, resumida, do trabalho exteriorizado abarca as duas relações, a 

relação do trabalhador com o trabalho e com o produto do seu trabalho e com o não  

trabalhador  e a relação do não trabalhador com o trabalhador e com o produto do seu 

trabalho.  (40/522 [ed. bras. Manuscritos económico-filosóficos, pp. 89-90])

Esse conceito de propriedade privada é significativo em muitos sentidos.Como primeira exposição do “fundamento mundano autocontraditório”, sua

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 A C O N C E P Ç Ã O M A T E R I A L I S T A D E H I S T Ó R I A N A O B R A I N I C I A L D E M A R X 

intenção é resumir da forma mais abstrata possível como que a essência do

capitalismo enquanto forma insuperável de apropriação distorcida da natureza.

Assim como encontramos, por análise, a partir do conceito do trabalho estranhado, exteriorizado, o conceito de propriedade privada, assim podem, com a ajuda desses dois

fatores, ser desenvolvidas todas as categorías   nacional-económicas, e haveremos de

reencontrar em cada categoria, como, por exemplo, nas do regateio, da concorrência, do

capital, do dinheiro, apenas uma expressão determinada e desenvolvida desses primei

ros fundamentos. (40/521 [ed. bras.  Manuscrito s económico-filosóficos, p. 89])

A primeira formulação mais precisa da existência individual sensível dis

torcida do ser humano em Sobre a questão judaica mostra-a* já agora comourna forma entre outras dentro do processo de reprodução global da sociedade.

O “valor de todas as coisas constituido para si”, o dinheiro, que priva o mundo

inteiro, tanto o mundo humano quanto a natureza, do seu valor peculiar; o “ente

estranho que o ser humano cultua” é a circunscrição incipiente do movimento

de descomedimento próprio da má infinitude, a caça permanente da riqueza na

forma imediatamente universal que aponta em si mesma para seu outro, para

o trabalho como criador da riqueza abstrata. Como veremos na análise da obra

tardia, trata-se ai da forma mais abstrata do capital, a “fórmula universal” , queassume um valor central na exposição dialética das categorias.

Simultaneamente se resume nesse conceito a essência de toda a historia

humana pregressa. “Somente no derradeiro ponto de culminância do desenvol

vimento da propriedade privada vem à tona novamente este seu mistério”

(40/520 [ed. bras.  Manuscritos económico-filosóficos, p. 88]). Somente depois

de passar pela forma mais extrema da ruptura de identidade entre ser humano

e natureza é que a historia se descortina como historia do desenvolvimento

dessa estrutura básica. Assim sendo, a propriedade fundiária feudal passa aser interpretada como urna forma da distorção que ainda precisa aparecer como 

tal — como relação de capital; existente, por assim dizer, apenas em si, ela só

 pode ser reconhecida através daquela como o em-si da forma mais extrema da

apropriação distorcida da natureza. Ela já é

[...] na sua essência, a térra vendida ao desbarato, a terra estranhada ao ser humano e,

 po r isso, a terra fazendo frente a ele na figura de alguns poucos grandes senhores. Já na

* Modificação no texto original de "sich” (que se refere a “formulação mais precisa”) para "sie”(que se refere a “existência individual”). (N. do T.)

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SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

 posse fundiária feuda l situa-se o domínio da terra como um po der es tranho sobre as

 pessoas. O servo é o acidente da terra. De igual modo, o morgado, o prim ogênito , per

tence a terra. Ela o herda. Em geral, o domínio da propriedade privada começa com a

 posse fundiár ia; ela é a sua base. (40/505 [ed. bras.  Manuscritos económico-filosóficos,  p. 74 modif.])

A distorção é a mesma que ocorre no capitalismo; neste também as condi

ções da produção reinam sobre os produtores, ao trabalho estranhado de um

lado corresponde a personificação das condições estranhadas de produção do

outro, que ganham existência subjetiva como poder “de alguns poucos grandes

senhores” . Só que essa estrutura ainda não aparece como tal. Muito antes,

[...] pelo menos o senhor aparece como rei da posse fundiária. [...]. De igual modo, os

cultivadores da posse fundiária não têm com ele a relação de diaristas, mas sim, em

 parte, eles próprios são sua propriedade, como os servos, e em parte estão numa relação

de respeito, de submissão e de obrigação para com ele. Sua posição com relação a eles

é, por isso, imediatamente política e possui igualmente um aspecto cômodo. (40/506 [ed.

 bras. Manuscritos económico-filosóficos,  pp. 74-5 modif.])

Tendemos a dizer — com Hegel —, no entanto, que a essência precisamanifestar-se.

E necessário que essa aparência seja suprassumida, que a propriedade fundiária, a

raiz da propriedade privada, seja completamente arrastada para dentro do movimento

da propriedade privada e se torne mercadoria; que a dominação do proprietário apareça

como a pura dominação da propriedade privada, do capital, despojado de toda a colora

ção política; que a relação entre proprietário e trabalhador se reduza à relação nacional-

-econômica entre explorador e explorado; que toda relação pessoal do proprietário com

a sua propriedade termine, e esta se torne apenas riqueza material coisal·, que no lugar

do casamento de honra com a terra se instale o casamento por interesse e a terra, tal

como o ser humano, desça ao nível de valor de regateio. É necessário que aquilo que é

a raiz da propriedade fundiária, o sórdido interesse pessoal, apareça também na sua

cínica figura. (40/506-7 [ed. bras.  Manuscritos económico-filosóficos,  p. 75 modif.])

A forma pela qual se consuma esse desenvolvimento permanece obscura

nos Manuscritos económico-filosóficos. Assegurado está apenas que o processo

da história universal, o desenvolvimento e a formação plena do gênero humano,

sob a forma da apropriação estranhada da natureza, são impelidos para o ponto

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 A CON CEP ÇÃO MATERIALISTA DE HISTÓRIA NA OBRA INICIAL DE MARX 

de culminação da polarização insuperável entre trabalho vivo e trabalho obje

tivado — para o trabalho “enquanto exclusão da propriedade e [para] o capital,

o trabalho objetivo enquanto exclusão do trabalho” (40/533 [ed. bras.  Manus

critos económico-filosóficos, p. 103]). Não só a hum anidade precisa ter passa

do por essa forma extrema da unidade d istorcida do ser humano com a natureza

 para experimentar e suprimir o estranhamento enquanto estranhamento, mas

também o desenvolvimento m esmo está implantado no trabalho estranhado.

Exatamente esta última ideia pode ser inferida em especial dos “Excertos do

livro Élemens d’économiepolitique, de James Mill” (40/445 e ss.)*. Contraria

mente ao procedimento adotado nos  Manuscritos económ ico-filosóficos,  em

que ele tenta explicitar o “mistério da propriedade privada” de modo imediato

no capitalismo enquanto forma derradeira da polarização, aqui ele parte da

situação simples da troca e tenta compreendê-la como o embrião de todo o

 processo de distorção. Nesse ponto, é significativo que Marx, ainda antes de

ter acolhido plenamente a teoria do valor do trabalho e formulado uma teoria

 própria do mais-valor, desenvolve os motivos centrais da pos terior crítica da

economia política, mediante os quais ela não só escapa de antemão à classifi

cação costumeira em teoria da utilidade marginal e teoria do valor do trabalho,

mas ainda permite criticar essa subdivisão mesma enquanto procedimento res

trito ao horizonte da especialidade econômica. Porque quando dois objetos de

uso são trocados, o produto sensível-concreto do trabalho se distorce necessa

riamente em representante do outro produto, na medida em que esse mesmo

 produto, por sua vez, é representante do produto que está diante dele, tornando-

-se, desse modo, ambos representantes de um terceiro diferente deles.

O seu lugar foi tomado por uma propriedade privada de outra natureza, assim como

ela própria ocupa o lugar de uma propriedade privada de outra natureza. De ambos os

lados aparece, portanto, a propriedade privada como representante de uma propriedade

 privada de outra natureza, como o idêntico de outro produto da natureza, e os dois lados

se relacionam um com o outro de tal maneira que cada um deles representa a existência

do seu outro e ambos se relacionam reciprocamente um com o outro como substitutos 

de si mesmos e do seu outro. A existência da propriedade privada como tal converteu-se,

 por conseguinte, em reposição, em equivalente. Em vez de ser unidade imediata consigo

mesma, ela só é mais referência a outra coisa. Sendo um equivalente, a sua existência

* Essa parte, abrangendo as folhas XXII a XXXIII dos  Manuscritos económico-filosóficos originais, foi omitida na edição brasileira. Cf. p. 149, em que ocorre o salto da folha XXI paraa folha XXXIV. (N. do T.)

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SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

não é mais aquela que lhe é peculiar. Consequentemente ela se converteu em valor  e, de

modo imediato, em valor de troca. A sua existência enquanto valor  é uma existência

distinta da sua existência imediata, exterior à sua essência específica, uma determi

nação exteriorizada de si mesma; uma existência apenas relativa da sua essência específica. (40/453)

Ainda antes de poder se expressar com mais precisão sobre a substância do

valor e a medida do seu tamanho, Marx vê o valor como algo exterior à coisa

concreta de uso; a esse valor os produtos concreto-sensíveis do trabalho ne

cessariamente são reduzidos durante o intercâmbio, e, por conseguinte, vê nele

uma indiferença essencial ao valor de uso, sem a qual o processo de troca não

 pode ser efetuado. É preciso que essa ex istência essencial da “propriedade privada” no processo de troca enquanto equivalente se tome autônoma e ad

quira existência própria — enquanto dinheiro, enquanto valor existente para

si. “O equivalente adquire sua existência como equivalente em dinheiro”

(40/455). Contudo, no momento em que esse “mediador do processo de troca”

adquire existência própria, ele se distorce num primeiro:

Está claro que esse mediador  passa a ser o Deus real, pois o mediador é o poder real 

sobre aquilo com que ele me intermedeia. O seu culto se transforma em fim em si. Se parados desse mediador, os objetos perderam o seu valor. Portanto, eles só têm valor na

medida em que o representam,  ao passo que originalmente parecia que ele só tinha

valor na medida em que ele os representasse. Essa inversão da relação original é neces

sária. (40/446)

Visto que dali por diante cada objeto é só mais representante do dinheiro,

não passando de “corpo do espírito dinheiro”, também a produção tem de se

tornar autônoma em relação ao consumo, já que o produto de antemão já é produzido como “invólucro sensível” do valor. “A produção se tornou fo nte de 

renda,  trabalho rentável. Portanto, ao passo que na primeira relação a neces

sidade constitui a medida da produção, na segunda relação a produção ou,

melhor, a posse do produto constitui a medida com que as necessidades podem

ser satisfeitas” (40/459). Uma vez posto em marcha, esse desenvolvimento tem

de prosseguir e alcança o seu ponto alto no capitalismo:

Pressuposta a relação da troca, o trabalho se converte em trabalho rentável imediato. Essa relação do trabalho estranhado só alcança o seu auge quando (1) de um lado, o

trabalho rentável, o produto do trabalhador, não tem relação imediata com a sua neces-

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 A CON CEPÇÃO MATERIALISTA DE HISTÓRIA NA OBRA INICIAL DE MARX 

sidade e com a destinação  do seu trabalho, mas é determinado nos dois aspectos por

uma combinação social estranha ao trabalhador; quando (2) aquele que compra o pro

duto não produz pessoalmente, mas troca aquilo que é produzido por outro. (40/454)

Contudo, nesse excerto, aparece só indicativamente o que, na obra tardia,

foi explicitado com exatidão — sob a forma da exposição dialética das catego

rias: a saber, que o capitalismo já está implantado na simples situação da troca.

Da troca de mercadorias se origina o dinheiro e a partir do dinheiro acaba se

desenvolvendo o capitalismo. A grotesca distorção, cuja forma definitiva Marx

tenta expressar em seu conceito mais abstrato nos Manuscritos econômico-fi- 

losóficos,  já está contida na troca simples de produtos, e o desenvolvimento

ulterior apenas consiste ainda num a potenciação progressiva dessa distorção.Com outras palavras: as categorias da economia política são a expressão mais

abstrata do processo de constituição do gênero humano, na medida em que esse

 processo é produzido, em sua logicidade imanente, pelos próprios seres huma

nos, mas estes, ao mesmo tempo, estão sujeitos a ele e, mesmo estando ainda

numa forma similar à da natureza, são como que “extraídos” da natureza. O

ser humano é produto de si mesmo, mas ele se produz sob a forma de um man

to de objetividade social. Em consequência disso, a origem desse manto de

objetividade social deve ser derivada da situação simples de troca; já nela deveficar evidenciado como a subjetividade constitui a objetividade ou, com as

 palavras de Marx: como o nosso produto se levanta contra nós sobre as patas

traseiras, como nos tornamos propriedade de nossa própr ia produção.

Aos teus olhos o teu produto é um instrumento, um meio para apropriar-se do meu

 produto e, em consequência, para satisfazer a tua necessidade. Porém, aos meus olhos

ele é o fim  da nossa troca. Para mim, tu és meio e instrumento para a produção desse

objeto que é um fim para mim mais do que, inversamente, meu objeto nessa relação.Porém, (1) cada um de nós realmente fa z  aquilo que o outro considera dele. Tu realmen

te também te tornaste o meio, o instrumento, o produtor do teu  próprio objeto, visando

apropriar-te do meu; (2) o teu próprio objeto é, para ti, apenas o invólucro sensível,  a

 fo rm a oculta   do meu objeto; porque a sua produção significa,  quer expressar   isto: a

aquisição do meu objeto. Portanto, de fato te tornaste, para ti mesmo, o meio, o instru

mento do teu objeto, cuja serva é a tua cobiça e realizaste trabalho de servo para que o

objeto da tua cobiça jamais torne a demonstrar alguma graça. Ora, o fato de essa servi

dão recíproca ao objeto aparecer entre nós, no início do desenvolvimento, realmentecomo a relação da dominação com a escravidão, isso nada mais é que a expressão crua 

e, fra nc a  da nossa relação essencial.  (40/462)

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SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

Analogamente à interpretação nos Manuscritos económico-filosóficos, nos

quais ele determina a feudalidade como propriedade privada que ainda precisa

se mostrar “em sua forma cínica” e permite identificar somente a sua real es

sência através dessa forma de manifestação, Marx também procede com referência à célula embrionária de toda distorção, ao simples ato de troca: só é

 po ssível reconhecer que o capita lism o está implantado na simples troca de

 produtos depois que o capitalismo se desenvolveu. Isso se depreende clara

mente da última frase da citação acima.

 Não continuarem os a nos ocupar aqui do modo como Marx in terpre ta a

relação mútua entre essas duas estruturas, entre o feudalismo, de um lado, como

a dominação, ainda não manifesta em sua essência, das condições de produção

sobre o produtor, e, de outro, a conexão entre intercâmbio de mercadorias ecapitalismo. É preciso registrar, antes de tudo, que Marx compreende toda a

história como a marcha do desenvolvimento que decorre de forma similar à

natural, como processo de constituição do gênero humano que labora para

retirar-se da natureza sob a forma de uma unidade distorcida do ser humano

com a natureza.

Como, perguntamos agora, o ser humano chegou ao ponto de exteriorizar, de estra

nhar o seu trabalho? Como esse estranhamento está fundado na essência do desenvolvimento humano? Já obtivemos muito para a solução do problema quando transmutamos

a questão sobre a origem  da  pro pried ade privada   na questão sobre a relação entre

trabalho exteriorizado e a marcha do desenvolvimento da humanidade. Pois, quando se

fala em propriedade privada,  acredita-se estar tratando de uma coisa fora do ser huma

no. Quando se fala do trabalho, está-se tratando, imediatamente, do próprio ser humano.

Essa nova disposição da questão já é inclusive a sua solução. (40/521 [ed. bras.  Manus

critos económico-filosóficos, p. 89 modif.])

Essa nova formulação da questão inclui explicitamente na reflexão que esse

 processo histórico-m undial atingiu um ponto para além do qual não é mais

 possível um desenvolvim ento nos mesmos term os da história decorrida. O

comportamento estranhado do ser humano para com a natureza assumiu uma

forma que, em si mesma, impele para além da forma do estranhamento. Só

agora, nesse “derradeiro ponto de culminação do desenvolvimento da proprie

dade privada”, a humanidade se emancipa da forma da identidade distorcida

com a natureza, ao não mais substituir uma forma antiquada da propriedade

 privada por uma nova forma da propriedade privada, um a forma envelhecida

da identidade rota por uma forma nova, ainda mais distorcida, da unidade do

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 A CONCE PÇÃO MATERIALISTA DE HISTORIA NA OBRA INICIAL DE MARX 

ser humano com a natureza, mas ao abolir a propriedade privada, a distorção

 pura e simples. Sem dúvida pode-se presumir que o próprio Marx ainda com

 preenda esse processo de emancipação da forma da distorção e, desse modo,

também da forma de todos os limiares de emancipação havidos até aquelemomento, segundo o modelo de processos de emancipação passados no interior

da historia da apropriação distorcida da natureza. Essencial, contudo, é que,

de acordo com a autocompreensão marxiana, a visão da estrutura da historia

global só se descortina nesse ponto de culminação, no qual, passando pela

forma de um comportamento não estranhado — num primeiro momento, ape

nas mentalmente antecipado — do ser humano para com a natureza, a história

da humanidade se revela como processo de desenvolvimento do gênero hum a

no sob a forma do estranhamento.

Para suprassumir a ideia da propriedade privada basta, de todo, o comunismo pen

sado. Para suprassumir a propriedade privada real é preciso um a ação comunista real. 

A história a trará e aquele movimento que, em pensamento, já sabemos ser um movi

mento que suprassume a si mesmo passará, na realidade, por um processo muito áspero

e extenso. Temos de considerar, porém, como um progresso real que, desde o princípio,

adquirimos uma consciência tanto da limitação quanto da finalidade do movimento

histórico, e uma consciência que as sobrepuja. (40/553 [ed. bras.  Manuscritos económico-filosóficos,  pp. 145-6 modif.])

Marx compreende a sua própria concepção da propriedade privada como

expressão teórica do ponto de interseção de duas épocas mundiais que só po

dem ser captadas em sua determinidade depois de cruzarem o seu próprio

oposto. Isso se evidencia nesse conceito mesmo. Constatamos anteriormente

que, para desenvolver o conceito da propriedade privada, Marx descreve a

realidade capitalista como duas estruturas que se refletem uma na outra demaneira grotesca. O conceito da propriedade privada, que abrange a relação

de complementação, por assim dizer, espelhada entre trabalho estranhado e

 personificação das condições estranhadas de produção no interior do mundo

distorcido, não pode ser pensado — enquanto conceito da distorção pura e

simples — sem o seu próprio oposto, o não distorcido, a relação essencial do

ser humano com a sua natureza inorgânica, com a “propriedade verdadeira

mente humana”.

E aqui que, peia primeira vez, a sua existência natural se tornou, para ele, existência

humana e a natureza se tomou, para ele, ser humano. Portanto, a sociedade  [comunista

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S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

(H. R.)] é a unidade essencial consumada do ser humano com a natureza, [...] o natura

lismo realizado do ser humano e o humanismo realizado da natureza. (40/538 [ed. bras.

 Manuscritos económico-filosóficos , p. 107 modif.])

 Na própria formulação do conceito , reflete-se que a velha sociedade está

grávida da nova, como dirá Marx mais tarde. Sem a antecipação em pensamento

“da dissolução verdadeira do conflito entre o ser humano e a natureza e entre

ser humano e ser humano” não é possível apreender adequadamente o tempo

 presente, ainda que não seja possível pin tar em termos positivos um quadro

dessa identidade não estranhada e conscientemente formada — a ser produ

zida — do ser humano com a natureza. Isso não deve ser interpretado como

um efeito da proibição veterotestamentária de imagens no judeu Marx, poisisso contradiria a concepção global. Quando os indivíduos chegam a conquis

tar o seu direito e não são mais subsumidos sob um abstrato-universal ainda

 produzido por eles próprios nessa forma, torna-se impossível fazer enunciados

genéricos. Com a abolição da objetividade social, com a negação abstrata da

individualidade real, desaparece também o objeto de toda e qualquer teoria.

Essa verdadeira identidade do ser humano com a natureza na futura socie

dade, que está ciente de ser o “enigma resolvido da história”, é considerada

 por Marx sob dois aspectos, na medida em que é encarada como sociedadeantecipada da qual a presente sociedade está grávida e na medida em que só

 pode ser apreendida de modo adequado justamen te como sociedade em estado

de gravidez. Porque, sendo o conceito da propriedade privada a representação

mais abstrata possível do “autoesfacelamento do fundamento mundano”, pre

tende-se que ele nos franqueie ao mesmo tempo o acesso à dissolução da du

 plicação do ser humano em bourgeois e citoyen, da duplicação do mundo em

religioso e secular. Se as duas determinações — exteriorização do objeto e

estranhamento de si ou, então, o seu correlato, ou seja, o conceito da propriedade privada — se referem à relação distorcida do ser humano com a natureza,

os aspectos subsequentes da distorção, derivados dessas duas determinações,

referem-se às “superestruturas idealistas”, como ele diz em A ideologia alemã ,

ou seja, à superestrutura. Anteriormente já destacamos que Marx compreende

o ser humano como produto de seu próprio trabalho, mediante o qual a natu

reza se decompõe no interior de si mesma numa existência subjetiva e na

continuação objetiva desta, numa constelação “sujeito-objeto” no interior da

totalidade da natureza, que em cada caso concreto se apresenta numa formadiferente. Porque o trabalho sempre é trabalho determinado que se realiza no

horizonte de um estado do domínio da natureza condicionado pela atividade

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/1 C O N C E P Ç Ã O M A T E R I A L I S T A D E H I S T Ó R I A N A O B R A IN I C I A L D E M A R X  

de muitas gerações, mas que, por sua vez, torna a modificar esse horizonte no

ato mesmo de sua apropriação, transmitindo-o à próxima geração ao estilo de

um apriori transcendental. Desse modo, as formas de apropriação da natureza

se tornam cada vez mais diversificadas, e, por fim, elas se manifestam tambémna forma da diversidade em que o ser humano torna até mesmo o específico da

existência humana, o trabalho, a atividade vital que o “define” como ser huma

no, em objeto da sua vontade e, então, enquanto ser humano, ela é justamente

isto, podendo, enquanto sujeito abrangente, comportar-se livremente para con

sigo mesmo, para com a sua própria atividade vital. É a isso que se refere o

conceito do ser genérico nos  Manuscritos económico-filosóficos, no qual não

é difícil identificar a herança hegeliana, o conceito enfático do espírito.

O animal é imediatamente uno com a sua atividade vital. Não se distingue dela. É

ela. O ser humano faz da sua atividade vital mesma um objeto da sua vontade e da sua

consciência. Ele tem atividade vital consciente. Esta não é uma determinidade com a

qual ele conflui imediatamente. A atividade vital consciente distingue o ser humano

imediatamente da atividade vital animal. Justamente por isso e só por isso ele é um ser

genérico. Ou ele só é um ser consciente, isto é, a sua própria vida lhe é objeto, prec isa

mente porque é um ser genérico. Eis por que a sua atividade é atividade livre. (40/516

[ed. bras. Manuscrito s económico-filosóficos , p. 84 modif.])

Ao mesmo tempo, esse conceito central é, para Marx, a verdade da irracio

nalidade existente. No capitalismo desenvolvido, o ser humano genérico en

tendido dessa maneira aparece sob a forma da distorção completa, visto que o

ser humano — sob a forma do trabalhador “livre” — de modo algum possui

uma relação livre com a sua própria atividade vital; pelo contrário, quando

imposta de fora, o seu próprio ser genérico se transforma meramente em meio

de conservação da sua existência individual-abstrata, da sua existência física.

 Na medida em que o trabalho estranhado 1) torna o ser humano estranho à natureza,

2) e torna-o estranho a si mesmo, de sua próp ria função ativa, de sua atividade vital, ela

estranha do ser humano o gênero', faz-lhe da vida genérica apenas um meio para a vida

individual. [...] O trabalho estranhado inverte a relação a tal ponto que o ser humano,

 prec isam ente porque é um ser consciente, faz da sua atividade vital, da sua essência, 

apenas um meio para sua existência. (40/516 [ed. bras.  Manuscritos económico-filosófi

cos, pp. 84-5 modif.])

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SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

Assim como o estranhamento de si se evidencia como distorção do ser ge

nérico em meio de conservação da existência física, assim também a “desefe-

tivação” do trabalhador, a privação total de seus meios de vida, evidencia-se

como perda da objetividade genérica. Porque a sua atividade vital, o trabalho,mediante o qual o ser humano produz a si próprio como ser universal que se

relaciona de maneiras cada vez mais diversificadas com a natureza e tem ciên

cia até mesmo dessa sua diversidade, dessa sua universalidade, e faz dela o

objeto da sua vontade, essa sua atividade vital modifica, ao mesmo tempo, a

natureza. O que do lado do sujeito aparece como desenvolvimento rumo à uni

versalidade aparece do lado da “continuação objetiva”, do lado da natureza

inorgânica do ser humano, como modificação da natureza, como geração prá

tica de um mundo material. Esse seu mundo próprio, gerado por ele mesmo, aobjetivação do gênero, escapa ao ser humano no “estado económico-nacional”,

que se apresenta assim como o estado da objetividade genérica indisponível,

 perdida.

Por isso, é precisamente na elaboração do mundo objetivo que o ser humano se

confirma, em primeiro lugar e efetivamente, como ser genérico. Essa produção é a sua

vida genérica operativa. Através dela a natureza aparece como a sua obra e a sua reali

dade. O objeto do trabalho é, portanto, a objetivação da vida genérica dos seres humanos·. na medida em que o ser humano se duplica não só na consciência intelectualmente,

mas também operativa, efetivamente, contemplando-se, portanto, num mundo criado

 por ele. Consequentemente, quando arranca do ser humano o objeto da sua produção, o

trabalho estranhado arranca dele a sua vida genérica, a sua efetiva objetividade genéri

ca. (40/517 [ed. bras.  Manuscritos económico-filosóficos , p. 85 modif.])

A análise do estranhamento de si e do estranhamento do objeto sob a pers

 pectiva do ser genérico humano é complementada por Marx com a referênciaà forma estranhada da relação dos seres humanos entre si:

Uma consequência imediata de o ser humano ser estranhado do produto do seu

trabalho, de sua atividade vital, do seu ser genérico, é o fato de o ser humano estranhar- 

s e  do próprio ser humano. Quando o ser humano está frente a frente consigo mesmo,

quem está diante dele é o outro ser humano. O que vale para a relação do ser humano

com o seu trabalho, com o produto do seu trabalho e consigo mesmo, isso vale também

 para a relação do ser humano com o outro ser humano, assim como com o trabalho ecom o objeto do trabalho do outro ser humano. (40/517-8 [ed. bras.  Manuscritos econô- 

mico-filosóficos, pp. 85-6 modif.])

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A C O N C E P Ç Ã O M A T E R I A L I S T A D E H I S T Ó R I A N A O B R A I N IC I A L D E M A R X  

A isso Marx contrapõe a “verdadeira resolução do conflito entre existência

e essência, entre objetivação e autoafirmação, entre liberdade e necessidade,

entre indivíduo e gênero" [ed. bras. Manuscritos económico-filosóficos, p. 105]:

Posto que tivéssemos produzido como seres humanos: com nossa produção, cada

um de nós teria afirmado duplamente a si próprio e ao outro. (1) Com a minha produção  

eu teria objetivado a minha individualidade, a peculiaridade  dela e consequentemente

teria desfrutado de uma manifestação individual de vida durante a atividade, tanto quan

to teria tido, na contemplação do objeto, a alegria individual de saber que a minha

 personalidade é uma força objetiva, contemplávelpelos sentidos e, por essa razão, aci

ma de qualquer dúvida.  (2) Na fruição ou no uso do meu produto por ti, eu teria de 

imediato o prazer tanto da consciência de ter satisfeito, com o meu trabalho, uma carência humana, quanto de ter objetivado a essência humana e, em consequência, providen

ciado um objeto correspondente à carência de outro ser humano', (3) de ter sido para ti

o mediador  entre ti e o gênero, ou seja, de ser conhecido e sentido por ti mesmo como

complemento do teu próprio ser e como parte necessária de ti mesmo, sabendo-me,

 portan to , confirmado tanto em teu pensam ento quanto no teu amor; (4) de ter criado

com a minha manifestação individual de vida, no plano imediato, a tua manifestação de

vida, de ter, portanto, confirmado  e realizado, na minha atividade individual, no plano

imediato, a minha verdadeira essência, a minha essência humana,  a minha essência 

coletiva.  (40/462)

E dessa futura forma de sociedade, na qual o ser humano individual real se

tornou ser genérico em sua vida empírica, em seu trabalho individual, em suas

relações individuais, como consta em Sobre a questão judaica, que está grá

vida a velha sociedade, que agora, em sua totalidade, só aparece mais como

forma distorcida, sob a qual o ser humano se apresenta como ser genérico in

dividualizado. Pelo fato de, nela, a vida genérica do ser humano se distorcer

em meio à vida individual, a essência coletiva desse ser humano necessaria

mente aparecerá sob a forma do estranhamento, sendo apenas “a caricatura de

sua real essência coletiva, da sua verdadeira vida genérica’"(40/451).

Essas ideias abrigam uma crítica radical, ainda que, num primeiro momen

to, só abstratamente antecipatória, de toda ciência que não compreende a du

 plicação à maneira de Marx. Se a teoria se detiver na forma burguesa da repro

dução enquanto algo último e não mais derivável, não só a forma estranhada,

sob a qual a sociedade humana se apresenta, tom ará a feição petrificada de algoindevassável para ela, mas também a relação real entre ser humano e natureza,

a constelação em constante mudança de sujeito e objeto dentro do todo da

natureza, permanecerá inacessível a ela.

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SOBRE A  ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

Vê-se como a historia da indústria e a existência objetiva da indústria conforme veio

a ser são livro aberto das fo rças essenc iais humanas,  a ps icologia  humana presente

sensivelmente, a qual não foi até agora apreendida em sua conexão com a essência do

ser humano, mas sempre apenas numa relação externa de utilidade, porque — movendo--se no interior do estranhamento — só sabia apreender, enquanto realidade das forças

essenciais humanas e enquanto atos genéricos humanos, a existência universal do ser

humano, a religião ou a história na sua essência universal-abstrata, enquanto política,

arte, literatura etc. Na indústria material, comum   [...] temos diante de nós as fo rças 

essenciais objetivadas do ser humano sob a forma de objetos sensíveis, estranhos, úteis, 

sob a forma do estranhamento. (40/542-3 [ed. bras.  Manuscritos económico-filosóficos, 

 p. 111 modif.])

O fato de o gênero humano se separar da natureza pelo trabalho, sob a

forma da distorção, que em sua totalidade se apresenta como duplicação, mol

da também o conteúdo e a forma de todos os produtos teóricos. O objeto — em

si unitário —, o processo de constituição do gênero humano, aparece na cons

ciência dos seres humanos na forma da indiferença mútua das disciplinas in

dividuais, cada uma delas ocupando-se com um aspecto específico desse ob

 je to que se apresenta sob forma estranhada. Uma união posterior da ciência

que, mediante o seu objeto — pré-formado — , impõe a si própria a forma da

fragmentação necessariamente permanecerá exterior ao objeto enquanto o pró

 prio conteúdo não for também modificado.

As ciências naturais desenvolveram uma enorme atividade e se apropriaram de um

material sempre crescente. Entretanto, a filosofia permaneceu para elas exatamente tão

estranha quanto elas permaneceram estranhas para a filosofia. A união momentânea foi

uma ilusão fantás tica. Havia a vontade, m as faltou a capacidade. A própria historiogra

fia só de passagem leva em consideração a ciência natural como momento do esclareci

mento, da utilidade, das grandes descobertas singulares. Porém, tanto mais prático foi

o modo como a ciência natural interferiu na vida humana mediante a indústria, reconfi

gurou-a e preparou a emancipação humana, por mais que tivesse de consumar, de m a

neira imediata, a desumanização. A indústria é  a relação histórica efetiva da natureza e,

em consequência, da ciência natural com o ser humano; por isso, se ela for apreendida

como revelação exotérica das fo rças essenc iais  humanas, então também a essência

humana da natureza ou a essência natural do ser humano será compreendida dessa

forma e, em consequência, a ciência natural perderá a sua orientação abstratamente

material ou, antes, idealista e se tornará a base da ciência humana, como agora já setomou — ainda que numa form a estranhada — a base da vida efetivamente humana; ter 

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 A C O N C E P Ç Ã O M A T E R I A L I S T A D E H I S T O R I A N A O B R A I N I C I A L D E M A R X 

outra base para a vida e outra para a ciência é  de antemão uma mentira. (40/543 [ed.

 bras.  Manuscritos económico-filosóficos,  pp. 111-2 modif.])

A ciência só poderá ser transposta de forma unitária, não fragmentada,quando apreender a relação real entre ser humano e natureza, visto que então

 poderá descrever o objeto — em si — unitário também como objeto unitário,

a saber, como processo de constituição do género que se efetua sob forma

estranhada. Isso significa, porém, ao mesmo tempo, que essa ciência entende

a si própria como ciência a ser suprassumida, e somente como ciência que

suprassume a si mesma estará em condições de apreender o seu objeto propria

mente dito, um objeto que cedo ou tarde igualmente desaparecerá.

É fácil reconhecer a necessidade de que o movimento revolucionário inteiro encon

tre a sua base tanto empírica como teórica no movimento da propriedade privada . Essa

 propriedade pr ivada material,  imediatamente sensível, é a expressão material sensível

da vida humana estranhada.  O seu movimento — a produção e o consumo — é a reve

lação sensível do movimento de toda a produção até aqui. isto é, da realização ou reali

dade do ser humano. Religião, família, Estado, direito, moral, ciência, arte etc. são

apenas modos específicos da produção e caem sob sua lei geral. A suprassunção posi

tiva da propriedade privada, enquanto apropriação da vida humana, é, por conseguinte,a suprassunção positiva de todo estranhamento e, portanto, o retorno do ser humano

de religião, família, Estado etc. à sua existência humana,  isto é, social.  O estranha

mento religioso enquanto tal somente se manifesta na região da consciência, do interior

humano, mas o estranhamento econôm ico é o da vida real — sua suprassunção abrange,

 por isso, ambos os aspectos. (40/536-7 [ed. bras.  Manuscritos económ ico-filosóficos, 

 p. 106 modif.])

 Na futura sociedade, na sociedade da identidade não estranhada, ainda aser estabelecida, do ser humano com a natureza, de qualquer modo só poderá

haver uma ciência. “Mais tarde a ciência natural subsumirá a ciência do ser

humano exatamente da mesma forma que a ciência do ser humano subsumirá

a ciência natural: haverá uma só  ciência” (40/544 [ed. bras.  Manuscritos eco- 

nômico-filosóficos, p. 112 modif.]).

Em A ideologia alemã, obra à qual queremos nos dedicar agora, essas linhas

de pensamento são em parte formuladas de forma mais precisa, mas em parte

também expostas de uma forma inadequada ao seu teor real. Este último dadose explica a partir da confrontação — historicam ente já ultrapassada, segundo

a autocompreensão de Marx — a que se deve esse escrito: a discussão com um

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SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

adversário que, por assim dizer, não mais pode dar satisfações afeta também a

forma como ela é levada a cabo. Por conseguinte, quando Marx enfatiza pe

rante os jovens-hegelianos que seu ponto de partida são os “pressupostos reais” ,

os indivíduos reais, as suas ações e as suas condições materiais de vida, que

são “constatáveis por vias puramente empíricas”, é claro que não se trata de

nenhum empirismo ingênuo que se entrega alegremente e sem ressalvas ao

mundo dos fatos. A análise mais acurada mostra imediatamente que Marx não

esquece um instante sequer que essa viravolta ainda se deve igualmente à

 práxis histórico-mundial desses indivíduos. Mesmo que ele não enfatize isso

 permanentemente, está implícito no seu pensamento que só no estágio mais

elevado da apropriação distorcida da natureza esse processo histórico-mundial

franqueia a visão para a verdadeira relação entre ser humano e natureza, que

só então é possível vincular com a historiografia o material compilado pela

“enorme atividade” das ciências naturais, que só então é possível analisar a

“indústria material ordinária” não só do ponto de vista de uma “relação exterior

de utilidade”, mas compreendê-la também como a “condição histórica real da

natureza”. Porém, nos  Manuscritos económico-filosóficos,  essa mesma “con

dição histórica real” é exposta mais uma vez de forma abstrata: a constelação

“sujeito-objeto” no interior da totalidade da natureza, que se apresenta na for

ma de trabalho social, não é reconstituída em seu caráter processual, mas como

que formulada em termos de categoria, permitindo, por conseguinte, só algumas

 poucas constatações conclusivas, visto que essa constelação se apresenta numa

figura diferente para cada caso. Considerando que  a história só pode ser a

história da sucessão de gerações individuais; que a história social da humani

dade é tão somente a história do desenvolvimento individual dos seres humanos;

que cada geração edifica sobre as forças produtivas da geração precedente,

assumindo seu saber e suas capacidades, os meios de trabalho e o substrato

natural encontrado e processado por aqueles seres humanos, cujo uso como

matéria-prima e arsenal de possíveis novos meios de trabalho e objetos de

trabalho igualmente ainda é determinado pelo estado da apropriação da natu

reza, assim como a natureza exterior, por sua vez, mediante a sua própria es

trutura em patamares de desenvolvimento sempre diferenciados de domínio da

natureza, influencia o desenvolvimento ulterior dos seres humanos, conclui-se

automaticamente que, por um lado, existe um nexo material tangível na histó

ria, mas que, por outro lado, só é possível constatar algo sobre esse nexo e,

desse modo, sobre a inter-relação entre ser humano e natureza mediante recur

so à empiria. Isso ganha expressão em A ideologia alemã :

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 A C O N C E P Ç Ã O M A T E R I A L I S T A D E H I S T O R I A N A O B R A I N I C I A L D E M A R X 

 Naturalmente não podemos abordar aqui nem a constituição física dos seres huma

nos nem as condições naturais, geológicas, oro-hidrográficas, climáticas e outras con

dições já encontradas pelos seres humanos. Toda historiografía deve partir desses fun

damentos naturais e de sua modificação pela ação dos seres humanos no decorrer dahistoria. (3/21 [ed. bras. A ideologia alemã, pp. 86-7 modif.])3

Contudo, enquanto o “processo vital real” dos seres humanos não tiver sido

assumido nessa forma pela teoria, o materialismo e a ciência histórica se ex

cluirão mutuamente. O material da historiografia de antemão já foi pré-mol-

dado pela forma (distorcida) com que é concebida a relação entre ser humano

e natureza — como foi indicado anteriormente na análise dos  Manuscritos 

económico-filosóficos —, pois só o que “aparece como algo separado da vidacomum, como algo extra e supraterreno” [ed. bras., p. 43] é objeto dessa dis

ciplina, que apenas se ocupa ainda com a historia da sociedade humana em sua

forma estranhada, com a historia das “ações políticas dos príncipes e dos Es

tados” [ed. bras., p. 95]. Assim sendo, de saída essa ciencia está condenada a

claudicar entre uma empiria abstrata, uma “coleção de fatos mortos” (3/27 [ed.

 bras., p. 94]) e um a especulação idealista fajuta.

Por outro lado, mediante a concepção correta do processo material de re

 produção, igualmente se impõe à ciência histórica um a determinada forma: ateoria materialista se converte potencialmente em historiografia, cuja tarefa

consiste em retraçar todo o decurso do desenvolvimento da humanidade. Isso

é constatado expressamente em A ideologia alemã  mediante a introdução do

conceito da exposição, tomado da filosofia hegeliana, e suas implicações. E

nesse contexto que Marx também fala pela primeira vez de sua teoria como

“ciência positiva”, uma formulação que — em vista das linhas de pensamento

esboçadas an teriormente — só pode se referir à autocompreensão marxiana de

ser o primeiro teórico a apreender a realidade social de modo não obstruído por uma pré-formação do conhecimento constitutiva do objeto e ainda social

mente condicionada. “Ali onde termina a especulação, na vida real, começa

também, portanto, a ciência real, positiva, a exposição da atividade prática, do

 processo prático de desenvolvimento dos seres humanos” (3/27 [ed. bras.  A 

ideologia alemã, p. 95]). O posicionamento e o modo de proceder dos  Manus

critos económico-filosóficos  são mantidos, mas agora esse mesmo modo de

 proceder ainda é compreendido como um procedimento abstrato, como sínte

se de algumas “abstrações”, cujo auxílio é imprescindível para que a história possa ser escrita.

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SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

 A  filosofia autônoma perde, como a exposição da realidade, seu meio de existência.

Em seu lugar pode aparecer, no máximo, um compêndio dos resultados mais gerais, que

se deixam abstrair da observação do desenvolvimento histórico dos seres humanos. Se

separadas da história real, essas abstrações não têm nenhum valor. Elas podem servirapenas para facilitar a ordenação do material histórico, para indicar a sucessão de seus

estratos singulares. Mas de forma alguma oferecem, como a filosofia o faz, uma receita

ou um esquema com base no qual as épocas históricas possam ser ajeitadas a bel-prazer.

A dificuldade começa, ao contrário, somente quando se passa à consideração e à orde

nação do material, seja de uma época passada ou do presente, quando se passa à expo

sição real. (3/27 [ed. bras. A ideolog ia alemã, p. 95])

Se quisermos fazer jus ao pensamento de Marx ao nos ocuparmos com a

sua obra daqui por diante, teremos de nos orientar nessa diferenciação entre

“abstração” e “exposição real”, tão importante para o método marxiano. Fica

rá evidente — e isto seja dito aqui apenas como antecipação — que só em O 

capital  se pode falar de uma “exposição real”, de uma exposição que, em

certo sentido, deve ser encarada, ela própria, como uma reiterada instrução de

 pesquisa, a saber, a “exposição do conceito geral do capital”, que Marx d istin

gue da exposição da concorrência. De qualquer modo, aqui, em A ideologia 

alemã, na qual todos os motivos centrais da teoria m aterialista estão sintetiza

dos, estamos tratando meramente de “abstrações” : “Destacaremos aqui algumas

dessas abstrações, a fim de contrapô-las à ideologia, ilustrando-as com alguns

exemplos históricos” (3/27 [ed. bras.  A ideologia alemã,  p. 95]).

Deve ser encarada como uma dessas “abstrações” a tentativa de vincular a

relação alternante entre ser humano e natureza, que está na base de toda a

história, com uma sucessão de formações sociais distintas, ou seja, descrever

o decurso da forma distorcida da apropriação da natureza, que é o que pela

 primeira vez confere à sociedade humana o caráter de humana. Nesse ponto,

ele tampouco vai muito além das ideias contidas nos Manuscritos econômico-  

-filosóficos e do procedimento ali adotado; o que ocorre é que essas construções

são expostas numa forma diferente. Para não voltar a dar aos jovens-hegelianos

o pretexto para “entender mal o desenvolvimento real e para acreditar que

apenas se tratava, então, de mais uma nova versão dos seus velhos e desbotados

casacões teóricos” (3/218 [ed. bras.  A ideologia alemã,  p. 231]), Marx utiliza

uma terminologia conscientemente não filosófica, que, contudo, por sua vez,

nem sempre expressa com exatidão os teores das ideias explicitadas nos  Ma

nuscritos económico-filosóficos. Expressões como “vida genérica” e “ser genérico” não aparecem mais e, em vez de dizer trabalho estranhado, ele usa o

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 A CON CEPÇÃO MATERIALISTA DE HISTÓRIA NA OBRA INICIAL DE MARX 

termo “divisão do trabalho”. Quem não está familiarizado com a linha de pen

samento dos Manuscritos económico-filosóficos  dificilmente ainda poderá de

duzir de A ideologia alemã  que ele associa a esse termo um sentido diferente

do que faz a teoria burguesa. Indicações como, por exemplo, a seguinte necessariamente permanecerão enigmáticas: “Além do mais, divisão do trabalho e

 propriedade privada são expressões idênticas — numa é dito com re lação à

 própria atividade aquilo que na outra é dito com relação ao produto da ativi

dade” (3/32 [ed. bras.  A ideologia alemã,  p. 37]). Se lermos essa observação

tendo como pano de fundo os Manuscritos económico-filosóficos, naturalmente

não se pode ignorar que ela se refere a uma temática bem específica: à perso

nificação das condições de produção estranhadas do produtor imediato.

Essa formulação, enquanto o mais abstrato dos conceitos do “autoesface-lamento” e do “autocontradizer-se” do fundamento mundano, do qual deve ser

derivada a duplicação em suas diversas manifestações, está, por sua vez, na

 base do uso do termo “sociedade civil”. Marx enfatiza que a sociedade de

concorrência a que ele se refere só surgiu na Era Moderna, mas usa essa ex

 pressão ao mesmo tempo num sentido abrangente.

A sociedade civil como tal desenvolve-se somente com a burguesia; com esse m es

mo nome, no entanto, foi continuamente designada a organização social que se desenvolve diretamente a partir da produção e do intercâmbio e que constitui em todos os

tempos a base do Estado e das demais superestruturas idealistas. (3/36 [ed. bras.  A 

ideologia alemã, p. 74])

 Nesse uso variante dos termos, já se reflete o procedimento exercitado nos

 Manuscritos económico-filosóficos, em que ele interpreta o feudalismo através

da estrutura do capitalismo desenvolvido como uma formação social que,

em sua essência, não se diferencia do capitalismo. A propriedade fundiária feudal — assim consta ali, como vimos anteriormente — é, “na sua essência,

a terra vendida ao desbarato, a terra estranhada ao ser humano e, por isso, a

terra fazendo frente a ele na figura de alguns poucos grandes senhores” [ed.

 bras.  Manuscritos económico-filosóficos, p. 74]. Agora é preciso que ela apa

reça como tal, “é necessário que aquilo que é a raiz da propriedade fundiária,

o sórdido interesse pessoal, apareça também na sua cínica figura” [ed. bras.

 Manuscritos económico-filosóficos,  p. 75]; Marx procede de modo análogo

também em A ideologia alemã: visto que, na sociedade civil moderna, manifesta-se o universal que está na base de toda a história, e visto que só por essa

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SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

razão ele pode ser reconhecido como tal, Marx pode reinterpretar a estrutura

civil ao mesmo tempo como estrutura básica de toda a história:

Essa concepção de história consiste, portanto, em desenvolver o processo real de produção a par tir da produção material da vida imediata e em conceber  a forma de in

tercâmbio conectada a esse modo de produção e por ele engendrada, quer dizer, a so

ciedade civil em seus diferentes estágios, como o fundamen to de toda a história,  (grifo

meu, H. R.) (3/37-8 [ed. bras. A ideologia alemã, p. 42])

 Nesse ponto, também fica claro, ao mesmo tempo, o que se oculta atrás da

ideia, exposta pela primeira vez em A ideologia alemã, relativa à interpenetra

ção de forças produtivas e condições de produção (que aqui ainda são designadas com o termo “forma de intercâmbio”): igualmente o conceito da pro

 priedade privada, obtido a partir do capitalismo desenvolvido, no qual — enquanto

conceito abstrato para designar a forma da apropriação distorcida da natureza

característica de toda a pré-história da humanidade — foram processadas duas

estruturas que se refletem uma na outra: o comportamento do ser humano para

com a natureza e a objetividade social produzida com o ato de reprodução, sob

a qual se efetua a apropriação da natureza. A interpenetração dessas duas es

truturas é generalizada em A ideologia alemã  a ponto de ficar irreconhecível:

A produção da vida, tanto da própria, no trabalho, quanto da alheia, na procriação,

aparece desde já como uma relação dupla — de um lado, como relação natural, de outro,

como relação social —, social no sentido de que por ela se entende a cooperação de

vários indivíduos, sejam quais forem as condições, o modo e a finalidade. Segue-se

daí que um determinado modo de produção ou uma determinada fase industrial estão

sempre ligados a um determinado modo de cooperação ou a uma determinada fase

social — modo de cooperação que é, ele próprio, uma “força produtiva” — , que a somadas forças produtivas acessíveis ao ser humano condiciona o estado social. (3/29-30 [ed.

 bras. A ideologia alemã, p. 34])

A propriedade privada mesmo, portanto, não é mais derivada historicamen

te, mas sempre já é pressuposta; com outras palavras: o processo de produção

sempre já é pensado como unidade de processo de produção e processo de

distribuição. Não se deveria ocultar aqui que Marx não se peja de fazer interpre

tações em traços rudimentares, até porque isso permite ilustrar especialmente

 bem o fato de tratar-se sempre só de uma variação da mesma estrutura básica.

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/1 C O N C E P Ç Ã O M A T E R I A L I S T A D E H I S T Ó R I A N A O B R A I N I C IA L D E M A R X  

Com a divisão do trabalho [...] estão dadas, ao mesmo tempo, a distribuição e, mais

 precisam ente, a distribu ição desigual,  tanto quantitativa quanto qualitativamente, do

trabalho e dos seus produtos; portanto, es tá dada a propriedade, que já tem seu embrião,

a sua primeira forma, na família, onde a mulher e os filhos são escravos do homem. Aescravidão na família, ainda latente e rústica, é a primeira propriedade, que aqui, diga-se

de passagem, já corresponde perfeitamente à definição dos economistas modernos, se

gundo a qual a propriedade é o poder de dispor da força de trabalho alheia. (3/32 [ed.

 bras.  A ideologia alemã, pp. 36-7])

Como faz nos  Manuscritos econômico-filosóficos, também em A ideologia 

alemã  Marx parte do ponto de culminação histórico, para além do qual não é

mais possível conceber um desenvolvimento ulterior no sentido da históriatranscorrida.

 Na época presente, o domínio das relações materiais sobre os indivíduos, o esma

gamento da individualidade pela casualidade, atingiu sua forma mais aguda e universal

e, com isso, designou aos indivíduos existentes uma missão bem determinada. Ele deu

aos indivíduos a missão de, no lugar do domínio das relações dadas e da casualidade

sobre os indivíduos, instaurar o domínio dos indivíduos sobre a casualidade e sobre as

relações. (3/423-4 [ed. bras. A ideologia alemã, p. 422])

Só agora, no capitalismo desenvolvido, evidencia-se que, sob a forma da

objetividade social, a humanidade como que laborou no interior da totalidade

da natureza para sair da natureza, que ela se desenvolveu em indivíduos sob

a forma de um excedente — produzido pelos próprios indivíduos ainda nessa

forma da autonom ização ante a subjetividade constituinte — de suas relações

sociais.

 No decorrer do desenvolvimento h istórico , e justam ente devido à inevitável autono

mização das relações sociais no interior da divisão do trabalho, surge uma divisão na

vida de cada indivíduo, na medida em que há uma diferença entre a sua vida pessoal e

a sua vida enquanto subsumida a um ramo qualquer do trabalho e às condições a ele

correspondentes. [...] No estamento (e mais ainda na tribo) esse fato permanece escon

dido; por exemplo, um nobre continua sempre um nobre e um roturier   [retalheiro]

continua um roturier, abstração feita de suas demais relações, é uma qualidade insepa

rável de sua individualidade. A diferença entre o indivíduo pessoal e o indivíduo de

classe, a contingência das condições de vida para o indivíduo aparecem apenas junta

mente com a classe que é, ela mesma, um produto da burguesia. Somente a concorrência

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SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

e a luta dos indivíduos entre si é que engendram e desenvolvem a contingência como

tal. (3/75-6 [ed. bras. A ideologia alemã, pp. 64-5])

Esse afastamento entre o indivíduo acidental e o indivíduo pessoal com asimultânea subsunção do indivíduo pessoal no indivíduo acidental, na másca

ra de um personagem a ser representado, não é simples “distinção conceituai,

mas um fato histórico” (3/71 [ed. bras. A ideologia alemã, p. 67]). A constata

ção consciente dessa diferença é reflexo de um ponto culminante na história

mundial, em cuja travessia a autonomização aflora como  autonomização, a

casualidade como casualidade no mesmo instante em que a individualidade se

torna reconhecível como individualidade, podendo se livrar da casualidade

mediante a ação prática e até mesmo devendo se emancipar dela, se quisersobreviver. Esse ponto de culminação, que o Marx dos  Manuscritos econômi- 

co-filosóficos sintetiza no conceito da propriedade privada, da personificação

das condições de produção estranhadas do trabalhador, Marx descreve em  A 

ideologia alemã  com as seguintes palavras:

Aqui se mostram, portanto, dois fatos. Primeiro, as forças produtivas aparecem como

 plenamente independentes e separadas dos indivíduos, [. ..] o que tem sua razão de ser

no fato de que os indivíduos, dos quais elas são as forças, existem dispersos e em oposição uns com os outros, enquanto, por outro lado, essas forças só são forças reais no

intercâmbio e na conexão desses indivíduos. Portanto, de um lado, há uma totalidade de

forças produtivas que assumiram como que uma forma objetiva e que, para os próprios

indivíduos, não são mais as forças dos indivíduos, mas as da propriedade privada e, por

isso, são as forças dos indivíduos somente na medida em que eles são proprietários

 privados. Em nenhum período anterior as forças produtivas assumiram essa forma in

diferente para o intercâmbio dos indivíduos na qualidade de  indivíduos, porque o seu

 próprio intercâmbio ainda era limitado . De outro lado, confronta-se com essas forças produtivas a maioria dos indivíduos, dos quais essas forças se separaram e que, por isso,

 privados de todo conteúdo real de vida, tornaram-se indivíduos abstratos, mas que so

mente assim são colocados em condições de estabelecer relações uns com os outros na 

qualidade de indivíduos. (3/67 [ed. bras. A ideologia alemã, p. 72])

Sob o pressuposto desse estado do desenvolvimento das forças produtivas

e da forma com que estas se defrontam com os produtores, a emancipação dos

indivíduos em relação à própria objetividade de suas relações sociais ainda setorna condição da manutenção e do desenvolvimento continuados do metabo

lismo entre ser humano e natureza.

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,4 C O N C E P Ç Ã O M A T E R I A L I S T A D E H I S T O R IA N A O B R A I N I C I A L D E M A R X  

 Na grande industria e na concorrência, o conjunto de condições de existência, de

condicionamentos e limitações individuais está fundido nas duas formas mais simples:

 propriedade privada e trabalho. Com o dinheiro, toda forma de intercâmbio e o próprio

intercâmbio são postos para os individuos como algo acidental. Portanto, no próprio dinheiro já está presente o fato de que todo intercâmbio anterior era somente intercâmbio

de indivíduos sob determinadas condições, e não de indivíduos enquanto indivíduos.

Essas condições encontram-se reduzidas a duas: trabalho acumulado ou propriedade

 privada e traba lho real. Desaparecendo ambas ou uma delas, interrompe-se o in tercâm

 bio. (3/66 [ed. bras. A ideologia alemã, p. 71])

Já para assegurar “a sua existência” os seres humanos são forçados a pri

meiro tornar realmente verdadeiro o dito de Hegel sobre a Revolução Francesa: postar-se em cima da ideia e edificar a realidade de acordo com ela. O ser social

não deve mais determinar a sua consciência, mas sua consciência deve deter

minar o ser social; em suma: com a emancipação em relação à última forma

 possível da máscara do personagem a ser representado, os seres humanos se

emancipam de uma história caracterizada por um manto de objetividade social,

uma objetividade que, nessa forma da autonomização, ainda tinha sido pro

duzida pelos próprios seres humanos. “O existente que o comunismo cria é

 precisam ente a base real para tornar impossível tudo o que existe independentemente dos indivíduos, na medida em que o existente nada mais é do que um

 produto do intercâm bio anterior dos próprios indivíduos” (3/70-1 [ed. bras. A

ideologia alemã, p. 67]). Contudo, também em A ideologia alemã, Marx gasta

 poucas palavras a respeito do modo como se parecerá esse novo ser social, no

qual os seres humanos colocarão as suas condições de existência sob seu con

trole social em vez de se deixarem dominar por elas, a respeito do modo como

deve ser imaginada essa sociedade, da qual “os indivíduos participam na

qualidade de indivíduos” e não mais intercambiam uns com os outros sob aforma de indivíduos medianos ou de classe acidentais, coisais. Como já vimos

na análise dos Manuscritos económico-filosóficos, ele não consegue decifrar a

estrutura da distorção sem visualizar o aspecto de uma identidade racional

de ser humano e natureza; sobre esta, entretanto, nada se consegue vislumbrar.

Marx certamente percebe que a forma estranhada sob a qual os seres humanos

laboram no interior da natureza para saírem da natureza ainda cunha as próprias

estruturas de necessidade e que é pura e simplesmente impossível fazer uma

diferenciação entre natureza imediata e natureza mediada. Contudo, por tercerteza de que a forma do estranhamento é uma forma histórica e não pode ser

identificada com o ser natural, não importando o quanto este tenha sido histo-

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SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

ricamente modificado, ele pode deixar esse problema tranquilamente a cargo

do futuro.

A organização comunista atua de maneira dupla sobre os anseios que produzem as

condições atuais no indivíduo: uma parte desses anseios, a saber, aquela que existe sob

todas as condições e que é transformada apenas em sua forma e tendência pelas distintas

condições sociais, também só é transformada sob essa nova forma social quando lhe são

dados os meios para o seu desenvolvimento normal; uma outra parte, em contrapartida,

a saber, aqueles anseios que devem sua origem tão somente a uma determinada forma

social, a determinadas condições de produção e intercâmbio, é totalmente privada de suas

condições vitais. Ora, quais são os anseios que, sob a organização comunista, serão trans

formados e quais os que serão desfeitos é algo que só se pode decidir de forma prática, pela transformação dos “anseios” realm ente práticos, e não mediante comparação com

condições históricas precedentes. (3/238-9 [ed. bras. A ideologia alem ã , p. 250, nota a])

Partindo dessa forma extrema, conclusiva do estranhamento, Marx tenta

compreender a história transcorrida como história de um “intercâmbio limi

tado”, que se apresenta como uma sucessão de diferentes formas de proprie

dade privada. “Na m edida em que, no interior do trabalho, a propriedade pri

vada se defronta com o trabalho, ela se desenvolve a partir da necessidade daacumulação e, de início, ainda conserva bastante a forma da comunidade; po

rém, em seu desenvolvimento ulterior, ela se aproxima cada vez mais da forma

moderna da propriedade privada” (3/66 [ed. bras. A ideologia alemã, pp. 71-2]).

As formas do “intercâmbio limitado” que se alternam sucessivamente podem

ser compreendidas como fases diferentes — elas próprias ainda condicionadas

 pelo desenvolvimento das forças produtivas — da divisão do trabalho, que se

apresentam, em correspondência ao conceito anteriormente analisado de pro

 priedade privada, como formas diferentes da personificação das condições de produção estranhadas do produ tor imediato: “As diferentes fases do desenvol

vimento da divisão do trabalho significam outras tantas formas diferentes da

 propriedade; quer dizer, cada nova fase da divisão do trabalho determ ina tam

 bém as relações dos indivíduos uns com os outros no que diz respeito ao ma

terial, ao instrumento e ao produto do trabalho” (3/22 [ed. bras.  A ideologia 

alemã, p. 89]). Renunciaremos aqui a uma reconstituição detalhada do cons-

truto marxiano; visto que, nesse tempo, ele ainda não tinha desenvolvido os

motivos decisivos da crítica econômica, especialmente a teoria do mais-valore a estrutura do nexo imanente das categorias, o conceito da divisão do traba

lho precisou realizar para Marx mais do que podia ser exigido dele. No fundo,

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 A CONCE PÇÃO MATERIALISTA DE HISTORIA NA OBRA INICIAL DE MARX 

Marx tem em mente a integração e a conversão crescentes de todos os organis

mos naturais de produção num sistema gigantesco de dependência universal

que acaba por identificar-se como mercado mundial. O caminho trilhado nos

Excertos  [do livro Élemens d ’économie politique,  de James Mili], de derivaro capitalismo da estrutura do processo simples de troca, é tomado indicativa

mente, mas ao mesmo tempo associado a um conceito de capital que, urna vez

mais, vincula-se diretamente a ideias da anterior Crítica do direito do Estado 

de Hegel [= Crítica da filosofia do direito de Hegel], em que Marx elabora pela

 primeira vez, com o auxílio da inalienabilidade da propriedade fundiária feudal,

o princípio da distorção e descreve o proprietário de terras feudal como m ás

cara de um personagem a ser representado. Em contraposição à glorificação

hegeliana do morgadio, Marx ressa lta ali que

[...] a propriedade privada (a propriedade fundiária) é assegurada contra o próprio ar

bítrio do proprietário pelo fato de a esfera do seu arbitrio se ter transformado, de arbitrio

humano geral, no arbitrio específico da propriedade privada',  a propriedade privada

se tornou o sujeito da vontade e a vontade o mero predicado  da propriedade privada. A

 propriedade privada não é mais um objeto determinado  do arbitrio, mas o arbitrio é o

 predicado determinado da propriedade privada. (1/305 [ed. bras. Crítica da filosofia do 

direito de Hegel, p. 116])

Essa propriedade privada “petrificada”, “assegurada”, “exata” está na base

do conceito de capital de A ideologia alemã:  o capital é capital “estamental”

que com a crescente divisão do trabalho pode “liquefazer-se” cada vez mais.

O capital [ ...] era um capital natural que consistia na habitação, nas ferramentas e

na clientela natural e hereditária, e que tinha de ser legado de pai para filho como capi

tal irrealizável, devido ao intercâmbio não desenvolvido e à circulação incompleta. Essecapital não era, como o moderno, calculável em dinheiro e para o qual é indiferente se

ele é aplicado em uma ou outra coisa, mas sim um capital imediatamente ligado ao

trabalho determinado do possuidor e inseparável dele; era, nessa medida, um capital

estamental.  (3/52 [ed. bras. A ideologia a lemã , p. 54])

O capital é descrito como algo universal que se mantém idêntico em meio à

alternância das diferentes formas de objetivação, mas ainda não alcançou —

enquanto tal processo — o modo de existência que lhe corresponde. Porém,

com a expansão do comércio e da divisão do trabalho surge a possibilidade da

“realização” e, com isso, da acumulação e da concentração desse capital que

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SOBRE A  ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

vai se tomando cada vez mais mobilizável, que, por assim dizer, pode “estar

investido em coisas cada vez maiores”. O capital foi perdendo gradativamente

o “caráter natural que ainda se encontrava preso a ele” (3/59 [ed. bras. A ideo- 

logia alemã, p. 59]), foi “liquefazendo-se” cada vez mais e, ao mesmo tempo,

concentrando-se em meios de trabalho cada vez maiores, até alcançar, por

fim — passando pelo capital corporativo e manufatureiro — , a sua última fase

de desenvolvimento na “grande indústria”. Esse processo cam inha de mãos

dadas com a dissociação entre o produtor imediato e os seus meios de trabalho,

sendo que a forma da conexão imediata da existência subjetiva com a sua

continuidade objetiva é dissolvida passo a passo e se apresenta, por fim, como

sistema de distorção absoluta, como o poder das condições de produção auto

nomizadas, dissociadas do trabalhador, as quais ganham existência subjetiva

na pessoa do capitalista.

Esse conceito de capital e as indicações nos  Manuscritos econômico-filo-  

sóficos fornecem-nos concomitantemente também uma chave para interpretar

como “burguesas” as estruturas em que os meios de trabalho e a divisão do

trabalho são pouco desenvolvidos. Propriedade tribal, propriedade comunitária

e pública antiga e propriedade feudal ou estamental — são estas as três formas

que Marx menciona em A ideologia a lemã  — ainda devem ser compreendidas

igualmente como expressão do “intercâmbio limitado” . Não há dúvida de que

também aí as condições de produção dom inam o produtor, mas essa distorção

se apresenta em outra forma, a saber, na forma da imediatidade, que só pode

ser apreendida como tal quando se passa pela forma desenvolvida da distorção.

Se o capitalismo for despido da sua aparência dissimuladora oriunda da esfera

da circulação, segundo a qual os seres humanos intercambiam uns com os

outros como livres e iguais, também ele se apresenta apenas como forma de

reprodução na qual o próprio trabalho é adicionado às condições de produção.

É desse modo que Marx interpreta as condições pré-burguesas de dominação.

As pessoas “encontram-se como instrumentos de produção ao lado do instru

mento de produção dado” (3/65 [ed. bras. A ideologia alemã, p. 51]). A domina

ção das condições de produção sobre os seres humanos, que caracterizou todas

as formações sociais da pré-história humana, aparece aqui na forma da sub-

sunção imediata dos seres humanos à natureza: os “indivíduos são subsumidos

à natureza” (3/65 [ed. bras. A ideologia alemã, p. 51]). Por um lado, o próprio

trabalho, “seja na forma do escravo, seja na do servo, é arrolado entre os demais

seres naturais como condição inorgânica da produção, ao lado do gado ou como

apêndice da terra” (42/397 [ed. bras. Grundrisse, p. 401]), como diz Marx mais

tarde nos Grundrisse-, por outro lado, porém, também o correlato funcional no

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 A CONCE PÇÃO MATERIALISTA DE HISTÓRIA NA OBRA INICIAL DE MARX 

interior do mundo distorcido, o não trabalhador, é “acidente da terra. De igual

modo, o morgado, o primogênito, pertence a terra. Ela o herda” (40/505 [ed.

 bras. Manuscritos econômico- filosóficos, p. 74]). A dependência das pessoas em

relação às condições de produção aparece aqui ainda sob a forma de uma relação pessoal. Isso é ressaltado uma vez mais nos Grundrisse: “Essas relações

externas [as relações burguesas, H. R.] tampouco são uma supressão das ‘rela

ções de dependência’, dado que são apenas a sua resolução em uma forma

universal; são, ao contrário, a elaboração do fundamen to  universal das relações

 pessoa is de dependência. Também aqui os indivíduos só entram em relação

entre si como indivíduos determinados” (42/97 [ed. bras. Grundrisse, pp. 111-2]).

Sob o aspecto de uma forma de sociedade ainda a ser construída, na qual

os seres humanos passariam a controlar comunitariamente as suas condiçõesde produção — desenvolvidas sob a forma da “grande indústria” — e, desse

modo, ao mesmo tempo, criariam os pressupostos para uma unidade racional

conscientemente praticada do ser humano com a natureza, apresenta-se, por

tanto, ao jovem Marx a história da humanidade inteira como uma sucessão

de distintas formas de dominação das condições de produção sobre o produtor.

O domínio crescente da natureza, que se reflete precipuamente na forma dos

meios de trabalho e na forma do processo do trabalho por eles condicionada,

vem acompanhado de uma transformação na forma de intercâmbio, que sediferencia da antiga forma de intercâmbio, das condições de produção anti

quadas, por meio de uma nova forma de manifestação da personificação das

condições de produção estranhadas do trabalhador imediato. O vínculo ime

diato, desde sempre já compreendido como estranhado, da existência subjetiva

com a sua continuidade objetiva diverge cada vez mais da forma social da

separação do produtor das condições de sua atividade, forma sob a qual foi

alcançado, ao mesmo tempo, o patamar mais elevado da apropriação da natu

reza no interior do mundo distorcido da propriedade privada:

Partimos, até agora, dos instrumentos de produção e já aqui se mostra a necessidade

da propriedade privada para certas fases industriais. Na industrie extractive  [indústria

extrativa], a propriedade privada ainda coincide plenamente com o trabalho; na peque

na indústria e em toda a agricultura anterior, a propriedade é consequência necessária

dos instrumentos de produção existentes; na grande indústria, a contradição entre o

instrumento de produção e a propriedade privada é, desde já, o seu produto, para cuja

elaboração a indústria deve estar já bastante desenvolvida. É somente com a grandeindústria, portanto , que se torna possível a superação da propriedade privada. (3/66 [ed.

 bras.  A ideologia alemã, pp. 51-2])

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S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

Quando se passa a expor conceitualmente esse evento como um processo

que transcorre objetivamente, deve-se lembrar, contudo, que, nessa forma de

exposição, sempre já está implícita na reflexão a condição de sua própria pos

sibilidade, a saber, o fato de que o processo de constituição do gênero humano

transcorreu sob a forma da objetividade social — uma forma cuja especifici

dade consiste justamente em que a subjetividade que a constitui desaparece

completamente atrás dela — e só no ponto de culminação desse desenvolvi

mento se torna transparente enquanto tal processo. Em A miséria da filosofia, 

Marx diz nesse sentido:

Esquadrinhar todas essas questões [levantadas por Proudhon, H. R.] não significa

investigar a história profana real dos seres humanos de todo e qualquer século, descrever

esses seres humanos a um só tempo na qualidade de autores e atores de seu próprio

drama? Mas, a partir do momento em que se apresentam os seres humanos como os

atores e os autores de sua própria história, retorna-se, por um desvio, ao ponto de par

tida real. (4/135 [ed. bras. A miséria da filosofia ,  p. 105 modif.]*)

Desse ponto de vista, a história da propriedade privada se apresenta como

sequência gradativa de diferentes limiares de emancipação, em cada um dos

quais os seres humanos se redefinem, retiram as máscaras do personagem querepresentavam e adquirem nova identidade, no momento em que, mediante o

desenvolvimento de suas capacidades produtivas no confronto com a natureza,

uma forma de intercâmbio se tornou exterior e, por isso, objetivada enquanto 

forma de intercâmbio ultrapassada, antiquada. Nesse ponto, assoma o signifi

cado mais profundo do processo de reprodução sempre já compreendido como

unidade do processo de produção e distribuição, como interpenetração de for

ças produtivas e condições de produção. Pois, o fato de a produção da vida

“desde já” aparecer como uma relação dupla,

[...] de um lado, como relação natural, de outro, como relação social — social no senti

do de que por ela se entende a cooperação de vários indivíduos, sejam quais forem as

condições, o modo e a finalidade. [...] que um determinado modo de produção ou uma

determinada fase industrial estão sempre ligados a um determinado modo de cooperação

ou a uma determinada fase social — modo de cooperação que é, ele próprio, uma “for

ça produtiva" — [...]. (3/29-30 [ed. bras. A ideologia alemã,  p. 34])

* Ref. com pleta da edição brasileira: K. Marx,  A misér ia da fi loso fia.   Trad. Paulo Roberto

Banhara. São Paulo. Escala, 2007. (N. do T.)

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/1 CONCEPÇÃO MATERIALISTA DE HISTÓRIA NA OBRA INICIAL DE MARX 

significa tão somente que a máscara social deve ser compreendida como forma

necessária da autoatividade dos seres humanos, como forma que não é exterior

à sua individualidade, mas inclusive define historicamente em cada caso con

creto a forma determinada da individualidade.

As condições sob as quais os indivíduos intercambiam uns com os outros [...] são

condições inerentes à sua individualidade e não algo externo a eles, condições sob as

quais esses indivíduos determinados, que existem sob determinadas relações, podem

 produzir a sua vida material e tudo o que com ela se relaciona; são, portanto, as condi

ções de sua autoatividade e produzidas por essa autoatividade. (3/71-2 [ed. bras. A ideo

logia alemã, p. 68])

Contudo, ao atuarem sobre a natureza, modificarem a si próprios e a natu

reza, os seres humanos modificam, ao mesmo tempo, a base das condições sob

as quais intercambiam, ou seja, modificam as máscaras de seus personagens

no sentido mais amplo possível. A forma de intercâmbio não é mais adequada

à nova constelação de ser humano e natureza e se objetiva cada vez mais como

entrave — a ser removido —, que cada vez mais se evidencia como algo ex

terno ao indivíduo: “Os servos fugitivos consideravam a sua servidão anterior

como algo acidental à sua personalidade. Mas, com isso, apenas fizeram o quefaz toda classe que se liberta de um entrave” (3/76 [ed. bras. A ideologia alemã, 

 p. 65]). O gênero humano se desenvolve como humano, ao, por assim dizer,

mudar de pele como um a cobra e despir-se de diferentes formas de intercâmbio,

uma após a outra. Sobre a base de determinadas formas do confronto com

a natureza, os indivíduos entram em contato uns com os outros só como in

divíduos determinados, intercambiam sob condições restritas, que se consoli

dam em máscaras, mas que, por sua vez, voltam a ser solapadas por novas

formas de dom ínio da natureza e são substituídas por condições diferentes deintercâmbio.

Essas diferentes condições, que apareceram primeiro como condições da autoativi

dade e, mais tarde, como entraves a ela, formam ao longo de todo o desenvolvimento

histórico uma sequência concatenada de formas de intercâmbio, cujo encadeamento

consiste em que, no lugar da forma anterior de intercâmbio, que se tornou um entrave,

é colocada uma nova forma, que corresponde às forças produtivas mais desenvolvidas

e, com isso, ao avançado modo de autoadvidade dos indivíduos, uma forma que, à son tour  [por sua vez], toma-se novamente um entrave e é, então, substituída por outra. Dado

que essas condições, em cada fase, correspondem ao desenvolvimento simultâneo das

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SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

forças produtivas, sua história é, ao mesmo tempo, a história das forças produtivas em

desenvolvimento e que foram recebidas por cada nova geração e, desse modo, é a his

tória do desenvolvimento das forças dos próprios indivíduos. (3/72 [ed. bras. A ideologia  

alemã, p. 68])

De acordo com isso, a forma de intercâmbio aparece aos indivíduos en

quanto forma de intercâmbio, enquanto algo externo e acidental à sua perso

nalidade, no momento em que ela não mais corresponde ao estado do desen

volvimento desses indivíduos. Enquanto a atitude do ser humano para com a

natureza coincidir como que substancialmente com a forma sob a qual os in

divíduos intercambiam uns com os outros, esses indivíduos de antemão já

estão impedidos de reconhecer como máscaras as máscaras do personagem querepresentam. Assim sendo, a autorreflexão do sujeito que define a sua identi

dade na objetivação de uma forma de intercâmbio e na emancipação em relação

a ela deve ser compreendida, ao mesmo tempo, como expressão de uma nova

formação social que se constituiu no ventre da antiga:

A condição determinada sob a qual eles produzem corresponde, assim, enquanto

não surge a contradição [entre forças produtivas e condições de produção, H. R.], à

sua real condicionalidade, à sua existência unilateral, unilateralidade que se mostraapenas com o surgimento da contradição e que, portanto, existe somente para os pós

teros. Assim, essa condição aparece como um entrave acidental. (3/72 [ed. bras. A ideo

logia alemã, p. 68])

A forma como a acidentalidade é compreendida, a forma em que se revelam

ao indivíduo as máscaras antiquadas depende, por sua vez, novamente da

forma bem determinada do confronto do ser humano com a natureza, à qual

correspondem novas condições sob as quais os seres humanos podem intercambiar uns com os outros e desenvolver as suas forças produtivas. Sendo elas

 próprias mais um a vez condições lim itadas do intercâmbio, que, todavia, ain

da não podem ser percebidas como tais pelo sujeito, elas, ainda assim, con

dicionam simultaneamente a forma em que se revela a máscara antiquada do

seu personagem.

A diferença entre indivíduo pessoal e indivíduo acidental não é uma distinção con

ceituai, mas um fato histórico. Essa distinção tem um sentido distinto em épocas distintas, por exemplo, o estamento como algo acidental para o indivíduo do século XVIII e,

 plus ou moins [mais ou menos], também a família. E uma distinção que não nos cabe

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 A CONCEPÇÃO MATERIALISTA DE HISTÓRIA NA OBRA INICIAL DE MARX 

fazer para cada época, mas que cada época faz por si mesma a partir dos diferentes

elementos que encontra, não segundo o conceito, mas forçada pelas condições mate

riais da vida. O que, em contraposição à época anterior, parece acidental à época poste

rior — o mesmo vale também para os elementos que foram transmitidos da época anteriorà posterior — é uma forma de intercâmbio que correspondia a um determinado estágio

do desenvolvimento das forças produtivas. (3/71 [ed. bras. A ideologia alemã, pp. 67-8])

Esse processo da progressiva “mudança de pele”, no qual as pessoas se

reconhecem como “expositoras” relativamente à sua nova forma de intercâm

 bio — que ainda não pode ser decifrada po r elas como sistema de máscaras — ,

objetiva-se igualmente, no “derradeiro ponto de culminação do desenvolvi

mento da propriedade privada”, ainda enquanto  tal processo de decifraçãorelativa das máscaras removidas e de emancipação em relação às formas de

intercâmbio antiquadas. Ele se objetiva na medida em que as pessoas mesmas,

tendo como base uma forma bem determinada de apropriação da natureza, se

emancipam daquela estrutura na qual, depois de certo tempo, as condições do

seu intercâmbio (as condições da distribuição) se evidenciam como novo en

trave do confronto continuado do ser humano com a natureza.

Todas as apropriações revolucionárias anteriores [do instrumento de produção, H.R.] foram limitadas; os indivíduos, cuja autoatividade estava limitada por um instru

mento de p rodução e por um intercâmbio limitados, apropriavam-se desse instrumento

de produção limitado e chegavam, com isso, apenas a uma nova limitação. Seu instru

mento de produção tornava-se sua propriedade, mas eles mesmos permaneciam subsu

midos à divisão do trabalho e ao seu próprio instrumento de produção. Em todas as

apropriações anteriores, uma massa de indivíduos permanecia subsumida a um único

instrumento de produção; na apropriação pelos proletários, uma m assa de instrumentos

de produção tem de ser subsumida a cada indivíduo, e a propriedade subsum ida a todos.

O moderno intercâmbio universal não pode ser subsumido aos indivíduos senão na

condição de ser subsumido a todos. (3/68 [ed. bras.  A ideologia alemã, p. 73])

Como vemos, oculta-se no conceito marxiano da propriedade privada a

 pretensão de uma crítica definitiva de um positivismo duplo: por um lado, a da

 positiv idade real, da objetividade das relações sociais com que os sujeitos se

defrontam na forma bem determinada da autonomização; por outro lado, a

crítica de todo saber pré-marxiano como positivismo, na m edida em que, nes

se saber, os seres humanos tomam consciência da objetividade numa forma

não transparente para eles próprios. Esse segundo aspecto é o tema da concep-

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SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

ção de ideologia, ao qual queremos nos dedicar agora. Quando começamos a

nos ocupar com a obra inicial de Marx, vimos que os teoremas centrais sobre

a relação entre base, superestrutura e ideologia são formulados em discussão,

 por um lado, com a filosofia do direito de Hegel e com o escrito Sobre a ques

tão juda ica de Bruno Bauer e, por outro lado, com a crítica feuerbachiana da

religião ou então a crítica da filosofia hegeliana. Nos dois casos, Marx constata

um “destacar-se a si mesmo” de um fundamento mundano, uma duplicação,

que — e isso não transparece mais explicitamente de escritos posteriores, como,

 por exemplo, do Prefácio à crítica da economia política  — deve ser explicada

ainda a partir da própria estrutura da base, do “autoesfacelamento e do auto-

contradizer-se desse fundamento mundano” . Como vimos, nos  Manuscritos 

económico-filosóficos,  isso é feito de forma extremamente ampla. Além

da crítica abstrata antecipatória de toda teoria que não compreende a duplica

ção à maneira do próprio Marx, a explicação assume meramente a forma da

asseveração.

É fácil reconhecer a necessidade de que o movimento revolucionário inteiro encon

tre a sua base tanto empírica como teórica no movimento da propriedade privada . Essa

 propriedade privada material,  imediatamente sensível, é a expressão material sensível

da vida humana estranhada. O seu movimento — a produção e o consumo — é a reve

lação sensível do movimento de toda a produção até aqui, isto é, da realização ou reali

dade do ser humano. Religião, família, Estado, direito, moral, ciência, arte etc. são

apenas modos específicos  da produção e caem sob sua lei geral. (40/536-7 [ed. bras.

 Manuscritos econômico-fdosófcos, p. 106 modif.])

Em  A ideologia alemã,  Marx, no fundo, tampouco vai muito além dessa

forma de explicação. Não obstante, encontram-se indicações significativas, das

quais se pode deduzir — quando lidas sobre o pano de fundo da teoria do dinheiro desenvolvida na obra tardia — de que modo essa derivação deve ser

feita, pelo menos no que se refere à forma das superestruturas política e jurí

dica. Assim como a forma-dinheiro provém da mercadoria enquanto unidade

imediata de dois momentos que se excluem mutuamente, o Estado burguês

também deve ser derivado da dualidade de dois estados de interesse mutua

mente excludentes que caracterizam o modo de existência burguês: por um

lado, os indivíduos se desenvolvem sobre a base de condições que são comuns

a muitos e que são mantidas e asseguradas pelos indivíduos como condiçõescoletivas de existência; por outro lado, cada um desses indivíduos vai atrás dos

seus interesses particulares à custa de todos os demais, agindo, portanto, es-

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A CONCEPÇÃO MATERIALISTA DE HISTÓRIA NA OBRA INICIAL DE MARX 

sencialmente contra os seus próprios interesses, ou seja, contra os interesses

que ele tem em comum com todos os demais. Marx circunscreve da seguinte

maneira essa contraditoriedade que define o sujeito burguês:

A atitude do burguês para com as instituições do seu regime é como a atitude do

 judeu para com a lei; ele as transgride sempre que isso é possível em cada caso particular,

mas quer que todos os outros as observem. Se todos os burgueses, em massa e ao mesmo

tempo, transgredissem as instituições burguesas, eles deixariam de ser burgueses — um

comportamento que eles naturalmente não pensam em adotar e que de forma alguma é

algo que dependa do seu querer ou de seu proceder. O burguês corrompido transgride

as leis do casamento e secretamente comete adultério; o comerciante transgride a insti

tuição da propriedade quando, pela especulação, pe la falência etc., priva outrem da sua propriedade; o jovem burguês, quando o pode, torna-se indepen de nte da sua própria

família e abole praticamente a família para si; mas o casamento, a propriedade, a famí

lia permanecem intocados na teoria porque constituem, na prática, as bases sobre as

quais a burguesia erigiu o seu domínio, porque essas instituições, em sua forma burguesa,

são as condições que fazem do burguês um burguês, assim como a lei constantemente

transgredida faz do judeu religioso um judeu religioso. (3/163-4 [ed. bras.  A ideologia 

alemã,  p. 181])

Dessa contradição peculiar de dois interesses que se excluem mutuamente

e que existem diretamente um ao lado do outro no sujeito burguês deve ser

derivada a forma do Estado, que existe ao lado da sociedade burguesa enquanto 

Estado. E dessa “contradição do interesse particular com o interesse coletivo

que o interesse coletivo assume, como Estado,  uma forma autônoma” (3/33

[ed. bras.  A ideologia alemã, p. 37, nota o]). O interesse que o indivíduo tem

em comum com muitas pessoas deve ser articulado e imposto num a forma em

que, sendo válida para todos os indivíduos, aparece como separada e independente de todos os indivíduos — como “vontade de Estado, como lei” . “Todos

os membros da sociedade burguesa (são) forçados a se constituir como Nós,

como pessoa moral, como Estado, para assegurar os seus interesses comuns”

(3/340 [ed. bras. A ideologia alemã, p. 345]).

Assim como não depende da sua vontade ou arbitrariedade idealista o fato de seus

corpos serem pesados, tampouco depende dela impor a sua própria vontade na forma da

lei, pondo-a, ao mesmo tempo, fora do alcance da arbitrariedade pessoal de cada um

deles. Seu domínio pessoal deve se constituir simultaneamente como um domínio médio.

Seu poder pessoal se apoia em condições de vida que se desenvolvem como condições

comuns a muitos, cuja continuidade eles, na condição de dominadores, devem afirmar 

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SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

contra outras e, ao mesmo tempo, como válidas para todos. A expressão dessa vontade

condicionada por seu interesse comum é a lei. Justamente a imposição dos indivíduos

independentes uns dos outros e da sua própria vontade, que sobre essa base é necessa

riamente egoísta em seu comportamento recíproco, torna necessária a autorrenúncia na

lei e no direito, autorrenúncia como exceção, autoafirmação dos seus interesses na m é

dia dos casos. (3/311-2 [ed. bras.  A ideologia alemã, p. 318 modif.])

É a essas indicações que, no essencial, limita-se a derivação da forma, na

qual os burgueses fazem valer os seus interesses coletivos. Usando como pa

râmetro a execução rigorosa dessa forma de derivação na obra tardia, as linhas

de pensamento de  A ideologia alemã   se apresentam como “abstrações” em

duplo sentido: por um lado — já apontamos para isso — , Marx entende a concepção materialista de história, na forma em que foi posta em A ideologia 

alemã, como método auxiliar para iniciar o estudo e a apresentação da história.

Por outro lado — e nesse ponto o procedimento coincide amplamente com o

 praticado nos Manuscritos económico-filosóficos — , não há como não perceber

que, com referência à forma de explicação da “sociedade burguesa em sua ação

como Estado”, trata-se igualmente de ideias que ainda carecem de uma expli

citação mais exata.

 Não obstan te, tanto na discu ssão com a filosofia dos jovens-hegelianosquanto nos Manuscritos económico-filosóficos, Marx toma como ponto de par

tida a estrutura de duplicação e aqui, no fundo, apenas aclara aquilo que lá

havia sido dito com poucas frases. Quando se examina mais de perto o modo

da argumentação de Marx, fica evidente que essa aclaração tem preponderan

temente a forma de ilustração, um fato que é condicionado pelo caráter de sua

 própr ia concepção. Como sabemos, em A ideologia alemã, Marx fala da con

cepção materialista da historia como de uma “ciência positiva”, positiva no

sentido de um conhecimento da realidade social que, pela primeira vez, é cristalina — que não é, ela própria, ainda pré-formada pelo objeto a ser conhecido.

Corresponde a isso urna crítica generalizada de toda a formulação teórica pré-

-marxiana no sentido mais amplo possível; essa teoria pré-marxiana, não im

 portando a forma com que entre em cena nem o quanto se diferencie em seus

detalhes, diverge, em seu conjunto, da concepção marxiana por não mais ser

capaz de acolher os seus próprios pressupostos materiais no processo reflexivo.

Se visu alizam os que, para o jovem Marx, a historia transcorrida é a historia

da sociedade burguesa em suas diversas fases, pode-se falar de modo generalizado de teoria burguesa, sendo que a peculiaridade da crítica marxiana con

siste em que Marx informa de antemão sobre o elemento constituidor do cará-

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 A CON CEPÇÃO MATERIALISTA DE HISTÓRIA NA OBRA INICIAL DE MARX 

ter burguês da teoria burguesa. N esse caso, a filosofía dos jovens-hegelianos,

com a qual ele se ocupa em A ideologia alemã, apresenta-se só mais como um

caso específico de um tipo teórico que Marx decifra de modo geral como falsa

consciência. Numa anotação à margem em A ideologia alemã, encontramos uma obser

vação que sintetiza numa forma brevíssima o que é peculiar à teoria burguesa

em seu conjunto: “Preexistência da classe nos filósofos” (3/75 [ed. bras. A

ideologia alemã, p. 63, nota a\). A filosofia se caracteriza por uma inconsciên

cia específica que precisa deter-se diante das formas que se encontram dadas

e nas quais se reflete o mundo ossificado, como se fossem instância última e

não mais derivável. A máscara é o objeto propriamente dito de sua realização;

 porém, o fato de a filosofia não ter clareza sobre isso , por assim dizer, faz

 parte do seu próprio conceito: ela não tem como refletir dentro do seu próprio

horizonte sobre o fato de a filosofia enquanto filosofia igualmente pertencer ao

mundo petrificado. As consequências disso, porém, são significativas: a filo

sofia ou teoria geral que não mais inclui na reflexão os seus próprios pressu

 postos materiais já é — ainda antes de tomar posição consc ientemente em

relação ao mundo — em si mesma, por sua forma, a afirmação do existente. O

seu objeto é o mundo inumano, sobre-humano, que ela, justamente por não

identificar esse fato, aceita como humano, distorce em humano — é isso que

Marx quer dizer com interpretação na última tese sobre Feuerbach. Assim

sendo, essa interpretação sempre já é concomitantemente uma contradição

existente, para a qual Marx aponta em outra oportunidade:

A economia política que aceita as relações da propriedade privada como se fossem

relações humanas e racionais move-se em uma constante contradição contra sua premis

sa fundamental, a propriedade privada, numa contradição análoga à do teólogo que in

terpreta constantemente as noções religiosas a partir de um ponto de vista humano e justam ente através disso aten ta sem cessar contra a sua premissa fundamental , o caráter

sobre-humano da religião. (2/33 [ed. bras. A sagrada fam ília, p. 44]*)

Porém, visto que à máscara burguesa é peculiar a forma do esfacelamento,

a teoria que se ocupa com essa máscara e, desse modo, também essa contradi

ção que caracteriza a teoria burguesa em sua totalidade se apresentam em va-

* Ref. completa da edição brasileira: K. Marx, A sagrada família. Trad. Marcelo Backes. SãoPaulo, Boitempo, 2003. (N. do T.)

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S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

riadas formas. Permaneçamos, primeiramente, naquela forma pela qual a teo

ria se apresenta como exposição da base não consciente de si mesma: a

economia política. Enquanto tal, ela parte, como Marx já enfatizou nos  M a

nuscritos económico-filosóficos, do “fato da propriedade privada. Ela não nos

explica esse fato” [ed. bras., p. 79 modif.]. Furtivamente a forma da reprodução

 burguesa se transform a para ela em form a natura l da produção. Mais tarde,

quando nos ocuparmos com a crítica da economia política, veremos como essa

forma específica da própria consciência a-histórica ainda deve ser derivada da

natureza peculiar das categorias econômicas. Com parada com essa forma ori-

ginal-substancial do caráter burguês, como se encontra na “ciência da base”

clássica, a saber, nos fisiócratas, em Adam Smith e David Ricardo, a distorção

da forma histórica em forma natural feita pelos jovens-hegelianos aparenta ser

até mesmo grosseira. Esse dado e o fato de que, segundo a autocompreensão

marxiana, a teoria burguesa passou da época e só é ainda possível na forma de

apologia consciente também afetam a forma da sua própria crítica:

“Stirner” refutou, acima, a supressão comunista da propriedade privada ao converter

a propriedade privada no “ter” e, em seguida, ao declarar o verbo “ter” uma palavra

indispensável, uma verdade eterna, pois também na sociedade comunista poderia ocor

rer de ele “ter" dor de barriga. Exatamente do mesmo modo, ele fundamenta, aqui, a

impossibilidade de se abolir a propriedade privada, transformando-a no conceito da

 propriedade, explorando o nexo etimológico entre “propriedade" e “próprio” e decla

rando a palavra “próprio” uma verdade eterna, pois também sob o regime comunista

 pode ocorrer que alguma dor de barriga lhe seja “p rópria”. (3/211 [ed. bras.  A ideologia  

alemã,  pp. 224-5])

Em outra passagem, consta assim:

[...] quando o burguês explica aos comunistas: ao suprimirdes a minha existência

como burguês, suprimis a minha existência como indivíduo — quando, dessa maneira,

ele, na qualidade de burguês, identifica-se consigo mesmo como indivíduo —, então se

 pode, ao menos, mostrar reconhecimento pela franqueza e pelo descaramento. Para o

 burguês, este é realmente o caso; ele só acredita ser indivíduo na medida em que é bur

guês. Mas o absurdo só começa a se tornar solene e sagrado no momento em que os

teóricos da burguesia entram em cena e conferem a essa afirmação uma expressão uni

versal, ao identificar também teoricamente a propriedade do burguês com a individualidade e ao querer justificar logicamente essa identificação. (3/210-1 [ed. bras.  A ideo lo

gia alemã, p. 224])

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 A CON CEPÇÃO MATERIALISTA DE HISTÓRIA NA OBRA INICIAL DE MARX 

Quando a teoria assume a forma da apología, aparece aquilo que, por assim

dizer, está na base de toda teoria burguesa: a revogação teórica da distorção

real. Através dela mesma, enquanto teoria, enquanto expressão do mundo dis

torcido, ela justam ente não percebe dita distorção, mas a distorce novamenteem forma natural. A forma social da individualidade desatada é, para ela, últi

ma instância, algo não mais derivável, que ela identifica com a individualida

de natural — como quer que esta seja mediada. A isso Marx contrapõe:

Propriedade privada real é exatamente a coisa mais universal, que não tem absolu

tamente nada a ver com a individualidade e que inclusive a derruba. Na m esma propor

ção em que sou considerado como proprietário privado, deixo de ser considerado como

indivíduo — um a frase que os casamentos por dinheiro diariamente comprovam. (3/211[ed. bras. A ideologia alemã, p. 225, nota a\)

Por se tratar sempre só do mesmo procedimento da identificação, a crítica

marxiana só pode ser tão boa ou tão ruim quanto aquilo mesmo que ela criti

ca. A crítica a ser feita ao direito natural burguês e à economia política bur

guesa deve ser diferente da utilizada contra o mesmo procedimento nos jovens-

-hegelianos. Por essa razão, queremos nos restringir a esses dois exemplos e

apenas lembrar que ainda nos depararemos com formas mais sutis de desvela-mento dessa identificação, uma identificação que obstrui simultaneamente

a visão para a relação real do ser humano com a natureza, pois essa distorção

da determinidade social da forma em forma natural vem diretamente acompa

nhada da mistificação da própria natureza, como igualmente ainda veremos.

Quando nos voltamos para a crítica ideológica “propriamente dita”, depa-

ramo-nos, também aí, com a contradição central, peculiar a toda teoria burgue

sa: com a distorção, da qual ela própria não tem consciência, do mundo sobre-

-humano em mundo humano, ou, nas palavras da última tese sobre Feuerbach,com a interpretação do mundo. Porém, visto que a ideologia se ocupa especi

ficamente com a sociedade que se manifesta sob a forma estranhada, essa

contradição também se apresenta de outro modo: como teoria idealista. “Aqui,

como em geral ocorre com os ideólogos, é de notar que eles necessariamente

colocam a questão de cabeça para baixo e veem na sua ideologia tanto a força

motriz como o objetivo de todas as relações sociais, enquanto ela é tão somente

sua expressão ou sintoma” (3/405 [ed. bras.  A ideologia alem ã,   p. 405]). A

acima mencionada distorção em forma natural da forma social da individualidade desatada, que é característica de toda a “ciência da base” burguesa, está

 pressuposta aqui e, por assim dizer, define a ideo logia pura e simplesmente

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SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

como uma form a da consciência, para a qual a base não está presente como 

 base. Portanto, em razão de partir igualmente da forma burguesa de reprodução

como forma natural da reprodução, de antemão já lhe está obstruído o acesso

à peculiaridade de todas as formas, nas quais os burgueses articulam e impõemo seu interesse coletivo. O ato político não é mais compreendido como forma

específica da ação de um sujeito que, sob a forma da objetividade social, ainda

está laborando para deixar a natureza, mas só pode ainda ser apreendido como

atividade autoconsciente de um ser humano natural. Não há mais como perce

 ber a determinidade formal como tal, o fato de que os indivíduos nessas relações

determinadas têm de conferir expressão à sua vontade determinada por essas

relações numa determinada forma, ou seja, como “vontade do Estado e lei”;

reina, muito antes, a “ilusão, como se a lei se baseasse na vontade e, maisainda, na vontade separada de sua base real, na vontade livre” (3/62 [ed. bras.

 A ideologia alemã, p. 76]). Analogamente à teoria, ainda a ser tratada, dos fa

tores da produção da economia política, que se deriva, como tendência de in

terpretação quase que natural, da estrutura de superfície da totalidade do p ro

cesso capitalista, o idealismo de Hegel se apresenta ao jovem Marx apenas

como continuidade das ideias com que se ocupam os “estamentos ideológicos”

 po r força do ofício:

As relações de produção dos indivíduos até aqui estabelecidas igualmente devem

ganhar expressão em relações políticas e jurídicas. [...]. No âmbito da divisão do traba

lho, essas relações obrigatoriamente se tornam independentes dos indivíduos. Todas as

relações só podem ser expressas em termos de linguagem na forma de conceitos. O fato

de essas generalizações e esses conceitos serem considerados como forças misteriosas

é uma consequência necessária da autonomização das relações reais, cuja expressão eles

constituem. Além dessa validade para a consciência comum, essas generalidades ainda

adquirem uma validade e uma conformação especial dos políticos e juristas, os quais,em virtude da divisão do trabalho, dependem do cultivo desses conceitos e veem neles,

e não nas relações de produção, o verdadeiro fundamento de todas as reais relações de

 propriedade. (3/347 [ed. bras. A ideologia alemã, p. 351])

“Hegel idealizou as representações que tinham do Estado os ideólogos p o

líticos que ainda partiam dos indivíduos isolados, embora partissem meramen

te da vontade  desses indivíduos; Hegel transforma a vontade comum desses

indivíduos em vontade absoluta” (3/331 [ed. bras., p. 336]). Segundo a críticamarxiana, o sistema hegeliano tanto quanto a teoria econômica burguesa estão

embasados na distorção, que não pode ser percebida por si própria, daquelas

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 A C O N C E P Ç Ã O M A T E R I A L I S T A D E H I S T O R I A NA O B R A I N I C I A L D E M A R X 

determinações formais especificamente históricas para a forma natural, ou seja,

na identificação imediata da objetividade social — nessa forma determinada

da autonomização ainda produzida pelos próprios sujeitos — exatamente com

esses sujeitos naturais. O sistema gigantesco, que alega deduzir o mundo inteiro de um só princípio, é, para o Marx de A ideologia alemã, somente ainda

a expressão mais extremada e insuperável da revogação teórica da distorção

real e, portanto, igualmente ainda teoria de um sujeito que apenas “está parado

diante” do seu próprio mundo, conseguindo percebê-lo tão somente sob a for

ma da contemplação, do objeto. Diante desse pano de fundo, as concepções

dos jovens-hegelianos sobre a relação entre teoria e práxis igualmente aparecem

como ainda pertencentes, de um modo que lhes é imperceptível, àquele mundo

que eles criticam, aparecem como forma específica de participação conscienteno interior da distorção existente:

Os velhos-hegelianos haviam compreendido  tudo, desde que tudo fora reduzido a

uma categoria da lógica hegeliana. Os jovens-hegelianos criticavam   tudo, introduzindo

furtivamente representações religiosas por debaixo de tudo ou declarando tudo como

algo teológico. Os jovens-hegelianos concordam com os velhos-hegelianos no que diz

respeito à crença no domínio da religião, dos conceitos, do universal no mundo exis

tente. Só que uns combatem como uma usurpação do domínio o que os outros saúdamcomo legítimo. (3/19 [ed. bras., p. 84])

 Nesse ponto, ainda é preciso apontar para o aspecto anteriormente mencio

nado da decifração relativa de formas antiquadas de intercâmbio, relativa na

medida em que a própria nova forma de intercâmbio ainda ingressa de modo

constitutivamente desfigurador na percepção das máscaras já postas de lado.

O sujeito burguês, para o qual a sociedade da livre concorrência se manifesta

como forma absoluta de existência da individualidade livre, tem, em decorrência disso, uma ideia diferente da do jovem Marx sobre a forma de sociedade da

qual ele se emancipou como se fosse um entrave. Ele aborda explicitamente

esse ponto mais tarde em A miséria cla filosofia.

Os economistas têm uma maneira invulgar de proceder. Para eles, só há duas espécies

de instituições, as da arte e as da natureza. As instituições do feudalismo são instituições

artificiais, as da burguesia são instituições naturais. Nesse ponto, assemelham-se aos

teólogos que também diferenciam duas espécies de religião. Qualquer religião que nãoé a sua é invenção humana, ao passo que sua própria religião é uma revelação de Deus.

Quando os economistas dizem que as relações atuais, as relações da produção burguesa

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S O B R E   /1 E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L EM K A R L M A R X  

são naturais, eles dão a entender que se trata de relações nas quais a geração da riqueza

e o desenvolvimento das forças produtivas se dão em conformidade com as leis da na

tureza. Portanto, essas relações são, elas próprias, leis naturais independentes da influên

cia do tempo. São leis eternas que devem reger sempre a sociedade. Assim, houve história, mas não haverá mais; houve história, visto que existiram instituições feudais e,

nessas instituições do feudalismo, encontram-se relações de produção totalmente dife

rentes daquelas da sociedade burguesa, que os economistas querem fazer passar por

naturais e, portanto, eternas. (4/140 [ed. bras. A miséria da filosofia , p. 110 modif.])

 No exame da obra tardia, ficará evidente que essa form a da consciência

a-histórica não se explica só porque a forma burguesa de reprodução é adequa

da ao estado da apropriação da natureza, mas, além disso, por estar ancoradana natureza peculiar das categorias econômicas.

Como vimos, a posição desenvolvida nos Manuscritos económ ico-filosófi

cos não se alterou fundamentalmente. Também para o Marx de  A ideologia 

alemã  não há dúvida de que a ciência se ocupa sempre de um mesmo objeto.

Só que uma delas se detém diante da forma estranhada como se fosse a última

instância e, desse modo, ela própria ainda está condicionada em sua forma, ao

 passo que a outra compreende o objeto enquanto objeto na forma estranhada

e, por isso, pode, pela primeira vez, levantar a pretensão de ser uma ciência. Nos Manuscritos económico-filosóficos, esse objeto é determinado como iden

tidade do ser humano com a natureza, e a ciência é ciência da forma distorcida

dessa constelação “sujeito-objeto” alternante dentro da totalidade da natureza,

ou, com outras palavras: reconstituição do processo de constituição do gênero

humano que ainda transcorre de forma semelhante à da natureza e de forma

crítica de toda ciência pré-marxiana enquanto ciência ainda enredada nesse

 processo. Em A ideologia alemã, essa pretensão é mantida.

Toda concepção histórica até então ou tem deixado completamente desconsiderada

essa base real da história ou a tem considerado apenas como algo acessório, fora de toda

e qualquer conexão com o fluxo histórico. A história deve, por isso, ser sempre escrita

segundo um padrão situado fora dela; a produção real da vida aparece como algo pré-

-histórico, enquanto o elemento histórico aparece como algo separado da vida comum,

como algo extra e supraterreno. Com isso, a relação dos seres humanos com a natureza

é excluída da história, o que engendra a oposição entre natureza e história. (3/39 [ed.

 bras. A ideologia alemã,  pp. 43-4 modif.])

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A C O N C E P Ç Ã O M A T E R I A L I ST A D E H I S T O R I A N A O B R A IN I C I A L D E M A R X  

Em contraposição, quando é identificada a relação real entre ser humano e

natureza, também a ciência despe a forma do estranhamento, tornando-se urna 

ciência, e a oposição de natureza e historia é desmascarada como antagonismo

no interior da forma estranhada da ciência:

Conhecemos uma única ciência, a ciência da história. A historia pode ser examina

da de dois lados, dividida em historia da natureza e historia humana. Os dois lados não

 podem, no entan to, ser separados; enquanto existirem seres humanos, historia da natu

reza e historia humana se condicionarão reciprocam ente. A historia da natureza, a assim

chamada ciência natural, não nos diz respeito aqui; mas quanto à historia humana, será

 preciso examiná-la, pois quase toda a ideologia se reduz ou a uma concepção distorcida

dessa historia ou a uma abstração total dela. A própria ideologia é apenas um dos ladosdessa historia. (3/18 [ed. bras.  A ideologia alemã , pp. 86-7, nota d  modif.])

 No tas

1  Jenaer R ealp hiloso phie .  Ed. por Johannes Hoffmeister, reimpressão de 1967, p. 249. Essa

elaboração específica da relação entre Estado e sociedade na filosofia política moderna foi

exposta incisivamente em diversos ensaios por M anfred Riedel. Cf. Studien zu Hegels Re chts

 phi losoph ie.  Frankfurt, 1969.2 A relação entre ser humano e natureza em Marx foi explicitada desse modo pela primeira vez

 por Alfred Schm idt. Cf.  Der B egrif f der Natu r in de r Lehre von Marx.   Frankfurt, 1962.

3 K. A. Wittfogel mostrou de que maneira essa concepção de uma constelação “sujeito-objeto"

alternante no interior da totalidade da natureza pode ser convertida num instrumento sutil

da análise sociocientífica. Cf. “Geopolitik, Geographischer Materialismus und Marxis

mus". em: Unter dem Banner des Ma rxismus, ano 3, 1929; e: “Die natürlichen Ursachen der

Wirtschaftsgeschichte", em: Archiv fü r Sozialw issenscha ft und So zia lpolit ik,  vol. 67, 1932.

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CAPÍTULO 2

SOCIEDADE E CONHECIMENTO EM O CAPITAL

 A. A spec tos gerais do conceito de capita l

A obra tardia de Marx não resiste à comparação com a pretensão imanente às

declarações program áticas feitas em A ideologia alemã.  “Conceber [...] a sociedade civil em seus diferentes estágios, como o fundamento de toda a histó

ria, tanto a apresentando em sua ação como Estado como explicando a partir

dela o conjunto das diferentes criações teóricas e formas de consciência” (3/37-

8 [ed. bras. A ideologia alemã, p. 42]), constitui — como já foi indicado — um

 program a de pesquisa gigantesco, em relação ao qual toda tentativa de reali

zação sempre só pode parecer um começo. Não se encontra uma derivação

sistemática de todas as “superestruturas idealistas” a partir da base, nem se

explicita completamente essa base. Marx passou a fazer uma diferenciaçãomuito exata entre estrutura burguesa e estrutura pré-burguesa; sobre os ele

mentos pré-burgueses há apenas esboços, mas também a exposição da base

da sociedade burguesa, a anatomia da sociedade burguesa, não foi levada a

cabo do modo abrangente como foi concebida inclusive ainda no início da

redação do  Rascunho.  Naquela oportunidade, ele planejou uma reprodução

abrangente da totalidade do sistema capitalista, incluindo a análise dos impos

tos e das dívidas do Estado, a abordagem da política colonialista, do comércio

exterior e das crises (42/188 [ed. bras. Grundrisse, pp. 204-5]). É mérito de dois

autores, Roman Rosdolsky e Vitali Solomonovitch Vigotski1, terem demons

trado detalhadamente que todo O capital  de Marx representa, no fundo, a

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S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

execução apenas da primeira seção dessa concepção original do ano de 1857:

a saber, o desenvolvimento do “conceito geral do cap itar'. Quanto mais Marx

se ocupa com a economia política, tanto mais o material se estrutura em coisas

 primárias e coisas secundárias; esse “conceito geral do capital” torna-se o

conceito dominante que o leva a não escrever os livros originalmente planeja

dos sobre trabalho assalariado, propriedade fundiária, Estado e comércio ex

terior, mas apenas acolher certas partes desses livros, que acabaram por não

ser escritos nessa “investigação geral”, que é como ele mais tarde também a

denomina algumas vezes. Não se trata, contudo, em primeiro plano de uma

abreviação, mas algo que foi percebido por Marx como uma forma perfeita

mente adequada de dar conta de todo o material. Isso se depreende de uma

carta de dezembro de 1862 a Kugelmann, na qual ele escreve que se trata da

quintessência da economia política, e que “a explicitação do que decorre daí

[...] poderia ser facilmente levada a cabo por outros sobre a base do que foi

entregue” (30/639). (Com exceção, acrescenta ele, da relação das diferentes

formas de Estado com as diferentes estruturas econômicas da sociedade. Essa

era uma tarefa que ele queria reservar para si.)

Mas o que significa: exposição do “conceito geral do capital”? Para o eco

nomista profissional essa formulação “hegelianizadora” será apenas uma pro

va a mais de que Marx nunca chegou a se libertar completamente da esfera de

influência da especulação hegeliana. Ou então descarta-se essa formulação

como uma peculiaridade linguística que tem pouco ou nenhum significado

concreto. A interpretação de Marx durante o período da Segunda Internacional

 procedeu, em seu conjunto, de acordo com esse princípio. Contudo, não há

como negar que o próprio Marx praticamente provocou essa maneira de inter

 pretá-lo. No posfácio à segunda edição de O capital, ele escreve:

Critiquei o lado mistificador da dialética hegeliana há quase trinta anos, quando ela

ainda estava na moda. Mas quando eu elaborava o primeiro volume de O capital,  os

enfadonhos, presunçosos e medíocres epígonos que hoje pontificam na Alemanha culta

acharam-se no direito de tratar Hegel como o bom Moses Mendelssohn tratava Espino-

sa na época de Lessing: como um "cachorro morto". Por essa razão, declarei-me publi

camente como discípulo daquele grande pensador e, no capítulo sobre a teoria do valor,

cheguei até a coquetear aqui e ali com seus modos peculiares de expressão. (23/27 [ed.

 bras. O capital, vol. I, p. 91])

Expressões como "coquetear” com certeza não contribuem para encorajar

o intérprete a refletir sobre a real relação entre Marx e Hegel. Há cientistas que

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S O C I E D A D E E C O N H E C I M E N T O E M   O C A P I T A L

até mesmo tendem a achar que Marx de modo algum estava suficientemente

consciente de seu próprio procedimento2. Não se deve deixar de mencionar

aqui que essa interpretação consegue apoiar-se em enunciados notavelmente

 banais de Marx. No entanto, queremos deixar de lado a ideia de abordar maisdetidamente esse argumento, visto que a impropriedade de muitas observações

 pode ser der ivada da mesma maneira , ao menos parcialm ente, da natureza

do objeto a ser exposto, cuja peculiaridade consiste justamente em que, disso

ciado da execução da sua exposição, praticamente nada se pode discernir a

respeito do método.

Parece-nos que uma outra interpretação faz mais sentido. A posição mate

rialista e a sua relação com a filosofia do idealismo absoluto não foram fixadas

de uma vez por todas na análise crítica de Hegel do período inicial, mas, pelocontrário, o Marx maduro se submeteu a um segundo estudo sobre Hegel. Esse

fato foi ressaltado em especial por Alfred Schmidt3. Nesse contexto, é preciso

apontar para uma carta em que Marx enfatiza o “grande serviço” que lhe pres

tou a lógica hegeliana “no método de processar dados” (29/260). Essa obser

vação foi feita no período da redação do  Rascunho  de O capital, e, nesse

momento, Marx pela primeira vez não fala mais simplesmente de exposição,

mas explicitamente de forma dialética de exposição. No  Rascunho,   que foi

escrito por Marx exclusivamente para aclarar sua própria compreensão, essa

relação entre economia e dialética é tão estreita que já nem é mais possível

dissociar um “conteúdo econômico” de sua forma da exposição, de tal modo

que justamente essa obra oferece dificuldades quase insuperáveis à leitura, mas,

ao mesmo tempo, é só mediante essa forma que é franqueado o acesso aos

conteúdos próprios da crítica econômica marxiana e, desse modo, também à

estrutura lógica do capital. Uma leitura micrológica do primeiro volume da

obra principal de Marx, ainda publicada por ele próprio e em cuja redação ele

usa com muita consciência uma linguagem extremamente sóbria (ele certa

mente também o faz para não facilitar demais aos seus críticos a objeção de

ter assumido sem rupturas a filosofia hegeliana e suas implicações), mostra que

não é só no primeiro capítulo que ele "coqueteia” com o modo hegeliano de se

expressar. No quarto capítulo, ele descreve o valor em seu movimento enquan

to capital como “sujeito automático”, “o sujeito abrangente de um processo

em que ele, por debaixo de sua constante variação de forma, aparecendo ora

como dinheiro, ora como mercadoria, altera sua própria grandeza", como “subs

tância que move a si mesma e para a qual mercadorias e dinheiro não são mais

do que meras formas” (23/169 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 230]). Trata-se de

formulações que, por um lado, vinculam-se a motivos da filosofia hegeliana.

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S O B R E   A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

mas, por outro lado, praticamente não evidenciam mais o momento de arbitra

riedade implícito na expressão “coquetear”. É preciso assumir, muito antes,

que também em O capital, Marx tem de recorrer a essas estruturas por ser

forçado a fazê-lo em função do tema, e não só por isso, mas também porque

existe uma identidade estrutural entre o conceito marxiano de capital e o con

ceito hegeliano de espírito. Essa conexão poderia ser reforçada mediante com

 paração com formulações anteriores de Marx, nas quais ele, ao caracterizar o

dinheiro como “conceito existente e atuante do valor de todas as coisas” (40/566

[ed. bras. Manuscritos económico-filosóficos, p. 160 modif.]), usa formulações

que lembram a Filosofia real de lena, na qual Hegel constata explicitamente

essa identidade de estrutura do espírito e estrutura do dinheiro: “Existe aí o

 princípio form al da razão. (Porém, esse dinheiro, que tem o significado   de

todas as necessidades, é, ele próprio, apenas uma coisa imediata) — É a abs

tração de toda particularidade, de todo caráter etc., de toda qualificação do

indivíduo”4. Essa conexão fica ainda mais evidente numa manifestação que se

encontra no volume III de O capital·. “Em tal investigação geral supõe-se so

 bretudo sempre que as condições reais correspondam a seu conceito” (25/152

[ed. bras. O capital, vol. III, tomo 1, p. 111]*). Essa passagem deveria constituir

o ponto de partida de toda análise séria da obra marxiana, e a futura interpre

tação de Marx deverá ser avaliada pela medida com que explicitou as implica

ções dessa indicação. Fundamentalmente tem-se em mente o mesmo procedi

mento que ele caracteriza no Rascunho como “exposição do conceito geral do

capital”, sendo que aqui se torna totalmente manifesto que os pontos estruturais

em comum com a filosofia hegeliana chegam até o princípio central de Hegel:

no pressuposto de que as relações reais “correspondem ao seu conceito”, ocul

ta-se nada menos que o conceito de verdade de Hegel, que rompe radicalmen

te com a concepção tradicional de verdade como relação unilateral de representação. “No sentido filosófico, verdade significa, em termos abstratos,

concordância de um conteúdo consigo mesmo”, diz Hegel no Sistema da filo

sofia**. A pergunta se o conceito corresponde à coisa ele equipara a contraper-

gunta, a saber, se a coisa também corresponde ao conceito. Não nos preocupe

mos aqui com o fato de esse conceito de verdade ser obtido por um preço

* Ref. completa da edição brasileira: K. Marx, O capital.  Ed. Friedrich Engels. Trad. RégisBarbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo, Abril Cultural, 1983, vol. III, tomo 1. (N. do T.)

** Cf. pa ssagem similar em G. W. F. Hegel, Enciclopédia das ciências filosófica s em com pêndio. Vol. I: A ciên cia da lógica . Trad. Paulo Meneses. São Paulo, Loyola, 1995, p. 82 (§ 24,adendo 2). (N. do T.)

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S O C I E D A D E E C O N H E C I M E N T O E M   O C A P I T A L

que seria muito alto para a filosofia da reflexão criticada por Hegel, ou seja, o

da sua superação, ainda que isso se dê no seu próprio terreno, no terreno filo

sófico. Ao inflar o conceito até o absoluto, Hegel corta o nó górdio da filosofia

moderna, que desejou ir além do conceito com meios conceituais, mas natentativa de transpor a diferença entre sujeito e objeto simultaneamente esta

 belece essa diferença como in transponível. Isso pode acarretar, em muitos

aspectos, um retrocesso em relação a posições há muito alcançadas. Porém, só

o que nos interessa aqui é o fato de que, sobre a base dessa distorção total,

Hegel estrutura uma filosofia que apresenta paralelismos surpreendentes com

o sistema marxiano, constituindo em parte diretamente um modelo m etodoló

gico para Marx. Hegel antecipa no plano filosófico aquilo que Marx decifra

como enigma da sociedade burguesa: a distorção de algo originado em algooriginário. Por conseguinte, a inflação do conceito em absoluto é, para Marx,

a expressão adequada de uma realidade em que esse processo se desenrola de

modo análogo. Sobretudo no Rascunho de O capital vem à tona que, na expo

sição marxiana, o capital tem bem mais pontos em comum com o conceito

absoluto de Hegel do que gostaria de admitir uma ciência com uma postura

solidamente materialista. Isso não deve ser entendido no sentido de uma simples

equiparação de capital e espírito universal, embora também se tenha em mente

esse aspecto. Nessa linha, é preciso apontar aqui, antes de tudo, que, no próprio

capitalismo, o motor do desenvolvimento social, a saber, a mudança das forças

 produtivas, ainda se deve à natureza da relação central de produção. Enquanto

em épocas anteriores, as forças produtivas se desenvolviam mais ou menos ao

acaso no interior de determinadas relações de produção, aqui o desenvolvimen

to de novas formas de apropriação da natureza se tornou um momento integral

da autopreservação do capital; a própria mudança constante da constelação

“sujeito-objeto” — a humanidade de um lado, a natureza do outro — torna-se

algo como que estático. “No conceito mais simples do capital, têm de estar

contidas em si suas tendências civilizatórias etc.; não podem aparecer, tal qual

nas teorias econôm icas até aqui, como meras consequências externas” (42/327

[ed. bras. Grundrisse, p. 338]).

Portanto, da mesma maneira que a produção baseada no capital cria, por um lado, a

indústria universal [...], cria também, por outro lado, um sistema da exploração univer

sal das qualidades naturais e humanas, um sistema da utilidade universal, do qual a

 própria ciência aparece como po rtadora tão perfeita quanto todas as qualidades físicas

e espirituais, ao passo que nada aparece elevado-em-si-mesmo,  legítimo-em-si-mesmo

fora desse círculo de produção e troca sociais. Dessa forma, é só o capital que cria a

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S O B R E   .4 E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

sociedade burguesa e a apropriação universal da natureza, bem como da própria conexão

social pelos membros da sociedade. Daí a grande influência civilizadora do capital; sua

 produção de um níve l de sociedade, em comparação com o qual todos os anteriores

aparecem apenas como desenvolvimentos locais  da humanidade e como idolatria da natureza. Só então a natureza torna-se puro objeto para o ser humano, pura coisa da

utilidade; deixa de ser reconhecida como poder em si; e o próprio conhecim ento teórico

de suas leis autônomas aparece unicamente como ardil para submetê-la às necessidades

humanas, seja como objeto do consumo, seja como meio da produção. O capital, de

acordo com essa sua tendência, move-se para além tanto das barreiras e dos preconcei

tos nacionais quanto da divinização da natureza, bem como da satisfação tradicional das

necessidades correntes, complacentemente circunscrita a certos limites, e da reprodução

do modo de vida anterior. O capital é destrutivo disso tudo e revoluciona constantemente, derruba todas as barreiras que impedem o desenvolvimento das forças produtivas, a

ampliação das necessidades, a diversidade da produção e a exploração e a troca da na

tureza e das forças espirituais. (42/323 [ed. bras. Grundrisse, pp. 333-4])

Além disso, Marx, pelo visto, compreende o seu conceito de capital também

como decifração materialista de antinomias centrais da filosofia burguesa da

história. Em A ideologia alemã , encontra-se a sucinta indicação de que o “po

der estranho”, ao qual os indivíduos estão subsumidos e que eles concebem“como um ardil do assim chamado espírito universal”, “revela-se, em última

instância, como mercado mundial” (3/37 [ed. bras. A ideologia alemã, p. 40]).

Mais tarde fica claro que ele vê o capital como o substrato material do sujeito

unitário da filosofia burguesa da história, substrato que — antes de franquear

a visão para a sua própria natureza interna numa determinada fase de desen

volvimento — só podia ter aparecido nessa forma — filosófica — para o su

 je ito reflexivo, que necessariamente distorce em forma natural a forma social

da individualidade desatada. Marx diz já em ¿4 ideologia alemã  que, na EraModerna, os indivíduos só são mais livres nas “ideias”, na “representação”,

mas, na realidade, são menos livres que na era pré-burguesa por estarem mais

subsum idos ao poder das coisas (3/76 [ed. bras. A ideologia alemã, p. 65]). No

 Rascunho,   porém, ele mostra como ganha existência essa representação de

liberdade com a simultaneamente crescente falta de liberdade, como o próprio

capital existente produz essa forma de liberdade, através da qual ele realiza a

sua regularidade imanente. “Na livre concorrência, não são os indivíduos que

são liberados, mas o capital. [...] Em consequência, esse tipo de liberdade individual é ao mesmo tempo a mais completa supressão de toda liberdade indi

vidual e a total subjugação da individualidade sob condições sociais que assu-

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SOCIEDADE E CONHECIMENTO EM   O CAP ITAL

mem a forma de poderes coisais, na verdade, de coisas superpoderosas [...]”

(42/550-1 [ed. bras. Grundrisse, pp. 545-6]). Por essa razão, só é livre o indiví

duo sob a forma da máscara, cuja atuação já está pré-formada, que de qualquer

modo já é um agir universal, ainda que se trate de um agir universal na formada particularidade. Já depreendemos de A ideologia alemã  que a teoria mate

rialista se ocupa exclusivamente com a máscara social e que a propriedade

 privada deve ser equiparada à abstração real de toda a individualidade: “Pro

 priedade privada real é exatamente a coisa mais universal, que não tem abso

lutamente nada a ver com a individualidade e que inclusive a derruba. Na

mesma proporção em que sou considerado como proprietário privado, deixo

de ser considerado como indivíduo — uma frase que os casamentos por dinheiro

diariamente comprovam” (3/211 [ed. bras. A ideologia alemã, p. 225, nota a]).  No Rascunho, essa ideia é desenvolvida sistematicamente sob a forma do “ca

 pital ex istente para si”, do capita l que existe, referindo-se a si mesmo como

outro capital, e então em O capital  não mais com a terminologia orientada

diretamente em Hegel, mas idêntica quanto ao teor como personificação de

categorias econômicas:

Para evitar possíveis erros de compreensão, ainda algumas palavras. De modo algum

retrato com cores róseas as figuras do capitalista e do proprietário fundiário. Mas aqui

só se trata de pessoas na medida em que elas constituem a personificação de categorias

econômicas, as portadoras de determinadas relações e interesses de classes. Meu ponto

de vista, que apreende o desenvolvimento da formação econômica da sociedade como

um processo histórico-natural, pode menos do qu e qualquer outro responsabilizar

o indivíduo por relações das quais ele continua a ser socialmente uma criatura, por

mais que, subjetivamente, ele possa se colocar acima delas. (23/16 [ed. bras. O capital, 

vol. I, p. 80])

O idealismo de Hegel, ao afirmar que os seres humanos obedecem a um

conceito detentor de poder, é essencialmente mais adequado a esse mundo

distorcido do que qualquer teoria nominalista que aceita o universal tão so

mente como algo subjetivamente conceituai. Ele é a sociedade civil — enquan

to ontologia. A diluição do não idêntico à condição de pura categoria tem seu

substrato real nessa distorção fática, na qual a individualidade viva é absorvida

 pela própria máscara do seu personagem. Sob esse aspecto, o conceito da ex

 posição, tomado de Hegel, aparece sob uma nova luz. Anteriorm ente já foimencionado que, na época da redação do  Rascunho, Marx dedicou-se a um

segundo estudo de Hegel e que, depois disso, fala pela primeira vez explicita-

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SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

mente do conceito da “exposição d ialética” . Em jane iro de 1858, ele escreve a

Friedrich Engels:

 No método de processamento, prestou-me um grande serviço o fato de eu by mere accident   [acidentalmente] — Freiligrath encontrou alguns volumes de Hegel original

mente pertencentes a Bakunin e os mandou de presente para mim — ter folheado nova

mente a Lógica de Hegel. Se algum dia eu tiver tempo para realizar esse trabalho, teria

muita vontade de tornar acessível ao entendimento humano comum, em dois ou três

cadernos de impressão, o aspecto racional do método que Hegel descobriu, mas ao

mesmo tempo mistificou. (29/260)

Tendo em vista os grandes mal-entendidos sobre a dialética materialista,que até hoje não foram dirimidos, só se pode lamentar que Marx não tenha

mais encontrado tempo para executar esse trabalho. Ele não chegou sequer a

dar indícios sobre o que foi esse serviço que a lógica hegeliana lhe prestou no

método de processamento, nem desenvolveu de forma sistemática no que ele 

vislumbrou o aspecto racional do método hegeliano. Isso é lamentável, sobre

tudo porque as poucas manifestações sobre a dialética de modo algum fran

queiam ao iniciante o acesso ao método dialético, mas só são compreensíveis

 para quem de qualquer modo já sabe do que se trata.Mesmo que Marx não explicite isso com tanta clareza, é de presumir que

ele não entendeu o método dialético como um procedimento de validade su-

 pra tempora l, mas bem mais como um método que é tão bom ou tão ru im

quanto a sociedade a que ele corresponde. Ele só tem validade onde impõe um

universal à custa do individual. Enquanto dialética idealista, ele é a duplicação

filosófica da distorção real; enquanto dialética materialista, é método a ser

revogado, que desaparecerá junto com as condições de sua existência. Em

consequência, induz a erro sobretudo falar da “aplicação do método dialético”,o que transmite a impressão de tratar-se de um procedimento que pode ser

aprendido, que pode ser assentado a par tir de fora a diversos conteúdos. Marx,

no entanto, jamais teve essa intenção; esse equívoco deve ser remontado muito

antes ao nosso modo atual de ver as coisas, que mais do que nunca se orienta

no ideal metodológico das ciências naturais. Marx insiste em que — e nisso

ele se revelou um discípulo autêntico de Hegel — nada se pode dizer sobre o

método independentemente do seu conteúdo. Baseado justamente nos ensaios

econômicos de Ferdinand Lassalle, ele critica essa transposição singela e acrí-

tica da dialética hegeliana para novos objetos. Em fevereiro de 1858, ou seja,

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SOCIEDADE E CONHECIMENTO EM O  CAPITAL

no período em que estava trabalhando no Rascunho  de O capital, Marx escreve

a Friedrich Engels:

A partir dessa única anotação, já vejo que o rapaz pretende expor a economia política em termos hegelianos no seu segundo grande opus. E le descobrirá para o seu próprio

 prejuízo que um a coisa é deixar u ma ciência, mediante a crítica, no ponto de poder ser

exposta dialeticamente e outra bem d iferente é aplicar um sistema d a lógica abstrato e

 já pronto a intuições justam en te de tal sis tema. (29/275)

Tendo como pano de fundo o conjunto da teoria materialista, é óbvio que essa

observação se refere unicamente à ciência da economia política, que, enquan

to exposição da base, de qualquer modo constitui o ponto de partida científico

 para o desenvolvimento da teoria do Estado e de toda ideologia. Só a economia

 política é, de modo geral, objeto da exposição dialética; ela própria exige essa

forma; o fato de Marx “folhear” a  Lógica  de Hegel justamen te na época em

que está ocupado com a redação do Rascunho, podendo assim agregá-la como

modelo metodológico, está, por isso mesmo, condicionado igualmente pela

apreensão mais precisa do objeto propriamente dito dessa ciência, a qual ele,

mais ou menos no mesmo período, caracteriza, numa carta a Lassalle, como

“crítica das categorias econômicas” (29/550). Significativo e característico ao

mesmo tempo é o fato de Marx não se estender sobre o tema, mas contentar-secom essa indicação.

Contudo, quando se tem alguma fam iliaridade com a natureza desse objeto

e com a estrutura complexa de sua exposição, com O capital,  torna-se com

 preensível por que é questionável toda tentativa de caracterização genérica não

só do sistema de categorias e do método de exposição, mas também de todo o

 processo capitalis ta real, e por que ela de antemão forçosamente se equivoca

rá quanto ao objeto. De fato, também deve valer aqui o que Hegel reivindica

 para a sua filosofia: o caminho para a ciência é ela mesma. A única form a possível da definição é a efetuação do sistema em sua totalidade, que em alguns

“pontos nodais” dá ensejo a observações mais genéricas, cuja discussão, con

tudo, jamais deveria ser dissociada da respectiva estrutura em que se encontra

no interior da exposição global. Assim sendo, em última análise, também as

 poucas referências à natureza das categorias, que ele descreve como “formas

ideais objetivas”, só podem ser plenamente apreendidas enquanto “formas de

manifestação de relações essenciais” ou “expressões de funções” no seu lugar

concreto. Contudo, para delinear o horizonte geral diante do qual deve servista a crítica das categorias econômicas, será feita aqui, não obstante, uma

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SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

tentativa, dissociada do “conceito geral do capital” e anterior à sua efetuação,

de dizer algo sobre a estrutura do sistema global, e isso mediante o esboço de

alguns problemas da economia política.

Visando à exposição, Marx diferencia radicalmente, no Rascunho, “capitalem geral” de capital individual, e, nesse contexto, sempre indica que a análise

da concorrência só será feita bem mais tarde. Contudo, o modo da diferencia

ção é sumamente significativo, visto que ele não só permite adquirir uma pri

meira noção provisória do método da exposição, mas também engloba por

 princípio também toda a crítica da economia política burguesa. Expressando

concordância, Marx menciona que, em seu comentário sobre a obra de Adam

Smith, Wakefield “farejou corretamente” que “a livre concorrência [...] jamais 

foi elaborada pelos economistas, por mais que tagarelem sobre ela e que sejaa base de toda a produção burguesa, da produção fundada no capital” (42/327

[ed. bras. Grundrisse, p. 338]). De fato, o conceito da concorrência permite

demonstrar de modo incisivo como a estrutura da consciência burguesa neces

sariamente obriga o teórico a capitular. A distorção da máscara em forma na

tural, a hipostasiação do sujeito burguês em ser humano puro e simples, que

faz com que a individualidade desatada apareça como forma absoluta de exis

tência do sujeito livre, expressa-se como impossibilidade teórica de uma ex

 plicação positiva da concorrência. A consciência burguesa é obrigada a ater-sea um modo de análise negativo que precisa absolutizá-la — visto que ela não

 percebe o seu próprio procedimento como tal.

A concorrência, porque aparece historicamente como dissolução de obrigação cor

 porativa, regulamentação governamental, alfândegas internas e similares no interior de

um país, e no mercado mundial como supressão de barreiras ou proteção — em suma,

 porque aparece historicamente como negação dos limites e das barreiras peculiares às

fases de produção que precederam o capital; porque historicamente foi qualificada esaudada pelos fisiocratas, de modo totalmente correto, como laissezfaire, laissez passer; 

 por essas razões, ela passou a ser cons iderada por esse aspecto puramente negativo, por

esse seu aspecto puramente histórico. (42/549-50 [ed. bras. Grundrisse,  p. 544])

Essa necessária absolutização de um modo de análise meramente histórico

incide na formação da teoria como procedimento hipotético, sendo sintom áti

co, de acordo com Marx, da força do pensamento de David Ricardo que justa

mente a reflexão sobre a exterioridade e a arbitrariedade desse modo de proceder suscite nele uma intuição da natureza histórica das leis econômicas

 burguesas, como ele próprio ressalta , reconhecendo o fato. Para fazer com que

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S O C I E D A D E E C O N H E C I M E N T O E M   O C A P I T A L

as leis do capital assomem em sua pureza, Ricardo supõe a "concorrência ir

restrita” e a “multiplicação dos produtos a bel-prazer”, embora a razão de ser

teórica dessa suposição não seja plausível. Na falta de clareza metodológica

dessa suposição, que ainda hoje é adotada sem discussão na bibliografia econômica, oculta-se, para Marx, toda a problemática da economia política bur

guesa, que, naquela época, era a única ciência que continha problemas reais

que ele podia tomar como ponto de partida. Pois ela era a exposição da base,

mas, sendo ciência burguesa, era uma forma de exposição da base não cons

ciente de si mesma enquanto base, resultando daí — se assim quisermos — a

situação paradoxal de que a base mesma ainda ingressa na sua própria exposi

ção na condição de algo como um a cegueira categorial. O aspecto constituinte

da economia política burguesa consiste justamente em que ela não reconheceque, no caso do seu próprio objeto, trata-se de um processo de reprodução

social global, que se “decompõe” no trabalho privado de produtores individuais,

que não servem ao interesse universal apenas na medida em que cada indivíduo

 persegue irrestritamente o seu interesse privado, mas que já no ato de perseguir

o interesse privado realizam o universal: a “natureza intrínseca” do capital.

Orientando-se diretamente na formulação lógico-especulativa que Hegel fez

do momento conceituai da particularidade [Einzelheit ], da peculiaridade [Be- 

sonderheit\  refletida em si mesma e, por essa via, reconduzida à universalidade[ Allgemeinheit ], Marx compreende o capital existente. Assim como o “eu pen

so” da consciência de si — portanto, o  exemplo do conceito e especialmente

do momento da particularidade — só existe, só é aí  no ato de pensar, enquanto

universal ele só existe quando está ciente de ser algo que se mantém como

idêntico numa determinidade, sendo a determinidade para si do eu, assim tam

 bém o capital só pode existir como existente para si: “o capital existente para

si é o capitalista. Evidentemente é dito por socialistas que precisamos do ca

 pital, mas não do capitalista. O capital aparece então como pura coisa, nãocomo relação de produção, que, refletida em si mesma, é precisamente o cap i

talista” (42/224-5 [ed. bras. Grundrisse, p. 236]). Isso, porém, nada mais é que

o conceito marxiano de concorrência. O capital enquanto existente é a relação

do capital consigo mesmo como outro capital, mas enquanto capital “é  a re

 pulsão de si mesmo, os muitos capitais totalmente indiferentes entre si” (42/336

[ed. bras. Grundrisse, p. 345]). “Conceitualmente a concorrência nada mais é

que natureza interna do capital, sua determinação essencial, que se manifesta

e se realiza como ação recíproca dos vários capitais uns sobre os outros, a

tendência interna como necessidade externa” (42/327 [ed. bras. Grundrisse, 

 p. 338]). A isso se limita a análise marxiana da concorrência no  Rascunho   de

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SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

O capital,  que se ocupa unicamente com a exposição rigorosa do “conceito

geral do capital”. Contudo, em O capital a coisa é diferente. A diferenciação

radical entre conceito geral e concorrência enquanto capital existente, cuja

exposição não se pretende mais acolher na investigação geral, não é mais efetuada do mesmo modo que no Rascunho:

Do que neste Livro Terceiro se trata não pode ser da formulação de reflexões gerais

sobre essa unidade [de processo de produção e de circulação, H. R.]. Trata-se muito mais

de encontrar e expor as formas concretas que surgem do  processo de movimento do 

capital considerado como um todo.  Em seu movimento real, os capitais se defrontam

em tais formas concretas, para as quais a figura do capital no processo de produção di

reto, bem como a sua figura no processo de circulação, só aparece como m omento es pecífico. As configurações do capital, como as que desenvolvemos neste livro, aproxi

mam-se, portanto, passo a passo, da forma em que elas mesmas aparecem na superfície

da sociedade, na ação dos diferentes capitais entre si, na concorrência e na consciência

costumeira dos agentes da produção. (25/33 [ed. bras. O capital, vol. III, tomo 1, p. 23])

Seja comentado aqui apenas que, por essa via, não só foi modificada a es

truturação dos dois primeiros volumes de O capital, que coincidem em termos

de conteúdo aproximadamente com a do Rascunho, mas que essa reestruturação

está associada, em termos gerais, com a inclusão de material que não pode ser

“derivado do conceito” . Em contrapartida, como já foi indicado — e em Teorias 

da mais-valia, assim como em O capital,  encontram-se passagens suficientes

que comprovam isso —, Marx faz questão de dizer que se trata apenas da

“análise geral”, sempre só da exposição das relações reais, na medida em que

correspondem ao seu conceito. Em consequência disso, é preciso passar a di

ferenciar explicitamente dois aspectos no conceito da concorrência: de um

lado, o capital enquanto ele mesmo e sua própria superfície, o capital enquan

to unidade processual de essência e fenômeno, que ainda ganha expressão na

exposição conceituai; de outro, o capital na realidade histórica. Esse segundo

aspecto é fundamentalmente excluído:

Ao expor a reificação das relações de produção e sua autonom ização em relação aos

agentes da produção, não entramos na análise do modo em que as conexões do mercado

mundial, suas conjunturas, o movimento dos preços de mercado, os períodos do crédito,

os ciclos da indústria e do comércio, as alternâncias de prosperidade e crise, lhes apa

recem como leis naturais onipotentes, que os dominam contra sua vontade, impondo-se

a eles como cega necessidade natural. Não o fizemos porque o movimento real da con

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SOCIEDADE E CONHECIMENTO EM 0   CAPITAL

corrência está fora de nosso plano e só queremos apresentar a organização intrínseca do

modo de produção capitalista em sua média ideal, por assim dizer. (25/839 [ed. bras. O 

capital, vol. III, tomo 2, p. 280])

 No quadro da nossa investigação da obra de Marx, nós também queremos

excluir esse complexo e ocupar-nos tão somente com o capital, na medida em

que, como capital existente, capital existente para si, igualmente ainda entra

na exposição do conceito geral. Um aspecto para o qual Marx indica apenas

uma vez no  Rascunho  passa a ter importância central:

 Na concorrência aparece  [...] tudo invertido. A figura acabada das relações econô

micas, tal como se mostra na superfície, em sua existência real e, portanto, também nasconcepções mediante as quais os portadores e os agentes dessas relações procuram se

esclarecer sobre as mesmas, difere consideravelmente, sendo de fato o inverso, o opos

to de sua figura medular interna, essencial mas oculta, e do conceito que lhe corresponde.

(25/219 [ed. bras. O capital, vol. III, tomo 1, p. 160])

Trata-se aqui de uma observação — repetidas vezes enunciada em O capi

tal — que só pode ser entendida como outra formulação dos problemas fun

damentais da economia burguesa. O processo de reprodução social global, ocapital enquanto “forma coesa” do trabalho social, que só existe enquanto

síntese social global no ato da decomposição de si mesmo em capitais indi

viduais, impõe ao capitalista individual, nessa unidade processual de repulsão

e atração, como “necessidade exterior, o que corresponde à natureza do capital”

(42/550 [ed. bras. Grundrisse, pp. 544-5]). É precipuamente nessa relação entre

natureza interna do capital e seu modo de existência que Marx caracteriza

as categorias como “formas de manifestação de relações essenciais”, assim

como se refere em primeira linha a esse contexto a frase frequentemente c itada sobre a ciência, da qual ele diz que seria supérflua se “a forma de manifesta

ção e a essência das coisas coincidissem” (25/825 [ed. bras. O capital, vol. III,

tomo 2, p. 271]).

 Não é preciso continuar ressaltando aqui que uma “crítica ao essencialismo”

que se orienta exclusivamente pela aceitação dessas categorias extremamente

 prejudicadas pela tradição metafísica equivoca-se quanto à questão. Essa acei

tação igualmente ainda é condicionada pelo objeto a ser exposto, que exige

uma concepção de essência e fenômeno, na qual essa relação não seja conce bida como intransponível. Correspondendo ao caráter metateórico da ciência

materialista, essa ciência a ser revogada, Marx se orienta bem mais pela filo

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SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

sofia hegeliana ao compreender a essência não como absolutamente transcen

dente, mas como essência que tem de aparecer — como na concepção hegelia

na —, mais exatamente, tem de  aparecer plenamente; se não aparecesse, não

seria a essência. Nesse caso, as categorias só são “formas de manifestação derelações essenciais” porque o capital universal “aparece” para o capitalista,

 para o “capital existente para si”, mas aparece — e esse é justam ente o ponto

de vista decisivo — ao mesmo tempo que se oculta no ato de aparecer. É isso

que gera problemas para a ciência, pois esta só se constitui em virtude dessa

diferença entre essência e fenômeno.

Por essa razão, examinemos a forma em que se apresenta o processo capi

talista global do ponto de vista do capital individual. Para o capitalista operan

do na prática é uma obviedade que salário, juros e renda funcionam comoelementos da formação de preços; que o preço final do novo produto é decisi

vamente determinado pela adição dos preços dos diferentes fatores da produção.

Essas categorias, como naturalmente a do lucro, que ele precisa antecipar em

certa medida, são as formas centrais que “definem” o seu modo de existência

enquanto capitalista individual; elas são pressupostas pela totalidade das suas

 ponderações, e sua atividade se realiza no interior desse arcabouço categorial:

 Na concorrência, tanto dos capitalistas individuais entre si quanto na concorrênciano mercado mundial, são as grandezas dadas e pressupostas de salário, juros e renda que

entram no cálculo como grandezas constantes e reguladoras; constantes não no sentido

de que elas não alteram a sua dimensão, mas no sentido de que, em cada caso individual,

elas são dadas e constituem o limite constante para os preços de mercado em constante

flutuação. Por exemplo, na concorrência no mercado mundial, trata-se exclusivamente

de saber se, com o salário, os juros e a renda dados, a mercadoria pode ser vendida com

vantagem aos preços gerais vigentes no mercado, ou abaixo deles, isto é, com a reali

zação de um ganho empresarial correspondente. Se num país o salário e o preço da

terra são baixos e, pelo contrário, os juros do capital são elevados porque o modo de

 produção capitalista aqui nem sequer está desenvolvido, enquanto em outro país o sa

lário e o preço da terra são nominalmente altos, mas, pelo contrário, os juros do capital

estão baixos, o capitalista emprega num país mais trabalho e terra, no outro proporcio

nalmente mais capital. No cálculo de saber até que ponto é possível a concorrência

entre os dois, esses fatores entram como elementos determinantes. Portanto, a experiên

cia mostra aqui, teoricamente, e o cálculo pelo qual o capitalista se interessa mostra-o

 pra ticamen te , que os preços das mercador ias são determ inad os por sa lário, ju ro s e

renda, pelo preço do trabalho, do capital e da terra, e que esses elementos do preço são,de fato, os constituintes reguladores do preço. (25/881-2 [ed. bras. O capital,  vol. III,

tomo 2, p. 309 modif.])

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SOCIEDADE E CONHECIMENTO EM   O CAP ITAL

Junto com a existência do capital enquanto capital individual e das catego

rias “salário”, “juros” e “renda”, que aparecem como preços para os diferentes

fatores da produção, ou então, do ponto de vista dos proprietários desses fato

res da produção, como receita, está dada simultaneamente a “aparência da concorrência” que, em termos gerais, começa a constituir os problemas da econo

mia nacional. A questão real de que se trata — trabalho humano enquanto

substância do valor — foi dissimulada: na medida em que salário, juros e

renda aparecem como pressupostos da formação de preços, parece que todos

os “fatores da produção” participam na mesma proporção do surgimento do

incremento de valor da nova produção.

 Na fórmula: “capita l-juros, terra-renda fundiária, traba lho-salário”, capital, terra e

trabalho aparecem, respectivamente, como fontes de juros (em vez de lucro), e renda

fundiária e salário como seus produtos, seus frutos; aqueles são o motivo, estes, a con

sequência, aqueles, a causa, estes, o efeito; e isto de tal maneira que cada uma das

fontes está referida ao seu produto como aquilo que é derivado e produzido por ela.

(25/824 [ed. bras. O capital, vol. III, tomo 2, pp. 270-1])

Essa “fórmula” é ponto de partida da ciência da economia política; nela se

concentram os problemas centrais, e, por essa razão, de modo algum é poracaso que O capital de Marx conclui com a análise da estrutura de superfície

do capital, com a crítica dessa “fórmula trinitária” — como ele a caracteriza

com ferina ironia — “que compreende todos os segredos do processo de pro

dução social” (25/822 [ed. bras. O capital, vol. III, tomo 2, p. 269]). A exemplo

de Hegel, também Marx retorna à imediatidade, mostrando-a como mediada;

no fundo, todo O capital é a forma sistemática que “expressa conceitualmente”

essas “formas destituídas de conceitos”.

A categoria “salário” é a que oferece as maiores dificuldades à decifração,mas ao mesmo tempo a sua desmistificação constitui para Marx o pressuposto

 para a com penetração conceituai plena do processo global.

Sobre essa forma de manifestação, que torna invisível a relação efetiva e mostra

 precisam ente o oposto dessa relação, repousam todas as noções jur ídicas, tan to do tra

 balhador com o do capitalista, todas as mistificações do modo de produção capitalista,

todas as suas ilusões de liberdade, todas as tolices apologéticas da economia vulgar.

(23/562 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 610])

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S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

A caracterização marxiana do trabalho no capitalismo como escravidão assa

lariada de modo algum deve ser encarada apenas como alusão cínica às relações

existentes no processo imediato de produção, mas se refere, muito antes, ao

 ponto de engate do sistema, ao ponto de junção , no qual a esfera da aparênciaé mediada com a esfera da essência: na passagem da esfera da circulação sim

 ples para o capital, que Marx compreende, no  Rascunho , em conexão estreita

com a formulação hegeliana na lógica maior. A circulação simples enquanto

esfera da aparência, contudo, não é idêntica ao objeto do volume III de O ca

 pital., que é a “superfície” da sociedade burguesa, embora haja sobreposições.

Foi indicado acima que Marx acolheu em O capital  momentos daquilo que

originalmente ficaria reservado à análise da concorrência, e que ele até proces

sou no primeiro volume dessa obra uma grande quantidade de material empírico que, no fundo, nem poderia ter sido acolhido na exposição do conceito

geral, já que não pode ser derivado do conceito. É por isso que, na exposição

rigorosa feita no  Rascunho,  Marx ainda não aborda o salário de modo a de

monstrar pela irracionalidade da própria forma como deve ser compreendida

a relação entre essência e fenômeno. Visto que aqui ele trata meramente do

“capital em geral”, e não da ação do capital existente na interação dos muitos

capitais entre si, e, em consequência disso, tampouco examina a troca entre

capital e trabalho na forma em que ela se apresenta ao capitalista individual e

ao trabalhador individual, também esse problema ainda não o afeta. No  Ras

cunho, ele trata essencialmente da formulação da “inversão dialética”, median

te a qual se demonstra que a troca entre capital e trabalho, entre o capital

global e o trabalhador global, não é uma troca de equivalentes, mas apropriação

de trabalho alheio “sem troca, sem equivalente, mas com a aparência de troca”

(42/456 [ed. bras. Grundrisse, p. 455]), e que só esse “statement  [enunciado]”

 pode ser igualado à compreensão plena da natureza do processo global. Porém,

foi justamente na solução desse problema que falharam os dois maiores teóri

cos, Adam Smith e David Ricardo, de modo que, no final, não lhes foi possível

 provar a validade universal da lei do valor no capita lismo desenvolvido.

 Na superfície do processo global , a cu ja exposição Marx, no fundo, dá

início já no volume I de O capital  com a análise do salário, manifesta-se a

relação entre essência e fenômeno na irracionalidade da própria forma. A eco

nomia política clássica assume acriticamente a categoria “preço do trabalho”

da vida cotidiana, mas não reconhece que essa forma, em si mesma, é “tão

irracional quanto um logaritmo amarelo” (25/826 [ed. bras. O capital, vol. III,

tomo 2, p. 272]). Na expressão “preço” ou “valor do trabalho”, “o conceito de

valor não só se apagou por completo, mas converteu-se em seu contrário. É

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SOCIEDADE E CONHECIMENTO EM O  CAPITAL

uma expressão imaginária, como valor da terra. Essas expressões imaginárias

surgem, no entanto, das próprias relações de produção. São categorias para

as formas em que se manifestam relações essenciais” (23/559 [ed. bras. O ca

 pital, vol. I, p. 607]). A forma do salário, do preço do trabalho, encobre que otrabalho formador de valor, representado pelo valor das mercadorias, nada

tem a ver com a repartição desse valor entre as diferentes categorias, assim

como, inversamente, encobre que esse trabalho, na medida em que possui esse

caráter especificamente social, não é formador de valor. Essa é a razão oculta

da teoria dos fatores da produção, na qual a própria natureza é mistificada.

Visto que, na expressão “preço do trabalho”, o trabalho assalariado não apare

ce como uma forma social determinada do trabalho, mas todo trabalho por

sua natureza aparece como trabalho assalariado, também cai por terra necessariamente a

[...] forma socialmente determinada em que as condições de trabalho que agora se de

frontam com o trabalho também coincidirão com sua existência material. Então, os meios

de trabalho são, enquanto tais, capital, e a terra é, enquanto tal, propriedade fundiária.

A autonomização formal dessas condições de trabalho em relação ao trabalho, a forma

específica dessa autonomização que elas possuem diante do trabalho assalariado é, en

tão, uma propriedade inseparável deles enquanto coisas, enquanto condições de produção materiais, um caráter imanente e intrínseco que necessariamente lhes advém en

quanto elementos de produção. O seu caráter social determinado no processo de

 produção capitalis ta mediante uma época h istórica determinada é um caráter material,

inato, que lhes é natural e, por assim dizer, de origem eterna, enquanto elementos do

 processo de produção. (25/833 [ed. bras. O capital, vol. III, tomo 2, pp. 276-7])

A forma capitalista do processo de produção se distorce em pura forma

natural e se torna idêntica ao processo simples do trabalho, que constitui a basede todas as formações sociais como pressuposto perene da vida humana. Ao

mesmo tempo, os meios de produção são acrescidos de forças místicas. As

demais receitas parecem dever-se diretamente ao papel que os meios de pro

dução desempenham no processo simples de produção. Se o trabalho assala

riado coincidir com o trabalho puro e simples, coincide também a parcela de

valor representada pelo salário com o valor em geral criado pelo trabalho. Em

consequência disso, também as parcelas do produto do valor que se apresentam

em outras formas devem originar-se de fontes próprias, distintas do trabalho,ou seja, dos fatores cooperantes da produção, a cujos possuidores elas cabem

como parte.

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S O B R E   /4 E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

As diferentes rendas fluem de fontes inteiramente diversas: uma provém da terra, a

outra, do capital e a terceira, do trabalho. Assim não há entre elas relacionamento hostil

 por não haver entre elas conexão interna. Contudo, se atuam ju nta s na produção, a

atuação é harmônica [...] como, por exemplo, o camponês, o boi, o arado e a terra naagricultura, no processo real do trabalho, trabalham juntos em harmonia, apesar de sua

diversidade. (26.3/493 [ed. bras. Teorias da mais-valia,  vol. III, p. 1.541]*)

Essa distorção peculiar decorre do processo capitalista global como ten

dência interpretativa necessariamente mistificadora, e será importante enquan

to existirem a propriedade fundiária e um corpo de trabalhadores assalariados

livres. Enquanto a apropriação da riqueza em sua forma geral for finalidade da

 produção, o processo de reprodução social global deverá aparecer sob essaforma, uma forma que distorce, nela mesma, a natureza histórica do processo

social em seu contrário, fazendo com que pareça puramente a-histórico. Por

isso, essas “formas irracionais” devem ser encaradas como o “centro nervoso”

de toda a teoria burguesa e só pela via da decifração será possível obter acesso

ao processamento teórico adequado do processo capitalista global. Ao mesmo

tempo, a sua compenetração abre a possibilidade de retraçar o processo de

constituição do sujeito burguês sob a forma da exposição dialética das catego

rias. Em contraposição, se não for bem-sucedido na dissolução dessa mistificação, o teórico de antemão já está fadado a perceber o mundo burguês sob

uma única forma, a saber, a do objeto. Nesse caso, por mais que se fale de

história, as formulações dessa teoria permanecerão, em última análise, a-his-

tóricas. Em A miséria da filosofia, Marx descreveu de modo penetrante essa

singular a-h istoricidade da teoria burguesa:

Os economistas têm uma maneira invulgar de proceder. Para eles, só há duas es

 pécies de instituições, as da arte e as da na tureza. As instituições do feudalismo sãoinstituições artificiais, as da burguesia são instituições naturais. N esse ponto, asseme

lham-se aos teólogos que também diferenciam duas espécies de religião. Qualquer

religião que não é a sua é invenção humana, ao passo que sua própria religião é uma

revelação de Deus. Quando os economistas dizem que as relações atuais, as relações

da produção burguesa, são naturais, eles dão a entender que se trata de relações nas

quais a geração da riqueza e o desenvolvimento das forças produtivas se dão em con

formidade com as leis da natureza. Portanto, essas relações são, elas próprias, leis

* Ref. com pleta da edição brasileira: K. Marx, Teorias da mais-valia. História crítica do pen

samento econômico. Trad. Reginaldo San t'An na. São Paulo, Difel, 1985, vol. III. (N. do T.)

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SOCIEDADE E CONHECIMENTO EM  O CAPITAL

naturais independen tes da influência do tempo. São leis eternas que devem reger sem

 pre a sociedade. Assim, houve história, mas não haverá m ais; houve h istória , visto que

existiram instituições feudais e, nessas instituições do feudalismo, encontram-se re la

ções de produção totalmente diferentes daquelas da sociedade burguesa, que os economistas querem fazer passar por naturais e, portanto, eternas. (4/140 [ed. bras. A mi

séria da filosofia,   p. 110 modif.])

O fato de o modo de produção burguês ser visto como em conformidade

com a natureza e como eterno não é — como mostra o Marx maduro — uma

suposição conscientemente levada a cabo pelos economistas burgueses (no

 plano da econom ia política , isso seria crítica à ideologia no sentido da teoria

da fraude clerical* do Iluminismo), mas deve ser remontado a essas formas demanifestação. Elas selam ao mesmo tempo a capitulação teórica diante da

estrutura da “duplicação de todos os elementos em seres burgueses e em seres

estatais”, como consta na obra inicial, e, por essa via, permitem que a história

ainda seja escrita do modo criticado por Marx em sua controvérsia com Feuer-

 bach: “A produção real da vida aparece como algo a-histórico, enquanto o

elemento histórico aparece como algo separado da vida comum, como algo

extra e supraterreno. Com isso, a relação dos seres humanos com a natureza é

excluída da história, o que engendra a oposição entre natureza e história” (3/39[ed. bras. A ideologia alemã, pp. 43-4 modif.]).

Anteriormente já se apontou para o fato de que o capitalismo só franqueia

totalmente a visão para a sua estrutura interna em determinada fase do seu

 próprio desenvolvimento, de modo que o restringimento dos teóricos burgueses

à esfera da aparência não precisa ser remontado a momentos subjetivos. Soma-

-se a isso — como Marx observa na apreciação da obra de Adam Smith — que

uma parcela essencial de seu trabalho teórico consistiu, de modo geral, em

 primeiro “descrever as formas vitais aparentes, externas dessa sociedade [burguesa, H. R.] e apresentar as suas conexões como aparecem exteriormente;

achar ainda, para esses fenômenos, a nomenclatura e as correspondentes ideias

abstratas, e assim, pela primeira vez, reproduzi-los na linguagem e no proces

so intelectual” (26.2/162 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 598]**). A

expressão “conceitos do entendimento” permite reconhecer que Marx entende

* Teoria desenvolvida por filósofos ilumin istas, especialmente franceses, que criticava osenunciados religiosos com o invenções fraudulentas de clérigos. (N. do T.)

** Ref. completa da edição brasileira: K. Marx, Teorias da mais-valia.  Trad. Reginaldo de

Sant’Anna. São Paulo, Difel, 1983, vol. II.

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SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

o “conceito geral do capital” inteiramente no sentido de Hegel, ou seja, como

um sistema de conceitos racionais, e os teóricos burgueses assumem no próprio

sistema marxiano uma posição que o sistema hegeliano atribui à ciência da

experiência moderna. “Sem a formação própria da ciência da experiência, afilosofia não teria conseguido ir além do que foram os antigos” , diz Hegel da

ciência empírica, que teria essencialmente o propósito de “encontrar gêneros,

coisas gerais, leis. E, na medida em que os produz, ela se encontra com o chão

do conceito, prepara o material empírico para o conceito, que este, então, pode

acolher corretamente”5. No entanto, essa analogia não se restringe a isso, em

 bora possa ter sido concebida por Marx unicamente nesse sentido. A apreciação

marxiana da teoria burguesa lembra simultaneamente a postura hegeliana ante

a metafísica ingênua do entendimento, à qual ele atesta ser, por seu teor, “autêntico filosofar especulativo”, mas, ao mesmo tempo, deixa de analisar a na

tureza dos conceitos do entendimento e seu próprio procedimento na determ i

nação do absoluto. No entanto, isso não diz respeito à economia burguesa em

sua totalidade. Sob o aspecto da finalidade do conhecimento, Marx faz uma

diferenciação muito precisa entre teoria clássica e economia vulgar.

Marx se dedica a analisar exclusivamente a teoria clássica. Em distinção à

economia vulgar, que se caracteriza por “uma superficialidade, fundada no

 princípio do culto das aparências” (23/561 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 609]),os clássicos estão empenhados tanto quanto ele em penetrar na “fisiologia

interna” da sociedade burguesa, na essência do processo global, na medida em

que derivam todas as formas da riqueza social de uma substância comum: do

trabalho e do mais-trabalho.

Em capital-lucro ou, melhor ainda, capital-juros, terra-renda fundiária, trabalho-

-salário, nessa trindade econômica como conexão dos componentes do valor e da rique

za em geral com suas fontes, está completa a mistificação do modo de produção capitalista, a reificação das relações sociais, a aglutinação imediata das relações materiais de

 produção com sua determinidade histórico -social: o mundo encantado , distorcido e

 posto de cabeça para baixo, no qual  Monsieur le Capital e  Madame la Terre exercem

suas fantasmagorias ao mesmo tempo como caracteres sociais e imediatamente como

meras coisas. O maior mérito da Economia clássica consiste em ter dissolvido essa

falsa aparência, esse engodo, essa autonomização e essa ossificação dos diferentes ele

mentos sociais da riqueza entre si, essa personificação das coisas e essa reificação das

relações de produção, essa religião da vida cotidiana, na medida em que reduz os jurosa uma parte do lucro e a renda ao excedente sobre o lucro médio, de tal modo que ambos

coincidem no mais-valor; já que representa o processo de circulação como mera me-

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SOCIEDADE E CONHECIMENTO EM   O CAP ITAL

tamorfose das formas e, por fim, no processo imediato de produção, reduz o valor e

o mais-valor da mercadoria ao trabalho. (25/838 [ed. bras. O capital,  vol. III, tomo 2,

 pp. 279-80 modif.])

Portanto, a teoria do mais-valor de modo algum é o critério exclusivo de

diferenciação entre a teoria marxiana e a teoria clássica. Essencial é, muito

antes, que, em todos os teóricos burgueses, o momento do natural-espontâneo

[. Naturwiichsigen] que caracteriza toda a pré-história da humanidade se imiscui

até no trabalho teórico sutil. Sendo teóricos burgueses, eles são fundamental

mente cegos para o seu próprio constituinte, para a forma geral da riqueza, de

modo que, no caso deles, a questão do conteúdo da forma nem tem mais como

assomar no horizonte da reflexão. Sendo assim, essa reflexão incorre — aindaque inconscientemente — numa situação parecida à da metafísica do entendi

mento criticada por Hegel. Visto que, para ela, para a teoria burguesa, as ca

tegorias não são “formas de manifestação de relações essenciais”, tampouco

existe para ela  a diferença entre essência e fenômeno. Os teóricos burgueses

não têm a mínima noção de que as categorias que assumem da vida cotidiana

não só são meios imprestáveis para captar a essência do processo global, mas

de antemão já condenam ao fracasso toda tentativa mais sutil de penetrar na

estrutura interior do capital, já que a essência a ser compreendida já é embutida em cada tentativa de apreensão como inapreensível. Assim, “mesmo os seus

melhores porta-vozes, como não poderia ser diferente do ponto de vista burguês,

 permanecem mais ou menos presos no mundo da aparência que sua crítica

extinguiu e, por isso, todos eles recaem, em maior ou menor grau, em formu

lações inconsequentes, semiverdades e contradições não solucionadas” (25/838

[ed. bras. O capital, vol. III, tomo 2, p. 280]). Por essa razão, a crítica marxia

na é bastante abrangente. M arx não se restringe a vincular sua crítica a proble

máticas pré-formuladas, já que estas com frequência só expressam a sua própria“dissonância”, e ele detecta a “impossibilidade da solução já nas condições

 postas pela tarefa”. Ademais é da essência da cr ítica marxiana jamais poder

entender a economia clássica literalmente. Dado que é precisamente a carac

terística da economia burguesa clássica querer ir além do horizonte burguês

recorrendo a meios burgueses, Marx pode, com toda razão, alegar um motivo

que lembra a exposição hegeliana da certeza sensível: eles não conseguem

dizer o que têm em mente e, se disserem, eles o farão com meios imprestáveis.

As categorias centrais tornam-se, por essa via, conceitos verdadeiramente“equivocados”, visto terem de cumprir duas funções: por um lado, eles signi

ficam o que realmente são, a saber, uma das formas burguesas da riqueza, mas,

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SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

 por outro, a forma burguesa tem o significado da “forma abstrata geral”, sendo

que só no contexto geral é possível aclarar o que se quer dizer em cada caso.

Seja citado aqui apenas um exemplo característico da crítica marxiana a Ri

cardo, extraído das Teorias do mais-valor:

Em suas observações sobre lucro e salário, Ricardo abstrai da parte constante do

capital, a qual não se aplica em salário. Trata o problema como se o capital todo se

empregasse diretamente em salário. Até aí, trata, portanto, do mais-valor  e não do lucro, 

e assim pode-se falar de sua teoria do mais-valor. Mas, em contrapartida, acredita falar

do lucro como tal, e sempre se insinuam na realidade pontos de vista oriundos do pres

suposto do lucro e não do mais-valor. Onde apresenta com acerto as leis do mais-valor,

erra aos expressá-las de imediato como leis do lucro. Ademais, procura estabelecer,como leis do mais-valor, as leis do lucro de imediato, sem os elos intermediários. Q uan

do tratamos de sua teoria do mais-valor, estamos falando, portanto, de sua teoria do

lucro, nos casos em que ele confunde este com o mais-valor, isto é, considera o lucro

em relação ao capital variável, à parce la do capital empregada em salário. Ocupar-nos-

-emos depois do que ele diz do lucro como elem ento distinto do mais-valor. (26.2/375-6

[ed. bras. Teorias da mais-valia,  vol. II, pp. 805-6])

 B. Crít ica da economia po l í t i ca c lássica

Embora Marx desenvolva o seu próprio sistema em estreita discussão com a

teoria clássica, não há como reduzi-lo ao que se denomina “crítica imanente”.

Repete-se, muito antes, o que havia sido antecipado por aquela divisão feita

em A ideologia alemã  — exposição “positiva” do curso da evolução histórica,

mesmo que seja só no sentido de uma indicação de pesquisa, e, separada des

ta, a crítica da consciência ideológica. O sistema econômico com a investigação conclusiva da constituição da aparência empírica estabelece a crítica da

ideologia em forma abstrata, na medida em que apenas disponibiliza os meios

metodológicos para uma crítica concreta da teoria burguesa, que, então, de fato

 pode assumir a forma da “crítica imanente” — contudo, só no que se refere à

teoria clássica. Assim como a crítica hegeliana de toda a filosofia pré-hegelia-

na de qualquer modo já é feita a partir da posição do idealismo absoluto, assim

também a crítica marxiana de qualquer modo já pressupõe o sistema em sua

totalidade. Portanto, Marx de modo algum parte diretamente das aporias dateoria burguesa, mas só é possível desenvolver estas tendo como pano de fun

do uma teoria que reconheceu “positivamente” a essência do processo global.

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SOCIEDADE E CONHECIMENTO EM   O CAPITAL

Diante desse pano de fundo, as tentativas do classicismo de apreender a essên

cia com categorias que estão como que embotadas e não servem para apreender

 justam en te aquilo de que são a própria expressão são decifradas como em pre

sa que necessariamente acabará em aporias. Por meio de alguns exemplosserão abordados a seguir alguns motivos da crítica marxiana.

1. Os fis ióc rat as

A questão da origem do mais-valor de fato é o critério pelo qual Marx faz

a diferenciação em teoria clássica e teoria vulgar, mas a “grande teoria”, no

fundo, só principia com os projetos dos fisiócratas, que assumem uma posição

 peculiar. Se a ciência econômica se inflama na diferença entre essência e fenô

meno, se ela só se constitui depois que a riqueza tiver assumido uma forma

diferente dela mesma, diz-se, com isso, ao mesmo tempo, que não pode haver

ciência em que essa diferença não existe, ou, então, em que a essência aparece,

 por assim dizer, de modo imediato. Portanto, a rigor, só pode haver teoria

econômica na sociedade burguesa; a teoria econômica de uma sociedade so

cialista é uma contradição em si, sendo que ela tampouco é possível em modos

de produção pré-burgueses. Onde a essência aparece de modo imediato, a teo

ria necessariamente é como um corpo estranho; ela é, muito antes, expressão

do fato de que a substância desse modo de produção pré-burguês está minada,

exatamente do mesmo modo como a justificação racional da monarquia só não

é mais concebida como crime de lesa-majestade onde já se vislumbra o ocaso

dessa forma de Estado. E desse modo que M arx interpreta a teoria fisiocrática.

O fato de a teoria econômica ter se desenvolvido primeiramente na França,

num “país onde predomina a agricultura” , e não na Inglaterra, “país onde pre

 ponderam a indústria, o comércio e a atividade marítima” (26.1/20 [ed. bras.

Teorias da mais-valia, vol. I, p. 25]*), ou seja, num país que, em comparação

com a Inglaterra, ainda estava muito atrasado, de modo algum aconteceu por

acaso, mas foi condicionado exatamente por esse atraso. Motivados pela forma

como os mercantilistas formularam o problema, os fisiócratas “deslocaram a

 pesquisa sobre a origem do mais-valor da esfera da circulação para a da pro

dução imediata, e assim lançaram o fundamento da análise da produção capi

talista” (26.1/14 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. I, p. 21]). Sem ter uma

compreensão clara da natureza do valor, a teoria fisiocrática se deparou dire-

* Ref. completa da edição brasileira: K. Marx, Teorias da mais-valia. História c rítica do pe n

samento econômico. Trad. Reginaldo Sant’Anna. 2. ed. São Paulo, Difel, 1987, vol. I. (N. do T.)

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SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

tamente com a diferença entre valor e aproveitamento da capacidade de traba

lho como princípio central da produção capitalista, o que só podia ter ocorrido

na França, pois “de todos os ramos de produção é a agricultura — na produção

 primária” — aquele em que essa diferença “se man ifesta de maneira maistangível e mais incontestável” (26.1/14 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. I,

 p. 21]). O que no trabalho manufatureiro se torna opaco por meio do processo

de mediação de compra e venda não pode deixar de ser percebido na análise

da produção: que a “soma dos meios de subsistência que o trabalhador conso

me todo ano ou a massa de matéria que absorve é menor do que a soma dos

meios de subsistência que produz” (26.1/14 [ed. bras. Teorias da mais-valia, 

vol. I, p. 21]). Consequentemente para os fisiócratas o único trabalho produtivo,

 por ser o ún ico que cria mais-valor, é o trabalho na agricultu ra , e a “rendafundiária é a única form a de mais-valor   que conhecem” (26.1/14 [ed. bras.

Teorías da mais-valia, vol. I, p. 21]). Porém, por ser uma teoria burguesa, ela

não consegue articular o que tem em mente, visto que passa a enredar-se na

sua própria rede categorial, que se torna perceptível de modo restritivo. Ela

tem de verter o mais-valor numa forma burguesa e absolutizar como forma

universal uma forma particular de manifestação da riqueza. Essa função, que

em Adam Smith e David Ricardo é cumprida pelo lucro, para os fisiócratas é

levada a cabo pela renda. Embora a explicação do lucro seja o ponto de partida propriamente dito, na teoria fisiocrática ele só aparece como parte da renda

fundiária. O mesmo se dá com os juros, que fluem com razão —- segundo

Turgot — para o proprietário de capital monetário, visto que, se não fosse

assim, o capitalista monetário compraria terra, ou seja, renda fundiária, e, por

essa razão, o capital monetário deveria propiciar-lhe tanto mais-valor quanto

ele receberia na transformação de capital monetário em posse fundiária (26.1/17

[ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. I, p. 22]). Para os fisiócratas, nem o lucro

nem os juros constituem valor novo que foi criado; o que eles explicam é,muito antes, “por que parte do mais-valor obtido pelos donos das terras flui

 para o capitalista financeiro na forma de juros, do mesmo modo que, por outros

motivos, se explica o fluxo de parte desse mais-valor na forma do lucro para o

capitalista industrial” (26.1/17 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. I, pp. 22-3]).

 No caso dos fisiócratas, o mundo burguês distorcido se distorce pela segunda

vez: as esferas industriais, no interior das quais o capital se desenvolve auto

nomamente, aparecem como ramos de trabalho “improdutivos”, como “pen-

duricalhos” do trabalho agrícola, e a primeira condição do desenvolvimentodo capital — a separação entre o produtor e os meios de produção, que na

 pessoa do capitalista adquirem existência subjetiva — aparece aqui como po

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SOCIEDADE E CONHECIMENTO EM  O CAPITAL

der do proprietário de terras. Ele se torna o capitalista propriamente dito; numa

esfera ainda caracterizada preponderantemente por formas imediatas de domi

nação, ele aparece como simples possuidor de mercadorias, “que acresce o

valor das m ercadorias que troca por trabalho, recebe de volta, além do equiva

lente, um excedente sobre esse equivalente, pois paga a força de trabalho ape

nas como m ercadoria” (26.1/22 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. I, p. 26]).

 No entanto, esse aspecto da “fisiologia interna” da sociedade está associa

do a uma singular mistificação da natureza. O fato tangível do trabalho agrí

cola, a saber, que o trabalhador produz mais meios de vida do que o necessário

 para a reprodução da sua força de trabalho, não ense ja a ponderação de que

 poderia não haver esse excedente se o trabalhador trabalhasse menos. A jornada

de trabalho mesm a entra na análise como uma constante natural, de modo tal

que a produtividade do trabalhador se apresenta necessariamente como produ

tividade da terra, que o capacita a produzir mais do que o necessário para a

restauração da sua capacidade de trabalho. “Esse valor excedente aparece,

 portanto, como dom da natureza; graças à cooperação desta, determinada quan

tidade de matéria orgânica — sementes, animais — capacita o trabalho a

converter maior quantidade de matéria inorgânica em orgânica” (26.1/21 [ed.

 bras. Teorias da mais-valia,  vol. I, p. 26]). Embora o simples valor de troca

constitua o ponto de partida da análise e, no valor de uso, só interesse a quanti

dade — o excedente dos valores de uso produzidos em relação aos consum i

dos, portanto a mera relação quantitativa dos valores de uso entre si — , para

os fisiócratas, o valor não é uma forma do trabalho social e o mais-valor não é

mais-trabalho, mas o valor é, para eles, simples valor de uso, matéria natural,

e o mais-valor é simples dádiva da natureza, que substitui dada quantidade de

matéria orgânica por uma quantidade maior de trabalho: “De um lado, a renda

fundiária — isto é, a forma econômica real da propriedade da terra —, despo

 jada do invólucro feudal, é reduzida apenas a mais-valor, o excedente do sa lá

rio. Do outro, numa recidiva feudal, esse valor é derivado da natureza, e não

da sociedade, da relação com a terra e não das relações sociais” (26.1/22 [ed.

 bras. Teorias da mais-valia, vol. I, p. 27]).

Consequentemente não é sem razão que Marx compara as teorias dos fi

siócratas com a filosofia em seu conjunto, a qual contém um a contradição se

melhante à da teoria fisiocrática no desenvolvimento das teorias econômicas

 burguesas.

Tudo isso são contradições da produção capitalista que luta por emergir da socieda

de feudal e apenas lhe confere um sentido burguês, sem ter encontrado ainda sua forma

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 peculia r; algo como a filosofia que primeiro desabrocha na forma religiosa da consciên

cia e assim destrói a religião como tal, enquanto seu conteúdo afirmativo se move con

finado nessa esfera religiosa idealizada, decom posta em conceitos e ideias. (26.1/22 [ed.

 bras. Teorias da mais-valia, vol. I, p. 27])

Assim como a filosofia só efetuou a secularização da religião pela metade

e só pode completá-la pagando o preço do seu próprio desaparecimento, assim

também a teoria econômica no feitio feudal é uma contradição em si: “abur

guesa-se, assim, o feudalismo e, ao mesmo tempo, dá-se aparência feudal à

sociedade burguesa" (26.1/20 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. I, p. 25]).

Contudo, teoria econômica é sempre só teoria burguesa, o que é evidenciado

 por uma dialética que chega a ser traiçoeira: com a ajuda dessa teoria a burguesia articula as suas exigências. Como o trabalho agrícola é o único trabalho

 produtivo e a indústria só converte em outra form a os valores fornecidos pela

agricultura sem lhes adicionar valor novo, parece ser totalmente legítimo e

ademais do interesse da propriedade fundiária que esse processo de transfor

mação decorra tanto quanto possível livre de perturbações. Por essa razão, a

livre concorrência e a eliminação de todas as interferências do Estado consti

tuem exigências da burguesia, cuja emancipação em relação à monarquia ab

soluta edificada sobre os escombros da sociedade feudal deve ter lugar “no

interesse exclusivo do senhor feudal, transformado em capitalista preocupado

apenas em enriquecer-se” (26.1/23 [ed. bras. Teorias da mais-valia,  vol. I,

 p. 28]). A interpre tação burguesa da propriedade fundiária feudal revela-se

como a antecipação teórica do desmantelamento prático que ocorre na Revo

lução Francesa. “A atuação do próprio Turgot, ministro burguês radical, pre

ludia a Revolução Francesa. Com toda a ilusória aparência feudal, os fisiócra

tas trabalhavam de mãos dadas com os enciclopedistas” (26.1/37 [ed. bras.

Teorias da mais-valia, vol. I, p. 43]). Dado que supostamente só o trabalho

agrícola é produtivo, toda a carga de impostos pode com razão ser posta nos

ombros dos proprietários de terras, e isso encerra “o confisco virtual pelo Es

tado da propriedade da terra. [...] A Revolução Francesa [...] adotou essa teoria

tributária” (26.1/37 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. I, p. 43]).

2.  Adam Smith

Um passo adiante no desenvolvimento da teoria econômica clássica é re

 presentado pela obra de Adam Smith, mesmo que ele, segundo Marx, em al

gumas formulações em parte fique aquém das noções teóricas dos fisiócratas.

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S O C I E D A D E E C O N H E C I M E N T O E M    O CAPITAL

Entretanto, a teoria passou a debater-se com outros problemas, visto que — e

esse é o progresso em relação à teoria fisiocrática como um todo — se faz do

trabalho com exclusividade a substância do valor, indiferentemente dos valores

de uso em que ele se apresenta. Simultaneamente também se reproduzem naobra de Adam Smith as inconsciências características da economia clássica,

só que dessa vez na forma de círculos viciosos exemplares, nos quais ele afir

ma a aparência da concorrência contra a sua noção mais profunda. Em conse

quência, Marx diferencia entre uma parte “esotérica” e uma parte “exotérica”

do conjunto da sua obra (uma diferenciação que, nesse caso, é essencialmente

mais legítima do que aquela que Heinrich Heine fez na obra de Hegel com o

auxílio desses conceitos e que Marx nunca subscreveu), dependendo se Smith

avança na direção da essência do processo global ou se assume a posição docapitalista individual.

O próprio Smith move-se com grande ingenuidade em contradição contínua. Ora

investiga as conexões causais das categorias econômicas ou a estrutura oculta do siste

ma econômico burguês. Ora jun ta a essa pesquisa as conexões tais como se exteriorizam

na aparência dos fenômenos da concorrência, tais como se manifestam, portanto, ao

observador não científico e, do mesmo modo, ao que na prática está envolvido e inte

ressado no processo da produção burguesa. Desses dois ângulos, um penetra no nexocausal, na fisiologia, por assim dizer, do sistema burguês; o outro apenas descreve, ca

taloga e relata, ajustando a definições esquematizantes o que se revela externamente no

 processo vital, tal como se mostra e aparece: ambos, além de correrem num paralelismo

ingênuo, se misturam e se contradizem de contínuo. (26.2/162 [ed. bras. Teorias da mais- 

-valia, vol. II, pp. 597-8])

Também nesse caso os problemas só surgem sobre a base de uma teoria do

mais-valor conscientemente concebida, o qual Adam Smith igualmente só capta em sua forma burguesa. Sejam citadas apenas duas passagens das quais se

depreende que ele deriva o lucro do capitalista e a renda do proprietário de

terras do trabalho não pago:

 No momento em que o capital se acumulou nas mãos de pessoas particulares, algu

mas delas naturalmente empregarão esse capital para contratar pessoas laboriosas, for-

necendo-lhes matérias-primas e subsistência a fim de auferir lucro com a venda do

 produto do trabalho dessas pessoas ou com aquilo que este trabalho acrescenta ao valordesses materiais. Ao trocar-se o produto acabado por dinheiro ou por trabalho ou por

outros bens, além do que pode ser suficiente para pagar o preço dos materiais e os salá-

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S OB R E A E S T R UT UR A L ÓGI CA DO CONCE I T O DE CA P I T A L E M KA R L MA R X  

rios dos trabalhadores, deverá resultar algo para pagar os lucros do empresário, pelo seu

trabalho e pelo risco que ele assume ao empreender esse negócio. Nesse caso, o valor

que os trabalhadores acrescentam aos materiais desdobra-se, pois, em duas partes, sen

do que a primeira paga os salários dos trabalhadores e a outra, os lucros que o empresário deve receber por todo o material e os salários que ele adianta no negócio6.

E a respeito da renda fundiária:

 No momento em que toda a terra de um país se tornou propriedade privada, os donos

da terra, como quaisquer outras pessoas, gostam de colher onde nunca semearam, exi

gindo uma renda, mesmo pelos produtos naturais da terra. A madeira da floresta, o capim

do campo e todos os frutos da terra, os quais, quando a terra era comum a todos, custa

vam ao trabalhador apenas o trabalho de apanhá-los, a partir dessa nova situação têm o

seu preço onerado por algo mais, inclusive para o trabalhador. Ele passa a ter que pagar

 pe la perm issão de apanhar esses bens, e deve dar ao propr ietário da terra um a pa rte

daquilo que o seu trabalho colhe ou produz. Essa porção ou, o que é a mesma coisa, o

 preço dessa porção constitui a renda da terra, constitu indo, no caso da maior parte das

mercadorias, um terceiro componente do preço7.

Analisemos, pois, o primeiro de dois círculos viciosos centrais na obra de

Adam Smith. Marx até ressalta que Adam Smith estava “a um pulo de resolver

a questão” (24/369), mas enfatiza, em contrapartida, que a impossibilidade da

solução deve ser procurada, em última análise, em “sua concepção fundamen

tal”: “Ele não diferencia o caráter dicotômico do próprio trabalho” (24/377),

uma diferenciação que só seria desenvolvida por Marx e que equivale a ultrapas

sar o horizonte burguês. Trata-se aqui de um círculo como que exemplar, o que

 já se depreende do fato de Marx reservar bas tante espaço para tratar esse pro

 blem a tanto em Teorias do mais-valor  como nos volumes II e III de O capital, 

ressaltando expressamente que nenhum dos teóricos posteriores a Smith conseguiu avançar um passo sequer nessa questão. “A confusão mental de Smith

 pers iste até ho je, e seu dogma perfaz ar tigos de fé ortodoxos da economia

 política” (24/390).

Uma com paração direta entre o processo simples de trabalho e de reprodu

ção e o capitalismo enquanto correspondente gigantesco no plano social global

é questionável, visto que o capitalismo é um “processo de reprodução distor

cido”, no qual a relação natural dos seres humanos com a sua existência obje

tiva é rebaixada à condição de penduricalho, sendo apenas como que arrastada junto com o processo. Ainda assim , o fato de ela ser arrastada junto significa

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SO C I E D A D E E C O N H E C I ME N TO E M   O CAPITAL

ao menos que o capitalismo continua sendo um processo de reprodução e que,

 por isso, deve ser possível encontrar correspondências com o processo de re

 produção simples também no plano social global. Sabemos que o capita l só

existe na forma de capitais individuais e que, em consequência, o seu processode reprodução não pode ser senão a reprodução dos capitais individuais. Não

obstante, ele não aparece como tal.

Embora o capital social seja tão só igual à soma dos capitais individuais e, em con

sequência, também o produto anual em mercadorias (ou o capital em mercadorias) da

sociedade seja igual à soma dos produtos em mercadorias desses capitais individuais;

embora, por conseguinte, a análise do valor das mercadorias em seus componentes,

válida para cada capital em mercadorias individual, também deva ser válida para o ca pital de toda a sociedade e, em seu resultado final, realmente é válida, a forma de ma

nifestação com que se apresentam no processo de reprodução social global é diferente. 

(24/369)

Contudo, visto que Adam Smith depende exclusivamente de categorias da

aparência empírica, de categorias da superfície do processo global, ao modo

como se apresentam ao capitalista em sua atividade prática, ele é forçado a

compreender o processo social global segundo o padrão do processo individual.Sendo um teórico burguês, ele nem tem como proceder de outra maneira, já

que, para ele, a forma social coincide com a forma natural. Por essa via, ele se

envolve em problemas que, para ele, são insolúveis.

A mais simples das análises do processo de produção mostra que — abs

traindo da ampliação da reprodução e da acumulação — uma parte do produto

deve repor o material gasto no processo de produção, caso realmente se pre

tenda que haja reprodução no mesmo patamar. É do conhecimento corriqueiro

do teórico que essa parte do produto não pode assumir a forma de rendimentos,ou seja, não pode constituir receita — “claro que essa noção é ex traordinaria

mente prosaica. A mais simples das percepções do processo de produção torna

isso evidente. A dificuldade só começa no momento em que o processo de

 produção é analisado em seu todo” (25/849). Visto que o valor de cada merca

doria deve ser remontado ao trabalho que se subdivide em salário, lucro e

renda, ou seja, em rendimentos, e visto que isso naturalmente deve valer tam

 bém para a totalidade das mercadorias, não se consegue descobrir a partir de

que fundo, no plano social global, se pretende repor o material gasto no processo de produção, o material que, na análise do processo individual, aparece

como parte do produto total que não pode constituir receita. Com o pressuposto

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S OB R E A E S T R UT UR A L ÓGI CA DO CONCE I T O DE CA P IT A L E M KA R L MA R X  

de que deva haver reprodução no mesmo patamar, o problema se concentraria

na seguinte formulação bem precisa da questão: “Como o valor do produto

vendido se iguala ao total dos elementos do valor nele contidos, trabalho adi

cionado e capital constante, e como, apesar disso, o consumidor não paga ocapital constante e ainda compra o produto?” (26.1/120 [ed. bras. Teorias da 

mais-valia, vol. I, p. 130]). Marx nota as várias diferenciações em Adam Smith,

mas trata-se de diferenciações que se formam em parte com base nessa formu

lação do problema e, desse modo, representam apenas mais um deslocamento

do problema que — formulado dessa maneira —· apenas exprime a sua própria

insolubilidade. Não obstante, trata-se da única forma possível de formulação

do problema no horizonte burguês, que se deve à força do pensamento de Adam

Smith, que com as categorias da aparência empírica se lança em combate, porassim dizer, contra a “linha de interpretação” posta com essas mesmas catego

rias, como se o valor se originasse de seus próprios componentes. Analoga

mente ao fenômeno da figura reversível, tratada detidamente pela psicologia

da Gestalt, Adam Sm ith não consegue manter de modo duradouro apenas um

dos aspectos e — “apesar dos grandes escrúpulos nesse ponto” (26.2/217 [ed.

 bras. Teorias da mais-valia,  vol. II,  p. 650]) — leva a campo a aparência da

empiria contra a sua própria noção mais profunda. Como ele não consegue

achar a — por Marx assim chamada — parte constante do valor do capital no plano da reprodução social global, ele tenta simplesmente “exorcismá-la” me

diante um recurso simplório ao modo de ver as coisas do capitalista em sua

atividade prática:

Uma quarta parte pode parecer necessária para repor o capital do arrendatário ou

 para repor o desgaste dos seus animais de tração e dos seus instrumen tos agrícolas.

Porém, deve ser levado em consideração que o preço de qualquer instrumento agrícola,

como, por exemplo, um cavalo de tração, também é composto, por sua vez, das três par

tes acima: da renda da terra na qual foi criado, do trabalho de criação e do lucro do arren

datário, que paga adiantado tanto a renda dessa terra quanto o salário desse trabalho. Por

conseguinte, embora o preço do grão de fato possa repor tanto o preço como os custos

de manutenção do cavalo, o preço total ainda assim se desdobra, de modo imediato ou

em última instância, nas mesmas três partes: renda da terra, trabalho e lucro. (24/373)

Ele remete de um ramo da produção ao outro e daquele a um terceiro; um

círculo que não representa a solução do problema, mas apenas reproduz esse

 problema de outro modo. No horizonte burguês, esse regresso infinito só pode

ria ser detido se fosse possível encontrar ramos de produção em que se produzis

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S O C I E D A D E E C O N H E C I M E N T O E M    O CAPITAL

sem mercadorias pelo simples dispêndio de capital variável, isto é, capital

despendido em força de trabalho, mercadorias que, por sua vez, reporiam em

sua totalidade os “meios de produção consum idos” no processo de reprodução

social global. Marx observa que nem o próprio Adam Smith acreditou ter fornecido a prova disso ao mencionar o exemplo dos coletores de cascalho es

coceses (24/374), mas isso mostra que Adam Smith procedeu de modo conse

quente dentro da sua própria estrutura categorial, ainda que essa ideia,

 pensada até as últim as consequências, tivesse de levar à concepção absurda de

que a humanidade histórica teria de, por assim dizer, reencetar a cada ano o

 processo de disputa com a natureza, e isso sob condições de pleno desenvolvi

mento de classes.

 Nesse ponto, fica claro de modo incisivo como a diferenciação marxianaentre trabalho universal abstrato e atividade sensível concreta transcende o

horizonte burguês, cuja peculiaridade consiste justamente em considerar idên

ticas as duas determinações de um modo opaco para si próprio. Por essa via,

descarta-se de antemão que Adam Smith tenha qualquer possibilidade de cons

tatar uma diferença entre o valor do produto do trabalho anual da sociedade

global e o produto anual do valor. Os dois não são a mesma coisa. Uma vez

subsumido na produção capitalista, o gigantesco complexo de meios de traba

lho que o ser humano intercala entre si e o objeto do trabalho assume a formade um modo de existência material do capital que se decompõe em diversos

momentos durante o transcurso de seu automovimento no processo de produ

ção. Portanto, esses meios se convertem em valores, cuja grandeza, contudo,

não é medida segundo o trabalho histórico que foi requerido para a sua produ

ção (este escapa por princípio a uma determinação quantitativa), mas segundo

a medida do tempo de trabalho socialmente necessário requerido pela repro

dução atual. O valor dos produtos da totalidade da matéria-prima processada,

 por conseguinte, tem de ser essencialmente maior do que o produto anual dovalor que constitui apenas o resultado do trabalho do último ano. Visto que

Adam Smith deriva toda a receita, em última análise, do trabalho — pago e

não pago —, mas, em contrapartida, identifica a qualidade social do trabalho

com a sua forma de manifestação sensível concreta, o produto total se apre

senta a ele — sob o pressuposto da reprodução simples — apenas na sua forma

consumível. Embora se encontrem nele os rudimentos de uma diferenciação

entre meios de produção e indústrias de bens de consumo, a qual deve ser in

troduzida para solucionar esse problema, ele ainda não consegue conferir maior precisão a essa ideia, já que os seus meios metodológicos simultaneamente lhe

 barram o caminho até a compreensão de que, no fundo de consumo, o valor 

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S OB R E A E S T R UT UR A L ÓGI CA DO CONCE I T O DE CA P I T A L E M KA R L MA R X  

dos meios de produção consumidos e desgastados apenas reaparece, mas não

foi produzido nem reproduzido durante o último ano pelo trabalho despendido

 para esse fundo de consumo. Marx ressa lta que Quesnay — “graças ao seu

horizonte restrito” — chegou mais perto da verdadeira questão do que AdamSmith. Visto que, para Quesnay, o trabalho agrícola é o único trabalho produ

tivo e que, no campo da agricultura, o processo econômico de reprodução, não

importa qual seja a sua forma especificamente social, se entrelaça com o pro

cesso natural de reprodução, foi essencialmente mais fácil ter chegado ao seu

conhecimento que uma “parte do produto total — que, como cada uma das

demais partes dele, é, enquanto objeto de uso, resultado novo do trabalho anual

decorrido — [...] é simultaneamente apenas portador de valor de capital antigo,

que reaparece na mesma forma natural” (24/359) e que não circula pelo seutableau, mas permanece nas mãos da classe arrendatária para recomeçar ali o

seu serviço como capital.

Voltemo-nos agora para outro círculo vicioso na obra de Adam Smith, des

crito por Marx, no qual se reflete a alternância entre o modo “esotérico” e o

modo “exotérico” da análise, uma dualidade que é, ela própria, uma vez mais

expressão do caráter burguês dessa ciência, na medida em que é caracterizada

como clássica por Marx. Se a teoria, enquanto clássica, não fosse concomitan-

temente teoria burguesa, ela teria de coincidir com a do próprio Marx, segundo a autocompreensão deste. Sob o pressuposto de um a teoria burguesa do

mais-valor, o teórico está diante da seguinte alternativa: se ele quer que vigore

a lei do valor, o capitalismo é impossível; ou então o capitalismo existe (o que

evidentemente é o caso) e, nesse caso, a lei do valor não pode vigorar. Segundo

a crítica marxiana, já nem se consegue mais perceber que a formulação da

questão, motivada em última análise pela “forma irracional” da expressão “va

lor ou preço do trabalho”, é falsa em si e que contém de antemão a insolubili

dade do problema. Essa formulação da questão deve ser vista, muito antes,como a forma suprema da consciência teórica no horizonte burguês e, por essa

razão, Marx tributa a Adam Smith, que formulou esse problema, um elogio

especial. Marx aproveita o ensejo para mencionar que o progresso do conhe

cimento na teoria econômica de modo algum é uniforme em todos os âmbitos.

Analogamente à formulação do problema acima esboçada, que recebeu trata

mento mais adequado na teoria fisiocrática do que em Adam Smith, encontram-

-se também em Ricardo debilidades teóricas que Marx só pode interpretar como

retrocesso em relação a um nível já alcançado. Na primeira parte de Teorias da mais-valia, consta o seguinte:

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SO C I E D A D E E C O N H E C I ME N TO E M   O CAPITAL

O grande mérito de Adam Smith é ter percebido, e exatamente nos capítulos do livro

 primeiro [...], a ocorrência de uma ruptura, ao passar ele da simples troca de mercadorias

e da correspondente lei do valor para a troca entre trabalho objetivado e trabalho vivo,

entre capital e trabalho assalariado, para o estudo do lucro e da renda fundiária em geral,em suma, para a gênese do mais-valor; ter notado que, nesse ponto, a lei de fato se re

voga no tocante ao resultado — não importa qual seja a razão m ediata, e essa mediação

lhe escapa — , troca-se mais trabalho por menos trabalho (do ponto de vista do traba

lhador), menos trabalho por mais trabalho (do ponto de vista do capitalista); e ter, além

disso, acentuado — e esse achado na verdade o perturba — que com a acumulação do 

capital e com a propr iedade da terra,   isto é, ao se tomarem as condições do trabalho

independentes em relação ao próprio trabalho, algo muda na aparência (e de fato no

resultado): a lei do valor se transmuta no seu oposto. No plano teórico, a sua força estáem sentir e acentuar essa contradição, e a fraqueza está em ser por ela induzido a enga-

nar-se quanto à lei geral, mesmo no tocante à simples troca de mercadorias, em não

compreender como se introduz essa contradição com a circunstância de se tomar mer

cadoria a própria força de trabalho e de ser o valor de uso dessa mercadoria específica,

o qual nada tem a ver, portanto, com o seu valor de troca, a própria energia que gera o

valor de troca. Ricardo supera Adam Smith por não se deixar confundir por essas con

tradições aparentes, de resultados operantes. Fica-lhe atrás quando nem mesmo suspei

ta existir aí um problema e por isso em nenhum momento estranha nem o preocupa o

desenvolvimento específico  que a lei do valor assume com a formação do capital.

(26.1/58-9 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. I, p. 66])

Interessante é uma indicação metodológica anexada por Marx, segundo a

qual a sistemática mais ampla da concepção ricardiana está diretamente vin

culada com a cegueira para o problema manifestada por Ricardo nesse ponto

central. “Mas, ao mesmo tempo, é natura lmente por causa de sua visão pene

trante que Adam Smith se torna perplexo, inseguro, sente faltar-lhe o chão e

não pode, ao contrário de Ricardo, chegar à visão teórica global e coerente dos

fundamentos gerais abstratos do sistema burguês” (26.1/59 [ed. bras. Teorias 

da mais-valia, vol. I, pp. 66-7]).

Só no final da segunda parte de Teorias do mais-valor  ficará claro a que se

refere essa crítica de Marx. Em Ricardo lê-se:

Adam Smith, que definiu com tanta exatidão a fonte original do valor de troca e que

coerentemente teve de sustentar que todas as coisas se tornam mais ou menos valiosas

na proporção do trabalho empregado para produzi-las, estabeleceu também uma outra

medida-padrão de valor, e se refere a coisas que são mais ou menos valiosas segundo

sejam trocadas por maior ou menor quantidade dessa medida-padrão. Como medida-pa-

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drão ele se refere algumas vezes ao trigo, outras ao trabalho; não à quantidade de traba

lho empregada na produção de cada objeto, mas à quantidade que este pode comprar no

mercado, como se ambas fossem expressões equivalentes e como se, em virtude de se

ter tornado duas vezes mais eficiente o trabalho de um homem, podendo este produzir, portanto, o dobro da quantidade de uma mercadoria, devesse esse homem receber, em

troca, o dobro da quantidade que antes recebia. Se isso fosse verdadeiro, se a remune

ração do trabalhador fosse sempre proporcional ao que ele produz, a quantidade de

trabalho empregada numa mercadoria e a quantidade de trabalho que essa mercadoria

compraria seriam iguais e qualquer delas poderia medir com precisão a variação de

outras coisas. Mas não são iguais8.

 Num aspecto Marx aprova a crítica rica rdiana a Adam Smith: se a grande

za de valor da mercadoria foi medida pelo tempo de trabalho nela contido, isso

não afeta a repartição desse valor, ou com as palavras de Marx: “se a relative 

quantity o f labour   [quantidade relativa de trabalho] era a medida dos valores

das mercadorias antes de aparecer o salário (remuneração distinta do valor do

 próprio produto), não há razão alguma por que não continue a ser essa a me

dida depois de aparecer o salário” (26.2/398-9 [ed. bras. Teorias da mais-valia, 

vol. II, p. 829]). Contudo, essa crítica, segundo Marx, perfeitamente justificada,

a Adam Smith não vem acompanhada da solução do próprio problema; pelo

contrário, o fato de Ricardo supor que Adam Smith tenha utilizado duas me-didas-padrão diferentes como “conceitos equivalentes” deixa transparecer,

muito antes, que Ricardo nem mesmo entendeu o real problema:

Ricardo retruca simplesmente que a coisa é assim na produção capitalista. Além de

não resolver o problema, nem sequer o nota na obra de Adam Smith. De acordo com

toda a ordenação de sua pesquisa, basta-lhe provar que o valor variável do trabalho —

em suma, o salário — não elimina a determinação do valor das mercadorias, distintas

do próprio trabalho pela quantidade relativa de trabalho nelas contida. “Não são iguais”, a saber, “a quantidade de trabalho aplicada numa mercadoria e a quantidade de trabalho

que essa mercadoria pode comprar”. Contenta-se com constatar esse fato. (26.2/399-400

[ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 830])

Como qualquer teórico burguês, também Ricardo parte da produção capi

talista como se fosse instância última, algo não mais derivável, mas, ao con

trário dos teóricos que “ficam perambulando” só no mundo da aparência, como

Marx às vezes diz, ele avança diretamente para a essência do processo global,

não se incomodando com as complexas mediações que justam ente fazem com

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S O C I E D A D E E C O N H E C I M E N T O E M   0 C A P IT A L

que a essência se torne a essência e que simultaneamente constituem a condi

ção da possibilidade de uma economia vulgar. Para ele, o valor do trabalho

singelamente é menor do que o valor do produto por ele produzido:

O excedente do valor do produto sobre o valor dos wages [salários] é igual ao mais-

-valor. (Ricardo erra ao dizer lucro, mas então [...] identifica lucro com mais-valor, e é

deste que de fato fala.) Para ele, de fato, o valor do produto é maior que o valor dos

wages  [salários]. Como esse fato surge permanece obscuro. A jornada inteira é  maior

que o segmento dela requerido para produzir os wages  [salários]. Não se evidencia o

 porquê. (26.2/408 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, pp. 837-8])

Ricardo não se dá conta de que o capitalismo só pode surgir quando o tra balho hum ano é capaz de gerar um mais-produto, ou seja, produzir mais obje

tos de uso do que se necessita para a reprodução do produtor imediato, que só

então os meios de produção podem assumir a forma do capital ou da proprie

dade fundiária e que só então o ser humano se apresenta como trabalhador sem

objetivo, cuja capacidade de produzir mais do que o requerido para a sua re

 produção pode ser comprada no mercado como mercadoria. Assim sendo, ele

só pode apreender essa capacidade específica como trabalho vivo, como “im- 

mediate labour  [trabalho imediato]”, que ele contrapõe diretamente ao trabalhoobjetivado, ao “accumulated labour   [trabalho acumulado]”, ao capital. Para

ele a diferença é meram ente formal, um é trabalho objetivado, o outro é traba

lho vivo, ou seja, trata-se de duas formas diferentes de trabalho, e ele não

chega a perguntar por que o trabalho assalariado deve ser tratado como mer

cadoria, para a qual igualmente ainda deve vigorar a lei do valor:

Se essa diferença não importa à determinação do valor das mercadorias, por que

razão se torna de importância tão decisiva quando o trabalho passado (capital) se troca

 por traba lho vivo? Por que deve a diferença aí anular a lei do valor, um a vez que de per  

si, como se revela na mercadoria, não importa à determinação do valor? Ricardo não

responde a essa pergunta, nem mesmo a suscita. (26.2/401-2 [ed. bras. Teorias da mais- 

-valia, vol. II, p. 831])

Embora para Adam Smith, pelas razões recém-mencionadas, também só

 possa tratar-se de um a contraposição direta de trabalho vivo e trabalho objeti

vado, ele divisa um problema no fato de o trabalho vivo ser oferecido simultaneamente como m ercadoria e, por essa razão, estar sujeito às leis da troca de

equivalentes. As duas medidas-padrão, por conseguinte, de modo algum são

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S OB R E A E S T R UT UR A L ÓGI CA DO CONCE I T O DE CA P I T A L E M KA R L MA R X  

“conceitos equivalentes”, como pensa Ricardo, mas expressão de uma cons

ciência mais elevada do problema em Adam Smith:

Diz ao contrário: por não ser mais o salário do trabalhador, na produção capitalista,igual ao seu produto, e por serem assim duas coisas diferentes, a quantidade de trabalho

que uma mercadoria custa e a quantidade de mercadoria que o trabalhador pode comprar

com esse trabalho, ju stamente por isso a quantidade relativa de trabalho contida nas

mercadorias deixa de determinar o valor delas; este, ao contrário, é determinado, pelo

value oflabour   [valor do trabalho], pela quantidade de trabalho que posso comprar,

comandar com volume definido de mercadorias. Por essa razão, o value oflabour  se

torna a medida dos valores em vez da relative quantity oflab ou r  [quantidade relativa de

trabalho]. (26.2/398 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, pp. 828-9])

E assim sucedeu que os dois pensadores formularam teorias do valor expli

citamente distintas e, apesar disso, defenderam a mesma teoria do mais-valor.

Ambos derivaram o mais-valor, que eles, segundo Marx, de qualquer modo já

compreendiam em sua forma burguesa como lucro, a partir daquele trabalho

que vai além da medida do trabalho necessário, trabalho necessário no sentido

do tempo de trabalho que precisa ser despendido para assegurar a reprodução

do trabalhador. Se a quantidade de meios de vida necessária para um mêsconsiste em um quarter  de cereal, o valor do cereal pode até se alterar com a

variação da força produtiva do trabalho, mas um quarter  de cereal de qualquer

maneira continua “exigindo” um mês de trabalho. E essa é, como Marx expla

na, a “razão oculta  por que Adam Smith diz que, ao intervir o capital e, em

consequência, o trabalho assalariado, o que regula o valor do produto não é a

quantity oflab our bestowed upon the produce, but the quantity ofla bo ur it can 

command  [quantidade de trabalho nele aplicado e sim a quantidade de trabalho

que o produto pode comandar]” (26.2/404 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol.II, p. 834]).

Uma quantidade idêntica de valor de uso sempre se “serve” da mesma

quantidade de trabalho, e esse fato incide na teoria de Adam Smith de tal ma

neira que ele converte essa quantidade idêntica de trabalho em medida do valor.

Adam Smith diz o seguinte:

Pode-se dizer que quantidades iguais de trabalho têm valor igual para o trabalhador.

Estando o trabalhador em seu estado normal de saúde, vigor e disposição e no graunormal de sua habilidade e destreza, ele deverá aplicar sempre o mesmo contingente

de sua comodidade, de sua liberdade e de sua felicidade. O preço que ele paga deve

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SO C I E D A D E E C O N H E C I ME N TO E M   O CAPITAL

ser sempre o mesmo, qualquer que seja a quantidade de bens que receba em troca do

seu trabalho9.

Os valores das demais mercadorias se relacionam com o trabalho, do mesmo modo que se relacionam com o cereal. Se determinada quantidade de cereal

for trocada por uma quantidade dada de trabalho e se qualquer outro valor de

uso for trocado por cereal numa determinada relação, o valor de qualquer ou

tra mercadoria será estipulado pela medida de trabalho que ela “põe em movi

mento”, visto que cada mercadoria “comanda” uma determinada quantidade

de cereal, e o valor do cereal, por sua vez, é determinado pela quantidade de

trabalho que ele pode colocar a seu serviço. Essa argumentação contém um

círculo vicioso:

Mas como é determinado o valor das outras mercadorias em relação ao trigo (neces- 

saries [meios de subsistência])? Pela quantity oflabour they command  [quantidade de

valor que comandam]. E como se determina a quantity oflabour they commandl Pela

quantity o f corn that labour commands  [quantidade de trigo que o trabalho comanda].

Dá-se aí a queda irremissível de Smith no cercle vicieux [círculo vicioso], (26.2/405 [ed.

 bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 835])

Esse círculo, contudo, só surge quando se pensa até as últimas consequên

cias o modo exotérico de análise. Marx acrescenta que Adam Smith, “onde ele

realmente evolui” e, portanto, passa para o modo esotérico de análise, “nunca 

emprega essa measure ofvalue  [medida de valor]” (26.2/405 [ed. bras. Teorias 

da mais-valia, vol. II, p. 835]).

3. David Ricardo

 Na avaliação de Marx, a obra de David Ricardo se apresenta como conclu

são do desenvolvimento da grande teoria burguesa. Ricardo é o teórico mais

consequente; a dualidade da análise esotérica e exotérica que ainda atravessa

o conjunto da obra de Adam Smith não se encontra mais em Ricardo:

Mas, por fim, Ricardo entra em cena e dá o brado no campo da ciência: basta! O

fundamento, o ponto de partida da fisiologia do sistema burguês — para compreender

seus nexos orgânicos internos e seu processo vital —, é a determinação do valor pelo tempo de trabalho. Daí parte Ricardo e leva então a ciência a abandonar a rotina vigente.

(26.2/163 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 598])

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S OB R E    A E S T R UT UR A L ÓGI CA DO CONCE I T O DE CA P I T A L E M KA R L MA R X  

Em contrapartida, Marx enfatiza que Ricardo tampouco conseguiu pular por

cima do horizonte burguês e que, por essa razão — como sucede com todos os

clássicos —, a obra em seu conjunto se apresenta como “contradição em si”,

como tentativa, de antemão fadada ao fracasso, de querer apreender com “conceitos do entendimento” um sistema que se apresenta nessas categorias de modo

distorcido. Já foi indicado que Marx não atribui a sistemática mais ampla que

caracteriza a obra de David Ricardo quando com parada com a de Adam Smith

a um progresso linear do conhecimento em todos os âmbitos da economia

 política, mas responsabiliza pela unidade e pela maior coesão da obra ricar-

diana justamente a falta de consciência do problema quando ele analisa o

 ponto de transição decisivo para o sistema capitalista global — o processo

de troca entre capital e trabalho. Soma-se a isso que, embora Ricardo negue demodo coerente a visão do Adam Smith “exotérico”, segundo a qual o valor se

origina de seus próprios componentes, Adam Smith — mais precisamente o

Adam Smith “exotérico” — “consegue envolvê-lo” de novo (26.2/214 [ed. bras.

Teorias da mais-valia, vol. II, p. 648]), deixando-o enredado num ponto essen

cial das concepções da esfera da concorrência: a teoria do preço natural.

Para Adam Smith, o preço natural é idêntico ao preço de custo que resulta

da concorrência; no entanto,

[...] para o próprio Adam Smith, esse preço de custo só se identifica ao “value [valor]”

da mercadoria quando ele olvida a sua concepção mais profunda e se aferra à errônea,

oriunda do aspecto superficial, a de que o echangeable value [valor de troca] das com- 

modities  [mercadorias] se forma juntando os values ofwages, profit and rent  [valores

de salário, lucro e renda] determinados de maneira independente. (26.2/215 [ed. bras.

Teorias da mais-valia, vol. II, p. 648 modif.])

Pressupondo que o valor da mercadoria é composto pelos valores de salário,

lucro e renda, pergunta-se como esses valores elementares são determinados

e recorre-se — igualmente partindo do fenômeno como está dado na concor

rência — a “uma taxa comum ou média” para salário, lucro e renda, que existe

“em cada sociedade e nas suas proximidades”10.

Essas taxas comuns ou médias podem ser denominadas taxas naturais dos salários,

do lucro e da renda da terra, no tempo e lugar em que comumente vigoram. [...] Quando

o preço de uma mercadoria não é maior nem menor do que o suficiente para pagar ao

mesmo tempo a renda da terra, os salários do trabalho e os lucros do patrimônio ou

capital empregado em obter, preparar e levar a mercadoria ao mercado, de acordo com

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S O C I E D A D E E C O N H E C I M E N T O E M   O C A P I TA L

suas taxas naturais, a mercadoria é nesse caso vendida pelo que se pode chamar seu

 preço natura l11.

Esse preço natural é preço de custo das mercadorias e coincide com o valordas mercadorias, pois se pressupõe que o valor é formado pela composição de

salário, lucro e renda. “Nesse caso, a mercadoria é vendida exatamente pelo

que vale ou pelo que ela custa realmente à pessoa que a coloca no m ercado”12.

Marx percebe que Adam Smith fica em dúvida por causa do lucro, que segundo

ele não pode ser incluído nos custos, mas ele acaba dando a mesma resposta

do “capitalista meditabundo diante dessa pergunta” (26.2/217 [ed. bras. Teorias 

da mais-valia, vol. II, p. 649]):

Com efeito, embora, no linguajar comum, o que se chama custo primário de uma

mercadoria não inclua o lucro da pessoa que a revenderá, se ela a vender a um preço que

não lhe permite a taxa comum do lucro nas proximidades, ela está tendo perda no ne

gócio, já que poderia ter auferido esse lucro empregando seu capital de alguma forma

diferente. Além disso, seu lucro é sua renda, o fundo adequado para sua subsistência.

Assim como, ao preparar e colocar os bens no mercado, ela adianta a seus empregados

seus salários ou sua subsistência, da mesma forma adianta a si mesma sua própria sub

sistência, a qual geralmente é consentânea ao lucro que ela pode razoavelmente esperarda venda de seus bens. Portanto, se esses bens não lhe proporcionarem esse lucro, não

lhe pagarão o que realm ente lhe custa ram13.

Essa identificação de preço de custo e valor ou preço natural está baseada,

 portanto, segundo Marx, no fato de Adam Smith sonegar totalmente que, em

sua “parte esotérica”, valor da mercadoria é derivado de trabalho e mais-tra-

 balho, mas — e isso o caracteriza como teórico burguês — não pergunta si

multaneamente por que esse valor da mercadoria se apresenta para o capitalista individual na forma de custos. É nisso que ele tropeça ao explicitar o

 preço natural.

Temos aí a história toda da origem do  prix naturel [preço natural] e por cima em

linguagem e lógica de todo apropriadas, uma vez que o valeur  da mercadoria é formado

 pelos preços de salário , lucro e renda, mas o verdadeiro va lor destes, por sua vez, se

constitui ao se enquadrarem nas taxas naturais; assim, é claro que o valeur  da merca

doria é  idêntico ao preço de custo, e este ao prix naturel da mercadoria. Pressupõe-secomo dadas a taxa de lucro e também a de salário. São dadas para & formação do preço

de custo. Elas são pressupostas  para ele. As taxas também se revelam dadas para o ca

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SOB RE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

 pita lis ta ind ividual. O como, as causas e as razões não o interessam. Smith aí adota o

 pr isma do capitalista individual, do agente da produção capitalista, quem estabelece o

 preço de custo da mercadoria . Tanto para salário etc., tanto para taxa gera l de lucro. Ergo 

[logo]: é desse modo que aparece ao capitalista a operação por meio da qual se estabelece o preço de custo da mercadoria, ou o valor  da mercadoria, como a coisa lhe apare

ce depois, porque sabe muito bem que o valor de mercado está ora acima ora abaixo

desse preço de custo que, por isso, representa para ele o preço ideal da mercadoria, o

 preço absoluto em contraste com as oscilações de preço, em suma, o valor.  (26.2/216

[ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 649 modif.])

 Na concorrência — na qual tudo aparece “invertido, posto de cabeça para

 baixo” — , portanto, não é o valor que aparece como “aquilo que regula” os

 preços de mercado, mas, muito antes, o preço de custo na qualidade, “por assim

dizer, de preço imanente, valor das mercadorias” (26.2/234 [ed. bras. Teorias 

da mais-valia, vol. II, p. 666]).

Ponto de partida essencial da crítica marxiana a Ricardo é que essa identi

ficação de valor e preço de custo, oriunda da análise exotérica de Adam Smith

e que não só não foi assumida, mas expressamente rejeitada por Ricardo, está

na base também de toda a obra ricardiana.

Ricardo, enquanto combate essa concepção de modo geral, aceita a confusão nela 

fundada, ou seja, identifica valeur echangeable [valor de troca] ao cost price [preço de

custo] ou natural price  [preço natural] de Adam Smith. Essa confusão se justifica para

Smith, porque toda a sua pesquisa sobre o prix naturel  [preço natural] parte de sua

concepção errônea do value [valor]. Mas, para Ricardo, não há justificação alguma, pois

nenhures aceita ele essa ideia falsa de Smith, e ex professo [abertamente] a combate por

incoerente. Mas Smith consegue envolvê-lo de novo por meio do prix naturel  [preço

natural]. (26.2/215 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 648])

Marx passa, então, a mostrar que a aceitação irrefletida desse componente

da teoria de Adam Smith é determinante para todos os aspectos do sistema

ricardiano. O fato de Ricardo — enquanto teórico burguês — não desenvolver

geneticamente as categorias, mas ajuntá-las do terreno empírico, constitui uma

característica geral e não precisa mais ser ressaltado. S ignificativo é, contudo,

que, mediante essa identificação de valor e preço de custo, ele pressupõe a

totalidade das categorias como dadas de modo tal que a única forma que resta

 para comprovar a validade da lei do valor é a da lógica da subsunção: “O método de Ricardo consiste no seguinte: parte da determinação da magnitude do

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S O C I E D A D E E C O N H E C I M E N T O E M   O C A P IT A L

valor da mercadoria pelo tempo de trabalho e investiga  se as demais relações

e categorias econômicas contradizem essa determinação do valor ou até onde

a modificam” (26.2/161 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 597] ). Como

 para ele as formas de manifestação não são formas de manifestação, ele deveconcebê-las “de maneira imediata e direta como prova ou representação das

leis gerais” (26.2/100 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 537]).

Marx ressalta que Ricardo foi o primeiro teórico a “refletir sobre a relação

entre a determinação do valor   das mercadorias e o fenômeno de capitais de

magnitude igual que fornecem lucros iguais” (26.3/65 [ed. bras. Teorias da 

mais-valia , vol. III, p. 1.125]). A vigência da lei do valor, isto é, a troca das

mercadorias segundo a medida-padrão do tempo de trabalho nelas contido,

contradiz a existência de uma taxa geral de lucro, isto é, de uma diferença

entre valor e preço de custo das mercadorias. Ricardo, que parte da identidade

imediata, não enuncia isso do modo registrado por Marx, mas apenas “intui”

o fato, quando, com a ajuda da diferenciação entre capital fixo e circulante

assumida de Adam Smith, chama a atenção para o dado de que capitais de igual

grandeza movimentam quantidades diferentes de trabalho vivo, mas, apesar

disso, geram a mesma taxa de lucro. Porém, já que Ricardo — por causa da

identificação de valor e preço de custo — parte da existência de uma taxa geral

de lucro como se fosse um fato dado, ele só pode conceber a não coincidência

de valor e preço de custo como exceção da lei universal; sobre isso, acrescen

ta Marx, “Malthus observa com acerto que, com o progresso da industry  [in

dústria], a regra se torna exceção e a exceção, a regra” (26.3/66 [ed. bras.

Teorias da mais-valia,  vol. III, p. 1.126]). Ricardo — assim escreve Marx —

 pergunta-se:

Que efeito a alta ou queda de salário tem sobre os “relative values” [valores relativos]

quando o capital fixe et circulant   [o capital fixo e o circulante] ingressam neles em

 proporções diferentes? E então acha na turalmente que, segundo seja maior ou menor o

capital fixe   que ingressa etc., a alta ou a queda dos salários tem de influir de modo

muito diferente nos capitais, conforme parte maior ou menor deles consista em capital

variável, isto é, capital diretamente empregado em salário. Por isso, para nivelar de novo

os lucros nos diferentes ramos de produção, aliás, restabelecer a taxa geral de lucro, os

 preços das mercadorias têm de ser regulados de maneira diferente, em contraposição

aos seus valores. Portanto, conclui ele deduzindo, essas diferenças influenciam os “re

lative values” [valores relativos] ao subirem ou caírem os salários. (26.2/171-2 [ed. bras.

Teorias da mais-valia, vol. II, p. 607 modif.])

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S OB R E A E S T R UT UR A L ÓGI CA DO CONCE I T O DE CA P I T A L E M KA R L MA R X  

Ao lado desse caso resultante da variação no salário, no qual os valores das

mercadorias não são mais determinados pelo tempo de trabalho requerido para

a sua produção, Ricardo desdobra ainda um segundo caso:

Do mesmo modo, diferenças no tempo de rotação do capital — quer permaneça este

mais tempo no processo de produção (embora não no processo de trabalho) ou no pro

cesso de circulação, precisando de mais tempo e não de mais trabalho para o seu return 

[retomo] — não alteram a igualdade dos lucros; e isso também se opõe e constitui uma

exceção,  segundo Ricardo, à lei do valor. (26.3/66 [ed. bras. Teorias da mais-valia, 

vol. III, p. 1.126])

Marx argumenta que, em vez de pressupor uma taxa geral de lucro, Ricardo deveria ter antes perguntado se a existência dessa taxa de lucro não contra

diz pr ima fa cie   [à primeira vista] a lei do valor, em vez de corresponder a ela,

e ele descobriria que “teria primeiro de elucidar sua existência por meio de uma

série de elos intermediários, elucidação muito diversa da subsunção pura

e simples à lei do valor” (26.2/171 [ed. bras. Teorias da mais-valia,  vol. II,

 pp. 606-7]). Se partirmos do fato de que o valor da mercadoria é determinado

 pelo tempo de trabalho — e, de acordo com Marx, sem esse pressuposto a

ciência econômica não faria sentido —, o mais-valor gerado por um capitalnão é determinado por sua grandeza absoluta, mas depende da grandeza do

capital variável, ou seja, do capital investido no salário. Em consequência dis

so, capitais de igual grandeza, mas com composição diferente de capital cons

tante e variável (Ricardo o chama de capital fixo e circulante) devem gerar

mais-valores desiguais. O mesmo vale também para capitais com velocidade

desigual de circulação. Inclusive quando capitais de grandeza igual produzem

valores iguais,

[...] difere, de acordo com o seu processo de circulação, o tempo em que eles podem 

apropriar-se de quantidades iguais de trabalho não pago e convertê-las em dinheiro. 

Isso gera, portanto, uma segunda diferença nos valores, nos mais-valores e lucros

que capitais de igual magnitude têm de render in different trades [em diferentes ramos]

num determinado espaço de tempo.  (26.2/187 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II,

 pp. 621-2 modif.])

Por esse ponto de vista, a estruturação dos volumes II e III de O capital seapresenta como demonstração sistemática do fato de que o valor é determina

do unicamente pela medida-padrão do tempo de trabalho socialmente neces-

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S O C I E D A D E E C O N H E C I M E N T O E M   O C A P I TA L

sário, como desmistificação total da aparência de que o valor pode se originar

de outras fontes além do trabalho. Marx enfatiza repetidamente que os preços

das mercadorias devem divergir dos seus valores quando se quer que capitais

de grandeza igual gerem lucros iguais em intervalos de tempo iguais. Contudo,os preços de custo de todas as mercadorias juntas, a sua soma, são iguais aos

seus valores, assim como o lucro total é igual ao mais-valor total que esses

capitais geram juntos durante um ano.

O lucro médio e, em consequência, também os preços de custo ficariam no domínio

da pura imaginação e da inconsistência, se não tomássemos por base a determinação do

valor. O nivelamento dos mais-valores in different trades [nos diferentes ramos] em nada

muda a magnitude absoluta desse valor total, mas altera a sua repartição in different  trades. Já a determinação desse próprio mais-valor  tem por única origem a determina

ção do valor pelo tempo de trabalho. Sem este, o lucro médio é lucro médio de nada. 

mera fa ncy  [fantasia], E então ele poderia ser de 1.000% ou de 10%. (26.2/187-8 [ed. bras.

Teorias da mais-valia, vol. II, p. 622 modif.])

Em consequência disso, a concorrência deve ser analisada sob dois pontos

de vista, que Ricardo não distingue de modo exato por causa dessa identifi

cação de valor e preço de custo. Em correspondência com a sua teoria do valor,Marx diferencia entre os ramos específicos  da produção e os ramos dife

renciados da produção. Nos ramos específicos da produção, nos quais é produ

zido um tipo bem determinado de mercadorias, o valor da mercadoria não é

medido conforme o trabalho individualmente despendido, mas há aí apenas

um valor geral que é determinado pela massa total do tempo de trabalho social

exigido pela produção da massa total das mercadorias desse ramo específico

de produção. A concorrência, portanto, nivela os valores individuais das mer

cadorias nessas esferas específicas da produção num valor geral, o valor demercado, que tem seu preço expresso no preço de mercado. O preço real de

mercado passa a situar-se acima ou abaixo desse valor de mercado ou então

 preço de mercado, oscilando em torno deste, que, bem por isso, também pode

ser definido como a média dos preços reais de mercado. As condições gerais

de produção dentro dessa esfera específica são as condições médias de produ

ção, assim como a produtividade geral do trabalho é tida como produtividade

média. Correspondendo à relação do produtor individual com as condições

gerais de produção e a produtividade geral do trabalho, o seu ganho, por conseguinte, será maior ou menor do que o lucro médio dentro da esfera especí

fica de produção.

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S OB R E A E S T R UT UR A L ÓGI CA DO CONCE I T O DE CA P I T A L E M KA R L MA R X  

 Não é, portanto, pelo nivelamento  dos lucros dentro de um ramo particular de pro

dução que a concorrência estabelece o valor de mercado ou preço de mercado.  [...] Ao

revés:  a concorrência aí nivela os diferentes valores individuais ao mesmo valor de 

mercado, igual, indistinto, ao permitir as diferenças no domínio dos lucros individuais, dos lucros dos capitalistas individuais e seus desvios da taxa média de lucro do ramo.

Cria-as até ao estabelecer o mesmo valor de mercado para mercadorias produzidas em

condições de produção desiguais, por conseguinte, com produtividade desigual de traba

lho, representando, assim, quantidades de tempo de trabalho desiguais. A mercadoria

 produzida em cond ições mais favo ráve is contém menos tempo de trab alho do que

a produzida em condições mais desfavoráveis, mas se vende ao mesmo preço, tem o

mesmo valor, como se encerrasse o mesmo tempo de trabalho, o que ela não contém.

(26.2/203-4 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 637])

Esse movimento deve ser diferenciado de um segundo, a saber, que, no caso

de capitais nos ramos diferenciados de produção, ou seja, dos capitais com

composição orgânica diferenciada, a concorrência produz uma taxa geral de

lucro mediante o nivelamento dos valores de mercado a preços de mercado que

representam os preços de custo, distintos dos reais valores de mercado. “Com

essa segunda atuação [...] a concorrência gera o preço de custo, isto é, a mesma 

taxa de lucro nos diferentes ramos de produção, embora essa taxa idêntica de

lucro [...] só se possa impor por meio d e pr ices [preços] que se distinguem dos

valores” (26.2/204 [ed. bras. Teorias da mais-valia,  vol. II, p. 638]). Ricardo

não é capaz de diferenciar com exatidão esses dois movimentos opostos da

concorrência; ele o faz de tal modo que, mesmo tendo em vista o último mo

vimento da concorrência, ele,

[...] coisa estranha, considera-o [...] conversão do marketprice   [preço de mercado]

(preço diverso do valor) ao natural price  [preço natural] (o valor expresso em dinheiro).

Esse blunder   [tolice] decorre, porém, do erro já cometido no capítulo I “On Value”

[Sobre o valor], de identificar cost-price  [preço de custo] com value [valor]. (26.2/205-6

[ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 639])

Essa confusão do processo de formação do valor de mercado com o pro

cesso de formação do preço de custo influencia, por sua vez, a teoria ricardiana

da renda fundiária, e isso de modo tal que, em função da elaboração rigorosa

de sua teoria do valor, ele nega a existência de um a renda fundiária absoluta,

como ressalta Marx reiteradamente. Todavia, antes de abordar aqui a peculiaridade dessa teoria da renda, é preciso mencionar que Marx não só deriva o

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S OCI E DA DE E CONHE CI ME NT O E M   O CAPITAL

aspecto específico da teoria ricardiana do ponto de partida obscuro, mas simul

taneamente também delineia o pano de fundo histórico sem o qual ela perm a

neceria incompreensível. Assim sendo, ele destaca primeiramente o fato de que

Ricardo viveu num período caracterizado pelo constante aumento dos preçosdo trigo, e ele sabia muito bem que a introdução de leis referentes ao cereal

visava impedir a queda dos preços. A favor de Ricardo deve-se, portanto,

[...] acentuar que a lei da renda fundiária entregue a si mesma — dentro de determinado 

território — tinha de motivar o recurso a terras menos férteis, portanto, encarecimento

dos produtos agrícolas, crescimento da renda à custa da indústria e da massa da popu

lação. E aí Ricardo tinha razão prática e historicamente. (26.2/235 [ed. bras. Teorias da 

mais-valia, vol. II, p. 668])

Acresce-se a isso que Ricardo (assim como Anderson, que Marx menciona

nesse contexto) parte da “visão considerada tão esquisita” no continente eu

ropeu, a saber, que não há propriedade fundiária que constitua um entrave para

o investimento a bel-prazer de capital na terra. Marx ressalta que esse modo de

análise remonta à “law o f enclosures” [lei dos cercamentos] inglesa, sem analo

gia no continente europeu, e ao fato de que em nenhum outro lugar o modo de

 produção capitalis ta tratou as relações tradicionais da agricu ltura de modo tãoinescrupuloso, adequando-as às suas condições, como o fez na Inglaterra.

 Nesse domínio , a Inglaterra é o país mais revolucionário do mundo. Foram implaca

velmente liquidadas todas as condições historicamente transmitidas que contrariassem

os requisitos da produção capitalista no país ou não lhes correspondessem — a saber, a

situação das propriedades rurais, as próprias comunidades rurais, os locais habitados pela

agriculturalpopulation [população agrícola], essa próp ria population, os centros origi

nais das culturas, as próprias culturas. Para os alemães, por exemplo, as condições econômicas se apresentaram determinadas por circunstâncias tradicionais referentes a limi

tes territoriais, locais dos centros econômicos, aglomerados fixos de população. Para os

ingleses, o capital criou progressivamente as condições históricas da agricultura, a partir

do fim do século XV. (26.2/236 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, pp. 668-9 modif.])

Quando Marx fala do capitalismo clássico, ele tem em mente as relações

inglesas, nas quais se desenvolveu adequadamente a propriedade fundiária

moderna, que deixa livre curso à atividade do capital, o qual só se interessa pe la renda em dinheiro. “Até aí não existe, portanto, propriedade fundiá ria”

(26.2/237 [ed. bras. Teorias da mais-valia,  vol. II, p. 669]). A adequação de

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SO BRE A ESTRU TU RA LÓ G IC A D O C O N C EITO D E C APITAL EM K ARL M ARX 

todas as condições de produção ao modo de produção capitalista é pressupos

to para o desenvolvimento da concepção de que sempre se passa do solo mais

fértil para o menos fértil. Determinante para o desenvolvimento dessa concep

ção, contudo, é a “visão que os ingleses adquiriram” das colônias. Nas colônias,especialmente naquelas em que se cultivavam exclusivamente mercadorias para

o comércio, como tabaco, algodão, açúcar etc.,

[...] o que decidia, dada a localização geográfica, era a fertilidade da terra, e dada a fer

tilidade, a localização geográfica. Eles [os colonialistas, H. R.] não procediam com o os

germanos que se estabeleceram na Alemanha para nela construir o lar, mas como pessoas

que, determinadas pelos motivos da produção burguesa, queriam produzir mercadorias 

 por critérios determinados, antes de tudo, não pelo produto e sim pe la venda do produto .

A circunstância de Ricardo e outros autores ingleses transferirem esses critérios —

 procedentes de hom ens que já eram, eles mesmos, produto do modo de produção capi

talista — das colônias para o palco da história mundial e considerarem o modo capitalista

de produção condição prévia da agricultura em geral, como era para aqueles colonos,

explica-se pelo fato de reencontrarem nessas colônias e de maneira mais evidente, sem 

luta contra relações tradicionais e, portanto, em toda pureza, o mesmo domínio da

 produção capitalista na agr icu ltura, domínio que salta aos olhos por toda parte no seu

 próprio país. (26.2/238 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 670 modif.])

 Nesse ponto, também deve-se ressaltar que, segundo Marx, o problem a só

se coloca sobre a base de uma teoria do valor do trabalho sustentada de modo

coerente do começo ao fim, ainda que a comprovação da validade da lei do

valor não seja efetuada da forma feita por Marx. Onde a “natureza como tal 

tem valor”, como, por exemplo, em Roscher, não se trata mais de uma concep

ção teórica, mas de misticismo.

Para Ricardo, o problema só existe porque o valor é determinado pelo tempo detrabalho. Para aqueles tipos não é o caso. Segundo Roscher, a natureza como tal tem

valor. [...] Isto é, ele não sabe absolutamente o que é valor. Que o impede, portanto, de

fazer o valor da terra, na origem, entrar nos custos de produção e formar a renda, e de

supor o valor da terra, isto é, a renda, para explicar a renda? (26.2/125 [ed. bras. Teorias 

da mais-valia, vol. II, p. 563])

Ricardo se pergunta: pressupondo que as mercadorias são trocadas por seus

valores e que o capital pode se movimentar livre e desimpedido em todas asesferas de investimento, como é possível que exista ao lado do lucro do arren

datário ainda uma renda que é paga ao proprietário da terra? Se em todas as

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SO C I E D A D E E C O N H E C I ME N TO E M   O CAPITAL

esferas de produção da indústria só existe lucro, como é possível, então, que

 justamente na agricu ltura exista, ao lado do lucro normal, ainda uma forma de

riqueza, a renda, que também só pode consistir em tempo de trabalho? Dado

que quantidades iguais de trabalho representam valor igual, não há razão pelaqual o capital investido na terra gere, além do lucro, ainda uma renda fundiária.

A não ser que a quantidade de trabalho empregado nessa esfera possa produzir

um valor maior do que em outras esferas. Porém, isso apenas significaria aban

donar o conceito de valor e, junto com ele, o fundamento de toda essa ciência.

Por essa razão, a renda tampouco pode ser explicada como resultado de um

 preço de monopólio, de um preço que gera mais do que o lucro médio. Se o

capital é capaz de penetrar desimpedidamente em toda e qualquer esfera de

 produção (que é o que presume Ricardo), então aceitar isso implica justam entesupor o que deve ser explicado, a saber, que numa esfera específica de produ

ção o preço das mercadorias deve gerar mais do que a taxa geral de lucro e, em

consequência, elas devem ser vendidas acima do seu valor. O que se supõe,

 portanto, é que a produção agrícola está eximida das leis gerais do valor das

mercadorias, e isso só pode ser suposto dessa maneira porque a forma especí

fica da renda ao lado da form a do lucro suscita essa aparência.

Como Ricardo resolve esse problema?

Ricardo resolve a dificuldade, supondo-a in principie  [em princípio] inexistente, e

esta é na realidade a única maneira de resolver uma dificuldade na base de princípios.

Mas aí só cabem dois métodos. Ou se mostra que a contradição com o principie [prin

cípio] é pura aparência que procede do desenvolvimento da própria coisa. Ou o pesquisa

dor, como o faz Ricardo, ao negar  a dificuldade num ponto, daí parte para poder expli

car sua existência noutro ponto. (26.2/26 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 466])

A negação da dificuldade “num ponto” consiste, de acordo com Marx, emque Ricardo “supõe um ponto onde o capital do arrendatário, como o de

qualquer outra pessoa, só paga lucro” (26.2/26 [ed. bras. Teorias da mais-valia, 

vol. II, p. 466]). Esse capital, portanto, não se diferencia, num primeiro mo

mento, fundamentalmente de qualquer capital industrial, visto que não paga

nenhuma renda fundiária. A renda só surge quando aumenta a demanda por

cereal e, por essa razão, em distinção a outros ramos da indústria, é preciso

refugiar-se em solos menos produtivos. Embora o fa rm er  [fazendeiro], como

qualquer outro capitalista, sofra prejuízo por causa do aumento dos preços dosmeios de vida, já que tem de pagar mais aos seus trabalhadores, a situação

acaba se revertendo a seu favor porque, mediante o aumento dos preços das

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SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

mercadorias acima do seu valor, outras mercadorias, que ingressam no seu

capital constante (Ricardo diz capital fixo), têm seu valor relativo à sua mer

cadoria reduzido, comprando-as, portanto, mais barato, e ele, além disso, pos

sui o valor excedente do trigo mais caro.

O lucro desse arrendatário, portanto, sobe acima da taxa média do lucro que todavia

caiu.  Hence  [por isso], outro capitalista vai para terreno pior, o II, que, com essa taxa

menor de lucro, pode fornecer produto ao preço de I ou talvez algo mais barato. Seja

como for, agora temos de novo em II a situação normal com o mais-valor reduzido

apenas a lucro; mas temos a renda explicada para I, pela existência de um duplo preço

de produção, o preço de produção de II, ao mesmo tempo preço de mercado de I. (26.2/27

[ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, pp. 466-7])

A teoria da renda coincide, portanto, com a teoria do valor, o excedente do

 preço acima do valor não contradiz a teoria geral do valor, porque, no interior

de cada esfera específica de produção, o valor não é determinado pela medida-

-padrão dos valores individuais das mercadorias, mas pelo valor que elas têm

nas condições gerais de produção de dada esfera.

Aí também o preço dos produtos que dão renda é preço de monopólio  [embora nãoo seja no sentido mencionado há pouco, H. R.], monopólio como o ocorrente em todos

os ramos da indústria, mas que na agricultura se fixa e por isso toma a forma de renda,

diversa do lucro suplementar. Ainda aí há o excesso da demand  [procura] sobre a supply 

[oferta] ou, o que dá no mesmo, a circunstância de não se poder satisfazer a additional 

demand  [procura adicional] com uma additional supply  [oferta adicional] aos preços 

que eram os da original supply  [oferta original], antes de os preços crescerem em vir

tude do excesso da procura sobre a oferta. Ainda aí a renda surge  por causa do excesso 

do preço sobre o valor , por causa do aumento dos preços acima do valor no melhor solo,

o que dá origem à additional supply  [oferta adicional]. (26.2/160 [ed. bras. Teorias da 

mais-valia, vol. II, pp. 595-6 modif.])

Ao passo que em outros ramos da produção essa forma do monopólio é

apenas um fenômeno passageiro, já que pela migração do capital os preços

voltam a adequar-se ao preço natural, trata-se, nesse caso, de um monopólio

que se deve à diminuição absoluta da produtividade na agricultura. Nesse pon

to, porém, observa-se ao mesmo tempo como a identificação do valor com o

 preço de custo, por assim dizer, pré-forma a sua teoria da renda. Ela até está

em consonância com a sua teoria do valor e com as representações referentes

à função niveladora da concorrência, mas a sua teoria do valor (sobre a base

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S O C I E D A D E E C O N H E C I M E N T O E M    O CAPITAL

dessa identificação) obriga-o a negar a renda fundiária absoluta. O pior dos

solos não gera renda; se “o melhor   terreno dá renda, isso apenas demonstra

que, na agricultura, a diferença entre o trabalho individualmente necessário e

o trabalho socialmente necessário se fixa, por ter esta uma base natural, enquanto na indústria está sempre desaparecendo” (26.2/123 [ed. bras. Teorias da 

mais-valia, vol. II, p. 561 modif.]).

Se Ricardo admitisse a existência de uma renda fundiária absoluta entraria

em contradição com a sua teoria do valor; significaria que a mesma quantida

de de trabalho cria valores diferentes, dependendo do material que ela proces

sa. “Mas se se admite essa diversidade no va lor , embora em cada um dos ramos

de produção o mesmo  tempo de trabalho se materialize no produto, supõe-se

que o tempo de trabalho não determina o valor  e sim algo heterogêneo. Essadiferença das magnitudes de valor  anularia o conceito de valor” (26.2/123 [ed.

 bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 561]). Ricardo explica, portanto, a exis

tência da renda diferencial, mas a propriedade fundiária permanece sem efeito

econômico para ele, embora descreva a propriedade fundiária, em contrapar

tida, como produto de um processo de apropriação.

A lei ricardiana também reinaria mesmo quando não existisse propriedade fundiária.  

Abolida a propriedade da terra e mantida a produção capitalista, remanesceria esse lucro

suplementar emergente da diferença de fertilidade. Se o Estado se apropriasse da terra

e prosseguisse a produção capitalista, a renda de II, III e IV seria paga ao Estado, a pró

 pria renda continuaria a existir. (26.2/97 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 534])

Deixando de existir a identificação de valor com preço de custo, ou seja,

com a decifração mais precisa do movimento contraditório da concorrência,

deixa de existir também “o interesse teórico  que o [Ricardo, H. R.] força a

negar a renda fundiária absoluta” (26.2/242 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 673]). Nesse caso, não se trata mais de explicar como o preço da

mercadoria ainda gera renda ao lado do lucro, ou seja, aparentemente violando

a lei do valor e, mediante “a elevação desse preço acima do mais-valor ima

nente,  rende mais que a taxa geral de lucros para um capital de dada magni

tude” (26.2/31 [ed. bras. Teorias da mais-valia,  vol. II, p. 470]), mas trata-se

tão somente de explicar ainda por que, quando as mercadorias são niveladas a

 preços médios, uma mercadoria não precisa ceder a outras mercadorias tanto

do seu mais-valor imanente a ponto de gerar só mais o lucro médio. Para Marx,a existência da própria propriedade fundiária é a resposta. O capital só pode

existir sob o pressuposto da propriedade fundiária, que, porém, ao mesmo

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S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

tempo, representa um meio de subtrair do capital uma parcela do produto

agrícola, sendo que o capital só poderia apropriar-se dessa parcela sob o pres

suposto da não existência da propriedade fundiária. O capital tem de ceder ao

 proprietário de terras o excedente do valor sobre o preço de custo. Marx explica, portanto, a existência da renda fundiária absoluta a partir da diferença na

composição orgânica do capital, que Ricardo não é capaz de apreender nessa

forma, a ponto de ser obrigado a negar a renda fundiária absoluta. Esta se deve

ao fato de que, na agricultura, as forças produtivas são menos desenvolvidas,

sendo absorvido, em consequência disso, mais trabalho vivo.

Essa diferença [na composição orgânica, H. R.] é histórica e pode, portanto, desa

 parecer. A m esma argumentação que mostra a possibilidade de existir a renda fundiária 

absoluta  demonstra que esta é real, existe na qualidade de mero fa c t   [fato] histórico,

 próprio de certo estádio de desenvolvimento da agricultura, e pode desaparecer em es

tádio superior. (26.2/242-3 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 674])

 No tas

1 Cf. Roman Rosdolsky, Zur Entstehungsgeschichte des Marxschen “Ka pi tal ”,  Frankfurt. 1968,vol. 1, pp. 24-78, e: Witali Solomonowitsch Wygodski,  Die Geschichte einer großen Entdeckung. Berlin, 1967. pp. 117-30.

2 Cf. sobre isso a exposição de Oskar Negt em reação à contribuição de Alfred Schm idt no

Frankfurter Colloquium,  em setembro de 1967, em: Kritik der politischen Ökonomie heute —  Í00 Jahre “Kapital”.  Frankfurt, 1968, p. 43.

3 Cf. Alfred Schmidt, Zu m Erken ntnisb eg ri ff der Kri tik de r poli tischen Ökonomie, eit., p. 32.

4 G. W. F. Hegel,  Jenae r Rea lphi losoph ie  (ed. Hoffmeister), Hamburg, 1967, p. 257.

5 Heg el [Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie], em: Werke  (Glöckner), vol. XV, pp. 282 e ss.

6 Adam Smith, Eine Untersuchung üb er Natur u nd Wesen des Volkswohlstandes, Jena. 1923, pp.

60-1 [Ed. bras.:  A riqueza das nações. Invest igação sobre sua natureza e suas causas. Trad.

Luiz João Baraúna. São Paulo, Nova Cultural, 1996, vol. I, p. 102 (Os economistas).]

7  Idem, ibidem,  p. 63 [ed. bras. p. 103],

8 David Ricardo, Über die Grundsätze de r politischen Ökonomie und Besteuerung. Berlin. 1959,

 p. 12. [Ed. bras.: Princípios de economia política e tributação. Trad. Paulo Henrique RibeiroSandroni. São Paulo, Nova Cultural, 1996, p. 25 (Os economistas).]

9 Adam Smith, Eine Untersuchung über Natur u nd Wesen des Volkswohlstandes,  vol. I, p. 40

[ed. bras. p. 89],

10 Adam Smith, Eine Untersuchung über Natur und Wesen des Volkswohlstandes,  vol. I. p. 69[ed. bras. p. 109].

11  Idem, ibidem, p. 70 [ed. bras. p. 109].

12  Idem, ibidem, p. 70 [ed. bras. p. 109].

13  Idem, ibidem , p. 70 [ed. bras. pp. 109-10],

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C A P Í T U L O 3

A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

1. Sobre a relação entre método lógico e método histórico

 Nossa investigação a respeito do conceito da concorrência, do capital existen

te, na medida em que, na condição de capital existente, igualmente ainda cabe

na “análise geral” , mostrou que, segundo Marx, um mal-entendido central faz

 parte da essência da teoria burguesa: em nenhum momento ela se dá conta de

que analisa o processo capitalista global sempre só a partir da perspectiva do

capitalista individual, ao qual esse processo se apresenta de forma distorcida.

Como sabemos, O capital termina com a crítica da “fórmula trinitária”, daque

la teoria mistificadora dos diversos fatores da produção que contribuem, em

seu conjunto, para o aumento de valor do produto final, tendo sido constatado

que essa visão resulta, à guisa de “tendência natural de interpretação”, do fato

de que, para o capitalista individual, salário, juros e renda funcionam como

elementos da formação de preços, entram nos seus cálculos na forma de custos.

Entre esses custos o Adam Smith “exotérico” também inclui o lucro, o qual é

antecipado em certa proporção pelo empresário, orientando-se pela taxa média

de lucro gerado por cada capital. Nessa constelação, a categoria do salário

desempenha um papel central, porque ela encobre que a repartição do valor

 por diversas categorias não é idêntica à forma do trabalho produtor de valor,assim como inversamente encobre que esse trabalho, na medida em que possui

o caráter especificamente social do trabalho assalariado, não é formador de

valor. Em consequência, todo trabalho aparece, por sua natureza, como traba

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SO B R E A E STR U TU R A LÓ G I C A D O C O N C E I TO D E C A P I TA L E M K A R L MA R X  

lho assalariado, e essa é, como foi explicitado anteriormente, a razão secreta

da teoria da força mística dos fatores da produção. Pois, coincidindo o trabalho

com o trabalho assalariado, a forma social em que o produtor desnudado se

defronta com as condições estranhadas de trabalho também coincide com aexistência material dessa mesma forma. Sendo assim, os meios de trabalho

como tais são capital, e a terra como tal é propriedade fundiária; a forma social

do processo de produção distorce-se em forma natural e se torna idêntica ao

 processo simples do trabalho, do modo como ele se encontra na base de todas

as formações sociais enquanto pressuposto da vida humana. As diversas recei

tas parecem se dever ao papel que os diversos meios de produção ou então o

trabalho desempenham no processo simples da produção.

A tarefa da teoria econômica é desmantelar essa falsa aparência, e dem ons

tramos com alguns exemplos da crítica marxiana à teoria burguesa clássica em

que medida ela a cumpriu com êxito. Porém, o fato de ainda assim acabar

capitulando se deve à circunstância de não ter discernido a natureza das cate

gorias. A isso Marx também atribui que o método da teoria burguesa sempre

 permanece exterior ao seu objeto, e isso, por sua vez, tange a form a de expo

sição do processo global. Marx aborda apenas marginalmente esse assunto,

mais propriamente apenas quando trata de Ricardo. Ele o elogia, como já ex

 pusemos, por causa da rigorosa coerência do seu procedimento, mas, ao mes

mo tempo, indica que ele toma as categorias a partir do campo empírico, pres-

supondo-as como dadas (em vez de primeiro desenvolvê-las), para demonstrar

a sua “adequação à lei do valor”.

O método de Ricardo consiste no seguinte: parte da determinação da magnitude do

valor da mercadoria pelo tempo de trabalho e investiga se as demais relações e catego

rias econômicas contradizem  essa determinação do valor ou até onde a modificam. A

 prim eira vista percebe-se a legitim idade histórica dessa maneira de proceder, sua neces

sidade científica na história da economia, mas, ao mesmo tempo, sua insuficiência cien

tífica. A insuficiência se revela no modo de apresentação (meramente formal) e, ademais,

leva a resultados errôneos, porque omite os necessários elos intermediários e procura

de imediato provar a congruência entre as categorias econômicas. (26.2/161-2 [ed. bras.

Teorias da mais-valia, vol. II, p. 597])

Ainda não trataremos aqui o que se deve entender por “elos intermediários

necessários” nesse contexto; essencial é, muito antes, a indicação de que ummétodo que assume exteriormente as categorias terá de levar a um modo de

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A E X P O SI Ç Ã O C A TE G O R I A L

exposição necessariamente falso do processo global. Isso é ressaltado clara

mente algumas páginas mais adiante:

Daí a arquitetura de sua obra — singular ao extremo e necessariamente revirada. [...]

A teoria ricardiana está [...] toda contida nos seis primeiros capítulos da obra. Quando

falo de suas falhas arquitetônicas, trata-se dessa parte. A outra parte consiste em apli

cações, esclarecimentos e aditamentos (excetuada a seção sobre moeda), que por sua

natureza se baralham e nada exigem da arquitetônica. Mas a arquitetônica falha da

 parte teórica (os prim eiros seis capítu los) não é acidental e sim resultante do método de

 pesquisa do próprio Ricardo e dos objetivos determinados que impusera a sua investi

gação. Ela revela o aspecto cientificamente insuficiente do próprio método de pesquisa.

(26.2/164 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, pp. 599-600])

Visto que Marx desde sempre já criticou a teoria clássica a partir do ponto

de vista de sua própria elaboração dos problemas econômicos, infere-se daí

simultaneamente que o método com cujo auxílio se deverá provar a validade

universal da lei do valor no capitalismo deve resultar da natureza das próprias

categorias e também toda a exposição do processo deve advir da compreensão

correta dos problemas formais. Contudo, enquanto o trabalho assalariado for

identificado com trabalho puro e simples e as determinidades sociais formais,sob as quais as condições de produção se confrontam com o trabalhador, forem

distorcidas em qualidades naturais dessas condições de produção, a economia

 burguesa não conseguirá ultrapassar o horizonte metodológico de Ricardo. O

seu método e a forma da exposição indicam simultaneamente o seu próprio

limite. Pois, nesse caso, a distorção da forma social em forma natural significa

tão somente que se deve ignorar completamente que a diferenciação da socie

dade em classes, a forma burguesa do antagonismo de classes, expressa-se no

 próprio arcabouço categorial, ou seja, que a gênese do trabalho assalariadolivre e a autonomização das condições do trabalho em relação ao produtor

imediato constituem um só e mesmo processo: os meios de produção somente

assumem a forma de capital quando a existência subjetiva é separada de sua

 base objetiva e só então aparece na forma do trabalhador puro e simples. Ao

surgir, o capitalismo oculta a sua própria origem, na medida em que todos os

membros da sociedade encontram uns aos outros na esfera da circulação, tro

cam equivalentes e, por essa via, estão ao mesmo tempo submetidos ao pro

cesso de distorção anteriormente esboçado, que faz com que o ser humano

 burguês apareça como ente sem história por excelência. Como a teoria burgue

sa não discerne dessa maneira esse conjunto de fatos, ela precisa — analoga-

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S O B R E    A E STR U TU R A LÓ G I C A D O C O N C E I TO D E C A P I TA L E M K A R L MA R X  

mente à teoria clássica do Estado — contentar-se em ter a forma dos indivíduos

isolados como verdade completa e só pode desenvolver a gênese do processo

capitalista de reprodução, assim como o seu funcionamento, sob esse pressu

 posto (indiscernível para ela mesma). Porém, vimos na análise da crítica mar-

xiana a Adam Smith e David Ricardo que, sob esse pressuposto, justamente

não se consegue provar a validade universal da lei do valor. Marx volta a

abordar esse contexto global por ocasião de sua discussão com Cherbuliez, que

deriva da lei do valor em sua interpretação burguesa o “direito exclusivo” do

trabalhador ao valor resultante do seu trabalho como “princípio fundamental” :

Cherbuliez não entende e não explica como a lei pela qual as mercadorias se equi

valem e se trocam na proporção de seu valor, isto é, do tempo de trabalho nelas contido,

se transmuta fazendo, ao contrário, a produção capitalista — e só nesta é essencial a

geração do produto como m ercadoria — depender da apropriação de parte do trabalho

sem haver troca. Sente apenas ocorrer aí uma transmutação. Esse princípio fundamen

tal é pura ficção. Decorre de uma aparência da circulação das mercadorias. Estas se

trocam na proporção de seu valor, isto é, do trabalho nelas contido. Os indivíduos, ao

se confrontarem apenas como possuidores de mercadorias, só podem apoderar-se da

mercadoria alheia alienando a própria. Por isso , parece que eles têm apenas a sua própria

mercadoria para trocar, pois a troca de m ercadorias que contêm trabalho alheio, desde

que elas não tenham sido, por sua vez, obtidas mediante troca de mercadorias próprias,

 pressupõe relações inter-hum anas que d iferem das de simples possuidores de mercado

rias, de compradores e vendedores. Na produção capitalista se desfaz essa aparência que

a própria superfície ostenta. Mas o que não se desfaz é a ilusão de que, na origem, as

 pessoas se con frontam apenas como possuidoras de mercadorias e, por isso, cada um só

é proprietário na condição de trabalhador. Esse “na origem” é, como disse, miragem

oriunda da aparência da produção capitalista e nunca existiu na realidade histórica.

(26.3/369 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. III, p. 1.420 modif.])

Diante dessa aparência da circulação de mercadorias sucumbiram, segundo

Marx, todos os teóricos burgueses. É verdade que há o reconhecimento de que

o mais-valor é produzido e apropriado pelos proprietários dos meios de tra

 balho, fato para o qual Marx volta a cham ar a atenção nesse ponto; o que não

se percebe é que só com a separação completa entre o produtor e seus meios

de produção toda a produção é subsumida na forma burguesa da divisão do

trabalho, e, em consequência disso, só então a lei do valor pode chegar à suavigência plena.

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 A EX P O SIÇ Ã O C A TEGO RIAL

Uma análise da forma específica da divisão do trabalho, das condições de produção

em que se baseia e das relações econômicas dos membros da sociedade em que essas

condições se dissolvem mostraria que todo o sistema da produção burguesa é pressu

 posto para que o valor de troca apareça como ponto de partida simples na superfície e para que o processo de troca, da maneira como este se desdobra na circulação simples,

se mostre como metabolismo social  simples, mas que abrange tanto toda a produção  

como o consumo. Resultaria daí, portanto, que são pressupostas outras  relações de

 produção, mais intrincadas e que colidem em maior ou menor grau com a liberdade e a

independência dos indivíduos, são pressupostas relações econômicas entre esses indi

víduos, para que se confrontem, no processo de circulação, como produtores privados

livres em suas relações simples de compra e venda, para que figurem como seus sujeitos

independentes.  Do ponto de vista da circulação simples, porém, essas relações estão extintas.  (U/907)

Todos os membros da sociedade só poderão intercambiar uns com os outros

na esfera da circulação usando certas máscaras de personagens quando a forma

 burguesa da cisão de classes estiver completamen te desenvolvida. Som ente

então, também para o capitalista individual, estarão dados de antemão, na

forma de um arcabouço categorial, os diversos elementos que determinam o

seu agir, bem como definem o seu modo de existência; na forma em que o processo capitalis ta global se apresenta ao capitalista individual, esse arcabou

ço representa simultaneamente a superfície desse processo. Neste, encontramos

a categoria “salário do trabalho”, que simula haver, na troca entre capital e

trabalho, a mesma espécie de compra e venda que há no caso de todas as demais

mercadorias. Com outras palavras: a lei do valor só vigorará quando a socie

dade inteira estiver subsumida na forma burguesa da divisão do trabalho, mas

a demonstração de sua validade só é possível, segundo Marx, quando puder

ser mostrado que, num ponto decisivo de transição, a troca ocorre só na aparência, que a relação de troca entre capital e trabalho constitui uma aparência

 própria apenas do processo de circulação, “simples forma, que é estranha ao

seu conteúdo e que o mistifica”, ou seja, uma forma sob a qual o capitalista

 pode se apropriar sem equivalente de uma quantidade de trabalho vivo maior

do que ele entrega de trabalho objetivado. Para Marx, por conseguinte, o pro

cesso global se apresenta numa forma em que a concepção burguesa foi ver

dadeiramente suprassumida no sentido hegeliano: enquanto os teóricos bur

gueses partem da forma dos indivíduos isolados como algo não mais derivável,Marx mostra que até mesmo essa forma é mediada, ela própria já é resultado

do capital. “A circulação, considerada em si mesma, é a mediação de extremos

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S OB R E A E S T R UT UR A L Ó GI CA DO CONCE I T O DE CA P I T A L E M KA R L MA R X  

 pressupostos. Mas não é ela que põe esses extremos. Sendo ela mesm a a tota

lidade da mediação, sendo ela mesma um processo total, ela consequentemen

te precisa ser mediada. Por conseguinte, o seu ser imediato é pura aparência. 

Ela é o fenômeno de um processo que se desenrola por trás dela” (U/920). “Acirculação simples é, muito antes, uma esfera abstrata do inteiro processo de

 produção burguês, que, por suas próprias determinações, identifica-se como

momento, simples forma de manifestação de um processo mais profundo que

está por trás dela, que resulta dela tanto quanto a produz — o processo do

capital industrial” (U/922-3).

Esses fatos se refletem na exposição dialética das categorias. Na leitura cui

dadosa do primeiro volume de O capital, deparar-nos-emos, no mais tardar na

nota de rodapé 15, com a problem ática da formulação: “O leitor deve notar quenão se trata aqui da remuneração ou do valor que o trabalhador recebe por, di

gamos, uma jornada de trabalho, mas sim do valor das mercadorias nas quais

sua jornada se objetiva. A categoria do salário ainda não existe em absoluto

nesse estágio de nossa exposição” (23/19 [ed. bras. O capital,  vol. I, p. 122,

n. 15]). Outra passagem essencial para a formulação encontra-se no capítulo 4

que trata da transformação de dinheiro em capital. Ali Marx escreve o seguinte:

Por que razão esse trabalhador livre se confronta com ele [com o capitalista, H. R.]

na esfera da circulação é algo que não interessa ao possuidor de dinheiro, para o qual o

mercado é uma seção particular do mercado de mercadorias. No momento, essa questão

tampouco tem interesse para nós. Ocupam o-nos da questão teoricamente, assim como

o possuidor de dinheiro ocupa-se dela praticamente. Uma coisa, no entanto, é clara: a

natureza não produz possuidores de dinheiro e de mercadorias, de um lado, e simples

 possuidores de suas próprias forças de trabalho, de outro. Essa não é um a relação his-

tórico-natural [naturgeschichtliches], tampouco uma relação social comum a todos os

 pe ríod os histórico s, mas é claram ente o resu ltad o de um desenv olvimento históricoanterior, o produto de muitas revoluções econômicas, da destruição de toda um a série

de formas anteriores de produção social. (23/183 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 244])

 No  Rascunho de O capital, Marx já havia argumentado de modo semelhan

te, quando chamou a atenção para o significado que esses fatos têm para a

forma dialética da exposição das categorias.

O possuidor do dinheiro [...] encontra já pronta no mercado, nos limites da circulação, a capacidade de trabalho como m ercadoria; esse pressuposto do qual partimos aqui

e do qual parte a sociedade burguesa no seu processo de produção evidentemente é o

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 A E X P O S I Ç Ã O C A T E G O R I A L

resultado de um longo desenvolvimento histórico, é o resumo de muitas revoluções

econômicas e pressupõe o ocaso de outros modos de produção (de outras relações sociais

de produção) e determinado desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social.

O processo histórico passado bem determinado que está dado nesse pressuposto será

formulado de maneira ainda mais determ inada à medida que avança a análise da relação.

Porém, esse estágio histórico do desenvolvimento da produção econômica — do qual o

trabalhador livre já é o próprio produto — constitui o pressuposto do devir e sobretudo

da existência do capital como tal. A sua existência é o resultado de um demorado pro

cesso histórico de configuração econômica da sociedade. Nesse ponto, evidencia-se de

modo bem nítido como a forma dialética da exposição só é correta quando está ciente

dos seus limites. (U/945)

Das passagens citadas se infere que a existência de um conjunto de traba

lhadores assalariados livres constitui o pressuposto para a elaboração conceituai

do sistema capitalista global na forma da exposição dialética das categorias,

mas que essa forma de exposição, por seu turno, não é imediatamente idêntica

à reconstituição da gênese histórica do capital e do trabalho assalariado livre.

Essa diferenciação entre a sequência lógica das categorias e a gênese histórica

do capitalismo não se encontra na obra inicial, como vimos. E verdade que

também ali se ressalta claramente que só com a separação completa entre aexistência subjetiva e as condições objetivas de sua realização torna-se possível

vislumbrar a estrutura da história, mas naquela época ele não conseguiu chegar

à formulação teórica do curso real da história. Ele tampouco estava em condi

ções de derivar a relação de classes do simples ato de troca, o que pelo menos

nos Manuscritos económico-filosóficos foi pretendido de modo incipiente. Com

a introdução dessa diferenciação foram superadas as inconsistências.

Engels determinou aproximadamente a relação entre método lógico e mé

todo histórico numa resenha de Para a crítica da economia política.  Nesse

texto consta que o método lógico seria o método despojado de sua “forma

histórica” e das “casualidades perturbadoras” (13/475 [ed. bras. Contribuição  

à crítica da economia política, pp. 282-3]*); segundo Engels, a linha de pen

samento em Para a crítica nada mais seria que “a imagem espelhada, em sua

forma abstrata e teoricamente coerente, do curso da história”. A descrição

dessa relação entre os dois métodos refere-se só de modo extremamente me

diado, antes de tudo, a Para a crítica da economia política e ao sistema global.

* Ref. completa da edição brasileira: K. Marx, Contribuição à crítica da economia política. 

Trad. Florestan Fernandes. 2. ed. São Paulo, Expressão Popular, 2008. (N. do T.)

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SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

 Neste ponto, contudo, é preciso lembrar que Marx descreveu de modo total

mente diverso o seu método de exposição no tocante à sucessão das categorias

e à sua relação com o desenvolvimento histórico:

Seria impraticável e falso, portanto, deixar as categorias econômicas sucederem-se

umas às outras na sequência em que foram determinantes historicamente. A sua ordem

é determinada, ao contrário, pela relação que têm entre si na moderna sociedade burgue

sa, e que é exatamente o inverso do que aparece como a sua ordem natural ou da ordem

que corresponde ao desenvolvimento histórico. (42/41 [ed. bras. Grundrisse, p. 60])

A exposição dialética como sistema consistente em si da estrutura global

das categorias tem muita similaridade com a ideia hegeliana de sistema, namedida em que o todo só se toma acessível mediante as partes, assim como,

inversamente, os momentos individuais da formulação global são determinados

 pelo todo até nos detalhes mais concretos quanto à sua posição bem definida

no interior do todo. Ocorre, porém, que o histórico e o lógico não são idênticos

como no idealismo absoluto; a relação entre ambos é mais complexa.

Por outro lado, o que é muito mais importante para nós, o nosso método ind ica os

 pontos onde a análise histórica tem de ser introduzida, ou onde a economia burguesa,como simples figura histórica do processo de produção, aponta para além de si mesma,

 para modos histó ricos de produção anteriores. Por essa razão, para desenvolver as leis

da economia burguesa não é necessário escrever a história efetiva das relações de pro

dução. Mas a sua correta observação e dedução, como relações que devieram elas pró

 prias históricas, levam sempre a primeiras equações — como os números empíricos, p.

ex., nas ciências naturais — que apontam para um passado situado detrás desse sistema.

Tais indicações, juntamente com a correta apreensão do presente, fornecem igualmente

a chave para a compreensão do passado — um trabalho à parte, que esperamos também poder abordar. (42/373 [ed. bras. Grundrisse, p. 378])

Marx se refere aqui ao processo da acumulação primitiva, que leva a que,

 pela primeiríssima vez, seja produzido o conjunto dos trabalhadores assalaria

dos livres, sendo que o lugar sistemático para tratar desse processo é fixado

 pela logicidade imanente da exposição categorial. Contudo, para que se possa

fazer a distinção entre essa “história efetiva das relações de produção” enquan

to história específica e a exposição categorial, não só deve haver clareza quanto à estrutura do arcabouço categorial, no qual essa “história efetiva” penetra

em certos pontos nodais, mas a apreensão conceituai exata dessa “história das

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 A E X P O S I Ç Ã O C A T E G O R I A L

relações de produção” igualmente só pode ocorrer com base no conhecimento

da logicidade interna do movimento do valor. Portanto, o conceito de capital

é pressuposto para retraçar dito desenvolvimento histórico do capital que levou

até o capitalismo e, desse modo, também àquelas relações, sobre cuja baseunicamente se torna possível a formulação desse conceito.

Se no sistema burgués acabado cada relação econômica pressupõe a outra sob a

forma económico-burguesa e, desse modo, cada elemento posto é, ao mesmo tempo,

 pressuposto, o mesmo sucede em todo o sistema orgânico. Como totalidade, esse próprio

sistema orgânico tem seus pressupostos, e seu desenvolvimento na totalidade consiste

 precisamente em subordinar a si todos os elementos da sociedade, ou em extrair dela os

órgãos que ainda lhe faltam. É assim que ele devém uma totalidade historicamente. O

vir a ser tal totalidade constitui um momento do seu processo, de seu desenvolvimento.

(42/203 [ed. bras. Grundrisse, p. 217])

 Não é preciso continuar detalhando que aqui não está sendo antecipado

nenhum teorema das teorias sociais organicistas. Seria mais plausível lembrar

o conceito hegeliano do espírito que reproduz de modo essencialmente mais

 preciso o que Marx tem em vista aqui, a saber, que só mesmo o capital é capaz

de originar o capitalismo. Quando Marx, em O capital, expõe as relações efetivas só na medida em que elas “correspondem ao seu próprio conceito”, ele

expressa com isso simultaneamente que o capitalismo existente não precisa

corresponder de modo imediato ao seu próprio conceito, não precisa ser “ade

quado a si mesmo”, mas a forma em que ele existe ainda assim deve ser com

 preendida como modo de existência para o qual impele o movimento do valor;

que, por assim dizer, está implantado nele. “No conceito do capital está posto

que as condições objetivas do trabalho — e estas são produto dele mesmo —

assumem uma personalidade  diante do trabalho ou, o que significa a mesma

coisa, que elas são postas como propriedade de uma personalidade estranha ao

trabalhador” (42/420 [ed. bras. Grundrisse, p. 422]). Porém, não há como con

ceber a autonomização das condições do trabalho ante o produtor como pecu

liaridade do capitalismo sem a existência da moderna propriedade fundiária

 burguesa. As duas coisas, trabalho assalariado livre e propriedade fundiária bur

guesa, são dois lados da mesma coisa; elas próprias ainda precisam ser com

 preendidas como produto do capital:

[...] no interior do sistema da sociedade burguesa, o capital vem imediatamente

depois do valor.  Na história, ocorrem outros sistem as   que constituem o fundamento

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S OB R E A E S T R UT UR A L ÓGI CA DO CONCE I T O DE CA P I T A L E M KA R L MA R X  

material do desenvolvimento incompleto do valor. Como o valor de troca desempenha

aqui apenas um papel acessório ao lado do valor de uso, aparece como sua base real não

o capital, mas a relação da propriedade fundiária. A propriedade fundiária moderna, por

comparação, não pode de modo algum ser compreendida sem o pressuposto do capital, porque não pode existir sem ele e aparece historicamente de fato como forma engendrada

 pelo capital, posta como forma adequada a ele, da configuração histórica p recedente da

 propriedade fundiária. Por essa razão, é precisamente no desenvolvimento da proprie

dade fundiária que podem ser estudadas a vitória e a formação progressivas do capital

[...]. A história da propriedade fundiária que m ostrasse a transformação progressiva do

senhor feudal em rentista fundiário, do arrendatário vitalício por herança, semitributário

e frequentemente privado de liberdade no moderno fazendeiro e dos servos da gleba e

do camponês sujeito a prestação de serviços no assalariado rural seria de fato a história

da formação do capital moderno. (42/177-8 [ed. bras. Grundrisse, pp. 194-5])

Outra passagem diz o seguinte:

Historicamente a passagem é indiscutível. Já está contida no fato de que a proprie

dade fundiária é produto do capital. Por essa razão, observamos sempre que ali onde

a propriedade fundiária, pela ação retroativa do capital sobre as formas mais antigas da

 propriedade fundiária , se transform a em renda monetária (o mesmo ocorre, de outra

maneira, ali onde é criado o camponês moderno) e, por isso, a agricultura, como agri

cultura explorada pelo capital, se transforma simultaneam ente em agronomia industrial,

ali os cottiers, servos da gleba, camponeses sujeitos a prestação de serviços, enfiteutas,

colonos etc. necessariamente devêm diaristas, trabalhadores assalariados; por conse

guinte, o trabalho assalariado em sua totalidade é inicialmente criado pela ação do

capital sobre a propriedade fundiária e, posteriormente, tão logo esta está desenvolvida

como forma, pela ação do próprio proprietário fundiário. O próprio proprietário então

clears  [limpa] a terra de suas bocas supérfluas, como diz Steuart, arranca os filhos da

terra do seio no qual cresceram e transforma, assim, o próprio trabalho na terra, detrabalho que, segundo a sua natureza, aparece como fonte imediata de subsistência, em

trabalho como fonte de subsistência mediada, inteiramente dependente de relações so

ciais. (42/202 [ed. bras. Grundrisse, pp. 215-6])

A exposição das categorias numa sequência determinada “pela relação que

têm entre si na moderna sociedade burguesa, e que é exatamente o inverso do

que aparece como a sua ordem natural ou da ordem que corresponde ao desen

volvimento histórico”, deve ser compreendida, por conseguinte, nessa formasimultaneamente como forma abstrata de exposição do processo que leva his

toricamente ao capitalismo. Ele é — se assim o quisermos — o processo de

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 A E X P O S I Ç Ã O C A T E G O R I A L

constituição do sujeito burguês em sua forma mais abstrata. “Nós assistimos

ao seu processo de formação. Esse processo de formação dialético é apenas a

expressão ideal do movimento efetivo em que o capital vem a ser. As relações

ulteriores devem ser consideradas como desenvolvimentos a partir desse em brião” (42/231 [ed. bras. Grundrisse, p. 243]). Por essa razão, devemos formu

lar agora de modo mais preciso a ideia citada anteriormente de que, no interior

do sistema burguês, o capital industrial segue imediatamente o valor. Uma

análise precisa dessa passagem mostra que entesouramento, capital comercial,

capital de juros e de usura assumem uma posição essencial na formulação

dialética dessa passagem, mas que especialmente os dois últimos são apenas

rapidamente tangidos e o tratamento detalhado só segue bem mais tarde. Re

flete-se aí o fato de que a forma dialética de exposição das categorias simultaneamente é a forma adequada de exposição do movimento que historicamente

dá origem ao capitalismo. Em nossa tentativa de reconstituir o desdobramento

dialético das categorias temos de manter essa conexão em vista.

2. O conceito marxiano de valor 

Antes de nos voltarmos para a forma da exposição dialética das categorias,

delinearemos sucintamente os problemas básicos da teoria marxiana do valor

e do dinheiro. Numa análise mais precisa das formulações centrais da questão,

o que chama a atenção é que elas apresentam a mesma estrutura das que já no

 jovem Marx ocupavam o centro da discussão. Lembramos que já bem cedo ele

tentou derivar a relação entre base e superestrutura da estrutura da própria base.

As primeiras indicações em A crítica do direito do Estado de Hegel,  em que

ele observa que a “sociedade burguesa implementa [...], no interior dela mes

ma, a relação entre o Estado e a sociedade burguesa” ; a equiparação explicitamente efetuada de crítica da religião e crítica do Estado político, no tratado

Sobre a questão judaica',  os  Manuscritos económico-filosóficos,  contendo a

 primeira determinação mais precisa da base; e A ideologia alemã,  enquanto

tentativa de compreender a duplicação do mundo em sociedade burguesa e

superestruturas idealistas como produto do autoesfacelamento e do autocon-

tradizer-se do fundamento mundano, isto é, da sociedade burguesa em suas

diversas fases, levam diretamente à teoria marxiana do valor e do dinheiro. O 

quanto as formulações do problema da obra tardia coincidem com as da obrainicial fica claro no  Rascunho  de O capital,  em que ele reitera a sua crítica

inicial ao hegelianismo de esquerda e a crítica tardia à economia política. Na

controvérsia com Darimon e Proudhon, ele levanta a seguinte pergunta:

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S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

Chegamos aqui à questão fundamental, que não se relaciona mais com o ponto de

 partida. A questão geral seria: as relações de produção existentes e suas correspondentes

relações de distribuição podem ser revolucionadas pela mudança no instrumento de

circulação — na organização da circulação? Pergunta-se ainda: uma tal transformaçãoda circulação pode ser implementada sem tocar nas relações de produção existentes e

nas relações sociais nelas baseadas? [...]. Além disso, haveria de investigar ou se con

verteria, muito antes, na pergunta geral se as diversas formas civilizadas do dinheiro

 — dinheiro metálico, dinheiro de papel, dinheiro de crédito e dinheiro-trabalho (este

último como forma socialista) — podem realizar aquilo que delas é exigido sem abolir

a própria relação de produção expressa na categoria "dinheiro”, e se, nesse caso, por

outro lado, não é uma pretensão que se autodissolve desejar, mediante transformações

formais de uma relação, passar por cima de suas determinações essenciais? As distintasformas de dinheiro podem corresponder melhor à produção social em diferentes etapas,

uma eliminando inconvenientes contra os quais a outra não está à altura; mas nenhuma

delas, enquanto permanecerem formas do dinheiro e enquanto o dinheiro permanecer

uma relação de produção essencial, pode abolir as contradições inerentes à relação do

dinheiro, podendo tão somente representá-las em uma ou outra forma. (42/58-9 [ed. bras.

Grundrisse, p. 74-5])

Pretender e tentar eliminar as deficiências da sociedade burguesa pela ma

nipulação do sistema monetário e de circulação parece a Marx tão inconse

quente quanto a insensatez dos anarquistas de quererem “eliminar” o Estado

ou a dos hegelianos de esquerda, cuja exigência de transformação da consciên

cia só desembocaria em outra exigência: “de interpretar o existente de outra

maneira, quer dizer, de reconhecê-lo por meio de uma outra interpretação”

(3/20 [ed. bras. A ideologia alemã , p. 84]).

Assim como a forma do Estado político ou então da filosofia e da religião

enquanto representação do domínio de um universal no mundo existente é tãosomente a deficiência do mundo distorcido, oculta dele próprio, e, por essa

razão, esse “fundamento mundano autoesfacelado” precisa ser aniquilado na

 prática para que aquelas formas desapareçam, assim também a eliminação do

dinheiro-ouro e sua substituição por bilhetes de horas não conseguirão atingir

o mal efetivo, visto que o dinheiro como tal representa apenas um momento

necessário da forma burguesa do processo de reprodução, encontrando-se na

mesma contraposição a ele, e o supera do mesmo modo como a religião e o

Estado superam a limitação do mundo profano:

Suprimis todos os males. Ou. antes, elevais todas as mercadorias ao monopólio até

aqui exclusivo desfrutado pelo ouro e pela prata. Deixais existir o papa, mas fazeis de

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 A E X P O S IÇ Ã O CA TE GO R IA L

cada um um papa. Suprimis o dinheiro, fazendo de cada mercadoria dinheiro e dotando-

-a das qualidades específicas do dinheiro. A questão que aqui se coloca é justam ente se

o problema não manifesta a sua própria absurdidade e se, por conseguinte, a impossibi

lidade de solução já residiria nas condições postas para a tarefa. Muitas vezes a resposta só pode consistir na crítica da pergunta, e muitas vezes também só se pode chegar a

uma solução na medida em que a própria pergunta é negada. A questão efetiva é: o

 próprio sistema de troca burguês não torna necessário um instrum ento de troca especí

fico? Não cria necessariamente um equivalente particular para todos os valores? Uma

forma desse instrumento de troca ou desse equivalente pode ser mais prática, mais

apropriada, e envolver menos inconvenientes do que outras. Mas os inconvenientes que

resultam da existência de um instrumento de troca particular, de um equivalente parti

cular e ainda assim universal, teriam de se reproduzir em qualquer forma, ainda que demodo diferente. Naturalmente, Darimon passa por cima dessa questão com entusiasmo.

Suprimis o dinheiro e não suprimis o dinheiro! Suprimis o privilégio que o ouro e a

 pra ta detêm em virtude de sua exclusividade como dinheiro, mas fazeis de todas as

mercadorias dinheiro, i.e., conferis a todas, em conjunto, uma propriedade que, separa

da da exclusividade, não existe mais. (42/62-3 [ed. bras. Grundrisse, p. 78 modif.])

Renunciaremos aqui a uma exposição das concepções dos “teóricos do

 bilhete de horas” criticados por Marx, até porque eles apenas lhe ofereceram

o ensejo para o desenvolvimento de sua própria teoria do valor e do dinheiro.

Contudo, o fato de aquelas concepções, não importando quão efetivas elas

 possam ter sido, terem tido para Marx apenas a função de “cabide” lança luz

sobre a estrutura de sua própria teoria. Assim como ele ressalta em A ideologia 

alemã  que os jovens-hegelianos “concordam com os velhos-hegelianos no que

diz respeito à crença no domínio da religião, dos conceitos, do universal no

mundo existente”, e só uns combatem como uma usurpação o domínio que os

outros saúdam como legítimo, mas ambos não têm clareza quanto à gênese douniversal [ed. bras. A ideologia alemã, p. 84], assim também no caso da con

cepção de Proudhon trata-se apenas de uma variante da economia burguesa

que se caracteriza como burguesa justamente pelo fato de não saber dizer nada

sobre o nexo intrínseco, necessário, entre tempo de trabalho, trabalho produtor

de mercadorias e forma-dinheiro. “Todavia, estava reservado ao senhor Prou

dhon e a seus discípulos pregar seriamente que a degradação do dinheiro e a

exaltação da mercadoria são o núcleo do socialismo, e, desse modo, dissolver

o socialismo num mal-entendido elementar quanto à conexão necessária entremercadoria e dinheiro” (13/68-9 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia 

 política, p. 118 modif.]). Da crítica marxiana a Proudhon é possível inferir não

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S OB R E A E S T R UT UR A L ÓGI CA DO CONC E I T O DE CA P I T A L E M KA R L MA R X  

só o quanto a sua própria concepção de sociedade socialista está imbricada

com os problemas materiais da economia política burguesa; ao mesmo tempo

está implicitamente expresso que somente a compreensão da derivação teórica

da forma-dinheiro a partir da forma-m ercadoria pode ser tida como critério derecepção adequada da teoria marxiana. Nessa questão material não existe um

“direito dos pós-nascidos” . Por essa razão, na medida em que se trata de pro

 blemas es truturais da sociedade burguesa, Marx é su per ior não só aos seus

críticos burgueses, mas também àqueles que se entendem como marxistas e

não reconheceram a conexão entre a teoria do valor do trabalho e a teoria do

dinheiro como problema central do primeiro capítulo da obra tardia. Ao for

mular a teoria do valor, Marx como que coloca à disposição a pedra de toque

que permite decifrar a crítica à sua obra e as diferentes formas de recepçãocomo insuficientes, isto é, como crítica e recepção efetuadas a partir de um

 ponto de vista que ele há muito j á superou: o do sujeito burguês.

Se tomarmos como ponto de partida a mesma estrutura de que nos inteira

mos como problema fundamental da obra inicial, se partirmos da estrutura da

duplicação, e nos lembrarmos das características específicas da teoria burgue

sa, podemos, também nesse caso, a saber, no da duplicação da mercadoria em

mercadoria e dinheiro, antecipar a formulação de certos motivos da crítica. O

que vale para a distorção da forma social da individualidade desatada numaforma natural, e para as consequências dela decorrentes relativamente à elabo

ração conceituai da forma do Estado político e das diversas formas da cons

ciência ideológica, vale também para o caso da duplicação da mercadoria em

mercadoria e dinheiro. Contudo, isso não deve ser concebido no sentido de

uma analogia. Pois o recurso à base significa, ao mesmo tempo, que a raiz da

distorção no pensamento burguês deve ser procurada na distorção da forma-

-mercadoria em forma natural do produto, ou seja, que a decifração dessa 

duplicação é, para Marx, a abertura do único acesso possível ao processamento teórico da sociedade burguesa como um todo. A teoria do valor do trabalho

tem, por conseguinte, uma importância central no conjunto da teoria, não,

 porém, na form a em que se encontra dada nos clássicos. Quando M arx assume

dos clássicos a teoria do valor do trabalho, não se trata de modo algum da re

 produção de um dogm a, como afirm a a teoria econômica subjetivista, mas,

muito antes, da crítica à forma dogmática em que essa teoria é proposta pelos

clássicos. Essa forma dogmática, no entanto, resulta da referida distorção pre

viamente efetuada da forma-mercadoria em forma natural, distorção essa queimpossibilita uma mediação real entre trabalho e valor ou então entre tempo

de trabalho e grandeza de valor.

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A  EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

É verdade que a econom ía política analisou, mesmo que incompletamente, o valor

e a grandeza de valor e revelou o conteúdo que se esconde nessas formas. Mas ela jamais

sequer colocou a seguinte questão: por que esse conteúdo assume aquela forma, e por

que, portanto, o trabalho se representa no valor e a medida do trabalho, por meio de sua

duração temporal, na grandeza de valor do produto do trabalho? (23/94-5 [ed. bras. O 

capital, vol. I, p. 151])

Por ser clássica, ela se distingue justamente por ter descoberto e sustentado

o trabalho como substância do valor e o tempo de trabalho como medida da

grandeza de valor; ela é teoria burguesa porque não faz jus ao momento da na

turalidade espontânea que se expressa nas categorias da economia política e,

 por essa razão, sempre já explicita o conteúdo dessas categorias de um a ma

neira que permanece fundamentalmente exterior a elas. Assim Marx menciona

que, por exemplo, Boisguillebert fornece a prova “de que se pode considerar o

tempo de trabalho como medida de valor das mercadorias, e, todavia, confun

dir o trabalho objetivado em valor de troca dessas mercadorias e medido pelo

tempo com a atividade natural imediata dos indivíduos” (13/41 [ed. bras. Contri

buição à crítica da economia política, p. 84 modif.]). O mesmo vale para Adam

Smith, que confunde a “equação objetiva que o processo social estabelece vio

lentamente entre os trabalhos distintos pela igualdade subjetiva de direitos dos

trabalhos individuais” (13/45 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia po lí

tica, p. 89]). De modo semelhante procede também Benjamín Franklin, ao qual

se deve “a primeira análise consciente e de uma clareza quase banal do valor

de troca pelo tempo de trabalho” (13/41 [ed. bras. Contribuição à crítica da 

economia política, p. 84 modif.]). “Franklin considera de imediato o tempo de

trabalho unilateralmente como medida dos valores. A transformação dos pro

dutos reais em valores de troca subentende-se, e trata-se, pois, unicamente de

encontrar uma medida para a magnitude de valor” (13/42 [ed. bras. Contribuição 

à crítica da economia política, p. 84 modif.]). Marx acentua sem ressalvas que

essa forma insuficiente de mediação de conteúdo e forma bastava à análise de

estruturas mais simples, enfatizando, porém, ao mesmo tempo que, na análise

de estruturas mais complexas, a teoria burguesa necessariamente naufragaria.

[...] entre os economistas que aceitam plenamente a medida da grandeza de valor pelo

tempo de trabalho encontram-se as mais variegadas e contraditórias noções do dinheiro,isto é, da forma pronta do equivalente universal. Isso se manifesta de modo patente, por

exemplo, no tratamento do sistema bancário, em que parece não haver limite para as

definições mais triviais do dinheiro. (23/95 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 155, n. 32])

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S O B R E   / i E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

 Não é por acaso que as dificuldades começam justamente no desenvolvi

mento da forma-dinheiro (cuja análise, como ainda será mostrado, constitui o

 pressuposto para o desenvolvimento das demais categorias, ou seja, da forma- 

-capital, da/orw?.fl-juros etc.); isso não é nenhum acaso, mas corresponde aosfatos de que tomamos conhecimento ao rememorar os escritos iniciais. Quan

do a forma-mercadoria se distorce em forma natural do produto do trabalho,

ou seja, quando o trabalho produtor de mercadorias “é confundido com a ati

vidade natural imediata dos indivíduos”, a forma-dinheiro necessariamente

 permanecerá enigmática para o teórico, pois tem de assumi-la do mundo em

 pírico, que, para ele, precisamente por essa via, adquire essa forma de impene

trabilidade porque, por meio da distorção previamente efetuada, ele se privou

da possibilidade de uma reconstituição da gênese da forma-dinheiro. Sobre

Benjamín Franklin, Marx escreve o seguinte em Para a crítica da economia 

 política:

Mas, por não desenvolver o trabalho contido no valor de troca como trabalho geral-

-abstrato, como trabalho social que procede da alienação universal de trabalhos indivi

duais, ele vê, forçosamente equivocado, o dinheiro como forma de existência imediata

desse trabalho alienado. Por isso, o dinheiro e o trabalho criador do valor de troca não

têm para ele conexão interna, mas o dinheiro é, antes, um instrumento introduzido de

fora na troca por comodidade técnica. (13/42 [ed. bras. Contribuição à crítica da eco

nomia política , p. 86 modif.])

O dinheiro se torna “um expediente habilmente idealizado” (13/36 [ed. bras.

Contribuição à crítica da economia política,  p. 80]), o que levou um “enge

nhoso economista inglês” a afirmar que “seria, pois, um abuso tratar do dinhei

ro na economia política, já que nada de comum tem com a tecno logia” (13/36-

7 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia política,  p. 80] ). Diante disso

Marx insiste em que, no caso do dinheiro, trata-se exclusivamente de uma

categoria econômica. “O dinheiro não nasce por convenção, como tampouco

acontece com o Estado” (42/98 [ed. bras. Grundrisse,  p. 113]), escreve Marx

no  Rascunho,  e, por essa razão, o teórico precisa fazer jus à forma da necessi

dade em sua formulação, ou seja, ele precisa deduzir com rigor que o dinheiro

tem de originar-se da forma do sistema burguês de produção. Por conseguinte,

a comprovação da necessidade material da forma-dinheiro significa, no aspecto metodológico, ao mesmo tempo, que o procedimento de ajuntar exterior

mente, próprio do sujeito burguês, está superado e não se introduz nenhuma

categoria que não tenha se legitimado completamente.

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 A EX P O SIÇ Ã O C A TE GO RIAL

Qualquer um sabe, mesmo que não saiba mais nada além disso, que as mercadorias

 possuem uma forma de valor em comum que contrasta do modo mais evidente com as

variegadas formas naturais que apresentam seus valores de uso: a forma-dinheiro. Cabe,

aqui, realizar o que jamais foi tentado pela economia burguesa, a saber, provar a gênesedessa forma-dinheiro, portanto seguir de perto o desenvolvimento da expressão do valor

contida na relação de valor das mercadorias, desde sua forma mais simples e opaca até

a ofuscante forma-dinheiro. Com isso, desaparece, ao mesmo tempo, o enigma do di

nheiro. (23/62 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 125])

Do contexto da formulação do problema anteriormente esboçada resultam

duas perguntas: como deve ser concebido o conteúdo das categorias da econo

mia política para que, na análise das formas, seja necessariamente compreendido como conteúdo daquelas formas? O que quer dizer, no plano da economia

 política , au toesfacelamen to e au tocontradizer-se do fundamento mundano?

Vamos ater-nos à primeira pergunta. Anteriormente já se fez alusão a que a

teoria clássica desenvolve o conteúdo de maneira exterior à forma, que ela não

desdobra a conexão necessária entre trabalho e valor ou então tempo de traba

lho e grandeza de valor, e que essa brecha na teoria faz parte da essência do

seu caráter burguês. Na exposição do conteúdo das categorias, o sujeito burguês

de qualquer modo já tem seu alcance limitado, visto que não é capaz de adentrar o plano das categorias que constituem o horizonte da experiência. Porém,

o conteúdo, enquanto conteúdo dessas formas, só pode ser desenvolvido se ele

 próprio igualmente for com preendido de um modo que reflete tam bém o cará

ter natural-espontâneo do processo global. Marx critica na teoria burguesa que

ela nunca entendeu corretamente o momento natural-espontâneo no processo

de reprodução baseado na divisão do trabalho. Assim, nos Grundrisse,  ele

indica que Adam Smith e, antes dele, “outros economistas, Petty, Boisguillebert,

os italianos”, reconheceram a conexão entre divisão do trabalho e produção do

valor de troca, mas não perceberam o aspecto especificamente histórico nessa

forma de reprodução*. Isso se evidencia no fato de não diferenciarem com

exatidão as diversas formas da divisão do trabalho umas das outras e, especial

mente na análise da forma burguesa, fazerem valer um ponto de vista de natu

reza totalmente estranha. Em O capital,  Marx escreve assim: “A economia

 política, que só surge como ciência própria no período da manufatura, consi

dera a divisão social do trabalho do ponto de vista exclusivo da divisão manu-

* Essa citação provém, mais exatamente, do Urtext, p. 909. (N. do T.)

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SO B R E    A E STR U TU R A LÓ G I C A D O C O N C E I TO D E C A P I TA L E M K A R L MA R X  

fatureira do trabalho, isto é, como meio de produzir mais mercadorias com a

mesma quantidade de trabalho” (23/386 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 439]). A

especificidade da forma burguesa cai por terra:

A divisão do trabalho de que estamos tratando aqui é a divisão livre e natural-espon-

tânea dentro da totalidade da sociedade, que se manifesta como produção de valores de

troca, não a divisão do trabalho no interior de uma fábrica (não é sua análise e combi

nação num único ramo da produção, mas, muito antes, a divisão social desses próprios

ramos de produção que surge como que sem a colaboração dos indivíduos). A divisão

do trabalho dentro da sociedade corresponderia ao princípio da divisão do trabalho

dentro de uma fábrica no sistema egípcio, mais do que no sistema moderno. A desagre

gação do trabalho social em trabalhos livres, independentes uns dos outros e vinculadosnuma totalidade e unidade apenas por necessidade intrínseca (não como ocorria com

aquela divisão, mediante análise e combinação consciente do analisado) [e a divisão

antiga] são coisas totalmente diferentes. (U/910)

A esse mal-entendido sobre a forma de existência especificamente histórica

do trabalho social global corresponde a não percepção do valor como uma es

 pécie de síntese transcendental, como um princípio que de modo inconsciente

 promove a unidade no plano do trabalho social. Com o auxílio de dois exemploscitados por Marx em O capital, é possível demonstrar que função o valor tem

de assumir numa sociedade que, em sua estrutura de produção, aponta para

uma unidade autoconsciente, mas não a possui.

 No prim eiro exemplo, Marx parodia as robinsonadas da teoria burguesa, ao

demonstrar, com o auxílio da atividade racional de Robinson, o princípio regu

lador que se torna real, no sistema do trabalho social inconscientemente decom

 posto, m ediante a forma do sujeito que age de modo racional finalista, buscando

apenas os seus interesses privados. “Apesar de seu caráter modesto” , Robinson“tem diferentes necessidades a satisfazer e, por isso, tem de realizar trabalhos

úteis de diferentes tipos [...] . Apesar da variedade de suas funções produtivas,

ele tem consciência de que elas são apenas diferentes formas de atividade do

mesmo Robinson e, portanto, apenas diferentes formas de trabalho humano”

(23/90-1 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 151]). Acresce-se a isso a necessidade

que o obriga a administrar o seu tempo e distribuí-lo pelas diferentes atividades

do modo exigido para a consecução de determinados efeitos úteis.

A experiência lhe ensina isso, e eis que nosso Robinson, que entre os destroços do

navio salvou relógio, livro comercial, tinta e pena, põe-se logo, como bom inglês, a

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 A E X P O S I Ç Ã O C A T E G O R I A L

fazer a contabilidade de si mesmo. Seu inventário contém uma relação dos objetos de

uso que ele possui, das diversas operações requeridas para sua produção e, por fim, do

tempo de trabalho que lhe custa, em média, a obtenção de determinadas quantidades

desses diferentes produtos. (23/91 [ed. bras. O capital, vol. I, pp. 151-2])

Marx acrescenta que todas as relações entre Robinson e as coisas são sim

 ples e transparentes, “e, no entanto, nelas já estão contidas todas as determ i

nações essenciais do valor” (23/91 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 152]).

O outro exemplo é significativo por mostrar como a representação de uma

sociedade que chegou à maioridade ingressa na elaboração conceituai da es

trutura capitalista. Isso não deve ser entendido (prevenindo um eventual mal-

-entendido) no sentido de que ele analisa o capitalismo do mesmo ponto devista com que deve ser concebida a organização racional de uma sociedade.

Isso seria uma interpretação tecnicista reduzida, que não só sonega o aspecto

específico da determinidade histórica da forma que está no centro aqui, mas

ainda seria, ela própria, momento de um modo de proceder atingido pela crí

tica marxiana. Como se sabe, Marx em lugar nenhum chegou a analisar como

funciona uma economia planificada; uma atitude reservada, na qual se reflete

todo o caráter de sua teoria, que é tão somente teoria de uma sociedade, na qual

certos princípios passam a vigorar pelas costas e através das mentes das pessoas.

Contudo, onde o conteúdo do valor, ou então a grandeza de valor, é conscien

temente elevado à condição de princípio da economia, a teoria marxiana perdeu

o seu objeto, que, enquanto objeto histórico, só pode ser compreendido e ex

 posto quando aquele conteúdo puder ser apreendido e, por essa razão, descr i

to de modo dissociado de sua forma histórica de manifestação. É só isso que

se tem em mente quando se fala, nesse ponto, que a sociedade futura antec ipa

da ingressa na compenetração teórica da presente sociedade, e nisso se repete

tão somente aquilo de que, na análise dos Manuscritos económico-filosóficos,

tomamos conhecimento como descrição fragmentária de um comportamento

não estranhado do ser humano para com a natureza, a qual necessariamente

anda de mãos dadas com a exposição da forma da distorção absoluta. Nesse

sentido, Marx diz:

Substituamos Robinson por uma associação de homens livres, que trabalham com

meios de produção coletivos e que conscientemente despendem suas forças de trabalho

individuais como uma única força social de trabalho. Todas as determinações do traba

lho de Robinson reaparecem aqui. mas agora social, e não individualmente. (23/92 [ed.

 bras. O capital, vol. I, p. 153 modif.])

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S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

Esse caso só aparenta ser mais complexo que o de Robinson porque o pro

duto é social e precisa ser repartido entre os membros da sociedade. Contudo,

 para desenvolver também aqui as determinações essenciais do valor, ele assu

me (como também fez mais tarde, na Crítica do programa de Gotha*, ao delinear o primeiro estágio da nova sociedade, que ainda traz as marcas de nas

cença da antiga sociedade [ed. bras., p. 29]) que a parcela de cada produtor nos

meios de vida seria determinada pelo seu tempo de trabalho. Nesse caso, o

tempo de trabalho desempenharia um papel duplo:

Sua distribuição socialmente planejada regula a correta proporção das diversas fun

ções de trabalho de acordo com as diferentes necessidades. Por outro lado, o tempo de

trabalho serve simultaneamente de medida da cota individual dos produtores no trabalho

comum e, desse modo, também na parte a ser individualmente consumida do produto

coletivo. (23/93 [ed. bras. O capital,  vol. I, p. 153])

Aqui também estão contidos os aspectos decisivos do conceito de valor, e

ainda assim as relações entre pessoas e coisas são simples e transparentes, “tan

to na produção quanto na distribuição” (23/93 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 153]).

Os dois exemplos têm em comum o aspecto de o trabalho ser descrito como

força de trabalho de um sujeito consciente de si, que o reparte planejadamen-

te — sobre a base numa correlação conscientemente concebida entre necessi

dades, objetos para a satisfação dessas necessidades e tempo necessário de

trabalho para a confecção desses objetos — pelos diversos ramos de produção1.

Em princípio, trata-se do mesmo problema no caso da sociedade burguesa, só

que ele tem de ser resolvido de outra forma. Isso é dito claramente por Marx

na carta a Kugelmann de 11 de julho de 1868:

O infeliz [autor de uma resenha de O capital. H. R.] não vê que, se não houvesse no

meu livro nenhum capítulo sobre o valor, a análise feita por mim das relações reais

conteria a prova e a demonstração da relação real do valor. A conversa fiada sobre a

necessidade de provar o conceito de valor deve-se meramente à ignorância mais com

 pleta tanto sobre o assunto de que se trata como sobre o método da ciência. Toda criança

sabe que parar o trabalho por não quero dizer um ano, mas algumas semanas significa

ria a morte de qualquer nação. Do mesmo modo, ela sabe que as massas de produtos que

correspondem às diferentes necessidades requerem massas diferentes e quantitati-

* Ed. bras.: Crítica do programa de Gotha. Trad. Rubens Enderle. São Paulo, Boitempo, 2012.(N. do T.)

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 A E X P O SI Ç Ã O C A TE GO RIA L

vãmente bem determinadas de trabalho social total. É evidente por si mesmo que essa

necessidade da repartição do trabalho social em proporções bem determinadas de modo

algum é abolida pela fo rma determinada da produção social, mas que pode modificar

tão somente o seu modo de manifestação. Não há maneira de abolir leis da natureza. Oque pode se modificar em condições historicamente diferentes é apenas a fo rma   com

que essas leis se impõem. E a forma com que essa repartição proporcional do trabalho

social se impõe num a condição social na qual o contexto trabalho social se afirma como

troca privada  de produtos individuais do trabalho é exatamente o valor de troca desses

 produtos. (32/552)

Com isso chegamos à segunda pergunta há pouco formulada: o que signi

ficam autoesfacelamento e autocontradizer-se do fundamento mundano no plano da economia política? A ciência burguesa igualmente constata que, na

forma burguesa do trabalho social, trata-se de uma totalidade baseada na divi

são do trabalho; contudo, o que não  se constata conscientemente é que essa

unidade social, essa totalidade social só está dada em si, só existe materialmen

te na medida em que os produtores individuais “são membros de uma divisão 

do trabalho de cunho social, natural-espontáneo, e, por conseguinte, por meio

dos seus produtos satisfazem os diferentes tipos de necessidades, cujo conjunto 

compõe o sistema igualmente natural-espontáneo das necessidades sociais” (II.5/634-5). Em si os múltiplos objetos são produtos do trabalho social global

que se decompõe numa totalidade de ramos específicos de trabalho. Porém — e

isso é essencial — , eles não aparecem como tais. De modo imediato os produ

tos são meramente coisas concretas de uso, produtos do trabalho individual,

que não aparentam ser parte de uma unidade; que uma parte do trabalho social

global foi despendida para sua confecção. Mas caso se pretenda repartir o

tempo de trabalho que está à disposição da sociedade global pelos diferentes

ramos de produção, tendo como parâmetro determinadas estruturas de necessidade, isso só será possível se os diferentes produtos se manifestarem como

expressões quantitativamente diferentes da mesma unidade. Essa é a ideia-

-chave da teoria marxiana do valor e do dinheiro.

O fato de os produtos concretamente sensíveis necessariamente se mani

festarem como momentos do trabalho social global não significa, para Marx, que

a forma pela qual os produtores têm consciência de sua própria parcela no

trabalho social global também os torne simultaneamente conscientes de que o

seu trabalho constitui uma parte desse trabalho global. Isso contradiria toda a

concepção fundamental do materialismo histórico. Quando aqui se apontou

reiteradamente para o fato de que a formulação da teoria do valor deve ser en-

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S OB R E A ES T R UT UR A L ÓGI CA DO CONCE I T O DE CA P I T A L E M KA R L MA R X  

tendida como ponto de partida da reconstituição teórica do movimento que —

enquanto decifração materialista daquilo que a filosofia burguesa da história

só é capaz de explicitar como “astucia da razão” sob claves idealistas — se

efetua pelas costas das pessoas e simultaneamente através de suas mentes; equando anteriormente se enfatizou que, segundo Marx, a falha fundamental da

teoria burguesa do valor do trabalho consistiu justam ente na mediação insufi

ciente entre tempo de trabalho e grandeza de valor, então é obvio que a forma

 possui caráter universal e objetivo, sendo necessariamente irrelevantes as con

cepções subjetivas com que as pessoas acompanham essas operações, igual

mente efetuadas conscientemente, a que se deve essa forma:

Sua “mind”  [mente], sua consciência [a dos produtores, H. R.] pode não saber absolutamente — para ele pode não existir — o que infact   [de fato] determina o valor de

suas mercadorias ou seus produtos como valores. Estão engrenados em relações que

determinam a sua mind  [mente] sem precisarem eles saber disso. Cada um pode usar o

dinheiro como dinheiro sem saber o que é o dinheiro. As categorias econômicas se re

fletem na consciência de maneira bastante distorcida. (26.3/163 [ed. bras. Teorias da 

mais-valia, vol. III, p. 1.217 modif.])

O mesmo estado de coisas pode ser exposto a partir de outro lado. Podeocorrer que a formulação do problema delineada há pouco seja tida como de

masiadamente complexa diante do fato concreto e prático de que a interco-

nexão social materialmente existente dos trabalhos privados realizados inde

 pendentemente uns dos outros é m ediada pela troca dos produtos; a isso Marx

contrapõe que essa objeção se baseia na mesma inconsciência categorial com

que também outras categorias são introduzidas nessa ciência sem legitimação

interior. A troca de fato ocorre, mas uma análise mais precisa do processo de

troca mostra que produtos concretos, valores de uso — entendidos em termoscategoriais — nem sequer podem  ser trocados. M arx elogia Aristóteles por ter

visto esse problema. Marx cita: “A troca [...] não pode se dar sem a igualdade,

mas a igualdade não pode se dar sem a comensurabilidade” . Contudo, Aristó

teles vê simultaneamente que essa igualdade nada tem a ver com a verdadeira

natureza dessas coisas diferentes: “[...] é na verdade impossível que coisas tão

distintas sejam comensuráveis” e essa equiparação é, para ele, apenas um “ar

tifício para a necessidade prática”. Marx atribui à estrutura da sociedade o fato

de Aristóteles não ter podido identificar os fatos reais: “O gênio de Aristóteles brilha precisamente em sua desco berta de um a re lação de igualdade na ex

 pressão de valor das mercadorias. Foi apenas a limitação histórica da sociedade

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A E X P O SI Ç Ã O C A TE G O R I A L

em que ele vivia que o impediu de descobrir em que ‘na verdade’ consiste essa

relação de igualdade” (23/73-4 [ed. bras. O capital,  vol. I, p. 136]). É digno

de nota que o jovem Marx, por ocasião da análise da base, à qual foi levado

 pela discussão com o direito estatal hegeliano e a cr ítica feuerbachiana da religião, descreveu essa estrutura de modo semelhante a Aristóteles, igualmente

sem conseguir dizer exatamente o que é o valor. Assim que produtos são tro

cados aparece

[...] a propriedade privada como representante de uma propriedade privada de outra

natureza, como o idêntico de outro produto da natureza e os dois lados se relacionam

um com o outro de tal maneira que cada um deles representa a existencia do seu outro 

e ambos se relacionam reciprocamente um com o outro como substitutos de si mesmose do seu outro. A existência da propriedade privada como tal converteu-se, por conse

guinte, em reposição, em equivalente. Em vez de ser unidade imediata consigo mesma,

ela só é mais referênc ia a outra coisa. Sendo um equivalente, a sua existência não é mais

aquela que lhe é peculiar. Consequentemente ela se converteu em valor   e, de modo

imediato, em valor de troca. A sua existência enquanto valor  é uma existência distinta

da sua existência imediata, exterior à sua essência específica, uma determinação exte

riorizada de si mesma', uma existência apenas relativa da essência específica. (40/453

[excertos de James Mill])

Portanto, já bem cedo Marx vê que produtos concretos não podem ser sim

 plesmente trocados, mas que na troca necessariamente se imiscui uma distor

ção. Em princípio, trocam-se sempre só iguais, sendo que os objetos concretos

são reciprocamente rebaixados a “invólucro sensível, forma oculta” do outro

objeto, tornando-se ambos, portanto, representantes de um terceiro diferente

deles. Essencial nesse contexto é que Marx, ainda antes de ter se apropriado

completamente da teoria do valor do trabalho, discerniu esse ato de equiparação dos produtos como um procedimento que é efetuado sem que os envolvidos

tenham a correspondente consciência disso. Ao trocarem os produtos, as pes

soas fazem ao mesmo tempo outra coisa diferente daquela que efetuam com

consciência ou então o que eles fazem realmente se sedimenta de outra forma

em sua consciência.

Sintetizemos mais uma vez sucintamente a problemática fundamental da

teoria marxiana do valor. Os indivíduos estão integrados num sistema de de

 pendência universal, num “sistem a de necessidades”, por dependerem, em sua produção concretamente sensível, da produção de todos os demais. O conteúdo

dos seus trabalhos revela o caráter social da sua atividade, que desde sempre

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S O B R E   A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

 já é produção social, mas não — e este é o ponto decisivo — conscientemente

comunitária. O fato de os indivíduos produzirem de modo social, mas ao mes

mo tempo como indivíduos independentes uns dos outros só é possível quando

o caráter comunitário da produção igualmente se manifesta, mesmo que issoocorra numa configuração que corresponde, em sua forma bem determinada,

à forma estranhada da produção social. Encontramo-nos aqui, por assim dizer,

no centro nervoso da estrutura que, como vimos, é objeto de toda a obra inicial

de Marx: o sistema comunitário humano aparece sob a forma do estranhamento

 porque, na forma distorcida da apropriação da natureza, a própria vida huma

na genérica se converte em meio da vida individual. Essa conexão entre a obra

inicial e a obra tardia fica evidente em especial no  Rascunho. Os produtores

[...] só existem uns para os outros objetivamente, o que na relação monetária, na qual o

seu próprio sistema comunitário aparece a todos como um a coisa exterior e, por isso,

contingente, apenas continua a ser desenvolvido. A conexão social que surge do embate

dos indivíduos independentes aparece simultaneamente como necessidade objetiva e,

ao mesmo tempo, como um vínculo exterior diante deles; esse fato representa precisa

mente a sua independência, para a qual a existência social, sendo necessidade, constitui

apenas meio, aparecendo, portanto, aos próprios indivíduos como algo exterior e, no

dinheiro, até mesmo como uma coisa tangível. Eles produzem na e para a sociedade,

 produzem como [indivíduos] sociais, mas ao mesmo tempo isso aparece como simples

meio de objetivar a sua individualidade. Visto que eles não estão subsumidos num sis

tema comunitário natural-espontâneo, nem em contrapartida subsumem o sistema comu

nitário em si mesmos como [indivíduos] conscientemente comunitários, este deve existir

diante deles, enquanto sujeitos independentes, como uma coisa igualmente independen

te, exterior, contingente. Esta é justamente a condição para que eles, enquanto pessoas

 privadas independentes, encontrem-se ao m esmo tempo numa conexão social. (U/909)

 A. As categor ias da c irculação s imples

Mesmo tendo plena consciência da tarefa a ser cumprida, a reconstituição teó

rica da gênese da forma-dinheiro a partir da estrutura do trabalho privado — a

execução do programa da quarta tese contra Feuerbach no plano da economia

 política — não foi um problema fácil de resolver; disso dão testem unho as

diversas versões do início da formulação global. Não obstante, é possível re

 produzir com poucas frases a estrutura básica comum a todas as versões. Antes

de passarmos a isso, contudo, é preciso apontar sucintamente para a conexão

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 A E X P O S I Ç Ã O C A T E G O R I Á L

entre o primeiro capítulo de Para a crítica  ou então entre os dois primeiros

capítulos de O capital e os capítulos seguintes. A primeira parte do primeiro

capítulo de Para a crítica caracteriza-se pelo fato de Marx analisar a merca-

doria primeiro do ponto de vista do valor de uso e, em seguida, do ponto devista do valor ou então de sua forma de manifestação. Na segunda parte desse

capítulo, ele passa a apresentar a mercadoria como unidade de valor de uso e

valor de troca. Essa estrutura corresponde em O capital  ao primeiro e ao se

gundo capítulo respectivamente. No final do primeiro capítulo da primeira

edição de O capital consta isto:

A mercadoria é unidade im ediata de valor de uso e valor de t roca,  portanto de dois

opostos. Por conseguinte, ela é uma contradição imediata. Essa contradição necessariamente ficará explícita no momento em que ela não for considerada, como até agora,

analiticamente ora do ponto de vista do valor de uso, ora do ponto de vista do valor de

troca, mas quando, na condição de totalidade, realmente for posta em relação com outras

mercadorias. A relação real das mercadorias entre si é o seu p rocesso de tr oca.  (II.5/51)

Essa subdivisão de modo algum é casual. Quando Marx lança contra a

economia burguesa a crítica de que esta deixou de derivar a forma-dinheiro da

estrutura do trabalho privado, ele quer d izer concretamente que ela se encontraimpotente diante da form a-preço, da fo rm a do meio de circulação, do dinhei

ro na. form a  do meio de pagamento etc. e é forçada a assum i-la exteriormente.

De acordo com isso, derivação da forma-dinheiro só pode significar que essas

determinidades formais específicas ou o dinheiro em suas diferentes funções

deverão ser explicitadas como formas mediadoras do metabolismo social. A

 pr im eira dessas formas é a form a-preço,  ou seja, o fato de que um produto

de modo geral tem um preço. A expressão: “o quarter  de trigo custa £2” é a

 form a-preço de um produto, mais precisamente na figura desenvolvida da denominação monetária. É nessa denominação monetária  que as mercadorias

aparecem pela primeira vez dentro da esfera de circulação como expressão

material da mesma substância social, exibindo uma diferença apenas quanti

tativa perante outras mercadorias; na denominação monetária, as mercadorias

aparecem umas para as outras como valores de troca. Somente depois que as

mercadorias assumiram a forma-preço pode efetuar-se o metabolismo social.

A mediação desse metabolismo é feita pelo dinheiro na função bem deter

minada de meio de circulação, quando a mercadoria é trocada por uma forma

de valor exterior a ela própria com a qual é posta em relação por sua forma- 

-preço — entretanto, apenas é trocada para voltar a despir-se de imediato des

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SO B R E A E STR U TU R A LÓ G I C A D O C O N C E I TO D E C A P I TA L E M K A R L MA R X  

sa forma. A substância do dinheiro nessa função consiste em que ele continua

mente aparece como algo que está desaparecendo. Ao desenvolvimento dessa

 primeira e dessa segunda determinações do dinheiro segue a terceira determi

nação como unidade das duas primeiras determinações: dinheiro na função denão meio de circulação, moeda suspensa  e entesouramento,  dinheiro como

meio de pagamento e, por fim, na sua função de dinheiro mundial. Do desdobra

mento da terceira determinação resulta a passagem para o capital. A estrutura

do primeiro capítulo de Para a crítica ou então dos primeiros dois de O capi

tal corresponde à inter-relação entre as duas primeiras funções do dinheiro e

suas posições dentro do metabolismo social. O exame analítico da mercadoria

corresponde ao desenvolvimento da forma-preço, que, em seguida, no capítu

lo do dinheiro, é descrita como “uma espécie de processo teórico preparatórioda circulação real”, como desenvolvimento da forma em que as mercadorias,

antes de poderem efetivamente circular, “aparecem idealmente umas às outras

como valores de troca, como quantidades determinadas de tempo de trabalho 

geral objetivado” (13/49 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia política, 

 p. 94 modif.]). A exposição da mercadoria como un idade de valor de uso e

valor de troca corresponde à segunda função do dinheiro, à efetiva duplicação

da mercadoria em mercadoria e dinheiro em contraposição à primeira função

do dinheiro, à duplicação apenas ideal. A nossa tarefa é, num primeiro momento, reconstituir essas duas linhas de pensamento, a exposição da duplicação

ideal e da duplicação efetiva da mercadoria.

1. Duplicação ideal

Se a teoria marxiana do valor for discutida no horizonte dos problemas

delineados na última seção, tomam-se compreensíveis muitas das formulações

aparentemente paradoxais em O capital.  Marx critica Benjamín Franklin por

não fazer jus à natureza do procedimento de abstração que é realmente efetua

do durante o processo de troca.

Franklin não tem consciência de que, ao estimar o valor de todas as coisas “em

trabalho” , ele abstrai da natureza d iferente dos trabalhos trocados — e os reduz, assim,

a trabalho humano igual. No entanto, o que ele não sabe, ele diz. Ele fala, primeiram en

te, de “um trabalho”, então, “do outro trabalho” e, por fim, do “trabalho” sem ulterior

caracterização como substância do valor de todas as coisas. (23/65 [ed. bras. O capital, 

vol. I, p. 128, n. 17a modif.])

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A E X P O SI Ç Ã O C A TE G O R I A L

Com indicações veladas a motivos da fenomenología hegeliana Marx quer

mostrar também nesse ponto como se repete, na autorreflexão insuficiente da

teoria burguesa, o momento natural-espontâneo desse processo que se torna

efetivo na realidade burguesa.

Eles relacionam seus diferentes trabalhos entre si como trabalho humano, ao rela

cionarem os seus produ tos entre si como valores. A relação pessoal é encoberta pela

forma material. Pois não está escrito na testa do valor o que ele é*. Para relacionarem

os seus produtos entre si como mercadorias, as pessoas são obrigadas a equiparar seus

diversos trabalhos ao trabalho abstratamente humano. Elas não sabem disso, mas o fazem, 

ao reduzirem a coisa material à abstração “valor". Trata-se de uma operação natural-es-

 pontânea e, por isso, inconscientemente instintiva do seu cérebro, que brota necessariamente do modo específico de sua produção material e das relações nas quais essa pro

dução os coloca. (II.5/46)

Em distinção a Benjamín Franklin, Marx quer mostrar que, em seus próprios

empreendimentos científicos, trata-se de uma reconstituição do processo real

de redução e que as suas determinações devem coincidir com o que, no pro

cesso de troca, aparece na forma do valor de troca:

Essa redução se apresenta como abstração; mas é uma abstração que ocorre todos

os dias no processo de produção social. A dissolução de todas as mercadorias em tempo

de trabalho não supõe uma abstração maior, como tampouco é menos real que a disso

lução de todos os corpos orgânicos em ar. (13/18 [ed. bras. Contribuição à crítica da 

economia política, pp. 55-6])

Por conseguinte, ao tentar apreender aquilo que aparece, e ademais dissociado

da forma em que aparece, Marx precisa refugiar-se em formulações peculiares.Marx soluciona o problema de uma apreensão por assim dizer positiva dessa

coisa-em-si com o auxílio de uma linguagem metafórica estranhada. Ainda que

os conceitos do mundo procedam de uma objetalidade sensível e sólida, seria

um erro querer representar algo com base nesses fatos. Eles podem ser pura e

simplesmente pensados, mas não mais representados. Na condição de merca

dorias, todos os produtos têm a mesma

* Cf. Apocalipse de João 14,1 e 9. (N. do T.)

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SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

[...] objetividade fantasmagórica, uma simples geleia [Gallerte]  de trabalho humano

indiferenciado, ¡.e., de dispêndio de força de trabalho humana, sem consideração pela

forma de seu dispêndio. Essas coisas representam apenas o fato de que em sua produção

foi despendida força de trabalho humana, foi acumulado trabalho humano. Como cristaisdessa substância social que lhes é comum, elas são valores — valores de mercadorias.

(23/52 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 116])

“Como materialização de trabalho social, todas as mercadorias são crista

lizações da mesma unidade” (13/16 [ed. bras. Contribuição à crítica da eco

nomia política, p. 53]). As duas determinações essenciais estão contidas aí.

Trabalho humano sem consideração da forma do seu dispêndio, indiferente à

matéria específica do valor de uso, só pode ser “trabalho homogêneo, não diferenciado”, “isto é, trabalho no qual desaparece a individualidade dos traba

lhadores. O trabalho que cria valor de troca é, pois, trabalho geral-abstrato” 

(13/17 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia política,  p. 54]). E no

tocante ao tempo de trabalho como medida da grandeza de valor:

Posto que são valores de troca de distinta magnitude, representam um mais ou um

menos, quantidades maiores ou menores daquele trabalho simples, uniforme, geral-abs

trato que constitui a substância do valor de troca. A questão é saber como se podemmedir essas quantidades. Ou melhor, trata-se de saber qual o modo de existência quan

titativa desse mesmo trabalho, visto que as diferenças de magnitude das mercadorias

como valores de troca não são mais que as diferenças de magnitude do trabalho nelas

objetivado. Da mesma maneira que o tempo é a existência quantitativa do movimento,

o tempo de trabalho é a existência quantitativa do trabalho. Conhecida sua qualidade, a

única diferença de que o trabalho se torna suscetível é a diferença de sua própria duração.

Como tempo de trabalho, tem seu padrão nas medidas naturais de tempo: hora, dia,

semana etc. O tempo de trabalho é a existência vital do trabalho, indiferente a sua forma,seu conteúdo, sua individualidade; é sua existência viva quantitativa, ao mesmo tempo

em que é sua medida imanente. O tempo de trabalho objetivado nos valores de uso das

mercadorias é não somente a substância que faz delas valores de troca e, por conseguin

te, mercadorias, mas é também a magnitude do seu valor determinado. As quantidades

correlativas dos diferentes valores de uso, nos quais se objetiva idêntico tempo de tra

 balho, são equivalentes, ou, dito de outro modo: todos os valores de uso são equivalen

tes nas proporções em que contêm o mesmo tempo de trabalho já trabalhado, objetivado.

Consideradas como valores de troca, todas as mercadorias não são mais que medidas 

determinadas de tempo de trabalho cristalizado.  (13/17-8 [ed. bras. Contribuição à 

crítica da economia política,  pp. 54-5 modif.])

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 A E X P O S IÇ Ã O C ATEGO RIAL

Interessante nesse contexto é a reação de Marx à crítica da forma de intro

dução do conceito de valor. Na carta a Kugelmann anteriormente citada, ele

elogia o resenhador de O capital por ter apontado para o fato de que a partir

dessas determinações centrais é possível desenvolver o sistema inteiro de Marx.Portanto, ao aceitar esse conceito de valor, é preciso reconhecer também todas

as demais exposições. Marx escreve: “No que se refere ao Zentralblatt   [Jornal

“Folha Central”], o homem faz a maior concessão possível ao admitir que, se

concebermos alguma coisa por valor, será preciso aceitar as minhas conclusões”

(32/552). Ao mesmo tempo, o modo como ele descarta as objeções quanto à

forma da introdução do conceito de valor faz com que não pareça injustificada

a pergunta se Marx não teria se sentido como que “flagrado”. Em nossa tenta

tiva de reconstituição da exposição categorial, não há como decidir se as ob

 jeções quanto à forma de dar início a ela são justif icadas, se reside aí um mo

mento de violência ou se a formulação do sistema se tornou autônoma diante

dos problemas materiais. Não há como deixar de perceber o caráter ilustrativo

e a forma da asseveração no primeiro capítulo. No entanto, nesse contexto,

seria preciso examinar se um método que se caracteriza pela relação essencial

entre exposição e assunto exposto pode ser “inaugurado” de alguma outra

maneira; se esse momento do pôr abstrato não corresponde à decisão hegeliana

de desde sempre já filosofar sob premissas da filosofia da identidade. O con

ceito marxiano de valor, em todo caso, constitui o pressuposto de uma forma

de exposição das categorias da economia política que pela primeira vez tenta

superar um procedimento que assume exteriormente [suas categorias] e —

analogamente ao projeto de Hegel, que este formula em controvérsia com a

filosofia transcendental — informar sobre a determinidade das categorias umas

em relação às outras e sobre sua inter-relação.

Depois de introduzir esse conceito de valor, Marx passa para a forma de

manifestação do valor. O programa implicado nesse passo é formulado por

Marx na primeira edição de O capital: “Porém, é de importância decisiva [...]

descobrir a conexão intrínseca entre fo rm a   do valor, substância do valor e

grandeza do valor, isto é, expresso em termos ideais, demonstrar que a form a  

do valor se origina do conceito de valor” (II.5/43). Com outras palavras: como

coisas de uso concretas os produtos sempre são só objetos relacionados com

necessidades humanas, não importa se com as do produtor ou se com as de

outras pessoas. Contudo, nessa forma, eles jamais são tidos como expressões

da mesma unidade que constituem enquanto valores. Por conseguinte, para que

apareçam como valores, eles precisam assumir uma forma, na qual “são tidos

como expressões [...] de sua substância social, expressões apenas quantitati-

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SO B R E A E STR U TU R A LÓ G I C A D O C O N C E I TO D E C A P I TA L E M K A R L MA R X  

vãmente diferentes entre si, mas qualitativamente iguais e, por isso, substituí

veis e permutáveis entre si” (II.5/38). Por isso, acompanhemos como Marx

chega a essa forma; que resposta ele dá à pergunta: como os valores podem

aparecer enquanto valores? Nesse contexto, torna-se re levante uma fo rm ulação mais precisa de um

motivo central dos escritos iniciais de Marx. Quando ele diz ali que, de ambos

os lados, a propriedade privada aparece como representante de uma proprie

dade privada de outra natureza, como o idêntico  de outro produto da natureza,

e que a existência da propriedade privada se converteu em reposição, em equi

valente, ele antecipa a forma em que isso acontece ainda antes de ter determi

nado o trabalho humano abstrato como substância do valor, ainda antes de ter

reconhecido que os produtos têm de aparecer como expressões permutáveis da

mesma unidade. O produto sensível converte-se em forma de manifestação do

outro objeto, na medida em que este igualmente é apenas “substituto” de si

mesmo e do outro objeto, ou seja, de um terceiro objeto comum — estranho à

sua natureza imediatamente sensível. Por isso, se os participantes da troca

acreditam que a sua operação constitui a troca de coisas naturais em determi

nadas proporções, trata-se de pura aparência. Quando os produtores “trocam”

uns pelos outros seus produtos, confeccionados para outros por meio de tra

 balho privado, eles não podem fazer isso sem relacionar   os seus produtos

entre si como valores,  como expressões equivalentes da mesma substância.

Quando eles “trocam” os seus valores de uso,

[...] reside nisso [...] que seus diferentes traba lhos valem apenas como trabalho humano

de natureza igual num invólucro reificado. [...] Para relacionarem os seus produtos entre

si como mercadorias, as pessoas são obrigadas a equiparar seus diversos trabalhos ao

trabalho abstratamente humano. Elas não sabem disso, mas o fazem, ao reduzirem a

coisa material à abstração “valor”.  (II.5/46)

Para Marx, esse ato de redução ou ato de equiparação objetiva não significa

senão que, no confronto de duas mercadorias, o valor de uso de uma das mer

cadorias é tido como “igual em essência” ao da outra mercadoria. Atenhamo-

-nos ao exemplo que Marx elucida em O capital.

A base da expressão “20 braças de linho = casaco” é, de fato: linho = casaco, o que

em palavras significa apenas isto: o tipo de mercadoria “casaco” possui a mesma na

tureza, a mesma substância que o tipo de mercadoria “linho ”, diferente dele. Geral

mente não se percebe isso porque a atenção é atraída pela relação quantitativa,  isto é,

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 A E X P O S IÇ Ã O CA TE OOR IA L

 pela proporção determinada com que um dos tipos de mercadoria é equiparado ao outro.

O que se esquece é que as grandezas das coisas diferentes só se tornam quantitativa

mente comparáveis depois de sua redução à mesma unidade. Somente como expressões 

da mesma unidade elas são grandezas de denominação igual e, por isso, comensuráveis. (II.5/629)

 No in terior desse ato de equiparação objetiva, que é em preendido sem a

consciência adequada dos agentes da troca, um dos valores de uso se converte,

em consequência disso, em materialidade imediata do trabalho abstratamente

humano, tornando-se valor em forma natural, forma de manifestação do valor

da outra mercadoria. Em O capital, Marx expressa isso assim:

Enquanto valor, o linho consiste somente em trabalho, formando uma geleia de

trabalho cristalizada transparente. Na realidade, porém, esse cristal é bastante opaco.

 Na medida em que se descobre nele o trabalho, e não é todo corpo da mercadoria que

mostra a marca do trabalho, não se trata de trabalho humano indiferenciado, mas de

tecelagem, fiação etc., que, por sua vez, tampouco constituem uma só substância, mas,

muito antes, estão amalgamadas com substâncias naturais. Para fixar “linho” como

expressão meramente reificada do trabalho humano é preciso abstrair de tudo que efe

tivamente faz dele uma coisa. A objetalidade do trabalho humano que, por sua vez,também é abstrata, sem outra qualidade ou conteúdo, necessariamente é objetalidade

abstrata, uma coisa da ideia. Assim o tecido de linho se torna um a quimera. Mas mer

cadorias são coisas.  Elas precisam ser materialmente o que são ou mostrar o que são

em suas próprias relações materiais. Na produção do linho, fo i despendida uma certa

quantidade de trabalho humano. Seu valor é o reflexo meramente objetai do trabalho

despendido dessa maneira, mas ele não se reflete no seu corpo. Ele se revela, adquire

expressão sensível, mediante a sua relação de valor  com o casaco. Ao equipará-lo a si

mesmo como valor, ao mesmo tempo que se diferencia dele como objeto de uso, o ca

saco se converte na forma de manifestação do valor  do linho em contraposição ao

corpo do linho, na sua forma de valor  em distinção à sua forma natural. (II.5/30)

Desse modo, o problema já está resolvido em princípio. A mercadoria ad

quire mediante o ato de equiparação uma forma de valor distinta de sua forma

natural; uma outra mercadoria é tida, em sua forma natural imediata, como

forma de manifestação de “geleia de trabalho humano indiferenciado” . O pro

 blema foi reduzido agora à mera pergunta se a form a de valor corresponde à

universalidade do conceito de valor, isto é, se é uma forma em que todas as mer

cadorias se apresentam umas às outras como expressões reificadas da mesma

substância. Aqui isso ainda não é o caso. No confronto de duas mercadorias — 

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S OB R E A E S T R UT UR A L ÓGI CA DO CONCE I T O DE CA P I T A L E M KA R L MA R X  

na expressão simples do valor, como diz Marx —, a forma de valor ainda é

limitada; a mercadoria que se encontra na forma equivalente é forma equiva

lente individual de outra mercadoria que pode ter ao seu lado tantas outras

formas equivalentes quantas houver de mercadorias específicas. Nesse caso,qualquer outra mercadoria se tornaria “espelho do valor do linho” — atendo-

-nos ao exemplo marxiano — e esse mesmo valor apareceria então verdadei

ramente como “geleia de trabalho humano indiferenciado”.

Porque o trabalho que forma o valor  do linho foi agora exposto expressamente como

trabalho que equivale a qualquer outro trabalho humano, não importando qual a forma

natural que este possui. Mediante a sua forma de valor  [total ou desdobrada, H. R.], o

linho já se encontra, por conseguinte, na relação social não apenas com um só outro tipode mercadoria, mas com o mundo das mercadorias.  (II.5/641)

Porém, como as diferentes formas naturais de cada uma dessas mercadorias

são apenas formas equivalentes específicas ao lado de outras, os muitos traba

lhos sensíveis concretos são tidos como outras tantas formas de manifestação

específicas do trabalho humano. Só existem, portanto, formas equivalentes

específicas, cada uma das quais exclui a outra, cada uma sendo form a equiva

lente limitada. Assim sendo, o valor de uma m ercadoria possui forma total demanifestação na totalidade de todas as formas de manifestação específica, mas

essa forma de manifestação não é uma forma unitária. Contudo, ao expressar

o seu valor na totalidade de todas as demais mercadorias, a própria mercadoria

se converte em forma de manifestação do valor de todas essas mercadorias.

Desse modo, o problema está simultaneamente resolvido. Visto que todas as

mercadorias expressam o seu valor de modo simples (num só corpo da merca

doria) e de modo unitário (no mesmo outro corpo da mercadoria), elas também

se apresentam umas para as outras como expressões específicas da mesmasubstância. Mediante a sua igualdade com a forma natural de determinada

mercadoria, cada mercadoria individual expressa o seu valor não só numa

forma unitária, diferente do seu valor de uso, mas simultaneamente também

como aquilo que ela possui em comum com todas as mercadorias. Somente

agora o valor adquire uma forma diferente de sua forma natural, cuja univer

salidade corresponde à do conceito de valor. As mercadorias são todas quali

tativamente equiparadas, todas são expressas como materialidade do mesmo

trabalho e também podem agora ser comparadas quantitativamente. Portanto, para que o tempo de trabalho em geral se torne efetivo como lei reguladora da

 produção, o próprio trabalho abstratamente humano tem de existir em forma

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A E X P O SI Ç Ã O C A TE G O R I A L

natural ao lado e independentemente de todas as mercadorias individuais; uma

forma natural específica, como, por exemplo, o ouro, tem de assumir a função

de “encarnação visível” de todo trabalho humano. Uma mercadoria específica

se converte no “conceito do valor de todas as coisas”, como diz Marx nos escritos iniciais; o próprio universal dos produtos específicos do trabalho ainda

existe numa forma específica. Na primeira edição de O capital,  lê-se:

É como se, ao lado e independentemente de leões, tigres, lebres e todos os demais

animais reais, que agrupados formam os diferentes gêneros, espécies, subespécies, fa

mílias etc. do reino animal, ainda existisse também o animal, a encarnação individual

do reino animal inteiro. Esse indivíduo, que abrange em si mesmo todas as espécies

realmente existentes da mesma coisa, é um universal, como animal, deus etc. (II.5/37)

2. Duplicação real

Até aqui a mercadoria adquiriu, “primeiro na cabeça, uma dupla existência.

Essa duplicação ideal acontece (e tem de acontecer) de modo que a mercadoria

aparece duplicada na troca efetiva: de um lado, como produto natural, de outro,

como valor de troca. Em outras palavras, seu valor de troca adquire uma existên

cia material dela separada” (42/79-80 [ed. bras. Grundrisse, p. 94]). Ao passoque, no exame analítico da mercadoria, a contradição que levou à exposição

autônoma do trabalho abstratamente humano era entre a universalidade do

valor e a forma insuficiente da sua manifestação, o que nos ocupará agora será

a contradição entre valor de uso e valor de troca. Como vimos anteriormente,

Marx conclui assim o primeiro capítulo da primeira edição de O capital·.

A mercadoria é unidade imediata de valor de uso e valor de troca,  portanto, de dois

opostos. Por conseguinte, ela é uma contradição imediata. Essa contradição necessa

riamente ficará explícita no momento em que ela não for considerada, como até agora,

analiticamente ora do ponto de vista do valor de uso, ora do ponto de vista do valor de

troca, mas quando, na condição de totalidade, realmente for posta em relação com

outras mercadorias. A relação real das mercadorias entre si é o seu processo de troca.

Sabemos que os valores de uso só são mercadorias porque são os produtos

de trabalhos privados independentes uns dos outros, “trabalhos privados que,

contudo, dependem substancialmente uns dos outros enquanto membros específicos, ainda que autonomizados, do sistema natural-espontâneo da divisão 

do trabalho. Assim sendo, eles estão socialmente ligados justamente pela sua

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S O B R E   /1 E S T R U T U RA L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

dissimilaridade, por sua utilidade específica.  Justamente por isso eles produ

zem valores de uso qualitativamente diferen tes” (II.5/41). Assim a mercadoria

é  valor de uso. Porém, simultaneamente ela, do mesmo modo, não é  valor de

uso. Se ela fosse só   valor de uso, ela não seria mercadoria. Para o produtorimediato que a produz privadamente, ela é essencialmente não valor de uso.

Por isso, ela ainda tem de tornar-se valor de uso, e isso em dois sentidos: ela

se torna valor de uso só quando é aceita por outros produtores em sua pecu

liaridade. Nesse caso, ela precisa se tornar valor de uso também para o seu

 próprio produtor, pois os seus meios de vida, os meios específicos, os valores

de uso relacionados com as suas próprias necessidades, existem nos valores de

uso das outras mercadorias.

Os valores de uso das mercadorias chegam a ser, portanto, tais porque mudam uni

versalmente de posição, passando das mãos em que constituem meio de troca àquelas

em que são objeto de uso. Graças unicamente a essa alienação universal das mercadorias,

o trabalho que contêm converte-se em trabalho útil. (13/29 [ed. bras. Contribuição à 

crítica da economia política, p. 69 modif.])

Quando se examina o valor de uso no processo de troca, evidencia-se que

nesse contexto só se fala de uma única determinidade formal: do produto em

sua existência formal como não valor de uso. De acordo com isso, o processo

de troca só pode ser interpretado como abolição dessa existência formal. Para

essa distinção, que de modo algum é isenta de problemas2, é preciso chamar a

atenção especialmente em nossos dias, em que se tende a derivar a teoria eco

nômica da natureza do valor de uso e de seu proveito para o ser humano.

Embora tais teoremas já tivessem sido propostos antes e não tenham passado

despercebidos de Marx, ele apenas tratou marginalmente deles. De acordo com

a sua própria teoria, essas tentativas só podem ser interpretadas como expres

são da impotência com que o sujeito burguês se defronta com o seu mundo. As

formas mesmas tampouco são derivadas, mas assumidas exteriormente. Dian

te disso, Marx insiste em que o valor de uso só é tratado de fato na ciência da

economia política quando ele adquire determinidade formal de cunho econô

mico em sua forma natural mesma. Quando isso ocorrerá se evidenciará no

desenvolvimento ulterior das categorias. Nesse ponto, em todo caso, fala-se da

mercadoria na medida em que, como mercadoria, ela é valor de uso e, portanto, simultaneamente é não valor de uso, devendo ingressar, por isso, no “pro

cesso universal de alienação”, pelo qual ela primeiro se torna valor de uso.

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 A EX P O SIÇÃ O C A TE G0 R 1A L

Em contrapartida, sabemos que esse “processo universal de alienação” é o

 processo de troca das mercadorias, no qual elas só são relacionadas entre si

como valores, como “cristalizações da mesma unidade”.

 Nâo são permutáveis senão quando são equivalentes e não são equivalentes senão

quando representam quantidades iguais de tempo de trabalho objetivado, de tal manei

ra que fica eliminada qualquer consideração das qualidades naturais que possuem os

valores de uso e, por conseguinte, da relação entre as mercadorias e as necessidades

específicas. (13/30 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia política, p. 71 modif.])

Trocar significa, portanto, simultaneamente realizar a mercadoria como

valor, substituindo “uma quantidade qualquer de qualquer outra mercadoria,sem que importe que seja ou não seja um valor de uso para o possuidor da

outra mercadoria” (13/30 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia polí

tica, p. 71]). Porém, visto que a mercadoria é valor e valor de uso, ela só pode

se realizar  como valor tornando-se valor de uso; em contrapartida, porém, ela

só pode se tornar  valor de uso quando se realiza como valor. Uma coisa pres

supõe a outra e a exclui na mesma medida.

A mesma relação deve ser, pois, a das mercadorias que constituem magnitudes de

igual essência e não diferem mais que quantitativamente; devem pôr-se em equação

como matéria de tempo de trabalho geral ao mesmo tempo em sua relação como objetos

qualitativamente distintos, como valores de uso específicos para necessidades também

específicas; em síntese: uma relação que os distinga como valores reais de uso. Porém,

esse modo de pô-las em equação e essa diferenciação se excluem reciprocamente e

chega-se, assim, não somente a um círculo vicioso de problemas, no qual a solução de

um pressupõe a de outro, mas também a todo um conjunto de postulados contraditórios,

 já que a realização de uma condição está diretamente ligada à realização de sua oposta.(13/30 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia política,  p. 71 modif.])

Em O capital, essa última ideia é exposta de outra forma:

Cada possuidor de mercadorias só quer alienar sua mercadoria em troca de outra

mercadoria cujo valor de uso satisfaça à sua necessidade. Nessa medida, a troca é para

ele apenas um processo individual. Por outro lado, ele quer realizar sua mercadoria como

valor, portanto em qualquer outra mercadoria do mesmo valor que seja de seu agrado,não importando se sua mercadoria tem ou não valor de uso para o possuidor da outra

mercadoria. Nessa medida, a troca é para ele um processo social geral. Mas não é pos-

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S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

sível que, simultaneamente para todos os possuidores de mercadorias, o mesmo proces

so seja exclusivamente individual e, ao mesmo tempo, exclusivamente social geral.

(23/101 [ed. bras. O capital, vol. I, pp. 160-1])

O processo de troca, prossegue Marx, deve ser tanto o desdobramento quan

to a resolução dessas contradições. Na parte correspondente do capítulo do

dinheiro, ele formula essa ideia da seguinte maneira: “Vimos que o processo

de troca das mercadorias inclui relações contraditórias e mutuamente exclu-

dentes. O desenvolvimento da mercadoria não elimina essas contradições, po

rém cria a forma em que elas podem se mover” (23/118 [ed. bras. O capital, 

vol. I, p. 178]). A derivação anteriormente delineada da forma equivalente uni

versal mostrou que, no confronto de duas mercadorias, a forma natural de uma

das mercadorias se torna a forma de manifestação do trabalho abstratamente

universal, mas que essa forma equivalente é limitada. A limitação da forma de

manifestação do valor das mercadorias não é superada em princípio nem quan

do as mercadorias específicas em sua totalidade são vistas como formas equi

valentes, embora só então “o trabalho que forma o valor  do linho” tenha sido

“exposto expressamente como trabalho que equivale a qualquer outro trabalho

humano, não importando qual a forma natural que este possui”. A mercadoria

específica, cujo valor ganha expressão na totalidade das outras mercadorias,

seria, no entanto, forma equivalente universal tão somente para o possuidor

dessa mercadoria. Porém, visto que todo possuidor de mercadorias só é pos

suidor de uma mercadoria específica, isso vale para cada um deles, e, em con

sequência disso, as mercadorias não aparecem como mercadorias. É desse modo

que Marx descreve a situação da troca:

Observando a questão mais de perto, vemos que todo possuidor de mercadorias

considera toda mercadoria alheia como equivalente particular de sua mercadoria e,

 por conseguinte, sua mercadoria como equivalente universal de todas as outras merca

dorias. Mas como todos os possuidores de mercadorias fazem o mesmo, nenhuma mer

cadoria é equivalente universal e, por isso, tampouco as mercadorias possuem qualquer

forma de valor relativa geral na qual possam se equiparar como valores e se comparar

umas com as outras como grandezas de valor. Elas não se confrontam, portanto, como

mercadorias, mas apenas como produtos ou valores de uso. (23/101 [ed. bras. O capital, 

vol. I, p. 161])

Conhecemos o próximo passo. Na medida em que todas as mercadorias

expressam o tempo de trabalho nelas contido em uma mercadoria específica,

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A E X P O SI Ç Ã O C A TE G O R I A L

o valor dessa mercadoria específica se desdobra em todas as outras mercadorias

como equivalentes dela, o tempo de trabalho objetivado nela mesma se torna

de imediato o tempo de trabalho universal, que se apresenta uniformemente

em diferentes volumes das outras mercadorias. Por conseguinte, na mesma

 proporção em que as diferentes mercadorias são iguais à mercadoria universal,

elas também são iguais entre si.

Em sua perplexidade, nossos possuidores de mercadorias pensam como Fausto. Era

no início a ação. Por isso, eles já agiram antes mesmo de terem pensado. As leis da

natureza das mercadorias atuam no instinto natural de seus possuidores, os quais só

 podem relaciona r suas mercadorias umas com as outras como valores e, desse modo,

como mercadorias na medida em que as relacionam antagonicamente com outra merca

doria qualquer como equivalente universal. Esse é o resultado da análise da mercadoria.

Mas somente a ação social pode fazer de uma mercadoria determinada um equivalente

universal. A ação social de todas as outras mercadorias exclui uma mercadoria determi

nada, na qual todas elas expressam universalmente seu valor. Assim, a forma natural

dessa mercadoria se converte em forma de equivalente socialmente válida. Ser equiva

lente universal torna-se, por meio do processo social, a função especificamente social

da mercadoria excluída. E assim ela se torna — dinheiro. (23/101 [ed. bras. O capital, 

vol. I, p. 161])

Ora, como se resolve a contradição anteriormente delineada: a mercadoria

só se realiza como valor de uso quando se realiza como valor de troca — ela só

se realiza como valor de troca quando se afirma como valor de uso? Como se

resolve a contradição entre o mesmo processo como relação entre as mercado

rias enquanto iguais que se diferenciam apenas em termos quantitativos e si

multaneamente como relação entre as mercadorias enquanto coisas qualitati

vamente diferentes, enquanto valores de uso específicos para necessidadesespecíficas? Quando se examina mais de perto esse processo de exclusão ob

 jetiva, evidencia-se que, com a existência da form a equivalente universal, sur

giu uma forma na qual essa contradição pode ser como que decom posta e, por

essa via, levada a uma resolução. D izer que todas as mercadorias, mediante o

ato da equiparação, expressam o seu valor na forma natural de uma mercadoria

específica e, por essa via, aparecem umas para as outras como valores é dizer,

ao mesmo tempo, que essa mercadoria excluída se encontra na forma da per

mutabilidade imediata por todas as outras mercadorias, podendo, portanto, ser

trocada por todas as outras mercadorias.

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SO B R E A E STR U TU R A LÓ G I C A D O C O N C E I TO D E C A P I TA L E M K A R L MA R X  

Enquanto agora todas as demais mercadorias representam seu valor de troca primei

ramente como equação ideal, que fica por estabelecer, com a mercadoria exclusiva, o

valor de uso dessa mercadoria exclusiva, ainda que real, aparece no próprio processo

como puram ente formal, não se realizando senão por sua transformação em valor de usoreal. (13/34 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia política,  pp. 76-7])

O possuidor da forma natural específica que foi apartada para ser mercado

ria universal troca a sua mercadoria por valores de uso reais que, nesse ato,

afirmam-se como valores de uso, tornam-se valores de uso ao passarem da mão

na qual são não valores de uso para a mão na qual são valores de uso. Porém,

a mercadoria ainda não se tornou valor de uso para o seu próprio possuidor. Os

seus meios de vida existem nos valores de uso das outras mercadorias. Porenquanto, a sua mercadoria ainda se encontra na forma universal, mediante a

qual ela se tornou permutável por todas as outras mercadorias. Só na troca por

um valor de uso real a sua mercadoria se realiza também como valor de troca.

Assim sendo, ocorre uma duplicação dupla:

Se as mercadorias duplicam assim sua existência para serem valores de troca umas

 para as outras, a m ercador ia excluída na qualidade de equivalente un iversal duplica o

seu valor de uso. Além do seu valor de uso específico como mercadoria específica queé, adquire um valor de uso geral. Seu próprio valor de uso é uma determinidade formal,

isto é, nasce do papel específico que representa no processo de troca, em consequência

da ação universal que as demais mercadorias exercem sobre aquela. O valor de uso de

cada mercadoria, já que é objeto de uma necessidade específica, tem um valor distinto

nas diferentes mãos; é um valor distinto na mão de quem o aliena como na de quem o

adquire. A mercadoria, a título de equivalente geral, é agora objeto de uma necessidade

geral ocasionada pelo próprio processo de troca, e possui para cada um o mesmo valor

de uso, que é o de ser portador do valor de troca, meio de troca universal. Assim ficaresolvida numa só mercadoria a contradição encerrada na mercador ia como tal: ser, sob

a forma de valor de uso específico, ao mesmo tempo, equivalente geral e, em consequên

cia, valor de uso para cada um, valor de uso geral. (13/33-4 [ed. bras. Contribuição à 

crítica da economia política,  p. 76 modif.])

Esses dois passos, a derivação da forma equivalente universal enquanto

análise da “conexão necessária intrínseca entre forma de valor, substância de

valor e grandeza de valor” e a derivação do dinheiro a partir da estrutura do processo de troca, constituem o pressuposto para a explicitação da teoria do

dinheiro, ou então, para que se compreenda a teoria do dinheiro apenas como

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A E X P O S I Ç Ã O C A T E G O R I A L

concreção ulterior dessa derivação do dinheiro levada a efeito em sua forma

mais abstrata possível. Contudo, antes de passarmos a tratar das determinações

seguintes, queremos apontar algumas implicações. Anteriormente já demos a

entender que Marx desenvolve as categorias na mesma sequência em que ocor

rem na sociedade burguesa, por assim dizer, como uma espécie de corte trans

versal da estrutura do capitalismo desdobrado. Ele pressupõe que a produção

total assume a forma-mercadoria, o que ocorre somente no caso do capitalismo

desenvolvido. Pois, de acordo com a concepção de Marx, só agora é que a lei

do valor passa a vigorar plenamente, possibilitando, desse modo, também um

olhar para dentro da estrutura do capital e de todas as formações sociais prece

dentes. Por esse pressuposto, contudo, a troca de mercadorias de modo algum

constitui um processo de troca simples, mas um momento da circulação do

capital. Desse ponto de vista, a exposição dialética das categorias é a descons-

trução impulsionada paulatinamente da concepção burguesa do encontro de

indivíduos livres e iguais na esfera da circulação: no final da exposição ficará

evidente que é o próprio capital que vem ao nosso encontro em diferentes

formas, todas elas identificando-se como momentos dele próprio.

O capital, como o sujeito predominante sobre as diferentes fases desse movimento,

valor que nele se conserva e se multiplica, como o sujeito dessas transformações que

evoluem em um curso c ircular — como espiral, um círculo que se expande — , é capital 

circulante. Por isso, o capital circulante não é, de início, uma forma particular  do capi

tal, mas é o capital em uma determinação mais desenvolvida, como sujeito do movi

mento descrito, que é ele mesmo como seu próprio processo de valorização. Em conse

quência, por esse aspecto, todo capital é também capital circulante.  Na circulação

simples, a própria circulação aparece como o sujeito. Uma mercadoria é lançada para

fora dela; outra entra. [. ..]. O próprio dinheiro, na medida em que deixa de ser meio de

circulação e se põe como valor autônomo, se retira da circulação. Mas o capital é posto

como sujeito da circulação; a circulação é posta como seu próprio curriculum vitae. 

Todavia, embora o capital, como totalidade da circulação, seja capital circulante,  seja

 passagem de uma fase à outra, em cada fase ele também é posto em uma determina-

 bilidade, confinado em uma figura particular que é a negação de si mesmo como o su

 je ito do m ovimento como um todo. Por conseguinte, em cada fase particular o capital é

a negação de si mesmo como o sujeito das distintas transformações. (42/521-2 [ed. bras.

Grundrisse,  pp. 518-9])

 No  Rascunho, Marx enfatiza que se trata de uma abstração quando, no iní

cio da exposição categorial, lança as mercadorias, por assim dizer, de fora como

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SO B R E A E STR U TU R A LÓ G I C A D O C O N C E I TO D E C A P I TA L E M K A R L MA R X  

“combustível no fogo” da circulação [ed. bras. Grundrisse, p. 196]. Porque de

qualquer modo já é o capital que tem de ser exposto como circulante. Mas para

que as categorias não venham a ser inseridas inopinadamente, como num tiro

de pistola (como diria Hegel*), a exposição tem de ocorrer nessa forma. A

forma-mercadoria e a forma-dinheiro antecedem à forma-capital em termos

lógicos — mas também em termos históricos: e, na explicitação das categorias,

na medida em que queremos acompanhá-la aqui, esse fato se sedimenta na

forma de um entrelaçamento singular do método histórico-descritivo e ge-

nético-imanente.

Enquanto a teoria burguesa clássica sucumbe, de acordo com Marx, à apa

rência da superfície do processo capitalista global e distorce, de um modo

inconsciente a ela própria, essa aparência em história prévia da sociedade bur

guesa, absolutizando, portanto, em última análise, a estrutura burguesa, o Marx

maduro diferencia rigorosamente entre duas formas da reprodução: por um

lado, formações sociais, nas quais o produto em sua forma natural é fim da

 produção, por outro lado, a moderna estrutura da distorção, na qual a produção

se tornou fim em si. Esse processo de distorção é introduzido pela transform a

ção da produção excedente em mercadorias nas fronteiras do sistema comuni

tário natural-espontáneo. A troca de produtos surge

[...] nos pontos em que diferentes famílias, tribos e comunidades entram mutuamente

em contato, pois, nos primórdios da civilização, são famílias, tribos, etc. que se defron

tam de forma autônoma, e não pessoas privadas. Comunidades diferentes encontram em

seu ambiente natural meios diferentes de produção e de subsistência. Por isso, também

são diferentes seu modo de produção, seu modo de vida e seus produtos, e é essa diferen

ciação natural-espontánea que, no contato entre as comunidades, provoca a troca dos

 produtos recíprocos e, por conseguinte, a transformação progressiva desses produtos em

mercadorias. A troca não cria a diferença entre as esferas de produção, mas coloca

em relação esferas de produção diferentes e as transforma, assim, em ramos mais

ou menos interdependentes de uma produção social total. (23/372 [ed. bras. O capital, 

vol. I, pp. 425-6])

 No início, a relação quantitativa de troca é casual, e os produtos são per

mutáveis por um ato da vontade dos possuidores de vendê-los reciprocamente.

* Cf. p. ex. G. W. F. Hegel, Fenomenología do espirito. Trad. Paulo Meneses. Petrópolis, Vozes;Bragança Paulista, USF, 2002, p. 41. (N. do T.)

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 A E X P O S IÇ Ã O CA T EGO R IA L

Ao mesmo tempo, a necessidade de objetos de uso estrangeiros se consolida paula

tinamente. A constante repetição da troca transforma-a num processo social regular,

razão pela qual, no decorrer do tempo, ao menos uma parcela dos produtos do trabalho

tem de ser intencionalmente produzida para a troca. Desse momento em diante, con-

firma-se, por um lado, a separação entre a utilidade das coisas pa ra a necessidade im e

diata e sua utilidade para a troca. Seu valor de uso se aparta de seu valor de troca. Por

outro lado, a relação quantitativa, na qual elas são trocadas, torna-se dependente de sua

 própria produção. O costum e as fixa como grandezas de valor. (23/103 [ed. bras. O ca

 pital,  vol. I, pp. 162-3])

 No começo, esse processo social possui a forma da troca imediata de pro

dutos e cada mercadoria é, portanto, diretamente meio de troca para o seu possuidor, sendo um equivalente para o seu não possuidor só na medida em

que possui valor de uso para este e, em consequência disso, o valor de troca da

mercadoria ainda não adquire uma forma de exposição autônoma, separada de

sua forma natural; isso muda com a ampliação desse processo. A passagem da

forma de valor desdobrada para a forma de valor universal, central para a for

mulação rigorosa, reaparece também nesse ponto:

A necessidade dessa forma se desenvolve com o número e a variedade crescentesdas mercadorias que entram no processo de troca. O problema surge simultaneamente

aos meios de sua solução. Uma circulação em que os proprietários de mercadorias

comparam mutuamente seus artigos e os trocam por outros artigos diferentes jamais

ocorre sem que, em sua circulação, diferentes mercadorias de diferentes possuidores de

mercadorias sejam trocadas e comparadas como valores com uma única terceira merca

doria. Essa terceira mercadoria, por servir de equivalente de diversas outras mercadorias,

torna-se imediatamente, mesmo que em estreitos limites, a forma de equivalente univer

sal ou social. (23/103 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 163])

Em Para a crítica, Marx indica expressamente que essa gênese da forma-

-dinheiro, mesmo que só seja possível encontrá-la após certa ampliação do

comércio de troca, o que se pode provar historicamente, justam ente não deve

ser derivada das dificuldades exteriores “com que se depara o comércio de

troca ampliado”. Ele critica isso como um procedimento que coloca os fatos

reais de cabeça para baixo. As mercadorias enquanto valores de uso não podem

ser divididas a bei prazer, como deveriam ser enquanto valores de troca; certamercadoria de um produtor X pode ter valor de uso para o produtor Y, mas

a mercadoria deste pode não ter valor de uso para o produtor X; ou os pos

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S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

suidores das mercadorias indivisíveis a serem reciprocamente trocadas ne

cessitam delas em proporções de valor desiguais: todas estas são dificuldades

que de fato estão associadas à troca, mas são, por assim dizer, dificuldades es

senciais que

[...] nascem do desenvolvimento do valor de troca, surgem do trabalho social conside

rado como trabalho geral. [...]. Em outros termos: com o pretexto de estudar a troca

simples, os economistas consideram certos aspectos da contradição que a mercadoria

encerra como unidade imediata de valor de uso e valor de troca. Doutro lado, atêm-se

logicamente à troca como forma adequada do processo de troca das mercadorias, e que

apenas apresentaria certos inconvenientes técnicos; para evitá-los, o dinheiro seria um

expediente habilmente idealizado. (13/36 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia 

 po lítica , p. 80])

O que vale para a forma do Estado político ao lado e fora da sociedade

 burguesa, o qual tem de ser derivado da contradição entre os interesses particu

lares e os interesses coletivos de cada cidadão, mas que, no desenvolvimento

histórico, surge apenas gradativamente com a disseminação da sociedade bur

guesa — unicamente “a realização plena do idealismo do Estado representou

concomitantemente a realização plena do materialismo da sociedade bur

guesa”, consta em Sobre a questão judaica* — , isso vale também para a forma-

-dinheiro.

O cristal monetário [Geldkristall] é  um produto necessário do processo de troca, no

qual diferentes produtos do trabalho são efetivamente equiparados entre si e, desse modo,

transformados em mercadorias. A expansão e o aprofundamento históricos da troca

desenvolvem a oposição entre valor de uso e valor que jaz latente na natureza das mer

cadorias. A necessidade de expressar externamente essa oposição para o intercâmbio

impele a uma forma independente do valor da mercadoria e não descansa enquanto não

chega a seu objetivo final por meio da duplicação da mercadoria em mercadoria e di

nheiro. Portanto, na mesma medida em que se opera a metamorfose dos produtos do

trabalho em mercadorias, opera-se também a metamorfose da mercadoria em dinheiro.

(23/101-2 [ed. bras. O capital, vol. I. pp. 161-2])

Que mercadoria assume essa forma social específica depende do nível de

desenvolvimento histórico, que, por sua vez, é caracterizado pela natureza do

* Cf. 1/369 [ed. bras. p. 52], (N. do T.)

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 A E X P O S I Ç Ã O C A T E G O R I A L

valor de uso que se presta como mercadoria universal. Originalmente servirá

como dinheiro a mercadoria que mais é trocada na forma de objeto de neces

sidade, ou seja, aquela que oferece mais segurança de poder ser novamente

trocada por outras mercadorias específicas. No período inicial da produção demercadorias, terão sido sal, peles, gado e escravos, já que eles, em sua forma

específica de mercadoria, correspondem-se entre si como valor de troca bem

mais do que as outras mercadorias. “A utilidade particular da mercadoria, seja

como objeto particular de consumo (peles), seja como instrumento imediato

de produção (escravo), qualifica-a aqui como dinheiro” (42/99 [ed. bras. Grun- 

drisse, p. 113]). No curso do desenvolvimento, a relação se inverterá e se con

verterão em dinheiro as mercadorias cujo valor de uso mais corresponde às

necessidades suscitadas pelo processo de troca como tal; em correspondênciacom isso, cada vez mais os metais preciosos se convertem em dinheiro. “Du

rabilidade, inalterabilidade, divisibilidade e reconvertibilidade, transporte re

lativamente fácil por conter elevado valor de troca em pequeno espaço, tudo

isso torna os metais preciosos particularmente apropriados para o último está

gio” (42/99 [ed. bras. Grundrisse,  p. 113]).

3. A primeira determinação do dinheiro

Antes de levantar a questão da grandeza do preço de certas mercadorias e

ir em busca das causas da variação de preços, Marx precisa derivar a própria

 form a-preço. Ou seja, o fato mesmo de as mercadorias terem um preço, que

sempre será um preço bem determinado, está no centro das reflexões marxianas

e todo o desenvolvimento precedente deve ser entendido como pressuposto

imprescindível para a explicitação dessa determinidade formal. Marx retoma,

nesse ponto, a linha de pensamento da primeira parte do capítulo inicial de

Para a crítica ou então do primeiro capítulo de O capital. Neles a pergunta era

esta: como as mercadorias podem apresentar-se umas às outras como aquilo

que são? Em si, elas são momentos do trabalho social global, “materialidade

do mesmo trabalho ou a mesma materialidade do trabalho [...] (e) como mate

rialidade uniforme do mesmo trabalho não apresentam senão uma diferença,

a quantitativa” (13/50 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia política ,

 p. 94 modif.]). No plano imediato, contudo, elas são coisas de uso concretas,

 postadas lado a lado como existências indiferentes e relacionadas com necessidades específicas apenas por sua peculiaridade. Mas elas precisam  aparecer

como momentos do trabalho social, e fazem isso, apartando uma mercadoria

específica para ser a mercadoria universal.

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S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M AR . X  

Como mercadorias isoladas, relacionam-se umas às outras como objetivação do

tempo de trabalho geral, relacionando-se com este como com uma mercadoria excluída:

o ouro. A mesma relação em processo, mediante a qual representam, umas às outras,

valores de troca, significa também o tempo de trabalho contido no ouro como tempo detrabalho geral, do qual uma quantidade determinada se expressa em quantidades distin

tas de ferro, trigo, café etc.; em resumo: expressa-se nos valores de uso de todas as

mercadorias ou desenvolve-se imediatamente na interminável série dos equivalentes das

mercadorias. Como as mercadorias expressam universalmente os seus valores de troca

em ouro, este expressa imediatamente o seu valor de troca em todas as mercadorias.

Dando-se a si próprias e umas relativamente às outras a forma de valor de troca, as

mercadorias dão ao ouro a forma de equivalente geral ou de dinheiro. (13/50 [ed. bras.

Contribuição à crítica da economia política, p. 95 modif.])

Porém, em que consiste a diferença específica entre essa parte do dinheiro-

-capital e a parte correspondente da teoria do valor? Marx aponta para ela em

Para a crítica:

O valor de troca das mercadorias, expresso desse modo ao mesmo tempo como

equivalência geral e como grau dessa equivalência numa mercadoria específica ou numa

só equação das mercadorias com outra específica, é o seu  preço. O  preço é a formametamorfoseada, sob a qual aparece o valor de troca das mercadorias dentro do proces

so de circulação. (13/51 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia política, pp. 95-6])

Significativa é, nesse ponto, a formulação: dentro do processo de circulação.

Pois, enquanto na derivação da forma equivalente universal se fala explicita

mente da relação entre o trabalho individual com o trabalho social global, aqui

isso não ocorre mais. No Rascunho, quando se trata da primeira determinação

do dinheiro, consta o seguinte: “Em geral, a mercadoria na qual é expresso ovalor de troca de uma outra jamais é expressa como valor de troca, jamais como

relação, mas como quantum determinado em sua constituição natural” (42/135

[ed. bras. Grundrisse, p. 152]). A finalização lógica dessa ideia é o desenvol

vimento da denominação monetária, e até esse ponto acompanharemos aqui a

argumentação marxiana.

Marx pressupõe, para simplificar, como ele diz, o ouro como mercadoria-

-dinheiro. Nisso se reflete, ao mesmo tempo, que Marx descreve o capitalismo

desenvolvido, pois, como vimos escrito no Rascunho, “durabilidade, inalterabilidade, divisibilidade e reconvertibilidade, transporte relativamente fácil por

conter elevado valor de troca em pequeno espaço, tudo isso torna os metais

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A E X P O SI Ç Ã O C A T E G O R I AL

 preciosos particularm ente apropriados para o último es tágio” (42/99 [ed. bras.

Grundrisse,  p. 113]). A primeira função pela qual o ouro se torna dinheiro é

denominada por Marx de “medida dos valores”. O ouro serve para “fornecer

ao mundo das mercadorias o material de sua expressão de valor ou de representar os valores das mercadorias como grandezas de mesmo denominador,

qualitativamente iguais e quantitativamente comparáveis” (23/109 [ed. bras. O 

capital, vol. I, p. 169]). Como sabemos, o próprio valor de uso da mercadoria-

-dinheiro torna-se, nesse processo, existência formal, sendo que o tempo de

trabalho nela contido se apresenta de modo imediato como tempo de trabalho

universal, mas precisamente na forma de uma quantidade de ouro, de modo

que as mercadorias individuais, expressas como coisas da mesma substância,

só aparecem ainda como um mais ou um menos de urna determinada quantidade de ouro, “servindo as quantidades determinadas de ouro apenas como

denominações para as quantidades dadas de tempo de trabalho” (13/53 [ed.

 bras. Contribuição à crítica da economía política,  p. 98]). Como mercadoria

que possui um preço, ela passa a ser uma determinada quantidade da mesma

coisa, a saber, de ouro. Porém, para que as mercadorias sejam trocadas como

equivalentes, é preciso que possam ser comparadas entre si e assim “desenvol-

ve-se [... ] a necessidade de relacioná-las com uma quantidade determinada de

ouro, considerada como unidade de medida. Essa unidade de medida se con

verte em padrão porque se divide em partes alíquotas e estas, por sua vez, em

outras novas partes alíquotas” (13/54 [ed. bras. Contribuição à crítica da eco

nomia política, p. 100 modif.]).

Porém, dado que as quantidades de ouro são medidas por seu peso, pode-se

assumir a forma acabada do padrão já existente ñas medidas universais de peso

dos metais. Marx aponta para o fato de que, em toda a circulação metálica, essa

escala de pesos original também serviu originalmente como padrão dos preços.

Assim sendo, o ouro “transforma-se de medida de valores em padrão de preços.  

A mútua comparação dos preços das mercadorias como quantidades distintas

de ouro cristaliza-se assim ñas figuras assinaladas em uma quantidade de ouro

imaginada e que o representa como padrão de partes alíquotas” (13/54 [ed. bras.

Contribuição à crítica da economia política, p. 101]). Marx enfatiza que o ouro

 passa a ostentar duas determinidades formais, e a confusão das duas “provocou

as mais estapafúrdias teorias”. O ouro é medida dos valores enquanto tempo

de trabalho objetivado, ou seja, valor de uso que possui, ele próprio, valor, e,

em consequência disso, também pode modificar o seu valor. Em contraposição,

o ouro é padrão dos preços enquanto peso metálico determinado e “uma quan

tidade de ouro determinada serve de unidade a outras quantidades de ouro. O

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S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

ouro é medida do valor porque o seu valor é variável; é padrão de preços por

que é fixado como unidade invariável de peso” (13/55 [ed. bras. Contribuição 

à crítica da economia política,  p. 101]). Independentemente de quanto varia o

valor do ouro, diferentes quantidades de ouro sempre representam a mesmarelação de valor entre si.

O que se pretende é que esse padrão passe a ter, no interior da circulação,

o caráter da universalidade e da necessidade, sendo, ao mesmo tempo, puramen

te convencional a estipulação da unidade de medida, das partes alíquotas e de

seus nomes. Assim sendo, ele necessariamente acaba sendo regulado por lei.

Uma porção determinada de peso de um metal precioso, por exemplo, 1 onça de

ouro, é oficialmente dividida em partes alíquotas, que a lei batiza com nomes tais como

libra, táler etc. Essa parte alíquota, que então passa a valer como a verdadeira unidade

de medida do dinheiro, é subdividida em outras partes alíquotas que a lei batiza com

outros nomes, como xelim,  penny   etc. Tal como antes, determinados pesos metálicos

continuam a ser padrão do dinheiro metálico. O que mudou foi a divisão das partes

alíquotas e os nomes adotados. Os preços, ou as quantidades de ouro em que os valores

das mercadorias foram idealmente convertidos, são, agora, expressos nas denominações

monetárias ou nas denominações contábeis legalmente válidas do padrão de medida do

ouro. Na Inglaterra, em vez de se dizer que 1 quarter  de trigo é igual a 1 onça de ouro,dir-se-ia que ele é igual a £3, 17 xelins e  IOV 2 pence.  Assim, as mercadorias declaram,

em suas denominações monetárias, o quanto elas valem, e o dinheiro serve como uni

dade de conta na medida em que vale para fixar uma coisa como valor e, com isso, ex

 pressá-la na forma-dinheiro. (23/115 [ed. bras. O capital,  vol. I, pp. 174-5])

A exposição marxiana da primeira determinação do dinheiro termina com

o desenvolvimento da denominação monetária,  da qual desapareceu “todo

sinal da relação de valor”. “O nome de algo é totalmente exterior à sua natureza. Não sei nada de um homem quando sei apenas que ele se chama Jacó”

(23/115 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 175]). Não obstante, a denominação não

é só  exterior a ele, mas a própria exterioridade da denominação ainda é, por

assim dizer, essencial a ele. Isso já se evidencia pelo fato de a exposição mar

xiana avançar até essa determinação, na qual se reflete a finalização lógica do

desenvolvimento real: “Por outro lado, é necessário que o valor, em contraste

com os variados corpos do mundo das mercadorias, desenvolva-se nessa forma

material, desprovida de conceito, mas também simplesmente social” (23/116[ed. bras. O capital, vol. I, p. 175] ).

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Todavia, pelo fa to de   a denominação ser exterior à natureza da coisa, a

denominação monetária do peso metálico não só pode  separar-se da deno

minação original do peso, como realmente se separa. A exterioridade, nesse

caso, também aparece como tal. A razão mais importante (Marx menciona

ainda outras) dessa separação real reside na contradição que o metal físico

representa em sua função de meio de circulação. Essa contradição será tema-

tizada mais adiante.

4. Exc urso sobre o conceito do tempo de trabalho social mente  

necessário

Seria um procedimento extremamente contrário à concepção marxiana se

antepuséssemos à exposição global das categorias uma definição conclusiva

ou uma fórmula sucinta da lei do valor e de seu modo de ação. Tal procedimen

to necessariamente anda de mãos dadas com a negligência da natureza especí

fica das determinidades formais de cunho econômico. Marx aponta explicita

mente para isso ao escrever, na carta de 11 de julho de 1868 a Kugelmann:

A ciência consiste justamente em desenvolver como a lei do valor se impõe. Casose quisesse, portanto, “explicar” de antemão todos os fenômenos que contradizem a lei,

seria preciso fornecer a ciência anterior   à ciência. O erro cometido por Ricardo foi

 justam en te o de, no seu pr imeiro capítulo sobre o valor, pressupor como dadas todas as

 possíveis categorias que ainda tinham de ser desenvolvidas para dem onstrar a sua ade

quação à lei do valor. (32/553)

Como sabemos, essa constatação de Marx se refere à aparência distorcida

da concorrência, que está automaticamente dada com as categorias do cotidia

no capitalista. Segundo Marx, a teoria econômica deve destruir essa aparência

de que o valor do produto tem outra fonte além do trabalho, e, de acordo com

a sua autocompreensão, a exposição dialética das categorias é a única forma

 possível pela qual pode ser executada essa decifração. De modo semelhante a

Hegel, Marx se nega peremptoriamente a discutir problemas em pontos nos

quais isso só é possível mediante antecipações ilegítimas de determinações a

serem explicitadas somente no curso da explicação de todas as categorias.

Segundo Marx, isso sempre levaria a que a aparência fosse absolutizada econfrontada com a “teoria esotérica”. “E então o [economista] vulgar acredita

que está fazendo uma grande descoberta quando, confrontado com a revelação

da conexão intrínseca, teima que as coisas parecem diferentes na aparição. Ele

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S O B R E A E S T RU T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P IT A L E M K A R L M A R .Y

de fato teima em aferrar-se à aparência e tomá-la como a coisa última. Mas

 para que serve, então, uma ciência?” (Marx 1954, pp. 185-6)*. Por conseguinte,

a definição da lei do valor e a exposição de seu modo de agir nada mais podem

ser, para Marx, que o desenvolvimento das categorias mesmas, que, por sua

vez, franqueará o acesso à análise do “movimento real da concorrência”, cuja

exposição, contudo, situava-se fora do “plano” de Marx, como já mencionamos

anteriormente.

Possivelmente graças a esse modo de proceder, um aspecto essencial da

teoria do valor foi tratado de forma ambígua. Na nossa breve caracterização

introdutória do conceito de valor, mostramos com o auxílio de exemplos que

o próprio Marx cita em O capital que, na concepção marxiana, o valor assume,

 por assim dizer, a função de uma unidade consciente de si, faltante num siste

ma de produção, o qual aponta, por sua estrutura material, para essa unidade

consciente de si, mas que não a possui. Naquele contexto pudemos nos conten

tar com essa alusão, enfatizando, ao mesmo tempo, que essa constatação não

esgota todos os aspectos desses exemplos. Agora, após o desenvolvimento da

 fo rm a-preço, temos de retornar a esse problema e examiná-lo mais de perto.

Rememoremos esses fatos com o auxílio de uma passagem extraída do Rascu

nho, na qual Marx — em discussão com os proudhonistas — aclara as tarefas

que o banco propagado pelos “teóricos do bilhete de horas” teria de cumprir:

O banco seria, portanto, o comprador e vendedor universal. Em lugar das notas, o

 banco poderia em itir cheques e, em lugar destes ú ltimos, poderia manter simples cader

netas de débito e crédito. Conforme a soma dos valores-mercadorias que depositasse no

 banco,  X  teria a seu crédito no banco a mesma soma de valor em outras mercadorias.

Um segundo atributo do banco seria necessariamente o de fixar de maneira autêntica o

valor de troca de todas as mercadorias, i.e.,  o tempo de trabalho nelas materializado.

Mas suas funções não poderiam terminar aqui. Teria de determinar o tempo de trabalho

no qual as mercadorias podem ser produzidas nas condições médias da indústria, o

tempo em que têm de ser produzidas. Mas isso também não seria suficiente. Teria não

só de determinar o tempo em que um certo quantum de produtos tem de ser produzido

e pôr os produtores em condições tais que seu trabalho seja igualmente produtivo (logo,

teria também de harmonizar e ordenar a distribuição dos meios de trabalho), mas teria

de determinar as quantidades de tempo de trabalho que deveriam ser utilizadas nos dife

rentes ramos de produção. Este último seria necessário porque, para realizar o valor de

troca, para fazer seu dinheiro efetivamente convertível, a produção geral teria de estar 

* Cf. 32/553, car ta a Kugelmann. (N. do T.)

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assegurada, e em proporções tais que as necessidades dos trocadores fossem satisfeitas.

(42/89 [ed. bras. Grundrisse, pp. 103-4])

Ao passo que nos exemplos anteriormente mencionados nos pareceu significativo que o trabalho abstratamente humano enquanto substância do valor

tem seu contraponto na consciência de que, nos diferentes trabalhos concretos,

trata-se apenas de diferentes formas de atividade do mesmo sujeito consciente

de si, seja ele Robinson ou a associação de pessoas livres que “conscientes de 

si despendem suas muitas forças de trabalho individuais como uma só força de

trabalho social”, temos de abordar agora o tempo de trabalho como m edida da

grandeza do valor. Da passagem do Rascunho  recém-citada se depreende cla

ramente que o tempo de trabalho socialmente necessário deve ser analisado

 por dois aspectos. Por um lado, é ressaltado que o banco deve determinar em

quanto tempo de trabalho os respectivos tipos de valores de uso precisam ser

 produzidos. Isso implica a repartição dos meios de trabalho de cada ramo es

 pecífico da produção de maneira tal que cada trabalhador individual (ou, mui

to antes, cada grupo de trabalhadores, já que se trataria de meios de trabalho

em forma de maquinaria e, em consequência, o próprio processo imediato de

 produção seria comunitário) seja mais ou menos igualmente produtivo e, por

isso, cada valor de uso com razão só possa ser tratado como um exemplar do

seu tipo, porque cada um deles contém a mesma quantidade de trabalho. Por

outro lado, acentua-se que esse banco terá de repartir o tempo de trabalho

social global de acordo com as diferentes “massas de necessidades” (como

Marx diz na carta a Kugelmann anteriormente citada) pelos diferentes ramos

de produção. Só quando esses dois pressupostos tivessem sido criados, os

trabalhadores poderiam satisfazer as suas necessidades nesse sistema e, ao

mesmo tempo, realizar seus produtos como valores de troca; só então eles

 poderiam participar da produção total, em conformidade com a medida de sua

 própria contribuição para ela. Isso é algo óbvio no exemplo de Robinson. Em

contrapartida, o outro exemplo precisa ser dado como complemento para acla

rar todos os aspectos do conceito de valor. “Apenas como paralelo à produção

de mercadorias” Marx pressupõe que a parte que cabe a cada produtor nos

meios de vida seria determinada pela dimensão do tempo de trabalho com que

ele contribuiu para a produção total. Esse tempo de trabalho, porém, em seu

dispêndio concreto, desde sempre já está determinado como socialmente necessário em duplo sentido, na medida em que as muitas forças de trabalho

individuais só poderão ser despendidas nos diferentes ramos da produção se

gundo a medida das necessidades a serem satisfeitas de todos os membros da

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S O B R E   A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

associação quando já tiver sido fixado o tempo de trabalho médio necessário

 para a produção dos diferentes valores de uso.

 Na diferenciação entre essas duas dimensões do conceito do tempo de tr a

 balho socialmente necessário reflete-se uma unidade, pecu liar do capitalismo,

de dois processos essencialmente relacionados um com o outro e, na mesma

 proporção, autônomos um em relação ao outro. No interior da autonomização

 basilar da produção perante o consumo, da autonomização do valor de troca

 perante o valor de uso, de um lado o tempo médio de trabalho necessário para

 produzir um valor de uso é constantem ente diminuído pela modificação dos

métodos de produção, do outro lado o trabalho social global não é repartido

conscientemente (correspondendo às necessidades do consumo e da produção)

 pelos diferentes ramos da produção; essa repartição tem de impor-se de modo

natural-espontâneo. Sob esses pressupostos, faz como que parte do sistema que

sejam lançadas no mercado as mercadorias para cuja confecção foi despendi

do apenas tempo de trabalho socialmente necessário e, ao mesmo tempo, uma

quantidade demasiada de tempo do trabalho social global. Isso é constatado

expressamente por Marx:

Para as mercadorias se venderem por seu valor, a condição é conterem apenas otempo de trabalho socialmente necessário, e, do mesmo modo, para um ramo inteiro de

 produção do capital, a condição é aplicar-se nesse ramo particular apenas a parte neces

sária da totalidade do trabalho da sociedade, apenas o tempo de trabalho exigido para

satisfazer à necessidade social (demand  [procura]). Se se aplicar mais, mesmo que cada

mercadoria isolada encerre apenas o tempo de trabalho socialmente necessário, o con

 junto conterá mais que o tempo de trabalho socialmente necessário; da mesma maneira,

a mercadoria isolada tem valor de uso, mas o conjunto das mercadorias, segundo os

 pressupostos estabelecidos, perde parte do seu valor de uso. (26.2/521 [ed. bras. Teorias 

cla mais-valia, vol. II, p. 956])

Essas desproporcionalidades que constantemente vão se formando são com

 pensadas na práxis capitalista cotidiana por meio de processos que comumen-

te são designados como mecanismos de preço, como mecanismos de oferta e

 procura, como migração do capital etc. A proporcionalidade existe apenas no

 processo das desproporcionalidades que constantem ente vão sendo compen

sadas, ou, nas palavras de Marx: a lei do valor se realiza somente em seu próprio contrário.

A exemplo dos clássicos, Marx também parte do fenômeno de que o preço

oscila em torno de uma grandeza média, a qual é determinada como o objeto

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A E X P O SI Ç Ã O C A TE G O R I A L

a ser propriamente analisado. Oferta e procura coincidem nesse ponto e, em

consequência disso, não podem mais ser citadas como explicação, visto que

essa grandeza média deve ser explicada de outra maneira do que pelas diver

gências em relação a si mesma que são constantemente compensadas. Esse“preço natural”, como o chamam os clássicos, é determinado, muito antes, pelo

tempo de trabalho. A despeito das diferenças centrais entre a teoria marxiana

e a teoria clássica no que se refere a toda a problemática da forma, essa ideia

é acolhida por Marx.

O valor das mercadorias determinado pelo tempo de trabalho é somente seu valor  

médio.  [...] O valor de mercado da mercadoria é sempre diferente desse seu valor médio,

e se encontra sempre abaixo ou acima dele. O valor de mercado iguala-se ao valor real

 por suas incessantes oscilações, jam ais por meio de uma equação com o valor real como

terceiro termo, mas por sua contínua inequação consigo mesmo (não, como diria Hegel,

 por meio de iden tidade abstra ta, mas pela cons tante negação da negação, i.e.,  de si

mesmo como negação do valor real). [...]. O preço diferencia-se também do valor, não

apenas como o nominal se diferencia do real; não apenas pela denominação em ouro e

 prata, mas pelo fato de que o último aparece como lei dos movimentos por que passa o

 primeiro. Mas são constantemente diferentes e jamais coincidem, ou o fazem apenas de

maneira acidental ou excepcional. O preço das mercadorias situa-se continuamente acima ou abaixo do valor das mercadorias, e o próprio valor das mercadorias existe somen

te na flutuação dos preços das mercadorias. (42/72-3 [ed. bras. Grundrisse, pp. 87-8])

Se entendermos a derivação marxiana das categorias como “definição” da

lei do valor e da forma de sua imposição, essa forma de exposição da lei do

valor deverá ser rigorosamente diferenciada da exposição da realização da lei

do valor na própria concorrência. Este último ponto, como já foi ressaltado

várias vezes, não foi explicitado por Marx, “porque o movimento real da concorrência está fora do nosso plano e só queremos apresentar a organização

intrínseca do modo de produção capitalista em sua média ideal, por assim dizer”

(25/839 [ed. bras. O capital, vol. III, tomo 2, p. 280]). Essa problemática é

abordada por Marx também no final do primeiro capítulo de Para a crítica, em

que ele refuta possíveis objeções à sua teoria do valor:

O preço de mercado das mercadorias baixa ou sobe de acordo com seu valor de

troca, conforme a relação variável da oferta e da procura. É precisamente por isso que

o valor de troca das mercadorias [assim argumentam seus adversários, H. R.] é deter

minado pela relação entre a oferta e a procura e não pelo tempo de trabalho nelas con-

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S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

tido. Essa conclusão singular, de fato, não faz mais que renovar a pergunta: como é que

sobre a base do valor de troca se desenvolve um preço de mercado distinto de dito valor?

Ou, mais exatamente: como é que a lei do valor de troca nâo se realiza senão no oposto

de si mesma? Esse problema é resolvido na teoria da concorrência. (13/47 [ed. bras.Contribuição à crítica da economia política,  p. 92 modif.])

A exposição marxiana das categorias contém, portanto, somente a derivação

daquelas formas pelas quais a lei do valor se realiza pela primeira vez; elas

são, por assim dizer, o a prio ri, o pressuposto de todo movimento real. Por essa

razão, a teoria marxiana da form a-preço não pode ser caracterizada como teo

ria do preço, mas se entende apenas como exposição daquela categoria que

 pela primeiríssima vez possibilita a constante oscilação.

O preço é a denominação monetária do trabalho objetivado na mercadoria. Por

isso, a equivalência entre a mercadoria e a quantidade de dinheiro — cujo nome é seu

 preço — é uma tautologia, assim como a expressão relativa de valor de uma mercadoria

é sempre a expressão da equivalência entre duas mercadorias. Mas se o preço, como

exponente da grandeza de valor da mercadoria, é exponente de sua relação de troca com

o dinheiro, disso não se conclui a relação inversa, isto é, que o exponente de sua relação

de troca com o dinheiro seja necessariamente o exponente de sua grandeza de valor.Consideremos que uma mesma grandeza de trabalho socialmente necessário esteja ex

 pressa em 1 quarter   de trigo e em £2 [...]. As £2 são, assim, a expressão monetária da

grandeza de valor do quarter  de trigo, ou seu preço. Ora, se as circunstâncias permitirem

que essa expressão monetária seja remarcada para £3 ou exija que ela seja reduzida para

£1, conclui-se que £1 ou £3, como expressões da grandeza de valor do trigo, são peq ue

nas ou grandes demais, porém constituem, de qualquer forma, os preços do trigo, pois,

em primeiro lugar, elas são sua forma de valor, dinheiro, e, em segundo lugar, são ex

 ponentes de sua relação de troca com o dinheiro. Em condições constantes de p roduçãoou de produtividade constante do trabalho, é necessário, tal como antes, que a mesma

quantidade de tempo de trabalho social seja despendida para a reprodução do quarter  

de trigo. Essa circunstância independe da vontade tanto do produtor do trigo quanto dos

outros possuidores de mercadorias. A grandeza de valor da mercadoria expressa, por

tanto, uma relação necessária — e imanente ao seu processo constitutivo — com o

tempo de trabalho social. Com a transformação da grandeza de valor em preço, essa

relação necessária aparece como relação de troca entre uma mercadoria e a mercadoria-

-dinheiro existente fora dela. Nessa relação, porém, é igualmente possível que se ex presse a grandeza de va lor da mercadoria, como o mais ou o menos pelo qual ela é

vendável sob dadas circunstâncias. A possibilidade de uma incongruência quantitativa

entre preço e grandeza de valor, ou o desvio do preço em relação à grandeza de valor,

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 A E X P O S I Ç Ã O C A T E G O R I A L

reside, portanto, na própria forma-preço. Isso não é nenhum defeito dessa forma, mas,

ao contrário, aquilo que faz dela a forma adequada a um modo de produção em que a

regra só se pode impor como a lei média do desregramento que se aplica cegamente.

(23/116-7 [ed. bras. O capital, vol. I, pp. 176-7])

Em correspondência ao conjunto da formulação, Marx pode se contentar

aqui com essa indicação. Visto que, em O capital, ele só está tratando da deri

vação das formas mesmas, ou seja, visto que, nesse caso, ele tem de explicitar

como as mercadorias se apresentam umas às outras, no interior da esfera de

circulação, como expressões reificadas, apenas quantitativamente diferentes,

da mesma substância, ele pressupõe que os diferentes valores de uso contêm

tempo de trabalho socialmente necessário e são trocados como equivalentes.Mas o que Marx entende exatamente por tempo de trabalho socialmente

necessário no âmbito da exposição das categorias? Marx constatou explicita

mente que esse conceito deve ser analisado por dois aspectos e retorna repeti

damente a isso, ainda que o faça de uma forma da qual não se consegue de

 preender sem sombra de dúvida como se deve conceber a mediação dos dois

aspectos. Isso pode ser posto na conta da própria forma de exposição das ca

tegorias, que — como exposição do modo de produção capitalista em sua

“média ideal” — de qualquer modo já pressupõe a mediação dos dois aspectos

e, ao mesmo tempo, não pode pressupô-la. Quando a exposição parte da cir

culação simples e, em seguida, quer decifrá-la como esfera abstrata do proces

so burguês de produção total — o seu ser imediato como pura aparência —,

ela sempre só pode apreender o valor de uso naquelas determinidades formais

de cunho econômico, nas quais ele aparece no respectivo estágio da análise.

Marx aborda essa problemática no Rascunho'.

Dessa vez, entretanto, essa contradição não é mais posta como era na circulação,

como uma simples diferença form al, mas ser medido pelo valor de uso é aqui solida

mente determinado como ser medido pela necessidade total dos trocadores por esse

 produto — isto é, pelo quantum  do consumo total. Esse consumo aparece aqui como

medida para o produto como valor de uso e, por isso, também como valor de troca.  Na

circulação simples, tratava-se simplesmente de converter o produto da forma do valor

de uso específico para a forma do valor de troca. O obstáculo do produto aparecia so

mente porque, em sua primeira forma, o produto existia por sua propriedade natural  em

uma forma específica, em lugar de existir na forma de valor, forma na qual era direta

mente permutável por todas as outras mercadorias. Agora, no entanto, está posto que a

medida de sua existência está dada em sua própria propriedade natural.  Para ser con

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S O B R E    A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

vertido à forma universal, o valor de uso deve apenas existir em um a quantidade deter

minada; uma quantidade cuja medida não está no trabalho nele objetivado, mas que

resulta de sua natureza como valor de uso e, na verdade, valor de uso para outros. (42/320

[ed. bras. Grundrisse,  p. 331])

E, algumas linhas mais adiante, segue-se uma observação significativa: “A

indiferença do valor enquanto tal diante do valor de uso é posta assim em uma

 posição tão falsa quanto a da substância e da medida do valor como trabalho

objetivado em geral” (42/320 [ed. bras. Grundrisse, p. 331]). É difícil decidir

se essa última observação deve ser concebida como objeção contra a teoria do

valor do trabalho como tal ou apenas como sinalização de que o aspecto da

repartição do trabalho social global em conformidade com a medida das necessidades sociais igualmente deve ser levado em conta já no início da expo

sição das categorias. Uma nota de rodapé subsequente confere maior plausibi

lidade à última interpretação: “Ainda não se pode passar à relação de demanda,

oferta, preços, que, em seu verdadeiro desenvolvimento, pressupõem o capital.

A demanda e a oferta, na medida em que são categorias abstratas e ainda não

expressam relações econômicas determinadas, não devem talvez ser conside

radas já na circulação ou na produção simples?” (42/320 [ed. bras. Grundrisse, 

 p. 331]). No Rascunho, Marx deixa esse problema expressamente em suspenso,como se depreende de uma anotação posterior:

Vimos há pouco, no processo de valorização do capital, como ele supõe o desen

volvimento prévio do processo de produção simples. O mesmo se dá com a demanda e

a oferta,  uma vez que, na troca simples, a necessidade do produto é pressuposta. A

 própria necessidade do produtor (imediato) como necessidade da demanda de outros.

Desse próprio desenvolvimento tem de resultar o que lhe tem de ser pressuposto, e tudo

isso, então, tem de ser lançado nos primeiros capítulos. (42/320-1 [ed. bras. Grundrisse, PP· 331-2])

Em lugar nenhum Marx explicitou em que medida essas objeções incidiram

na exposição posterior. Em todo caso, o problem a em si tampouco é resolvido

de modo concludente em O capital·,  ao contrário, à medida que avança no

desenvolvimento de sua teoria, Marx vincula a expressão “tempo de trabalho

necessário” exclusivamente com um aspecto.

De fato, é a lei do valor tal como ela se impõe não às mercadorias ou aos artigos

individuais, mas aos produtos globais originados em cada uma das esferas específicas

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 A E X P O SI Ç Ã O CA TE G O RI AL

da produção social, autonomizadas pela divisão do trabalho; de modo que não só se

emprega sobre cada mercadoria individual apenas o tempo de trabalho necessário, mas

também tão somente o quantum  proporc ional necessário da tota lidade do tempo de

trabalho social nos diferentes grupos. Pois a condição continua a ser o valor de uso. Masse o valor de uso de um a mercadoria isolada depende de ela em si e por si satisfazer a

uma necessidade, então, na m assa do produto social, depende de ela satisfazer, de ma

neira adequada, a uma necessidade social quantitativamente determinada para cada es

 pécie par ticu lar de produto, e de o trabalho , po r conseguinte, estar proporcionalmente

dividido em relação a essas necessidades nas diferentes esferas da produção, quantita

tivamente circunscritas. [...]. A necessidade social, ou seja, o valor de uso elevado à

 po tênc ia social, aparece aqui como fator determinante da cota do tempo global de tra

 balho social que recai para as diversas esferas específicas da produção. É, porém, apenasa mesma lei que já se mostra na mercadoria isolada, ou seja: que seu valor de uso é

 pressuposto do seu valor de troca e, portanto, do seu valor. [...]. Essa lim itação quanti

tativa das cotas do tempo de trabalho social utilizáveis nas diferentes esferas da produ

ção específicas é apenas expressão mais desenvolvida da lei do valor em geral; embora 

o tempo de trabalho necessário assuma aqui outro sentido  [grifo meu, H. R.]. Apenas

tanto dele é necessário para satisfazer às necessidades sociais. A limitação que ocorre

aqui deve-se ao valor de uso. (25/648-9 [ed. bras. O capital, vol. III, tomo 2, p. 138])

 Não há dúvida de que grande parte da crí tica à teoria marxiana tem em

vista esse fato, mas ao mesmo tempo o articula de forma a servir-se das cate

gorias que Marx está procurando derivar. Por isso, vamos interromper neste

 ponto a discussão desse problem a e tentar primeiro dar conta do decurso sub

sequente da exposição.

5. A segunda determinação do dinheiro

A “segunda determinação do dinheiro” segue necessariamente a primeira:

“Essa duplicação ideal acontece (e tem de acontecer) de modo que a mercado

ria aparece duplicada na troca efetiva: de um lado, como produto natural, de

outro, como valor de troca. Em outras palavras, seu valor de troca adquire uma

existência material dela separada” (42/79-80 [ed. bras. Grundrisse, p. 94]). A

 form a-preço, cuja formação “é uma espécie de processo teórico preparatório

da circulação real” (13/49 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia po líti

ca, p. 94]), inclui a venalidade das mercadorias por dinheiro e a necessidadedessa venda. Depois de ter repetido, ao fazer a derivação da form a-preço,  num

 plano mais concreto, a estrutura da argumentação da primeira parte do primeiro

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S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

capítulo de Para a crítica ou então do primeiro capítulo de O capital, a saber,

examinar a mercadoria analiticamente e não como ela se apresenta no proces

so de troca real, Marx retoma, nesse ponto, a argumentação da segunda parte

do primeiro capítulo de Para a crítica ou então do segundo capítulo de O capital — igualmente num plano mais concreto. A análise da mercadoria como

unidade de valor de uso e valor de troca resultou em que ela deve tornar-se 

ambos os valores, sendo que a realização de um está reciprocamente vinculada

à realização do outro, mas a realização de um ao mesmo tempo exclui a rea

lização do outro. A única solução possível para esse círculo vicioso de proble

mas está em fazer com que o metabolismo social seja mediado por uma mu

dança de forma da mercadoria, efetuando-se, por assim dizer, em dois passos:

a mercadoria se realiza como valor de uso ao assumir uma forma de existênciasocial diferente de sua forma natural imediata, ao adquirir uma forma na qual

ela é tida pelas outras mercadorias como encarnação imediata do trabalho

abstratamente universal, e então substitui, enquanto equivalente, uma quanti

dade arbitrariamente determinada de qualquer outra mercadoria. Na forma-pre- 

ço está implicado este processo: na medida em que têm um preço, as merca

dorias não só aparecem umas para as outras como expressões permutáveis

apenas quantitativamente diferentes da mesma substância, mas também se

apresentam como antecipação ideal do modo de existência imediato do valor

de troca. O ato de sua venda, isto é, ao passarem da mão em que são não valor de

uso para a mão em que são valor de uso, ou seja, o seu devir como valor de 

uso, é idêntico à realização do preço. De uma quantidade representada de ouro

a mercadoria se torna ouro real.

Em virtude de venda M-D, não somente se transformou efetivamente em ouro a

mercadoria que já o fora idealmente em seu preço, mas também, pelo mesmo processo,

o ouro, que, como medida dos valores, não era outra coisa senão moeda ideal e que, na

realidade, não figurava senão como denominação monetária das próprias mercadorias,

se transformou em dinheiro real. O ouro, que se havia feito idealmente equivalente

geral porque todas as mercadorias mediam por ele seus valores, agora, como produto

de alienação universal das mercadorias em troca dele, sendo a venda M-D o processo

dessa alienação universal, transforma-se em mercadoria absolutamente alienável, em

dinheiro real. Todavia, se o ouro se converte em dinheiro real na venda é porque os

valores de troca das mercadorias já eram idealmente ouro nos preços. (13/71 [ed. bras.

Contribuição à crítica da economia política, pp. 121-2 modif.])

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 A E X P O S I Ç Ã O C A T E G O R I A L

Quando a mercadoria é vendida por ouro e realiza o seu preço, o ouro se

torna dinheiro real, torna-se a “crisálida de ouro” [ed. bras. O capital,  vol. I,

 pp. 185 e 204] da mercadoria, o seu valor em form a natural, que passa a ser

representável de modo imediato nos valores de uso de todas as outras merca-dorias, que, por sua vez, mediante o seu preço, “ambiciona” o ouro como seu

“além”. Enquanto a primeira venda da mercadoria realizou o seu valor de uso

 para outros, no ato da exteriorização do ouro por outro valor de uso a merca-

doria se realiza como valor de uso para o seu proprietário. Ao mesmo tempo,

realiza-se o seu valor de troca, mas ele se realiza só como valor evanescente:

“Enquanto, pela realização do seu preço, a mercadoria converte o ouro em

dinheiro real, por sua nova transformação converte o ouro em sua própria

existência meramente evanescente de dinheiro” (13/74 [ed. bras. Contribuição à crítica da economía política, p. 125 modif.]).

6. Excurso sobre a teoria da crise

Para Marx, essa exposição da mudança de forma da mercadoria é idéntica

à introdução de determinações que, se não forem compreendidas, a elaboração

teórica adequada de um fenômeno central do modo de produção capitalista, a

saber, o da crise, parece-lhe impossível de antemão: as determinações do ato 

de comprar  e do ato de vender. De uma nota de rodapé em que Marx critica

certo teórico, segundo o qual o dinheiro só é tratado de modo abusivo na eco

nomia política, depreende-se que, também no caso dessas determinações, Marx

exige uma forma rigorosa de introdução e, no fundo, considera também nesse

 ponto a sua própria exposição como a única forma possível. Hodgskin diz o

seguinte: “Dinheiro não é, na realidade, senão o instrumento para efetuar a

compra e a venda [...], e o seu estudo não constitui parte da ciência da econo

mia política, assim como não faz parte dele o estudo de navios e máquinas

a vapor” (13/37 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia política,  p. 80,

n. 41 modif.]), ao que Marx retruca imediatamente: “Mas o que o senhor en

tende por compra e venda?” (13/37 [ed. bras. idem]). Contudo, onde não se

 pode derivar a forma-dinheiro da estrutura da mercadoria e onde a necessidade

da forma autônoma de exposição do valor de troca não pode ser compreendida,

sendo o dinheiro considerado meramente como “expediente habilmente idea

lizado” para a superação de dificuldades (aparentemente) exteriores do comércio de troca, tampouco se pode exigir algum enunciado claro sobre a essência

dessas duas determinações. Por mais inofensivo que à primeira vista pareça

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SO B R E    A E STR U TU R A LÓ G I C A D O C O N C E I TO D E C A P I TA L E M K A R L MA R X  

também esse mal-entendido, as consequências tiradas dele por Marx em todo

caso são significativas.

A duplicação da mercadoria em mercadoria e dinheiro implica que aí se

 passa uma transubstanciação. Mas ela im plica ao mesmo tempo tambémque o êxito dessa transubstanciação é casual. Com o surgimento da forma-

-dinheiro o ato da troca se decompõe em dois atos independentes um do outro,

 precisamente compra e venda, de modo que a identidade imediata entre a en

trega do produto próprio em troca do produto alheio dá lugar a um processo

que é constituído essencialmente da unidade das duas fases, assim como ele

é ao mesmo tempo, de modo igualmente essencial, a separação e a autonomi

zação das duas entre si.

Podem se corresponder ou não se corresponder; podem coincidir ou não; podem

entrar em relações recíprocas discrepantes. É verdade que procurarão constantemente

se equiparar; porém, no lugar da igualdade imediata anterior, tem lugar agora o cons

tante movimento de equiparação, que pressupõe justamente a constante não equiparação.

Possivelmente, a consonância só pode agora ser plenamente atingida percorrendo as

mais extremas dissonâncias. (42/82-3 [ed. bras. Grundrisse, p. 97])

A descrição das implicações dessas duas determinações é simultaneamente a primeira forma de exposição da crise ou a exposição da crise em sua forma

mais abstrata possível. Contudo, antes de nos voltarmos para essa forma, é

 preciso chamar a atenção para alguns aspectos do problema da crise em seu

todo no que diz respeito à exposição. Quando a forma dialética de exposição

envolve a pretensão de ser a única forma adequada da elaboração conceituai

do processo capitalista global, essa forma de exposição deve ser caracterizada,

ao mesmo tempo, como a tentativa de resolver uma tarefa que se equipara à

quadratura do círculo no plano da economia política. O que se exige é nadamenos que a exposição sistemática daqueles momentos que, no interior da

 produção capitalista, condicionam o desmoronam ento periódico desse modo

de produção. O sistema de exposição na forma do “ir-além-de-si-mesmo ima

nente”, de cujo conceito não há como afastar reflexivamente a concepção de

uma estrutura harmônica em si mesma, deve, portanto, apreender, igualmente

ainda de modo sistemático, uma ruptura imanente ao sistema, a sua própria

força explosiva imanente. A concepção global, de modo peculiar, faz jus a esse

entrelaçamento de estatismo e dinamismo no sistema capitalista que aparece 

na crise. A abordagem esporádica, aparentemente assistemática, da crise ainda

é o procedim ento mais adequado para elaborar em estágios de concreção dife-

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A E X P O SI Ç Ã O C A TE G O R I A L

rentes em cada caso um conjunto de fatos que, por toda a sua estrutura, parece

resistir a um acesso sistemático.

E isso é o importante quando observamos a economia burguesa. As crises do

mercado mundial têm de ser concebidas como a convergência real e o ajuste à força de

todas as contradições da econom ia burguesa. Os diversos fatores que convergem nessas

crises têm, portanto, de ser destacados e descritos em toda a esfera da econom ia bur

guesa, e, quanto mais nesta nos aprofundarmos, têm de ser destacadas novas caracte

rísticas desse conflito e ainda é mister demonstrar que as formas mais abstratas dele

são iterativas e se contêm nas mais concretas. (26.2/510 [ed. bras. Teorias da mais-valia , 

vol. II, p. 945])

O primeiro passo na abordagem dessa problemática deve ocorrer nesse

 ponto, a saber, na explicitação das determinações “compra” e “venda”, e con

siste meramente na análise precisa da fo rma abstrata da crise.

A economia burguesa não estava em condições de adotar tal modo de aná

lise em virtude do mal-entendido mencionado anteriormente. Nesse contexto,

torna-se interessante, contudo, uma diferenciação que Marx efetua por ocasião

da controvérsia com a teoria burguesa da crise e que não coincide com a dife

renciação essencial entre teoria clássica e teoria vulgar. Como já se ressaltoudiversas vezes, a teoria clássica se caracteriza exatamente por tentar romper

a aparência objetiva em que incorre sem ressalvas a teoria vulgar, mesmo que

o faça com meios em parte inadequados. Porém, isso não evita, como bem

vimos na crítica marxiana a Adam Smith e David Ricardo, que a teoria clássi

ca esteja impregnada de elementos da economia vulgar; ao contrário: sem as

sobreposições parciais com teoremas da economia vulgar, a teoria clássica não

seria clássica no sentido marxiano, pois coincidiria de modo imediato com a

sua própria teoria. Contudo, na teoria da crise não há essa sobreposição parcial;nesse ponto, a própria teoria clássica se converte plena e inteiramente em eco

nomia vulgar. “Palavrório pueril que fica bem para Say, mas não para Ricardo”

(26.2/503 [ed. bras. Teorias da mais-valia,  vol. II, p. 938]) consta em certa

 passagem de Teorias do mais-valor. De um outro ponto de vista, contudo, é

 possível introduzir uma diferenciação: em meio à falta de clareza generalizada

sobre esse problema, é possível discernir se a observação prática da crise é

“negada” ou “aceita” pela teoria. Cum grano salis  [com ressalvas] esses dois

aspectos da teoria burguesa podem ser associados a dois períodos do modo de produção capita lis ta, que podem ser ca racterizados, eles próprios, mediante

duas formas específicas de crise.

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SO B R E A E STR U TU R A LÓ G I C A D O C O N C E I TO D E C A P I TA L E M K A R L MA R X  

O próprio Ricardo, a bem dizer, nada sabia de crises, de crises gerais do mercado

mundial oriundas do próprio processo de produção. Podia explicar as crises de 1800 até

1815, alegando encarecimento do trigo em virtude das más colheitas, a depreciação dos

 bilhetes de banco, a depreciação das mercadorias coloniais etc., po is, em consequênciado bloqueio continental, o mercado se contraíra à força, por motivos políticos e não

econômicos. Para explicar as crises posteriores a 1815, tinha também argumentos: um

ano ruim de escassez de cereais; queda dos preços dos grãos, por terem cessado de atuar

as causas que, segundo sua própria teoria, tinham de empurrar para cima os preços dos

cereais, no período da guerra e do isolamento em que a Inglaterra ficou do continente;

a transição da guerra para a paz e as “súbitas mudanças” daí oriundas “nos canais de

comércio”. [...]. Os fenômenos históricos posteriores, em particular a quase regular

 periodicidade das crises do mercado mundial, não perm itiram aos sucessores de Ricardo a negação dos fa cts  [fatos] ou a interpretação deles como casuais. (26.2/498 [ed. bras.

Teorias da mais-valia, vol. II, p. 933 modif.])

O ponto de mutação entre esses dois períodos designa, ao mesmo tempo,

um ponto de culminação histórico, pois dali por diante não poderia mais haver

um desenvolvimento da teoria burguesa enquanto teoria clássica. A partir daí

a pergunta se no sistema de Ricardo foi dito sobre “a fisiologia interior” do

sistema capitalista tudo o que podia ser dito dentro do horizonte burguês é uma pergunta abstrata. Com o re torno regular das crises , a natureza his tórica do

 processo de reprodução burguês inevitavelmente tinha de assomar à consciên

cia, e a forma histórica do processo de reprodução se tornou visível na própria

forma desse processo. Desse modo, porém, também foi preciso reconhecer o

horizonte burguês como burguês; para Marx, um desenvolvimento ulterior da

ciência só era concebível ainda sob a clave socialista, como cr ítica dessa ciên

cia, e a ciência burguesa só ainda como apologética consciente.

Como se apresenta para Marx a primeira variante da teoria burguesa dacrise? Marx constata uma discrepância grotesca entre observação em pírica

e teoria abstrata. Não há como negar que ocorrem crises, mas tampouco é

 possível deixar de perceber a incapacidade dos teóricos para conceitualizar

esse fenômeno.

 No tocante às crises, todos os que expõem o movimento real dos preços, ou todos

os experientes que escrevem em dados momentos da crise, com razão ignoraram a

charlatanice fantasiada de teoria e acharam satisfatória a ideia de que o verdadeiro nateoria — a saber, a impossibilidade de gluts ofmarket   [superabundância no mercado]

etc. — era errado na prática. Na realidade, a repetição regular das crises rebaixou a

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 A E X P O S I Ç Ã O CA T E GO R I A L

conversa fiada de Say etc. a uma fraseologia. (26.2/500 [ed. bras. Teorias da mais-valia, 

vol. II, pp. 935-6 modif.])

Ora, em vez de, como seria de esperar, passar a investigar em que consistem

os elementos que estouram nas catástrofes, a teoria se contenta com negar essa

catástrofe e, diante da recorrência em pírica desse fenômeno, ela insiste em

opinar que a “produção, se acatasse as lições dos compêndios, nunca chegaria

à crise” (26.2/501 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 936]). Portanto, as

crises de modo algum teriam o caráter da necessidade; ao contrário, sua ocor

rência seria puro acaso.

Marx, por sua vez, não se contenta com constatar essa discrepância, mas

mostra que a teoria burguesa se nutre de mal-entendidos elementares acerca

das implicações das determinidades formais de cunho econômico. Quando,

como já foi ressaltado anteriormente, a forma-dinheiro não é derivada da es

trutura do processo de troca, mas vista como meio técnico para facilitar a

troca de produtos, borra-se também a diferença essencial entre a troca imedia

ta de produtos e a circulação de mercadorias. Nesse caso, compra e venda não

são compreendidas como decurso de um processo constituído de duas fases

contrapostas, que formam de fato uma unidade, só que dali por diante uma

unidade na forma do ser-em-si: visto que ninguém pode vender sem que alguém

diferente compre, mas ninguém precisa comprar imediatamente por ter vendi

do algo, a circulação rompe as barreiras temporais, locais e individuais da

troca de produtos, e as fases podem se tornar independentes uma da outra. E

elas então também aparecem como independentes, assim que a unidade intrín

seca passar a vigorar; a separação das duas aparece... na crise.

A independência recíproca assumida pelas duas fases conjugadas e complementares

destrói-se à força. A crise, portanto, revela a unidade dos elementos que passaram a ficar

independentes uns dos outros. Não ocorreria crise se não existisse essa unidade interna

de elementos que parecem comportar-se com recíproca indiferença. (26.2/501 [ed. bras.

Teorias da mais-valia, vol. II, p. 936])

Esses fatos escapam à percepção da economia burguesa. Visto que, para

ela, o dinheiro é meramente “o meio pelo qual a troca é efetuada”, ela não

consegue fixar a compra e a venda em sua determinidade formal específica,

mas tem de analisá-las do ponto de vista da troca. Por essa via, porém, ela

falha de antemão em perceber a crise como forma de manifestação da unidade,

 já que, para ela, a unidade só está acessível sob a forma da identidade imedia-

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S O B R E   /1 E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R. X  

ta. É por isso que não pode haver crises para a economia burguesa. “Mas não,

diz o economista apologético. Por haver a unidade, não  pode haver crise”

(26.2/501 [ed. bras. Teorias da mais-valia,  vol. II, p. 936]).

Com isso, segundo Marx, já foi criticada, em seu cerne, toda a teoria bur

guesa da crise. Se em relação ao seu próprio modo de proceder vale que a

 problemática da cr ise sempre precisa ser retomada de maneira nova, se é p re

ciso provar que as formas mais abstratas são recorrentes nas formas mais con

cretas, inversamente também vale que a falha em perceber a mais abstrata das

formas da crise condiciona a impossibilidade de uma solução para o complexo

global. Marx enfatiza isso na discussão com Ricardo.

O ponto de vista (na verdade, de James Mill) que Ricardo tomou de empréstimo do

insípido Say (e a que voltaremos ao tratar dessa figura lastimável) de ser impossível

superprodução ou pelo menos no general glut ofth e market  [pletora geral do mercado]

 baseia-se na proposição de se trocarem  produtos por produ tos  ou, como diz Mill, no

“equilíbrio m etafísico entre vendedores e compradores” . (26.2/493 [ed. bras. Teorias da 

mais-valia , vol. II, p. 929 modif.])

Compra e venda são apreendidas sob a determinação da troca e esse pri

meiro desempenho falho se propaga. Demanda e oferta, que Marx só desen

volve na análise da concorrência dos capitais, também são analisadas por esse

 ponto de vista. “Ademais, está sem dúvida subjacente ao raciocínio de Ricardo

e a raciocínios semelhantes não só a relação entre compra e venda, mas também

a relação entre procura e oferta.  [...] Como diz Mill, se compra é venda etc.,

então procura é oferta e oferta, procura” (26.2/505 [ed. bras. Teorias da mais- 

-valia, vol. II, p. 940]). Isso implica uma interpretação completamente equivo

cada do processo cap italista global. Visto que, como enfatiza Marx, uma abor

dagem mais concreta da relação entre demanda e oferta não pode ser

dissociada da exposição exa ta da relação entre produção e consumo, mas esta,

sob as condições capitalistas, enquanto contradição entre o desenvolvimento

incessante das forças produtivas e a limitação do consumo — que é a base real

da superprodução —, constitui fundamento de todas as crises, esse segundo

 passo da economia burguesa significa ignorar completamente a differentia spe- 

cifica  [diferença específica] do modo de produção capitalista. Sendo assim,

Marx consegue resumir em poucas frases o modo de proceder insuficiente porocasião da análise das crises:

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A E X P O SI Ç Ã O C A TE G O R I A L

Para se demonstrar que a produção capitalista não pode conduzir a crises gerais,

negam-se todas as condições e determinações formais, todos os princípios e dijferentiae 

specificae [diferenças específicas], em suma, a própria produção capitalis ta, e na reali

dade se demonstra que, se o modo capitalista de produção, em vez de ser uma forma

especificamente desenvolvida, peculiar, da produção social, fosse um modo de produção

anterior a suas manifestações iniciais mais rudimentares, não existiriam os conflitos e

as contradições que o caracterizam nem, portan to, sua eclosão nas crises. [...] Recua-se

à era anterior à produção capitalista e mesmo à anterior à produção simples de mer

cadorias, e nega-se o fenômeno mais intrincado da produção capitalista — a crise do

mercado mundial — , escamoteando-se a primeira condição da produção capitalista,

a saber, que o produto tem de ser mercadoria, de se representar, por isso, em dinheiro

e passar pelo processo de metamorfose. (26.2/501-2 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, pp. 936-7])

A outra variante da teoria burguesa, da qual se falou anteriormente, é como

que o reverso da que acabamos de discutir. Pois, mesmo que a autonomização

das duas fases apareça na crise, a crise não pode ser explicada a partir da sim

 ples forma da separação entre compra e venda. A razão da realidade da crise

é, muito antes, a contradição entre produção e consumo sob condições capita

listas, ou seja, entre o desenvolvimento das forças produtivas e o caráter limitado do consumo. Essa separação essencial, característica do sistema capita

lista, entre os dois momentos, o da produção e o do consumo, que estão

inter-relacionados de modo igualmente essencial, tem de  aparecer, e ela apa

rece como aquilo que ela é, a saber, como autonomização da produção peran

te o consumo, como superprodução. Nesse caso, a superprodução como con

teúdo da crise, como conteúdo dessa forma, é conteúdo com fundamento.

Contudo, enquanto for tematizada apenas a separação entre compra e venda e

a crise for analisada nessa fase da exposição categorial, ainda não há conteúdocom fundamento; nessa fase da exposição das categorias como exposição da

crise, o conteúdo é idêntico à forma, a forma é todo o conteúdo, ou trata-se da

forma mais abstrata possível da realidade da crise. A impossibilidade da venda

está dada com a separação entre compra e venda e, portanto, a possibilidade

da crise reside na própria separação; sem a separação não poderia haver crises

reais, assim como a crise real aparece precisamente também como consolida

ção da venda perante a compra. Porém, nessa fase do desdobramento do siste

ma global, ainda não podemos mostrar por que a crise possível se transforma

em crise real.

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S OB R E A E S T R UT UR A L ÓGI CA DO CONCE I T O DE CA P I T A L E M KA R L MA R X  

Possibilidade geral e abstrata da crise significa apenas a. forma mais abstrata da

crise, sem conteúdo, sem o impulso pertinente a esse conteúdo. Compra e venda podem

separar-se. Constituem, portanto, crise em estado potencial e sua coincidência continua

sempre a ser, para a mercadoria, elemento crítico. Mas uma pode converter-se na outracom fluidez. Assim, a forma mais abstrata da crise (e, por isso, a possibilidade formal

da crise) é a metamorfose da própria mercadoria, a qual, como movimento desenvolvido,

contém a contradição, encerrada na unidade da mercadoria, entre valor de troca e valor

de uso e ainda entre dinheiro e mercadoria. Mas o meio por que essa possibilidade de

crise se torna a crise não se contém nessa própria forma; esta implica apenas que existe

a forma  para um a crise. (26.2/510 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 945])

Se — em contraposição ao aspecto da teoria burguesa anteriormente discutido — também for aceito na teoria o que é evidenciado pela observação

empírica, ou seja, se for aceito que, com a separação entre compra e venda,

existe também a possibilidade de haver crises, mas o teórico então não se põe

a buscar as razões que levam uma crise possível a se converter numa crise real,

a explicação permanece tautológica:

Aliás, não são mais felizes os economistas, como, por exemplo, John Stuart Mill,

que procuram explicar as crises com essas meras possibilidades da crise, encerradas nametamorfose das mercadorias, como a dissociação entre compra e venda. Esses elem en

tos que explicam a possibilidade da c rise nem de longe elucidam sua realidade; deixam

de elucidar por que as fases do processo entram em conflito tal que sua unidade interna

só pode impor-se por meio de uma crise, de um processo violento. Aquela dissociação 

aparece na crise; é a sua forma elementar. Explicar  a crise por essa forma elementar

significa explicar a existência da crise, expressando-a na mais abstrata forma de sua

existência, isto é, explicar a crise pela crise. (26.2/502 [ed. bras. Teorias da mais-valia, 

vol. II, p. 937])

Quanto ao resultado, essas teorias não se diferenciam das anteriormente

mencionadas. Quem se limita à possibilidade formal da crise e considera a sua

ocorrência como possível determina-a como realidade possível. Na tradição

filosófica, ser realidade possível é a determinação do... acaso:

Vê-se por aí a enorme fadaise  [sandice] dos economistas que, depois de não terem

conseguido escamotear o fenômeno da superprodução e da crise, se contentam em dizer

que se encerra naquelas formas a possibilidade de sobrevirem crises; que, por conse

guinte, é casual não ocorrerem elas, e assim sua própria ocorrência se evidencia mera

casualidade. (26.2/513 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 948])

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A E X P OS I ÇÃ O CA T E GOR I A L

7. A segunda determinação do dinheiro (continuação)

 Retournons à nos moutons   [retornemos à vaca fría], como diz Marx após

uma digressão no  Rascunho*, e continuemos acompanhando a exposição das

categorias. Como vimos, o metabolismo social é mediado pela mudança de

forma da mercadoria. O valor de uso da mercadoria só consegue se realizar

quando a “duplicação ideal se converte em duplicação real”, ou seja, quando

o seu preço é realizado, na medida em que a mercadoria se converte de uma

quantidade representada de ouro em ouro real. Nesse ato de mudança de forma,

o ouro se torna dinheiro, ele funciona como dinheiro. O valor da mercadoria

existe de modo imediato em forma natural e como tal ele pode ser exibido de

modo imediato nos valores de uso de todas as demais mercadorias que, por sua

vez, já estão relacionadas mediante a sua forma-preço com o modo de existen

cia imediato do valor de troca. Na segunda parte da mudança de forma, realiza-

-se o valor de troca, sendo que só nesse momento a mercadoria se torna pro

 pria m ente valo r de uso para o seu proprie tá rio . Em consequência , a

forma-dinheiro da mercadoria é apenas uma forma evanescente; a função do

ouro consiste na mediação constantemente evanescente do metabolismo social;

nessa função, ele é meio de circulação.  Essa é a formulação mais abstrata

 possíve l da “segunda determ inação do dinheiro”, como consta no  Rascunho. 

Em si, ela contém toda a teoria do dinheiro como meio de circulação e a forma

monetária do dinheiro originária dessa função. Consideremos, primeiramente,

a explicitação dessa determinação no Rascunho.

A mudança de forma das mercadorias enquanto mediação do metabolismo

social consiste em duas fases, a saber, em vender e em comprar. Porém, a aná

lise mais detida dessa mudança de forma mostra que ela se entrelaça com a

mudança de forma de duas outras mercadorias: na medida em que a mercado

ria realiza o seu preço, realiza-se o valor de troca de outra mercadoria; na

medida em que ela realiza o seu próprio valor de troca, despindo a sua “crisá

lida de ouro”, realiza-se, por sua vez, o preço de outra mercadoria. A sua pri

meira mudança de forma coincide com a segunda mudança de forma de outra

mercadoria, a sua segunda mudança de forma coincide com a primeira mudança

de forma de uma terceira mercadoria. Enquanto durante a sua primeira mudan

ça de forma ela se defronta com a forma-ouro de outra mercadoria (que comple

tou a sua primeira mudança de forma), os papéis se invertem durante a segunda

* Cf. ed. bras. Grundrisse, p. 517. (N. do T.)

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S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

mudança de forma: agora ela se defronta com a terceira mercadoria, que inicia

a sua primeira mudança de forma, em sua forma-ouro — a ser suprimida.

Em contraposição à função anteriormente discutida, passa-se a usar ouro

real. Na primeira determinação do dinheiro, ouro em sua função de medida, oouro serve de “dinheiro representado ou ideal”. Para executar esse “processo

 prepara tório para a circulação re al” , ou seja, proporcionar às mercadorias a

forma em que elas se apresentam umas para as outras, no processo de circu

lação, como expressões qualitativamente iguais e só quantitativamente dife

rentes da mesma substância (na medida em que estão expressas como quanti

dade determinada de uma matéria natural), não se utiliza nenhum grama de

ouro real. A estipulação de preços das mercadorias ocorre sem a presença

imediata de ouro; “milhões de valores de mercadorias” podem ser “estimadosem ouro”, sem que se necessite do ouro, embora ele só se preste a essa função

 por ser, ele próprio, produto “valioso” do trabalho; pois ele só é forma equiva

lente universal nessa relação em processo, na qual todas as mercadorias ex

 pressam seu valor em ouro e este, por conseguinte, expressa, por sua vez, o seu

 próprio valor em todas as outras mercadorias, que só a par tir daí conseguem

aparecer como aquilo que são na condição de mercadorias. A própria mer-

cadoria-dinheiro, nesse caso, o ouro, precisa, portanto, possuir valor, ainda que

ela, na primeira função, não precise estar fisicamente presente. Na segunda

determinação do dinheiro é diferente: nela, o ouro precisa estar presente —

como realizador dos preços — numa determinada quantidade que, por sua vez,

é condicionada pela grandeza do preço a ser realizado. “O próprio preço da

mercadoria expressa nela, idealmente, que ela é a quantidade de uma certa

unidade natural (de peso) de ouro ou de prata, que é a matéria em que o dinheiro

está corporificado. No dinheiro, ou em seu preço realizado, confronta-se ago

ra com a mercadoria uma quantidade efetiva dessa unidade” (42/140 [ed. bras.

Grundrisse,  p. 156]).

Aspecto característico da estrutura do  Rascunho de O capital é  que Marx

se limita a essa indicação, da qual, contudo, é possível derivar sem qualquer

esforço tanto as leis da rotação do dinheiro como a crítica à teoria burguesa da

quantidade. As implicações só seriam desdobradas em Para a crítica  e em O 

capital.  Renunciaremos aqui a uma reprodução detalhada das conclusões. E

óbvio que a teoria marxiana do valor só pode chegar ao resultado de que a

massa do dinheiro que funciona como meio de circulação é condicionada pelasoma de preços das mercadorias, por um lado, e, por outro, pela quantidade

média de rotações da mesma peça de dinheiro. Apontaremos apenas para dois

aspectos.

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 A EX P O S IÇ Ã O CATEGO RIAL

O primeiro é essencial para o curso do desenvolvimento posterior. Pois se

a quantidade circulante de ouro depende da soma dos preços das mercadorias

e da velocidade da circulação, propõe-se o seguinte problema: a massa do meio

de circulação metálico tem de ser passível de contração e expansão; em suma,“que, para responder à necessidade do processo de circulação, o ouro, na qua

lidade de meio de circulação, ora deve entrar no processo ora ser excluído dele”

(13/87 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia política,  p. 141 modif.]).

O modo como o processo de circulação realiza essa condição será mostrado

na exposição da terceira determinação do dinheiro.

O segundo aspecto diz respeito à crítica da teoria burguesa. A indicação de

que o ouro, enquanto realizador dos preços, deverá estar disponível numa quan

tidade determinada pela grandeza dos preços a serem realizados implica uma

crítica enérgica da teoria da quantidade, a qual, como Marx explicita em Para 

a crítica, foi mais ou menos insinuada primeiramente por economistas italianos

do século XVII e desenvolvida de modo mais nítido por Montesquieu e Hume.

Contudo, a crítica marxiana não se entende como contraposição abstrata a

esses teoremas (o próprio Marx constata, muito antes, uma contraposição des

se tipo entre representantes dessa teoria e defensores do sistema monetário),

mas o seu método consiste em descrever a rotação do dinheiro como fo rma de 

manifestação do processo de circulação das mercadorias, mostrando, portanto,

como se constitui a aparência empírica, em meio à qual se move a teoria bur

guesa. Trata-se, nesse caso, de uma forma mais desenvolvida da crítica que

acusa a teoria burguesa de acolher as categorias exteriormente a partir da em-

 piria. Queremos delinear em poucas frases essa linha de pensamento. Como

sabemos, a dupla mudança de forma da mercadoria faz a mediação do metabo

lismo social, durante o qual a mudança de forma de uma mercadoria se entre

laça com a mudança de forma de duas outras mercadorias. Porém, não é assim

que isso se apresenta ao observador. Visto que a primeira mudança de forma

de uma mercadoria A coincide com a segunda mudança de forma de uma

mercadoria B, o “primeiro passo [...] que a mercadoria dá na circulação é [...], 

ao mesmo tempo, o seu último passo”. Assim que efetuou a sua primeira mu

dança de forma, ela cai da circulação para o consumo. A mercadoria inicia a

segunda parte de sua metamorfose com sua crisalidação em ouro, na forma de

ouro, de modo que a sua metamorfose total se apresenta como movimento

exterior de uma peça de ouro que troca duas vezes de lugar com duas mercadorias diferentes.

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S OB R E A E S T R UT UR A L ÓGI CA DO CONCE I T O DE CA P IT A L E M KA R L MA R X  

Que essa forma unilateral do movimento do dinheiro nasce do movimento formal

 bilateral da mercadoria é algo que permanece oculto. A natureza da própria circulação

das mercadorias gera a aparência contrária. A primeira metamorfose da mercadoria é

visível não somente como movimento do dinheiro, mas como seu próprio movimento;sua segunda metamorfose, no entanto, só é visível como movimento do dinheiro. (23/129

[ed. bras. O capital, vol. I, p. 188])

A mesm a peça de dinheiro vai se deslocando, sempre na direção contrária

à das mercadorias movidas. Ela roda, passa de uma mão para a outra, percor

rendo uma circulação maior ou menor; a continuidade do movimento da cir

culação situa-se totalmente do lado do dinheiro, e o movimento inteiro parece  

 pa rtir do dinheiro.

O resultado da circulação de mercadorias, a substituição de uma mercadoria por

outra, não parece ser mediado por sua própria mudança de forma, mas pela função do

dinheiro como meio de circulação, que faz circular mercadorias que, por si mesmas, são

imóveis, transferindo-as das mãos em que elas são não valores de uso para as mãos em

que elas são valores de uso e, nesse processo, movendo-se sem pre em sentido contrário

ao seu próprio curso. O dinheiro remove constantemente as mercadorias da esfera da

circulação, assumindo seus lugares e, assim, distanciando-se de seu próprio ponto de

 partida. Por essa razão, em bora o movimento do dinheiro seja apenas a expressão da

circulação de mercadorias, é esta última que, ao contrário, aparece simplesmente como

resultado do movimento do dinheiro. (23/130 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 189])

E dessa função do dinheiro que deve ser derivada a sua figura monetária.

 No  Rascunho  de O capital,  isso é feito em poucas frases. Ali Marx enfatiza

que a finalidade desse ato é o metabolismo social, e que o preço da mercadoria

só é realizado no dinheiro para, com o dinheiro, realizar o preço da segunda

mercadoria e assim adquiri-la em troca da primeira. “Depois que o preço da

 primeira mercadoria é realizado, o objetivo daquele que obteve agora o seu

 preço em dinheiro não é obter o preço da segunda mercadoria, mas ele paga o

seu preço para obter a mercadoria. No fundo, o dinheiro serviu-lhe, portanto,

 para trocar a prim eira mercadoria pela segunda” (42/138 [ed. bras. Grundrisse, 

 p. 154]). Porque a efetiva realização do preço de uma mercadoria é outra merca

doria, visto que só após a segunda mudança de forma a mercadoria realmente

se toma valor de uso para o seu proprietário, porque o valor de uso só existe

 para ele no valor de uso da outra mercadoria. O ouro é realização do preçosomente quando se considera a primeira parte da mudança global de forma,

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 A E X P O SI Ç Ã O CAT EGO RIAL

mas na totalidade dos seus momentos a realização é apenas evanescente. Por

tanto, visto que a própria realização do preço evanesce, ele é  evanescente en

quanto realização, ou “sua substância consiste unicamente no fato de que o

dinheiro aparece continuamente como tal fugacidade, como esse portador des

sa mediação” (42/138 [ed. bras. Grundrisse, p. 155]). No interior da metamor

fose global, ele serve, portanto, meramente como meio para que as mercado

rias sejam trocadas por preços iguais, ele é representante do preço perante

todas as mercadorias, ele apresenta o preço, é “representante objetivamente

 presente do preço, logo, de si mesmo” (42/141 [ed. bras. Grundrisse,  p. 157]).

Como representante de si mesmo, ele é, por conseguinte, sinal de si mesmo em

sua materialidade imediata, e

[...] segue-se daí que o dinheiro, como ouro e prata, na condição exclusiva de meio de

circulação, meio de troca, pode ser substituído por qualquer outro signo que expresse

um quantum determinado de sua unidade e, dessa maneira, o dinheiro simbólico pode

substituir o dinheiro real, porque o próprio dinheiro material, como simples meio de

troca, é simbólico. (42/141-2 [ed. bras. Grundrisse,  p. 158])

Em Para a crítica, esse processo pelo qual a existência material do dinhei

ro é absorvida pela sua existência funcional é explicitado com mais detalhes.

Vimos, por ocasião da análise da estipulação de preços, que o ouro serve não

só como medida dos valores, mas também como padrão dos preços. O preço

é a forma com que as mercadorias se apresentam uma para outra no interior

do processo de circulação enquanto valores de troca, e elas fazem isso na

medida em que são inter-relacionadas como grandezas de mesm a denomina

ção medidas em ouro. Enquanto preços, elas são quantidades de ouro de um

determinado peso, cujo padrão se encontra dado nas medidas universais de

 peso dos metais. Ao ser fixado como unidade de peso, o ouro serve como

 padrão dos preços. Porém , visto que a determ inação mesma do pad rão de

medida é

[...] puramente convencional, mas [...] necessita de validade universal, ele é, por fim,

regulado por lei. Uma porção determinada de peso de um metal precioso, por exemplo,

1 onça de ouro, é oficialmente dividida em partes alíquotas, que a lei batiza com nomes

tais como libra, táler etc. Essa parte alíquota, que então passa a valer como a verdadeira

unidade de medida do dinheiro, é subdividida em outras partes alíquotas que a lei batiza

com outros nomes, como xelim , penny etc. (23/115 [ed. bras. O capital, vol. I, pp. 174-5])

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S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

Os preços passam, portanto, a ser expressos em denominações monetárias.

“Assim, as mercadorias declaram, em suas denominações monetárias, o quan

to elas valem, e o dinheiro serve como unidade de conta na medida em que vale

 para fixar um a coisa como valor e, com isso, expressá-la na forma-dinheiro”

(23/115 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 175]). Porém, assim como essa duplicação

ideal é apenas antecipação da duplicação real, assim como o processo da esti

 pulação de preços é apenas processo preparatório para a circulação real, essa

 primeira operação do governo, a saber, a determinação legal do padrão de

medida e estipulação das denominações, por meio da qual elas são simultanea

mente determinadas como específicas de uma nação, é apenas um processo

seguido imediatamente de um segundo: o ouro é transformado em moeda.

Em sua função de meio de circulação, o ouro adquire forma própria, converte-se em

moeda. Para que a sua rotação não se detenha por dificuldades técnicas, o ouro é cunha

do conforme o padrão de moeda de conta. As peças de ouro, cuja inscrição e efígie dizem

que contêm as partes de peso de ouro representadas pelas denominações contábeis da

moeda libra esterlina, xelim etc., são moedas. Do mesmo modo que a determinação do

 preço monetário, também a atividade técnica de cunhagem das moedas cabe ao Estado.

A exemplo do que ocorre com o dinheiro enquanto moeda de conta, também o dinheiro

enquanto moeda adquire um caráter local e político,  fala diferentes idiomas e veste

distintos uniformes nacionais. A esfera na qual o dinheiro circula como moeda é uma

esfera interior da circulação das mercadorias circunscrita pelas fronteiras de uma comu

nidade, e que se separa da circulação geral do mundo das mercadorias. (13/87 [ed. bras.

Contribuição à crítica da economia política, pp. 141-2 modif.] )

O ouro em barras e o ouro em forma de moedas se diferenciam, num primei

ro momento, apenas por sua figura exterior, justamente por pesarem a mesma

coisa. Contudo, quando o ouro é lançado na circulação e funciona como meio

de circulação, ele é tomado por um processo que Marx descreve como ideali

 zação. Em primeiro lugar, Marx menciona a substituição da massa pela velo

cidade, ou seja, apenas outra formulação para a conexão entre a soma de preços

a ser realizada e a massa de meios de circulação que se necessita para isso.

Quanto mais rapidamente uma peça de ouro circular, tanto menor se torna a

quantidade de dinheiro circulante requerido. “A rapidez da rotação do ouro

 pode, assim, suprir a sua quantidade, ou seja, a existência do dinheiro no pro

cesso de circulação não é somente determinada por sua existência como equi

valente ao lado da mercadoria, mas também por sua existência no movimento

da metamorfose das mercadorias" (13/85-6 [ed. bras. Contribuição à crítica da

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A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

economia política, pp. 138-9 modif.]). Assim sendo, a existência do ouro como

meio de circulação não é imediatamente idêntica à sua existência real como pe

ça de ouro de determinado peso; porém, da sua função como meio de circulação origina-se ainda uma existência ideal. “Pode-se falar dele como do general

que, graças à sua oportuna presença em dez pontos distintos em um dia de

 batalha, substitui dez generais, sem deixar de ser, em cada um desses dez pon

tos distintos, sempre o mesmo general” (13/88 [ed. bras. Contribuição à crítica 

da economia política,  p. 143 modif.]). Contudo, enquanto o processo recém-

-mencionado de idealização diz respeito tão somente à existência funcional da

moeda de ouro no interior do processo de circulação, queremos passar agora

 para um a form a de idealização que se apossa da própria peça de dinheiro individual, tratando-se aqui, por assim dizer, da exposição genética daquilo que

Marx, no Rascunho, descreve sucintamente como substituição do dinheiro real

 por dinheiro simbólico. “O atrito de todas as maneiras, pelas mãos, nas bolsas,

 bolsos, porta-níqueis, cinturões, caixas e arcas, desgasta a moeda, um átomo

de ouro aqui, outro ali, e por causa desse desgaste perde, em sua carreira pelo

mundo, cada vez mais do seu conteúdo. Porque a usamos, a moeda se desgas

ta” (13/88 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia política, p. 143]). Com

o tempo a moeda representa mais conteúdo metálico do que ela possui, mas,não obstante, vale em cada compra ou venda pela quantidade de ouro original.

A sua existência como moeda se dissocia da sua existência como ouro, a peça

de ouro, enquanto pseudo-ouro, continua a preencher a função da peça de ouro

legítima. “Enquanto outros seres perdem seu idealismo em seu atrito com o

mundo exterior, a moeda idealiza-se pela prática, sendo o seu corpo de prata

ou de ouro transformado em simples existência aparente” (13/89 [ed. bras.

Contribuição à crítica da economia política,  p. 144 modif.]). Assim, o ouro

cunhado em moeda se apresenta como algo contraditório em si mesmo, quetende, por assim dizer, para a sua própria abolição. Porque esse processo de

idealização, essa dissociação entre conteúdo nominal e conteúdo real, não

 poderia continuar interm inavelmente sem que a existência aparente do ouro

em sua função de meio de circulação entrasse em conflito com a sua existência

real. Pois, se o processo de emagrecimento das moedas chegasse a ponto

de provocar um aumento do preço de mercado do ouro acima do seu preço

monetário,

[...] as denominações monetárias das moedas, embora se conservassem as mesmas,

designariam dali por diante uma quantidade de ouro menor. Em outras palavras: o padrão

de moeda mudaria e o ouro, daqui em diante, seria cunhado de acordo com esse padrão.

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S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

Por sua idealização como meio de circulação, o ouro teria mudado, em consequência,

as relações legalmente estabelecidas nas quais figurava como padrão de preços. Ao re

 petir -se a mesma revolução ao cabo de certo tempo, o ouro em sua função de padrão de

 preços e como meio de circulação ficaria submetido a uma mudança contínua, de tal

modo que a mudança em uma das formas traria como consequência a da outra e vice

versa. (13/90 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia política , p. 145 modif.])

Como expõe Marx, é fácil mostrar que esse processo, acelerado pela práti

ca da desvalorização fraudulenta da moeda adotada por governos e aventurei

ros privados, de fato transcorreu nesses termos. No entanto, isso não faz parte

do desenvolvimento rigorosamente categorial, mas diz respeito às relações

empíricas. Em nosso contexto, é essencial que o ouro cunhado em moeda de

fato está submetido, na circulação, a esse processo de separação entre existên

cia aparente e existência real em virtude de sua constituição natural e que esse

 processo avança até a dissociação absoluta. Pois, na medida em que a moeda

de ouro desgastada na circulação vale como quantidade original de ouro, na

medida em que ela, enquanto pseudo-ouro, preenche a função da peça de ouro

legítima, ela própria já foi

[...] mais ou menos transformada em um simples sinal ou símbolo de sua substância.

Mas nenhuma coisa pode ser o seu próprio símbolo. Uvas pintadas não são símbolos de

uvas reais, mas de simulacros de uvas. E menos ainda pode ser um sovereign  [soberano]

de peso incompleto símbolo de um soberano de peso cabal, do mesmo modo que um

cavalo magro não pode ser o símbolo de um cavalo gordo. Já que o ouro se converte em

símbolo de si mesmo, mas não pode servir como tal, ele veste, nos setores da circulação

onde se gasta mais depressa, isto é, naqueles em que as compras e vendas se renovam

constantemente nas mínimas proporções, uma existência simbólica de prata ou de cobre,

separada de sua existência como ouro. (13/91 [ed. bras. Contribuição à crítica da eco

nomia política, pp. 146-7 modif.])

Aquela parte da massa total do dinheiro-ouro circulante que funciona como

meio de circulação no âmbito do desgaste rápido é substituída por fichas de

 prata ou de cobre, meios de circulação subsidiários que representam determi

nadas frações da moeda de ouro no interior da circulação. Como representan

tes do ouro em sua função de meio de circulação, o seu próprio conteúdo

metálico não é determinado pela sua relação de valor com o ouro, mas é fixado

arbitrariamente por lei. Desse modo, porém, o processo da separação ainda não

foi concluído. Como representantes de determinado peso metálico, eles próprios

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/1 E X P O S I Ç Ã O C A T E O O R I A L

ainda estão submetidos ao processo de idealização ao qual devem seu surgi

mento como meios de circulação subsidiários. A consequência seria que tam

 bém eles teriam de ser novamente substituídos por outro dinheiro simbólico,

como, por exemplo, ferro, e essa representação de dinheiro simbólico por ou

tro dinheiro simbólico continuaria interminavelmente.

Por isso, em todos os países em que a circulação é intensa, a própria rotação do di

nheiro exige que o caráter monetário das fichas de prata e de cobre se torne independen

te do grau de sua perda metálica. Vem à tona, desse modo, o que residia na natureza do

 processo, a saber, que elas são símbolos da moeda de ouro, não por serem símbolos

feitos de prata ou cobre, não por terem um valor, mas precisamente porque não o têm.

(13/93 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia política,  p. 149 modif.])

Esse processo de dissociação entre a existência monetária do ouro e a subs

tância do ouro só estará realmente concluído quando coisas relativamente sem

valor, como papel, passarem a funcionar como símbolos do dinheiro-ouro. Do

mesmo modo como a parte da massa de dinheiro-ouro que teve de circular

como moeda simbólica [Scheidemünze] pode ser substituída por fichas de pra

ta e cobre, a porção de ouro que é absorvida como moeda pela esfera da circu

lação interna pode ser substituída por marcos sem valor até o nível abaixo do

qual a massa das moedas circulantes por experiência não desce.

A diferença, insignificante em sua origem, entre o conteúdo nominal e o metálico

da moeda metálica pode, pois, evoluir até chegar a uma cisão absoluta. A denominação

monetária do dinheiro desprende-se da substância e existe fora daquela em bilhetes de

 papel sem valor. Da mesma maneira que o valor de troca das mercadorias se cristaliza

em moeda de ouro pelo processo de sua troca, a moeda de ouro sublima-se em sua ro

tação até chegar a ser o seu próprio símbolo, primeiramente na forma de moedas de ouro

desgastadas, depois na forma de moedas metálicas subsidiárias e, enfim, na forma de

fichas sem valor, de papel, de simples sinal cle valor. (13/93-4 [ed. bras. Contribuição à 

crítica da economia política, pp. 149-50 modif.])

 No final desse desenvolvimento, evidencia-se, portanto, o que desde sempre

 já estava implantado na questão: o papel substitui o ouro, mas substitui o ouro

somente na medida em que o ouro material é apenas símbolo de seu próprio

valor no processo de circulação. O ouro é a realidade do preço; porém, visto

que o metabolismo social é finalidade e só é mediado pela dupla mudança de

forma das mercadorias que aparece na forma da rotação do dinheiro, a reali

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S O B R E   A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

dade do preço, a forma-dinheiro da mercadoria, constitui apenas uma existên

cia evanescente. Embora o próprio ouro seja a realidade do preço, ele apenas

o representa na medida em que serve para que as mercadorias sejam trocadas

 por preços iguais. Como meio de circulação ele desde sempre já é símbolo desi próprio. Deve-se atentar para isso por ocasião do exame mais detido do

símbolo de valor e das regularidades econômicas vinculadas com a sua exis

tência. Assim como o ouro, enquanto meio de circulação, é apenas o símbolo

objetivamente existente de si próprio enquanto realidade do preço, assim a

existência monetária deste dissociada do ouro material, o papel que funciona

como moeda, é símbolo do ouro. Portanto, o papel que traz impressa a deno

minação monetária de modo algum é símbolo de valor no sentido de que re

 presenta imediatamente o valor da mercadoria, ainda que pareça  assim. Essa

aparência — falsa — deve-se à circunstância de que o valor de troca da mer

cadoria aparece apenas como pensado ou reificadamente representado, mas

não possui qualquer realidade autônoma independentemente das próprias mer

cadorias. Por essa razão, o papel só é símbolo do valor na medida em que as

mercadorias são pressupostas com um preço determinado, ou seja, o seu valor

de antemão já foi manifestado na forma do preço. O ouro, de qualquer modo,

 já cumpriu sua função como medida. Assim sendo, o símbolo de valor repre

senta, muito antes, perante as mercadorias, a realidade do seu preço.

O sinal de valor não é, diretamente, mais que sinal de preço, ou seja, sinal de ouro, 

e só indiretamente é sinal do valor das mercadorias. O ouro não vendeu a sua sombra,

como Peter Schlemihl*, mas compra com a sua sombra. Desse modo, o sinal de valor

tem ação efetiva enquanto representa, no interior do processo, o preço de uma merca

doria em relação à outra, ou seja, porque representa ouro  em relação a cada possuidor

de mercadorias. Um objeto determinado, relativamente sem valor, um pedaço de couro,

de papel etc., converte-se primeiro, por rotina, em sinal do material monetário, mas não

se sustém como tal senão porque sua existência simbólica está garantida pelo consenti

mento geral dos possuidores de mercadorias, isto é, porque adquire uma existência legal

 por convenção e, portanto, curso forçado. O papel-m oeda do Estado de curso forçado é

a forma acabada do sinal de valor  e a única forma de papel-moeda que procede imedia

tamente da circulação metálica ou da circulação simples das mercadorias. (13/95 [ed.

 bras. Contribuição à crítica da economia política,  p. 151 modif.])

* Cf. Adelbert von Chamisso, A história maravilhosa de Peter Schlem ihl. Trad. M arcus ViníciusMazzari. 2. ed. São Paulo, Estação Liberdade, 2003. (N. do T.)

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 A E X P O SIÇÃ O CA TEGORIAL

Se o símbolo de valor é derivado desse modo da estrutura do ouro cunhado

em moeda, as leis econômicas decorrem como que automaticamente. Assim

como da teoria do valor e da natureza da mudança de forma necessariamente

dupla da mercadoria enquanto mediação do metabolismo social decorre que a

quantidade do ouro circulante depende da soma de preços das mercadorias e

da velocidade de rotação do dinheiro, ou, formulado de outro modo: assim

como, dados os valores de troca das mercadorias e a velocidade média de suas

metamorfoses, a quantidade do ouro circulante depende do seu próprio valor,

assim também do desenvolvimento do símbolo de valor enquanto símbolo do

 preço ou sím bolo-ouro, ou seja, do fato de o papel impresso representar o ouro

no interior do processo de circulação na medida em que ele igualmente só fun

ciona como sím bolo de si mesmo, resulta que o valor do dinheiro-papel circu

lante depende exclusivamente de sua própria quantidade.

8. A terceira determinação do dinheiro

O desenvolvimento da terceira determinação do dinheiro nos leva a um

 ponto de transição decisivo na exposição das categorias . Espec ia lm ente no

 Rascunho, Marx aponta explicitamente para isso e confere, na exposição ca-

tegorial, um relevo consideravelmente maior do que em O capital  ao fato de

que essa terceira determinação do dinheiro  — a unidade das duas anterior

mente explicitadas — deve ser compreendida como urna forma em que “já está

contida de maneira latente sua determinação como capital”  (42/145 [ed. bras.

Grundrisse, p. 162]). Na exposição rigorosa das categorias, essa determinação

caracteriza, por isso, o ponto de transição entre a esfera da circulação simples

e o “processo que está por trás déla [...] do capital industrial” [U/68], E o pon

to de transição para a decifração sistemática de seu ser imediato como aparên

cia. Ao mesmo tempo, esse ponto de transição também se apresenta como

 ponto de mutação decisivo no desenvolvimento histórico. As duas primeiras

determinações do dinheiro designam diferentes fases do desenvolvimento da

troca de mercadorias entre sistemas comunitários natural-espontáneos — “o

dinheiro aparecendo como medida (por isso, por exemplo, os bois em Homero)

mais cedo do que como meio de troca” (42/105 [ed. bras. Grundrisse, p. 120]),

consta no Rascunho', essa afirmação se aplica também para a terceira determi

nação; correspondendo ao valor dessa determinação dentro do sistema das

categorias, ela sinaliza, no palco histórico, a incipiente decadência desse sis

tema comunitário natural-espontáneo.

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S O B R E   A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

Entre os romanos, gregos etc., o dinheiro se manifesta, de início, de modo ingênuo

em suas duas primeiras determinações, medida e meio de circulação, mas pouco desen

volvido em ambas [...] de maneira repentina, em uma certa etapa de seu desenvolvimen

to econômico, o dinheiro manifesta-se necessariamente em sua terceira determinação,e quanto mais se desenvolve naquela determinação, maior o declínio de sua comunida

de. (42/150 [ed. bras. Grundrisse,  p. 166])

O que significa a terceira determinação do dinheiro enquanto unidade

das duas primeiras determinações? Marx cita Sismondi com aprovação, que

repetidamente chega perto das concepções marxianas mediante formulações

de cunho especulativo: “O comércio separou a sombra do corpo e introduziu

a possibilidade de possuí-los separadamente” (42/146 [ed. bras. Grundrisse,  p. 163]). O valor de troca adquire existência autônoma ao lado da circulação

da mercadoria, mas essa autonomia é apenas, como diz Marx, o seu próprio

 processo. Se não houvesse relação com a circulação, o valor de troca autono

mizado não seria dinheiro na terceira determinação, mas simples objeto da

natureza; ouro e prata. “A sua própria autonomia não é a supressão de sua re

lação com a circulação, mas relação negativa com ela” (42/146 [ed. bras. Grun

drisse,  p. 162]). Por essa razão, deve-se atentar também no exame histórico

 para o fato de que as duas primeiras determinações estão plenam ente desenvolvidas. Marx dá a entender que o dinheiro pode muito bem aparecer histor i

camente também em sua terceira determinação antes de existir nas duas ante

riores, do mesmo modo que, em sua segunda determinação, ele pode entrar

historicamente em cena antes da primeira. Porém, assim como no último caso

ele existiria somente como “mercadoria privilegiada” , sem o desenvolvimento

das duas primeiras determinações ele justamente não seria a existência autô

noma do valor de troca, mas “acumulação de ouro e prata, não de dinheiro”

(42/145 [ed. bras. Grundrisse,  p. 162]). Porém, o fato  de ouro e prata em sua

forma natural imediata poderem ser confundidos com dinheiro enquanto di

nheiro não só indica a problemática peculiar associada a essa terceira determi

nação, mas constitui ao mesmo tempo o motor do desenvolvimento subsequen

te que se efetua — enquanto processo de constituição similar ao natural do

sujeito burguês moderno — através das mentes e pelas costas das pessoas:

 No entanto, é inerente à determinação aqui desenvolvida que a ilusão sobre a sua

natureza, i.e., a fixação de uma de suas determinações em sua abstração e com a cegueira

diante das contradições nela própria contidas, confere-lhe esse significado efetivamente

mágico à revelia dos indivíduos. Na verdade, em virtude dessa determinação em si

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 A E X P O S IÇ Ã O CA TE GOR IA L

mesma contraditória e, por isso, ilusória, o dinheiro devém um instrumento tão extraor

dinário no desenvolvimento efetivo das forças produtivas sociais. (42/152 [ed. bras.

Grundrisse,  p. 168])

Passemos a analisar ambas as coisas, a terceira determinação do dinheiro

e o desenvolvimento subsequente que decorre da natureza peculiar do valor de

troca autonomizado.

A primeira função é cumprida pelo ouro, como sabemos, apenas como ouro

representado ou ideal. Ele serve meramente para fornecer às mercadorias o

material da sua expressão de valor, para representá-las umas diante das outras

como qualitativamente iguais e só quantitativamente diferentes. Esse processo

implica uma distorção cujo embrião Marx descreve em O capital como segunda peculiaridade da forma equivalente: a distorção do concreto-sensível em

forma de manifestação do universal-abstrato: “No interior da relação de valor

e da expressão de valor nela contida, o abstratamente universal não é tido como

qualidade do concreto, real-sensível, mas inversamente o concreto-sensível é

tido como simples forma de manifestação e forma de realização do universal-

-abstrato” (II.5/634). Essa distorção, que ele decifra como origem de toda dis

torção já nos  Manuscritos económico-filosóficos,  está contida de modo mais

concreto na forma-preço: “Mas, de fato, na determinação dos preços já existeaquilo que é posto na troca por dinheiro: que não é mais o dinheiro que repre

senta a mercadoria, mas a mercadoria, o dinheiro” (42/129 [ed. bras. Grundrisse, 

 p. 146]). Cada mercadoria específica é, por isso, enquanto mercadoria especí

fica, na medida em que tem um preço, apenas a representação incompleta do

dinheiro; “expressa ela mesma tão somente um determinado quantum de di

nheiro em uma forma incompleta” (42/147 [ed. bras. Grundrisse,  p. 164]), in

completa porque ela tem de ser primeiro lançada na circulação para ser rea

lizada, e precisamente por causa de sua peculiaridade permanece casual se ela poderá ser realizada ou não. Pois justam en te na sua forma natural específica

ela não é imediatamente a form a universal da riqueza. Porém, mediante a sua

forma-preço ela aponta, ao mesmo tempo, para a forma completa da quantidade

determinada que ela, enquanto mercadoria que tem um preço, representa só de

forma incompleta: para o preço realizado. Quando se analisa a mudança global

de forma da mercadoria, essa realização do preço só existe como realização

evanescente, a mercadoria só assume a forma-dinheiro para logo em seguida

voltar a despir-se dela. Mas se nos detivermos na forma do preço realizado, seanalisarmos mais detidamente o resultado da primeira metamorfose, evidencia-

-se o seguinte: visto que todas as mercadorias, na medida em que têm um

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S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G IC A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

 preço, são apenas ouro representado, apenas representantes do ouro (do ouro

que, dentro da esfera de circulação, é a encarnação imediata do universal-abs-

trato), e, por essa razão, “não fazem mais que representar a existência indepen

dente do valor de troca, do trabalho social geral, da riqueza abstrata, o ouro éa existência material da riqueza abstrata”  (13/102 [ed. bras. Contribuição à 

crítica da economia po lítica , p. 160 modif .]). Enquanto preço realizado, a mer

cadoria é a forma universal da riqueza em sua existência imediata.

Se, em contraposição, analisarmos a mercadoria individual do ponto de

vista da riqueza material (não como mercadoria que tem um preço, pois isso

é a primeira determinação, mas como valor de uso, que só se torna propria

mente valor de uso mediante a mudança de forma da mercadoria, ou seja,

tendo em vista a segunda determinação), ela constitui, por sua relação comuma necessidade específica, apenas um momento da riqueza social, apenas um

aspecto isolado da riqueza. Como dinheiro, em contraposição, a mercadoria

satisfaz a qualquer necessidade,

[...] uma vez que pode ser trocado pelo objeto de qualquer necessidade, pode ser troca

do de modo totalmente indiferente por qualquer particularidade. A mercadoria possui

essa propriedade unicamente mediada pelo dinheiro. O dinheiro a possui diretamente

frente a todas as mercadorias e, por isso, frente ao inteiro mundo da riqueza, é riqueza

enquanto tal. (42/147 [ed. bras. Grundrisse,  p. 164])

O ouro representa em seu valor de uso os valores de uso de todas as mer

cadorias; ele é “o representante corporal da riqueza material  [...] o compên

dio da riqueza social” (13/103 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia 

 política ,  p. 161]).

Se reunirmos os dois aspectos, o ouro se apresenta em sua corporalidade

imediata como identidade de forma e conteúdo da riqueza social, sendo por

sua forma a encarnação imediata do trabalho universal e, por seu conteúdo, o

suprassumo de todos os trabalhos reais: “No dinheiro, a riqueza universal é

não apenas uma forma, mas simultaneamente o próprio conteúdo. O conceito

de riqueza está, por assim dizer, realizado, individualizado,   em um objeto

 par ticular” (42/147 [ed. bras. Grundrisse,  p. 164]).

 Nesse contexto, é preciso lembrar o modo admirável com que o jovem Marx

não só antecipou o essencial dessa terceira determinação, mas igualmente mos

trou como esta se desenvolve necessariamente a partir da distorção primária e

como então o desenvolvimento subsequente resulta da estrutura dessa terceira

determinação. Quando ele fala do dinheiro como conceito existente e atuante

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 A E X P O S IÇ Ã O CA T E GOR IA L

do valor de todas as coisas, ele tem em mente a riqueza universal que existe

como objeto individual e palpável, que, nessa figura, deve ser derivado da es

trutura da própria mercadoria. Ele diz a mesm a coisa, só que em outras palavras.

Por que a propriedade privada tem de avançar para o sistema do dinheirol Porque o

ser humano, enquanto ser sociável, tem de avançar para a troca e porque a troca — sob

o pressuposto da propriedade privada — tem de avançar para o valor. Pois o movimen

to mediador do ser humano trocador não é um m ovimento social, não é um movimento

humano, não é uma relação humana, ele é a relação abstrata entre propriedade privada

e propriedade privada, e essa relação abstrata é o valor, cuja existência real enquanto

valor é primeiramente o dinheiro. Pelo fato de os seres humano trocadores não se com

 portarem uns com os outros como seres humanos, a coisa  perde o sentido da p ropriedade humana, da propriedade pessoal, A relação social entre propriedade privada e pro

 priedade privada já é uma re lação em que a proprie dade privada fo i es tranhada de si

mesma. A existência existente para si dessa relação, o dinheiro, é, por conseguinte, a

exteriorização da propriedade privada, a abstração de sua natureza pessoal, específica. 

(40/446-7 [excertos de James Mili])

Essa linha de pensamento resume a estrutura básica da argumentação mar-

xiana: a duplicação repousa sobre o fundamento mundano autocontraditório;só porque o conflito do ser humano com a natureza acontece de forma distor

cida; só porque a vida humana genérica se torna no meio da vida individual, a

comunidade humana pode e deve aparecer na forma do estranhamento. Con

tudo, essencial nesse contexto é a análise do dinheiro na terceira determinação

e o desenvolvimento subsequente que daí se deriva. Pois Marx não só expõe

que a “existência metálica do dinheiro é apenas a expressão sensível oficial

da alma do dinheiro, engastada em todos os elos das produções e dos movi

mentos da sociedade burguesa” (40/447 [excertos de James Mili]), mas tenta,ao mesmo tempo, na reprodução — todavia apenas indicada — da transição

da primeira e da segunda determinações para a terceira, desenvolver a viravol-

ta decisiva na estrutura de representação associada a essa transição:

E muito bom e define bem a essência da coisa quando Mill caracteriza o dinheiro 

como o mediador  da troca. A essência do dinheiro não é primeiramente o fato de nele

ser alienada a propriedade, mas de nele ser estranhada  a atividade mediadora  ou

o movimento mediador, o ato social, humano, pelo qual se complementam reciprocamente os produtos do ser humano, e tornar-se a qualidade de uma coisa material fora

do ser humano, a saber, do dinheiro. Ao alienar essa atividade mediadora mesma, o ser 

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SO B R E    /1 E STR U TU R A LÓ G I C A D O C O N C E I TO D E C A P I TA L E M K A RL MA R X  

humano atua aqui apenas como ser humano que perdeu a si próprio, como ser humano

desumanizado; a relação até mesmo das coisas, a operação humana com elas, torna-se

a operação de uma entidade fora do ser humano e acima do ser humano. Por meio des

se mediador estranho  — em vez de o próprio ser humano ser o med iador para o serhumano — , o ser humano encara a sua vontade, a sua atividade, a sua relação com outros

como um poder independente de si próprio e dos demais. A sua escravidão atinge o auge.

Está claro que esse mediador   passa a ser o Deus real,  pois o mediador é o poder real 

sobre aquilo com que ele me intermedeia. O seu culto se transforma em fim em si. Se

 parados desse mediador, os objetos perderam o seu valor. Portanto, eles só têm valor na

medida em que o representam, ao passo que originalmente parecia que ele só tinha

valor na medida em que ele os representasse. Essa inversão da relação original é neces

sária. Por conseguinte, esse mediador é a essência estranhada, que perdeu a si própria,da propriedade privada, a propriedade privada alienada, que se tornou alheia a si pró

 pria, assim como constitui a mediação alienada da produção humana pela produção

humana, a atividade genérica alienada do ser humano. Todas as qualidades que compe

tem ao gênero na produção dessa atividade são transferidas, por conseguinte, para esse

mediador. Portanto, o ser humano vai empobrecendo como ser humano, isto é, como ser

separado desse mediador, na mesma proporção em que esse mediador se torna mais rico. 

(40/445-6 [excertos de James Mill])

O puro metal enquanto “conceito existente do valor” de todas as coisas,

enquanto abstração existente, enquanto algo similar a um conceito que não se

deixa reduzir à conceitualidade do sujeito pensante converteu-se como que

num idealismo real. Nessa terceira determinação, o dinheiro é a “confusão e a

troca universal de todas as coisas, portanto o mundo distorcido, a confusão e

a troca de todas as qualidades naturais e humanas” (40/566 [ed. bras.  Manus

critos económico-filosóficos, p. 160 modif.]). Nos Manuscritos econômico-filo- 

sóficos,  Marx descreve pormenorizadamente como se comporta esse “valorexistente e atuante de todas as coisas”: como “divindade visível” , como “força

divina”.

O que existe para mim pelo dinheiro, o que eu posso pagar, isto é, o que o dinheiro

 pode comprar, isso sou eu, o próprio possuidor do dinheiro. Tão grande quanto a força

do dinheiro é a minha força. As qualidades do dinheiro são as minhas — as de seu pos

suidor — qualidades e forças essenciais. O que eu sou e consigo não é determinado de

modo algum, portanto, pela minha individualidade. Sou feio, mas posso comprar paramim a mais bela mulher. Portanto, não sou feio, pois o efeito da fealdade, sua força

repelente, é anulado pelo dinheiro. [...]. Eu, que por intermédio do dinheiro consigo tudo 

o que o coração humano deseja, não possuo, eu, todas as capacidades humanas? Meu

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 A E X P OS IÇÃ O CA TE GORI AL

dinheiro não transforma, portanto, todas as minhas incapacidades no seu contrário?

(40/564 [ed. bras. Manuscritos económico-filosóficos, p. 159 modif.])

Assim que o dinheiro aparece na terceira determinação, ele aparece como

abstração detentora de poder, como objetivação reificada de todas as forças

humanas genéricas que — pelo fato de, no metabolismo do ser humano

com a natureza, a vida humana genérica ser meram ente meio da vida indivi

dual — igualmente têm de aparecer de uma forma distorcida, estranhada dos

seres humanos. Na mão do indivíduo, a capacidade genérica condensada num

objeto desprovido de individualidade se converte no poder do possuidor, o

 poder concentrado da sociedade aparece num a forma adiáfana para os próprios

seres humanos como poder aparentem ente transcendental do dinheiro.

 Na análise da conexão entre trabalho estranhado e propriedade privada nos

escritos iniciais de Marx, vimos que ele ainda tateia em grande medida no

escuro, na tentativa de derivar a cisão de classes da terceira determinação do

dinheiro. Não obstante, depreende-se dos textos iniciais que essa transição não

se completa da maneira como é obrigada a formulá-la a teoria que argumenta

no horizonte burguês, mas como movimento necessário que brota da logicida-

de imanente da coisa: assim que a riqueza universal existe como objeto, a ri

queza nessa forma se torna fim imediato da produção, a produção se torna

autônoma perante o consumo: “A produção se tornou fo nte de renda, trabalho

rentável. Portanto, ao passo que na primeira relação a necessidade constitui a

medida da produção, na segunda relação a produção ou, melhor, a posse do 

 produto   constitui a medida com que as necessidades podem ser satisfeitas”

(40/459 [excertos de James Mill]).

 No  Rascunho, encontramos — como que mixada no desenvolvimento ca-

tegorial — uma argumentação correspondente. Também ali, depois de ter ex

 plicitado o dinheiro na forma do preço realizado em si mesmo, a riqueza uni

versal como existente, Marx aborda a distorção associada a essa transição para

a terceira determinação enquanto unidade das duas primeiras determinações:

“De sua figura de servo, na qual se manifesta como simples meio de circulação,

converte-se repentinamente em senhor e deus no mundo das mercadorias. Re

 presen ta a existência celeste das mercadorias, enquanto as mercadorias repre

sentam sua existência mundana” (42/148 [ed. bras. Grundrisse, p. 165]). Aqui

também ainda estão explícitas a conexão entre crítica da religião e teoria do

dinheiro, a estrutura da duplicação e a distorção, a ela associada, de um originado em um primeiro; não obstante, na descrição da tipologia do sujeito burguês

 pra ticamente não há mais remin iscências da te rm inologia in ic ia l, tomada

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S OB R E A E S T R UT UR A L ÓGI CA DO CON CE I T O DE CA P I T A L E M KA R L MA R X  

de empréstimo da obra de Feuerbach. O conjunto de fatos a serem apreendidos,

no entanto, é o mesmo: o processo de constituição do indivíduo contingente,

através do qual o indivíduo pessoal não só se torna visível como pessoal, mas

também pela primeira vez consegue se desenvolver como tal. Assim que odinheiro aparece na terceira determinação, começa esse distanciamento entre

indivíduo pessoal e indivíduo contingente, como se diz em /1 ideologia alemã, 

ou seja, o processo que só chegará ao seu término no capitalismo industrial —

na separação completa entre o produtor e seus meios de produção e em sua

 personificação na figura do capita lis ta — e só então descortina a visão para a

logicidade imanente de sua estrutura. Pois existindo a riqueza universal como

objeto sensível, como ouro e prata, não há só a relação essencial entre existên

cia subjetiva e sua continuação objetiva, na qual os seres humanos processame modificam a natureza e, no ato da modificação, modificam a si mesmos, pela

qual aparece a forma específica de processamento da natureza e aparecem os

 próprios objetos processados como indivíduos específicos, mas há também

uma forma de relação radicalmente diferente dessa, a saber, a relação entre o

indivíduo e algo pura e simplesmente desprovido de individualidade, algo uni-

versal-abstrato, que imprime a essa relação de antemão o caráter do contingen

te. A posse do desprovido de individualidade faz com que o próprio possuidor

apareça como indivíduo contingente, personificação desprovida de individualidade do poder estranhado da sociedade.

O dinheiro, como objeto tangível singularizado, pode ser acidentalmente buscado,

achado, roubado, descoberto, e a riqueza universal pode ser tangivelmente incorporada

às posses de um indivíduo singular. [...]. Logo, sua relação ao indivíduo manifesta-se

como puramente contingente; ao passo que, ao mesmo tempo, essa relação a uma coisa

sem absolutamente nenhuma relação com sua individualidade lhe confere, pelo caráter

dessa coisa, o poder universal sobre a sociedade, sobre o inteiro mundo dos prazeres,dos trabalhos etc. Seria, p. ex., como se o achar de uma pedra me proporcionasse, indepen

dentemente de minha individualidade, a possessão de todas as ciências. A possessão do

dinheiro me coloca em relação com a riqueza (social) exatamente na m esma relação que

a pedra filosofal me colocaria com as ciências. (42/148-9 [ed. bras. Grundrisse,  p. 165])

Quando o dinheiro aparece na terceira determinação, essa relação com o

objeto desprovido de individualidade obtém a supremacia sobre a relação na

tural, de qualquer modo cambiante, entre sujeito e objeto no interior da totalidade da natureza, que é rebaixada ao nível de mero meio para satisfação de

necessidades verdadeiramente abstratas. C om a individualização da riqueza

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A E X P O S I Ç Ã O C A T E G O R I A L

universal surgem a m ania de enriquec im ento, a avidez por dinheiro e a avareza,

que, pelas costas dos individuos, evidenc iam-se com o o motor do desenvolvi

mento subsequente .

O possuidor do dinheiro, no sentido antigo, é dissolvido pelo processo industrial ao

qual serve a despeito de seu saber e querer. A dissolução afeta apenas sua pessoa. Como

representante material da riqueza universal, como o valor de troca individualizado, o

dinheiro deve ser mediatamente objeto, fim e produto do trabalho universal, do trabalho

de todos os singulares. O trabalho tem de produzir imediatamente o valor de troca, i.e., 

dinheiro. Por essa razão, tem de ser trabalho assalariado. A mania de enriquecimento,

como pulsão de todos, porquanto cada um quer produzir dinheiro, cria a riqueza univer

sal. Só desse modo a mania de enriquecimento universal pode devir a fonte da riquezauniversal que se reproduz de maneira contínua. Quando o trabalho é trabalho assalaria

do, e sua finalidade é imediatamente dinheiro, a riqueza universal é  posta como sua fi

nalidade e seu objeto. [...]. O dinheiro como finalidade devém aqui meio da laboriosi-

dade universal. A riqueza universal é produzida para se apoderar de seu representante.

Assim são abertas as fontes efetivas da riqueza. Como a finalidade do trabalho não é um

 produto particular que está em uma re lação particular com as necessidades particulares

do indivíduo, mas dinheiro, a riqueza em sua forma universal, então, em primeiro lugar,

a laboriosidade do indivíduo não tem nenhum limite; é indiferente em relação à sua particularidade e assume qualquer forma que serve à finalidade; é engenhosa no criar

novos objetos para a necessidade social etc. (42/150-1 [ed. bras. Grundrisse, p. 167])

Como   se dá essa transição, como   se deriva o trabalho assalariado da ter

ceira determinação do dinheiro será mostrado pela análise da forma de expo

sição das categorias.

A nteriorme nte descrevemo s a terceira determ inação do dinheiro com o que

abstratamente, dissociada da análise do processo de circulação. No entanto,não é dessa maneira que e la deve ser in troduzida . Devemos desenvolvê- la ,

muito antes, como momento funcional da circulação de mercadorias. A partir

da anál ise da mud ança de forma sabemos que com pra e venda são um proces

so, cuja unidade existe e simultaneamente não existe. Essa forma da unidade

 p rocessual se refle te na unidade p rocessual da segunda e da te rce ira determ i

nações do dinheiro . “A autonomização do ouro sob a forma de dinheiro é ,

 portanto , sobretudo a expressão sensív el da cis ão do p rocesso de circulação ou

da metamorfose em dois atos separados, que existem indiferentemente lado a

lado” (13/104-5 [ed. bras. Co ntribuição à crít ica da econ om ia polít ica,   p. 162

modif.]) . A partir de sua figura como realização constantemente evanescente

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S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T AL E M K A R L M A R X  

do preço, ou seja, como moeda, ele se condensa em dinheiro como dinheiro.

Assim que o curso da moeda é interrompido, ela se converte em dinheiro, sen

do que, no caso dessa transformação do meio de circulação em dinheiro, trata-se

meramente de um momento técnico da rotação do dinheiro. São precisamenteas dificuldades para cuja superação, segundo a opinião dos economistas bur

gueses, o dinheiro foi introduzido como “expediente habilmente idealizado”

que condicionam essa unidade processual da segunda e da terceira determina

ções do dinheiro: cada qual é vendedor da mercadoria unilateral que ele produz,

mas comprador de todas as outras mercadorias de que ele necessita para man

ter a sua existência. A sua atuação como vendedor depende do tempo de pro

dução, mas a sua atuação como comprador depende da renovação constante de

suas necessidades vitais. Portanto, a crisálida de ouro da sua própria mercado

ria é despendida como que a prestações e volta a ser transformada em valores

de uso. O dinheiro nessa função é moeda suspensa.

Para que o dinheiro flua constantemente sob a forma de moeda, é preciso que a

moeda se coagule constantemente em dinheiro. A rotação contínua da moeda está con

dicionada por sua contínua acumulação em porções maiores ou menores, nos fundos

de reserva que de todas as partes tanto provêm da circulação como a condicionam; fun

dos de reserva de moeda cuja constituição, distribuição, dissolução e reconstituição

variam constantemente, cuja existência desaparece sempre e cuja desaparição subsiste

(13/104-5 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia política, p. 162 modif.])

 Neste ponto, devemos deter-nos e apontar um problem a relacionado com a

técnica expositiva. O entesouramento, do qual Marx trata após a explicitação

da moeda suspensa, assume uma posição singular dentro da exposição global.

Por um lado, a sua posição é claramente fixada por sua própria forma, devendo

ocorrer após o desenvolvimento da forma da moeda suspensa e antes da expo

sição do valor de troca autonomizado como meio de pagamento e dinheiro

mundial, como veremos mais adiante. Nesses termos, ele constitui um momen

to na exposição da terceira determinação do dinheiro, que, enquanto valor de

troca autonomizado, já é capital de modo latente. A forma mais adequada

desse valor de troca autonomizado, que ainda é condicionada pela forma an

teriormente exposta, é o dinheiro mundial, que constitui a finalização dessa

série de desenvolvimentos. Não há desenvolvimento ulterior da determinidadeformal econômica no interior da exposição do valor de troca autonomizado

(antes da passagem para o capital). Ao mesmo tempo, contudo, o entesoura

mento é o ponto de partida de outra linha de pensamento, na medida em que o

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 A EXPOSIÇÃO CATEGORI AL

capital não é só valor de troca autonomizado que se mantém como autonomi

zado. Essa linha de pensamento está contida quase exclusivamente no  Rascu

nho, e a ele queremos dedicar nossa atenção antes de prosseguirmos com a

exposição da terceira determinação.Aquela passagem epistolar sobre o método, já citada anteriormente, pode

ser esclarecida nesse contexto, assim como ela, por sua vez, facilita o acesso

à formulação. No dia 14 de janeiro de 1858, portanto na época da redação do

 Rascunho,   Marx escreve a Engels: “Aliás, encontro belas explicitações. Por

exemplo, joguei no lixo a teoria inteira do lucro como estava até agora. No

método de processamento, prestou-me um grande serviço o fato de eu by mere 

accident   [acidentalmente] [...] ter folheado novamente a  Lóg ica  de Hegel”

(29/260). Embora não saibamos como se parecia “a teoria inteira do lucro como

estava até agora” e que Marx “jogou no lixo”, não nos parece ser casual que,

 justam ente nessa oportunidade, Marx tenha se lembrado de sua leitura de He

gel. Não há dúvida de que Marx só se conscientizou da importância da lógica

hegeliana para a sua formulação global ao ocupar-se com essa problemática.

O Rascunho redigido com uma rapidez fora do comum ainda deixa transpare

cer isso. É verdade que cada categoria é introduzida numa forma que não mais

consegue negar o seu modelo, mas especialmente nessa transição se torna

evidente o quanto se condicionam reciprocamente a forma de exposição do “ir

além de si imanente” e o transcender do horizonte burguês. Mencionamos

anteriormente que a terceira determinação do dinheiro deve ser compreendida

como uma forma, na qual “já está contida de maneira latente sua determina

ção como capital” [ed. bras. Grundrisse, p. 162]. Na página 182 do Rascunho, 

encontra-se outra indicação: “Tudo o que é dito aqui do dinheiro vale ainda

mais para o capital, em que o dinheiro realm ente se desenvolve pela primeira

vez em sua determinação consumada” (42/197 [ed. bras. Grundrisse, p. 211]).Enquanto a primeira observação se refere preponderantemente à forma da au

tonomização, da qual decorrem, como estágio imediatamente superior, a forma

do valor em processo, seu ingresso na circulação como momento de seu estar-

-consigo-mesmo, a outra observação se refere a um conjunto de fatos que a

economia burguesa nunca foi capaz de explicitar de modo exato, mas que, caso

se queira expô-lo corretamente, deve ser derivado da terceira determ inação do

dinheiro. Assim, Marx aponta para o fato de que economistas perspicazes,

como, por exemplo, Sismondi, que fala do capital “como uma qualidade metafísica, insubstancial, que ficou sempre de posse do mesmo lavrador [ ...] para

o qual se revestiu de diferentes formas” (42/185 [ed. bras. Grundrisse, p. 202]),

 percebem perfeitam ente o movimento específico de circulação do capital, mas

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S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

que para “os senhores economistas é terrivelmente difícil avançar teorica

mente da autoconservação do valor no capital à sua multiplicação: isto é, à sua

multiplicação em sua determinação fundamental, não só como acidente ou

como resultado” (42/196 [ed. bras. Grundrisse, p. 210]). O aumento do capital

tem de ser explicitado como momento essencial do conceito de capital, não

 podendo aparecer como momento casual, nem — o que é central para a forma

da introdução — ser obtido ardilosamente mediante tautologías dissimuladas.

Porque definir capital como aquilo “que traz lucro” é caracterizado por Marx

diretamente como “forma brutal” de introdução, visto que “o próprio aumento

do capital já está posto no lucro como fo rm a econômica part icular ” (42/196

[ed. bras. Grundrisse, p. 211]). Essa outra explicação não lhe parece ser muito

melhor: “A verborragia de que ninguém aplicaria seu capital sem disso extrair

algum ganho reduz-se seja à tolice de que os bravos capitalistas permaneceriam

capitalistas mesmo sem aplicar seu capital; seja [à ideia de] que, dito de forma

muito comezinha, a aplicação com ganho é inerente à definição de capital”

(42/196 [ed. bras. Grundrisse, p. 211]). Ironicamente Marx ainda acrescenta:

“Bem. Então isso teria de ser demonstrado”.

Justamente nessa problem ática se evidencia de modo incisivo o quanto faz

 parte da essência do sujeito burguês só poder analisar o seu próprio mundo e, portanto, a si própr io sob a fo rma do objeto. Com preender o seu própr io mun

do só sob a forma do objeto significa ser obrigado a assumir as categorias a

 partir da empiria, sem poder apresentá-las em seu nexo interno. Porém, assim

que a palavra “capital” é usada, já está incluída nela a ideia do movimento da

multiplicação, o sujeito burguês de qualquer modo já se visualiza como sujei

to constituído. As categorias mostram-se também nesse ponto, uma vez mais,

incapazes de apreender o movimento que constitui o sujeito burguês, já que

elas próprias são mera expressão desse movimento. Querer captar o começoda gênese do sujeito burguês com o auxílio dessas categorias só pode ser com

 parado com a tentativa do barão de Münchhausen de puxar-se para fora do

 pântano pelos seus próprios cabelos.

Esse movimento de multiplicação, sem o qual os outros movimentos per

cebidos por economistas como Sismondi seriam sem sentido e mesmo impen

sáveis, deve ser primeiro explicitado. Porém, como se deve proceder para que,

na explicação, não esteja pressuposto desde o início aquilo que deve ser ex

 plicado? Por isso , tratemos de examinar mais de perto a riqueza universalque — enquanto identidade de forma e conteúdo — ganhou existência autô

noma, assumindo uma forma na qual toda mediação foi como que abolida, a

determinidade formal de cunho econômico parece ter desaparecido, mas de

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A  EXPOSI ÇÃO CATEGORIAL

fato coincide, muito antes, de modo imediato com o ser metálico da riqueza

universal. Isso ainda não ocorre totalmente na primeira transformação do meio

de circulação em dinheiro. Nessa forma, que é compreendida por Marx como

um mom ento técnico da rotação do dinheiro, já que a imobilização é condição

da mobilidade, ele é, por assim dizer, um híbrido: ele próprio enquanto sua

 própria negação como meio de circulação, que, porém, não sendo meio de

circulação, ainda não assumiu a sua forma adequada. Ele ainda existe em

seu uniforme nacional, pois a atividade de cunhagem de moedas é da alçada

do Estado, assim como a fixação do padrão de preços. Em contraposição, quan

do volta a ser fundido, quando volta a ser transformado em barras de ouro, ele

é metal e, em seu ser metálico imediato, é determinidade formal de cunho

econômico.

As mercadorias podem ser conservadas tanto sob a forma de ouro e de prata, isto é,

na matéria do dinheiro, quanto também o ouro e a prata são riquezas sob forma preser

vada. Todo valor de uso, como tal, serve na medida em que é consum ido, isto é, destruí

do. Todavia, o valor de uso do ouro na forma de dinheiro é ser suporte do valor de troca,

é ser, como matéria-prima amorfa, a materialidade do tempo de trabalho geral. No

metal amorfo, o valor de troca possui uma forma imperecível. O ouro e a prata, imobi

lizados assim sob a forma de dinheiro, constituem o tesouro.  (13/105 [ed. bras. Contri

buição à crítica da economia política,  pp. 163-4 modif.])3

 Num patam ar mais elevado (e como este deve ser compreendido será mos

trado por ocasião da explicitação do tesouro enquanto elo necessário entre

as determinações “reserva monetária” e “meio de pagamento”), repete-se a

unidade processual de mobilidade e imobilidade, visto que ouro e prata só se

fixam como dinheiro na medida em que não são meio de circulação. “Conver

tem-se em dinheiro como não meio de circulação.  Assim, portanto, o único

meio de manter a mercadoria na esfera da circulação é retirá-la desta na

forma de ouro” (13/105 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia política, 

 pp. 164-5 modif.]).

Assim que a existência metálica imediata coincide com a determinidade

formal de cunho econômico, ela é unidade de primeira e segunda determinações

que, como tais, são suprassumidas e simultaneamente negadas nessa unidade.

Enquanto preço realizado em si mesmo, o dinheiro é a negação de si mesmo

na determinação como medida dos valores. Por ser, ele próprio, em sua existên

cia metálica, a realidade adequada do valor de troca, ele deixa de ser a medida

de outra coisa, de valores de troca. Enquanto preço realizado em si mesmo, ele

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S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

também é a negação de si mesmo na determinação como realização dos preços,

na qual a sua função consiste apenas no constante desaparecimento do preço

realizado, apenas em seu ser como representante materialmente existente do

 preço perante todas as mercadorias, já que se pretende trocar as mercadorias

somente pelos seus preços. Com outras palavras: enquanto o ouro servir para

representar os valores das mercadorias enquanto grandezas de mesma deno

minação, qualitativamente iguais e quantitativamente comparáveis, ele funcio

na como unidade representada, “sua presença efetiva é supérflua e mais ainda,

 por consequência, a quantidade [...]; como indicador (indicador do valor), é

indiferente a sua quantidade, quantidade em que existe em um país; necessário

somente como unidade de conta” (42/137 [ed. bras. Grundrisse,  p. 154]). Con

tudo, assim que o ouro passa a existir como “deus em meio às mercadorias”,

assim que as mercadorias se limitam a ser representantes incompletas do ouro,

mas ele próprio passa a constituir a existência material da riqueza abstrata, a

quantidade que ele representa de si próprio é a medida de si mesmo enquanto

riqueza. “A determinação de medida deve ser posta aqui nele mesmo” (42/156

[ed. bras. Grundrisse, p. 172]). Em contraposição, enquanto realização conti

nuamente evanescente do preço, o ouro funciona como símbolo de si próprio,

na circulação das mercadorias a sua matéria, o ouro, é indiferente: “Sob seu

aspecto de mediador da circulação, sofreu toda classe de ultrajes, foi corroído,

esmagado até o extremo de chegar a ser um pedaço de papel simbólico” (13/103

[ed. bras. Contribuição à crítica da economia política , p. 161]). Agora, porém,

quando em sua “sólida metalicidade” contém em si mesmo “toda a riqueza

material inacessível”, funcionando como representante material da riqueza ma

terial, ele se torna essencial em sua forma de existência imediatamente metá

lica. “Como medida, sua quantidade era indiferente; como meio de circulação,

era indiferente a sua materialidade, a matéria da unidade; como dinheiro, nessa terceira determinação, a quantidade de si mesmo como um quantum material

determinado é essencial” (42/156 [ed. bras. Grundrisse,  pp. 172-3]).

 Nesse ponto, ocorre a reviravolta decisiva, que é percebida por alguns teó

ricos. Durante a exposição da primeira transformação do meio de circulação

em dinheiro, Marx comenta uma esquizofrenia curiosa do economista Bois-

guillebert:

Boisguillebert pressente de imediato, na primeira imobilização do perpetuum mobile  [movimento perpétuo], isto é, na negação de sua existência funcional como meio

de circulação, a sua autonomização em relação às mercadorias. O dinheiro, diz, deve

estar "em contínuo movimento, o que somente pode ocorrer sendo móvel, pois, assim

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 A E X P O S I Ç Ã O C A T E G O R I A L

que deixa de ser, tudo está perdido”. [...] Não percebe que essa parada é a condição do

seu movimento. O que quer em realidade é que a forma "valor de troca das mercadorias"

apareça como forma puramente fugaz de seu metabolismo, sem nunca se fixar como fim

em si. (13/104-5 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia política,   p. 163, n. 115modif.])

Contudo, nele apenas se repete, por assim dizer, como impulso crítico-cul

tural extemporáneo o que certa vez marcou como protesto substancial a inter

seção de duas estruturas sociais:

Em sua República, Platão quer fixar à força o dinheiro como simples meio de circu

lação e medida, mas não deixar que ele se tome dinheiro como tal. Por conseguinte,

Aristóteles considera a forma da circulação M-D-M, na qual o dinheiro funciona apenas

como medida e moeda, um movimento que ele chama de econômico, como a forma

natural e razoável, ao passo que estigmatiza a forma D-M-D, a crematística, como a

forma não natural, inapropriada. O que aqui se combate é tão somente o valor de troca,

que ele se tome conteúdo e fim em si da circulação, a autonomização do valor de troca com

tal; que o valor como tal se torna fim da troca e adquira forma autônoma, primeiramen

te ainda na forma simples e tangível do dinheiro. (U/928-9)

 No entanto, não há como deter esse novo movimento. Quando o dinheiro

aparece na terceira determinação, quando a riqueza universal existe numa for

ma que, em sua imediatidade tangível, constitui a própria determinidade formal,

então “não há mais d iferença nele a não ser a quantitativa”. Por essa via, porém,

o metal sólido, que só representa ainda uma porção maior ou menor da riqueza

universal, converte-se numa contradição existente: enquanto riqueza universal

ele é o suprassumo de todos os valores de uso; enquanto “universalidade in

trínseca” o dinheiro possui, nessa forma, a capacidade “de comprar todos os prazeres, todas as mercadorias, a to talidade das substâncias materiais da ri

queza” (42/196 [ed. bras. Grundrisse, p. 210]); ao mesmo tempo, ele é, nessa

forma, apenas uma determinada quantidade de dinheiro, ou seja, simulta

neamente também apenas representante limitado da riqueza universal “ou re

 presentante de uma riqueza limitada, que não vai além do seu valor de troca;

é exatamente medido nele” (42/196 [ed. bras. Grundrisse, p. 210]). Assim sen

do, ele simultaneamente é e não é a riqueza universal, numa só e mesma forma,

ele se contradiz; ele “não tem de forma alguma a capacidade, que deveria ter

em conformidade com seu conceito universal, de comprar todos os prazeres,

todas as mercadorias, a totalidade das substâncias materiais da riqueza” (42/196

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SOBRE A  ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

[ed. bras. Grundrisse, p. 210]). Por existir como uma soma determinada, o di

nheiro é limitado; simultaneamente ele é, por sua qualidade, a própria ilimita-

ção, e essa contradição impele para um m ovimento de mau infinito, no qual a

quantidade determinada de dinheiro como que procura se livrar de si mesmaenquanto quantidade determinada de dinheiro, visando tornar-se o que ele é

 por sua forma. A expressão dessa contradição entre ilim itação qualitativa e

limitação quantitativa, que essa forma representa em si mesma, é o progresso

quantitativamente infinito, no qual o dinheiro procura se aproximar da riqueza

 pura e simples mediante a permanente expansão de sua grandeza. Quando o

dinheiro aparece na terceira determinação e é retido nessa forma, ele passa

imediatamente para esse movimento; reter e multiplicar são uma coisa só. “Por

isso, para o valor que retém a si mesmo enquanto valor, multiplicar-se coincide com autoconservar-se e ele só se conserva buscando constantemente ir além

da limitação quantitativa que contradiz a sua universalidade interior” (U/936).

Esse progresso infinito aparece primeiramente como entesouramento; para

o entesourador a mudança de forma da mercadoria se torna fim em si; ele retém

a crisálida de ouro da mercadoria e faz com que ela, na condição de não meio

de circulação, se torne dinheiro.

O movimento automático do valor de troca como valor de troca não pode ser senão,

em geral, o de ultrapassar os seus limites quantitativos. Porém, na medida em que um

limite quantitativo do tesouro é ultrapassado, cria-se uma nova barreira que, por sua vez,

deve ser suprimida. O que aparece como barreira não é um limite determinado do tesou

ro, mas todo e qualquer limite dele. O entesouramento não tem, pois, um limite imanen

te, nenhuma medida em si mesmo; é, antes, um processo sem fim, que sempre encontra

um motivo para começar de novo diante do resultado obtido. Se o tesouro só aumenta

 porque se conserva, também só se conserva porque aumenta . (13/109-10 [ed. bras. Con

tribuição à crítica da economia política, p. 169 modif.])

Se analisarmos o entesouramento da perspectiva da circulação de merca

dorias (e até o momento não conhecemos outro modo de análise, visto que o

outro modo só resultará da efetuação da dialética imanente ao próprio entesou

ramento), a sua condição é a venda constante sem compra subsequente, um

 procedimento inexequível nessa forma, mas exequível num formato atenuado:

vender o máximo possível e com prar o mínimo possível. Com outras palavras:

trabalhar o máximo possível e poupar o máximo possível. Pois o entesouramento é, por seu próprio conceito, a apropriação da riqueza em sua forma

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 A E X P O S I Ç Ã O C A T E G O R I A L

universal, sendo esta condicionada pela renuncia à riqueza em sua realidade

material.

Portanto, é no entesourador que pela primeira vez germinam aquelas virtu

des que comumente são denominadas burguesas. Quando a mudança de forma

da mercadoria se distorce em fim em si, todas as relações do indivíduo também

se distorcem em condições objetivas de sua existência subjetiva. Anteriormen

te se mencionou que foi mediante essa distorção central que, pela primeira vez,

manaram as fontes da riqueza; quando a riqueza em sua forma universal se

tornou imediatamente fim da produção, a produção da riqueza específica se

limitou a ser meio para a busca desse fim. Por essa razão, a acumulação do

dinheiro por causa do dinheiro é também a primeira forma da “produção pela

 produção, isto é, o desenvolvimento das forças produtivas do trabalho humano

além dos limites das necessidades habituais” (13/111 [ed. bras. Contribuição 

à crítica da economia política,  p. 171 modif.]). Essa distorção anda de mãos

dadas com um prolongamento ideal, na medida em que o mundo distorcido na

esfera da produção cria o seu contraponto na forma de valores reificados. “Para

se apoderar do supérfluo sob sua forma geral é preciso considerar as necessi

dades específicas como luxo e supérfluo” (13/106-7 [ed. bras. Contribuição à 

crítica da economia política,  p. 165 modif.]). Laboriosidade, economia, des prezo dos prazeres mundanos, temporais e efêmeros são as virtudes cardeais

que o embrião do sujeito burguês se propõe na forma de um fim em si, como

valor em si mesmo.

O entesouramento, contudo, pressiona para além de si mesmo. A análise

mais detida mostra que ele é contraditório em si mesmo, uma contradição que

inaugura o desenvolvimento subsequente, cujo decurso passaremos a acompa

nhar. Em contraposição ao que ocorre em Para a crítica  e O capital,  essa

transição do entesouramento para a forma seguinte do movimento do valor foiexplicitamente detalhada nos Grundrisse, de modo que devemos nos orientar

exclusivamente por esse texto no que se refere a essa transição.

Essa transição deve ser efetuada por dois aspectos. O primeiro diz respeito

ao dinheiro na terceira determinação, ao ouro em sua metalicidade imediata

enquanto determinidade formal de cunho econômico. No ouro encarnou-se a

riqueza universal; esta existe dissociada das formas específicas da riqueza so

cial, constituindo, porém, ao mesmo tempo, a forma universal somente me

diante referência às formas específicas com as quais se defronta como o mundo das riquezas reais. O ouro em sua corporalidade metálica é a “abstração

 pura” daquelas e, por essa razão, distorce-se, quando a riqueza é re tida nessa

forma, em “pura ilusão. Ali onde a riqueza parece existir enquanto tal em for

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S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

ma absolutamente material, tangível, o dinheiro tem sua existência apenas em

minha cabeça, é uma pura quimera” (42/160 [ed. bras. Grundrisse, p. 177]). A

sua realidade reside fora dele mesmo, na totalidade das particularidades que

compõem a sua substância. Por isso, só é possível que o dinheiro se afirme e

realize como representante material da riqueza universal se ele desaparecer

como forma universal. Ele tem de ser lançado na circulação, ele tem de desa

 parecer “ante os distintos modos particulares da riqueza”, e “essa desaparição

é o único modo possível de afirmá-lo como riqueza. A dissolução do acumu

lado em prazeres singulares é a sua realização. [...] Eu só posso pôr efetiva

mente o seu ser para mim à medida que o abandono como mero ser para outro”

(42/160 [ed. bras. Grundrisse,  p. 177]).

O outro aspecto diz respeito à “essência desmedida” do dinheiro nessa

determinação. O fato de a riqueza individualizada retida como ouro distorcer-

-se furtivamente em simples quimera da riqueza real atinge também o movi

mento da multiplicação da riqueza universal encarnada. Visto que a sua reali

dade reside fora dela mesma na totalidade das riquezas específicas, a sua pró

 pria multip licação depende da multiplicação dessas riquezas reais. Se as duas

coisas não andarem de mãos dadas, o próprio dinheiro “perde o seu valor à

medida mesmo que seja acumulado. O que se manifesta como sua multiplicação é, de fato, sua diminuição. A sua autonomia é pura aparência; sua inde

 pendência da circulação só existe re fe rida a ela, como dependência dela”

(42/160 [ed. bras. Grundrisse,  p. 177]). A mercadoria universal, que só pode

existir como universal ao lado da específica numa forma natural específica,

evidencia-se como mercadoria específica que, como todas as mercadorias es

 pecíf icas, está sujeita às leis universais. O seu valor depende, por um lado, dos

custos específicos de produção que mudam constantemente e, por outro lado,

da demanda e da oferta, como detalha Marx, ou seja, da quantidade de trabalhosocialmente necessário no sentido ampliado que anteriormente foi abordado

sucintamente. Assim, revela-se falso que “sua própria quantidade é a medida

de seu valor” (42/160 [ed. bras. Grundrisse,  p. 177]). O dinheiro na terceira

determinação se contradiz não só porque como riqueza individualizada retida

se distorce em pura quimera, mas também “porque deve representar a riqueza

enquanto tal; mas, de fato, representa somente um quantum  idêntico de valor

variável” (42/160 [ed. bras. Grundrisse,  p. 177]). Concluindo, Marx formula

assim: "O dinheiro, em sua determinação última, acabada, manifesta-se pois,sob todos os aspectos, como uma contradição que se resolve a si mesma; que

tende à sua própria resolução” (42/160 [ed. bras. Grundrisse, pp. 176-7]). Mais

adiante examinaremos de que modo se dá o desenvolvimento seguinte.

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 A EXPOSI ÇÃO CATEGORIAL

Retornemos agora à exposição do entesouramento como elo necessário

entre o dinheiro enquanto moeda suspensa e sua função como meio de paga

mento. Como vimos (cf. pp. 215-6), a primeira transformação do meio de cir

culação em dinheiro, ou seja, o surgimento do dinheiro em sua terceira deter

minação, é apresentada por Marx como um momento técnico da rotação do

dinheiro, que não funcionaria sem essa forma de condensação. A parte do di

nheiro circulante que se solidifica em reserva monetária ainda é, ela própria,

momento necessário da quantidade total que se encontra constantemente em

circulação. Igualmente já foi indicado (ver p. 216) que essa unidade processual

de mobilidade e imobilidade se repete num patamar mais elevado, quando ouro

e prata despem sua forma monetária e se convertem em dinheiro em sua cor-

 poralidade m etálica como não meio de circulação. É preciso mostrar aqui ago

ra que função o entesouramento tem para a circulação, e, em vista disso, temos

de voltar-nos para a quantidade total do dinheiro circulante. No que se refere

à moeda suspensa, mantivemos em mira apenas a quantidade total de dinheiro

que se encontra constantemente em circulação, a qual foi pressuposta como

dada. Contudo, na página 199 deste livro, indicamos que essa grandeza mesma

tem de ser variável quando a soma dos preços a ser realizada e a velocidade da

mudança de forma forem determinantes para a quantidade do metal circulante. Nesse caso, porém, o meio de circulação que se transform a em dinheiro na

forma do não meio de circulação não pode ser moeda suspensa. Dependendo

da modificação da soma de preços e da velocidade da circulação, a quantidade

total do ouro circulante deve continuamente se expandir e contrair-se, “o que

é possível somente sob a condição de que a quantidade total de dinheiro em

um país esteja em relação sempre variável com a quantidade de dinheiro cir

culante. O entesouramento preenche essa condição” (13/113 [ed. bras. Contri

buição à crítica da economia política,   p. 174]). Por exemplo, se os preços baixarem ou se a velocidade da circulação aumentar, o dinheiro escoa para fora

da circulação e é absorvido pela reserva do tesouro; no caso de preços ascen

dentes e velocidade da circulação decrescente, os tesouros se abrem.

O enrijecimento do dinheiro circulante em tesouro e a fluidificação dos tesouros na

circulação constituem um movimento oscilatório em contínua variação, no qual o pre

domínio de uma ou outra tendência é exclusivamente determinado pelas flutuações da

circulação de mercadorias. Desse modo, os tesouros aparecem como canais de forneci

mento e retirada do dinheiro circulante, de tal forma que jamais circula como moeda

senão a quantidade de dinheiro determinada pelas necessidades imediatas da circulação.

(13/114 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia política, p. 174 modif.])

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SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

Assim sendo, tomamos conhecimento até agora de duas formas do valor de

troca autonomizado, da riqueza universal que se tornou indivíduo. M oeda sus

 pensa e tesouro são dinheiro como não meio de circulação. Devemos examinar

agora a forma em que o valor de troca aparece enquanto autonomizado, não, porém, fora da circulação como os dois acima mencionados, mas dentro da

 própria circulação. Nesse caso, ele naturalmente já não pode m ais ser meio de

circulação, visto que a substância deste consiste no contínuo desaparecimento

e o valor de troca autonomizado, que se tornou coisa, de qualquer modo já é

símbolo de si mesmo. E le deve cumprir outra função.

Essa função pressupõe a precedente. Igualmente já apontamos para isso

antes, na abordagem do entesouramento. Em Para a crítica da economia po lí

tica consta o seguinte: “No momento em que, pelo entesouramento, o dinheiro

se desenvolveu como existência da riqueza social abstrata e como representan

te tangível da riqueza material, adquire, com essa sua determinidade de dinhei

ro, uma função peculiar no processo de circulação” (13/115 [ed. bras. Con

tribuição à crítica da economia política,  p. 176 modif.]). Pois quando o valor

de troca autonomizado está explicitado como tal, há a possibilidade de uma

nova determinidade formal de cunho econômico, sob a qual os seres humanos

 podem efetuar o seu metabolismo social. Enquanto o dinheiro existir na segun

da determinação, na função de meio de circulação, como realização continua

mente evanescente do preço dentro da própria circulação, ou retornar de sua

função de não meio de circulação para dentro da circulação, ele sempre atuará

como meio de compra dentro de uma constelação polarizada que supõe a troca

simultânea de posição dos equivalentes e sua exteriorização recíproca. É a

 primeira mudança de forma de um a mercadoria A que coincide imediatamen

te com a segunda mudança de forma de uma mercadoria B. O preço da merca

doria A, mediante o qual ela está idealmente relacionada com a sua crisálida

de ouro, é realizado de modo imediato. Agora esse processo pode cindir-se:

O vendedor aliena realmente a mercadoria e, em princípio, só realiza o seu preço

uma vez mais idealmente. Ele a vendeu por seu preço, que, entretanto, só será realizado

num tempo ulterior determinado. O comprador que com pra é representante de dinheiro

futuro, enquanto o vendedor que vende possui uma mercadoria presente. No que con

cerne ao vendedor, a mercadoria como valor de uso é alienada realmente, sem que tenha

sido realizada realmente como preço; no que diz respeito ao comprador, o dinheiro é

realizado realmente no valor de uso da mercadoria, sem que tenha sido alienado real

mente como valor de troca. (13/116-7 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia  

 po lítica , pp. 177-8 modif.])

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 A EXPOSI ÇÃO CATEGORIAL

A mercadoria A circula, visto que ela executa a troca de posição, mas a sua

 primeira m etamorfose foi adiada. Assim, a segunda metamorfose de um a mer

cadoria B não se efetua simultaneamente com a primeira mudança de forma

da mercadoria A, mas aparece temporalmente antes dela: “E por isso o dinhei

ro, que é o aspecto da mercadoria em sua primeira metamorfose, adquire uma

nova determinidade formal. O dinheiro ou a evolução independente do valor

de troca não é mais a forma mediadora da circulação das mercadorias, mas o

seu resultado final” (13/119 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia po

lítica,  p. 180 modif.]).

Pois, na medida em que o preço é realizado apenas idealmente, o dinheiro

funciona não só como m edida dos valores, mas também como meio de compra,

sem existir materialmente. Ele apenas projeta “a sombra de sua existência

futura. Transfere a mercadoria da mão do vendedor à do comprador” (13/118

[ed. bras. Contribuição à crítica da economia política,  p. 179]). Porém, quan

do o dinheiro então ingressa na circulação, ele não pode mais funcionar como

meio de compra, pois tem essa função

[...] antes de estar presente e aparece depois de ter cessado de funcionar como tal. Ele

entra na circulação, antes, como o único equivalente adequado da mercadoria, como

existência absoluta do valor de troca, como a última palavra do processo de troca, em

suma, como dinheiro, mais precisamente, como dinheiro na função determinada de meio 

de pagamento geral. Nessa função de meio de pagamento, o dinheiro aparece como mer

cadoria absoluta; mas faz isso no interior da própria circulação e não fora dela, como o

tesouro. (13/118 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia política, p. 179 modif.])

Vamos interromper aqui a exposição dessa nova forma e mencionar apenas

que, nesse ponto — em correspondência com o modo de proceder discutido

anteriormente — , a teoria da crise teria de ser retomada num novo plano de

concreção. O dinheiro na forma de meio de pagamento acrescenta à possibili

dade geral anteriormente indicada, à mais abstrata das formas da crise, uma

nova possibilidade formal. O fato de a autonomização das duas fases da mu

dança de forma aparecer como tal, a saber, como invendabilidade da merca

doria, passa a ser seu pressuposto e um dos seus momentos; a peculiaridade da

nova forma consiste, muito antes, em que se torna manifesta a autonomização,

 possibilitada pelo desenvolvimento do meio de pagamento, da realização ideal

ante a realização real do preço como tal — e isso como incapacidade de paga

mento e crise de dinheiro. Com o desenvolvimento do meio de pagamento

desenvolve-se a possibilidade de um encadeamento de obrigações e, desse

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S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M AR .X  

modo, ao mesmo tempo, também a possibilidade de que tal cadeia processa

dora de pagamentos não seja cumprida.

Se não se puder vender a mercadoria ao menos num determinado período, embora

seu valor não tenha variado, o dinheiro não poderá funcionar como meio de pagamento, 

uma vez que tem de servir como tal num prazo determinado, pressuposto. Uma vez que

aí a mesma soma de dinheiro funciona para uma série de transações e operações recí

 procas, há insolvência não só num ponto, mas em muitos. Daí a crise. (26.2/514 [ed. bras.

Teorias da mais-valia , vol. II, p. 949])

Porém, também aqui é preciso lembrar que estamos tratando apenas da pos

sibilidade formal e a pergunta por que a crise tem de se instaurar realmente só

 poderá ser respondida mais adiante.

Por isso, na pesquisa da razão por que a  possib ilidade geral da crise se torna reali

dade, na pesquisa das condições da crise é mera superfluidade tratar da forma  das crises

oriundas do desenvolvimento do dinheiro como meio de pagamento. Justamente por

esse motivo gostam os economistas de apresentar essa forma evidente como causa  das

crises. (26.2/51 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 950])

Seja apenas mencionado aqui que nesse ponto começam as primeiras abor

dagens da teoria do crédito, assim como a lei referente à quantidade do d inhei

ro circulante, discutida por ocasião da análise da rotação simples do dinheiro,

volta a aparecer na exposição global, já que ela é consideravelmente modifi

cada pela rotação dos meios de pagamento. Queremos voltar nossa atenção,

contudo, para a forma que Marx trata no final.

A primeira forma do valor de troca autonomizado de que tomamos conhe

cimento foi a do meio de circulação que se torna dinheiro na forma do não meio

de circulação. O meio circulante se imobiliza como condição de sua própria

mobilidade, seja como moeda suspensa ou como tesouro. No primeiro caso,

Marx ainda inclui o próprio meio de circulação que vai se solidificando na

massa global do dinheiro em constante rotação na esfera da circulação, de modo

que a forma exterior do dinheiro que funciona como não meio de circulação

deve ser concebida, por assim dizer, como um híbrido: o valor de troca autono

mizado existe necessariamente numa forma que decorre da função do dinheirocomo meio de circulação, e justamente não pode assumir um modo de existên

cia que corresponde ao dinheiro em sua função de não meio de circulação. Isso

se dá pela primeira vez no entesouramento: como puro metal o ouro é dinhei-

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 A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

ro, em sua metalicidade imediata ele é determinidade formal de cunho econô

mico. Quando o ouro em forma de moeda é acumulado como tesouro, a forma

do dinheiro nessa função que resulta do processo de circulação é essencial

mente exterior, nessa função ele vale apenas como portador de valor, na suaforma exterior ele é apenas metal amorfo. O quanto é exterior a forma mone

tária do dinheiro nessa função pode ser mostrado no fato de que, na Inglaterra

medieval, as mercadorias de ouro e prata “eram consideradas legalmente como

simples formas de tesouro, porque seu valor só aumentava ligeiramente pelo

trabalho grosseiro que se lhes tinha agregado. Eram destinadas a ser lançadas

de novo na circulação, e seu refinamento estava, portanto, prescrito, como o

da própria moeda” (13/112 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia po lí

tica, p. 172 modif.]). Somente o ouro em form a de barras constitui um modo

de existência do valor de troca autonomizado que realmente faz jus a essa

função do dinheiro de ser riqueza abstrata numa forma perdurável. Simulta

neamente vimos que o ouro na metalicidade pura é e não é a forma econômica

determinada. Ele é a abstração existente — mas só fora da circulação. Lançado

na circulação, ele é a forma universal da riqueza só no momento em que desa

 parece, recaindo para a função de meio de circulação. Contudo, se for retido

nessa forma, o ouro evidencia-se como mercadoria específica, ou seja, precisa

mente não como aquilo que se pretende que ele seja, a saber, a forma universal

da riqueza. A forma imediatamente mais elevada é o dinheiro na função de

meio de pagamento. Nessa função, ele é valor de troca autonomizado dentro

da circulação. Ele ingressa na circulação como a “existência em repouso do

equivalente universal” (13/122 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia 

 política, p. 185 modif.]), mas o seu modo de existência é condicionado pela

forma exterior do dinheiro que se desenvolveu na circulação interna. Em de

corrência disso, temos uma constelação que, por assim dizer, deixa aberta uma possibilidade: por um lado, ouro em forma de barras é o modo mais adequado

de existência do valor de troca autonomizado, mas, nessa forma, o ouro é

apenas dinheiro, porque não circula. Por outro lado, temos uma forma, na qual

o valor de troca autonomizado existe dentro da circulação, mas num modo que

volta a ficar aquém daquele de que tomamos ciência — na forma do entesou-

ramento — como o modo mais adequado de existência da riqueza universal

que existe como coisa. A próxima forma mais elevada só pode ser o valor de

troca autonomizado existente como coisa no interior da circulação, cujo modomaterial de existência é adequado ao seu conceito — o dinheiro mundial. É o

dinheiro “numa universalidade de manifestação que corresponde à universali

dade do seu conceito; é seu modo mais adequado de existência” (U/885).

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S O B R E A E S T R U T U RA L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T AL E M K A R L M A R X  

A teoria marxiana do dinheiro termina com a explicitação de uma forma

que, na teoria do valor, foi desdobrada na exposição da duplicação ideal e real,

 por assim dizer, no médium  do puro conceito. Assim que passamos para a

concretização e identificamos a teoria da forma-preço como contraponto da

duplicação ideal explicitada anteriormente, fomos confrontados, por meio des

sa forma que finaliza com o desenvolvimento da denominação monetária, com

a sociedade burguesa existente. Porém, simultaneamente vimos que Marx apre

senta a sociedade burguesa existente tão somente nessa determinidade, a saber,

meramente como existente, isto é, como circulação interna. A história das re

lações reais de produção não é escrita. Isso vale também para a exposição do

dinheiro na função como meio de circulação e da forma monetária daí decor

rente que se sublima até a condição de símbolo de valor. A antecipação dessa

função foi o desdobramento abstrato da duplicação real no processo de troca,

com a qual nos deparamos agora, assim como com a função de medida, enquan

to forma específica no dinheiro mundial. Mas isso explica, ao mesmo tempo,

 por que Marx não explicita o dinheiro mundial como forma específica. De fato,

o puro metal assume funções de dinheiro que já conhecemos. No mercado

mundial, ele funciona como meio de troca (e, por essa razão, Marx também

denomina o dinheiro mundial de moeda mundial) e como meio de pagamento,

cuja “relação sofre, entretanto, um a inversão no mercado mundial” (13/126 [ed.

 bras. Contribuição à crítica da economia política , pp. 190-1]). Enquanto na

circulação interna o dinheiro, na medida em que é moeda, atua apenas como

meio de compra na mediação da troca universal de posição das mercadorias,

o metal aparece no mercado mundial como meio de compra quando o metabo

lismo é unilateral e, em consequência, compra e venda divergem. Marx men

ciona o exemplo de uma quebra de colheita que pode obrigar uma nação a

comprar de outra em escala extraordinária. Como meio de pagamento, o ourofunciona, no mercado mundial, no equilíbrio dos balanços internacionais.

Portanto, a forma do dinheiro como meio de troca e meio de pagamento internacio

nal de fato não é uma forma específica  desse dinheiro, mas apenas uma aplicação do

mesmo como dinheiro; são as suas funções nas quais ele funciona do modo mais cha-

mativo possível em sua forma simples e ao mesmo tempo concreta como dinheiro, como

unidade de medida e meio de circulação e como nem um nem outro. É sua forma mais

original. Essa forma só aparece como específica  ao lado da particularização  que podeassumir na assim chamada circulação interna, como medida e moeda. (U/883)

Da mesma maneira que as medidas gerais de pesos dos metais preciosos serviam de

medidas de valor primitivas, as denominações de conta do dinheiro são, no interior do

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 A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

mercado mundial, transformadas de novo nas denominações de pesos correspondentes.

Do mesmo modo que o metal bruto amorfo (aes rudé) era a forma original do meio de

circulação e assim como a forma cunhada era ela própria originalmente simples sinal

oficial do peso contido nas peças de metal, assim também o metal precioso, convertido

em dinheiro universal, se despoja de sua efígie e seu cunho e retoma a forma indife

rente de barra ou quando as moedas nacionais, como os imperiais russos, os escudos

mexicanos e os soberanos ingleses, circulam no estrangeiro, seu título se tom a indife

rente, passando a valer apenas o seu conteúdo. (13/125 [ed. bras. Contribuição à crítica 

da economia política, pp. 188-9 modif.])

 B. A pa ssa g em p a ra o capi tal

1. Sobre a relação entre circulação simples e capital

Antes de prosseguirmos com a reconstituição da exposição categorial, aborda

remos mais uma vez alguns aspectos centrais da formulação global. Como

várias vezes já foi ressaltado, Marx de modo algum identifica a sequência

histórica das categorias com aquela que elas “têm na sociedade burguesa mo

derna umas em relação às outras”. Desta última se trata, contudo, na compe

netração conceituai do capitalismo, que só se torna acessível a uma elaboração

teórica na forma da exposição dialética das categorias depois de ter chegado

ao seu desenvolvimento pleno, quando a lei do valor pode realmente entrar em

vigor; essa lei, como vimos, nada mais é que a síntese social global, a compen

sação para a unidade autoconsciente faltante, que regula a repartição do traba

lho social global pelos diferentes ramos da produção. Porém, só se fala de tra

 balho social global nesse sentido específico quando a reprodução to ta l dasociedade está integrada nesse “sistema específico de dependência universal”,

ou seja, só quando, mediante a ação do próprio capital, a propriedade fundiária

feudal tiver sido convertida em propriedade fundiária burguesa (ou criada dire

tamente como propriedade fundiária burguesa) e, desse modo, tiver sido con

sumada a separação entre a existência subjetiva e a sua continuação objetiva:

Um tal estado de coisas encontra-se no mais alto grau de desenvolvimento na mais

moderna forma de existência da sociedade burguesa — os Estados Unidos. Logo, só nosEstados Unidos a abstração da categoria “trabalho”, “trabalho em geral”, trabalho puro

e simples, o ponto de partida da Economia moderna, devém verdadeira na prática. (42/29

[ed. bras. Grundrisse, p. 58])

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S O B R E   A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

É uma “forma de sociedade em que os indivíduos passam com facilidade de

um trabalho a outro, e em que o tipo determinado do trabalho é para eles con

tingente e, por conseguinte, indiferente” [ed. bras. Grundrisse, pp. 57-8]. Con

tudo, “passar com facilidade de um trabalho a outro” nada mais significa que

a nova repartição, executada de modo natural-espontâneo, do trabalho social

global pelos diferentes ramos da produção; trata-se de um conjunto de fatos

que, justamente pela circunstância de o modo determinado do trabalho ter se

tornado contingente para os indivíduos, ao mesmo tempo representa a condição

histórica da possibilidade de formulação da lei do valor na forma da explicita

ção dialética das categorias. Vemos aqui que nada se modificou na posição

 básica de Marx, elaborada pela primeira vez nos Manuscritos econômico-filo- 

sóficos·. o capitalismo enquanto a configuração mais extrema da forma distor

cida de apropriação da natureza foi visto já ali como o ponto de culminação

histórico que, em virtude dessa forma conclusiva de distorção da conexão

entre ser humano e natureza, descortina a visão para a estrutura real não só do

capitalismo, mas de toda a sociedade.

O capitalismo como configuração insuperável da separação entre o ser hu

mano e a sua natureza inorgânica, como conflito do ser humano com a nature

za sob a forma social da distorção absoluta, na qual as condições de produçãoestranhadas do ser humano são personificadas e ganham existência subjetiva

como capitalista   e  proprie tá rio de terras,   constitui uma constelação que

não é imediatamente perceptível como tal. Muito antes, os seres humanos —

livres e iguais por natureza — parecem relacionar-se na esfera da circulação

meramente como trocadores. Porém, só é possível decifrar esse último fato

como aparência quando se toma ciência dessa esfera da circulação como mo

mento do capitalismo, como uma esfera na qual todos os membros da socie

dade só passam a atuar como trocadores quando todos eles estiverem integrados nesse sistema específico do trabalho privado, ou seja, quando a divisão de

classes tiver sido consumada. Assim sendo, as pessoas se encontram na esfera

da circulação desde o começo como membros de determinadas classes, mas

simultaneamente também como possuidores de equivalentes. Várias vezes já

foi acentuado que essa dualidade singular constitui, por assim dizer, o centro

nervoso não só da teoria econômica, mas de toda a teoria social burguesa em

seu sentido mais amplo, teoria essa criticada por Marx. As debilidades decisi

vas das formulações teóricas de Adam Smith e David Ricardo devem-se, emúltima análise, ao fato de ambos nunca terem conseguido obter plena clareza

sobre essa articulação do sistema global. Segundo Marx, a exposição incom

 pleta da lei do valor assim como a estruturação de suas obras são determinadas

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A  EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

de modo decisivo pelo fato de terem simplesmente assumido exteriormente da

empiria as categorias “valor do trabalho”, “lucro”, “renda”, “juros”, um pro

cedimento que reflete ao mesmo tempo a falta de elaboração teórica dessa

articulação. O fato de eles, apesar disso, terem ido além dessas formas de

manifestação e avançado até momentos essenciais do capitalismo é razão su

ficiente para que Marx os eleve à condição de clássicos dessa ciência; ao con

trário dos autores econômicos que, assim como todos os teóricos burgueses,

 procederam do mesmo modo, assumindo exteriormente as categorias, mas ti

raram em seguida outras consequências. Eles não só sucumbem à aparência da

circulação simples, mas distorcem a aparência em verdade inteira:

A relação entre capital e juro, por exemplo, é reduzida à troca de valores de troca.

Assim, depois que é aceito da empiria que o valor de troca não existe apenas nessa de-

terminabilidade simples, mas existe também na determinabilidade essencialmente dife

rente do capital, o capital é novamente reduzido ao conceito simples do valor de troca,

e o juro, que expressa uma relação determinada do capital enquanto tal, também arran

cado da determinabilidade, é posto igual ao valor de troca; [é] abstraído da relação como

um todo em sua determinabilidade específica e restituído à relação não desenvolvida da

troca de mercadoria por mercadoria. Se abstraio de um concreto aquilo que o distingue

de seu abstrato, ele é naturalmente o abstrato e de modo algum se distingue dele.  De 

acordo com isso, todas as categorias econômicas são apenas outros e outros nomes para 

a mesma relação de sempre, e essa tosca incapacidade de capturar as diferenças reais 

 pretende então representar o puro senso comum enquanto tal. As “harmonias econômi

ca s” do senhor Bastiat significam no fundo que existe uma única relação econômica 

que recebe diversos nomes, ou que tem lugar uma diversidade exclusivamente nominal. 

(42/174-5 [ed. bras. Grundrisse,  p. 192])

Mediante um processo muito vulgar de abstração, que omite a bel-prazer ora este

ora aquele aspecto da relação específica, esta é reduzida às determinações abstratas da

circulação simples e assim se dá como provado que as relações econômicas em que os

indivíduos se encontram nas esferas mais desenvolvidas do processo de produção são

apenas as relações da circulação simples. (U/917)

Quais são as relações da circulação simples, as relações que aparecem como

universais só quando o capitalismo está plenamente desenvolvido? Quando nos

ocupamos com a obra inicial de Marx, vimos que a concepção m aterialista dehistória se entende como teoria — a ser abolida — , cujo tema é “a diferença

entre o indivíduo pessoal e o indivíduo contingente”, uma diferença que não é

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SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

uma “distinção conceituai, mas um fato histórico” e, por essa razão, pode ser

em princípio abolida. Enquanto os seres humanos — como momento essencial

de toda a sua pré-história — interagem de modo restrito com a natureza, as

suas relações entre si também são pré-formadas de certa maneira e condicio

nadas em sua respectiva peculiaridade pelo estado da apropriação da natureza.

A forma bem de terminada da contingência, a forma bem determinada da más

cara do personagem que representam é, portanto, meramente expressão das

condições restritas de existência, e só é parte essencial de sua personalidade

enquanto ela puder desdobrar a sua personalidade, a sua individualidade, uni

camente sob essa forma das relações. M arca distintiva da nova história será

que, sobre o fundamento das condições de vida e de existência conscientemen

te organizadas, os indivíduos se emancipam da máscara como tal e passam a

relacionar-se uns com os outros como  indivíduos. Desse modo, porém, desa

 parece também o objeto da teoria , que, como vimos, ocupa-se tão somente com

o “mais universal”, com a propriedade privada, com a máscara, com os per

sonagens sociais, que nada têm a ver com a individualidade real.

Se examinarmos a exposição das categorias econômicas até aqui sob o

aspecto da máscara, ela se evidencia como concreção dessas ideias formuladas

nos escritos iniciais:

Os possuidores de mercadorias entraram no processo de circulação simplesmente

como guardadores de mercadorias. Dentro do processo, eles se confrontam na forma

antitética de comprador e vendedor: um, o pão de açúcar personificado; o outro, o ouro

 personificado. Quando o pão de açúcar se transforma em ouro, o vendedor se converte

em comprador. Esses caracteres sociais determinados não têm sua origem na individua

lidade humana em geral, mas nas relações de troca entre pessoas que produzem seus

 produtos na forma de terminada de mercadorias. O que se expressa na relação do com

 prado r com o vendedor não são relações puramente individuais , até po rque um e outro

entram nessa relação precisamente porque o seu trabalho individual é negado, isto é, por

ser dinheiro na condição de trabalho de nenhum indivíduo. Portanto, conceber caracteres

econômicos burgueses de compradores e vendedores como formas sociais eternas da

individualidade humana é tão simplório quanto é errôneo deplorá-los como supressão

da individualidade. Eles são manifestação necessária da individualidade em certo está

gio do processo social de produção. (13/76-7 [ed. bras. Contribuição à crítica da eco

nomia política, p. 128 modif.])

Desse modo, porém, foi caracterizada apenas a máscara que corresponde

ao dinheiro em sua função de meio de circulação. Porém, conhecemos também

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 A E X P O S I Ç Ã O C A T E G O R I A L

o dinheiro como dinheiro, ouro que se torna dinheiro, na medida em que não

circula ou então se mantém como valor de troca autonomizado no interior do

 processo de circulação, a saber, em sua função de meio de pagamento:

Entretanto, o processo da metamorfose das mercadorias, que cria as diferentes de-

terminidades formais do dinheiro, metamorfoseia também os possuidores de mercado

rias ou modifica os caracteres sociais sob os quais se apresentam uns aos outros. No

 processo da m etamorfose da m ercadoria o guardião das mercadorias muda de pele cada

vez que a mercadoria se move ou o dinheiro assume novas formas. Assim sendo, origi

nalmente os possuidores de mercadoria se confrontavam apenas como possuidores de

mercadorias; em seguida, um convertia-se em vendedor, o outro, em comprador; depois,

alternadamente, cada um em com prador e vendedor; logo em entesouradores e, por fim,

em pessoas ricas. De modo que os possuidores de mercadorias não saem do processo de

circulação tal como entraram nele. Na realidade, as diferentes determinidades formais

que o dinheiro adquire no processo de circulação constituem apenas as metamorfoses

cristalizadas das próprias mercadorias, as quais, por seu lado, são apenas a expressão

objetivada das instáveis relações sociais por meio das quais os possuidores de merca

dorias efetuam o seu metabolismo. No processo de circulação, criam-se novas relações

de intercâmbio, e os portadores dessas relações modificadas, os possuidores de merca

dorias, adquirem novos caracteres econômicos. Assim como na circulação interna, odinheiro se idealiza e o simples papel, como representante do ouro, desempenha a fun

ção de dinheiro, também esse mesmo processo dá ao comprador ou ao vendedor que

entra nele como simples representante de dinheiro ou de mercadoria, isto é, represen

tando o dinheiro futuro ou a mercadoria futura, a eficácia do vendedor ou do comprador

real. (13/115-6 [ed. bras. Contribuição à critica da economia política , pp. 176-7 modif.])

Vendedor e com prador passam a ser credor e devedor . O desdob ramento

subsequente das categorias sempre nos apresentará máscaras novas e maiscomplexas , que têm com a mais s imples das formas, a de t rocadores , a de

vended or e com prador, isto em com um : a de serem universal-abstratas, graças

a um a negação abstrata do específico que existe nos indivíduos reais.

 No in terior do sistema global dessas máscaras, as que foram explicitadas

até agora têm uma importância especial. Elas fazem parte da circulação simples

das mercadorias, cuja especificidade consiste na mediação de extremos que

não são produzidos por ela própria, mas pressupostos. “Examinando a form a  

da própria circulação, o que nela devém, surge, é produzido, é o próprio dinheiro e nada mais. As mercadorias são trocadas na circulação, mas não surgem

nela” (U/926). Se abstrairmos da posição intermediária peculiar do entesoura-

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SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

dor, o metabolismo social permanece, em todos os casos, como finalidade do

ato. Defrontam-se produtos do trabalho que para o produtor têm valor de uso

apenas como meio para apropriar-se de outro valor de uso, constituindo, por

isso, mercadorias como unidade imediata de valor de uso e valor de troca. Para

que se tornem valores de uso, para que se afirmem como produtos do trabalho

social global, as mercadorias devem se apresentar umas às outras como valores

de troca, ou seja, assumir forma-preço e executar o processo de mudança de

forma que examinamos na explicitação das categorias.

Mercadoria é trocada por mercadoria ou, muito antes, visto que a determinação da

mercadoria se extinguiu, valores de uso de qualidades diferentes são trocados entre si e a

 própria circulação só serviu para, por um lado, fazer com que valores de uso troquem de

mãos em correspondência às necessidades e, por outro lado, fazer com que troquem

de mãos na medida em que neles está contido tempo de trabalho, fazer com que se re

 ponham na medida em que constituem momentos com peso igua l do tempo de traba lho

social universal. Mas então as mercadorias lançadas na circulação alcançaram a sua fi

nalidade. Cada mercadoria na mão do seu novo possu idor cessa de ser mercadoria; cada

uma se tom a objeto da necessidade e como tal, em conformidade com a sua natureza, é

consumida. Com isso, a circulação chegou ao término. N ada resta além do meio de

circulação como resíduo simples. Porém, como tal resíduo, ele perde a sua determinação

formal. Ele desaba em sua matéria, a qual sobra como cinza inorgânica de todo o pro

cesso. (U/925)

Já enfatizamos reiteradamente, e temos de fazê-lo uma vez mais neste pon

to, que a argumentação no tocante à circulação simples das mercadorias sem

 pre corre em dois trilhos. Enquanto mediação entre extremos pressupostos, ela

não é só uma “esfera abstrata do processo burguês de produção total”, mas

encontra-se igualmente nas fronteiras dos sistemas comunitários natural-es- pontâneos, que jogam a sua produção excedente a partir de fora como “com

 bustível no fogo” dessa mediação evanescente, sendo que, em correspondência

com o modo de proceder delineado anteriormente, a passagem categorial da

esfera da circulação simples para o processo total capitalista deve ser com

 preendida ao mesmo tempo como a exposição mais abstra ta possível do mo

vimento histórico que leva ao capitalismo industrial. M arx deixa isso muito

claro nos Grundrisse:

A circulação simples, que é meramente a troca de mercadoria e dinheiro, assim como

troca de mercadorias de forma mediada, inclusive prosseguindo até o entesouramento,

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 A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

 pode subsist ir no plano histórico justam en te porque é apenas mov imento mediador

entre dois pontos de partida pressupostos, sem que o valor de troca tenha se apossado

da produção de um povo, seja em toda a sua superfície, seja na sua profundidade. Ao

mesmo tempo, porém, evidencia-se historicamente o modo como a própria circulaçãoleva à produção burguesa, isto é, à produção que põe valor de troca e cria para si mesma

uma base diferente daquela da qual ela partiu de modo imediato. (U/921)

Contudo, quer o aspecto categorial quer o aspecto histórico seja deslocado

 para o primeiro plano, em ambos os casos está implicado que as máscaras de

correntes da circulação simples sempre são sustentadas também por outras re

lações econômicas, nas quais os indivíduos estão “assentados” , e por meio das

quais eles igualmente ainda se inter-relacionam sob a forma de determinados personagens sociais. Marx as denomina, po r um lado , de modo geral, “con

dições tanto patriarcais como antigas (igualmente feudais)”, nas quais a máscara

aparece, em todo caso, como uma “qualidade inseparável da individualidade”

(e que, por essa razão, como devemos acrescentar, não pode ser reconhecida

como tal); e, por outro lado, chama-as de relações capitalistas, ou seja, aquela

forma social anteriormente mencionada do estranhamento entre a existência

subjetiva e as condições objetivas de sua realização. Nos dois casos, a estrutura

de produção sustentadora é como que sobreposta e impregnada por outros personagens sociais que decorrem da circulação simples das mercadorias, cuja

 peculiaridade consiste em que, neles próprios, não aparece a forma determi

nada da reprodução social. Os seres humanos se defrontam como possuidores

de equivalentes, trocadores, vendedores e compradores, credores e devedores,

e somente como tais eles são captados por Marx nessa passagem decisiva.

Esse processo de troca é, como Marx elucida mais extensamente no  Ras

cunho ou então no Texto original [Urtext]  de Para a crítica,  a “base real” da

“trindade” burguesa “de propriedade, liberdade e igualdade” . A decifração daideologia burguesa precisa ter início nessa estrutura da circulação simples:

“Essas ideias, enquanto ideias puras, são expressões idealizadas dos seus di

ferentes momentos; ao serem explicitadas em relações jurídicas, políticas e

sociais, elas apenas são reproduzidas em outras potências” (U/915). Contudo,

Marx não aborda mais detalhadamente essa reprodução, limitando-se a tratar

as determinações essenciais do modo como resultam da análise acurada da

situação de troca alçada acima do processo real de produção e das estruturas

que lhe dão sustentação.Quando nos ocupamos com os Manuscritos económico-filosóficos, aponta

mos que o jovem Marx, sem se deixar impressionar pela definição burguesa de

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SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

 propriedade, visualizou imediatamente as re lações essenciais do processo ca

 pitalista global. No Rascunho, ele recupera o que deixou de fazer nos escritos

iniciais: a reconstituição da gênese da formulação burguesa, que em igual me

dida está na base da agitação socialista-burguesa que apregoa que o trabalhador possui direito exclusivo ao valor resultante do seu trabalho.

 Na própria circulação, no processo de troca, ao modo como ele aflora na superfície

da sociedade burguesa, cada qual só dá na medida em que toma e só toma na medida em

que dá. Para fazer uma ou outra coisa, ele precisa ter. O procedimento mediante o qual

ele se colocou na condição de ter não constitui nenhum dos momentos da própria cir

culação. (U/903).

A mercadoria é pressuposto da circulação; ela precisa

[...] existir antes do início da troca, concomitantemente, como no caso da compra e

venda, ou pelo menos assim que a transação é consumada, como na forma da circulação

em que o dinheiro vale como meio de pagamento. Concomitantemente ou não, elas só

ingressam na circulação como existentes. O processo de surgimento das mercadorias, 

e, portanto, também o seu processo original de apropriação, situa-se, por conseguinte, 

além da circulação. (U/903)

É por isso que tampouco é possível deduzir da forma da circulação das

mercadorias o seu processo de surgimento, e não obstante isso é feito pela

teoria burguesa. Ao não captar essa relação peculiar entre processo de circu

lação e processo de produção nessa determinidade, ela formula o processo

situado além da circulação segundo o parâmetro das representações que decor

rem do ato de circulação. A mercadoria

[...] é pressuposto da circulação. E, visto que a partir do ponto de vista da circulação as

mercadorias alheias, ou seja, o trabalho alheio, só podem ser apropriadas mediante a

exteriorização do trabalho próprio, a partir do mesmo ponto de vista o processo de apro

 pria ção da mercadoria   que antecede a circulação aparece necessariamente como 

apropriação pelo trabalho. A mercadoria, enquanto valor de troca, é apenas trabalho 

objetivado, e, do ponto de vista da circulação, a qual é, ela própria, apenas o movimen

to do valor de troca, o trabalho objetivado estranho não pode ser apropriado a não ser

mediante a troca de um equivalente; sendo assim, a mercadoria de fato nada pode ser  além da objetivação do trabalho próprio,  e como esta última de fato constitui o proces

so fático de apropriação de produtos da natureza, ela aparece igualmente como título

 jurídico de propriedade. [...]. Por conseguinte, todos os economistas modernos enuncia-

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 A E X P O S I Ç Ã O C A T E G O R I A L

ram o trabalho próprio como o título original de propriedade, seja em termos mais

econômicos seja em termos mais jurídicos, e a propriedade consistindo no resultado do 

trabalho próprio como o pressuposto funda mental da sociedade burguesa.  (U/903)

Escapa à percepção do teórico burguês que todos os membros da sociedade

só se encontram como compradores e vendedores depois de consumada a di

visão de classes e depois que os meios de produção assumiram a forma do

capital, ou seja, depois que também a sua própria formulação se baseia em

 pressupostos que se tornaram históricos. As apor ias da exposição da lei do

valor devem ser derivadas, em última análise, desse conjunto de fatos.

Por outro lado, visto que da análise de relações econômicas mais concretas do queas representadas pela circulação simples parecem resultar leis contraditórias, todos os

economistas clássicos, incluindo Ricardo, gostam de deixar que vigore como lei univer

sal aquela visão que decorre da própria sociedade burguesa, mas banem a sua realida

de estrita para a idade de ouro, na qual ainda não existia nenhuma propriedade.  Por

assim dizer, para a época anterior à queda no pecado econômico, como faz, por exemplo,

Boisguillebert.  De modo que se obteria o curioso resultado de que a verdade da lei de 

apropriação da sociedade burguesa devesse ser deslocada para uma época em que essa

mesma sociedade ainda não existia, e a lei fundamental da propriedade para a época daausência de propriedade. Essa ilusão é translúcida. (U/904)

As ideias da igualdade e da liberdade também devem ser explicitadas a

 partir dessa articulação central do sistema global. Esta também deve ser tomada

como ponto de partida para a decifração da aparência distorcedora da concor

rência, a qual a teoria burguesa não reconhece como tal e, por isso, consegue

se estabelecer no horizonte burguês como ciência clássica ou vulgar. “Pressu

 posta a lei cia apropriação pelo trabalho próprio,  e não se trata aí de um pressuposto arbitrário, mas decorrente da análise da própria circulação, franqueia-

-se automaticamente na circulação um reino da liberdade e igualdade burgue

sas, fundado sobre essa lei” (U/904). A nossa análise da form a-preço mostrou

que as mercadorias têm de apresentar-se como qualitativamente idênticas no

interior do processo de circulação, e, para que, na existência ideal da merca

doria como preço, possam expressar-se como artigos quantitativamente dife

rentes da mesma substância social, deve-se abstrair de sua existência material,

de sua particularidade individual. A forma-preço é essa negação da diversidade natural das mercadorias — consumada sem a consciência adequada dos

envolvidos. No preço, as mercadorias são expressas como algo idêntico, e o

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S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

dinheiro em sua função como meio de circulação meramente serve como re

 presentante do preço perante todas as outras mercadorias, servindo como meio

 para trocar as mercadorias por preços iguais. Assim sendo, os sujeitos da cir

culação simples também “de fato só se encontram como valores de troca subjetivados, isto é, como equivalentes vivos, de igual validade” (U/912).

A diversidade natural particular que existia na mercadoria está apagada e é cons

tantemente apagada pela circulação. Um trabalhador que compra uma mercadoria por 

3 shillings  aparece ao vendedor na mesma função, na mesma igualdade — na forma

de 3 shillings — , em que apareceria o rei que fizesse o mesmo. Toda diferença entre eles

é apagada. (42/172 [ed. bras. Grundrisse,  p. 189])

Os sujeitos da circulação se defrontam como agentes do mesmo trabalho social

universal indiferente; “cada um tem a mesma relação social com o outro que

o outro tem com ele. A sua relação como trocadores é, por isso, a relação da

igualdade. É impossível detectar qualquer diferença ou mesmo antagonismo

entre eles, nem sequer uma dissimilaridade” (42/167 [ed. bras. Grundrisse, 

 p. 185]). Essa igualdade social tampouco é tangida, na medida em que o di

nheiro atua como unidade das duas primeiras determinações, embora a princí

 pio pareça assim. Enquanto os indivíduos se defrontam como simples guardadores de mercadorias, eles são simplesmente trocadores; na medida em que o

dinheiro funciona como meio de circulação, eles se defrontam como compra

dor e vendedor, mudando, porém, de máscara na metamorfose seguinte da

mercadoria, em que o vendedor se torna comprador e se defronta com um novo

 possuidor de equivalentes que aparece como vendedor. "Ora, na circulação, os

trocadores também se defrontam qualitativamente como comprador e vendedor,

como mercadoria e dinheiro, mas eles trocam de posição uma vez, e o processo

consiste tanto em pôr o desigual quanto em anular o ato de pôr o igual, de modo

que este último aparece apenas formalmente” (U/914). Quando o dinheiro apa

rece como valor de troca autonomizado no interior da circulação, como meio

de pagamento universal, e os indivíduos se encontram na forma de credor e

devedor, também nesse caso eles são iguais, na medida em que o dinheiro, na

forma do meio de pagamento universal, “anula toda a diferença específica em

termos de desempenho, igualando-os. Ele iguala a todos ante o dinheiro, mas

o dinheiro é só o seu contexto social objetivado bem próprio” (U/914-5). A isso

se restringe o tratamento marxiano dessa configuração específica do valor de

troca autonomizado. Contudo, ele trata mais extensamente o dinheiro como

matéria da acumulação e do entesouramento, porque justamente aí a igualdade

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/1 E X P O S I Ç Ã O C A T E G O R I A L

 parece ser anulada, na medida em que ocorre a possibilidade de que “um indi

víduo se enriqueça mais, adquira mais títulos da produção universal do que

outros”. Contudo, a nossa análise do entesouramento resultou em que a acu

mulação da riqueza em sua forma universal só é possível quando o entesoura-dor vende mais do que compra, ou seja, trabalha e renuncia à fruição. Nenhum

indivíduo consegue “extrair dinheiro à custa do outro. Ele só pode tomar em

forma de dinheiro o que dá em forma de mercadoria. Uma coisa frui do con

teúdo da riqueza, a outra toma posse de sua forma universal” (U/915). Embora

na atividade do entesourador o capitalismo comece a se mover, a produção em

sua “forma bárbara” passe a ser um fim em si e o entesourador se torne um

homem rico, este, enquanto sujeito da circulação, é igual a todos os demais.

“Nem mesmo a herança e relações jurídicas afins, que podem até prolongardesigualdades assim surgidas, prejudicam a igualdade social. Se a relação ori

ginal do indivíduo A não estiver em contradição com ditas relações, essa con

tradição certamente não poderá ser provocada pelo fato de o indivíduo B ocu

 par o lugar do indivíduo A, perenizando-o” (U/915). Contudo, ao ocupar o

lugar do indivíduo A e perenizá-lo, o indivíduo B apenas confirma que nem ele

 própr io nem o outro indivíduo existem no sentido enfático, mas que, na figura

do guardador do tesouro, ele cumpre uma função preestabelecida, assume uma

máscara que se situa além de toda individualidade: na medida em que o “indi

víduo, nessa relação, é apenas a individuação do dinheiro, ele é como tal tão

imortal quanto o próprio dinheiro” (U/915). Se o herdeiro quiser fruir a rique

za, ele só poderá fazê-lo ao preço do empobrecimento progressivo; “visto que

só equivalentes são trocados, o herdeiro tem de lançar o dinheiro novamente

na circulação para realizá-lo como fru ição” . No momento em que ele ingressa

na esfera da circulação, ele é possuidor de um equivalente, ainda que o seja

numa forma imediatamente universal. Ele é comprador, funcionário idôneo do

 processo social.

Em todas as funções do dinheiro e seus personagens sociais corresponden

tes, que resultam da análise da circulação simples, abstrai-se, como foi men

cionado, de toda a particularidade natural. O conteúdo do processo de troca, o

valor de uso, compreendido no seu sentido mais amplo como metabolismo do

ser humano com a natureza, permanece além da análise da circulação simples.

O que se pressupõe aqui é meramente que, nessa esfera da mediação, são in

troduzidos valores de uso que só têm valor de uso para o possuidor enquantomeios de troca e, em consequência, em sua diversidade natural, represen tam a

 base da igualdade social dos indivíduos.

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S O B R E   A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

Se o indivíduo A tivesse a mesma necessidade que o indivíduo  B e tivesse realizado

seu trabalho no mesmo objeto que o indivíduo  B,   não existiria nenhuma relação entre

eles; considerados do ponto de vista de sua produção, não seriam indivíduos diferentes.

Ambos têm a necessidade de respirar; para ambos o ar existe como atmosfera; isso nãoos coloca em nenhuma relação social; como indivíduos que respiram, relacionam-se

entre si apenas como corpos naturais, não como pessoas. A diversidade de sua necessi

dade e de sua produção fornece unicamente a oportunidade para a troca e para sua

igualação social nessa troca; por conseguinte, essa diversidade natural é o pressuposto

de sua igualdade social no ato da troca e dessa conexão em que se relacionam como

agentes produtivos. (42/168 [ed. bras. Grundrisse, p. 186])

Só da explicitação subsequente das categorias resultará que essa forma daigualdade social é condicionada por uma desigualdade que, ela própria, ainda

é determinada socialmente (e não naturalmente), a saber, quando se mostra que

o conteúdo da troca igualmente é abrangido pelo processo econômico, de modo

que a troca só aparece mais como momento do processo global. Porém, ainda

não chegamos a esse ponto. O “conteúdo fora dessa forma está de fato ain

da completamente fora do âmbito da economia, ou é posto como conteúdo

natural diferente do econômico” (42/167 [ed. bras. Grundrisse, p. 185]). Nessa

fase da exposição, o valor de uso só possui significado na medida em que é nãovalor de uso para o possuidor e, em consequência, representa o momento que

impele para a troca.

Por esse aspecto, Marx descreve a circulação simples como “base real” da

liberdade burguesa. “Na medida em que agora essa diversidade natural dos

indivíduos e das próprias mercadorias [...] constitui o motivo para a integração

desses indivíduos, para a sua relação social como trocadores, relação em que

são pressupostos  e se afirmam como iguais, à determinação da igualdade soma-

-se a da liberdade”  (42/169 [ed. bras. Grundrisse,  pp. 186-7]). Marx distingueclaramente dois aspectos. Um deles refere-se ao “momento jurídico da pessoa

e da liberdade, na medida em que esta está contida nele” (42/169 [ed. bras.

Grundrisse, p. 187 modif.]). Como nenhum dos indivíduos se apodera da mer

cadoria do outro pela força, só podendo adquiri-la na medida em que o outro

se desfaz voluntariamente do objeto, eles “reconhecem-se mutuamente como

 proprietários, como pessoas cuja vontade impregna suas mercadorias” (42/169

[ed. bras. Grundrisse, p. 187]). Marx se limita a essa breve alusão ao primeiro

aspecto. O segundo aspecto diz respeito à base do conceito enfático burguês

do sujeito:

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 A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

Mas isso não é tudo: o indivíduo A  serve à necessidade do indivíduo  B por meio da

mercadoria a som ente na medida em que, e porque, o indivíduo  B serve à necessidade

do indivíduo  A por meio da mercadoria b, e vice-versa. Cada um serve ao outro para

servir a si mesmo; cada um se serve reciprocamente do outro como seu meio. (42/169[ed. bras. Grundrisse,  p. 187])

Essa constelação se apresenta à consciência dos sujeitos participantes da

troca da seguinte maneira:

1) que cada um só alcança seu objetivo na medida em que serve como meio para o

outro; 2) que cada um só devém meio para o outro (ser para outro) como fim em si

mesmo (ser para si); 3) que a reciprocidade , segundo a qual cada um é ao mesmo tempomeio e fim, e de fato só alcança seu fim na medida em que devém meio, e só devém meio

na medida em que se põe como fim em si mesmo; que, portanto, cada um se põe como

ser para outro na medida em que é ser para si, e que o outro se põe como ser para ele

quando é ser para si mesmo — que essa reciprocidade é um fato necessário, pressupos

to como condição natural da troca, mas que é, enquanto tal, indiferente para cada um

dos dois trocadores, e essa reciprocidade tem interesse para o indivíduo apenas na me

dida em que satisfaz ao seu interesse, como interesse que exclui o interesse do outro,

sem ligação com ele. (42/169 [ed. bras. Grundrisse,  p. 187])

Portanto, embora o interesse comum dos trocadores seja conhecido e reconhe

cido como tal, ele não constitui o motivo imediato, mas “atua, por assim dizer,

 por detrás dos interesses particulares refletidos em si mesmos, do interesse

singular contraposto ao do outro (42/170 [ed. bras. Grundrisse,  p. 187]).

Desse modo, como formula Marx em resumo,

[...] está posta a completa liberdade do indivíduo: transação voluntária; nenhuma violência de parte a parte; posição de si como meio, ou a serviço, unicamente como meio

de se pôr como fim em si, como o dominante e o prevalecente; enfim, o interesse egoís

ta, que não realiza nenhum interesse superior; o outro também é reconhecido e conhe

cido como sujeito que realiza seu interesse egoísta exatamente da m esma maneira, de

modo que ambos sabem que o interesse comum consiste precisamente na troca do inte

resse egoísta em sua bilateralidade, mu ltilateralidade e autonomização. O interesse uni

versal é justamente a universalidade dos interesses egoístas. Se, portanto, a forma eco

nômica, a troca, põe a igualdade dos sujeitos em todos os sentidos, o conteúdo, amatéria, tanto individual como objetiva, que impele à troca, põe a liberdade. Igualdade

e liberdade, por conseguinte, não apenas são respeitadas na troca baseada em valores de

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S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

troca, mas a troca de valores de troca é a base produtiva, real, de toda igualdade e liber

dade.  (42/170 [ed. bras. Grundrisse,  pp. 187-8])

 Nesse ponto, vamos nos dar por satisfeitos com o relato das ideias de Marxe apenas lembrar que ele tinha intenção de dedicar-se novamente a essas ques

tões assim que tivesse concluído a exposição da anatomia da sociedade bur

guesa. Em nosso contexto, é essencial que ele tenha exibido o lugar sistemático,

no qual deve ter início a decifração da autocompreensão burguesa. Caracteri

zamos até agora esse lugar como a articulação entre a esfera da circulação

simples e o “processo mais profundo que está por trás dela, que resulta dela

tanto quanto a produz — o processo do capital industrial'’, que, no entanto, só

 poderá ser apreendido por ela quando essa diferença entre aparência e essênciafor reconhecida e a sua unidade na diferença for apreendida como especifici

dade do processo global.

A circulação, considerada em si mesma, é a mediação de extremos pressupostos. 

Mas não é ela que põe esses extremos. Sendo ela mesma a totalidade da mediação,

sendo ela mesma um processo total, ela consequentemente precisa ser mediada. Por  

conseguinte, o seu ser imediato é pura aparência. Ela é o fenômeno de um processo que 

se desenrola por trás dela.  (U/920)

Com outras palavras: quando o teórico deixa de perceber que todos os

membros da sociedade só podem encontrar-se nessa esfera da mediação depois

que o capitalismo industrial se estabeleceu e os meios de produção assumiram

a forma do capital, ele não só deixa de ter acesso a conexões essenciais, como

Marx também ainda consegue extrapolar o modo como o processo global se

apresenta para esse teórico. O malogro da reconstituição teórica do modo de

agir da lei do valor anda de mãos dadas com a distorção da determinidade

formal social em forma natural; ser capital se torna para ele uma qualidade das

coisas da natureza, e o ser humano é, para ele, por natureza trabalhador. Por

outro lado, ele precisa distorcer as noções que decorrem da circulação simples

em verdade inteira e, desse modo, entra imediatamente em contradição com o

mundo concreto dos antagonismos de classe e da espoliação, que refuta bru

talmente essas noções da sociedade burguesa como um reino de liberdade e da

igualdade. O modo como a teoria burguesa resolve essas contradições é exp li

citado por Marx na análise da lei da apropriação, cuja “validade estrita” é

deslocada para uma época em que ainda não existia propriedade. A superfície

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A E X P O S I Ç Ã O C A T E G 0 R 1 A L

da sociedade burguesa é distorcida em sua própria pré-história. Marx vê no

 proudhonismo apenas uma variante dessa forma de solução:

Por outro lado, evidencia-se igualmente a tolice dos socialistas (notadamente dosfranceses, que querem provar que o socialismo é a realização das ideias da sociedade

burguesa expressas pela Revolução Francesa), que demonstram que a troca, o valor de

troca etc. são originalmente (no tempo) ou de acordo com o seu conceito (em sua forma

adequada) um sistema da liberdade e igualdade de todos, mas que têm sido deturpados

 pelo dinheiro, pelo capital etc. Ou, ainda, que a história só fez até o momento tentativas

malsucedidas de realizá-las de um modo correspondente à sua verdade, e agora os so

cialistas, como Proudhon, por exemplo, descobriram o cerne da questão, com o que deve

ser providenciada a genuína história dessas relações, em lugar de sua falsa história. Caberesponder-lhes: o valor de troca ou, mais precisamente, o sistema monetário é de fato o

sistema da igualdade e da liberdade, e as perturbações que enfrenta no desenvolvimen

to ulterior do sistema são perturbações a ele imanentes, justamente a efetivação da li

berdade e da igualdade, que se patenteiam como desigualdade e ausência de liberdade.

(42/174 [ed. bras. Grundrisse,  p. 191 modif.])

Todas as tentativas de estabelecer um sistema da troca justa baseado no

dinheiro-trabalho (todas fracassaram depois de curto tempo) são atribuídas porMarx sem exceção à falta de noção da relação entre circulação simples e pro

cesso capitalista global. Proudhon apenas repetiu o que outros haviam tentado

antes dele:

O senhor Bray nem desconfia que essa relação igualitária, esse ideal de melhora

mento que ele quer introduzir no mundo, não passa do reflexo do mundo atual e que,

 por conseguinte, é totalmente impossível reconstruir a sociedade sobre um a base que

não passa de uma sombra em belezada dessa sociedade. A medida que a sombra tomacorpo, vê-se que esse corpo, longe de ser a transfiguração sonhada, é o exato corpo atual

da sociedade. (4/105 [ed. bras.  A miséria da filosofia , p. 73 modif.])

Portanto, o utopismo real de modo algum deve ser procurado em Marx, mas

ele passa essa acusação adiante, para o socialismo burguês, repetindo, por

assim dizer, a crítica hegeliana do conceito kantiano do dever-ser e mostrando

o que constitui a essência da utopia: a má iníinitude de uma práxis que, na

tentativa de realizar as suas representações, desde sempre já estabelece juntocom ela a irrealizabilidade destas. A utopia é parte do mundo que ela procura

modificar:

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S O B R E   A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

O que distingue esses senhores dos apologistas burgueses é, de um lado, a sensibi

lidade para as contradições que o sistema encerra; de outro, o utopismo, não compreen

der a diferença necessária entre a figura real e a ideal da sociedade burguesa e, conse

quentemente, pretender assumir o inútil empreendimento de querer realizar novamentea própria expressão ideal, expressão que de fato nada mais é do que a fotografia dessa

realidade. (42/174 [ed. bras. Grundrisse,  p. 191])

Aqui também é possível demonstrar de novo como a concepção marxiana

da práxis futura vem acompanhada da resolução positiva de problemas essen

ciais da economia burguesa, ou então, inversamente, como as noções socia

listas burguesas estão acopladas com representações subalternas da teoria do

dinheiro:

O que em Gray não aparece e constitui um segredo principalmente para ele mesmo,

ou seja, que a moeda de trabalho é uma fraseologia de matiz econômico para o desejo

 piedoso de desembaraçar-se do dinheiro e, com o dinheiro, do valor de troca e, com o

valor de troca, da mercadoria e, com a mercadoria, da forma burguesa de produção, é

dito francamente por alguns socialistas ingleses que escreveram antes e depois de Gray.

Todavia, estava reservado ao senhor Proudhon e a seus discípulos pregar seriamente que

a degradação do dinheiro e a exaltação da mercadoria são o núcleo do socialismo, e,desse modo, dissolver o socialismo num mal-entendido elementar quanto à conexão

necessária entre mercadoria e dinheiro. (13/68-9 [ed. bras. Contribuição à crítica da 

economia política,  p. 118 modif.])

2. A mais abstrata das fo rm as do capital

Voltemos nossa atenção novamente à exposição das categorias, que a partir

de agora deve ser entendida como destruição sistemática da forma em que ocapitalismo se apresenta em sua superfície. A “base real” da “trindade” bur

guesa “de propriedade, liberdade e igualdade”, ou seja, a circulação simples

como mediação do metabolismo social, como processo formal, no qual as

mercadorias são jogadas de fora como combustível no fogo, será evidenciada

como momento, como simples forma de manifestação, como forma de distor

ção total, sob a qual se apresenta o processo global.

Como vimos, na circulação simples enquanto tal (no valor de troca em seu movimento), a ação recíproca dos indivíduos é, quanto ao conteúdo, somente satisfação

mútua e interessada de suas necessidades e, quanto à forma, trocar, pôr como igual

(equivalentes), de modo que a propriedade também é posta aqui somente como apro-

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A E X P O S I Ç Ã O C A T E G O R I A L

 pr iaçã o do produto do trabalho median te o trabalho e o produ to do trabalho alheio

mediante o trabalho próprio, na medida em que o produto do próprio trabalho é com

 prado mediante o trabalho alheio. A prop ried ad e do trabalho alheio é med iada pelo

equivalente do trabalho próprio. Essa forma da propriedade — assim como a igualdadee a liberdade — está posta nessa relação simples. Isso se modificará no ulterior desen

volvimento do valor de troca e revelará, enfim, que a propriedade privada do produto do

 próprio trabalho é idêntica à separação entre trabalho e propriedade; de modo que tra

 balho = criará propriedade alheia e a propriedade = comandará trabalho alheio. (42/163-

4 [ed. bras. Grundrisse,  pp. 180-1])

Visto que, como já foi mencionado, a passagem para o capital é feita de

modo mais suave no Rascunho  do que em O capital, iremos orientar-nos pre ponderantemente nesse texto. Como vimos, essa passagem deve in ic ia r na

explicitação da terceira determinação do dinheiro, no valor de troca autonomi

zado: “Nessa determinabilidade já está contida de maneira latente sua deter

minação como capital"   [ed. bras. Grundrisse, p. 162]. Igualmente já foi indi

cado o movimento decisivo da multiplicação, o qual, como expõe Marx, jamais

 pôde ser apresentado pela teoria burguesa como momento substancial do p ró

 prio capital. Identificamos a razão propriamente dita para esse fracasso no fato

de o sujeito burguês se defrontar impotente com o seu próprio mundo, ummundo que aparece a ele tão somente na forma de objeto. A expressão desse

fato é a aceitação exterior das categorias; porém, basta que a categoria “capital"

seja mencionada, e o movimento da multiplicação já estará contido na ideia.

Portanto, ser “capital” já é esse movimento da multiplicação e, em consequên

cia, é ele que deve ser explicitado antes que se fale de capital. A análise exata

do entesouramento nos mostrou, ao mesmo tempo, que a exposição das catego

rias, por assim dizer, cinde-se em duas linhas de pensamento; uma delas trata

do entesouramento enquanto elo necessário na explicitação das figuras espe

cíficas da terceira determinação do dinheiro; a outra tem por objeto a gênese

do capital. Queremos retomar agora esta última linha de pensamento, que ti

vemos de interromper, e continuar a desfiá-la.

 No Texto original [Urtext]  de Para a crítica da economia política,  Marx

resume a análise da circulação simples tendo em vista a explicitação seguinte

das categorias:

Mas então as mercadorias lançadas na circulação alcançaram a sua finalidade. Cada

mercadoria na mão do seu novo possuidor cessa de ser mercadoria; cada uma se torna

objeto da necessidade e como tal, em conformidade com a sua natureza, é consumida.

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S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

Com isso, a circulação chegou ao término. Nada resta além do meio de circulação como

resíduo simples. Porém, como tal resíduo, ele perde a sua determinação formal. Ele

desaba em sua matéria, a qual sobra como cinza inorgânica de todo o processo. No

momento em que a mercadoria se tomou valor de uso como tal, ela foi jogada para forada circulação, ela deixou de ser mercadoria. Por conseguinte, não é nessa direção do 

conteúdo (cla matéria) que devemos procurar as determinações form ais que nos levarão 

adiante  [grifos meus, H. R.], O valor de uso se torna na circulação aquilo que era seu

 pressuposto independentemente dela, a saber, objeto de uma necessidade bem de term i

nada. Como tal, ele foi e permanece motivo material da circulação; mas ele não é toca

do por esta enquanto forma social. No movimento M-D-M, o material aparece como o

conteúdo propriamente dito do movimento; o movimento social aparece só como me

diação evanescente para satisfazer às necessidades individuais. O metabolismo do tra balho social. Nesse movimento, a abolição da determinação formal, isto é, das determ i

nações decorrentes do processo social, aparece não só como resultado, mas também

como finalidade; é o mesmo que mover um processo significa para o agricultor, embora

não para o advogado. Portanto, para investigar a determinação for mal subsequente que 

brota do movimento da circulação, temos de manter-nos na direção em que o aspecto  

 form al, o valor de troca como tal, continua a desenvolver-se; em que recebe determ i

nações mais aprofundadas através do próprio processo da circulação. Portanto, na  

direção do desenvolvimento do dinheiro, da form a D-M-D  [grifos meus, H. R.]. (U/925)

Expusemos esse processo que inicia de maneira nova, “essa duplicação da

troca — a troca para o consumo e a troca pela troca” (42/83 [ed. bras. Grun- 

drisse,  p. 97]) — , na análise do entesouramento, que, contudo, como vimos,

evidencia-se como contradição existente, e isso em duplo sentido. Visto que a

autonomização do valor de troca, a retenção da riqueza na sua form a universal,

 passa imediatamente para a multiplicação desta, essa contradição se apresenta

de dois modos. Por um lado, dado que, em sua metalicidade, o ouro constituiuma abstração imediatamente existente de toda a riqueza real, reter a riqueza

nessa forma é, de modo geral, “pura ilusão. Ali onde a riqueza parece existir

enquanto tal em forma absolutamente material, tangível, o dinheiro tem sua

existência apenas em minha cabeça, é uma pura quimera” (42/160 [ed. bras.

Grundrisse, p. 177]). A realidade da riqueza universal existente como coisa

situa-se fora dela, na totalidade das particularidades que constituem a sua subs

tância. Porém, a tínica possibilidade para que o dinheiro se afirme e realize

como representante material da riqueza universal é ele desaparecer como forma universal. Ele precisa ser lançado na circulação, e tem de desaparecer “ante

os distintos modos particulares da riqueza”, e “essa desaparição é o único modo

 possível de afirmá-lo como riqueza. A dissolução do acumulado em prazeres

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A  EXPOSIÇÃO CATEGORI AL

singulares é a sua realização” (42/160 [ed. bras. Grundrisse, p. 177]). Por outro

lado, visto que essa retenção anda de mãos dadas com a sua multiplicação, ele

se evidencia também nesse sentido como contradição. Se esse movimento da

multiplicação não andar de mãos dadas com a multiplicação da riqueza real, odinheiro perde o “seu valor à medida mesmo que é acumulado. O que se ma

nifesta como sua multiplicação é, de fato, sua diminuição. A sua autonomia é

 pura aparência; sua independência da circulação só existe referida a ela, como

dependência dela” (42/160 [ed. bras. Grundrisse,  p. 177]). Em consequência

disso, revela-se falso que “sua própria quantidade é a medida de seu valor”.

Portanto, o dinheiro em sua terceira determinação se contradiz não só por se

distorcer, enquanto riqueza individualizada retida, em pura quimera da rique

za real, mas também “porque deve representar a riqueza enquanto tal; mas, de

fato, representa somente um quantum  idêntico de valor variável” (42/160 [ed.

 bras. Grundrisse,  p. 177]). O dinheiro em sua terceira determinação “mani

festa-se pois, sob todos os aspectos, como uma contradição que se resolve a si

mesma; que tende à sua própria resolução” (42/160 [ed. bras. Grundrisse, 

 pp. 176-7]). Essa foi, numa recapitulação sucinta, a linha de pensamento que

abandonamos na página 224 deste livro.

De que modo se dá, então, o desenvolvimento seguinte? Vimos até agora

que o valor de troca se autonomiza, torna-se dinheiro, mais exatamente como

“produto da circulação, que, fora do combinado, por assim dizer, cresceu para

além dela” (U/928). No ouro, a riqueza existe como tal, individualizada, obje

tivada. Porém, quando o dinheiro é fixado nessa forma, ele perde a sua deter

minação formal e justamente não é o que deveria ser, a saber, valor de troca

autonomamente existente. A forma da autonomia é apenas uma “forma nega

tiva, evanescente ou ilusória”. O ouro é dinheiro só em relação à circulação,

enquanto possibilidade de ingressar nela. “Mas ele perde essa determinação

no momento em que se realiza. Ele recai em suas duas funções de medida e

meio de circulação. Como simples dinheiro, ele não vai além dessas determi

nações” (U/933). Portanto, o valor de troca não consegue se autonomizar fora

da circulação; fora dela, ele obtém apenas uma autonomia aparente; retornan

do, porém, à circulação, ele desaparece em face de uma forma específica da

riqueza. Mas manter-se como valor de troca autonomizado só lhe é possível

dentro da circulação e, ao mesmo tempo, ele não pode desaparecer em face de

uma forma específica da riqueza.

Para que o dinheiro se conserve como dinheiro, ele tem de ser capaz de, assim como

é sedimento e resultado do processo de circulação, voltar a ingressar nele, isto é, tornar-

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SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

-se na circulação não só um simples meio de circulação que, na forma da mercadoria,

desaparece em face do simples valor de uso. Ao ingressar numa das determinações, o

dinheiro não precisa se perder na outra e, portanto, ainda em sua existência como mer

cadoria não precisa permanecer dinheiro e em sua ex istência como dinheiro não precisaexistir apenas como forma passageira da mercadoria, em sua existência como mercado

ria não precisa perder o valor de troca, em sua existência como dinheiro não precisa

deixar de considerar o valor de uso. O seu ingresso mesmo na circulação deve ser um

momento de seu permanecer consigo mesmo e o seu permanecer consigo mesmo deve

ser o seu ingresso na circulação. (U/931)

Se analisarmos com mais exatidão a circulação simples, evidencia-se que

esse novo movimento já está implantado nela. Dado que cada mercadoria, paratornar-se valor de uso, precisa executar uma dupla mudança de forma, o valor

de troca já existe duplamente: ora como mercadoria específica, ora como di

nheiro. Ora ele existe nesta determinação, ora naquela, e só pode existir nesta

quando não existe naquela e naquela só quando não existe nesta. Em contra

 partida, é o mesmo valor de troca que existe ora na forma da mercadoria , ora

na forma do dinheiro, “e [há] precisamente o movimento de pôr-se nessa deter

minação dupla e conservar-se em cada uma delas como seu oposto, na merca

doria como dinheiro e no dinheiro como m ercadoria. Isto que existe em si nacirculação simples não está, porém, posto nela” (U/934). Porém, no momento

em que esse movimento aparece como tal, no momento em que o valor de tro

ca assume essas duas formas, mercadoria e dinheiro, apenas de modo evanes

cente, trocando-se pela m ercadoria particular, esta que, porém, em sua particu

laridade expressa somente a universalidade do valor de troca, despindo essa

forma e assumindo a do dinheiro, este que agora, porém, igualmente é apenas

expressão abstrata unilateral do valor de troca enquanto universalidade, é nesse

momento que presenciamos o processo de surgimento do capital. Esse movimento é a primeira forma de m anifestação do capital, o capital como “unidade

de mercadoria e dinheiro, só que a unidade processual de ambos, não sendo

nem uma nem o outro, e sendo tanto uma quanto o outro” (U/934). Ao mesmo

tempo, ela é a mais abstrata das formas do capital: “Quando falamos aqui de

capital, ainda se trata apenas de um nome. A única determinabilidade em que

o capital é posto, à diferença do valor de troca imediato e do dinheiro, é a de

terminabilidade do valor de troca que se conserva e se perpetua na circulação 

e pela circulação” (42/186 [ed. bras. Grundrisse, p. 203]). Contudo, na medidaem que o valor de troca autonomizado se conserva como tal, ou seja, na medi

da em que existe na forma da objetalidade, “mas não se importando se essa

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 A EXP OSIÇÃO CATEGORIAL

objetalidade é a do dinheiro ou a da mercadoria” (U/939), porque cada urna das

duas só expressa ainda a universalidade do valor de troca, ele constitui em cada

uma das formas a riqueza universal, e esta, como vimos na análise do dinheiro

como unidade da primeira e da segunda determinações, não é capaz de outromovimento além do quantitativo.

Por conseguinte, para o valor que conserva a si mesmo, multiplicar-se é o mesmo

que conservar-se e ele só se conserva na medida em que constantemente procura ir além

de sua limitação quantitativa que contradiz a sua universalidade intrínseca. [...]. Enquan

to riqueza, forma universal da riqueza, enquanto valor que vigora como valor, ele é,

 portanto, o impulso constante que procura ir além de sua limitação quantitativa; proces

so sem fim. A sua própria vitalidade consiste exclusivamente nisso; ele só se conservacomo valor que vigora para si, diferenciado do valor de uso, na medida em que se

multiplica constantemente median te o próprio processo de troca. O valor ativo é apenas

valor que põe mais-valor. (U/936)

Como sustentador consciente desse movimento, o possuidor do dinheiro se

torna capitalista, o seu propósito subjetivo, a caça permanente da riqueza abs

trata, é idêntico ao conteúdo objetivo desse novo movimento da circulação, a

valorização do valor. Só agora, depois que o dinheiro enquanto capital perdeua sua rigidez material e se tornou processo, é possível e significativa a compa

ração com o conceito hegeliano do espírito. Em O capital, Marx aponta expli

citamente, ainda que em forma de paródia, para a identidade estrutural, fazen

do referência ao “mais sublime exemplo” que Hegel pôde citar para aclarar a

natureza do espírito, a respeito do qual ele, no entanto, diz simultaneamente

não se tratar propriamente de um exemplo, mas do “universal, do próprio ver

dadeiro, do qual tudo o mais é exemplo”: é o Deus do cristianismo, que, en

quanto outro de si mesmo, enquanto Filho, é seu objeto, mas esse outro de si

mesmo igualmente é ele mesmo de modo imediato; “ele se sabe nele e se

contempla nele — e justamente esse saber-se e contemplar-se é, em terceiro

lugar, o próprio espírito. Isso quer dizer que o espírito é o todo, nem um nem

o outro por si sós”4. Em O capital consta que:

Se na circulação simples o valor das mercadorias atinge no máximo uma forma in

dependente em relação a seus valores de uso, aqui ele se apresenta, de repente, como

uma substância em processo, que move a si mesma e para a qual mercadorias e dinhei

ro não são mais do que meras formas. E mais ainda. Em vez de representar relações de

mercadorias, ele agora entra, por assim dizer, numa relação privada consigo mesmo.

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S O B R E   A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

Como valor original, ele se diferencia de si mesmo como mais-valor, tal como Deus Pai

se diferencia de si mesmo como Deus Filho, sendo ambos da mesma idade e constituin

do, na verdade, uma única pessoa, pois é apenas por meio do mais-valor de £10 que as

£100 adiantadas se tomam capital, e, assim que isso ocorre, assim que é gerado o filho

e, por meio do filho, o pai, desaparece novamente a sua diferença e eles são apenas um,

£110. (23/169-70 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 230])

A exposição seguinte das categorias resulta do desdobramento das contra

dições da “fórm ula geral-’, que é como Marx chama em O capital* esse movi

mento do valor enquanto sujeito abrangente, que se conserva e se expande na

circulação, e do qual ele diz, no  Rascunho, que “ainda se trata apenas de um

nome”**, por ser apenas uma única determinidade que diferencia esse movimento do valor de troca imediato. Atenhamo-nos primeiramente ao Rascunho. 

O que se detalha ali é isto: para que esse processo não seja apenas formal, quer

dizer, para que ele não ocorra de tal modo que apenas seja alterada a forma

do valor de troca, o valor de troca precisa ser trocado pelo valor de uso e esse

valor de uso precisa ser consumido. Porém — e nesse complemento está con

tido como que todo o desenvolvimento seguinte —, no consumo da mercado

ria, o valor de troca precisa se conservar como valor de troca, o

[...] processo do seu desaparecimento tem de aparecer, por conseguinte, simultaneamente

como processo do desaparecimento do seu desaparecimento, isto é, como processo re

 produtivo. Portanto, o consumo da mercadoria não está direcionado para a fruição im e

diata, mas é, ele próprio, um momento da reprodução do seu valor de troca. O valor de

troca resulta, assim, não só na forma da mercadoria, mas também aparece como o fogo

em que se desfaz a sua própria substância. Essa determinação decorre do conceito mes

mo do valor de uso. (U/938)

Algumas páginas antes disso, essa ideia é formulada de outra maneira: a

mercadoria tem de ser consumida como valor de uso ou

[...] o seu desaparecimento tem de desaparecer e, ele próprio, ser meio do surgimento

de um valor de troca maior, da reprodução e da produção do valor de troca — consumo 

 produtivo ,  isto é, consumo pelo trabalho, visando objetivar o trabalho, pôr valor de

troca. A produção de valor de troca é, de modo geral, apenas produção de valor de troca

* Cf. O capital, pp. 223 e ss. (N. do T.)

** Ver Grundrisse,  p. 203. (N. do T.)

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A  EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

maior, multiplicação da mesma coisa. A sua reprodução simples modifica o valor de uso

em que ele existe, a exemplo do que faz a circulação simples, mas não o cria. (U/932-3)

Acompanhemos agora o detalhamento mais concreto dos primeiros passosque levam nessa direção. O movimento de que tomamos conhecimento como

a mais abstrata das formas de manifestação do capital é o do valor de troca

autonomizado, do valor de troca como unidade processual de mercadoria e

dinheiro: “Ele existe na forma da objetalidade, mas não se importando se essa

objetalidade é a do dinheiro ou a da mercadoria” (U/939). Em cada uma dessas

formas ele permanece “valor de troca que se atém a si mesmo” (U/941). Por

tanto, ele é dinheiro não só quando assume a forma de dinheiro, mas na mesma

medida quando assume a forma de mercadoria. Agora a forma universal está postada diante dele até mesmo enquanto forma específica ao lado das formas

específicas da riqueza; ambas são apenas formas específicas dele mesmo, em

cada uma delas ele se encontra em si mesmo. Enquanto tal movimento ele é  

capital. Porém, de outra parte, ele só pode ser capital como valor de troca que

se autonomiza em face de um outro. Esse outro, porém, já não podem mais ser

as mercadorias específicas ou a forma universal destas, dado que ele só é  como

autonomizado (pois o seu ser é o movimento da unidade processual) na medi

da em que, estando nelas, está em si mesmo.

Em vez de ser excluído, todo o entorno das mercadorias, o conjunto de todas as

mercadorias aparece como igual conjunto de encarnações do dinheiro. No que se refere

à diversidade material natural das mercadorias, nenhuma delas impede o dinheiro de

tomar o seu lugar, fazer dela o seu próprio corpo, na medida em que nenhuma delas

exclui a determinação do dinheiro na mercadoria. (U/941-2)

Mas o que é esse outro? Como valor de troca autonomizado ele é, do começo ao fim, valor de troca e, por essa razão, só pode se autonom izar em rela

ção ao valor de uso: “Enquanto valor de troca, o valor de troca só pode mesmo

se autonomizar em relação ao valor de uso com o qual ele se defronta como

tal. É só nessa relação que o valor de troca pode se autonomizar como tal; só

assim ele pode ser posto e funcionar como tal” (U/942). O que é o valor de uso

quando todo o mundo do trabalho objetivado,   não importando se em forma

específica ou universal, é dinheiro, valor de troca no seu movimento como ca

 pital? Ele só pode ser o trabalho subjetivo não objetivado,  existente como

“capacidade, possibilidade, faculdade, como capacidade de trabalho do su

 je ito vivo” (U/942) em oposição ao trabalho objetivado:

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S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

Para o dinheiro como capital não existe outro valor de uso. E é justamente esse o

seu comportamento enquanto valor de troca para com o valor de uso. O único valor de 

uso capaz de constituir uma oposição e um complemento ao dinheiro como capital é o 

trabalho e este existe na capacidade de trabalho que existe como sujeito. O dinheiro sóé como capital em relação ao não capital, à negação do capital, exclusivamente em re

lação ao qual ele é capital. O não capital é o próprio trabalho.  O primeiro passo para

converter o dinheiro em capital é a sua troca pela capacidade de trabalho, para, por meio

desta última, transformar o consumo das mercadorias, isto é, o seu pôr e negar efetivos

como valores de uso, simultaneamente em sua operação com o valor de troca. (U/943-4)

Condição dessa transformação de dinheiro em capital é que o proprietário

do dinheiro na esfera da circulação encontre à disposição o trabalhador livreque, enquanto proprietário livre, dispõe de sua capacidade de trabalho e não

 pode mais trocar o seu trabalho em forma de uma mercadoria, como trabalho

objetivado. Como sabemos, essa constelação é o produto de um longo desen

volvimento histórico. O ser humano se torna primeiro um trabalhador livre,

 para quem a sua própria capacidade de trabalho se objetiva e se torna perm u

tável em forma de mercadoria quando ele está separado das condições objeti

vas de sua realização, dos meios de produção, que passam igualmente a estar

disponíveis no mercado como mercadorias. No capitalismo desenvolvido, o possuidor de dinheiro, que quer valorizar o seu dinheiro como capital, parte

desse conjunto de fatos como algo dado; do mesmo modo, o processamento

teórico do capitalismo em forma de exposição dialética das categorias, que,

 por assim dizer, acompanha esse possuidor de dinheiro, só é possível tendo o

referido conjunto de fatos como pressuposto:

Historicamente, o capital, em seu confronto com a propriedade fundiária, assume

invariavelmente a forma do dinheiro, da riqueza monetária, dos capitais comercial e

usurário. Mas não é preciso recapitular toda a gênese do capital para reconhecer o di

nheiro como sua primeira forma de manifestação, pois a mesma história se desenrola

diariamente diante de nossos olhos. Todo novo capital entra em cena — isto é, no mer

cado, seja ele de mercadorias, de trabalho ou de dinheiro — como dinheiro, que deve

ser transformado em capital mediante um processo determinado. (23/161 [ed. bras. O 

capital, vol. I, p. 223])

E, nos Grundrisse, consta o seguinte:

 Nesse ponto, evidencia-se nitidamente como a forma dialética da exposição só é

correta quando conhece os seus limites. Da análise da circulação simples resulta para

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 A EXPOSIÇÃO CATEG0R1AL

nós   o conceito geral do capital porque, no interior do modo de produção burguês, a

 própria circulação sim ples só existe como pressuposto do capita l e pressupondo o capi

tal. O resultar desse conceito não faz do capital a encarnação de uma ideia eterna, mas

o mostra só no modo em que ele, na realidade, tem de desembocar, apenas enquanto fo rm a necessária, no trabalho que põe valor de troca, na produção baseada no valor de

troca. (U/945-6)

Acompanhemos a mesma linha de pensamento em O capital.  Como foi

mencionado, a exposição das categorias tem prosseguimento no desdobramen

to do que ele chama, nesse ponto, de “contradições da fórmula geral”. A ver

são breve dessa fórmula geral tem o seguinte teor: comprar para vender mais

caro, ou seja, o movimento do valor de troca em processo, o qual se conservae se expande na mudança das formas, a mais abstrata das formas de m anifes

tação do capital. Como a mais abstrata das formas do capital, ele, porém, é

simultaneamente a forma na qual cada capital deve aparecer; não é somente o

capital comercial que temos diante de nós nessa fórmula geral, como parece

à primeira vista,

[...] também o capital industrial é dinheiro que se transforma em mercadoria e, por meio

da venda da mercadoria, retransforma-se em mais dinheiro. Eventos que ocorram entrea compra e a venda, fora da esfera da circulação, não alteram em nada essa forma de

movimento. Por fim, no capital a juros, a circulação D-M-D’ aparece abreviada, de modo

que seu resultado se apresenta sem a mediação ou, dito em estilo lapidar, como D-D’,

dinheiro que é igual a mais dinheiro, ou valor que é maior do que ele mesmo. Na verda

de, portanto, D-M-D’ é a fórmula geral do capital tal como ele aparece imediatamente

na esfera da circulação. (23/170 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 231])

Mas como essa fórmula geral é possível sob as condições da circulaçãosimples? Esse é o teor da pergunta decisiva que se coloca agora e que é apenas

outra formulação para a pergunta levantada nesse mesmo ponto no Rascunho:

qual é o valor de uso perante o qual se autonomiza o valor de troca existente

como unidade processual de mercadoria e dinheiro? Ou são trocados equiva

lentes e, nesse caso, não pode haver m ais-valor ou então há o capitalismo e não

existe troca de equivalentes. Como sabemos, foi essa a pergunta que deu o que

 pensar a Adam Smith em contraposição a Ricardo, que, como detalha Marx,

conseguiu chegar a uma concepção coesa justamente por não ter visto nenhum  problema nesse ponto. Marx mostra, então, detalhadam ente que, posta dessa

maneira, a pergunta implica a impossibilidade de uma resposta; que ela — como

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S O B R E   /1 E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

única formulação possível desse problema no horizonte burguês — assume

apenas um lugar determinado no sistema das categorias e, dessa maneira, faz

avançar a exposição. Queremos omitir aqui a repetição da totalidade dos argu

mentos que Marx apresenta nesse contexto. É óbvio que só pode tratar-se de

ilustrações ou da refutação de linhas de pensamento propostas pela economia

vulgar burguesa como soluções para esse problema insolúvel. Marx acaba

chegando ao resultado a que tinha de chegar:

Portanto, o capital não pode ter origem na circulação, tampouco pode não ter origem

na circulação. Ele tem de ter origem nela e, ao mesmo tempo, não ter origem nela. Temos,

assim, um duplo resultado. A transformação do dinheiro em capital tem de ser explica

da com base nas leis imanentes da troca de mercadorias, de modo que a troca de equi

valentes seja o ponto de partida. Nosso possuidor de dinheiro, que ainda é apenas um

capitalista em estado larval, tem de comprar as mercadorias pelo seu valor, vendê-las

 pelo seu valor e, no entanto, no final do processo, retirar da circulação mais valor do que

ele nela lançara inicialmente. Sua crisalidação [Schmetterlingsentfaltung]  tem de se dar

na esfera da circulação e não pode se dar na esfera da circulação. Essas são as condições

do problema.  Hic Rhodus, hic salta!  (23/180-1 [ed. bras. O capital, vol. I, pp. 240-1])

Conhecemos o próximo passo. O possuidor do dinheiro tem de encontrar àdisposição o trabalhador livre.

Por que razão esse trabalhador livre se confronta com ele na esfera da circulação é

algo que não interessa ao possuidor de dinheiro, para o qual o mercado é uma seção

 particular do mercado de mercadorias. No momento, essa questão tampouco tem inte

resse para nós. Ocupamo-nos da questão teoricamente, assim como o possuidor de di

nheiro ocupa-se dela praticamente. (23/183 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 244])

 Na nossa tentativa de reconstituir o curso da explicitação das categorias,

chegamos à constelação que o jovem Marx tinha em vista, mas cuja gênese ele

naquele tempo não conseguiu explicar exatamente. Embora nos Cadernos de 

excertos já seja possível reconhecer a tentativa de derivar sistematicamente da

circulação simples das mercadorias a figura mais sólida do estranhamento, o

capitalismo como forma insuperável da apropriação distorcida da natureza,

 passagens decisivas permanecem obscuras.  A ideologia alem ã   tampouco vai

muito além disso. Como vimos, ele parte ali da forma conclusiva da separação

entre o ser humano e as condições objetivas de sua atividade e tenta compreen

der os estágios anteriores como formas menos evoluídas dessa estrutura básica,

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 A E X P O S I Ç Ã O C A T E G O R I A L

que estão preferencialmente condicionadas pela respectiva forma do instru

mento de produção. Uma formulação mais exata do decurso histórico só se

encontra na obra tardia, mais exatamente, como já ressaltamos, numa espécie

de forma codificada na exposição dialética das categorias. A essa formulação

queremos dedicar-nos agora.

 Na introdução à cr ítica da economia política, Marx indica que

[...] seria impraticável e falso [...] deixar as categorias econômicas sucederem-se umas

às outras na sequência em que foram determinantes historicamente. A sua ordem é de

terminada, ao contrário, pela relação que têm entre si na moderna sociedade burguesa,

e que é exatamente o inverso do que aparece como a sua ordem natural ou da ordem que

corresponde ao desenvolvimento histórico. (42/41 [ed. bras. Grundrisse, p. 60])

Antes de surgir o capitalismo industrial houve capital mercantil, capital

usurário e capital a juros e até mesmo capital por ações. Porém, o tratamento

dessas formas só acontece no segundo e no terceiro volumes de O capital, em

que são apresentadas como modos funcionais específicos do processo capita

lista global, que só chega a ser processo capitalista global e só pode ser expos

to como tal quando toda a produção estiver subsumida no capital. “Na história, 

ocorrem outros sistemas que constituem o fundamento material do desenvol

vimento incom pleto do valor. Como o valor de troca desempenha aqui apenas

um papel acessório ao lado do valor de uso, aparece como sua base real não o

capital, mas a relação da propriedade fundiária” (42/177 [ed. bras. Grundrisse, 

 p. 194]). Contudo, no momento em que todos os produtos assumem a forma-

-mercadoria, o capital aparece como "base real” do valor de troca, pressupon

do a separação entre o produtor imediato e os meios de produção e, portanto,

também a forma burguesa da propriedade fundiária. Isso implica, ao mesmotempo, que a produção em sua totalidade se distorceu em fim em si; com outras

 palavras: que a form a universal da riqueza se tornou fim imediato de toda a

 produção. O processo capitalista g lobal, por conseguinte, de qualquer modo já

tem de ser compreendido como valor em processo, como o movimento contínuo

do sujeito abrangente, que assume diferentes formas, mas em todas essas for

mas está em si mesmo e é exatamente isto: estar em si mesmo no ser-outro e

simultaneamente multiplicar-se nesse movimento:

O capital, como o sujeito que atravessa todas as fases, como a unidade movente,

unidade processual de circulação e produção, é capital circulante·, o capital, como capi

tal confinado em cada uma dessas fases, como capital posto em suas diferenças, é  c a

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S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

 pitai fixado,  capital engajado.  Como capital circulante, ele próprio se fixa, e como

capital fixo, circula. (42/521 [ed. bras. Grundrisse, p. 519])

Por essa razão, constitui uma abstração inaugurar a exposição das categoriascom a explicitação da circulação simples das mercadorias, porque de qualquer

modo já é o próprio capital que se apresenta dessa forma; no entanto, outra

forma de exposição não é possível, porque o capital pressupõe o valor em

termos lógicos e também históricos.

Se na teoria o conceito de valor precede o de capital, mas, por outro lado, subenten

de um modo de produção fundado no capital para seu desenvolvimento puro, o mesmo

sucede na prática. Daí porque os economistas consideram necessariamente o capital ora

como criador, fonte dos valores, ora, por outro lado, pressupõem valores para a forma

ção do capital. (42/177 [ed. bras. Grundrisse.  p. 194])

O último passo da exposição, reconstituído anteriormente, é, por isso mes

mo, simultaneamente o primeiro passo para a decifração da forma da circula

ção simples enquanto circulação simples, enquanto

[...] esfera abstrata do inteiro processo de produção burguês, que, por suas próprias de

terminações, identifica-se como momento, simples forma de manifestação de um pro

cesso mais profundo que está por trás dela, que resulta dela tanto quanto a produz —

o processo do capital industrial. (U/922-3)

 No âmbito do decurso seguinte da exposição, que agora, com a reconstituição

do automatismo imanente do valor processual em seu movimento como capi

tal, diferencia-se essencialmente da exposição precedente, encontramos no

final do primeiro volume de O capital uma passagem, na qual Marx resume o

curso da explicitação das categorias do ponto de vista dessa decifração:

 Na medida em que o mais-valor de que se com põe o capital adicional n. 1 resultou

da compra da força de trabalho por uma parte do capital original, compra que obedeceu

às leis da troca de mercadorias e que, do ponto de vista jurídico, pressupõe apenas, da

 parte do trabalhador, a livre disposição sobre suas próprias capacidades e, da parte do

 possuidor de dinheiro ou de mercadorias , a livre disposição sobre os valores que lhe

 pertencem; na m edida em que o capital adicional n. 2 etc. não é mais do que o resultado

do capital adicional n. 1 e, portanto, a consequência daquela primeira relação; na medi

da em que cada transação isolada obedece continuamente à lei da troca de mercadorias.

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A  EXP OSIÇÃO CATEGORIAL

segundo a qual o cap italista sempre com pra a força de trabalho e o trabalhador sempre

a vende — e, supomos aqui, por seu valor real — , é evidente que a lei da apropriação

ou lei da propriedade privada, fundada na produção e na circulação de mercadorias,

transforma-se, obedecendo a sua dialética própria, interna e inevitável, em seu diretooposto. A troca de equivalentes, que aparecia como a operação original, torceu-se a

 ponto de que agora a troca se efetiva apenas na aparência, pois, em primeiro lugar, a pró

 pria par te do capital troca da por força de trabalho não é mais do que uma par te do

 produto do trabalho alheio, apropriado sem equivalente; em segundo lugar, seu produtor,

o trabalhador, não só tem de repô-la, como tem de fazê-lo com um novo excedente. A

relação de troca entre o capitalista e o trabalhador se converte, assim, em mera aparência

 pertencente ao processo de circulação, numa mera forma, estranha ao próprio conteúdo

e que apenas o mistifica. A contínua compra e venda da força de trabalho é a forma. Oconteúdo está no fato de que o capitalista troca continuamente uma parte do trabalho

alheio já objetivado, do qual ele não cessa de se apropriar sem equivalente, por uma

quantidade maior de trabalho vivo alheio. Originalmente, o direito de propriedade apa

receu diante de nós como fundado no próprio trabalho. No mínimo esse suposto tinha

de ser admitido, porquanto apenas possuidores de mercadorias com iguais direitos se

confrontavam uns com os outros, mas o meio de apropriação da mercadoria alheia era

apenas a alienação [Veräußerung] de sua mercadoria própria, e esta só se podia produzir

mediante o trabalho. Agora, ao contrário, a propriedade aparece do lado do capitalista,como direito a apropriar-se de trabalho alheio não pago ou de seu produto; do lado do

trabalhador, como impossibilidade de apropriar-se de seu próprio produto. A cisão entre

 propriedade e trabalho torna-se consequência necessária de um a lei que, aparentemente,

tinha origem na identidade de ambos. (23/609-10 [ed. bras. O capital, vol. I, pp. 658-9])

Essa passagem textual é de interesse não só porque designa o ponto dentro

do sistema de categorias em que “a análise histórica deve ser introduzida”,

como diz Marx no  Rascunho, mas também porque ela tem uma importânciasumamente questionável na crítica que Engels faz a Eugen Díihring e porque,

desse modo, é possível demonstrar que a formulação da gênese histórica

do capitalismo industrial não pode acontecer se quisermos fazer jus à teoria

marxiana.

Queremos omitir aqui uma abordagem mais detalhada da temática da con

trovérsia. A objeção essencial contra a “teoria do poder” de Eugen Dühring

consiste em que a análise do “papel do poder” só pode ocorrer em conexão

com uma análise precisa da respectiva fase do desenvolvimento do domínio danatureza. Abstraindo-se disso, a discussão não só fica abstrata no mau sentido,

 porque a form a que o poder assume de qualquer modo já é degradada a algo

secundário, mas também é iminente o risco de deixar de perceber a conexão

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SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

real entre economia e política e de explicar as “relações econômicas como

resultado das ações políticas”. Esse foi o caso de Eugen Dühring e, em face

disso, Engels teve de insistir na “primazia da economia”. Nos trabalhos pre

 paratórios para o Anti-Dühring,  Engels anota que, em O capital, Marx teria

 provado “como as leis da produção de mercadorias, num a certa fase do desen

volvimento, necessariamente dão origem ã produção capitalista com todas as

suas sacanagens, e que, para isso, nenhum poder se fa z necessário” (20/591).

 No próprio Anti-Dühring, consta então isto:

Porém, para explicar a “subjugação do ser humano visando ao trabalho servil” em

sua forma mais moderna, no trabalho assalariado, tampouco podem os nos valer do uso

da força, nem da propriedade obtida pela força. Já mencionamos que papel desempenhou

na dissolução do antigo sistema comunitário, ou seja, na generalização direta ou indi

reta da propriedade privada, a metamorfose dos produtos do trabalho em mercadorias,

a sua confecção não para consumo próprio, mas para troca. Ocorre, porém, que Marx

demonstrou de modo cristalino, em O capital — e o senhor Dühring tem o cuidado de

não menciona r isso nem com uma sílaba — , que, num certo grau de desenvolvimento,

a produção de m ercadorias se transforma em produção capitalista e que, nessa fase

[Engels passa a citar Marx, H. R.], “a lei da apropriação ou lei da propriedade privada,

fundada na produção e na circulação de m ercadorias, transforma-se, obedecendo a sua

dialética própria, interna e inevitável, em seu direto oposto. A troca de equivalentes, que

aparecia como a operação original, torceu-se a ponto de que agora a troca se efetiva

apenas na aparência, pois, em primeiro lugar, a própria parte do capital trocada por

força de trabalho não é mais do que uma parte do produto do trabalho alheio, apropria

do sem equivalente; em segundo lugar, seu produtor, o trabalhador, não só tem de repô-

-la, como tem de fazê-lo com um novo excedente. [As frases seguintes de Marx, refe

rentes à relação de troca entre capital e trabalho como uma aparência pertencente ao

 processo de circulação, não são citadas por Engels, que prossegue a citação assim:]Originalmente, a propriedade [em vez de o direito de propriedade, H. R.] apareceu

diante de nós como fundada no próprio trabalho. [Nas próximas frases, que voltam a

referir-se à relação da circulação simples das mercadorias, Engels procede do mesmo

modo:] Agora [ ...] a propriedade aparece do lado do capitalista, como direito a apropriar-

-se de trabalho alheio não pago ou de seu produto; do lado do trabalhador, como im pos

sibilidade de apropriar-se de seu próprio produto. A cisão entre propriedade e trabalho

torna-se consequência necessária de uma lei que, aparentemente, tinha origem na iden

tidade de ambos”*. [Engels continua, H. R.] Com outras palavras: mesmo que excluamos

* Ver Karl Marx,  Das Kapital, vol. I, em: Karl Marx e Friedrich Engels, Werke,  vol. 23, pp. 609-10. Ed. bras. O capital, vol. I, p. 659. (N. do T.)

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 A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

a possibilidade de qualquer rapina, ato de violência e trapaça, mesmo supondo que toda a

 prop riedade privada se baseia origina lmente no trabalho próprio do possu idor e que, em

todo o longo transcurso ulterior, foram trocados sempre valores equivalentes, ainda

assim, no desenvolvimento progressivo da produção e da troca, chegamos necessaria

mente ao presente modo de produção capitalista [...]. Todo esse processo se explica a

 partir de causas puramente económ icas, sem que urna única vez tivesse sido necessário

o roubo, o uso da força, o Estado ou a interferência po lítica de qualquer natureza. (20/51-

-2 [ed. bras.]*)

Com certeza, teria sido difícil para Eugen Díihring acompanhar essa “prova

cristalina”, dado que essa passagem extraída da obra de Marx só diz o que

Engels gostaria de provar mediante uma desfiguração grotesca, uma “prova”que só é propriam ente compreensível diante do paño de fundo da controvérsia

 polí tica que estava na ordem do dia naquela época. Mas não é disso que se

trata aqui. O essencial é, muito antes, que Engels constata uma conexão neces

sária entre circulação simples de mercadorias e capitalismo desenvolvido, mas,

ao mesmo tempo, só consegue interpretar nesse sentido a exposição marxiana

das categorias ã custa de uma falsificação forçada.

Essa contraposição abstrata de violência e autodinamismo econômico não

existem em Marx. Se a própria exposição categorial ainda deve ser compreendida como forma codificada de exposição do movimento que historicamente

leva ao capitalismo, se, portanto, se demonstra que o capitalismo industrial

está implantado no próprio dinheiro e que só o desdobramento dialético das

categorias na forma adequada, a saber, na forma da necessidade, reflete expli

citamente o que desde sempre já era imanente ao processo histórico, então isso

implica, ao mesmo tempo, que, em cada categoria, os atos de poder da história

do mundo estão como que “suprassumidos” . O sujeito burguês livre e o movi

mento conscientemente executado do valor processual, que se evidencia no

ser-outro como um universal que se mantém idêntico e se engrandece nesse

movimento, não têm como existir sem o seu complemento, a capacidade viva

de trabalho que produz mais-valor. E esse mesmo sujeito livre produz essa

capacidade, se necessário, com a força bruta, ao transformar a possibilidade

de mais-trabalho na realidade de um m ais-produto.

* Referência completa da ed. bras.: Friedrich Engels. A revolução da ciência segundo o senhor  Eugen Dühring (Anti-Dühring). Trad. Nélio Schneider. São Paulo. Boitempo. no prelo. (N. do T.)

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SOBRE A  ESTRUTURA LÓG ICA DO CONCEI TO DE CAPITAL EM KARL MARX 

[...] é evidente que, se a existência de trabalho excedente  supõe certo desenvolvimento

da produtividade do trabalho, a mera possibilidade desse trabalho excedente (isto é, a

existência daquele mínimo de produtividade do trabalho) ainda não gera a sua efetivi

dade. Para isso, é mister que o trabalhador seja antes coagido a trabalhar além do tem

 po necessário, e essa coação exerce-a o capital. (26.2/408-9 [ed. bras. Teorias da mais- 

-valia, vol. II, p. 838])

Como essa ocorrência se apresenta sob a forma da explicitação categorial?

 No  Rascunho, imediatamente após a formulação da recém-mencionada “con

versão dialética” , Marx passa para a exposição da “acumulação primitiva”. Ali

cons ta o seguinte:

Por outro lado, o que é muito mais importante para nós, o nosso método indica os

 pontos onde a análise histórica tem de ser introduzida, ou onde a econom ia burguesa,

como simples figura histórica do processo de produção, aponta para além de si mesma,

 para modos históricos de produção anteriores. Por essa razão, para desenvolver as leis

da economia burguesa não é necessário escrever a história efetiva das relações de pro

dução. Mas a sua correta observação e dedução, como relações que devieram elas pró

 prias históricas, levam sempre a primeiras equações [...] que apontam para um passado

situado detrás desse sistema, (42/373 [ed. bras. Grundrisse, p. 378])

Em O capital,  ele aborda esse tema somente após a exposição da “trans

formação de mais-valor em capital” e da explicitação das “leis gerais da acu

mulação capitalista”. Ele inicia o capítulo 24 com a formulação dessa “pri

meira equação”:

Vimos como o dinheiro é transformado em capital, como por meio do capital é

 produzido mais-valor e do mais-va lor se ob tém mais capital. Porém, a acum ulação do

capital pressupõe o mais-valor, o mais-valor, a produção capitalista, e esta, po r sua vez,

a existência de massas relativamente grandes de capital e de força de trabalho nas mãos

de produtores de mercadorias. Todo esse movimento parece, portanto, girar num círcu

lo vicioso, do qual só podemos escapar supondo uma acumulação “primitiva” [...],

 prévia à acumulação capitalis ta, uma acumulação que não é resultado do modo de pro

dução capitalista, mas seu ponto de partida. (23/741 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 785])

Esse ponto de partida do modo de produção capitalista, a separação entreo produtor e os meios de produção, é igualmente descrito por Marx ainda como

resultado do movimento do capital, como vimos ao tratar da crítica marxiana

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 A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

da teoria ricardiana da renda fundiária. Por conseguinte, até para conseguir

escrever a “historia real das relações de produção” ainda é pressuposta a expo

sição categorial e, desse ponto de vista, a “fórmula geral do capital” apresen

tada como contraditória adquire ainda outro significado. Ao nos mostrar, no

âmbito do desdobramento das categorias, como o capital “na realidade tem de

desembocar, apenas enquanto fo rma necessária, no trabalho que põe valor de

troca, na produção baseada no valor de troca” (U/946), isso também vale para

o processo histórico: “Esse movimento apresenta-se sob diversas configurações,

tanto como movimento que historicamente conduz ao trabalho produtor de

valor, como igualmente no interior do próprio sistema da produção burguesa,

i.e., da produção que põe valor de troca” (42/181 [ed. bras. Grundrisse, p. 197]).

Assim sendo, a “fórmula geral” do capital se posiciona, por um lado, como elo

necessário na “sequência” das categorias, do modo como ela “é determinada

[...] pela relação que têm entre si na moderna sociedade burguesa” [ed. bras.

Grundrisse, p. 60], Ela faz avançar a exposição categorial e se mostra simul

taneamente como forma derivada que só pode ser explicitada quando, no de

correr do desdobramento do “conceito geral”, o capital chegar a ser exposto

como capital circulante ou então como crédito. É nesse sentido que Marx diz,

na explicitação dessa passagem:

Compreende-se, assim, por que, em nossa análise da forma básica do capital, forma

na qual ele determina a organização econômica da sociedade moderna, deixamos intei

ramente de considerar suas formas populares e, por assim dizer, antediluvianas: o capi

tal comercial e o capital usurário. É no genuíno capital comercial que a forma D-M-D’,

comprar para vender mais caro, aparece de modo mais puro. Por outro lado, seu movi

mento inteiro ocorre no interior da esfera da circulação. Mas como é impossível explicar

a transformação de dinheiro em capital — isto é, a criação do ma is-valor — a partir da

 própria circu lação, o capita l comercial aparenta ser impossível, uma vez que se baseia

na troca de equivalentes, de modo que ele só pode ter sua origem na dupla vantagem

obtida, tanto sobre o produtor que compra quanto sobre o produtor que vende, pelo

mercador que se interpõe como um parasita entre um e outro. Nesse sentido, diz Franklin:

“Guerra é roubo, comércio é trapaça”. Se é evidente que a valorização do capital co

mercial não pode ser explicada pela mera trapaça entre os produtores de mercadorias,

um tratamento devido dessa questão exigiria uma longa série de elos intermediários, de

que carecemos no presente estágio de nossa exposição, ainda dedicado inteiramente

à circulação de mercadorias e seus momentos simples. (23/178-9 [ed. bras. O capital, 

vol. I, pp. 238-9])

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SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX 

Por outro lado, nessa contraditoriedade imanente à “fórmula geral” está

implicado ao mesmo tempo que o capital, nessa forma abstrata em que apare

ce historicamente pela primeira vez, aponta para além de si mesmo, para a

esfera da produção, passa a tomar conta desta e por fim se apropria dela. Con

tudo, não se deve pensar que esse processo tenha transcorrido linearmente; “a

simples existência da fortuna em dinheiro,  e até mesmo a obtenção de uma

espécie de supremacia de sua parte, de modo algum é suficiente para que ocor

ra aquela dissolução em capital.  Caso contrário, Roma antiga, Bizâncio etc.

teriam encerrado a sua história com trabalho livre e capital ou, antes, inaugu

rado uma nova história” (42/413 [ed. bras. Grundrisse,  p. 416]). Embora o

conceito geral de capital, na medida em que o explicitamos aqui (e tratou-se

apenas de uma fração da exposição total), nos mostre que a logicidade im a

nente ao movimento do valor dá origem ao capitalismo, que na própria mer

cadoria está implantado todo o capitalismo, de modo algum se pode derivar

do conceito geral do capital por que o capitalismo conseguiu se estabelecer

 prim eiro na Europa, só aqui podendo chegar a uma existência que corresponde

em maior ou menor grau ao seu conceito (como sabemos, O capital de Marx

só contém a exposição das relações reais, na medida em que são adequadas

ao seu conceito). É nesse ponto que terá de começar a investigação histórica,à qual Marx aponta o seu lugar bem determinado dentro de seu modo de ex

 posição de matiz especulativo, condicionado pela natureza peculiar do objeto:

“Porém, a extensão em que esse processo supera o modo antigo de produção,

como ocorreu na Europa moderna, e se coloca em seu lugar o modo de pro

dução capitalista, depende integralmente do nível de desenvolvimento histó

rico e das circunstâncias dadas com este” (25/608 [ed. bras. O capital, vol. III,

tomo 2, p. 108]). E nos Grundrisse consta assim:

É isso que se denomina efeito civilizador  do comércio exterior. Nesse caso, a exten

são com que o movimento que põe valor de troca afeta a totalidade da produção depen

de em parte da intensidade desse efeito desde o exterior, em parte do grau já alcançado

 pelo desenvolvimento dos elementos da produção interna — divisão do trabalho etc. Na

Inglaterra, p. ex., no século XVI e início do século XVII, a importação de mercadorias

holandesas tornou basicamente decisivo o excedente de lã que o país tinha de dar em

troca. Para produzir mais lã, a terra cultivável foi transformada em pastagem para ove

lhas, o sistema de pequenos arrendamentos foi desmantelado etc., teve lugar o clearing  o f estates [limpeza das propriedades] etc. Por conseguinte, a agricultura perdeu o cará

ter de trabalho visando à produção de valor de uso, e a troca de seu excedente perdeu o

caráter indiferente em relação à sua estrutura interna. Em certos pontos, a próp ria agri-

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 A E X P O S I Ç Ã O C A T E G O R I A L

cultura é inteiramente determinada pela circulação, é convertida em produção que põe

o valor de troca. Com isso, não só o modo de produção foi modificado, mas foram

dissolvidas todas as antigas relações de população e de produção e as relações econó

micas a ele correspondentes. Assim, nesse caso estava pressuposta à circulação uma produção que criava valores de troca só como excedente; mas ela deu vez a uma produ

ção que só tinha lugar relacionada à circulação, uma produção pondo valores de troca

como seu conteúdo exclusivo. (42/181-2 [ed. bras. Grundrisse,  p. 198])

Se compararmos essa formulação com as famosas formulações no ‘‘Pre

fácio” a Para a crítica da economia política, não há como ignorar que a sub

divisão da pré-história humana ali proposta em “diferentes épocas progressivas

da formação econômica da sociedade” permanece exterior ao assunto propriamente dito e deve ser concebida muito mais no sentido de uma tipologia. A

análise mais acurada do Rascunho  mostra que, por trás da exposição dialética

das categorias, oculta-se um conceito enfático de histór ia que só conhece duas

estruturas: relações nas quais a riqueza assume uma forma diferente dela mes

ma e relações em que isso não ocorre. Por essa razão, por mais que as diferen

tes formações sociais se diferenciem umas da outras, elas não têm história na

medida em que estiverem baseadas na apropriação da riqueza em sua forma

específica. Só o mundo distorcido é histórico, o mundo em que o próprio metabolismo se degrada à condição de veículo da caça permanente à riqueza

abstrata, em que ele é apanhado pela logicidade imanente desse processo e, ele

 próprio, ainda é estruturado por ele. Assim, parece legítimo pensar o processo

histórico como um processo que repetidamente se inicia, que tem como ponto

de partida o fundamento das estruturas a-históricas, retroage sobre elas, pene

tra nelas e as reconfigura, desagregando-as: “Por isso, as condições patriarcais,

 bem como as antigas (justamente como as feudais), declinam com o desenvol

vimento do comércio, do luxo, do dinheiro,  do valor de troca na mesma me

dida em que com eles emerge a sociedade moderna” (42/91 [ed. bras. Grun

drisse, p. 106]). De modo algum trata-se aqui de uma interpretação orientada

em Hegel, mas, ao inverso, a filosofia da história de Hegel é vista por Marx

como uma formulação dos fatos reais opaca para si mesma. Isso pode ser de

monstrado em sua apreciação das relações indianas. Do mesmo modo que

Hegel diz que a índia, apesar de toda a cultura, “acaba não tendo nenhuma

história”5, para Marx, a repetição do sempre igual não é razão suficiente para

falar de história: “A sociedade indiana não tem nenhuma história, pelo menos

não uma história conhecida. O que caracterizamos como sua história nada mais

é que a história dos invasores sucessivos que erigiram seus reinos sobre a base

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S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

dessa sociedade que não oferece resistência, que não se modifica” (9/220)*.

Sob esses pressupostos a Inglaterra pode as sum ir o pape l reservado, na filoso

fia de Hegel, para o encarregado dos negócios do espírito universal:

Certamente o mais vil interesse próprio foi a única mola propulsora que levou a

Inglaterra a provocar uma revolução social na índia e o modo como ela impôs os seus

interesses foi stupid  [estúpido]. Porém, não é esta a questão aqui. A questão é se a hu

manidade pode cum prir a sua destinação sem uma revolução radical das relações sociais

na Ásia. Se não puder, então a Inglaterra, não importando que crimes possa ter cometi

do, foi mesmo o instrumento inconsciente da história ao encaminhar essa revolução.

(9/133)**

Queremos interromper neste ponto a tentativa de reconstituir a exposição

dialética das categorias e ressaltar só mais alguns aspectos. Embora a nossa

interpretação, cuja provisoriedade queremos apontar mais uma vez enfatica

mente, tenha se ocupado apenas com uma fração das categorias, evidencia-se,

 por um lado, que há diferenças qualitativas no in terior da exposição global,

dependendo se se trata da exposição das determinidades formais da circulação

simples ou então da compreensão da autodinâmica do valor processual que tem

início com o entesouramento; por outro lado, é possível reconhecer na mesma

medida que praticamente nada se pode dizer sobre o método marxiano de

maneira dissociada da reconstituição da temática por ele exposta. A dialética

materialista — assim o fixamos, embora em nenhum lugar Marx o tenha enun

ciado desse modo — é método a ser reconsiderado, que é tão bom ou tão ruim

quanto o próprio mundo ao qual pertence. Nela se reflete que os próprios seres

humanos são os que se negam abstratamente ao deixarem a natureza mediante

o trabalho sob a forma da objetividade social, uma forma que se caracteriza

 por ser inteiramente constituída pela subjetividade, mas ao mesmo tempo pelo

fato de a subjetividade que a constitui desaparecer por trás dela. Desse ponto

de vista a passagem da esfera da circulação simples para o capital se evidenciou

como ponto de articulação da formulação, na medida em que nesse ponto é

demonstrado como o dinheiro na terceira determinação — enquanto produzido

 por todos os indivíduos e simultaneamente existindo independentemente de

* Do texto intitulado:  Die künftigen Ergebnisse der brit ischen Herrschaf t in Indien  [Os resultados futur os do domínio inglês na Índia], MEW, vol. 9, pp. 220-6. (N. do T.)

** Do texto intitulado:  Die br it isch e Her rsch af t in Indi en [O d om ín io inglês na índia], MEW.vol. 9, pp. 127-33. (N. do T.)

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 A E X P O S I Ç Ã O C A T E G O R I A L

todos os indivíduos — representa o pressuposto para que os seres humanos

 possam perseguir fins subjetivos, cujo conteúdo, junto com a forma e os meios

de realização, é totalmente condicionado pela atuação dos próprios seres hu

manos. O movimento que tem início com a existência do valor de troca autonomizado é, por isso mesmo, simultaneamente subjetivo e objetivo, e, não

obstante, um não é imediatamente o outro. Essa formulação do ponto de inter

secção de subjetividade e objetividade, que, na obra tardia, tem a mesma im

 portância do conceito da propriedade privada na obra inicial, é a que, pela

 primeira vez, pode justificar a pretensão metodológica de elaborar conceitual-

mente a sociedade capitalista de um modo em face do qual as formulações da

questão por parte da discussão metodológica das ciências sociais atuais não só

se mostram insuficientes, mas até mesmo ainda aparecem como expressão de

uma — nas palavras de Hegel — posição da ideia em relação à objetividade,

que Marx de qualquer modo já ultrapassou na exposição categorial.

O fato de Marx deixar de refletir sobre o método dissociado do objeto a ser

exposto implica que discussões metodológicas de qualquer modo já se encon

tram numa relação de exterioridade essencial com o objeto propriamente dito

e, portanto, esse objeto de antemão já foi posto numa determinada forma que

opõe dificuldades insuperáveis ao método. Nesse tocante, Marx não é menos

rigoroso que Hegel e isso explica também por que ele avalia as primeiras ini

ciativas desse procedimento como sinais de declínio da teoria econômica.

Mill foi o primeiro que apresentou a teoria de Ricardo em forma sistemática, embo

ra em esboço bastante abstrato. Esforça-se por conseguir coerência lógica, formal. “Por

isso” também começa com ele a desintegração  da escola ricardiana. No mestre, o que

é novo e importante desenvolve-se em meio ao “estrume” das contradições impulsio

nadas com vigor pelos fenômenos que se opõem. As próprias contradições subjacentes

testemunham a riqueza do fundamento vivo donde emerge a teoria. O discípulo tem

conduta diferente. Sua matéria-prima não é mais a realidade, mas a nova forma teórica

na qual o mestre a sublimou. Ora a oposição teórica dos adversários da nova teoria, 

ora o relacionamento muitas vezes paradoxal dessa teoria com a realidade  incitam-no

a procurar combater  a primeira e criar explicações  para o segundo. Nessa tentativa

envolve-se ele mesmo em contradições e representa, com a sua tentativa de resolvê-las,

o início da desintegração da teoria, que ele personifica de maneira dogmática. (26.3/80

[ed. bras. Teorias cla mais-valia,  vol. III. p. 1.139 modif.])

Marx não mais chegou a perceber que poderia estar se anunciando aí um

novo fenômeno. De acordo com a sua autocompreensão, a economia política

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S O B R E   /1 E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X  

só pode ser uma ciência que procura com penetrar teoricamente a objetividade

 produzida pelos próprios seres humanos e que acaba culminando em sua pró

 pria cr ítica da economia política que se entende como ciência a ser suprassu-

mida e somente como tal está em condições de obter uma compreensão realmente adequada do capitalismo. Considerado em termos metodológicos, o

capitalismo é para a teoria marxiana uma época mundial concluída, mesmo

que ela perdure na realidade. Nesse caso, a teoria é a teoria de um processo

que vai proliferando de modo similar ao natural, no qual os seres humanos,

como sempre foi, estão subsumidos na objetividade de suas próprias relações.

Contudo, enquanto existir essa forma de subsunção, haverá também o ponto

de vista do sujeito burguês, para o qual o seu próprio mundo se apresenta sob

uma única forma, a do objeto. Não obstante, ele pode transformar esse aperto

teórico numa virtude prática, perceber o objeto do começo ao fim sob essa

forma e, ao fazer isso, desenvolver uma ciência na qual esse objeto acabe apa

recendo na única forma como o sujeito sempre se apreendeu — na de objeto.

 N o tas

1 Apenas mencionemos aqui que isso ainda não esgota todos os aspectos dos dois exemplos.

Cf. o excurso sobre o conceito do tempo de trabalho socialmente necessário, nas pp. 179 e ss.deste livro.

2 Cf. o excurso sobre o conceito do tempo de trabalho socialmente necessário [pp. 179 e ss.].

3 É evidente que o metal em forma de moeda cunhada também pode ficar petrificado como te

souro, só que, nesse caso, ele é tido, em sua forma cunhada, como metal amorfo, que só possui uma form a ex terio r à sua função de não meio de circulação.

4 G. W. F. Hegel,  Die Vernunft in de r Geschichte  (ed. Hoffmeister). Hamburg, Felix-Meiner-Verlag, pp. 58-9.

5 G. W. F. Hegel,  Die Vernunft in der Geschichte,  p. 152.

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